Вы находитесь на странице: 1из 153

FACULDADE DE SÃO BENTO

BACHARELADO EM TEOLOGIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA: UM SINAL


DE MARIA NA PERSPECTIVA DO MISTÉRIO DA IGREJA

Anderson Adevaldo dos Santos

São Paulo
2017
2

FACULDADE DE SÃO BENTO


BACHARELADO EM TEOLOGIA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA: UM SINAL


DE MARIA NA PERSPECTIVA DO MISTÉRIO DA IGREJA

Monografia apresentada como exigência para


obtenção do título de Bacharel em Teologia.

Orientador: Prof. Dr. Pe. José Eduardo de


Oliveira e Silva.

São Paulo
2017
3

Anderson Adevaldo dos Santos

Nossa Senhora da Conceição Aparecida:


um sinal de Maria na perspectiva do mistério da Igreja

Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado em Teologia da


Faculdade de São Bento do Mosteiro de São Bento de São Paulo,
como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em
Teologia.

Orientador: Prof. Dr. Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva.

Trabalho de Conclusão de Curso defendido e aprovado em 23/11/2017, pela banca


examinadora:

_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva

_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Magno José Vilela

_________________________________________________________________________
Prof. João Luiz Palata Viola
4

Dedico este trabalho a todos os devotos de


Nossa Senhora da Conceição Aparecida, que
nos ensinam a amar a Bem-Aventurada
Virgem Maria, e a todos os que se dedicam a
refletir e ensinar o significado da sua imagem
trigueira.
5

Minha singela homenagem à Virgem Maria,


Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Mãe,
Rainha e Padroeira do Brasil, pelo transcurso
do Ano Jubilar comemorativo aos 300 anos do
encontro da sua imagem nas águas do Rio
Paraíba.
6

AGRADECIMENTOS

A Deus que, “em Aparecida, ofereceu ao povo brasileiro a sua própria Mãe” (Papa Francisco).

A Nossa Senhora que na sua querida imagem de Aparecida inspirou e conduziu esta reflexão.

A Ordem dos Servos de Maria que, com o olhar fixo Nela, me ensina seguir a Cristo.

Aos professores da Faculdade de São Bento que, com disposição mariana, me acompanharam
neste trabalho.

À minha família de pescadores que forjou a minha devoção mariana.


7

Há algo de perene para aprender sobre Deus e sobre a Igreja, em Aparecida; um


ensinamento, que nem a Igreja no Brasil nem o próprio Brasil devem esquecer.

Papa Francisco
8

RESUMO

Por ocasião Ano Mariano que a Igreja do Brasil proclamou, para celebrar o Jubileu dos 300
anos do encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, o presente trabalho
se propõe a apresentar uma mensagem eclesiológica a partir do seu contexto histórico de
origem e de sua imagem que é um sinal de Maria na perspectiva do mistério da Igreja. Tal
reflexão leva em conta o contexto do Brasil colonial do século XVIII, a devoção mariana no
país, a hermenêutica bíblica de Apocalipse 12,1 e o capítulo VIII da Constituição Dogmática
Lumen gentium sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, no mistério de Cristo e
da Igreja. O principal objetivo é oferecer um sentido teológico à imagem de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida, a fim de não restringi-la apenas a um evento histórico ou a um fator
devocional, mas compreendê-la na dimensão mariana da Igreja, para a qual a Virgem Maria é
membro, mãe e modelo. No encontro com o episcopado brasileiro, durante a Jornada Mundial
da Juventude de 2013, o Papa Francisco apresentou no seu discurso aos bispos, a imagem de
“Aparecida” e a “pesca milagrosa” como chave de leitura para a missão da Igreja segundo a
linguagem do Mistério. A partir deste texto, desenvolveu-se esta pesquisa que, empregando o
método de análise histórica, a hermenêutica exegética e patrística e alguns pronunciamentos
do magistério pontifício, pretende “restaurar” a imagem de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida na perspectiva do mistério, da vida e da missão da Igreja.

Palavras chaves: Aparecida. Maria. Igreja. Sinal. Mistério.


9

ABSTRACT

On the occasion of the Marian Year, the Church of Brazil proclaimed in order to celebrate the
300th anniversary of the image of Our Lady of Immaculate Conception Aparecida, the present
work proposes to present an ecclesiological message based on its historical context of origin
and of her image which is a sign of Mary in the perspective of the Church‟s mystery. This
refletion considers the context of colonial Brazil in the eighteeth century, Marian devotion in
the country, the biblical hermeneutics of the Dogmatic Constitution Lumen gentium about the
Blessed Virgin Mary, Mother of God, in the Christ and Church mystery. The main objective
is to offer a theological sense to the image of Our Lady of the Conception Aparecida, in order
not to restrict it only to a historical event or a devotional factor, but to understand it in the
Marian dimension of the Church, to which the Virgin Mary is a member, mother and model.
In his address to the bishops, during the World Youth Day of 2013, Pope Francis presented
the image “Aparecida” and “miracolous fishing” as a key to the Church‟s mission in the
language of the Mystery. From this text, this research was developed using the method of
historical analysis, the exegetical and patristic hermeneutics and some pronouncements of the
pontifical magisterium, intends to “restore” the imagem of Our Lady of the Conception
Aparecida in the perspective of the mystery, life and Church‟s mission.

Key words: Aparecida. Maria. Sign. Mystery.


10

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 15
1. ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENCONTRO DA IMAGEM DE APARECIDA ........ 19
1.1. O encontro histórico da imagem de Aparecida ................................................................. 19
1.1.1. A origem da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ................................ 19
1.1.1.1. Contexto histórico: o ouro, a vila e o conde ................................................................ 19
1.1.1.1.1. Descoberta, corrida e disputa do ouro..................................................................... 19
1.1.1.1.2. A Vila de Guaratinguetá: caminho de passagem ..................................................... 21
1.1.1.1.3. O “Conde” de Assumar............................................................................................ 22
1.1.1.2. O evento “Aparecida”: o rio, os pescadores e a imagem ............................................ 24
1.1.1.2.1. Data e situação histórica.......................................................................................... 24
1.1.1.2.2. Os protagonistas do fato .......................................................................................... 27
1.1.1.2.3. O “fato em si” ......................................................................................................... 28
1.1.1.3. Hipóteses sobre a origem da imagem de Aparecida .................................................... 29
1.1.2. A devoção, a imagem e o título de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ................ 30
1.1.2.1. A devoção e a iconografia de Nossa Senhora no Brasil .............................................. 31
1.1.2.2. Da Imaculada “portuguesa” à Aparecida “brasileira” ................................................ 32
1.1.2.2.1. Características da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ................ 33
1.1.2.3. “Aparecida”: um título de origem popular, devocional e bíblico ................................ 37
1.1.2.3.1. “Aparecida” é um título popular, “dado por todos” .............................................. 38
1.1.2.3.2. “Aparecida” é um título novo que propagou ainda mais a devoção mariana ........... 39
1.1.2.3.3. “Aparecida” é um título que possui conotação bíblica ........................................... 40
2. O SINAL DA MULHER "APARECIDA" ........................................................................ 41
2.1. A imagem de Aparecida a partir de Ap 12 ........................................................................ 41
2.1.1. O “sinal da mulher”....................................................................................................... 41
2.1.1.1. Quem é esta mulher? ................................................................................................... 43
2.1.1.1.1. Apocalipse 12 e a Igreja ........................................................................................... 43
2.1.1.1.2. Apocalipse 12 e Maria.............................................................................................. 46
2.1.2. O “sinal de Maria” ........................................................................................................ 48
2.1.2.1. Mulher-ícone da Igreja Virgem da fé e Servidora da Palavra ..................................... 50
2.1.2.1.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal de fé na fragilidade .............................................. 52
2.1.2.2. Mulher-ícone da Igreja Mãe na fonte batismal............................................................ 53
2.1.2.2.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal do compromisso batismal .................................... 56
11

2.1.2.3. Mulher-ícone da Igreja Esposa da esperança .............................................................. 58


2.1.2.3.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal de esperança em meio ao fracasso ...................... 60
3. A IMAGEM DE APARECIDA NO MISTÉRIO DA IGREJA...................................... 63
3.1. A mensagem de Aparecida sobre o mistério, a vida e missão da Igreja ........................... 63
3.1.1. “Corpo” e “Cabeça”: o mistério da Igreja e o primado petrino .................................. 63
3.1.1.1. “Corpo”: o mistério da unidade da Igreja .................................................................... 63
3.1.1.2. “Cabeça”: a natureza do primado petrino .................................................................... 66
3.1.1.3. “Primeiro o corpo, e depois a cabeça”: “Maria” e “Pedro” no barco da Igreja ........... 68
3.1.1.3.1. A pesca de “Tiberíades” e do “Paraíba” ................................................................ 70
3.1.1.3.2. “Pedro deve olhar para Maria” .............................................................................. 73
3.1.2. O “rosto”, as “mãos”, os “lábios” e a “lua”: a vida e a missão da Igreja ....................... 75
3.1.2.1. O diadema na testa: a comunhão trinitária .................................................................. 75
3.1.2.1.1. A Igreja como “ícone da Trindade” ........................................................................ 76
3.1.2.2. Olhos fechados e mãos postas: a oração...................................................................... 78
3.1.2.2.1. Os olhos .................................................................................................................... 81
3.1.2.2.2. As mãos..................................................................................................................... 82
3.1.2.3. Os lábios sorridentes: o anúncio alegre do Evangelho ................................................ 85
3.1.2.3.1. A presença evangelizadora de Maria na América Latina ........................................ 87
3.1.2.3.2. “Mãe dos cristãos” e “Estrela da Evangelização”: causa de nossa alegria .......... 90
3.1.2.4. A lua debaixo dos pés: a Igreja como sinal de Cristo.................................................. 93
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................... 101
ANEXOS ................................................................................................................................ 110
APÊNDICES .......................................................................................................................... 145
12

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Inmaculada Concepcíon de los Venerables, de Murillo (1678) ........................... p. 31


Figura 2: Nossa Conceição da Conceição de Vila Viçosa, Padroeira de Portugal ............... p. 31
Figura 3: Nossa Senhora da Conceição Aparecida antes do atentado de 1978 .................... p. 32
Figura 4: Protótipo da imagem de NSCA antes de ser “lançada” no rio .............................. p. 34
Figura 5: Entrada da Capela Batismal do Santuário Nacional de Aparecida ....................... p. 55
Figura 6: Ícone do encontro da imagem e da pesca milagrosa ............................................. p. 60
Figura 7: Papa Francisco diante do nicho de NSCA no Santuário Nacional ....................... p. 72
Figura 8: O Cardeal Damasceno oferece ao Santo Padre uma réplica de NSCA................. p. 72
Figura 9: Portal da Virgem ou trono de NSCA na nave sul do Santuário Nacional ............ p. 92
Figura 10: Detalhe do trono de Nossa Senhora da Conceição Aparecida ............................ p. 93
13

LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS

CDF – Congregação para a Doutrina da Fé


CELAM – Conselho Episcopal Latino-Americano
CIC – Catecismo da Igreja Católica
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
DAp – Documento de Aparecida
DCE – Deus caritas est
DP – Documento de Puebla
DS – Denzinger
EG – Evangelii Gaudium
GD – Gaudete in Domino
LF – Lumen Fidei
LG – Lumen gentium
MC – Marialis Cultus
NSCA – Nossa Senhora da Conceição Aparecida
RM – Redemptoris Mater
RVM – Rosarium Virginis Mariae
SC – Sacrosanctum Concilium
SM – Signum Magnum
SS – Spe Salvi
UR – Unitatis Redintegratio
UUS – Ut unum sint
14

LISTA DE ANEXOS

Anexo 1: A devoção mariana no Brasil antes de “Aparecida” ........................................... p. 106


Anexo 2: Apocalipse 12 e a iconografia da Imaculada Conceição .................................... p. 116
Anexo 3: Breve Cronologia dos 300 anos de “Aparecida” ................................................ p. 123
Anexo 4: “Aparecida”: uma mariofania “fora dos padrões” .............................................. p. 129
15

INTRODUÇÃO

O presente Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado Nossa Senhora da Conceição


Aparecida: um sinal de Maria na perspectiva do mistério da Igreja, inspirou-se,
primeiramente, no discurso do Santo Padre, o Papa Francisco, para o episcopado brasileiro, a
27 de julho de 2013, por ocasião da 28ª Jornada Mundial da Juventude. No discurso aos
bispos do Brasil, o Papa apresentou o contexto histórico do encontro, a “pesca milagrosa”, e a
própria imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como “chave de leitura para a
missão da Igreja” segundo a linguagem do “mistério”. Disse o Papa que em Aparecida, “Há
algo de perene para aprender sobre Deus e sobre a Igreja”.
Esta reflexão teológica acerca da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida,
desenvolvida em chave de leitura histórica, bíblica e eclesial, reconhece seus limites diante da
complexidade do tema, a começar pela própria semântica do termo “imagem” (do latim
imago; do grego eidôlon) cuja riqueza e amplitude produziram equivocidades no decorrer dos
séculos. O próprio cristianismo é herdeiro da tradição judaica acerca da proibição da
confecção e culto de qualquer representação plástica (cf. Ex 20,3), especialmente justificável
dentro de um ambiente predominantemente pagão e idólatra, ainda que elas existam desde a
primitiva aliança de Deus com o povo de Israel (cf. Ex 25,18-22; Nm 21,9; etc.). Nos
ensinamentos de Jesus e na pregação apostólica até os três primeiros séculos, também não há
qualquer referência explícita ao uso de imagens, ainda que existissem algumas inscritas nas
catacumbas ou em objetos litúrgicos.
A hesitação acerca da imagem foi superada definitivamente e justificada
teologicamente apenas no II Concílio de Nicéia (787) que recomendou a fabricação e
exposição de ícones de Cristo, da Virgem Maria, dos anjos e dos santos, salientando que a
imagem é apenas objeto de veneração, sendo que “a honra que lhe é atribuída não pára na
matéria mas „remonta ao protótipo‟” (BOESPFLUG, 2004, p. 871). Segundo Boespflug,

a imagem tem sua justificação na medida em que confirma à sua maneira o que o
querigma anuncia, a saber a “encarnação real e não ilusória do Verbo de Deus”;
assim, o ícone (e no seu rasto, sob benefício de inventário, a imagem religiosa) pode
ser compreendido como uma segunda voz, apoiando sem suplantar a primeira voz
do querigma, a do testemunho em corpo próprio disposto a ir até ao martírio (2004,
p. 871).

Segundo os pressupostos básicos e fundamentais da teologia da imagem, é que


ousamos apresentar a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, sobretudo, a
relação entre “matéria” e “protótipo”, “forma” e “conteúdo”, donde da “imagem” extrai-se
16

uma “mensagem”, algo que pode parecer, à primeira vista, muito desconcertante, mas a
própria etimologia do termo faz eco a este sentido original e genuíno, revelando a sua
finalidade.

IMAGO = IMAGEM: palavra latina que significa “sombra, espectro, fantasma,


visão, retrato, cópia, imitação, parábola, lembrança, sinal. IN + AGER = no campo.
AGGER, ERIS = terra, campo de terra. AGGERARE = amontoar terra. IMAGEM =
monte de terra ou terra arada, marcada. Na sua origem etimológica, imagem dá idéia
de terra que traz algum conteúdo [grifo meu] (PASTRO, 2016, p. 45).

No mundo atual, “onde a imagem abunda, onde sua referência ao real se desfaz”, a
imagem sacra “corre o risco de se ver amputada da função que lhe atribuíam os Padres de
Nicéia II: testemunhar a realidade histórica e „não ilusória‟ da encarnação” (BOESPFLUG,
2004, p. 874). Por isso, quando compreendida a sua verdadeira finalidade, além de servir ao
culto dos fiéis ou à devoção privada, a imagem sacra torna-se um instrumento pedagógico
eficaz para a comunicação do Mistério, nem sempre compreensível aos sentidos. Contudo, o
Ocidente cristão carece de “uma formação cristã para o uso da imagem religiosa” e “a
teologia cristã ainda pouco se preocupou com o que, da imagem, é propriamente imagem”
(Ibid., 2004, p. 874).
Deste modo, o ensejo da celebração do encontro da imagem tricentenária de Aparecida
é uma oportunidade significativa para a reflexão sob uma nova miragem hermenêutica acerca
da natureza, da vida e da missão da Igreja, unindo como quem tece uma rede, diversos
elementos teológicos, ainda que, sem desmerecer, fique a dever uma palavra acerca do
diálogo ecumênico, muito embora não deixe de buscar uma fundamentação teológica comum
a toda tradição cristã anterior às históricas cisões e divergências, de modo que não vem a ser
um obstáculo, mas pode ocasionar uma eventual abertura para um ulterior aprofundamento a
respeito de questões tão problemáticas neste campo, tais como o uso de imagens, a devoção
mariana, os dogmas marianos, as aparições de Nossa Senhora, entre outros.
Na mensagem para o Ano Mariano, a Conferência Nacional dos Bispos (CNBB)
indicou três objetivos para este Ano Santo: celebrar, fazer memória e agradecer. E na
cerimônia de lançamento do ano mariano, a 21 de setembro de 2016 em Brasília, o presidente
da CNBB, Dom Sérgio da Rocha, acrescentou que este ano também serve para “reaprender
com Nossa Senhora a como seguir Jesus Cristo, como ser cristão hoje”.
Como complemento a estes objetivos, na Carta Encíclica Redemptoris Mater, o Papa
João Paulo II apresentou o duplo sentido do Ano Mariano de 1984, celebrado em toda a
17

Igreja, que consistia em “rememorar” e “perspectivar” a pessoa e missão de Maria no mistério


de Cristo e da Igreja (cf. RM, n. 48).
Contudo, para viver plenamente estes trezentos anos, julgo necessário perscrutar o
sentido teológico do evento e da imagem de Aparecida, a fim de não restringi-lo apenas a uma
recordação histórica ou a uma devoção sentimental, mas a partir de uma nova miragem
contemplá-lo, compreendê-lo e assumi-lo segundo a dimensão mariana da Igreja, para a qual a
Virgem Maria é membro, mãe e modelo (cf. LG, n. 65).
O encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é uma “história
sagrada” surgida em meio a uma “história profana” que aconteceu no conturbado século
XVIII, durante um período histórico conflituoso e tenso em termos antropológico e étnico,
social, eclesial, político e econômico em nosso país, na época, colônia de Portugal. Segundo o
cantor e compositor Antônio Cardoso, na “imagem da santa achada no rio” está a “a
lembrança daquele Brasil de pobres e negros, de um branco estrangeiro de um povo servil”.
Encontrada na curva de um rio brasileiro, a imagem de Nossa Senhora da Conceição, uma
devoção já bastante difundida, mas com um novo significado em Aparecida, “apareceu” de
modo misterioso na encruzilhada do Brasil colonial. “Deus aparece nos cruzamentos”
(FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2013)), nos sinais simples das vicissitudes humanas e
históricas.
Nossa Senhora Aparecida, “uma imagem quebrada, uma Santa de barro, pequena e
frágil, sem nada de luxo” 1, é uma imagem de Nossa Senhora da Conceição com o acréscimo
da invocação e/ou título “Aparecida”, que está relacionada à circunstância histórica de como a
imagem foi encontrada pelos pescadores. Interessante é o modo como estes homens simples
interpretaram o fato, pois não disseram “pescamos (ou achamos/encontramos) uma imagem
de Nossa Senhora da Conceição”, mas repetiam: “Nossa Senhora da Conceição Aparecida”,
como se a própria Senhora tivesse tomado a iniciativa de “aparecer”, pois “Não foram os
pescadores que foram ao encontro da imagem da Virgem, mas foi ela que surgiu/apareceu ou
ainda se deixou encontrar nas águas e nas redes deles em dois momentos significativos [corpo
e cabeça].” (DA SILVA, 2014, p. 41), tornando-se para eles e para todos quantos veneram a
sua imagem tricentenária, um sinal do mistério de Deus que se revela na humildade e um
ícone da Igreja que, em Aparecida, deseja ser Servidora, Mãe e Esposa (cf. FRANCISCO,
S.S., Discurso (27.07.2013)).

1
Excerto da canção “A imagem da santa”, do canto e compositor Antônio Cardoso.
18

O “sinal de Aparecida” contém uma mensagem evangélica, profética e eclesial


importantes para a nossa realidade, embora seja tão misteriosa e silenciosa. Ainda que
nenhuma novidade venha acrescentar ao que já fora revelado pela Escritura e pela Tradição e
ensinado pelo Magistério da Igreja, ele vem “rememorar” e “perspectivar” alguns elementos
fundamentais da nossa fé e vida cristã que, ao longo do tempo, correm o risco de ser
esquecidos e que precisam ser resgatados para o autêntico seguimento de Jesus Cristo e para o
discipulado e missão da Igreja. Noutras palavras, “Aparecida” é um apelo à conversão e uma
proposta para tempos de crise, assim como afirmou o Papa João Paulo II no Centenário de
Coroação de nossa Mãe, Rainha e Padroeira (1904-2004): “A história ensina que Maria é a
verdadeira salvaguarda da fé; em cada crise, a Igreja reúne-se à volta d'Ela”.
Considerada a abordagem histórica e devocional do evento “Aparecida”, vamos
contemplar a sua imagem e mensagem, conforme a eclesiologia “mariana” do Concílio
Vaticano II, numa dimensão que busca compreender algumas perspectivas do mistério, da
vida e da missão da Igreja, pois aquela imagem pequena e morena, quebrada e restaurada,
contém uma chave de leitura teológica para a Igreja e para cada fiel que, pela força do
Batismo, é chamado a ser sinal de Cristo no mundo.
19

1. ASPECTOS HISTÓRICOS DO ENCONTRO DA IMAGEM DE APARECIDA

1.1. O encontro histórico da imagem de Aparecida

Na visita que fez ao Santuário Nacional de Aparecida, quando esteve no Brasil no ano
de 1980, o Papa João Paulo II apresentou as suas impressões acerca do encontro da imagem
de Nossa Senhora da Conceição, “carinhosamente chamada a „Aparecida‟” (1980, p. 148),
como uma narrativa simples e encantadora. E na simplicidade da sua história, quando a lemos
com “religiosa atenção”, percebemos que ali há um sinal do mistério de Deus a ser revelado...

1.1.1. A origem da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida

O encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida localiza-se no


ambiente histórico da colonização portuguesa, que esteve fortemente ligado a dois ciclos
econômicos importantes para o povoamento do imenso e ameaçado território brasileiro, entre
os séculos XVI e XVIII: a cana-de-açúcar e o ouro. No âmbito nacional aconteceu uma
verdadeira “corrida” do Nordeste para o Sudeste brasileiro, especialmente para a Capitania de
São Vicente, durada de 1534 a 1709, palco de violentos conflitos entre mestiços e emboabas.
No contexto de uma vila até então de pouca importância, mas que se tornaria rota
obrigatória para a passagem de um “conde”, surgiu algo muito antigo e ao mesmo tempo tão
novo, apesar de, no início ser um “fenômeno” discreto, principalmente no cenário nacional e
devocional. Assim como o ouro das jazidas mineiras, o maior tesouro da cultura e da devoção
nacional também foi descoberto na remota Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro, ainda
que não fosse na peneira dos garimpeiros, mas na rede de três pobres pescadores: a imagem
de Nossa Senhora da Conceição, chamada pelo povo pelo nome de “Aparecida”.

1.1.1.1. Contexto histórico: o ouro, a vila e o conde

1.1.1.1.1. Descoberta, corrida e disputa do ouro

Com o declínio da produção açucareira na segunda metade do século XVII, o destino


econômico da Metrópole e, consequentemente da colônia, dependia dos metais preciosos,
principalmente o ouro, descobertos inicialmente na região de Minas Gerais pelos
20

bandeirantes. A nova atividade econômica na colônia durante os séculos XVII e XVIII foi a
mineração (VICENTINO; DORIGO; 1997, p. 128).
A descoberta do ouro não atraiu apenas os bandeirantes, mas a todo o tipo de pessoas,
principalmente a população do planalto de Piratininga (os paulistas), a mão-de-obra escrava
do Nordeste, antes concentrada na produção do açúcar (ainda que não houvesse
desaparecido), os estrangeiros, principalmente portugueses. Esta variedade de pessoas com
um interesse comum gerou todo tipo de animosidade e conflitos, principalmente entre os
“descobridores do tesouro”, isto é, o povo nativo da região, e os forasteiros chamados
pejorativamente pelos nativos de emboabas. Estes personagens da nossa história
protagonizaram o que ficou conhecido como a “Guerra dos Emboabas” (1708-1709), um
momento marcado por ódio, rivalidades e disputas cuja principal tragédia foi um massacre de
aproximadamente trezentos paulistas. Mas com a criação da Capitania de São Paulo e Minas
de Ouro2, desmembrada da capitania do Rio de Janeiro, a disputa foi minimizada e o conflito
administrado com mais disciplina (VICENTINO; DORIGO, 1997, p. 146).
Apesar das discórdias provocadas pela “corrida do ouro”, a economia mineira
“constituiu, no século XVIII, um mercado de proporções superiores ao que havia
proporcionado a economia açucareira em sua etapa máxima de prosperidade.” (FURTADO,
1975, p. 77). Todavia, tanta prosperidade exigiu dos exploradores muita penúria,
especialmente por conta das dificuldades de abastecimento e de transporte em uma região
montanhosa e distante do litoral. O abastecimento local era praticamente inexistente,
dependendo do que era comercializado nas regiões vizinhas, que aproveitava para elevar o
preço dos alimentos e do serviço dos animais de carga. Segundo Celso Furtado, “a fome
sempre acompanhava a riqueza nas regiões do ouro.” (Ibid., 1975, p. 76), ainda mais porque
toda esta riqueza era na sua maior parte produto de exportação para a Europa. O pouco que
ficou no Brasil foi investido na produção cultural e artística, principalmente na arquitetura e
arte sacra barroca que revestiu de alto a baixo as paredes, tetos, colunas e altares de muitas
igrejas por todo o Brasil, especialmente na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e, de
forma espetacular as igrejas mineiras.

2
Com a provisão régia de D. João V, datada de 23 de novembro de 1709, a Capitania de São Vicente fora
desmembrada da Capitania do Rio de Janeiro, tornando-se a Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro. Com
uma área de aproximadamente 3.265.562 k², seu território abrangia o que hoje corresponde aos estados de São
Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Santa Catarina, Rio Grande do Sul até a Colônia do Sacramento (atual
território do Uruguai) (BARRETO DO AMARAL, 1980, p. 113). A principal razão desta separação foi para
melhorar a administração das Minas de Ouro tanto que, apesar da sede oficial da nova capitania estar em São
Paulo, por motivos fiscais e disciplinares, a sede administrativa foi instalada na localidade de Nossa Senhora do
Pilar de Vila Rica de Ouro Preto ou simplesmente “Vila Rica”, atual Ouro Preto – MG.
21

1.1.1.1.2. A Vila de Guaratinguetá: caminho de passagem

No caminho entre a sede oficial (São Paulo) e a sede administrativa (Vila Rica) da
Capitania de São Vicente, estava o Vale do Paraíba3, trajeto por onde passava o ouro extraído
do subsolo brasileiro em sua rotineira viagem do interior para ser transportado, na quase
totalidade, até Portugal. À beira da estrada se encontrava a Vila de Guaratinguetá, cujo
apelativo, de origem tupi, significa “guará-branco” ou “garças brancas”, e estava localizada
numa privilegiada posição geográfica e economicamente estratégica entre São Paulo e as
Minas de Ouro, além de ser ponto de partida para o porto de Parati, no Rio de Janeiro, o que a
tornou um centro de convergência para os viajantes em busca de ouro e pedras preciosas.
Segundo Alvarez,

Qualquer tropa – assim se chamavam as caravanas que iam em cima de jumentos,


levando carroças – que levasse alguma carga valiosa, ou qualquer viajante que
tivesse algo importante a fazer no Brasil do século XVIII, acabava passando por
Guaratinguetá (2014, p. 10).

Como a maioria das vilas e póvoas da época colonial, o pequeno povoado nasceu
aproximadamente no ano de 1630 ao redor da rústica capela de palha dedicada a Santo
Antônio, com o nome de “Povoação Nova do Paraíba”. A partir do ano de 1636, “o povoado
de Guaratinguetá cresce com o desenvolvimento do trabalho de penetração e conquista do
solo” (AZEVEDO, 2000, p. 54), especialmente com a concessão das sesmarias, o que
possibilitou a ocupação e o cultivo da terra. Mas segundo alguns historiadores, sua efetiva
ocupação iniciou a partir de 1640 (BRUSTOLONI, 1998, p. 27). A 13 de junho de 1651, o
povoado é elevado à condição de vila com os requisitos para o funcionamento da vida civil e
religiosa, sendo dirigido por um capitão-mor, constituído de um pequeno Senado e Câmara e
com a presença de um pároco e de duas irmandades.
Mas a partir de 1685, a Vila começou a sofrer as transformações advindas da
descoberta de metais preciosos, pois

era a passagem obrigatória das caravanas de migrantes e das tropas que


transportavam ouro e mercadorias da região de Ouro Preto, em Minas Gerais, para o
porto de Parati, RJ [...] Nas últimas décadas do século dezessete, a Vila de
Guaratinguetá obteve o maior desenvolvimento e riqueza graças à corrida do ouro,
que fez dela um entreposto de mercadorias e escravos (BRUSTOLONI, 1998, p. 27-
28).

3
“As terras do Vale do Paraíba estão localizadas no eixo Rio de Janeiro – São Paulo, compreendidas entre os
primeiros trechos do Rio Paraíba do Sul e as encostas das Serras do Mar e da Mantiqueira” (FERNANDES;
COELHO, 2013, p. 11) e acompanha paralelamente o litoral norte do Estado de São Paulo. Na época da
mineração, foi um caminho natural entre as Minas e o mar e teve um importante papel no desenvolvimento
econômico de São Paulo.
22

Apesar do próspero desenvolvimento, “a população que habita às margens do Rio


Paraíba encontra muitas dificuldades” (AZEVEDO, 2000, p. 55), entre as principais estava o
problema da alimentação. Assim como sofreu com a “corrida do ouro”, a população local não
demorou a sentir os efeitos da Guerra dos Emboabas (1708-1709). A economia ali praticada
era de subsistência, que consistia no sustento pessoal das famílias, sendo o excedente
destinado ao comércio à beira da estrada. Contudo, já não tinham mais para quem vender o
que plantavam, pois os tropeiros deixaram de fazer o trajeto por aquela rota, o que gerou um
lastro de miséria na região.
A alimentação do povo era restrita ao que comiam das suas plantações. O que também
agravou a situação foi o desaparecimento dos peixes do rio, provavelmente por causa do
impacto do garimpo de metais preciosos. A população que vivia às margens do Rio Paraíba4
sempre foi de pessoas pobres, de posição social pouco definida, seguramente mestiça de
origem portuguesa e indígena.
Enquanto que a situação política de São Paulo mantinha-se calma, na região das Minas
continuava tensa, pois o ciclo do ouro ainda não havia atingido o seu apogeu. Mas para aquela
população, era o fim do “sonho de ouro” e o começo de um longo período de recessão até
meados do século XVIII, a partir do qual teriam que se acostumar com a implantação da cana-
de-açúcar, dos engenhos e dos escravos na região do Vale. Pouco a pouco a policultura
familiar que consistia principalmente nas roças de milho, mandioca, arroz e feijão e na criação
de animais domésticos, transformou as sesmarias em pequenas e médias propriedades 5, o que
ocasionou o aumento das populações ribeirinhas que viviam basicamente da pesca.

1.1.1.1.3. O “Conde” de Assumar

Por causas das tensões advindas da exploração do ouro, o governador da Capitania, D.


Braz Baltazar da Silveira, comandava São Paulo e as Minas da sede administrativa em Vila
Rica, a principal zona de conflitos, e residia em Ribeirão do Carmo (atual Mariana – MG).
Mas como estava prestes a concluir o seu quadriênio, D. João V nomeou a 22 de dezembro de

4
Palavra de origem indígena, “Para’iwa”, segundo os Tamoios que habitavam primitivamente a região, significa
“rio ruim/imprestável”, provavelmente porque não era um bom facilitador de peixes. Segundo o Dicionário
Aurélio da Língua Portuguesa, “paraíba” significa “trecho de rio que não pode ser navegado.” (1986, p. 1266). O
Rio Paraíba é formado pelo rio Paraitinga e pelo rio Paraibuna. Originando-se da Serra da Bocaina e da Serra do
Mar, respectivamente, os dois rios se encaminham para São Paulo com o nome de “Paraíba”.
5
“Desde 1710, segundo é mencionado em documentos, médias e pequenas propriedades começam a se irradiar
no Itaguaçu, Ponte Alta, Ribeirão do Sá, Pitas e Aroreira. Tudo isto se deve ao desenvolvimento da policultura
de natureza familiar.” (AZEVEDO, 2000, p. 56).
23

1716 o novo governador e capitão geral, D. Pedro Miguel de Almeida e Portugal, “um moço
com menos de trinta anos de idade, muito religioso, muito disciplinado, de vez que era militar
de carreira” (MACHADO, 1976, p. 140), posteriormente conhecido como o Conde de
Assumar (1718), o terceiro que administrou a região até 4 de setembro de 1721.
O cronista do “Diário da Jornada”, um companheiro anônimo do governador, relatou
pormenorizadamente a trajetória de D. Pedro de Almeida na sua viagem histórica do Rio de
Janeiro a Minas Gerais, tendo obrigatoriamente no seu itinerário, a sede da Capitania, o Vale
do Paraíba e a Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá.
No dia 17 de outubro de 1717, o Governador chegou a Guaratinguetá ao meio dia e foi
recepcionado festivamente com todas as honras. Durante o tempo que permaneceu na Vila, de
dezessete a trinta de outubro, D. Pedro Miguel aproveitou para organizar e pôr em ordem o
quadro da vida administrativa do lugar. Por isso proveu ofícios, confirmou patentes e outros
postos de governança. Mas sua principal atividade foi ordenar a prisão e castigar os
criminosos e rebeldes, o que lhe deu a fama de ser um homem cruel e sanguinário, por causa
de suas atitudes enérgicas para punir os subversivos e combater o banditismo dos aventureiros
nas Minas a fim de manter equilibrada e salvaguardada a ordem pública e os interesses
econômicos da Coroa Portuguesa.
O cronista do “Diário da Jornada” registrou que o povo da Vila era violento e
assassino, tendo contabilizado dezessete mortes no ano anterior à visita do Conde. Na opinião
de Luciano Ramos, “Para uma Vila com média de três mil habitantes, esse número era de fato
assustador.” (1992, p. 170). “O ambiente de instabilidade social refletia as lutas e rivalidades
da região mineradora, tornara-se reduto de criminosos e marginais” (BRUSTOLONI, 1998, p.
30) e, como a Vila de Guaratinguetá era “ponto do comércio de subsistência e da jornada de
pessoas que vinham do litoral e do Vale do Paraíba tentar a riqueza para além da Serra da
Mantiqueira, a insegurança e a violência trazidas pelos aventureiros estavam próximas da vida
local.” (CORDEIRO; RANGEL; LUÍS, 2008, p. 12). Consta ainda nas Ânuas dos Padres
Jesuítas de 1748 e 1749, que lá pregaram as Santas Missões: “Esse povoado se consumia em
acirradas inimizades...”.

Estamos diante da gênese do encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição:

 o contexto econômico da “corrida do ouro” que, apesar de toda riqueza e


prosperidade que proporcionou a alguns poucos, provocou disputas violentas e
24

sangrentas entre nativos e estrangeiros e também, paradoxalmente, fome e misérias


nas regiões auríferas das Minas e nas localidades próximas da “rota do ouro”;

 o contexto social da formação do povo brasileiro, desde o princípio aberto à


pluralidade e à mestiçagem, ainda que não tenham faltado disputas entre os povos aqui
nascidos e chegados, principalmente indígenas, colonizadores portugueses e seus
descendentes e negros traficados da costa africana;

 o contexto antropológico e social da escravidão negra, que deflagrava uma situação


desumana e tragicamente social desde os meados do século XVI até praticamente o
final do século XVIII, sendo o Brasil um dos últimos países a abolir a escravatura,
somente no século seguinte;

 o contexto religioso de um catolicismo popular e devocional do propagado culto


mariano no Brasil, desde a chegada dos colonizadores, sob os mais variados títulos e
invocações, entre os quais se destacava a Padroeira do Império português e de suas
possessões, Nossa Senhora da Conceição;

 o contexto local da passagem de um Conde truculento na Vila de Guaratinguetá que,


por meio da repressão, veio a pacificar os conflitos e a reestabelecer a ordem nas
zonas mineradoras para garantir os interesses econômicos da Coroa;

É neste contexto do Brasil Colônia do início do século XVIII que surge, então, das
águas de um rio, na rede de três pescadores, uma imagem...

1.1.1.2. O evento “Aparecida”: o rio, os pescadores e a imagem

O principal documento que narra o encontro da imagem de Nossa Senhora da


Conceição, que está registrado no I Livro Tombo da Paróquia de Santo Antônio de
Guaratinguetá, 1757-18736, folhas 98v e 99, diz o seguinte:

6
O Pe. João de Morais e Aguiar, pároco da Vila, redigiu o I Livro Tombo da Paróquia de Santo Antônio de
Guaratinguetá. O termo de abertura do livro dizia que o primeiro conteúdo a ser redigido deveria ser um
histórico da Igreja Matriz e das capelas adjacentes. Como desde 1743 já havia sido aprovado o culto e a
construção de uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, é na seção que conta o histórico
25

Notícia da Aparição da Imagem da Senhora

No ano de 1719, pouco mais ou menos, passando por esta Vila para as Minas,
o Governador delas e de São Paulo, o Conde de Assumar, Dom Pedro de Almeida e
Portugal, foram notificados pela Câmara os pescadores para apresentarem todo o
peixe que pudessem haver para o dito Governador.
Entre muitos foram a pescar Domingos Martins Garcia, João Alves e Filipe
Pedroso com suas canoas. E principiando a lançar suas redes no Porto de José
Corrêa Leite, continuaram até o Porto de Itaguassu, distância bastante, sem tirar
peixe algum. E lançando neste porto, João Alves a sua rede de rasto, tirou o corpo da
Senhora, sem cabeça; lançando mais abaixo outra vez a rede tirou a cabeça da
mesma Senhora, não se sabendo nunca quem ali a lançasse. Guardou o inventor esta
imagem em um tal ou qual pano, e continuando a pescaria, não tendo até então
tomado peixe algum, dali por diante foi tão copiosa a pescaria em poucos lanços,
que receoso, e os companheiros de naufragarem pelo muito peixe que tinham nas
canoas, se retiraram a suas vivendas, admirados deste sucesso.
Filipe Pedroso conservou esta Imagem seis anos pouco mais ou menos em
sua casa junto a Lourenço de Sá; e passando para a Ponte Alta, ali a conservou em
sua casa nove anos pouco mais ou menos. Daqui se passou a morar em Itaguassu,
onde deu a imagem a seu filho Atanásio Pedroso, o qual lhe fez um oratório tal e
qual, e, em um altar de paus, colocou a Senhora, onde todos os sábados se ajuntava a
vizinhança a cantar o terço e mais devoções. Em uma dessas ocasiões se apagaram
duas luzes de cera da terra repentinamente, que alumiavam a Senhora, estando a
noite serena, e querendo logo Silvana da Rocha acender as luzes apagadas também
se viram logo de repente acesas sem intervir diligência alguma: foi este o primeiro
prodígio, e depois, em outra semelhante ocasião, viram muitos tremores no nicho e
no altar da Senhora, que parecia cair a Senhora, e as luzes tremulas, estando a noite
serena.
Em outra semelhante ocasião, em uma sexta-feira para o sábado (o que
sucedeu várias vezes), juntando-se algumas pessoas para cantarem o terço, estando a
Senhora em poder da Mãe Silvana da Rocha, guardada em uma caixa ou baú velho,
ouviram dentro da caixa muito estrondo, muitas pessoas das quais se foi dilatando a
fama até que, patenteando-se muitos prodígios que a Senhora fazia, foi crescendo a
fé e dilatando-se a notícia, e, chegando ao R. Vigário José Alves Vilella, este e
outros devotos lhe edificaram uma capelinha e depois, demolida esta, edificaram no
lugar em que hoje está com grandeza e fervor dos devotos, com cujas esmolas tem
chegado ao estado em que de presente está. Os prodígios desta Imagem foram
autenticados por testemunhas que se acham no Sumário sem Sentença, e ainda
continua a Senhora com seus prodígios, acudindo à sua Santa Casa romeiros de
partes muitos distantes a gratificar os benefícios recebidos desta Senhora (apud
BRUSTOLONI, 1998, p. 44-45).

O primeiro relato escrito sobre este acontecimento é um texto de autoria do pároco


anterior, o Pe. José Alves Villela, o qual foi transcrito pelo Pe. João de Morais Aguiar no
mencionado Livro Tombo. No singelo relato, mas muito bem construído e articulado, é
ressaltado o ano do encontro da imagem, a presença do Governador na Vila de Guaratinguetá,
o edital da Câmara para os pescadores, entre os quais se destacam o nome de três. Em
seguida, narra-se o fato miraculoso da pesca, primeiro a imagem dividida em corpo e cabeça e
depois a abundância de peixes; o início do culto na casa de um dos pescadores; a construção

das capelas que consta a origem e o início do culto mariano naquela localidade a partir do encontro de uma
imagem nas águas do Paraíba.
26

da primeira capela/oratório, do culto e dos milagres que ali se sucederam; o movimento de


peregrinos e a igreja que fora construída com a aprovação diocesana do culto.

1.1.1.2.1. Data e situação histórica

Quanto à data do encontro da imagem, não há nada nem algum documento que diga
com exatidão o dia e o mês que este fato aconteceu e, até o ano mencionado no Livro Tombo
da Paróquia está errado. O texto escrito pelo Pe. Vilella diz: “No ano de 1719, pouco mais ou
menos, passando por esta Vila para as Minas, o Governador delas e de São Paulo, o Conde
de Assumar, Dom Pedro de Almeida e Portugal...”. Como o encontro da imagem está
associado diretamente à pesca e esta, consequentemente, ao banquete que a Câmara gostaria
de oferecer ao Governador que estava de passagem pela Vila, conclui-se que o ano “1719” foi
escrito equivocadamente, pois o documento oficial de D. Pedro de Almeida Portugal como
governador da Capitania, assim como o seu “Diário da Jornada”, certifica que o ano em que
tomou posse e passou por Guaratinguetá durante sua histórica viagem de São Paulo para as
Minas é, de fato, o ano de 1717.
A partir do “Diário da Jornada” é possível delimitar o período em que aconteceu a
pesca que deu origem ao culto de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Tendo presente
que o governador chegou à Vila no dia 17 e ali permaneceu até 30 de outubro, enquanto
aguardava a chegada de sua bagagem que vinha do Porto de Parati – RJ, a primeira hipótese é
que a imagem foi encontrada neste período. Entretanto, se eram destinados a um banquete de
recepção para D. Pedro de Almeida e sua comitiva, tal como diz o Livro Tombo – “foram
notificados pela Câmara os pescadores para apresentarem todo o peixe que pudessem haver
para o dito Governador” – provavelmente a pescaria ocorreu antes desta data, talvez de sexta
para sábado, de 15 para 16 de outubro, sendo esta a hipótese mais razoável.
Mas por que peixes para o governador e não outra coisa? A chegada do Governador
estava prevista para a sexta-feira, dia de abstinência de carne. Mas segundo o diário da
viagem, por conta de uma indisposição de saúde e também por causa das chuvas, a jornada foi
adiada para o dia seguinte, o que obrigou o Governador a se hospedar num sítio distante 13
km de Guaratinguetá. Por isso, D. Pedro prosseguiu viagem apenas no domingo (17),
chegando ao meio-dia e sendo recepcionado provavelmente com o banquete de peixes que
estava programado para alguns dias antes. Além disso, os peixes não poderiam ser pescados
27

com muita antecedência, mas próximo do evento porque não havia condições de conservação
por muitos dias. Logo que pescado tinha de ser consumido em pouco tempo7.

1.1.1.2.2. Os protagonistas do fato

No desejo de oferecer ao Governador e à sua comitiva um banquete de recepção, a


Câmara da Vila de Guaratinguetá convocou todos os pescadores da região a apresentarem
todo o peixe que conseguissem e, “Entre muitos foram a pescar Domingos Martins Garcia,
João Alves e Filipe Pedroso com suas canoas”. Os três pescadores, entre muitos que
poderiam ter encontrado ao invés de peixes uma imagem de Nossa Senhora da Conceição nas
malhas de suas redes, são personagens reais8.
Quanto à situação social e econômica dos três pescadores, ainda que não haja qualquer
documento escrito a respeito, é possível imaginar que o contexto daqueles pescadores não seja
muito diferente da maioria dos outros que com suas famílias viviam às margens e nas
proximidades do Rio Paraíba. Como vimos, a situação de fome advinda dos conflitos em
torno da exploração do ouro e a provável contaminação das águas que possivelmente teriam
tornado aquele rio imprestável (= paraíba) graças ao garimpo, certamente dificultava a
situação daquelas famílias sustentadas a partir do pescado e do comércio com as tropas que
cruzavam aquela região entre São Paulo e as Minas de Ouro, coisa que não acontecia mais.
Por isso, aquela gente mantinha-se como podia, com as suas roças de milho e mandioca. A
população do lugar também descendia de paulistas mestiços, ou seja, não eram portugueses,
negros ou índios, coisa que os colocava numa posição social indefinida segundo os padrões da
época. Como diz um cronista daquele tempo, o que eles herdaram dos seus descendentes foi a
pobreza (RAMOS, 1992, p. 55).

7
“Conforme o costume e condições da época, as grandes e solenes refeições (em dias de festa como em dias de
jejum e de abstinência) realizavam-se pelo meio dia e não à noite. Portanto, mesmo que o Governador chegasse
ao cair da tarde anterior, previa-se o almoço festivo para o sábado. Também, naquele tempo toda a pesca se fazia
para o mesmo dia do consumo ou para o dia imediato, pois não havia ainda os recursos de prolongada
conservação; necessariamente fora ordenada de sexta para sábado.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 162).
8
O nome dos três pescadores – Domingos Martins Garcia, João Alves e Filipe Pedroso – se encontram
registrados nos livros de batismo, casamento e óbito da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá, a partir dos
quais é possível identificar certo grau de parentesco entre eles. Na Paróquia foram batizados os filhos de
Atanásio Pedroso, que são João (1720) e José (1745), netos de Filipe Pedroso. João Alves é uma das testemunhas
do casamento de Filipe Pedroso com Verônica da Silva. Domingos Garcia Alves e João Alves são da mesma
família, provavelmente pai e filho respectivamente, pois, Silvana da Rocha, nome que também aparece no relato
do encontro, é considerada mãe de um dos pescadores e casada com Domingos Garcia, logo deve ser a mãe de
João Alves por possuir o mesmo sobrenome de Domingos Garcia Alves. Além disso, Silvana da Rocha era irmã
de Filipe Pedroso, o terceiro pescador, que consequentemente era cunhado de Domingos e tio de João Alves.
Além disso, Filipe Pedroso era da família de Maria Leite Pedroso, esposa de Gaspar, o irmão de José Côrrea
Leite, proprietário do porto em que os três deram início à pesca.
28

1.1.1.2.3. O “fato em si”

O centro da narrativa do encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição nas


águas do Rio Paraíba do Sul, que constitui o “fato em si”, divide-se em três partes:

1ª) O itinerário da pescaria: “E principiando a lançar suas redes no Porto de José Corrêa
Leite, continuaram até o Porto de Itaguassu, distância bastante, sem tirar peixe algum”. Os
três pescadores partindo do porto fluvial de José Corrêa Leite9, que ficava à margem esquerda
do rio, na paragem denominada Tetequera (MACHADO, 1976, p. 150), a três léguas do
município de Pindamonhangaba, iniciaram a pescaria, como já se discutiu, provavelmente na
noite do dia 15 (sexta) para o dia 16 (sábado) de outubro. Apesar de não haver qualquer coisa
que o diga, provavelmente lançaram as redes a noite inteira sem sucesso, por conta da
distância que percorreram até o Porto de Itaguaçu (que significa “Pedra Grande”), na margem
direita do rio, distante a 6 ou 8 km de Guaratinguetá, no local a ser futuramente denominado
de “Aparecida”. Certamente foram muitas tentativas, muitos lanços de rede, sem conseguir até
aquele momento qualquer peixe no rio que, apesar das suas curvas sinuosas, margens cobertas
de vegetação e fundo lodoso, condições apropriadas para a proliferação de peixes, era
imprestável, tal como o seu próprio nome indica.

2ª) O encontro do corpo e da cabeça da imagem: “E lançando neste porto, João Alves a sua
rede de rasto, tirou o corpo da Senhora, sem cabeça; lançando mais abaixo outra vez a rede
tirou a cabeça da mesma Senhora...”. Mas no porto de Itaguaçu, sem saber qual a hora, a rede
de João Alves ficou pesada, o que certamente despertou a esperança por peixes, após tantas
tentativas frustradas. Mas nas malhas da tarrafa do pescador, o que “apareceu” foi o corpo de
uma imagem quebrada e, um pouco mais abaixo da onde tinha lançado outrora a rede, a pouca
distância, pescou também a cabeça que encaixava no corpo da imagem que acabara de
resgatar do rio.

3ª) A pesca milagrosa: “Guardou o inventor esta imagem em um tal ou qual pano, e
continuando a pescaria, não tendo até então tomado peixe algum, dali por diante foi tão

9
“Aos 21 de junho de 1712 essas terras foram adquiridas pelo Capitão JOSE CORREIA LEITE [...] sendo
morador em sua fazenda do rio Paraíba abaixo, em Pindamonhangaba, obteve outras terras e fez edificar em seu
sítio uma capela sob a invocação de N. Sra. do Rosário, a qual tornou-se conhecida pela denominação „Capela
dos Correias‟. Nessa capela entre Guaratinguetá e Pindamonhangaba foram realizados muitos batizados,
matrimônios e sepultamentos... Julgam ter sido aí batizado Frei Galvão, o descendente sobrinho-neto do
fundador.” (MACHADO, 1976, p. 150).
29

copiosa a pescaria em poucos lanços, que receoso, e os companheiros de naufragarem pelo


muito peixe que tinham nas canoas, se retiraram a suas vivendas, admirados deste
sucesso...”. Nos lanços de rede seguintes ao encontro da imagem, a pesca foi tão copiosa que
os pescadores temiam naufragar. Deste modo, é que os três pescadores conseguiram cumprir
com aquele mandato da Câmara Municipal e abastecer a mesa do Governador e de sua
comitiva que, mui provavelmente nem sequer ficou sabendo da procedência milagrosa
daqueles peixes tão abundantes que eram para ser comidos em um dia de abstinência, mas
chegaram às redes dos pobres pescadores e à mesa do ilustre visitante em um domingo.

1.1.1.3. Hipóteses sobre a origem da imagem de Aparecida

Mas como uma imagem de aproximadamente 39 cm, feita de terracota, veio


“aparecer” no rio, apesar do próprio autor da legenda de origem da imagem informar: “não se
sabendo nunca quem ali a lançasse”? Como faltam documentos históricos a este respeito,
temos de nos mover no campo das hipóteses. Na obra “Aparecida: uma novela sobre a história
da imagem antes de ter sido encontrada no Rio Paraíba em 1717”, o seu autor, o Cônego
Francisco Maria Bueno de Sequeira, dá uma explicação prévia quanto à origem remota da
imagem a partir de três hipóteses:

1. A imagem foi lançada ao rio por seus próprios possuidores, depois de se ter
quebrado acidentalmente. Não podendo ou não sabendo restaurá-la, podiam tê-la
enterrado, como geralmente se usa. Preferiram lançá-la ao rio.

2. Uma enchente invadiu a casa dos donos da imagem, e esta foi arrastada ao rio
durante o refluxo das águas.

3. A imagem foi atirada ao rio por mãos sacrílegas (2016, p. 17-18).

Como naquela época do Brasil colonial, havia uma grande fabricação de imagens com
a efígie de Nossa Senhora da Conceição, também para os oratórios familiares e capelas
particulares, como é o caso das capelas de fazendas e sítios, é provável que a imagem
encontrada no rio pertencesse a algum destes lugares familiares, especialmente por conta do
tamanho, sendo muito pequena para uma igreja paroquial ou capela pública, e também pela
forma rústica dos seus traços. Apesar de se tratar de uma imagem de estilo barroco, não se
compara à exuberância de outras imagens barrocas esplêndidas na forma, nos detalhes e no
tamanho. Como também era costume, caso alguma imagem sacra fosse extraviada ou
30

quebrada, a piedade dos fiéis não se desfazia abruptamente, mas respeitosamente a enterrava
ou colocava em água corrente.
Mas entre tantas hipóteses prováveis e legitimas, João Machado na sua vasta obra
sobre Aparecida na história e na literatura, destaca uma tradição oral recolhida pelo Pe.
Valentim Mooser que pretende explicar a origem da imagem de nossa Padroeira:

Segundo os antigos moradores de Aparecida, em Roseira Velha, antes do encontro


da imagem, numa das fazendas à margem do rio Paraíba, havia uma capela com uma
imagem de Nossa Senhora para veneração e para devoções dos escravos do lugar. A
pequena capela ficava bem na ribanceira do rio. As águas tranquilas do Paraíba, por
ocasião das chuvas avolumam-se, transformando em caudal agitado o leito do rio. A
correnteza forte vai aluindo as margens e barrancos e leva de arrasto tudo o que
encontra no caminho. A pequenina capela dedicada a N. Senhora e na qual os
escravos a invocavam piedosamente nunca mais foi vista após uma estação de
chuvas torrenciais. E nunca mais se soube da imagem de Nossa Senhora. Há,
portanto, a possibilidade de ter sido esta pequenina imagem levada pela correnteza
do rio, e achada depois na prodigiosa pesca de 1717, na predestinada curva do
Paraíba onde ela se teria abrigado até o dia providencial de seu aparecimento (apud
MACHADO, 1976, p. 153-154).

Interessante perceber que este relato parece descrever, ainda que não demonstre
explicitamente, a “Capela dos Correias”, uma capela de fazenda no porto de José Corrêa Leite
que era dedicada a Nossa Senhora do Rosário, devoção especial dos escravos, e de onde
partiram os três pescadores. Talvez a força da correnteza tenha levado a imagem até a altura
do Porto de Itaguaçu e, tenha lá se quebrado em “corpo” e “cabeça”, quando estacionou no
fundo do rio. Apesar das semelhanças e probabilidades, estas ainda permanecem hipóteses
difíceis de comprovar. Também na imaginação popular surgiram mitos e lendas para explicar
como a imagem foi parar no interior do rio como, por exemplo, a da mulher que jogou a
imagem de Nossa Senhora da Conceição durante uma enchente do rio a fim de afugentar uma
serpente que atemorizava a população local ou a lenda que conta que a imagem fora esculpida
toscamente por um escravo que, ao ser descoberto de sua criação, fora castigado e obrigado a
se desfazer da imagem, lançando-a no rio com suas próprias mãos (BRUSTOLONI, 1998, p.
104). Mas estas também são histórias que o povo conta, bem menos credíveis que as hipóteses
a respeito do misterioso fenômeno.

1.1.2. A devoção, a imagem e o título de Nossa Senhora da Conceição Aparecida

A imagem de Aparecida nasceu no contexto devocional, artístico e mariano do século


XVIII que girava em torno da Imaculada Conceição da Virgem Maria, uma tradição cristã
muito antiga que caminhava para a sua proclamação definitiva no século seguinte. O século
31

XVIII marcou dois importantes momentos anteriores à definição dogmática: o protótipo


definitivo de sua iconografia imaculista e a oficialização do culto à Imaculada Conceição com
a Bula Commissi Nobis (8 de dezembro de 1708) do Papa Clemente XI que determinava a
celebração da festa da Imaculada Conceição da Virgem Maria como preceito para toda a
Igreja. Além disso, foi grande o incentivo dos pontífices para a oração do rosário, bem como
outras iniciativas que surgiram entre os populares como a criação de confrarias e associações
marianas (DA SILVA, 2014, p 47).
Neste contexto do século XVIII, onde estava muito propagada a devoção à Concepção
Imaculada de Maria, especialmente pela Península Ibérica, cuja influência ultrapassou mares
nunca antes navegados, pouco mais de cem anos antes da definição dogmática da Imaculada,
é que nas águas do Rio Paraíba do Sul surgiu uma tosca e pequena imagem quebrada de
Nossa Senhora da Conceição, cuja devoção já era muito intensa em todo território da colônia
brasileira pertencente a Portugal, que já a tinha proclamado como sua Padroeira e de seus
domínios (1640), mas que ganhara contornos tipicamente brasileiros, sendo acrescentado
àquela imagem o título de “Aparecida”.

1.1.2.1. A devoção e a iconografia de Nossa Senhora no Brasil

As primeiras imagens de Nossa Senhora produzidas no Brasil, que datam do final do


século XVI, foram obras de artistas e artesãos europeus e de imigrantes anônimos que,
embora seguindo o modelo clássico da estatuária, adaptavam-se às parcas condições, ao feitio
e aos gostos locais. Por isso as imagens mais requintadas que habitavam os nichos das igrejas
geralmente eram importadas da Europa ou vinham nas embarcações dos navegadores,
enquanto as imagens de culto doméstico eram muito mais simples e modestas, produzidas
aqui mesmo em madeira ou barro cozido, embora mantivessem traços requintados, próprios
do Barroco que em terras brasileiras ganhou um estilo próprio, mais simples que o clássico
europeu.
As principais representações de Maria até o século XIX, especialmente na pintura de
igrejas (teto, paredes e painéis), a apresentam rodeada de anjos, sozinha ou com o Menino,
bem como o episódio da Anunciação, a Imaculada Conceição, a Assunção aos céus ou sob os
títulos e invocações de Auxiliadora, de Nazaré, do Perpétuo Socorro, de Montserrat, do
Rosário, do Desterro, entre outros. As primeiras imagens com autoria e data conhecidas das
quais se têm notícia são atribuídas ao monge beneditino Frei Agostinho da Piedade (+1661)
que dentre as mais famosas esculpiu a imagem de Nossa Senhora de Montserrat (1636) e de
32

Sant’Ana ensinando a Virgem (1646). Por conta da proclamação régia de 1646,


provavelmente a devoção e o culto a Nossa Senhora da Conceição está entre uma das mais
conhecidas e propagadas no Brasil, principalmente pelos artistas que cunhavam imagens para
os oratórios domésticos.
Os países da Península Ibérica – Portugal e Espanha – foram os principais defensores e
propagadores da devoção à Imaculada Conceição de Maria. Alguns exemplos disso são a
contribuição de dois artistas sevilhanos – Francisco Pacheco (1564-1644) e Bartolomé
Esteban Murillo (1617-1682) – para o protótipo definitivo da iconografia da Imaculada que
procede do Barroco hispânico, e a proclamação régia de D. João IV que declarava Nossa
Senhora da Conceição como padroeira do Império Português. Numa das iniciativas para
comemorar o ato, o imperador mandou cunhar moedas (1650) com a imagem de Nossa
Senhora da Conceição cercada com alguns símbolos da litania lauretana e definiu que as cores
da túnica e do manto seriam as mesmas da bandeira da Coroa Portuguesa, isto é, vermelha e
azul. A influência artística espanhola e a devoção portuguesa chegaram até o Brasil que, até
então, era colônia de Portugal. Durante os três primeiros séculos de colonização (XVI-XVIII)
foram confeccionadas inúmeras efígies da Imaculada Conceição que se espalharam por todo o
território brasileiro, inspiradas na forma murilesca e com a policromia definida pelo Império.

1.1.2.2. Da Imaculada “portuguesa” à Aparecida “brasileira”

Logo que foi encontrada na rede e acolhida no barco dos três pescadores, primeiro o
corpo e depois a cabeça, aquela pequenina imagem retirada do fundo do rio na altura do Porto
de Itaguaçu, foi imediatamente reconhecida como a Senhora da Conceição e, à medida que
começou a se propagar o seu culto, recebeu o título de “Aparecida”.
Desde o final do século XVI já eram confeccionadas na Colônia imagens de Nossa
Senhora da Conceição. E pelas características, a imagem encontrada pelos pescadores
provavelmente era de culto doméstico. Nosso objetivo agora é estudar os detalhes da imagem,
especialmente a partir da pesquisa realizada pelo Dr. Pedro de Oliveira Ribeiro Neto e que
fora apresentada pelo mesmo na ocasião do Jubileu de Ouro de Aparecida, os duzentos e
cinquenta anos do encontro da imagem (1967), sendo que esta foi uma análise anterior ao
atentado e ao restauro de 1978.
Na sua reflexão, o Dr. Pedro descreve a imagem como tradicionalmente é apresentada,
isto é, na sua forma triangular, revestida de um manto azul anil, que deixa entrever do seu
corpo enegrecido praticamente apenas o rosto e as mãos, e encimada por uma coroa cravejada
33

de diamantes e rubi. Apesar do manto e da coroa serem características da imagem de


Aparecida, não foi assim que ela foi encontrada, mas “despida” das vestes de Rainha. Por
isso, para compreender o seu significado convém estudá-la sem o tradicional manto e coroa
que serão, posteriormente, expressões de louvor e honra do nosso povo para com a sua
Padroeira.

Figura 1 – Inmaculada Concepcíon de Figura 2 – Nossa Senhora da Conceição


los Venerables, de Murillo (1678). de Vila Viçosa, Padroeira de Portugal.

1.1.2.2.1. Características da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida

A “imagem de Nossa Senhora Aparecida, encontrada prodigiosamente no rio Paraíba


em fins de outubro de 1717, é paulista, de arte erudita, feita provavelmente na primeira
metade do 1600, por discípulo [...] do beneditino Frei Agostinho da Piedade” (RIBEIRO
NETO, 1970, p. 174). Esta conclusão acerca da época, do estilo, do material e da autoria da
imagem se deve, sobretudo, a partir da comparação de algumas imagens marianas da época
seiscentista encontradas em território paulista, sendo que entre as mais comuns estão as
imagens de Nossa Senhora da Conceição, do Rosário e do Desterro (1970, p. 175-177).
Segue abaixo algumas informações sobre a autoria, o material, a cor, entre outros
detalhes da imagem aparecidense.
34

Figura 3 – Nossa Senhora da Conceição Aparecida antes do atentado de 1978.


Detalhe: cabelos curtos e colar para esconder a fratura do pescoço.
35

 Autoria: existem registros de “várias imagens seiscentistas de barro, feitas em São


Paulo, de autores anônimos e sem filiação de escola” (RIBEIRO NETO, 1970, p.
179). No caso da imagem de Aparecida, as caraterísticas e traços de sua imagem
coincidem com algumas obras do beneditino Fr. Agostinho de Jesus, discípulo do
maior escultor brasileiro do século XVII, o Fr. Agostinho da Piedade (+1661) que
desenvolveu seu trabalho na Bahia entre 1630 e 1642, sem nunca de lá ter saído. O
seu discípulo, porém, apesar de desenvolver o seu trabalho nos mosteiros da Bahia e
do Rio de Janeiro, teve maior notoriedade em São Paulo, na região do Parnaíba onde
se encontra a maior parte da sua obra que geralmente se assemelha nos traços das
mãos e do rosto, nas roupas e nos mantos. Além disso, Fr. Agostinho da Piedade
aperfeiçoou, possivelmente, sua arte na Europa, especialmente nas escolas barrocas
espanholas donde provém o protótipo clássico das imagens da Imaculada.

 Material: a confecção da imagem que originaria, tantos anos após o seu encontro no
rio, o culto a Nossa Senhora da Conceição Aparecida, provavelmente é de alguma
escola barrista da segunda metade do século XVII (RIBEIRO NETO, 1970, p. 181),
especialmente por conta da qualidade do material da imagem, isto é, um barro
paulista que depois de cozido, se torna cinza claro, às vezes rosado (Ibid., 1970, p.
181). Portanto, “sob a pátina morena da imagem, como um verniz criado pelo uso e
pelo tempo, lá está escondido o barro paulista em que ela foi esculpida na primeira
metade do 1600” (Ibid., 1970, p. 182).

 Cor: a imagem seiscentista10 de estilo barroco e de forma murilesca11, tal como foi
encontrada no fundo do rio, perdera sua policromia original, ou seja, o corpo de
tonalidade branca, a túnica vermelha e o manto azul12, assumindo a cor impregnada
pelo lodo do rio e depois pelo fumo dos círios que foram acesos ao seu redor pelos

10
Data dos anos 1600 do século XVII.
11
Forma atribuída ao artista sevilhano, “pintor das Imaculadas”, Bartolomé Estebán Murillo (1617-1682).
“Sabe-se que a devoção da Virgem da Conceição, na imaginária brasileira, feita sempre na forma murilesca, de
mãos postas, com as pontas dos dedos unidas, e corpo erecto [...], sempre foi muito espalhada no Brasil,
principalmente depois da oficialização do seu culto pelos reis de Portugal, e que assim, desde o século XVII
possuímos imagens sem conta dessa forma e devoção. A encontrada no Porto de Itagaussú [Nossa Senhora da
Conceição] é uma dessas representações” (RIBEIRO NETO, 1970, p. 185).
12
Há uma “presunção de que a Virgem Conceição Aparecida teve outrora, pintado no seu barro claro um manto
azul escuro forrado de vermelho granada, côres oficiais de Nossa Senhora da Conceição no Reino Português, de
acôrdo com as ordens de Dom João IV que a proclamou, em 1646, padroeira da raça e do país [...] Da época do
1600, a imagem da Padroeira do Brasil apresenta ainda o detalhe da fraqueza da policromia, que se perdeu com
os anos, restando apenas sôbre o barro a pátina envernizada e parda” (RIBEIRO NETO, 1970, p. 183-185).
36

devotos. Além disso, contribuiu para o enegrecimento de sua cor as condições


modestas da casa de um dos pescadores que serviu como primeiro oratório e depois
da capelinha de pau-a-pique onde ficou até a construção da primeira capela erigida
canonicamente em 1745. Por isso, “em vinte e oito anos [1717-1745], portanto, de
peregrinação e estada por êsses lugares, não admira que a imagem de Nossa Senhora
Aparecida tenha adquirido a côr que hoje conserva, castanho brilhante” (RIBEIRO
NETO, 1970, p. 182) ou cor de canela, não tão negra como se costuma pensar ou
desejar.

Figura 4 – Protótipo da imagem de NSCA


antes de ser “lançada” no Rio Paraíba.

 Detalhes da imagem: segundo a minuciosa pesquisa do Dr. Pedro de Oliveira, a


imagem autêntica de Nossa Senhora da Conceição Aparecida possui 39 centímetros
de altura com a base de prata lavrada sob a qual foi fixada e a cabeça que, desde o
encontro, entre outras ocasiões, sempre se separava do corpo e que foi cimentada com
um pino metálico de ouro. Os cabelos curtos cortados na parte superior da cabeça e a
gravação feita com estilete na parte inferior às costas do corpo dão a entender que a
imagem tinha cabelos compridos, uma característica peculiar de uma imagem
imaculista, mas que as intempéries do rio prejudicaram, coisa que foi posteriormente
37

corrigida pela restauração a fim de aumentar a fixação do corpo à cabeça, mas que
não corresponde totalmente à forma que foi encontrada, isto é, de cabelos curtos.
Sobre os outros detalhes da escultura descreve o próprio pesquisador:

1 – Forma sorridente dos lábios, descobrindo os dentes da frente.


2 – Forma do rosto, com o queixo encastoado, no meio do qual há uma covinha.
3 – O penteado laborioso [...] aparecendo em duas pequenas tranças sôbre as frontes,
que se perdem na massa posterior do cabelo...
4 – As flôres em relevo nos cabelos de Nossa Senhora Aparecida [...] bem como o
relevo da gola caseada.
5 – O diadema na testa, na linha média, como um broche com três pérolas
pendentes...
6 – O porte empinado da imagem, que vista de perfil tem tendência a inclinar-se
para trás [...], além do seu volume amplo, de saias pregueadas embabadando-se no
chão.
Notamos entretanto na imagem da Senhora Aparecida a perfeição das mãos postas,
pequeninas e afiladas como as de uma menina, e as mangas simples e justas, de
muito requinte, terminando no punho esquerdo dobrado à maneira dos mestres
seiscentistas do barro paulista (RIBEIRO NETO, 1970, p. 184).

1.1.2.3. “Aparecida”: um título de origem popular, devocional e bíblico

“Chegaram finalmente à Capela da Virgem da Conceição Aparecida, situada na Vila


de Guaratinguetá, que os moradores chamam „Aparecida‟”. Foi o que constataram dois
missionários jesuítas na época das missões populares realizadas no povoado de Aparecida
entre os anos de 1748 e 1749 (BRUSTOLONI, 1998, p. 41), data não muito distante do
histórico ano do encontro da imagem nas águas do Rio Paraíba do Sul (1717)13. A
denominação “Aparecida” atribuída àquela pequenina imagem de barro de Nossa Senhora da
Conceição, resgatada das águas, já era comum desde o seu encontro. Mas por que
“Aparecida”? A resposta é muito simples: porque apareceu! Aliás, o título acrescido à já
conhecida e propagada Nossa Senhora da Conceição, surgiu entre a gente simples que, sem
pretender, comparou aquele achado a uma verdadeira “aparição”. Todavia, o encontro de

13
Trecho extraído das Ânuas da Província Brasileira dos Padres Jesuítas, de 1748 e 1749 (apud
BRUSTOLONI, 1998, p. 47). O Pe. Francisco da Silveira, do Colégio dos Padres Jesuítas de São Salvador da
Bahia, enviou para o Arquivo Romano da Casa Geral da Companhia de Jesus, na data de 15 de janeiro de 1750,
as ânuas nas quais constavam, entre outras coisas, as atividades apostólicas do missionário jesuíta, Pe. Paulo
Teixeira com mais um companheiro, entre os anos de 1748 e 1749, em doze localidades da então Diocese de São
Paulo, entre as quais foi contemplado o recém-fundado povoado de Aparecida (1745). O autor descreveu em
poucas linhas e com escassas informações a origem da capela da Virgem da Conceição e a razão pela qual os
moradores denominaram Nossa Senhora com a invocação Aparecida a partir do encontro da imagem pelos
pescadores que, lançado suas redes no rio, recolheram, primeiro, o corpo, depois, em lugar distante, a cabeça.
O restante da narração comenta a movimentação de peregrinos, os frutos da missão, a graça especial do
Santuário e a intercessão de Nossa Senhora (Ibid., 1998, p. 41,46-47). Apesar de estar datado em 1750, esse
documento foi encontrado pelo historiador jesuíta Pe. Serafim Leite, entre os vários papéis do Arquivo Geral da
Companhia de Jesus em Roma, apenas em 1945.
38

Nossa Senhora da Conceição Aparecida não pode ser considerado a rigor uma aparição, ainda
que o seu nome sugira o contrário, mas em sentido amplo pode ser qualificada como uma
“mariofania”, ou seja, uma manifestação de Maria.
Apesar da simplicidade da resposta popular, o nome “Aparecida” é especial por três
razões que extraímos da mensagem do Santo Padre Paulo VI ao Arcebispo de Aparecida,
Dom Carlos Carmelo de Vasconcellos, o Cardeal Motta, por ocasião da oferta pontifícia da
Rosa de Ouro no decurso do Jubileu de Ouro de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, os
250 anos do encontro da imagem.

1.1.2.3.1. “Aparecida” é um título popular, “dado por todos”

Com efeito, no ano de 1717 das águas do rio Paraíba, como consta, foi tirada uma
pequena estátua de barro da Imaculada Mãe de Deus, à qual, por ter assim aparecido
de certa maneira admirável, foi dado por todos o nome de “Aparecida” (PAULO VI,
S.S., Mensagem ao Cardeal Motta (5.3.1967)).

O pontífice salienta que o nome “Aparecida” foi dado por todos, mas quem são estes
“todos”? Desde os humildes pescadores, os vizinhos e os peregrinos que a devoção a Nossa
Senhora da Conceição sob este novo título começou a atrair, até o seu culto alcançar o
reconhecimento eclesial, o que aconteceu ao passo que “Aparecida” alcançava o coração do
povo brasileiro.

Quando os humildes pescadores tiveram a felicidade de colher em suas redes a


imagem que logo a seguir lhes concedeu pesca abundantíssima, chegados à sua
choupana limparam a imagem e se puzeram a contemplá-la, eles disseram devotos e
comovidos: – é Nossa Senhora da Conceição que apareceu nas águas do Paraíba! Os
vizinhos que visitavam a imagem, os forasteiros que vinham chegando à medida que
se espalhava a notícia de graças prodigalizadas pela imagem milagrosa, repetiam
unanimes a invocação: “Nossa Senhora da Conceição Aparecida” (MACHADO,
1976, p. 179).

Deste modo é que a invocação “Aparecida” surgiu do sensus fidelium, da sensibilidade


religiosa do povo de Deus que é “perito” quando se trata de reconhecer e enaltecer as virtudes
da Mãe de Deus, de reconhecer os sinais de Deus nas vicissitudes da história, embora nem
sempre consiga compreender bem o conteúdo da Revelação. Foi o que aconteceu ao longo do
culto mariano na Igreja desde os primeiros séculos, o que possibilitou, por exemplo: a origem
e definição dos quatro dogmas marianos; o “assentimento da fé humana”, ainda que não dê
garantia da verdade do fato (cf. Pio X, Encíclica Pascendi (8.9.1907)), a algumas entre
milhares de aparições marianas de que temos notícia; a permissão para o culto de imagens
39

“encontradas” que deram origem, inicialmente, a devoções locais; a aprovação do Magistério


no decorrer dos séculos, dentro dos limites de sã e reta doutrina, às várias formas de piedade
para a com a Mãe de Deus (cf. LG, nn. 66-67); o nome dos padroeiros das paróquias, bem
como de confrarias e irmandades leigas, que surgiram a partir da adesão popular a
determinada invocação de Nossa Senhora, até chegar aos muitos santuários espalhados no
Brasil e no mundo com um título ou invocação entre tantas com as quais se designa a mesma
Virgem Maria, etc. A devoção a Nossa Senhora da Conceição Aparecida é um exemplo disso,
dessa capacidade que os pobres e humildes têm de captar os mistérios do Reino de Deus, até
mais que os sábios e entendidos deste mundo (cf. Mt 11,25).

1.1.2.3.2. “Aparecida” é um título novo que propagou ainda mais a devoção mariana

Como um rio que transborda, a devoção à Bem-aventurada Virgem Maria,


assinalada com o nome de “Aparecida”, tanto e tanto se foi ampliando e
propagando, a tal ponto que Pio XI [...] anuindo às súplicas de todos os Arcebispos e
Bispos do Brasil, proclamou-a celestial Padroeira dessa mesma Nação (PAULO VI,
S.S., Mensagem ao Cardeal Motta (5.3.1967)).

Além das circunstâncias geográficas14 e históricas que permitiram a expansão da


devoção à Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Paulo VI enfatizou que o nome
“Aparecida” espalhou esta nova devoção com a qual o povo se identificou, bem carregada de
elementos brasileiros, e que chegou a todos os recantos do país como um rio de cuja nascente
nascem vários afluentes ou como o rio que transborda e espalha água por todos os lados.
Assim como a água que nascia do lado direito do Templo na visão do profeta Ezequiel (cf. Ez
47,1-2.8-9.12) e, por onde passava levava vida e saúde, analogamente a devoção a Nossa
Senhora da Conceição Aparecida trouxe vitalidade à fé e à identidade religiosa e nacional do
povo brasileiro. O auge desta propagação, de impacto religioso e secular, foi a proclamação
de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como Rainha e Padroeira do Brasil, no ano de
1930. Desta forma, o nome que está intimamente ligado ao fato que deu origem à devoção
caiu nas graças do povo e foi se propagando com a melhor divulgação da época, de boca em
boca, até estar presente nos lábios dos brasileiros. “Com êste título, sem dúvida inspirado por
Nossa Senhora mesma, propagou-se a sua devoção por todo o Brasil.” (MACHADO, 1976, p.
179).

14
Como, por exemplo, o fato da capela e futura igreja e basílica estar localizada à beira da estrada que fica entre
as principais cidades do Brasil desde o tempo colonial (São Paulo e Rio de Janeiro).
40

1.1.2.3.3. “Aparecida” é um título que possui conotação bíblica

O presente ano, que é o 250º do encontro daquela pequena estátua – à qual, todavia,
de um ponto de vista mais alto, se podem acomodar estas palavras: “um grande sinal
apareceu” (Apoc 12,1) (PAULO VI, S.S., Mensagem ao Cardeal Motta (5.3.1967)).

Provavelmente aqueles pescadores e seus vizinhos, bem como os inúmeros peregrinos


que os seguiram e sucederam, nem conhecessem a história relatada no capítulo 12 do livro do
Apocalipse, que trata da perseguição do Dragão à mulher grávida em dores de parto, que no
primeiro versículo diz: “Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida com o sol,
tendo a lua sob os pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas”. A exegese bíblica
interpreta neste texto a situação da Igreja durante as perseguições romanas e atribui de modo
secundário, esta passagem a uma representação da Virgem Maria, muito embora os Padres da
Igreja já reconhecessem em Maria uma figura exemplar da Igreja, o que foi ratificado na
Constituição sobre a Igreja (Lumen gentium), do Concílio Vaticano II. Mas novamente o
povo, inspirado pela ação do Espírito Santo, talvez desconhecendo a tradição bíblica, soube
interpretar o fato do encontro da imagem como “um sinal que apareceu”, embora não fosse no
céu, como nas aparições marianas de Guadalupe (1531), de Lourdes (1858) ou de Fátima
(1917) por exemplo, mas de modo singular na malha das redes de três pescadores que a
recolheram de um rio.
Estas são algumas razões pelas quais a invocação “Aparecida”, acrescentada ao título
de Nossa Senhora da Conceição, se tornou tão conhecida e amada entre os brasileiros e
constituiu uma nova devoção mariana que, embora tenha suas raízes portuguesas, possui
traços e características genuinamente brasileiras, e que, ao longo dos séculos, torna o culto
mariano na Igreja algo tão vivo e dinâmico e, por conseguinte, uma resposta para cada época
do nosso tempo e de nossa história. Deste modo é que ela, então, se chamou “Aparecida”.
Nossa Senhora da Conceição Aparecida é uma “aparecida” que não apareceu e, por ter
assim aparecido de maneira admirável “é a filial invocação do povo brasileiro à Mãe de Deus
em qualquer eventualidade particular ou pública, tantos em momentos de agradável surpresa
como em horas de perigo. É uma interjeição espontânea, característica do Brasil”
(MACHADO, 1976, p. 45), que brotou espontaneamente da boca dos pescadores, dos seus
vizinhos, dos forasteiros, dos peregrinos e dos milhares de brasileiros que ao longo de três
séculos se colocaram em romaria para visitar a sua imagem. Esta é uma expressão de fé,
devoção e, sobretudo, de confiança que o povo costuma dizer em quaisquer circunstâncias da
vida, seja de dor ou de alegria.
41

2. O SINAL DA MULHER “APARECIDA”

2.1. A imagem de Aparecida a partir de Ap 12

Nossa Senhora Aparecida é uma imagem da Imaculada Conceição de Maria que,


iconograficamente, é inspirada no livro do Apocalipse, capítulo 12, versículo 1: “Um sinal
grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida com o sol, tendo a lua sob os pés e sobre a
cabeça uma coroa de doze estrelas”. Além disso, a liturgia da Palavra na Solenidade de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida proclama na segunda leitura da celebração o texto de Ap
12,1.5.13a.15-16a. Esta passagem bíblica serve de referência para compreender os elementos
cósmicos (sol, lua e estrelas) que circundam e envolvem a “mulher apocalítica” (cf. Ap 12,1)
e revelam a sua identidade como “virgem”, “mãe” e “esposa”, um sinal de Maria que é ícone
do mistério da Igreja.

2.1.1. O “sinal da mulher”

Na literatura joanina, especialmente no evangelho de João e no livro do Apocalipse, as


expressões “sinal” e “mulher” aparecem em textos-chaves: bodas de Caná (cf. Jo 2,1-11), aos
pés da cruz (cf. Jo 19,25-27); a “mulher apocalíptica” (cf. Ap 12,1-17); a “Esposa do
Cordeiro” (cf. Ap 21,2.9-14; 22, 17).
O termo joanino “sinal”, do grego semeion, como é usado no Novo Testamento, não
designa obrigatoriamente um milagre tal como o entendemos, mas como aquilo que serve
para confirmar, aprovar, assegurar e dar legitimidade à verdade do que foi anunciado. O sinal
confirma ou assegura a verdade e validade de uma mensagem. Na linguagem joanina, o sinal
é a manifestação visível de uma realidade invisível à percepção humana, que serve para
alcançar o invisível e, desta forma, para nos colocar em contato com o divino. “Em Jo, „sinal‟
é ação realizada por Jesus que, sendo visível, leva por si ao conhecimento de realidade
superior” (MATEUS; BARRETO, 1989, p. 258). Além da autenticidade de uma mensagem,
do conhecimento e visibilidade de uma realidade, o sinal é uma chave de interpretação para
descobrir o significado de uma manifestação (Ibid., 1989, p. 259). Exemplo clássico disso
encontra-se no episódio das Bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12) que termina com a célebre frase:
“Esse é o princípio dos sinais, Jesus o fez em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e os
seus discípulos creram nele” (v. 11). O Apocalipse, que possui um caráter de revelação,
conforme indica o significado do seu próprio nome, é um “livro de sinais” que atestam “como
42

sendo a Palavra de Deus e o Testemunho de Jesus Cristo” tudo o quanto viu, ouviu e redigiu o
seu autor (cf. Ap 1,1-2).
A expressão “mulher”, do grego gynê, no evangelho aparece como um apelativo dado
por Jesus à sua mãe (cf. Jo 2,4; 19,26) e também a outras duas personagens (à samaritana
(4,7.9.11.21) e a Maria Madalena (20,13.15)). „Mulher‟ não era apelativo que os filhos
usassem ao se dirigirem à sua mãe. Pelo contrário, tem a conotação de „esposa‟, „mulher
casada‟” (MATEUS; BARRETO, 1989, p. 199). Estas três mulheres aparecem como
“esposas”, não no sentido institucional e jurídico do termo, mas simbólico e coletivo. Por
exemplo, “A mãe de Jesus representa o Israel fiel às promessas (o resto de Israel), enquanto é
origem de Jesus. É, portanto, figura do povo da antiga aliança e, neste sentido, é chamada de
Esposa de Deus (2,4;19,26: mulher), segundo a concepção da aliança como núpcias entre
Deus e o povo” (Ibid., 1989, p. 199). Na literatura joanina, “mulher” não quer designar uma
pessoa física, apesar desta expressão estar diretamente atribuída a pessoas reais, mas
representa simbolicamente a identidade de uma coletividade. Isso fica ainda mais claro no
livro do Apocalipse, onde aparece o sinal de duas mulheres, uma “grávida” e a outra uma
“prostituta” (cf. Ap 12, 1-17; 17,1-18), que representam respectivamente o novo povo de
Deus fundado sobre a antiga herança de Israel e o Império Romano.
No evangelho de João o apelativo “mulher” é pronunciado duas vezes por Jesus ao se
referir à sua própria mãe nas Bodas de Caná e aos pés da Cruz (cf. Jo 2,4; 19, 26), enquanto
que no Apocalipse os textos mais singulares acerca da “mulher” são o capítulo 12 e 21 em que
ela é apresentada perseguida e triunfante. Segundo a exegese bíblica e a tradição patrística,
esta “mulher” é, preferencialmente, figura da Igreja, esposa de Cristo, mas também, e não de
modo secundário, faz referência à pessoa da Virgem Maria que, especialmente pelos Padres
da Igreja e posteriormente no Concílio Vaticano II, foi considerada desde sempre não apenas
a Mãe de Cristo (perspectiva cristotípica) e um membro eminente da Igreja (perspectiva
eclesiotípica), mas tipo e modelo da Igreja, sendo proclamada por Paulo VI como Mãe da
Igreja.
Por isso, além de participar do mistério de Cristo como mãe, discípula e colaboradora
na obra da salvação, a Virgem Maria está presente no mistério da Igreja e se constitui num
princípio para a própria Igreja. E, deste modo podemos compreender a natureza, identidade e
missão da Igreja a partir de uma abordagem mariológica, de tal modo que também o texto de
Ap 12 pode ser interpretado numa perspectiva que une aspectos eclesiológicos e mariológicos.
43

2.1.1.1. Quem é esta mulher?15

Entre os exegetas não há um consenso sobre de quem se trata a misteriosa “mulher


apocalíptica”. Todavia, a interpretação de Ap 12, especialmente na época patrística, deixa
entrever nesta “mulher” duas realidades que não são dicotômicas, mas complementares entre
si: a Igreja e Maria. Segundo Pedro Iwashita,

o Apocalipse de São João não fala explicitamente da mãe de Jesus, mas as grandes
imagens do cap. 12 soam incompreensíveis sem referência ao papel histórico dela.
Se admitirmos que a “Mulher vestida com o sol” se refere ao povo de Deus, Israel e
a Igreja, a referência a Maria não é descartada, pois as múltiplas facetas dos
símbolos apocalípticos não excluem que um símbolo possa significar duas
realidades (1991, p. 141).

Para ele, a “mulher” de Ap 12 é uma espécie de “personalidade corporativa” através da


qual “um único indivíduo represente a coletividade”. O texto não fala explicitamente da Mãe
de Jesus, mas sem uma referência mariana, especialmente do papel histórico de Maria, na
opinião de Iwashita (1991, p. 141), as imagens do capítulo 12 soariam incompreensíveis.
Como veremos adiante, Aristides Serra apresenta um paralelo entre as imagens de Ap 12 e de
alguns episódios evangélicos em que se encontra a presença de Maria. Mas para os fins deste
estudo, vamos considerar primeiro a interpretação eclesiológica.

2.1.1.1.1. Apocalipse 12 e a Igreja

Na opinião de alguns exegetas, antes do capítulo 12 do Apocalipse ter alguma


extensão mariológica, o autor-vidente que, segundo a Tradição é o Apóstolo João, quando
exilado na Ilha de Patmos, faz uma profecia das perseguições que aguardavam a Igreja e da
vitória definitiva de Cristo sobre o poder do Maligno. De modo geral, todo o Apocalipse
“Trata-se de um livro escrito (por volta do ano 95 d.C. na Ásia Menor) [...] quando a Igreja
primitiva enfrenta uma dura perseguição. A sangrenta perseguição romana põe à prova a sua
fé e sua dedicação. O autor do livro dirige-se à comunidade cristã para esclarecer o sentido
dos fatos e animá-la na tribulação”. (STRADA, 1998, p. 68). Contudo, segundo as suas
origens, além da influência helênica que sofreu, o texto contém algumas referências do Antigo
Testamento, dando a entender que as promessas do passado estavam para se cumprir. “Este
texto contém uma referência incontornável à representação bíblica do início da história, a esse

15
Cf. Ct 6,12.
44

texto misterioso que a Tradição designa como proto-evangelho” (RATZINGER;


BALTHASAR, 2004, p. 48), que está em Gn 3,15, como também ao texto profético de Is 7,14
e apresenta alguns paralelismos com o livro do Êxodo.
Tanto no livro do Gênesis (3,15) como no livro do profeta Isaías (66,7), aparece a
figura de uma “mulher”. O texto do Proto-Evangelho de Gn 3,15, após o episódio do pecado
dos nossos primeiros pais diz: “Porei uma hostilidade entre ti [serpente] e a mulher, entre tua
linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar”.
Evidentemente a mulher aqui referida não é Eva, visto que neste contexto ela fora vencida
pela sedução da serpente e castigada com a expulsão do jardim por causa de sua
desobediência. Esta mulher perseguida pela hostilidade da serpente, mas vitoriosa por lhe
esmagar a cabeça (cf. Gn 3,15) reaparece no texto apocalíptico que menciona a “antiga
serpente” (v. 9) que se transformara num “dragão” (v. 3) que desde as origens continua a
perseguir e a atacar a descendência da mulher a fim de desviá-la16 do desígnio de Deus e de
seu projeto salvífico e restaurador.
A profecia de Isaías apresenta a promessa de uma mulher virgem que conceberá e dará
à luz um menino (cf. Is 7,14). O texto de Is 7,14 é a profecia do nascimento de um povo novo
gerado por Sião, outro nome para Jerusalém que é simbolizada por uma mulher virgem e mãe
(cf. Mt 1,23). Mas enquanto na linguagem profética a “mulher” é símbolo materno de Sião
que gera o povo, o livro do Êxodo recorda a perseguição que o próprio povo sofreu no
deserto, de modo muito semelhante ao da mulher do Apocalipse, sendo que o modo em que
foram salvos – “mulher” e “povo” – é o mesmo: conduzidos com “asas de águia” para o
deserto.
Após a libertação do Egito, entre a terra da escravidão e a terra da promessa, o povo
atravessou o deserto, tendo o Faraó no seu encalço, mas sendo protegido por Iahweh que o
conduziu com “asas de águia” (cf. Ex 19,4; Dt 32,11), abriu-lhes o Mar Vermelho e saciou-os
e alimentou-os. A mulher do Apocalipse, após o parto, perseguida pelo dragão, voa sob asas
de águia (v. 14) para o deserto onde é alimentada (v. 6). Mas enquanto foge, o dragão tenta
submergi-la vomitando um rio de água (v. 15), porém, a terra vem em socorro da mulher,
engolindo o rio. Comparada as semelhanças temos entre Apocalipse e Êxodo formamos os
paralelos: “mulher” e “povo”; “dragão” e “Faraó” ou “Egito” (cf. Is 51,9; Ez 29,3. 32,2); “rio
de água” e “perseguição dos exércitos egípcios” (cf. Ex 14,5ss) e, em ambos os textos, há os
sinais da salvação: “deserto”, “asas de águia” e “alimento” (cf. Ex 15,12 – Ap 12,16) que são

16
A etimologia da palavra grega para designar “pecado” (hamartía), significa justamente isso: “errar o alvo”,
“distanciar-se da meta”, “desviar-se do caminho”.
45

“o anúncio profético de uma ação escatológica na qual Deus realiza e recapitula o seu plano
de salvação” (PRIGENT, 1993, p. 214). Além disso, há outro sinal que indica a
personificação do povo de Deus na mulher do Apocalipse: a coroa de doze estrelas (v. 1), uma
referência às doze tribos de Israel (cf. Gn 37,9-11).
As fontes do texto, além de conter alguns vestígios da cultura greco-romana, faz
referência ao Proto-Evangelho (Gn 3,15), com o Êxodo de Israel do Egito e com as profecias
de Isaías, como fora analisado anteriormente. Contudo, a intenção do autor não é resgatar a
história do Povo de Israel, mas dizer que aquele evento histórico do passado foi, na verdade,
uma prefiguração do novo povo de Deus, continuado e realizado na Igreja que não
sucumbiria, embora naquele momento fosse perseguida sob o regime do Imperador
Domiciano (81-96 d.C.).
O texto apocalíptico apresenta sinais evidentes que o antigo Povo de Deus continua na
Igreja de Cristo que sofre no deserto da história sem desesperar e anda sem desanimar,
enquanto peregrina caminha para o enlace definitivo com o seu Esposo (cf. Ap 21). Por sua
vez, a “mulher” não é identificada como uma pessoa em sentido estrito, mas como
personalidade corporativa representante do Povo de Deus que é a Igreja. O próprio Concílio
Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja – Lumen gentium –, apresentou a Igreja como
“Povo de Deus”, numa inspiração veterotestamentária, mas sob a novidade cristã da
universalidade da salvação (cf. LG, n. 13).

Contudo, aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente,


excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo que O conhecesse
na verdade e O servisse santamente. Escolheu, por isso, a nação israelita para Seu
povo. Com ele estabeleceu uma aliança; a ele instruiu gradualmente, manifestando-
Se a Si mesmo e ao desígnio da própria vontade na sua história, e santificando-o
para Si. Mas todas estas coisas aconteceram como preparação e figura da nova e
perfeita Aliança que em Cristo havia de ser estabelecida e da revelação mais
completa que seria transmitida pelo próprio Verbo de Deus feito carne [...] Esta nova
aliança instituiu-a Cristo, o novo testamento no Seu sangue (cfr. 1 Cor. 11,25),
chamando o Seu povo de entre os judeus e os gentios, para formar um todo, não
segundo a carne mas no Espírito e tornar-se o Povo de Deus [...] este povo
messiânico, ainda que não abranja de fato todos os homens, e não poucas vezes
apareça como um pequeno rebanho, é, contudo, para todo o gênero humano o mais
firme germe de unidade, de esperança e de salvação (LG, n. 9).

Para o Concílio, “assim como Israel segundo a carne, que peregrinava no deserto, é já
chamado Igreja de Deus (cfr. 2 Esdr. 13,1; Num. 20,4; Deut. 23,1 ss.), assim o novo Israel,
que ainda caminha no tempo presente e se dirige para a futura e perene cidade (cfr. Hebr. 13-
14), se chama também Igreja de Cristo (cfr. Mt. 16,18)” (LG, n. 9). E embora não faça uma
referência explícita ao texto apocalíptico, esta expressão conciliar permite visualizar a
46

“mulher” perseguida pelo Dragão e refugiada no deserto (vv. 13-14): “Caminhando por meio
de tentações e tribulações, a Igreja é confortada pela força da graça de Deus que lhe foi
prometida pelo Senhor” (LG, n. 8).
Alguns Padres da Igreja como Hipólito (+235) e Metódio (+312) entre outros,
interpretaram a mulher apocalítica como uma figura da Igreja. Segundo Hipólito de Roma, a
“mulher-Igreja” está revestida com a Palavra de Deus, cujo brilho supera a luz do sol; a lua
significa a glória do céu com a qual a Igreja está adornada e a coroa de doze estrelas
simboliza os doze Apóstolos. As dores do parto são os sofrimentos da Igreja por ser
perseguida ao anunciar o Evangelho. Numa perspectiva espiritual, o filho da mulher é Jesus
Cristo gerado no ventre da Igreja. As asas de águia que conduzem a “mulher ao deserto” são a
fé em Cristo. Para Metódio, o filho recém-nascido é o cristão batizado e a lua é um símbolo
batismal (GARCÍA PAREDES, 1995, p. 167)17.

2.1.1.1.2. Apocalipse 12 e Maria

O texto de Ap 12, a nível mariológico, é um dos mais discutidos do Novo Testamento


entre aqueles que fazem uma referência direta ou indireta, histórica ou simbólica da figura de
Maria (AZEVEDO, 2001, p. 178).
O Povo de Deus representado na narração, tanto “Israel” quanto a “Igreja”, encontra
na pessoa de Maria uma personalidade capaz de representar uma coletividade porque, afinal,
como pessoa ela pertence ao povo de Deus da antiga e da nova Aliança e, por desígnio da
graça divina, é participante do mistério de Cristo e da Igreja, cooperadora na obra da
redenção. Por isso pode ela ser chamada de Nova Eva, Filha de Sião e Mãe de Cristo e da
Igreja.
Segundo a simbologia própria do Apocalipse e a correlação com alguns textos
evangélicos, é possível vislumbrar em Ap 12 a presença da Mãe do Messias inserida na
História da Salvação. Mas seria legítimo ver Maria na “mulher vestida com o sol”? Para

17
Também há um texto muito sugestivo de São Ruperto (+718) no seu Comentário ao Apocalipse que compara a
mulher de Ap 12 com a Igreja: “Essa mulher representa a Santa Igreja, que em muitos lugares da Escritura
vemos profeticamente chamada de mulher ao lado de seu marido, isto é, a Deus unida e por Ele amada... Diz-se
que esta Mulher está vestida de Sol, isto é, de Cristo, verdadeiro Sol da Justiça, recebido como promessa; e que
tem “a lua debaixo de seus pés”, isto é, tem sob o seu controle a administração dos bens temporais, chamados de
“lua” por causa da sua mutabilidade..., a quem os loucos servem, mas sobre os quais o sábio impera... Dar à luz
significa em sofrer antes do parto: de modo que o processo do parto é como a medição, em que se dá a luz ao
Verbo perfeito.” (apud SILVA, 2017, p. 84-85).
47

García Paredes há um paralelo entre este texto apocalíptico com alguns episódios evangélicos,
tais como: anunciação, nascimento, paixão, morte e ressurreição, ascensão.
Enquanto que a “mulher” com dores de parto (v. 2) é uma versão simbólica do
Mistério Pascal de Cristo, o evangelho de Jo 19,25-27 apresenta o que poderia corresponder a
uma versão histórica do fato e destaca a presença de Maria na hora da paixão junto à Cruz do
seu Filho, quando ele disse: “Mulher, eis aí o teu filho” (v. 26). Toda a comunidade dos
discípulos dispersa estava ali representada por Maria, João e as outras mulheres. Aos pés da
cruz, a função materna de Maria é ampliada. São João Paulo II na carta para o Ano Mariano
de 1984 – Redemptoris Mater – revela que desde as Bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12) “se delineia
bastante claramente a nova dimensão, o sentido novo da maternidade de Maria” (RM, n. 21)
que “amadureceu definitivamente aos pés da cruz, mediante a sua participação no amor
redentor do Filho” (RM, n. 23). No Ap 12 a “mulher” gera o filho e seus descendentes, todos
marcados pela perseguição do Dragão (v. 17) e aos pés da Cruz, como símbolo de Eva que foi
concebida do lado de Adão, Maria torna-se Mãe da Igreja renascida do lado aberto de Cristo.
Para García Paredes, guardadas as devidas diferenças, o texto apocalíptico confirma a
dimensão eclesiológica de Maria aos pés da Cruz.
Na anunciação (cf. Lc 1,26ss) o anjo diz que o Espírito Santo descerá sobre Maria
envolvendo-a como numa nuvem. No Apocalipse, a mulher está vestida de sol (v. 1). Tanto a
“nuvem” quanto o “sol” são símbolos cósmicos que indicam a manifestação divina. A
“nuvem” do Espírito fecunda a Virgem e o “sol de justiça” a reveste de salvação (cf. Lc 1,78-
79) mantendo-a íntegra e pura, porque nela não há sombra alguma de pecado. Portanto, ela a
“mulher vestida com o sol” está cheia da graça divina (cf. Lc 1,28).
Apesar da intenção do autor do Apocalipse ao se referir à mulher em dores de parto (v.
2) para sinalizar o Mistério Pascal, de modo secundário é possível recordar o evento da
encarnação e do nascimento de Cristo, pois pela maternidade física de Maria foi gerado o
Messias. O mistério da Encarnação e da Paixão une-se pelas imagens do “parto de Belém” e
do “parto da cruz”, o nascimento para a vida eterna, a ressurreição. Em sentido figurativo, o
“trabalho de parto” pode representar o itinerário da fé percorrido por Maria (cf. LG, n.58)
desde a anunciação até o Calvário e pela comunidade da qual ela é imagem e modelo. No
texto de Ap 12 a “mulher” é mãe do Messias e símbolo da Igreja perseguida. Também o livro
dos Atos dos Apóstolos acentua a presença de Maria no seio da comunidade cristã que era
objeto da perseguição judaica, apresentando-a não pelo nome, mas pela função materna que
desempenhava na Igreja desde a cruz: “e estava com eles a Mãe de Jesus” (cf. At 1,14). O
capítulo VIII da Lumen gentium, incluindo o tratado mariológico do Concílio dentro da
48

Constituição sobre a natureza e a missão da Igreja, quer indicar a co-participação de Maria no


mistério de Cristo e da Igreja. E a própria Constituição conclui apresentando-a como “sinal de
segura esperança e de consolação para o Povo de Deus peregrinante” (LG, n. 68) assim como
o Apocalipse apresenta o fim escatológico da Mulher-Igreja no capítulo 21, a Jerusalém
Celeste descida do alto, a mulher-esposa do Cordeiro que com o Espírito suspira pela chegada
do Esposo (cf. Ap 22,17). Também no “grande sinal da mulher” a Igreja viu uma imagem da
assunção de Maria junto ao seu Filho na glória.
De certo modo, o texto apocalíptico (Ap 12) conta a História da Salvação
simbolicamente desde a criação até a plenitude, fim e consumação dos tempos, tendo como
eixo fundamental o Mistério Pascal simbolizado nas dores de parto da mulher e na exaltação
do filho junto a Deus (vv. 2.5). “O autor do Apocalipse, apresentando a „Mulher vestida com
o sol‟, pensa assim certamente em Maria, a mãe do Messias, mas vendo-a como membro no
todo da história da salvação” (IWASHITA, 1991, p. 141).
Se numa perspectiva cristológica é impossível não imaginar que o filho da mulher que
é levado junto a Deus (v. 5) seja o Cristo no mistério da sua paixão, morte, ressurreição e
ascensão, de igual modo é impensável que a Mãe do Messias a que se refere o texto não seja
Maria, conforme deixa muito claro outros textos joaninos e os evangelhos sinóticos. Também
há um paralelo entre a “mulher” de Ap 12 e os dois textos de João em que a mesma expressão
aparece relacionada à Mãe de Jesus (cf. Jo 2,1-12; 19,25-26).
Como Maria faz parte do povo de Deus do qual nasceu o Messias que ela mesma
gerou, logo também a “mulher” apocalíptica pode ter um extensão mariológica complementar,
pois “talvez João pensasse também em Maria, nova Eva, a Filha de Sião, que deu à luz o
Messias (Jo 19,25)” (AZEVEDO, 2001, p. 180). Mas convém afirmar mais uma vez que a
índole eclesial de Ap 12 para o contexto dos cristãos perseguidos naquela época impede-nos
de dizer com toda a propriedade que a “mulher” do Apocalipse é Maria, embora ela seja do
ponto de vista hermenêutico imagem-guia para a Igreja. A unidade entre o mistério de Maria e
da Igreja é expresso pelo teólogo Bruno Forte a partir da sua análise de Ap 12 do seguinte
modo: “Na mulher Maria a Igreja dos mártires e dos peregrinos podia reconhecer a sua
vocação e o seu destino” (2001, p. 97).
Além da perspectiva cristológica e eclesiológica, Ap 12 também é um texto de valor
escatológico, pois o “sinal da Mulher” é um símbolo da esperança de Israel e do novo Israel
de Deus, do povo da antiga e da nova e definitiva Aliança.

2.1.2. O “sinal de Maria”


49

Mas afinal, quem é esta mulher “que desponta como a aurora, bela como a lua,
fulgurante como o sol?” (Ct 6,10). A “mulher” apocalíptica associa em si três aspectos
femininos: virgem, mãe e esposa. Tais características podem ser encontradas na pessoa de
Maria e associadas à Igreja. Deste modo, numa perspectiva narrativo-simbólica, Ap 12 pode
nos oferecer uma visão acerca da identidade da Igreja inspirada em Maria.
“A ligação de Maria com a Igreja é expressa por três palavras-chave: Membro, Tipo
(ou modelo) e Mãe” (SESBOÜÉ (dir.), 2005, p. 511) segundo a Constituição Dogmática
Lumen gentium, no capítulo VIII que trata sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria no
mistério de Cristo e da Igreja. Os números 64 a 65 dedicam-se especialmente a Maria Virgem
e Mãe como modelo que a Igreja Virgem e Mãe deve imitar, o que, segundo Balthasar,
significa o mesmo que estabelecer as relações entre a Mãe do Senhor e a Esposa de Cristo (cf.
Ef 5, 25-27) (BALTHASAR, 2004, p. 139). E quando se refere à Maria como tipo da Igreja,
não a pensa como mera prefiguração, “mas sim enquanto arquétipo, isto é, enquanto „Ideia‟
realizada de forma perfeita e inigualável” (Ibid., 2004, p. 143), pois “o mistério de Maria e o
da Igreja se compenetram e iluminam reciprocamente”, não como duas realidades justapostas,
mas intrinsicamente unidas, desde que Maria seja compreendida no interior da Igreja como
membro, embora seja um membro eminente e singular, e mãe que gerou a Cabeça da Igreja.
Por isso, a figura de Maria desde os primeiros tempos sempre foi contemplada, de modo
especial pelos Padres, “com os olhos postos em Cristo e na Igreja” (Ibid., 2004, p. 142). A
partir da Sagrada Escritura é que os Padres pensaram na figura de Maria Virgem, Mãe e
Esposa como modelo e compêndio da Igreja Virgem, Mãe e Esposa, pois

Tudo o que é dito na Bíblia da ecclesia vale para Maria, e vice-versa: o que a Igreja
é e deve ser, é por ela aprendido na contemplação de Maria. Esta é o seu espelho, a
verdadeira medida da sua natureza, porque existe à medida de Cristo e de Deus,
“habitada” por ele. E para que existiria a Igreja senão para ser habitação de Deus no
mundo? Deus não age com coisas abstractas. Ele é Pessoa, e a Igreja é pessoa.
Quando mais nós e cada um de nós nos tornamos pessoa, pessoa no sentido da
inabitação de Deus em nós, filha de Sião, tanto mais seremos um e tanto mais
seremos Igreja, e tanto mais a Igreja será ela própria (RATZINGER, 2004, p. 64).

Assim como a conferência de Puebla afirma que sem Maria o Evangelho não se
encarna (cf. DP, n. 303), da mesma forma podemos também dizer que sem Maria não é
possível imaginar e, principalmente, concretizar a realidade virginal, maternal e esponsal da
Igreja.
Para tal, Ap 12 nos oferece uma chave de leitura a partir do “sinal da mulher”
revestida de sol, com a lua debaixo dos pés e coroada de doze estrelas (v. 1), a partir da qual
50

vamos contemplar na imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida uma Igreja


Servidora, Mãe e Esposa (FRANCISCO, S.S., Discurso (28.07.2013)) que acolhe a Palavra,
conserva e transmite a fé, gera os filhos de Deus na fonte batismal e alimenta-os pelo
banquete da Aliança, sinal de comunhão e esperança.

2.1.2.1. Mulher-ícone da Igreja Virgem da fé e Servidora da Palavra

O “sinal da mulher” em Ap 12,1 não identifica quem é a mulher, mas a exegese do


texto e a interpretação dos Padres indicam que se trata da Igreja que, como Maria, é Virgem e
Mãe. Mas segundo a interpretação de um discípulo de Santo Agostinho, São Quodvultdeus
(século V), “essa mulher é a Virgem Maria, que, virgem, deu à luz a nossa Cabeça. Era
virgem e, além do mais, a figura da santa Igreja. Pois assim como, gerando seu Filho, ela
continuou virgem, assim a Igreja gera, todo o tempo os membros de Cristo, sem perder a
virgindade” (São Quodvultdeus, De Symbolo 3, PL 40, 661). De qualquer modo, a “mulher
apocalíptica” é um símbolo da Igreja e, de modo secundário, um sinal da Virgem Maria que,
segundo o Concílio Vaticano II, é membro, imagem e modelo da Igreja Virgem que guarda
pura a fé pelo acolhimento e a escuta obediente da Palavra de Deus. Contudo, a fé de Maria
não foi apenas uma declaração ou um “ato” na Anunciação, mas uma atitude que a Virgem
conservou até o Calvário como peregrina que “avançou no caminho da fé, e conservou
fielmente a união com seu Filho até a cruz” (LG, n. 58).
Mas de que modo a exemplaridade da fé da Virgem Maria serve como virtude a ser
imitada pela Igreja? Como membro e tipo (ícone e arquétipo) da Ecclesia Immaculata, Maria
é figura da discípula perfeita, pois é paradigma da escuta da Palavra. E não apenas da escuta,
mas, sobretudo, do cumprimento que, não consiste apenas na concepção do Verbo, mas na
prática da Palavra: “para além do nascimento físico de Cristo, que aconteceu uma vez, há uma
outra dimensão da maternidade que pode e deve continuar a existir [...] esta maternidade que
continuamente faz nascer Cristo, repousa na escuta, na conservação e na prática da palavra de
Jesus” (RATZINGER, 2004, p. 54). Segundo Santo Agostinho, a bem-aventurança de Maria
consiste em ser, primeiro, discípula de Cristo do que Mãe de Cristo e, que antes de tê-lo
gerado no seu ventre, o trazia na sua mente:

Prestai atenção, rogo-vos, naquilo que Cristo Senhor diz, estendendo a mão para
seus discípulos: Eis minha mãe e meus irmãos. Quem faz a vontade de meu Pai que
me enviou, este é meu irmão, irmã e mãe (Mt 12,49-50). Acaso não fez a vontade do
Pai a Virgem Maria, que creu pela fé, pela fé concebeu, foi escolhida dentre os
homens para que dela nos nascesse a salvação e que foi criada por Cristo antes que
51

Cristo nela fosse criado? Sim! Ela o fez! Santa Maria fez totalmente a vontade do
Pai e por isto mais valeu para ela ser discípula de Cristo do que mãe de Cristo; maior
felicidade gozou em ser discípula do que mãe de Cristo. Assim Maria era feliz
porque, já antes de dar à luz o Mestre, trazia-o na mente (Sermo 25,7-8: PL 46,937-
938).

Como a Virgem Maria, a Igreja acolhe (escuta), medita (silencia), coloca em prática e
proclama a Palavra do Senhor que suscita nos seus ouvintes a fé, como afirma o apóstolo
Paulo: “a fé vem pela pregação e a pregação é pela palavra de Cristo” (Rom 10,17). Mas antes
de ser nossa mãe na fé (cf. LF, n. 51), gerando seus filhos pela Palavra e pelo Batismo, a
Igreja conservou a unidade e a integridade do depósito da fé (cf. 1Tm 6,20) ao longo dos
séculos tal como Maria que preservou o seu “sim” da anunciação até a crucificação. Assim
como a fé manteve a Virgem unida a Jesus até a cruz, também a Igreja conserva a fé como
herança recebida dos apóstolos e a confessa e transmite em toda a sua pureza e integridade,
pois da unidade da fé depende a unidade e a comunhão da Igreja com o Senhor e dos
membros de Cristo. “A integridade da fé foi associada também com a imagem da Igreja
virgem, com o seu amor esponsal fiel a Cristo: danificar a fé significa danificar a comunhão
com o Senhor” (LF, n. 48).
Inserida no corpo eclesial como membro, Maria é discípula e servidora da Palavra
como qualquer outro, mas enquanto membro singular e eminente, ela é para todos protótipo
do discípulo por excelência, porque “Ninguém como ela „escutou a palavra de Deus‟ e a „pôs
em prática‟” (BALTHASAR, 2004, p. 140). A Conferência de Aparecida a este respeito
afirmou que a Virgem Maria

através de sua fé (cf. Lc 1,45) e obediência à vontade de Deus (cf. Lc 1,38), assim
como por sua constante meditação da Palavra e das ações de Jesus (cf. Lc 2,19.51), é
a discípula mais perfeita do Senhor (cf. LG 53) [...] com sua fé Maria chega a ser o
primeiro membro da comunidade dos crentes em Cristo, e também se faz
colaboradora no renascimento espiritual dos discípulos. Sua figura de mulher livre e
forte, emerge do Evangelho conscientemente orientada para o verdadeiro
seguimento de Cristo. Ela viveu completamente toda a peregrinação da fé como mãe
de Cristo e depois dos discípulos, sem estar livre da incompreensão e da busca
constante do projeto do Pai. Alcançou, dessa forma, o fato de estar ao pé da cruz em
comunhão profunda, para entrar plenamente no mistério da Aliança (DAp, n. 266).

Portanto, a Virgem Maria torna-se para toda a Igreja um paradigma da Igreja que pela
escuta e anúncio da Palavra do Senhor conserva e transmite a fé. “Ela, que „conservava todas
estas recordações e as meditava no coração‟ (Lc 2,19; cf. 2,51), ensina-nos o primado da
escuta da Palavra na vida do discípulo missionário” (DAp, n. 271) e delineia o perfil de uma
Igreja Servidora e não controladora da fé.
52

2.1.2.1.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal de fé na fragilidade

A pequenina imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é um sinal da fé


íntegra e intacta. Como explicar o fato de uma imagem de barro permanecer, sem se saber por
quanto tempo, no fundo do rio sem desintegrar-se, embora estivesse quebrada, coisa que
muito provavelmente aconteceu antes e foi a causa para ser lançada nas águas caudalosas do
Paraíba?!
“Aparecida” é uma imagem da Imaculada Conceição de Maria, encontrada no fluxo do
rio não como uma semideusa, nem numa visão angélica ou sobrenatural, mas como “criatura
humana, trazendo no corpo a espessura e a cor da argila de que foi plasmada” (AZEVEDO,
1995, p. 84). “As condições físicas da imagem merecem um comentário simbólico. Em suma,
fornecem argumentos acerca da sua fragilidade” (CALIMAN (org.), 1989, p. 14). Por isso,
aquela imagem de barro também recorda a nossa humanidade, frágil como o pó da terra (cf.
Gn 2,7).
Como era próprio da época em que foi esculpida, era comum que as imagens fossem
ocas. E a imagem de Aparecida era, de fato, oca, o que aumentava ainda mais sua fragilidade,
coisa que ficou bem evidenciada no atentado que a retalhou em mais de duzentos fragmentos.
O apóstolo Paulo fala que carregamos um tesouro em vasos de barro (cf. 2Cor 4,7). E não
poderia ser este o tesouro da fé, dom de Deus que nos foi transmitido pelo anúncio do
Evangelho e infundido pelo sacramento do Batismo?! A imagem de Nossa Senhora Aparecida
carrega a fé de milhares de brasileiros. Por muito tempo e, como não dizer até hoje, para
muitos cristãos, especialmente para os simples e humildes, sua fé no Senhor sempre foi
sustentada pela confiança em Nossa Senhora.
A história da Igreja no Brasil é um exemplo de que a devoção mariana, não apenas
aparecidense, ao longo deste imenso país manteve, apesar de frágil, a fé católica e a pertença à
Igreja, principalmente nos rincões onde não havia igrejas ou em comunidades que estavam
distantes das sedes paroquiais, sobretudo na zona rural onde as famílias costumavam se reunir
aos sábados para a reza do terço e outras devoções nas suas próprias casas, com os vizinhos,
mantendo, assim, o germe da Igreja que deste modo se congregava desde as suas origens,
“com Maria, a mãe de Jesus” (cf. At 1,14).
“Aparecida” é exemplo da fé que resiste às fragilidades do tempo e das circunstâncias,
da fé escondida “como tesouro em vasos de barro”, da fé que une na comunhão os filhos de
Deus, da Mãe que reúne os filhos junto de si e transmite o seu exemplo de servidora da
53

Palavra, como quando disse ao anjo: “Faça-se em mim conforme a vossa palavra” (cf. Lc
1,38) e nas bodas aos servos: “Façam tudo o que Ele vos disser” (cf. Jo 2,5).

2.1.2.2. Mulher-ícone da Igreja Mãe na fonte batismal

A mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés, coroada de estrelas (cf. Ap 12,1)
estava grávida, com dores de parto, prestes a dar à luz (v. 2), sendo atormentada e perseguida
pelo Dragão que queria devorar o filho de suas entranhas (v. 3-5.13). Como se trata de um
texto simbólico, as dores de parto não possuem aqui um caráter biológico, mas querem
recordar a Paixão do Senhor que anuncia um “novo nascimento”, a ressurreição. O versículo
cinco manifesta simbolicamente o Mistério Pascal de Cristo e profetiza que todos os que são
perseguidos, personificados na figura da mulher parturiente e dos seus descendentes (v. 17),
fazem parte do povo de Deus, da Igreja que na cruz dá à luz ao homem novo, aquele que
morreu e ressuscitou com Cristo, e por isso reina com Ele (cf. Rom 6,8; 2Tm 2,11-12).
A mulher parturiente, atormentada para dar a luz, segundo Aristides Serra, além de
designar o Mistério Pascal, é um indicador da angústia da comunidade dos discípulos (cf.
FIORES; MEO (Orgs.), 1995, p. 252), principalmente no momento em que o Mestre foi
tirado do meio deles (cf. Jo 16,21-22), e revela a dificuldade de “gerar” Cristo no mundo,
assim como a Virgem-Mãe que apesar de conceber no seu ventre o Filho de Deus, não foi
poupada da espada da dor (cf. Lc 2,35). Ela representa a “comunidade da qual nasce o
Messias, e cujos outros filhos são os cristãos” (PRIGENT, 1993, p. 218), os descendentes da
mulher que “mantêm o Testemunho de Jesus” (v. 17). Contudo, o “parto” da mulher não
termina com o nascimento e exaltação do Filho, mas continua com todos os tipos de ataque
que o Dragão faz à mulher e à sua descendência (v. 13).
A maternidade da Virgem Maria é a imagem da maternidade da Igreja (LUBAC apud
FORTE, 1991, p. 198), sendo que “uma e outra estão unidas pela mesma vocação
fundamental: a maternidade” (THURIAN apud FORTE, 1991, p. 198). O fato de ser “mãe” é,
sem dúvida, o aspecto mais expressivo da relação entre Maria e a Igreja. Entre diversos textos
patrísticos, a Lumen gentium (cf. n. 53) quando apresenta Maria no mistério da Igreja repete
uma expressão de Santo Agostinho a este respeito que, se encontra no Tratado De Sancta
Virginitate e, complementa o mistério da fecundidade da Igreja Virgem: “a Igreja, também
ela, é mãe e virgem [...] Maria deu à luz corporalmente a Cabeça deste corpo. A Igreja dá à
luz espiritualmente os membros dessa Cabeça” (A virgindade consagrada II, 2). E num
sermão natalino, o bispo de Hipona também afirmou de maneira semelhante: “Aquilo que
54

Maria mereceu manter na carne, a Igreja o conserva no espírito. Todavia, com esta diferença:
Maria deu à luz um só filho. A Igreja gera a muitos que hão de ser consagrados na unidade,
pelo Filho único da Virgem” (Sermão 195,1-3 – 12º do Natal).
Portanto, a maternidade comum entre Maria e a Igreja, cuja única diferença é que uma
gerou na carne e outra gera no espírito, pela ação do Espírito Santo consiste em conceber e
fazer nascer a Cristo. Como aconteceu no ventre de Maria, assim também faz espiritualmente
a Igreja no coração dos fiéis, isto é, gerar a vida divina através da pregação da Palavra de
Deus, da celebração dos Sacramentos e do testemunho da caridade. Como Maria, a Igreja
gera, nutre, cuida, educa, consola e conduz os filhos do Pai e os irmãos de Jesus, filhos no
Filho, pelo poder do Espírito Santo para viver segundo a fé, a esperança e a caridade.
Contudo,
o equilíbrio na relação entre a maternidade da Igreja e a de Maria desapareceu todas
as vezes que, obscurecido o sentido da natureza materna da Igreja, foram enfatizados
seus aspectos visíveis e jurídicos, acabando-se por substituir a Igreja por Maria e a
caridade irradiante do corpo eclesial do Senhor pela de sua Mãe (FORTE, 1991, p.
200).

Há tantos devotos que amam Maria, visitam seus santuários, cultivam um amor todo
especial para com a Mãe do Senhor, mas estão afastados da comunhão visível da Igreja,
porque talvez ainda carregam na mente a imagem de uma Igreja pouco maternal e muito mais
“obra”, “ONG”, instituição formada exclusivamente pela hierarquia e pelos religiosos e
conjugada apenas no “masculino”. Conforme o Cardeal Ratzinger, é fundamental
compreender a natureza da Igreja também no “feminino” como “mulher” e “mãe”, pois

A Igreja não é um aparato, não é simplesmente uma instituição. Ela é Mulher. É


mãe. É viva. A compreensão mariana da Igreja é o contraste mais forte e decisivo a
um conceito de Igreja meramente organizacional ou burocrático. Nós não podemos
fazer a Igreja, nós devemos ser Igreja [...] É somente sendo marianos que nos
tornamos Igreja. Nas origens, a Igreja [...] nasceu quando o fiat brotou na alma de
Maria. Esse é o desejo mais profundo do Concílio: que a Igreja desperte em nossas
almas. Maria nos indica o caminho (apud LEAHY, 2005, p. 231).

A Conferência de Aparecida acredita que a “visão mariana da Igreja é o melhor


remédio para uma Igreja meramente funcional ou burocrática”, ou seja, uma Igreja-Mãe,
familiar, terna e próxima do povo, que vai ao seu encontro:

Como na família humana, a Igreja-família é gerada ao redor de uma mãe, que


confere “alma” e ternura à convivência familiar. Maria, Mãe da Igreja, além de
modelo e paradigma da humanidade, é artífice de comunhão. Um dos eventos
fundamentais da Igreja é quando o “sim” brotou de Maria. Ela atrai multidões à
comunhão com Jesus e sua Igreja, como experimentamos muitas vezes nos
santuários marianos. Por isso, como a Virgem Maria, a Igreja é mãe” (DAp, n. 268).
55

Segundo Hugo Rahner, temos grande dificuldade de contemplar na estrutura terrestre


da Igreja o seu mistério. Por isso, convém aprender de novo a ver a Igreja em Maria e Maria
na Igreja (1958, p. 6). Partindo do grande amor que o nosso povo tem por Nossa Senhora, a
ação evangelizadora precisa aproveitar o grande potencial da devoção mariana para
reaproximar os batizados que estão afastados da comunhão eclesial, da profissão da fé em
comunidade, da celebração dominical da Eucaristia, da frequência nos sacramentos,
ensinando-os, assim, a exercer o sacerdócio comum dos fiéis (cf. LG, n. 10-11) que tem sua
origem no sacramento do Batismo, pelo qual nos tornamos participantes da natureza divina
(cf. 2Pd 1,4) e membros da comunidade da Igreja.
A Mãe Igreja, pelo banho da regeneração e da renovação no Espírito Santo (cf. Tit
3,5), faz com que renasçamos para uma vida nova em Cristo transformando-nos em “homens
novos” (cf. Ef 4,24; Col 3,10) para formar um só corpo (cf. 1Cor 12,13). O nosso
renascimento espiritual pela graça batismal no seio da Igreja está intimamente relacionado
com o mistério do nascimento corporal do Filho de Deus no seio da Virgem Maria. O que
aconteceu em Maria, se completa no sacramento do Batismo, que edifica o Corpo de Cristo
partindo do seio da Igreja Virgem-Mãe de tal modo que o seio de Maria é o seio da Igreja
(RAHNER; 1958, p. 73-74). Pela ação do mesmo Espírito, o seio de Maria gerou
corporalmente o Cristo Cabeça e o seio da Igreja concebe espiritualmente os membros do
Corpo de Cristo que, pela encarnação do Verbo tornaram-se filhos de Deus (cf. Jo 1,12-14).
Nesta aproximação entre o “carnal” e o “espiritual” contemplamos o mistério mariano do seio
batismal da Genetrix Ecclesia.
No portal do batistério da Basílica de São João do Latrão, em Roma, lê-se uma
inscrição poética do século V redigida por São Leão Magno, quando ainda era diácono do
Papa Sisto III, na qual apresenta a fonte batismal como o seio virginal da Mãe Igreja que gera
os seus filhos pelo Batismo:

Aqui nasce para o céu um povo de nobre estirpe. O Espírito é quem dá a vida nessas
águas fecundas. Aqui, a Mãe Igreja gera, com fértil virgindade, aqueles que coloca
no mundo pela ação do Espírito. Esta é a fonte da vida que banha todo o universo:
brota da ferida aberta do coração do Cristo e faz o cristão. Esperai no Reino vós que
nascestes nesta fonte (do Batistério Lateranense) 18.

No edifício sagrado a fonte batismal é o símbolo do seio materno da Igreja. Este


simbolismo na Igreja antiga era muito evidente, tanto nas construções quanto no rito da
iniciação cristã dos catecúmenos. Os batistérios eram como que como “piscinas” de formato

18
O pórtico de entrada do batistério de Aparecida também reproduz esta mesma inscrição.
56

octogonal com água corrente na qual os catecúmenos desciam de um lado e subiam pelo outro
por três degraus. O duplo movimento de imersão (descida) e emersão (subida) carregava todo
o significado ritual do Mistério Pascal segundo a catequese batismal de Paulo que ensinava:
“pelo batismo nós fomos sepultados com ele na morte para que, como Cristo foi ressuscitado
dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos vida nova” (Rom 6,4). “A pia
batismal passa a ser figura da sepultura de Cristo, no ato de descer à pia batismal imita-se a
morte e o sepultamento de Cristo: o batizado morreu e ressuscitou com Cristo. „Aquela água
salvífica se tornou para vós ao mesmo tempo sepultura e mãe‟ (CIRILO DE JERUSALÉM,
Myst. Cat. II, 4)” (SCHNEIDER (org.), 2012, p. 219).
A descrição do antigo rito do Batismo dos catecúmenos na Noite Santa da Páscoa
revela esse caráter maternal da Igreja que gera pelo Batismo. Após a prece de consagração da
água, que corresponde atualmente à bênção da água batismal,

Os catecúmenos se despem [...] Todos entram completamente nus no seio maternal


da Igreja [o batistério], tal como haviam saído do seio de suas mães [...] descendo
um a um [...] até a piscina, onde chegavam comumente descendo três degraus, para
entrar na água corrente até a metade do corpo. A piscina era construída de modo a
obrigar o catecúmeno a descer pelo lado oeste e sair pelo leste. O Bispo fazia a cada
um as três perguntas rituais: “Crês no Pai? Crês no Filho? Crês no Espírito Santo?”
A resposta vem clara e decidida: “Sim, creio!” A cada resposta, o batizado recebe
um jato d‟água ou o próprio batizador derrama água sobre ele, dizendo: “Eu te
batizo.” [...] O batizado então atravessa a piscina, para simbolizar que ele também
faz a travessia milagrosa [cf. a Travessia do Mar Vermelho] Talvez em uma sala
contígua encontrada nas escavações, os neobatizados apresentam-se ao Bispo, que
lhes faz unção sobre a cabeça com o óleo perfumado “da alegria”, o santo crisma,
que os torna membros do povo real e sacerdotal. Os renascidos do batismo recebem
uma veste branca, tecida com uma matéria vegetal, estão “vestidos de linho e
pureza”. Essas vestes simbolizam a transparência da alma e a incorruptibilidade do
corpo, em uma integridade paradisíaca [...] A imposição da mão e o sinal da cruz
sobre a fronte do batizado, de origem apostólica, passam a marca-lo, então, com o
nome de seu novo mestre, seu Imperador Jesus Cristo: “Ele impõe-lhe as mãos,
chamando sobre ele o Espírito.” Essa confirmação sela e conclui a iniciação
batismal. A partir daí, os batizados passam a chamar-se “neófitos”, os recém-
nascidos da mãe Igreja (HAMMAN, 1989, p. 202-203).

Esta longa e detalhada descrição do rito batismal corresponde ao que São Leão Magno
ensinava aos fiéis nos seus sermões: “para todo homem que nasce de novo, a água do batismo
é como o seio virginal: o mesmo Espírito que veio sobre a Virgem vem agora à fonte
batismal” (Sermo 24 in Nativitate Domini, 3; PL 54, 206A). O que aconteceu conosco no
Batismo tem o seu modelo original no seio de Maria. Junto a todas as fontes batismais da Mãe
Igreja está a Mãe de Jesus (RAHNER, H., 1958, p. 74-75).

2.1.2.2.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal do compromisso batismal


57

Figura 5 – Pórtico de entrada da Capela Batismal do Santuário Nacional de Aparecida.

O encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é um sinal deste


mistério mariano do Batismo, isto é, deste modelo e presença de Maria na geração dos filhos
de Deus no seio da Igreja pela água e pelo Espírito (cf. Jo 3,5). O contexto do encontro da
imagem de Aparecida surgida nas águas do Rio Paraíba apresenta a matéria do Batismo que é
a água e lembra o duplo movimento de entrada e saída da água semelhante ao dos
catecúmenos. Além disso, a imagem quebrada de barro, que resistiu às intempéries do fundo
do rio, está despida de suas cores originais, tanto que um dos pescadores, imediatamente após
resgatá-la das águas, envolveu-a com um manto, como que a “aquecê-la”, e guardou-a no
interior do seu barco. Não está aqui um sinal misterioso do ritual do batismo, quando o
catecúmeno despido ao entrar e sair da água, recebia uma veste branca e estava, portanto,
sacramentalmente incorporado à Igreja “na qual os homens entram pela porta do batismo”
(LG, n. 14), representada em “Aparecida” pelo barco?! Por isso, podemos dizer que
“Aparecida carrega consigo uma mensagem batismal” (SILVA, 2017, p. 25), uma exortação
para redescobrir a partir da fonte batismal a dignidade do ser cristão, assim como São Leão
Magno (século V) admoestava os fiéis na noite do nascimento do Senhor:
58

Toma consciência, ó cristão, da tua dignidade. E já que participas da natureza divina,


não voltes aos erros de antes por um comportamento indigno de tua condição.
Lembra-te de que cabeça e de corpo és membro. Recorda-te que foste arrancado do
poder das trevas e levado para a luz e o reino de Deus. Pelo sacramento do batismo
te tornaste templo do Espírito Santo. Não expulses com más ações tão grande
hóspede, não recaias sob o jugo do demônio, porque o preço de tua salvação é o
sangue de Cristo (Sermo 1 in Nativitate Domini, 1-3; PL 54,190-193).

O encontro da imagem de Aparecida nas águas é um convite a reanimar na nossa vida


espiritual o compromisso profético, sacerdotal e régio do Batismo, especialmente nas coisas
do cotidiano, assim como aqueles pescadores desanimados pela fadiga estéril de seu trabalho,
mas que encontraram naquela imagem de Nossa Senhora da Conceição a esperança para
seguir lançando as redes. É, enfim, um pedido para viver como filhos do Pai, tendo a Igreja
por Mãe19.

2.1.2.3. Mulher-ícone da Igreja Esposa da esperança

A mulher vestida de sol, com a lua debaixo dos pés, coroada de estrelas (cf. Ap 12,1)
no capítulo 12 do Apocalipse é uma mulher perseguida, símbolo da Igreja peregrina no
deserto entre as tribulações do mundo e as consolações de Deus (cf. LG, n.8). Os elementos
cósmicos concentrados na mulher (sol, lua e estrelas) e relidos segundo a interpretação bíblica
nos indica o perfil da esposa que possui ares de “rainha”. O próprio Livro Cântico dos
Cânticos, cuja estrutura literária é um diálogo entre o “Esposo” e a “Esposa”, uma analogia
comum entre os profetas para exemplificar a relação entre Deus e o povo de Israel, fala da
mulher esplendorosa vestida de sol (cf. Ct 6,10), que nos recorda de imediato a mulher do
Apocalipse (cf. Ap 12,1), cujo destino será glorioso, pois além de “virgem” e “mãe”, ela é
“esposa”: “Vem! Vou mostrar-te a Esposa, a mulher do Cordeiro!” (Ap 21,9). E o “vidente”
de Patmos então faz uma descrição da Cidade Santa de Jerusalém como uma esposa enfeitada
para o seu marido (cf. Ap 21,2).
Maria “é a Virgem Mãe, a criatura na qual o Eterno desposou a história na aliança que
une o humano e o divino, a terra e o céu” (FORTE, 1991, p. 215); é a filha de Sião que
personifica a relação esponsal entre Deus e o seu povo. Na concepção mariológica de Santo
Agostinho, a Virgem Maria é o tálamo da união da divindade com a humanidade (cf.
Comentário do Sl 90,II,5). Apresentada deste modo, tão pouco frequente, isto é, como
“esposa”, Maria é situada no mistério da Aliança como “Sponsa Patris”, “Sponsa Christi” e

19
“Ninguém pode ter a Deus por Pai, se não tiver a Igreja por Mãe” (CIPRIANO DE CARTAGO, Ecclesiae
catholicae unitate, 6: CCL 3. 253 (PL 4. 519)).
59

“Sponsa Spiritus Sancti”, de modo especial na sua relação com o Espírito Santo que na
anunciação a envolveu como uma sombra (cf. Lc 1,35), como a nuvem que pairava sobre a
tenda da reunião que abrigava a Arca da Aliança (cf. Ex 40,2-3) que, por sua vez, continha as
Tábuas da Lei (cf. Ex 25,16), o “contrato matrimonial” que estabelecia a relação de fidelidade
entre Deus e o povo que fora escolhido dentre todas as nações da terra para ser sua
propriedade particular, um reino de sacerdotes e uma nação santa (cf. Ex 19,5-6).
Na peregrinação do povo de Israel pelo deserto, a arca tornou-se um sinal da presença
de Deus. Na anunciação, Maria é a nova “arca da aliança” que transporta a presença do Deus
vivo. No Apocalipse, o sinal grandioso da “Mulher” (12,1) é precedido pela visão da arca da
aliança que surge do santuário de Deus (cf. Ap 11,19). “Trata-se a um só tempo do mistério
da Igreja e do mistério de Maria, que como arca contém a presença viva de Deus”
(BASADONNA; SANTARELLI, 2000, p. 153).
“A Igreja dá a Maria o título de „arca da aliança‟ para mostrar o posto que na vida ela
ocupa porque se tornou o lugar da presença viva do Deus que nela se fez homem”
(BASADONNA; SANTARELLI, 2000, p. 153), do Deus que na Antiga Aliança manifestava
a sua glória na nuvem (cf. Ex 40,34-35), e que no seio da Virgem, Mãe e Esposa desceu e se
fez carne para selar a nova e eterna aliança na Cruz, onde Maria aparece ao seu lado sendo
chamada de “mulher” (cf. Jo 19,26), como a “Esposa” ao lado do seu marido (cf. Ef 5,24).
A figura da esposa associa o dom recebido pela virgem e realizado pela mãe. Este
mistério acontece de modo admirável na pessoa de Maria pela ação do Espírito Santo que é a
nupcialidade eterna entre o Pai e o Filho e, por isso, o artífice da aliança entre Deus e o povo.
“A esponsalidade de Maria se oferece como tal no Espírito Santo: nele ela se une ao Pai e ao
Filho, nele ela participa da fecundidade de um e da acolhida do outro, nele ela se torna a arca
da aliança, que une o céu e a terra, guardando Deus em carne humana” (FORTE, 1991, p.
224). Como Esposa no Espírito, Maria “é a porta de Deus para o mundo e a porta do mundo
para Deus [...] O Espírito é aquele que faz de Maria a Esposa, tornando-a Virgem Mãe do
Filho e dos filhos” e “lugar de encontro entre Deus e os homens e de aliança entre os homens
em Deus e com ele” (Ibid., 1991, p. 224-225).
No ícone de Maria Esposa, a Igreja contempla a imagem pura do que deseja e espera
ser (cf. SC 103; MC 22), pois assim como Maria, a Igreja é esposa. “A Igreja sabe que,
acolhendo o Espírito, que lhe é dado em abundância por Cristo ressuscitado, levará a
cumprimento aquilo que nela está apenas iniciado e que contempla realizado justamente na
Esposa das núpcias eternas, Maria” (FORTE, 1991, p. 230). Por isso, no nível escatológico,
mas “também já agora na terra, enquanto não chega o dia do Senhor (cf. 2Pd 3,10), ela brilha,
60

como sinal de esperança segura e de consolação, aos olhos do povo de Deus peregrinante”
(LG, n. 68). Maria é o “sinal” da esperança realizada da Igreja, o ícone escatológico da Igreja
glorificada no Espírito. No seu “primeiro membro” tão eminente e singular, a Igreja atinge o
seu termo, repouso e plenitude. Por isso no caminho da Igreja peregrina sobre a terra, Maria é
uma “estrela da noite”.
Mas para atingir este destino glorioso, a Igreja aprende na escola de Maria, os modelos
de virtude para prosseguir no seu itinerário de fé, a fim de progredir na santidade (cf. LG, n.
65) que consiste na conformação ao Esposo, ou seja, na configuração a Cristo, e de ser
testemunha profética da esperança. Este povo da Aliança é também povo da esperança que faz
a sua caminhada para o futuro sem descuidar do tempo presente e da história. Com toda razão,
como Maria no Magnificat cantou a esperança do seu povo, a Igreja proclama o advento do
Reino de Deus e denuncia o que impede a sua instauração. Assim, desta forma, a esperança de
Maria, tal como a da Igreja, não consiste numa amenização ou alienação da realidade social e
dos dramas humanos, mas uma “antecipação do futuro” “que atrai para o presente dos homens
o amanhã da aliança com Deus” (FORTE, 1991, p. 233).

2.1.2.3.1. Nossa Senhora Aparecida: sinal de esperança em meio ao fracasso

Para aqueles pescadores desanimados por causa do insucesso da pesca, a imagem de


Nossa Senhora da Conceição encontrada nas suas redes tornou-se um ícone de esperança,
pois logo após o seu achado, já depois de tantas tentativas fracassadas, eles lançaram
novamente as redes e o inesperado aconteceu: peixes em abundância. Mas antes dos peixes,
aquelas redes que representam a sua própria vida, trabalho e sustento “estão cheias de uma
presença que os encoraja a não perder a esperança” (FRANCISCO, S.S., Mensagem ao
CELAM (10.05.2017)). E “Quem poderia imaginar que o lugar de uma pesca infrutífera,
tornar-se-ia o lugar onde todos os brasileiros podem se sentir filhos de uma mesma Mãe?”
(FRANCISCO, S.S., Homilia (24.07.2013)). O signo da esperança nos acompanhou desde
que o primeiro sinal de Maria chegou ao Brasil, uma imagem portuguesa de Nossa Senhora da
Esperança que veio a bordo da nau de Cabral. O Brasil foi “descoberto” sob o olhar terno e
protetor da Mãe da Boa Esperança (MEGALE, 1997, p. 203).
Por isso, desde aqueles humildes pescadores, são muitos os brasileiros que depositam
a sua confiança na Mãe de Deus, pois a esperança que não decepciona (cf. Rom 5,5) “é para
nós qual âncora da alma, segura e firme (Hb 6,19). Diante de tantas desigualdades, injustiças,
corrupções, entre tantos outros problemas sociais, políticos e econômicos, além dos dramas
61

humanos, o nosso povo segue o seu caminho olhando para Nossa Senhora Aparecida como
“estrela de esperança”. Na encíclica sobre a esperança cristã (Spe Salvi), o Papa Bento XVI
dizia que

A vida humana é um caminho. Rumo a qual meta? Como achamos o itinerário a


seguir? A vida é como uma viagem no mar da história, com frequência enevoada e
tempestuosa, uma viagem na qual perscrutamos os astros que nos indicam a rota. As
verdadeiras estrelas da nossa vida são as pessoas que souberam viver com retidão.
Elas são luzes de esperança. Certamente, Jesus Cristo é a luz por antonomásia, o sol
erguido sobre todas as trevas da história. Mas, para chegar até ele precisamos
também de luzes vizinhas, de pessoas que dão luz recebida da luz dele e oferecem,
assim, orientação para a nossa travessia. E quem mais do que Maria poderia ser para
nós estrela de esperança? Ela que, pelo seu “sim”, abriu ao próprio Deus a porta do
nosso mundo; ela que se tornou a Arca da Aliança viva, onde Deus se fez carne,
tornou-se um de nós e estabeleceu a sua tenda no meio de nós (cf. Jo 1,14) (SS., n.
49).

Na Basílica Nacional, quando da sua viagem apostólica ao Brasil, o Papa Francisco


frisou na homilia três atitudes extraídas das leituras da Solenidade de Nossa Senhora
Aparecida que devem animar o nosso itinerário cristão: conservar a esperança, deixar-se
surpreender por Deus e viver na alegria. E, mais recentemente aos bispos do CELAM,
reunidos em El Salvador de 9 a 12 de maio, expressou que “gostaria de poder visitar o
Santuário de Aparecida” pela celebração dos 300 anos, o que infelizmente não poderá
realizar, mas deixou para os pastores uma mensagem de esperança inspirada em nossa
Padroeira:

Aparecida não traz receitas mas chaves, critérios, pequenas grandes certezas para
iluminar e sobretudo, acender o desejo de nos despojar de todo o desnecessário e
voltar às raízes, ao essencial, à atitude que fez de nosso continente a terra da
esperança. Aparecida renova a esperança em meio a tantas inclemências (Mensagem
(10.05.2017)).

Mas o que esperavam aqueles pescadores senão os peixes para o banquete de recepção
do governador? Assim, o primeiro milagre atribuído a Nossa Senhora Aparecida, os peixes
em abundância, que quase fez afundar o barco, após o encontro da imagem, renovou a
esperança dos pobres e humildes que esperam em Deus. Enquanto que nas Bodas de Caná (cf.
Jo 2,1-11), graças à intervenção de Maria, houve abundância de vinho, o primeiro “milagre de
Aparecida” foi uma pesca abundante. Nestes dois episódios Maria foi um “sinal” para a
abundância de vinho em Caná e de peixes no “imprestável” Rio Paraíba, símbolos do
banquete. E foi justamente para um banquete que aqueles pescadores puseram-se a pescar, do
qual muito provavelmente não puderam participar. Mas o Evangelho também fala de um
62

banquete preparado para os pobres, simples e humildes (cf. Lc 14,21). Pela celebração da
Eucaristia, a Igreja antecipa a esperança no banquete definitivo no Reino dos céus.
Todos estes símbolos, repletos de significado, que encontramos misteriosamente
manifestados no “sinal de Aparecida” – o rio, a imagem de barro, as redes, o barco, os
pescadores, o pano que envolveu o corpo da imagem e os peixes abundantes – querem
recordar algo fundamental que precisa ser constantemente resgatado na nossa vida espiritual,
que às vezes é tão indolente e superficial, carente dos sinais do mistério: a fé e os
sacramentos, especialmente o Batismo e a Eucaristia, professados, celebrados e vividos na
comunhão da Igreja Virgem, Mãe e Esposa que encontra na figura, na pessoa e na missão de
Maria as suas primícias (dimensão protológica), modelo (dimensão histórica) e sinal de
esperança realizada (dimensão escatológica).
O “sinal de Aparecida”, embora silencioso e sutil, através da pequenina imagem que
“apareceu” no drama da vida e na trama das redes daqueles três pescadores, é uma forte
mensagem evangélica e profética para a Igreja e para a sociedade de ontem e de hoje. Ao
longo de três séculos, “Aparecida” tem sido para todos uma bênção: “peixes em abundância,
famílias recuperadas, saúde alcançada, corações reconciliados, vida cristã reassumida”
(Excertos da Oração do Ano Jubilar).

Figura 6 – Ícone do encontro da imagem e da pesca milagrosa no Santuário Nacional.


Composição: Claudio Pastro.
63

3. A IMAGEM DE APARECIDA NO MISTÉRIO DA IGREJA

3.1. A mensagem de Aparecida sobre o mistério, a vida e a missão da Igreja

A imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida “carrega uma profunda


mensagem de unidade e comunhão” (SILVA, 2017, p. 58) sobre a natureza, a vida e a missão
da Igreja que “é em Cristo como que sacramento isto é, sinal e instrumento, da união íntima
com Deus e da unidade de todo gênero humano” (LG, n. 1). A partir das palavras do Papa
Francisco no encontro com o episcopado brasileiro (2013), onde apresentou Aparecida como
chave de leitura para a missão da Igreja, podemos chamar a sua imagem de ícone da
unidade: “Veem então [os pescadores] a imagem da Imaculada Conceição. Primeiro o corpo,
depois a cabeça, em seguida a unificação de corpo e cabeça: a unidade. Aquilo que estava
quebrado, retoma a unidade” (FRANCISO, S.S., Discurso (27.07.2013)).

3.1.1. “Corpo” e “Cabeça”: o mistério da Igreja e o primado petrino

O “corpo” e a “cabeça” da imagem de Nossa Senhora Aparecida carregam o sentido


profundo de uma unidade restaurada. Quando o pescador João Alves encontrou na sua rede
primeiro o corpo e depois a cabeça da imagem, embora na narrativa do encontro, registrada no
I Livro Tombo da Paróquia de Guaratinguetá, não mencione este detalhe, muito
provavelmente, quem sabe movido pela curiosidade, ele tenha unido as duas partes que
tomaram a forma de uma “coisa” só e, a partir desta união, os três pescadores teriam
reconhecido admirados: “É a Virgem da Conceição”.
Eles bem que poderiam ter lançado a imagem novamente na água, o que não
significaria nenhum desrespeito pelo fato de estar quebrada. Mas por que não o fizeram?
(BRUSTOLONI, 1998, p. 50). Quando chegou à sua casa, Felipe Pedroso tratou logo de
limpar o lodo e consertou a imagem, “Juntando com suas rudes mãos a cabeça ao tronco,
firmou-a com „cera da terra‟” (Ibid., 1998, p. 50).
No mistério que envolve a “cabeça” e o “corpo” de Nossa Senhora Aparecida,
perscrutamos o mistério da unidade do Corpo de Cristo e como o primado petrino na Igreja
pode exercer um carisma de unidade inspirado na Mãe do Senhor.

3.1.1.1. “Corpo”: o mistério da unidade da Igreja


64

Para sinalizar o mistério da Igreja, os Padres Conciliares recordaram, entre outras


apresentadas na Constituição Dogmática Lumen Gentium, a imagem da Igreja Corpo de Cristo
(cf. LG, n. 7) segundo a eclesiologia paulina, pois até então predominava uma concepção
unilateral da Igreja como sociedade perfeita e visível, uma instituição de caráter jurídico e
hierárquico, de modo que, sem negar esta dimensão histórico-social, o Concílio buscou
resgatar seus elementos espirituais, conjugando a realidade visível e invisível da Igreja (cf.
LG, n. 8).
A expressão Igreja Corpo de Cristo, tipicamente paulina, indica uma realidade
profunda do mistério da Igreja, embora não seja a única. Inicialmente, na Primeira Carta aos
Coríntios e aos Romanos, Paulo usa a metáfora do corpo (cf. 1Cor 12,12-27; Rom 12,4-5)
para pôr fim às desordens, confusões, rivalidades e disputas por conta da variedade de dons,
carismas e ministérios presentes nestas comunidades, com a finalidade de esclarecer que,
embora haja muitos membros, todos formam um único corpo. A imagem do corpo é usada
para indicar o princípio de unidade “que mantém harmoniosamente juntos entre si os vários
membros, e ao mesmo tempo funda a sua diversidade” (ROSSÉ, 1984, p. 89). O apóstolo não
condena a diversidade e a pluralidade que é justamente obra do Espírito Santo, mas indica que
dentro do Corpo que é a Igreja, a variedade de dons deve manifestar a unidade da comunidade
cujo princípio unificante é Cristo. E o mesmo Espírito, responsável pela manifestação dos
dons, é que conduzirá à unidade o Corpo de Cristo pelo vínculo da caridade e da paz (cf. Ef
2,14-18). Por essa razão, a unidade é a realidade primeira, anterior à diversidade para a qual
deve tender, pois a Igreja é una desde a sua origem, uma vez que se origina na unidade da
Trindade, ou melhor, participa desta unidade indivisa, de tal forma que não é o esforço dos
membros que promove a unidade, mas a ação de Cristo que congrega os membros a Si e entre
si. Por isso que a Igreja não é simplesmente uma comunidade de pessoas associadas para um
mesmo fim, como uma ONG, associação ou clube, mas um corpo vivo que encontra a sua
profunda identidade e unidade em Cristo.
Quando se diz que a Igreja é um corpo, ou seja, um organismo vivo qualquer, isto não
passa de uma metáfora ou comparação. Mas quando este corpo tem uma identidade, trata-se
de uma pessoa específica. Neste caso, a Igreja é o Corpo de Cristo, expressão esta que tem sua
origem anterior a Paulo, pois já era aplicada ao pão do banquete eucarístico. “Paulo considera
a comunidade como corpo de Cristo com o realismo com o qual o pão eucarístico é o corpo de
Cristo” (ROSSÉ, 1984, p. 93). Existe uma profunda identificação e assimilação entre Cristo e
a comunidade de tal forma que a Igreja é a presença viva de Cristo na história. Por isso é
necessária a unidade dos membros num só corpo, porque Cristo não está dividido (cf. 1Cor
65

1,13). “A unidade manifesta a comunidade na sua realidade íntima que se trata de não alterar:
Cristo” (Ibid., 1984, p. 95).
Na Carta aos Colossenses e aos Efésios a expressão Igreja Corpo de Cristo ganha uma
dimensão universal e apresenta a distinção “corpo” e “cabeça”. Cristo é a Cabeça do seu
Corpo que é a Igreja (cf. Col 1,18; Ef 1,22-23). Cristo é a “cabeça” (caput) porque ocupa uma
posição proeminente, pois é superior à Igreja e o princípio vital para o crescimento do seu
“corpo”. Deste modo se preserva a distinção que há entre Cristo e a Igreja, do mesmo modo
como entre a cabeça e o corpo, embora ambos estejam unidos. Cristo é o Senhor da Igreja que
não é apenas o seu prolongamento sobre a terra.
Mas a própria Igreja é um “tu” diante de Cristo. Assim como a esposa que com o
marido formam uma só carne (cf. Ef 5,23), esta também é distinta dele. Por essa razão, a
expressão “Igreja Esposa de Cristo” completa os limites da expressão “Igreja Corpo de
Cristo”. Em Ef 5,22-32, Paulo compara a relação entre Cristo e a Igreja como uma relação de
amor recíproco entre marido e esposa, na qual o marido é a “cabeça” da mulher (cf. Ef 5,23).
A principal justificativa para o uso da metáfora “corpo” era para superar as discórdias
e divisões entre os membros da comunidade, no nível interno da vida eclesial. Na evolução
deste pensamento, Cristo é identificado como a Cabeça do Corpo que é a Igreja, pois ele é o
único capaz de reestabelecer a unidade e derrubar o muro da inimizade (cf. Ef 2,14). Como
lugar da presença de Cristo que congrega os homens, consciente de sua missão, a Igreja é
sacramento de Cristo, sinal de unidade para todo gênero humano e instrumento para a
salvação do mundo (cf. LG, nn. 1,48).
Não sem razão é que toda “divisão [...] é contrária ao evangelho” (QUINN, 2002, p.
12), o mesmo que equivale a dizer: toda a divisão se opõe à vontade de Cristo. O Decreto
sobre o Ecumenismo – Unitatis Redintegratio – do Concílio Vaticano II confessa que “Esta
divisão, porém, contradiz abertamente a vontade de Cristo, e é escândalo para o mundo, como
também, prejudica a santíssima causa da pregação do Evangelho a toda a criatura” (UR, n. 1).
Por isso, o interesse pela unidade não significa apenas um apaziguamento nas relações entre
Igrejas cristãs ou boas relações diplomáticas entre cristãos separados, nem serve como que
para “camuflar” o controle da Cúria Romana sob o governo pastoral das dioceses ou ainda a
uniformidade da liturgia, entre outros equívocos, mas a unidade é uma necessidade para a
Igreja cumprir a sua missão no mundo. E mais, a unidade pertence à essência mesma da
Igreja, segundo o que professamos no Credo Niceno-Constantinopolitano: “Creio a Igreja
una...”. Contudo, a unidade que está na essência da Igreja e é um artigo de fé e o cerne da sua
missão, não significa o fim da diversidade (Ibid., 2002, p. 22). Toda uniformidade e
66

centralismo são contrários à identidade católica e apostólica da Igreja (Ibid., 2002, p. 24),
sendo que a diversidade é necessária para a unidade, como na analogia paulina entre o corpo e
os seus membros que, “embora sejam muitos, formam um só corpo” (cf. 1Cor 12,12).
Extinguir a diversidade coloca em risco a própria unidade.

3.1.1.2. “Cabeça”: a natureza do primado petrino

A “cabeça” também tem um papel de autoridade e animação cuja missão é manter


unido e coeso o corpo de modo que este cresça e os membros mantenham-se como se fossem
“um” só. O Cristo-Cabeça é representado de modo particular diante do seu Corpo que é a
Igreja por meio do Colégio episcopal em união com o Sumo Pontífice, sucessor de Pedro e
Bispo de Roma que foi constituído como “o princípio e o fundamento perpétuo e visível da
unidade, quer dos bispos, quer da multidão dos fieis” (LG, n. 23).
No Novo Testamento, Pedro é primus inter pares (o primeiro entre iguais), o primeiro
entre os apóstolos (cf. Mc 1,16; Mt 16,18; Lc 22,31; Jo 21,15) e ocupa um lugar proeminente
de chefe e porta-voz do Colégio Apostólico (cf. At 2,14.37; 5,29). Este lugar foi atribuído por
Cristo que o constituiu como “rocha” e entregou-lhe as chaves do Reino dos céus (cf. Mt
16,17-19), confiando-lhe o encargo de apascentar o seu rebanho (cf. Jo 21,15-17) e de
confirmar os irmãos na fé (cf. Lc 22,31). Foi Pedro o primeiro a proclamar a fé em Cristo (Mc
8, 29) e a testemunhar a sua ressurreição (cf. Lc 24, 34; 1Cor 15, 5). Há muitos outros fatos
nos Evangelhos e no livro dos Atos que revelam este lugar proeminente de Pedro que entre os
demais apóstolos de Cristo, exerce uma missão especial.
O primado petrino exerce na Igreja o ministério da unidade e a finalidade do seu
carisma é a unidade da fé e da comunhão de todos os fiéis. E, como todo carisma é dom de
Deus para a utilidade do seu povo, o Sucessor de Pedro e Bispo de Roma tem uma graça
ministerial específica para servir aquela unidade de fé e comunhão (CDF, n. 3-4).
A autoridade do sucessor de Pedro não pode ser compreendida como a de um monarca
ou como qualquer outro cargo de coordenação e presidência, mas, por conta de sua essência
“comporta a faculdade de servir efetivamente à unidade de todos os Bispos e de todos os fiéis,
e „é exercido a vários níveis, que concernem à vigilância sobre a transmissão da Palavra, à
celebração sacramental e litúrgica, à missão, à disciplina, e à vida cristã‟” (CDF, n. 8).
A Constituição Dogmática Pastor Aeternus (18.07.1870) do Concílio Vaticano I,
definiu a natureza e o caráter do primado do Romano Pontífice, onde se destaca o seu papel
enquanto “cabeça de toda a Igreja”, o que não significa uma contradição com a afirmação
67

paulina de que Cristo é a Cabeça do seu corpo que é a Igreja (cf. Col 1,18; Ef 1,22-23). O
Sucessor de Pedro e Bispo de Roma é a “cabeça da Igreja” enquanto representante visível da
autoridade de Cristo, Bom Pastor entre os bispos e os fiéis a ele unidos (cf. DS 3059-3060).
Também os bispos como membros do Colégio Apostólico e unidos à sua Cabeça, exercem
este ministério de unidade nas Igrejas locais:

Por sua vez, cada bispo é o princípio e o fundamento visível da unidade na sua
Igreja particular, formada à imagem da Igreja universal: nas quais e a partir das
quais resulta a Igreja católica una e única. Por isso, cada bispo representa a sua
Igreja; e todos, juntamente com o Papa, representam toda a Igreja no vínculo da paz,
do amor e da unidade (LG, n. 23).

O sentido do dogma do primado de jurisdição do Papa, conforme o Concílio Vaticano


I, é que “o bispo de Roma sinaliza de maneira pessoalmente concreta e ao mesmo tempo
sacramentalmente eficaz a unidade da Igreja universal” (KEHL, 1997, p. 321) que procede de
Cristo e não de sua vontade pessoal. Desta forma, ele representa a vontade de Cristo para toda
a Igreja: a unidade (cf. Jo 17,21). Na Encíclica Ut unum sint, sem negar a necessidade de
reforma do papado na perspectiva do diálogo ecumênico como empenho para a unidade cristã,
o Papa João Paulo II salientou uma convicção genuinamente católica acerca da missão
essencial do Bispo de Roma que consiste em ser “o sinal visível e o garante da unidade”
(UUS, n. 88).
Embora nosso objetivo seja compreender o papel do Sucessor de Pedro como “garante
da unidade” para a Igreja universal a partir da analogia paulina entre “corpo” e “cabeça”,
sabemos historicamente que toda divisão externa que hoje existe entre as diversas comunhões
cristãs são frutos de divisões internas no Corpo de Cristo. E, paradoxalmente, sem negar o
essencial e o acidental no primado petrino ao longo dos séculos, especialmente todo
maximalismo que exaltava a figura do Papa a fim de sustentar a sua autoridade frente ao
poder civil e secular e, todo minimalismo que procurava restringir o seu ministério sobre toda
a Igreja, historicamente o primado tornou-se uma das causas de divisão da Igreja. Por isso
urge reintegrar a unidade, mas sem negar o essencial do ministério de Pedro na Igreja, ou seja,
que ele é sinal e garantia da unidade do Corpo de Cristo e a representação visível, juntamente
com os bispos, de Cristo Cabeça e Esposo da Igreja.
O essencial no primado, sem negar a sua autêntica e legítima autoridade enquanto
primado de jurisdição, consiste na comunhão com os bispos, manter a “vigilância”20 sobre
toda a Igreja e assegurar a comunhão entre todas as Igrejas (cf. UUS, n. 94-95). Como Bispo

20
A palavra episkopoi exprime a natureza da atividade pastoral que consiste em vigiar (= velar) o rebanho.
68

de Roma, o Papa se apresenta como o bispo de uma Igreja local que preside a todas as outras
na caridade. Isto significa que ele não é o bispo de toda a Igreja ou o bispo dos bispos (DA
SILVA, 2015, p. 708). Mas isto nem sempre foi tão claro na práxis eclesial, quanto parece a
nível conceitual. O Concílio Vaticano II, porém, declara que “a função mais importante do
primado é defender e promover a função dos bispos” (LG, n. 27b). Todavia sempre houve o
risco de uma interpretação maximalista e minimalista do papado, o que corresponde
respectivamente a colocar o Papa acima ou fora da Igreja como um monarca absoluto ou
torná-lo um mero executor da vontade dos bispos. Nem uma nem outra hermenêutica ou
prática assumiu o Vaticano II que, sem suprimir nem corrigir o Vaticano I, procurou abordar o
primado petrino dentro do corpo eclesial e, a partir disto, deixar claro qual a sua natureza e
seu exercício na Igreja e qual sua relação com o episcopado numa perspectiva colegial e
sinodal.
Interessante como os Padres Conciliares articularam dentro do capítulo II da Lumen
Gentium – “Povo de Deus” – a presença do Papa e dos Bispos no conjunto de todos os
batizados e como conjugaram no capítulo seguinte – Constituição Hierárquica da Igreja – a
partir desta visão ampla da Igreja Povo de Deus, a relação entre primado e episcopado (nn.
18-22). Isto quer dizer que a dignidade comum do povo cristão é o sacramento do Batismo e
que, entre o povo de Deus, o Senhor suscita servidores e não “administradores” nem
“príncipes”. Mas para se alcançar esta compreensão foi necessário redescobrir o significado
do ministério episcopal na Igreja a partir de três critérios: 1º. Sacramentalidade; 2º.
Colegialidade; 3º. Responsabilidade. Através do sacramento da Ordem é que os bispos são
inseridos no Colégio e cum Petrus (membro) e sub Petrus (cabeça) são responsáveis por toda
a Igreja (local e universal), sendo-lhes conferido o múnus de ensinar, santificar e reger (LG,
nn. 24-27) em unidade com a cabeça do Colégio, que é o Bispo de Roma, pois de outro modo
não poderia exercer o seu poder, não porque devam estar submetidos a uma obsequiosa
obediência, mas porque no corpo que é a Igreja o primado e o episcopado, como
representantes e agentes da autoridade pastoral de Cristo, deve demonstrar a comunhão da
Igreja (LG, n. 18).

3.1.1.3. “Primeiro o corpo, e depois a cabeça”: “Maria” e “Pedro” no barco da Igreja

Na imagem de Nossa Senhora Aparecida contemplamos o “corpo” da Igreja que na


Virgem Maria já está plenamente realizada. Pela ação do Espírito Santo, Maria tornou-se Mãe
de Cristo e, pela Palavra do seu Filho, ela foi incorporada ao Corpo de Cristo que é a Igreja,
69

quando aos pés da cruz, por vontade do seu Filho, o discípulo João a acolheu em sua casa (cf.
Jo 19,25-26). Este gesto de acolhida a Maria foi “repetido” pelos pescadores que agasalharam
a imagem de Nossa Senhora da Conceição no seu barco, nas suas casas e a acolheram dentro
do coração.
Mas além da realidade plenamente divina que transmite, a imagem de Aparecida
carrega as marcas da realidade histórica em que foi encontrada, o corpo separado da cabeça:
um contexto de divisões, disputas e intrigas econômicas, políticas, sociais, étnico-raciais e
eclesiais em que vivia imerso o nosso país. Nosso povo, ainda em plena formação da sua
identidade, já estava dividido pela disputa do ouro que causava muitas desordens sociais e
conflitos violentos nas regiões das minas de ouro; os colonizadores e colonizados também
estavam divididos por causa de conflitos políticos e sociais que começavam a estourar em
alguns lugares do imenso território brasileiro; brancos e negros estavam divididos pela chaga
da escravidão africana, coisa que desafiava a postura da Igreja, e a população nativa
desenraizada de sua cultura, cada vez mais acantonada nos interiores. A Igreja no Brasil
estava praticamente separada da Sé Apostólica por causa das ingerências do Padroado, que se
radicalizaram posteriormente numa hostilidade do Império contra a Igreja sob o regime do
pombalismo. A Igreja universal também vivia no seu interior, disputas teológicas e pastorais
que estremeciam a relação entre primado e episcopado, além das complexas relações do papa
com os monarcas dos Estados católicos. “Aparecida” surge num contexto de disputas,
conflitos e rupturas no conturbado e tempestuoso século XVIII para a “nau de Pedro”.
Contudo, mesmo depois das primeiras restaurações, desde aquela primeira feita na
casa de um dos pescadores, a cabeça da imagem algumas vezes ainda se desprendia do corpo,
como que a chamar a atenção para o problema da divisão entre os povos, na sociedade e na
Igreja em todos os tempos, mas sem nunca deixar de anunciar, quando simbolicamente eram
novamente unidas as duas partes, a esperança da restauração.

Em Aparecida, logo desde o início, Deus dá uma mensagem de recomposição do


que está fraturado, de compactação do que está dividido. Muros, abismos, distâncias
ainda hoje existentes estão destinados a desaparecer. A Igreja não pode descurar esta
lição: ser instrumento de reconciliação (FRANCISO, S.S., Discurso (27.07.2013)).

Mas não apenas a cabeça unida ao corpo na imagem de Aparecida é um símbolo de


restauração da unidade, mas o próprio contexto da pesca, quando foi encontrada, revela um
nexo entre a imagem e os pescadores, o barco e o rio, a rede e os peixes, de modo que numa
única “cena” podemos contemplar “Pedro” e “Maria” no “barco” da Igreja.
70

3.1.1.3.1. A pesca de “Tiberíades” e do “Paraíba”

A pesca no Rio Paraíba apresenta elementos muito semelhantes àquela pesca


milagrosa do Evangelho (cf. Lc 5 e Jo 21): o barco, as redes que não se romperam, os
pescadores, o êxito da pesca milagrosa após o fracasso de uma noite inteira de tentativas
frustrantes, sem nada pescar.
O que há entre os pescadores do lago de Tiberíades e do Rio Paraíba, antes e depois da
pesca milagrosa, é a presença de Jesus no primeiro e, a imagem de Maria no segundo relato.
Nas duas versões evangélicas da pesca (cf. Lc 5,1-11 e Jo 21,1-17) há uma ordem de Jesus
para lançar novamente a rede (cf. Lc 5,4; Jo 21,6). No Rio Paraíba, após diversas tentativas,
não há qualquer ordem, mas um último golpe de esperança que resultou, primeiro, no
encontro da imagem em duas partes e, finalmente, numa pesca frutífera e abundante.
A imagem da Virgem Maria que foi retirada prodigiosamente do fundo do rio é como
se repetisse silenciosamente àqueles pescadores o que disse em Caná aos servos: “Fazei tudo
o que ele vos disser” (Jo 2,5). Era um convite à obediência da fé que através da imagem de
Nossa Senhora da Conceição os animava a lançar mais uma vez as redes, tal como fez Pedro
em obediência à Palavra do Mestre: “Mestre, trabalhamos a noite inteira sem nada apanhar;
mas, porque mandas, lançarei as redes” (Lc 5,5). E o resultado da obediência à voz do Mestre
no lago de Tiberíades e da obediência à voz interior da fé no rio Paraíba foi o mesmo:
“apanharam tamanha quantidade de peixes que suas redes se rompiam” (cf. Lc 5,6) e

continuando a pescaria, não tendo até então tomado peixe algum, dali por diante foi
tão copiosa a pescaria em poucos lanços, que receoso [João Alves], e os
companheiros [Domingos Martins Garcia e Felipe Pedroso] de naufragarem pelo
muito peixe que tinham nas canoas, se retiraram a suas vivendas, admirados deste
sucesso (Excerto do I Livro Tombo da Paróquia de Santo Antônio de Guaratinguetá,
1757-1873).

O barco, as redes e os peixes são símbolos eclesiológicos que aparecem tanto no texto
evangélico da “pesca milagrosa” quanto no encontro da imagem de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida. E todos estes são elementos que representam entre si um vínculo de
unidade: o rio e o barco; a rede e os peixes. O “rio” e o “barco” simbolizam respectivamente o
mundo e a Igreja. A Igreja-barco é uma imagem que se fundamenta na Sagrada Escritura (a
arca de Noé e a barca de Pedro) e foi muito explorada pela Patrística. “O mar tempestuoso é o
mundo [...] A nave é a Igreja, que atravessa o mar do mundo” (CODINA, 1993, p. 67). Como
um barco não tem serventia quando estacionado na praia, também a Igreja corre o risco de não
71

corresponder à sua missão quando isolada da realidade do mundo. O barco quanto toca a água
do rio representaria esse vínculo entre o mundo e a Igreja, servidora da humanidade. Também
as redes e os peixes apresentam semelhante vinculação. As redes servem para pescar os peixes
para dentro do barco. Após a pesca, Jesus disse a Pedro: “Farei de vós pescador de homens”
(Lc 5,10). Esta expressão no grego significa “„pegar vivos ou para a vida‟, quer dar a entender
que Pedro terá a tarefa de „capturar‟ os homens para a vida” (FABRIS, 2006, p. 63). Há outro
detalhe importante que assinala a missão de Pedro que “pesca” para Jesus: “Simão Pedro
subiu então ao barco e arrastou para a terra a rede, cheia de cinquenta e três grandes peixes; e
apesar de serem tantos, a rede não se rompeu” (Jo 21,11).
A associação do “mar”, do “barco” e da “rede” são imagens para identificar a tarefa
missionária da comunidade que é a mesma de Cristo: “congregar na unidade todos os filhos
de Deus dispersos” (cf. Jo 11,52; 17,20). As redes são arrastadas para a margem pelos
discípulos (v. 8) que iniciam a tarefa completada por Pedro que a puxa até a terra (v. 11), ou
seja, são levadas até perto de Cristo que pede alguns dos peixes que foram apanhados (v. 10).
O verbo grego hélkein para a expressão “arrastar” é o mesmo usado em Jo 12,32 para “atrair”,
e se refere a algo que Jesus disse noutra ocasião: “Quando eu for levantado da terra atrairei
todos a mim”. A “atração operada por Jesus na cruz se realiza por mediação da Igreja,
representada por Pedro, que „arrasta‟ a rede cheia de peixes para onde se encontra Jesus”
(CASALEGNO, 2013, p. 124). E “a rede [que] não se rompeu” (v. 11) assinala a unidade da
Igreja, pela qual Jesus rezou antes da Paixão (cf. Jo 17,21), não obstante a fragilidade humana
dos membros do Corpo de Cristo. As redes repletas de peixes diante do Ressuscitado são um
sinal de que “a unidade é uma meta para o presente e um dom para a o futuro” (Ibid., 2013, p.
124).
O relato evangélico da pesca milagrosa segundo João 21, segue com outra imagem de
unidade e comunhão: é a refeição preparada por Jesus somente com um peixe e um pão (v. 9).
A menção ao peixe e ao pão recorda o milagre da multiplicação (cf. Jo 6), que alguns exegetas
consideram como o texto da instituição da Eucaristia no evangelho de João, o qual no
contexto da ceia omite esta narrativa que aparece em todos os sinópticos, conferindo especial
destaque aos lava-pés (cf. Jo 13). Logo, este texto joanino também tem um sentido
eucarístico. Também os gestos de Jesus (v. 13) são um indício eucarístico do texto. Desde as
origens do Cristianismo, pão e peixe são símbolos eucarísticos e, quando colocados sobre as
brasas acesas, recordam que a presença eucarística de Cristo na comunidade acontece pela
ação do Espírito Santo que congrega a todos num só corpo e num só espírito. A Eucaristia é o
sacramento da unidade, a fonte e o ápice, para a qual tende toda a ação da Igreja (cf. LG,
72

n.11). E toda ação da Igreja deve conduzir à comunhão de todos no Corpo de Cristo. Mas,
para que a missão tenha êxito é preciso estar em comunhão com Jesus.
O texto termina, finalmente, com um diálogo entre Jesus e Pedro (vv. 15-17), onde o
Senhor verifica a autenticidade do amor do discípulo a quem pretende entregar e confiar o
cuidado dos seus cordeiros (v. 15) e ovelhas (v. 16-17). Na língua grega “cordeiros” e
“ovelhas” correspondem respectivamente a arnía e prôbata. No Antigo Testamento não há
diferença entre os dois termos, indicando assim a totalidade do povo de Israel e, no Evangelho
a totalidade dos discípulos de Jesus já está prefigurada nos 153 peixes que estão na rede. Mas
para os Padres como, por exemplo, Ambrósio de Milão, “cordeiros” se referiria aos
responsáveis pela Igreja e “ovelhas” corresponderiam ao povo de Deus em geral. O que o
evangelho de João pretende indicar é que toda a Igreja (pastores e rebanho) é confiada a
Pedro. Deste modo, a missão pastoral de Pedro tem um alcance universal e uma
especificidade em relação aos outros apóstolos, pois ele foi constituído como “Cabeça” do
Colégio Apostólico e Pastor da Igreja universal. Por isso, Pedro é pastor entre os pastores
(cordeiros) e vela sob todo rebanho de Cristo (ovelhas).
Também a tarefa de Pedro vem assinalada por dois verbos que correspondem à palavra
“apascentar”: bóskein significa providenciar o alimento para os animais e poimaínein é o
cuidado, responsabilidade e autoridade (condução, defesa e governo) que lhe foi delegada,
pois no diálogo, Pedro não é chamado de “pastor”, mas recebe o ofício de apascentar as
ovelhas de Jesus. O rebanho não é seu, mas de Cristo, o único Pastor (cf. Jo 10). Pedro e os
apóstolos participam da autoridade de Cristo, Bom Pastor.
O mais importante, porém, é a característica fundamental exigida por Cristo a Pedro
para apascentar o rebanho, que é, em primeiro lugar, o seu amor pessoal a Jesus. Para a
pergunta de Jesus – “Tu me amas?” –, Pedro responde com total sinceridade, consciente de
sua fraqueza: “Tu sabes [tudo] que eu te amo!”. “Para indicar o amor de Pedro também
ocorrem dois verbos. Jesus utiliza agapáo (vv. 15.16) e depois filéo (v. 17), enquanto Pedro
só usa o segundo (vv. 15.16.17)” (LÉON-DUFOUR, 1998, p. 206). O amor agapáo é o amor
oblativo que exige doação e entrega, enquanto que filéo é o amor próprio das relações
humanas. Ainda que o amor de Pedro não estivesse preparado para a doação que seu chamado
e missão lhe exigia, Jesus na última vez que lhe pergunta – “Tu me amas?” – usa o verbo
filéo, que designaria um “amor de amizade”, pois é o modo como que o Apóstolo pode lhe
corresponder naquele momento, ou seja, a fraqueza do seu amor não impede o “pescador” de
se tornar “pastor”.
73

Portanto, a principal característica do pastor segundo o coração de Deus (cf. Jr 3,15) é


o amor doação, o amor capaz de entrega, algo semelhante ao amor materno. Deste modo, todo
serviço pastoral deve ser caracterizado pelo amor. Tal como diz o Papa Francisco sobre os
“pastores com cheiro de ovelha”, podemos dizer que Jesus deseja “pastores com amor de
mãe”, o amor com que Ele nos amou e foi capaz de transformar o rude pescador da Galileia
em um pastor com amor de mãe para com toda a Igreja.
Por isso é que nos voltamos para o símbolo materno de Maria que encontra lugar de
acolhida no barco daqueles pobres pescadores com redes decadentes e um barco frágil e
inadequado (cf. FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2007)). Assim também no barco da
Igreja há espaço para dois “símbolos reais” de unidade: Pedro e Maria.

3.1.1.3.2. “Pedro deve olhar para Maria”

Segundo a eclesiologia de Hans Urs von Balthasar, há uma dupla unidade da Igreja
fundada na missão da Virgem Maria e do apóstolo Pedro, que os faz dois “símbolos reais”
polivalentes da Igreja una (LEAHY, 2005, p. 140). Para ele, “Maria” representa a inspiração
carismática e profética (dimensão subjetiva) e “Pedro” a forma e estrutura ministerial,
hierárquica e institucional (dimensão objetiva) da Igreja, sendo ambos os princípios oriundos
da ação do Espírito Santo na Igreja. “Instituição” e “carisma” sempre foram na realidade
histórica da Igreja, realidades difíceis de unir, existindo entre elas uma “tensão” permanente.
Mas para Balthasar, o carisma e a instituição formam um único corpo vivo, que é a Igreja,
iluminado pelo Espírito. E que para que isto aconteça na realidade, é preciso que toda a Igreja
seja “mariana” e “petrina”, de tal modo que, metaforicamente, “Pedro está em Maria” e
“Maria está em Pedro” (Ibid., 2005, p. 147). Contudo, o princípio mariano é mais importante
porque nele “o papado encontra sua „morada‟” (Ibid., 2005, p. 154) e, quando influenciado
pelo princípio mariano, o papado que exerce na Igreja um carisma de unidade, torna-se
“maternalmente auxiliador” (Ibid., 2005, p. 218) de todas as realidades humanas. Em outras
palavras, quando o papado assume um perfil mariano, a autoridade que exerce transparece a
maternidade da Igreja que como mãe gera, acolhe, alimenta, educa, corrige e faz crescer na fé.
É notável como nos últimos pontificados, especialmente desde o Concílio Vaticano II, os
papas demonstraram uma devoção especial à Mãe de Jesus e, como isso influenciou
fortemente no modo como conduziram a Igreja, principalmente no diálogo com o mundo
contemporâneo e com todas as forças “divergentes” na complexa tessitura eclesial.
74

O Papa Francisco reforça continuamente essa dimensão maternal da Igreja e, quando


esteve em Aparecida, revelou que quis incluir uma visita ao Santuário Nacional para suplicar
a Nossa Senhora, “o bom êxito da Jornada Mundial da Juventude e colocar aos seus pés a vida
do povo latino-americano” (FRANCISCO, S.S., Homilia (24.07.2013)). O mesmo gesto fez
no dia seguinte à sua eleição (14.03.2013) quando foi visitar a Basílica de Santa Maria Maior,
para confiar a Nossa Senhora o seu ministério. Na Basílica de Aparecida, o Papa Francisco
emocionou a todos quando na procissão de saída, em lugar de portar o báculo pastoral,
estreitava tão ternamente nos seus braços a imagem de Nossa Senhora Aparecida que lhe
tinha sido oferecida de presente. E também, pouco antes do início da celebração eucarística,
teve um encontro “pessoal” com a imagem tricentenária de Aparecida na Capela dos
Apóstolos, que fica imediatamente atrás do “Portal da Virgem”. E quão frutuoso tem sido o
seu ministério como Sucessor de Pedro e Bispo de Roma, assim como foi de outros
pontífices, como do inesquecível Papa do Totus Tuus, João Paulo II, que dedicou o atual
edifício do Santuário Nacional e conferiu-lhe o título de Basílica Menor (BRUSTOLONI,
1998, p. 353) “porque manifesta um „particular vínculo de comunhão que une a Basílica
menor à Cátedra romana de Pedro‟” (SILVA, 2017, p. 119). Também o Papa Bento XVI
visitou Aparecida, ofereceu uma Rosa de Ouro à Nossa Senhora, rezou o terço na basílica e
escolheu-a como sede da V Conferência do Episcopado Latino Americano e Caribenho
(CELAM) no ano de 2007.

Figura 7 – Papa Francisco diante do Figura 8 – O Cardeal Damasceno oferece


nicho de NSCA no Santuário Nacional. ao Santo Padre uma réplica de NSCA.
75

Naquela imagem quebrada, ícone da unidade restaurada, encontrada nas malhas das
redes de um pescador, acolhida no seu barco e levada para o interior da sua casa há uma
mensagem especial para o Santo Padre e todos os pastores: “Pedro deve olhar para Maria”
(LEAHY, 2005, p. 218) a fim de exercer na Igreja, como “cabeça”, o seu carisma de unidade,
sendo um pastor com amor de mãe.

3.1.2. O “rosto”, as “mãos”, os “lábios” e a “lua”: a vida e a missão da Igreja

A imagem de Nossa Senhora Aparecida, contemplada a certa altura no seu nicho, que
obriga a todos a voltar seu olhar para o alto, por causa dos seus 38 centímetros, é quase
“invisível”. Além do tamanho tão reduzido para as dimensões da gigantesca basílica, o manto
e a coroa praticamente a escondem, como um véu a velar e desvelar o mistério, permitindo
entrever da imagem principalmente o rosto e as mãos que, segundo a nossa reflexão
eclesiológica, representam iconograficamente a vida cotidiana da Igreja que nasce da
comunhão trinitária, se alimenta da oração e cresce com o anúncio do Evangelho da alegria.

3.1.2.1. O diadema na testa: a comunhão trinitária

Sob a fronte de Nossa Senhora Aparecida há “um broche com três pérolas pendentes”
(RIBEIRO NETO, 1970, p. 184) e acima do broche e sobre as orelhas há uma rosa,
totalizando três, que ornamentam a cabeça da Virgem. Com que intenção o autor da imagem
esculpiu seu rosto desta maneira? Talvez quisesse retratar Maria como uma esposa que se
enfeitou para o seu marido (cf. Ap 21,2) ou como uma rainha pronta para se colocar no
vestíbulo do rei (cf. Est 5,1b)? Não sabemos exatamente, mas podemos dizer que segundo o
significado bíblico do número “três”, os três pendentes representam a Santíssima Trindade
(SILVA, 2017, p. 75) como três raios a iluminar o rosto de Maria, como os raios do sol a
envolver todo o seu corpo, como se lhe conferisse uma cor morena como da jovem do Cântico
dos Cânticos: “Sou morena, mas formosa [...] Não olheis eu ser morena: foi o sol que me
queimou” (Ct 1,5-6).
Na iconografia mariana do Oriente é comum sinalizar a presença da Santíssima
Trindade na Virgem com três estrelas que, traçando uma linha imaginária entre elas, formam
o triângulo, um símbolo trinitário que representa a unidade do Pai e do Filho e do Espírito
Santo, de tal forma que o rosto de Maria fica no interior deste “triângulo imaginário”. Quando
76

representada com o Menino no colo, ele está posto sobre uma das estrelas que ornamentam o
seu manto.
Como Maria é símbolo da Igreja e os três pendentes são uma representação da
Trindade, vamos empreender uma reflexão acerca da Igreja como ícone da Trindade.

3.1.2.1.1. A Igreja como “ícone da Trindade”

Na Constituição Dogmática Lumen gentium, o capítulo I sobre o mistério da Igreja,


recordando as palavras de São Cipriano, define-a como “o povo congregado na unidade do
Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG, n. 4), inserindo a Igreja no desígnio salvífico
universal do Pai, na missão e obra do Filho e na ação santificadora do Espírito (cf. LG, n. 2-
4). Com essa afirmação acerca da origem trinitária da Igreja, o Concílio deseja rejeitar “toda
redução da comunidade eclesial a mera realidade espiritual ou mera realidade visível,
propondo o mistério da comunhão que brota da Trindade e a ela se volta” (FORTE, 1987, p.
15), pois

todo reducionismo eclesiológico: tanto o secular, que faz da Igreja uma presença
entre as presenças da história – limitando-se à consideração de sua incidência
histórica visível –, como a espiritualista, que exalta a dimensão invisível da
realidade eclesial a ponto de sacrificar a sua concretude humana (FORTE, 1987, p.
17).

Desde o início da Constituição, os Padres desejam evitar este dúplice reducionismo


apresentando a Igreja como mistério (FORTE, 1987, p. 17), pois, até então se enfatizava
demasiadamente a compreensão do que é a Igreja, principalmente, como uma sociedade
perfeita e hierarquicamente constituída. A Lumen gentium dá um passo a mais neste sentido e
apresenta uma visão da Igreja que está para além de um mero sociologismo e espiritualismo, e
faz-nos ver a totalidade da sua complexa realidade.
Bebendo na fonte da eclesiologia dos Santos Padres, o Concílio insere a Igreja no
mistério da Trindade, fazendo dela um ícone da comunhão trinitária que manifesta a vontade
do Pai pela salvação de todo o gênero humano por obra de Cristo, que funda a Igreja para dar
continuidade à sua obra e missão, e a ação vivificadora e santificadora do Espírito Santo.
Logo, a origem da Igreja é divina, não procede da vontade da carne nem do sangue (cf. Jo
1,13). “A Igreja não nasce de baixo [...] mas é posta no tempo pela admirável iniciativa do
amor trinitário” (FORTE, 1987, p. 188-189).
77

Segundo o teólogo Bruno Forte, pela ação da vontade de Deus, a Igreja tem uma
origem, forma e destinação trinitária, o que significa dizer que ela veio da Trindade, é ícone
da Trindade na sua estrutura e forma de comunhão e, orienta o seu fim escatológico para a
unidade plena no seio da Trindade (1987, p. 19), pois Deus quis “elevar os homens à
participação da sua vida divina” (LG, n. 2). Como “mistério”, a Igreja participa do plano de
Deus revelado em Cristo através da História da Salvação, de tal modo que não é apenas uma
realidade humana inserida em um contexto social, político, etc., pois ela se origina do
desígnio, missão, obra e ação do Pai e do Filho e do Espírito Santo.
Assim, a Igreja por meio de Cristo foi instituída como sacramento da união entre Deus
e o homem e da unidade de todo gênero humano (cf. LG, n. 1), instrumento universal de
salvação e meio para participar da vida gloriosa (cf. LG, n. 48). A Igreja “em sua forma
visível e histórica, é o sacramento – isto é, o sinal e o instrumento escolhido – do desígnio
salvífico de unidade, que vai da criação à parusia” sendo, então, “a participação histórica na
unidade trinitária” (FORTE, 1987, p. 20). Na história da Igreja, a Trindade é seu passado,
presente e futuro. Segundo Forte,

no intervalo entre a primeira vinda de Cristo e o seu retorno glorioso, a Igreja busca
ser fiel ao mundo presente e fiel ao mundo por vir, abrigada à sombra do Espírito, tal
como a Virgem acolhedora, Maria, membro por excelência e ícone da Igreja,
alimentada por quanto já lhe fora dado para crescer no longo advento da história,
rumo àquilo que nela ainda não se realizara (1987, p. 24).

Dizer que a Igreja tem uma natureza trinitária significa que ela age em nome da
Trindade por “participação” e “imitação”. Por participação entende-se a sua origem e meta
enquanto que imitação quer dizer que no mundo a Igreja é imagem da Trindade, muito
embora a experiência prática e vivencial do mistério trinitário se oculte no seu paradoxal
fenômeno histórico e na sua fragilidade humana e institucional.
Mas, mesmo condicionada à fraqueza dos seus membros e, apesar disso, a Igreja não
pode ser entendida apenas como uma construção humana ou simplesmente como produto de
uma evolução histórica, nem mesmo a nível institucional. Sem menosprezar estas condições –
humana, histórica e institucional – é preciso ter em conta a vontade de Deus para com a Igreja
dentro da perspectiva do mistério da Trindade e da economia da salvação. Por sua natureza, a
Igreja transcende o tempo e o espaço, ainda que condicionada aos limites humanos e aos
pecados e erros dos seus membros. Sem essa dimensão divina e sobrenatural da Igreja,
seremos constantemente inclinados a fazer apenas um péssimo juízo do seu percurso histórico
e, a rotulá-la como retrógrada, autoritária, opressora, etc.
78

Quem passa diante da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida sem reparar
no diadema que embeleza a sua fronte, ainda que se persigne com o sinal da cruz, pode não
ter a consciência suficiente do quanto aquela representação de Maria – símbolo para a própria
Igreja e ícone do mistério da Trindade – está repleta de significado trinitário, cristológico e
pneumático. E mais do que isso, quantos cristãos batizados na Igreja precisam redescobrir o
significado e retomar com renovado ardor o compromisso do seu Batismo.
A Virgem Maria viveu na sua existência o mistério trinitário, vivendo nele
mergulhada, tal como a imagem de Aparecida que por anos permaneceu imersa no fundo do
rio Paraíba, um símbolo batismal por excelência, pois representa que todo batizado em nome
do Pai e do Filho e do Espírito Santo ao tornar-se filho de Deus e membro do Corpo de Cristo
sob a ação do Espírito, foi convidado a mergulhar na vida divina (cf. 2Pd 1,4).

3.1.2.2. Olhos fechados e mãos postas: a oração

Aparecida não é uma imagem comum de Nossa Senhora da Conceição. Além de


faltarem alguns detalhes próprios da iconografia imaculista, chama a atenção o quão diferente,
embora muito expressivo, é o seu rosto, suas mãos, seus lábios e seu porte inclinado para o
alto. Segundo José Eduardo, “as expressões faciais da imagem revelam o rosto de alguém que
está completamente abismada em estupor diante de Deus” (2017, p. 71) porque no seu rosto
brilha o esplendor da Trindade. Seus olhos estão fechados, pois contempla no seu interior o
mistério do Verbo encarnado. E todos quantos passam diante da sua imagem Aparecida,
“encontram a ternura e o amor de Deus no rosto de Maria” (DAp, n. 265)

O olhar do peregrino se deposita sobre uma imagem que simboliza a ternura e a


proximidade de Deus. O amor se detém, contempla o mistério, desfruta dele em
silêncio. Também se comove, derramando todo o peso de sua dor e de seus sonhos.
A súplica sincera, que flui confiante, é a melhor expressão de um coração que
renunciou à autossuficiência, reconhecendo que sozinho nada pode. Um breve
instante condensa uma viva experiência espiritual (DAp., n. 259).

De fato, esta não é uma imagem “com as quais estamos acostumados, [pois] não está
desenhada como a figura de alguém que olha os homens, mas de alguém que está
completamente embevecida do amor divino, absolutamente fora de si e derramada em Deus”
(SILVA, 2017, p. 71) tal como se estivesse no arrebatamento de um êxtase espiritual, coisa
semelhante ao que poderíamos imaginar na hora da Anunciação (cf. Lc 1, 26-38), durante
aquele diálogo aberto entre o céu e a terra que inaugurava um novo modo de se relacionar
79

com Deus através da oração em Cristo e com Cristo. Desde aquele momento, aprendeu-se um
novo modo de orar que consiste em participar da oração de Cristo ao Pai sob a unção do
Espírito Santo. E “as mãos de Nossa Senhora, e sua própria atitude recolhida, são um convite
para a oração e nos chama à oração” (2017, p. 72). João Paulo II exprimiu-se deste modo
sobre as mãos de Nossa Senhora Aparecida quando esteve no Brasil em 1980:

Sei que, há pouco tempo, em lamentável incidente, despedaçou-se a pequenina


imagem de Nossa Senhora Aparecida. Contaram-me que entre os mil fragmentos
foram encontradas intatas [intactas] as duas mãos da Virgem unidas em oração. O
fato vale como um símbolo: as mãos postas de Maria no meio das ruínas são um
convite a seus filhos a darem espaço em suas vidas à oração, ao absoluto de Deus,
sem o qual tudo o mais perde sentido, valor e eficácia. O verdadeiro filho de Maria é
um cristão que reza (JOÃO PAULO II, S. S., Discurso (04.07.1980)).

Na Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, o mesmo Papa exortou à “necessidade21


de um Cristianismo que se destaque principalmente pela arte da oração (NMI, nn. 32) e que
através de uma educação para a oração se aprenda esta arte dos lábios do Mestre (cf. NMI,
nn. 33-34). Para tanto, é preciso cultivar uma verdadeira relação de amizade com Jesus (cf.
DAp, n. 255) a fim de superar toda a superficialidade. Santa Teresa de Ávila tem uma
definição fantástica e muito simples acerca do que é oração: “Oração é tratar de amizade,
estando muitas vezes a sós com quem sabemos que nos ama” (TERESA DE JESUS. Livro da
Vida, VIII, n. 5), isto significa estabelecer um diálogo de interioridade e de intimidade.
A relação de amizade com Jesus, semelhantemente às relações humanas, começa a
partir de um encontro. “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande
ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo
horizonte e, desta forma, o rumo decisivo” (DCE, n. 1). O Documento de Aparecida chega até
a indicar os lugares de encontro com Jesus Cristo que são: na Igreja-Comunidade reunida; na
Sagrada Escritura (Lectio divina); na Sagrada Liturgia, especialmente celebrada aos
domingos; nos Sacramentos da fé, sobretudo a Eucaristia e a Reconciliação; na oração pessoal
e comunitária; na piedade popular que constituiu uma genuína espiritualidade; nas pessoas, de
modo especial os pobres, os aflitos, os enfermos, as crianças, os jovens e os idosos (cf. DAp.,
nn. 246-264).
A oração na vida da Igreja e de cada cristão assume duas dimensões fundamentais e
complementares para a vida espiritual: a dimensão pessoal e comunitária. Da experiência com
Jesus Cristo a partir do “encontro” que transforma e orienta a existência (cf. DCE, n. 1),

21
Segundo o Catecismo da Igreja Católica, a oração é uma necessidade vital (cf. CIC, n. 2744).
80

somos chamados a assumir esta relação de amizade a nível pessoal e comunitário,


alimentando-a com um ritmo diário e semanal de oração.
Podemos chamar a oração pessoal de “oração do quarto” (cf. Mt 6,6). Ela consiste
basicamente da oração mental, da oração vocal, da leitura e meditação da Palavra de Deus, da
contemplação, das devoções, entre outros aspectos e métodos que reforçam nossa relação
íntima como o Senhor, aquele diálogo a sós com Ele. Contudo, todo encontro com Senhor,
por mais pessoal que seja não nos fecha no isolamento do próprio “eu”, mas nos conduz ao
encontro do próximo, de modo especial aos irmãos da comunidade.
Quando oramos ao Pai, reconhecemos que somos filhos que pertencem a uma só e
mesma família, que é a Igreja. Por isso, a oração comunitária é a “oração da sala de cima” (cf.
At 1,13) que remonta ao Cenáculo onde a comunidade primitiva se reuniu com Maria para a
prece comum. A oração comunitária consiste em orar com a Igreja, especialmente através da
liturgia, da participação na celebração eucarística no Dia do Senhor, da frequência aos
Sacramentos, no Ofício Divino, entre outros atos celebrativos.
Naquele Cenáculo, onde estavam reunidos e unânimes em oração os apóstolos, os
irmãos do Senhor e algumas mulheres, destaca-se a presença de Maria, a mãe de Jesus (cf. At
1,13-14). O Papa Bento XVI quando esteve em Aparecida para a abertura da V Conferência
do Episcopado Latino-Americano e Caribenho (2007), após a oração do Rosário na Basílica
Nacional de Aparecida, recordava que aquele momento era um prolongamento da oração do
Cenáculo que a Igreja em todos os tempos faz quando se reúne com Maria:

Como os Apóstolos, juntamente com Maria, “subiram para a sala de cima” e ali
“unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração” (At 1,13-
14), assim também hoje nos reunimos aqui no Santuário de Nossa Senhora da
Conceição Aparecida, que é para nós nesta hora “a sala de cima”, onde Maria, Mãe
do Senhor, se encontra no meio de nós. Hoje é ela que orienta a nossa meditação; ela
nos ensina a rezar. É ela que nos mostra o modo como abrir nossas mentes e os
nossos corações ao poder do Espírito Santo, que vem para ser transmitido ao mundo
inteiro (BENTO XVI, S.S., Discurso (13.05.2007)).

Aos bispos e a todo o povo latino-americano reunido em Aparecida, o Papa fez um


insistente convite: “Permanecei na escola de Maria”. E um dos seus ensinamentos mais
importantes é a arte de orar. Toda a atividade missionária da Igreja depende desta
“graduação” básica e fundamental da “escola de oração” que tem como mestra Maria
Santíssima, que no Santuário de Aparecida “nos acolhe [...] e, como Mãe e Mestra, nos ajuda
[e ensina] a elevar a Deus uma prece unânime e confiante” (BENTO XVI, S. S., Discurso
(13.05.2007)).
81

Foi na “escola de Maria” que aqueles pescadores, seus familiares, amigos e vizinhos
começaram a se reunir todos os sábados para a reza do terço no oratório de paus construído
por Atanásio Pedroso na sua própria casa, segundo consta no relato histórico da “aparição” da
imagem de Nossa Senhora da Conceição, longe da sede paroquial e sem a presença de
clérigos ou religiosos, como recordação das primeiras comunidades cristãs que se reuniam nas
casas para orar, cantar os louvores e repartir o pão com alegria e singeleza (cf. At 2,42-47). O
protótipo da comunidade primitiva serve de modelo e inspiração para a renovação da Igreja
em todos os tempos. Assim, no Brasil, aquele culto familiar e popular, que cresceu
exponencialmente até se transformar numa devoção nacional, foi um germe da expansão da
Igreja no Brasil e recorda algumas características que a Igreja não deve descuidar na sua
missão: atenção às periferias sociais e existenciais, opção preferencial pelos pobres, presença
nas famílias e nos meios populares, simplicidade, proximidade e encontro. Essas
características são tão fortes em Aparecida que apesar da enormidade da Basílica, ela não
perdeu a sua característica de casa familiar, onde Maria é invocada como Mãe que conduz
para o seu Filho que nos revela o Pai. Por isso, o Papa Bento XVI recordou quando lá esteve:
“o Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição Aparecida [...] é Morada de Deus,
Casa de Maria e Casa de Irmãos” (Discurso (12.05.2007)). E, é a partir de casa que a mãe
ensina os filhos a orar!

3.1.2.2.1. Os olhos

Na escola de Maria aprendemos a orar com o “olhar”! Para entrar no interior de nós
mesmos para o encontro com o Senhor, na intimidade, é preciso ter os olhos fixos em Jesus
(cf. Hb 12,2), pois com Ele aprendemos a falar com o Pai (cf. Lc 11,1-4) participando da sua
oração, orando com ele e nele sob a ação do Espírito que habita em nós (cf. 1Cor 3,16) e nos
ajuda a orar como convém (cf. Rom 8,26) a fim de entoar “aquele hino que é cantado por todo
o sempre nas habitações celestes” (SC, n. 83).
O cantor e compositor Renato Teixeira traduziu na canção “Romaria” como o “olhar”
é a primeira oração de quem não sabe rezar: “Como eu não sei rezar, só queria mostrar meu
olhar, meu olhar, meu olhar!”. O início de qualquer relação começa pelo olhar, que é sempre
anterior à palavra. E apenas uma relação de intimidade profunda é capaz de dispensar as
palavras e permanecer no olhar.
Maria, nosso modelo de oração, nos ensinar a orar com o olhar. No Santuário Nacional
a sua pequena imagem não ocupa o centro do olhar, mas está aos fundos, numa das quatro
82

naves laterais. O centro do olhar é o altar e o Cristo crucificado, assim como toda a
assembleia, que “ela” contempla de onde está. “A contemplação de Cristo tem em Maria o
modelo insuperável” porque “à contemplação do rosto de Cristo, ninguém se dedicou com a
mesma assiduidade de Maria”, pois ela “vive com os olhos fixos em Jesus” (RVM, nn. 10-
11).
O olhar da Bem-Aventurada Virgem Maria, segundo o Papa João Paulo II no seu
comentário à oração do Rosário, que é uma oração marcadamente contemplativa, é um olhar
com múltiplas facetas: interrogativo, penetrante, doloroso, radioso e ardoroso.

Desde então o seu olhar, cheio sempre de reverente estupor, não se separará mais
dele. Algumas vezes será um olhar interrogativo, como no episódio da perda no
templo: “Filho, porque nos fizestes isto?” (Lc 2,48); em todo caso será um olhar
penetrante, capaz de ler no íntimo de Jesus a ponto de perceber os seus sentimentos
escondidos e adivinhar suas decisões, como em Caná (cf. Jo 2,5); outras vezes, será
um olhar doloroso, sobretudo aos pés da cruz, onde haverá ainda, de certa forma, o
olhar da parturiente, pois Maria não se limitará a compartilhar a paixão e a morte do
Unigênito, mas acolherá o novo filho a ela entregue na pessoa do discípulo predileto
(cf. Jo 19,26-27); na manhã da Páscoa, será um olhar radioso pela alegria da
ressurreição e, enfim, um olhar ardoroso pela efusão do Espírito no dia de
Pentecostes (cf. At 1,14) (RVM, n. 12).

Maria contempla (olha) e medita (guarda no coração) e, assim, recolhe a realidade


exterior com o seu olhar e a carrega com as suas mãos para dentro do coração (cf. Lc
2,19.51). É como se ela mesma estivesse a “recitar” o rosário à medida que contemplava os
vários momentos (mistérios) da vida de seu Filho. Seus olhos fechados na imagem de
Aparecida não são sinal de indiferença para quem a olha, mas pelo contrário, na intimidade de
Deus ela contempla a cada um que passa diante da sua imagem e a olha com fé, como se
contemplasse em cada pessoa a face do seu próprio Filho e como se cada situação ou
problema que os fiéis lhe apresentam fosse um mistério da vida de Jesus que ela acompanhou
de Belém até a Cruz. Também “quando recita o rosário, a comunidade cristã sintoniza-se com
a lembrança e com o olhar de Maria” (RVM, n. 11). Esta oração contemplativa é de poucas
palavras (cf. Mt 6,7), pois consiste mais em muito amar do que tanto pensar ou falar (cf.
TERESA DE JESUS. Moradas IV, I, n. 7).

3.1.2.2.2. As mãos

As mãos postas, como na imagem de Aparecida, são um gesto simbólico que indica a
oração. As mãos são muito importantes para a realização de diversas atividades. Ao longo do
dia elas estão sempre “desencontradas” para desempenhar numerosos trabalhos. Mas quando
83

unidas, representam a harmonia de todo ser que, antes, durante ou após a jornada do dia se
une para concentrarem corpo, alma e espírito para o encontro com Senhor. É como fechar as
portas e as janelas dos sentidos, sempre tão distraídos, para estar todo na presença de Deus.
As mãos de Nossa Senhora Aparecida nos indicam que além da necessidade de orar sem
cessar (cf. 1Ts 5,17), é preciso orar bem e de modo digno, atento e devoto e unir dois aspectos
necessários para o equilíbrio da nossa vida diária: contemplação e ação.
Entretanto, a contemplação de Maria não significa inércia ou passividade, mas “êxtase
em relação a Deus e em relação ao homem” (KAUFMANN, 1988, p. 315). O seu olhar à
medida que se volta para Cristo contempla o seu interior, colocando-se diante do seu próprio
mistério na presença Daquele por quem ela se sente olhada e amada. O fruto da sua
contemplação não é estéril, mas a impele para frente, para o serviço. Na visita à Isabel (cf. Lc
1,39-56), a partir da sua experiência pessoal com Deus (cf. Lc 1,26-38), ela se coloca à
disposição de sua prima. No dizer de Hans Urs von Balthasar sobre o papel de Maria hoje,
“cada vez mais em sua vida sua experiência pessoal contemplativa é uma experiência para os
outros” (apud KAUFMANN, 1988, p. 320), sua contemplação se transforma em serviço para
a Igreja e para o mundo. É algo que precisamos assumir continuamente para o êxito de toda
pastoral na Igreja: a oração e a contemplação precedem o serviço. Para falar de Deus e
realizar as obras de Deus é preciso falar com Deus!
A alma de todo apostolado, célebre obra do Padre Chautard, mostra que a união da
vida ativa e contemplativa, é condição para a fecundidade das obras. O cardeal vietnamita
Van Thuan, nos treze anos de prisão durante o regime comunista que imperava no seu país,
longe da sua sede episcopal, aprendeu a discernir e a escolher entre Deus e as obras de Deus
(2000, p. 26), o que segundo o evangelho significa escolher a melhor parte (cf. Lc 10,42). O
próprio Jesus é o melhor exemplo disso, já que não realizava nenhuma obra sem antes entrar
na intimidade com o Pai (cf. Lc 5,16). Toda experiência de Deus que fazemos é, realmente,
intransferível, porém jamais está alienada da entrega e do serviço generoso que somos
chamados a fazer. A oração, justamente, nos faz sensível aos necessitados e nos torna
solidários com os seus destinos, assim como Maria que se compadeceu dos noivos daquela
festa de casamento ao dizer para Jesus: “Eles não têm mais vinho” (Jo 2,3). Segundo o Papa
Francisco, Maria...

É contemplativa do mistério de Deus no mundo, na história e na vida diária de cada


um e de todos. É a mulher orante e trabalhadora em Nazaré, mas é também a
Senhora da prontidão, a que sai “às pressas” (Lc 1,39) da sua povoação para ir
ajudar os outros (EG, n. 288).
84

A dupla vertente da contemplação são os olhos e as mãos (KAUFMANN, 1988, p.


326). Maria conjuga contemplação e ação “sendo toda de Deus e toda servidora da
humanidade” (CAPRANI, 2016, p. 75). Na imagem de Aparecida, apesar do silêncio dos
lábios, percebemos a linguagem do seu olhar. Apesar de suas mãos imóveis, vemo-las unidas
e disponíveis para o maior serviço, a oração. Que a oração da Igreja seja sustentada pela
oração de Maria (cf. CIC, n. 2679) e que ela nos ensine a unir nossas mãos para a oração e nos
dê olhos para “ver as necessidades e os sofrimentos dos nossos irmãos e irmãs” (Excerto da
Oração Eucarística VI – D).
As mãos postas e os olhos fechados de Maria são um convite à oração, a dar espaço
para Deus habitar, animar e operar em nós. Como diz a oração do Ano Jubilar: “Recordai-nos
o poder, a força das mãos em prece!”. Sua oração contemplativa é um mergulho no mistério
da Santíssima Trindade (SILVA, 2017, p. 74). E suas mãos estão postas sobre o coração, pois
ela reza tudo o que coração medita e o que os olhos enxergam acerca da realidade de si e do
mundo, de Cristo e da Igreja e de todos quantos se colocam sob o seu olhar. E quantos são
transformados por esse olhar tão discreto, voltado para dentro, mas nunca alheio a quem
busca só um olhar.
“O olhar dos peregrinos sobre a imagem de Nossa Senhora e de Maria sobre eles
sempre impactou o atual Bispo de Roma”, disse o Pe. Alexandre Awi no seu livro-entrevista
com o Papa Francisco – “Ela é minha mãe!” (2015). Vale apena transcrever aquilo que o
Papa disse enquanto ainda era cardeal-arcebispo de Buenos Aires a respeito da “necessidade
que todo peregrino tem do terno olhar de Nossa Senhora” que nos impele a não desviar os
olhos dos demais, sobretudo os mais necessitados.

Hoje nós, depois de um longo caminho, vimos a este lugar de descanso, porque o
olhar de Nossa Senhora é um lugar de descanso, para contar-lhe nossas coisas. Nós
necessitamos de seu olhar terno, seu olhar de Mãe, essa que destapa a nossa alma.
Seu olhar que está cheio de compaixão e de cuidado. E por isso hoje lhe dizemos:
“Mãe, presenteia-nos o teu olhar”. Porque o olhar da Virgem é um presente, não se
compra. É um presente dela. É um presente do Pai e um presente de Jesus na cruz
[...] O olhar de Maria nos ensina a olhar os que naturalmente olhamos menos, e que
mais necessitam: os mais desamparados, os que estão sozinhos, os doentes, os que
não têm com que viver, os meninos de rua, os que não conhecem Jesus, os que não
conhecem a ternura de Nossa Senhora, os que estão mal [...] Que não nos roubem o
olhar de Nossa Senhora, que é olhar que nos fortalece a partir de dentro. Olhar que
nos faz fortes, de fibra, que nos faz irmãos, que nos faz solidários. Mãe (...) que este
olhar me ajude a olhar dos demais, a me encontrar com Jesus Cristo, a trabalhar para
ser mais irmão, mais solidário, mais “encontrado” com os demais. E assim, juntos,
possamos vir a esta casa de descanso sob a ternura do teu olhar. Mãe, presenteia-nos
o teu olhar! (apud AWI MELLO, 2015, p. 54-55).
85

Aquela imagem tão “olhada”, contemplada, venerada e amada “carrega uma profunda
mensagem de oração” (SILVA, 2017, p. 73) desde “a densidade das orações de um monge
beneditino que a esculpiu e a densidade exponencialmente multiplicada pelos cânticos e
orações que nos últimos três séculos, devotos de todas as partes do Brasil elevaram a Deus,
como uma mesma prece ininterruptamente prolongada” (Ibid., 2017, p. 72). Nossa Senhora
Aparecida é um ícone da união íntima com Deus através da oração!

3.1.2.3. Os lábios sorridentes: o anúncio alegre do Evangelho

O rosto resplandecente de Nossa Senhora Aparecida, além do estupor do olhar, irradia


alegria através dos seus lábios que esboçam um discreto sorriso. Os seus lábios estão
sorridentes pela alegria de gerar Cristo sob a ação do Espírito Santo, ela que foi escolhida pelo
Pai. Além da ternura, os devotos que contemplam a sua imagem são presenteados com a
alegria de uma Mãe que sorri...
Mas no que consiste a alegria cristã? O Papa Paulo VI no Ano Santo de 1975 escreveu
uma exortação apostólica sobre a alegria cristã (Gaudete in Domino), um tema surpreendente
para um homem tão discreto como foi ele. Nesta exortação, ele recorda que a alegria cristã é o
regozijo e o gozo no Espírito Santo, é o “alegrar-se no Senhor” como recomenda o apóstolo
Paulo (cf. Fil 4,4), é uma participação espiritual na insondável alegria de Cristo (GD, n. 16).
Esta alegria sem fim, o que também podemos chamar de “felicidade”, o homem encontra
apenas na comunhão com Deus e com os demais (GD, n. 15).
Esta não é uma alegria fugaz e passageira ocasionada por momentos efusivos ou
multiplicada por ocasiões de prazer, pois a alegria humana, sempre imperfeita, frágil e
quebradiça, tenta satisfazer-se no dinheiro, no conforto e em toda espécie de segurança
material, coisas que nunca lhe serão suficientes, pois não eliminam o sofrimento, mas
aumentam o tédio, agravam a tristeza, a aflição e a angústia do homem contemporâneo
entregue ao desespero e conduzido pelo frenesi de um cotidiano no qual já não encontra o
sentido de sua existência, além das misérias do nosso tempo (cf. GD, n. 7-8). Há uma tristeza
individualista que brota do coração comodista e mesquinho, uma busca desordenada de
prazeres superficiais repleta de outros interesses, um isolamento e fechamento que não deixa
espaço aberto para o outro e nem para Deus, há ressentimentos, murmurações e reclamações
de todo tipo que deixam o espírito conspurcado e conturbado (cf. EG, n. 2).
Mas é precisamente em meio a essas dificuldades que os nossos contemporâneos tem a
necessidade de conhecer a alegria (cf. GD, n. 9). E como conhecerão a alegria verdadeira se
86

não há quem a testemunhe e anuncie? Este é o mesmo drama do etíope que lendo uma
passagem da Escritura não a compreendia. Por isso, o diácono Filipe o interrogou – “Entendes
o que lês?” – ao que ele respondeu: “Como o poderia se ninguém me explicar?” (At 8,30-31).
A partir daquele momento Filipe evangelizou e batizou o eunuco que “prosseguiu na sua
jornada com alegria” (v. 39), enquanto o diácono “anunciava a Boa Nova em todas as cidades
que atravessava” (v. 40) provocando grande alegria (cf. At 8,8). Assim como aquele eunuco
etíope, encontra-se o homem de hoje diante do conceito de “felicidade”, porém sem
compreendê-lo e perdido sem saber onde encontrar a verdadeira alegria. É preciso ter o ardor
de Filipe e de tantos quantos nos precederam para anunciar com renovado ardor e entusiasmo
que a alegria do Senhor é a nossa força (cf. Nm 8,10) e que Ele é a esperança que não
decepciona (cf. Rom 5,5). É preciso que o homem de hoje encontre no ser cristão um
testemunho de alegria e esperança.
Esta alegria que brota discreta dos lábios da Virgem é a alegria do Evangelho que
nasce do encontro com Jesus, como afirma o Papa Francisco: “A alegria do evangelho enche
o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por
Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo,
renasce sem cessar a alegria” (EG, n. 1). O Sínodo sobre a Nova Evangelização (2012) e a
Exortação Apostólica Evangelii Gaudium são um convite a uma nova etapa evangelizadora na
vida da Igreja marcada por algo que está logo no início do anúncio do Evangelho, no
momento da Anunciação (cf. Lc 1,26-38): a alegria. Para tanto, os evangelizadores precisam
ser evangelizados e evangelizantes, precisam ter “espírito”, isto é, “uma moção interior que
impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação pessoal e comunitária” (EG, n. 261). E para
recobrar o espírito é necessário tomar a decisão de renovar o encontro com Jesus, procurá-Lo,
voltar para Ele de todo coração e com todo o ser. No encontro com ele, Jesus nos perdoa e
restitui a alegria roubada pelo pecado (cf. EG, n. 3).
A Sagrada Escritura está repleta de testemunhos de alegria de evangelizadores que não
foram indiferentes ou alheios às tristezas do seu tempo, mas com voz profética anunciaram a
esperança no porvir. O Antigo Testamento é um prenúncio da alegria da salvação dos tempos
messiânicos. O anúncio dos profetas era um convite à alegria exultante pela expectativa da
chegada do Senhor (cf. Is 9,2; 12,6; 40,9 / Zc 9,9). É também um testemunho da alegria do
nosso Deus que é fonte e centro de irradiação da alegria. Um Deus que dança e grita de
alegria por nós. E onde Ele está não há tristeza, mas festa (cf. Sf 3,17).
No Novo Testamento a alegria é transbordante. Os primeiros capítulos do evangelho
de Lucas, especialmente, são um testemunho da alegria no Espírito Santo que enche o coração
87

e a alma da Virgem Maria, de Isabel e de João (cf. Lc 1,41.47 / Jo 3,29), dos pastores do
campo de Belém, alegria que se originou de um anúncio que veio do céu pela boca dos anjos:
o Senhor está no meio de ti! (cf. Lc 2,10; Sf 3,15). Quanta alegria Jesus expressa no
evangelho pela acolhida da Palavra entre os pobres e humildes, pelo pecador que se converte
e faz este júbilo atingir as alturas (cf. Lc 15,7). A alegria no Evangelho é a alegria do Reino
de Deus, que é uma alegria exigente, pascal, que sobrevive em meio às perseguições e
tribulações da vida apostólica (cf. At 13,52). A mensagem do Evangelho é uma fonte e uma
promessa de alegria que consiste em ver o Senhor (cf. Jo 16,20-22) e repartir o pão (cf. At
2,46), ou seja, é comunhão com Deus e com os irmãos. Ninguém é feliz sozinho. Por isso
onde passavam os discípulos causavam e transmitiam alegria (At 8,8.39; 16,34). Esse é o
perfil dos evangelizadores para uma nova evangelização, embora ainda haja alguns cristãos
que vivam uma “quaresma sem páscoa” (cf. EG, n. 6) ou como costuma dizer o Papa
Francisco: cristãos com “cara de cemitério”.
É preciso recuperar a alegria de evangelizar (EN, n. 80). A evangelização não é apenas
mais uma atividade da Igreja, mas o fundamento da missão da Igreja. A causa missionária é a
primeira de todas, “é o paradigma de toda a obra da Igreja” (EG, n. 15). O Apóstolo dos
povos dizia convictamente: “Anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; é, antes,
necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9,16).
Evangelizar também não é uma atividade que nasce da iniciativa pessoal, mas é, em primeiro
lugar, obra de Deus que nos quis chamar para cooperar com Ele. A iniciativa é sempre de
Deus (cf. 1Jo 4,19), Aquele que dá crescimento a todas as coisas (cf. 1Cor 3,17). Evangelizar
é uma missão da Igreja! Essa convicção é necessária para manter a alegria e evitar a
frustração como se tudo dependesse da nossa capacidade e performance pessoal.
Outra coisa importante é o testemunho. Uma “Igreja em saída” que evangeliza é uma
comunidade que vive a fé com alegria e que por onde passa não faz proselitismo, mas partilha
uma alegria que é capaz de causar admiração e estupor. Dizia o Papa Bento XVI aos bispos
latino-americanos e caribenhos: “A Igreja não cresce por proselitismo, mas por „atração‟”
(Discurso (13.05.2007)).

3.1.2.3.1. A presença evangelizadora de Maria na América Latina

A Virgem Maria ao longo dos séculos de evangelização exerceu uma irresistível


“atração” e se tornou porta-voz da alegria do Evangelho, especialmente no continente latino-
88

americano, como artífice de comunhão, imagem da Igreja-Mãe, capaz de atrair para a


comunhão com Jesus, pois seus olhos estão sempre fixos nele (cf. DAp, nn. 268. 557).
Além de estar presente no evangelho, Maria tem um papel pessoal de anunciadora e
exerce pessoalmente a evangelização na Igreja e no mundo (OSSANNA apud FIORES; MEO
(Orgs.), 1995, p. 500). “Essa mulher, cheia do Espírito Santo, na sua relação materna se torna
ao mesmo tempo evangelizada e evangelizadora, colaboradora com o anúncio do Evangelho”
(p. 501). Foi ela quem primeiro recebeu o anúncio do Evangelho da alegria: “Alegra-te, cheia
de graça, o Senhor é contigo” (Lc 1,28) e, transbordante de alegria, foi ao encontro de Isabel e
exultou num cântico de júbilo e ação de graças (cf. Lc 1,46-55) que a Igreja entoa diariamente
na oração das Vésperas, o Magnificat.
Maria foi a primeira colaboradora na proclamação do Evangelho, vivendo-o primeiro
no seu coração e encarnando-o na sua vida (cf. LG, n. 56; DP, n. 303) e “acompanha com sua
presença materna o magistério que anima e guia, os apóstolos que falam ou escrevem, os
missionários que percorrem todos os caminhos” (OSSANNA apud FIORES; MEO (Orgs.),
1995, p. 502), sempre se fazendo presente e atuante na história da Igreja. “A falar a verdade,
todos os períodos da história da Igreja beneficiaram-se e hão de se beneficiar da presença
maternal da mãe de Deus, pois ela permanecerá sempre indissoluvelmente unida ao mistério
do corpo místico” (SM, n. 13).
As terras de missão fora da Europa (América, África e Ásia) beneficiaram-se da
presença de Maria no início da sua evangelização com o fervor missionário, algumas vezes
aliado a uma vontade de conquista, dominação e exploração por parte dos colonizadores. A
devoção mariana sempre acompanhou a ação missionária e evangelizadora, como força e guia
dos evangelizadores (cf. LG, n. 50-52), principalmente as congregações religiosas, nas novas
terras de missão sob o impulso da renovação eclesial implementada pelo Concílio de Trento.
“O semblante de Maria, como no passado constantemente presente na vida da Igreja,
nesse período também sentiu a influência do ambiente cultural” (OSSANNA apud FIORES;
MEO (Orgs.), 1995, p. 504) como é o caso do evento guadalupense (1531), uma das primeiras
expressões de uma devoção mariana ambientada e aclimatada ao nosso continente. O rosto, a
fisionomia e a identidade mariana própria da América Latina, embora sempre integrada na
longa tradição eclesial, não é uma repetição europeia, mas conservando o que é essencial da
doutrina acerca da Virgem Maria, manifesta-se de modo criativo, muito próprio e original,
não apenas em Guadalupe, no México, mas em todos os países do continente há uma forte
ligação e identificação com algum título mariano de origem local, para citar alguns: Nossa
Senhora de Luján, na Argentina; Nossa Senhora de Copacabana, no Perú e na Bolívia; Nossa
89

Senhora de Chiquinquira, na Colômbia; Nossa Senhora de Cacupé, no Paraguai; Nossa


Senhora dos Trinta e Três, no Uruguai; Nossa Senhora Aparecida, no Brasil; entre outros (cf.
CAPRANI, 2014, p. 47).
A devoção mariana é, portanto, “um elemento qualificador do cristianismo latino-
americano, uma expressão vital e histórica que pertence à sua própria identidade” e “uma
figura constante desde a aurora da evangelização do nosso continente até os dias de hoje”
(CAPRANI, 2014, p. 17), o que significa dizer que o começo da evangelização acompanhou o
início da devoção e do culto a Maria na América Latina e vice-versa, como que elementos
inseparáveis e complementares. “A presença de Maria, ontem e hoje é um traço distintivo do
catolicismo e da religiosidade latino-americana”, não apenas uma característica entre outras,
mas um elemento fundante e fundamental. “O Evangelho, ao encarnar-se em nossa cultura, o
fez com uma forte modalidade mariana” (Ibid., 2014, p. 45).
Apesar das vicissitudes históricas e dos apreços e críticas à evangelização no
continente latino-americano e mesmo a visão acerca de Maria na ótica dos colonizadores e
dos colonizados, não podemos deixar de reconhecer que esse foi um caminho escolhido por
Deus para a penetração do Evangelho na nossa sociedade e cultura como um todo, tornando-
se um dos pilares do catolicismo aqui, e que graças ao fato de que Maria é mãe, “vive sua
unidade espiritual e eclesial” (CAPRANI, 2014, p. 47). Se não houvesse uma religiosidade
popular com um centro mariano, a fé católica não teria impregnado o nosso continente. Por
isso caberia bem aqui aquele antigo adágio latino: Per Mariam ad Jesus. Segundo Kearns,
numa aproximação histórica com a realidade do Brasil, a devoção mariana

foi um elemento essencial para manter a fé, especialmente entre o povo simples de
Deus, em circunstancias difíceis da história religiosa do Brasil. Não havia tanta
organização da Igreja no tempo do império ou da república como hoje, com dioceses
e paróquias bem organizadas para o atendimento espiritual do povo. Fora dos
grandes centros, e especialmente na área rural, os cristãos não tinham muito contato
com uma liturgia frequente, com a catequese ou com a pregação dominical. Faltava
um clero, religioso e diocesano, suficiente para cuidar da maioria do povo cristão.
Às vezes, um padre aparecia uma ou duas vezes por ano, para atender confissões,
celebrar missa, casamentos e batismos. Diante de uma evangelização deficiente, foi
por meio de Maria que o povo se abriu à mensagem evangélica. Em Maria o povo, a
partir de suas raízes culturais, descobriu a porta de entrada para assimilar o
Evangelho e a fé do povo do interior foi mantida graças às devoções marianas.
Muitas vezes, o que ajudou as pessoas a rezarem a terem uma experiência de Deus,
sem a presença dos padres, foi a reza do terço em família e/ou na comunidade.
Vimos esse fato claramente na devoção a Nossa Senhora de Aparecida (2017, p. 9).

Sobre o processo de evangelização no Brasil, o Documento de Aparecida constata


logo nos seus primeiros parágrafos:
90

A devoção a Maria, a mãe de Jesus, é uma constante na história do povo brasileiro.


Ao longo do processo evangelizador em terras brasileiras, o evangelho foi
anunciado, apresentando a Virgem Maria como a expressão mais sublime de
fidelidade. A devoção mariana é um elemento qualificador da genuína piedade da
Igreja no Brasil, e podemos afirmar que a experiência mariana pertence à identidade
popular (DAp, n. 2).

3.1.2.3.2. “Mãe dos cristãos” e “Estrela da Evangelização”: causa de nossa alegria

A Virgem Maria na América Latina é uma presença fecunda de mãe tanto que,
segundo Caprani, os nossos povos desde as manifestações de Guadalupe, de Aparecida, entre
outras, acolheu sua presença não como uma “estrangeira” ou “deportada” da Europa, mas
inserida na cultura do povo, vestindo as suas vestes, assumindo a sua cor morena, falando o
seu próprio idioma e apresentando-se como Mãe nossa, a tal ponto que até as devoções
marianas de além-mar sofreram aqui inculturações para a realidade latino-americana.
“Aparecida” é um exemplo claro de uma devoção portuguesa a Nossa Senhora da Conceição
adaptada ao contexto brasileiro. Mas sem negar a matriz mariológica europeia-medieval que
apresenta a Virgem Maria como “Senhora”, “Rainha”, “Vencedora”, a ternura da maternidade
de Maria, que disse ao índio Juan Diego, “Por acaso não estou eu aqui, que sou tua Mãe?” foi
que contagiou e predominou. Mesmo com a Bula papal que declarava Nossa Senhora
Aparecida como Rainha e Padroeira do Brasil (1930), no alvorecer da República, predominou
o carinhoso apelativo “Mãe Aparecida”.
Apesar de não carregar o Menino Jesus no colo, a pintura misteriosa de Guadalupe na
tilma do índio e a imagem singular de Aparecida na rede dos pescadores apresentam Maria
grávida, “como todas as imagens de Nossa Senhora da Conceição” (SILVA, 2017, p. 81)
segundo a iconografia imaculista inspirada em Ap 12. Este não é um dado irrelevante, mas
fundamental, pois são expressão da missão de Maria que consiste em gerar Cristo nos cristãos
assim também como Paulo que gerou filhos pela pregação da Palavra, tal como afirmou o
abade São Guerrico (século XII) num de seus sermões:

Maria deu à luz um Filho único. Assim como ele é Filho único de seu Pai nos céus, é
também Filho único de sua mãe na terra. Ora, essa única Virgem Mãe, que possui a
glória de ter dado à luz o Filho único de Deus Pai, abraça este mesmo Filho em
todos os seus membros. Não se envergonha de ser chamada mãe de todos aqueles
nos quais vê a Cristo já formado ou em formação [...] A santa mãe de Cristo, que se
reconhece mãe dos cristãos em virtude desse mistério, mostra-se também sua mãe
pelo cuidado e amor que tem por eles. Não é insensível para com os filhos, como se
não fossem seus; suas entranhas, fecundadas uma só vez mas nunca estéreis, jamais
se cansa de dar à luz frutos de piedade.
Se o Apóstolo, servo de Cristo, uma e outra vez dá à luz filhos pelos seus cuidados e
ardente piedade, até Cristo ser formado neles (cf. Gl 4,19), quanto mais a própria
mãe de Cristo! E Paulo, de fato, os gerou, pregando-lhes a palavra da verdade pela
91

qual foram regenerados; Maria, porém, gerou-os de modo muito mais divino e santo,
ao dar à luz a própria Palavra. Louvo realmente em São Paulo o ministério da
pregação; porém admiro e venero muito mais em Maria o mistério da geração
(LITURGIA DAS HORAS IV, p. 1546-1547).

Se a missão de Maria, que consiste em gerar Cristo nos cristãos, não é semelhante à
missão da Igreja que gera os filhos de Deus pela evangelização, se não poderia ser comparada
analogamente a um “parto” pelas dificuldades e exigências que este apresenta, mas que ao
final das contas gera muita alegria, pois quando a mãe toma seu filho nos braços, nem se
recorda mais das dores e do sofrimento que teve, mas alegra-se com o fruto das suas
entranhas?! Da mesma forma não acontece com a Igreja, quando após anunciar o Evangelho
suscita no coração dos homens uma adesão a Cristo confirmada pelo Batismo?! Sem dúvida
umas das maiores dificuldades da Igreja hoje, ad intra ad extra, é fazer com que o Evangelho
se faça “carne” na realidade, assim como a mulher grávida de Ap 12 prestes a dar à luz, teve
de enfrentar a fúria do Dragão que a perseguia.
Este abade do século XII também afirmou a relação filial dos cristãos para com a Mãe
de Jesus:

Observa, agora, se os filhos também não parecem reconhecer a sua mãe. Impelidos
como que por um certo natural afeto de piedade, recorrem imediatamente à
invocação do seu nome em todas as necessidades e perigos, como crianças no colo
da mãe (LITURGIA DAS HORAS IV, p. 1547).

E como a evangelização sempre foi uma necessidade vital da Igreja, os


evangelizadores recorrem a Maria como “Estrela da Evangelização”, sem dúvida um título
muito atual e apropriado sugerido por Paulo VI nos últimos parágrafos (n. 82) da Exortação
Apostólica Evangelii Nuntiandi sobre a evangelização no mundo contemporâneo, que foi
promulgada no dia 8 de dezembro de 1975, Solenidade da Imaculada Conceição, sendo que
ele foi o mesmo que proclamou “Maria, mãe da Igreja” na celebração de encerramento do
Concílio Vaticano II (08.12.1965).
Um detalhe que não poderia passar despercebido: tanto as exortações sobre a “alegria
cristã” (09.05) e sobre a “evangelização” (08.12) foram promulgadas no mesmo ano (1975)
em que a Igreja celebrava o Ano Santo, como que a dizer que “alegria” e “Evangelho”
caminham juntos, numa simbiose realizada recentemente pelo Papa Francisco na Exortação
Apostólica Evangelii Gaudium (2014), em que evoca, ao final do documento, Maria como a
“Mãe da Evangelização” (nn. 284-286) e “Estrela da nova evangelização” (nn. 287-288).
Também o Papa João Paulo II a apresentou deste modo no início do novo milênio: “Ao longo
destes anos, muitas vezes a apresentei e invoquei como „estrela da evangelização‟. E aponto-a
92

uma vez mais, como aurora luminosa e guia seguro do nosso caminho” (NMI, n. 68). Mas a
designação de Maria como “estrela” é bem antiga, remontando a São Bernardo de Claraval
(+1153), o “cancioneiro da Virgem”, que exortava aos fiéis em todas as circunstâncias a
“olhar a estrela” e “invocar a Maria”. Por isso, o Papa Francisco termina sua exortação sobre
a nova evangelização invocando Maria como Estrela da nova evangelização com as seguintes
palavras:

Estrela da nova evangelização, ajudai-nos a refulgir com o testemunho da


comunhão, do serviço, da fé ardente e generosa, da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho chegue até aos confins da terra e nenhuma periferia
fique privada da sua luz (EG, n. 288).

Maria é “estrela da evangelização” para a missão da Igreja, pois comunica o brilho da


luz de Cristo, aponta o caminho da peregrinação na fé, brilha e reflete a luz da verdade e dos
valores do Evangelho e atrai e impele a seguir seu exemplo de discípula e missionária de
Jesus Cristo (cf. CAPRANI, 2014, p. 118).
Ao longo de tantos séculos, a Igreja assumiu um estilo mariano na sua missão
evangelizadora a partir do modelo proposto segundo a “Maria” dos evangelhos: oração e
serviço. Por isso, para quem evangeliza, Maria é sinal do Evangelho pregado com a vida e da
encarnação do Evangelho.

Esta Igreja que com nova lucidez e nova decisão quer evangelizar no fundo, na raiz,
na cultura do povo, volta-se para Maria para que o Evangelho se torne mais carne,
mais coração na América Latina. Esta é a hora de Maria, isto é, o tempo do Novo
Pentecostes a que ela preside com sua oração, quando sob o influxo do Espírito
Santo, a Igreja inicia um novo caminho em seu peregrinar. Que Maria seja nesse
caminho “estrela de evangelização sempre renovada” (EN 81) (DP, n. 303).

Quando os peregrinos dos quatro cantos do país, e até de outros lugares, adentram a
Basílica de Nossa Senhora Aparecida, o maior santuário mariano do mundo para abrigar uma
imagem tão pequena, vão imediatamente vê-la! E são muitos que chegam chorando ou que se
colocam aos prantos diante da sua imagem e, quem não se emociona quando passa na sua
frente, às vezes numa troca de olhares tão rápida que só dá tempo para dizer um “Ave!”, por
causa da multidão que se espreita para vê-la! Quando sobem de um lado da rampa e descem
pelo outro saem “transfigurados” porque a viram e se contagiaram da alegria serena dos seus
lábios discretos semiabertos a esboçar mimoso sorriso. E a partir daquele “encontro” vão à
Missa, buscam o Sacramento da Reconciliação, rezam o Rosário, sobem a colina da Via-
Sacra, se confraternizam com os familiares e amigos. Assim, a alegria volta e novos olhares e
93

novos sorrisos se abrem para a esperança de um mundo novo, pois ao longo destes três
séculos ela tem sido uma bênção para todos. Por isso lhe “agradecemos tanto carinho, tanto
cuidado” (Excertos da Oração do Ano Jubilar), tantos “olhares” e tantos “sorrisos” que
sempre foram “fonte e causa de nossa alegria” (cf. Ladainha Lauretana).

3.1.2.4. A lua debaixo dos pés: a Igreja como sinal de Cristo

A imagem de Aparecida não possui todos os elementos da iconografia da Imaculada


Conceição, faltando-lhe alguns, como o sol e as estrelas, que foram recentemente
acrescentados no seu “trono” pelo artista sacro Claudio Pastro que se inspirou justamente em
Ap 12 para compor o “Portal da Virgem”22.
Mas, dos três símbolos cósmicos da “mulher” (cf. Ap 12,1), o único que está na
imagem de Nossa Senhora Aparecida é a lua que, no mundo helênico e em muitas culturas,
possui três características que se aplicam à Igreja. Segundo Codina, são elas:

- Brilha por luz alheia, do sol; também a Igreja é comunidade relativa a Cristo, que
brilha com a luz de Cristo, verdadeiro sol, luz de todas as nações (Lumen Gentium).
- Morre ante o sol, oculta-se para que o sol brilhe: dimensão transitória e provisória
da Igreja, que cessará quando o reino de Deus chegar à plenitude definitiva e Deus
for tudo em todos.
- Gera e dá força (por exemplo as marcas, a fertilidade na geração...): dimensão
dinâmica e criadora da Igreja (1993, p. 66-67).

A Igreja como mysterium lunae é um símbolo eclesiológico antigo muito querido aos
Santos Padres, especialmente a Ambrósio e Agostinho, pois reflete o itinerário da Igreja
enquanto peregrina que caminha neste mundo: ela cai, se levanta, mas nunca desaparece, pois
ela é como a “mulher apocalíptica” com a lua debaixo dos pés, isto é, existe para além das
vicissitudes históricas, indicando a sua eternidade no tempo e a sua presença entre o céu e a
terra.

22
“Localizada na nave sul o portal da Virgem ou trono de Nossa Senhora, é o local onde a imagem de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida está, imagem pescada nas águas do rio Paraíba do Sul em 1717. Uma grande
faixa em ouro, um totem, tem-se a presença do Invisível, como um sopro com anjos, indicando ser um lugar
teofânico, Deus se revela. Os arcanjos Gabriel, Miguel e Rafael indicam-nos a presença do Divino neste espaço
que com o seu sopro, vem representando a vida no local pelas faixas brancas em movimento. Na base está o
trono da mãe de Deus, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Rainha e Padroeira do Brasil. A Mulher
revestida de Sol como descrita na citação do Apocalipse e que nos traz o grande Sol que é Cristo [grifo meu].
Ladeando a Imagem, encontram-se, portanto, as doze mulheres do Antigo Testamento que prefiguraram Maria e
com a representação de suas virtudes, indicando aquela que Deus escolheu por completo: Maria de Nazaré. A
Imagem está entronizada em um nicho envolvido por uma placa em ouro com o sol, a lua e doze estrelas [grifo
meu]. Que além de mostrar a cena da pesca milagrosa, após o seu encontro no rio Paraíba do Sul, pelos
pescadores João Alves, Felipe Pedroso e Domingos Garcia, tem-se a frase que diz: „O Espírito e a Esposa dizem
vem, Senhor Jesus. Amém‟ (Ap. 22,17)” (DA CUNHA. In: ACADEMIA MARIAL DE APARECIDA, 2017,
pp. 154-156).
94

Figura 9 – “Portal da Virgem” ou trono de NSCA na nave sul do Santuário Nacional.


95

“A Igreja é comparada à lua, porque não resplandece por luz própria, mas graças à luz
de Cristo. Fulget Ecclesia non suo sed Christi lumine, escreve Santo Ambrósio”
(CAPPELLETTI, 2009) Como não é uma fonte de iluminação própria, a lua reflete a luz do
sol. Nesta interação “lua” e “sol” há como que um “matrimônio cósmico” que revela o
mistério de amor esponsal entre Cristo e a sua Igreja, conforme Ef 5, 25-27: “como Cristo
amou a Igreja e se entregou por ela, a fim de purificá-la com o banho da água e santificá-la
pela Palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem mancha nem ruga, ou coisa
semelhante, mas santa e irrepreensível”.
A imagem de Nossa Senhora Aparecida, tão simples e discreta no seu tamanho, nas
suas formas até um pouco rudes e toscas, na sua cor de barro como se fosse queimada pelo sol
(cf. Ct 1,6), com a lua sob os seus pés (cf. Ap 12,1), representa iconograficamente o mistério
da Igreja-lua que “cai”, “levanta”, mas nunca “desaparece”, como a própria imagem coberta
de lodo, que foi retirada já quebrada, do fundo do rio e que muitos anos depois foi
despedaçada em dezenas de fragmentos, sendo novamente restaurada. Assim também deve ser
a Igreja que, obstante suas quedas e fraquezas, não deixa de irradiar a luz de Cristo sobre o
mundo, preferindo, assim, arriscar-se a acidentar-se, ferir-se e enlamear-se do que a fechar-se
em si mesma (cf. EG, n. 49).
Como a lua que não possui luz própria, mas é reflexo da luz solar, a presença
misteriosa da Igreja no mundo comunica aos homens a luz de Cristo que salva, conduz e
orienta. Neste mistério, a Igreja não se apresenta como centro ou como fim, mas sempre como
instrumento, pois, ao contrário, se “deixa de ser aquele „mysterium lunae‟ de que nos falavam
os Santos Padres” (FRANCISCO, S.S., Discurso (28.07.2013)).

Figura 10 – Detalhe do trono de NSCA.


96

CONCLUSÃO

A imagem tricentenária de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, encontrada por


três pescadores na altura do Porto Itaguaçu, no Rio Paraíba do Sul em 1717, oferece uma
chave de leitura [teológica] para a missão da Igreja de ontem e de hoje, pois nela “Há algo de
perene para aprender sobre Deus e sobre a Igreja [...] um ensinamento, que nem a Igreja no
Brasil nem o próprio Brasil devem esquecer” (FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2013)).

 Procurar e encontrar o Mistério

O homem que procura o mistério de Deus poderá encontrá-Lo nas vicissitudes, nos
ritmos e nos tempos da história humana, em meio às coisas do cotidiano e, especialmente,
entre os simples, os pobres e os humildes. O contexto do encontro da imagem aparecidense é
um exemplo dessa manifestação divina escondida sob os véus da pobreza e da humildade.
Numa zona de cruzamento entre São Paulo e Minas Gerais, durante o período da extração do
ouro no Brasil, enquanto o governador da Capitania de São Vicente, o “Conde” de Assumar
visitava as regiões mineradoras e suas adjacências, a Virgem Maria se dignou a “aparecer” a
três pobres pescadores que, com um barco frágil e redes decadentes enfrentavam, a labuta, o
cansaço e o desânimo pelo insucesso da pesca num rio “imprestável”, numa circunstância de
carências, de falta de recursos, de fracasso e falimento, em que buscavam peixes, por ordem
das autoridades da Vila de Guaratinguetá, para saciar o apetite de tão ilustre visita. Mas, pela
imagem de Nossa Senhora “salva” das águas, “Deus chegou de uma maneira nova, porque
Deus é surpresa: uma imagem de barro frágil, escurecida pelas águas do rio, envelhecida
também pelo tempo. Deus entra sempre pelas vestes da pequenez”. O mistério torna-se,
portanto, um sinal divino revelado na realidade humana. E, para manifestar a sua ternura e
compaixão para com o nosso povo, “Em Aparecida, Deus ofereceu ao Brasil a sua própria
Mãe” (FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2013)) e, no “sinal da mulher”, ícone da Igreja
Servidora, Mãe e Esposa, a Igreja como que assume o papel de Maria na história.

 Contemplar e acolher o Mistério

Pelas circunstâncias do encontro prodigioso da imagem, irrompeu no Brasil uma


hierofania sem visões nem palavras que, apesar da simplicidade, carrega a densidade do
97

Mistério que exige duas posturas próprias dos pescadores que a encontraram: contemplação e
acolhida.
Os pescadores, após o primeiro e o segundo lanço de rede, assim que encontraram a
imagem de Nossa Senhora da Conceição, após tantas tentativas frustradas para conseguir
algum peixe, ao contemplar aquela imagem maltratada e quebrada, não obstante a sua
simplicidade, rudeza, pequenez e morenice, reconheceram imediatamente: “É a Virgem da
Conceição!”. E desde aquele dia, há trezentos anos, são milhares de pessoas que da casa dos
humildes pescadores até a monumental Basílica, vão à Aparecida para contemplar a sua
imagem e se deixar “ver” pela Senhora.
Quando a recolheram das suas redes, primeiro o corpo e depois a cabeça, viram a
imagem da Imaculada Conceição, uma devoção já muito antiga, mas logo perceberam a
novidade: uma imagem pequenina, machucada, enegrecida, de traços simples, tosca e frágil.
Mas apesar de sua pequenez, “os pescadores não desprezam o mistério encontrado no rio,
embora seja um mistério que aparece incompleto. Não jogam fora os pedaços do mistério” e,
assim, eles a “agasalham: revestem o mistério da Virgem pescada”, “trazem para casa o
mistério” (FRANCISCO, S.S., Discurso (27.07.2013)), porque tocaram com suas mãos o
“sagrado”. A artista plástica Maria Helena Chartuni, após restaurar a imagem de Nossa
Senhora Aparecida, depois do atentado de 1978, relatou que, quando viu aquela multidão no
vão do MASP (Museu de Arte de São Paulo) aguardando ansiosa para rever a imagem
restaurada, confessou que, “Pela primeira vez a comoção me invadiu e percebi que havia
tocado em algo Sagrado” (CHARTUNI, 2016, p. 6).

 A linguagem do Mistério

Quando contempla e venera uma imagem sacra, o homem está diante de três
realidades:

1ª) A presença do Invisível: o homem se coloca na presença misteriosa de Deus através


daquela imagem que a representa, ou seja, contempla Deus na sua beleza, grandeza e
humildade. Desta forma, ele pode se sentir mais próximo do sagrado através de uma imagem
que vê do que apenas da palavra que escuta. “Numa obra de arte (imagem) posso abraçar a
amplidão de uma realidade que só muito mais tarde será conquistada” (PASTRO. In:
GUIMARÃES (org.), 2016, p. 38), ou seja, enquanto na terra o homem contempla os sinais
de Deus, os vestígios do divino na existência humana, abraça simbolicamente a realidade
98

divina que almeja contemplar sem véus, mas face a face, não mais diante do ícone ou da
imagem que venera, mas do próprio Deus que deseja adorar em espírito e em verdade. Por
isso, enquanto comunicadora do Invisível, a imagem é um indicativo de uma realidade
sobrenatural que está para além do que se vê, ouve e sente de imediato.

2ª) O significado da existência: esta imagem causa uma impressão dentro do seu interior a
respeito de quem é Deus e de quem é aquele que O contempla, o homem. Por isso, a imagem
desafia para um diálogo com Aquele (a) que ela representa e com o homem mesmo que a
contempla. É o encontro entre duas interioridades que, sem a necessidade de trocar palavras,
se comunicam pelo olhar. Esta é, portanto, uma leitura do mistério de Deus e do homem, pois
não apenas pelo anúncio dos profetas, mas pela encarnação do seu Filho, o Pai deu-se a
conhecer a nós. Segundo Claudio Pastro, a imagem é o “mapa da vida”.

3ª) A memória de um povo: a fé não é apenas uma experiência pessoal, mas comunitária,
eclesial. Também a imagem sacra e religiosa pertence à experiência da comunidade de fé e de
culto. A imagem não é apenas memória do protótipo que ela representa e não está ligada
somente ao subjetivo do fiel, mas comunica a realidade de determinada comunidade, povo,
cultura ou nação, bem como da sua própria história, sendo capaz de formar a sua identidade
comum e de unificar as diferenças. Através da arte o homem faz memória e afugenta o
esquecimento.

Da perspectiva iconográfica ao significado eclesiológico, da imagem à mensagem,


Nossa Senhora Aparecida, além de possuir as características de uma imagem sacra e religiosa,
de culto e devoção, que carrega a memória de um povo e o significado da existência humana,
comunica através da sua simplicidade, na sua relação entre forma e conteúdo, a linguagem do
Mistério, integrando o modelo e a figura da Igreja (cf. LG, n. 63) que encontram na Virgem
Maria a sua melhor expressão, pois “Nela, a Igreja entende sua vocação, seu próprio mistério,
e nela encontra seu arquétipo, a imagem ideal daquilo que é chamada a ser” (CAVACA. In:
GUIMARÃES (org.), 2016, p. 18): Servidora, Mãe e Esposa. “Quem venera filialmente
Maria, abre para si mesmo novos caminhos para o mistério da Igreja” (FORTE, 1991, p. 199).

 A vivência do Mistério
99

A imagem de Aparecida quer nos comunicar uma mensagem de unidade e comunhão.


Como não há uma mensagem explícita, assim como numa aparição, a partir do contexto
eclesial, da hermenêutica bíblica do “sinal da mulher” de Ap 12 e dos aspectos simbólicos da
própria imagem, podemos perceber como cada detalhe da imagem aparecidense, bem como o
contexto de seu encontro, está carregado de uma mensagem de unidade e comunhão que a
Virgem Maria, mulher-ícone do mistério da Igreja, quer nos recordar na sua imagem
“Aparecida”:

 O “corpo” e a “cabeça” separados e unidos estão a nos indicar que a Igreja Corpo de
Cristo, que tem Cristo como sua cabeça, é um mistério de unidade na diversidade que tem
no primado petrino um sinal visível de comunhão.

 O diadema do rosto com três broches lembra-nos imediatamente da Trindade, onde a


Igreja se origina, se estrutura e para a qual orienta o seu caminho.

 O rosto contemplativo de Maria, os olhos fechados e as mãos postas em atitude de oração,


estão a nos indicar a necessidade da oração como meio para estar em comunhão com
Deus, com a Igreja e com os irmãos.

 Os lábios sorridentes da Virgem parecem querer dizer algo a cada um de nós. Eles podem
representar a alegria do anúncio do Evangelho.

 E a lua crescente que está sob os seus pés é um sinal do mysterium lunae da Igreja que
tendo a luz de Cristo refletida na sua face, deseja ardentemente iluminar a todos os
homens com a proclamação da Boa Nova (cf. LG, n. 1) na noite escura que atravessa a
história humana.

Deste modo, o mistério de unidade da Igreja (corpo e cabeça) nasce da comunhão


trinitária (diadema na fronte); nutre-se através da oração pessoal-contemplativa (olhos
fechados) e da oração comunitário-litúrgica (mãos postas); cresce com o anúncio alegre do
Evangelho (lábios sorridentes) e resplandece para todos os povos a luz de Cristo (lua sob os
pés).
“É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e sua Igreja” (Ef 5,32).
“Aparecida” ainda é um mistério “incompleto”, porém pleno a ser descoberto, contemplado e
100

acolhido, compreendido, vivido e celebrado na mente, no coração e na vida de cada brasileiro


que, através da devoção mariana do nosso povo, pode redescobrir sua pertença e seu lugar no
“Corpo de Cristo” e na “barca de Pedro”. Aqui foram apresentadas apenas algumas facetas
deste grande mistério que podemos admirar, assim como fizeram os três pescadores ao
divisar o olhar com a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, esta “mulher” que
se tornou um sinal para os tempos e para a história, um guia no itinerário da fé, uma bênção
para o nosso povo, um ícone de esperança que nos aproxima do mistério esponsal de Cristo e
da Igreja.
101

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGOSTINHO, Santo. A Virgem Maria: cem textos marianos com comentários. Tradução:
Nair de Assis Oliveira. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2002.

ALVAREZ, Rodrigo. Aparecida: A biografia da santa que perdeu a cabeça, ficou negra, foi
roubada, cobiçada pelos políticos e conquistou o Brasil. 1. ed. São Paulo: Globo, 2014.

AZEVEDO, Manuel Quitério de. O culto a Maria no Brasil: história e teologia. 1. ed.
Aparecida, SP: Editora Santuário, 2001.

___________________________. Culto a Nossa Senhora Aparecida: uma análise histórico-


teológica-pastoral. São Paulo: s.n, 1995.

AWI MELLO, Alexandre. Ela é minha Mãe! Encontros do Papa Francisco com Maria. 4. ed.
São Paulo: Loyola, 2015.

AWI MELLO, Alexandre. Maria na Conferência de Aparecida. Revista Teológica Pastoral


Norte do Paraná , v. 2, p. 9-48, 2007.

AWI MELLO, Alexandre. Palestra no 22º Congresso Mariológico-Mariano Internacional.


[mensagem pessoal] Mensagem recebida por: <ander.as20@gmail.com>. em: 26 mar. 2017.

BALTHASAR, Hans Urs Von; et al. O Culto a Maria Hoje. São Paulo: Ed. Paulinas, 1979.

________________________. Maria para hoje. São Paulo: Paulus, 2016.

BARRETO DO AMARAL. Dicionário da história de São Paulo. Coleção paulística. São


Paulo: Governo do Estado, 1980.

BASADONNA, Giorgio; SANTARELLI, Giuseppe. Ladainhas de Nossa Senhora. São


Paulo, Loyola, 2000.

BENTO XVI. Carta Encíclica Deus é amor [Deus caritas est]. São Paulo: Edições Loyola,
2006.

___________. Carta Encíclica Spi Salvi . São Paulo: Paulinas, 2008.

___________. Palavras do Papa Bento XVI no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2007.

BIBLIA. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2006.

BOESPFLUG, François. Imagens. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia.


Trad.: Paulo Meneses... [et al]. São Paulo: Paulinas: Edições Loyola, 2004, pp. 869-875.

BOFF, Clodovis. Mariologia Social: o significado da Virgem para a sociedade. São Paulo:
Paulus, 2006.
102

BRUNORIO, Róger. Representação iconográfica da Imaculada Conceição de Nossa


Senhora. In: DA COSTA, Sandro Roberto (org.). Imaculada: Maria do povo, Maria de
Deus. Petrópolis: Vozes, 2004, pp. 205-227.

BRUSTOLONI, Júlio J. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida: a Imagem, o


Santuário e as Romarias – 10ª ed. rev. e ampl. – Aparecida, SP: Editora Santuário, 1998.

BRUSTOLONI, Júlio J. Mensagens da Mãe Aparecida: 300 anos de bênçãos. Aparecida,


SP: Editora Santuário, 2015.

CALIMAN, Cleto (org.). Teologia e devoção mariana no Brasil. São Paulo. Ed. Paulinas,
1989.

CAMPANHA, João A. Maria na América Latina, antes e depois do Concílio Vaticano II:
devoção, teologia e magistério episcopal. São Paulo: Loyola, 2000.

CAPPELLETTI, Lorenzo. Luz refletida. 2009. Disponível em:


<http://www.30giorni.it/articoli_id_21743_l6.htm>. Acesso em: 20 ago. 2017.

CAPRANI, Julio. Maria, a estrela da evangelização: a presença de Maria nas cinco


Conferências Gerais do CELAM. São Paulo: Editora Ave Maria, 2014.

CARDOSO, Antônio. A imagem da santa. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=6r7eZrYEZ-g>. Acesso em: 26 nov. 2017.

CASALEGNO, Alberto. “É o Senhor!”: estudo dos relatos da ressurreição no Evangelho de


João. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Petrópolis, São Paulo: Vozes/Paulus/ Loyola/Ave


Maria, 1999.

CAVACA, Osmar. “De quem é esta imagem?” (Lc 20,24). In: GUIMARÃES, Valdivino
(org.). Iconografia de Aparecida: teologia da imagem. São Paulo: Paulus, 2016, pp. 9-22.

CELAM. Documento de Puebla. São Paulo: Loyola, 1982.

_______. Documento de Aparecida. São Paulo: Loyola, 2007.

CHARTUNI, Maria Helena. A história de dois restauros: meu encontro com Nossa Senhora
Aparecida. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2016.

CIPOLLINI, Pedro Carlos. A devoção mariana no Brasil. Teocomunicação, v. 40, n. 1,


2010. Disponível em: <
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/view/7774/5519>. Acesso em 16
mar. 2017.

CODINA, Victor. Para compreender a eclesiologia a partir da América Latina. São


Paulo: Edições Paulinas, 1993.
103

COMISSÃO Episcopal de Doutrina (CNBB). Aparições e revelações particulares. 4. ed.


São Paulo: Paulinas, 2005.

CONSTITUIÇÃO DOGMÁTIVA LUMEN GENTIUM. Compêndio do Vaticano II.


Constituições, decretos, declarações. 29ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. O primado do Sucessor de Pedro no


mistério da Igreja. Disponível em
<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_199
81031_primato-successore-pietro_po.html>. Acesso em: 20 ago. 2017.

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Missal Romano. São Paulo: Paulus, 1997.

CORDEIRO, José; RANGEL João; LUÍS, Denílson. Aparecida: Devoção Mariana e a


Imagem Padroeira do Brasil. São Paulo: Cultor de Livros, 2008.

DA COSTA, Sandro Roberto (org.). Imaculada: Maria do povo, Maria de Deus.


Petrópolis: Vozes, 2004.

DA CUNHA, Zenilda. A composição do espaço sagrado no Santuário de Aparecida: arte


sacra de Claudio Pastro. In: ACADEMIA MARIAL DE APARECIDA. Aparecida: 300
anos de fé e devoção. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2017.

DA ROCHA POMBO, José Francisco. História do Brasil. 5. ed. são Paulo: Melhoramentos,
1948.

DA SILVA, Rafael Maria Francisco. Guadalupe – Aparecida – Lourdes: três mariofanias,


uma mesma mensagem. Santo André: Mensageiro de Santo Antônio, 2014.

______________________________. O Culto a Maria sob um olhar pedagógico e


litúrgico. In: Revista Paróquias & Casas Religiosas, 50 (2014) p. 24-31.

________________. Nossa Senhora da Conceição Aparecida e a CNBB. In: Artigos da


Academia Marial de Aparecida. Disponível em:
<http://www.as12.com/santuario/academia/artigos.asp? art=93&lang=pt>. Acesso em: 12
mar. 2017.

________________. Sinal de Unidade. Conheça o aspecto simbólico-teológico de


Aparecida sob o olhar fidedigno da Igreja. In: Revista Paróquias & Casas Religiosas, 26
(2010) p. 52-55.

DENZINGER, Heinrich; HÜNERMANN, Peter. Compêndio dos símbolos, definições e


declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2007.

DICIONÁRIO DO CONCÍLIO VATICANO II. São Paulo: Paulus, 2015.

DOS SANTOS, Armando Alexandre. O culto de Maria Imaculada na tradição e na


história de Portugal. Um precioso legado que o Brasil fez frutificar. Porto-São Paulo:
Civilização Editora – Artpress, 1996.
104

FABRIS, Rinaldo. O Evangelho de Lucas. In: FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os


Evangelhos II. 4a ed., São Paulo: Loyola, 2006.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

FERNANDES, Neusa; COELHO, Olinio Gomes (org.). História e Geografia do Vale do


Paraíba. Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras, CREA-RJ, Prefeitura
de Vassouras, 2013.

FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Orgs.). Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus,
1995.

FORTE, Bruno. Maria, a mulher ícone do mistério: ensaio de mariologia simbólico-


narrativa. São Paulo: Paulinas, 1991.

_____________. A Igreja ícone da Trindade: breve eclesiologia. São Paulo: Loyola, 1987.

_____________. A Trindade como história. São Paulo: Paulinas, 1987.

FRANCISCO. Carta Encíclica Lumen Fidei. São Paulo: Paulinas, 2013.

___________. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.

___________. Mensagem aos bispos do CELAM. Disponível em:


<http://br.radiovaticana.va/news/2017/05/10/papa_aos_bispos_do_celam_despojar-
se_dos_filtros_clericais/1311177>. Acesso em: 07 set. 2017.

___________. Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 13. ed. São Paulo: Nacional, 1975.

GAMBERO, Luigi. Maria nel pensiero dei padri dela Chiesa. Milano: Paoline, 1991.

GARCÍA PAREDES, Jose Cristo Rey. Mariología. Sapientia fidei 10. Madrid: BAC, 1995.

GUIMARÃES, Valdivino (org.). Iconografia de Aparecida: teologia da imagem. São Paulo:


Paulus, 2016.

HAMMAN, A. G. Santo Agostinho e seu tempo. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.

HAUCK, J. Fagundes. Visão histórica da devoção mariana no Brasil. In: CALIMAN, Cleto
(org.). Teologia e devoção mariana no Brasil. São Paulo. Ed. Paulinas, 1989, pp. 67-79.

IWASHITA, Pedro. Maria e Iemanjá: análise de um sincretismo, São Paulo, Paulinas, 1991.

JOÃO PAULO II. A palavra de João Paulo II no Brasil: discursos e homilias. São Paulo:
Paulinas, 1980.
105

_______________. Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte. 14ed. São Paulo: Paulinas,
2005.

_______________. Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae. Disponível em: <


http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_letters/2002/documents/hf_jp-
ii_apl_20021016_rosarium-virginis-mariae.html>. Acesso em: 26 nov. 2017.

_______________. Carta do Papa João Paulo II por ocasião do centenário da coroação


de Nossa Senhora Aparecida. Disponível em: < https://w2.vatican.va/content/john-paul-
ii/pt/letters/2004/documents/hf_jp-ii_let_20040717_aparecida.html>. Acesso em: 12 set.
2017.

_______________. Carta Encíclica Redemptoris Mater. Disponível em: <


http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-
ii_enc_25031987_redemptoris-mater.html>. Acesso em: 26 nov. 2017.

_______________. Carta Encíclica Ut unum sint. São Paulo: Paulinas, 1995.

KAUFMANN, Cristina. Maria, a perfeita contemplativa. In: GRANDE SINAL: Revista de


Espiritualidade. Petrópolis: Vozes, 1988.

KEARNS, Lourenço. Devoção a Maria. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2017.

KHEL, Medard. Uma eclesiologia católica. São Paulo: Loyola, 1997.

KLAUTAU, Gabriel. A Mulher de Apocalipse 12 é Maria? Disponível em:


<http://www.apologistascatolicos.com.br/index.php/apologetica/virgem-maria/970-a-mulher-
de-apocalipse-12-e-maria>. Acesso em: 26 nov. 2017.

KRIEGER, Murilo S. R. Com Maria, a mãe de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2002.

LAURENTIN, René. Aparições. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Orgs.).
Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995, pp. 113-124.

LEAHY, Brendan. O princípio mariano na Igreja. Vargem Grande Paulista, SP: Editora
Cidade Nova, 2005.

LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João IV. São Paulo: Edições
Loyola, 1998.

LITURGIA DAS HORAS I. São Paulo: Vozes/ Paulinas/ Paulus/ Editora Ave Maria, 1999.

LITURGIA DAS HORAS IV. São Paulo: Vozes/ Paulinas/ Paulus/ Editora Ave Maria, 1999.

LUBAC, Henri de. Meditacion sobre la Iglesia. Bilbao: Ediciones Desclée de Brouwer,
1958. Disponível em: <http://www.mercaba.org/Libros/LUBAC/Lubac Meditación sobre la
Iglesia.pdf>. Acesso em: 12 ago. 2017.

MACHADO, João Corrêa. Aparecida na história e na literatura. São Paulo: Gráfica


Editora Campinas, 1976.
106

MARTINS TERRA, João Evangelista. O Santuário de Aparecida e sua mensagem


teológica, in Atualização 16 (1985), p. 357-387.

MATEUS, Juan; BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de João. São


Paulo: Paulinas, 1989.

MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem Maria no Brasil: História – Iconografia –


Folclore. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

MURAD, Afonso. Visões e Aparições: Deus continua falando?. Petrópolis: Vozes, 1997.

NADAL, Emília – Maria na iconografia cristã. In SEMANAS DE ESTUDOS


TEOLÓGICOS DA UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA, 1988 – Maria nos
caminhos da Igreja: atas. Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, 1991.

NEVES, Auricléa Oliveira das. Imagens de Maria, a Mãe do Redentor, na pintura, no


teatro e na literatura. 2009. 326 f. Tese (Doutorado) – Curso de Letras, Universidade
Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2009.

OSSANNA, T. F. Evangelização. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Orgs.).


Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995, pp. 500-508.

OSSWALD, Cristina. A Imaculada Conceição na pintura e na escritura: contextualização


histórico-hagiográfica; a formação de um dogma. 2016. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/307512841_A_Iconografia_da_Imaculada_Concei
cao_na_pintura_e_na_escultura>. Acesso em: 6 jul. 2017.

PACHECO, Francisco. El Arte de la Pintura. Madrid: Cátedra, 1990.

PAIVA, Gilberto. Aparecida: 300 anos. Aparecida, SP: Editora Santuário, 2017.

PASTRO, Claudio. A imagem: linguagem do humano e do divino. In: GUIMARÃES,


Valdivino (org.). Iconografia de Aparecida: teologia da imagem. São Paulo: Paulus, 2016,
pp. 37-50.

PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. São Paulo: Paulinas, 1977.

__________. Exortação Apostólica Gaudete in Domino. São Paulo: Paulinas, 1975.

__________. Exortação Apostólica Signum Magnum. Disponível em: <


http://w2.vatican.va/content/paul-vi/pt/apost_exhortations/documents/hf_p-
vi_exh_19670513_signum-magnum.html>. Acesso em: 26 nov. 2017.

__________. Exortação Apostólica Marialis cultus. Disponível em: <


http://w2.vatican.va/content/paul-vi/pt/apost_exhortations/documents/hf_p-
vi_exh_19740202_marialis-cultus.html>. Acesso em: 26 nov. 2017.

__________. Letras Apostólicas do Santo Padre Paulo VI. In: SANTUÁRIO Nacional de
Nossa Senhora Aparecida. Jubileu de Ouro e Rosa de Ouro. São Paulo. Aparecida:
“Santuário de Aparecida”, 1970, pp. 53-55.
107

PEDICO, Maria Marcellina. La Vergine Maria nella pietà popolare. Roma: Edizione
Monfortane, 1993.

PERRELLA, Salvatore. Le Mariofanie. Per una teologia dele apparizione. Padova:


Messagero di S. Antonio Editrice, 2009.

PIVA, Elói Dionísio. A Imaculada na piedade popular luso-brasileira. In: DA COSTA,


Sandro Roberto (org.). Imaculada: Maria do povo, Maria de Deus. Petrópolis: Vozes,
2004, pp. 173-199.

PORTELLA, Rodrigo. Mirar Maria: reflexos da Virgem em espelhos da história. Aparecida,


SP: Editora Santuário, 2016.

PRIGENT, Pierre. O Apocalipse. São Paulo, Edições Loyola, 2002.

QUINN, John R. Reforma do papado: indispensável para a unidade cristã. Aparecida, SP:
Editora Santuário, 2002.

RAHNER, Hugo. L’ecclesiologia dei Padri: simboli dela Chiesa. Roma: Edizioni Paoline,
1971.

_______________. María y la Iglesia: diez capítulos sobre la vida espiritual. Bilbao:


Editorial El Mensajero del Corazón de Jesús, 1958.

RAMOS, Luciano. A Padroeira: origem do culto à Senhora Aparecida. São Paulo:


Paulinas, 1992.

RATZINGER, Joseph. A filha de Sião: a devoção mariana na Igreja. São Paulo: Paulus,
2013.

___________________; BALTHASAR, Hans Urs von. Maria, primeira Igreja. Coimbra:


Gráfica de Coimbra; 2004.

RÉAU, Louis. Iconografía de los Santos: de la g a la o. In Iconografía del arte cristiano.


Barcelona: Ediciones del Serbal, 2006.

RIBEIRO NETO, Pedro A. de Oliveira. A imagem de N. Senhora Aparecida. Jubileu de


Ouro & Rosa de Ouro. Aparecida: Editora Santuário, 1970.

ROCHA, Dom Sérgio da. Um ano mariano para celebrar, comemorar e reaprender com
Nossa Senhora. Disponível em <opusdei.org.br/pt-br/article/um-ano-mariano-para-celebrar-
comemorar-e-reaprender-com-nossa-senhora/>. Acesso em 12 set. 2017.

RODIGHERO, Ivanir A. Mãe Aparecida no embate entre o ciclo do açúcar e do ouro.


Leitura histórico-teológico-pastoral. In: REB 56 (1996) 371,372.

ROSSÉ, Gérard. A Igreja, Corpo de Cristo. In: VÁRIOS AUTORES. A Igreja no seu
mistério / I. Curso de Teologia / 3. São Paulo: Editora Cidade Nova, 1984.
108

SAMPEL, Edson Luiz (org.). Principais documentos dos papas sobre Nossa Senhora: do
beato Pio IX a Francisco. São Paulo: Edições Fons Sapientiae, 2017.

SEABRA, Paulo. O Retrato de Nossa Senhora. São Paulo: Vozes, 1954.

SEQUEIRA, Francisco Maria Bueno de. Aparecida: uma novela sobre a história da imagem
antes de ter sido encontrada no Rio Paraíba em 1717. Aparecida: Santuário, 2016.

SERRA, Aristides. Bíblia. In: FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Orgs.). Dicionário de
Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995, pp. 232-253.

SCHNEIDER, Theodor (org). Manual de Dogmática. Vol. II. Petrópolis: Vozes, 2008.

SESBOÜÉ, Bernard (dir.). Os sinais da salvação: história dos dogmas, (séculos XII-XX),
tomo 3. São Paulo: Loyola, 2005.

SILVA, José Eduardo de Oliveira e. Minha Mãe Aparecida. Campinas, SP: Ecclesiae, 2017.

STRADA, Angel L. Maria: um exemplo de mulher. São Paulo: Ave Maria, 1998.

TEIXEIRA, Renato. Romaria. Disponível em: < https://www.letras.mus.br/renato-


teixeira/271363/>. Acesso em: 22 ago. 2017.

TERESA DE JESUS. Obras completas. 7ed. São Paulo: Loyola, 2015.

VICENTINO, Claudio; DORIGO, Gianpaolo. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1997.

VIEIRA, Dilermando Ramos. História do catolicismo no Brasil (1500-1889). Vol. I.


Aparecida, SP: Editora Santuário, 2016.

FIGURAS

Figura 1. Disponível em: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/89/Murillo_-


_Inmaculada_Concepci%C3%B3n_de_los_Venerables_o_de_Soult_%28Museo_del_Prado%
2C_1678%29.jpg>. Acesso em: 11 set. 2017.

Figura 2. Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-X1ECx5ES-


OA/UMM5UP7AlrI/AAAAAAAAAmc/4dt8y60n-Cs/s1600/Rainha+de+Portugal.jpg>.
Acesso em: 11 set. 2017.

Figura 3. Disponível em: <https://2.bp.blogspot.com/-


vtC60vj5mg8/VvNT8JK3_XI/AAAAAAAACEA/ePkno6dAkUYkOVBAxy0o9wQlHkC6Hc
wA/s1600/original%2Baparecida%2Bedit.jpg>. Acesso em: 11 set. 2017.

Figura 4. Disponível em:


<http://www.a12.com/source/files/originals/nsra_aparecida_leonardo.jpg>. Acesso em: 11
set. 2017.
109

Figura 5. Disponível em: <http://s3.amazonaws.com/portala12/source/files/c/26768/644-483-


0-0.jpg >. Acesso em: 11 set. 2017.

Figura 6. Disponível em: <https://parabolica2010.files.wordpress.com/2010/10/chicao-


019.jpg>. Acesso em: 11 set. 2017.

Figura 7. Disponível em:


<http://www.fotosefotos.com/admin/foto_img/foto_big/papa_francisco_visita_aparecida_584
271486c868c4d185f0c5209e1b859_1.jpg >. Acesso em: 11 set. 2017.

Figura 8. Disponível em: <http://imguol.com/c/noticias/2013/07/24/24jul2013---o-papa-


francisco-beija-imagem-de-nossa-senhora-de-aparecida-durante-celebracao-de-missa-na-
basilica-de-aparecida-sp-nesta-quarta-feira-24-1374676698215_1920x1080.jpg>. Acesso em:
11 set. 2017.

Figura 9. Disponível em: <http://www.paroquiasaofranciscoxavier.org.br/wp-


content/uploads/2017/07/nossa-senhora-aparecida.jpg >. Acesso em: 11 set. 2017.

Figura 10. Disponível em: <http://www.santuarioaparecidabauru.com.br/wp-


content/uploads/2015/09/santuario-n-s-aparecida-2014-127.jpg >. Acesso em: 11 set. 2017.
110

ANEXO 1 –
A DEVOÇÃO MARIANA NO BRASIL ANTES DE “APARECIDA”
111

1. A DEVOÇÃO MARIANA NO BRASIL ANTES DE “APARECIDA”

A presença da Virgem Maria é notável no Brasil desde a chegada dos primeiros


colonizadores e desde o primeiro momento da evangelização do continente latino-americano
(CAMPANHA, 2000, p. 15), sendo a devoção mariana um elemento constante na
religiosidade e na história do nosso povo (CIPOLINI, 2010, p. 36). O catolicismo brasileiro
do período colonial até os nossos dias é predominantemente popular, devocional e,
principalmente, mariano. Esta é uma das primeiras características do cristianismo em nosso
continente (HAUCK apud CALIMAN, 1989, p. 68) que foi inicialmente caracterizado pelos
cultos e devoções portuguesas e, posteriormente, adquiriu novos traços, agregando outros
valores e tradições próprios e originais, dando à Igreja um novo e singular capítulo na longa
história do culto mariano (DE AZEVEDO, 2000, p. 79) que desde todas as gerações
proclamam a Bem-Aventurada (cf. Lc 1,48) do Altíssimo como a “bendita entre todas as
mulheres” (cf. Lc 1,42) da terra.
O capítulo original, inaugurado por “Aparecida”, no culto mariano do Brasil é
antecedido por uma longa história e tradição portuguesas que, cruzou o Atlântico a pouco
mais de cinco séculos, aportaram em nossas terras. Por isso, convém conhecer, ainda que
sucintamente, os principais elementos que compõem a devoção a Nossa Senhora nas terras
lusitanas, pois, como veremos, eles influenciaram decisivamente nosso culto e serviram como
preparação a mais genuína e propagada devoção mariana brasileira. Como afirmou Vilhena de
Moraes (apud MACHADO, 1976, p. 79): “Por intermédio de Portugal, receberia o Brasil a
suave influência da fé mariana, que sempre foi o fundamento das virtudes do povo lusitano”.
Também “A História Nacional entrelaça-se de modo sublime, nesta abençoada terra,
com a história do culto mariano.” (MACHADO, 1976, p. 82). Por isso, para chegar à
“Aparecida”, é necessário adentrar nos principais capítulos da História do Brasil, entre os
meados do século XVI até as primeiras décadas do século XVIII, para analisar o “fato em si”
do encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, no intuito de perceber
como o seu achamento, que não é uma aparição propriamente dita, tornou-se uma mariofania
singular e originalmente brasileira, sem, contudo, romper com a longa tradição devocional
que nos foi transmitida por Portugal, mas dando-lhe um novo significado que conquistou o
coração do povo brasileiro.

1.1. Um novo capítulo na história da devoção a Maria no Brasil.


112

O que mais nos interessa na história da devoção mariana portuguesa são dois eventos
fundamentais que fazem parte da própria história política e social de Portugal. O primeiro está
ligado à fundação do reino e o outro diz respeito à reconquista da soberania do país, que fora
tomada pelos espanhóis. O que há em comum entre ambos é que para os reis envolvidos nesta
trama, a intervenção de Maria foi providencial. Por isso, foi devidamente honrada e celebrada
pelos séculos afora como perpétua memória de sua maternal proteção.
Aproximadamente dois anos após a fundação do Reino de Portugal, o seu primeiro
monarca, D. Afonso Henriques, no ano de 1142, colocou desde o início o novo reino sob a
proteção de Santa Maria (DOS SANTOS, 1996, p. 21). No ano de 1147, após cinco meses
sitiada, a cidade de Lisboa foi tomada das mãos dos mouros e a catedral da cidade, que fora
tornada um templo mulçumano, foi solenemente dedicada à Santa Maria. Outras construções
posteriores entre mosteiros e igrejas também foram dedicados à Virgem Santa Maria (Ibid.,
1996, p. 22-23). Outro fato histórico ligado à devoção mariana portuguesa consta do ano de
1385 quando, diante de uma ameaça espanhola, os lusos saíram vitoriosos no confronto
militar de Aljubarrota. A vitória foi atribuída à intervenção de Nossa Senhora e, para honrá-la,
foi construída a igreja e o mosteiro de Nossa Senhora da Batalha. O próprio Rei D. João I, tal
como um devoto peregrino, foi a pé agradecer a Santa Maria (Ibid., 1996, p. 38). Esta não foi
a primeira nem a única vitória militar atribuída como graça alcançada por Maria. Para além
das conquistas bélicas, também o êxito durante o ciclo das navegações e das conquistas de
além-mar foi confiado à Mãe de Deus.
Estes dois exemplos, entre tantos outros, servem para ilustrar e demonstrar a intensa
piedade marial dos portugueses, a qual contagiava desde os reis, que contavam com o auxílio
da Virgem nos seus variados títulos ou invocações, já existentes ou criados a partir de
determinadas situações, para seus empreendimentos políticos (principalmente a defesa do
território contra os inimigos e as conquistas de outras terras), até a população que buscava na
“Senhora” o alívio das suas dores, a satisfação das suas necessidades, o consolo para suas
angústias, dentre outras razões particulares que sempre movem os fiéis. Mas a devoção que
mais cativou o coração dos lusitanos e cujo legado chegou até ao Brasil, foi à Nossa Senhora
da (Imaculada) Conceição.
Quanto à origem e ao início da devoção e do culto à Imaculada Conceição de Maria
em Portugal não há uma data exata, mas, conforme a tradição, desde 1147 a sua festividade é
celebrada em todo dia 8 de dezembro, logo após a retomada da cidade de Lisboa das mãos dos
mouros (DOS SANTOS, 1996, p. 25). Aliás, muito antes da proclamação dogmática da
113

Imaculada Conceição, sua memória litúrgica já era celebrada em vários lugares do mundo.
Segundo a pesquisa histórica de Armando Alexandre dos Santos,

[...] em fins do século XVI e princípios do século XVII o culto à Maria Imaculada
[já] tomara conta de Portugal; desde os reis até o povinho miúdo, passando pela
Nobreza, pelo Episcopado, pelo Clero, pelas Ordens religiosas, pelos teólogos, em
todos os níveis da sociedade se presenciava um acentuado fervor marial e
imaculista. (1996, p. 83-84).

O ponto alto desta devoção foi em 25 de março de 1646, ano que coincidiu com a
Festa da Anunciação do Senhor com o Domingo de Ramos, na Capela Real do Terreiro do
Paço Imperial em Lisboa, D. João IV proclamou solenemente Nossa Senhora da Conceição de
Vila Viçosa, “Senhora Padroeira e Protetora de nossos Reinos e Senhorios”. Além disso, o
soberano prometeu defender o insigne privilégio da Mãe de Deus, que fora concebida sem a
mácula do pecado original, inclusive requisitando à Universidade de Coimbra que se
comprometesse com o mesmo23. Note-se que, apesar do conteúdo religioso, esta não é uma
bula papal ou um decreto pontifício, mas uma provisão régia24.
Para além do aspecto religioso, a consagração do Reino e de suas extensões além-mar
também possuía um caráter político. Com a restauração da monarquia em Portugal a 1º de
dezembro de 1640, justamente no primeiro dia da oitava preparatória à Solenidade da
Imaculada Conceição, após sessenta anos de domínio espanhol (1580-1640), a Padroeira
escolhida era uma devoção comum também à nação vizinha, de tal forma que esta
proclamação, de algum modo, uniu estas duas potências navegadoras que espalharam pelas
terras conquistadas do Novo Mundo, além do seu domínio e cultura, também a sua
religiosidade. O papel político e o fervor devocional de D. João IV permitiu a restauração da
monarquia portuguesa e as duas potências dividiram entre si os frutos de suas conquistas, do
qual o Brasil é exemplo evidente como no caso do Tratado de Tordesilhas.

23
No ano mesmo da consagração, alguns meses antes, em 17 de janeiro de 1646, o Rei determinou que todos os
estudantes da Universidade de Coimbra prestassem juramento em defesa da Imaculada Conceição de Maria.
Ainda que não pudesse obrigar, mesmo assim o rei impôs tal juramento como condição para a obtenção de graus
acadêmicos na mencionada instituição. “Quando visitou a Universidade Coimbra, 15-5-1982, S.S. João Paulo II
teve ocasião de aludir a esse juramento: „É para mim um momento de grande alegria encontrar-me nesta
Universidade, uma das mais antigas da Europa e intimamente ligada à ação da Igreja. desde os seus primórdios
[...] assumiu, no decorrer da sua história, também um compromisso formal de defender a doutrina da Imaculada
Conceição de Maria Santíssima.” (JOÃO PAULO II apud DOS SANTOS, 1996, p. 105).
24
O teor da provisão régia demonstra que aquele não era um ato isolado ou um simples capricho devocional do
Rei, mas que estava em plena continuidade com a tradição recebida dos seus predecessores, a começar por D.
Afonso Henriques, o primeiro rei português que havia cumulado o reino com esta herança de devoção mariana.
Como afirmava o próprio decreto, D. João desejava “imitar [...] a singular piedade dos senhores Reis, meus
predecessores.” (DOS SANTOS, 1996, p. 94).
114

Consagrar o Reino e suas possessões a Nossa Senhora da Conceição, na mentalidade


da época, era uma forma de assegurar a proteção constante da Mãe de Deus sobre estes
domínios, era uma espécie de “medida de segurança” ou numa linguagem religiosa, de
proteção, como afirmara o próprio Rei em uma carta à Universidade de Coimbra (6/12/1644):
“com que ele [o Reino] ficará mais seguro com a proteção da Senhora e a mesma Senhora
mais obrigada a tomá-lo particularmente debaixo de seu amparo.” (DOS SANTOS, 1996, p.
99). Era como que um “acordo” no qual, os reis e o povo se propunham a defender a
Imaculada e ela, por sua vez, a proteger e a defender o Reino. Esta mentalidade estava
presente também nos desbravadores, conquistadores e colonizadores de novas terras e
também na compreensão do povo em geral, o que se manifestava habitualmente no juramento
de “promessas” e de seu “pagamento” se obtida a graça desejada, prática frequente até hoje na
religiosidade popular.
Não apenas o Rei, mas desde o seu sucessor até todos os representantes da nação,
prestaram juramento para uma decisão que se revestia de um caráter oficial e perpétuo. Por
isso, entre as atribuições dos reis e seus sucessores estava a propagação da devoção à
Imaculada e sua defesa, inclusive para fora das fronteiras à medida que o reino expandia o seu
território de conquista e dominação.
Outro fato notório é que

desde a consagração de 1646, nunca mais os reis de Portugal puseram a coroa sobre
a cabeça, nem sequer no dia de sua ascensão ao trono ou de sua aclamação; e sempre
se fizeram retratar tendo ao lado direito uma almofada, sobre a qual repousava a
coroa real. (DOS SANTOS, 1996).

Ainda que na provisão régia da proclamação não houvesse explicitamente o termo


“Rainha” para a Senhora e Protetora do Reino, era consenso que não havia outra com igual
dignidade entre os portugueses, porque “se entendia que a Rainha de Portugal era sua celeste
Padroeira, Nossa Senhora da Conceição, sendo os monarcas terrenos meros lugar-tenentes da
verdadeira Rainha.” (DOS SANTOS, 1996, p. 103).
“O Brasil fazia então parte de Portugal, como o membro faz parte do corpo. [Mas] A
alma era a mesma: e portanto a Fé e a devoção mariana.” (MACHADO, 1976, p. 110). A
devoção de Portugal se propagou pelo Brasil desde a chegada dos primeiros descobridores /
conquistadores como algo endêmico, pois se alastrou no ritmo com a qual o nosso país era
ocupado. O culto mariano tal como foi recebido pelos nativos indígenas e, posteriormente,
pelos negros africanos mereceria um capítulo a parte, o que estenderia demasiadamente esta
115

breve introdução. Por isso, vamos ressaltar apenas três aspectos gerais do culto mariano no
período colonial:

1.1.1. A chegada do culto a Maria no Brasil e suas primeiras manifestações.

O primeiro “sinal” de Maria no Brasil veio a bordo da nau de Pedro Álvares Cabral em
abril de 1500, que partiu com sua expedição da Ermida de Santa Maria de Belém no Restelo,
em Lisboa, onde ouviu a missa presidida por D. Diogo Oritiz, e do bispo recebeu a bênção
para zarpar (DOS SANTOS, 1996, p.65-66). Quando a expedição chegou ao “Novo Mundo”,
o primeiro ato foi a celebração de uma missa, a Primeira do Brasil, imortalizada na tela a óleo
de Victor Meireles. Pedro Álvares trazia a bordo de sua nau a imagem portuguesa de Nossa
Senhora da Esperança25, que pertencia à sua família. A imagem que veio a bordo da nau
Cabral era uma autêntica senhora portuguesa vestida com manto verde e, invés de um véu
longo, usava sobre a cabeça um lenço. Ao que tudo indica também havia uma imagem de
Nossa Senhora da Conceição e também um quadro de Nossa Senhora da Piedade, visto que
estas ou outras invocações marianas poderiam estar presentes entre as treze embarcações da
sua comitiva que contava com cerca de 1.500 homens (VIEIRA, 2016, p. 11). O Brasil foi
descoberto sob o olhar terno e protetor da Mãe da Boa Esperança (MEGALE, 1997, p. 203),
sendo esta justamente uma das primeiras iconografias marianas presentes no momento da
“descoberta” portuguesa do Brasil. Sem dúvida, também havia nas caravelas outras imagens
com algum título mariano, segundo a piedade e devoção dos navegadores e tripulantes a
bordo.
Desde os primeiros anos da chegada dos portugueses, foram construídas capelas,
ermidas e oratórios dedicados aos mais variados títulos da Virgem Maria. A primeira capela
do Brasil foi dedicada a Nossa Senhora da Glória, também venerada como Nossa Senhora da
Assunção, em Porto Seguro (1503). Tomé de Souza, primeiro governador geral, ergueu uma
capela por causa da sua devoção particular a Nossa Senhora da Ajuda (entre 1550 e 1553). Os
bandeirantes em suas expedições [...] levaram consigo as imagens ligadas às devoções
portuguesas, especialmente Nossa Senhora da Conceição e da Glória (DE AZEVEDO, 2000,
p. 71).

25
“A imagem clássica portuguesa da Senhora da Esperança representa a Virgem Maria de pé com o menino
Jesus sentado em seu braço esquerdo, segurando com a mão direita o pezinho dele. O Divino Infante aponta com
a mãozinha direita para uma pomba (símbolo do Espírito Santo), que repousa sobre o braço direito de sua Mãe.”
(MEGALE, 1997, p. 206).
116

Entre as populações indígenas, o primeiro contato com Maria foi através das missões
jesuítas, cujo grande expoente é o “Apóstolo das Glórias de Maria”, São José de Anchieta,
que compôs uma das primeiras obras literárias de nosso país no gênero poesia: “Os poemas da
Virgem”. Entre os negros oriundos da costa africana propagou-se a devoção a Nossa Senhora
do Rosário, especialmente através da criação de associações leigas chamadas de
“irmandades”, além do sincretismo entre elementos das religiões afro e do catolicismo que
adaptou a figura da Virgem aos orixás. Um exemplo clássico é Iemanjá, orixá das águas do
mar que, no catolicismo, corresponderia a Nossa Senhora da Conceição.
O século XVI, especialmente entre 1500 e 1581, é marcado pela expansão geográfica e
sociológica que se deve, sobretudo, à ocupação do território e a formação da população a
partir da simbiose entre a cultura indígena, europeia e africana.
Foi seguindo este processo histórico que o culto e a devoção a Maria foi se espalhando
pelo Brasil e ganhando forma e características próprias à medida que também se formava o
rosto do povo brasileiro, ainda que com origem portuguesa, pois “o Brasil recebeu [...] a
devoção Mariana por uma espécie de atavismo racial; [pois] a mãe-pátria transmitiu aos filhos
a fé de seus avós.” (MACHADO, 1976, p. 79).

1.1.2. As principais invocações marianas desde o século XVI até o início do século
XVIII.

À construção de oratórios e capelas sucedeu-se a ereção de paróquias com títulos


marianos, a partir das quais, desde a diversidade até a frequência e repetição de oragos, é
possível identificar quais as principais invocações marianas no Brasil de então. Segundo a
pesquisa de Manoel Quitério de Azevedo, entre os anos 1503 e 1822 foram criadas em todas
as regiões do Brasil colonial, em aproximadamente vinte estados, mais de 300 paróquias com
orago de Maria, das quais 70 diziam respeito a denominações específicas de Nossa Senhora.
Quando estudada a estrutura das vilas, povoados e cidades, percebemos que na sua origem
estava uma capela ou oratório que ocupava o lugar central a partir do qual esses lugarejos se
desenvolviam. Logo, as capelas e paróquias se transformaram em centros catalisadores do
culto a Maria (DE AZEVEDO, 2000, p. 20). No decorrer dos três primeiros séculos (XVI-
XVIII), o número de paróquias dedicadas a Nossa Senhora cresceu progressivamente e
exponencialmente, a ponto de no século XVIII totalizarem vinte e nove novos tipos de
invocações marianas subdivididas basicamente em três grupos: 1º. A vida de Maria de
Nazaré; 2º. As virtudes da Virgem Maria; 3º. O poder e a proteção de Nossa Senhora. Entre as
117

principais invocações destaca-se em primeiro lugar, a Imaculada Conceição de Maria,


também denominada com o acréscimo de outros adjetivos, especialmente locais. Nenhum
outro título mariano atingiu tanta popularidade quanto o de Nossa Senhora da Conceição, da
qual foram espalhadas pelo território nacional mais de 500 imagens (MACHADO, 1976, p.
79). Soma-se às invocações marianas que dão nome às capelas e paróquias, mais quarenta e
cinco tipos empregados em irmandades, monumentos, oratórios e etc., totalizando noventa e
quatro tipos de invocações marianas no Brasil colonial (DE AZEVEDO, 2000, p. 27).

1.1.3. O papel das Ordens Religiosas na propagação da devoção à Maria.

A atuação dos religiosos no período do Brasil colonial deve ser compreendida


inicialmente dentro do contexto da política colonizadora de Portugal, pois estes não vinham
de “carona” nas caravelas portuguesas, mas estavam entre os agentes do projeto colonizador.
É preciso levar em consideração que por conta da estreita relação entre Estado e Igreja, tal
como veremos oportunamente, “colonizar” e “evangelizar” eram faces da mesma moeda, o
que no fundo significava, de alguma forma, “aportuguesar”, ou seja, ensinar e acomodar aos
moldes europeus os nativos que já habitavam o território e os que se originaram pela fusão
das três culturas que formaram a sociedade brasileira. Entre os principais costumes estava o
“dever de religião”.
Todavia, não nos cabe julgar os religiosos simplesmente como subordinados ao poder
político vigente, visto que algumas congregações entraram em choque com a mentalidade e
prática colonial, como é o caso dos jesuítas que chegaram a ser expulsos do Brasil (1759).
Também não é possível dizer que não houve qualquer sensibilidade à cultura pré-existente,
especificamente a indígena, como é o caso, novamente, dos jesuítas que até criaram um
catecismo em língua local. Ainda que hajam interesses políticos atrelados à prática
evangelizadora, há no coração dos missionários o desejo de “salvar os infiéis”, especialmente
por causa da influência do Concílio de Trento (1545-1563), ainda que não tenha se
manifestado oficialmente a respeito da expansão marítima que oportunizou a descoberta do
Novo Mundo.
As principais Ordens Religiosas que aportaram em solo brasileiro foram:

 Franciscanos: presentes desde a chegada dos portugueses eram oito frades


franciscanos que estavam a bordo da nau de Cabral, entre eles o Fr. Henrique de
Coimbra (VIEIRA, 2016, p. 11). Os franciscanos, contudo, iniciaram a fundação de
118

seus conventos a partir de 1585, desde Olinda até chegar a São Paulo e ao Sul do país.
Foram os responsáveis pela evangelização inicial dos índios e, como “defensores da
Imaculada” desde a Idade Média, foram os principais agentes na expansão do culto
popular a Nossa Senhora da Conceição, um dos motivos pelos quais eles estavam tão
atrelados à Coroa Portuguesa.

 Jesuítas: chegaram ao Brasil na comitiva de Tomé de Souza em 1549. “Batizado por


um Franciscano, foi o Brasil confirmado na Fé pelo Jesuíta.” (MACHADO, 1976, p.
83). Neste sentido é que se pode atribuir aos jesuítas a catequese indígena no século
XVI, cujo empreendimento levou em consideração os elementos culturais como meio
de transmissão da fé e da doutrina católica. Também foram propagadores da devoção à
Imaculada Conceição, tendo como destaque o Pe. José de Anchieta, o grande arauto e
poeta da Virgem, e o Pe. Antônio Vieira, propagador da oração do Rosário em seus
sermões. Apesar do êxito no ensino da catequese e do culto a Maria, os jesuítas não
agradaram aos portugueses a partir do instante em que se opuseram à forma de
escravidão indígena que os colonizadores haviam adotado. O conflito chegou ao auge
quando em 1759 os jesuítas foram expulsos de Portugal e de suas colônias pelo
Marquês de Pombal.

 Carmelitas: os carmelitas chegaram junto com os jesuítas no Brasil (1549) e se


instalaram desde a povoação da Paraíba, fundando conventos a partir de Olinda
(1583), Santos (1586) e Rio de Janeiro (1590). Até o ano de 1685, o Brasil já contava
com 246 carmelitas. Sua principal contribuição para a devoção mariana foi a do seu
próprio carisma e devoção a Nossa Senhora do Carmo e ao uso piedoso do
escapulário.

 Beneditinos: logo que chegaram a Salvador no ano de 1581, os monges da Ordem de


São Bento abriram mosteiros na então capital da Colônia (1584), no Rio de Janeiro
(1586), em Olinda, Paraíba e São Paulo (1590-1598). No final do século XVI tinham
mosteiros espalhados por diversas regiões, especialmente no interior de São Paulo. A
fundação paulista privilegiou o título de Nossa Senhora da Assunção, enquanto no Rio
de Janeiro, a igreja que construíram foi dedicada a Nossa Senhora do Monte Serrat,
invocação de origem espanhola. Mas a principal contribuição dos beneditinos foi no
campo da arte, especialmente a escultura. Com a propagação do culto à Imaculada
119

Conceição, foram muitos os pedidos de imagens para igrejas, capelas e oratórios


domésticos. É a um beneditino que se atribui a origem da imagem de Nossa Senhora
da Conceição que, em meados do século XVIII, ganhou o sobrenome “Aparecida”.

A presença de Maria no Brasil, desde o descobrimento sob a invocação de “Nossa


Senhora da Esperança”, pouco a pouco foi tomando conta de todos os rincões desta terra à
medida da construção da nossa história, em meio a conflitos, fracassos, sucessos... Pelas
razões aqui apresentadas brevemente, entre outras, é possível afirmar que a devoção à Virgem
Maria não é nova em nosso país, mas se fez presente desde os primeiros conquistadores,
colonizadores, desbravadores e evangelizadores, chegando aqui justamente por meio deles. A
história, tradição e devoção popular portuguesa, assumida e reorientada pelos reis de Portugal,
espalhada pelos colonizadores e evangelizadores em todas as extensões e possessões do Reino
juntamente com o trabalho das diversas ordens religiosas que aqui chegaram durante os
primeiros séculos de colonização, empenhados na propagação do culto à Imaculada e cada
qual com seu carisma mariano, são os principais fatores que fizeram o Brasil crescer e
frutificar, principalmente nos três primeiros séculos, tornando-o um imenso e singular
pedestal para a Virgem Maria, a ponto de ser considerado atualmente “o país mais católico do
mundo”, porque justamente, é um dos mais marianos.
120

ANEXO 2 –
APOCALIPSE 12,1 E A ICONOGRAFIA DA IMACULADA CONCEIÇÃO
121

2. APOCALIPSE 12,1 E A ICONOGRAFIA DA IMACULADA CONCEIÇÃO

Desde a antiguidade cristã até os nossos dias, muitos são os ícones, pinturas, imagens
e esculturas dos mais diversos estilos artísticos que retratam a Virgem Maria. Tal diversidade
iconográfica e imagética acompanhou a evolução do culto a Nossa Senhora ao longo dos
séculos. A iconografia mariana, portanto, acompanhou o culto mariano, sendo anterior,
inclusive a definições e proclamações dogmáticas, como é o caso do culto litúrgico e popular
e da iconografia da Imaculada Conceição, além de acompanhar também concepções e
abordagens teológicas e a instituição de festas litúrgicas e proclamações dogmáticas (cf. DA
SILVA RAMOS, 2016, p. 50).
Segundo Louis Réau, na sua volumosa obra sobre a arte cristã, a iconografia mariana
conheceu três momentos: 1º. A arte paleocristã das catacumbas; 2º. A arte bizantina do
Oriente; 3º. A arte ocidental. Este último momento foi o que apresentou a maior variedade de
representações de Maria, provavelmente por conta da liberdade encontrada nas mais diversas
expressões artísticas do Ocidente, especialmente a partir do Renascimento, mas já um pouco
antes também, diferenciando-se do milenar modelo iconográfico bizantino. A iconografia
oriental sempre apresentou a Virgem Mariaem referência explícita a Jesus, evidenciando
assim os dogmas da Maternidade Divina e da Virgindade Perpétua, enquanto que no
Ocidente, Maria já era apresentada com frequência sem o Menino ao colo e glorificada
segundo os dois últimos dogmas da modernidade, o dogma da Imaculada Conceição e da
Assunção.
Conforme Réau, a iconografia mariana ocidental pode ser dividida em quatro grupos:
1º. Antes do nascimento de Jesus (Imaculada Conceição e Maternidade Divina); 2º. A Virgem
com o Menino (a iconografia da Virgem da Majestade que representa Maria sentada sobre um
trono com Jesus no colo, e da Virgem da Ternura em que o rosto da Virgem e do Filho estão
encostados um ao outro); 3º. A Virgem Dolorosa (Nossa Senhora das Dores, da Piedade, as
Sete Dores de Maria); 4º. A Virgem “tutelar” (os vários títulos, invocações e tipologias
marianas). A Padroeira do Brasil se enquadraria no primeiro e no quarto grupo por ser uma
imagem da Imaculada Conceição que recebeu um novo título segundo as circunstâncias em
que foi encontrada e que, ao invés de receber o nome da localidade em que apareceu ou
surgiu, o seu novo título é que deu origem ao lugar. Neste caso a cidade de “Aparecida”,
assim chamada, por causa de Nossa Senhora.
Para a composição da iconografia mariana as fontes que serviram de conteúdo
fundamental foram a Sagrada Escritura, especialmente os símbolos e atributos marianos do
122

Antigo Testamento, os evangelhos canônicos e o livro do Apocalipse; os evangelhos


apócrifos de São Tiago e São Mateus e o Livro da Natividade da Virgem Maria; os escritos,
sermões e homilias dos Padres da Igreja e de outros teólogos e escritores eclesiásticos; as
visões e escritos dos místicos; as invocações e os títulos; as festas e celebrações litúrgicas; os
dogmas marianos e as aparições de Nossa Senhora. No nicho de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida que fica no Santuário Nacional, a imagem está ladeada por 12 figuras femininas do
Antigo Testamento.
Na Sagrada Escritura, segundo os evangelhos, temos um retrato conciso da pessoa,
vida e missão da Virgem de Nazaré. São os aspectos da vida de Maria, na Palestina, em sua
correlação com Jesus (PORTELLA, 2016, p. 14). Também o Antigo Testamento serviu de
inspiração, especialmente as figuras prefigurativas de Maria, tais como Eva, Sara, Rebeca,
Débora, Ester, Judite, entre outras, bem como alguns símbolos que, inclusive, foram
acrescentados à prece litânica como, por exemplo, arca da aliança, torre de Davi, casa de
ouro, porta do céu.
Já na Idade Média, a iconografia mariana se afastava um pouco do horizonte bíblico e
se “adaptava” aos aspectos da vida cotidiana das pessoas e das sociedades, donde surgem
títulos como Nossa Senhora do Parto, da Boa Morte, dos Navegantes, da Boa Viagem, entre
outros (PORTELLA, 2016, p. 14).
A partir dos primeiros séculos até a Modernidade, o desenvolvimento da iconografia,
também relacionada do Cristo, acompanhou o desenvolvimento teológico e dogmático desde
os primeiros séculos, pois a arte sacra procura exprimir aquilo que a fé busca transmitir, o que
consiste numa unidade entre mensagem e imagem. Na Antiguidade surgiram inúmeros ícones
para retratar a Maternidade Divina e a Virgindade Perpétua de Maria, especialmente no
Oriente e, na era moderna, com a proclamação do Dogma da Imaculada Conceição (século
XIX) e da Assunção (século XX), principalmente no Ocidente, embora a existência de ícones
a respeito destes dogmas marianos seja anterior e posterior à sua definição, pois também a
iconografia era uma expressão do sensus fidelium e do consensus fidelium.
As aparições marianas, ainda que existam desde sempre na história da Igreja,
influenciaram de maneira mais decisiva a iconografia do Ocidente que, embora seja difícil
precisar o momento histórico, provavelmente, a influência do Barroco optou por imagens que
retratassem mais a realidade humana de Maria, principalmente a partir do segundo milênio da
era cristã, enquanto que o Oriente prosseguiu com a sua rígida e estática iconografia
bizantina. Também as visões e percepções dos videntes e a mensagem das aparições
influenciaram fortemente a iconografia moderna e contemporânea.
123

A partir da variedade de fontes iconográficas e consequentemente de obras atribuídas à


Virgem Maria ao longo da história, é perceptível o lugar de destaque que ela ocupa na arte, na
teologia, no culto e na devoção popular, comparável somente ao de Jesus Cristo.
Provavelmente a realidade mais difícil de retratar do mistério da Virgem Maria é a
respeito da sua concepção imaculada. Para o franciscano Róger Brunorio, a dificuldade de
transcrever numa linguagem figurativa um conceito tão abstrato quanto a Imaculada
Conceição de Maria, consiste na complexidade do dogma e do sublime mistério que ele revela
acerca da beleza de Deus, da plenitude da criação e da vocação e destino do homem (2004, p.
206).
A necessidade de compor uma imagem para visualizar tão complexo e sublime
mistério se deve à função que a arte sacra exerce na catequese e na liturgia (BRUNORIO,
2004, p. 210), não sendo apenas uma peça de decoração, mas carregada de denso significado
teológico que serve de auxílio à palavra e é útil e proveitosa quando se relaciona com a
palavra (cf. DS n. 600-603). Segundo Emília Nadal, as imagens sacras são indispensáveis à
liturgia, pois nos permitem a visualização da Palavra proclamada e do Mistério celebrado
(NADAL, 1991, p. 119). Por isso as imagens são objetos de culto e veneração dos fiéis, pois
graças ao evento da encarnação de Cristo, que é a imagem do Deus invisível (cf. Col 1,15), é
possível contemplar a beleza de Deus revelada em Cristo e cuja luz se manifesta na Virgem
Maria e nos santos que honramos. A encarnação de Cristo é a fonte e origem de toda a arte
sacra que procura revelar a beleza de Deus e dar visibilidade à nossa fé. Nesta perspectiva, os
concílios de Nicéia II, Trento e Vaticano II salientaram o aspecto representativo das imagens,
a fim de evitar toda e qualquer idolatria ou devoção equivocada, pois “quem venera uma
imagem, venera a pessoa que nela está representada”.
Também deste modo foi necessário representar iconograficamente a Imaculada
Conceição de Maria, cujo dogma conheceu um amplo e largo desenvolvimento histórico,
teológico e dogmático que foi definido somente no século XIX, muito embora tal mistério já
fosse acreditado pelo povo e celebrado pela liturgia desde muito tempo antes da sua
proclamação oficial. O progressivo desenvolvimento iconográfico imaculista acompanhou a
progressiva afirmação do culto à Imaculada. “Esta iconografia constitui, portanto, um
importante documento histórico-doutrinal fundamental para o estudo e a compreensão do
longo processo da afirmação do culto da Imaculada Conceição até chegar ao seu último
estatuto de dogma de fé em pleno século XIX” (OSSWALD, 2016, p. 406).
Para Cristina Osswald, “o protótipo iconográfico da Imaculada Conceição que
subsistiu até a atualidade é uma criação barroca pós-tridentina” (2016, p. 401), isto é, a
124

representação atual da Imaculada é um modelo de inspiração medieval, onde se concentraram


as disputas teológicas mais acirradas a respeito do tema, segundo as orientações do Concílio
de Trento que rebatia as oposições dos protestantes acerca do culto às imagens e conforme o
Barroco, movimento artístico da época que servia principalmente à arte sacra graças à sua
exuberância e que predominou especialmente na Península Ibérica, onde surgiram as
principais obras acerca da Imaculada Conceição de Maria.
Segundo as pesquisas de Réau, a iconografia da Imaculada Conceição sofreu
modificações entre os séculos XVI e XIX e a versão mais atual é característica do Barroco
espanhol do século XVII que criou o seu tipo definitivo (1996, p.88), sendo que esta é a figura
de Maria mais representada iconograficamente e deu origem a muitas outras imagens e títulos
marianos, entre eles o da Padroeira do Brasil, Nossa Senhora da Conceição Aparecida (cf.
DAS NEVES, 2009, p. 97). O barroco hispânico dedicou muita atenção às representações da
Virgem Imaculada tanto na pintura quanto na escultura. A maioria dos artistas barrocos foi
influenciada pelo modo como o artista sevilhano Francisco Pacheco (1564-1644) definiu o
modelo iconográfico da imagem da Imaculada Conceição da Virgem Maria. Segundo o que
consta no seu tratado Arte de la Pintura (1649), considerado um dos melhores acerca da
pintura do barroco espanhol (cf. DAS NEVES, 2009, p. 39), a Virgem deveria ser retratada
como uma jovem na flor da idade, entre seus doze e treze anos de idade, com olhos sérios, de
nariz e boca perfeitos e bochechas rosadas, com cabelos da cor do ouro. Enfim, retratá-la com
toda a beleza humana que fosse possível, pois a Imaculada é também a Tota pulchra (cf. Ct
4,7), aquela que depois de Cristo, é a criatura mais bela que fora criada por Deus (cf.
PACHECO, 1990, p.576).

A escolha [dos artistas] foi enfatizar a representação da concepção imaculada através


da beleza corporal da virgem. Assim, a tendência foi representar Maria como uma
mulher de aspecto jovial e semblante sereno, como a predestinada por Deus, aquela
que tem em sua alma a pureza, a beleza divina (Tota pulchra). Nela se realiza a
plenitude da criação. Ela é bendita, cheia de graça e bem-aventurada (BRUNORIO,
2004, p. 214).

Outro artista importante para consolidar o protótipo definitivo da iconografia


imaculista é o sevilhano Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682), que ficou conhecido como
o “pintor da Imaculada”, pois compôs vinte e cinco telas sobre o tema, sendo a primeira
datada de 1652. Para compor a “sua” Imaculada, Murillo usou alguns dos atributos da
“mulher vestida de sol e com a lua debaixo dos pés” segundo Ap 12,1, colocando-a sobre as
nuvens e revestida de túnica branca e manto azul que são respectivamente cores-símbolo da
125

pureza e da transcendência, tal como está representada na sua obra mais famosa, a
Inmaculada Concepcíon de los Venerables (1678). Entre as diversas iconografias que
compôs, a cor da túnica da Virgem também pode ser da cor vermelha.
Mas como representar a concepção imaculada de Maria? Segundo Maria Marcellina
Pedico, a temática da Imaculada Conceição, entre outras singulares imagens de Maria, foi
muito mais difícil e tardia de definir pela dificuldade de transcrever em uma linguagem
figurativa um conceito tão abstrato (1993, p. 168). “Este fato da „ausência do pecado original‟
em Maria [...] não pode ser representado a não ser através de símbolos, devido à grande
complexidade envolvendo o mistério” (BRUNORIO, 2004, p. 214). Por isso é que a
iconografia imaculista reúne tantos e variados elementos artísticos, simbólicos e teológicos.
De modo geral, a imagem da Imaculada foi inspirada nas figuras bíblicas da “mulher”
de Gn 3,15 e de Ap 12,1 e da Sulamita do livro do Cântico dos Cânticos (7,1) e nos atributos
ou metáforas do Antigo Testamento presentes na Litania de Loreto, a ladainha lauretana
(1576), tais como: Arca da Aliança (Ex 25,10); Torre de Davi (Ct 4,4); Árvore de Jessé (Is
11,1); Sarça Ardente (Ex 3,2); Porta do Céu (Gn 28,17); fonte selada ou poço do jardim (Ct
4,15); jardim fechado ou hortus conclusus (Ct 4,12) com árvores que conservam por muito
tempo a sua cor (cipreste, oliveira, cedro, palmeira – cf. Ecl 24,17-18; Eclo 24,13-14), rosas e
lírios (Ct 2,1-2); espelho (Ez 7,10; Sb 7,26); Cidade (Sl 86,2) e Templo de Deus (Ecl 24,10-
11; Sl 87,3). A iconografia pré-barroca da Imaculada Conceição também foi inspirada no
Proto-Evangelho de São Tiago (capítulos IV e V) que narra o beijo casto entre Joaquim e Ana
junto à Porta Dourada do Templo de Jerusalém, o momento da concepção imaculada de
Maria. Também o Pseudo-evangelho de São Mateus (III, 1-5) e o Liber de Nativitatis Mariae
(III, 3-4 – V) narram de maneira semelhante este episódio.
Entretanto, o protótipo da Imaculada Conceição, definido no período Barroco (século
XVII), sob a influência da Escola de Sevilha, não fez qualquer menção aos textos apócrifos e
pouco se referiu aos símbolos da ladainha lauretana, preferindo inspirar-se fundamentalmente
na simbologia da Virgem do Apocalipse – a passagem bíblica de Ap 12 – que serviu de
inspiração para muitas representações mariais, especialmente para a representação da
glorificação de Nossa Senhora aos céus26.
“Na sua iconografia mais comum [do período barroco], a Imaculada tem túnica e
manto, panejamentos esvoaçantes, calça sandálias ou encontra-se descalça (os pés são tapados

26
A iconografia da Imaculada Conceição pode ser confundida com a da Assunção de Maria, pois os atributos
apocalípticos são os mesmos, com exceção da posição das mãos e dos olhos. Enquanto na Imaculada os olhos
estão voltados para baixo e as mãos estão em forma orante ou sobre o peito, na Assunta ao céu os olhos e as
mãos se dirigem para o alto.
126

pelas túnicas em muitas imagens). O manto pode cobrir apenas o corpo ou a cabeça e o
corpo” (OSSWALD, 2016, p. 402-403). Os pés podem pisar a lua crescente ou uma serpente e
as mãos delicadamente sobrepostas sobre o peito ou em posição orante.
O franciscano Róger Brunório coligiu no seu texto Representação iconográfica da
Imaculada Conceição de Nossa Senhora cerca de catorze atributos simbólicos que estão
presentes na maioria das iconografias, com alguma ou outra variação. São eles: o manto, a lua
crescente, o véu, os cabelos, a túnica, o globo, a coroa, a maçã, a rosa ou peônia, as mãos, a
nuvem, o querubim ou anjo, a serpente ou dragão, as estrelas (2004, p. 215-226).
Na iconografia imaculista de Bartolomé Estebán Murillo os símbolos cósmicos da
mulher apocalíptica – sol, lua e estrelas – são bastante evidenciados. Mas há outros símbolos
que extrapolam a revelação bíblica. São eles: o manto de cor azul ou vermelho, símbolo da
proteção divina e da dignidade; a túnica branca, sinal de pureza; os cabelos longos e soltos
que também podem representar um véu, sinal de liberdade; as mãos postas sobre o peito como
gesto de oração; as nuvens que simbolizam a manifestação divina; os querubins de cabeça
alada com duas ou quatro asas com aspecto de criança que recordam os anjos que foram
postos sob a Arca da Aliança a indicar o propiciatório que sinaliza a presença do Altíssimo
(cf. Ex 25,18-21; 1Rs 6,23-28).
A arte espanhola seiscentista influenciou o vizinho país luso para a confecção das
imagens imaculistas, principalmente a partir do momento que Portugal se colocou sob a
proteção de Nossa Senhora da Conceição, assumindo-a por sua padroeira e propagando a sua
devoção que aportou em terras brasileiras. O “pintor das Imaculadas” deixou uma herança
para a posteridade, pois, nascendo cem anos (1617) antes do encontro da imagem nas águas
do Rio Paraíba, não imaginava que contribuíra para a inspiração daquele que esculpira uma
imagem simples de barro cozido que reproduzia a efigie de Nossa Senhora da Conceição, que
no Brasil passaria a ser invocada como “Nossa Senhora da Conceição Aparecida”.
127

ANEXO 3 –
BREVE CRONOLOGIA DOS 300 ANOS DE “APARECIDA”
(1717-2017)
128

3. BREVE CRONOLOGIA DOS 300 ANOS DE APARECIDA (1717-2017)

Apresentamos abaixo a cronologia das principais datas históricas que envolvem a


imagem, a devoção e o santuário de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, a fim de ter uma
visão panorâmica sobre toda a sua história até o presente ano do Tricentenário (2017), mas
sem estabelecer uma relação direta com a história do Brasil, o que seria fundamental para um
aprofundamento futuro, tal como foi feito quando apresentamos o contexto político, social e
econômico do encontro da imagem.
Destacamos, sobretudo, os “sete altares” que foram erguidos para a Virgem como uma
descrição objetiva do itinerário da imagem desde o fundo do rio até o nicho em que se
encontra atualmente no Santuário Nacional, através de uma analogia com os “sete altares”,
denominação com a qual os antigos romanos se referiam à freguesia de Assumar (Montforte),
uma povoação portuguesa muito antiga, com cujo nome foi condecorado Dom Pedro de
Almeida Portugal, o terceiro governador da Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro
(1717-1721), ou como foi conhecido, o Conde de Assumar, a quem “Aparecida” deve a sua
origem histórica, pois foi justamente a sua passagem pela Vila de Guaratinguetá que provocou
a intervenção de Nossa Senhora em favor dos pescadores, naquela pesca milagrosa pelos idos
de outubro de 1717 (MACHADO, 1976, p. 163).

DATA ACONTECIMENTO / EVENTO27

1717 Encontro da imagem de Nossa Senhora da Conceição no Rio Paraíba pelos


pescadores João Alves, Domingos Garcia e Filipe Pedroso.

1717-1726 “1º altar” – primeiro oratório na casa de João Alves, filho de Domingos
Garcia, casado com Silvana da Rocha.

1726-1731 “2º altar” – após a morte de Silvana da Rocha (precedida da morte do


marido e do filho), Filipe Pedroso, seu irmão, tornou-se o herdeiro da
imagem que permaneceu no seu oratório particular durante o tempo que
residiu nas terras de Lourenço de Sá, por aproximadamente seis anos.

1731-1739 “3º altar” – Filipe Pedroso mudou-se para a Ponte Alta, que fica entre a
Ponte de Sá e o Alto da Boa Vista, onde permaneceu por aproximadamente
nove anos.

1739 “4º e 5º altar” – a imagem voltou para o seu lugar de origem. Atanásio

27
As principais datas da história de Nossa Senhora da Conceição Aparecida foram extraídas da obra:
BRUSTOLONI, Júlio J. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida – a Imagem, o Santuário e as
Romarias – 10ª ed. rev. e ampl. – Aparecida, SP: Editora Santuário, 1998.
129

Pedroso, filho de Filipe Pedroso, foi quem herdou a imagem que até então,
ainda era conservada dentro de um baú e retirada somente para a hora da
reza. Atanásio edificou um oratório de madeira em sua casa (4º altar) e
reuniu a vizinhança para a oração do rosário aos sábados, onde começaram
a acontecer alguns milagres atribuídos a Nossa Senhora da Conceição
Aparecida. Quando a notícia dos milagres chegou aos ouvidos do pároco de
Guaratinguetá, foi construída ao lado da casa de Atanásio, uma capelinha
semi-pública feita de pau a pique (5º altar) no Porto de Itaguaçu, que aos
poucos se tornou pequena para tanta gente atraída pela notícia dos milagres.

1743 No dia 5 de maio, o Pe. José Alves Vilella obteve do bispo diocesano do
Rio de Janeiro, D. Frei João da Cruz, a autorização para a promoção do
culto e a ereção de uma capela pública. Deu-se início à construção de uma
capela mais ampla feita de taipa de pilão no Morro dos Coqueiros, um local
de acesso mais favorável.

1745 “6º altar” – a 26 de julho, memória litúrgica de Santa Ana, mãe da Virgem
Maria, foi inaugurada a primeira Capela sob a invocação de Nossa Senhora
da Conceição Aparecida (local onde hoje está a atual Basílica Velha)
juntamente com a instalação do povoado de Aparecida. Neste mesmo ano
foi criado o bispado de São Paulo e Mariana.

1761 Primeira visita pastoral realizada pelo segundo bispo de São Paulo, D. Frei
Antônio da Madre de Deus, à Capela de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida.

1780 É nomeado o primeiro capelão de Aparecida: o Pe. Francisco das Chagas


Lima.

1822 Aos vinte dias de agosto, o primeiro Imperador do Brasil, D. Pedro I,


visitou a imagem de Nossa Senhora da Conceição Aparecida durante a sua
histórica viagem para São Paulo. No mês seguinte, D. Pedro I proclamou a
independência do Brasil (7/9/1822).

1845 / 1865 Visita do Imperador D. Pedro II acompanhado da Imperatriz.

1868 A 8 de dezembro, durante a Solenidade da Imaculada Conceição, a Igreja


de Aparecida recebeu a ilustre visita da Princesa Isabel e do seu marido, o
Conde d‟Eu. Na ocasião, a Princesa do Brasil fez a doação de uma coroa de
ouro e diamantes para a imagem de Nossa Senhora, que aguardou o
momento ideal de ser coroada.

1873 É organizada a primeira romaria a pé que visitou a igreja de Aparecida,


proveniente da cidade vizinha de Guaratinguetá: “entre 1745 e 1890, a
Imagem era levada todos os anos para a matriz de Guaratinguetá, onde
permanecia por alguns dias, e, a partir de 1872, durante o mês de maio, para
as devoções marianas da paróquia.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 355).

1893 A festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida passou a ser celebrada


no 5º domingo da Páscoa, pois até então era realizada todo dia 8 de
130

dezembro, na Solenidade da Imaculada Conceição. No dia 28 de novembro,


a igreja de Aparecida, desmembrada do território da Paróquia de Santo
Antônio de Guaratinguetá, foi elevada à condição de paróquia e recebeu o
título de Santuário Episcopal por decreto de D. Lino D. Rodrigues de
Carvalho, bispo de São Paulo.

1894 Dom Joaquim Arcoverde, bispo de São Paulo, confiou a pastoral do


Santuário aos cuidados dos missionários redentoristas, que chegaram a
Aparecida no dia 28 de outubro e assumiram de modo definitivo os
trabalhos no ano seguinte, a 23 de janeiro.

1900 É realizada uma romaria de trem vinda das cidades de São Paulo com
aproximadamente 1200 peregrinos.

1904 A festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida passa a ser celebrada no


primeiro domingo de maio. No dia 8 de dezembro, a Imagem foi
solenemente coroada por D. José de Camargo Barros, bispo de São Paulo,
com a “joia” ofertada pela Princesa Isabel em 1868.

1908 No dia 28 de abril, o Santuário de Aparecida (atual “Basílica Velha”) é


elevado a dignidade de Basílica Menor.

1917 Mais uma vez a data da festa de Nossa Senhora da Conceição Aparecida é
modificada. Desta vez para 11 de maio e, posteriormente para o dia 7 de
setembro. Neste mesmo ano comemorou-se o Jubileu dos 200 anos do
encontro da imagem.

1929 O Congresso Mariano em Aparecida (5-7 de setembro) comemorou o


Jubileu de Prata da Coroação da Imagem (1904-1929).

1930 A 16 de julho, o Papa Pio XI declarou Nossa Senhora da Conceição


Aparecida como Padroeira Principal do Brasil.

1931 O cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, no dia 31 de


maio, na presença do Presidente da República, o Sr. Getúlio Vargas, de
demais autoridades públicas e religiosas, e de grande multidão, oficializou a
consagração solene do Brasil a sua Padroeira, na Esplanada do Castelo, da
então capital federal do país, o Rio de Janeiro.

1932 A imagem “foi levada ocultamente para São Paulo, durante a Revolução
Constitucionalista, onde permaneceu no Palácio de São Luiz, residência do
Sr. Arcebispo de São Paulo, de 25 de setembro até o dia 6 de outubro”, por
medo “de um bombardeio na cidade de Aparecida, pois no Vale do Paraíba
se desenvolveram diversas lutas e confrontos entre constitucionalistas e
getulistas.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 356).

1945 Foi organizada pelo Cardeal Motta, na Catedral e na Praça da Sé, centro da
cidade de São Paulo, uma vigília noturna que contou com a presença da
Imagem original de Nossa Senhora da Conceição Aparecida e do
operariado contra o movimento comunista.
131

1946 Primeira restauração da Imagem feita pelo Pe. Antônio Pinto de Andrade
(29/5). No dia 10 de setembro aconteceu o lançamento e bênção da pedra
fundamental da Basílica nova, que se encontra no Alto da Boa Vista, entre
o Morro dos Coqueiros e o Porto de Itaguaçu. A celebração foi presidida
pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira.

1950 Segunda restauração da Imagem feita pelo Pe. Humberto Pieroni (28/11 –
4/12) que instalou um pino de alumínio para manter a cabeça que,
frequentemente soltava, firme ao corpo.

1954 A cidade de São Paulo foi agraciada com mais uma visita da imagem de
Nossa Senhora da Conceição Aparecida, que permaneceu na Catedral da Sé
por ocasião do Congresso Mariano, realizado de 5 a 7 de setembro de 1954,
desta vez num clima mais ameno do que aquele de dez anos atrás.

1955 De 17 a 25 de julho de 1955 a Imagem de Nossa Senhora da Conceição


Aparecida foi conduzida para o Rio de Janeiro por ocasião do Congresso
Eucarístico Internacional. Neste mesmo ano a festa da Padroeira foi
celebrada a partir de uma data que seria definitiva até os nossos dias: 12 de
outubro.

1958 O Papa Pio XII eleva a Paróquia de Aparecida à dignidade de Arquidiocese


(19 de abril). E no mesmo ano, o Sr. Núncio Apostólico, D. Armando
Lombardi, instala solenemente a Arquidiocese de Aparecida (8 de
dezembro).

1962 A imagem da Padroeira do Brasil esteve presente na inauguração da cidade


de Brasília, a nova capital federal, agora localizada no Estado de Goiás.

1965-1968 Peregrinação Nacional da Imagem Nossa Senhora da Conceição Aparecida,


realizada pelo transcurso dos 250 anos do encontro da Imagem, durante
dois períodos: 1º - 3 de maio de 1965 a 24 de dezembro de 1966; 2º - 29 de
fevereiro a 30 de outubro de 1968. No dizer de Dom Macedo: “Nossa
Senhora vai retribuir a visita que seus filhos lhe fazem de todo o Brasil.”
(apud BRUSTOLONI, 1998, p. 357). Foram visitadas 1300 localidades: 23
arquidioceses, 174 dioceses e 8 prelazias. A imagem percorreu uma média
de 45.000 km durante 508 dias (Ibid., 1998, p. 358-359). Esta foi a última
vez que a imagem original saiu do seu Santuário.

1966 O Cardeal Motta, primeiro Arcebispo de Aparecida, promulgou um Ano


Mariano para celebrar os 250 anos do encontro da Imagem.

1967 Jubileu de Ouro do encontro da Imagem (250 anos). Entre muitas


solenidades e eventos, foi realizada uma procissão fluvial do Porto de
Itaguaçu até o Santuário Nacional para recordar o evento miraculoso ali
realizado há 250 anos. Outro momento marcante foi a inauguração do
Santuário Nacional de Aparecida, embora inacabado, a 15 de agosto. No
mesmo dia, o Santuário Nacional foi presenteado com uma “Rosa de Ouro”
enviada pelo Papa Paulo VI, a primeira de sua história.

1978 Houve uma tentativa de furto da imagem no dia 16 de maio às 20h10min


por um jovem desequilibrado de nome Rogério Marcos de Oliveira. O
132

violento atentado resultou na quebra da imagem que se espatifou em 165


fragmentos. No mesmo ano, a Imagem foi restaurada por Maria Helena
Chartuni, restauradora do MASP (Museu de Arte de São Paulo), de 29 a 31
de junho. No dia 19 de agosto, numa peregrinação de carro do MASP até a
cidade de Aparecida, foi reintroduzida a imagem original restaurada num
nicho da Basílica, agora à prova de bala para evitar outros atentados.
1980 Ainda inacabado, o novo Santuário de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida é consagrado pelo Papa João Paulo II, o primeiro pontífice a
visitar Aparecida, por ocasião de sua viagem apostólica ao Brasil. Na
ocasião o Santuário recebeu o título de Basílica Menor (4 de julho de
1980).
1982 “7º altar”: após dois anos da consagração da Basílica nova, é que a imagem
original deixa definitivamente a “Basílica Velha” e passa a ser venerada
definitivamente no nicho do novo santuário, ainda inacabado.
1984 A 12 de outubro de 1984, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) decretou oficialmente a igreja de Aparecida como Santuário
Nacional.
2007 O Papa Bento XVI presidiu a abertura da V Conferência do Episcopado
Latino-Americano e Caribenho, que aconteceu de 13 a 31 de maio nas
dependências do Santuário Nacional. Na ocasião, o Papa presidiu a oração
do terço, celebrou uma Missa campal na praça da Basílica e presenteou a
Padroeira com uma “Rosa de Ouro”, a segunda oferecida por um Pontífice
à Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
2011 Desde 2011, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
escolheu o Santuário de Aparecida como sede para as suas Assembleias
Gerais, realizadas uma vez por ano.
2013 Com a disposição de visitar Aparecida como um peregrino, o Papa
Francisco incluiu no roteiro de sua viagem ao Brasil, por ocasião da
Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, uma visita à Mãe dos
brasileiros. O Papa presidiu a Missa no dia 24 de julho, com a liturgia do
dia da Padroeira (12/10) e prometeu retornar para a celebração dos 300
anos. Além disso, o pontífice teve um encontro particular com o episcopado
brasileiro a 27 de julho, no Rio de Janeiro, onde usou o encontro da
Imagem e a pesca milagrosa como chaves de leitura e reflexão sobre a
missão da Igreja.

2016 O Santuário de Aparecida é constituído como Catedral da Arquidiocese de


Aparecida (22/10), cujo título pertencia, até então, a Igreja de Santo
Antônio, de Guaratinguetá – SP.

2016-2017 12 de outubro de 2016 – 12 de outubro de 2017 – Ano Nacional Mariano


proclamado pela CNBB para toda a Igreja do Brasil. Umas das principais
iniciativas para a preparação do Jubileu dos 300 anos é a peregrinação de
diversas fac-símiles da imagem original por todas as Arquidioceses e
Dioceses brasileiras, além das diversas romarias programadas a nível
nacional e regional, bem como outras programações e atividades de cunho
religioso e social.
133

ANEXO 4 –
“APARECIDA”: UMA MARIOFANIA “FORA DOS PADRÕES”
134

4. “APARECIDA”: UMA MARIOFANIA “FORA DOS PADRÕES”

Não há notícias de que o Brasil tenha tido alguma aparição de Nossa Senhora nos três
primeiros séculos que o nosso estudo abrange, sendo este um fenômeno ainda recente que
merece ser estudado e aprofundado à medida da sua ocorrência, com a seriedade e a prudência
com que a Igreja sempre tratou estas manifestações. Além disso, o período mais frequente de
manifestações desta natureza, presente já na experiência do povo de Israel e ao longo de toda
a história da Igreja, foi no século XIX e XX, como é o caso, por exemplo, das aparições em
Lourdes (1858) e Fátima (1917), posterior ao período histórico até então contemplado.
Alguns teólogos costumam comparar a devoção a Nossa Senhora Aparecida com a
aparição de Nossa Senhora de Guadalupe, no México. Apesar das semelhanças, há muitas
diferenças do ponto de vista histórico. Contudo, “Aparecida”, embora não seja rigorosamente
uma aparição, possui algumas características que a aproxima de uma. O que podemos
constatar é que por causa da sua imagem, “Aparecida” é um sinal divino, portador de uma
mensagem profundamente eclesial, além de social.

4.1. “Guadalupe” e “Aparecida”

A aparição mariana mais impressionante no continente latino-americano, para não


dizer do mundo, é a de Nossa Senhora de Guadalupe28, no México, ano de 1531 (século XVI),
e foi a primeira a ser reconhecida pela Igreja (BOFF, 2006, p. 235-236). A Virgem que
apareceu a Juan Diego foi chamada popularmente de “Guadalupe”29, cujo nome significa a
“Vencedora da Serpente”, uma designação própria da Imaculada Conceição. De imediato é
perceptível alguma semelhança e traços de união entre a Virgem de Guadalupe e a Senhora de
Aparecida, ainda que haja uma diferença de aproximadamente 200 anos entre a “aparição” e o

28
A Virgem Maria apareceu na hermosa montaña de Tepeyac a um índio chamado Juan Diego, enquanto este se
dirigia pela manhã para assistir a Missa, num contexto social de difíceis conflitos entre a população local e os
espanhóis que ali espalhavam seus domínios. Nossa Senhora apresentou-se ao índio com uma face indígena e
morena, falando-lhe na sua própria língua, o Nican Mopohua, num diálogo muito afetuoso e carinhoso em que se
revelava como uma boa mãe: “Por acaso não estou eu aqui, que sou tua Mãe?”. O restante da história já nos é
conhecida, e esta seguiu um ritmo comum às aparições, guardadas as suas particularidades. A Virgem pediu ao
vidente a construção de uma igreja naquele local, o qual foi pedir a autorização do bispo local, Dom Frei Juan
Zumárraga, que, não anuindo de imediato, convenceu-se do fato apenas quando o índio colocou na sua tilma
rosas colhidas em pleno inverno, a mando da Virgem, e ao abri-la diante do purparado, apareceu inscrita no pano
a imagem daquela que o índio viu com os próprios olhos. Na retina dos olhos da Virgem de Tepeyac ficou
gravada esta cena na qual o bispo caiu de joelhos diante do índio portador do retrato aquiropito da Virgem.
29
“Existe a hipótese de que o primitivo nome da Virgem aparecida em Tepeyac fosse indígena e, em poucos
anos, tenha sido deturpado pelos espanhóis para „Guadalupe‟ por questões de assonância. É possível, mas não é
seguro.” (BOFF, 2006, p. 246).
135

“encontro”, entre a imagem impressa nas fibras da tilma de um índio e a imagem modelada no
barro e colhida por pescadores. Embora, por honestidade histórica, não seja possível dizer que
o evento “Aparecida” seja uma reprodução brasileira da aparição mexicana, ainda que
Portugal e, consequentemente, o Brasil, tivessem permanecido sob o domínio espanhol por
sessenta anos (1580-1640), o que não significa, obrigatoriamente, que a devoção a Nossa
Senhora de Guadalupe, tanto a “mexicana” quanto a “espanhola”, tenham sido largamente
abraçadas pelo povo luso e brasileiro. Além do que, a “aparição de Guadalupe” e o “encontro
de Aparecida” estão inseridos em contextos históricos bem diferentes, ainda que em termos
iconográfico e sociológico tenham as suas semelhanças.
Dom Rafael Maria faz uma comparação paralela, a partir da análise de quinze
elementos entre “Guadalupe”, “Aparecida” e “Lourdes” e sustenta a tese que as três
mariofanias, entre as suas semelhanças e diferenças, possuem uma mesma mensagem para a
Igreja. Segundo ele: “é possível constatar que Guadalupe, Aparecida e Lourdes se inserem na
vida social e eclesial do contexto em que se manifestam”, mas “deve ser estudados em um
contexto mais amplo para favorecer um conhecimento seguro do significado destas
manifestações divinas para o México, para o Brasil e para o mundo”, ou seja, ainda que
“nenhuma aparição mariana esteja fora de um contexto histórico e eclesiológico [...] elas se
inserem e fazem parte da história universal e local” (DA SILVA, 2014, p. 38-45) e possuem
uma imagem que interessa tanto ao passado quanto ao presente.

4.2. Uma “Aparecida” que não apareceu

Antes de prosseguir, convém assinalar a definição de “aparição” segundo o


Documento da Comissão Episcopal de Doutrina (CED-CNBB) sobre “Aparições e
Revelações Particulares” (2009), o Dicionário de Mariologia e a contribuição de alguns
especialistas no assunto que, em nosso Brasil, possui pouquíssima literatura, consequente de
uma falta de interesse, provavelmente justificada pelo pouco impacto que as aparições tiveram
na formação e desenvolvimento do culto e da devoção mariana em nosso país e, por se tratar
de um fenômeno recente e isolado para a nossa tradição religiosa local. Todavia, por hora não
nos interessa discutir o assunto, pois, como veremos, a partir da definição deste fenômeno, a
rigor, “Aparecida” não é uma aparição, mas uma devoção que possui, todavia, elementos
comuns a uma mariofania, especialmente os efeitos causados após o encontro da sua imagem
nas águas do Paraíba, embora seja uma mariofania muito singular e “fora dos padrões”, o que
lhe dá uma originalidade ímpar.
136

Segundo o subsídio doutrinal da Comissão Episcopal de Doutrina, “aparições” e


“revelações” são:

experiências de ordem psíquica. Por elas se diz reconhecer objetos, seres e situações
normalmente “invisíveis”, como Deus, Anjos, e pessoas em situação escatológica
como, os santos, a Virgem Maria, as almas. São fenômenos extraordinários que não
se podem pressupor, mas dos quais temos inúmeros relatos de experiências (CED-
CNBB, 2005, p. 16).

O mariólogo René Laurentin afirma: “Chama-se de aparição a manifestação visível de


um ser cuja visão naquele lugar ou naquele momento é inusitada e inexplicável segundo o
curso natural das coisas.” (apud FIORES; MEO, 1995, p. 116). Salvatore Perrellla, da
Pontifícia Faculdade Marianum de Roma define “aparição” na perspectiva da história, da
Revelação e da Igreja: “um evento histórico comprovado pela Igreja depois de escrupulosa e
severa investigação, cuja vocação e finalidade é aquela de „serviço‟ à Revelação divina
definitivamente concluída em Jesus Cristo”. O pensamento do teólogo brasileiro Afonso
Murad concorda com Laurentin e completa: “O termo „aparição‟ já transparece algo objetivo,
fora do sujeito, exteriorizável, como expressão visível de Deus” e, exemplifica essa noção a
partir das aparições marianas: “Uma aparição de Nossa Senhora, por exemplo, é uma
manifestação sensível na qual Maria se mostra visivelmente e comunica-lhes algum desejo da
parte de Deus em vista do bem espiritual das pessoas”. E define precisamente que: “Aparições
de Maria são manifestações de sua pessoa viva, não de estátuas ou imagens.” (MURAD,
1997, p. 19-20).
No caso das aparições de Cristo e de Maria, o que os videntes visualizam são seus
corpos percebidos em sua própria forma, ou seja, os corpos glorificados, segundo a teologia
paulina, que apesar de pertencer a uma ordem espaço-eternidade, podem ter alguma relação
com o espaço-tempo, ainda que de modo misterioso e extraordinário, graças também à
comunhão dos santos. Um exemplo disso são as aparições do Cristo ressuscitado, como
narram os evangelhos, após o episódio da paixão e morte, em que os discípulos tiveram
dificuldade de reconhecer o Senhor.
No caso da Virgem, falando a partir daquelas aparições já reconhecidas pela Igreja,
constata-se uma diversidade quanto a sua fisionomia, estatura, cor de pele, vestes, língua, etc.
Ao se manifestar, não teria que se apresentar igual em todos os lugares e tempos por se tratar
da mesma pessoa? Essa diversidade nas manifestações marianas que, mesmo sendo a mesma
pessoa se apresente de forma tão variada, e difere tanto da Maria de Nazaré apresentada no
Evangelho, é explicada como uma adaptação pedagógica ao vidente e ao seu ambiente e
137

cultura. Desta forma, Nossa Senhora se manifesta de forma adequada aos seus interlocutores,
segundo as circunstâncias de tempo, lugar e cultura local, para que a sua mensagem seja
compreendida. Isto é o que podemos chamar de um elemento de inculturação30. Caso
evidente disso são as aparições em Guadalupe, no México, em que a Virgem Morena falava
na língua do índio Juan Diego.
Portanto, de modo geral, as aparições são manifestações visíveis do sobrenatural que
podem comportar no seu interior uma visão, uma revelação ou um sinal, ainda que cada um
destes termos tenha suas próprias acepções. Neste caso, “Aparecida” é uma exceção e nem
pode ser classificada como uma aparição no sentido estrito do termo, embora o seu título
sugira o contrário.

4.2.1. “Aparecida” e os elementos comuns que costumam suceder às aparições

Contudo, há alguns elementos que podem ser classificados como efeitos e


consequências de uma aparição, e que também caracterizam a devoção a Nossa Senhora da
Conceição Aparecida. Aparições marianas importantes como Guadalupe, Lourdes e Fátima
possuem todos estes elementos, claro que com seus matizes próprios. É por isso que
“Aparecida”, embora não seja propriamente uma aparição, possui algumas características
comuns às principais manifestações de Maria da época moderna e contemporânea,
especialmente pelo fenômeno dos milagres, das multidões, do surgimento de povoados,
cidades e santuários de repercussão nacional e internacional.

4.2.1.1. Os milagres

“Ela apareceu milagrosamente e é com milagres que se conta sua história; por isso foi
se tornando sempre mais querida...” (MACHADO, 1976, p. 146). O encontro da imagem é,
em si mesmo, um evento miraculoso. “São muitas as circunstâncias miraculosas do encontro
da Imagem de Nossa Senhora nas águas do Rio Paraíba” (Ibid., 1976, p. 146) que, inclusive,
desafiam as leis naturais. O Pe. Machado em sua coletânea de textos coligidos na obra
Aparecida na História e na Literatura, enumera algumas destas circunstâncias miraculosas:
1) a surpresa do achado; 2) o horário desfavorável da pesca; 3) o local inapropriado; 4) o
corpo separado da cabeça e a ordem no encontro: primeiro o corpo, e a alguns metros, a

30
Quanto às aparições, estas “são sempre inculturadas, isto é, apresentam características que dão valor a uma
cultura local ou se adequam à pessoa do vidente e do ambiente em que vivem” (DA SILVA, 2014, p. 52).
138

cabeça; 5) as peças flutuantes, o que seria impossível com aquela imagem cuja tendência
natural seria afundar, permanecer no fundo do rio e dissolver-se; 6) a indissolubilidade de
uma imagem feita de barro poroso; 7) a imagem pesava apenas 4.350 gramas, mas quando foi
retirada se fizera tão pesada quanto uma rede cheia de peixes, tanto o corpo quanto a cabeça;
8) como a imagem chegou às malhas da rede, visto que as redes não alcançariam o fundo
onde ela estava provavelmente coberta de lodo e, como a cabeça tão pequena não escapou das
malhas da rede?
Além desses eventos miraculosos do encontro da imagem, para os quais não é possível
obter uma explicação racional, logo após ser “pescada” e guardada no interior do barco, o
terceiro lance de rede apanhou tantos peixes que os pescadores tinham medo de que a barca
viesse a afundar. Sem dúvida, é um milagre, pois eles haviam pescado a noite inteira, o
horário ideal para apanhar uma grande quantidade de peixes, coisa que conseguiram apenas
depois que encontraram a imagem de Nossa Senhora da Conceição. O registro do Livro
Tombo da Paróquia de Guaratinguetá afirma que os pescadores ficaram admirados deste
sucesso, uma reação que não seria de se esperar de pescadores experientes, que já deviam ter
testemunhado alguma grande pesca. Todavia, o sucesso da pescaria, tendo como pano de
fundo a obrigação de encher de peixes a mesa do governador, o que certamente lhes causara
temor, se deu após muitas tentativas fracassadas. Por isso, não era de se esperar outra reação
que não fosse a de admiração, própria de quem testemunha um milagre31.
O Pe. Júlio Brustoloni dedica o capítulo 7 do seu livro sobre a História de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida: a imagem, o santuário e as romarias, aos primeiros
milagres atribuídos à intercessão de nossa Padroeira, alguns dos quais estão descritos no
registro histórico transcrito no mencionado Livro Tombo, o principal documento a respeito do
encontro da imagem. Os três primeiros e mais famosos milagres são: o milagre dos peixes
(como já comentamos), o milagre das velas que se apagavam e acendiam sem intervenção
natural e humana (como está registrado no Livro Tombo da Paróquia de Guaratinguetá) e o
milagre da libertação das correntes do escravo Zacarias (BRUSTOLONI, 1998, p. 57-61).
“A crônica da missão de Aparecida, pregada em 1748, qualificou a Imagem como
„famosa pelos muitos milagres realizados‟.” (BRUSTOLONI, 1998, p. 58). Seria impossível
relatar todos os milagres operados graças à intercessão de Nossa Senhora da Conceição

31
A palavra “milagre”, do latim miraculu, tem a mesma raiz de “admirar” (admirare) e de “maravilha”
(mirabilia). Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, “milagre” é “o feito ou ocorrência
extraordinária, que não se explica pelas leis da natureza; acontecimento admirável, espantoso; portento, prodígio,
maravilha; qualquer manifestação da presença ativa de Deus na história; sinal dessa presença se caracteriza,
sobretudo, por uma alteração repentina e insólita dos determinismos naturais” (1986, p. 1133).
139

Aparecida, mas basta testemunhar com os próprios olhos os inúmeros peregrinos que acorrem
ao Santuário Nacional diariamente para agradecer e “pagar” as promessas por conta de algum
milagre recebido, além de visitar a Sala dos Milagres com milhares de ex-votos que recordam
graças alcançadas, principalmente peças de ceras de várias partes do corpo, muletas, cadeiras
de rodas, etc.
Infelizmente o Frei Agostinho de Santa Maria não viveu a tempo de conhecer os
milagres de Nossa Senhora da Conceição Aparecida para, então, catalogá-la na sua obra
Santuário Mariano e história das imagens milagrosas de Nossa Senhora. Todavia,
“Aparecida” não é a única “imagem” no Brasil com fama de “milagreira”, mas é sem dúvida,
uma das mais veneradas, seja no Santuário Nacional, nas inúmeras paróquias e milhares de
capelas e oratórios com seu título ou nas casas de família que possuem sua imagem ou
estampa. É praticamente impossível uma família católica no Brasil não possuir uma imagem
da nossa Padroeira.

4.2.1.2. As multidões

Associado à ocorrência de milagres está o fenômeno das multidões que, por


curiosidade ou por crença, acorrem aos santuários marianos. No caso de “Aparecida”, os
milagres atraíram desde os vizinhos até os tropeiros que passavam pela região, bem como
peregrinos de outros lugares que ficavam sabendo dos fenômenos operados pela intercessão
de Nossa Senhora da Conceição encontrada no rio. Embora saiba que o poder de intercessão
da Virgem Maria possa vir ao seu socorro em qualquer circunstância e lugar que se encontre,
o fiel sente a necessidade de ver, tocar e beijar a imagem com fama de milagrosa. Por mais
que tenha uma reprodução na sua própria casa, se emociona quando uma imagem fac-símile
de Aparecida, por exemplo, visita a sua comunidade e, principalmente, quando tem a
oportunidade de ver no Santuário Nacional a imagem que foi encontrada no rio Paraíba.
“Anualmente [e atualmente], mais de 11 milhões visitam o Santuário Nacional...”
(CORDEIRO; RANGEL; LUÍS, 2008, p. 9). O aumento do número de peregrinos durante
estes três séculos de história e devoção é progressivo, crescente e constante e não fica atrás de
santuários marianos internacionalmente conhecidos como Lourdes e Fátima, por exemplo.
O fenômeno das multidões que acorrem dos quatro cantos do país revela outra
característica importante: a unidade do país. “Aparecida” reúne brasileiros de todas as
procedências, atrai gente de todo o tipo. O Pe. João Maria Cesar de Rezende no seu discurso
de inauguração do Seminário de Aparecida (1957) afirmou a este respeito de forma poética,
140

mas bem realista, como se desse o testemunho de um padre que acompanhava de perto o vai e
vem diário de peregrinos na “Casa da Mãe Aparecida”32:

Eu vi passar o peregrino de olhos alevantados e mãos unidas...


Vi o pobre maltrapilho soletrar o Pai Nosso e Ave Maria...
Vi a mãe de família com a criança no colo, estendendo a mãosinha...
Vi o jovem de olhar desconfiado... o filho do povo...
o douto Professor de anel no dedo...
O rico vestido à moda... e o simples operário...
O general com seus galões e o soldado fardado...
Os magnatas da Nação e os de pés descalços...
O carregador com suas mãos calosas que mal traçam o sinal da cruz...
O paciente aleijado arrastando-se nas suas muletas...
Os aflitos e lacrimantes de almas espicadas na dôr...
O branco... o mulato... o prêto piedoso...
Vi...
E todos caminhavam numa impressionante e interminável fileira [...]
Vi o Brasil passar aos pés da Padroeira...
(REZENDE apud MACHADO, 1976, p. 30).

Esse fluxo tão diversificado de pessoas indica que “a fraternidade da fé revigora os


vínculos da unidade política da nacionalidade.” (MACHADO, 1976, p. 8). Desde os visitantes
mais simples até os mais ilustres como nobres, imperadores, generais, presidentes e papas,
entre os quais se destacam: D. Pedro I (20 de agosto de 1822) que pouco depois proclamou a
independência do Brasil; D. Pedro II e a Imperatriz (1845 e 1865); a Princesa Isabel e o
Conde d‟Eu (8 de dezembro de 1868); o Presidente Getúlio Vargas que esteve presente na
cerimônia de coroação e proclamação de Nossa Senhora da Conceição Aparecida como
Padroeira do Brasil (1931); os três últimos pontífices da Igreja Católica que fizeram, cada
qual, a sua visita à “Mãe dos brasileiros”: João Paulo II (1980), Bento XVI (2007) e Francisco
(2013). Os papas que visitaram Aparecida sempre demonstraram vir ao Santuário como
peregrinos mais do que como chefes da Igreja que reconhecera o principal culto e devoção
mariana do Brasil e a construção do maior Santuário mariano do mundo.
Desta forma, seja pelas circunstâncias geográficas de acesso da população e das
regiões vizinhas, o que foi sendo cada vez mais aperfeiçoado a medida que as romarias se
intensificaram, seja pelas circunstâncias históricas do sofrimento do povo em geral e, claro, a
história de vida pessoal que cada um tem de enfrentar, que a localidade de Aparecida e o
Santuário ganharam projeção nacional.

4.2.1.3. A cidade e o santuário

32
Slogan recorrente nos meios de comunicação social do Santuário Nacional.
141

A cidade de Aparecida surgiu de um povoado que, por sua vez, originou-se à sombra
da Capela de Aparecida (BRUSTOLONI, 1998, p. 163). O povoado de Aparecida do Norte,
como ficou conhecido, foi inaugurado a 25 de julho de 1745, data que coincide com a
inauguração da primeira Capela sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição Aparecida33.
A partir deste dado já se percebe a vocação religiosa daquela que viria a se tornar a cidade de
Aparecida, para onde convergiriam milhares de pessoas. No ano de 1827 o povoado foi
elevado à categoria de distrito ou freguesia. No ano de 1928, Aparecida emancipou-se de
Guaratinguetá e foi instalada a 30 de março de 1929.
A cidade de Aparecida se tornou o que é hoje, graças ao Santuário e à devoção a
Nossa Senhora. O atual Santuário Nacional que abriga o trono da Padroeira do Brasil, foi
precedido por outras construções mais modestas, desde o oratório de Atanásio Pedroso
(aproximadamente 1739), a capela de taipa de pilão do Pe. Vilella (1745) que sofrera
posteriormente algumas adaptações, ampliações e reformas (1824-1833), sendo substituída
por alvenaria e que corresponde atualmente a “Basílica Velha” que levou 43 anos de
construção (1845-1888), localizada no Morro dos Coqueiros, até o majestoso Santuário
Nacional. Com o progressivo aumento de peregrinos, que sempre fora crescente desde as
primeiras e simples edificações, surgiu a necessidade de construir uma igreja ainda mais
ampla. A nova construção localizada na região chamada de Morro das Pitas, teve a pedra
fundamental lançada a 10 de setembro de 1946, foi inaugurada, ainda incompleta, no dia 15
de agosto de 1967 e consagrada pelo Papa João Paulo II no dia 4 de julho de 1980, sendo que
as suas obras continuam até os nossos dias. A nova basílica ficou sob o encargo do arquiteto
Benedito Calixto de Jesus Neto que a projetou no formato de uma cruz grega com uma cúpula
central e quatro naves. O edifício possui dimensões gigantescas, capaz de abrigar no seu
interior cerca de 70 mil pessoas (BRUSTOLONI, 1998, p. 220). Além disso, o Santuário
dispõe de espaços para todo o tipo de serviço de apoio aos romeiros, como também diversas
obras sociais.
O Santuário Nacional de Aparecida é considerado o maior santuário mariano do
mundo. Seu tamanho parece contemplar as dimensões do nosso imenso Brasil e a magnitude
do seu povo. Apesar de tão grande, foi construído para abrigar a pequena e humilde imagem

33
“Conforme costume da época e por exigências das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707,
para se fundar um novo povoado era necessário a doação de certa porção de terras para a construção de uma
igreja e do próprio povoado [...] Assim nasceram todas as cidades brasileiras no século dezesseis, dezessete,
dezoito e grande parte do século dezenove. Aparecida nasceu desta maneira...” (BRUSTOLONI, 1998, p. 164).
142

de Nossa Senhora. Para uma imagem pequena e uma cidade pequena, um santuário que
representa o tamanho da fé e da devoção do povo brasileiro à Mãe de Deus34.
Pelo tamanho, a cidade de Aparecida poderia ser comparada à pequenina Belém de
Éfrata onde nasceu o Rei dos Judeus (cf. Mt 2,6), tal como fez o Cardeal Motta em um
discurso inflamado no dia 18 de agosto de 1967: “Tu, Aparecida, cidade de Nossa Senhora, de
nenhum modo és a mais pequenina das cidades brasileiras.” (apud MACHADO, 1976, p. 6).
O tamanho a que se refere o prelado não é geográfico, mas a grandeza com que o Santuário
elevou a pequena cidade. Pelo significado espiritual e social, Aparecida pode ser comparada a
uma “Jerusalém Nacional”, a capital espiritual do Brasil, assim como disse o Cardeal Agnelo
Rossi: “Se Brasília é a capital política do país, podemos dizer que Aparecida é a Capital
espiritual do Brasil.” (Ibid., p. 15,29,32).

4.3. “Aparecida” é um sinal!

A partir da análise do fato em si, do contexto histórico em que surgiu, da mensagem


sem palavras transmitida e, da função crítico profética que representa para a Igreja (CED-
CNBB, 2005, p. 39-47) e para a sociedade da época e de hoje, “Aparecida” poderia ser
classificada como um “sinal” divino, que em determinada circunstância histórica de tempo,
lugar e cultura transmitiu uma realidade sobrenatural, ainda que a rigor não seja um evento
desta ordem, mas é algo que diz respeito também a nós que comemoramos o seu tricentenário.
Mas o que é um “sinal”?35 O sinal é a manifestação visível de uma realidade invisível
à percepção humana, que serve para alcançar o invisível e, desta forma, para nos colocar em
contato com o divino. Na sua relação com Deus, o homem não pode viver sem a mediação de
sinais36, pois se comunica com Deus dentro dos limites e implicações da forma humana. Por
isso, o sinal revela a presença e a vontade de Deus. Exemplo clássico disso encontramos no
episódio das Bodas de Caná (cf. Jo 2,1-12) que termina com a célebre frase: “Esse é o
princípio dos sinais, Jesus o fez em Caná da Galileia e manifestou a sua glória e os seus
discípulos creram nele” (v. 11). Há nesta sentença o elemento histórico-local (“Caná da

34
Sobre o Santuário Nacional falaremos mais adiante e, de modo especial, no capítulo 3 desta obra.
35
A palavra “sinal”, do grego semeion, como é usada no Novo Testamento, não designa obrigatoriamente um
milagre tal como o entendemos, mas como aquilo que serve para confirmar, aprovar, assegurar e dar
legitimidade atestando a verdade do que foi anunciado. O sinal é, portanto, o que confirma ou assegura a verdade
e validade de uma mensagem.
36
Uma comunicação “direta” ou “pura” com Deus, que significaria a dispensação dos sinais não é algo que diz
respeito à teologia católica, além de contradiz o princípio fundamental da encarnação do Verbo, que é o
Mediador por entre nós e o Pai (cf. 1Tm 2,5) e, deste modo admirável, tornou o homem capax Dei. Desta
mediação de Cristo participam a Virgem Maria, os santos, toda a Igreja em comunhão entre o céu e a terra.
143

Galileia”). Os primeiros versículos descrevem um evento realizado no tempo (“No terceiro


dia, houve um casamento em Caná da Galileia...” (v. 1) e apresentam uma situação-limite
(“Ora, não havia mais vinho....” (v. 3)) que, graças a ação taumaturga de Jesus, é resolvida por
meio de um milagre que, neste caso, é interpretado pelo evangelista como um “sinal”, e
conclui com o reconhecimento de uma manifestação sobrenatural (“manifestou a sua glória”)
e com o alcance do objetivo realizado por meio deste mesmo sinal (“os discípulos creram
nele”). O objetivo do sinal é vivificar a fé, edificar a Igreja, alimentar a comunidade dos
crentes. Providencialmente este texto bíblico é proclamado na liturgia da Solenidade de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida, celebrada a 12 de outubro. O próprio contexto do encontro
da imagem, seguida da pesca milagrosa, pode ser lida e interpretada com o sabor de uma
página do Evangelho.

Quadro comparativo entre os elementos presentes nas “bodas de Caná” e na “pesca de Aparecida”.

Elemento “CANÁ” “APARECIDA”


Caná da Galileia Vila de Guaratinguetá / Rio Paraíba
histórico-local
terceiro dia 17 – 30/10/1717
e evento temporal
festa de casamento visita do Conde de Assumar
situação-limite faltou vinho não há peixes no rio
encher as talhas de uma imagem quebrada de Nossa
SINAL
pedra com água Senhora da Conceição (corpo e cabeça)
manifestação sobrenatural água transformada em vinho pesca milagrosa

objetivo realizado “os discípulos creram nele” “eles ficaram admirados deste sucesso”

Portanto, o que queremos indicar aqui é que o encontro da imagem de Nossa Senhora
da Conceição Aparecida é um sinal! Dentro de uma situação humana limitada (a pesca
fracassada), manifestou-se um sinal (duas partes de uma imagem de Nossa Senhora da
Conceição) seguido de um fato sobrenatural (a pesca milagrosa). Para compreender o evento
“Aparecida” como um “sinal” levou-se em conta o contexto histórico do Brasil colonial, o
fato em si que gerou a pesca e oportunizou o encontro da imagem de modo imprevisto, e o
milagre dos peixes, como foi analisado até o presente momento. Cabe a nós interpretar a
mensagem silenciosa, porém profética, escondida nos traços daquela imagem pequenina e
quebrada.
144

Comparativamente, “Aparecida” não é uma aparição “convencional”37, mas é “sinal”,


o que a constitui numa mariofania singular, conforme se pode comparar no seguinte quadro:

“APARIÇÃO CONVENCIONAL” “SINAL DE APARECIDA”

corpo humano glorificado estátua de barro

videntes que visualizam a pessoa da Virgem pescadores que encontram uma imagem quebrada, que
no alto (céu, gruta, montanha...) estava no fundo de um rio, nas malhas de suas redes

mensagem oral clara e explícita a mensagem silenciosa que necessita


ser transmitida tal e qual foi ouvida de uma interpretação posterior

transmissão da mensagem inicialmente um culto doméstico

37
Entenda-se “convencional” aqui como aqueles elementos comuns às aparições reconhecidas pela Igreja
(MURAD, 1997, p. 20) e que servem para a análise do fenômeno (CED-CNBB, 2005, p. 39-47), respeitadas as
devidas diferenças de contexto, pessoas envolvidas e mensagem transmitida.
145

APÊNDICE 1 –
“APARECIDA: CHAVE DE LEITURA PARA A MISSÃO DA IGREJA”
(PAPA FRANCISCO)
146

VISITA APOSTÓLICA DO PAPA FRANCISCO AO BRASIL


POR OCASIÃO DA XXVIII JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE
ENCONTRO COM O EPISCOPADO BRASILEIRO
DISCURSO DO SANTO PADRE
Arcebispado do Rio de Janeiro
Sábado, 27 de Julho de 2013

Queridos Irmãos!

Como é bom e agradável encontrar-me aqui com vocês, Bispos do Brasil!


Obrigado por terem vindo, e permitam que lhes fale como amigos, pelo que prefiro
usar o castelhano, para poder expressar melhor aquilo que levo no coração. Peço-lhes que me
perdoem!
Retiramo-nos um pouco, neste lugar preparado por nosso irmão Dom Orani, para estar
sozinhos e poder falar de coração a coração como Pastores a quem Deus confiou o seu
Rebanho. Nas ruas do Rio, jovens de todo o mundo e muitas outras multidões estão esperando
por nós, necessitados de serem envolvidos pelo olhar misericordioso de Cristo Bom Pastor,
que nós somos chamados a tornar presente. Por isso, gozemos deste momento de descanso, de
partilha, de verdadeira fraternidade.
Começando pela Presidência da Conferência Episcopal e do Arcebispo do Rio de
Janeiro, quero abraçar a todos e cada um, especialmente aos Bispos eméritos.
Mais do que um discurso formal, quero compartilhar algumas reflexões com vocês.
A primeira veio à minha mente, quando da outra vez visitei o Santuário de Aparecida.
Lá, ao pé da imagem da Imaculada Conceição, eu rezei por vocês, por suas Igrejas, por seus
presbíteros, religiosos e religiosas, por seus seminaristas, pelos leigos e as suas famílias, em
particular pelos jovens e os idosos, já que ambos constituem a esperança de um povo: os
jovens, porque eles carregam a força, o sonho, a esperança do futuro, e os idosos, porque eles
são a memória, a sabedoria de um povo.

1. Aparecida: chave de leitura para a missão da Igreja

Em Aparecida, Deus ofereceu ao Brasil a sua própria Mãe. Mas, em Aparecida, Deus
deu também uma lição sobre Si mesmo, sobre o seu modo de ser e agir. Uma lição sobre a
humildade que pertence a Deus como traço essencial e que está no DNA de Deus. Há algo de
147

perene para aprender sobre Deus e sobre a Igreja, em Aparecida; um ensinamento, que nem a
Igreja no Brasil nem o próprio Brasil devem esquecer.
No início do evento que é Aparecida, está a busca dos pescadores pobres. Tanta fome
e poucos recursos. As pessoas sempre precisam de pão. Os homens partem sempre das suas
carências, mesmo hoje.
Possuem um barco frágil, inadequado; têm redes decadentes, talvez mesmo
danificadas, insuficientes.
Primeiro, há a labuta, talvez o cansaço, pela pesca, mas o resultado é escasso: um
falimento, um insucesso. Apesar dos esforços, as redes estão vazias.
Depois, quando foi da vontade de Deus, comparece Ele mesmo no seu Mistério. As
águas são profundas e, todavia, encerram sempre a possibilidade de Deus; e Ele chegou de
surpresa, quem sabe quando já não o esperávamos. A paciência dos que esperam por Ele é
sempre posta à prova. E Deus chegou de uma maneira nova, porque Deus é surpresa: uma
imagem de barro frágil, escurecida pelas águas do rio, envelhecida também pelo tempo. Deus
entra sempre nas vestes da pequenez.
Veem então a imagem da Imaculada Conceição. Primeiro o corpo, depois a cabeça, em
seguida a unificação de corpo e cabeça: a unidade. Aquilo que estava quebrado retoma a
unidade. O Brasil colonial estava dividido pelo muro vergonhoso da escravatura. Nossa
Senhora Aparecida se apresenta com a face negra, primeiro dividida mas depois unida, nas
mãos dos pescadores.
Há aqui um ensinamento que Deus quer nos oferecer. Sua beleza refletida na Mãe,
concebida sem pecado original, emerge da obscuridade do rio. Em Aparecida, logo desde o
início, Deus dá uma mensagem de recomposição do que está fraturado, de compactação do
que está dividido. Muros, abismos, distâncias ainda hoje existentes estão destinados a
desaparecer. A Igreja não pode descurar esta lição: ser instrumento de reconciliação.
Os pescadores não desprezam o mistério encontrado no rio, embora seja um mistério
que aparece incompleto. Não jogam fora os pedaços do mistério. Esperam a plenitude. E esta
não demora a chegar. Há aqui algo de sabedoria que devemos aprender. Há pedaços de um
mistério, como partes de um mosaico, que vamos encontrando. Nós queremos ver muito
rápido a totalidade; e Deus, pelo contrário, Se faz ver pouco a pouco. Também a Igreja deve
aprender esta expectativa.
Depois, os pescadores trazem para casa o mistério. O povo simples tem sempre espaço
para albergar o mistério. Talvez nós tenhamos reduzido a nossa exposição do mistério a uma
148

explicação racional; no povo, pelo contrário, o mistério entra pelo coração. Na casa dos
pobres, Deus encontra sempre lugar.
Os pescadores agasalham: revestem o mistério da Virgem pescada, como se Ela
tivesse frio e precisasse ser aquecida. Deus pede para ficar abrigado na parte mais quente de
nós mesmos: o coração. Depois é Deus que irradia o calor de que precisamos, mas primeiro
entra com o subterfúgio de quem mendiga. Os pescadores cobrem o mistério da Virgem com
o manto pobre da sua fé. Chamam os vizinhos para verem a beleza encontrada; eles se reúnem
à volta dela; contam as suas penas em sua presença e lhe confiam as suas causas. Permitem
assim que possam implementar-se as intenções de Deus: uma graça, depois a outra; uma graça
que abre para outra; uma graça que prepara outra. Gradualmente Deus vai desdobrando a
humildade misteriosa de sua força.
Há muito para aprender nessa atitude dos pescadores. Uma Igreja que dá espaço ao
mistério de Deus; uma Igreja que alberga de tal modo em si mesma esse mistério, que ele
possa encantar as pessoas, atraí-las. Somente a beleza de Deus pode atrair. O caminho de
Deus é o encanto que atrai. Deus faz-se levar para casa. Ele desperta no homem o desejo de
guardá-lo em sua própria vida, na própria casa, em seu coração. Ele desperta em nós o desejo
de chamar os vizinhos, para dar-lhes a conhecer a sua beleza. A missão nasce precisamente
dessa fascinação divina, dessa maravilha do encontro. Falamos de missão, de Igreja
missionária. Penso nos pescadores que chamam seus vizinhos para verem o mistério da
Virgem. Sem a simplicidade do seu comportamento, a nossa missão está fadada ao fracasso.
A Igreja tem sempre a necessidade urgente de não desaprender a lição de Aparecida;
não a pode esquecer. As redes da Igreja são frágeis, talvez remendadas; a barca da Igreja não
tem a força dos grandes transatlânticos que cruzam os oceanos. E, contudo, Deus quer se
manifestar justamente através dos nossos meios, meios pobres, porque é sempre Ele que está
agindo.
Queridos irmãos, o resultado do trabalho pastoral não assenta na riqueza dos recursos,
mas na criatividade do amor. Fazem falta certamente a tenacidade, a fadiga, o trabalho, o
planejamento, a organização, mas, antes de tudo, você deve saber que a força da Igreja não
reside nela própria, mas se esconde nas águas profundas de Deus, nas quais ela é chamada a
lançar as redes.
Outra lição que a Igreja deve sempre lembrar é que não pode afastar-se da
simplicidade; caso contrário, desaprende a linguagem do Mistério. E não só ela fica fora da
porta do Mistério, mas, obviamente, não consegue entrar naqueles que pretendem da Igreja
aquilo que não podem dar-se por si mesmos: Deus. Às vezes, perdemos aqueles que não nos
149

entendem, porque desaprendemos a simplicidade, inclusive importando de fora uma


racionalidade alheia ao nosso povo. Sem a gramática da simplicidade, a Igreja se priva das
condições que tornam possível «pescar» Deus nas águas profundas do seu Mistério.
Uma última lembrança: Aparecida surgiu em um lugar de cruzamento. A estrada que
ligava Rio, a capital, com São Paulo, a província empreendedora que estava nascendo, e
Minas Gerais, as minas muito cobiçadas pelas cortes europeias: uma encruzilhada do Brasil
colonial. Deus aparece nos cruzamentos. A Igreja no Brasil não pode esquecer esta vocação
inscrita em si mesma desde a sua primeira respiração: ser capaz de sístole e diástole, de
recolher e divulgar.
150

APÊNDICE 2 –
CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II POR OCASIÃO DO CENTENÁRIO
DA COROAÇÃO DE NOSSA SENHORA APARECIDA
151

CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II


POR OCASIÃO DO CENTENÁRIO DA COROAÇÃO
DE NOSSA SENHORA APARECIDA

Ao Venerável Irmão
RAYMUNDO DAMASCENO ASSIS
Arcebispo de Aparecida,
aos demais Irmãos no Episcopado
aos sacerdotes, religiosos, religiosas e fiéis
do Brasil:

1. Por ocasião do Centenário da Coroação de Nossa Senhora Aparecida, desejo unir-me


espiritualmente ao querido povo brasileiro para prestar minha homenagem à sua Rainha e
Padroeira, tendo decidido designar como meu Enviado Especial o Cardeal Eugênio de Araújo
Sales, a fim de presidir em meu nome aos ritos e celebrações desta significativa ocorrência no
Seu Santuário nacional, insigne testemunho da fé e devoção mariana nessa bendita Terra.

2. Há quase três séculos que a Virgem marcou um encontro singular com a gente brasileira
nesse lugar. As origens do Santuário estão ligadas à descoberta, por parte de três pescadores,
de uma pequenina imagem de Nossa Senhora, de cor escura e de rosto sorridente, que eles
viram emergir das águas, pescada na rede, com a qual puderam depois recolher uma pesca
muito abundante. Os três reconheceram no acontecimento um sinal da proteção especial da
Virgem. A partir daquele remoto setembro de 1717, cresce no povo um culto por Aquela que
começam a chamar simplesmente a «Aparecida».

Bem antes de 1717 e do extraordinário aparecimento, porém, já existia uma profunda devoção
pela Mãe de Jesus no coração dos cristãos do Brasil, que a herdaram dos portugueses mas lhe
dando, no correr dos anos, uma coloração, motivações e orientações próprias. O amor e a
devoção a Maria são um dos traços característicos da religiosidade do povo brasileiro.

3. A multidão imensa de pessoas, que acorre ao Santuário de sua Rainha e Padroeira, obedece
a um genuíno movimento da alma desse amado povo, cumpre um gesto profundamente
brasileiro, enchendo essa cidade do vale do Paraíba sobretudo de oração e de fé; de uma fé
simples mas que é, sem dúvida, o que deve ser a fé: uma busca de Deus, talvez desajeitada e
152

imperfeita, mas comovedoramente sincera, arraigada, capaz de sacrifícios, uma busca de Deus
através de Nossa Senhora. «Apareceu no céu um grande sinal; uma mulher vestida de sol,
com a lua debaixo dos pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. Estava grávida e
clamava com dores de parto» (Ap 12,1-2). A visão de S. João mostra-nos que Maria,
glorificada no Céu - Rainha coroada de estrelas -,continua a ser Mãe de todos os homens, dos
filhos e filhas de Deus e irmãos de Jesus Cristo, até o fim dos séculos. Na luz da glória divina,
Ela contempla todos e cada um de Seus filhos, em todos e cada um dos momentos da sua
existência.

4. No transcurso da história comovedora da imagem morena de sua Rainha e Mãe tão amada,
homens e mulheres de todas as condições e cultura a proclamaram «Soberana». Por isso, meu
venerável predecessor Pio X, sensibilizado com a solicitação dos filhos devotos da Virgem
Aparecida, coroou Nossa Senhora como Rainha do Brasil no ano de 1904. Este patrocínio de
Maria sobre uma Nação não é algo que acontece sem o concurso de Seus protegidos, mas
supõe seu livre consentimento, cada dia renovado; supõe que o peçam e se façam dignos dele,
o encarnando num compromisso de vida inspirado pelas certezas profundas e sólidas da fé.

A certeza de que Nossa Senhora, por um lado, Se encontra para sempre junto de Deus onde
advoga a nossa causa com tamanho poder, que foi denominada «onipotência suplicante»; mas,
por outro, «é da nossa estirpe, verdadeira filha de Eva (...) e nossa verdadeira irmã, que
compartilhou plenamente, mulher humilde e pobre como foi, a nossa condição» (Paulo VI,
Marialis cultus, 56). Teve uma pátria, pertenceu a um povo, aos quais amou e pelos quais
sofreu; podemos pensar que Ela experimentou essa realidade humana que é o patriotismo,
conhece seu sentido mais profundo. Tendo levado consigo estes valores para o Céu, Ela sabe
o que pedir junto de Deus melhor do que o fizera Ester ao rei Assuero: «Só te peço, ó rei, que
salves o meu povo» (cf. Est 7, 3).

A certeza de que o patrocínio de Maria, sob o seu título de Aparecida, inclui da parte de Seus
súbditos um compromisso de se darem as mãos uns aos outros, no esforço para que o País se
converta naquilo mesmo que Maria quer que seja, uma vez que Ela o adoptou como Seu: uma
terra onde impere a hospitalidade, a cordialidade, a capacidade de dialogar, de «compor»,
mais do que «opor».
153

5. No plano religioso que toca de mais perto a vós, venerados Bispos, é importante o
compromisso de assumir com verdadeiro espírito pastoral a imemorial devoção mariana de
vosso povo: procurar compreendê-la em seu enraizamento mais profundo, desvendar seus
valores, captar seu significado, acolhê-la, purificando-a e orientando-a. Muito depende da
atitude dos Pastores e agentes de pastoral que essa devoção seja para o povo um caminho para
o encontro, na fé, com Deus em Jesus Cristo.

Ajudem, pois, os fiéis a viverem sua devoção mariana como um claro e corajoso testemunho
de amor a Cristo, que manifeste a identidade pessoal e comunitária dos católicos, contra o
perigo do secularismo e do consumismo, e ao mesmo tempo favoreça nas famílias a prática
das virtudes cristãs. De igual modo, esta devoção ajudará a consolidar os vínculos de
comunhão com os Pastores da Igreja de Cristo, enfrentando a desagregação da fé, fomentada
tantas vezes pelo proselitismo das seitas. A história ensina que Maria é a verdadeira
salvaguarda da fé; em cada crise, a Igreja reúne-se à volta d'Ela. Só assim os discípulos do
Senhor poderão ser para os outros sal da terra a luz do mundo (cf. Mt5, 13.14).

6. «Feliz do povo, cujo Senhor é Deus, cuja Rainha é a Mãe de Deus!» Assim proclamava o
Papa Pio XII e assim poderá exclamar essa dileta arquidiocese de Aparecida, se devidamente
souber voltar os olhos para Aquela que gerou, por obra do Espírito Santo, o Verbo feito carne.
É que a missão essencial da Igreja consiste precisamente em fazer nascer Cristo no coração
dos fiéis (cf. Lumen gentium, 65) pela ação do mesmo Espírito Santo, através da
evangelização.

Queridos Irmãos e Irmãs, confio todas e cada uma das Comunidades eclesiais brasileiras à
proteção de Nossa Senhora Aparecida, para que permaneçam fiéis na pureza da fé,
corroboradas na esperança, generosas na caridade. A Ela suplico que lhes infunda um maior
dinamismo, fazendo de cada cristão um verdadeiro apóstolo. Como demonstração do meu
grande afeto, concedo-vos a implorada Bênção Apostólica.

Castelgandolfo, 17 de julho - memória do Bv. Inácio de Azevedo e Companheiros Mártires do


Brasil - de 2004.

PAPA JOÃO PAULO II

Вам также может понравиться