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BACHARELADO EM TEOLOGIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
São Paulo
2017
2
São Paulo
2017
3
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Magno José Vilela
_________________________________________________________________________
Prof. João Luiz Palata Viola
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AGRADECIMENTOS
A Deus que, “em Aparecida, ofereceu ao povo brasileiro a sua própria Mãe” (Papa Francisco).
A Nossa Senhora que na sua querida imagem de Aparecida inspirou e conduziu esta reflexão.
A Ordem dos Servos de Maria que, com o olhar fixo Nela, me ensina seguir a Cristo.
Aos professores da Faculdade de São Bento que, com disposição mariana, me acompanharam
neste trabalho.
Papa Francisco
8
RESUMO
Por ocasião Ano Mariano que a Igreja do Brasil proclamou, para celebrar o Jubileu dos 300
anos do encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, o presente trabalho
se propõe a apresentar uma mensagem eclesiológica a partir do seu contexto histórico de
origem e de sua imagem que é um sinal de Maria na perspectiva do mistério da Igreja. Tal
reflexão leva em conta o contexto do Brasil colonial do século XVIII, a devoção mariana no
país, a hermenêutica bíblica de Apocalipse 12,1 e o capítulo VIII da Constituição Dogmática
Lumen gentium sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e
da Igreja. O principal objetivo é oferecer um sentido teológico à imagem de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida, a fim de não restringi-la apenas a um evento histórico ou a um fator
devocional, mas compreendê-la na dimensão mariana da Igreja, para a qual a Virgem Maria é
membro, mãe e modelo. No encontro com o episcopado brasileiro, durante a Jornada Mundial
da Juventude de 2013, o Papa Francisco apresentou no seu discurso aos bispos, a imagem de
“Aparecida” e a “pesca milagrosa” como chave de leitura para a missão da Igreja segundo a
linguagem do Mistério. A partir deste texto, desenvolveu-se esta pesquisa que, empregando o
método de análise histórica, a hermenêutica exegética e patrística e alguns pronunciamentos
do magistério pontifício, pretende “restaurar” a imagem de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida na perspectiva do mistério, da vida e da missão da Igreja.
ABSTRACT
On the occasion of the Marian Year, the Church of Brazil proclaimed in order to celebrate the
300th anniversary of the image of Our Lady of Immaculate Conception Aparecida, the present
work proposes to present an ecclesiological message based on its historical context of origin
and of her image which is a sign of Mary in the perspective of the Church‟s mystery. This
refletion considers the context of colonial Brazil in the eighteeth century, Marian devotion in
the country, the biblical hermeneutics of the Dogmatic Constitution Lumen gentium about the
Blessed Virgin Mary, Mother of God, in the Christ and Church mystery. The main objective
is to offer a theological sense to the image of Our Lady of the Conception Aparecida, in order
not to restrict it only to a historical event or a devotional factor, but to understand it in the
Marian dimension of the Church, to which the Virgin Mary is a member, mother and model.
In his address to the bishops, during the World Youth Day of 2013, Pope Francis presented
the image “Aparecida” and “miracolous fishing” as a key to the Church‟s mission in the
language of the Mystery. From this text, this research was developed using the method of
historical analysis, the exegetical and patristic hermeneutics and some pronouncements of the
pontifical magisterium, intends to “restore” the imagem of Our Lady of the Conception
Aparecida in the perspective of the mystery, life and Church‟s mission.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 15
1. ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENCONTRO DA IMAGEM DE APARECIDA ........ 19
1.1. O encontro histórico da imagem de Aparecida ................................................................. 19
1.1.1. A origem da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ................................ 19
1.1.1.1. Contexto histórico: o ouro, a vila e o conde ................................................................ 19
1.1.1.1.1. Descoberta, corrida e disputa do ouro..................................................................... 19
1.1.1.1.2. A Vila de Guaratinguetá: caminho de passagem ..................................................... 21
1.1.1.1.3. O “Conde” de Assumar............................................................................................ 22
1.1.1.2. O evento “Aparecida”: o rio, os pescadores e a imagem ............................................ 24
1.1.1.2.1. Data e situação histórica.......................................................................................... 24
1.1.1.2.2. Os protagonistas do fato .......................................................................................... 27
1.1.1.2.3. O “fato em si” ......................................................................................................... 28
1.1.1.3. Hipóteses sobre a origem da imagem de Aparecida .................................................... 29
1.1.2. A devoção, a imagem e o título de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ................ 30
1.1.2.1. A devoção e a iconografia de Nossa Senhora no Brasil .............................................. 31
1.1.2.2. Da Imaculada “portuguesa” à Aparecida “brasileira” ................................................ 32
1.1.2.2.1. Características da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ................ 33
1.1.2.3. “Aparecida”: um título de origem popular, devocional e bíblico ................................ 37
1.1.2.3.1. “Aparecida” é um título popular, “dado por todos” .............................................. 38
1.1.2.3.2. “Aparecida” é um título novo que propagou ainda mais a devoção mariana ........... 39
1.1.2.3.3. “Aparecida” é um título que possui conotação bíblica ........................................... 40
2. O SINAL DA MULHER "APARECIDA" ........................................................................ 41
2.1. A imagem de Aparecida a partir de Ap 12 ........................................................................ 41
2.1.1. O “sinal da mulher”....................................................................................................... 41
2.1.1.1. Quem é esta mulher? ................................................................................................... 43
2.1.1.1.1. Apocalipse 12 e a Igreja ........................................................................................... 43
2.1.1.1.2. Apocalipse 12 e Maria.............................................................................................. 46
2.1.2. O “sinal de Maria” ........................................................................................................ 48
2.1.2.1. Mulher-ícone da Igreja Virgem da fé e Servidora da Palavra ..................................... 50
2.1.2.1.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal de fé na fragilidade .............................................. 52
2.1.2.2. Mulher-ícone da Igreja Mãe na fonte batismal............................................................ 53
2.1.2.2.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal do compromisso batismal .................................... 56
11
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE ANEXOS
INTRODUÇÃO
a imagem tem sua justificação na medida em que confirma à sua maneira o que o
querigma anuncia, a saber a “encarnação real e não ilusória do Verbo de Deus”;
assim, o ícone (e no seu rasto, sob benefício de inventário, a imagem religiosa) pode
ser compreendido como uma segunda voz, apoiando sem suplantar a primeira voz
do querigma, a do testemunho em corpo próprio disposto a ir até ao martírio (2004,
p. 871).
uma “mensagem”, algo que pode parecer, à primeira vista, muito desconcertante, mas a
própria etimologia do termo faz eco a este sentido original e genuíno, revelando a sua
finalidade.
No mundo atual, “onde a imagem abunda, onde sua referência ao real se desfaz”, a
imagem sacra “corre o risco de se ver amputada da função que lhe atribuíam os Padres de
Nicéia II: testemunhar a realidade histórica e „não ilusória‟ da encarnação” (BOESPFLUG,
2004, p. 874). Por isso, quando compreendida a sua verdadeira finalidade, além de servir ao
culto dos fiéis ou à devoção privada, a imagem sacra torna-se um instrumento pedagógico
eficaz para a comunicação do Mistério, nem sempre compreensível aos sentidos. Contudo, o
Ocidente cristão carece de “uma formação cristã para o uso da imagem religiosa” e “a
teologia cristã ainda pouco se preocupou com o que, da imagem, é propriamente imagem”
(Ibid., 2004, p. 874).
Deste modo, o ensejo da celebração do encontro da imagem tricentenária de Aparecida
é uma oportunidade significativa para a reflexão sob uma nova miragem hermenêutica acerca
da natureza, da vida e da missão da Igreja, unindo como quem tece uma rede, diversos
elementos teológicos, ainda que, sem desmerecer, fique a dever uma palavra acerca do
diálogo ecumênico, muito embora não deixe de buscar uma fundamentação teológica comum
a toda tradição cristã anterior às históricas cisões e divergências, de modo que não vem a ser
um obstáculo, mas pode ocasionar uma eventual abertura para um ulterior aprofundamento a
respeito de questões tão problemáticas neste campo, tais como o uso de imagens, a devoção
mariana, os dogmas marianos, as aparições de Nossa Senhora, entre outros.
Na mensagem para o Ano Mariano, a Conferência Nacional dos Bispos (CNBB)
indicou três objetivos para este Ano Santo: celebrar, fazer memória e agradecer. E na
cerimônia de lançamento do ano mariano, a 21 de setembro de 2016 em Brasília, o presidente
da CNBB, Dom Sérgio da Rocha, acrescentou que este ano também serve para “reaprender
com Nossa Senhora a como seguir Jesus Cristo, como ser cristão hoje”.
Como complemento a estes objetivos, na Carta Encíclica Redemptoris Mater, o Papa
João Paulo II apresentou o duplo sentido do Ano Mariano de 1984, celebrado em toda a
17
1
Excerto da canção “A imagem da santa”, do canto e compositor Antônio Cardoso.
18
Na visita que fez ao Santuário Nacional de Aparecida, quando esteve no Brasil no ano
de 1980, o Papa João Paulo II apresentou as suas impressões acerca do encontro da imagem
de Nossa Senhora da Conceição, “carinhosamente chamada a „Aparecida‟” (1980, p. 148),
como uma narrativa simples e encantadora. E na simplicidade da sua história, quando a lemos
com “religiosa atenção”, percebemos que ali há um sinal do mistério de Deus a ser revelado...
bandeirantes. A nova atividade econômica na colônia durante os séculos XVII e XVIII foi a
mineração (VICENTINO; DORIGO; 1997, p. 128).
A descoberta do ouro não atraiu apenas os bandeirantes, mas a todo o tipo de pessoas,
principalmente a população do planalto de Piratininga (os paulistas), a mão-de-obra escrava
do Nordeste, antes concentrada na produção do açúcar (ainda que não houvesse
desaparecido), os estrangeiros, principalmente portugueses. Esta variedade de pessoas com
um interesse comum gerou todo tipo de animosidade e conflitos, principalmente entre os
“descobridores do tesouro”, isto é, o povo nativo da região, e os forasteiros chamados
pejorativamente pelos nativos de emboabas. Estes personagens da nossa história
protagonizaram o que ficou conhecido como a “Guerra dos Emboabas” (1708-1709), um
momento marcado por ódio, rivalidades e disputas cuja principal tragédia foi um massacre de
aproximadamente trezentos paulistas. Mas com a criação da Capitania de São Paulo e Minas
de Ouro2, desmembrada da capitania do Rio de Janeiro, a disputa foi minimizada e o conflito
administrado com mais disciplina (VICENTINO; DORIGO, 1997, p. 146).
Apesar das discórdias provocadas pela “corrida do ouro”, a economia mineira
“constituiu, no século XVIII, um mercado de proporções superiores ao que havia
proporcionado a economia açucareira em sua etapa máxima de prosperidade.” (FURTADO,
1975, p. 77). Todavia, tanta prosperidade exigiu dos exploradores muita penúria,
especialmente por conta das dificuldades de abastecimento e de transporte em uma região
montanhosa e distante do litoral. O abastecimento local era praticamente inexistente,
dependendo do que era comercializado nas regiões vizinhas, que aproveitava para elevar o
preço dos alimentos e do serviço dos animais de carga. Segundo Celso Furtado, “a fome
sempre acompanhava a riqueza nas regiões do ouro.” (Ibid., 1975, p. 76), ainda mais porque
toda esta riqueza era na sua maior parte produto de exportação para a Europa. O pouco que
ficou no Brasil foi investido na produção cultural e artística, principalmente na arquitetura e
arte sacra barroca que revestiu de alto a baixo as paredes, tetos, colunas e altares de muitas
igrejas por todo o Brasil, especialmente na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e, de
forma espetacular as igrejas mineiras.
2
Com a provisão régia de D. João V, datada de 23 de novembro de 1709, a Capitania de São Vicente fora
desmembrada da Capitania do Rio de Janeiro, tornando-se a Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro. Com
uma área de aproximadamente 3.265.562 k², seu território abrangia o que hoje corresponde aos estados de São
Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Santa Catarina, Rio Grande do Sul até a Colônia do Sacramento (atual
território do Uruguai) (BARRETO DO AMARAL, 1980, p. 113). A principal razão desta separação foi para
melhorar a administração das Minas de Ouro tanto que, apesar da sede oficial da nova capitania estar em São
Paulo, por motivos fiscais e disciplinares, a sede administrativa foi instalada na localidade de Nossa Senhora do
Pilar de Vila Rica de Ouro Preto ou simplesmente “Vila Rica”, atual Ouro Preto – MG.
21
No caminho entre a sede oficial (São Paulo) e a sede administrativa (Vila Rica) da
Capitania de São Vicente, estava o Vale do Paraíba3, trajeto por onde passava o ouro extraído
do subsolo brasileiro em sua rotineira viagem do interior para ser transportado, na quase
totalidade, até Portugal. À beira da estrada se encontrava a Vila de Guaratinguetá, cujo
apelativo, de origem tupi, significa “guará-branco” ou “garças brancas”, e estava localizada
numa privilegiada posição geográfica e economicamente estratégica entre São Paulo e as
Minas de Ouro, além de ser ponto de partida para o porto de Parati, no Rio de Janeiro, o que a
tornou um centro de convergência para os viajantes em busca de ouro e pedras preciosas.
Segundo Alvarez,
Como a maioria das vilas e póvoas da época colonial, o pequeno povoado nasceu
aproximadamente no ano de 1630 ao redor da rústica capela de palha dedicada a Santo
Antônio, com o nome de “Povoação Nova do Paraíba”. A partir do ano de 1636, “o povoado
de Guaratinguetá cresce com o desenvolvimento do trabalho de penetração e conquista do
solo” (AZEVEDO, 2000, p. 54), especialmente com a concessão das sesmarias, o que
possibilitou a ocupação e o cultivo da terra. Mas segundo alguns historiadores, sua efetiva
ocupação iniciou a partir de 1640 (BRUSTOLONI, 1998, p. 27). A 13 de junho de 1651, o
povoado é elevado à condição de vila com os requisitos para o funcionamento da vida civil e
religiosa, sendo dirigido por um capitão-mor, constituído de um pequeno Senado e Câmara e
com a presença de um pároco e de duas irmandades.
Mas a partir de 1685, a Vila começou a sofrer as transformações advindas da
descoberta de metais preciosos, pois
3
“As terras do Vale do Paraíba estão localizadas no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, compreendidas entre os
primeiros trechos do Rio Paraíba do Sul e as encostas das Serras do Mar e da Mantiqueira” (FERNANDES;
COELHO, 2013, p. 11) e acompanha paralelamente o litoral norte do Estado de São Paulo. Na época da
mineração, foi um caminho natural entre as Minas e o mar e teve um importante papel no desenvolvimento
econômico de São Paulo.
22
4
Palavra de origem indígena, “Para’iwa”, segundo os Tamoios que habitavam primitivamente a região, significa
“rio ruim/imprestável”, provavelmente porque não era um bom facilitador de peixes. Segundo o Dicionário
Aurélio da Língua Portuguesa, “paraíba” significa “trecho de rio que não pode ser navegado.” (1986, p. 1266). O
Rio Paraíba é formado pelo rio Paraitinga e pelo rio Paraibuna. Originando-se da Serra da Bocaina e da Serra do
Mar, respectivamente, os dois rios se encaminham para São Paulo com o nome de “Paraíba”.
5
“Desde 1710, segundo é mencionado em documentos, médias e pequenas propriedades começam a se irradiar
no Itaguaçu, Ponte Alta, Ribeirão do Sá, Pitas e Aroreira. Tudo isto se deve ao desenvolvimento da policultura
de natureza familiar.” (AZEVEDO, 2000, p. 56).
23
1716 o novo governador e capitão geral, D. Pedro Miguel de Almeida e Portugal, “um moço
com menos de trinta anos de idade, muito religioso, muito disciplinado, de vez que era militar
de carreira” (MACHADO, 1976, p. 140), posteriormente conhecido como o Conde de
Assumar (1718), o terceiro que administrou a região até 4 de setembro de 1721.
O cronista do “Diário da Jornada”, um companheiro anônimo do governador, relatou
pormenorizadamente a trajetória de D. Pedro de Almeida na sua viagem histórica do Rio de
Janeiro a Minas Gerais, tendo obrigatoriamente no seu itinerário, a sede da Capitania, o Vale
do Paraíba e a Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá.
No dia 17 de outubro de 1717, o Governador chegou a Guaratinguetá ao meio dia e foi
recepcionado festivamente com todas as honras. Durante o tempo que permaneceu na Vila, de
dezessete a trinta de outubro, D. Pedro Miguel aproveitou para organizar e pôr em ordem o
quadro da vida administrativa do lugar. Por isso proveu ofícios, confirmou patentes e outros
postos de governança. Mas sua principal atividade foi ordenar a prisão e castigar os
criminosos e rebeldes, o que lhe deu a fama de ser um homem cruel e sanguinário, por causa
de suas atitudes enérgicas para punir os subversivos e combater o banditismo dos aventureiros
nas Minas a fim de manter equilibrada e salvaguardada a ordem pública e os interesses
econômicos da Coroa Portuguesa.
O cronista do “Diário da Jornada” registrou que o povo da Vila era violento e
assassino, tendo contabilizado dezessete mortes no ano anterior à visita do Conde. Na opinião
de Luciano Ramos, “Para uma Vila com média de três mil habitantes, esse número era de fato
assustador.” (1992, p. 170). “O ambiente de instabilidade social refletia as lutas e rivalidades
da região mineradora, tornara-se reduto de criminosos e marginais” (BRUSTOLONI, 1998, p.
30) e, como a Vila de Guaratinguetá era “ponto do comércio de subsistência e da jornada de
pessoas que vinham do litoral e do Vale do Paraíba tentar a riqueza para além da Serra da
Mantiqueira, a insegurança e a violência trazidas pelos aventureiros estavam próximas da vida
local.” (CORDEIRO; RANGEL; LUÍS, 2008, p. 12). Consta ainda nas Ânuas dos Padres
Jesuítas de 1748 e 1749, que lá pregaram as Santas Missões: “Esse povoado se consumia em
acirradas inimizades...”.
É neste contexto do Brasil Colônia do início do século XVIII que surge, então, das
águas de um rio, na rede de três pescadores, uma imagem...
6
O Pe. João de Morais e Aguiar, pároco da Vila, redigiu o I Livro Tombo da Paróquia de Santo Antônio de
Guaratinguetá. O termo de abertura do livro dizia que o primeiro conteúdo a ser redigido deveria ser um
histórico da Igreja Matriz e das capelas adjacentes. Como desde 1743 já havia sido aprovado o culto e a
construção de uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, é na seção que conta o histórico
25
No ano de 1719, pouco mais ou menos, passando por esta Vila para as Minas,
o Governador delas e de São Paulo, o Conde de Assumar, Dom Pedro de Almeida e
Portugal, foram notificados pela Câmara os pescadores para apresentarem todo o
peixe que pudessem haver para o dito Governador.
Entre muitos foram a pescar Domingos Martins Garcia, João Alves e Filipe
Pedroso com suas canoas. E principiando a lançar suas redes no Porto de José
Corrêa Leite, continuaram até o Porto de Itaguassu, distância bastante, sem tirar
peixe algum. E lançando neste porto, João Alves a sua rede de rasto, tirou o corpo da
Senhora, sem cabeça; lançando mais abaixo outra vez a rede tirou a cabeça da
mesma Senhora, não se sabendo nunca quem ali a lançasse. Guardou o inventor esta
imagem em um tal ou qual pano, e continuando a pescaria, não tendo até então
tomado peixe algum, dali por diante foi tão copiosa a pescaria em poucos lanços,
que receoso, e os companheiros de naufragarem pelo muito peixe que tinham nas
canoas, se retiraram a suas vivendas, admirados deste sucesso.
Filipe Pedroso conservou esta Imagem seis anos pouco mais ou menos em
sua casa junto a Lourenço de Sá; e passando para a Ponte Alta, ali a conservou em
sua casa nove anos pouco mais ou menos. Daqui se passou a morar em Itaguassu,
onde deu a imagem a seu filho Atanásio Pedroso, o qual lhe fez um oratório tal e
qual, e, em um altar de paus, colocou a Senhora, onde todos os sábados se ajuntava a
vizinhança a cantar o terço e mais devoções. Em uma dessas ocasiões se apagaram
duas luzes de cera da terra repentinamente, que alumiavam a Senhora, estando a
noite serena, e querendo logo Silvana da Rocha acender as luzes apagadas também
se viram logo de repente acesas sem intervir diligência alguma: foi este o primeiro
prodígio, e depois, em outra semelhante ocasião, viram muitos tremores no nicho e
no altar da Senhora, que parecia cair a Senhora, e as luzes tremulas, estando a noite
serena.
Em outra semelhante ocasião, em uma sexta-feira para o sábado (o que
sucedeu várias vezes), juntando-se algumas pessoas para cantarem o terço, estando a
Senhora em poder da Mãe Silvana da Rocha, guardada em uma caixa ou baú velho,
ouviram dentro da caixa muito estrondo, muitas pessoas das quais se foi dilatando a
fama até que, patenteando-se muitos prodígios que a Senhora fazia, foi crescendo a
fé e dilatando-se a notícia, e, chegando ao R. Vigário José Alves Vilella, este e
outros devotos lhe edificaram uma capelinha e depois, demolida esta, edificaram no
lugar em que hoje está com grandeza e fervor dos devotos, com cujas esmolas tem
chegado ao estado em que de presente está. Os prodígios desta Imagem foram
autenticados por testemunhas que se acham no Sumário sem Sentença, e ainda
continua a Senhora com seus prodígios, acudindo à sua Santa Casa romeiros de
partes muitos distantes a gratificar os benefícios recebidos desta Senhora (apud
BRUSTOLONI, 1998, p. 44-45).
das capelas que consta a origem e o início do culto mariano naquela localidade a partir do encontro de uma
imagem nas águas do Paraíba.
26
Quanto à data do encontro da imagem, não há nada nem algum documento que diga
com exatidão o dia e o mês que este fato aconteceu e, até o ano mencionado no Livro Tombo
da Paróquia está errado. O texto escrito pelo Pe. Vilella diz: “No ano de 1719, pouco mais ou
menos, passando por esta Vila para as Minas, o Governador delas e de São Paulo, o Conde
de Assumar, Dom Pedro de Almeida e Portugal...”. Como o encontro da imagem está
associado diretamente à pesca e esta, consequentemente, ao banquete que a Câmara gostaria
de oferecer ao Governador que estava de passagem pela Vila, conclui-se que o ano “1719” foi
escrito equivocadamente, pois o documento oficial de D. Pedro de Almeida Portugal como
governador da Capitania, assim como o seu “Diário da Jornada”, certifica que o ano em que
tomou posse e passou por Guaratinguetá durante sua histórica viagem de São Paulo para as
Minas é, de fato, o ano de 1717.
A partir do “Diário da Jornada” é possível delimitar o período em que aconteceu a
pesca que deu origem ao culto de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Tendo presente
que o governador chegou à Vila no dia 17 e ali permaneceu até 30 de outubro, enquanto
aguardava a chegada de sua bagagem que vinha do Porto de Parati – RJ, a primeira hipótese é
que a imagem foi encontrada neste período. Entretanto, se eram destinados a um banquete de
recepção para D. Pedro de Almeida e sua comitiva, tal como diz o Livro Tombo – “foram
notificados pela Câmara os pescadores para apresentarem todo o peixe que pudessem haver
para o dito Governador” – provavelmente a pescaria ocorreu antes desta data, talvez de sexta
para sábado, de 15 para 16 de outubro, sendo esta a hipótese mais razoável.
Mas por que peixes para o governador e não outra coisa? A chegada do Governador
estava prevista para a sexta-feira, dia de abstinência de carne. Mas segundo o diário da
viagem, por conta de uma indisposição de saúde e também por causa das chuvas, a jornada foi
adiada para o dia seguinte, o que obrigou o Governador a se hospedar num sítio distante 13
km de Guaratinguetá. Por isso, D. Pedro prosseguiu viagem apenas no domingo (17),
chegando ao meio-dia e sendo recepcionado provavelmente com o banquete de peixes que
estava programado para alguns dias antes. Além disso, os peixes não poderiam ser pescados
27
com muita antecedência, mas próximo do evento porque não havia condições de conservação
por muitos dias. Logo que pescado tinha de ser consumido em pouco tempo7.
7
“Conforme o costume e condições da época, as grandes e solenes refeições (em dias de festa como em dias de
jejum e de abstinência) realizavam-se pelo meio dia e não à noite. Portanto, mesmo que o Governador chegasse
ao cair da tarde anterior, previa-se o almoço festivo para o sábado. Também, naquele tempo toda a pesca se fazia
para o mesmo dia do consumo ou para o dia imediato, pois não havia ainda os recursos de prolongada
conservação; necessariamente fora ordenada de sexta para sábado.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 162).
8
O nome dos três pescadores – Domingos Martins Garcia, João Alves e Filipe Pedroso – se encontram
registrados nos livros de batismo, casamento e óbito da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá, a partir dos
quais é possível identificar certo grau de parentesco entre eles. Na Paróquia foram batizados os filhos de
Atanásio Pedroso, que são João (1720) e José (1745), netos de Filipe Pedroso. João Alves é uma das testemunhas
do casamento de Filipe Pedroso com Verônica da Silva. Domingos Garcia Alves e João Alves são da mesma
família, provavelmente pai e filho respectivamente, pois, Silvana da Rocha, nome que também aparece no relato
do encontro, é considerada mãe de um dos pescadores e casada com Domingos Garcia, logo deve ser a mãe de
João Alves por possuir o mesmo sobrenome de Domingos Garcia Alves. Além disso, Silvana da Rocha era irmã
de Filipe Pedroso, o terceiro pescador, que consequentemente era cunhado de Domingos e tio de João Alves.
Além disso, Filipe Pedroso era da família de Maria Leite Pedroso, esposa de Gaspar, o irmão de José Côrrea
Leite, proprietário do porto em que os três deram início à pesca.
28
1ª) O itinerário da pescaria: “E principiando a lançar suas redes no Porto de José Corrêa
Leite, continuaram até o Porto de Itaguassu, distância bastante, sem tirar peixe algum”. Os
três pescadores partindo do porto fluvial de José Corrêa Leite9, que ficava à margem esquerda
do rio, na paragem denominada Tetequera (MACHADO, 1976, p. 150), a três léguas do
município de Pindamonhangaba, iniciaram a pescaria, como já se discutiu, provavelmente na
noite do dia 15 (sexta) para o dia 16 (sábado) de outubro. Apesar de não haver qualquer coisa
que o diga, provavelmente lançaram as redes a noite inteira sem sucesso, por conta da
distância que percorreram até o Porto de Itaguaçu (que significa “Pedra Grande”), na margem
direita do rio, distante a 6 ou 8 km de Guaratinguetá, no local a ser futuramente denominado
de “Aparecida”. Certamente foram muitas tentativas, muitos lanços de rede, sem conseguir até
aquele momento qualquer peixe no rio que, apesar das suas curvas sinuosas, margens cobertas
de vegetação e fundo lodoso, condições apropriadas para a proliferação de peixes, era
imprestável, tal como o seu próprio nome indica.
2ª) O encontro do corpo e da cabeça da imagem: “E lançando neste porto, João Alves a sua
rede de rasto, tirou o corpo da Senhora, sem cabeça; lançando mais abaixo outra vez a rede
tirou a cabeça da mesma Senhora...”. Mas no porto de Itaguaçu, sem saber qual a hora, a rede
de João Alves ficou pesada, o que certamente despertou a esperança por peixes, após tantas
tentativas frustradas. Mas nas malhas da tarrafa do pescador, o que “apareceu” foi o corpo de
uma imagem quebrada e, um pouco mais abaixo da onde tinha lançado outrora a rede, a pouca
distância, pescou também a cabeça que encaixava no corpo da imagem que acabara de
resgatar do rio.
3ª) A pesca milagrosa: “Guardou o inventor esta imagem em um tal ou qual pano, e
continuando a pescaria, não tendo até então tomado peixe algum, dali por diante foi tão
9
“Aos 21 de junho de 1712 essas terras foram adquiridas pelo Capitão JOSE CORREIA LEITE [...] sendo
morador em sua fazenda do rio Paraíba abaixo, em Pindamonhangaba, obteve outras terras e fez edificar em seu
sítio uma capela sob a invocação de N. Sra. do Rosário, a qual tornou-se conhecida pela denominação „Capela
dos Correias‟. Nessa capela entre Guaratinguetá e Pindamonhangaba foram realizados muitos batizados,
matrimônios e sepultamentos... Julgam ter sido aí batizado Frei Galvão, o descendente sobrinho-neto do
fundador.” (MACHADO, 1976, p. 150).
29
1. A imagem foi lançada ao rio por seus próprios possuidores, depois de se ter
quebrado acidentalmente. Não podendo ou não sabendo restaurá-la, podiam tê-la
enterrado, como geralmente se usa. Preferiram lançá-la ao rio.
2. Uma enchente invadiu a casa dos donos da imagem, e esta foi arrastada ao rio
durante o refluxo das águas.
Como naquela época do Brasil colonial, havia uma grande fabricação de imagens com
a efígie de Nossa Senhora da Conceição, também para os oratórios familiares e capelas
particulares, como é o caso das capelas de fazendas e sítios, é provável que a imagem
encontrada no rio pertencesse a algum destes lugares familiares, especialmente por conta do
tamanho, sendo muito pequena para uma igreja paroquial ou capela pública, e também pela
forma rústica dos seus traços. Apesar de se tratar de uma imagem de estilo barroco, não se
compara à exuberância de outras imagens barrocas esplêndidas na forma, nos detalhes e no
tamanho. Como também era costume, caso alguma imagem sacra fosse extraviada ou
30
quebrada, a piedade dos fiéis não se desfazia abruptamente, mas respeitosamente a enterrava
ou colocava em água corrente.
Mas entre tantas hipóteses prováveis e legitimas, João Machado na sua vasta obra
sobre Aparecida na história e na literatura, destaca uma tradição oral recolhida pelo Pe.
Valentim Mooser que pretende explicar a origem da imagem de nossa Padroeira:
Interessante perceber que este relato parece descrever, ainda que não demonstre
explicitamente, a “Capela dos Correias”, uma capela de fazenda no porto de José Corrêa Leite
que era dedicada a Nossa Senhora do Rosário, devoção especial dos escravos, e de onde
partiram os três pescadores. Talvez a força da correnteza tenha levado a imagem até a altura
do Porto de Itaguaçu e, tenha lá se quebrado em “corpo” e “cabeça”, quando estacionou no
fundo do rio. Apesar das semelhanças e probabilidades, estas ainda permanecem hipóteses
difíceis de comprovar. Também na imaginação popular surgiram mitos e lendas para explicar
como a imagem foi parar no interior do rio como, por exemplo, a da mulher que jogou a
imagem de Nossa Senhora da Conceição durante uma enchente do rio a fim de afugentar uma
serpente que atemorizava a população local ou a lenda que conta que a imagem fora esculpida
toscamente por um escravo que, ao ser descoberto de sua criação, fora castigado e obrigado a
se desfazer da imagem, lançando-a no rio com suas próprias mãos (BRUSTOLONI, 1998, p.
104). Mas estas também são histórias que o povo conta, bem menos credíveis que as hipóteses
a respeito do misterioso fenômeno.
Logo que foi encontrada na rede e acolhida no barco dos três pescadores, primeiro o
corpo e depois a cabeça, aquela pequenina imagem retirada do fundo do rio na altura do Porto
de Itaguaçu, foi imediatamente reconhecida como a Senhora da Conceição e, à medida que
começou a se propagar o seu culto, recebeu o título de “Aparecida”.
Desde o final do século XVI já eram confeccionadas na Colônia imagens de Nossa
Senhora da Conceição. E pelas características, a imagem encontrada pelos pescadores
provavelmente era de culto doméstico. Nosso objetivo agora é estudar os detalhes da imagem,
especialmente a partir da pesquisa realizada pelo Dr. Pedro de Oliveira Ribeiro Neto e que
fora apresentada pelo mesmo na ocasião do Jubileu de Ouro de Aparecida, os duzentos e
cinquenta anos do encontro da imagem (1967), sendo que esta foi uma análise anterior ao
atentado e ao restauro de 1978.
Na sua reflexão, o Dr. Pedro descreve a imagem como tradicionalmente é apresentada,
isto é, na sua forma triangular, revestida de um manto azul anil, que deixa entrever do seu
corpo enegrecido praticamente apenas o rosto e as mãos, e encimada por uma coroa cravejada
33
Material: a confecção da imagem que originaria, tantos anos após o seu encontro no
rio, o culto a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, provavelmente é de alguma
escola barrista da segunda metade do século XVII (RIBEIRO NETO, 1970, p. 181),
especialmente por conta da qualidade do material da imagem, isto é, um barro
paulista que depois de cozido, se torna cinza claro, às vezes rosado (Ibid., 1970, p.
181). Portanto, “sob a pátina morena da imagem, como um verniz criado pelo uso e
pelo tempo, lá está escondido o barro paulista em que ela foi esculpida na primeira
metade do 1600” (Ibid., 1970, p. 182).
Cor: a imagem seiscentista10 de estilo barroco e de forma murilesca11, tal como foi
encontrada no fundo do rio, perdera sua policromia original, ou seja, o corpo de
tonalidade branca, a túnica vermelha e o manto azul12, assumindo a cor impregnada
pelo lodo do rio e depois pelo fumo dos círios que foram acesos ao seu redor pelos
10
Data dos anos 1600 do século XVII.
11
Forma atribuída ao artista sevilhano, “pintor das Imaculadas”, Bartolomé Estebán Murillo (1617-1682).
“Sabe-se que a devoção da Virgem da Conceição, na imaginária brasileira, feita sempre na forma murilesca, de
mãos postas, com as pontas dos dedos unidas, e corpo erecto [...], sempre foi muito espalhada no Brasil,
principalmente depois da oficialização do seu culto pelos reis de Portugal, e que assim, desde o século XVII
possuímos imagens sem conta dessa forma e devoção. A encontrada no Porto de Itagaussú [Nossa Senhora da
Conceição] é uma dessas representações” (RIBEIRO NETO, 1970, p. 185).
12
Há uma “presunção de que a Virgem Conceição Aparecida teve outrora, pintado no seu barro claro um manto
azul escuro forrado de vermelho granada, côres oficiais de Nossa Senhora da Conceição no Reino Português, de
acôrdo com as ordens de Dom João IV que a proclamou, em 1646, padroeira da raça e do país [...] Da época do
1600, a imagem da Padroeira do Brasil apresenta ainda o detalhe da fraqueza da policromia, que se perdeu com
os anos, restando apenas sôbre o barro a pátina envernizada e parda” (RIBEIRO NETO, 1970, p. 183-185).
36
corrigida pela restauração a fim de aumentar a fixação do corpo à cabeça, mas que
não corresponde totalmente à forma que foi encontrada, isto é, de cabelos curtos.
Sobre os outros detalhes da escultura descreve o próprio pesquisador:
13
Trecho extraído das Ânuas da Província Brasileira dos Padres Jesuítas, de 1748 e 1749 (apud
BRUSTOLONI, 1998, p. 47). O Pe. Francisco da Silveira, do Colégio dos Padres Jesuítas de São Salvador da
Bahia, enviou para o Arquivo Romano da Casa Geral da Companhia de Jesus, na data de 15 de janeiro de 1750,
as ânuas nas quais constavam, entre outras coisas, as atividades apostólicas do missionário jesuíta, Pe. Paulo
Teixeira com mais um companheiro, entre os anos de 1748 e 1749, em doze localidades da então Diocese de São
Paulo, entre as quais foi contemplado o recém-fundado povoado de Aparecida (1745). O autor descreveu em
poucas linhas e com escassas informações a origem da capela da Virgem da Conceição e a razão pela qual os
moradores denominaram Nossa Senhora com a invocação Aparecida a partir do encontro da imagem pelos
pescadores que, lançado suas redes no rio, recolheram, primeiro, o corpo, depois, em lugar distante, a cabeça.
O restante da narração comenta a movimentação de peregrinos, os frutos da missão, a graça especial do
Santuário e a intercessão de Nossa Senhora (Ibid., 1998, p. 41,46-47). Apesar de estar datado em 1750, esse
documento foi encontrado pelo historiador jesuíta Pe. Serafim Leite, entre os vários papéis do Arquivo Geral da
Companhia de Jesus em Roma, apenas em 1945.
38
Nossa Senhora da Conceição Aparecida não pode ser considerado a rigor uma aparição, ainda
que o seu nome sugira o contrário, mas em sentido amplo pode ser qualificada como uma
“mariofania”, ou seja, uma manifestação de Maria.
Apesar da simplicidade da resposta popular, o nome “Aparecida” é especial por três
razões que extraímos da mensagem do Santo Padre Paulo VI ao Arcebispo de Aparecida,
Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos, o Cardeal Motta, por ocasião da oferta pontifícia da
Rosa de Ouro no decurso do Jubileu de Ouro de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, os
250 anos do encontro da imagem.
Com efeito, no ano de 1717 das águas do rio Paraíba, como consta, foi tirada uma
pequena estátua de barro da Imaculada Mãe de Deus, à qual, por ter assim aparecido
de certa maneira admirável, foi dado por todos o nome de “Aparecida” (PAULO VI,
S.S., Mensagem ao Cardeal Motta (5.3.1967)).
O pontífice salienta que o nome “Aparecida” foi dado por todos, mas quem são estes
“todos”? Desde os humildes pescadores, os vizinhos e os peregrinos que a devoção a Nossa
Senhora da Conceição sob este novo título começou a atrair, até o seu culto alcançar o
reconhecimento eclesial, o que aconteceu ao passo que “Aparecida” alcançava o coração do
povo brasileiro.
1.1.2.3.2. “Aparecida” é um título novo que propagou ainda mais a devoção mariana
14
Como, por exemplo, o fato da capela e futura igreja e basílica estar localizada à beira da estrada que fica entre
as principais cidades do Brasil desde o tempo colonial (São Paulo e Rio de Janeiro).
40
O presente ano, que é o 250º do encontro daquela pequena estátua – à qual, todavia,
de um ponto de vista mais alto, se podem acomodar estas palavras: “um grande sinal
apareceu” (Apoc 12,1) (PAULO VI, S.S., Mensagem ao Cardeal Motta (5.3.1967)).
sendo a Palavra de Deus e o Testemunho de Jesus Cristo” tudo o quanto viu, ouviu e redigiu o
seu autor (cf. Ap 1,1-2).
A expressão “mulher”, do grego gynê, no evangelho aparece como um apelativo dado
por Jesus à sua mãe (cf. Jo 2,4; 19,26) e também a outras duas personagens (à samaritana
(4,7.9.11.21) e a Maria Madalena (20,13.15)). „Mulher‟ não era apelativo que os filhos
usassem ao se dirigirem à sua mãe. Pelo contrário, tem a conotação de „esposa‟, „mulher
casada‟” (MATEUS; BARRETO, 1989, p. 199). Estas três mulheres aparecem como
“esposas”, não no sentido institucional e jurídico do termo, mas simbólico e coletivo. Por
exemplo, “A mãe de Jesus representa o Israel fiel às promessas (o resto de Israel), enquanto é
origem de Jesus. É, portanto, figura do povo da antiga aliança e, neste sentido, é chamada de
Esposa de Deus (2,4;19,26: mulher), segundo a concepção da aliança como núpcias entre
Deus e o povo” (Ibid., 1989, p. 199). Na literatura joanina, “mulher” não quer designar uma
pessoa física, apesar desta expressão estar diretamente atribuída a pessoas reais, mas
representa simbolicamente a identidade de uma coletividade. Isso fica ainda mais claro no
livro do Apocalipse, onde aparece o sinal de duas mulheres, uma “grávida” e a outra uma
“prostituta” (cf. Ap 12, 1-17; 17,1-18), que representam respectivamente o novo povo de
Deus fundado sobre a antiga herança de Israel e o Império Romano.
No evangelho de João o apelativo “mulher” é pronunciado duas vezes por Jesus ao se
referir à sua própria mãe nas Bodas de Caná e aos pés da Cruz (cf. Jo 2,4; 19, 26), enquanto
que no Apocalipse os textos mais singulares acerca da “mulher” são o capítulo 12 e 21 em que
ela é apresentada perseguida e triunfante. Segundo a exegese bíblica e a tradição patrística,
esta “mulher” é, preferencialmente, figura da Igreja, esposa de Cristo, mas também, e não de
modo secundário, faz referência à pessoa da Virgem Maria que, especialmente pelos Padres
da Igreja e posteriormente no Concílio Vaticano II, foi considerada desde sempre não apenas
a Mãe de Cristo (perspectiva cristotípica) e um membro eminente da Igreja (perspectiva
eclesiotípica), mas tipo e modelo da Igreja, sendo proclamada por Paulo VI como Mãe da
Igreja.
Por isso, além de participar do mistério de Cristo como mãe, discípula e colaboradora
na obra da salvação, a Virgem Maria está presente no mistério da Igreja e se constitui num
princípio para a própria Igreja. E, deste modo podemos compreender a natureza, identidade e
missão da Igreja a partir de uma abordagem mariológica, de tal modo que também o texto de
Ap 12 pode ser interpretado numa perspectiva que une aspectos eclesiológicos e mariológicos.
43
o Apocalipse de São João não fala explicitamente da mãe de Jesus, mas as grandes
imagens do cap. 12 soam incompreensíveis sem referência ao papel histórico dela.
Se admitirmos que a “Mulher vestida com o sol” se refere ao povo de Deus, Israel e
a Igreja, a referência a Maria não é descartada, pois as múltiplas facetas dos
símbolos apocalípticos não excluem que um símbolo possa significar duas
realidades (1991, p. 141).
15
Cf. Ct 6,12.
44
16
A etimologia da palavra grega para designar “pecado” (hamartía), significa justamente isso: “errar o alvo”,
“distanciar-se da meta”, “desviar-se do caminho”.
45
“o anúncio profético de uma ação escatológica na qual Deus realiza e recapitula o seu plano
de salvação” (PRIGENT, 1993, p. 214). Além disso, há outro sinal que indica a
personificação do povo de Deus na mulher do Apocalipse: a coroa de doze estrelas (v. 1), uma
referência às doze tribos de Israel (cf. Gn 37,9-11).
As fontes do texto, além de conter alguns vestígios da cultura greco-romana, faz
referência ao Proto-Evangelho (Gn 3,15), com o Êxodo de Israel do Egito e com as profecias
de Isaías, como fora analisado anteriormente. Contudo, a intenção do autor não é resgatar a
história do Povo de Israel, mas dizer que aquele evento histórico do passado foi, na verdade,
uma prefiguração do novo povo de Deus, continuado e realizado na Igreja que não
sucumbiria, embora naquele momento fosse perseguida sob o regime do Imperador
Domiciano (81-96 d.C.).
O texto apocalíptico apresenta sinais evidentes que o antigo Povo de Deus continua na
Igreja de Cristo que sofre no deserto da história sem desesperar e anda sem desanimar,
enquanto peregrina caminha para o enlace definitivo com o seu Esposo (cf. Ap 21). Por sua
vez, a “mulher” não é identificada como uma pessoa em sentido estrito, mas como
personalidade corporativa representante do Povo de Deus que é a Igreja. O próprio Concílio
Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja – Lumen gentium –, apresentou a Igreja como
“Povo de Deus”, numa inspiração veterotestamentária, mas sob a novidade cristã da
universalidade da salvação (cf. LG, n. 13).
Para o Concílio, “assim como Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto, é já
chamado Igreja de Deus (cfr. 2 Esdr. 13,1; Num. 20,4; Deut. 23,1 ss.), assim o novo Israel,
que ainda caminha no tempo presente e se dirige para a futura e perene cidade (cfr. Hebr. 13-
14), se chama também Igreja de Cristo (cfr. Mt. 16,18)” (LG, n. 9). E embora não faça uma
referência explícita ao texto apocalíptico, esta expressão conciliar permite visualizar a
46
“mulher” perseguida pelo Dragão e refugiada no deserto (vv. 13-14): “Caminhando por meio
de tentações e tribulações, a Igreja é confortada pela força da graça de Deus que lhe foi
prometida pelo Senhor” (LG, n. 8).
Alguns Padres da Igreja como Hipólito (+235) e Metódio (+312) entre outros,
interpretaram a mulher apocalítica como uma figura da Igreja. Segundo Hipólito de Roma, a
“mulher-Igreja” está revestida com a Palavra de Deus, cujo brilho supera a luz do sol; a lua
significa a glória do céu com a qual a Igreja está adornada e a coroa de doze estrelas
simboliza os doze Apóstolos. As dores do parto são os sofrimentos da Igreja por ser
perseguida ao anunciar o Evangelho. Numa perspectiva espiritual, o filho da mulher é Jesus
Cristo gerado no ventre da Igreja. As asas de águia que conduzem a “mulher ao deserto” são a
fé em Cristo. Para Metódio, o filho recém-nascido é o cristão batizado e a lua é um símbolo
batismal (GARCÍA PAREDES, 1995, p. 167)17.
17
Também há um texto muito sugestivo de São Ruperto (+718) no seu Comentário ao Apocalipse que compara a
mulher de Ap 12 com a Igreja: “Essa mulher representa a Santa Igreja, que em muitos lugares da Escritura
vemos profeticamente chamada de mulher ao lado de seu marido, isto é, a Deus unida e por Ele amada... Diz-se
que esta Mulher está vestida de Sol, isto é, de Cristo, verdadeiro Sol da Justiça, recebido como promessa; e que
tem “a lua debaixo de seus pés”, isto é, tem sob o seu controle a administração dos bens temporais, chamados de
“lua” por causa da sua mutabilidade..., a quem os loucos servem, mas sobre os quais o sábio impera... Dar à luz
significa em sofrer antes do parto: de modo que o processo do parto é como a medição, em que se dá a luz ao
Verbo perfeito.” (apud SILVA, 2017, p. 84-85).
47
García Paredes há um paralelo entre este texto apocalíptico com alguns episódios evangélicos,
tais como: anunciação, nascimento, paixão, morte e ressurreição, ascensão.
Enquanto que a “mulher” com dores de parto (v. 2) é uma versão simbólica do
Mistério Pascal de Cristo, o evangelho de Jo 19,25-27 apresenta o que poderia corresponder a
uma versão histórica do fato e destaca a presença de Maria na hora da paixão junto à Cruz do
seu Filho, quando ele disse: “Mulher, eis aí o teu filho” (v. 26). Toda a comunidade dos
discípulos dispersa estava ali representada por Maria, João e as outras mulheres. Aos pés da
cruz, a função materna de Maria é ampliada. São João Paulo II na carta para o Ano Mariano
de 1984 – Redemptoris Mater – revela que desde as Bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12) “se delineia
bastante claramente a nova dimensão, o sentido novo da maternidade de Maria” (RM, n. 21)
que “amadureceu definitivamente aos pés da cruz, mediante a sua participação no amor
redentor do Filho” (RM, n. 23). No Ap 12 a “mulher” gera o filho e seus descendentes, todos
marcados pela perseguição do Dragão (v. 17) e aos pés da Cruz, como símbolo de Eva que foi
concebida do lado de Adão, Maria torna-se Mãe da Igreja renascida do lado aberto de Cristo.
Para García Paredes, guardadas as devidas diferenças, o texto apocalíptico confirma a
dimensão eclesiológica de Maria aos pés da Cruz.
Na anunciação (cf. Lc 1,26ss) o anjo diz que o Espírito Santo descerá sobre Maria
envolvendo-a como numa nuvem. No Apocalipse, a mulher está vestida de sol (v. 1). Tanto a
“nuvem” quanto o “sol” são símbolos cósmicos que indicam a manifestação divina. A
“nuvem” do Espírito fecunda a Virgem e o “sol de justiça” a reveste de salvação (cf. Lc 1,78-
79) mantendo-a íntegra e pura, porque nela não há sombra alguma de pecado. Portanto, ela a
“mulher vestida com o sol” está cheia da graça divina (cf. Lc 1,28).
Apesar da intenção do autor do Apocalipse ao se referir à mulher em dores de parto (v.
2) para sinalizar o Mistério Pascal, de modo secundário é possível recordar o evento da
encarnação e do nascimento de Cristo, pois pela maternidade física de Maria foi gerado o
Messias. O mistério da Encarnação e da Paixão une-se pelas imagens do “parto de Belém” e
do “parto da cruz”, o nascimento para a vida eterna, a ressurreição. Em sentido figurativo, o
“trabalho de parto” pode representar o itinerário da fé percorrido por Maria (cf. LG, n.58)
desde a anunciação até o Calvário e pela comunidade da qual ela é imagem e modelo. No
texto de Ap 12 a “mulher” é mãe do Messias e símbolo da Igreja perseguida. Também o livro
dos Atos dos Apóstolos acentua a presença de Maria no seio da comunidade cristã que era
objeto da perseguição judaica, apresentando-a não pelo nome, mas pela função materna que
desempenhava na Igreja desde a cruz: “e estava com eles a Mãe de Jesus” (cf. At 1,14). O
capítulo VIII da Lumen gentium, incluindo o tratado mariológico do Concílio dentro da
48
Mas afinal, quem é esta mulher “que desponta como a aurora, bela como a lua,
fulgurante como o sol?” (Ct 6,10). A “mulher” apocalíptica associa em si três aspectos
femininos: virgem, mãe e esposa. Tais características podem ser encontradas na pessoa de
Maria e associadas à Igreja. Deste modo, numa perspectiva narrativo-simbólica, Ap 12 pode
nos oferecer uma visão acerca da identidade da Igreja inspirada em Maria.
“A ligação de Maria com a Igreja é expressa por três palavras-chave: Membro, Tipo
(ou modelo) e Mãe” (SESBOÜÉ (dir.), 2005, p. 511) segundo a Constituição Dogmática
Lumen gentium, no capítulo VIII que trata sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria no
mistério de Cristo e da Igreja. Os números 64 a 65 dedicam-se especialmente a Maria Virgem
e Mãe como modelo que a Igreja Virgem e Mãe deve imitar, o que, segundo Balthasar,
significa o mesmo que estabelecer as relações entre a Mãe do Senhor e a Esposa de Cristo (cf.
Ef 5, 25-27) (BALTHASAR, 2004, p. 139). E quando se refere à Maria como tipo da Igreja,
não a pensa como mera prefiguração, “mas sim enquanto arquétipo, isto é, enquanto „Ideia‟
realizada de forma perfeita e inigualável” (Ibid., 2004, p. 143), pois “o mistério de Maria e o
da Igreja se compenetram e iluminam reciprocamente”, não como duas realidades justapostas,
mas intrinsicamente unidas, desde que Maria seja compreendida no interior da Igreja como
membro, embora seja um membro eminente e singular, e mãe que gerou a Cabeça da Igreja.
Por isso, a figura de Maria desde os primeiros tempos sempre foi contemplada, de modo
especial pelos Padres, “com os olhos postos em Cristo e na Igreja” (Ibid., 2004, p. 142). A
partir da Sagrada Escritura é que os Padres pensaram na figura de Maria Virgem, Mãe e
Esposa como modelo e compêndio da Igreja Virgem, Mãe e Esposa, pois
Tudo o que é dito na Bíblia da ecclesia vale para Maria, e vice-versa: o que a Igreja
é e deve ser, é por ela aprendido na contemplação de Maria. Esta é o seu espelho, a
verdadeira medida da sua natureza, porque existe à medida de Cristo e de Deus,
“habitada” por ele. E para que existiria a Igreja senão para ser habitação de Deus no
mundo? Deus não age com coisas abstractas. Ele é Pessoa, e a Igreja é pessoa.
Quando mais nós e cada um de nós nos tornamos pessoa, pessoa no sentido da
inabitação de Deus em nós, filha de Sião, tanto mais seremos um e tanto mais
seremos Igreja, e tanto mais a Igreja será ela própria (RATZINGER, 2004, p. 64).
Assim como a conferência de Puebla afirma que sem Maria o Evangelho não se
encarna (cf. DP, n. 303), da mesma forma podemos também dizer que sem Maria não é
possível imaginar e, principalmente, concretizar a realidade virginal, maternal e esponsal da
Igreja.
Para tal, Ap 12 nos oferece uma chave de leitura a partir do “sinal da mulher”
revestida de sol, com a lua debaixo dos pés e coroada de doze estrelas (v. 1), a partir da qual
50
Prestai atenção, rogo-vos, naquilo que Cristo Senhor diz, estendendo a mão para
seus discípulos: Eis minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de meu Pai que
me enviou, este é meu irmão, irmã e mãe (Mt 12,49-50). Acaso não fez a vontade do
Pai a Virgem Maria, que creu pela fé, pela fé concebeu, foi escolhida dentre os
homens para que dela nos nascesse a salvação e que foi criada por Cristo antes que
51
Cristo nela fosse criado? Sim! Ela o fez! Santa Maria fez totalmente a vontade do
Pai e por isto mais valeu para ela ser discípula de Cristo do que mãe de Cristo; maior
felicidade gozou em ser discípula do que mãe de Cristo. Assim Maria era feliz
porque, já antes de dar à luz o Mestre, trazia-o na mente (Sermo 25,7-8: PL 46,937-
938).
Como a Virgem Maria, a Igreja acolhe (escuta), medita (silencia), coloca em prática e
proclama a Palavra do Senhor que suscita nos seus ouvintes a fé, como afirma o apóstolo
Paulo: “a fé vem pela pregação e a pregação é pela palavra de Cristo” (Rom 10,17). Mas antes
de ser nossa mãe na fé (cf. LF, n. 51), gerando seus filhos pela Palavra e pelo Batismo, a
Igreja conservou a unidade e a integridade do depósito da fé (cf. 1Tm 6,20) ao longo dos
séculos tal como Maria que preservou o seu “sim” da anunciação até a crucificação. Assim
como a fé manteve a Virgem unida a Jesus até a cruz, também a Igreja conserva a fé como
herança recebida dos apóstolos e a confessa e transmite em toda a sua pureza e integridade,
pois da unidade da fé depende a unidade e a comunhão da Igreja com o Senhor e dos
membros de Cristo. “A integridade da fé foi associada também com a imagem da Igreja
virgem, com o seu amor esponsal fiel a Cristo: danificar a fé significa danificar a comunhão
com o Senhor” (LF, n. 48).
Inserida no corpo eclesial como membro, Maria é discípula e servidora da Palavra
como qualquer outro, mas enquanto membro singular e eminente, ela é para todos protótipo
do discípulo por excelência, porque “Ninguém como ela „escutou a palavra de Deus‟ e a „pôs
em prática‟” (BALTHASAR, 2004, p. 140). A Conferência de Aparecida a este respeito
afirmou que a Virgem Maria
através de sua fé (cf. Lc 1,45) e obediência à vontade de Deus (cf. Lc 1,38), assim
como por sua constante meditação da Palavra e das ações de Jesus (cf. Lc 2,19.51), é
a discípula mais perfeita do Senhor (cf. LG 53) [...] com sua fé Maria chega a ser o
primeiro membro da comunidade dos crentes em Cristo, e também se faz
colaboradora no renascimento espiritual dos discípulos. Sua figura de mulher livre e
forte, emerge do Evangelho conscientemente orientada para o verdadeiro
seguimento de Cristo. Ela viveu completamente toda a peregrinação da fé como mãe
de Cristo e depois dos discípulos, sem estar livre da incompreensão e da busca
constante do projeto do Pai. Alcançou, dessa forma, o fato de estar ao pé da cruz em
comunhão profunda, para entrar plenamente no mistério da Aliança (DAp, n. 266).
Portanto, a Virgem Maria torna-se para toda a Igreja um paradigma da Igreja que pela
escuta e anúncio da Palavra do Senhor conserva e transmite a fé. “Ela, que „conservava todas
estas recordações e as meditava no coração‟ (Lc 2,19; cf. 2,51), ensina-nos o primado da
escuta da Palavra na vida do discípulo missionário” (DAp, n. 271) e delineia o perfil de uma
Igreja Servidora e não controladora da fé.
52
Palavra, como quando disse ao anjo: “Faça-se em mim conforme a vossa palavra” (cf. Lc
1,38) e nas bodas aos servos: “Façam tudo o que Ele vos disser” (cf. Jo 2,5).
A mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés, coroada de estrelas (cf. Ap 12,1)
estava grávida, com dores de parto, prestes a dar à luz (v. 2), sendo atormentada e perseguida
pelo Dragão que queria devorar o filho de suas entranhas (v. 3-5.13). Como se trata de um
texto simbólico, as dores de parto não possuem aqui um caráter biológico, mas querem
recordar a Paixão do Senhor que anuncia um “novo nascimento”, a ressurreição. O versículo
cinco manifesta simbolicamente o Mistério Pascal de Cristo e profetiza que todos os que são
perseguidos, personificados na figura da mulher parturiente e dos seus descendentes (v. 17),
fazem parte do povo de Deus, da Igreja que na cruz dá à luz ao homem novo, aquele que
morreu e ressuscitou com Cristo, e por isso reina com Ele (cf. Rom 6,8; 2Tm 2,11-12).
A mulher parturiente, atormentada para dar a luz, segundo Aristides Serra, além de
designar o Mistério Pascal, é um indicador da angústia da comunidade dos discípulos (cf.
FIORES; MEO (Orgs.), 1995, p. 252), principalmente no momento em que o Mestre foi
tirado do meio deles (cf. Jo 16,21-22), e revela a dificuldade de “gerar” Cristo no mundo,
assim como a Virgem-Mãe que apesar de conceber no seu ventre o Filho de Deus, não foi
poupada da espada da dor (cf. Lc 2,35). Ela representa a “comunidade da qual nasce o
Messias, e cujos outros filhos são os cristãos” (PRIGENT, 1993, p. 218), os descendentes da
mulher que “mantêm o Testemunho de Jesus” (v. 17). Contudo, o “parto” da mulher não
termina com o nascimento e exaltação do Filho, mas continua com todos os tipos de ataque
que o Dragão faz à mulher e à sua descendência (v. 13).
A maternidade da Virgem Maria é a imagem da maternidade da Igreja (LUBAC apud
FORTE, 1991, p. 198), sendo que “uma e outra estão unidas pela mesma vocação
fundamental: a maternidade” (THURIAN apud FORTE, 1991, p. 198). O fato de ser “mãe” é,
sem dúvida, o aspecto mais expressivo da relação entre Maria e a Igreja. Entre diversos textos
patrísticos, a Lumen gentium (cf. n. 53) quando apresenta Maria no mistério da Igreja repete
uma expressão de Santo Agostinho a este respeito que, se encontra no Tratado De Sancta
Virginitate e, complementa o mistério da fecundidade da Igreja Virgem: “a Igreja, também
ela, é mãe e virgem [...] Maria deu à luz corporalmente a Cabeça deste corpo. A Igreja dá à
luz espiritualmente os membros dessa Cabeça” (A virgindade consagrada II, 2). E num
sermão natalino, o bispo de Hipona também afirmou de maneira semelhante: “Aquilo que
54
Maria mereceu manter na carne, a Igreja o conserva no espírito. Todavia, com esta diferença:
Maria deu à luz um só filho. A Igreja gera a muitos que hão de ser consagrados na unidade,
pelo Filho único da Virgem” (Sermão 195,1-3 – 12º do Natal).
Portanto, a maternidade comum entre Maria e a Igreja, cuja única diferença é que uma
gerou na carne e outra gera no espírito, pela ação do Espírito Santo consiste em conceber e
fazer nascer a Cristo. Como aconteceu no ventre de Maria, assim também faz espiritualmente
a Igreja no coração dos fiéis, isto é, gerar a vida divina através da pregação da Palavra de
Deus, da celebração dos Sacramentos e do testemunho da caridade. Como Maria, a Igreja
gera, nutre, cuida, educa, consola e conduz os filhos do Pai e os irmãos de Jesus, filhos no
Filho, pelo poder do Espírito Santo para viver segundo a fé, a esperança e a caridade.
Contudo,
o equilíbrio na relação entre a maternidade da Igreja e a de Maria desapareceu todas
as vezes que, obscurecido o sentido da natureza materna da Igreja, foram enfatizados
seus aspectos visíveis e jurídicos, acabando-se por substituir a Igreja por Maria e a
caridade irradiante do corpo eclesial do Senhor pela de sua Mãe (FORTE, 1991, p.
200).
Há tantos devotos que amam Maria, visitam seus santuários, cultivam um amor todo
especial para com a Mãe do Senhor, mas estão afastados da comunhão visível da Igreja,
porque talvez ainda carregam na mente a imagem de uma Igreja pouco maternal e muito mais
“obra”, “ONG”, instituição formada exclusivamente pela hierarquia e pelos religiosos e
conjugada apenas no “masculino”. Conforme o Cardeal Ratzinger, é fundamental
compreender a natureza da Igreja também no “feminino” como “mulher” e “mãe”, pois
Aqui nasce para o céu um povo de nobre estirpe. O Espírito é quem dá a vida nessas
águas fecundas. Aqui, a Mãe Igreja gera, com fértil virgindade, aqueles que coloca
no mundo pela ação do Espírito. Esta é a fonte da vida que banha todo o universo:
brota da ferida aberta do coração do Cristo e faz o cristão. Esperai no Reino vós que
nascestes nesta fonte (do Batistério Lateranense) 18.
18
O pórtico de entrada do batistério de Aparecida também reproduz esta mesma inscrição.
56
octogonal com água corrente na qual os catecúmenos desciam de um lado e subiam pelo outro
por três degraus. O duplo movimento de imersão (descida) e emersão (subida) carregava todo
o significado ritual do Mistério Pascal segundo a catequese batismal de Paulo que ensinava:
“pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte para que, como Cristo foi ressuscitado
dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos vida nova” (Rom 6,4). “A pia
batismal passa a ser figura da sepultura de Cristo, no ato de descer à pia batismal imita-se a
morte e o sepultamento de Cristo: o batizado morreu e ressuscitou com Cristo. „Aquela água
salvífica se tornou para vós ao mesmo tempo sepultura e mãe‟ (CIRILO DE JERUSALÉM,
Myst. Cat. II, 4)” (SCHNEIDER (org.), 2012, p. 219).
A descrição do antigo rito do Batismo dos catecúmenos na Noite Santa da Páscoa
revela esse caráter maternal da Igreja que gera pelo Batismo. Após a prece de consagração da
água, que corresponde atualmente à bênção da água batismal,
Esta longa e detalhada descrição do rito batismal corresponde ao que São Leão Magno
ensinava aos fiéis nos seus sermões: “para todo homem que nasce de novo, a água do batismo
é como o seio virginal: o mesmo Espírito que veio sobre a Virgem vem agora à fonte
batismal” (Sermo 24 in Nativitate Domini, 3; PL 54, 206A). O que aconteceu conosco no
Batismo tem o seu modelo original no seio de Maria. Junto a todas as fontes batismais da Mãe
Igreja está a Mãe de Jesus (RAHNER, H., 1958, p. 74-75).
A mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés, coroada de estrelas (cf. Ap 12,1)
no capítulo 12 do Apocalipse é uma mulher perseguida, símbolo da Igreja peregrina no
deserto entre as tribulações do mundo e as consolações de Deus (cf. LG, n.8). Os elementos
cósmicos concentrados na mulher (sol, lua e estrelas) e relidos segundo a interpretação bíblica
nos indica o perfil da esposa que possui ares de “rainha”. O próprio Livro Cântico dos
Cânticos, cuja estrutura literária é um diálogo entre o “Esposo” e a “Esposa”, uma analogia
comum entre os profetas para exemplificar a relação entre Deus e o povo de Israel, fala da
mulher esplendorosa vestida de sol (cf. Ct 6,10), que nos recorda de imediato a mulher do
Apocalipse (cf. Ap 12,1), cujo destino será glorioso, pois além de “virgem” e “mãe”, ela é
“esposa”: “Vem! Vou mostrar-te a Esposa, a mulher do Cordeiro!” (Ap 21,9). E o “vidente”
de Patmos então faz uma descrição da Cidade Santa de Jerusalém como uma esposa enfeitada
para o seu marido (cf. Ap 21,2).
Maria “é a Virgem Mãe, a criatura na qual o Eterno desposou a história na aliança que
une o humano e o divino, a terra e o céu” (FORTE, 1991, p. 215); é a filha de Sião que
personifica a relação esponsal entre Deus e o seu povo. Na concepção mariológica de Santo
Agostinho, a Virgem Maria é o tálamo da união da divindade com a humanidade (cf.
Comentário do Sl 90,II,5). Apresentada deste modo, tão pouco frequente, isto é, como
“esposa”, Maria é situada no mistério da Aliança como “Sponsa Patris”, “Sponsa Christi” e
19
“Ninguém pode ter a Deus por Pai, se não tiver a Igreja por Mãe” (CIPRIANO DE CARTAGO, Ecclesiae
catholicae unitate, 6: CCL 3. 253 (PL 4. 519)).
59
“Sponsa Spiritus Sancti”, de modo especial na sua relação com o Espírito Santo que na
anunciação a envolveu como uma sombra (cf. Lc 1,35), como a nuvem que pairava sobre a
tenda da reunião que abrigava a Arca da Aliança (cf. Ex 40,2-3) que, por sua vez, continha as
Tábuas da Lei (cf. Ex 25,16), o “contrato matrimonial” que estabelecia a relação de fidelidade
entre Deus e o povo que fora escolhido dentre todas as nações da terra para ser sua
propriedade particular, um reino de sacerdotes e uma nação santa (cf. Ex 19,5-6).
Na peregrinação do povo de Israel pelo deserto, a arca tornou-se um sinal da presença
de Deus. Na anunciação, Maria é a nova “arca da aliança” que transporta a presença do Deus
vivo. No Apocalipse, o sinal grandioso da “Mulher” (12,1) é precedido pela visão da arca da
aliança que surge do santuário de Deus (cf. Ap 11,19). “Trata-se a um só tempo do mistério
da Igreja e do mistério de Maria, que como arca contém a presença viva de Deus”
(BASADONNA; SANTARELLI, 2000, p. 153).
“A Igreja dá a Maria o título de „arca da aliança‟ para mostrar o posto que na vida ela
ocupa porque se tornou o lugar da presença viva do Deus que nela se fez homem”
(BASADONNA; SANTARELLI, 2000, p. 153), do Deus que na Antiga Aliança manifestava
a sua glória na nuvem (cf. Ex 40,34-35), e que no seio da Virgem, Mãe e Esposa desceu e se
fez carne para selar a nova e eterna aliança na Cruz, onde Maria aparece ao seu lado sendo
chamada de “mulher” (cf. Jo 19,26), como a “Esposa” ao lado do seu marido (cf. Ef 5,24).
A figura da esposa associa o dom recebido pela virgem e realizado pela mãe. Este
mistério acontece de modo admirável na pessoa de Maria pela ação do Espírito Santo que é a
nupcialidade eterna entre o Pai e o Filho e, por isso, o artífice da aliança entre Deus e o povo.
“A esponsalidade de Maria se oferece como tal no Espírito Santo: nele ela se une ao Pai e ao
Filho, nele ela participa da fecundidade de um e da acolhida do outro, nele ela se torna a arca
da aliança, que une o céu e a terra, guardando Deus em carne humana” (FORTE, 1991, p.
224). Como Esposa no Espírito, Maria “é a porta de Deus para o mundo e a porta do mundo
para Deus [...] O Espírito é aquele que faz de Maria a Esposa, tornando-a Virgem Mãe do
Filho e dos filhos” e “lugar de encontro entre Deus e os homens e de aliança entre os homens
em Deus e com ele” (Ibid., 1991, p. 224-225).
No ícone de Maria Esposa, a Igreja contempla a imagem pura do que deseja e espera
ser (cf. SC 103; MC 22), pois assim como Maria, a Igreja é esposa. “A Igreja sabe que,
acolhendo o Espírito, que lhe é dado em abundância por Cristo ressuscitado, levará a
cumprimento aquilo que nela está apenas iniciado e que contempla realizado justamente na
Esposa das núpcias eternas, Maria” (FORTE, 1991, p. 230). Por isso, no nível escatológico,
mas “também já agora na terra, enquanto não chega o dia do Senhor (cf. 2Pd 3,10), ela brilha,
60
como sinal de esperança segura e de consolação, aos olhos do povo de Deus peregrinante”
(LG, n. 68). Maria é o “sinal” da esperança realizada da Igreja, o ícone escatológico da Igreja
glorificada no Espírito. No seu “primeiro membro” tão eminente e singular, a Igreja atinge o
seu termo, repouso e plenitude. Por isso no caminho da Igreja peregrina sobre a terra, Maria é
uma “estrela da noite”.
Mas para atingir este destino glorioso, a Igreja aprende na escola de Maria, os modelos
de virtude para prosseguir no seu itinerário de fé, a fim de progredir na santidade (cf. LG, n.
65) que consiste na conformação ao Esposo, ou seja, na configuração a Cristo, e de ser
testemunha profética da esperança. Este povo da Aliança é também povo da esperança que faz
a sua caminhada para o futuro sem descuidar do tempo presente e da história. Com toda razão,
como Maria no Magnificat cantou a esperança do seu povo, a Igreja proclama o advento do
Reino de Deus e denuncia o que impede a sua instauração. Assim, desta forma, a esperança de
Maria, tal como a da Igreja, não consiste numa amenização ou alienação da realidade social e
dos dramas humanos, mas uma “antecipação do futuro” “que atrai para o presente dos homens
o amanhã da aliança com Deus” (FORTE, 1991, p. 233).
humanos, o nosso povo segue o seu caminho olhando para Nossa Senhora Aparecida como
“estrela de esperança”. Na encíclica sobre a esperança cristã (Spe Salvi), o Papa Bento XVI
dizia que
Aparecida não traz receitas mas chaves, critérios, pequenas grandes certezas para
iluminar e sobretudo, acender o desejo de nos despojar de todo o desnecessário e
voltar às raízes, ao essencial, à atitude que fez de nosso continente a terra da
esperança. Aparecida renova a esperança em meio a tantas inclemências (Mensagem
(10.05.2017)).
Mas o que esperavam aqueles pescadores senão os peixes para o banquete de recepção
do governador? Assim, o primeiro milagre atribuído a Nossa Senhora Aparecida, os peixes
em abundância, que quase fez afundar o barco, após o encontro da imagem, renovou a
esperança dos pobres e humildes que esperam em Deus. Enquanto que nas Bodas de Caná (cf.
Jo 2,1-11), graças à intervenção de Maria, houve abundância de vinho, o primeiro “milagre de
Aparecida” foi uma pesca abundante. Nestes dois episódios Maria foi um “sinal” para a
abundância de vinho em Caná e de peixes no “imprestável” Rio Paraíba, símbolos do
banquete. E foi justamente para um banquete que aqueles pescadores puseram-se a pescar, do
qual muito provavelmente não puderam participar. Mas o Evangelho também fala de um
62
banquete preparado para os pobres, simples e humildes (cf. Lc 14,21). Pela celebração da
Eucaristia, a Igreja antecipa a esperança no banquete definitivo no Reino dos céus.
Todos estes símbolos, repletos de significado, que encontramos misteriosamente
manifestados no “sinal de Aparecida” – o rio, a imagem de barro, as redes, o barco, os
pescadores, o pano que envolveu o corpo da imagem e os peixes abundantes – querem
recordar algo fundamental que precisa ser constantemente resgatado na nossa vida espiritual,
que às vezes é tão indolente e superficial, carente dos sinais do mistério: a fé e os
sacramentos, especialmente o Batismo e a Eucaristia, professados, celebrados e vividos na
comunhão da Igreja Virgem, Mãe e Esposa que encontra na figura, na pessoa e na missão de
Maria as suas primícias (dimensão protológica), modelo (dimensão histórica) e sinal de
esperança realizada (dimensão escatológica).
O “sinal de Aparecida”, embora silencioso e sutil, através da pequenina imagem que
“apareceu” no drama da vida e na trama das redes daqueles três pescadores, é uma forte
mensagem evangélica e profética para a Igreja e para a sociedade de ontem e de hoje. Ao
longo de três séculos, “Aparecida” tem sido para todos uma bênção: “peixes em abundância,
famílias recuperadas, saúde alcançada, corações reconciliados, vida cristã reassumida”
(Excertos da Oração do Ano Jubilar).
1,13). “A unidade manifesta a comunidade na sua realidade íntima que se trata de não alterar:
Cristo” (Ibid., 1984, p. 95).
Na Carta aos Colossenses e aos Efésios a expressão Igreja Corpo de Cristo ganha uma
dimensão universal e apresenta a distinção “corpo” e “cabeça”. Cristo é a Cabeça do seu
Corpo que é a Igreja (cf. Col 1,18; Ef 1,22-23). Cristo é a “cabeça” (caput) porque ocupa uma
posição proeminente, pois é superior à Igreja e o princípio vital para o crescimento do seu
“corpo”. Deste modo se preserva a distinção que há entre Cristo e a Igreja, do mesmo modo
como entre a cabeça e o corpo, embora ambos estejam unidos. Cristo é o Senhor da Igreja que
não é apenas o seu prolongamento sobre a terra.
Mas a própria Igreja é um “tu” diante de Cristo. Assim como a esposa que com o
marido formam uma só carne (cf. Ef 5,23), esta também é distinta dele. Por essa razão, a
expressão “Igreja Esposa de Cristo” completa os limites da expressão “Igreja Corpo de
Cristo”. Em Ef 5,22-32, Paulo compara a relação entre Cristo e a Igreja como uma relação de
amor recíproco entre marido e esposa, na qual o marido é a “cabeça” da mulher (cf. Ef 5,23).
A principal justificativa para o uso da metáfora “corpo” era para superar as discórdias
e divisões entre os membros da comunidade, no nível interno da vida eclesial. Na evolução
deste pensamento, Cristo é identificado como a Cabeça do Corpo que é a Igreja, pois ele é o
único capaz de reestabelecer a unidade e derrubar o muro da inimizade (cf. Ef 2,14). Como
lugar da presença de Cristo que congrega os homens, consciente de sua missão, a Igreja é
sacramento de Cristo, sinal de unidade para todo gênero humano e instrumento para a
salvação do mundo (cf. LG, nn. 1,48).
Não sem razão é que toda “divisão [...] é contrária ao evangelho” (QUINN, 2002, p.
12), o mesmo que equivale a dizer: toda a divisão se opõe à vontade de Cristo. O Decreto
sobre o Ecumenismo – Unitatis Redintegratio – do Concílio Vaticano II confessa que “Esta
divisão, porém, contradiz abertamente a vontade de Cristo, e é escândalo para o mundo, como
também, prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda a criatura” (UR, n. 1).
Por isso, o interesse pela unidade não significa apenas um apaziguamento nas relações entre
Igrejas cristãs ou boas relações diplomáticas entre cristãos separados, nem serve como que
para “camuflar” o controle da Cúria Romana sob o governo pastoral das dioceses ou ainda a
uniformidade da liturgia, entre outros equívocos, mas a unidade é uma necessidade para a
Igreja cumprir a sua missão no mundo. E mais, a unidade pertence à essência mesma da
Igreja, segundo o que professamos no Credo Niceno-Constantinopolitano: “Creio a Igreja
una...”. Contudo, a unidade que está na essência da Igreja e é um artigo de fé e o cerne da sua
missão, não significa o fim da diversidade (Ibid., 2002, p. 22). Toda uniformidade e
66
centralismo são contrários à identidade católica e apostólica da Igreja (Ibid., 2002, p. 24),
sendo que a diversidade é necessária para a unidade, como na analogia paulina entre o corpo e
os seus membros que, “embora sejam muitos, formam um só corpo” (cf. 1Cor 12,12).
Extinguir a diversidade coloca em risco a própria unidade.
paulina de que Cristo é a Cabeça do seu corpo que é a Igreja (cf. Col 1,18; Ef 1,22-23). O
Sucessor de Pedro e Bispo de Roma é a “cabeça da Igreja” enquanto representante visível da
autoridade de Cristo, Bom Pastor entre os bispos e os fiéis a ele unidos (cf. DS 3059-3060).
Também os bispos como membros do Colégio Apostólico e unidos à sua Cabeça, exercem
este ministério de unidade nas Igrejas locais:
Por sua vez, cada bispo é o princípio e o fundamento visível da unidade na sua
Igreja particular, formada à imagem da Igreja universal: nas quais e a partir das
quais resulta a Igreja católica una e única. Por isso, cada bispo representa a sua
Igreja; e todos, juntamente com o Papa, representam toda a Igreja no vínculo da paz,
do amor e da unidade (LG, n. 23).
20
A palavra episkopoi exprime a natureza da atividade pastoral que consiste em vigiar (= velar) o rebanho.
68
de Roma, o Papa se apresenta como o bispo de uma Igreja local que preside a todas as outras
na caridade. Isto significa que ele não é o bispo de toda a Igreja ou o bispo dos bispos (DA
SILVA, 2015, p. 708). Mas isto nem sempre foi tão claro na práxis eclesial, quanto parece a
nível conceitual. O Concílio Vaticano II, porém, declara que “a função mais importante do
primado é defender e promover a função dos bispos” (LG, n. 27b). Todavia sempre houve o
risco de uma interpretação maximalista e minimalista do papado, o que corresponde
respectivamente a colocar o Papa acima ou fora da Igreja como um monarca absoluto ou
torná-lo um mero executor da vontade dos bispos. Nem uma nem outra hermenêutica ou
prática assumiu o Vaticano II que, sem suprimir nem corrigir o Vaticano I, procurou abordar o
primado petrino dentro do corpo eclesial e, a partir disto, deixar claro qual a sua natureza e
seu exercício na Igreja e qual sua relação com o episcopado numa perspectiva colegial e
sinodal.
Interessante como os Padres Conciliares articularam dentro do capítulo II da Lumen
Gentium – “Povo de Deus” – a presença do Papa e dos Bispos no conjunto de todos os
batizados e como conjugaram no capítulo seguinte – Constituição Hierárquica da Igreja – a
partir desta visão ampla da Igreja Povo de Deus, a relação entre primado e episcopado (nn.
18-22). Isto quer dizer que a dignidade comum do povo cristão é o sacramento do Batismo e
que, entre o povo de Deus, o Senhor suscita servidores e não “administradores” nem
“príncipes”. Mas para se alcançar esta compreensão foi necessário redescobrir o significado
do ministério episcopal na Igreja a partir de três critérios: 1º. Sacramentalidade; 2º.
Colegialidade; 3º. Responsabilidade. Através do sacramento da Ordem é que os bispos são
inseridos no Colégio e cum Petrus (membro) e sub Petrus (cabeça) são responsáveis por toda
a Igreja (local e universal), sendo-lhes conferido o múnus de ensinar, santificar e reger (LG,
nn. 24-27) em unidade com a cabeça do Colégio, que é o Bispo de Roma, pois de outro modo
não poderia exercer o seu poder, não porque devam estar submetidos a uma obsequiosa
obediência, mas porque no corpo que é a Igreja o primado e o episcopado, como
representantes e agentes da autoridade pastoral de Cristo, deve demonstrar a comunhão da
Igreja (LG, n. 18).
quando aos pés da cruz, por vontade do seu Filho, o discípulo João a acolheu em sua casa (cf.
Jo 19,25-26). Este gesto de acolhida a Maria foi “repetido” pelos pescadores que agasalharam
a imagem de Nossa Senhora da Conceição no seu barco, nas suas casas e a acolheram dentro
do coração.
Mas além da realidade plenamente divina que transmite, a imagem de Aparecida
carrega as marcas da realidade histórica em que foi encontrada, o corpo separado da cabeça:
um contexto de divisões, disputas e intrigas econômicas, políticas, sociais, étnico-raciais e
eclesiais em que vivia imerso o nosso país. Nosso povo, ainda em plena formação da sua
identidade, já estava dividido pela disputa do ouro que causava muitas desordens sociais e
conflitos violentos nas regiões das minas de ouro; os colonizadores e colonizados também
estavam divididos por causa de conflitos políticos e sociais que começavam a estourar em
alguns lugares do imenso território brasileiro; brancos e negros estavam divididos pela chaga
da escravidão africana, coisa que desafiava a postura da Igreja, e a população nativa
desenraizada de sua cultura, cada vez mais acantonada nos interiores. A Igreja no Brasil
estava praticamente separada da Sé Apostólica por causa das ingerências do Padroado, que se
radicalizaram posteriormente numa hostilidade do Império contra a Igreja sob o regime do
pombalismo. A Igreja universal também vivia no seu interior, disputas teológicas e pastorais
que estremeciam a relação entre primado e episcopado, além das complexas relações do papa
com os monarcas dos Estados católicos. “Aparecida” surge num contexto de disputas,
conflitos e rupturas no conturbado e tempestuoso século XVIII para a “nau de Pedro”.
Contudo, mesmo depois das primeiras restaurações, desde aquela primeira feita na
casa de um dos pescadores, a cabeça da imagem algumas vezes ainda se desprendia do corpo,
como que a chamar a atenção para o problema da divisão entre os povos, na sociedade e na
Igreja em todos os tempos, mas sem nunca deixar de anunciar, quando simbolicamente eram
novamente unidas as duas partes, a esperança da restauração.
continuando a pescaria, não tendo até então tomado peixe algum, dali por diante foi
tão copiosa a pescaria em poucos lanços, que receoso [João Alves], e os
companheiros [Domingos Martins Garcia e Felipe Pedroso] de naufragarem pelo
muito peixe que tinham nas canoas, se retiraram a suas vivendas, admirados deste
sucesso (Excerto do I Livro Tombo da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá,
1757-1873).
O barco, as redes e os peixes são símbolos eclesiológicos que aparecem tanto no texto
evangélico da “pesca milagrosa” quanto no encontro da imagem de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida. E todos estes são elementos que representam entre si um vínculo de
unidade: o rio e o barco; a rede e os peixes. O “rio” e o “barco” simbolizam respectivamente o
mundo e a Igreja. A Igreja-barco é uma imagem que se fundamenta na Sagrada Escritura (a
arca de Noé e a barca de Pedro) e foi muito explorada pela Patrística. “O mar tempestuoso é o
mundo [...] A nave é a Igreja, que atravessa o mar do mundo” (CODINA, 1993, p. 67). Como
um barco não tem serventia quando estacionado na praia, também a Igreja corre o risco de não
71
corresponder à sua missão quando isolada da realidade do mundo. O barco quanto toca a água
do rio representaria esse vínculo entre o mundo e a Igreja, servidora da humanidade. Também
as redes e os peixes apresentam semelhante vinculação. As redes servem para pescar os peixes
para dentro do barco. Após a pesca, Jesus disse a Pedro: “Farei de vós pescador de homens”
(Lc 5,10). Esta expressão no grego significa “„pegar vivos ou para a vida‟, quer dar a entender
que Pedro terá a tarefa de „capturar‟ os homens para a vida” (FABRIS, 2006, p. 63). Há outro
detalhe importante que assinala a missão de Pedro que “pesca” para Jesus: “Simão Pedro
subiu então ao barco e arrastou para a terra a rede, cheia de cinquenta e três grandes peixes; e
apesar de serem tantos, a rede não se rompeu” (Jo 21,11).
A associação do “mar”, do “barco” e da “rede” são imagens para identificar a tarefa
missionária da comunidade que é a mesma de Cristo: “congregar na unidade todos os filhos
de Deus dispersos” (cf. Jo 11,52; 17,20). As redes são arrastadas para a margem pelos
discípulos (v. 8) que iniciam a tarefa completada por Pedro que a puxa até a terra (v. 11), ou
seja, são levadas até perto de Cristo que pede alguns dos peixes que foram apanhados (v. 10).
O verbo grego hélkein para a expressão “arrastar” é o mesmo usado em Jo 12,32 para “atrair”,
e se refere a algo que Jesus disse noutra ocasião: “Quando eu for levantado da terra atrairei
todos a mim”. A “atração operada por Jesus na cruz se realiza por mediação da Igreja,
representada por Pedro, que „arrasta‟ a rede cheia de peixes para onde se encontra Jesus”
(CASALEGNO, 2013, p. 124). E “a rede [que] não se rompeu” (v. 11) assinala a unidade da
Igreja, pela qual Jesus rezou antes da Paixão (cf. Jo 17,21), não obstante a fragilidade humana
dos membros do Corpo de Cristo. As redes repletas de peixes diante do Ressuscitado são um
sinal de que “a unidade é uma meta para o presente e um dom para a o futuro” (Ibid., 2013, p.
124).
O relato evangélico da pesca milagrosa segundo João 21, segue com outra imagem de
unidade e comunhão: é a refeição preparada por Jesus somente com um peixe e um pão (v. 9).
A menção ao peixe e ao pão recorda o milagre da multiplicação (cf. Jo 6), que alguns exegetas
consideram como o texto da instituição da Eucaristia no evangelho de João, o qual no
contexto da ceia omite esta narrativa que aparece em todos os sinópticos, conferindo especial
destaque aos lava-pés (cf. Jo 13). Logo, este texto joanino também tem um sentido
eucarístico. Também os gestos de Jesus (v. 13) são um indício eucarístico do texto. Desde as
origens do Cristianismo, pão e peixe são símbolos eucarísticos e, quando colocados sobre as
brasas acesas, recordam que a presença eucarística de Cristo na comunidade acontece pela
ação do Espírito Santo que congrega a todos num só corpo e num só espírito. A Eucaristia é o
sacramento da unidade, a fonte e o ápice, para a qual tende toda a ação da Igreja (cf. LG,
72
n.11). E toda ação da Igreja deve conduzir à comunhão de todos no Corpo de Cristo. Mas,
para que a missão tenha êxito é preciso estar em comunhão com Jesus.
O texto termina, finalmente, com um diálogo entre Jesus e Pedro (vv. 15-17), onde o
Senhor verifica a autenticidade do amor do discípulo a quem pretende entregar e confiar o
cuidado dos seus cordeiros (v. 15) e ovelhas (v. 16-17). Na língua grega “cordeiros” e
“ovelhas” correspondem respectivamente a arnía e prôbata. No Antigo Testamento não há
diferença entre os dois termos, indicando assim a totalidade do povo de Israel e, no Evangelho
a totalidade dos discípulos de Jesus já está prefigurada nos 153 peixes que estão na rede. Mas
para os Padres como, por exemplo, Ambrósio de Milão, “cordeiros” se referiria aos
responsáveis pela Igreja e “ovelhas” corresponderiam ao povo de Deus em geral. O que o
evangelho de João pretende indicar é que toda a Igreja (pastores e rebanho) é confiada a
Pedro. Deste modo, a missão pastoral de Pedro tem um alcance universal e uma
especificidade em relação aos outros apóstolos, pois ele foi constituído como “Cabeça” do
Colégio Apostólico e Pastor da Igreja universal. Por isso, Pedro é pastor entre os pastores
(cordeiros) e vela sob todo rebanho de Cristo (ovelhas).
Também a tarefa de Pedro vem assinalada por dois verbos que correspondem à palavra
“apascentar”: bóskein significa providenciar o alimento para os animais e poimaínein é o
cuidado, responsabilidade e autoridade (condução, defesa e governo) que lhe foi delegada,
pois no diálogo, Pedro não é chamado de “pastor”, mas recebe o ofício de apascentar as
ovelhas de Jesus. O rebanho não é seu, mas de Cristo, o único Pastor (cf. Jo 10). Pedro e os
apóstolos participam da autoridade de Cristo, Bom Pastor.
O mais importante, porém, é a característica fundamental exigida por Cristo a Pedro
para apascentar o rebanho, que é, em primeiro lugar, o seu amor pessoal a Jesus. Para a
pergunta de Jesus – “Tu me amas?” –, Pedro responde com total sinceridade, consciente de
sua fraqueza: “Tu sabes [tudo] que eu te amo!”. “Para indicar o amor de Pedro também
ocorrem dois verbos. Jesus utiliza agapáo (vv. 15.16) e depois filéo (v. 17), enquanto Pedro
só usa o segundo (vv. 15.16.17)” (LÉON-DUFOUR, 1998, p. 206). O amor agapáo é o amor
oblativo que exige doação e entrega, enquanto que filéo é o amor próprio das relações
humanas. Ainda que o amor de Pedro não estivesse preparado para a doação que seu chamado
e missão lhe exigia, Jesus na última vez que lhe pergunta – “Tu me amas?” – usa o verbo
filéo, que designaria um “amor de amizade”, pois é o modo como que o Apóstolo pode lhe
corresponder naquele momento, ou seja, a fraqueza do seu amor não impede o “pescador” de
se tornar “pastor”.
73
Segundo a eclesiologia de Hans Urs von Balthasar, há uma dupla unidade da Igreja
fundada na missão da Virgem Maria e do apóstolo Pedro, que os faz dois “símbolos reais”
polivalentes da Igreja una (LEAHY, 2005, p. 140). Para ele, “Maria” representa a inspiração
carismática e profética (dimensão subjetiva) e “Pedro” a forma e estrutura ministerial,
hierárquica e institucional (dimensão objetiva) da Igreja, sendo ambos os princípios oriundos
da ação do Espírito Santo na Igreja. “Instituição” e “carisma” sempre foram na realidade
histórica da Igreja, realidades difíceis de unir, existindo entre elas uma “tensão” permanente.
Mas para Balthasar, o carisma e a instituição formam um único corpo vivo, que é a Igreja,
iluminado pelo Espírito. E que para que isto aconteça na realidade, é preciso que toda a Igreja
seja “mariana” e “petrina”, de tal modo que, metaforicamente, “Pedro está em Maria” e
“Maria está em Pedro” (Ibid., 2005, p. 147). Contudo, o princípio mariano é mais importante
porque nele “o papado encontra sua „morada‟” (Ibid., 2005, p. 154) e, quando influenciado
pelo princípio mariano, o papado que exerce na Igreja um carisma de unidade, torna-se
“maternalmente auxiliador” (Ibid., 2005, p. 218) de todas as realidades humanas. Em outras
palavras, quando o papado assume um perfil mariano, a autoridade que exerce transparece a
maternidade da Igreja que como mãe gera, acolhe, alimenta, educa, corrige e faz crescer na fé.
É notável como nos últimos pontificados, especialmente desde o Concílio Vaticano II, os
papas demonstraram uma devoção especial à Mãe de Jesus e, como isso influenciou
fortemente no modo como conduziram a Igreja, principalmente no diálogo com o mundo
contemporâneo e com todas as forças “divergentes” na complexa tessitura eclesial.
74
Naquela imagem quebrada, ícone da unidade restaurada, encontrada nas malhas das
redes de um pescador, acolhida no seu barco e levada para o interior da sua casa há uma
mensagem especial para o Santo Padre e todos os pastores: “Pedro deve olhar para Maria”
(LEAHY, 2005, p. 218) a fim de exercer na Igreja, como “cabeça”, o seu carisma de unidade,
sendo um pastor com amor de mãe.
A imagem de Nossa Senhora Aparecida, contemplada a certa altura no seu nicho, que
obriga a todos a voltar seu olhar para o alto, por causa dos seus 38 centímetros, é quase
“invisível”. Além do tamanho tão reduzido para as dimensões da gigantesca basílica, o manto
e a coroa praticamente a escondem, como um véu a velar e desvelar o mistério, permitindo
entrever da imagem principalmente o rosto e as mãos que, segundo a nossa reflexão
eclesiológica, representam iconograficamente a vida cotidiana da Igreja que nasce da
comunhão trinitária, se alimenta da oração e cresce com o anúncio do Evangelho da alegria.
Sob a fronte de Nossa Senhora Aparecida há “um broche com três pérolas pendentes”
(RIBEIRO NETO, 1970, p. 184) e acima do broche e sobre as orelhas há uma rosa,
totalizando três, que ornamentam a cabeça da Virgem. Com que intenção o autor da imagem
esculpiu seu rosto desta maneira? Talvez quisesse retratar Maria como uma esposa que se
enfeitou para o seu marido (cf. Ap 21,2) ou como uma rainha pronta para se colocar no
vestíbulo do rei (cf. Est 5,1b)? Não sabemos exatamente, mas podemos dizer que segundo o
significado bíblico do número “três”, os três pendentes representam a Santíssima Trindade
(SILVA, 2017, p. 75) como três raios a iluminar o rosto de Maria, como os raios do sol a
envolver todo o seu corpo, como se lhe conferisse uma cor morena como da jovem do Cântico
dos Cânticos: “Sou morena, mas formosa [...] Não olheis eu ser morena: foi o sol que me
queimou” (Ct 1,5-6).
Na iconografia mariana do Oriente é comum sinalizar a presença da Santíssima
Trindade na Virgem com três estrelas que, traçando uma linha imaginária entre elas, formam
o triângulo, um símbolo trinitário que representa a unidade do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, de tal forma que o rosto de Maria fica no interior deste “triângulo imaginário”. Quando
76
representada com o Menino no colo, ele está posto sobre uma das estrelas que ornamentam o
seu manto.
Como Maria é símbolo da Igreja e os três pendentes são uma representação da
Trindade, vamos empreender uma reflexão acerca da Igreja como ícone da Trindade.
todo reducionismo eclesiológico: tanto o secular, que faz da Igreja uma presença
entre as presenças da história – limitando-se à consideração de sua incidência
histórica visível –, como a espiritualista, que exalta a dimensão invisível da
realidade eclesial a ponto de sacrificar a sua concretude humana (FORTE, 1987, p.
17).
Segundo o teólogo Bruno Forte, pela ação da vontade de Deus, a Igreja tem uma
origem, forma e destinação trinitária, o que significa dizer que ela veio da Trindade, é ícone
da Trindade na sua estrutura e forma de comunhão e, orienta o seu fim escatológico para a
unidade plena no seio da Trindade (1987, p. 19), pois Deus quis “elevar os homens à
participação da sua vida divina” (LG, n. 2). Como “mistério”, a Igreja participa do plano de
Deus revelado em Cristo através da História da Salvação, de tal modo que não é apenas uma
realidade humana inserida em um contexto social, político, etc., pois ela se origina do
desígnio, missão, obra e ação do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Assim, a Igreja por meio de Cristo foi instituída como sacramento da união entre Deus
e o homem e da unidade de todo gênero humano (cf. LG, n. 1), instrumento universal de
salvação e meio para participar da vida gloriosa (cf. LG, n. 48). A Igreja “em sua forma
visível e histórica, é o sacramento – isto é, o sinal e o instrumento escolhido – do desígnio
salvífico de unidade, que vai da criação à parusia” sendo, então, “a participação histórica na
unidade trinitária” (FORTE, 1987, p. 20). Na história da Igreja, a Trindade é seu passado,
presente e futuro. Segundo Forte,
no intervalo entre a primeira vinda de Cristo e o seu retorno glorioso, a Igreja busca
ser fiel ao mundo presente e fiel ao mundo por vir, abrigada à sombra do Espírito, tal
como a Virgem acolhedora, Maria, membro por excelência e ícone da Igreja,
alimentada por quanto já lhe fora dado para crescer no longo advento da história,
rumo àquilo que nela ainda não se realizara (1987, p. 24).
Dizer que a Igreja tem uma natureza trinitária significa que ela age em nome da
Trindade por “participação” e “imitação”. Por participação entende-se a sua origem e meta
enquanto que imitação quer dizer que no mundo a Igreja é imagem da Trindade, muito
embora a experiência prática e vivencial do mistério trinitário se oculte no seu paradoxal
fenômeno histórico e na sua fragilidade humana e institucional.
Mas, mesmo condicionada à fraqueza dos seus membros e, apesar disso, a Igreja não
pode ser entendida apenas como uma construção humana ou simplesmente como produto de
uma evolução histórica, nem mesmo a nível institucional. Sem menosprezar estas condições –
humana, histórica e institucional – é preciso ter em conta a vontade de Deus para com a Igreja
dentro da perspectiva do mistério da Trindade e da economia da salvação. Por sua natureza, a
Igreja transcende o tempo e o espaço, ainda que condicionada aos limites humanos e aos
pecados e erros dos seus membros. Sem essa dimensão divina e sobrenatural da Igreja,
seremos constantemente inclinados a fazer apenas um péssimo juízo do seu percurso histórico
e, a rotulá-la como retrógrada, autoritária, opressora, etc.
78
Quem passa diante da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida sem reparar
no diadema que embeleza a sua fronte, ainda que se persigne com o sinal da cruz, pode não
ter a consciência suficiente do quanto aquela representação de Maria – símbolo para a própria
Igreja e ícone do mistério da Trindade – está repleta de significado trinitário, cristológico e
pneumático. E mais do que isso, quantos cristãos batizados na Igreja precisam redescobrir o
significado e retomar com renovado ardor o compromisso do seu Batismo.
A Virgem Maria viveu na sua existência o mistério trinitário, vivendo nele
mergulhada, tal como a imagem de Aparecida que por anos permaneceu imersa no fundo do
rio Paraíba, um símbolo batismal por excelência, pois representa que todo batizado em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo ao tornar-se filho de Deus e membro do Corpo de Cristo
sob a ação do Espírito, foi convidado a mergulhar na vida divina (cf. 2Pd 1,4).
De fato, esta não é uma imagem “com as quais estamos acostumados, [pois] não está
desenhada como a figura de alguém que olha os homens, mas de alguém que está
completamente embevecida do amor divino, absolutamente fora de si e derramada em Deus”
(SILVA, 2017, p. 71) tal como se estivesse no arrebatamento de um êxtase espiritual, coisa
semelhante ao que poderíamos imaginar na hora da Anunciação (cf. Lc 1, 26-38), durante
aquele diálogo aberto entre o céu e a terra que inaugurava um novo modo de se relacionar
79
com Deus através da oração em Cristo e com Cristo. Desde aquele momento, aprendeu-se um
novo modo de orar que consiste em participar da oração de Cristo ao Pai sob a unção do
Espírito Santo. E “as mãos de Nossa Senhora, e sua própria atitude recolhida, são um convite
para a oração e nos chama à oração” (2017, p. 72). João Paulo II exprimiu-se deste modo
sobre as mãos de Nossa Senhora Aparecida quando esteve no Brasil em 1980:
21
Segundo o Catecismo da Igreja Católica, a oração é uma necessidade vital (cf. CIC, n. 2744).
80
Como os Apóstolos, juntamente com Maria, “subiram para a sala de cima” e ali
“unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração” (At 1,13-
14), assim também hoje nos reunimos aqui no Santuário de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida, que é para nós nesta hora “a sala de cima”, onde Maria, Mãe
do Senhor, se encontra no meio de nós. Hoje é ela que orienta a nossa meditação; ela
nos ensina a rezar. É ela que nos mostra o modo como abrir nossas mentes e os
nossos corações ao poder do Espírito Santo, que vem para ser transmitido ao mundo
inteiro (BENTO XVI, S.S., Discurso (13.05.2007)).
Foi na “escola de Maria” que aqueles pescadores, seus familiares, amigos e vizinhos
começaram a se reunir todos os sábados para a reza do terço no oratório de paus construído
por Atanásio Pedroso na sua própria casa, segundo consta no relato histórico da “aparição” da
imagem de Nossa Senhora da Conceição, longe da sede paroquial e sem a presença de
clérigos ou religiosos, como recordação das primeiras comunidades cristãs que se reuniam nas
casas para orar, cantar os louvores e repartir o pão com alegria e singeleza (cf. At 2,42-47). O
protótipo da comunidade primitiva serve de modelo e inspiração para a renovação da Igreja
em todos os tempos. Assim, no Brasil, aquele culto familiar e popular, que cresceu
exponencialmente até se transformar numa devoção nacional, foi um germe da expansão da
Igreja no Brasil e recorda algumas características que a Igreja não deve descuidar na sua
missão: atenção às periferias sociais e existenciais, opção preferencial pelos pobres, presença
nas famílias e nos meios populares, simplicidade, proximidade e encontro. Essas
características são tão fortes em Aparecida que apesar da enormidade da Basílica, ela não
perdeu a sua característica de casa familiar, onde Maria é invocada como Mãe que conduz
para o seu Filho que nos revela o Pai. Por isso, o Papa Bento XVI recordou quando lá esteve:
“o Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida [...] é Morada de Deus,
Casa de Maria e Casa de Irmãos” (Discurso (12.05.2007)). E, é a partir de casa que a mãe
ensina os filhos a orar!
3.1.2.2.1. Os olhos
Na escola de Maria aprendemos a orar com o “olhar”! Para entrar no interior de nós
mesmos para o encontro com o Senhor, na intimidade, é preciso ter os olhos fixos em Jesus
(cf. Hb 12,2), pois com Ele aprendemos a falar com o Pai (cf. Lc 11,1-4) participando da sua
oração, orando com ele e nele sob a ação do Espírito que habita em nós (cf. 1Cor 3,16) e nos
ajuda a orar como convém (cf. Rom 8,26) a fim de entoar “aquele hino que é cantado por todo
o sempre nas habitações celestes” (SC, n. 83).
O cantor e compositor Renato Teixeira traduziu na canção “Romaria” como o “olhar”
é a primeira oração de quem não sabe rezar: “Como eu não sei rezar, só queria mostrar meu
olhar, meu olhar, meu olhar!”. O início de qualquer relação começa pelo olhar, que é sempre
anterior à palavra. E apenas uma relação de intimidade profunda é capaz de dispensar as
palavras e permanecer no olhar.
Maria, nosso modelo de oração, nos ensinar a orar com o olhar. No Santuário Nacional
a sua pequena imagem não ocupa o centro do olhar, mas está aos fundos, numa das quatro
82
naves laterais. O centro do olhar é o altar e o Cristo crucificado, assim como toda a
assembleia, que “ela” contempla de onde está. “A contemplação de Cristo tem em Maria o
modelo insuperável” porque “à contemplação do rosto de Cristo, ninguém se dedicou com a
mesma assiduidade de Maria”, pois ela “vive com os olhos fixos em Jesus” (RVM, nn. 10-
11).
O olhar da Bem-Aventurada Virgem Maria, segundo o Papa João Paulo II no seu
comentário à oração do Rosário, que é uma oração marcadamente contemplativa, é um olhar
com múltiplas facetas: interrogativo, penetrante, doloroso, radioso e ardoroso.
Desde então o seu olhar, cheio sempre de reverente estupor, não se separará mais
dele. Algumas vezes será um olhar interrogativo, como no episódio da perda no
templo: “Filho, porque nos fizestes isto?” (Lc 2,48); em todo caso será um olhar
penetrante, capaz de ler no íntimo de Jesus a ponto de perceber os seus sentimentos
escondidos e adivinhar suas decisões, como em Caná (cf. Jo 2,5); outras vezes, será
um olhar doloroso, sobretudo aos pés da cruz, onde haverá ainda, de certa forma, o
olhar da parturiente, pois Maria não se limitará a compartilhar a paixão e a morte do
Unigênito, mas acolherá o novo filho a ela entregue na pessoa do discípulo predileto
(cf. Jo 19,26-27); na manhã da Páscoa, será um olhar radioso pela alegria da
ressurreição e, enfim, um olhar ardoroso pela efusão do Espírito no dia de
Pentecostes (cf. At 1,14) (RVM, n. 12).
3.1.2.2.2. As mãos
As mãos postas, como na imagem de Aparecida, são um gesto simbólico que indica a
oração. As mãos são muito importantes para a realização de diversas atividades. Ao longo do
dia elas estão sempre “desencontradas” para desempenhar numerosos trabalhos. Mas quando
83
unidas, representam a harmonia de todo ser que, antes, durante ou após a jornada do dia se
une para concentrarem corpo, alma e espírito para o encontro com Senhor. É como fechar as
portas e as janelas dos sentidos, sempre tão distraídos, para estar todo na presença de Deus.
As mãos de Nossa Senhora Aparecida nos indicam que além da necessidade de orar sem
cessar (cf. 1Ts 5,17), é preciso orar bem e de modo digno, atento e devoto e unir dois aspectos
necessários para o equilíbrio da nossa vida diária: contemplação e ação.
Entretanto, a contemplação de Maria não significa inércia ou passividade, mas “êxtase
em relação a Deus e em relação ao homem” (KAUFMANN, 1988, p. 315). O seu olhar à
medida que se volta para Cristo contempla o seu interior, colocando-se diante do seu próprio
mistério na presença Daquele por quem ela se sente olhada e amada. O fruto da sua
contemplação não é estéril, mas a impele para frente, para o serviço. Na visita à Isabel (cf. Lc
1,39-56), a partir da sua experiência pessoal com Deus (cf. Lc 1,26-38), ela se coloca à
disposição de sua prima. No dizer de Hans Urs von Balthasar sobre o papel de Maria hoje,
“cada vez mais em sua vida sua experiência pessoal contemplativa é uma experiência para os
outros” (apud KAUFMANN, 1988, p. 320), sua contemplação se transforma em serviço para
a Igreja e para o mundo. É algo que precisamos assumir continuamente para o êxito de toda
pastoral na Igreja: a oração e a contemplação precedem o serviço. Para falar de Deus e
realizar as obras de Deus é preciso falar com Deus!
A alma de todo apostolado, célebre obra do Padre Chautard, mostra que a união da
vida ativa e contemplativa, é condição para a fecundidade das obras. O cardeal vietnamita
Van Thuan, nos treze anos de prisão durante o regime comunista que imperava no seu país,
longe da sua sede episcopal, aprendeu a discernir e a escolher entre Deus e as obras de Deus
(2000, p. 26), o que segundo o evangelho significa escolher a melhor parte (cf. Lc 10,42). O
próprio Jesus é o melhor exemplo disso, já que não realizava nenhuma obra sem antes entrar
na intimidade com o Pai (cf. Lc 5,16). Toda experiência de Deus que fazemos é, realmente,
intransferível, porém jamais está alienada da entrega e do serviço generoso que somos
chamados a fazer. A oração, justamente, nos faz sensível aos necessitados e nos torna
solidários com os seus destinos, assim como Maria que se compadeceu dos noivos daquela
festa de casamento ao dizer para Jesus: “Eles não têm mais vinho” (Jo 2,3). Segundo o Papa
Francisco, Maria...
Hoje nós, depois de um longo caminho, vimos a este lugar de descanso, porque o
olhar de Nossa Senhora é um lugar de descanso, para contar-lhe nossas coisas. Nós
necessitamos de seu olhar terno, seu olhar de Mãe, essa que destapa a nossa alma.
Seu olhar que está cheio de compaixão e de cuidado. E por isso hoje lhe dizemos:
“Mãe, presenteia-nos o teu olhar”. Porque o olhar da Virgem é um presente, não se
compra. É um presente dela. É um presente do Pai e um presente de Jesus na cruz
[...] O olhar de Maria nos ensina a olhar os que naturalmente olhamos menos, e que
mais necessitam: os mais desamparados, os que estão sozinhos, os doentes, os que
não têm com que viver, os meninos de rua, os que não conhecem Jesus, os que não
conhecem a ternura de Nossa Senhora, os que estão mal [...] Que não nos roubem o
olhar de Nossa Senhora, que é olhar que nos fortalece a partir de dentro. Olhar que
nos faz fortes, de fibra, que nos faz irmãos, que nos faz solidários. Mãe (...) que este
olhar me ajude a olhar dos demais, a me encontrar com Jesus Cristo, a trabalhar para
ser mais irmão, mais solidário, mais “encontrado” com os demais. E assim, juntos,
possamos vir a esta casa de descanso sob a ternura do teu olhar. Mãe, presenteia-nos
o teu olhar! (apud AWI MELLO, 2015, p. 54-55).
85
Aquela imagem tão “olhada”, contemplada, venerada e amada “carrega uma profunda
mensagem de oração” (SILVA, 2017, p. 73) desde “a densidade das orações de um monge
beneditino que a esculpiu e a densidade exponencialmente multiplicada pelos cânticos e
orações que nos últimos três séculos, devotos de todas as partes do Brasil elevaram a Deus,
como uma mesma prece ininterruptamente prolongada” (Ibid., 2017, p. 72). Nossa Senhora
Aparecida é um ícone da união íntima com Deus através da oração!
não há quem a testemunhe e anuncie? Este é o mesmo drama do etíope que lendo uma
passagem da Escritura não a compreendia. Por isso, o diácono Filipe o interrogou – “Entendes
o que lês?” – ao que ele respondeu: “Como o poderia se ninguém me explicar?” (At 8,30-31).
A partir daquele momento Filipe evangelizou e batizou o eunuco que “prosseguiu na sua
jornada com alegria” (v. 39), enquanto o diácono “anunciava a Boa Nova em todas as cidades
que atravessava” (v. 40) provocando grande alegria (cf. At 8,8). Assim como aquele eunuco
etíope, encontra-se o homem de hoje diante do conceito de “felicidade”, porém sem
compreendê-lo e perdido sem saber onde encontrar a verdadeira alegria. É preciso ter o ardor
de Filipe e de tantos quantos nos precederam para anunciar com renovado ardor e entusiasmo
que a alegria do Senhor é a nossa força (cf. Nm 8,10) e que Ele é a esperança que não
decepciona (cf. Rom 5,5). É preciso que o homem de hoje encontre no ser cristão um
testemunho de alegria e esperança.
Esta alegria que brota discreta dos lábios da Virgem é a alegria do Evangelho que
nasce do encontro com Jesus, como afirma o Papa Francisco: “A alegria do evangelho enche
o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por
Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo,
renasce sem cessar a alegria” (EG, n. 1). O Sínodo sobre a Nova Evangelização (2012) e a
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium são um convite a uma nova etapa evangelizadora na
vida da Igreja marcada por algo que está logo no início do anúncio do Evangelho, no
momento da Anunciação (cf. Lc 1,26-38): a alegria. Para tanto, os evangelizadores precisam
ser evangelizados e evangelizantes, precisam ter “espírito”, isto é, “uma moção interior que
impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária” (EG, n. 261). E para
recobrar o espírito é necessário tomar a decisão de renovar o encontro com Jesus, procurá-Lo,
voltar para Ele de todo coração e com todo o ser. No encontro com ele, Jesus nos perdoa e
restitui a alegria roubada pelo pecado (cf. EG, n. 3).
A Sagrada Escritura está repleta de testemunhos de alegria de evangelizadores que não
foram indiferentes ou alheios às tristezas do seu tempo, mas com voz profética anunciaram a
esperança no porvir. O Antigo Testamento é um prenúncio da alegria da salvação dos tempos
messiânicos. O anúncio dos profetas era um convite à alegria exultante pela expectativa da
chegada do Senhor (cf. Is 9,2; 12,6; 40,9 / Zc 9,9). É também um testemunho da alegria do
nosso Deus que é fonte e centro de irradiação da alegria. Um Deus que dança e grita de
alegria por nós. E onde Ele está não há tristeza, mas festa (cf. Sf 3,17).
No Novo Testamento a alegria é transbordante. Os primeiros capítulos do evangelho
de Lucas, especialmente, são um testemunho da alegria no Espírito Santo que enche o coração
87
e a alma da Virgem Maria, de Isabel e de João (cf. Lc 1,41.47 / Jo 3,29), dos pastores do
campo de Belém, alegria que se originou de um anúncio que veio do céu pela boca dos anjos:
o Senhor está no meio de ti! (cf. Lc 2,10; Sf 3,15). Quanta alegria Jesus expressa no
evangelho pela acolhida da Palavra entre os pobres e humildes, pelo pecador que se converte
e faz este júbilo atingir as alturas (cf. Lc 15,7). A alegria no Evangelho é a alegria do Reino
de Deus, que é uma alegria exigente, pascal, que sobrevive em meio às perseguições e
tribulações da vida apostólica (cf. At 13,52). A mensagem do Evangelho é uma fonte e uma
promessa de alegria que consiste em ver o Senhor (cf. Jo 16,20-22) e repartir o pão (cf. At
2,46), ou seja, é comunhão com Deus e com os irmãos. Ninguém é feliz sozinho. Por isso
onde passavam os discípulos causavam e transmitiam alegria (At 8,8.39; 16,34). Esse é o
perfil dos evangelizadores para uma nova evangelização, embora ainda haja alguns cristãos
que vivam uma “quaresma sem páscoa” (cf. EG, n. 6) ou como costuma dizer o Papa
Francisco: cristãos com “cara de cemitério”.
É preciso recuperar a alegria de evangelizar (EN, n. 80). A evangelização não é apenas
mais uma atividade da Igreja, mas o fundamento da missão da Igreja. A causa missionária é a
primeira de todas, “é o paradigma de toda a obra da Igreja” (EG, n. 15). O Apóstolo dos
povos dizia convictamente: “Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; é, antes,
necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9,16).
Evangelizar também não é uma atividade que nasce da iniciativa pessoal, mas é, em primeiro
lugar, obra de Deus que nos quis chamar para cooperar com Ele. A iniciativa é sempre de
Deus (cf. 1Jo 4,19), Aquele que dá crescimento a todas as coisas (cf. 1Cor 3,17). Evangelizar
é uma missão da Igreja! Essa convicção é necessária para manter a alegria e evitar a
frustração como se tudo dependesse da nossa capacidade e performance pessoal.
Outra coisa importante é o testemunho. Uma “Igreja em saída” que evangeliza é uma
comunidade que vive a fé com alegria e que por onde passa não faz proselitismo, mas partilha
uma alegria que é capaz de causar admiração e estupor. Dizia o Papa Bento XVI aos bispos
latino-americanos e caribenhos: “A Igreja não cresce por proselitismo, mas por „atração‟”
(Discurso (13.05.2007)).
foi um elemento essencial para manter a fé, especialmente entre o povo simples de
Deus, em circunstancias difíceis da história religiosa do Brasil. Não havia tanta
organização da Igreja no tempo do império ou da república como hoje, com dioceses
e paróquias bem organizadas para o atendimento espiritual do povo. Fora dos
grandes centros, e especialmente na área rural, os cristãos não tinham muito contato
com uma liturgia frequente, com a catequese ou com a pregação dominical. Faltava
um clero, religioso e diocesano, suficiente para cuidar da maioria do povo cristão.
Às vezes, um padre aparecia uma ou duas vezes por ano, para atender confissões,
celebrar missa, casamentos e batismos. Diante de uma evangelização deficiente, foi
por meio de Maria que o povo se abriu à mensagem evangélica. Em Maria o povo, a
partir de suas raízes culturais, descobriu a porta de entrada para assimilar o
Evangelho e a fé do povo do interior foi mantida graças às devoções marianas.
Muitas vezes, o que ajudou as pessoas a rezarem a terem uma experiência de Deus,
sem a presença dos padres, foi a reza do terço em família e/ou na comunidade.
Vimos esse fato claramente na devoção a Nossa Senhora de Aparecida (2017, p. 9).
A Virgem Maria na América Latina é uma presença fecunda de mãe tanto que,
segundo Caprani, os nossos povos desde as manifestações de Guadalupe, de Aparecida, entre
outras, acolheu sua presença não como uma “estrangeira” ou “deportada” da Europa, mas
inserida na cultura do povo, vestindo as suas vestes, assumindo a sua cor morena, falando o
seu próprio idioma e apresentando-se como Mãe nossa, a tal ponto que até as devoções
marianas de além-mar sofreram aqui inculturações para a realidade latino-americana.
“Aparecida” é um exemplo claro de uma devoção portuguesa a Nossa Senhora da Conceição
adaptada ao contexto brasileiro. Mas sem negar a matriz mariológica europeia-medieval que
apresenta a Virgem Maria como “Senhora”, “Rainha”, “Vencedora”, a ternura da maternidade
de Maria, que disse ao índio Juan Diego, “Por acaso não estou eu aqui, que sou tua Mãe?” foi
que contagiou e predominou. Mesmo com a Bula papal que declarava Nossa Senhora
Aparecida como Rainha e Padroeira do Brasil (1930), no alvorecer da República, predominou
o carinhoso apelativo “Mãe Aparecida”.
Apesar de não carregar o Menino Jesus no colo, a pintura misteriosa de Guadalupe na
tilma do índio e a imagem singular de Aparecida na rede dos pescadores apresentam Maria
grávida, “como todas as imagens de Nossa Senhora da Conceição” (SILVA, 2017, p. 81)
segundo a iconografia imaculista inspirada em Ap 12. Este não é um dado irrelevante, mas
fundamental, pois são expressão da missão de Maria que consiste em gerar Cristo nos cristãos
assim também como Paulo que gerou filhos pela pregação da Palavra, tal como afirmou o
abade São Guerrico (século XII) num de seus sermões:
Maria deu à luz um Filho único. Assim como ele é Filho único de seu Pai nos céus, é
também Filho único de sua mãe na terra. Ora, essa única Virgem Mãe, que possui a
glória de ter dado à luz o Filho único de Deus Pai, abraça este mesmo Filho em
todos os seus membros. Não se envergonha de ser chamada mãe de todos aqueles
nos quais vê a Cristo já formado ou em formação [...] A santa mãe de Cristo, que se
reconhece mãe dos cristãos em virtude desse mistério, mostra-se também sua mãe
pelo cuidado e amor que tem por eles. Não é insensível para com os filhos, como se
não fossem seus; suas entranhas, fecundadas uma só vez mas nunca estéreis, jamais
se cansa de dar à luz frutos de piedade.
Se o Apóstolo, servo de Cristo, uma e outra vez dá à luz filhos pelos seus cuidados e
ardente piedade, até Cristo ser formado neles (cf. Gl 4,19), quanto mais a própria
mãe de Cristo! E Paulo, de fato, os gerou, pregando-lhes a palavra da verdade pela
91
qual foram regenerados; Maria, porém, gerou-os de modo muito mais divino e santo,
ao dar à luz a própria Palavra. Louvo realmente em São Paulo o ministério da
pregação; porém admiro e venero muito mais em Maria o mistério da geração
(LITURGIA DAS HORAS IV, p. 1546-1547).
Se a missão de Maria, que consiste em gerar Cristo nos cristãos, não é semelhante à
missão da Igreja que gera os filhos de Deus pela evangelização, se não poderia ser comparada
analogamente a um “parto” pelas dificuldades e exigências que este apresenta, mas que ao
final das contas gera muita alegria, pois quando a mãe toma seu filho nos braços, nem se
recorda mais das dores e do sofrimento que teve, mas alegra-se com o fruto das suas
entranhas?! Da mesma forma não acontece com a Igreja, quando após anunciar o Evangelho
suscita no coração dos homens uma adesão a Cristo confirmada pelo Batismo?! Sem dúvida
umas das maiores dificuldades da Igreja hoje, ad intra ad extra, é fazer com que o Evangelho
se faça “carne” na realidade, assim como a mulher grávida de Ap 12 prestes a dar à luz, teve
de enfrentar a fúria do Dragão que a perseguia.
Este abade do século XII também afirmou a relação filial dos cristãos para com a Mãe
de Jesus:
Observa, agora, se os filhos também não parecem reconhecer a sua mãe. Impelidos
como que por um certo natural afeto de piedade, recorrem imediatamente à
invocação do seu nome em todas as necessidades e perigos, como crianças no colo
da mãe (LITURGIA DAS HORAS IV, p. 1547).
uma vez mais, como aurora luminosa e guia seguro do nosso caminho” (NMI, n. 68). Mas a
designação de Maria como “estrela” é bem antiga, remontando a São Bernardo de Claraval
(+1153), o “cancioneiro da Virgem”, que exortava aos fiéis em todas as circunstâncias a
“olhar a estrela” e “invocar a Maria”. Por isso, o Papa Francisco termina sua exortação sobre
a nova evangelização invocando Maria como Estrela da nova evangelização com as seguintes
palavras:
Esta Igreja que com nova lucidez e nova decisão quer evangelizar no fundo, na raiz,
na cultura do povo, volta-se para Maria para que o Evangelho se torne mais carne,
mais coração na América Latina. Esta é a hora de Maria, isto é, o tempo do Novo
Pentecostes a que ela preside com sua oração, quando sob o influxo do Espírito
Santo, a Igreja inicia um novo caminho em seu peregrinar. Que Maria seja nesse
caminho “estrela de evangelização sempre renovada” (EN 81) (DP, n. 303).
Quando os peregrinos dos quatro cantos do país, e até de outros lugares, adentram a
Basílica de Nossa Senhora Aparecida, o maior santuário mariano do mundo para abrigar uma
imagem tão pequena, vão imediatamente vê-la! E são muitos que chegam chorando ou que se
colocam aos prantos diante da sua imagem e, quem não se emociona quando passa na sua
frente, às vezes numa troca de olhares tão rápida que só dá tempo para dizer um “Ave!”, por
causa da multidão que se espreita para vê-la! Quando sobem de um lado da rampa e descem
pelo outro saem “transfigurados” porque a viram e se contagiaram da alegria serena dos seus
lábios discretos semiabertos a esboçar mimoso sorriso. E a partir daquele “encontro” vão à
Missa, buscam o Sacramento da Reconciliação, rezam o Rosário, sobem a colina da Via-
Sacra, se confraternizam com os familiares e amigos. Assim, a alegria volta e novos olhares e
93
novos sorrisos se abrem para a esperança de um mundo novo, pois ao longo destes três
séculos ela tem sido uma bênção para todos. Por isso lhe “agradecemos tanto carinho, tanto
cuidado” (Excertos da Oração do Ano Jubilar), tantos “olhares” e tantos “sorrisos” que
sempre foram “fonte e causa de nossa alegria” (cf. Ladainha Lauretana).
- Brilha por luz alheia, do sol; também a Igreja é comunidade relativa a Cristo, que
brilha com a luz de Cristo, verdadeiro sol, luz de todas as nações (Lumen Gentium).
- Morre ante o sol, oculta-se para que o sol brilhe: dimensão transitória e provisória
da Igreja, que cessará quando o reino de Deus chegar à plenitude definitiva e Deus
for tudo em todos.
- Gera e dá força (por exemplo as marcas, a fertilidade na geração...): dimensão
dinâmica e criadora da Igreja (1993, p. 66-67).
A Igreja como mysterium lunae é um símbolo eclesiológico antigo muito querido aos
Santos Padres, especialmente a Ambrósio e Agostinho, pois reflete o itinerário da Igreja
enquanto peregrina que caminha neste mundo: ela cai, se levanta, mas nunca desaparece, pois
ela é como a “mulher apocalíptica” com a lua debaixo dos pés, isto é, existe para além das
vicissitudes históricas, indicando a sua eternidade no tempo e a sua presença entre o céu e a
terra.
22
“Localizada na nave sul o portal da Virgem ou trono de Nossa Senhora, é o local onde a imagem de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida está, imagem pescada nas águas do rio Paraíba do Sul em 1717. Uma grande
faixa em ouro, um totem, tem-se a presença do Invisível, como um sopro com anjos, indicando ser um lugar
teofânico, Deus se revela. Os arcanjos Gabriel, Miguel e Rafael indicam-nos a presença do Divino neste espaço
que com o seu sopro, vem representando a vida no local pelas faixas brancas em movimento. Na base está o
trono da mãe de Deus, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil. A Mulher
revestida de Sol como descrita na citação do Apocalipse e que nos traz o grande Sol que é Cristo [grifo meu].
Ladeando a Imagem, encontram-se, portanto, as doze mulheres do Antigo Testamento que prefiguraram Maria e
com a representação de suas virtudes, indicando aquela que Deus escolheu por completo: Maria de Nazaré. A
Imagem está entronizada em um nicho envolvido por uma placa em ouro com o sol, a lua e doze estrelas [grifo
meu]. Que além de mostrar a cena da pesca milagrosa, após o seu encontro no rio Paraíba do Sul, pelos
pescadores João Alves, Felipe Pedroso e Domingos Garcia, tem-se a frase que diz: „O Espírito e a Esposa dizem
vem, Senhor Jesus. Amém‟ (Ap. 22,17)” (DA CUNHA. In: ACADEMIA MARIAL DE APARECIDA, 2017,
pp. 154-156).
94
“A Igreja é comparada à lua, porque não resplandece por luz própria, mas graças à luz
de Cristo. Fulget Ecclesia non suo sed Christi lumine, escreve Santo Ambrósio”
(CAPPELLETTI, 2009) Como não é uma fonte de iluminação própria, a lua reflete a luz do
sol. Nesta interação “lua” e “sol” há como que um “matrimônio cósmico” que revela o
mistério de amor esponsal entre Cristo e a sua Igreja, conforme Ef 5, 25-27: “como Cristo
amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de purificá-la com o banho da água e santificá-la
pela Palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem mancha nem ruga, ou coisa
semelhante, mas santa e irrepreensível”.
A imagem de Nossa Senhora Aparecida, tão simples e discreta no seu tamanho, nas
suas formas até um pouco rudes e toscas, na sua cor de barro como se fosse queimada pelo sol
(cf. Ct 1,6), com a lua sob os seus pés (cf. Ap 12,1), representa iconograficamente o mistério
da Igreja-lua que “cai”, “levanta”, mas nunca “desaparece”, como a própria imagem coberta
de lodo, que foi retirada já quebrada, do fundo do rio e que muitos anos depois foi
despedaçada em dezenas de fragmentos, sendo novamente restaurada. Assim também deve ser
a Igreja que, obstante suas quedas e fraquezas, não deixa de irradiar a luz de Cristo sobre o
mundo, preferindo, assim, arriscar-se a acidentar-se, ferir-se e enlamear-se do que a fechar-se
em si mesma (cf. EG, n. 49).
Como a lua que não possui luz própria, mas é reflexo da luz solar, a presença
misteriosa da Igreja no mundo comunica aos homens a luz de Cristo que salva, conduz e
orienta. Neste mistério, a Igreja não se apresenta como centro ou como fim, mas sempre como
instrumento, pois, ao contrário, se “deixa de ser aquele „mysterium lunae‟ de que nos falavam
os Santos Padres” (FRANCISCO, S.S., Discurso (28.07.2013)).
CONCLUSÃO
O homem que procura o mistério de Deus poderá encontrá-Lo nas vicissitudes, nos
ritmos e nos tempos da história humana, em meio às coisas do cotidiano e, especialmente,
entre os simples, os pobres e os humildes. O contexto do encontro da imagem aparecidense é
um exemplo dessa manifestação divina escondida sob os véus da pobreza e da humildade.
Numa zona de cruzamento entre São Paulo e Minas Gerais, durante o período da extração do
ouro no Brasil, enquanto o governador da Capitania de São Vicente, o “Conde” de Assumar
visitava as regiões mineradoras e suas adjacências, a Virgem Maria se dignou a “aparecer” a
três pobres pescadores que, com um barco frágil e redes decadentes enfrentavam, a labuta, o
cansaço e o desânimo pelo insucesso da pesca num rio “imprestável”, numa circunstância de
carências, de falta de recursos, de fracasso e falimento, em que buscavam peixes, por ordem
das autoridades da Vila de Guaratinguetá, para saciar o apetite de tão ilustre visita. Mas, pela
imagem de Nossa Senhora “salva” das águas, “Deus chegou de uma maneira nova, porque
Deus é surpresa: uma imagem de barro frágil, escurecida pelas águas do rio, envelhecida
também pelo tempo. Deus entra sempre pelas vestes da pequenez”. O mistério torna-se,
portanto, um sinal divino revelado na realidade humana. E, para manifestar a sua ternura e
compaixão para com o nosso povo, “Em Aparecida, Deus ofereceu ao Brasil a sua própria
Mãe” (FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2013)) e, no “sinal da mulher”, ícone da Igreja
Servidora, Mãe e Esposa, a Igreja como que assume o papel de Maria na história.
Mistério que exige duas posturas próprias dos pescadores que a encontraram: contemplação e
acolhida.
Os pescadores, após o primeiro e o segundo lanço de rede, assim que encontraram a
imagem de Nossa Senhora da Conceição, após tantas tentativas frustradas para conseguir
algum peixe, ao contemplar aquela imagem maltratada e quebrada, não obstante a sua
simplicidade, rudeza, pequenez e morenice, reconheceram imediatamente: “É a Virgem da
Conceição!”. E desde aquele dia, há trezentos anos, são milhares de pessoas que da casa dos
humildes pescadores até a monumental Basílica, vão à Aparecida para contemplar a sua
imagem e se deixar “ver” pela Senhora.
Quando a recolheram das suas redes, primeiro o corpo e depois a cabeça, viram a
imagem da Imaculada Conceição, uma devoção já muito antiga, mas logo perceberam a
novidade: uma imagem pequenina, machucada, enegrecida, de traços simples, tosca e frágil.
Mas apesar de sua pequenez, “os pescadores não desprezam o mistério encontrado no rio,
embora seja um mistério que aparece incompleto. Não jogam fora os pedaços do mistério” e,
assim, eles a “agasalham: revestem o mistério da Virgem pescada”, “trazem para casa o
mistério” (FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2013)), porque tocaram com suas mãos o
“sagrado”. A artista plástica Maria Helena Chartuni, após restaurar a imagem de Nossa
Senhora Aparecida, depois do atentado de 1978, relatou que, quando viu aquela multidão no
vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo) aguardando ansiosa para rever a imagem
restaurada, confessou que, “Pela primeira vez a comoção me invadiu e percebi que havia
tocado em algo Sagrado” (CHARTUNI, 2016, p. 6).
A linguagem do Mistério
Quando contempla e venera uma imagem sacra, o homem está diante de três
realidades:
divina que almeja contemplar sem véus, mas face a face, não mais diante do ícone ou da
imagem que venera, mas do próprio Deus que deseja adorar em espírito e em verdade. Por
isso, enquanto comunicadora do Invisível, a imagem é um indicativo de uma realidade
sobrenatural que está para além do que se vê, ouve e sente de imediato.
2ª) O significado da existência: esta imagem causa uma impressão dentro do seu interior a
respeito de quem é Deus e de quem é aquele que O contempla, o homem. Por isso, a imagem
desafia para um diálogo com Aquele (a) que ela representa e com o homem mesmo que a
contempla. É o encontro entre duas interioridades que, sem a necessidade de trocar palavras,
se comunicam pelo olhar. Esta é, portanto, uma leitura do mistério de Deus e do homem, pois
não apenas pelo anúncio dos profetas, mas pela encarnação do seu Filho, o Pai deu-se a
conhecer a nós. Segundo Claudio Pastro, a imagem é o “mapa da vida”.
3ª) A memória de um povo: a fé não é apenas uma experiência pessoal, mas comunitária,
eclesial. Também a imagem sacra e religiosa pertence à experiência da comunidade de fé e de
culto. A imagem não é apenas memória do protótipo que ela representa e não está ligada
somente ao subjetivo do fiel, mas comunica a realidade de determinada comunidade, povo,
cultura ou nação, bem como da sua própria história, sendo capaz de formar a sua identidade
comum e de unificar as diferenças. Através da arte o homem faz memória e afugenta o
esquecimento.
A vivência do Mistério
99
O “corpo” e a “cabeça” separados e unidos estão a nos indicar que a Igreja Corpo de
Cristo, que tem Cristo como sua cabeça, é um mistério de unidade na diversidade que tem
no primado petrino um sinal visível de comunhão.
Os lábios sorridentes da Virgem parecem querer dizer algo a cada um de nós. Eles podem
representar a alegria do anúncio do Evangelho.
E a lua crescente que está sob os seus pés é um sinal do mysterium lunae da Igreja que
tendo a luz de Cristo refletida na sua face, deseja ardentemente iluminar a todos os
homens com a proclamação da Boa Nova (cf. LG, n. 1) na noite escura que atravessa a
história humana.
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FIGURAS
ANEXO 1 –
A DEVOÇÃO MARIANA NO BRASIL ANTES DE “APARECIDA”
111
O que mais nos interessa na história da devoção mariana portuguesa são dois eventos
fundamentais que fazem parte da própria história política e social de Portugal. O primeiro está
ligado à fundação do reino e o outro diz respeito à reconquista da soberania do país, que fora
tomada pelos espanhóis. O que há em comum entre ambos é que para os reis envolvidos nesta
trama, a intervenção de Maria foi providencial. Por isso, foi devidamente honrada e celebrada
pelos séculos afora como perpétua memória de sua maternal proteção.
Aproximadamente dois anos após a fundação do Reino de Portugal, o seu primeiro
monarca, D. Afonso Henriques, no ano de 1142, colocou desde o início o novo reino sob a
proteção de Santa Maria (DOS SANTOS, 1996, p. 21). No ano de 1147, após cinco meses
sitiada, a cidade de Lisboa foi tomada das mãos dos mouros e a catedral da cidade, que fora
tornada um templo mulçumano, foi solenemente dedicada à Santa Maria. Outras construções
posteriores entre mosteiros e igrejas também foram dedicados à Virgem Santa Maria (Ibid.,
1996, p. 22-23). Outro fato histórico ligado à devoção mariana portuguesa consta do ano de
1385 quando, diante de uma ameaça espanhola, os lusos saíram vitoriosos no confronto
militar de Aljubarrota. A vitória foi atribuída à intervenção de Nossa Senhora e, para honrá-la,
foi construída a igreja e o mosteiro de Nossa Senhora da Batalha. O próprio Rei D. João I, tal
como um devoto peregrino, foi a pé agradecer a Santa Maria (Ibid., 1996, p. 38). Esta não foi
a primeira nem a única vitória militar atribuída como graça alcançada por Maria. Para além
das conquistas bélicas, também o êxito durante o ciclo das navegações e das conquistas de
além-mar foi confiado à Mãe de Deus.
Estes dois exemplos, entre tantos outros, servem para ilustrar e demonstrar a intensa
piedade marial dos portugueses, a qual contagiava desde os reis, que contavam com o auxílio
da Virgem nos seus variados títulos ou invocações, já existentes ou criados a partir de
determinadas situações, para seus empreendimentos políticos (principalmente a defesa do
território contra os inimigos e as conquistas de outras terras), até a população que buscava na
“Senhora” o alívio das suas dores, a satisfação das suas necessidades, o consolo para suas
angústias, dentre outras razões particulares que sempre movem os fiéis. Mas a devoção que
mais cativou o coração dos lusitanos e cujo legado chegou até ao Brasil, foi à Nossa Senhora
da (Imaculada) Conceição.
Quanto à origem e ao início da devoção e do culto à Imaculada Conceição de Maria
em Portugal não há uma data exata, mas, conforme a tradição, desde 1147 a sua festividade é
celebrada em todo dia 8 de dezembro, logo após a retomada da cidade de Lisboa das mãos dos
mouros (DOS SANTOS, 1996, p. 25). Aliás, muito antes da proclamação dogmática da
113
Imaculada Conceição, sua memória litúrgica já era celebrada em vários lugares do mundo.
Segundo a pesquisa histórica de Armando Alexandre dos Santos,
[...] em fins do século XVI e princípios do século XVII o culto à Maria Imaculada
[já] tomara conta de Portugal; desde os reis até o povinho miúdo, passando pela
Nobreza, pelo Episcopado, pelo Clero, pelas Ordens religiosas, pelos teólogos, em
todos os níveis da sociedade se presenciava um acentuado fervor marial e
imaculista. (1996, p. 83-84).
O ponto alto desta devoção foi em 25 de março de 1646, ano que coincidiu com a
Festa da Anunciação do Senhor com o Domingo de Ramos, na Capela Real do Terreiro do
Paço Imperial em Lisboa, D. João IV proclamou solenemente Nossa Senhora da Conceição de
Vila Viçosa, “Senhora Padroeira e Protetora de nossos Reinos e Senhorios”. Além disso, o
soberano prometeu defender o insigne privilégio da Mãe de Deus, que fora concebida sem a
mácula do pecado original, inclusive requisitando à Universidade de Coimbra que se
comprometesse com o mesmo23. Note-se que, apesar do conteúdo religioso, esta não é uma
bula papal ou um decreto pontifício, mas uma provisão régia24.
Para além do aspecto religioso, a consagração do Reino e de suas extensões além-mar
também possuía um caráter político. Com a restauração da monarquia em Portugal a 1º de
dezembro de 1640, justamente no primeiro dia da oitava preparatória à Solenidade da
Imaculada Conceição, após sessenta anos de domínio espanhol (1580-1640), a Padroeira
escolhida era uma devoção comum também à nação vizinha, de tal forma que esta
proclamação, de algum modo, uniu estas duas potências navegadoras que espalharam pelas
terras conquistadas do Novo Mundo, além do seu domínio e cultura, também a sua
religiosidade. O papel político e o fervor devocional de D. João IV permitiu a restauração da
monarquia portuguesa e as duas potências dividiram entre si os frutos de suas conquistas, do
qual o Brasil é exemplo evidente como no caso do Tratado de Tordesilhas.
23
No ano mesmo da consagração, alguns meses antes, em 17 de janeiro de 1646, o Rei determinou que todos os
estudantes da Universidade de Coimbra prestassem juramento em defesa da Imaculada Conceição de Maria.
Ainda que não pudesse obrigar, mesmo assim o rei impôs tal juramento como condição para a obtenção de graus
acadêmicos na mencionada instituição. “Quando visitou a Universidade Coimbra, 15-5-1982, S.S. João Paulo II
teve ocasião de aludir a esse juramento: „É para mim um momento de grande alegria encontrar-me nesta
Universidade, uma das mais antigas da Europa e intimamente ligada à ação da Igreja. desde os seus primórdios
[...] assumiu, no decorrer da sua história, também um compromisso formal de defender a doutrina da Imaculada
Conceição de Maria Santíssima.” (JOÃO PAULO II apud DOS SANTOS, 1996, p. 105).
24
O teor da provisão régia demonstra que aquele não era um ato isolado ou um simples capricho devocional do
Rei, mas que estava em plena continuidade com a tradição recebida dos seus predecessores, a começar por D.
Afonso Henriques, o primeiro rei português que havia cumulado o reino com esta herança de devoção mariana.
Como afirmava o próprio decreto, D. João desejava “imitar [...] a singular piedade dos senhores Reis, meus
predecessores.” (DOS SANTOS, 1996, p. 94).
114
desde a consagração de 1646, nunca mais os reis de Portugal puseram a coroa sobre
a cabeça, nem sequer no dia de sua ascensão ao trono ou de sua aclamação; e sempre
se fizeram retratar tendo ao lado direito uma almofada, sobre a qual repousava a
coroa real. (DOS SANTOS, 1996).
breve introdução. Por isso, vamos ressaltar apenas três aspectos gerais do culto mariano no
período colonial:
O primeiro “sinal” de Maria no Brasil veio a bordo da nau de Pedro Álvares Cabral em
abril de 1500, que partiu com sua expedição da Ermida de Santa Maria de Belém no Restelo,
em Lisboa, onde ouviu a missa presidida por D. Diogo Oritiz, e do bispo recebeu a bênção
para zarpar (DOS SANTOS, 1996, p.65-66). Quando a expedição chegou ao “Novo Mundo”,
o primeiro ato foi a celebração de uma missa, a Primeira do Brasil, imortalizada na tela a óleo
de Victor Meireles. Pedro Álvares trazia a bordo de sua nau a imagem portuguesa de Nossa
Senhora da Esperança25, que pertencia à sua família. A imagem que veio a bordo da nau
Cabral era uma autêntica senhora portuguesa vestida com manto verde e, invés de um véu
longo, usava sobre a cabeça um lenço. Ao que tudo indica também havia uma imagem de
Nossa Senhora da Conceição e também um quadro de Nossa Senhora da Piedade, visto que
estas ou outras invocações marianas poderiam estar presentes entre as treze embarcações da
sua comitiva que contava com cerca de 1.500 homens (VIEIRA, 2016, p. 11). O Brasil foi
descoberto sob o olhar terno e protetor da Mãe da Boa Esperança (MEGALE, 1997, p. 203),
sendo esta justamente uma das primeiras iconografias marianas presentes no momento da
“descoberta” portuguesa do Brasil. Sem dúvida, também havia nas caravelas outras imagens
com algum título mariano, segundo a piedade e devoção dos navegadores e tripulantes a
bordo.
Desde os primeiros anos da chegada dos portugueses, foram construídas capelas,
ermidas e oratórios dedicados aos mais variados títulos da Virgem Maria. A primeira capela
do Brasil foi dedicada a Nossa Senhora da Glória, também venerada como Nossa Senhora da
Assunção, em Porto Seguro (1503). Tomé de Souza, primeiro governador geral, ergueu uma
capela por causa da sua devoção particular a Nossa Senhora da Ajuda (entre 1550 e 1553). Os
bandeirantes em suas expedições [...] levaram consigo as imagens ligadas às devoções
portuguesas, especialmente Nossa Senhora da Conceição e da Glória (DE AZEVEDO, 2000,
p. 71).
25
“A imagem clássica portuguesa da Senhora da Esperança representa a Virgem Maria de pé com o menino
Jesus sentado em seu braço esquerdo, segurando com a mão direita o pezinho dele. O Divino Infante aponta com
a mãozinha direita para uma pomba (símbolo do Espírito Santo), que repousa sobre o braço direito de sua Mãe.”
(MEGALE, 1997, p. 206).
116
Entre as populações indígenas, o primeiro contato com Maria foi através das missões
jesuítas, cujo grande expoente é o “Apóstolo das Glórias de Maria”, São José de Anchieta,
que compôs uma das primeiras obras literárias de nosso país no gênero poesia: “Os poemas da
Virgem”. Entre os negros oriundos da costa africana propagou-se a devoção a Nossa Senhora
do Rosário, especialmente através da criação de associações leigas chamadas de
“irmandades”, além do sincretismo entre elementos das religiões afro e do catolicismo que
adaptou a figura da Virgem aos orixás. Um exemplo clássico é Iemanjá, orixá das águas do
mar que, no catolicismo, corresponderia a Nossa Senhora da Conceição.
O século XVI, especialmente entre 1500 e 1581, é marcado pela expansão geográfica e
sociológica que se deve, sobretudo, à ocupação do território e a formação da população a
partir da simbiose entre a cultura indígena, europeia e africana.
Foi seguindo este processo histórico que o culto e a devoção a Maria foi se espalhando
pelo Brasil e ganhando forma e características próprias à medida que também se formava o
rosto do povo brasileiro, ainda que com origem portuguesa, pois “o Brasil recebeu [...] a
devoção Mariana por uma espécie de atavismo racial; [pois] a mãe-pátria transmitiu aos filhos
a fé de seus avós.” (MACHADO, 1976, p. 79).
1.1.2. As principais invocações marianas desde o século XVI até o início do século
XVIII.
seus conventos a partir de 1585, desde Olinda até chegar a São Paulo e ao Sul do país.
Foram os responsáveis pela evangelização inicial dos índios e, como “defensores da
Imaculada” desde a Idade Média, foram os principais agentes na expansão do culto
popular a Nossa Senhora da Conceição, um dos motivos pelos quais eles estavam tão
atrelados à Coroa Portuguesa.
ANEXO 2 –
APOCALIPSE 12,1 E A ICONOGRAFIA DA IMACULADA CONCEIÇÃO
121
Desde a antiguidade cristã até os nossos dias, muitos são os ícones, pinturas, imagens
e esculturas dos mais diversos estilos artísticos que retratam a Virgem Maria. Tal diversidade
iconográfica e imagética acompanhou a evolução do culto a Nossa Senhora ao longo dos
séculos. A iconografia mariana, portanto, acompanhou o culto mariano, sendo anterior,
inclusive a definições e proclamações dogmáticas, como é o caso do culto litúrgico e popular
e da iconografia da Imaculada Conceição, além de acompanhar também concepções e
abordagens teológicas e a instituição de festas litúrgicas e proclamações dogmáticas (cf. DA
SILVA RAMOS, 2016, p. 50).
Segundo Louis Réau, na sua volumosa obra sobre a arte cristã, a iconografia mariana
conheceu três momentos: 1º. A arte paleocristã das catacumbas; 2º. A arte bizantina do
Oriente; 3º. A arte ocidental. Este último momento foi o que apresentou a maior variedade de
representações de Maria, provavelmente por conta da liberdade encontrada nas mais diversas
expressões artísticas do Ocidente, especialmente a partir do Renascimento, mas já um pouco
antes também, diferenciando-se do milenar modelo iconográfico bizantino. A iconografia
oriental sempre apresentou a Virgem Mariaem referência explícita a Jesus, evidenciando
assim os dogmas da Maternidade Divina e da Virgindade Perpétua, enquanto que no
Ocidente, Maria já era apresentada com frequência sem o Menino ao colo e glorificada
segundo os dois últimos dogmas da modernidade, o dogma da Imaculada Conceição e da
Assunção.
Conforme Réau, a iconografia mariana ocidental pode ser dividida em quatro grupos:
1º. Antes do nascimento de Jesus (Imaculada Conceição e Maternidade Divina); 2º. A Virgem
com o Menino (a iconografia da Virgem da Majestade que representa Maria sentada sobre um
trono com Jesus no colo, e da Virgem da Ternura em que o rosto da Virgem e do Filho estão
encostados um ao outro); 3º. A Virgem Dolorosa (Nossa Senhora das Dores, da Piedade, as
Sete Dores de Maria); 4º. A Virgem “tutelar” (os vários títulos, invocações e tipologias
marianas). A Padroeira do Brasil se enquadraria no primeiro e no quarto grupo por ser uma
imagem da Imaculada Conceição que recebeu um novo título segundo as circunstâncias em
que foi encontrada e que, ao invés de receber o nome da localidade em que apareceu ou
surgiu, o seu novo título é que deu origem ao lugar. Neste caso a cidade de “Aparecida”,
assim chamada, por causa de Nossa Senhora.
Para a composição da iconografia mariana as fontes que serviram de conteúdo
fundamental foram a Sagrada Escritura, especialmente os símbolos e atributos marianos do
122
pureza e da transcendência, tal como está representada na sua obra mais famosa, a
Inmaculada Concepcíon de los Venerables (1678). Entre as diversas iconografias que
compôs, a cor da túnica da Virgem também pode ser da cor vermelha.
Mas como representar a concepção imaculada de Maria? Segundo Maria Marcellina
Pedico, a temática da Imaculada Conceição, entre outras singulares imagens de Maria, foi
muito mais difícil e tardia de definir pela dificuldade de transcrever em uma linguagem
figurativa um conceito tão abstrato (1993, p. 168). “Este fato da „ausência do pecado original‟
em Maria [...] não pode ser representado a não ser através de símbolos, devido à grande
complexidade envolvendo o mistério” (BRUNORIO, 2004, p. 214). Por isso é que a
iconografia imaculista reúne tantos e variados elementos artísticos, simbólicos e teológicos.
De modo geral, a imagem da Imaculada foi inspirada nas figuras bíblicas da “mulher”
de Gn 3,15 e de Ap 12,1 e da Sulamita do livro do Cântico dos Cânticos (7,1) e nos atributos
ou metáforas do Antigo Testamento presentes na Litania de Loreto, a ladainha lauretana
(1576), tais como: Arca da Aliança (Ex 25,10); Torre de Davi (Ct 4,4); Árvore de Jessé (Is
11,1); Sarça Ardente (Ex 3,2); Porta do Céu (Gn 28,17); fonte selada ou poço do jardim (Ct
4,15); jardim fechado ou hortus conclusus (Ct 4,12) com árvores que conservam por muito
tempo a sua cor (cipreste, oliveira, cedro, palmeira – cf. Ecl 24,17-18; Eclo 24,13-14), rosas e
lírios (Ct 2,1-2); espelho (Ez 7,10; Sb 7,26); Cidade (Sl 86,2) e Templo de Deus (Ecl 24,10-
11; Sl 87,3). A iconografia pré-barroca da Imaculada Conceição também foi inspirada no
Proto-Evangelho de São Tiago (capítulos IV e V) que narra o beijo casto entre Joaquim e Ana
junto à Porta Dourada do Templo de Jerusalém, o momento da concepção imaculada de
Maria. Também o Pseudo-evangelho de São Mateus (III, 1-5) e o Liber de Nativitatis Mariae
(III, 3-4 – V) narram de maneira semelhante este episódio.
Entretanto, o protótipo da Imaculada Conceição, definido no período Barroco (século
XVII), sob a influência da Escola de Sevilha, não fez qualquer menção aos textos apócrifos e
pouco se referiu aos símbolos da ladainha lauretana, preferindo inspirar-se fundamentalmente
na simbologia da Virgem do Apocalipse – a passagem bíblica de Ap 12 – que serviu de
inspiração para muitas representações mariais, especialmente para a representação da
glorificação de Nossa Senhora aos céus26.
“Na sua iconografia mais comum [do período barroco], a Imaculada tem túnica e
manto, panejamentos esvoaçantes, calça sandálias ou encontra-se descalça (os pés são tapados
26
A iconografia da Imaculada Conceição pode ser confundida com a da Assunção de Maria, pois os atributos
apocalípticos são os mesmos, com exceção da posição das mãos e dos olhos. Enquanto na Imaculada os olhos
estão voltados para baixo e as mãos estão em forma orante ou sobre o peito, na Assunta ao céu os olhos e as
mãos se dirigem para o alto.
126
pelas túnicas em muitas imagens). O manto pode cobrir apenas o corpo ou a cabeça e o
corpo” (OSSWALD, 2016, p. 402-403). Os pés podem pisar a lua crescente ou uma serpente e
as mãos delicadamente sobrepostas sobre o peito ou em posição orante.
O franciscano Róger Brunório coligiu no seu texto Representação iconográfica da
Imaculada Conceição de Nossa Senhora cerca de catorze atributos simbólicos que estão
presentes na maioria das iconografias, com alguma ou outra variação. São eles: o manto, a lua
crescente, o véu, os cabelos, a túnica, o globo, a coroa, a maçã, a rosa ou peônia, as mãos, a
nuvem, o querubim ou anjo, a serpente ou dragão, as estrelas (2004, p. 215-226).
Na iconografia imaculista de Bartolomé Estebán Murillo os símbolos cósmicos da
mulher apocalíptica – sol, lua e estrelas – são bastante evidenciados. Mas há outros símbolos
que extrapolam a revelação bíblica. São eles: o manto de cor azul ou vermelho, símbolo da
proteção divina e da dignidade; a túnica branca, sinal de pureza; os cabelos longos e soltos
que também podem representar um véu, sinal de liberdade; as mãos postas sobre o peito como
gesto de oração; as nuvens que simbolizam a manifestação divina; os querubins de cabeça
alada com duas ou quatro asas com aspecto de criança que recordam os anjos que foram
postos sob a Arca da Aliança a indicar o propiciatório que sinaliza a presença do Altíssimo
(cf. Ex 25,18-21; 1Rs 6,23-28).
A arte espanhola seiscentista influenciou o vizinho país luso para a confecção das
imagens imaculistas, principalmente a partir do momento que Portugal se colocou sob a
proteção de Nossa Senhora da Conceição, assumindo-a por sua padroeira e propagando a sua
devoção que aportou em terras brasileiras. O “pintor das Imaculadas” deixou uma herança
para a posteridade, pois, nascendo cem anos (1617) antes do encontro da imagem nas águas
do Rio Paraíba, não imaginava que contribuíra para a inspiração daquele que esculpira uma
imagem simples de barro cozido que reproduzia a efigie de Nossa Senhora da Conceição, que
no Brasil passaria a ser invocada como “Nossa Senhora da Conceição Aparecida”.
127
ANEXO 3 –
BREVE CRONOLOGIA DOS 300 ANOS DE “APARECIDA”
(1717-2017)
128
1717-1726 “1º altar” – primeiro oratório na casa de João Alves, filho de Domingos
Garcia, casado com Silvana da Rocha.
1731-1739 “3º altar” – Filipe Pedroso mudou-se para a Ponte Alta, que fica entre a
Ponte de Sá e o Alto da Boa Vista, onde permaneceu por aproximadamente
nove anos.
1739 “4º e 5º altar” – a imagem voltou para o seu lugar de origem. Atanásio
27
As principais datas da história de Nossa Senhora da Conceição Aparecida foram extraídas da obra:
BRUSTOLONI, Júlio J. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida – a Imagem, o Santuário e as
Romarias – 10ª ed. rev. e ampl. – Aparecida, SP: Editora Santuário, 1998.
129
Pedroso, filho de Filipe Pedroso, foi quem herdou a imagem que até então,
ainda era conservada dentro de um baú e retirada somente para a hora da
reza. Atanásio edificou um oratório de madeira em sua casa (4º altar) e
reuniu a vizinhança para a oração do rosário aos sábados, onde começaram
a acontecer alguns milagres atribuídos a Nossa Senhora da Conceição
Aparecida. Quando a notícia dos milagres chegou aos ouvidos do pároco de
Guaratinguetá, foi construída ao lado da casa de Atanásio, uma capelinha
semi-pública feita de pau a pique (5º altar) no Porto de Itaguaçu, que aos
poucos se tornou pequena para tanta gente atraída pela notícia dos milagres.
1743 No dia 5 de maio, o Pe. José Alves Vilella obteve do bispo diocesano do
Rio de Janeiro, D. Frei João da Cruz, a autorização para a promoção do
culto e a ereção de uma capela pública. Deu-se início à construção de uma
capela mais ampla feita de taipa de pilão no Morro dos Coqueiros, um local
de acesso mais favorável.
1745 “6º altar” – a 26 de julho, memória litúrgica de Santa Ana, mãe da Virgem
Maria, foi inaugurada a primeira Capela sob a invocação de Nossa Senhora
da Conceição Aparecida (local onde hoje está a atual Basílica Velha)
juntamente com a instalação do povoado de Aparecida. Neste mesmo ano
foi criado o bispado de São Paulo e Mariana.
1761 Primeira visita pastoral realizada pelo segundo bispo de São Paulo, D. Frei
Antônio da Madre de Deus, à Capela de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida.
1900 É realizada uma romaria de trem vinda das cidades de São Paulo com
aproximadamente 1200 peregrinos.
1917 Mais uma vez a data da festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é
modificada. Desta vez para 11 de maio e, posteriormente para o dia 7 de
setembro. Neste mesmo ano comemorou-se o Jubileu dos 200 anos do
encontro da imagem.
1932 A imagem “foi levada ocultamente para São Paulo, durante a Revolução
Constitucionalista, onde permaneceu no Palácio de São Luiz, residência do
Sr. Arcebispo de São Paulo, de 25 de setembro até o dia 6 de outubro”, por
medo “de um bombardeio na cidade de Aparecida, pois no Vale do Paraíba
se desenvolveram diversas lutas e confrontos entre constitucionalistas e
getulistas.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 356).
1945 Foi organizada pelo Cardeal Motta, na Catedral e na Praça da Sé, centro da
cidade de São Paulo, uma vigília noturna que contou com a presença da
Imagem original de Nossa Senhora da Conceição Aparecida e do
operariado contra o movimento comunista.
131
1946 Primeira restauração da Imagem feita pelo Pe. Antônio Pinto de Andrade
(29/5). No dia 10 de setembro aconteceu o lançamento e bênção da pedra
fundamental da Basílica nova, que se encontra no Alto da Boa Vista, entre
o Morro dos Coqueiros e o Porto de Itaguaçu. A celebração foi presidida
pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira.
1950 Segunda restauração da Imagem feita pelo Pe. Humberto Pieroni (28/11 –
4/12) que instalou um pino de alumínio para manter a cabeça que,
frequentemente soltava, firme ao corpo.
1954 A cidade de São Paulo foi agraciada com mais uma visita da imagem de
Nossa Senhora da Conceição Aparecida, que permaneceu na Catedral da Sé
por ocasião do Congresso Mariano, realizado de 5 a 7 de setembro de 1954,
desta vez num clima mais ameno do que aquele de dez anos atrás.
ANEXO 4 –
“APARECIDA”: UMA MARIOFANIA “FORA DOS PADRÕES”
134
Não há notícias de que o Brasil tenha tido alguma aparição de Nossa Senhora nos três
primeiros séculos que o nosso estudo abrange, sendo este um fenômeno ainda recente que
merece ser estudado e aprofundado à medida da sua ocorrência, com a seriedade e a prudência
com que a Igreja sempre tratou estas manifestações. Além disso, o período mais frequente de
manifestações desta natureza, presente já na experiência do povo de Israel e ao longo de toda
a história da Igreja, foi no século XIX e XX, como é o caso, por exemplo, das aparições em
Lourdes (1858) e Fátima (1917), posterior ao período histórico até então contemplado.
Alguns teólogos costumam comparar a devoção a Nossa Senhora Aparecida com a
aparição de Nossa Senhora de Guadalupe, no México. Apesar das semelhanças, há muitas
diferenças do ponto de vista histórico. Contudo, “Aparecida”, embora não seja rigorosamente
uma aparição, possui algumas características que a aproxima de uma. O que podemos
constatar é que por causa da sua imagem, “Aparecida” é um sinal divino, portador de uma
mensagem profundamente eclesial, além de social.
28
A Virgem Maria apareceu na hermosa montaña de Tepeyac a um índio chamado Juan Diego, enquanto este se
dirigia pela manhã para assistir a Missa, num contexto social de difíceis conflitos entre a população local e os
espanhóis que ali espalhavam seus domínios. Nossa Senhora apresentou-se ao índio com uma face indígena e
morena, falando-lhe na sua própria língua, o Nican Mopohua, num diálogo muito afetuoso e carinhoso em que se
revelava como uma boa mãe: “Por acaso não estou eu aqui, que sou tua Mãe?”. O restante da história já nos é
conhecida, e esta seguiu um ritmo comum às aparições, guardadas as suas particularidades. A Virgem pediu ao
vidente a construção de uma igreja naquele local, o qual foi pedir a autorização do bispo local, Dom Frei Juan
Zumárraga, que, não anuindo de imediato, convenceu-se do fato apenas quando o índio colocou na sua tilma
rosas colhidas em pleno inverno, a mando da Virgem, e ao abri-la diante do purparado, apareceu inscrita no pano
a imagem daquela que o índio viu com os próprios olhos. Na retina dos olhos da Virgem de Tepeyac ficou
gravada esta cena na qual o bispo caiu de joelhos diante do índio portador do retrato aquiropito da Virgem.
29
“Existe a hipótese de que o primitivo nome da Virgem aparecida em Tepeyac fosse indígena e, em poucos
anos, tenha sido deturpado pelos espanhóis para „Guadalupe‟ por questões de assonância. É possível, mas não é
seguro.” (BOFF, 2006, p. 246).
135
“encontro”, entre a imagem impressa nas fibras da tilma de um índio e a imagem modelada no
barro e colhida por pescadores. Embora, por honestidade histórica, não seja possível dizer que
o evento “Aparecida” seja uma reprodução brasileira da aparição mexicana, ainda que
Portugal e, consequentemente, o Brasil, tivessem permanecido sob o domínio espanhol por
sessenta anos (1580-1640), o que não significa, obrigatoriamente, que a devoção a Nossa
Senhora de Guadalupe, tanto a “mexicana” quanto a “espanhola”, tenham sido largamente
abraçadas pelo povo luso e brasileiro. Além do que, a “aparição de Guadalupe” e o “encontro
de Aparecida” estão inseridos em contextos históricos bem diferentes, ainda que em termos
iconográfico e sociológico tenham as suas semelhanças.
Dom Rafael Maria faz uma comparação paralela, a partir da análise de quinze
elementos entre “Guadalupe”, “Aparecida” e “Lourdes” e sustenta a tese que as três
mariofanias, entre as suas semelhanças e diferenças, possuem uma mesma mensagem para a
Igreja. Segundo ele: “é possível constatar que Guadalupe, Aparecida e Lourdes se inserem na
vida social e eclesial do contexto em que se manifestam”, mas “deve ser estudados em um
contexto mais amplo para favorecer um conhecimento seguro do significado destas
manifestações divinas para o México, para o Brasil e para o mundo”, ou seja, ainda que
“nenhuma aparição mariana esteja fora de um contexto histórico e eclesiológico [...] elas se
inserem e fazem parte da história universal e local” (DA SILVA, 2014, p. 38-45) e possuem
uma imagem que interessa tanto ao passado quanto ao presente.
experiências de ordem psíquica. Por elas se diz reconhecer objetos, seres e situações
normalmente “invisíveis”, como Deus, Anjos, e pessoas em situação escatológica
como, os santos, a Virgem Maria, as almas. São fenômenos extraordinários que não
se podem pressupor, mas dos quais temos inúmeros relatos de experiências (CED-
CNBB, 2005, p. 16).
cultura. Desta forma, Nossa Senhora se manifesta de forma adequada aos seus interlocutores,
segundo as circunstâncias de tempo, lugar e cultura local, para que a sua mensagem seja
compreendida. Isto é o que podemos chamar de um elemento de inculturação30. Caso
evidente disso são as aparições em Guadalupe, no México, em que a Virgem Morena falava
na língua do índio Juan Diego.
Portanto, de modo geral, as aparições são manifestações visíveis do sobrenatural que
podem comportar no seu interior uma visão, uma revelação ou um sinal, ainda que cada um
destes termos tenha suas próprias acepções. Neste caso, “Aparecida” é uma exceção e nem
pode ser classificada como uma aparição no sentido estrito do termo, embora o seu título
sugira o contrário.
4.2.1.1. Os milagres
“Ela apareceu milagrosamente e é com milagres que se conta sua história; por isso foi
se tornando sempre mais querida...” (MACHADO, 1976, p. 146). O encontro da imagem é,
em si mesmo, um evento miraculoso. “São muitas as circunstâncias miraculosas do encontro
da Imagem de Nossa Senhora nas águas do Rio Paraíba” (Ibid., 1976, p. 146) que, inclusive,
desafiam as leis naturais. O Pe. Machado em sua coletânea de textos coligidos na obra
Aparecida na História e na Literatura, enumera algumas destas circunstâncias miraculosas:
1) a surpresa do achado; 2) o horário desfavorável da pesca; 3) o local inapropriado; 4) o
corpo separado da cabeça e a ordem no encontro: primeiro o corpo, e a alguns metros, a
30
Quanto às aparições, estas “são sempre inculturadas, isto é, apresentam características que dão valor a uma
cultura local ou se adequam à pessoa do vidente e do ambiente em que vivem” (DA SILVA, 2014, p. 52).
138
cabeça; 5) as peças flutuantes, o que seria impossível com aquela imagem cuja tendência
natural seria afundar, permanecer no fundo do rio e dissolver-se; 6) a indissolubilidade de
uma imagem feita de barro poroso; 7) a imagem pesava apenas 4.350 gramas, mas quando foi
retirada se fizera tão pesada quanto uma rede cheia de peixes, tanto o corpo quanto a cabeça;
8) como a imagem chegou às malhas da rede, visto que as redes não alcançariam o fundo
onde ela estava provavelmente coberta de lodo e, como a cabeça tão pequena não escapou das
malhas da rede?
Além desses eventos miraculosos do encontro da imagem, para os quais não é possível
obter uma explicação racional, logo após ser “pescada” e guardada no interior do barco, o
terceiro lance de rede apanhou tantos peixes que os pescadores tinham medo de que a barca
viesse a afundar. Sem dúvida, é um milagre, pois eles haviam pescado a noite inteira, o
horário ideal para apanhar uma grande quantidade de peixes, coisa que conseguiram apenas
depois que encontraram a imagem de Nossa Senhora da Conceição. O registro do Livro
Tombo da Paróquia de Guaratinguetá afirma que os pescadores ficaram admirados deste
sucesso, uma reação que não seria de se esperar de pescadores experientes, que já deviam ter
testemunhado alguma grande pesca. Todavia, o sucesso da pescaria, tendo como pano de
fundo a obrigação de encher de peixes a mesa do governador, o que certamente lhes causara
temor, se deu após muitas tentativas fracassadas. Por isso, não era de se esperar outra reação
que não fosse a de admiração, própria de quem testemunha um milagre31.
O Pe. Júlio Brustoloni dedica o capítulo 7 do seu livro sobre a História de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida: a imagem, o santuário e as romarias, aos primeiros
milagres atribuídos à intercessão de nossa Padroeira, alguns dos quais estão descritos no
registro histórico transcrito no mencionado Livro Tombo, o principal documento a respeito do
encontro da imagem. Os três primeiros e mais famosos milagres são: o milagre dos peixes
(como já comentamos), o milagre das velas que se apagavam e acendiam sem intervenção
natural e humana (como está registrado no Livro Tombo da Paróquia de Guaratinguetá) e o
milagre da libertação das correntes do escravo Zacarias (BRUSTOLONI, 1998, p. 57-61).
“A crônica da missão de Aparecida, pregada em 1748, qualificou a Imagem como
„famosa pelos muitos milagres realizados‟.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 58). Seria impossível
relatar todos os milagres operados graças à intercessão de Nossa Senhora da Conceição
31
A palavra “milagre”, do latim miraculu, tem a mesma raiz de “admirar” (admirare) e de “maravilha”
(mirabilia). Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, “milagre” é “o feito ou ocorrência
extraordinária, que não se explica pelas leis da natureza; acontecimento admirável, espantoso; portento, prodígio,
maravilha; qualquer manifestação da presença ativa de Deus na história; sinal dessa presença se caracteriza,
sobretudo, por uma alteração repentina e insólita dos determinismos naturais” (1986, p. 1133).
139
Aparecida, mas basta testemunhar com os próprios olhos os inúmeros peregrinos que acorrem
ao Santuário Nacional diariamente para agradecer e “pagar” as promessas por conta de algum
milagre recebido, além de visitar a Sala dos Milagres com milhares de ex-votos que recordam
graças alcançadas, principalmente peças de ceras de várias partes do corpo, muletas, cadeiras
de rodas, etc.
Infelizmente o Frei Agostinho de Santa Maria não viveu a tempo de conhecer os
milagres de Nossa Senhora da Conceição Aparecida para, então, catalogá-la na sua obra
Santuário Mariano e história das imagens milagrosas de Nossa Senhora. Todavia,
“Aparecida” não é a única “imagem” no Brasil com fama de “milagreira”, mas é sem dúvida,
uma das mais veneradas, seja no Santuário Nacional, nas inúmeras paróquias e milhares de
capelas e oratórios com seu título ou nas casas de família que possuem sua imagem ou
estampa. É praticamente impossível uma família católica no Brasil não possuir uma imagem
da nossa Padroeira.
4.2.1.2. As multidões
mas bem realista, como se desse o testemunho de um padre que acompanhava de perto o vai e
vem diário de peregrinos na “Casa da Mãe Aparecida”32:
32
Slogan recorrente nos meios de comunicação social do Santuário Nacional.
141
A cidade de Aparecida surgiu de um povoado que, por sua vez, originou-se à sombra
da Capela de Aparecida (BRUSTOLONI, 1998, p. 163). O povoado de Aparecida do Norte,
como ficou conhecido, foi inaugurado a 25 de julho de 1745, data que coincide com a
inauguração da primeira Capela sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição Aparecida33.
A partir deste dado já se percebe a vocação religiosa daquela que viria a se tornar a cidade de
Aparecida, para onde convergiriam milhares de pessoas. No ano de 1827 o povoado foi
elevado à categoria de distrito ou freguesia. No ano de 1928, Aparecida emancipou-se de
Guaratinguetá e foi instalada a 30 de março de 1929.
A cidade de Aparecida se tornou o que é hoje, graças ao Santuário e à devoção a
Nossa Senhora. O atual Santuário Nacional que abriga o trono da Padroeira do Brasil, foi
precedido por outras construções mais modestas, desde o oratório de Atanásio Pedroso
(aproximadamente 1739), a capela de taipa de pilão do Pe. Vilella (1745) que sofrera
posteriormente algumas adaptações, ampliações e reformas (1824-1833), sendo substituída
por alvenaria e que corresponde atualmente a “Basílica Velha” que levou 43 anos de
construção (1845-1888), localizada no Morro dos Coqueiros, até o majestoso Santuário
Nacional. Com o progressivo aumento de peregrinos, que sempre fora crescente desde as
primeiras e simples edificações, surgiu a necessidade de construir uma igreja ainda mais
ampla. A nova construção localizada na região chamada de Morro das Pitas, teve a pedra
fundamental lançada a 10 de setembro de 1946, foi inaugurada, ainda incompleta, no dia 15
de agosto de 1967 e consagrada pelo Papa João Paulo II no dia 4 de julho de 1980, sendo que
as suas obras continuam até os nossos dias. A nova basílica ficou sob o encargo do arquiteto
Benedito Calixto de Jesus Neto que a projetou no formato de uma cruz grega com uma cúpula
central e quatro naves. O edifício possui dimensões gigantescas, capaz de abrigar no seu
interior cerca de 70 mil pessoas (BRUSTOLONI, 1998, p. 220). Além disso, o Santuário
dispõe de espaços para todo o tipo de serviço de apoio aos romeiros, como também diversas
obras sociais.
O Santuário Nacional de Aparecida é considerado o maior santuário mariano do
mundo. Seu tamanho parece contemplar as dimensões do nosso imenso Brasil e a magnitude
do seu povo. Apesar de tão grande, foi construído para abrigar a pequena e humilde imagem
33
“Conforme costume da época e por exigências das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707,
para se fundar um novo povoado era necessário a doação de certa porção de terras para a construção de uma
igreja e do próprio povoado [...] Assim nasceram todas as cidades brasileiras no século dezesseis, dezessete,
dezoito e grande parte do século dezenove. Aparecida nasceu desta maneira...” (BRUSTOLONI, 1998, p. 164).
142
de Nossa Senhora. Para uma imagem pequena e uma cidade pequena, um santuário que
representa o tamanho da fé e da devoção do povo brasileiro à Mãe de Deus34.
Pelo tamanho, a cidade de Aparecida poderia ser comparada à pequenina Belém de
Éfrata onde nasceu o Rei dos Judeus (cf. Mt 2,6), tal como fez o Cardeal Motta em um
discurso inflamado no dia 18 de agosto de 1967: “Tu, Aparecida, cidade de Nossa Senhora, de
nenhum modo és a mais pequenina das cidades brasileiras.” (apud MACHADO, 1976, p. 6).
O tamanho a que se refere o prelado não é geográfico, mas a grandeza com que o Santuário
elevou a pequena cidade. Pelo significado espiritual e social, Aparecida pode ser comparada a
uma “Jerusalém Nacional”, a capital espiritual do Brasil, assim como disse o Cardeal Agnelo
Rossi: “Se Brasília é a capital política do país, podemos dizer que Aparecida é a Capital
espiritual do Brasil.” (Ibid., p. 15,29,32).
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Sobre o Santuário Nacional falaremos mais adiante e, de modo especial, no capítulo 3 desta obra.
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A palavra “sinal”, do grego semeion, como é usada no Novo Testamento, não designa obrigatoriamente um
milagre tal como o entendemos, mas como aquilo que serve para confirmar, aprovar, assegurar e dar
legitimidade atestando a verdade do que foi anunciado. O sinal é, portanto, o que confirma ou assegura a verdade
e validade de uma mensagem.
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Uma comunicação “direta” ou “pura” com Deus, que significaria a dispensação dos sinais não é algo que diz
respeito à teologia católica, além de contradiz o princípio fundamental da encarnação do Verbo, que é o
Mediador por entre nós e o Pai (cf. 1Tm 2,5) e, deste modo admirável, tornou o homem capax Dei. Desta
mediação de Cristo participam a Virgem Maria, os santos, toda a Igreja em comunhão entre o céu e a terra.
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Quadro comparativo entre os elementos presentes nas “bodas de Caná” e na “pesca de Aparecida”.
objetivo realizado “os discípulos creram nele” “eles ficaram admirados deste sucesso”
Portanto, o que queremos indicar aqui é que o encontro da imagem de Nossa Senhora
da Conceição Aparecida é um sinal! Dentro de uma situação humana limitada (a pesca
fracassada), manifestou-se um sinal (duas partes de uma imagem de Nossa Senhora da
Conceição) seguido de um fato sobrenatural (a pesca milagrosa). Para compreender o evento
“Aparecida” como um “sinal” levou-se em conta o contexto histórico do Brasil colonial, o
fato em si que gerou a pesca e oportunizou o encontro da imagem de modo imprevisto, e o
milagre dos peixes, como foi analisado até o presente momento. Cabe a nós interpretar a
mensagem silenciosa, porém profética, escondida nos traços daquela imagem pequenina e
quebrada.
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videntes que visualizam a pessoa da Virgem pescadores que encontram uma imagem quebrada, que
no alto (céu, gruta, montanha...) estava no fundo de um rio, nas malhas de suas redes
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Entenda-se “convencional” aqui como aqueles elementos comuns às aparições reconhecidas pela Igreja
(MURAD, 1997, p. 20) e que servem para a análise do fenômeno (CED-CNBB, 2005, p. 39-47), respeitadas as
devidas diferenças de contexto, pessoas envolvidas e mensagem transmitida.
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APÊNDICE 1 –
“APARECIDA: CHAVE DE LEITURA PARA A MISSÃO DA IGREJA”
(PAPA FRANCISCO)
146
Queridos Irmãos!
Em Aparecida, Deus ofereceu ao Brasil a sua própria Mãe. Mas, em Aparecida, Deus
deu também uma lição sobre Si mesmo, sobre o seu modo de ser e agir. Uma lição sobre a
humildade que pertence a Deus como traço essencial e que está no DNA de Deus. Há algo de
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perene para aprender sobre Deus e sobre a Igreja, em Aparecida; um ensinamento, que nem a
Igreja no Brasil nem o próprio Brasil devem esquecer.
No início do evento que é Aparecida, está a busca dos pescadores pobres. Tanta fome
e poucos recursos. As pessoas sempre precisam de pão. Os homens partem sempre das suas
carências, mesmo hoje.
Possuem um barco frágil, inadequado; têm redes decadentes, talvez mesmo
danificadas, insuficientes.
Primeiro, há a labuta, talvez o cansaço, pela pesca, mas o resultado é escasso: um
falimento, um insucesso. Apesar dos esforços, as redes estão vazias.
Depois, quando foi da vontade de Deus, comparece Ele mesmo no seu Mistério. As
águas são profundas e, todavia, encerram sempre a possibilidade de Deus; e Ele chegou de
surpresa, quem sabe quando já não o esperávamos. A paciência dos que esperam por Ele é
sempre posta à prova. E Deus chegou de uma maneira nova, porque Deus é surpresa: uma
imagem de barro frágil, escurecida pelas águas do rio, envelhecida também pelo tempo. Deus
entra sempre nas vestes da pequenez.
Veem então a imagem da Imaculada Conceição. Primeiro o corpo, depois a cabeça, em
seguida a unificação de corpo e cabeça: a unidade. Aquilo que estava quebrado retoma a
unidade. O Brasil colonial estava dividido pelo muro vergonhoso da escravatura. Nossa
Senhora Aparecida se apresenta com a face negra, primeiro dividida mas depois unida, nas
mãos dos pescadores.
Há aqui um ensinamento que Deus quer nos oferecer. Sua beleza refletida na Mãe,
concebida sem pecado original, emerge da obscuridade do rio. Em Aparecida, logo desde o
início, Deus dá uma mensagem de recomposição do que está fraturado, de compactação do
que está dividido. Muros, abismos, distâncias ainda hoje existentes estão destinados a
desaparecer. A Igreja não pode descurar esta lição: ser instrumento de reconciliação.
Os pescadores não desprezam o mistério encontrado no rio, embora seja um mistério
que aparece incompleto. Não jogam fora os pedaços do mistério. Esperam a plenitude. E esta
não demora a chegar. Há aqui algo de sabedoria que devemos aprender. Há pedaços de um
mistério, como partes de um mosaico, que vamos encontrando. Nós queremos ver muito
rápido a totalidade; e Deus, pelo contrário, Se faz ver pouco a pouco. Também a Igreja deve
aprender esta expectativa.
Depois, os pescadores trazem para casa o mistério. O povo simples tem sempre espaço
para albergar o mistério. Talvez nós tenhamos reduzido a nossa exposição do mistério a uma
148
explicação racional; no povo, pelo contrário, o mistério entra pelo coração. Na casa dos
pobres, Deus encontra sempre lugar.
Os pescadores agasalham: revestem o mistério da Virgem pescada, como se Ela
tivesse frio e precisasse ser aquecida. Deus pede para ficar abrigado na parte mais quente de
nós mesmos: o coração. Depois é Deus que irradia o calor de que precisamos, mas primeiro
entra com o subterfúgio de quem mendiga. Os pescadores cobrem o mistério da Virgem com
o manto pobre da sua fé. Chamam os vizinhos para verem a beleza encontrada; eles se reúnem
à volta dela; contam as suas penas em sua presença e lhe confiam as suas causas. Permitem
assim que possam implementar-se as intenções de Deus: uma graça, depois a outra; uma graça
que abre para outra; uma graça que prepara outra. Gradualmente Deus vai desdobrando a
humildade misteriosa de sua força.
Há muito para aprender nessa atitude dos pescadores. Uma Igreja que dá espaço ao
mistério de Deus; uma Igreja que alberga de tal modo em si mesma esse mistério, que ele
possa encantar as pessoas, atraí-las. Somente a beleza de Deus pode atrair. O caminho de
Deus é o encanto que atrai. Deus faz-se levar para casa. Ele desperta no homem o desejo de
guardá-lo em sua própria vida, na própria casa, em seu coração. Ele desperta em nós o desejo
de chamar os vizinhos, para dar-lhes a conhecer a sua beleza. A missão nasce precisamente
dessa fascinação divina, dessa maravilha do encontro. Falamos de missão, de Igreja
missionária. Penso nos pescadores que chamam seus vizinhos para verem o mistério da
Virgem. Sem a simplicidade do seu comportamento, a nossa missão está fadada ao fracasso.
A Igreja tem sempre a necessidade urgente de não desaprender a lição de Aparecida;
não a pode esquecer. As redes da Igreja são frágeis, talvez remendadas; a barca da Igreja não
tem a força dos grandes transatlânticos que cruzam os oceanos. E, contudo, Deus quer se
manifestar justamente através dos nossos meios, meios pobres, porque é sempre Ele que está
agindo.
Queridos irmãos, o resultado do trabalho pastoral não assenta na riqueza dos recursos,
mas na criatividade do amor. Fazem falta certamente a tenacidade, a fadiga, o trabalho, o
planejamento, a organização, mas, antes de tudo, você deve saber que a força da Igreja não
reside nela própria, mas se esconde nas águas profundas de Deus, nas quais ela é chamada a
lançar as redes.
Outra lição que a Igreja deve sempre lembrar é que não pode afastar-se da
simplicidade; caso contrário, desaprende a linguagem do Mistério. E não só ela fica fora da
porta do Mistério, mas, obviamente, não consegue entrar naqueles que pretendem da Igreja
aquilo que não podem dar-se por si mesmos: Deus. Às vezes, perdemos aqueles que não nos
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APÊNDICE 2 –
CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II POR OCASIÃO DO CENTENÁRIO
DA COROAÇÃO DE NOSSA SENHORA APARECIDA
151
Ao Venerável Irmão
RAYMUNDO DAMASCENO ASSIS
Arcebispo de Aparecida,
aos demais Irmãos no Episcopado
aos sacerdotes, religiosos, religiosas e fiéis
do Brasil:
2. Há quase três séculos que a Virgem marcou um encontro singular com a gente brasileira
nesse lugar. As origens do Santuário estão ligadas à descoberta, por parte de três pescadores,
de uma pequenina imagem de Nossa Senhora, de cor escura e de rosto sorridente, que eles
viram emergir das águas, pescada na rede, com a qual puderam depois recolher uma pesca
muito abundante. Os três reconheceram no acontecimento um sinal da proteção especial da
Virgem. A partir daquele remoto setembro de 1717, cresce no povo um culto por Aquela que
começam a chamar simplesmente a «Aparecida».
Bem antes de 1717 e do extraordinário aparecimento, porém, já existia uma profunda devoção
pela Mãe de Jesus no coração dos cristãos do Brasil, que a herdaram dos portugueses mas lhe
dando, no correr dos anos, uma coloração, motivações e orientações próprias. O amor e a
devoção a Maria são um dos traços característicos da religiosidade do povo brasileiro.
3. A multidão imensa de pessoas, que acorre ao Santuário de sua Rainha e Padroeira, obedece
a um genuíno movimento da alma desse amado povo, cumpre um gesto profundamente
brasileiro, enchendo essa cidade do vale do Paraíba sobretudo de oração e de fé; de uma fé
simples mas que é, sem dúvida, o que deve ser a fé: uma busca de Deus, talvez desajeitada e
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imperfeita, mas comovedoramente sincera, arraigada, capaz de sacrifícios, uma busca de Deus
através de Nossa Senhora. «Apareceu no céu um grande sinal; uma mulher vestida de sol,
com a lua debaixo dos pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. Estava grávida e
clamava com dores de parto» (Ap 12,1-2). A visão de S. João mostra-nos que Maria,
glorificada no Céu - Rainha coroada de estrelas -,continua a ser Mãe de todos os homens, dos
filhos e filhas de Deus e irmãos de Jesus Cristo, até o fim dos séculos. Na luz da glória divina,
Ela contempla todos e cada um de Seus filhos, em todos e cada um dos momentos da sua
existência.
4. No transcurso da história comovedora da imagem morena de sua Rainha e Mãe tão amada,
homens e mulheres de todas as condições e cultura a proclamaram «Soberana». Por isso, meu
venerável predecessor Pio X, sensibilizado com a solicitação dos filhos devotos da Virgem
Aparecida, coroou Nossa Senhora como Rainha do Brasil no ano de 1904. Este patrocínio de
Maria sobre uma Nação não é algo que acontece sem o concurso de Seus protegidos, mas
supõe seu livre consentimento, cada dia renovado; supõe que o peçam e se façam dignos dele,
o encarnando num compromisso de vida inspirado pelas certezas profundas e sólidas da fé.
A certeza de que Nossa Senhora, por um lado, Se encontra para sempre junto de Deus onde
advoga a nossa causa com tamanho poder, que foi denominada «onipotência suplicante»; mas,
por outro, «é da nossa estirpe, verdadeira filha de Eva (...) e nossa verdadeira irmã, que
compartilhou plenamente, mulher humilde e pobre como foi, a nossa condição» (Paulo VI,
Marialis cultus, 56). Teve uma pátria, pertenceu a um povo, aos quais amou e pelos quais
sofreu; podemos pensar que Ela experimentou essa realidade humana que é o patriotismo,
conhece seu sentido mais profundo. Tendo levado consigo estes valores para o Céu, Ela sabe
o que pedir junto de Deus melhor do que o fizera Ester ao rei Assuero: «Só te peço, ó rei, que
salves o meu povo» (cf. Est 7, 3).
A certeza de que o patrocínio de Maria, sob o seu título de Aparecida, inclui da parte de Seus
súbditos um compromisso de se darem as mãos uns aos outros, no esforço para que o País se
converta naquilo mesmo que Maria quer que seja, uma vez que Ela o adoptou como Seu: uma
terra onde impere a hospitalidade, a cordialidade, a capacidade de dialogar, de «compor»,
mais do que «opor».
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5. No plano religioso que toca de mais perto a vós, venerados Bispos, é importante o
compromisso de assumir com verdadeiro espírito pastoral a imemorial devoção mariana de
vosso povo: procurar compreendê-la em seu enraizamento mais profundo, desvendar seus
valores, captar seu significado, acolhê-la, purificando-a e orientando-a. Muito depende da
atitude dos Pastores e agentes de pastoral que essa devoção seja para o povo um caminho para
o encontro, na fé, com Deus em Jesus Cristo.
Ajudem, pois, os fiéis a viverem sua devoção mariana como um claro e corajoso testemunho
de amor a Cristo, que manifeste a identidade pessoal e comunitária dos católicos, contra o
perigo do secularismo e do consumismo, e ao mesmo tempo favoreça nas famílias a prática
das virtudes cristãs. De igual modo, esta devoção ajudará a consolidar os vínculos de
comunhão com os Pastores da Igreja de Cristo, enfrentando a desagregação da fé, fomentada
tantas vezes pelo proselitismo das seitas. A história ensina que Maria é a verdadeira
salvaguarda da fé; em cada crise, a Igreja reúne-se à volta d'Ela. Só assim os discípulos do
Senhor poderão ser para os outros sal da terra a luz do mundo (cf. Mt5, 13.14).
6. «Feliz do povo, cujo Senhor é Deus, cuja Rainha é a Mãe de Deus!» Assim proclamava o
Papa Pio XII e assim poderá exclamar essa dileta arquidiocese de Aparecida, se devidamente
souber voltar os olhos para Aquela que gerou, por obra do Espírito Santo, o Verbo feito carne.
É que a missão essencial da Igreja consiste precisamente em fazer nascer Cristo no coração
dos fiéis (cf. Lumen gentium, 65) pela ação do mesmo Espírito Santo, através da
evangelização.
Queridos Irmãos e Irmãs, confio todas e cada uma das Comunidades eclesiais brasileiras à
proteção de Nossa Senhora Aparecida, para que permaneçam fiéis na pureza da fé,
corroboradas na esperança, generosas na caridade. A Ela suplico que lhes infunda um maior
dinamismo, fazendo de cada cristão um verdadeiro apóstolo. Como demonstração do meu
grande afeto, concedo-vos a implorada Bênção Apostólica.