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JOGOS DE LINGUAGEM MATEMÁTICOS DE CRIANÇAS DE UMA

COMUNIDADE DE CATADORES DE SÃO LEOPOLDO

Daiane Martins Bocasanta – Licenciada em Pedagogia, Mestre em Educação


e Doutoranda em Educação - UNISINOS
Joelma Guimarães – Licenciada em Pedagogia e Mestre em Educação –
UNISINOS

Este trabalho apresenta uma nova análise do material de uma pesquisa realizada
por uma das autoras em 2006. Tal estudo realizou-se com seis alunos da 2ª série
do Ensino Fundamental de uma escola municipal do Bairro Santa Marta, região
onde vivem catadores de resíduos sólidos para a reciclagem da cidade de São
Leopoldo –RS. O material examinado é composto por cadernos de matemática e
entrevistas. Os resultados de uma pesquisa são sempre parciais e provisórios.
Disso resulta o exercício realizado, em que se procurou atribuir outros sentidos ao
que outrora foi produzido. O objetivo da pesquisa foi identificar e analisar jogos de
linguagem que constituem a matemática escolar e aqueles praticados pela forma
de vida daquela comunidade, e que se identificou como possuindo semelhanças
de família com a matemática escolar. Como ferramentas teóricas, utilizou-se a
Etnomatemática em seus entrecruzamentos com o pensamento pós-estruturalista,
em especial com ideias de Michel Foucault e teorizações presentes na obra de
maturidade de Ludwig Wittgenstein. Esta pesquisa identificou e examinou
algumas marcas dos jogos de linguagem da matemática escolar, como o
formalismo, a abstração, a escrita, a linearidade e a transcendência em
contraposição às marcas da oralidade, da estimativa e da contingência presentes
nos jogos de linguagem da forma da vida do Bairro Santa Marta.

Palavras-chave: Matemática escolar; jogos de linguagem; Etnomatemática.

Introdução

Em 2006, uma das autoras realizou uma investigação que objetivou


identificar e examinar saberes matemáticos produzidos em práticas sociais de que
participavam os sujeitos da pesquisa – alunos de 2ª série de uma escola
localizada no Bairro Santa Marta, comunidade de catadores de São Leopoldo, RS
– estabelecendo relações com os conhecimentos que configuram a matemática
escolar, considerando a centralidade da cultura nesses processos. Naquele
estudo foi utilizada principalmente, a Etnomatemática como caixa de ferramentas.
Tendo em vista que os achados e resultados de uma pesquisa são provisórios,
passados quatro anos, retomamos aquela investigação, buscando trazer novos
elementos e discussões, que as lentes teóricas que hoje utilizamos nos permitem
visualizar. Não se trata aqui simplesmente da reescrita de um trabalho. Não
buscamos também mostrar que a análise que hoje podemos realizar é a melhor
ou a mais eficiente. O exercício a que nos propomos, consiste em analisar o
material empírico outrora produzido sob outro prisma.
A continuidade de nossos estudos possibilitou-nos que continuássemos
envolvidas no aprofundamento da discussão de questões outrora abordadas
através do contato com teorizações como aquelas desenvolvidas por filósofos
como Michel Foucault e Ludwig Wittgenstein. Desse modo, ao revisitarmos
nossos escritos, pudemos “enxergar” elementos que antes não nos pareciam tão
“evidentes”. Em especial, nesse trabalho, destacamos algumas ideias de
Wittgenstein, filósofo austríaco, cujas teorizações têm ajudado a repensar o
campo da educação matemática, em especial, a vertente denominada
Etnomatemática.
A partir dessa revisão, nosso objetivo com este trabalho é analisar os jogos
de linguagem que constituem a matemática escolar e aqueles praticados pela
forma de vida do Bairro Santa Marta e que identificamos como possuindo
semelhanças de família com a matemática em que fomos socializadas na escola.

Aportes teóricos

Em sua obra de maturidade, Investigações Filosóficas, Wittgenstein


apresenta uma nova maneira de pensar a linguagem. Para o filósofo, a
significação das palavras está intrinsecamente ligada ao uso que delas fazemos
em diferentes situações e contextos. Desse modo, para ele, não se deve mais
perguntar “o que é a linguagem, mas de que modo ela funciona” (CONDÉ, 1998,
p. 86) [grifos do autor].
Em Investigações Filosóficas, Wittgenstein anuncia o fim da busca pela
essência, isto é, de uma essência como propriedade comum a toda a linguagem
(CONDÉ, 1998). Desse modo, não existiria a linguagem, mas simplesmente
linguagens, ou seja, “diferentes usos das expressões lingüísticas em diferentes
jogos de linguagem” (Ibidem, p.92).
Nesse sentido, não é mais importante para a análise do significado das
palavras, a determinação de unidades mínimas formais, semânticas ou sintáticas,
nem a postulação de tais unidades como sendo os fundamentos do significado
(Ibidem, p. 65). Procura-se por outros critérios que forneçam o significado;
critérios esses dados pelo uso que fazemos das expressões nos diversos jogos,
isto é, nas diferentes formas de vida (Ibidem, p. 65). Desse modo, as expressões
adquirem funções diferentes de acordo com o contexto em que são empregadas,
o que modifica, portanto, o que se quer dizer com elas. Assim, não caberia
perguntar qual o significado de uma palavra, visto que, embora essa questão nos
direcione para a elaboração de uma resposta única, ela possui inúmeras
respostas. Dessa forma, “significações lingüísticas constituem um fenômeno
social, e esse ponto é crucial para que a concepção semântica seja substituída
pela concepção predominantemente pragmática” (CONDÉ, 2004, p. 47).
Entretanto, como podemos saber o que condiciona o modo de uso de uma
expressão? Como podemos saber em que sentido ela está sendo usada? A
compreensão dessas questões nos encaminha para outra noção fundamental na
obra de Wittgenstein, a de jogos de linguagem.
De acordo com Cláudio Costa (2002, p. 40), os “jogos de linguagem podem
em geral ser concebidos como sistemas localizados de regras lógico-gramaticais
determinadoras dos usos das expressões que neles incorrem”. Seguindo o
pensamento do autor, o que caracteriza um jogo de linguagem é que ele é parte
de uma forma de vida, sendo primariamente praticado em meio ao contexto social
em que vivem os falantes. Assim, “ao jogo pertencem não só as palavras, mas os
participantes, os objetos e outros elementos contextuais” (Ibidem, p. 40). Portanto,
respondendo à questão anteriormente proposta, o que condiciona o modo de uso
de uma expressão em uma certa ocasião é o seu uso correto em um dado jogo de
linguagem. Entretanto, dado o caráter múltiplo e variado dos jogos de linguagem,
as únicas conexões que esses possuem são como semelhanças existentes entre
membros de uma família (CONDÉ, 2004).

Semelhanças de família (Familienänhlichkeiten) (I. F. §§ 67, 77,


108) são, assim, as semelhanças entre aspectos pertencentes aos
diversos elementos que estão sendo comparados, mas de forma
tal que os aspectos semelhantes se distribuem ao acaso por
esses elementos. Esses aspectos semelhantes entrecruzam-se
aleatoriamente, sem repetir-se uniformemente. (CONDÉ, 2004, p.
53) [grifos do autor]

Desse modo, para Wittgenstein, a semelhança ou parentesco não é


identidade, pois, elas podem variar de um jogo de linguagem para outro. Elas
podem aparecer ou mesmo desaparecer completamente quando mudamos de um
jogo de linguagem para outro. Assim, se, por exemplo, analisarmos diferentes
tipos de jogos, como o jogo de boliche, o jogo de cartas, o jogo de dominó, entre
outros, não saberíamos dizer o que há de comum entre eles, pois não há uma
característica comum e invariável que constitua a todos, embora saibamos que
todos possam ser nomeados como jogos. Isso porque, eles estão “aparentados”
uns com os outros através de “semelhanças de família” (Ibidem, p. 94).
Como foi realizado por outros autores (KNIJNIK & WANDERER, 2007;
KNIJNIK, 2008), a partir das ideias de Wittgenstein, bem como, daquelas
presentes nas teorizações de Foucault, o grupo de pesquisa coordenado pela
professora Gelsa Knijnik tem buscado novos rumos para a Etnomatemática.
Como mostrou Knijnik (2008), o pensamento pós-estruturalista fornece subsídios
para desconstruir o ideário iluminista do qual somos herdeiros. A autora, servindo-
se das ideias de Foucault, destaca o interesse do filósofo no questionamento da
validade universal da qual se revestem alguns componentes da cultura Ocidental,
especialmente sua racionalidade. Assim ao “problematizar as "verdades" que
"fazem de nós o que somos" e ao indagar sobre as relações de poder-saber que
as instituem, Foucault nos daria elementos para examinar os discursos da
matemática acadêmica e da matemática escolar que circulam em nossa época”
(Ibidem, p. 139). Isto possibilitaria, segundo a autora, colocar sob suspeição uma
das metanarrativas iluministas, ou seja, aquela que instituiu a universalidade da
matemática (Ibidem, p. 139).
Sendo assim, neste trabalho, utilizamos na análise do material empírico, a
perspectiva da Etnomatemática, entendida como uma caixa de ferramentas que
possibilita:
estudar os discursos eurocêntricos que instituem as matemáticas
acadêmica e escolar; analisar os efeitos de verdade produzidos
pelos discursos das matemáticas acadêmica e escolar; discutir
questões da diferença na educação matemática, considerando a
centralidade da cultura e as relações de poder que a instituem;
examinar os jogos de linguagem que constituem as diferentes
matemáticas produzidas por distintas formas de vida (KNIJNIK &
WANDERER, 2007).
Dos jogos de linguagem

Seriar, classificar, comparar e ordenar materiais. Para aprender o número


“dois” é necessário ter antes aprendido o número “um”. No segundo ano do
Ensino Fundamental não se deve passar do número 99, afinal a ideia de centena
somente será trabalhada no terceiro ano. Para aprender a subtrair, antes os
alunos precisam aprender a somar. Calcular implica escrever. Observamos neste
estudo que os jogos de linguagem acima descritos configuravam a matemática
praticada na Escola Santa Marta. Diferentemente do que ali acontecia,
evidenciamos, a partir da análise das falas das crianças, que em seu cotidiano, os
jogos de linguagem que praticavam tinham outras características. Elas não
precisavam escrever para calcular o ganho obtido com a venda de resíduos
sólidos para a reciclagem ou ainda para saber qual o valor do troco a receber em
uma compra. Mesmo sem terem tido aulas sobre centenas, eles identificavam
números que ultrapassavam a casa dos milhares. Nos parece que os jogos de
linguagem que identificamos ali conformavam-se através de uma gramática
alicerçada nas marcas da contingência, enquanto que os jogos de linguagem que
configuram a matemática escolar são formados por uma gramática carregada das
marcas da transcendência, da linearidade, do formalismo e da abstração.
Sendo assim, a matemática ensinada na escola acaba obedecendo a uma
certa ordem. Para cada período de tempo, são desenvolvidas atividades
determinadas, sendo que só se ensina um conhecimento após o outro ter sido
“supostamente” aprendido. Desse modo, por exemplo, no início do ano, antes das
operações matemáticas, as primeiras atividades dos cadernos dos estudantes,
eram exercícios de reconhecimento de numerais e quantidades, como desenhar
quantidades associadas a numerais, escrever o número antecessor e o sucessor,
contar figuras e escrever o numeral correspondente etc sempre utilizando
numerais constituídos apenas de dezenas e unidades.
Entendemos que isso ocorre porque na escola os conhecimentos
matemáticos são estruturados de forma linear. Essa linearidade subentende, por
exemplo, que o desenvolvimento de atividades de reconhecimento de números e
numerais deve ocorrer de forma crescente, ignorando-se o que os alunos já
sabem. Desse modo, se não foram desenvolvidas atividades com números
maiores ainda, esses não aparecem nos cadernos, não são citados, são
esquecidos até que se chegue neles. Entretanto, na vida, eles estão a nos
esperar no mercadinho da esquina, na placa de numeração de nossas casas e
carros, no CEP das ruas, nos ônibus, nos números dos candidatos, nos carnês de
pagamento das contas da casa, no valor do aluguel etc. As necessidades
imediatas da vida não esperam o próximo capítulo do livro didático ou a lição
seguinte da professora. As respostas devem ser rápidas.
Na escola, o ensino dos números, ao mesmo tempo em que obedece a
lógicas que os ordenam e posicionam no pensamento dos sujeitos, são tratados
como eventos isolados dos significados concretos onde de fato “vivem”. Ninguém
fala, por exemplo 53, sem se referir a nada, pois não tem sentido. Fala-se, sim,
em 53 pessoas, 53 reais, casa 53, 53 lápis, ônibus nº 53 etc. Conforme Knijnik
(2000, p.2) “números e contas que têm sentido, ganham significado dentro das
diferentes situações em que estão sendo utilizados”. Acompanhando ainda o
entendimento da autora, tomamos-lhe emprestado o exemplo do número 2: se
atrasar dois minutos ao entardecer, para recolher o gado pode significar pouco,
um atraso de dois minutos para pegar o ônibus, pode significar a perda da
viagem. Ao desconectar os números e as práticas matemáticas dos significados
assumidos no interior das formas de vida a que se destinam, “o que as escolas
tentam ensinar as crianças a fazer é esquecer e suprimir esses significados, num
esforço de universalizar o raciocínio lógico” (WALKERDINE, 1995, p.224).
Isso nos remete a entendimentos advindos da leitura de estudos do filósofo
e matemático René Descartes (1996) que, em seu método traz um dos preceitos
essenciais da lógica cartesiana: “conduzir os pensamentos por ordem” (Ibidem,
p.7). Numa visão cartesiana o pensamento é conduzido por uma ordem que inicia
com aquilo que se apresenta como mais fácil e que, gradativamente, vai
evoluindo para o que se apresenta como mais complexo. Uma estrutura
compartimentalizada do conhecimento humano que pode ser representada pela
metáfora da árvore.
Segundo Gallo (2003), a representação da metáfora arbórea, se dá pela
imagem de uma grande árvore cujas longas raízes devem estar presas a um solo
firme, tendo seu tronco ramificado por galhos. Quanto mais subimos em direção
às pontas de seus galhos, mais a árvore do conhecimento se especializa. Essa
metáfora nos proporciona o entendimento do modelo cartesiano presente nos dias
de hoje em nossa educação escolar.
Buscamos, então, relações com a frase “Penso, logo existo”, de Descartes
(1996, p.39). Aqui, o filósofo estabelece o “método cartesiano”, que institui a
“dúvida” como sua premissa maior. Nesse método, o filósofo descreve que só
podemos afirmar que alguma coisa existe se ela pode ser provada. Segundo
Damásio (1996, p. 279), Descartes “sugere que pensar e ter consciência de
pensar são os verdadeiros substratos de existir” (Ibidem, p. 279). Essa ideia
funda o método cartesiano, que consiste em quatro itens básicos, descritos na
segunda parte do Discurso do Método (DESCARTES, 1996). Para o autor
(Ibidem) a existência do método consistia inicialmente em verificar as evidências
das “coisas”. Em segundo lugar analisar, dividir ao máximo as “coisas” para
melhor poder estudá-las. Sintetizar, ou seja, conduzir o pensamento por ordem,
agrupando as partes estudadas num todo verdadeiro. E ao final enumerar tudo o
que havia concluído, mantendo o pensamento ordenado.
Ao estudar o método cartesiano, encontramos “vestígios” no modelo da
escola contemporânea, e, portanto, naquilo que aqui buscamos analisar, ou seja,
a matemática escolar. Observamos que cartesianamente a escola fragmenta os
jogos de linguagem que compõem sua matemática, ordenando-os de forma a
começar por aquilo que se considera o mais simples para então evoluir para o
que se considera mais complexo. O ápice desse processo seria, então, atingir o
chamado raciocínio abstrato.
Observamos que ao seguir esse modelo, a matemática escolar, acaba por
limitar até mesmo a função dos números em nossa vida, como podemos
visualizar na sentença a seguir, reproduzida de um caderno de uma aluna de 2ª
série da Escola Santa Marta:
Copia:
Os números
Os números servem para contar coisas, objetos. Com eles
dizemos a quantidade:
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20...
Os números são infinitos.
Então vamos escrever as dezenas até 90?
Há aqui, o “esquecimento” de que somos histórica e culturalmente
construídos, de que nos fala Walkerdine (1995). Sabemos que os números
invadem nossa vida de tal forma que é impossível sairmos de casa sem nos
depararmos com eles. Ainda assim, a escola lhes atribui apenas um significado.
Para atingir a abstração – princípio tão caro à Racionalidade ocidental – o
significado de “contar coisas” basta. Isso evita, talvez, mal-estares advindos de
uma discussão acerca dos usos dos números nos computadores (que poucas
escolas podem disponibilizar para seus alunos), ou sobre as desigualdades
sociais advindas da má distribuição de renda. Para uma matemática
pretensamente “neutra”, “científica” e “desinteressada”, ou melhor, interessada
unicamente em promover a chamada abstração intelectual, essas discussões
políticas e sociais não têm lugar.
Outro aspecto que destacamos, é que se nos jogos de linguagem que
identificamos como tendo semelhanças de família com os jogos de linguagem da
matemática escolar, o cálculo oral e a estimativa bastam, na gramática escolar, os
cálculos, ainda que se efetivem na “cabeça”, precisam seguir algumas regras para
terem sua validade assegurada. A primeira regra é a escrita. O formalismo da
matemática escolar impõe a escrita como via única para o reconhecimento de
seus jogos de linguagem. Knijnik (2006b) problematiza essa questão, estudando
as relações entre a escrita e a oralidade, na matemática escolar. Segundo a
autora, a escrita é marcada pelo formalismo e abstração das sentenças
matemáticas e dos algoritmos. Já a oralidade seria formada por outras estratégias
e por uma racionalidade contingente, que demarcaria a distância com o
formalismo da escrita.
A oralidade que marca os processos de cálculo realizados em contextos
extra-escolares, ainda que a escola teime por deixar do lado de fora das salas de
aula, se faz presente, contamina a assepsia que marca os jogos de linguagem da
matemática escolar. Sempre há aqueles alunos que antes mesmo de terminar de
copiar o exercício já perguntam: “precisa armar a continha?”. Esses estudantes
muitas vezes já sabem o resultado dos cálculos de antemão, mas o formalismo da
escola impõe a escrita como régua de medir conhecimentos. Saber “armar as
continhas” e resolvê-las dessa forma é praticar matemática na escola. Nos
cadernos e folhas de exercícios que analisamos na pesquisa, observamos que a
maioria dos cálculos propostos para as turmas de 2ª série eram os denominados
“cálculos armados”.
No mesmo sentido, a ordenação cartesiana da matemática escolar define
que os conhecimentos devem se estruturar de forma crescente, do mais simples
para o mais complexo. Disso resulta, por exemplo, que os alunos precisam
chegar no 6º ou 7º ano do Ensino Fundamental – espaço e tempo considerado
certo – para começarem a utilizar na escola os números decimais, enquanto que
na vida, os utilizam desde cedo, conforme pudemos observar nas falas de alunos
de 2ª série da Escola Santa Marta:

Pesquisadora – Como tu compras os pregos? É por quilo ou é


por pacote?
Leonardo – Não é que lá tem os pacotes de pregos. Os grandões
são R$ 5,50.
Pesquisadora – E quanto teu pai te dá de dinheiro para comprar
os pregos?
Leonardo – R$ 10,00.
Pesquisadora – E quanto é que dá de troco?
Leonardo – R$ 4,50.
Pesquisadora – Como é que tu sabes?
Leonardo – É porque eu faço a conta. 4 mais 5 dá 9. Daí no 4 vai
50, mais no R$ 5,50 dá mais R$ 1,00, que fica 10.

Nota-se que o modo de calcular o troco que este aluno enuncia é diferente
da forma que se ensina na escola. Na escola, para resolver uma situação-
problema em que fosse necessário calcular o troco de uma compra,
invariavelmente se ensinaria os alunos a realizarem um cálculo de subtração.
Assim, se a situação descrita fizesse parte de um exercício escolar, para saber
quanto alguém receberia de troco caso utilizasse uma nota de dez reais para
comprar um pacote de pregos que custa quatro reais e cinqüenta centavos, o
aluno deveria “armar” um cálculo em que primeiro “cortaria” as vírgulas para após
começar a subtrair pela “casa” das unidades, localizada mais a direita do número,
avançando no sentido direita/esquerda até a “casa” das centenas. Tudo isso
utilizando, é claro, um método capaz de “conferir certa confiabilidade” ao cálculo,
ou seja, a escrita. Diferentemente desse processo, o aluno entrevistado subverte
essa lógica descrevendo o jogo de linguagem de calcular o troco utilizando um
cálculo oral de adição iniciado pela casa mais a esquerda dos números.
Observamos que os jogos de linguagem utilizados por esses sujeitos para
resolverem as situações cotidianas, diferem dos jogos que são legitimados na
matemática da escola. No espaço escolar o “lugar certo” das coisas do currículo
além da escrita dos algoritmos, não permite que ao invés de iniciar a adição ou a
subtração pelas unidades, se inicie o processo pelas dezenas, que se
decomponha os números para efetuar as operações matemáticas, ou se realize
estimativas. Dessa forma, ao desconsiderar esses jogos, a escola contribui
significativamente para a construção de discursos como “a matemática é difícil”,
“a matemática é para poucos”, entre outros que circulam pelos espaços
escolares. Entretanto, pensamos que se torna difícil gostar, aprender algo que
não encontra eco nas práticas matemáticas próprias de cada forma de vida. O
que ocorre aqui é uma “operação” etnocêntrica, efetivada por aqueles que
possuem o saber socialmente legitimado e que, por isso, caracterizam como sem
valor o que não seja sua produção cultural (KNIJNIK, 2006a).
As práticas orais, que marcavam os jogos de linguagem que identificamos
como possuindo semelhanças de família com a matemática em que fomos
socializadas, não têm uma receita, e parecem estar sempre em constante
processo de renovação e recriação. Já na matemática praticada na escola, a
resolução de cálculos se efetiva através de regras de certo modo invariáveis,
como as que mencionamos acima. Para Knijnik (2006b), devemos indagar que
pedagogias estão sendo postas em ação nas práticas escolares marcadas pela
escrita e nas práticas orais. Sendo os jogos de linguagem marcados pela
oralidade, transmitidos no âmbito familiar, eles estão sempre a “re-inventar-se”, ao
contrário dos jogos de linguagem escolares que são marcados pela repetição de
um modelo (Ibidem). Assim, “ensina-se o algoritmo, como se ele fosse a-histórico,
“puro”, transcendente. E então, “pede-se” aos sujeitos escolares que “apliquem”
tal conteúdo em uma situação concreta...” (Ibidem, p. 7).
Considerações finais

Ao finalizarmos este trabalho, pensamos ter conseguido atribuir outros


sentidos ao já produzido. Isso contribuiu para nos mostrar o caráter provisório dos
conhecimentos gerados em nossas pesquisas, o que não significa jogar fora o já
produzido em nome do novo, mesmo porque, como nos diz Costa (2007, p. 149),
“o novo não é necessariamente melhor do que o velho”. As lentes usadas hoje
não foram as mesmas de ontem e nem serão as mesmas de amanhã. Nenhuma
será melhor ou pior. Entendemos como Larrosa (2007, p. 128) que “todo texto é
um prólogo (ou um esboço) no momento em que se escreve, e uma máscara
mortuária alguns anos depois, quando não é outra coisa a não ser a figura já sem
vida dessa tensão que o animava”. Essa é a sensação que nos invade a cada
escrita que encerramos. A de que o texto é apenas o prelúdio de algo que está
por vir. Assim, conseguimos vislumbrar possibilidades de pensar diferente e de
prosseguir pesquisando e produzindo estudos no campo da Educação.

REFERÊNCIAS

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KNIJNIK, Gelsa. Educação Matemática, Etnomatemática e a luta pela terra. In:
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