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EXPERIÊNCIA CRISTÃ DE UM

PENSADOR CONTEMPORÂNEO

@.,,*,
O Presses de la Renaissance, Paris,1997 .

Tradução: Paulo Feneira Valério


Direção geÍal'. luaní PUI5a
Coordenação editorial: N oemi D arfu a
Revisão de texto: Maria Estela de Alcantara
Gerente de produção: Antonio Cestaro

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@ Pia Sociedade Filhas de São Paulo - São Paulo, 1999


Senrrlnárro N. Senhora S' Coraçâo
Avenirja [;'"'etl. 0l
ctP 03377 -CCO
Vila Fcrr,,üla - São Paulo ' SP
Na noite em que morri, aconteceram coisas estra-
nhas em meu apartamento parisiense. Tudo começou
quando eu agonizava tranqüilamente. Eu estava com
cem anos, ou quase isso. Não sofria, não me angustiava
mais e, ao extinguir-me, eu pensava. Mas eu também
aguardava.
Talvez fossem nove horas da noite. Encontrava-me
então sozinho no quarto. Do outro lado do tabique, meu
sobrinho Théophile conversava com Marzena, minha se-
cretâria, minha enfermeira, indispensável, e polonesa.
Aquilo que eles diziam não era interessante. Eu espera-
va, sem ouvir. Meu sobrinho se inquietava.
resistência!
- Que
Dir-se-ia que ele espeïa alguma coisa, ou alguém.
-
É pouco provável. Logo ele, que odeia esperar. E
o que -diz ele?
Nada. Não diz nada. Mas cada vez que alguém
entra -em seu quarto, ele estremece, entreabre os lábios. A
seguir vem o torpor de novo,
Sou aquele a quem eleespera.
-
O senhor Guitton não espera ninguém.
-
um minuto, você disse o contrário.
- Contudo, há
- Como o senhor sabe
que eu disse isso?
Porque eu aquele a quem ele espera. Vá
- que cheguei.sou
dizer-lhe
Mas quem devo anunciar?
-
Diga{he que seu'encontro marcado'chegou.
-
Estupefata, Marzena bateu à porta de meu quarto.
Eu havia fechado os olhos para melhor refletir. Enquanto
ela se aproximava de minha cabeceira na ponta dos pés,
percebi que meu sobrinho ficara sozinho com o desco-
nhecido.
tempo que o senhor conhece Jean Guitton?
-Faz
Desde o ano em que nasceu.
-
Desde o ano em que nasceul Mas ele tem cem
-
anos! Qual é, então, a sua idade?
De onde eu venho, os anos não se contam.
-
8
mo. Em todo caso... ele não está morto.
Amanhã. Amanhã estará tudo acabado. Até lá,
- temos algo a tratar.
ele e eu
Enquanto meu sobrinho saía, desconcertado, minha
secretária voltava, tendo recebido minhas ordens.
O senhor Guitton vai recebê-lo, senhor.
- Eu bem que lhe disse. O que você está olhando?
-
-Queméosenhor?
Ele sorriu, inclinou-se para ela e sussurrou-lhe uma
palavra ao ouvido. Ela caiu desmaiada sobre o sofá, e o
desconhecido, sem mais olhar para ela, entrou em meu
quarto.
O visitante sentou-se sem cerimônia à beira do meu
leito. Eu estava estirado, mas um pouco erguido, com a
cabeça apoiada sobre um travesseiro. Agora eu estava de
olhos arregalados. Falava com alguma dificuldade, com
voz rouca.
O senhor me esperava, Mestre? perguntou-
-
me ele. -
pensamentos mais sutis sobre os mais tênues movimen-
tos de seus lábios. Isso eu posso fazer. O que me diz?
Aceito o procedimento. De repente, sinto-me me-
-
lhor; talvez seja a euforia do fim. Aproveitemos isso para
discutirmos a fundo, pela última vez, assuntos que nos
interessam. Por favor, pode chamar minha enÍermeira
para que ela ajeite meu travesseiro?
Pode deixar que eu mesmo ajeito disse ele.
-Tendo -
ajeitado, olhou-me fixamente e perguntou:
O senhor tinha vontade de falar comigo, não é?
-
Não respondi. Jamais simpatizei com você.
- - -
Contudo, o senhor me esperava.
-
Eu sabia que você viria, é só.
-
Na sua opinião, por que seu anjo da guarda não
-
me impediu de entrar?
Não sei. Pergunte-lhe.
-
Talvez ele simplesmente não exista.
-
Se ele não existe, você também não existe.
-
10
Quem, portanto, nesta noite, tem o poder de torná-los
vazios? Quem os leva à confusão? Pobre Guitton, velho
imbecil, tu jogaste e perdeste. Tu te julgaste tão inteligen-
te quanto este jogador de Pascal, e eis que teus bolsos
estão vazios, como ele. Em algumas horas, não mais exis-
tirás. Apenas uma bela estátua de filósofo de cera, firme
enquanto dura uma cerimônia. Alguém te fotografarâpara
te colocar na primeira página do Match, o rosário entre
teus dedos gelados, indício de tuas ilusões, resíduo de
teu medo do nada, última mentira daquilo a que chama-
vas fé. Ele enferrujará na lama de tua decomposição. Ah!
Ah! Ah!
Eu estremeci de pavor ante este riso que parecia vir
de mim, mas que não provinha de mim. Perguntei:
está rindo assim?
- Quem
Tu mesmo pareceu-me responder-me. Tu ris
por te- teres mentido - á vida inteiru. Tu és por demais
inteligente para não te teres dado conta; contudo, não
tens mais a força de continuar a representar a comédia.
11
um indivíduo racional.
Quando falei dessa forma, o desconhecido reapa-
receu.
Como o senhor pode ser assim tão inumana-
mente- cerebral? perguntou-me ele. O senhor não
tem uma carne? - -
É você, o puro espírito, que me pergunta isso?
- tive poder sobre o senhor por este lado.
Embora- ]amais
o tenha tentado, algumas vezes. O senhor nem
sequer percebeu. Um verdadeiro donzelo de sacristia.
eu fingisse que não percebia.
-Talvez
O senhor teria, então, tanta virtude?
- Não
tenho a impressão de possuir a virtude, mas
antes -uma natural sobriedade; e quando isso faltou, uma
ajuda divina.
Ele sobressaltou-se e retrucou:
por que o senhor aceita dialogar comi-
- Guitton,
go? Não sou eu seu pior inimigo?

12
não é o que me preocupa. Amanhã estarei morto. Mas há
um século que eu penso nesse momento. Desde os no-
venta anos, digo a mim mesmo: Guitton, você precisa
saber com certeza, antes de morrer, o que existe depois
da morte. Então, procurei a verdade sobre esta questão.
Procurei durante toda a minha vida.
E daí, o senhor encontrou?
- Eu tenho a impressão de tê-la encontrado se

-
eu continuar a procurâ-la, e somente por esse motivo é
que eu não o expulsei.
Se o senhor ainda está procurando, significa que
ainda -não encontrou.
A partir do momento em que a gente não mais
- perde
procura, aquilo que encontrou. Ao contrário, quanto
mais a gente encontra, mais a gente procura.
Não compreendo.
- Talvez
seja porque você nem procurou, nem en-
-
controu.
13
-
necessidade
-
de'prova. A prova de umaldéia não aconte-
ce sem provação. A provação é mais categórica, imposta
por um adversário.
Eu sou seu adversário disse-me ele, olhando-
-
me diretamente nos olhos. -
Vamos ao essencial. Fale-
-
mos sinceramente. Quando o senhor se dispôs a buscar a
verdade sobre o cristianismo, o senhor já era cristão. O
senhor estava ligado ao cristianismo pela educação, pela
tradição, pelos costumes. O senhor desejava que fosse
verdadeiro. Como pode pretender ter sido objetivo? O
senhor simplesmente buscou os motivos que lhe permi-
tissem crer e tentou refutar aqueles que permitiam duvi-
dar. O senhor procedeu à racionalização de uma decisão
tomada a priorie sem razão.
Não sou insensível a argumentação
- com tranqüilidade sua
pondi-lhe mas ela diz respeito tan-
to a você quanto a mim. Se você-, deseja que o cristianis-
mo seja falso, você procurará as razões para não acredi-
tar nele.
I4
desculpe o egoísmo -
porque você me é útil em minha
-,
busca pessoal da verdade. E você me é útil permitindo-
me ser mais objetivo e materiaTizar a resistência do cético
que eu sinto em mim. Mas a única maneira de vencer
este cético interior é convencê-lo.
Ele sorriu e deixou sair numa voz doce:
O senhor quer dizer: persuadi-lo.
- Persuadir verdadeiramente,
ou seja, sem mani-
pular,-e convencer o coração de que ele encontrou o uer-
dadeirobem.
O verdadeiro bem! Mais uma coisa: o que signi-
-
fica isso?
É o que procurei saber durante toda a vida.
- E que
o é ele, o verdadeiro bem?
- Isso não lhe interessa; deixe-me morrer.
- O senhor ainda não está morto. Em duas pa-
lavras?-
O amor universal.
-
15
senhor Como o senhor quer ser honesto se
não duvida?
Mas você, que julga duvidar, como deseja ser
-
honesto se você não duvida de sua dúvida?
Porque duvidar faz parte do método racional
para se- chegar à verdade. A dúvida gera tábula rasa.
Assim é que nasce a liberdade do espírito. E esta liberda-
de, Guitton, exclui sua fé.
É preciso duvidar, mas duvidar bem. Você está
-
convicto de que duvida bem? Você acredita que duvida
de tudo, mas você não duvida dessa própria dúvida. A
dúvida verdadeiramente universal incluiria mesmo uma
dúvida sobre a dúvida. Um espírito verdadeiramente crí-
tico incluiria uma crítica da crítica. Veja, meu amigo-ini-
migo, é dessa maneira que eu sou crítico ou tento sê-lo.
Ela me parece racionalmente superior. E esta dúvida não
gera tábula rasa. E ela introduz numa liberdade mais subs-
tancial, que se dá bem com minha fé.
O senhor renuncia à razáo.
-
76
17
2. M€u testamenk)
Entrou, então, um homem, docemente, na ponta dos
pés, em trajes civis do tempo de Luís XIII, tendo nas
mãos um pequeno chapéu com penas.
Pronto pensei comigo ei-lo de novo. A
- - -,
bem da verdade, não; certamente trata-se de alguém, mas
não é ele. Quem é você? perguntei ao desconhecido.
-
Você não me reconhece? admirou-se ele.
- -
Você fez meu retrato. Você o conservou exposto em seu
-
escritório por vinte anos.
O quê? Aproxime-se! Mais perto, não distingo
-
bem seus traços. Céusl Blaise Pascal! Estou sonhando.
Estou tendo alucinações. É o fim.
Não, você não está sonhando. Sou eu mesmo.
-
Mas eu não o esperava!
-
Eu sou o Inesperado. Em outras palavras, eu
-
venho da parte de Deus.
18
ajude-mea endireitar-me, por favor.
- Marzena,
Mestre, não convém.
-
Estoulhe dizendo que me sinto melhor. Marzena,
-
não me obrigue a fazer esforço, senão você me mata.
Então ela me ajudou a sentar-me sobre a cama e
colocou travesseiros suplementares atrás de minha cabe-
ça e de minhas orelhas. Ela, porém, não era cuidadosa,
não era jamais cuidadosa, e depois reclamava que eu ja-
mais estava satisfeito. Quantos torcicolos não tive por
causa de sua negligência! Mesmo se não morro, estou
deitado durante dois terços do dia. É minna higiene de
vida. Foi assim que me tornei centenário. Daí a importân-
cia dos travesseiros.
Não, vejamos, atrás da cabeça. Não, assim não.
-
Não mais. Mesmo assim. Não desse jeito, não estou à
vontade.
Pronto, Mestre.
- Não, não está bem.
-
T9
Sinto-me realmente melhor. Pergunto-me se não
- uma vez representar para eles a comédia testa-
vou mais
mentária.
comédia é essa?
- Que
A partir do momento em que fiz oitenta anos,
- me senti como o pássaro
sempre sobre o galho. Então,
cada vez que eu escrevia um livro, fazia um tipo de pre-
fácio no qual eu explicava que este seria meu último li-
vro, minha última mensagem, meu testamento. Fiz assim
mais de uma dúzia de vezes. No final, isso chegava a
divertir todo mundo. Pensavam que eu estava gagá. Mas
eu, a cada vez, sentia-me esgotado pelo esforço e acredi-
tava que iria morrer.
Cuitton, você teve a sorte de viver cem anos.
-
Você realmente teve o tempo de terminar sua obra.
* Você teve mais sorte do que eu, Pascal. Você teve
apenas o tempo de esboçá-la. Os esboços são sempre mais
belos. Mas, afinal, diga-me por que você me veio ver.
Gostaria de interrogá-lo.
-
20
lhe devolver a bola.
Você se esqueceu de como é o mundo. Creia-me,
Pascal,- sempre haverá alguém para contar aos jornais nos-
sas conversas. Devo ser bem sucedido em minha partida.
Se caio no edificante, dirão que morri gagá.
Essas mentalidades mudarão. Elas já estão mu-
dando. - Fale pela sua salvação, escreva para a eternidade,
e assim você permanecerá atual. Então, como você expli-
ca a indiÍerença religiosa?
O homem é ao mesmo tempo um animal religioso
e um -animal materialista. Ele é naturalmente religioso e
naturalmente materialista. Igualmente, tem ele a tendência
a fabricar materialismos religiosos e religiões materialistas.
Esse animal religioso seria levado, portanto, a
-
materializar sua religião?
Exatamente. E a sacralizar seus materialismos.
Cura -de uma doença, sucesso de uma empreitada, apro-
vação em exames etc. O que ele pede a Deus e Dele espe-
ra são bens materiais unicamente.
27
critico,- mas sim o abuso.
Mesmo em relação aos abusos, acho você severo.
Apesar - de material em seu conteúdo e interesseira em
seus motivos, a oração de petição pode ter ainda algo
mais espiritual do que você imagina. Ademais, Guitton, a
caridade tudo desculpa.
A caridade. Hoje em dia, para as pessoas, isso
-
significa a esmola.
Para mim, significa sempre o amor divino.
-
As palavras se desvalorizam mais rapidamente
ainda -do quã a moeda. À fotça de querermos ser carido-
sos, perdemos o senso crítico.
É menos grave do que perder a caridade.
-
Vê-se logo que você passou pelo purgatório. Você
-
não pensava assim no momento em que escreveu as Pro-
ainciais.
Guitton, não imite as malevolências dos homens.
-
Imite a bondade de Deus.
22
-
tese, que ele não tenha jamais rezado senão por isso. Qual
a idéia que ele poderia ter de Deus?
A de uma aspirina celeste, suponho. Quaì a rela-
-
ção com a indiferença religiosa?
Invente a aspirina, e Richelieu deixa de rezar.
- Ele deixa de ser igualmente um animal
Entendo.
-
religioso?
De forma alguma. seu Deus ter-se-ia torna-
- um Deus ocioso,Mas
do ocioso, Pascal, como existem tantos
em muitas religiões, um Deus que sabemos estar Iá, mas
a quem não cedemos nenhum espaço, nenhum papel em
nossa vida. Um Deus a quem não rezamos mais ou quase
nunca.
Se o compreendo bem, Guitton, o progresso téc-
nico é-a causa da indiferença religiosa.
Desde que desenvolveu seus meios técnicos, o
homem - pede aos técnicos muitas coisas que até então ele
pedia a Deus. Subitamente, ele não se ocupa mais com
z3
do a pedir-lhe antes aquilo que agora podemos provi-
denciar por nós mesmos. Ele não suporta a idéia de um
ser superior, cuja utilidade material ele não mais percebe.
Mas afinal, Guitton, Deus quem nos deu a inte-
- e as mãos. Nossas técnicasé permanecem sempre
ligência
um dom de Deus.
Não vou contradizê-lo. Digo-lhe como pensam
-
as pessoas. Foi você quem perguntou.
É verdade que as pessoas se interessam de novo
-
pela filosofia?
Trata-se, sem dúvida, de um sinal da volta do
- também pela
interesse religião. Tudo isso caminha junto.
A filosofia também se interessa por Deus.
Em sua opinião, Guitton, em um povo religiosa-
mente- indiferente, a filosofia seria atingida pela mesma
inutilidade que a religião?
Sem dúvida. As multidões ficariam satisfeitas
com o- paraíso material, com a salvação da medicina e
com a providência do Estado. A tais sentimentos, toÍna-
24
mos séculos têm sido completamente agitados pelas gran-
des místicas da História, da Liberdade, do Progresso etc.
Ouvi dizer que elas não fazern mais tanto suces-
-
so nos dias de hoje.
É verdade. A técnica tem efeitos perversos. As
- por suâ vez, colocam os problemas
ciências, metafísicos.
As místicas políticas fracassaram. Existe de novo um lu-
gar para a religião.
Sim, mas para qual? A autêntica ou a materia-
lista? -
Para as duas, Pascal, e também para as misturas
-
das duas.
Diga-me, Guitton, o que poderia hoje ser uma
-
religiosidade materialista.
Um artigo de luxo dá aos materialistas saüsfei-
-
tos satisfações suplementares. Emoções ou percepções es-
tranhas, exóticas e supérfluas, na ordem da sensibilidade
e da curiosidade. Ressacralização de um erotismo desen-
cantado. Gosto pelo fantástico e pelo horror, esoterismo e
25
-
ginação?
A purificaçãodo intelectoe do coração.
- Pascal,
o que é a purificação do intelecto?
-
Três coisas: a ciência exata, a sabedoria crítica e
- aquela
a fé pura, que não procrlra sentir. Jamais deve-se
opor estes valores do espírito, pois eles formam um siste-
ma, e cada um se enfraquece sem a ajuda dos outros
dois. Guitton disse ele sorrindo você é um homem
-
hábil. Você é quem -,
deve responder, e eu devo interrogar.
Volte, por favor, à indiferença religiosa. E me diga: a
situação está ou não perdida para a religião?

- Acho que
ser humano,
não. Por duas razões. A primeira: todo
no fundo, é religioso. O materialismo
religioso é apenas um desvio. Sempre haverá lugar para
uma religiosidade mais alta. Além do mais, um ser ver-
dadeiramente religioso se preocupa menos com o tempo
do que com a eternidade. Ele vê o tempo sob o prisma da
eternidade.
O tempo não lhe interessa?
-
26
sa, não poderá desaparecer?
Ela voltará ainda por algum tempo, não nas for-
-
mas materialistas que, ao contrário, ainda vão desenvol-
ver-se, mas em formas mais elevadas.
E para você, essa regressão terá um fim?
- Segundo meu parecer, sim. A evolução técnica
-
da humanidade a colocará sempre mais em perigo de
morte. Para dominar o perigo, somente o crescimento da
santidade.
Mas isso não seria um retorno à religião materia-
lista e-interesseira?
Sim e não, Pascal, pois o paradoxo será que nós
teremos- sempre mais necessidade de uma religião santa
e verdadeira, não de uma religião materialista. A reli-
gião, embora exigida pela utilidade da vida prática, não
servirá para nada, contudo, se ela não for autêntica, espi-
ritual e desinteressada. Pois assim é que ela pode fomen-
tar o compromisso, o amor, a amizade. O futuro é da
santidade.

27
É por você, não por mim, que eu a faço. Você
ainda -precisa respondê-la.
Como você sabe que ainda preciso?
- Eu a vi Deus.
em
- Você bem
falou do homem chamando-o quimera
-
incompreensível! Eu, que falo com você, não consigo pen-
sar que a coisa seja absolutamente anormal. E um segun-
do depois, penso no além, em Deus, e tenho dúvidas,
preciso de provas. Será que minha vida, se eu soubesse
vê-la, não bastariapara convencer-me e persuadir-me?
Nesta noite, nada tenho a responder. Você é que
-
deve explicar. Guitton, por que você crê em Deus?
Já lhe disse que não gosto de responder assim.
Não é-o meu jeito. PreÍiro o suave, o esÍuminho, o sfumnto.
Na minha idade, não vrtu meter-me a fabricar definições,
demonstrações, silogismos. Aquilo que fez meu sucesso
neste mundo vil, sobretudo nos meus últimos anos, foi...
Guitton, trata-se de sua salvação. Por que você
- em
acredita Deus?

28
devamos erguer-nos sobre a ponta do espírito.
Mas em que sentido você tem dificuldade em
-
crer em Deus?
de poder deduzir sua existência a partir
de mim.- Gostaria
Vejo que é impossível. Nesse sentido, tenho difi-
culdade. Mas se eu acreditasse assim, não seria acreditar,
e o Deus ao quaÌ eu aderiria não seria Deus. Portanto,
não poder acreditar assim me ajuda a crer.
Mas, e se você pudesse deduzir Deus?
- Ele estaria no meu nível e não
seria Deus.
-
mas tudo isso permanece negativo.
- Sim, o ajudam a crer verdadeiramente noComo
tais dificuldades Deus
que é Deus?
Porque, de todo modo, Pascal, eu creio no Abso-
-
luto. Portanto, se eu não creio em um Absoluto que não é
Deus, forçosamente creio em um Absoluto que é Deus.
Para mim, está claríssimo. Isso bem original.
- Nem tanto assim. Descartes é
escreveu, em Règles
pour la- direction de I'esprit [Normas para a direção espiri-
29
-
Essas duas palavras designam uma realidade
-
idêntica, mas evocam duas idéias diferentes. A paiavra
Absoluto traz ao nosso pensamento a Origem radical, o
Princípio fundamental do ser e do espírito, o absoluta-
mente Primeiro, Aquele que permanece eternamente, im-
perecível e sem origem, o Ser cuja vida sustenta todas as
coisas. Nada mais, mesmo se isso não for pouco. Contu-
do, a idéia de Deus é ainda mais rica. Eia inclui tudo
aquilo que se diz do Absoluto e mais alguma coisa.
O que seria, então?
-
Quando pronunciamos esta enorme palaura:
-
"Devs", pensamos no Absoluto como em Alguém. Esse
Absoluto é um Ser que pensa, que deseja, que ama. Deus
é alguém a quem podemos ÍezaÍ.
A idéia de Deus é, portanto, aquela de um Abso-
- é, ao mesmo tempo, Pessoal.
luto que
Pascal. Em sentido amplo, Deus é o
- Exatamente,
Absoluto. No sentido estrito, Deus é mais que o Absolu-
to, ele é Deus.
30
Perfeitamente.
- Estou de acordo, vá lá que seja. Mas voltaremos a
-
esse ponto. Para você, a escolha não é, portanto, entre crer
em Deus e ser ateu, mas entre duas crenças: uma em um
Absoluto não Pessoal, e outra em um Absoluto Pessoal.
É exatamente isso: entre o Absoluto Pessoal e
-
Transcendente, de um lado, e o Absoluto não Pessoal e
não Transcendente de outro. Em termos técnicos, trata-se
da escolha entre o teísmo e o panteísmo. A reflexão sobre
essa escolha ocupou toda a minha vida, quando compa-
rei, por exemplo, em minhas teses, as relações do tempo
e da eternidade em Plotino e santo Agostinho ou o con-
ceito de desenvolvimento em Hegel e Newman. Duas
idéias de Deus, duas idéias do homem, duas idéias das
relações entre a eternidade e o tempo, portanto, duas
idéias ainda do destino.
Explique melhor os termos dessa escolha. O que
-
você entende por panteísmo?
Desejoso de reunir tudo na unidade de uma úni-
-
ca representação, o panteísmo encerra em suas redes tudo

31
Ele não se define em relação à totalidade. Aiém do mais,
essa totalidade não é divina, não têm o direito à letra
maiúscula. Deus é transcendente, pessoal, livre, criador.
Ele criou livremente, nada o constrangeu a isso. Nada se
assemelha mais a Deus do que os seres pessoais. De uma
maneira sublime, mas real, Deus conhece, Deus quer, Deus
fala, Deus ama.
Esse Deus teísta não é uma imaginação antropo-
-
mórfica?
homem, não uma
realidade teomórfica?
- o é ele
E
imagem.
- Nós fazemos Deus à nossa
E Deus nos faz à sua. Um certo antropomorfis-
-
mo, Pascal, funda-se na realidade do teomorfismo. Um
certo antropomorfismo, não importa qual.
Na opinião, portanto, Guitton, trata-se de
- entresua
escolher estas duas idéias de Absoluto?
Sim, e também entre duas idéias do homem e
-
de sua salvação. Como fazer essa escolha, esse é o único
problema importante, segundo meu parecer. F{ude, um
32
no sentido amplo, ou seja, ateu do Absoluto. Ele é ape-
nas ateu em sentido estrito, ou seja, ateu de Deus no
sentido estrito.
-. Mas ele continua ateu.
mas não mais do que aquilo que isso seja.
- Sim,sou ateu, e você também é ateu, Pascal. Você
Eu também
é ateu do Deus dos estóicos, do Deus de Giordano Bruno
e do Deus de Pomponazzi, como eu mesmo sou ateu do
Deus de Spinoza, do Deus de Hegel, do Deus de Taine e
de Renan.
Temos que nos resignar. Somos sempre ateus de
algum- Deus.
incréu de alguém. Mas somos sempre
- E também o
demasiadamente crédulos; daí, não nos damos conta. Aquilo
que mais falta a nossos cristãos, Pascal, é ser ateus. De
minha parte, sou ateu do Deus de Nietzsche, do Deus de
Marx, do Deus de Freud. Um ateu jubilante, um ateu ímpio.
O Vir-a-ser, a História, o Inconsciente
-
são também Absolutos. - esses
-
Guitton, você distingue o,Absoluto-que-é-Deus
-
e o Absoluto-que-não-seria-Deus. E seu primeiro passo.
Qual será o segundo?
Este, Pascal: afirmo que todo mundo admite o
-
Absoluto.
Isso é uma
coisa certa?
- Isso
se demonstra por uma indução perfeita.
Tome-sucessivamente as escolas de pensadores que al-
guém pudesse julgar atéias e você verá que elas admitem
o Absoluto. Os materialistas concebem a matéria como
um Absoluto incriado e imperecível, ou como um Vir-a-
ser eterno, ou como uma Morte imortal, ou ainda como
uma Vida universal, ou uma Natureza infinita, mas sem-
pre como um princípio primeiro, radical e irredutível a
nada mais que isto: o Absoluto. Quanto aos idealistas, ele
reduzem a matéria a apenas um correlato do espírito, e,
para eles, o Espírito, ou o Eu, ou a Razão é que é como o
Absoluto.
34
Ao contrário. O nada tomaria logo uma maiús-
cula e-nós estaríamos diante de uma metafísica nihilista
onde o Absoluto seria conhecido como Nada. Um Nada
que não seria nada e que provavelmente não seria aquilo
que docilmente entendemos por essa palavra.
Conseqüentemente, todo mundo admite o Abso-
- perdoe-me, meu caro Guitton, tenho
luto. Mas ainda uma
dúvida. E aqueles que não querem o Absoluto? O que me
diz deles?
É necessário distinguir. Ou eles estão revoltados
contra- o Absoluto, e, portanto, admitem-no como real,
sem no entanto querer amá-lo ou obedecer-lhe (primeiro
caso); ou eles imaginam que sua recusa poderia impedir
o Absoluto de ser e, nesse caso, pensam que sua vontade
é um Absoluto que seria Vontade, com letra maiúscula.
Portanto, eles admitem ainda como real um Absoluto: a
Vontade (segundo caso); ou ainda (terceiro caso), eles pre-
tendem que simplesmente não haja Absoluto, mas, então,
seja este um desejo ineficaz e voltamos ao primeiro caso,
seja algo mais que isso e voltamos ao segundo caso.

35
admitir, todos, o Absoluto. Para ter razáo, porém, é ne-
cessário ter uma razáo capaz de agir. Seria este ainda o
caso, se acaso não o admitíssemos? Pascal, sem a idéia da
verdade,oqueéarazão?
Agora você me pegou, Guitton, agora você me
-
pegou. Estou vendo como você vai aumentar sua vanta-
gem. Pois, sem a ação profunda e oculta dessa idéia do
Absoluto, o que seria da idéia da verdade?
Mais flexível, meu querido Pascal, do que os
- de algibeira nas pinturas de Salvador
relógios Dali, inca-
paz de servir como norma para o avanço do espírito. Mas
é preciso refletir um pouco para se convencer.
Portanto, Guitton, se resumo bem seu pensamen-
- idéia do Absoluto, não há idéia-força de verdade,
to, sem
e sem idéia-força de verdade, não existe razã.o capaz de
agir. Sendo assim, não existe razáo que não encerre de
algum modo uma idéia do Absoluto e que não funcione
graças a ela. Mas essa idéia do Absoluto não poderia ser
apenas uma estrutura de nossa razão? Nesse caso, o real
e o Absoluto não seriam incognoscíveis?

36
Nesse voltaríamos à metafísica nihilista e
- ainda ecaso,
teríamos sempre razão de admitilo.

- Guitton,
você é diabólico!
Puxa! Você também? Até você me diz isso?
- Isso o espanta?
-
Oh não... nada
-E nos calamos. mais me espanta.

Pascal retomou:

- Permite-me que resuma toda a sua exposição?


Fique à vontade.
- Primeiro tempo:
você define os termos Absoluto
- Segundo tempo: você
e Deus. estabelece que nós, de fato,
admitimos o Absoluto. Terceiro tempo: você mostra que
todos nós temos razão de admitiìo, o que significa tam-
bém dizer que existe necessariamente algum tipo de Ab-
soluto. Tudo isso está muito claro. Contudo, por mais
que todo mundo admita à razão a existência do Absolu-

3/
em função da vida futura.
Alguém dirá ainda que essa regulamentação da
- é o fruto do acaso, como a vida.
matéria
Pessoalmente, não creio nisso de modo algum.
-
O conceito de acaso envolve a idéia de uma não-coorde-
nação de diversas causas. Ora, o mundo vivo manifesta,
sem nenhuma dúvida possível, uma coordenação entre
as evoluções e os Íatos que a admissão do acaso obrigaria
a crer independentes. Observe, por exemplo, os instintos
dos animais, sobretudo daqueles que são os mais mecâ-
nicos, como os insetos. Considere o exemplo do Esfex,
dado por Bergson, em L'Éaohttion créatrice IA evolução
criadora], que dá três picadas paralisantes exatamente
nos três centros nervosos do grilo em que ele vai deitar
seus ovos e que ele jamais vira antes. Isso quer dizer que,
de uma maneira ou de outra, a anatomia cla espécie para-
sitada estaria codificada com uma grande precrsão nos
genes do inseio parasita. Como você pode deixar de per-
ceber a coordenação aí?

38
-
Suponho que, para eles, é mais ou menos a mes-
-
ma coisa.
Com efeito, aí está o problema.
- De acordo com minha idéia, esses mesmos fatos
- que o mundo sairia de Deus por um desenvolvi-
excluem
mento necessário e fatal, como se o Absoluto fosse uma
planta que chegasse a produzir sementes ou uma defini-
ção que desenvolvesse seus teoremas. O caráter contin-
gente e coordenado do mundo implica em sua origem
uma liberdade organizadora e uma criação a partir do
nada, ex nihilo.

Tendo assim falado, fechei meus olhos mais uma vez.


Por entre minhas pálpebras entreabertas, percebi que
Pascal meditava. Ele esperou que eu reabrisse os olhos
para me declarar:

- Tenho a impressão de
que você ainda não me deu
o medula de sert pensamento. Entregue-se um pouco mais.

39
- a minha liberdade.
atentado
você não respeita seu anjo da guarda?
-__ Guitton,
Ele me trata de qualquer jeito. Observe, isso só
traz desvantagens. Desde que me queixei disso aos meus
colegas livres-pensadores da Academia, eles, que viam
em mim um eclesiástico acabado, olham-me como uma
vítima da Intolerância.

-Issoéaverdade?
_É. apolítica.
E você já
se queixou de lá de cima?
aos
-
lhes pedi uma centena de vezes que me man-
- fá
dassem um outro, mas eles não querem nem saber.

- Console-se. Um dia se falará do Anjo de Guitton


como se fala do demônio de Sócrates.
Isso não! Sócrates obedecia seu demônio. Quan-
- recuso-me
to a mim, a escutar meu anjo.
Você se recusa?
-
Recuso-me.
-
40
é pascalino.
É verdade. Como é que isso acontece?
- Demasiado criativo. Você não consegue jamais
-
se ater a um pensamento tal como ele é. Você o rePensa
sempre. Você "guitoniza" tudo.
Não consigo evitar.
- Eu seria o último a recriminá-lo, Guitton. Eu era
- que você. Fale-me mais de você.
pior do
Sou um velho platonista cristão, um agostiniano,
como -se diz. Começo a ficar mais ou menos cético, como
todo mundo. Depois, compreendo que isso não dá, que
existem verdades, especialmente o eu penso, eu sou, eu
vivo, e as matemáticas, e a biologia etc. Se existem verda-
des fundadas, há um critério absoluto e um fundamento
radical dessas verdades. Existe, portanto, uma Verdade
primeira e absoluta. Ser um espírito é viver no seio dessa
Verdade, sob a luz desta Verdade, no carninho que é um
movimento eterno em direção a essa Verdade. Mas aqui-
lo que não é verdadeiro não é. A verdade é o ser verda-
41
ção e com o tempo. É o tema maior de minhas duas teses,
em 1935: a grande, sobre Le Temps e I'éternité chez Plotin et
saint Augustin IO tempo e a eternidade em Plotino e san-
to Agostinho], a pequena, sobre L'Idèe de déaeloppement
chez Newman [A idéia de desenvolvimento em Newman].
Esse é também o tema de meu livrinho lustification du
temps lJustificação do tempol.
Tudo isso está bastante claro.
- Para
você, Pascal, para você. Se algum dia eu
- nossas
publicasse conversas, seria preciso cortar isso.
De jeito
nenhum!
-
Oh sim! Confie em mim, Pascal. Eu sei como se
faz um- livro.
Por que
- Para você sempre pensa no público?
- Ao ele é que eu vivo.
contrário, você fala disso de uma maneira
- a pensar que você
que leva não vive a não ser para sua
glória.
42
Mais tarde, em minha vida, por volta dos ses-
-
senta, tornei-me de novo platônico. Poder-se-ia dizer que
me tornei mais místico, mas não sou suficientemente pie-
doso para ser um verdadeiro místico. Pensei que Bergson
tinha negligenciado demais o tema da eternidade. Talvez
a aproximação da morte, as desilusões... Meu livro Histoire
et destinée [História e destino], de 1,960, marca essa mu-
dança de meu pensamento. Era como se a vida fosse sem-
pre mais um sonho, e o tempo, uma ilusão. Era como se
toda a duração de um ser se resumisse a um ponto indi-
visível, do qual o tempo seria apenas o desdobrar-se. Mas
a fé na liberdade me mantém nessa tendência, que me
conduziria ao panteísmo. Contudo, às vezes eu duvido
da liberdade.
Como você sai dessa dúvida?
- Duvidando. Se eu não fosse livre, não duvidaria.
Enfim,- lâ para o fim de minha vida, as razões físicas
cosmológicas assumiram mais importância em meu Pen-
samento.
43
"Ele se foi", disse a mim mesmo. Eu estava conten-
te. Fico sempre contente quando as pessoas se vão. Mes-
mo que eu as ame, é mais forte do que eu. Para meditar,
desejo a solidão. Por que ele terminou dizendo que teve
razáo em vir? Esse ponto me ocupou por alguns instan-
tes. A seguir, avistei seu chapéu sobre a cadeira. Ele se
esqueceu do chapéu... Talvez volte para buscá-lo. Não.
Sem dúvida, é para que eu não tenha a impressão de ter
sonhado. E se eu sonhei? Em todo caso, ao menos por
rrmavez, não terei tido um sonho idiota.
Foi quando entrou Marzena, ainda mais descon-
certada.
Mestre, Mestre!
-
O que há?
- Mestre, a
coisa continual
-
O que é que continua?
-Ela desabou em
soluços.
Mestre, estou ficando louca!
-
44
Oh não, seria um fato, nada mais. Mas isso me
-
espantaria. Pegue o chapéu e dê-mo.
Apalpei o chapéu.
É deveras surpreendente.
- Ah sim, sobretudo porque a coisa continua!
- É verdade. O que você queria dizer-me quando
-
você entrou?
mais um.
-F{â
Um o quê?
-
Um morto, um morto que vive!
-
E que você deseja mais que ele faça?
-
- Que permaneça morto, como todo mundo.
Olhe, estas coisas são demais para você. Como é
esse
-
morto?
-- Com um chapéu-coco.
Chapéu-coco? Espere. Traje cinza, três peças,
- estreito,
listrado, óculos redondos com armação de aço,
bengala.
45
46
Bergson! Vivo!
- "f,1n pessoa, a eternidade finalmente o trans-
-
forma".
E eu morrendo!
- Você é "o velho que se aproxima da Fonte
-
eterna".
Bergson, aí está você a citar Hugo e Mallarmé...
- você convida os poetas ao leito de um filósofo
Por que
prestes a morrer?
Estranha
circunstância esta de nosso reencontro.
-
Quando eu o conheci, Guitton, você era um jovem e eu
era bem velho. Você prometia. E mostrou. Hoje, nós nos
vemos de novo, tendo um e outro completado nossos anos.
Mas eu sou jovem em minha eternidade, e você é velho
em seu tempo. Esse agudo paradoxo tem algo de imenso
e de sublime que me enche a alma como de uma emoção
poética. "Pois o jovem é belo, mas o velho é grande".

bastante?
Um filósofo jamais responde o bastante.
- Então
você também quer questionar-me? Mas
-
isso é ridículo! Primeiramente, você foi meu mestre; de-
pois, você vê tudo em Deus, e eu nada sou. Não, não
estou a fim.
Pois deveria.
-
Mas então, quando poderei ter descanso?
-
Logo, logo.
-
Isso tudo me cansa.
-
Tudo isso o honra. Além disso, trata-se de sua
-
salvação.
Está tão comprometida?
-
Ele nada respondeu. Deixei escapar um longo sus-
piro. Ele me perguntou:
Em sua opinião, o cristianismo é antigo ou mo-
derno?-
48
"a Ìetra mata; o espírito é que faz viver".
- Guitton, pensei eu: do Céu, você me absolveria.
- Assim
No entanto, fiquei atormentado por remorsos.
É excesso de delicadeza, Guitton. Cinqüenta anos
depois- de minha morte, eu não era mais uma pessoa
privada ou um sujeito jurídico no meio de sua sociedade.
Tinha-me tornado uma personagem histórica. Meus es-
critos, quaisquer que fossem, haviam-me escapado das
mãos. Não eram mais propriedade minha. Pertenciam à
humanidade. Alguém se pergunta se Napoleão teria fica-
do feliz com ver publicadas certas cartas inflamadas que
ele escreveu a Joséphine?
Sempre fui pudico. Um pouco chocado, contentei-
me com responder:
Jamais permiti que minha mulher lesse as cartas
-
de Napoleão.
|oséphine era ninfomaníaca. Napoleão não teria
sido -
mandado para a ltália, foi morto nas coxas de sua
mulher.
49
Sim respondi achei por bem autorizar a
-
publicação. -
Muitos filósofos-, se aborreceram com isso.
Posso imaginar, sobretudo aqueles que tinham
- sobre mim: deveriam ser refeitas. Eles teriam
feito teses
preferido colocar-me sob confisco até a amortização do
capital deles.
A isso é que se chama, no mundo, de respeito à
vontade- dos mortos.
Guitton, em que pé estávamos?
- Você
me Íazia enrubescer, Bergson.
-
Com os elogios! E para terminar, digo que, no
- contas, você teria sido mais moderno do que
final das
alguns de seus contemporâneos, muito mais célebres do
que você no tempo deles. Ou melhor, no instante deles.
Eu queria já pensar no mundo universalizado
-
que eu pressentia. Eles viviam na imediatez, sobre uma
cena mais reduzida: o Ocidente de sua geração.
Tal fama já cheira a mofo, enquanto você,
-
Guitton, você rejuvenesce ao envelhecer.
50
Seria preciso pensar o Oriente e o Oci-
dente,- a Antiguidade e a Modemidade, e aí dentro, o
cristianismo.
Tente.
- O Oriente e nossa Antiguidade
se parecem bas-
tante. -Seu ponto comum é o panteísmo cósmico: o Abso-
luto não é o Deus da Bíblia; é o Ser, ou o Nada, ou a
Natureza e a Substância do Mundo.
E a Modernidade?
- É
o Ocidente do humanismo ateu, Bergson, o
- moderno.
panteísmo
dizer que o Homem é o Absoluto?
- Quer
Sim, e que ele decide o bem e o mal, que ele é a
medida- de todas as coisas.
A maioria dos ocidentais que se pretendem mo-
dernos- considerar-se-iam antes céticos, ateus ou agnósticos.
São ateus do Deus cristão, mas não estão livres
-
de toda metafísica. Recusar toda dependência é colocar o
homem no cume do Ser.
51
ou tem como propriedade os direitos do próprio Absolu-
to? O Ocidente é a ambigüidade sobre esse ponto.
Não existe uma relação privilegiada entre o Oci-
dente -e o cristianismo?
O cristianismo introduziu as idéias de pessoa e
-
de liberdade. Ele quebrou a lei de ferro do Destino anti-
go. Ele abriu a totalidade cósmica e social, até então fe-
chada sobre si mesma. Ele abriu o Destino à transcendên-
cia de Deus, Ele mesmo livre de todo Destino.
Guitton, o que você acha do Iluminismo?
-
Querer a liberdade sem o cristianismo tarefa
difícil.- As idéias de pessoa e de liberdade formam- uma
unidade com a idéia de um Deus pessoal.
O Iluminismo é, portanto, uma contradição?
- Ele está em tensão entre seu pólo metafísico pan-
teísta,- que inspira racionalismos totalitários, e seu pólo
ético-político, que aspira à liberdade.
Guitton, pode-se dizer que o Iluminismo parasi-
taria o- cristianismo?
52
O que poderia sair de uma tal união?
-
A síntese do nihilismo e da atividade.
- Isso não inquietante?
é
-
No mais alto grau. O nihilismo é civilizado so-
mente- se for feito de abstenção, de piedade, de doçura e
de indiferença. Veja o budismo. Mas o nihilismo ativo...
é seu nome?
- Qual
O fascismo, Bergson, o fascismo.
-
Guitton, o fascismo é o futuro do mundo?
-
Talvez. Estou muito contente de morrer. Paulo
VI me- dizia que, sem Deus, os direitos do homem desa-
pareceriam.
Será que alguém acreditará nisso antes que se
-
consuma?
Ele se deteve, pensativo. Retomou:
Guitton, você não está sendo severo demais com
-
o Iluminismo?

53
Guitton, como você explica que o panteísmo seja
-
uma tendência natural do espírito humano?
Tendência equívoca. Em primeiro lugar, a essên-
cia do- pecado de orgulho é nada suportar acima de si
mesmo. Uma consciência orgulhosa permanece infeliz até
que não consiga fazer-se Deus em idéia. Em segundo
lugar, talvez exista no homem um obscuro desejo da en-
carnação de Deus. Deus feito homem. Se o homem aspira
a isso no mais profundo de sua alma, compreende-se que
a transcendência o aborreça, apesar de ser verdadeira.
Não é a altura que perturba, o distanciamento é
-
que desespera.
É bem verdade! O panteísmo é a encarnação so-
nhada- pelo homem pecador. A encarnação permite ado-
rar a transcendência sem indiferença nem desespero e
visar à união mística livre de todo erro e de todo pecado.

Bergson se calou. Aproveitei o silêncio para fazer-


lhe a pergunta que me queimava os lábios.
54
empurrou a porta sem bater e enkou gritando: "Papai!
Papai!" Forcei-me a sorrir-lhe e a escutá-la. "Papai", disse-
me ela, "eu estava em meu quarto, eu vi uma luz, alguma
coisa dentro da luz, papai, jamais vi algo tão bonito".

- Mais essa! E o que você fez?


um grande de alívio. Pausadamen-
- Soltei "Filhinha,suspiro
te, respondi-lhe: não digas nem uma palavra
sobre isso a tua mãe, pois ela não compreenderia. Sabe,
porém, que eu, eu acredito em ti, porque... porque acabo
de ver a mesma coisa".
Então era verdade. Sua filha me havia dito, mas
-
eu duvidava, por causa de Henri Gouhier.
Contei o ocorrido a Tresmontant. Ele encontrou
- e lhe contou
Gouhier tudo. Gouhier riu docemente e lhe
deu esta interpretação: "Claro, claro, meu amor. Não fa-
les disso a tua mãe (subentendido: é inútil que ela se
preocupe com tua saúde). Acabo de ver a mesma coisa
(subentendido: se ela não se acha louca, terá menos chan-
ces de enlouquecer)."

55
Você já falou alguma vez dessa experiência?
- Bem mais tarde, quando escrevi meu último li-
--
vro, quando cheguei ao último capítulo, à última página
do último capítulo, falei dela em termos velados.
Conheço de cor estas linhas. Permita-me citá-las
-
de memória'. "Suponhnmos que desse mundo desconhecido clrc-
gue até nós um clarão, aisíael aos olhos do corpo. Que transfor-
mação nesta humanidade geralnrcnte habituada, diga o que qui-
ser, a não sceitm como existente senão aquilo que ela uê e que
ela toca! A informação que até nós airia dessa forma não diria
respeito talaez senão àquilo que existe de inferior nas almas, o
úItimo degrau da espirìtualidade. Mas não seria necessario nmis
do que isso para conoerter em realidsde aiaa e operante uma
crença no além que parece encontrar-se na maioria dos homens,
que permatlece, porém, na maioria das ztezes, uerbal, abstrata,
ineficaz. Parc saber..." Tive um branco na memória.
Para saber em que
medida ela conta..."
- É isto. "Para saber
em que medida ela conta, basta
olhsr -como as pessoas se lançam ao prazer: as pessoas não
56
tudei muito Plotino, fiz minha tese sobre ele. Na minha
opinião, Plotino é o paradigm a do honn naturaliter religiosius
[homem naturalmente religioso], e até mesmo do honto
naturaliter nrysticus [homem naturalmente místico].
Estou de pleno acordo com você.
- A religião natural é uma ascensão do homem
-
para Deus. Ela propõe uma auto-realização do homem.
Deus é uma meta, como o cume da montanha é uma
meta para o alpinista.
Isso não se encontraria também no cristianis-
- João da Cruz não fala disso na Subida ao Monte
mo? São
Carnrclo?
É verdade, Bergson. Apesar de tudo, no cristia-
nismo,- Deus se impõe. Não é que ele nos tiranize, mas,
de qualquer forrna, Ele entra em nossa vida sem nos pe-
dir autorização. Nós gostaríamos de organizar tranqüila-
mente nossa subida em direção ao Céu. Deus toma a
liberdade de descer do Céu sobre a Terra.
É mehor, não?
-
57
intuição e no dinamismo dessa vida religiosa; então, bas-
ta-lhe prolongar o movimento para antecipar, de certa
maneira, a revelação plenária do Amor divino no Mes-
sias. Eu, porém, que não tenho absolutamente nada de
judeu, asseguro-lhe que esta religião é completamente
inverossímil. Mas, aí está, não pude crer senão no inve-
rossímil. Pois o verossímil não seria, segundo toda veros-
similhança, senão um produto humano.

- Você se parecem terrivelmente com o Sócrates


pintado por Boutroux: livre-pensador e religioso. Expli-
que-me um pouco mais sua dificuldade em crer em Cristo.

- Vejamos,
virgem,
Bergson, um homem que nasce de uma
um Deus que se faz homem, é coisa Íácil de se
crer? O uso pode-nos fazer achar naturais afirmações es-
tranhas, mas a reflexão nos arranca do torpor. Diante de
tais enunciados, a primeira reação é de incredulidade. É
a reação cle todo espírito normal, equilibrado, natural,
sensato, sadio. Do contrário, a gente acreditaria em qual-
quer coisa.
58
caixam. Desproporção completa entre os efeitos e a cau-
sa. Não, se isso é falso, é lenda ou mito.
Uma lenda, Guitton, não é um mito.
- Precisamente. Mas continua sendo verdade que
- cristão, se fosse falso, não poderia ser senão ou
o anúncio
um ou outro: ou um mito, ou uma lenda.
Agora está claro. Então?
- Bergson, uma lenda é o resultado de um proces-
so que- parte de um fato que é submetido a uma elabora-
ção fabulosa. A constituição de uma lenda exige antes de
mais nada tempo. Ora, não cessamos de recuar no tempo
a datação dos Evangelhos. Já não é totalmente excluído
que não tenham existido algumas estenografias enquanto
Jesus falava. A ressurreição, que é o fato cenkal, aquele
do qual todo o resto depende, é completamente originá-
ria na pregação cristã. Portanto, e quaisquer que sejam os
inúmeros pontos discutidos ainda pelos estudiosos, o fato
é que o tempo é curto demais. Os Evangelhos não podem
ser uma lenda. Isso me parece doravante um ponto defi-
nitivamente fora de dúvida.
59
Podem'se encontrar aí ficções, romances/ parábolas, mas
não mitos. Falar de demitologização em relação à Bíblia é
um contra-senso. O mito se inscreve em uma forma de
pensamento que elimina o tempo: as narrativas míticas
são simplesmente figurativas de uma realidade eterna,
que é seu verdadeiro sentido. E a salvação advém, nesta
perspectiva, quando se entra na compreensão atemporal
do sentido dos mitos, quando se alcançam os conceitos
para além dos símbolos. O sentido dos acontecimentos
bíblicos, ao contrário, é inseparável de sua realidade his-
tórica. "E Deus disse a Abraão". Assim é que se começa.
Deus disse. O sentido não está naquilo que vai ser dito,
mas antes no fato de que Ders diga. O sentido não está
mais na idéia de um Deus que fala, mas no fato de que
Deus fala efetivamente. E a salvação não consiste em pe-
netrar na idéia (ainda que verdadeira) de um Deus que
fala, mas em escutar a Palavra efetiva deste Deus que
efetivamente falou.
\z[as, ao exprimir-se assim, Guitton, você não
- condenando por si mesmo, você
está se que é tão pura-
60
de todos os mitos porque ela depende da verdade do
acontecimento.
O anúncio evangélico não pode ser, portanto, na
-
sua opinião, nem lenda, nem mito. O que poderia ser ele,
então, se fosse falso?
Um erro histórico, como se alguém dissesse que
- nasceu na Sardenha,
Napoleão por exemplo. A verdade
do anúncio evangélico deve ser tratada antes de tudo sob
a perspectiva racional, como a verdade de um fato histó-
rico. Pois ela não terá verdade religiosa se não tiver'1rer.
dade histórica. O sentido religioso está aqui fundado so-
bre a verdade do sentido histórico. Naturalmente, com a
condição de se deixar bem aberta, mas sempre realista, a
definição do termo histórico.
Mas você, Guitton, não está inclinado a acrediia
-
neste anúncio? A negligenciar os indícios de verdade his-
tórica e a abraçar a verdade evangélica por causa de sua
simples bondade moral, de sua doçura afetiva?

61
Para um crítico religioso, essa é uma boa de-
-
signação?
A melhor que existe. Tive de tornar-me cristão
contra- meu temperamento.
Ele me olhou com um interesse que jamais percebi
nele. Ele procurava reencontrar nas expressões do velho
a continuidade que as ligaria àquilo que ele havia conhe-
cido de minha vivacidade juvenil. Retomou:
Então, o que você diz sobre a verdade histórica
-
do anúncio evangélico?
Uma verdade histórica, qualquer que seja ela,
- ser atingida senão por meio
não pode de testemunhos. A
fé é, portanto, algo bem mais simples do que se imagina.
Leio ou escuto proclamar os Evangelhos; suponhamos
que eu encontre aí os testemunhos sinceros e verídicos
daquilo que aconteceu na Palestina no tempo do gover-
nador Pôncio Pilatos; imediatamente, recebo ao mesmo
tempo o mistério da fé e as razões para crer. Os milagres
de Cristo revelam sua divindade e a atestam, como o
62
A aparição do amor se faz também no milagre e
não se- daria talvez de jeito nenhum sem ele. Da mesma
forma, você mesmo acaba de dizer-me que a aparição do
amor do Cristo era crível porque essa aparição tinha a
característica de um verdadeiro milagre moral, levando-
se em conta toda a nossa experiência do estado moral da
humanidade.
Assim compreendo melhor, e nossas perspecti-
vas -
tendem a convergir.
Nada me pode dar mais alegria. Em meu livro
sobre -lesus, eu me pergunto sobre o objeto da fé: pegue,
por exemplo e antes de tudo, Jesus ressuscitado. Pois a
ressurreição é a única casa sobre a qual vale a pena colo-
car a aposta. Se ela é verdadeira, todo o resto é verdadei-
ro. Se ela é falsa, tudo o mais desmorona. Pegue, portan-
to, a ressurreição. Aí há um mistério que é um fato; não
estou dizendo: um fato que seria preciso admitir racio-

7. Io 5,36.

63
Com
- Não efeito.
se deve ceder ao gosto pelo maravilhoso,
-
mas aqueles que têm medo dos milagres,longe de tornar
a fé respeitável, na realidade a rebaixam. Que tipo de
permitir acreditar na ver-
razã.o, fora do milagre, poderia
dade de um tal fato como o fato de um Deus feito ho-
mem? Pois, enfim, se eu encontro um homem que se diz
Deus, não sou logo tentado (e com razão), a considerá-lo
louco, bêbado, possesso, a menos que eu não tenha fortes
razões para pensar o contrário e que ó prodígio!
- - o
fato é? O milagre é, então, a face visível do mistério. Nessa
face visível se revela o elemento invisível, que é a forma
real e inaudita do Amor. Ela é que é o mais profundo
milagre, como você o diz e com o que estou de acordo.
Mas, para pensar assim, é preciso aceitar os Evan-
gelhos- como "palavra de evangelho".Isto é ingênuo.
Uma coisa é certa, Bergson. Se nós lemos os Evan-
gelhos- como "palavra de evangelho", nós temos todas as
razões para crer em Cristo, e nossas razões de não crer
64
com um espírito reacionário, mas a partir de um espírito
crítico mais perfeito, mais evoluído, mais maduro.
Por isso é que você chama de crítica religiosa
àquilo- que antigamente chamávamos apologética.

- Muitos cristãos vivem sua fé no sofrimento, pois


eles sentem que essa fé, em sua estrutura profunda, exige
uma certa credibilidade racional. Mas eles dão um crédi-
to exagerado à crítica filosófica do século XVII, ao passo
que esta se desenvolve segundo um conceito que eu acho
insuÍicientemente crítico darazão e da dúvida.
O que acontece com a vida espiritual desses
-
cristãos?
Sua vida de fé se separa de sua razáo. A fé,
- irracional,
tornada evolui entre dois extremos. Ou ela per-
manece forte, profunda, tornando-se demasiado afetiva,
ou correrá o risco de voltar-se ao Iluminismo fanático.

2. Mc 16,1.6.
3. lo 3,2.

65
5. Meu t€stamento
milagre fundamental.
Você quer falar, evidentemente, da ressurreição
-
de Jesus.
Sim. Volto de novo a esse ponto. A ressurreição
- que é promessa da nossa, é a um tempo o
de Cristo,
mistério central da revelação do Amor, o objeto de nossa
esperança e o principal motivo de credibilidade da fé.
Tudo fica simples quando a gente se coloca sob a pers-
pectiva do testemunho que os apóstolos de Cristo dão de
sua ressurreição. Esta encerra em germe toda a teologia e
toda a apologética. Os Apóstolos são ou não falsas teste-
munhas, alumbrados em total ilusão? Essa é a questão.
Com efeito, Guitton, o conceito de testemunha
- de deslumbrado já se encontra em são Pauloa. A
falsa ou
polêmica passagem no fim do Evangelho de Mateuss se
insere numa tal posição do problema.

4. lCor 15,15.
5. Mt28,1r-1.5.

66
gueia entre os sistemas e os mecanismos. Não encontra
em parte alguma a vida e seu alimento. É preciso cem
anos para se tornar simples.
Bergson, aqui está minha fé: um homem era o
Amor.- Ninguém jamais falou como ele. Finalmente, no
mundo, o Amor foi ouvido. Mas o mundo não quer o
Amor. O mundo é gelado. Então o Amor foi excluído. Foi
rejeitado. Foi morto sobre o instrumento de suplício. A
Crsz. Contemplamos o Amor sobre a Cruz. O que é a
vida, o que é Deus, que esperança nos resta nestas condi-
ções? Divirtamo-nos, pois amanhã morreremos. Assim
fala são Paulo, assim pensavam os apóstolos de Cristo
depois de sua morte. Eles, que tinham sido testemunhas
da aparição do Amor, estavam em confusão. Não espera-
vam mais nada da vida, senão a força de encontrar um
modo de recolher-se em um desespero pacificado. E os
Apóstolos me dizem que viram o Cristo sair da tumba.
Não é uma lenda, não há tempo, os Apóstolos falam dis-
so desde os primeiros dias. Não é também algo mítico,
como se alguém dissesse: "Depois da chuva, vem o bom

67
fato é -pouco crível, eu concordo, quando não se compre-
ende seu sentido, porque dele não se vê senão a estra-
rtheza, sem perceber sua ligação essencial com a realida-
de da história dos hebreus e com o problema filosófico
da existência humana. Mas sem o fato, você há de convir,
não haveria sentido para ser compreendido, ou melhor,
seria preciso compreender o contrário, pois então a mor-
te teria engolido o Amor.
Exatamente, Guitton. Portanto, nem mito, nem
-
lenda, mas um fato histórico pleno de sentido, cujo senti-
do aparece a partir da própria realidade do fato.
O sentido da fé está todo inteiro neste único
-
fato. Sobre ele, Bergson, é que se joga tudo, para ganhar
ou para perder. São Paulo dizia: Se o Cristo não ressusci-
tou, aã é nossa fé e nós, os apóstolos, somos falsas testemu-
nhas. Estou, portanto, diante de testemunhos. Isso é o
que eles me dizem. Vou acreditar neles? Claro que não!
Minha primeira reação é responder-lhes como os ate-
nienses a são Paulo: "Clato, claro, tu nos falarás disso
em outra ocasião".
68
ocupada com a contemplação de um mundo de Idéias
eternas. Mas a imortaliáade da alma pessoal... É muito
mais porque Deus faz questão disso.
Mas por que você crê nisso se você não tem
- de acreditar?
vontade
Ora, porque eu penso que é verdadeiro. Então
-
sou forçado a acreditar. Não é porque eu tenha tornado
os elefantes pequenos que vou recusar-me a crer que eles
são grandes.
Você é tremendamente racional.
-
Sou como sou.
- É
estranho, Guitton. Você não tem a alma natu-
- cristã.
ralmente
Não. Instintivamente, eu desprezo os pregado-
-
res, talvez até mesmo o cristianismo. Já vi de tudo em
minha vida! Chegam os Apóstolos. São uns loucos, pen-
so; há muitos loucos no mundo. De que tipo de loucos se
trata? Um tipo de louco bastante doce na aparência, mas
sem dúvida um pouco perigoso, como são todos os lou-
69
delírios, mas não há delírios. Existe uma mensagem geni-
al. A única coisa delirante é a ressurreição, mas sem ela,
o genial não o seria, mas ele é. Quando não se está diante
nem de um mito nem de uma lenda, está-se diante de um
fato histórico; ou então, está-se na presença do fruto da-
quilo que o espírito humano tem de inferior e de mais
doentio: credulidade, falta de seriedade, excesso de sub-
jetividade, impostura, psicopatologias, alucinações etc.

Bergson refletiu; a seguir, interrogou-me, quase que


solenemente:
Será que estou entendendo bem, Guitton? Você
-
quer dizer: se o cristianismo não é verdadeiro no sentido
da verdade histórica, você não pode explicá-lo historica-
mente a não ser coiocando-o muito mais abaixo do que
racionalmente se pode colocáìo. Se reconhecemos, se pos-
so dizer, seu verdadeiro stnnding [estatuto] intelectual e
moral, torna-se extremamente difícil de explicá-lo de ou-
tra forma senão pela simples realidade factual da ressur-
reição de Jesus Cristo.
70
brincadeira? Você compreende por que eu falava cons-
tantemente a Miterrand do absurdo e do mistério. A res-
surreição é um fato misterioso, quem o negará? Mas se
eu não admito racionalmente este mistério, é toda a reali-
dade mais empírica, que eu sou obrigado a transfoÍmar
em história de loucos.
Escutanclo você, Guitton, tem-se a impressão de
-
que tudo se demonstra.
Certas coisas se demonstram, sim. Mas ter
-
demonstrado não é ainda a fé, tal como crer não é
ainda amar.
Você tem certeza de que está certo?
- Assumi minhas responsabilidades. Cada um deve
assumir- as suas.
Mas você não tem dúvidas?
- Como os próprios Apóstolos as tiveram, Bergson,
- na presença do próprio Cristo ressuscitado. Se
inclusive
os Apóstolos não as tivessem tido, eles não seriam para
nós testemunhos dignos de fé.
71
Aqui você fala de uma fé profunda, que tem por
objeto- o acontecimento real e sobrenatural, não de uma
crença modernista, reduzida às dimensões de uma filoso-
fia religiosa.
Isso se compreende. Você não notou, Bergson,
quanto- o cristianismo, uma vez tirado o sobrenatural real,
torna-se insosso? O que resta dele? Um moralismo res-
peitável e bastante constrangedor; um humanitarismo que
parece sempre procurar desculpar Deus por não ter extir-
pado as misérias humanas; um "solidarismo" simpático;
uma vaga esperança numa melhora nos negócios do mun-
do. Tudo isso não é sólido, tudo isso não é profundo.
Precisamos deslocar Deus em pessoa para ensinar essas
virtuosas banalidades? Tire-se o sobrenatural, e o cristia-
nismo é vacuidade.
Estou perfeitamente de acordo com você, Guitton.
-
Quando o clero se torna racionalista, ele esvazia as igre-
jas e favorece a riqueza das seitas.
Se não se tem mais a Íé, resta Íicar de luto por
-
uma crença defunta. Se o Cristo não ressuscitou, pare-
72
liferação do desarrazoado.
Talé, portanto, sua fé?
-
Ao menos tal é meu raciocínio sobre a fé.
- Uma fé muito crítica. Uma crítica aguda no mais
- Então?
alto grau.
O crístico convence o crítico.
- É uma crítica mais satisfeita consigo mesmo
que a -sua.
Sim, aquela de Renan, Loisy e de outros mais
- Ela duvida, mas nunca da dúvida. Ela se pre-
recentes.
tende crítica, mas nunca a ponto de criticar a crítica. Daí
esse desdenho do testemunho vivo e o desprezo acrítico
do sobrenatural real. A incredulidade não resulta aqui da
observação do objeto; ele é um preconceito. A forma a
priori substitui a observação. A razão humana se coloca
como um absoluto, dedica-se ao objeto de fé, e corta aquilo
que vai além. Alguém pensa que é crítico, e é arquidog-
mático. Dogmático da razão, e de uma razão arqui-ingê-
nua, arqui-superada.
/J
Eu não o matei?
-
- Quase, por causa de Joséphine. As mulheres...
- Não fale mal delas. São elas que lhe abrirão o Céu.
O que você quer dizer?
- Caladol Adeus, Guitton.
- Adeus, disse-lhe eu, apertando-lhe
maquinalmen-
-
te a mão.
Ele saiu enquanto eu pensava em outra coisa. No-
tei-o somente enquanto me Íazia uma última pequena
saudação, voltando-se, tendo já passado a porta. Mas
meu pensamento me interessava e eu não respondi. Ele
desapareceu.
Eu me perguntava se fui bom e se tudo isso tolera-
ria ser posto por escrito. Fico sempre decepcionado com
meus compromissos. Por isso é que eu amo as adulações.
Julgam-me orgulhoso, mas é exatamente o contrário. Ou
é uma outra forma de orgulho. Eu estava triste.

6. Mt 77,25.

74
nós fazemos uma coleção.
Ela não estava para brincadeiras. Ela fervia.
O que você queria dizer-me,Marzena?
-
A coisa continua. Mais um.
-
Quem?
-
O papa.
-
Tive um sobressalto e quase morri de estupefação.

- papa!
O
Não, não, não o O papa. Enfim, o outro.
- mais seu nomel Opapa.
Não sei senhor tem seu breviário no
escritório...
Paulo VI!
-
Exatamente.
---
Mas, então, faça-o entrar! O que você está espe-
rando? Depressa, ora! Você já devia tê-lo trazido. Deixe-o
entrar, depressa, depressa.
Ela sai apressada, praguejando a meia-voz.
75
76
Vossa Santidade!
-
que alegria em vê{o de novo!
- Guitton,
o senhor me dá uma honra infinita.
- Santidade,
De jeito nenhum, Guitton, é justiça. Mas sente-
-
se, não fique de pé em sua idade.
Indiquei-lhe a poltrona diante de minha cadeirinha,
recusando-me a sentar-me antes dele. Quando ele sen-
tou-se, imitei-o.

- Guitton,
ram suas
se você soubesse quanto bem me fize-
visitas quando me encontrava sozinho no leme
da lgreja, e você vinha tão fielmente ver-me todo dia 8
de setembro! Não, estou falando a verdade. Meu caro
Amigo, como você se sente? Não está sofrendo? Se você
soubesse quanto rezo por vocêl Tenho muita confiança
em você.
Contudo, um dia, em Castel Gandolfo, o senhor
- "Guitton, Guitton, vou
me disse: fazer-lhe o mais belo
77
- em mim. Não é verdade, Santidade, que o se-
colocou
nhor confiava em mim?
Sim, Cuitton. Sempre confiei em você.
-
- Furbo, eu era furbo?
Porque
Mestre, mas tambérn ìdiota perdoe-me.
-
Uma inimitável -
mistura de astúcia e de candura. Um
silêncio, depois: Estou em missão. -
-
Sobre a terra?
- junto a você.
- Não.
Ora, vamos, Deus não me ama tanto assim.
-
Ao contrário, e mais ainda que isso.
-
Quem o está enviando? O que existe acima do
papa?-Não pode ser...
No paraíso, o papa é mais do que nunca irmão
- aqueles de quem
de todos ele foi servo sobre a terra. Fui
enviado por uma santa que lhe quer bem.

7 . "Esperïo, esperto, esperto espertíssimo"


-
78
se inteiramente a tudo na luz.
E o catolicismo?
- É o eixo e a estrutura fundamental do movimen-
-
to ecumênico.
Guitton, o que é o movimento ecumênico?
- O sentido da história humana.
- Você
está falando como filósofo ou como crente?
- Enquanto crente, acredito que o Cristo rezou para
- sejam um e que todos sejam
que todos consumidos na
unidade, consumnnti in unum. Enquanto filósofo, vejo que
tudo o que é humano aspira ao universal. Vejo também
que tudo tende a se encolher em seu canto.
Até mesmo catolicismo?
- Até mesmo o católicos. É preciso lutar para for-
os
jar-se -uma alma aberta a toda a amplitude humana, reco-
lhida na profundidade divina. Somente Deus nos pode
unir assim aos outros homens. Nossa união com Deus é o
que todos temos de mais íntimo. Por ela, somos todos
79
O desapego, o pensamento... O amor não é meu
forte. -Mas compreendo muito bem o conceito do amor.
E a experiência?
- Outros amaram assim. É um fato. Aí estão os
-
documentos. Eu os esfudo.
Guitton, seja um homem de desejos!
- Sou um velho jansenista. Tenho vergonha de
amar.-Confudo, vejo que teria sido bom que eu amasse.
Procurei um Mestre que ensinou a amar assim. Em todo o
universo e em toda a história, não vejo senão Jesus Cristo.
Mas todos os cristãos pensam assim. E todos
não são - católicos. Você precisa dizer-me por que você é
católico.
Amar é estar unido ao Cristo
sempre - vivente,verdadeiramente
e chamamos de Igreja a este enxame de
abelhas espirituais ávidas do mel do amor divino.
O corpo do Cristo. Você e eu sempre amamos
-
são Francisco de Sales. Guitton, diga-me por que você é
católico.
80
A santa que me enviou encarregou-me de entre-
- esta mensagem. Ela me disse: "Santo Padre, con-
gar-lhe
tente-se com repetir a meu amigo Jean Guitton as pala-
vras de Nosso Senhor: Aquele que se enaergonhar de mim
diante dos homens, eu me enuergonharei dele diante de meu
Pai celestial. Aquele que me reconhecer diante dos homens, eu
o reconhecerei diante de meu Pai que está nos céus". E acres-
centou: "Pergunte-lhe também por que ele é católico. Ele
compreenderâ." Por isso, cumprindo junto a você, meu
caríssimo e muito estimado amigo, este ministério de sal-
vação, fiz-lhe e lhe faço ainda, pela última vez, esta su-
prema pergunta: "Por que você é católico?"

Você é católico por rotina, preguiça, hábito, co-


-
modidade?
Não.
- Por paixão política ou
social?
- Não.
- Por nacionalismo?
-
81
6. Meu testamenb.
Tenho vergonha diante dos outros, diante das
-
Pessoas.
Diga-mos. Recebê-los-ei como segredo de confis-
-
são. Jamais ninguém saberá nada.
Santo Padre, eu confesso... eu sou católico... por-
que... -porque...Não, não quero dizer.
enfim, Guitton, você confia em mim?
Mas
-
Sim, Santo Padre, mas eu, eu não tenho confian-
-
ça em rnim mesmo. Jamais confiei em mim mesmo. Todo
mundo pensa que eu irradio confiança em mim... Mas
não é verdade. Eu não tenho nenhuma confiança em mim.

- Quais são esses motivos?


Não quero confessá-los.
-
- Bem, enfim...
Não, é pior do que se eu devesse confessar tor-
pezas -sexuais.
E ainda que fosse assim? Creia na misericórdia e
liberte- seu coração.
82
Eu prometo.
- Ainda que eu quisesse enxotá-lo com injúrias.
- Eu prometo.
- Ainda que eu blasfeme.
- Eu prometo.
- Ah! Santo Padre, é pior do que se eu tivesse de
- traições e crimes.
confessar
Rezemos.
-Ele rezou. Eu pensei.
Mas enfim, Guitton, naquilo que você vai dtzer
- pode existir nada de mal.
me não
Sei que aos olhos de Deus não existe nada de
- aos olhos dos homens, é pior do que tudo!
mal, mas
Você vai morrer dentro em breve e ainda se preo-
- o que os homens pensam?
cupa com
O senhor acredita que eu teria medo do julga-
mento- de Deus se eu não me preocupasse mais com o
dos hornens?
83
-
-...Obedecer.
Alquebrado pelo esforço, quase caí embaixo da ca-
deira. Paulo VI adiantou-se vivamente e me segurou. Eu
lhe sussurrei ao ouvido, num sopro:
ao senhor eu poderia confessar isso.
- Somente
Porque eu sou papa.
- Sim, porque o senhor é papa. Como o senhor
-
sabe que eu não podia confessar senão ao papa?
O papa compreende o mistério do papado.
-
Montini, ao fazê-lo Paulo VI, Deus o constituiu
-
em seu ser e em seu destino testemunha do mistério da
obediência. Não somente uma obediência interior a Deus.
Mas uma obediência exterior a um homem como nós, a
um homem como o senhor, Montini. E não a uma autori-
dade instituída por nossas convenções. Mas uma autori-
dade estabelecida por Deus, depositada em homens não
mais escolhidos por nós, mas chamados por Deus.
E frágeis, e pobres, Guitton.
-
84
É matemático.
-
Geométrico.
- É preciso realmente
obedecer quando se vive em
-
sociedade.
Os homens, Sanússimo Padre, inventaram a so-
lução -para conciliar seu amor-próprio com a obediência.
Basta-lhes imaginar que obedecendo aos outros eles não
obedeceriam senão a si mesmos.
E como se dá um tão belo milagre?
-
Diz-se a todos e a cada um que eles são o chefe,
-
o rei, o soberano, os autores das leis que os outros fazern,
e que os dirigentes são apenas os ministros da vontade
do povo.
E todos acreditam nisso?
-
Um certo número. É co*o os cucos que não que-
rem ver- nada. Em vez de sofrer diante da verdade, é
melhor crer em uma ilusão.
Eles não obedecerão mais.
-
85
como -todo mundo, mas também tenho horror de ser con-
siderado ingênuo, exceto se isso me ajudar a enganar.
Furbo, Dir-se-ia Maquiavel.
- Aos fiubissittro.anos,
sessenta Santo Padre, pensava que
- a política. Encontrei o presidente Miterrand e
conhecia
compreendi que eu era um coroinha. Ele refez minha
educação.
E parece que ele consegui para além de toda
-
esperança. Mas enfim, esqueçamos. O Santo Padre não o
interrogará sobre suas opiniões políticas. Diga-me antes
por que obedecer é para você uma razão de ser católico?
Eu suponho que sou uma pessoa corretamente
-
informada sobre o que é o catolicismo. Aqui está uma
religião que declara dirigir-se a homens livres e deseja
convocá-los aos mais altos degraus da liberdade. Mas, no
momento em que ela desenvolve neles o amor da liber-
dade, eis que ela se põe a lhes falar de obediência a Deus.
No momento em que ela faz crescer neles a estima pelo
humano, ela lhes fala de renúncias e de sacrifícios. No
86
ser que elas se controlem, diga-lhes que o prazer é um
pecado e que, além do mais, tudo é pecado, e portanto, o
essencial está em outra parte, e jamais aprofunde a ques-
tão. Se, porém, o senhor lhes falar de liberdade, aprenda
a afrouxar a rédea e a conduzir secretamente. Numa pa-
lavra, seja político, leia Maquiavel! Do contrário, repito
que sua mensagem, tomada em sua totalidade, contradiz
a todas as regras da retórica, a todos os princípios da
estratégia, a todas as astúcias da tática, a todas as receitas
mercadológicas, a todas as leis da comunicação eficiente.
Devo testemunhar o amor.
- Eu Mas que ausência total
de estratégia! San-
- osei.
to Padre, senhor percebe quanto é difícil aquilo que
está dizendo?
não é fácil.
- Jesus
As pessoas não querem mais fazer sacrifícios.
- É o mesmo que dizer que
elas não querem mais
-
a alegria.
Elas dizem que são também felizes desse jeito.
-
87
inexplicável e, em sentido próprio, de misterioso.
Por quê?
-
Repito-o, Santíssimo Padre: analise esta mensa-
-
gem católica, em todos os seus aspectos. Ela exalta a ra-
záo, a liberdade, a crítica, mas exige a fé, o sacrifício do
intelecto, a aceitação de mistérios impenetráveis. Sua mo-
ral é sublime, mas difícil. Ela coloca em movimento uma
dinâmica geral de libertação, mas mantém sua disciplina
eclesial onde a autoridade vem de cima. Ela prega a feli-
cidade e o desenvolvimento humano mostrando o Cristo
sobre a crvz. Esse tecido.de imprudências e de contradi-
ções é único no mundo. E como se alguém quisesse guiar
um carro pisando fundo no acelerador e no freio ao mes-
mo tempo.
Paulo VI sorriu.
Aquilo a
manche - do avião.que você chama de freio, Guitton, é o
É preciso puxar para cima para que
decole. E as contradições que você assinala se resolvem
no amor de Cristo.
88
alhures. Que é que aconteceu? A Igreja enterrou o comu-
nismo. E será a mesma coisa, o senhor verá, com o libera-
lismo, que se julga eterno. Aos olhos humanos, ninguém
de bom senso investirá um centavo nas ações "Catolicis-
mo". Hoje em dia, se diz: o consumismo e o sexo vão
varrer a Igreja. Pois bem, eu mesmo não creio nisso. Acon-
tecerá ainda qualquer coisa. Eu lhe digo: surpreendente.
Toda essa história é surpreendente. A única história com-
parável ao inaudito é a história de Israel. As duas se
confirmam.
Acho-o triunfalista, Guitton.
- É
exatamente o contrário, Santo Padre! Vejo er-
guer-se- indefinidamente um edifício que deveria normal-
mente cair a cada instante. Tremo a cada instante. A cada
instante, eu suspiro.
Fique tranqüilo. Jesus está aí.
-
falar das outras coisas. Quando alguém vive
- Sem
por algum tempo em Roma, Santo Padre, ou se torna ateu,
ou é forçado a acreditar ferrenhamente no catolicismo.
89
L cosl.Ó
-Pus-me a chorar.
Bendito seja Deus disse Paulo VI pelas
- do pecador
lágrimas -
que se converte. -
O senhor está enganado disse-lhe vivamente.
Eu -não choro por meus pecados;
- choro de raiva.
- Ele me olhou com uma cara que dizia'. o que é isso
agota?
Eu o interrompi.
alguém tiver lido aquilo que acabamos
- Quando
de conversar, ninguém mais quererá ler meus livros. Mi-
nha obra não servirá para mais nada. Meu nome cairá no
esquecimento.
Como você sabe que nosso diálogo será escri-
-
to e lido?
Eu o sei. Tudo se sabe. Além do mais, tudo é tão
-
extraordinário nesta noite, por que eu não seria profeta?

8. "Assim é". (N.T.)

90
da-me, você se realizou na vida?
Santidade, é Deus quem vai dizer-mo.
-
Guitton, não fale como se você já estivesse mor-
to. Seu- tempo não está consumado. Até o último momen-
to, tudo permanece em susPenso.
Trabalhei cem por cento para Deus. Dei tudo de
-
mim, e consegui conhecer e crer. Escrevi cinqüenta volu-
mes para explicar as verdades que conheci.
Mas você produziu frutos?
-
Acabo de dizer-lhe que publiquei cinqüenta
livros.
-
Eu sei, eu os li. Mas, pelo amor de Deus, não se
-
trata mais de fé, mas de amor.
Santíssimo Padre, para mim ainda é tempo
-
de amar?
É se*pre tempo para quem está no tempo.
-
Ai de mim! Se eu perdi cem anos, como Posso
-
esperar em meus últimos segundos?
91.
crer mais solidamente. Era minha vida. Sempre adiei o
amor para amanhã. E a oração.
É nole que é preciso amar.
- Deus ama os restos?
- ama o último.
- Deus
Estou tão longe do amor divino.
- Você é o
Jean do último Extremo. Venho do
- plantar osão
céu para amor.
Eu lutei, estudei, acreditei e conheci. Ah! Montini!
-
O que há?
-
O coração... melhorou... Santo Padre, creio que
-
não tenho mais medo do amor.
Diga: "Meu Deus, eu vos amo!"
-
Meu Deus, eu sei que vossa santa religião é ver-
-
dadeira.
Não se trata disso, Guitton. Diga: "Meu Deus, eu
-
vos amo!"
/'\r[ss Deus, eu creio firmemente em vós"
-
92
deitou, com bondade e respeito, sobre o velho bonito ta-
pete. Fechou-me os olhos, depois se ajoelhou ao meu lado.
Rezava. Marzena entrou e deixou escapar um grito.

93
Entrei numa ampla sala, que parecia um grande
corredor. Via-se aí uma grande parede, coberta com um
véu. Sobre um console, um telefone. Fui direto à parede,
detive-me diante do véu, silencioso, estendi a mão para
afastá-lo, hesitei. Pus-me a falar a meia-voz, sozinho.
Eis-me aqui, mais do que nunca, entre
- e a eternidade. Como é curioso suspenso
o tempo este momento
que transcorre entre a morte e o julgamento.
Eu pensava. Mas eis que voltava a resmungar.
O anjo da guarda me disse para preparar minha
-
defesa. Mas quando se morre aos cem anos, não há mais
nada a preparar. Sei bem o que direi daqui a pouco. Ele
também me aconselhou a rezar. Sempre há pessoas di-
zendo-lhe o que fazer, mas elas não lhe dizem como. Eu
nunca rezei muito. Prefiro pensar, pensar em Deus. Dis-
seram-me mil vezes que não era a mesma coisa. Certa-
mente, para eles, não é a mesma coisa; eles não pensam,
ou pouco. Quanto a mim, não quero rezar sem pensar.
Quando eu começo a pensar, termino sempre rezando.
97
da obra-pri-
ma de El Greco, L'Enterrement du comte d'Orgaz [O sepulta-
mento do conde d'Orgaz]. Contemplei, sem dizer uma pa-
lavra. Meu olhar passava da terra ao céu. O homem que
havia afastado o véu rompeu por primeiro o silêncio.
a primeira vez que vem a Toledo, senhor?
-É Oh não! A primeira vez foi em 1924. Eu tinha
vinte e- três anos. Eu vinha já para O sepultamento do conde.
Naquela época, a sala não era tão iluminada como hoje. O
quadro estava mergulhado na obscuridade. Para vê-lo,
era preciso acender uma pequena lâmpada. Eu ainda me
vejo. Ao clarão da chama, na fumaça luminosa, aos refle-
xos do latão, descobri a terra e os cavaleiros, o céu e os
anjos e a alma do conde que subia da terra ao céu. Assim,
ia eu do tempo à eternidade e da eternidade ao tempo,
como os anjos do sonho de Jacó, que sobem e descem ao
longo da escada estendida da terra ao céu. No alto, a
Virgem me acolhia. Em baixo, havia um extático em ora-
ção. A armadura do conde era tão fria quanto seu rosto
de pedra. Um bispo vestido com uma casula de ouro. Os
rostos tinham a gravidade dos mais altos mistérios.
98
mento. Eu gosto disso. Então, dado que você veio a Toledo,
eu vim para fazer-lhe companhia. O que você faz aqui?
Greco, eu vim a Toledo com um só objetivo:
-
contemplar sua obra-prima. No momento em que sou
sepultado em meu país, vim à Espanha, a minha pâtria
mística e espiritual, contemplar a verdade eterna deste
instante de minha vida. Somente você soube expressar o
mistério deste momento que transcorre entre a morte e a
hora do julgamento.
Também você, Guitton, é pintor da eternidade.
-
Oh! Greco, não há como comparar.
- Contudo, você pintou e eu gosto do que você
- que você pintou?
fez. Por
Eu escrevi e pintei. Quando eu havia escrito mi-
-
nhas páginas, parecia-me que não tinha dito nada e que
teria feito melhor calar-me. Pegava, então, o pincel e the
dava a missão de ir aonde a pena não pudera chegar.
E eu, quando meu pincel tremia por ter atingido
-
a evocação do mistério, eu preferiria poder filosofar. Para

99
lo XX, esqueceu o desenho e despreiou o espaço. O
Renascimento o havia absolutizado demais. Bastaria
relativizá-lo.
Você também, Guitton, você relativizou o espaço
sem anuláìo.
Apenas imitei você, e tão de longe, que toda
idéia -de semelhança ofende. O espaço ideal e puro, em
sua estabilidade estática, é uma certa imagem da eterni-
dade. A forma da coisa é o símbolo de suá verdade eter-
na. Mas a forma e a espacialidade não são a substância e
não são divinas. Não passam de imagens. Contudo, sem
elas, nós não podemos pensar naquilo que as ultrapassa.
Dessa forma, Guitton, nossa arte respeita a dig-
nidade- das formas sem sacralízar a perspectiva, se* sõr
submissa às medições, sem idolatrar a geometria.

-Greco,oqueéacor?
- Olhe
a casula
a armadura do conde, o manto da Virgem,
do bispo. O mundo sensível é luz cristaliiada,
sua substância é irradiação. A cor é a glória da luz.

100
nos arredores do quarteirão dos artistaã. Nós continuare-
mos a conversa.

101
Assim que cheguei a Paris, escapei para os Invali-
des, onde se fariam minhas exéquias. Instalei-me no fun-
do, no alto, sobre a galeria, a alguma distância do órgão.
De lá, eu podia ver todo o espetáculo na nave. Meu anjo
já estava lá. Ele me recebeu friamente.
Fui eu que o chamei com urgência. Você era pro-
curado- em toda parte. O regulamento prevê que os gran-
des deste mundo devam assistir a seus funerais antes de
serem julgados. Não, não há exceção. Faz parte do exame.
Você quase chegou atrasado. Finalmente, você chegou. O
carro fúnebre acaba de entrar na corte dos Invalides.
E o governador gerai dos Invalides?
-
Ele está lá.
-
- Ótimo. o
E aparato militar?
Um destacamento do XII batalhão de infantaria,
vindo -de Clermont-Ferrand, presta-lhe as homenagens.
Um destacamento? Quantos?
-
702
cristãs.
O que ele vai fazer numa tal situação? Ele não
- nada de economia política. (Aliás,
conhece eu também
não). Não, deve haver outra coisa. A Air France deve es-
tar em greve.
De jeito nenhum.
-
Ora, isso é inaudito. E políticos? Chirac me
- que viria. Ele veio? os
prometeu
Ele está em Enviou sua mulher.
- Ela rezarâ Jacarta.
mais do que ele. E o Primeiro Ministro?
-
- Está em Ottawa.
E o antigo Ministro do Interior? Ele bem me
- quase
deve isso, morri de frio nas exéquias de seu pai.
Não o vejo.
- Enviou pelo
- Parece que menos sua mulher?
não.
- ingratidão! Nem sequer a mulher. É inacre-
- OQue
ditável. que você está escrevendo?
103
Seria o cúmulo. Você está vendo Green?
- Sim, está lâ, na
ele primeira fila à esquerda.
- Está cochilando?
- Não. Ele está batendo os dentes.
- Ele sempre se deu bem comigo. E
Senghor?
- Não o vejo. Não. Cale-se agora. Seu caixão é
- na nave. E agora, pare de aborrecer-se. Mesmo
colocado
sehá um vazio em baixo, no alto não the faltarâ boa vida.
Puxa, veja quem vem lá.

t04
Então, Senghor, você também morreu? Ah, ca-
- Amigo,
ríssimo de onde você vem?
Eu estou vivo. Subi pela escada.
-
Mas como é possível que nós possamos con-
-
versar?
Não complique, Guitton; aceite as coisas como
-
acontecem.
Vamos ao essencial. Que me sucede?
-
Na Academia? Isso lhe interessa?
-
A questão me chocou. Ele me tratava como se eu
estivesse morto quando eu não tinha sido sequer sepulia-
do. Eu respondi, irritado:
É normal, não? Antes de tudo, assegure-me. Eles
-
não vão eleger um católico?
Isso seria lógico, contudo. Eles pensam em um
- católico.
filósofo
105
-
Com sua saúde?
- Não, com a África.
- Você, então, preocupa
se com ela?
- E uma paixão de amor.
Guitton, o que você pen-
-
sa da Africa?
A África é o continente do futuro.
- Do século futuro?
-
Não se deve jamais marcar uma data. Do futuro.
- Por que você pensa assim?
-
Foi meu mestre de política quem mo clisse.
-
Seu mestre de política? Quem é este?
-
Segredo de Estado, Senghor, segredo de Estado.
- Puxa! E que dizia este grande Desconhecido?
- Ele me dizia assim: "Veja a Gália depois da colo-
-
nização romana. Caos político. Regressão econômica. Si-
tuação sanitária difícil. Ausência de Estado. Mas, na or-
dem das coisas invisíveis, a cristianização lança na alma
106
- Céu.
novo no
Sim, sim, talvez.
- Agora você crê na vida eterna.
- Sou forçado a isso.
- Você tem medo do inferno?
- Não. Tenho medo de ser esquecido.
- Todos os santos pensam em você. Olhe, todos os
-
seus verdadeiros amigos ÍezaÍn por você.
Inclinei-me para olhar na nave.
É verdade, todo mundo parece pensar em mim.
Mas o-que dizem os jornais?
O papa enviou uma mensagem de condolências
-
a sua família e uma outra ao Presidente da República.
Está muito bem.
- Você teve a gl6ría, Guitton.
- Não, Senghor, não a gl6ria, somente a fama.
- isso não tem nada a ver. A glória, por defini-
Creia-me,
107
Saudações, Senhor Presidente.
-E ele desceu de novo a se congelar na nave.

108
Naquele momento, entrou De Gaulle, de uniforme,
quepe aureolado, que ele estreitava sob o cotovelo es-
querdo.
Então, Guitton, de modo que também você
morreu? -
Sim, meu General, e estou muito honrado de vê-
lo em -meu funeral.
Sempre amei o bairro dos Invalides.
-
Lançou um olhar tépido para baixo.
Olha só como você é incensado!
-A seguir:
Então assim é que nos vemos de novo.
-
Sim, meu General. E o senhor constata que nós
nos vemos - de novo. Quando nos despedimos, pela últi-
rr:.a vez, o senhor não tinha tanta certeza.
Lembro-me daquela conversa. |á então fazia mais
de trinta - anos, um pouco antes de eu deixar o poder pela
última vez.
109
Você não irá, porque você é um grande político.
Deus -ama esse tipo de homens.
Por que ele os ama?
- Porque ninguém os ama. À força de não serem
amados- por ninguém, um dia não terão senão a Deus
Para amaÍ.
O que há de repreensível nos grandes políticos?
Em ser- político?
Não. Em ser grandes.
-
Meu General, por qLre o senhor diz que eu sou
-
um grande político?
Porque você foi partidário do Marechal Pétain e
-
conseguiu fazê-lo esquecer. Isso é uma grande arte. Con-
tudo, você foi degradado à Libératione, foi proibido de
ensinar filosofia, como um colaborador dos nazistas.

9. Ordre de Ia Libération [Lei da libertação]: lei francesa criada em


novembro de 1940 pelo General de Gaulle para recompensar os servi-
ços excepcionais prestados à obra de libertação da França. (N.T.)

110
uivar com os lobos. O Conselho de Estado me reabilitou
em menos de um ano depois.
Foi Pompidou quem, na época, preparou o dossiê.
Ele me- contou tudo.
Então, você sabe de tudo.
- Não. Você, que tinha tantos amigos em Vichy,
como -é possível que você não tenha obtido dos alemães
sua libertação antecipada?
É o senhor, meu General, que me pergunta isso?
- está na pergunta. Eu tinha amigos em Vichy.
A resposta
Desculpe-me, Guitton, desde que me encontro
-
no paraíso, estou enferrujado na política. Mais uma pala-
vra. Você não era fascista, mas você não era um pouco
ligeiramente anti-semita?
Não mais que o senhor, meu General. Recordo-
me de- uma entrevista na imprensa, ern 1967, na qual o
senhor tratava do assunto.
Dado que você sabe o que eu penso sobre os
judeus,- diga-me o que você pensa deles.
111
se semPre.
E quando
- Igual ao você não consegue fazê{o?
meu General. Uma mistura de
- de estimasenhor,
irritação, involuntária e de parentesco difícil.
Em suma, o sentimento que sempre experimen-
tei por- aqueles a quem eu não desprezava.
Ele observou o desenrolar-se do serviço religioso.
Em seguida,lançou-me:
Guitton, o que é a covardia?
-Respondi-lhe:
Buscar a aprovação, não a verdade; a conformi-
dade, -não a comunhão.
Poder-se-ia continuar: a insígnia mais do que a
honra,- a carreira mais do que o serviço, a moral mais do
que a mística, a instituição mais do que a salvação.
O ignóbil.

- Ososcovardes,
de todos
meu General, são de toda espécie, e
tempos, e de todos os países. Dó todas
as opiniões.

772
que eu desprezava. Ademais, passei demasiado tempo a
justificar-me diante dos homens.
Não lamente nada. Quanto a mim, empreguei
-
meu tempo a escrever cinco volumes de Mémoires lMe-
mórias] para dízer-lhes que não ligava a mínima para o
julgamento deles e que de Gaulle não tinha que se justifi-
car diante deles. No purgatório, compreendi que essa ain-
da era uma maneira de se justificar.
Meus inimigos têm talvez razáo ao dizer que eu
-
falo somente de mim mesmo?
Alguém pode pensar em si como se fosse tudo,
e pensar- em si como fazendo parte de um todo, um
todo bem maior, que o supera e ao qual se devota de
corpo e alma.
Meu General, dizem que eu não servi senão à
-
minha própria glória.
A glória pessoal nada vale. O que é belo é estar à
-
frente de um gránde corpo glorioso, concentrar-lhe os
raios e reenviá-los em direção ao Rei da glória.
113
8. Meu iestamcnkì
que a relação é bem platônica, detenho-me e me torno
gentil, charmoso, engraçado, irresisível, eu mesmo, sei
lá. Além do mais, escute-a.
Mas ele era charmoso e tão espiritual! Os mo-
mentos - com ele eram um verdadeiro encantamento.
Ele sempre amou a companhia de mulheres
-
bonitas.
Em todo caso, comigo ele se sentia à vontade.
Creio-que ele apreciava minha cultura. Mas o senhor,
como o conheceu?
Tinha sido seu aluno, no liceu, em Lyon. Depois
-
dos estudos filosóficos, tornei-me professor. Em 39, fui
convocado, feito prisioneiro em 40 e reencontro Guitton
no Oflag IV-D10.
IV-D?
- Em Saxe, cinqúenta
a quilômetros de Leipzig.
-
10. Oflag, palavra alemã, abreviatura de OFfizier-LAGer (Campo de
Oficiais): na Aìemanha, durante a II Guerra Mundial, era o campo de
guerra reservado aos oficiais. (N.T.)

114
ocupar duas, contíguas. Então eu apoiava meu bloco de
papel sobre os joelhos, e ele me ditava aos berros do
outro lado do tabique.
Apaixonante.
-
Cuerra é guerra, cara senhora. Se você soubesse
todo o- papel que eu escureci para ele!
Tal como o conheço, ele deve ser-lhe bem agra-
-
decido.
E pensar que por pouco não lhe confiscam o
-
manuscrito pouco antes de nossa libertação.
horror!
- Que
Teria sido uma pena.
- Absolutamente
espantoso.
-
perda para a história do pensamentol Uma
- Que tão
problemática original. Talvez o único neo-aristotelismo
que não derrapa desde são Tomás. Conhece Aristóteles?
Encontrei-o uma vez. Aquele que recebeu o prê-
-
mio Nobel?
115
- Vim
para fazer-lhe uma pergunta, e nos desvia-
-
mos.Guitton,eomal?
É a mais forte
- Paradoxal. prova da existência de Deus.
- Leibniz, umQue seja. Explique.
dia, apaixona-se poÍ uma bela viú-
- rica. Ele a pede
va, jovem, em casamento. A senhora pede
um tempo para pensar. Isso permite a Leibniz fazer tam-
bém suas reflexões, e ele nãó a desposa. Algumas vezes,
porém, ele lamenta, deixa cair uma lágrimã. Três anos
depois, ele_ a reencontra, casada, conversa com o esposo,
compreende. Ele escapou de uma fria. Ele não chora mais.

- Moral da história?

- O mal até o fim.


Espere
não existe? Você leu Candide? [Cândida]?
-
da história. Tudo está-em fünção do além.
Guitton, é que as pessoas não que-
- Q frobtema,
rem acreditar em Deus por causa-do mal; elas não crêem
no além poÍque, devido ao mal, elas não crêem em Deus.
11.6
-
De jeito nenhum! A gente pensa enquanto espe-
-
ra. O problema do mal deve ser colocado com o do desti-
no. Não separadamente.
Você diz isso porque você é católico, você não
pensa -de maneira autônoma.
Meu General, até o senhor? O senhor sabe bem
que eu- sou católico porque sou livre-pensador.
Euo estava provocando.
Então?
-
Então, das duas uma. Ou é mesmo o além, o é
- o nada.
mesmo
De acordo.
-
E se é nada para o homem, para Deus é ainda
- coisasouma. Ou
das duas existe um Deus, ou não existe.
Estou seguindo-o. E eu me antecipo a você. Se é o
-
além para o homem, então é ainda das duas uma para
Deus. Ou ele existe, ou não existe. Em suma, quatro combi-
nações possíveis. Deus e o além, Deus sem o além, o além
sem Deus, nem Deus nem o além. São realmente quatro.

t77
ateus -desse tipo?
Isso depende daquilo a que o senhor chama ateu,
-
meu General. Em primeiro lugar, existem aqueles que
não crêem em um Deus pessoal. Mas, no conjunto, eles
não crêem também no além.
Pode-se mesmo dizer, Guitton, que nenhum está
- incluído no caso no L.
realmente
É o que me parece, meu General. Em segundo
lugar,-existem aqueles que admitem um Absoluto impes-
soal; no sentido em que não acreditam num Deus pes-
soal, podemos chamá-los de ateus. Mas estes não admi-
tem a sobrevivência da pessoâ. Antes, imaginam em nós
mesmos uma parte impessoal de nosso ser, que poderia
fundir-se, depois da morte, no Absoluto impessoal.
Enquanto esperam, acreditam ao menos na trans-
- das almas.
migração
Isso não é crer no além. Se o senhor reencarna
numa-baleia, meu General, o senhor não está no além,
que eu saiba.
118
ou de analgesia.
Exatamente. O caso no L era sem
- 2,hâ o mal, mas não há o problema dosentido.
caso no mal.
No

- Contudo, sofre-se também a ausência de sentido.


Fabrique, portanto, um sentido com a ausência
-
de sentido. Nietzsche chama isso de heroísmo. Talvez o
senhor se torne um super-homem...
E se eu procurar um outro sentido?
- É
que o senhor considera que ele possa ser en-
-
contrado.
E que isso quer dizer?
- o
o senhor está nos dois últimos casos.
- Que
Convincente. Guitton, isso está tornando-se inte-
- Adiante!
ressante.
Caso n" 3, meu General. Deus sem o além. Desta
vez, o- senhor tem de que se queixar. Qual o bem que o
senhor lhe pede e que o senhor não tem?
A felicidade antes de morrer.
-
179
existe, nada de além).
Por definição.
-
Contudo, meu General, observei que, quando a
gente -se revolta assim, diz-se ateu.
Danação, Guitton, no entanto, é verdade. Mas
então,-raciocina-se como idiotas...
Pois é, meu General. Volta-se ao caso n" 2. E a
-
gente não se revolta mais.
Ainda inibidos. Espere. Suponha que alguém se
-
diga agnóstico.
Como quiser, meu General. Vejamos aonde isso
-
vai dar.
Por mim, vejo muito bem. A gente se entrega a
-
uma revolta hipotética contra Deus, se ele existe. É como
fazer manifestação sob as janelas do castelo caso o rei
esteja lá dentro.
Diante deste tipo de manifestação, rrleu General, o
senhor - teria conservado o poder. Mas enfim, admitamos.
1.20
Conclusão, meu General, no caso no 3, nós temos
- do mal.
o mal, mas não o problema
E por conseguinte?
- Caso n" 4. Deus e o além. Vamos a ele. Nesse
caso, o- senhor tem o mal, não é?
Sem dúvida alguma, Guitton.
- E o senhor tem também o problema do mal.
- Assim parece.
- Meu General, em que consiste ele precisamente?
- Nisto, Guitton: nós nos perguntamos por que Deus
-
nos deixa ser tão freqüentemente inÍelizes antes do além.
É exatamente isso.
- Mas, então, Guitton, o problema do mal não é
-
uma objeção à existência de Deus. Seria antes uma conse-
qüência disso.
Estou-me matando para dizer-lhe isso. Se o
senhor- nega o mal ou o problema do mal, o senhor nega
a Deus.
121
perde ganha.
- Quem
Bem-aaenturados os pobres enr espírito.
- Mas, depois de tudo, que você
o sabe, se o pro-
-
blema se coloca?
O senhor é que me disse que ele se colocava.
- Mas seria preciso provar-me!
- Ainda há pouco o senhor não me
perguntava,
-
meu General.
Precisava prevenir-me. Eu não via aonde esta-
-
va indo.
Pois bem! Observe o sofrimento das crianças, ou
-
o genocídio. E logo a questão se coloca.
Mas como você quer ter a resposta a uma tal
-
questão?
É simples. Pergunte-se quem pode responder a
- no mundo um único homem, enquanto simples-
ela. Há
mente homem, que detenha a resposta?
Improvável.
-
122
eles são racionais, e não dogmáticos.
Isto não é certo, Guitton, zombar das pessoas,
-
sobretudo quando elas são infelizes.
Não sabia que era tão caridoso, meu General.
-
Tornei-me assim depois de ter sentido o sopro
-
da morte. E se quiser dar-me crédito, você deveria reco-
lher um pouco as velas em vista do mau tempo.
Meu General, esta é uma dialética racional. Lem-
-
bre-se que nós resolvemos pensar quando não sofremos.
Enfim, Cuitton, aterrisse. Esse tempo no qual
-
não sofremos é pura abstração. Para muitos, a vida é um
sofrimento constante. Têm a impressão de viver num tú-
nel que desemboca num abismo. Procuram o pÍazer, er.-
contram o desgosto. Buscam o amor, encontram a trai-
ção. Buscam a verdade, tateando na dúvida. Clamam por
Deus, e ele se cala. Você thes é odioso com suas certezas.

- Com minhas evidências.


Como quer que eles percebam a diferença?
-
123
lhor ainda que os homens sejam ateus. Se os homens não
fossem ateus, Guitton, eles se revoltariam contra Deus.
Meu
- Não General, o senhor me compreendeu?
brinque, Guitton. É sério! O problema do
- - é uma expressão do ateísmo,
mal não ou dã dúvida, ou
mesmo da fé; é uma expressão da revolta. Não me diga
que é preciso passar da revolta à invocação. Sei tanto
quanto você. Todo mundo o sabe. Explique-nos antes
como pôr um fim a esta revolta atroz, que nos dilacera e
que nos queima, e que é nosso inferno aqui em cima e lá
embaixo. Você não sabe o que é revoltãr-se. Antes de
mais nada, você é um felizardo, um famoso, um abasta-
9o, y.r, premiado. Ademais, é um cérebro sobre pés. No
fundo, você tem uma alma de collaboll. Já sofreuãlg.tma
vez? Jâ amou alguma vez? Com o que você respondèria a
todos e.stes pobres coitados? Com ã dialética ãos quatro
casos? Vão arremessá-lo pela janela. pelo amor de Deus,
você já leu Jó?

1,1,. Collabo: colaborador sob a Ocupação nazista

I24
-
desespero, no nada encharcado de lágrimas de meu cora-
ção. Já não acreditava na imortalidade de minha alma,
mas sempre acreditei na imortalidade da alma dela.
dizia... Não, não o arcanjo Gabriel. Ga-
- Gabriel
briel Marcel, o filósofo.
Ah sim. O que ele dizia?
-
Amar alguém é dizer-lhe: "Tu não morrerás
-
jamais".
Ele dizia isso?
-
Sim.
-
Ele tinha rigorosamente razão.
-
O órgão começou a tocar a aclamação ao Evange-
lho. E nos calamos.

r25
Era certamente o padre Carré., da Academia, que ia
fazer meu discurso fúnebre. Assentei-me. Virei a cabeça.
De Gaulle havia desaparecido. Dei de ombros. D. Vingt-
Trois subiu ao ambão. OÌhei com apreensão o padre Carré,
sentado no coro. Ele não se movia, encolhido. Era o mo-
mento exato.
Não possível que seja Vingi-Trois quem vai
- Ele nãoéconhece nada de minha obra.
pregar.
D. Vingt-Trois tomou a palavra.
Meus caros amigos, o cardeal ficou em Roma...
- É incrívell
- ...por
causa do sínodo episcopal sobre a econo-
-
mia social cristã.
Pff!
- Contudo, ele encarregou-me ler deste
de ambão
- que ele fez questão de escrever
a homilia para honrar a
memória do Mestre Guitton.
726
Assim o espero!
- "Pois
bem, não!"
-
Como assim?
- //fsfn6os reunidos ao
redor do ataúde de um
-
homem".
Isso é óbvio. A questão não está aí.
- //Este
homem preocupar-nos-emos com saber
-
se ele se tratava de -
um pequeno ou de um grande? De
um ilustre ou de um desconhecido?"
Não importa de quem, desde que você com-
-
preenda.
//[ss olhos de nossa Íé, não passa de um homem,
-
como os outros, e toda consideração superficial deve ceder
diante da gravidade e da seriedade do mistério da morte".
Pff!
- "Quem
era ele para nós?"
-
Apesar de tudo.
-
727
Sou
- //VsgQs
ainda têm em mente o Evangelho desta
-
missa".
Para dizer a verdade, qual era mesmo?
- 'tA ninguém aqui em baixo deveis dar o nome de
-
Mestre, pois não tendes senão um único Mestre, o Cristo."
É uma conspiração. Com o Presidente não deu
certo. -Ele ficou em Jacarta.
//[1ffrs, por quem, para que vocês vieram? Para
rodear- os despojos de um homem? Vocês vieram pelo
Cristo".
Três quartos deles são ateus.
- "Vocês vieram pelo Cristo, porque
o Cristo veio
-
por vocês. Ele vem por vocês nesta morte, ele os visita
nesta manhã. Com ele é que nós devemos, no esqueci-
mento de toda vaidade humana, meditar sobre o misté-
rio da morte e da vida."
Fale-lhes de Guitton, pelos deuses! Eles vieram
-
para isso.
128
noventa anos, no mínimo.

Ele não tinha nenhuma delicadeza, senhor, nem


-
um pingo. Eu era sua aluna, em Montpellier, antes da
guerra. Um dia, tomo o trem. Entro, por acaso/ num com-
partimento que eu julgava vazio. Era à noite. Reinava a
penumbra. Encontrei-me sentada diante dele.
Puxa! Um namoro?
- Imagine
só! Falamos um de filosofia. Em
- disse-lhe mais ou menos pouco
seguida, assim: "Senhor Profes-
sor, o senhor não se incomoda de viajar sozinho, durante
a noite, em um trem com uma jovem?" "Oh
responde-me ele, "você não me incomoda de - forma não",
algu-
s1a't. "A presença de mulheres não o perfurba?"
- que sim, sou muito tímido. Mas você, você não
"Oh claro -
é absolutamente feminina."
vaca!
- Que
O senhor quer dizer: "Que grosseiro!" dizer isso
-
a uma jovem.

t29
Sempre mais contente com estar morto, deixei-os
fungando, e subi de novo ao altar pela nave lateral. De
passagem, detive-me um instante a olhar as estações da
via sacra que eu havia pintado e que ainda hoje enfeitam
as colunas desta igreja. Jamais havia observado que estes
quadros fossem tão belos, e admirava-me da modestia
que eu havia demonstrado durante minha vida. Detinha-
me ainda neste pensamento quando reconheci um de
meus discípulos, Hude, sentado ao lado de Marion, pro-
fessor da Sorbonne. Tinha os olhos vermelhos. Falo de
Hude. Eu também, muitas vezes, tenho os olhos verme-
lhos. Marzena punha colírio. Não conseguia fazer isso
sozinho. De repente, vi escorrer uma lágrima sobre sua
face. Eu não amava suficientemente Hude para que essa
lágrima me tocasse, mas ele não me era indiferente a
ponto de que eu chegasse a zombar dela. Aproximei-me.
Foi Guitton dizia Hude quem me ensinou
-
a escrever. Um dia, eu- lhe oferecera- um de meus livros.
Ele o leu, como ele sabia ler: primeiramente sob o traves-
130
mais serei um bom - escritor." "[9 contrário. Você é
- eu quero ensinar-lhe o
capaz de melhorar. Por isso é que
grande princípio". Colocou as mãos em forma de porta-
voz e gritou: "Hu.de, o segredo do estilo é subtrair-se ao
estilo!" A seguir, com a voz de volta ao normal: "Você lê
Pascal?,, _
/,[5 vezes,, respondi. _,,lgia pascal. ,pensa_
,
mento fugidio, que eu queria escrever. Ertt vez, escrevi
que ele me escapou'."
Ele mordeu os lábios, e uma lágrima turvou seu
olhar. Olhei para Hude. Jamais teria acreditado que ele
gostasse nem um pouco de mim, e fiquei zangado com
ele por causa desse erro que cometi. Ele jamais teve in-
tenção de bajular-me. Ensinei-lhe a nada esperar de mim.
Teria ao menos pensado poder esperar da parte dele um
certo ressentimento. Estudei sua fisionomia. Não com-
preendia. Alguma coisa me escapava.
Ante a lágrima de Hude, Marion pareceu emociona-
do, enxugou os olhos e assoou o nariz com um enorme
lenço. Foi no silêncio que se deu o momento mais tocante
da homilia. Cem pessoas voltaram os olhos. O orador jul-
131
Eu havia
Marion: "Nietzsche escreveu: 'Não uma repetição, mas
uma continuação"'. O que isso significava? Olhei-o de
novo. Vi seu coração a descoberto, mas não pude ver-lhe
o segredo. E, pela primeira vez, duvidei de meu conheci-
mento dos homens.

Desejoso de me divertir, detive-me um pouco mais


adiante, à altura de um casal pitoresco e sabiamente de-
semparelhado. O acaso dos encontros havia feito bem as
coisas. Jean-Claude Casanova, membro do Instituto,Iibe-
ral, fino, jovial, encontrou-se sentado ao lado de Marcel
de Saint-Sulpice, reacionário, temperamental e satisfeito.
Casanova não havia escrito muito, mas ele tinha lucidez
sobre tudo, e sua conversa era um encanto. Nós o tínha-
mos escolhido desde a primeira vez ao seu primeiro en-
tusiasmo de jovem. Saint-Sulpice, ao contrário, havia pu-
blicado sessenta e duas obras, capaz de explicar uma su-
cessão de candidaturas ao Instituto, bem como a repetida
derrota das ditas candidaturas. Sua vaidade ficou entu-
mecida com isso. Para sobreviver, teve de identificar um
132
les, a quem a retórica episcopal causava estremecimentos
de devoção.
Condescendente, Casanova se espantava:
Com menos de sessenta anos, ele estava na Aca-
demia; - com mais de oitenta, quis tornar-se membro do
Instituto. Jamais compreendi essa manobra.
É sua maneira peculiar sussurrou Saint-Sulpice
ao seu- ouvido. Ele lia os livros-começando pelo fim. Ele
fazia tudo ao contrário. Veja suas condecorações. Teve a
Legião de Honra aos quarenta anos e obteve a Ordem do
Mérito aos noventa.
Aos oitenta e oito, retificou Casanova.
-A
senhora bem comportada disse: "Silêncio!" Saint-
Sulpice continuou sua narração, um pouco menos forte.
Foi o Presidente da República em pessoa.quem
colocou - a fita azul na sala de festas do Palácio do Elysée.
O pobre Guitton tinha ficado demasiado tempo em pé.
Ele teria desmaiado se Miterrand não lhe tivesse trazido
uma cadeira. Como haviam medido mal o tamanho da
IJJ
Ohl Não é que as considerem, mas é que ficari-
-
am aborrecidas se não as tivessem. Em resumo, para se
evitar uma ligeira desonra, busca-se obter a tempo a Le-
gião de Honra.
Aí está um prazeÍ que nada mais é do que o fim
- Não disse Sócrates alguma coisa sobre
da dor. o assunto?
Platão. Em Fédon.
- Você perguntou Casanova.
seria filósofo?
Talvez- membro do Instituto? - -
Às vezes, sou candidato respondeu Saint-
Sulpice, -
- inflamado. Você está se preparando para ser?
-
Bem, não exatamente, acabo de ser eleito.
- Parabéns respondeu
-_ Saint-Sulpice, apagado.
-Fazia
pena vê-lo. Casanova tentou reanimálo.
Felizmente, Guitton votou em mim.
- Melhor para você. Ele
sempre votou contra mim.
- Por quê? Você franco-maçon?
era
- De forma alguma;
católico.
-
734
que de- Gramont.
Exatamente. Ele começa suas visitas, explicando
- sacrificar-se, mas não se ridicularizar, que ele
que aceita
precisa dos dez votos costumeiros do senhor Duque de-
safiador. Veja só o velhaco! EIe fez de tal forma que os
dez que deviam votar nele achavam-se em vinte e quatro
na apuração do escrutínio. Guitton passa na primeira ro-
dada para espanto geral. Foi a primeira vez que um du-
que era derrotado numa eleição acadêmica.
Um duque é sempre honroso, mas a Acade-
- dúvida, agiu bem em eleger Guitton. Vejam
mia, sem
sól Eu não conhecia esse lado do nosso defunto. Que
político fino!
Você quer dizer um impostor. E além do mais,
não é -que ele teve o topete de presumirque esta manobra
dolosa the fora inspirada por Marthe Robin?
Por quem?
- Marthe Robin, uma santa, uma estigmatizada de
quem -Guitton escreveu o Portrnit [Retrato].
135
Acho que você está sendo muito indulgente. De
- modo, você sabe
qualquer como ele conseguiu a Acade-
mia. No Lirstituto, ele não tem meios de fazer esse tipo de
peripécias. Por isso é que ele esperou ainda trinta anos
antes de entrar aí, pelo cansaço, quando eies não tinham
mais ninguém para colocar.
Mais ninguém... Ainda existem, neste país, filó-
- valor.
sofos de

- Sim, mas nenhum tem oitenta anos.


E
- daí? É preciso ter oitenta anos para estar no
Instituto?
Na seção de filosofia, sim. Até mesmo antes dos
oitenta- e cinco as probabilidades são poucas. Você preci-
sava vê-los reunidos às segundas-feiras...
Lamentável. Então essas pessoas não morrem?
-
Penso que o Instituto os conserva.
-
A gerontocracia é um fenômeno sempre mais
-
preocupante. Dito isso, todos esses velhos são os primei-
736
para o futuro.
De que forma ele agiria?
- ReÍormaria direito de voto. Ele tinha teorias
o
-
espantosas sobre o assunto. Segundo ele, dever-se-ia vo-
tar por pontos. Imagine. Todos nós teríamos um número
de pontos inversamente proporcional à nossa idade, e
este número seria calculado contando-se um ponto por
ano de vida. Por exemplo, vamos imaginar que toda vida
humana dure cem anos. Aos dezoito anos, você dispõe,
portanto de cem pontos menos dezoito pontos, igual a
oitenta e dois pontos. Aos dezenove anos, tem-se oitenta
e um pontos. Aos vinte anos, oitenta, e assim por diante.
Desta forma, eu, aos sessenta anos, não valeria
mais -que quarenta pontos, enquanto que meus dois fi-
lhos de vinte e trina anos pesariam juntos cento e cin-
qüenta pontos.
Perfeitamente.
- E aos
cem anos?
- Zero ponto.
-
137
- Impossível, que pena! Este velho louco! Que pro-
-
jeto original.
Extravagante.
- Lógico.
-
Genial.
- Ridículo.
- Potentemente democrático.
- ProÍundamente despótico.
-
Em suma, guitoniano?
-
Eh, sim, guitoniano.
-A
Senhora-bem-comportada os fuzilou com o olhar,
enquanto sibilava entre os dentes:
Mas enfim, senhores, calem a boca de uma vez!
-Os dois compadres prosseguiram,
com voz
inaudível:
que você lhe disse para que ele vote em você?
- OEu não disse nada. Eu fiz.
-
138
Ele voltou?
- Na semana seguinte, pontualmente. Entremen-
tes, a -direita se havia mobilizado. A esquerda escandia:
"Gui-tton, Co-lla-bo!" A direita berrava: "Co-mu-nas, vão
pra Mos-cou!". Todo mundo se insultava. Durante uma
hora. Grandioso.
E Guitton?
- Esperava, de braços cruzados. Na saída, os mais
- queriam prendê-lo. Mas ele tinha sempre um
excitados
pequeno grupo de guarda-costas. Eu era um deles. Se eu
lhe dissesse quem era o chefe!
Quem era?
- Ele tem feito carreira desde então.
- Mas quem?
- Não posso dizer. Seria um escândalo.
-
12. L' Internatíonale'. canto revolucionário; letra de E. Pottier (1871),
música de P. Degeyter. (N.T.)

r39
- Indeléveis. A prova ele narrou sua vida
em
quarenta -
- volumes, e você procura em vão em sua obra
uma única página que seja onde ele faça alusão aos fatos
que acabo de contar-lhe. Mas como sempre, com ele, tudo
é sempre ambíguo.
Em que sentido?
- Ele não podia abrir o bico, mas isso não impe-
o
dia de- receber sua remuneração. Como ele sempre foi um
pouco preguiçoso, isso não lhe poderia de jeito nenhum
desagradar.
Você é redutivo.
- Não, lúcido. Além do mais, havia ainda
outra
coisa. -Ele encontrara uma cruz em seu caminho.
Ele pensava que devia abraçá-la até o fim para
se
-
santificar.
Compreende-se, ele era cristão, apesar de tudo.
- Sim, apesar,de tudo
suspirou Saint-Sulpice.
Mas,- calemo-nos. E tempo de- rezar por ele.
-
1.40
747
D. Vingt-Trois, tendo terminado a leitura da homilia,
sobe ao altar e começa o ofertório, ao som de um lindo
fundo de órgão bastante arrebatador. Subo de novo para
a tribuna. O Anjo continuava lá, mas você jamais adivi-
nharia quem eu encontrei ali.

- Sócrates!
Essa não!
Minha presença lhe causa espanto?
- Há três
dias que nada mais me espanta. Devo
dizer, -porém, que, na verdade, não esperava vê-lo.
E por quê?
- Príncipe dos filósofos!... E depois...
- O pensava é que...

- Você você que eu estava inferno, talvez?


no
O que quer, um pagão...
- Desengane-se. Ainda estou no purgatório.
- Ainda? Desde que você bebeu a cicuta?
-
142
.b certo.
- Mas na Sorbonne, Sócrates, todos dizem que você
-
é modesto?
Você sabe bem, Guitton, que o orgulho nada tem
a
- a falta
ver com de modéstia.
O que é o orgulho, Sócrates?
- Guitton, você me pÍeocupa. Se você não sabe o
que é-o orgulho, o risco é grande de que você aí esteja
mergulhado até o pescoço. Diga-me você mesmo, portan-
to, o que é.
Deus.
- Julgar-se
Exatamente. Não como loucos, bem entendi-
- como os filósofos, o queosnão é a mesma
do, mas coisa.
Desenvolva-me esse conceito.
Imaginar que nosso espírito fabrica a verdade,
em vez- de ajustar-se à realidade. Imaginar que se pode
estabelecer o bem e o mal. Querer pensar somente por si
mesmo, não confiar jamais em ninguém e não querer de-
pender de nada.
143
E isso não é verdade?
- É-o apenas em parte. O essencial vem do exte-
- sobretudo do outro.
rior; vem
Mas por quê?
- Porque o essencial, Guitton, é o amor. Mas o
amor -é uma ligação real de você com tudo aquilo que
não é você, e ela nasce da doação que você faz a outrem,
de maneira imprevisível e não controlável. Por isso é que,
se você é fechado e independente, você não compreende
nada de nada.
E de que mais você foi acusado, amigo Sócrates?
- De julgar que nada é mau voluntariamente.
- E não é verdade? Sempre me pareceu que
os
homens- fossem bem mais estúpidos do que maus.
Guitton, nossa maldade é que nos torna es-
-
túpidos.
Você quer dizer que, se todo mundo fosse bom,
-
todo mundo seria inteligente? A inteligência esclarecida
me parece, contudo, um fator da bondade.
'1.44
Morri por minhas idéias.
Não.
-
- Não, é belo morrer por suas idéias?
Não
Guitton. Se se pensa bem no assunto, vê-se
que é-tão-somente ainda morrer para si. Além do mais,
um milhão de idéias não valem uma única pessoa. As
pessoas é que devem ser amadas. Por elas é que se deve
viver e morrer.
Apesar de tudo, gosto muito das idéias. Elas
jamais- me aborreceram. Não são como as pessoas... Mas
volte, pois, ao espírito de paternidade, porque isso me
interessa mais.
No |ulgamento, muito me foi recriminado do
que eu- disse sobre Platão.

- O que aconteceu?
São Pedro...
- São Pedro julgou-o
- Evidentemente, em 399 antes de Jesus Cristo.
não. Antes de entrar em julga-
- esperei, como todo
mento, mundo, a ressurreição de Je-
sus Cristo. E como havia muitos dossiês ern juízo, ainda

T45
ll). Nleu lestÀmÈnr)
Pior para eles.
- Mas é incrível!
- É mehor assim. A filosofia não ganharia nada
-
com isso.
Estou consternado. Sinto-me desonrado. Ridicu-
-
larizado.
Por quê, Guitton? Todo mundo pode enganar-se.
- Contei bagatelas durante quarenta anos.
- Digamos, histórias edificantes.
- Sócrates, nós somos uns asnos.
- Como quiser, Guitton, mas muito, muito
sábios,
apesar- de tudo. Você o sabe de longa data.
Longa como nossas orelhas, Sócrates.
-Sócrates riu com prazer. Eu estava desalentado.
Você ri? É trâgico. Que desilusão! Ah! O encon-
tro de-Sócrates e de Platão... Esta grande amizade filosó-
fica! Quase rne fazia chorar. Era minha parte predileta, e
todos os meus esfudantes derramavam aí pontualmente
torrentes de lágrimas.
746
tenha soprado. Ele quis colocar meu pensamento em mú-
sica. Ai de mim. Não tenho a impressão de que ela seja
um bom intérprete dela." São Pedro: "Podemos conce-
der-lhe que ele escrevia bem". Eu: "Rigorosamente". São
Pedro: "Em resumo, Platão era seu escravo". E eu: "Não
mais, são Pedro, não mais".
Ai, ai, ail Então?
- Então, o purgatório. E
pronto.
-
É espa.rtoso aquilo que você está me dizendo. E
- do mundo?
até o fim
Até o fim do mundo. A não ser que...
- Eu
sei, eu sei. E quando é isso, o fim do mundo?
- E quem sabe?
-
Até o fim do mundo... Por um pouco de orgulho
-
intelectual? Eles não brincam em serviço.
Disseram-me que este era a fina flor do gênero
pecado.-
Mas então, como é que você escapou do inferno?
-
747
- Se eu chegar lá.
você chegará. Você não é orgulhoso, é?
- Oh,
Espero não.
- Vaidoso?que
- Menos ainda...
- Você tem mesmo razão.
É o orgulho dos imbe-
cis. E -o espírito de paternidade?
Não tenho filhos.
- O problema
- Ademais, não é esse.
- Você tem não tive sucessor.
certeza disso?
- Eu
o saberia.
- Williatte?
- Um
excelente biógrafo meu, não tem outra
-
pretensão.
E Hude?
- Eu reconheceria
- que eu o precedo.que
nhecesse
ele me sucede se ele reco-
Estamos nesse pé.
748
-
Cruel? Então, você teria zombado?
-
Quem sabe?
-
Sócrates ria a gosto. Eu estava contrariado.
Vamos, Guitton, não se atormente. Fale-me an-
tes do-Senhor Pouget.
Você queria dizer do abade Pouget, o cego da
-
rua do Bac?
Sim, aquele de quem você escreveu o inesquecí-
-
vel retrato. Li isso no purgatório quando saiu. Portrait de
Monsieur Pouget [Retrato do Senhor Pouget]. Este sim é
que é um livro. Até mesmo Albert Camus tomou da pena
para felicitá-lo. Quatro páginas! Você sabe, no purgató-
rio, é até mesmo possível manter-se informado da afuali-
dade filosófica. Fiquei emocionado ante o quadro que
você fazia da nobre figura de seu mestre.
Oh, meu mestre...
- Como, Pouget não era seu mestre?
- Claro que não.
-
t49
dia ouvir-nos.

- Guitton, o que você da Internet?


pensa
A técnica produz conceitos puros. A partir de
hoje, -qualquer ser humano tem, em um minuto, acesso
virtual a todas as informações abertas de todos os outros
membros da comunidade humana. Amanhã, num cartão
magnético ao preço de cem francos, você terá toda a bi-
blioteca do Congresso. Por cinqüenta centavos, nova car-
ga e atualização em todos os distribuidores automáticos
dos bancos. Em um segundo cartão magnético, o sistema
de exploração para localizáìo num instante neste mundo
e, num segundo, extrair daí tudo o que Ìhe interessa.
são as conseqüências?
- Quais
Enormes, Sócrates. Pegue a filosofia. O que era,
-
antigamente, um "verdadeiro filósofo"? Alguém original
como você, Sócrates, que passava os dias a conversar com
o primeiro que aparecesse nas ruas de Atenas. Era Spinoza,
polindo suas lentes astronômicas enquanto polia sua Etl-
ca. Era Pascal, inventando a máquina de calcular em suas

150
a filosofia não passasse de uma velha história. Ou como
se os livros de filosofia fossem textos sagrados, escritos
pelo Espírito Absoluto.
A comparação é exata, Guitton. Isso já começou
-
em meu tempo. Por isso é que me recusei a escrever.
lemos um discurso confuso em Hegel,
- Quando
quebramos a cabeça procurando saber o que o Absoluto
queria dizer.
Exatamente, Guitton. O Absoluto é infalível,
-
Hegel é seu profeta.
Tal é, nos dias de hoje, o sacrificio dell'intelletto.
-
Ao contrário, o papa está sempre errado, e a Bíblia se
engana. Forçosamente.
Eu dizia a mim mesmo no purgatório, Guitton:
pensar- que um livro é inspirado por Deus é reconhecer
que todos os outros não o são. Mas, pensar que não haja
nenhum livro inspirado por Deus é reconhecer que todos
o são (exceto aqueles onde se diz que um único seria).
151
-
Quase todo meu público é burguês. Não fale mal dos bur-
gueses... De fato, Sócrates, o que é o espírito burguês?
O esgotamento da alma na paz e o enfraqueci-
mento- do político, o furor da guerra econômica, o
minimum de social e o ceticismo cultural, que ri de tudo,
aos pés da única verdade: "a onipotência, a onisciência, a
total conveniência do dinheiro".
Foi Marx quem disse isso?
- Não, Guitton, foi Honoré de Balzac.
- Não admira, ele é bem mais subversivo.
- Sim, mas ele se barbeava melhor e havia assumi-
do um- prefixo falso Mediante esse fato, os
-'de'Balzac
jovens mais bem instruídos têm o direito de lê-lo a partir
dos doze ou treze anos.
Você é um verdadeiro revolucionário, Sócrates.
Já não-me admiro de que lhe tenham dado a cicuta.
Guitton, o que você pensa do sistema de castas?
- Você vai me dizer que Paris a pratica no século
-
XX. Pergunte ao meu público o que ele pensa disso.

752
- astucioso e política.
um editor
Política?
-_
e.s.p.
Não compreendo.
-Q.s.p.?
Claro, Sócrates, você não vai mais à farmácia.
-
Não muito.
-
Na próxima vez que você for, leia as fórmulas
-
dos remédios sobre as caixinhas. Você vai encontrar sem-
pre estas palavras: excipiente: q.s.p., quantidade suficien-
te para.
Para...?
- Para.
-
Então, política, q.s.p.?
- í-'
tr tsso.
-
disse tudo.
- ]á
Tudo.
-
Você o repetirá para são Pedro.
-
153
e nós lhes rendemos homenagem com as idéias que ele
jamais tiveram, mas que nós não teríamos tido sem eles.
Um grande filósofo é isso: um caïa surpreendente que
tem o gênio de fazer com que você seja genial e que faz o
mesmo a todas as gerações sucessivas. Mas a tradição,
por si mesma, é idiota como um fósforo sem cabeça. Pro-
duz apenas comentadores e ratos de biblioteca.
que é um rato de biblioteca?
- OAlguém que leu vinte mil volumes, folheou cem
mil e-sabe onde se encontra a menor bobagem que se
relaciona com sua especialidade.
E a Internet nisso aí?
- E a salvação da filosofia,
Sócrates, porque é a
morte- dos ratos. Não importa qual espírito meditativo
terá logo a seu serviço um escravo eletrônico igualando
os desempenhos de um regimento de eruditos. Os ratos
de biblioteca não servirão mais para nada. Evaporados.
Abolidos. Anulados. Como os bois de carro quando che-
garam os tratores.
Guitton, não me dê uma alegria falsa.
-
1.54
invenção. Por meio da técnica, nós nos curaremos, assim,
da acumulação pelo excesso de acumulação. Nós nos cu-
raremos do excesso de especialização pelo excesso mes-
mo da especialização.
A menos, Guitton, que não entremos num pro-
cesso -de arqui-especialização.
Neste campo, Guitton, há um limite difícil de
-
supeÍar, sem cair no ridículo e na insignificância. Perma-
nece sempre evidente que, se o conhecimento de um todo
depende do conhecimento de seus elementos, reciproca-
mente, a justa apreciação dos elementos depende tam-
bém do conhecimento do todo. Sem análise, a síntese é
superficial e vaga, mas sem capacidade de síntese, a aná-
lise é uma estupidez grosseira. O progresso da especiali-
zaçáo e da técnica anulam, portanto, o prestígio da espe-
cialização e da erudição.
A evolução da doença terá proporcionado o
-
remédio.
Exatamente.
- você tenha razáo.
-Talvez
155
Sabe, Guitton, lembro-me que, nesta manhã,
- eu deixava o purgatório para fazer-lhe esta
quando visi-
ta, ao costear o paraíso, encontrei o filósofo Maurice
Blondel. Ele me incumbiu de transmitirlhe sua amizade.
Não sabia que você conhecia Blondel.
Quando eu estava com vinte anos, tendo conse-
guido- minha admissão, eu me pus a pensar sobre um
assunto de tese. Dado que eu estava meio perdido, um
amigo me disse: "Por que não vais pedir um conselho a
Maurice Blondel?" Era um dos profundos e honestos pen-
sadores franceses do século XX. Ele filosofava na paz,
sobre as colinas de Aix-en-Provence, como Cézanne ti-
nha aí pintado, feliz e mal conhecido. Envelheceu na ce-
gueira, como o divino Calchas. Morreu como santo. Não
me admira que esteja no paraíso.
Então, você Íoi vê-lo.
-
156
de tese, se não se trata de mundanidades fúteis, não pode
ser senão seu posicionamento no ser e na vida. Você não
procura um assunto de tema latino. Você procura o eixo
de afirmação se sua vida em direção ao Verdadeiro." A
seguir, calou-se. Ele me escutou.
O que você lhe dizia?
- Não guardei a menor lembrança. Durante mui-
- derramei as ondas lamacentas de minha alma.
tas horas,
Ele o escutava.
- Sem dizer nada. A luz descia no horizonte en-
-
quanto surgia dentro de mim. Por fim, como escreve
Homero, "O sol se pôs, e de sombra os caminhos se co-
brem". Voltamos para casa. No terraço, ele rompeu o
silêncio, olhou-me com bondade e me disse simplesmen-
te: "Sua tese, meu caro, é o tempo e a eternidade".
E então?
- Era minha tese. E faz setenta anos que a medito.
-
Você compreende?
E como! Um mestre é isso.
-
157
I'eternité chez Plotitt et saint Augttstin [O tempo e a eterni-
dade em Plotino e santo Agostinho]. Minha pequena é
sobre Le Déaeloppement chez Newman IO Desenvolvimento
em Newman].
Compreendo. Então?
- Ele ouvira falar dela?
-
Não me disse nada.
- É inacreditável. E de que ele lhe falou? De
-
piedade?
Não, de filosofia. Ele me disse que acabara de ler
-
a tese de Jean Wahl sobre L'Instant chez Descarfe [O ins-
tante em Descartes].
É espuntoso. Ele conhecia a tese de Wahl e não
- a minha?
conhecia
É preciso dizer que a de Wahl é extraordinária.
- tudo suporïado", pensei.
"Eu teria
Como?
-
Não. Nada. E isso é tudo o que você disse?
-
158
tre dez pessoas ali, tahez, e ainda, conhece o nome de
Blondel. Uma entre dez. Não mais. Filosoficamente,
Blondel era superior. Mas politicamente, ele era zero, você
entende. Zero.
resulta?
- disso
E
tudo o que falamos acabará por ser conheci-
- Que
do lá em baixo.
Talvez.
- Evidentemente. No final das contas, tudo se sabe.
-
Meu tempo é limitado. Só posso receber personalidades
mundialmente conhecidas. Ademais, devo angariar ami-
gos em toda parte. Não posso identificar-me demais com
os católicos.
Mas você é católico, não?
-
Evidentemente, mas isso não deve ficar em pri-
meiro-plano. Os católicos, você compreende, forçosamen-
te compram meus livros. Forçosamente. Portanto, os ou-
tros é que contam. O pobre Blondel carece de distância,
você sabe, excessivamente piedoso.
159
O interesse geral passa por seu interesse
-
particular.
Não se poderia dizer melhor. Não tenho interes-
-
se em receber Blondel. Todos os meus editores me dizem
que eu tenho interesse em me distinguir da sacristia. Além
do mais, é ainda um concorrente. Quando Blondel che-
gar, diga-lhe que não estou. Mas, por outro lado, tente
fazer com que Newman venha. Isso Íacilitará as tradu-
ções inglesas.
Blondel me disse (em grego antigo, você
- Guitton,
conhece sua cultura e sua delicadeza): "Oh Sócrates, não
se esqueça de dizer a meu amigo Guitton: 'Pobre iouco,
pensa em tua alma e procura saber por que ela é imortal"'.
Ele propôs essa pergunta para mim?
- Sim, em grego. E eu também lhe pergunto:
-
Guitton, imortal?
a alma é
Você discutiu isso com Fédon, Cebes, Símias, no
dia em- que você bebeu a cicuta. O que se pode acrescen-
tar à sua proposição? Ademais, você, que está lá em cima,
160
sou Eu exatamente como você.
- Não é a clareza que nos falta, Guitton, mas a
-
esPerança.
E não é arazão que nos atira à certeza do nada, é
-
a massa e o peso da desesperança.
O que você lhes pode opor?... Mas, veja: Blondel
-
está passando do outro lado da galeria.
Silêncio! Ele não nos viu.
-Sócrates se pôs a chamar Blondel, gritando:
Blondel! Ei! Blondel!
- O que há com você? Silêncio!
-Blondel deteve-se
e levantou a cabeça. E Sócrates a
gritar ainda mais forte:
Blondel! Ei! Blondel!
-E eu tentando fazê-lo
calar-se.
Cale-se! Cale-se! Você vai perturbar o culto divino.
-Mas não havia jeito. E aquilo que devia acontecer,
aconteceu. Blondel se voltou, viu-nos e veio até nós.
r67
11. Meu testam€nto.
faço o papel de livre-pensador. E assim que o livro passa-
rá. Do confrário, dirão que é coisa de padre! Ademais, se
você não estiver lá, no fogo da conversa, eu vou dizer
bobagens.
Verdades.
-
no mesmo. Fique.
-DâPense naquilo que lhe pedi. Reze por mim quan-
- lá em cima.
do chegar
Ah, esperamos que eu consiga.
- Deixe-se
levar. Pense na alma.
-
Ai, ai!
-
A Deus, Cuitton.
- Adeus,
Sócrates.
-Apertou-me a
mão. Mais morto do que vivo, voltei
em direção a BÌondel.
Jean, permita-me ir diretamente ao assunto. Eu
-
gostaria que você me dissesse por que você acredita na
imortalidade de sua alma.
762
Você me obriga a penetrar profundamente em
-
mim mesmo. Instintivamente, creio na alma. Deus e eu,
dizia Newman, são as duas grandes luzes dentro da noi-
te. Não sei o que pensar do corpo e da matéria. Quando
me deixo levar pela minha inclinação natural, chego a
pensar, como Berkeley, que a matéria não existe, a não
ser como um tipo de dispersão da alma. Estudei demais
Plotino, Leibniz e esta tradição de pensamento francesa
espiritualista, que vai de Maine de Biran a Bergson e a
você, Blondel. Voltaire tinha razão. É tao difícil conhecer
a matéria quanto a alma, talvez mais. Não se ganha nada
com ser materialista. Troca-se o obscuro pelo mais obscu-
ro ainda.
Você se inclina ao panpsiquismo 13.
-
13. De pan, tudo; psychê, alma. Doutrina segundo a qual os fenô-
menos materiais seriam apenas a aparência, em nosso espírito, de
realidades em si mesmas análogas à consciência. O panpsiquismo é o
inverso do materialismo que, ao contrário, vê nos fenômenos espiri-
tuais derivações de uma realidade em si mesma material. (N.E.)

t63
que eles eram mais famosos do que eu, sentia-me devo-
rado pela inveja.
Console-se, você os superou em glória.
- Poxa! Eu as Jean,
tive pelo desgaste.
- Dê-me suas razões
sobre a imortalidade.
- Recordo-me jâ ter
de falado dessa questão
- setenta anos. Eu fora vivamente tocado porcom
você há sua
posição do problema.
Não me lembro mais dessa conversa.
-
Você me dizia, Blondel, que, a esse respeito, o
-
mais importante se encontra nos preâmbulos. Quando se
decide colocar o problema, ele já está quase resolvido. E
antes mesmo de colocáìo, é preciso colocar-se nele exis-
tencialmente.
termos de uma questão não ganham sentido
- Os
senão a partir de uma certa experiência. Ali onde esta fal-
ta, o problema parece verbal. Em outras palavras, uma
busca de saber supõe um desejo de saber capaz de suscitar
uma hipótese de trabalho e um esforço que a verifique.
164
ao Absoluto, é visto como inconsciente e impessoal. O
indivíduo humano não seria mais que uma parcela deste
grande todo divino e inconsciente. Quando se pensa as-
sim, a idéia de uma sobrevivência pessoal do indivíduo
pode ter algum sentido?
Nenhum, Guitton.
- Mas quando se pensa que Deus é pessoal, pensa-
-
se também que não existe nada maior do que a personaii-
dade. E ela, então, Blondel, que justifica a existência de
todo o resto. Portanto, a partir do momento em que você
acredita em Deus lhe digo: em um Deus pessoal
- euacreditar na
é-lhe bastante natural -,
imortalidade pessoal.
E é precisamente a idéia do desaparecimento da persona-
lidade que se torna indecifrável.
Sobre este segundo ponto, Jean, estou igualmen-
-
te de acordo com você. Daí, o que você conclui?
Eu acreditava em um Deus pessoal. Conseqüen-
- a imortalidade me parecia altamente provável.
temente,
E dado que ela o era, não se fazia mister empenhar-se
longamente em prová-lo.
165
sobrevivência da alma?

- b é difícil imaginar sua existência atual. Mas a


consciência também é inimaginável. Nós estamos presen-
tes a nós mesmos. É assim.
não se assustar ante essa dificuldade
- Jean, como
em imaginar? Você, como você reage?
Eu não imagino, eis tudo. Eu penso no amor.
-
Vejo que, para a aquele que ama Deus, a sobrevivência é
bastante simples: ir juntar-se ao Deus que se ama.
Você ama Deus?
-
Esta não é a questão, Blondel. Estoulhe dizendo
-
que aqueles que amam não têm as dificuldades de que
você fala.
Muitas pessoas dizem que não passam de ver-
- um mofo
mezinhos, jogado na face da terra.
É porque elas se vêm sobretudo a partir do exte-
rior e -consideram exageradamente seus corpos. Blondel,
é preciso olhar-se e ver-se a partir do interior. Aquele
que percorre os imensos meandros de sua memória per-
766
de sua vida é conservar sua existência, reproduzir a espé-
cie e manter seu lugar na ordem ecológica do universo.
E o homem?
- Este não é o caso do homem, Blondel. Ele pulorl
- da corrente. Certamente, ele vive, conserva sua
por cima
vida, reproduz sua vida, rende-se à ordem do mundo e a
suas necessidades. Mas tudo isso está subordinado ao
cumprimento de seu destino pessoal. Ele aspira a supe-
rar-se sem suprimir-se. Tudo nele demonstra uma vida
que visa ao além do mundo, ao além do social, ao além
do tempo. Aos cem anos, ele tem ainda vinte anos.
Ele permanece sempre jovem?
- Sim, com a condição de pensar que ele tem a
-
eternidade diante dele.
E aqueles que se sentem velhos?
- Talvez eles não creiam na eternidade. Ou então,
- idiotas.
sentem-se

14. C/. livro X.


r67
num primeiro momento. Mas essa supera-
- Sim,
ção indefinida no mundo é também a imagem e a opor-
tunidade de uma superação infinita em direção àquilo
que supera absolutamente o mundo. Você trouxe o pro-
blema à luz em seu livro L'Actiott [A ação]. Um livro
estupefacente, que sempre me fascinou. Jamais o teria
lido se não o tivesse recebido na diskibuição dos prêmi
os. Eu o li durante as férias de verão, antes de começar o
curso de filosofia. Então disse a mim mesmo que eu seria
filósofo.
É um fato real, Jean: o homem visa ao além. Não
-
é uma observação casual. É uma estrutura essencial do
ser humano. Talvez a mais fundamental. Por essa razão é
que um homem sem destino além-túmulo me parece in-
concebível.
Talvez não inconcebível, Blondel, mas estranha-
mente- absurdo. Também absurdo, até mesmo mais ab-
surdo do que pudesse existir um sexo macho em uma
natureza sem fêmea; tão absurdo quanto um estômago
em um universo onde não houvesse nada de comestível;
168
Penso, Blondel, que, quando se tem uma alma
como -a sua/ não se tem quase necessidade de pensar.

O que você acha, das filosofias religiosas


- a salvação passa Jean,
nas quais pelo esquecimento da perso-
nalidade, pela abolição da consciência e pela dissolução
da individualidade?
Eu me peïgunto se elas não formam um todo
com uma- sociedade demasiado fechada e demasiado po-
bre. Quando a pessoa está por demais esmagada pelo
todo social, ela renuncia a dominar o universo, a refor-
mar a sociedade, ela renuncia até mesmo a existir, à bus-
ca da felicidade. Ela aspira ao nada, esperando, mediante
isso, identificar-se com o Uno. Dá-se a mesma coisa nas
sociedades excessivamente livres e excessivamente prós-
peras. Não se vê mais a razáo para lutar aí, para traba-
lhar, para disciplinar as pulsões. A personalidade se dis-
solve à falta de obstáculo, de material e de lei. E quando
se chega aí, para gozffi sem desesperar, tem-se necessida-
de do nada.

769
-
uma ficção. Mas a esperança de que ela não seja, esta é
uma realidade.
o que você quer dizer?
-Jean,
- Eu observo cl indivíduo que busca este Nada ab-
soluto. Vejo-o empenhar-se neste caminho com toda a sua
alma. Ele vive uma grande aventura pessoal. Que estranha
contradição entre sua teoria e sua vidal A teoria diz que o
destino da pessoa é a dissolução, o do desejo é extinguir-
se, o do ser é dissipar-se como uma ilusão. Mas a vida
testemunha o contrário. Essa mística do nada pretende, na
verdade, salvar sua pessoa, etetrizar seu ser, satisfazer seu
desejo absoluto. Com isso, parece testemunhar que alguma
coisa nele tende a crer na imortalidade da pessoa.
E não se pode imaginar uma possível síntese
- dois caminhos?
entre estes
Os sistemas se excluem, Blondel. Mas há um
- em que a vida espiritual de tipo teísta passa
momento
bem perto da idéia do nada. Esse momento é um tempo
propício para o diálogo.
170
um sinal de contradição.

o que será nossa vida depois da morte?


- Jean,
Ouça, Blondel, nós estamos nela! Qual o sentido
dessa -questão?
Faça de conta que não estamos.
- Nossa alma, aqui em baixo, é despertada pelos
- a partir de fora. No alto, Blondel, ela é desperta-
sentidos,
da a partir de sua profundeza, iluminada pela Divindade.
E se a Divindade não a iluminasse?
- De
que serviria então criar uma alma pensante e
fazê-la- subsistir indef inidamente sem pensar?
Mas, Deus não a pode aniquilar?
- E Deusfean,
costuma agir assim?
- A fé diz que não,
Jean, mas a filosofia pode
-
dizë-Io?
Os caminhos de Deus são impenetráveis. No ato
-
de morrer, por mais certos que estejamos de sobreviver,
777
-Depois
dessa última resposta, ele não me pergun-
tou mais nada. Maquinalmente, olhei para o celebrante
no altar. Ele acabava de incensar o altar e meu ataúde.
Agora estava lavando as mãos. Por alguns instantes, acom-
panhei o desenrolar do rito. Quando levantei de novo os
olhos, não vi mais Blondel. Sua partida me aliviou. Mas
eu estava contente. E se, depois de tudo, nós fôssemos
realmente imortais? Como eu tinha necessidade de rela-
xar, fui de novo dar um giro pela nave.

172
Ouvi dois desconhecidos conversando. É espantoso
constatar quantas pessoas o conhecem sem que você as
conheça. Ou melhor, têm a impressão de conhecê-lo.
Ele tinha filhos? perguntava um.
-"PÍonto" disse a mim - mesmo. "Agora vão maltra-
,
tar meu casamento".
Ele tinha sobrinhos respondeu o outro. Seu
-
irmão era prolífero. - -
Mas ele não era casado?
-
Sim. Sua mulher se chamava Marie-Louise. Foi
casado- durante vinte anos.
Um parêntese numa vida tão longa.
- As mulheres não lhe interessavam.
- Em que ele tinha interesse?
- Em mesmo.
si
-
-Eàparteisso?
173
Certa noite, quando ele terminara sua manobra,
- o acompanhou; então, enquanto a empregada o
o reitor
ajudava a vestir o sobretudo, o reitor se animou a per-
guntar-lhe. "Senhor Guitton, o senhor se deita todas as
noites à mesma hora?" "Sim", respondeu Guitton, "às
dez horas exatas". "E curioso", retoma o reitor, "eu co-
nheço uma jovem que se deita também às dez horas to-
das as noites. Eu o farei conhecê-la. Você tem alguma
objeção a isso?" "Ao contrário", responde Guitton, "se
ela tem seus horários, acho bem vantajoso". Assim, eles
se encontraram na casa do reitor de Montpellier.
E então?
- Guitton adoeceu.
-
De emoção?
- Não é possível. Em todo caso, ele ficou acamado
- meses.
por vários
Teve tempo de fazersuas reflexões.
- Ah
sim, tanto mais que ela vinha, todos os dias,
-
exatamente às sete horas da noite, trazer-lhe uma tigela
774
Ao partir, ele deixou a
chave seu de apartamen-
-
to com ela. Ela cuidou de seus livros e de seus papéis. Ela
os preservou de toda degradação durante toda a guerra.
Ela esperou por ele.
Acabarão por casar-se?
-
Em 46 ou 47,náo sei mais.
- E então, durante toda a vida, ele deitaram às
se
vinte e- duas horas?
Sem dúvida. E a tisana, todas as noites...
- Isso atroz.
é
-
Sim. Ele sublimou escrevendo um livro aceitável
sobÍe -L'Amour humain [O amor humano].
Ele a amava?
- você mesmo. Barbastre me contou esta
- Julgue-o
conversa que teve com ele. Guitton: "Barbastre, você acre-
dita na vida eterna e na ressurreição da carne?" O outro:

15. "É preciso escoÌher entre os livros e os filhos"


175
ro. Tudo é espiritualmente falso.
Mas, enfim, explique-me por que ninguém leva
nosso -casamento a sério.
Confesse que nossa união carece de romantismo.
- Mas não tivemos culpa. Foram as circunstâncias.
- Como você quer impedi-los de ver aí um ato
falho?- Dizem que o casamento lhe fazia medo, e riem-se
ao vê-lo casado.
Ela mostrou um pequeno sorriso.
Ademais, nós nos casamos aos cinqüenta anos.
- Isso não é um motivo. O coração tem
sempre
vinte -anos. Rousseau e Bergson tinham razão. O rir é
uma crueldade.
Jean, para ver o coração, é preciso ter um. Eles
não o -possuem. O essencial lhes escapa.
Você os ouviu tanto quanto eu. Eles zombaram
- Descaradamente. E incrível. O que se pode fazer?
de nós.
Ela desatou a rir.
776
- filósofos, estaríamos votados ao celibato?
nós, os
É u-a fatalidade. O casamento terá sempre algo
-
de prosaico. O adultério é mais poético.
Antes dos cinqüenta anos.
- No máximo. Depois disso, é o contrário. Difícil
-
de idealizar.
Marie-Louise, o que é a mulher ideal?
- A mulher real, quando a gente não se engana
- ideal.
mais de
Marie-Louise, por que a paixão é o único amor
-
que interessa às pessoas?
É a única coisa sublime ao alcance de qual-
-
quer um.
Mas eu não apaixonado.
- Você teve sou
uma paixão: a filosofia. Não lamen-
-
te nada.
Quando a paixão se resfria, como continuar
-
amando?

777
I2 Mêu tèstám€nrì
-
de desposá-la. Vive-se tão longamente hoje em dia.
O medo destrói o amor. É o medo, Jean, que
- afetividade.
inibe sua
Marie-Louise, por que você chegou tão tarde na
minha- vida?
Era preciso deixá-lo amadurecer.
-
É verdade. Eu era um grande retardatário, como
-
todos aqueles que têm a missão de inovar. Precisa-se de
menos tempo para se formar um servidor do presente.
Vim quando você mais estava na maior miséria.
Minha- missão era ajudá-lo a superar a crise.
Apesar de tudo, desagrada-me que zombem
-
de nós.
Seja simples. Será ainda assim
que menos.rirão
-
P9t que uma vez casados, a gente acaba se
- E uma necessidade de conservar
amando? um hábito
adquirido?
Deve existir aí outra coisa, caso se trate de amor.
-
178
Essa palavra de eternidade, Jean, a mais bela
- jamais pronunciou.
que você O sentido de sua vida, o
dom de seu espírito, o eixo de sua liberdade.

-Oqueéoamorhumano?
Um anelo de vida que se reflete, se interioriza e
- ao espiritual.
se eleva Na superfície, a juventude, a bele-
za, a paixáo, o prazet. Na primeira profundidade, a ale-
gria, a honra, a confiança, a estima, o respeito amoroso, a
generosidade terna, a afeição sólida e cordial.
E nos abismos?
-
Abismo chamando abismo.
-D.
Vingt-Trois havia entrado no momento da gran-
de ação de graças, que é o cume do rito cristão. Marie-
Louise deixou-me, acenando-me adeus com a mão. Vol-
tei à tribuna. Aí encontrei Dante a esperar-me.

179
Mestre Jean, você deve estar esgotado, depois de
todas -essas visitas.
Se eu o estivesse, Príncipe dos Poetas, a sua bas-
- renovar minhas forças.
taria para
Guitton, ficarei apenas um instante.
- Ao contrário, temos tantas coisas a falar. Você
- na Academia eu me ocupava com a poesia?
sabe que
Guitton, você tem uma mulher extraordinária.
-
Você percebeu?
Absolutamente extraordinária. Por que ela nos
deixou- assim tão depressa?
Fina discrição de um amor verdadeiro.
- Ela é perfeita.
- Você viu, ao falar, que olhar ela lançou ao Céu?
- Em direção ao
Céu? Não. Pareceu-me que ela
olhava- para mim.
Ela olhava para o Céu. Contemplei o brilho des-
-
se rnistério.

180
A juventude com a ambição, a velhice com a
-
tristeza.
A alma, o corpo, a vida, a morte, o pecado, a
-
virtude e a santidade, o homem/ a mulher, a mulher e
Deus, a Trindade.
O Amor.
-
O Amor único, o amor verdadeiro, Guitton, o
-
amor infinitamente desejado.
No entanto, ela olhou para mim.
-
Sim. Feliz o homem cujo coração merece um
-
tal olhar.
InÍeliz, ao contrário, Dante, aquele sobre o qual
ele cai- e que não conhece sua felicidade. Enquanto você
estava falando, eu era como um homem que, semi-adormeci-
do, sonha.
Assim é a vida na poesia. Guitton, por que você
não foi- mais poeta?

-Apoesiaémística.
181
ternura, o caminho da calma.
Mas o quê, a vida?
-
Guitton, toda imagem da chama viva, aquecida
- que sai da montanha, permanece para sempre
ao fogo
símbolo em memória santificada. Não receie que a per-
feição jamais traga mutilação. Aquilo que lá em cima é
sublimado é-o por felicidade e bênção. Toda beleza do
tempo vive no sublime eterno.
E o instante?
-
Toda centelha é eterna, uma vez que tenha sur-
-
gido no lar de um verdadeiro amor.
Este mistério é grande demais.
-
Também não pertence ao filósofo, mas ao teólo-
-
go e ao poeta.
É verdade que ela olhou para o Céu. Que olhar.
-
Você percebeu seu olhar, Dante?
Caminhar durante cem anos na lembrança de
um tal- olhar.
1.82
e nossos olhares se cruzaram.
Dante, o que serei eu?
- Puro e pronto para subir às estrelas.
-Dante desapareceu. Eu chorei, de alegria. Enxuguei-
me os olhos com um lenço enorme, assoei-me muito rui-
dosamente. Entrementes, o visitante da noite de minha
morte esgueirou-se para a tribuna por trás de mim.

16. "Deus de altíssima clemência"


183
é você?
- Quem
Você não se lembra de mim?
- Você!
- Eu. Eu o escutei, Mestre, todo dia de hoje.
o
- Para um morto, você não perdeu
Parabéns. nada de sua
vitalidade. Você não perdeu também sua habilidade.
Aprecio um perito.
quer
que você dizer?
- OVocê
me compreende muito bem. dossiê é
- Muito astuciosa sua maneira de Seu
oscilante. defender-se,
admitindo-se culpado. Vê-se que você sabe atingir Deus
no seu fraco. Ele sempre amou aqueles que se arrastam a
seus pés.
Você fala assim porque ele se recusou a adorá-lo.
- Ele só ama o homem de joelhos.
- Ele ama o homem grande, e o homem é maior
-
quando está de joelhos.
184
do, Guitton. engraçado! se
e não vai usufruir nem mesmo do paraíso. Você terá
agüentado a vida, enquanto um Anjo servil ousa dar-lhe
palmadas nos dedos como a um pirralho de sete anos, e
ainda mais diante de todo mundo, cada vez que você
tem vontade de expressar um pouco sua peïsonalidade
inibida, e tudo parã chegar a isio. Condenãdo, mas com
o mínimo de sofrimento.
O que é, então?
- Algo assim como o franco simbólico. Nada a ver
com as- suntuosas crueldades merecidas por meus verda-
deiros eleitos.
Você fala do inferno como os imbecis falaram do
-
casamento.
Podes insultar-me, se quiseres. Acabarás por com-
-
preender-me e por amar-me com este ódio que é, lá bem
no fundo de nós, nossa mais bela forma de amor. Pobre
Guitton! A isso é que se chama perder em todas as apos-
tas. Se me houvesses escutado, não terias chegado a isso.
Tu terias angariado o prazer no mundo e a alegria de
185
Devo partir.
- Não antes de ter-me ouvido. Vim para trazer-lhe
-
à memória uma pequena lembrança. É prèciso que a te-
nha bem presente na memória quando aparecer no tribu-
nal de Deus. Você se lembra de quando quase morreu, há
vinte anos?
Cale-se!
- Vejo que se recorda. Você caiu em
coma. Levam-
no ao -hospital. Ficou uma noite inteira inconsciente. Uma
pessoa amiga o velava fielmente. Ela lhe contou, você
sabe que não estou mentindo. Eu também estava lá. Fi-
quei muito satisfeito ao ouvi-lo falar. Porque você falava.
E dizia coisas bem interessantes.

- Cale-se!
Você falava assim: "Todo mundo diz que eu sou
-
o grande filósofo católico. Mas isso é uma brincadeira.
Eu, no fundo, sou um ateu. Sempre fui ateu. Completa-
mente ateu. Havia nascido em uma família de católicos
praticantes, todas as minhas relações se achavam nesse
ambiente; por força, eu devia fazer carreira. Como eu
186
máscara e respirar o ar, ainda que seja este ar fechado e
cloroformizado deste hospital? E aquele ali que vela so-
bre mim e que me olha espantado. Ele não acredita no
que está ouvindo. Este querido amigo não sabe mais que
cara terá quando eu despertar.,Ele se esforça em descul-
par-me, em negar a evidência. E um amigo de longa ciata.
O protótipo do homem honrado, com o coração, a inteli-
gência e mais a cortesia, o que não é nada mau. Um
verdadeiro amigo. Pelo menos ele acha que é. Pois, de
minha parte, não tenho mais amigos. Olhe como ele se
sobressalta! Eu amo apenas a mim mesmo."
Não, ele eu amava de verdade.
- Escute-se até o fim. "Apesar de tudo, sou católi-
co, no-sentido em que me expresso melhor, literariamen-
te, neste ambiente. Sou muito literário. Não gosto do tra-
balho. Ou então, trabalho muito, mas sou excessivamente
preguiçoso. Numa palavra, a religião era menos séria que
o racionalismo, menos constrangedora, então, pude sair-
me bem, sem muito esforço, sem muito custo. Se eu ti-
vesse sido ateu teria sido, mais bem sucedido? A
187
teriam medo de ver em mim mesmo a inexistência de seu
eu e a mentira de sua verdade!Ah! Ah!Ah!"
Ah!
- //Assim
sendo, é preciso pensar no futuro. Com-
-
prometi-me demais com todas estas beatices. Para um
homem inteligente, é preciso um pouco mais de distân-
cia. Vou cumprir aquilo que meu colega estabelecer quan-
do ele voltar ao serviço. O essencial para assegurar um
sucesso durável é o equívoco. Ter sempre dois conceitos
à mão, duas teses preparadas/ assegurar subterrâneos,
passarelas, passagens secretas, cumplicidades discretas,
provas dadas e contraprovas tomadas, judiciosa solida-
riedade do vergonhoso, pequenos delitos clandestinos,
complacências sagradas, via real que conduz os grandes
nomes à imortalidade. Mas atenção, um traidor puro não
é interessante. Não é tanto uma personagem vil, pois o
vil é apenas o profundo que sobe à superfície; é antes
uma personagem tola, que permanece ainda inteira numa
só peça. Ela é ainda qualquer um; o verdadeíro traidor
não sabe mais quem ele é. Ele não tem máscara, pois não
188
Desde agora disse-me ele. Eiìo preparado
- possamos nós, em breve, filoso-
para a- etapa seguinte. E
far a dois, ou melhor, a três, eu você e você! Nós nos
diverüremos, você e eu, em persegui-lo, a você.

189
A sala do tribunal celeste estava já quase cheia.
Pode-se dizer que havia afluência. Por fim, uma satisfa-
ção. Disseram-me para esperar e tezar num pequeno ora-
tório contíguo à grande sala de audiência. Mas como meu
anjo da guarda Íezava por dois, eu julguei mais oportuno
pensar. De tempos em tempos, o Anjo tinha um êxtase.
Então eu olhava pelo buraco da fechadura. Foi assim que
eu vi chegar dois condenados. Eu os reconheci ao primei-
ro olhar, ainda que eles tivessem a pele toda vermelha.
À esquerda, estava Sarache, antigo ministro socia-
lista, de quem tínhamos algumas vezes falado, o presi-
dente Miterrand e eu. Ao vê-lo, fiquei um pouco triste.
Ele era tão idiota; mesmo assim, a idiotice não é um pe-
cado. É que aí deve haver coisas que eu ignoro, disse a
mim mesmo para me consolar.
À direita estava Labarthète, antigo diretor de jornal
de direita. Ele era um invejoso que falava o menos possí-
vel de mim em seu jornaleco. A não ser quando ele teve o
193
13. Meú lestamenkì
- Trinta e oito.
- Trinta e
oito anos na Academia? Seu caso está
claro. -Amanhã ele será nosso caro companheiro.
Não é seguro. Parece
- para livrar-lhe a pele. que lá em cima estão dan-
do duro
pode interessar-se por esse velho egoísta?
- Quem
Gente fina, de prestígio: santa Teresa do Menino
-
Jesus, o velho papa Paulo VI, que se fala em canonizar, e
outros... Ademais, você não adivinhará jamais quem foi
convocado como testemunha de defesa no processo de
Guitton.
Espero que você me diga.
- Um antigo
presidente da República.
-
Sempre às voltas com os grandes. E qual?
-
Pompidou? De Gaulle? Poincaré?
Passou longe.
-
Francamente, não vejo outro.
- Procure
bem.
-
194
matemático, é jurídico, é lógico e até mesmo silogístico.
Você sabe bem que Deus não tem nem o espírito
-
matemático nem o espírito jurídico. Quanto à lógica...
Não me fale disso, é um Oriental. Um judeu.
-
Mas voltemos a Miterrand.
Asseguro-lhe que o l'Osseraatore Romano de on-
-
tem à noite (edição celeste) anunciava o mais oficialmente
possível seu testemunho no processo de Guitton. Na pági-
na 4. Aliás, tenho-o aqui no bolso. Tome,leia você mesmo.
Labarthète pegou o l'Osseraatore, desdobrou-o e leu.
quer dizer que ele está salvo! É inimaginável.
- Isso
É inacreditável.
- Melhor dizer,
escandaloso.
- Eu, você não sou católico, e afinal de con-
- faz aquilosabe,
tas, Deus que quer, mas eu acho que ele acolhe
qualquer um.
Nem me fale. O Céu cai em descrédito com esse
-
tipo de decisão. É assim desde o começo. Veja a samarita-
na, a mulher adúltera, Levi o cobrador, o bom ladrão e
195
Reino dos Céus. À sua direita e à súa esquerda, são João
Evangelista, meu patrono, e santa Teresa do Menino Je-
sus. Mais adiante, os anjos assessores. Um júri composto
de santos pensadores e filósofos; pude reconhecer entre
eles Justino o Mártir, Agostinho de Hipona, Tomás de
Aquino, Blaise Pascal, Frédéric Ozanam, Paul Claudel e
Maurice Blondel. Diante do júri, o Anjo Procurador, tra-
zendo de lado uma espada de fogo sobre a toga branca,
ornada de azul. Anjos guardiães por toda parte, em uni-
forme de gala, exatamente como no Vaticano. Eu espera-
va que iam introduzir-me pela grande porta, aquela do
fundo. Com efeito, ela se abriu de par em par. Um escri-
vão entrou. O primeiro assessor levantou-se. Ele interro-
gou, e o escrivão respondeu.
Quem solicita comparecer hoje diante desta
- corte?
augusta
Mestre Jean Guitton, Ilustre Filósofo, Membro
- e decano
eminente da Academia Francesa, Professor FIo-
norário da Sorbonne, Autor de cinqüenta e quatro obras e
de trezentos opúsculos, Auditor leigo no Concílio Ecumê-
196
genuflexão; em seguida, inclinei profundamente a cabe-
ça. Todos tinham os olhos fixos em mim. Santa Teresa
olhou para são Pedro, que disse:
Tragam-lhe uma cadeira, em sua idade!
- anjo guardião me
Um ofereceu uma poltrona. Sen-
tei-me. Eu olhava diretamente para frente, inclinado. O
oficial de justiça proclamou:

- de Deus. Jean Guitton, filósofo, comparece ao


Neste dia,
tribunal
São Pedro se voltou para o Cristo, que contraiu li-
geiramente os lábios.

t97
São Pedro me interrogou por primeiro.
Guitton, o
que fizeste de vida?
tua
- Jean
Eu filosofei.
-
O que significa isso?
- Aprendi a morrer.
- Como o aprendeste?
-
- Observando o Cristo.
te ensinou a observá-lo?
- Quem
Aquela que o deu à luz e que o viu morrer sobre
a crvz.- Foi ela quem me ensinou.
De que forma ela te ensinou?
- Enquanto eu preparava um
livro sobre ela.
-São tomou a palavra. Ele é meu
João santo protetor.
Na véspera do dia em que Jesus sofreu, ele repousou a
cabeça sobre o peito do Senhor. Este foi o sacramento
pelo qual ele recebeu o conhecimento do insondável.
198
Morrer de Amor.
-
-Jean,oqueéoamor?
Amar é tttdo doar e doar n si nresmo.
-São
João se recolheu. Ozanam perguntou:
Jean, é triste morrer?
- É triste para os outros.
- E para si mesmo?
-
É triste se se pensa na tristeza dos outros.
-
Jean, tu morreste triste?
-
Quis perseverar na alegria.
-
No momento da morte, tinhas plena fé na vida
-
eterna?
Sim, contudo, ainda estou surpreso de não estar
-
aniquilado.
Tinhas dúvidas, portanto?
-
17. "Tudo o que o Espírito do Senhor preenche".
199
Eu teria preferido a verdade.
- Por que acreditas em Jesus Cristo?
- Creio no cristianismo porque ele é verdadeiro.
-
-Jean,oqueéaverdade?
O Verdadeiro, Aquele que é.
- o que é o julgamento de Deus sobre o
- Jean,
homem?
A manifestação do julgamento do homem so-
-
bre Deus.
é teu julgamento
sobre Deus?
- Qual
Eu creio que Deus é verdadeiro. Eu creio que
Deus -é justo. Eu creio que Deus é amor.
O Cristo meneou a cabeça. São Pedro me questio-
nou com um tom surpreendentemente mais grave.
Todos nós aqui definimos o amor com as pala-
- Teresa de Lisieux: amar é doar
vras de tudo e doar a si
mesmo. Agora devo, na presença de todos, fazer a gran-
de e única questão: Jean, tu te doaste?
200
tiu. Mantinha-me bem ereto, apesar de minha idade, os
dois punhos crispados sobre a bengala. O Anjo Procura-
dor, severo, observava. Deixou seu assento e veio colo-
car-se à minha esquerda. Franqueado assim, comecei, com
voz enrouquecida, que se ia clareando, e eu continuava,
ainda com voz rouca rnaís crescendo.

Vivi. Morri. Fui enterrado. Minha alma está des-


pida, -agarrada a um não-sei-que de vertiginoso, como
um arbusto no flanco de uma rocha. Não sou mais nada
de tudo o que eu acreditava ser. Não tenho mais nada de
tudo o que eu julgava ter. Ah! Se eu tivesse dado tudo ou
simplesmente perdido tudo enquanto em vida, não me
sentiria assim tão viscoso. Quem poderá dizer-me por
que me sinto tão viscoso!

O Anjo Procurador respondeu:


São as honras das quais eras ávido, é teu desejo
- tua preocupação em sobreviver na memória
de glória,
dos homens.

201
Protestei debilmente. O Anjo Procurador me Ìan-
çou um olhar direto, objetivo e justo. Senti-me tragado
pela terra, ut ita dicam 18. São Pedro, porém, interveio.
exprime-te.
- Jean,
Ó são Pedrol Sinto-me pecador grande peca-
- dito, mas a preocupação com ae verdade obri-
dor, tenho
garia, creio, rnatizar a exposição de Misser Anjo.
Vejam ainda este mesmo orgulho! Ele se conhe-
ce a si-mesmo melhor do que os Anjos o conheceml
Foi então que santa Teresa do Menino Jesus levan-
tou a mão. E são Pedro lhe deu a palavra dizendo:
Teresa, nós sabemos do teu respeito pela verda-
- explicar a todos os presentes quem é Guitton?
de. Podes
Antes de tudo, é visto um distraído. E na
verdade- o é. Ademais, é míope.como Para poupar tempo, ele
confia em seu piloto automático a conduta de uma gran-

18. "Por assim dizer". Expressão freqüente em Cícero. (N.E.)

202
ressa do modo delas. Ele não zomba delas, ele permane-
ce acima. Ele olha tudo sempre do alto, de longe, da
perspectiva da eternidade. Isso dá um ar ausente a este
autômato pensativo. Ninguém ousa dizer-lhe que muitas
pessoas zombam dele pelas costas, inclusive aqueles que
o bajulam. Mas logo se nota que, em sua distração, ele
permaneceu atento, e que/ em sua candura, ele é mais
fino do que os Maquiavel. Então, julgam-no um velhaco
e, como ele se dá bem, invejam-no
Teresa, Guitton é velhaco ou ingênuo?
- Nele só existe a candura. Ou melhor, a candura
-
é a forma mais freqüente de sua hipocrisia. Muitos crêem
enganá-lo, ele os deixa pensar assim, e ele é que os enga-
na. Ele está demasiado adaptado à comédia humana. Bas-
tante desenganado das vaidades, ele guardou delas a ne-
cessidade e não é virtuoso o bastante para calcá-las aos
pés. Ele conhece a fundo o jogo dos maquiavelismos, mas
ele não estima bastante os homens e não estima bastante
a si mesmo para crer que lhe seria possível conseguir
sem a ajuda dos pequenos meios. Ele é engenhoso em
203
- No
fim? Eu creio que ele se doou e que ele mor-
reu na- entrega desse dom.
Teresa, tu podes provar aquilo que estás dizendo?
-
Tenho uma testemunha.
-

204
Teresa contentou-se com olhar para são Pedro. En-
tão este disse:
Que entre o presidente Miterrand.
-Cada um imagine os movimentos diversos e os mur-
múrios que percorreram a sala. Sarache, gozador, soprou
ao ouvido de Labarthète:
Estou curioso por ver Miterrand carregando a
-
auréola.
Você ficarâ decepcionado. Ele deve falar de ca-
-
beça descoberta. É o dirèito canônico. As testemunhas
não têm o direito de carregar a auréola a fim de não
influenciar os juízes.
Depois da frâncica, a auréola!
- Tudo o que eu gostaria de ver!
-
Miterrand acabara de entrar. Pela primeira vez, pus-
me a esperar/ por diversas razões. Naquele momento,
205
tinha os documentos debaixo do braço. Com ar tranqüilo
e solto, confessei:
Não exatamente.
-Ele abriu seu dossiê.
O senhor quer que comparemos?
-
Ele captou meu estremecimento. Todos captaram.
Olhei para Teresa. Ela estava triste. Em seu olhos, bebi
uma primavera de sinceridade. Tornando-me objetivo e
justo, respondi:
Se você fizer a leitura destes papéis para a corte,
-
poderemos encontrar fortes divergências entre as várias
versóes.
Sua presente franqueza merece ser festejada. Ela
-
nos poupa, além disso, de cansativas citações. Mas, se é
assim, como o senhor quer que lhe demos crédito hoje?
Você terá testemunhas que não sabem mais
-
mentir.
Como o senhor explica a presença dessas diver-
- que o senhor mesmo qualifica de fortes?
gências,
206
eu lhe respondesse publicamente, criaria entre
meus editores. A caridade está acima de tudo.
Se é assim, o público jamais saberá a que se ater.
- O público fará seu próprio juízo. É ainda o que
-
ele prefere.
O senhor lamenta ter enganado o público com
uma ou - outra de suas versões infiéis?
Não creio que tenha enganado. Antes hesitei en-
-
tre diversas interpretações.
O senhor sustentaria isso até para suas entrevis-
-
tas para a revista Mstch?
O presidente Miterrand tinha mais poder do que
-
eu sobre a redação de Match. Como você quer que, à
minha idade, eu chegue a distinguir em minhas lembran-
ças minhas mentiras das dela? Sobretudo porque, por
meio de minhas mentiras, Miterrand dizia as verdades
que ele próprio não podia dizer. De modo que, mentindo
os dois, ambos dizíamos a verdade.
O senhor pode esclarecer?
-
207
em seus rostos. Vejam, saiu-se
O Anjo Procurador disse simplesmente:

-E A
corte apreciará.
sentou-se outra vez.

São Pedro, contudo, retomou a palavra.


Nós citamos o presidente Miterrand aqui
- Levando em consideração o interrogatório que
presente.
acabamos de ouvir, é necessário proceder à audição da
testemunha.
Ele se voltou para Miterrand.
Senhor Presidente da República, o senhor acei-
-
tou comparecer como testemunha de defesa no processo
celeste de Mestre Jean Guitton, aqui presente. Queira apre-
sentar-se à corte.
Eu me chamo François Miterrand, homem de
Estado- francês do século XX. Nasci em 1915. Minha car-
reira política começou com a Segunda Guerra mundial e
terminou em 1995. Cumpri dois mandatos de sete anos
208
Jean
-
do milionésimo prisioneiro. Foi então que o senhor o
conheceu?
não! Devo tê-lo encontrado pela primeira vez
- Oh
durante os anos cinqüenta. Nossas relações, porém, ti-
nham permanecido superficiais. Elas só se aprofundaram
na época de minha presidência. Guitton era acadêmico.
Ao envelhecer, ele adquirira uma grande notoriedade.
No final, existia quase uma instituição só para ele. Nos-
sas funções e nossas posições nos davam a ocasião de
encontrar-nos bastante regularmente. Eu apreciava sua
maneira de pensar. Ele me compreendia à perfeição. Guar-
dei especialmente a lembrança de uma visita que eu lhe
Íiz na sua cabana do departamento da Creuse, para fazê-
lo oficial da Legião de Honra. Nós tínhamos falado do
absurdo e do mistério.
a corte diante da qual o senhor
- Senhor Presidente,
veio testemunhar tem a responsabilidade de julgar a vida
de Mestre Guitton. Aqui, sobre o amor é que todo homem
é julgado, Sua experiência encerra elementos suscetíveis de
contribuir para a formação do julgamento da corte?

14 M€u Ìestamenk)
guns vestidos com capas negïas, outros com longas togas
brancas, havíamos sumido, por uma senda na floresta,
depois por um caminho montanhesco, até o cume de um
monte ventoso e pelado. Ali, há dois mil anos, celebra-
vam-se ainda sacrifícios druídicos e nenhum sinal de de-
voção evangélica jamais lhe tinha adocicado o esporão
bárbaro. Sua ponta de sílex permanecia fincada no cora-
ção do céu. A luz de tochas e aos sons estranhos dos
cantos druídicos, meus despojos deviam ser aí enterra-
dos num jazigo talhado na cavidade da rocha. Uma es-
quadrilha de aviões de alta acrobacia, num balé endia-
brado, circundava o monte com faixas de fumaça com as
cores da França e com as cores do luto, enquanto se ex-
tinguiam os últimos clarões do céu. Acrescente algumas
iluminações, sonorizações e cento e um tiros de canhão, e
você tem o essencial do rito que eu havia previsto.
São Pedro estava admirado:
um tiros de canhão?
- Cento e
Nenhum de menos.
-
270
Obrigado.
Contudo, que honra!
- E massagear o ombro durante um mês...
- Você teria participado da procissão!
- Porque você me vê bancando a carpideira ao
flanco- da montanha, com uma capa negra de Mefisto ou
uma toga branca à la Brutus?
De qualquer forma, você teria cantado.
- Eu canto mal.
- Decididamente, você fechado ao
é sublime da
-
existência, a todas estas emoções profundas. Quanto a
mim, uma procissão sempre me deu um frio na espinha.
Não me admira que você esteja condenado.
E você, pobre condenado, está por acaso no pa-
raíso, -com seus tremeliques?
Você é grosseiro e ímpio!
- Por isso é que estou condenado e
orgulhoso
-
de sê-lo. -
217
- de ]ean Guitton. Desde então, este último pôs na
ouvidos
cabeça de fazer-me mudar de opinião.
Sarache, fora de si, gritou:
Vê-se bem aí a estupidez burguesa. Emoção na
- Salvar as aparências.
sacristia. Era preciso empalhar os
velhos nos conformes.
Ele se levantou, fora de si, e gritou esganiçadamen-
te no pretório:
* Abaixo o clero!
Labarthète, semi erguido, por sua vez, puxava-o pela
roupa para fazê-lo sentar-se de novo e o insultava:
O velho Guitton teve razão de reagir. Era uma
- de conveniências,
questão de tradição e de respeitabilida-
de. Todo o essencial estava em jogo.
Deixe-me em paz, carambal
-
de novo, você não tem vergonha?
-E seSente-se
agarravam pelo colarinho:
Fanático!
-
272
dessa decisão?
A origem é obscura, como todas as origens. A
-
emergência, ao contrário, é fácil de assinalar. Eu havia
partido de avião para Roma, onde devia acontecer uma
exposição de meus quadros sobre o tema de L'Amour
pour Ie temps et l'éternité [O amor para o tempo e a eterni-
dade]. Minha secretária, que costumeiramente viaja co-
migo quer dizer, ela deve colocar-me colírio nos olhos,
- consigo sozinho..., numa palavra, minha secre-
pois não
tária estava ausente. Encontrei-me, assim no avião, ao
lado de uma jovem de talvez vinte e quatro ou vinte e
cinco anos. Seu rosto me dizia alguma coisa, mas para
meu grande espanto, pois minha amnésia é totalmente
seletiva, jamais pude lembrar-me. Ela não me disse seu
nome. Disse-me apenas que era normanda e que havia
vivido no carmelo. Você pode imaginar que não ousei
fazer mais perguntas. Não sei por quê, a conversa come-
çou a desviar-se para o presidente Miterrand e seus futu-
ros funerais.
O senhor já estava decidido a fazer alguma coisa?
-
213
tor me levou depois à capela e me disse: "Mestre, o se-
nhor é a segunda celebridade francesa que visita este co-
légio. A írltima foi Teresa de Lisieux, na véspera do dia
em que ela viu o papa." Aí está uma coisa curiosa, pensei
conrigo. No dia seguinte, fiz a caminhada matinal dos
cardeais franceses. Em seguida, à tarde, depois da sesta,
enquanto eu comia três grãos de uva e bebia dois dedos
de vinho branco, uma amiga entra e me diz: "Estou indo
ao rosário do papa, no pátio de São Damaso. Todo mun-
do pode entrar. Quer vir comigo?"
E o senhor foi? perguntou são Pedro.
- -
Claro que não. Escrevi un livro sobre a Virgem
Santa.- Minha teologia está no ponto. Isso me basta. Eu
jamais rezo o rosário. Contudo, inopinadamente, fui ao
rosário.
O senhor esperava, apesar de tudo, ver o papa?
-
Os cardeais me haviam dito que era impossível.
Claro.- Impossível. Afinal, você conhece o Vaticano me-
lhor do eu. Numa palavra, nem pensei nisso.
274
- Ninguém jamais viu
essa carta.
- Com efeito, é curioso. Ao voltar, falei
dessa carta
com a- pessoa que me havia acompanhado. Eu lhe dizia
que a França é um país terrível. De uma incrível indiscri-
ção. Meus editoreslriam forçar-me. É óbvio. Numa pala-
vra, seria impossível esconder tudo isso da Match.
Então?
- É
inacreditável. Perdi a carta. Fiquei extrema-
mente- aborrecido. Apesar de tudo, solicitei uma audiên-
cia de meia hora com o presidente Miterrand para con-
tar-lhe minha conveïsa com o papa a seu respeito.
Meia hora?
- papa fora
muito denso. Era preciso explicitar
- O
seu pensamento sem o trair. Enfim, fui convocado por
Miterrand.

275
Cheguei a Élysée. Elevador e corredores, um breve
instante na ante-sala e o porteiro me introduziu no escri-
tório do presidente, dizendo:
t'O senhor Guitton da Academia Francesa".
Jean
-
E a carta? interrompeu-me são Pedro.
- -
- É inacreditável. Acredite-me se quiser, mas ao
entrar em seu escritório, no momento em que apertei a
mão do Presidente, reencontrei a carta.
Onde ela estava?
-
Entre o polegar e o indicador de minha direita.
-
Incrível.
-
Nem me fale.
-
O que o senhor fez?
-
Mudei-a de mão.
-
2'16
Senhor Presidente, estou voltando de Roma. Vi
- Nós falamos do senhor.
o papa.
Miterrand me olhou. Parado. Frio, parecendo falar
a si mesmo.
Certamente estou condenado... Aliás, todos nós
- condenados...
estamos
Voltou-se para mim.
O senhor também está condenado, senhor
- Mas o senhor, o filósofo cristão, já não viveu
Guitton.
bastante? Não tem vontade de ir lá para baixo? Se o se-
nhor considerar bem, deve ter vontade disso. Quase cem
anos de vida sem Deus deve serìhe um calvário. O se-
nhor não morre por não morrer?
Não pude responder senão com um riso nervoso.
Eu já não sabia por que tinha vindo. Havia-me esquecido
da carta. De repente, lembrei-me dela.
O papa me entregou uma carta endereçada
-
ao senhor.
217
tu deves dizer toda a verdade.
- Jean,
Pois bem, disse eu, embaraçado: "Quando Green
-
e o senhor tiverem desaparecido, haverá mais gente na
Academia Francesa".
Ouvi, então, no banco do júri, Claudel sussurrar a
Ozanam: "Isso é bem verdade!"
Asseguro, confudo, que respondi a Miterrand, e com
voz sincera:
Vejamos, senhor Presidente, restarão muitos ou-
-
trosl E acrescentei: O senhor poderia ser um deles.
-
Literatura e política eu tinha duas vocações,
-
como o senhor, creio.
-
Para mim,
era a pintura
e a filosofia.
-
- O senhor conseguiu seguir uma e outra. Invejo-o.
Senhor Presidente, aqui está o de uma
- de quadros que fiz em Roma,catálogo
exposição sobre o tema: O
amor para o tempo e a eternidade.
O tempo e a eternidade...
-
218
-
católico.
Ele me olhou. Consegui não enrubescer de prazet,
porque as comparações sempre me acanham um pouco.
Desvieilhe a atenção.
Deveras, senhor Presidente, o senhor está
muito-bem.
Contudo, fui deitar-me tarde por causa da impe-
-
ratriz do Japão. Obrigado por ter-me trazido esta carta.
A campainha tocou. O porteiro reapareceu. Nós nos
levantamos, os dois. Ele me reconduziu até a porta.
Até mais, senhor Presidente. Ou melhor, adeus.
-
Em nossa idade, é melhor dizer adeus.
Adeus, Mestre.
-
A seguir, após um momento:
Não, digamos antes: "Ate breve".
-
De repente, na soleira da porta, ele endireitou o
peito, e com uma grande solenidade:
279
Quanto
fazer o- mesmo.
Fale.
-
Guitton, por que o inferno?
- Porque Deus é amor.
- Você não mudará nunca, incorrigível criador de
-
paradoxos?
Não sou eu, foi Dante quem o disse.
- Seja você, seja ele, permanece um paradoxo.
-
Senhor Presidente, a realidade mesma parado-
- é o espírìto paradoxal por excelência. éMas
xal. Deus para
ele, ser paradoxal é perfeitamente natural. Nós mesmos é
que somos antes paradoxais em relação a ele, com nosso
pensamento pronto e sem paradoxo.
Pensamento silencioso como um deserto, liso
como -um cano, plano como uma mão. O inferno existiria,
então, porque Deus é amor... Não digo que não. Expli-
que-me simplesmente. Não tenho preconceitos, você sabe.
220
dúvida. Mas se este não é Seu modo de agir?
- Sem
Contudo, é preciso que Ele o coloque em al-
-
gum lugar.
Mas onde?
- Outro lugar que não o paraíso.
- Evidentemente. Com outras palavras, no inferno.
- Então o inferno é: outro lugar que não o paraíso.
- Exatamente.
- Mas não, Guitton. O inferno é mais do que isso.
-
No inferno se sofre.
Mas se sofre de quê, senhor Presidente?
- Vai saber! O fogo, os tridentes...
- Folclore, senhor Presidente! Folclore!
- Como assim, Guitton, você não acredita nas pe-
nas do- inferno?
Certamente, senhor Presidente. Mas todos os teó-
logos -lhe dirão que a primeira pena do inferno é não
estar no paraíso.
227
car-se em movimento, refletir e querer sair dali.
Tudo isso supõe o tempo. Ora, na eternidade,
-
não se está mais no tempo e não é mais tempo.
Mas então, Guitton, a gente está acuada.
- Não acuada,
acabada.
- nossa liberdade?
- E
Acabada ela também.
-
Então, segundo você, Sarache, no inferno, será
-
livre de estar?

Sim.
-
Mas ele não é livre de não estar aí.
-
Mas, dado que ele não quer estar em outra parte
-
e como só existem dois lugares?
dúvida, mas ele gostaria que a felicidade
- Sem
absoluta estivesse no inferno.
Aí está todo o problema. Deus não o quer; Ele
- a felicidade
quer que esteja no paraíso.
Mas Sarache não está de acordo.
-
222
alguma - coisa.
Eu bem o sei. No fundo de nós mesmos, todos
-
somos um Sarache. Sarache considera que Deus violou
sua liberdade ao criá-lo sem sua autorização e que Deus
é um ditador quando veio ao mundo sem ter obtido an-
tes de tudo um voto favorável da ONU.
E o que você responde, Guitton?
-
Que Deus é Pai e que nenhum pai pede autori-
zação -a seus filhos para thes conceder o dom da vida.
Isso e o que escandaliza Sarache. Isso o põe fora
de si. -E absurdo?
Talvez. Ou antes, não. Tudo se torna lógico se se
admite - que Sarache gostaria de ser Deus.
Mas isso não é possível, você bem o sabe.
- Sarache não admite que haja o im-
- Justamente,
possível.
Em Íesumo, ele gostaria de ser todo-poderoso.
- É o que se conclui.
-
223
não existisse.

- quem seria
E Deus, então?

- Ninguém. Ou
talvez Sarache. Digamos o homem.
Em outros termos, Sarache sofre no inferno por
-
não enconhar aí a felicidade absoluta, mas ele goza no
inferno por poder afirmar sua pretensão de usufruir de
uma liberdade absoluta. E ele ainda prefere estar no in-
ferno a renunciar a sua pretensão.
Está bem claro. Guitton, o que você me diz da
-
liberdade?
vezes sobre isso com Paulo VL Mas
Falei muitas
-
para ater-nos a Sarache, eu diria que este fala sempre de
liberdade individual. Nisso eu o aprovo. Mas, por que
Deus seria o único que deveria ser privado dela? Pobre
de Deus, que não tem o direito de falar, que tem o direito
apenas de nada pedir. E quando ele fala, coloca-se-lhe
uma cruz em cima.
Ou é colocado em cima de uma cruz.
-
224
Não lhe estragava o prazer?
-
De forma alguma.
- Luís XIV como senhor.
era o
-
- Como
o sabemos?
Por meio das Ménroires [Memórias] de Saint-
Simon.- Agora pois, reflita bem antes de me responder. O
senhor teria vindo falar comigo se não lhe tivesse restado
no fundo da consciência uma certa crença no inferno?
Posso responder com franqueza?
-
Evidentemente.
-
Não.
-Detive-me
em suspenso. Retomei:
E no entanto, o senhor não tem medo.
- Não.
-
- de minha parte,para
Estou curioso escutá-lo sobre esse ponto,
poÍque, eu tenho medo. Mas, conclua-
mos o precedente. Suponha que Deus, poÍ amor ao se-
nhor, procure encontrá{o aqui e agora. Sem o pensamen-

15. Meu testaúento


Como as almas são diferentes! Parece-me que, se
- sua fé e sua filosofia, eu amaria a Deus com
eu tivesse
todo o meu ser.
Por que o senhor não tem medo?
- Eu creio jamais ter tido medo de nada ou de
- nem sobre a terra nem no Céu.
ninguém,
rei, o foi.
- Também terìa nascido para ser e o senhor do
Não tenho medo de Deus. Não tenho medo
-
sofrimento. Os castigos injustos não me atemorizam. Eles
me revoltam. Os castigos justos não me atemorizam. Eu
os aprovo. Não tenho medo do sofrimento eterno.
Como o senhor tem sorte!
-
Se Deus pensasse que eu venho aqui por medo
-
das chamas e dos tridentes, eu o abandonaria aí e ir-me-
ia embora imediatamente. Mas se ele existe, ele me co-
nhece. Ele sabe que não tenho medo do castigo eterno.
Então, de que o senhor tem medo, senhor Presi-
dente?-
De havê-lo merecido.
-
226
Deus -me conduziu ão deserto. Ali ele me disse: "Jóan, tu
deves desaparecer".
Miterrand admirou-se.
Como assim, desaparecer?
- Não
sei, monge no fundo de um convento, var-
redor -na Palestina, como o conde de Foucauld, ou ainda
qualquer outra coisa imprevisível. Não sei. Deus mesmo
sabia. Ele me teria dito.
O que você fez?
- Não
desapareci. Perdi a felicidade.
- Mas
você teve tudo, Guitton, tudo.
- Tudo.
Exceto a felicidade.
- Mas
se você tivesse desaparecido! Que perda!
Deus -não poderia querer isso.
Seria o sacrifício de Abraão, senhor Presidente.
Deus -sabia bem por que ele me havia feito. Ele me teria
feito logo ressurgir e tudo seria igual, à exceção de que
eu teria alcançado a felicidade.

227
busca Absoluto?
-
A vida em Deus.
-
Mas então, a moral?
-*
Uma arte de viver feliz, como homem ou mulher
que busca a verdadeira vida. É a estrutura de vida que
permite o desenvolvimento da vida.
De você para mim, Guitton, você pode funda-
mentar- a moral?
Senhor Presidente, o senhor pode suprimiìa?
- Você vai
citar-me a palavra de Dostoievski: "Se
- existe, tudo
Deus não é permitido".
Não gosto muito dela. Deus não tem a função de
- o proibido.
fabricar
Sua resposta me agrada. A palavra de Dostoievski
sempre- me fez duvidar de Deus, como se ele fosse uma
invenção dos autoritários.

-* Senhor Presidente, o senhor não é autoritário?


Obtive a autoridade graças ao apoio dos inimi-
gos do princípio da autoridade.
228
Não muito. Digo que
sei esses julgamento de va-
lor são- totalmente verdadeiros. Disso estou certo. Eis tudo.
O senhor atrela sua vida a alguma coisa de abso-
- verdadeiro no que diz respeito ao bem.
lutamente
Sim. Mas eu me pergunto que absoluto é esse.
- O que o senhor acha?
- No mínimo, um imperativo categórico vindo não
-
se sabe de onde.
Resposta prudente e até certo ponto razoâvel.
Mas, em- minha opinião, seria preciso acrescentar: "com
tudo aquilo que um tal imperativo categórico postula".
Kant falou desses postulados. Recorde-me de que
-
se trata.
Eu lhe direi, temperado do meu jeito. O senhor
sabe, -senhor Presidente, que não posso impedir-me de
guitonizar tudo aquilo que eu toco.
É co-o eu: miterranizei todos os partidos que
- nas mãos. Então, estes postulados?
me caíram
229
tir do momento em que se admite a transcendência da
liberdade em relação ao universo, ao corpo e à sociedade.
Postulado n" 4: existência de um Espírito eterno,
do qual- emana esse imperativo, não como uma obrigação
abstrata, mas como um apelo pessoal.
tudo isso. É essa a invenção de Kant?
- Compreendo
Mais ou menos. Transformei um pouco.
- Assim está seguramente melhor.
Jamais gostei
-
da Prússia. E você, gosta da Prússia? um pequeno
gesto evasi Enfim, Prússia ou não,- Fiz
estou de acordo
com todos esses postulados. Mas eu gosto muito da Ale-
manha. Você gosta da Alemanha, Guitton? Fiz um
outro pequeno gesto evasivo. -
Bem, aos postulados.
-
O senhor está realmente de acordo, senhor Presi-
dente,- ou o senhor não estaria antes com medo da ausên-
cia de sentido que resultaria da outra resposta?

- Já lhe disse que não tinha medo de nada. Se a vida


não valia absolutamente nada, sempre seria tempo cle
abandoná-la. Mas nós ficamos. Eu fico. Eu creio. Eu a amo.
230
a moral sempre os aborrece, até certo ponto.
- Que
Até esse dito ponto, eles querem ser amorais, ou ser li-
vres de serem imorais, ou poder negar a moral. Mas, a
partir desse certo ponto, contudo, eles sentem que preci-
sam de moral. O colocá-la em questão os faz recuar, hor-
rorizados. Perceberam o abismo de uma vida humana
sem o domínio de nenhuma lei absoluta. Esse abismo
lhes causa medo, e sobretudo, não lhes parece verossímil.
Eles são, portanto, incapazes de crer na moral até esse
certo ponto e incapazes de não acreditar nela, a partir
deste certo ponto. Assim são meus eleitores.
Eles não são tão idiotas. No Instituto, na segun-
- não se faria muito melhor.
da-feira,
Estou plenamente de acordo com você, Guitton.
- é que a democracia também não é idiota. Mas,
Por isso
Cuitton, você pode fundamentar a moral?
não
o fizemos?
- Já
Ah, Mestre, não posso impedir-me de recair nas
- dúvidas.
mesmas

231
Está bastante claro por si mesmo. Mas por que
viver -assim e não de outra forma? O que prova que essa
maneira é melhor?
Não sei.
-
Miterrand refletiu, antes de atacar:
Nesse caso, Guitton, você não tem razáo.
-
Tenho sim. Pois não tenho a escolha de não ter a
-
escolha. É preciso que eu escolha, de fato, entre essas
duas formas de vida. Devo dizer: "Eu seryirei", ou dizer:
"Eu utilizarei". Pois só posso viver ou utilizando ou ser-
vindo. Tertium non datur.le
E então?
-
Na dúvida, do que vou abster-me?
-
Posso adivinhar.
-
Nós nos entendemos sempre com meias palavras.
-
19. "Não existe uma terceira possibilidade". (N.T.)
232
isso de a tese de
Guitton.
- Chamar-se-á
O senhor muito me honra, senhor Presidente.
- é tão original. No tempo de santo
Isso não Afonso, fala-
va-se de tutorismo.
SantoAfonso de Nápoles?
- Sim, ele se chamava de Ligório. Mas ele vivia em
- no século XVI[.
Nápoles,
Mas suponhamos, Guitton, que a alma seja mor-
-
tal, estaríamos logrados.
Senhor Presidente, o senhor me dá a resposta do
- na argumentação de
libertino Pascal. Não é, contudo, a
mesma coisa. Na argumentação de Pascal, a gente esco-
the entre duas hipóteses, aquela que é a mais vantajosa,
sem saber qual é a verdadeira, nem mesmo a mais moral,
calculando o melhor possível seu interesse em cada caso,
em função dos ganhos esperados e dos riscos incluídos. E
a gente pode sempre se perguntar se, depois de tudo,
não é melhor jogar no outro número. Mas aqui é total-
mente outra coisa. A gente escolhe entre dois tipos de
233
Eu creio que viveria na indiferença a todas as
-
coisas, e que, num desespero tão profundo e tão calmo,
eu estaria antes inclinado à piedacie do que à paìxão. Eu
renunciaria a agir, a lutar, a conquistar. E preferiria ainda
agir segundo a moral do serviço. Ou então, se eu fosse
coerente, deveria tornar-me fascista, escolher a crueldade
contra a piedade, usufruir de tudo o que faz rnal e com-
prazer-me ern fazer o mal alegrando-me em dizer que
isso não é o mal, pois não existe nem o bem nem o mal.
senhor pensou nisso, senhor Presidente?
- O
Um pouco. Em minha juventude, durante a Se-
gunda- Guerra mundial, no início. O sangue, a sensuali-
dade e a morte. O poder e a crueldade. O homem forte e
livre de tudo. Desfazer-se dentro das grandes ondas des-
fraldantes da Vida universal e gritar na espuma, heróico
diante do Destino.
Compreendo, senhor Presidente, compreendo: em
algum - lugar entre Barrès e Wagner. E quando o senhor
deixou de pensar nisso?
234
Se nós duvidássemos também dessa dúvida, nós não du-
vidaríamos mais de nosso dever. Sejamos mais críticos, e
seremos mais seguros. Duvidemos mais ainda, e tornar-
nos-emos completamente certos.

Eu tinha prazer em recordar nossa conversa.


Miterrand a revivia ao mesmo tempo que eu. Por pouco,
quase teria esquecido minha própria situação e, salvo o
respeito que eu lhes devo, quase se poderia dizer o mes-
mo dos membros da corte celeste. Eles estavam suspen-
sos de meus lábios. O Anjo Procurador estava escandali-
zaclo. Quanto a mim, experimentei, contudo, um ligeiro
mal-estar. Gostaria de ter encurtado toda essa história de
Miterrand. De mim é que se devia falar, não dele. Não
era minha alma que estava sendo julgada? Mas eu estava
preso numa engrenagem. Era-me impossível parar. Era
preciso ir até o fim.

Para mim dizia o Presidente, à moral é


- o sofrimento
diminuir - do outro. -
Não o admito.
-
Muito bem. Mas confesse que a gente suporta
-
mais facilmente uma dor que a gente considera útil. Quan-
do alguém vai ao dentista ou entra numa clínica, prepa-
ra-se para viver um certo sofrimento, mas tem também
consciência de não sofrer em vão. Suponha que alguém
seja obrigado a ir ao dentista ou a entrar numa clínica
sem nada compreender daquilo que lhe acontece, nem
antes nem depois, sem ter nenhuma idéia da razão de
estar no dentista ou médico. A mesma dor física não lhe
pareceria bem mais penosa?
Estou de acordo, Guitton, mas trata-se da mes-
-
ma coisa?
Senhor Presidente, eu lhe pergunto.
- Não
sei mais nada. Sofro tanto. Não admito este
-
sofrimento.
Se o sofrimento não tem sentido, a gente diz que
-
está sofrendo por nada. E a gente sofre não somente o
sofrimento, mas a absurdidade do sofrimento.
236
Levantei-me, fui apanhar um volume sobre uma
prateleira, abri-o num lugar marcado, e li:
"Minha terceira móxima era antes procurar senxpre
aencer-a mim e não ao destino; mudar meus desejos e não a
ordem do mundo; e geralmente, acostltmar-me em acreditar
que não existe nada que esteja inteiramente em nosso poder do
que nossos pensamentos, de modo que, após termos feito o me-
lhor no que diz respeito às coisas que nos são exteriores, tudo
aquilo que nos falta conseguir é, em relaçõo a nós, absolutn-
mente impossíuel. E isso somente me parecia ser suficiente para
me impedir de nada desejar para o futuro que eu não adquiris-
se, e para assim me fazer feliz."
É essa sua filosofia?
-
Senhor Presidente, não é também a sua?
-
Eu julgava ter terminado com Miterrand quando
este interveio.
São Pedro, Guitton me falou também da liberda-
de de -uma maneira bem sugestiva.
237
de meus funerais e de meu julgamento, Miterrand estava
mais uma vez prestes a ser o centro das atenções. Nele é
uma segunda natureza. Ele me parasitava. Roubava-me a
cena. E Teresa que não se importava. E Miterrand que se
metia a contar o fim de nossa conversa.

Guitton, somos livres?


- Senhor Presidente, o
senhor é livre?
- Sou livre, eu?
- Essa é a boa questão.
Que resposta o senhor dá?
- Não
sei. Parece-me que sou, mas tenho tendên-
-
cia a duvidar.
Por quê?
- Sempre acreditei
em meu destino, Guitton. Des-
-
de a infância, eu pensava que governaria a França. Acre-
ditava nisso num sentido preciso: eu estava seguro disso
e isso era como uma evidência íntima. Não era nem um
sonho de criança, nem um desejo de adolescente, nem o
plano de vida de um homem ambicioso. Era meu destino.
238
vem do alto suscitar a forma na matéria.
E aqueles que apenas chegam, mas não atingem
-
a meta?
Sua forma real é artificial.
- E aqueles que, tendo verdadeira vocação, atin-
gem a- meta, mas fazem o mal? O que você diz deles,
Guitton?
Eles traem a vocação e se tornam flageladores
-
de Deus.
Por que Deus aceita que os povos sejam afligi-
-
dos por tais atormentadores?
O senhor e eu saberemos, senhor Presidente. So-
mente- do outro lado é que se lê o sentido da história.
Guitton,por que se pode ter a alma real e decair
de sua- vocação? E o destino?
Seria isso o pecado, senhor Presidente?
- Nós deliramos. Guitton, todas essas idéias da
-
vocação não passam de sonhos de crianças. Nossas ambi-
239
- Minha vocação. Minha vocação... Destino
ou vo-
cação?- Como saber, Guitton, qual palavra convém?
Recorde-se e senhor saberá.
o
- tive a impressão de escolher. Guitton, eu
- Jamais
fui aonde me parecia que devia ir. Todo malogro reforça-
va essa certeza interior. Nos meus rivais, eu via sobretu-
do intrusos e imprudentes. Toda oposição me parecia es-
tranha e contrária ao desígnio do Céu. Quando ele se
cumpriu, pareceu-me a um tempo miraculoso e normal.
Não fiquei surpreso. Elevado à presidência, pareceu-me
assumir um lugar preparado para mim.
Vejo que o senhor é quase tão democrata
quanto- eu.
Sou democrata, mas como o era Péricles. Para
mim, -a escolha do povo veio confirmar uma eleição do
alto. Isso é o que há de mais belo na democracia.

- OÀspovo e Deus estão sempre de acordo?


vezes, sim, às vezes, não, Guitton. Comu-
mente,- o povo não o sabe, mas, por vezes, eìe o sente.
240
nos parecem independentes. Mas são outro tanto de fios
que vêem ligar-se todos à sabedoria todo-compreensiva
da Causa Primeira. Como o condutor da carroça man-
tém entre as mãos as rédeas de todos os corcéis, assim
Deus coordena todas as causas. Dessa forma é que Ele
tem nas mãos as rédeas de todos os impérios, de todos os
reinos e de todas as repúblicas que existiram, que exis-
tem e que existirão.
-- A sorte, então?
Aquilo a que chamamos sorte ou bênção é a
-
forma surpreendente que assume para nós a coordena-
ção superior das séries causais aparentemente não coor-
denadas.
E sentimento de sua eleição?
-_- É o instinto da missão.
o
Como saber se a gente tem missão de fazer?
- Porque a gente sofre muito, senhor Presidente,
antes -de descobrir a vocação.
Que orgulho, Guitton, acreditar-se chamado!
-
241
16 M€u testanì€nrd
É o que cheguei a pensar, mais ou menos, nestes
- tempos. Para ser um cidadão livre e assinar o
últimos
pacto social, é preciso previamente ter prestado obediên-
cia a um poder absoluto e justo, que só pode relativizar
os poderes humanos. Mas deixemos esses assuntos. Você
e eu, Mestre, estamos antes mortos que vivos. Devemos
pensar é na eternidade. E essa é a razão por que o inter-
rogo de novo sobre a liberdade.
O senhor já não me respondeu?
-
Mestre, como distinguir todos os sentidos da pa-
-
lavra liberdade?

- Em senhor Presidente.
Tente,

- Seja.primeiro lugar, há a liberdade política.


Cabelhe antes tentar uma definição.
- Eu diria: um
certo grau de independência de
-
uma potência humana em relação a outra potência.
A potência dita livre pocle, então, desdobrar seus
poderes- e fazer o que lhe parece bom, a torto e a direito.
242
ação é ser-lhe o autor humano principal. Esse é o primei-
ro sentido. Mas a responsabilidade se define, inversa-
mente, pela liberdade, que é a capacidade que o nosso
eu tem de ser responsável. Os dois conceitos formam um
todo. A liberdade é uma potência de responsabilidade.
A responsabilidade é uma liberdade em ato. Compreen-
di-o bem?
senhor Presidente. A liber-
- Maravilhosamente,
dade-responsabilidade é um tipo de fecundidade de nos-
so ser espiritual, que se expandiria dentro de si mesma e
fora, em decisões e em obras. Nosso eu existe tão-somen-
te para unir-se ao Ser, ao Verdadeiro, ao Bem. A liberda-
de expressa essa união, como uma obra de arte.
Esta não é uma concepção demasiado estética da
-
liberdade? Escutando-o Mestre, tem-se a impressão de
que o eu apenas cresce, como um lírio ou um nenúfar.
Essa censura, senhor Presidente, foi feita há mui-
- a Henri
to tempo Bergson, meu mestre.
O que você responde a isso?
-
243
dente. Esse homem era deveras causa de sua própria de-
cisão? Ou sua decisão é simplesmente o efeito de uma
série de causas, das quais o homem chamado causa não
passa de lugar de encontro e combinação, fortuita ou ne-
cessária?
Vejamos se nos orientamos. Nós concebemos
aquilo- que seria uma liberdade total. Isso seria o poder
de começar absolutamente uma série causal. Em suma,
uma causa absolutamente primeira de efeitos dos quais
ela seria a causa adequada, ou seja, completa.
Mas a liberdade é precisamente isso!
- Uma tal liberdade,
senhor Presidente, me parece
-
mais divina do que humana.
É verdade. Contudo, pretendemos refutar a li-
- por que lhe mostramos os condicionamentos bio-
berdade
lógicos, sociológicos e psicológicos.
Quando se faz isso, demonstrou-se apenas que o
homem - não tem uma liberdade tão absoluta quanto a de
Deus. O que deixa intocada a questão de saber se o ho-
244
Nisso consiste nossa fé.
-
Uma tal liberdade absoluta, Guitton, seria, de
-
fato, uma obediência absoluta.
Pode-se inverter a proposição. Uma tal obediên-
-
cia absoluta seria uma liberdade absoluta.
Não gosto muito da obediência, nem banhada
-
a ouro.
Ela
é do que dourada, senhor Presidente.
mais
-
Lembro-me de ter lido em algum lugar, em são João da
Cruz., me parece, que quando a alma está perfeitamente
unida a Deus, ora é Deus ora é a alma quem comanda.
Comandar a Deus não é uma coisa prodigiosa?
-
De fato. Mesmo assim, obedecer...
- A
liberdade consiste em ser absolutamente in-
-
d:pendente de tudo. Somente Deus é assim. Portanto, a
única maneira de ser livre é estar perfeitamente unido a
Deus. É geométrico, senhor Preìidente. Chame essa
união de perfeita obediência, se quiser. Parece-me que
245
- o é quando não obedece racionalmente. Ser ra-
mas ele
cional é pensar verdadeiro.

-Oqueéaverdade?
Aquilo que resiste à dúvida
sai e dela.
- é o fundamento da razão?
- Qual
A oração.
- Mas a razão,
Mestre, não é antes um poder de
-
construção dos objetos segundo leis autônomas do espí-
rito humano? A verdade seria, então, a adequação dos
objetos às leis do espírito humano.
Se fosse assim, teria razão. O espírito
humano- seria, no Íundo, oSarache
espírito divino. O senhor acre-
dita que poderia ser assim?
Não. Porque eu sofro e porque eu não fiz o bem
-
que desejei fazer.
Mas então, por que não obedecer, senhor Pre-
-
sidente?
Com efeito, por que não...?
-
246
- E a Inquisição? E isso a liberdade religiosa?
intelecto?
Senhor Presidente, falemos de tudo isso, se o
-
senhor quiser. Mas o senhor acha que esse é o nosso
assunto?
Não. Nós nos atolamos aí no encalço de Sarache.
É tempo- de voltar a falar da liberdade humana. Por que
falamos de perfeição e de liberdade divina?
Porque todo mundo fala disso e não pensa senão
nisso. -Com outras palavras, a obediência causa tanto pro-
blema assim? Ela seria a coisa mais simples que existe.
Obedecer o que existe de tão trivial? Contudo, quere-
-
mos a perfeição, a perfeição da liberdade, portanto, e as
dificuldades começam.
Deve ser isso. Ou pelo menos tem a ver. Então,
para um- ser humano, o que significa ser livre? Avance-
mos, Guitton, senão morreremos em nossa ignorância.
Você falou de razão e de verdade. Ser livre é ser racional
e agir racionalmente?
EÍa a idéia de Kant.
-
247
- Arazão com R maiúsculo?
- Deixemo-la com maiúscula a fim de que possa-
-
mos prosseguir.

- Ser livre é serGuitton.


Prossigamos, Então?
causa de atos pela razão que
- como o fundamento deseus
nós temos nosso ser espiritual.
Não é tão mal assim...
- Não disse o contrário, senhor Presidente. Espere
-
a continuação. Ele não quer que sejamos determinados
pelos objetos que a razão se afigura, nem pelos sentimen-
tos que estes objetos possam despertar em nós.
O que isso significa?
- Se compreendo bem,
senhor Presidente, ser livre
- ser determinados pela
seria não riqueza, pelo poder, pe-
los corpos agradáveis, pela glória, pelo paraíso, peÌa bon-
dade de Deus; não determinados pela necessidade, pelo
prazef , pela dor, pelo medo, pelo amor etc.
Essa não! E por quem diabos pretende ele que
- determinados?
sejamos
248
costume. Para mim, é indigesto. Guitonize isso para mim,
por favor.
Ser livre é deixar a razão determinar-nos. Não se
-
quer que nada de exterior à razão tenha poder de deter-
minar-nos. Resta, portanto, ser determinados pela pró-
pria idéia da racionalidade: a não-contradição e a legali
dade universal. Nós seremos, portanto,livres quando agir-
mos unicamente a partir de regras universais não contra-
ditórias.
Formulado assim, Guitton, compreendo melhor.
A que-isso conduz?
À eliminação de todas as regras auto-contraditó-
-
rias. Restam as outras. Nós as seguimos. Por aí, nós so-
mos livres, senhor Presidente. E ainda por cima, morais.
Cuitton, por que esse prêmio?
-
Quando agimos assim, estamos em posição de
sentido- diante da razão e diante de um conjunto de regras
bastante conformes àquilo a que chamamos de moralida-
de. Seguir essas regÍas, em posição de sentido, é ser moral.

249
l7 M€u iPsÌâmenht
seria necessário escolher sê-lo, pelo menos no sentido em
que ele usa a palavra. Por que escolher ser racional, em
vez de não o ser?
Guitton, você escolheria ser irracional?
- Não, mas em vez de ficar em posição de senticlo
diante- da razão, eu me pergunto por que cargas d'âgua
eu deveria obedecer a ela. E, em vez de ficar tocado por
respeitosa admiração diante da liberdade, eu me pergun-
to por que seria preciso escolher viver livre antes que não
livre, e cidadão antes que tirano.
É preciso se questionar, Guitton. não blasfema
quando - ele interroga Deus. O que você meJódiz?
Senhor Presidente, sou ligado a uma grande
-
independência de meu espírito, pois vejo nisso um bem.
Essa independência, ao menos para mim, é uma condi-
ção para poder ir ao Verdadeiro, e ao Bem que existe no
Verdadeiro. Creio que tenho o dever de ser tão livre
quanto me seja necessário sê-lo para ir ao Verdadeiro e
ao Bem.

250
No fundo, Guitton, quando meus eieitores de-
testam- a moral, é o kantismo que eles detestam.
Parece-me.
- O que você me diz disso?
-
Eles têm razão. Em minha cabana na Creuse.
- onde eu fui condecorá,-1o?
-Lá,
Exatamente, dia inesquecível entre todos. No ce-
-
leiro, perto daquela cabana, eu criava um asno.
Eu me lembro. Ele se chamava Kant. Isso me
-
surpreendera. Agora, compreendo.
Na época de sua visita, ele já estava bastante
velho.-Esse asno e, sobretudo, seu nome me causaram os
piores aborrecimentos. Um traidor me denunciou a meus
colegas da faculdade. O escândalo foi enorme. Quase fui
queimado vivo no corredor da Sorbonne. Saí com vida,
mas eles ficaram, apesar de tudo, quatro anos sem colo-
car para o exame de licença um único assunto tirado de
minhas lições.
251.
À felicidade, interior.
à liberdade, à coesão
-
Você deveria acrescentar, Mestre: ao ímpeto, ao
- à libertação.
impulso,
Não há nada mais belo, aqui em baixo, do que a
beleza- de uma mulher. Mas, subtraia o desejo de absolu-
to, subtraia a sede de infinito, o amor não passa de fisio-
logia. O que é, então, o belo? Voltaire escreveu: "O que
existe de mais belo, para o sapo, é a sapa".
Então?
-
Senhor Presidente, como harmonizar o amor hu-
-
mano e amor divino? A santidade é sua união. O pecado,
uma dissonância.
Deus não quer que
homem - procure na beleza? seja ainda o absoluto que o
E um certo infinito de alegria nos máximos pra-
-
zeres. Tudo isso é sonho. O Infinito está dentro do Infini-
to. O Absoluto está dento do Absoluto.
Mas tudo aquilo que é belo é como o reflexo.
-
Não posso subir senão com a ajuda desse reflexo.
252
O senhor já observou atentamente o teto da Sis-
-
tina? Pode-me dizer qual é a figura central?
O pecado original?
- Não, graças a Deus.
- Então, é a criação do homem.
- Também não.
- Desisto.
- AE a criação de Eva.
- Não vejo este quadro.
- E o mais belo de todos,
senhor Presidente, e eu
não sei- por que quase nunca é representado, de modo
que é desconhecido, em comparação com os outros ele-
mentos desse prodigioso conjunto. Adão está deitado nu
à esquerda do quadro, adormecido de um sono misterio-
so, apoiado em um arbusto cruciforme. No centro, Eva.
Ela acaba de brotar da costela de Adão ao chamado do
Deus criador. Este, Pai Todo-Poderoso, encontra-se à di-
reita, pés apoiados sobre o solo, tronco de vigor e seiva
de bondade. Todo orgulhoso de sua pequena maravilha,
253
254
Miterrand calou-se e fez um gesto segundo o qual
ele indicava que cabia a mim continuar. São Pedro, tendo
aquiescido com um aceno da cabeça, revivi então o tem-
po mais dramático de nossas conversas.
julgamento, senhor Presidente, o julgamento!
- O
Estaria eu condenado, Guitton?
-
Perguntei-me várias vezes; "Guitton, serás con-
-
denado?"
Se até você está, quanto mais eu'
-
Deus não raciocina a fortiori. Releia o Evangelho:
-
"Não vim para os justos, mas para os pecadores".
Guitton, somos aqueles que as Pessoas acredi-
- somos?
tam que
Aquilo que me agrada em Deus é que ele vê as
-
pessoas como elas são e que elas são como ele as vê.
255
Você não é Deus.
- O Cristo faz conhecer Deus.
- Você não é o Cristo.
- A Igreja prolonga o Cristo e o comunica.
- A Igreja é o clero. Você não é algreja, Guitton.
- A igreja é o corpo do Cristo.
- Você é Corpo do Cristo?
-* Sim, eu estou em graça.
Está?
- sei eu?
- Que
Assegure-se.
- O julgamento, Presidente! O julgamento!
- Não se repita. senhor
Diga-me antes como se preparar
para o- julgamento?
Parar de iustificar-se. Deixar cair as máscaras.
-
Que meios temos nós?
- Tornar-se criança.
-
256
juntou as mãos, se recolheu para receber a inspiração do
Espírito e, abrindo a boca, ele disse: Senhora, ofereça sua
morte pela salvação de seu filho, e quando o tiver feito,
não sonhe com mais nada a não ser abandonar-se inteira-
mente nas mãos de Deus. Ela fechou os olhos, abriu as
mãos, e disse: Jesus, misericórdia; para ti, minha vida e
minha morte pela salvação de meu filho François. Um
pouco mais tarde ela ainda disse: Em tuas mãos, Senhor,
entrego meu espírito. E expirou.
Como você sabe tudo isso, Mestre?
-
- O padre que a assistiu em seus últimos momentos.
Por que ele faltou com seu dever secreto?
-
Deus lhe permitiu.
-
Por que o permitiu?
- A fim
de que viesse o dia, e aqui estamos nós,
- esta morte lhe seria narrada.
em que
Mal pronunciou estas palavras, ]esus em pessoa disse:
François, nós te agradecemos. Podes retirar-te.
-
257
-Teresa se adiantou e clisse:
-_ Quando eu o vi chegar a Lisieux, alquebrado,
tão velho e tão sofredor, eu o alcancei e o levei em espíri-
to até a enfermaria do carmelo. É a mesma onde eu mor-
ri, cem anos atrás. O quarto é quase quadraclo, não muito
grande. Em um ângulo, meu leito de morte. Na parede,
bem no alto, diante do leito, a imagem da Virgem do
Sorriso. Miterrand estava na cabeceira do leito. Ele olha-
va para a imagem. Eu lhe apareci, então, sob a imagem
de Maria. Eu lhe disse:
Senhor Presidente, neste décimo quinto centená-
-
rio do batismo de Clovis, convinha que a padroeira
da França encontrasse o chefe desta nação, o sucessor
de Clovis.
Tendo-o assim saudado, permaneci em silêncio. Ele
não ficou nem surpreso nem amedrontado. Ele sempïe
esteve familiarizado com o sobrenatural. Ele me reconhe-
cera ao primeiro olhar. Com uma delicada inclinação da
cabeça, ele me respondeu à saudação.

258
ram ao solo.
São pétalas de rosas-chás, disse-me ela.
-
Gosto também das malvas,lhe disse eu.
- Então temos o mesmo gosto, minha irmã.
-E enquanto ele dizia estas palavras, eu desapareci
de seus olhos. Ele não se perturbou. Ele observou a en-
fermaria e tudo em volta dele: a janela que dava para o
jardim, o leito de dor, minha fotografia, a mesa de ma-
deira, a imagem da Virgem. Depois ele lançou os olhos
sobre a folha de papel que tinha nas mãos. Ele lia meu
poema. Poder-se-ia ouviìo murmurá-lo. Algumas vezes
ele falava mais alto, e acrescentava uma palavra como
comentário.
ttviaer de Amor". Belo título para um poema. Mas
ai, eu -estou morrendo. Estou aprisionado. Onde Deus se
esconde?
Ó Trindnde, aós sois prisioneirn
De meu Amor...
Quando aerei pnrtir-se o que me detém,
Meu Deus será minha Grande Recompensa.
Não quero mais posstrir outro bem.
De seu Amor quero estar abrasada,
Quero aê-Lo, unir-me sempre ao Senhor;
Eis mett céu, estott destinada,
A aiuer de Amor.
Quem pode compreender?"
Ele ia partir. Voltou-se, deu uns passos para trás,
apanhou algumas pétalas caídas por terra e saiu.

O presidente voltou a Paris, partiu para o Egito,


voltou nas últimas e morreu.

260
dro não dizia palavra. Todos os santos rezavam.
Jesus me perguntou, então:
Jean, você tem algo a acrescentar?
-Respondi:
Encontro-me diante de vós, Jesus, meu Criador,
-
meu Salvador e meu Juiz.
Ao dizer estas palavras, tentei tirar um papel de
meu bolso, enfim consegui, desdobrei-o, mas eu estava
emocionado demais, o papel caiu por terra... No mesmo
instante, Teresa saltou, tendo lançado antes um olhar ao
Cristo, que havia acenado imperceptivelmente com a ca-
beça. Tudo em menos de um segundo. Ela apanhou o
papel. Eu estava muito cansado. Disse a Teresa, com uma
voz neutra:
Leia isso você mesma. É de Ruysbroek o Admi-
rável. -Eis como eu gostaria de viver e morrer.
Teresa leu então: "Quando o homem, no fundo de si
mesmo, com os olhos inflamados de amor, considera a imensi-
dão de Deus... quando o homem, em seguida, olhando para si
261
seu lado. O papa fechou os olhos. A Virgem fez um im-
perceptível sinal a Teresa. O Cristo levantou a mão direi-
ta, com este gesto augusto que Miquelângelo, profeta,
viu e de que deu testemunho quando pintou o último
julganrcnto da Capela Sistina. Aluz de Deus dissecou meu
ser. O olhar do Cristo penetrou meu coração. Toda gran-
deza havia-se derretido como uma montanha de cera. O
Cristo bendisse seu Pai. A seguir, abriu a boca e pronun-
ciou o julgamento.

262
e meu encontro com El Creco 97
Onde eu me instaio na tribuna dos Invalides para daí
seguir mais comodamente a cerimônia de meus funerais ... 702
Onde Senghor se junta a mim na tribuna dos InvaÌides
e onde continuam minhas surpresas 105
Como De GauÌle e eu meditamos sobre o mal
e aÌguns outros assuntos .................. 109
Como foi pronunciado meu elogio fúnebre
e de quais comentários ele foi objeto em muitos apartes ..... 126
Onde descubro que, na Sorbonne, eu ensinei uma porção
de asneiras e onde, contudo,
deleito-me conversando com Sócrates 142
Onde Sócrates me fala do filósofo Maurice Blondel
e onde ele me força a conversar com ele sobre
o homem e sobre sua alma 156
Como minha mulher veio logo trazer-me a serenidade
depois que dois desconhecidos
ridicuÌarizaram meus amores 173
Onde eu faÌo com Dante sobre o amor e a poesia 180
Como o estranho visitante faz uma última tentativa
e onde eu não sei mais quem eu sou ................ 184
Inveirida Renata, 0í
cff c3.l?7-C0ü
Vila i:crmcga - São paulo _ Sp

lmpresso na 8ráfica da
Pia Sociedade Filhas d€ São Peúlo
Via Raporc Tavares, km 19,145
0552/-300 - Sào Paulo, SP - Brasiì - 1999

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