base de cálculo os fatores referidos à autoproteção da vítima, é o próximo pro-
blema, ao qual se deve futuramente dedicar mais atenção. 1. A opção do vigente Código Penal Português por um conceito de dolo não significa que seja descabido continuar discutindo sobre o conceito. 2. Dolo é, ab initio, conhecimento, porque só o conhecimento gera domínio, e só o domínio fornece razões suficientemente fortes para fundamentar o tra- tamento mais severo dispensado aos casos de dolo. Estas razões são a maior necessidade de prevenção diante dos riscos que se dominam e a maior res- ponsabilidade do autor por aquilo que ele realiza sob seu domínio. 3. Na cegueira diante dos fatos não há dolo, porque não há domínio. 4. O dolo é só conhecimento, e não vontade, porque a vontade em nada altera o domínio. A presença da vontade não é suficiente para fundamentar um dolo sem domínio, sua ausência tampouco pode excluir o dolo quando há domínio. 5. Não se enxerga até a presente data qualquer fundamento convincente para exigir uma vontade no conceito de dolo. 6. Dolo é conhecimento tal que daí derive o domínio sobre o que o autor está a realizar. Há uma única forma de dolo, não devendo diferenciar-se dolo direto (de 1.° ou 2.° grau) e dolo eventual. 7. O caminho a seguir é aprimorar a teoria da probabilidade. LUÍS GRECO 903 68 Souza Santos, O dolo e a culpa no direito penal, Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado (UCAM), 2006, p. 100, 133 e s.
Dolo Sem Vontade
LUÍS GRECO* O Código Penal Português, diversamente do de outros países, como a Alemanha, a Espanha e a Argentina, mas similar ao do Brasil, define de modo expresso o conceito de dolo. A lei portuguesa chega ao ponto de determinar o conteúdo das três reconhecidas formas de dolo: há dolo direto de primeiro grau, se o agente, “representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar” (Art. 14.° I); dolo direto de segundo grau, se o agente “representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência neces- sária da sua conduta” (Ar t. 14.° II); e, por fim, dolo eventual, se “a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, … o agente actuar conformando- se com aquela realização” (Art. 14.° III). Noutras circunstâncias, a existência de semelhante dispositivo legal faria de um artigo intitulado “dolo sem vontade” um empreendimento duvidoso. Se for ver- dade que “onde o legislador fala, a filosofia cala”,1 parece não haver mais qual- quer lugar para filosofarmos sobre o conceito de dolo. Felizmente, o presente estudo é dedicado ao Prof. José de Sousa e Brito, um estudioso cuja curiosidade nunca se deixou tolher pelas últimas três palavras do legislador. 2 Isso nos permite supor sua concordância com a premissa de que partiremos, a saber, de que a dogmática do direito penal é ciência jurídica, e não mero saber legal — Rechts- wissenschaft e não apenas Gesetzeskunde. De uma tal perspectiva, a decisão do legislador não significa o fim, e sim o início da filosofia, cuja tarefa passa a ser *Doutor em Direito pela Universidade Ludwig Maximilan, Munique; LL.M. pela mesma instituição; wis- senschaftlicher Assistent junto à cátedra do Prof. Dr. h. c. mult. Bernd Schünemann; bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1 Feuerbach, Über Philosophie und Empirie in ihrem Verhältnis zur positiven Rechtswissenschaft, in: Lüderssen (coord.), Theorie der Erfahrung in der Rechtswissenschaft des 19. Jahrhunderts, Frankfurt a. M., 1968, (orig. 1804), p. 61 e ss. (p. 93). 2 Vide seus estudos, dedicados a temas predominantemente filosóficos: Praktische Vernunft und Utilitaris- mus, in: ARSP Beiheft 51 (1993), p. 87 e ss.; Die gerechte Begrenzung der Gerechtigkeit im Recht, in: Dem- merling/Rentsch (coords.), Die Gegenwart der Gerechtigkeit, Berlin, 1995, p. 29 e ss.; A questão dos funda- mentos da ética em Bentham e em Mill, in: — Revista Iberoamericana de Estudios Utilitaristas XII (2003), p. 1 e ss.; Arthur Kaufmanns Gerechtigkeitslehre und die Grundlagen der Ethik, in: ARSP Beiheft 100 (2005), p. 25 e ss.; Der praktische Syllogismus im Recht und in der Ethik, in: Schünemann et alii (coords.), Gerechtigkeitswissenschaft, Berlin, 2005, p. 77 e ss. descobrir se essa decisão está arrimada apenas na autoritas do poder de quem decide, ou também na veritas das razões que a justificam. Ou seja, ainda que o legislador português tenha decidido qual o conteúdo do dolo, aos olhos da ciên- cia jurídica permanece em aberto a questão quanto a se essa decisão é ou não cor- reta, se ela está ou não justificada. atributivo-normativo O legislador português não está sozinho em supor que o dolo apresenta compo- nentes volitivas. Também a doutrina amplamente dominante entende o dolo como conhecimento e vontade de realizar o tipo objetivo.3 Como já desenvolvi noutra sede,4 tal parece uma visão simplificada das coisas. Ainda que se reconheça nos termos “intenção” ou “conformando-se com” (ar t. 14 I e III, Código Penal Português), “quis” ou “assumiu o risco” (ar t. 18 I Código Penal Brasileiro) uma conotação volitiva, há uma ambigüidade fundamental que nos permite questionar as certezas da postura dominante. Esta ambigüidade diz respeito à palavra vontade. Como demonstrou Puppe, a quem se filiou no Brasil H. Souza Santos,5 na discussão sobre o dolo, o termo vontade é empregado em dois sentidos um tanto diversos, que aqui serão caracterizados de forma bastante grosseira, é verdade.6 Por vezes, designa-se por vontade um estado mental, algo que ocorre literalmente na cabeça do autor, uma entidade empírica que pertence ao universo psíquico de alguém. A proposição “a vontade do autor estava dirigida 886 DOLO SEM VONTADE 3 Em Portugal Correia, Direito Criminal, Coimbra, 1963, p. 367, 368, 375; Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., Coimbra, 2007, 13.° cap. § 4 (p. 349); Pizarro Beleza, Direito Penal, 2.° vol., Lisboa, 1983, p. 180; na Alemanha, Lackner/Kühl, Strafgesetzbuch, 26ª ed., Munique, 2007, § 15 nm. 3 e ss.; Sternberg-Lieben, in: Schönke/Schröder, Strafgesetzbuch, 27ª ed., Munique, 2006, § 15 nm. 9 e ss.; Stratenwerth/Kuhlen, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 5ª ed., Köln/Berlin/München, 2004, § 8 nm. 61, 66; no Brasil, Bitencourt, Código Penal Comentado, São Paulo, 2002, p. 55; Cirino dos Santos, Direito Penal, Parte Geral, Curitiba, 2006, p. 132; Reale Jr., Instituições de Direito Penal, Parte Geral, vol. I, Rio de Janeiro, 2002, p. 219, 221; na Argentina Zaffaroni/Alagia/Slokar, Derecho Penal, Parte General, 2ª ed., Buenos Aires, 2002, p. 519. 4 Greco, Algumas observações introdutórias à “Distinção entre dolo e culpa”, de I. Puppe, em: Puppe, A dis- tinção entre dolo e culpa, trad. Greco, São Paulo, 2004, p. IX e ss. (p. XVI e ss.). 5 Puppe, A distinção…, p. 31 e ss.; H. Souza Santos, Problemas estruturais do conceito volitivo de dolo, em: Greco/Lobato (coords.), Temas de Direito Penal, Rio de Janeiro, 2008, p. 263 e ss. (268 e ss.). 6 A delimitação mais exata do sentido desses conceitos talvez seja a maior contribuição que a dogmática do dolo pode esperar da filosofia da linguagem e da mente. Para tentativas de recepção vide Kindhäuser, Der Vorsatz als Zurechnungskriterium, in: ZStW 86 (1984), p. 1 e ss. (5 e ss.); recentemente Bung, Wissen und Wollen im Strafrecht, Frankfurt a. M., 2009, p. 57 e ss., 133 e ss., que se apóia quase que exclusivamente em Davidson; e principalmente Stuckenberg, Vorüberlegungen zu Vorsatz und Irrtum im Völkerstrafrecht, Berlin, 2007, p. 174 e ss.; no Brasil Busato, Dolo e significado, em: Modernas tendências sobre o dolo em direito penal, Rio de Janeiro, 2008, p. 93 e ss. (p. 115 e ss.), com referências à doutrina espanhola. Isso não significa que se deva daí extrair mais do que um auxílio na precisão dos conceitos (assim também Stuckenberg, Vorüberle- gungen…, p. 168 nota 855) — cf. a crítica mais abaixo, item IV.