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Universidade Federal do Paraná

Reitor
Carlos Augusto Moreira Júnior

Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação


Maria Benigna Martinelli de Oliveira

Diretora do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes


Maria Tarcisa da Silva Bega

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Música


Rosane Cardoso de Araújo

Editora do DeArtes

Diretor
Rogério Budasz

Conselho Editorial
Álvaro Carlini
Beatriz Ilari
Norton Dudeque
Paulo Reis
Walter Lima Torres Neto
Zélia Chueke
anais do
simpósiodepesquisaemmúsica2006
simpemus3

rogério budasz
(organizador)

editora deartes | ufpr


curitiba | 2006
anais do
simpósiodepesquisaemmúsica2006
simpemus3

© 2006 os autores listados no sumário

Simpósio de Pesquisa em Música (3.:2006:Curitiba)


Simpósio de Pesquisa em Música: Anais / Organização Rogério Budasz
- Curitiba: DeArtes-UFPR, 2006.
xi, 287p. : il. ; 29 cm. x 21 cm.
ISBN 85-98826-10-8

1. Musicologia-Congressos-Brasil. 2. Música-Pesquisa.3-Música Popular


Brasileira.4-Música-Composição.5-Música-Análise.
I.Budasz, Rogério.II.Programa de Pós-Graduação em Música da
Universidade Federal do Paraná.II.Título.

CDD – 780.01

DeArtes UFPR
Editora do Departamento de Artes da
Universidade Federal do Paraná
Rua Coronel Dulcídio 638
80420-170 Curitiba PR
(41) 3222-6568
www.artes.ufpr.br

Printed in Brazil
2006
simpósiodepesquisaemmúsica2006

comitê organizador
| Rogério Budasz | Norton Dudeque | Álvaro Carlini |

comitê científico e editorial


Acácio Tadeu Piedade | UDESC
Álvaro Carlini | UFPR
Carlos Sandroni | UFPE
Elizabeth Travassos | UNIRIO
Norton Dudeque | UFPR
Paulo Castagna | UNESP
Rodolfo Coelho de Souza | USP
Rogério Budasz | UFPR
Rosane Cardoso de Araújo | UFPR
Roseane Yampolschi | UFPR

moderadores
| Acácio Tadeu Piedade | Álvaro Carlini | Maria Bernardete Castellán Póvoas |
| Maria Ignez Cruz Mello | Marcos Tadeu Holler | Maurício Dottori |
| Norton Dudeque | Rodolfo Coelho de Souza | Rogério Budasz |
| Rosane Cardoso de Mello | Roseane Yampolschi |

monitores
| Bernardo Grassi | Caio Nocko | Charlene Neotti | Daniella Gramani |
| Daniele Franco | Fernando Menon | João Marcelo Gomes | Lilian Nakahodo |
| Luís Bourscheidt |

apoio

realização
| sumário |

x | apresentação |

xi | programação |

| comunicações |

história

1 Pianolatria nacional: gênese e desenvolvimento


- Rita de Cássia Fucci Amato

7 A cantora Lapinha e a presença musical feminina no Brasil colonial e imperial


- Alberto José Vieira Pacheco, Adriana Giarola Kayama

13 SAFO NOVELLA: a voz da poeta grega reapropriada por Barbara Strozzi (Veneza, 1619 – 1677)
- Silvana Ruffier Scarinci

21 O mito da música nas atividades da Companhia de Jesus no Brasil colonial


- Marcos Tadeu Holler

27 Evidências evolucionistas na historiografia musical sobre os jesuítas


- Dalton Martins

cultura e sociedade | música popular

32 Políticas públicas para cultura e produção musical em Curitiba - 1971 a 1983


- Ulisses Quadros de Moraes

40 Música e identidade dekassegui


- Beatriz Senoi Ilari

48 Globalization and Brazilian jazz artists


- Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo

51 Juventude e seus referenciais rítmico-melódicos: estilos musicais


- Rosemyriam Cunha

56 Laurindo Almeida e o jazz de samba:


uma outra história sobre as origens da concepção harmônica da bossa nova
- Alexandre Francischini

63 Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical


- Acácio Tadeu de Camargo Piedade

69 Relações de gênero e musicologia: reflexões para uma análise do contexto brasileiro


- Maria Ignez Cruz Mello

75 Aspectos da oralidade na atual produção musical nordestina:


a relação palavra e música na obra de Elomar
- Nivea Lazaro dos Santos
estética

81 Os estilos e as idéias em Villa-Lobos


- José Ivo da Silva

88 A atualidade da estética musical de Adorno


- Igor Tadeu Baggio da Silva

análise

95 A Bar Form nas canções de Nepomuceno


- Rodolfo Coelho de Souza

105 La doble génesis del concepto de textura musical


- Pablo Fessel

113 Forma musical e referencialidade: uma análise comparativa entre


Mortuos Plango, Vivos Voco de Jonathan Harvey e Points de Fuite de Francis Dhomont
- Arthur Rinaldi e Edson Zampronha

118 Uma aproximação matemática para variações de agógica em frases:


Furtwängler e os scherzos de Beethoven
- Ricieri Carlini Zorzal

122 Dahlhaus e a análise de segunda ordem


- Antenor Ferreira Corrêa

128 O uso do cromatismo como gerador de unidade na mazurka op. 68 de Frédéric Chopin
- Mauricy Martin e Tarcísio Gomes Filho

133 Poucas Linhas de Ana Cristina de Silvio Ferraz:


a performance da clarineta e suas transformações em contexto eletroacústico
- Flávio Ferreira da Silva, Maurício Alves Loureiro, Sérgio Freire

139 Transformações e funções motívicas:


uma análise do enérgico - 1º movimento da Sonata Breve para piano de Oscar Lorenzo Fernandez
- Maria Bernardete Castelan Póvoas

performance

150 A preparação do ambiente da livre improvisação: antecedentes históricos,


as categorias do objeto sonoro e a escuta reduzida
- Rogério Luiz Moraes Costa

157 Emoção: a essência da expressividade na performance musical


- Marcia Kazue Kodama Higuchi

163 Estrelinhas brasileiras: um paralelo entre canções folclóricas brasileiras e internacionais


- Maria Ignês Scavone de Mello Teixeira

166 Significação musical: produções a partir do ‘fazer musical’ e de histórias de relação com a música
- Patrícia Wazlawick

173 A voz na arte e a sensualidade na expressão


- Lara Janek Babbar
tecnologia

178 O instrumentista interface


- Fabiana Moura Coelho

183 O papel das alturas numa abordagem composicional baseada em temporalidades musicais
- Ticiano Albuquerque de Carvalho Rocha

188 Atribuições de aspectos musicais nos efeitos sonoros


- André Luis Battaiola, Daniel Avilez

193 Gesto & interpretação mediada para marimba


- Cesar Adriano Traldi, Jônatas Manzolli

200 O processo de produção musical na indústria fonográfica:


questões técnicas e musicais envolvidas no processo de produção musical em estúdio
- Frederico Alberto Barbosa Macedo

206 Improvisação & interpretação mediada


- Cleber da Silveira Campos, Cesar Adriano Traldi, Jônatas Manzolli

212 Implementação de um visualizador algorítmico de notação musical microtonal para o


programa Pure Data
- Marcus Alessi Bittencourt

simpósio de alunos de graduação e iniciação científica

218 Schoenberg e o progresso: o projeto estético de Arnold Schoenberg segundo Theodor Adorno
- Valéria Muelas Bonafé, Marcos Branda Lacerda (orientador)

225 Razão e nostalgia: o lugar da música no pensamento moderno


- Enrique Valarelli Menezes

232 O que é (pode ser) música? uma análise fenomenológica das atitudes de escuta segundo
Pierre Schaeffer
- José Estevão Moreira, Rogério Costa (orientador)

239 Comentários sobre o choro atual


- Adriano Maraucci Réa, Acácio Tadeu de Camargo Piedade (orientador)

245 Acompanhamento instrumental do canto gregoriano: três níveis de desconfiguração


- Tadeu Paccola Moreno

249 Código Morse em música


- Samantha Batista

253 As obras de Alberto Nepomuceno compostas entre 1890 e 1894


- Igor Simões Correia, Norton Dudeque (orientador)

265 Análise de improvisações na música instrumental: em busca da retórica do jazz brasileiro


- Marina Beraldo Bastos, Acácio Tadeu Piedade (orientador)

272 Conservação e restauração de partituras: a problemática da coleção Renée Devrainne Frank de


música paranaense do Museu da Imagem e do Som de Curitiba
- Charlene Neotti Gouveia Machado

276 Música: linguagem formadora de identidades sociais


- Auro Sanson Moura
pôsteres

283 A aplicação de elementos modais nas aulas de música


- Luís Bourscheidt

283 Meus caros pianistas


- Raimundo Fortes Filho e Diana Santiago (orientadora)

283 Maracá: instrumento da feitiçaria da pajelança indígena à cura maranhense


- Cláudia Padilha

284 O Fino da Bossa e Zimbo Trio: uma perspectiva histórica e suas repercussões na
moderna música popular brasileira (1965 - 1067)
- Cristina Gomes Machado

286 Pequeno panorama utilização da viola e da rabeca no fandango dos litorais sul de
São Paulo e norte do Paraná
- Daniella da Cunha Gramani

| conferência |

287 Um objeto fugidio: voz e conhecimento musicológico


- Elizabeth Travassos
| apresentação |

A terceira edição do SIMPEMUS – Simpósio de Pesquisa em Música, realizado nos dias 4 e 5 de


novembro de 2006, coincide com a implantação do Programa de Pós-Graduação em Música da
Universidade Federal do Paraná. Antigo anseio de pesquisadores em música e áreas afins no
Estado do Paraná, o curso de Mestrado em Música atende a uma demanda por vários anos
reprimida e já iniciou o processo de seleção para a segunda turma, que inicia as aulas em março
de 2007. O Programa de Pós-Graduação em Música realiza agora o SIMPEMUS3, contando com
uma comissão científica e editorial formada por pesquisadores de várias instituições brasileiras.

O SIMPEMUS 3 permanece fiel às diretrizes que nortearam as edições anteriores,


constituindo-se em um fórum científico dedicado à discussão e reflexão de questões relativas às
áreas da história, criação, análise e interpretação musical. Dentre as áreas sugeridas para este
ano, destacam-se: 1. Musicologia, privilegiando abordagens históricas, culturais, sociais e
antropológicas da música, com ênfase no contexto nacional; 2. Teoria e análise musical,
enfocando a análise tradicional de obras do repertório canônico, bem como novos métodos de
análise da música popular; 3. Tecnologia musical, incluindo estudos sobre a interação entre
tecnologia e música, e priorizando áreas como música e computador, música e multimeios, e
música e cinema.

Para esta edição foram selecionados 50 trabalhos de pesquisadores oriundos de 14


instituições do Brasil (USP, UFMG, UNIRIO, UNESP, UFPR, UNICAMP, UDESC, UEM, UFPB, FAP,
PUC-PR, UFSC, EMM-SP, UFBA, UFF) e uma da Argentina (UNL). O número de trabalhos é pouco
superior ao do evento passado (47), mas contamos com mais comunicações orais e menos
pôsteres (apenas 5, contra 24 do SIMPEMUS2), o que exigiu a organização de sessões paralelas.

Em nome da comissão organizadora do SIMPEMUS3, agradeço a todos os pareceristas,


mediadores de sessões e alunos monitores, funcionários do DeArtes, e também à Fundação
Araucária, à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, à Coordenação do PPG-Música e ao
Departamento de Artes da UFPR. Sem o apoio destas pessoas e instituições, o SIMPEMUS3 jamais
teria sido realizado.

Rogério Budasz
Coordenador do SIMPEMUS3
| programação |

sábado 04/11 domingo 05/11

8:00 inscrições e boas vindas 9:00 – 12:00 sessão de estudantes


SALAS 1 e 2
9:00 abertura
12:00 almoço
10:30 – 12:00 comunicações
SALA 1 -HISTÓRIA 13:30 – 15:30 comunicações
SALA 1 - TECNOLOGIA
12:00 almoço SALA 2 - HISTÓRIA

13:30 – 15:30 comunicações 15:30 café


SALA 1 - MÚSICA POPULAR
SALA 2 - ESTÉTICA 16:00 – 18:00 comunicações
SALA 1 - CULTURA E SOCIEDADE
15:30 café SALA 2 - PERFORMANCE

16:00 – 18:30 comunicações 18:00 sessão de Pôsteres


SALA 1 - ANÁLISE
SALA 2 – PERFORMANCE / TECNOLOGIA 18:30 conferência
Profa. Dra. Elizabeth Travassos
20:00 jantar (por adesão)
20:00 encerramento
| comunicações |

Pianolatria nacional: gênese e desenvolvimento


Rita de Cássia Fucci Amato
Universidade Estadual Paulista / Faculdade de Música Carlos Gomes

Resumo
O presente artigo busca relatar o desenvolvimento da cultura musical e pianística no Brasil, desde suas primeiras
manifestações até a primeira metade do século XX: o desenvolvimento da música na corte, a criação do Conservatório
de Música do Rio de Janeiro e do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, a escola de Luigi Chiaffarelli e as
trajetórias de Guiomar Novaes e Magdalena Tagliaferro. O desenvolvimento da educação pianística no Brasil foi um
fator proeminente na criação de um novo padrão de ensino de música que repercutiu por décadas o esmerado
refinamento estético destas grandes pianistas, com a expansão de conservatórios e escolas de música altamente
especializadas.
Palavras-chave: Pesquisa histórica, memória musical, cultura pianística.

Introdução aproveitamento das aptidões musicais dos indígenas


A reconstrução histórica da cultura pianís- para os trabalhos de catequese: a facilidade desse
tica e musical busca enfocar alguns dos aspectos povo para aprender os cânticos dos autos (forma
mais relevantes do ponto de vista da cultura dramática originária do teatro medieval) e das
nacional e, ao mesmo tempo, ater-se a algumas celebrações das missas surpreendeu os próprios
práticas educativo-musicais que promoveram missionários.
novos padrões para a arte no Brasil. Neide Esperidião (2003) aponta que a
A partir da investigação, objetiva-se com- preocupação com o aprendizado musical nas escolas
preender como a cultura musical, especialmente de “cantar e tanger” estava intimamente
a divulgação da pianolatria brasileira dentro e relacionada ao trabalho de catequese e às
fora do país, contribuiu para formar uma nova necessidades musicais das celebrações dos ofícios:
configuração cultural nacional e, assim, incen- a música européia passou a dominar a música
tivar o estudo do piano em escolas especializadas nativa, dando mais um exemplo da preponderância
─ os conservatórios musicais. A atenção dada a da metrópole sobre a colônia e contribuindo para o
alguns aspectos educativo-musicais que emergi- descaminho da cultura indígena. Acrescentou-se a
ram durante o processo histórico nacional esse cenário a formação humanística dos jesuítas,
também se inserem nessa perspectiva de missionários que auxiliaram a coroa e a aristocracia
compreensão. nos seus interesses e aspirações.
O referencial metodológico adotado O surgimento dos primeiros centros musicais,
baseia-se em uma revisão bibliográfica de temas no Brasil do século XVI, esteve relacionado à ação
relativos à cultura musical nacional, coordenados educativa dos mestres de capela, função exercida
a fim de se obter uma reconstrução fiel do por padres e leigos (portugueses e brasileiros
passado musical brasileiro. natos), a qual se constitui em um fator de
fundamental relevância para o ensino musical
àquela época. O centro musical mais antigo foi a
A música no Brasil: do descobrimento ao século Bahia, onde, no ano de 1551, por Carta d’El Rey,
XVIII foram criados os cargos de chantre e de moço de
Várias manifestações artístico-musicais coro, na Sé de Salvador. O desenvolvimento do
ocorreram no Brasil desde o seu descobrimento: ensino musical esteve ligado a diversos padres-
em relação à música indígena, a referência mais músicos, devido à sede do episcopado estar
antiga encontra-se na Carta a El Rey Dom localizada na Bahia nesse período, à figura de
Manuel, de Pero Vaz de Caminha, com o Antonio Rodrigues Lisboa (considerado o patrono
comentário de que, após a pregação, os índios dos educadores musicais no Brasil) e, já no século
levantaram-se, tangeram corno e buzina e XVII, pela presença do padre João de Lima. Em
começaram a saltar e dançar. Com a chegada dos 1763, a Bahia perdeu sua posição de centro
jesuítas no Brasil (1549), ocorreu um
2 SIMPEMUS3

eclesiástico do Brasil com a transferência da corte – despontou como importante centro musical,
capital para o Rio de Janeiro. em uma época de significativo florescimento social
Minas Gerais foi outro centro significativo e cultural. O padre José Maurício Nunes Garcia foi
na vida musical do período colonial, cuja uma das figuras de maior destaque desse período,
produção musical da Escola de Compositores da ocupando a função de mestre de capela da Capela
Capitania Geral das Minas Gerais foi descoberta Real até a chegada do músico português Marcos
pelo musicólogo Curt Lange, que incorporou Portugal, que foi dominando a cena artística
novas fontes, fatos e documentos comprovando carioca. O padre José Maurício era mestre de
o dinamismo musical nessa região, com a música, compositor, regente, organista e, como
presença de músicos brasileiros natos − mestiços, educador musical, fundou um curso de música que
em sua grande maioria. Nessa época, o ensino da perdurou por aproximadamente vinte e oito anos,
música restringia-se a algumas iniciativas qualificando musicalmente algumas das figuras mais
particulares com os mestres de música em suas insignes do Rio de Janeiro: D. Pedro I, Francisco
residências. No interior destes “conservatórios Manuel da Silva e muitos outros.
privados” ou destas “escolas de música”, Faz-se relevante destacar que a vinda da
floresceram vários compositores e músicos missão francesa ao Brasil, por meio de solicitação
mestiços na Minas Gerais colonial. No final do do Conde da Barca, ministro de D. João, em 1816,
século XVIII, com o declínio da mineração, Minas concorreu para um rompimento dos padrões
foi vitimada pela decadência de suas atividades artísticos coloniais, influenciando de maneira
musicais e, no início do século XIX, o centro de categórica o desenrolar das artes brasileiras.
desenvolvimento artístico e musical passou a ser Devido a essas influências, já se esboçava um
o Rio de Janeiro. processo de laicização da música ainda na época de
Faz-se necessário reportar também as D. João VI, com o desenvolvimento da vida urbana.
atividades musicais realizadas no Pará, com um Entretanto, após o regresso de D. João a Portugal,
dos grandes músicos da catedral de Belém, o nível das atividades musicais sofreu um rápido
Lourenço Álvares Roxo de Potflix, que, em 1735, decrescendo: a sociedade fluminense com seus
criou uma escola de música para desenvolver ideais liberais possibilitou um crescimento no
aptidões vocais em meninos com o intuito de que processo de independência e, após esse
eles participassem no coro da catedral. acontecimento e o agravamento da situação
financeira do país, o declínio das atividades
No período colonial, São Paulo, por sua
musicais foi inevitável. A música sacra desgastou-se
vez, apresentou variações na expressividade
em relação à música profana, que se deflagrava
musical, atingindo o apogeu a partir de 1774,
pela nação. Desse modo, as atividades musicais que
com a importante presença do mestre de capela
se concentravam em comunidades sacras passaram
português André da Silva Gomes na nova Sé, o
a se transferir para os teatros. A iniciativa
qual havia vindo ao Brasil para organizar e dirigir
particular promovia uma educação musical elitista,
o coro da catedral. Ele deu uma contribuição
comumente importando professores e artistas
significativa ensinando música, inclusive para
estrangeiros.
crianças pobres, e criou obras importantes como
a Missa a 8 vozes e instrumentos, cujo Nesse momento de transição, com a
manuscrito foi descoberto por Régis Duprat. estagnação da produção musical nacional, surgiu o
gosto pela cultura pianística, reiniciando um novo
Destaca-se, portanto, que no Brasil
crescendo artístico. Após um período de fermata, a
colonial as possibilidades de aprendizado musical
música renasceu e difundiu-se por toda a nação. Na
estiveram ligadas primeiramente aos jesuítas;
capital fluminense, os pianos se tornaram ainda
depois com um mestre de solfa, nos seminários;
mais comuns, chegando até aos domicílios mais
posteriormente com um mestre de capela nas
modestos.
matrizes e catedrais; e, finalmente, com um
mestre de música independente. Nesse sentido,
Neide Esperidião (2003, p. 74) coloca que o O Conservatório de Música do Rio de Janeiro
ensino informal de música nas casas de famílias A criação do Conservatório de Música (1841)
abastadas foi uma tradição que se conservou até por Francisco Manuel da Silva (1795-1865), discípulo
o segundo Império. do compositor austríaco Sigismundo Neukomm e de
Marcos Portugal, foi uma contribuição ímpar para o
D. João VI e a música campo da educação musical, sistematizando a
estrutura pedagógica em sólidas bases. Vasco Mariz
Com a vinda de D. João VI para o Brasil
(2000) referenda que Francisco Manuel deve ser
(1808), a cidade do Rio de Janeiro – sede da
simpósio de pesquisa em música 2006 3
celebrado não somente pela composição do Hino Alberto Nepomuceno (1902-1903, 1906-1916),
Nacional, mas também pela intensa atividade Henrique Oswald (1903-1906), Luciano Gallet (1930-
que desenvolveu. Exemplo disso é a Sociedade 1931) e outros.
Beneficiente Musical por ele fundada, que
divulgou a música de 1833 a 1890. Essa
associação foi responsável por solicitar à
Assembléia Legislativa do Império a subvenção O piano em São Paulo
para a criação do Conservatório, apoiada por D. O segundo Império foi um momento particular
Pedro II. A concretização do projeto foi aprovada para a história do piano no Brasil com a vinda de
em 1841, mas tardou-se a realizar por falta de dois fundadores da virtuosidade pianística nacional:
fundos. Em 1948, após a realização de duas Artur Napoleão, que em 1878 fundou, associado a
loterias, seis docentes foram responsáveis pelo Leopoldo Miguez, uma casa de pianos e de músicas
início das aulas. Sete anos depois, os professores no Rio de Janeiro, e Luigi Chiaffarelli, o fundador
passaram a ser contratados por meio de da escola de piano em São Paulo.
concursos e os alunos mais destacados Na sociedade paulista, o piano só começou a
começaram a ser agraciados com viagens. Todo se tornar mais presente quando o café forneceu
esse processo foi encabeçado por Francisco recursos para sua importação. A questão cafeeira
Manuel, que, em gratidão ao imperador, foi bem posta por Ivan Ângelo (1998, p. 18): “os
dedicou-lhe um compêndio de música (MARIZ, negócios do café – abrir fazendas, plantar,
2000). exportar, financiar, beneficiar, comercializar -
Esse Conservatório, segundo Fernando de haviam mudado o estado, a capital, o trabalho e as
Azevedo (1971), passou por três fases: na cabeças”.
primeira fase (1841-55), foi autorizada a sua A valorização do piano, instrumento caro e
fundação por Francisco Manuel, mas apenas não-portátil, gerou novos hábitos sócio-culturais: o
começou a funcionar em 13 de agosto de 1848, surgimento de professores particulares (geral-
numa dependência do Museu Imperial e em mente imigrantes), de cursos, saraus, recitais de
conformidade com o decreto n°. 496 de 21 de piano, sociedades, lojas de música e a criação dos
janeiro de 1847. Conservou, porém, o caráter de conservatórios musicais.
instituição particular, reconhecida e A mulher neste início de século não tinha
subvencionada pelo governo. direito ao voto ou à participação política, e suas
Na segunda fase (1855-90), o Conservatório aptidões deveriam desenvolver-se apenas no que se
foi inteiramente reorganizado, passando de referisse a tarefas essencialmente domésticas:
instituição privada a instituição oficial, cozinha, bordados, crochês, familiaridade com a
incorporada à Academia Imperial de Belas-Artes. língua francesa e com a música, especialmente com
O Imperial Conservatório de Música continuou a execução pianística. A cultura paulistana
dirigido por Francisco Manuel até seu caminhou nos seus crescendi e diminuendi
falecimento (1865). Depois da proclamação da característicos de uma época de transição.
República, o velho Conservatório, desligado da A criação do Conservatório Dramático e
Academia de Belas-Artes, transformou-se no Musical de São Paulo, em 1906, inseriu-se exa-
Instituto Nacional de Música, com uma nova tamente na perspectiva cultural traçada por
organização, inspirada por Alfredo Beviláqua, Chiaffarelli e outros professores contemporâneos
José Rodrigues Barbosa e Leopoldo Miguez. O seus e ligados ao sonho de uma escola de música
Instituto Nacional de Música passou por nova consistente e paulistana.
reforma (decreto n°. 934, de 24 de outubro),
Luigi Chiaffarelli (1856-1923) nascera em uma
mas continuou a funcionar no mesmo local (Rua
família de músicos, na cidade italiana de Isernia;
Luís de Camões).
iniciara seus estudos sob a orientação de seu pai,
Na última fase (1890-1940), o Instituto foi dedicando-se intensamente ao estudo do piano, em
reestruturado em novas bases pela reforma Bologna com o prof. Gustavo Tofano, posterior-
Francisco Campos (decreto n°. 19.852, de 11 de mente transferindo-se para o Conservatório de
abril de 1931) e anexado à Universidade do Rio Stuttgart, na Alemanha, na classe do prof. Sigmund
de Janeiro, passando a denominar-se Escola Lebert. Chiaffarelli, segundo Maria Francisca
Nacional de Música, segundo a lei n°. 452, de 5 Junqueira (1982), optara pelo magistério e
de julho de 1937, que criou a Universidade do interrompera sua carreira de concertista, seguindo
Brasil. Este foi o período mais fecundo e para a Suíça, onde conhecera o casal Sebastiana e
brilhante dessa instituição. Foram seus diretores Francisco Paula Machado (fazendeiros de Rio Claro),
os grandes nomes: Leopoldo Miguez (1890-1902), que mais tarde convidaram-no para vir para o
4 SIMPEMUS3

Brasil, com o intuito de tê-lo como professor de Conservatoire National de Musique et de


seus filhos. Depois de permanecer em Rio Claro, Déclamation, em Paris, com bolsa de estudos do
decidira transferir-se para São Paulo. governo paulista. O governador nessa época era
A atividade musical que Chiaffarelli Manuel Joaquim de Albuquerque Lins (1908-1912),
desenvolveu em nosso país durante quase que contribuiu significativamente para o êxito da
quarenta anos rendeu-lhe frutos de mérito talentosa menina. A petite Novaès incorporou-se ao
nacional e internacional: transformou São Paulo mundo musical parisiense: o público francês pôde
no centro musical mais adiantado do Brasil e ouvi-la em 1911, durante um recital na Sala Érard,
desenvolveu o talento artístico de Guiomar o qual se precedeu ao término do seu curso de
Novaes, que, ingressando no Conservatório de piano. Ao concluir seus estudos no Conservatório de
Paris, já tinha as suas bases teóricas e práticas Paris, no mesmo ano, a pianista foi agraciada com o
estabelecidas pelo grande mestre italiano. Maria Primeiro Prêmio. A partir do ano seguinte, ela já
Stella Orsini (1988) lembra que o insigne era uma artista consagrada e uma intérprete
professor pôde, com o seu talento e sua intuição, brilhante.
realizar uma das mais louváveis trajetórias de O encadeamento histórico das figuras de
educador musical no Brasil, já que, segundo ele, Chiaffarelli e Novaes deu-se pela expressiva e
os elementos musicais do país eram tão vastos rigorosa atuação do mestre italiano, pela criação do
como a riqueza de sua fauna e flora e a terra Conservatório do Dramático e Musical de São Paulo
brasileira era o enfant prodige latino-americano. e seu modelo francês. O Dramático e Musical teve,
Pianistas de porte magnífico foram por portanto, inspiração no Conservatório de Paris,
ele formados: Antonieta Rudge, as irmãs Alice, fundado em 1795 e considerado uma das principais
Victoria e Antonieta Serva, Maria Edul Tapajós e escolas de música do mundo. Foram seus diretores:
Souza Lima são os mais relevantes exemplos. A Cherubini, Dubois, Fauré. Seus renomados
fundamentação da escola pianística de Luigi professores transformaram-no em gênesis da maior
pode ser vista sob seis aspectos, segundo Orsini parte da música francesa moderna: Berlioz,
(1988), baseada nas palestras do próprio mestre: Gounod, Frank, Saint-Saëns, Debussy, Ravel, Cortot
o profundo respeito que cada aluno deveria ter (LEITE, 1999).
frente aos progressos de seus colegas era o
princípio da escola de música e caracterizava o A Sociedade de Cultura Artística
restante; em segundo lugar, a importância de
Posterior ao surgimento de Chiaffarelli e
fazer bem tudo o que o aluno pretendesse
Guiomar Novaes, mas pertencentes à mesma esfera
estudar; como terceiro aspecto, ressaltava-se a
artística borbulhante, exuberante e criativa da
necessidade de querer aprender cada vez mais,
cidade de São Paulo, fundou-se a Sociedade de
de progredir e, sobretudo, não esmorecer diante
Cultura Artística, em 1912.
das dificuldades.
O primeiro sarau da Sociedade realizou-se no
salão do Conservatório Dramático e Musical, em 26
Guiomar Novaes de setembro de 1912, com uma palestra sobre
A escola de piano de Chiaffarelli burilou Raimundo Corrêa e um concerto organizado e
um dos maiores talentos nacionais: Guiomar dirigido pelo maestro João Gomes de Araújo. No
Novaes, que está inevitavelmente vinculada à entanto, essa triunfante noite não protegeu a
tradição musical de São Paulo. É importante Sociedade de sérios problemas que assolaram seu
destacar que, em 1902, aos oito anos de idade, o encaminhamento nos anos de 1913/14. Um ano
nome de Guiomar era associado ao de Luigi mais fecundo, entretanto, foi o de 1915, quando foi
Chiaffarelli, seu exímio professor do promovido um concerto com uma orquestra
Conservatório Dramático e Musical. Mário de integrada por oitenta professores de musica, sob a
Andrade era da opinião de que certamente não regência do maestro Francisco Braga, autor do Hino
havia sido Chiaffarelli quem produzira a à Bandeira.
genialidade intrínseca de Guiomar, no entanto, Momentos difíceis devido à Grande Guerra
reconheceu que a vinda desse professor italiano refletiram-se no Brasil, pois, em 1916, terceiro ano
possibilitou a “floração magnífica com que a do conflito, não se encontravam soluções para
escola de piano de Cafelândia ganhou várias findá-lo. São Paulo diminuiu seu ritmo de
maratonas na América” (ORSINI, 1988, p. 109- crescimento e o café, taxado como supérfluo nos
10). Estados Unidos, perdeu mercado. As iniciativas
A carreira de Guiomar deu um salto foram paralisadas sob a imposição de Wenceslau
internacional no ano de 1909, ao ser admitida no Brás e a produção tornou-se cada vez mais de
simpósio de pesquisa em música 2006 5
subsistência interna, ignorando as importações: lá. Conviveu com celebridades musicais francesas
as indústrias têxteis e calçadistas paulistas abas- como Fauré, Cortot, Debussy, Ravel e outros mais.
teciam os países aliados e ainda conseguiam Alfred Cortot, seu professor, foi, no entanto, a
prosperar; a ascensão cultural resistia, sendo grande e decisiva influência que ela recebeu em
originada pelos músicos e intelectuais, como bem Paris, conclusão elaborada pela própria Magda.
comenta Ivan Ângelo (1998). Leite (1999, p. 33) relembra que, em suas
Passados os primeiros anos da Sociedade, memórias, a pianista comenta que Cortot dava mais
agora era moda ser sócio e tinha-se prestígio por ênfase ao ensino técnico, crendo que ela detinha
pertencer a tão restrita associação. Concertos competência para obter êxito nesse trabalho; o
internacionais, nacionais e conferências deram professor revelava os segredos da interpretação, da
continuidade aos eventos da Cultura: na harmonia e das vibrações sonoras, completando
primavera de 1919, foi a vez de Guiomar Novaes suas aulas com exemplos musicais, quando “tudo se
realizar um concerto no Theatro Municipal para iluminava, e ele nos tornava mais inteligentes”, nas
os seus sócios. Aos dezessete anos de idade, ela palavras de Magdalena Tagliaferro (citada por
já havia dado recitais em Paris, em Londres, na LEITE, 1999, p. 33).
Suíça e na Alemanha. Esteve presente ao evento Um momento particular da carreira de
o maestro Chiaffarelli, que, aos 63 anos de Tagliaferro foi quando, em 1937, tornou-se profes-
idade, estava fulgurante pela apresentação de sora catedrática do Conservatório Nacional de
sua aluna, que, desde o 7 anos, desfrutara de Paris, sucedendo a Isidore Philipp. Esse novo
seus melhores ensinamentos. Ele ainda lecionava trabalho fez com que ela passasse a refletir sobre
piano no Conservatório Dramático e Musical e em sua performance e colaborasse para o desen-
aulas particulares e atuava como solista e volvimento de uma escola de piano com forte rigor
maestro em concertos da Sociedade de Cultura pedagógico. Naquele momento, a pianista se
Artística e do Conservatório, editor de tornava uma educadora inovadora, que adotava um
partituras, sócio e conselheiro musical da Casa método natural de interpretação pianística,
Beethoven. conjugando os ensinamentos de Cortot às suas
ma colaboração de valor passou a ser experiências musicais. Após um ano de aulas com a
estabelecida, a partir de 1922, entre a Cultura e artista, quatorze alunos foram premiados no
Villa-Lobos, quer na direção de vários concertos concurso final (LEITE, 1999, p. 43).
sinfônicos e de câmara, quer como A vigorosa carreira internacional de Magda
instrumentista. Todos os concertos patrocinados incluiu quase todos os países do mundo e suas
pela Cultura apresentando as obras de Villa- principais orquestras e regentes. Foi enviada aos
Lobos contribuíram eficazmente para divulgar a Estados Unidos pelo governo francês em 1939, em
sua vasta obra. Alguns concertos foram uma missão pelo Ministério Des Affaires Étrangères
executados por Souza Lima, Antonieta Rudge e para divulgar as obras dos compositores franceses.
Guiomar Novaes. Em 1940, no início da guerra, ainda em missão nos
Sociedade de Cultura Artística também Estados Unidos, Tagliaferro resolveu voltar ao Brasil
atraiu para seu famoso rol de intérpretes a e deixar para trás seu cargo de professora no
pianista Magdalena Tagliaferro (1893-1986), que, Conservatório de Paris e seu casamento: aceitou o
dentre pianistas como Rubinstein, Arrau, convite do ministro da Educação do governo Vargas,
Horowitz, Cortot, Marguerite Long, se destacava Gustavo Capanema (LEITE, 1999).
como uma das mais completas representantes da Sua permanência no Brasil, por dez anos, foi
figura do moderno mestre de música, como um sucesso, tendo ela ministrado cursos públicos de
discursa Edson Leite (1999). interpretação pianística no Rio e em São Paulo.
Esse sucesso deveu-se à sua experiência nas
conferências da Université des Annales e,
Magdalena Tagliaferro
particularmente, à sua palestra Un Bouquet
Magdalena Tagliaferro nasceu em Petró- d’Auteurs Modernes, como ela própria afirma em
polis, filha de pais franceses que vieram passar suas memórias, citadas por Leite (1999).
algum tempo em nosso país, e arrebatou o
Os cursos de virtuosidade e interpretação
premier prix do Conservatório de Paris em 1907,
musical proporcionaram a jovens pianistas bra-
aos 14 anos de idade. Além deste importante
sileiros, alunos de professores residentes no Brasil e
prêmio, ganhou um imenso piano de cauda e o
impedidos pela guerra de cursarem os conser-
primeiro concerto na tradicional Sala Érard, em
vatórios europeus, o contato com a excepcional
Paris, onde eram realizados magníficos recitais
pianista e professora. A aula pública a fascinava
com “monstros” da música: Chopin havia tocado
tanto quanto sua performance num concerto,
6 SIMPEMUS3

porque nesses momentos ela tinha a Conservatório de Música do Rio de Janeiro tratou-se
oportunidade de receber tudo o que os alunos de um dos fatos mais relevantes para a educação
lhe ofereciam, segundo comenta. Magdalena musical e píanistica no Brasil, que se somou às
permanecia sempre atenta, buscando, de acordo chegadas de diversos professores europeus no
com a qualidade da execução do educando, tecer cenário artístico nacional. A criação do
comentários produtivos, fazendo conhecer o seu Conservatório Dramático e Musical de São Paulo
ponto de vista a respeito da interpretação de encarregou-se da difusão do piano por todo o
uma obra. estado. A escola de Luigi Chiaffarelli deu o primeiro
Tagliaferro interpretou muitos autores na- passo em direção à internacionalização do piano
cionais em primeira audição e se mostrava brasileiro, na medida em que dentre seus brilhantes
otimista com a música brasileira. Em suas discípulos formou a pianista Guiomar Novaes,
declarações solicitava que os compositores nunca desbravadora brasileira nas terras norte-
esquecessem da riqueza e da beleza de nosso americanas. Magdalena Tagliaferro, levando a
folclore. Foi uma das figuras mais pianolatria brasileira às terras européias e ao
representativas da música brasileira, levando-a Conservatório de Paris, desempenhou um
aos grandes salões de concertos e a um alto nível importante papel na história do piano no Brasil e
de reconhecimento na Europa. Sua pedagogia influenciou dezenas de intérpretes e professores.
criou uma nova escola pianística no Brasil e O desenvolvimento da cultura musical
desenvolveu discípulos que até hoje figuram possibilitou uma motivação a grande parte da
como grandes mestres do piano. Ela levou a população brasileira. Em especial, a divulgação do
pianolatria brasileira às terras européias e ao piano nacional e internacionalmente criou um novo
Conservatório de Paris, assumindo perspectivas desejo de busca pelo conhecimento musical.
pedagógicas que deram aos músicos nacionais um Motivo coadjuvante, a veiculação e o ensino
outro ritmo de desenvolvimento, uma outra de música (teoria musical, canto orfeônico, solfejo
esfera de compreensão do mundo musical, e outras noções básicas) nas escolas públicas e
adiantados no tempo e aperfeiçoados na privadas do Brasil, especialmente entre as décadas
estética, particularmente herdada dos mestres de 1940 e 1960, possibilitou aos seus discentes um
da escola parisiense. desenvolvimento cognitivo musical inicial, que, em
muitos casos, gerou impactos no desejo de
Considerações finais aperfeiçoamento em instituições especializadas,
como os conservatórios.
As primeiras manifestações musicais no
solo brasileiro se desenvolveram com a chegada Dessa forma, essas instituições educativo-
dos jesuítas e passaram a tomar um novo musicais puderam desenvolver-se durante décadas,
caminho com a chegada de D. João VI e com a divulgando o conhecimento musical e formando
produção do padre José Maurício. A criação do músicos destacados e amantes da música.

Referências
ÂNGELO, Ivan. 85 anos de cultura: História da Sociedade de Cultura Artística. São Paulo: Nobel, 1998.
AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. São Paulo: Melhoramentos, EDUSP, 1971.
ESPERIDIÃO, Neide. Conservatórios: Currículos e programas sob novas diretrizes. Dissertação (Mestrado em
Música) – Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2003.
JUNQUEIRA, Maria Francisca Paez. Escola de música de Luigi Chiaffarelli. Tese (Doutorado) – Universidade
Mackenzie São Paulo, São Paulo, 1982.
LEITE, Edson Roberto. Magdalena Tagliaferro: Testemunha de seu tempo. Tese (Doutorado) – Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
ORSINI, Maria Stella. Guiomar Novaes: Uma vida, uma obra. Tese (Livre-Docência) - Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1988.
A cantora Lapinha e a presença musical feminina no
Brasil colonial e imperial
Alberto José Vieira Pacheco, Adriana Giarola Kayama
Universidade Estadual de Campinas

Resumo
Esboço biográfico da cantora brasileira Joaquina Maria da Conceição da Lapa, ou Lapinha, à luz de documentos da
Biblioteca Musical do Paço Ducal de Vila Viçosa, periódicos portugueses e relatos de viajantes e cronistas no Brasil e em
Portugal de fins do século XVIII e início do século XIX.

Em finais do século XVIII e início do XIX, expressavam a admiração que causou a firmeza, e
viveu aquela que parece ter sido a primeira sonora flexibilidade da sua voz, reconhecida por
cantora brasileira a alcançar sucesso na Europa: uma das mais belas, e mais próprias para o
Teatro. Por tais testemunhos de aprovação deseja
Joaquina Maria da Conceição da Lapa, mais
ela por este meio mostrar ao Público o seu
conhecida por Lapinha. Segundo Ayres de
reconhecimento (Suplemento a Gazeta de Lisboa,
Andrade, não se tem notícia de outra cantora n. 5, 06/02/1795).
profissional naquela época. “É a única de quem a
História guardou o nome” (ANDRADE, 1967, v. 2,
p. 184). No mesmo mês do ano seguinte, a Gazeta
informa sobre sua apresentação na cidade do Porto,
Infelizmente, pouco se sabe sobre suas
onde teria feito dois concertos com grande sucesso:
origens. O local e a data de seu nascimento são
ignorados. Tampouco se sabe qual teria sido sua
formação musical e dramática. Na verdade, as Do porto avisam que no teatro daquela cidade
notícias mais antigas a seu respeito que se houvera a 29 de Dezembro um benefício a favor
da Célebre Cantora Joaquina Maria da Conceição
conhece são de quando a cantora já se
Lapinha, no qual todas as pessoas presentes
aventurava em Portugal. Trata-se de três notas
admiraram a melodia da sua voz, e a sua grande
da Gazeta de Lisboa que evidenciam seus execução, de sorte que ela a 3 de janeiro se viu
primeiros recitais públicos além-mar. A primeira, obrigada a voltar ao Teatro, prestando-se aos
de janeiro de 1795, anuncia um concerto da instantes rogos das pessoas, que por não caberem
brasileira no mais importante teatro português: ali da primeira vez a não tinham ouvido (Gazeta
de Lisboa, 02/02/1796).

A 24 do corrente mês fará no Real Teatro do S.


Carlos um Concerto de Musica vocal e Vale lembrar aqui que, baseados nestas
instrumental Joaquina Maria da conceição mesmas fontes, Ernesto Vieira (1900) e A. de
Lapinha, natural do Brasil, onde se fizeram Andrade (1967) afirmam que Lapinha teria feito os
famosos os seus talentos músicos, que têm já
dois concertos no Porto em 1794 e somente depois
sido admirados pelos melhores avaliadores
teria ido para Lisboa1. No entanto, as notas acima -
desta capital. Os bilhetes e chaves dos
camarotes se acharão em sua casa na rua dos transcritas a partir dos originais – não confirmam
Ourives da Prata na véspera, e na noite do esta versão dos fatos. Trata-se obviamente de
indicado dia no mesmo Teatro (Suplemento à algum engano cometido por Vieira e que acabou
Gazeta de Lisboa, n. II, 16/01/1795). sendo reproduzido por A. de Andrade. Por outro
lado, Francisco da Fonseca Benevides está em
concordância com os testemunhos da Gazeta de
Em fevereiro de 1795, o mesmo jornal
Lisboa:
publica uma breve crítica, aliás, bastante favorá-
vel, sobre esta apresentação:
a afamada brasileira, Joaquina Maria da Con-
ceição Lapinha, que possuía uma voz de grande
A 24 do mês passado houve no Teatro de S. extensão e extrema agilidade; cantou em um
Carlos desta cidade o maior concurso que alli concerto que deu em 24 de janeiro de 1795.
se tem visto, para ouvir a célebre cantora Posteriormente cantou também na cidade do
Americana Joaquina Maria da Conceição
Lapinha, a qual na harmoniosa execução do
1
seu canto excedeu a expectação de todos; A Enciclopédia da Música Brasileira, em seu verbete “Lapinha”,
foram gerais e muito repetidos os aplausos que comete o mesmo engano (ver MARCONDES, 2000).
8 SIMPEMUS3

Porto; temos notícia de ali haver agradado Nenhum de nós, antes de ouvir cantar a Catalani,
imensamente em dois concertos que deu no seria capaz de conceber que uma mulher pudesse
teatro, um em 29 de dezembro de 1795, e comparar-se em agilidade, em força e em
outro em 3 de janeiro de 1796 (BENEVIDES, suavidade a do célebre cantor castrado
1883, p. 48). Crescentini; e menos ainda que, em certos casos,
pudesse excedê-lo (RUDERS, 1981, p. 212).

Confusão cronológica desfeita, é bom


salientar que poucos anos antes a cantora não Isso em nada desmerece a intérprete, pois
teria tido permissão para realizar tais concertos. poucas cantoras na Europa poderiam ser páreo para
Como nos lembra Benevides (1883, p. 18), em um dos melhores castrati de todos os tempos. Além
1777, subiu ao trono D. Maria I e “não tardou disso, isso não diminui o sucesso que teve em
para que a devota rainha proibisse que Portugal, nem sua importância histórica como
representassem mulheres nos teatros”. No intérprete brasileira pioneira.
entanto, em 1792, com a sanidade mental da Lapinha parece ter dito uma participação
Rainha irremediavelmente perdida, o príncipe bastante ativa no meio musical lisboeta. Graças à
regente D. João assume o governo português e a ajuda inestimável do musicólogo David Cranmer,
dita proibição acaba sendo revogada. Ou seja, os pudemos ver na biblioteca do Palácio Ducal de Vila
concertos de Lapinha anunciados pela Gazeta de Viçosa muitas partituras manuscritas nas quais o
Lisboa em 1795 e 1796 só foram possíveis graças nome desta cantora aparece notado. Cranmer,
ao futuro D. João VI, monarca que tanto iria profundo conhecedor do acervo deste Palácio,
contribuir para a música brasileira durante sua afirma que este grupo de partituras seria o espólio
estada no Rio de Janeiro. Carl Israel Ruders, que da Lapinha, sem que fique claro, no entanto, por
esteve em Portugal entre 1798 e 1802, enumera que razões e de que forma “terá sido adquirido
as cantoras que foram contratadas logo após o pela família real e depositado no Paço Ducal”
príncipe regente ter liberado a presença de (CRANMER, 2005, p. 159). Um exemplo deste
mulheres nos palcos, entre elas podemos ver a repertório é um Demofoonte, atribuído a Marcos
Lapinha: Portugal no catálogo do referido palácio, mas que,
segundo Cranmer, é de autor desconhecido. Esta
A terceira atriz chama-se Joaquina Lapinha. É versão de Demofoonte – um pastiche de árias
natural do Brasil e filha de uma mulata, por emprestadas de óperas diversas – teria “sido
cujo motivo tem a pele bastante escura. Este ‘cozinhada’ por volta de 1780 para uso no Teatro
inconveniente, porém, remedia-se com do Bairro Alto, Lisboa, mas parece que o material
cosméticos. Fora disso, tem uma figura foi subseqüentemente adquirido por Joaquina
imponente, boa voz e muito sentimento Lapinha [que atuou no] Teatro do Salitre na
dramático (RUDERS, 1981, p. 93).
primeira década do século XIX” (CRANMER, 2005, p.
162). Outro exemplo é a farsa “Gatto por Lebre” de
No entanto, apesar de ter tido uma António José do Rego, de 1804. Como podemos ver
recepção tão boa em Portugal, o que nos na parte vocal do soprano, uma “Cavatina”, uma
confirma ter sido ela uma cantora de mérito, “Modinha Brasileira” e o dueto “Doce Prisão” são
não podemos perder de vista que ela não cantados pela cantora “Joaqna Lapinha”.
parecia ser páreo para Crescentini (1762 – Abaixo podemos ver um pequeno trecho da
1846), castrato italiano que dominava as cavatina:
produções da ópera portuguesa no período em
questão. Fato bem conhecido é que o reinado
de Crescentini só foi ameaçado por Angélica
Catalani:
A canção com o título “Modinha Brasileira” Nhonhozinho và se embora q´minha may acordou
é acompanhada de traversos, violinos, viola, e Ponha se aquelle cantinho q´dormindo jà là vou.
baixo, possuindo o seguinte texto:
Vejamos um pequeno trecho:

Podemos citar ainda outros exemplos do cantarão ela, e a senhora Joaquina Lapinha a
repertório da cantora, guardados no Palácio mais bem escolhida musica dos melhores autores,
Ducal de Vila Viçosa, e listados por data de e tocarão os senhores Lansaldi, e Lami concertos
de rebeca, e executar-se-ão em grande orquestra
composição:
as melhores overtures de Mozart. Vendem-se
bilhetes em sua casa N. 8 rua de S. José a preço de
De 1808: Coro em 18081, composto pelo Pe. José 4$000 reix (Gazeta do Rio de Janeiro, N. 113 –
Maurício Nunes Garcia, para o benefício de Quarta-feira 11 de outubro de 1809, grifo do
Lapinha original).

De 1809: O Triunfo da América e o drama eróico


Ulissea de 1809, ambos do Pe. José Maurício Daí se vê que ela também foi uma pioneira na
Nunes Garcia; e Le Donne Cambiate de Marcos execução de concertos públicos de música. Além
Portugal, todos com dedicatória. disso, segundo A. de Andrade, após seu retorno ao
Brasil, ela teria atuado freqüentemente “como
De 1811: Elogio de 17 dezembro de 1811 de
primeira atriz do Teatro Régio, de Manuel Luís. Seu
Marcos Portugal
grande sucesso era em Erícia ou A vestal, tragédia
Sem data: Temos a dedicatória na parte do 1º de Dubois Fontenelle, traduzida do francês pelo
soprano do Elogio da Senhora Rainha de Marcos poeta português Manuel de Barbosa du Bocage,
Portugal. diziam que expressamente para ela em 1805”
(ANDRADE, 1967, v. 2, p. 185).
As partituras datadas que citamos acima já A presença da corte portuguesa no Rio de
são repertório composto no Brasil. A cronologia Janeiro favoreceu bastante a produção musical
mostra que ela já estava no Rio em 1808, apesar carioca, o que acabou beneficiando as atividades
de não se saber ao certo quando esta cantora da Lapinha como intérprete, principalmente nos
teria retornado ao Brasil. Seja como for, nos primeiros anos após a chegada. Afinal, a corte
primeiros anos em que a corte portuguesa esteve trouxe consigo poucos músicos europeus: aqueles
no Brasil, Lapinha foi bem requisitada nos que viriam acabaram chegando com o passar dos
espetáculos da corte e da burguesia, como nos anos. No que diz respeito à prática do canto
revelam a obras citadas acima e o seguinte especificamente, os castrati - que seriam trazidos
anúncio que pudemos encontrar na Gazeta do Rio ao Rio por D. João e que se tornariam as maiores
de Janeiro: estrelas do cenário musical carioca - só começariam
a chegar no Rio de Janeiro a partir de 1810. Desta
Madama D´Aunay, cômica cantora novamente forma Lapinha pôde se beneficiar de um momento
chegada de Londres, em cujos teatros, assim que, além de propício para a produção musical no
como nos de Paris sempre apresentou, informa Rio de Janeiro, praticamente não apresentava
respeitosamente aos cidadãos desta corte, que intérpretes que pudessem ser seus concorrentes.
ela pertende (sic) dar um concerto de música
Podemos fazer agora uma cronologia de suas
vocal, e instrumental na casa N. 28 na Praia de
atividades musicais, listando-a pela data provável
D. Manoel, no dia 14 do corrente. Nele
das apresentações:
1
Temos uma edição moderna desta obra, assim como do
Triunfo da América e Ulissea, publicadas pela FUNARTE
(BERNARDES, 2002).
10 SIMPEMUS3

Sem datas – Parte solista em Le Donne Cambiate de (SILVA, 1993, p. 26). A historiadora nos esclarece
Marcos Portugal. que era considerado dever das moças aprenderem a
- Primeiro soprano do Elogio da Senhora Rainha de “arte de prender” seus maridos. Ou seja, elas
Marcos Portugal. precisavam entreter e encantar os maridos, ou eles
- Demofoonte de autor desconhecido. iriam procurar diversão em outra parte.
1804 – Participação na farsa Gatto por Lebre de Assim, pode não parecer tão surpreende que
António José do Rego, em Lisboa. uma mulher pudesse ter a formação musical da
1808 – Parte solista no Coro em 1808 do Pe. José Lapinha, mas daí até ser uma cantora profissional
Maurício. havia uma grande distância. Mesmo como ouvintes,
Sem data de estréia2 – Gênio de Portugal no drama somente na segunda metade do século XIX as
heróico Ulissea do Pe. José Maurício, composto em mulheres começam a freqüentar as platéias do
1809. teatro. Uma mulher com carreira artística não era
18103 - Parte solista em O Triunfo da América do Pe vista com bons olhos, e certamente teria uma re-
José Maurício, escrita em 1809. putação bastante baixa. Seria algo realmente im-
1811 – Carlotta em L´Oro non compra amore de pensável para as moças da “boa família” carioca.
Marcos Portugal, no Teatro Regio, no Rio de Janeiro4.
Mesmo os homens brasileiros músicos
- Parte solista no Elogio de 17 dezembro de 1811 de profissionais eram geralmente das classes mais
Marcos Portugal
baixas, pois, como nos lembra Vasco Mariz (2002, p.
1811(?) – A Verdade em A verdade triunfante de autor 10), o músico “era nivelado socialmente aos criados
indeterminado, no Real Theatro da Corte do Rio de ou empregados”. Muitos deles eram mulatos que
Janeiro5.
viam na música uma ótima forma de inclusão
social. Assim, a condição de Lapinha como mulata
Não se sabe quando ela faleceu. No de origem provavelmente humilde explica sua
entanto, Andrade nos lembra que “depois da opção pela carreira musical. Caso fosse de família
inauguração do Real Teatro de S. João, em 1813, abastada, certamente não teria atuado
não mais o seu nome aparece nos anúncios dos profissionalmente como cantora. Na verdade, a
espetáculos líricos” (ANDRADE, 1967, v. 2, p. participação da mulher no meio musical brasileiro
185). Desta forma, talvez tenha falecido por da época é pouco estudada e talvez até
volta de 1812; ou se retirado para outra cidade, subestimada. Vejamos, por exemplo, o texto de
ou país; ou, quem sabe, até abandonou a uma carta escrita no Rio de Janeiro por Luiz
carreira artística em favor de um bom Joaquim dos Santos Marrocos a seu pai, em sete de
casamento. Afinal, a profissão de cantora não outubro de 1812:
era algo muito bem visto pela sociedade
conservadora luso-brasileira. Marcos António Portugal está feito hum Lord com
Por outro lado, o fato de Lapinha ter sido fumos mui subidos. Por certa Aria, q. elle
mulata pode nos explicar muito sobre sua compoz, pa cantarem Trez Fidalgas em dia
carreira. É fato bem conhecido que as mulheres d´annos de outra, fez-lhe o Conselh.ro Joaqm Joze
brasileiras daquela época, apesar de ter pouco de Azevedo hữ magnífico presente, q consistia em
acesso à educação formal, costumavam receber 12 duzias de garrafas de vinho de Champagne
(cada garrafa do valor de 2$800 res), e 12 duzias
alguma instrução musical. Segundo a historiadora
das de vinho do Porto (MARROCOS, 1812)
Maria Beatriz Nizza da Silva, a instrução mais
comum que recebiam era de coser e bordar. No
entanto, a historiadora ressalta que a música foi Vemos então que mesmo como intérpretes
o elemento que mais prevaleceu na educação amadoras, as mulheres influenciavam na produção
feminina. “Muitas moças sabiam tocar algum musical dos compositores mais importantes. Balbi
instrumento e se conseguiam prender os maridos cita também algumas brasileiras que teriam sido
em casa faziam-no certamente com sos seus boas músicas:
talentos musicais e disposição para a dança”
Dona Mariana é uma senhora renomada no Rio de
2
Cleofe Person de Mattos especula que esta peça talvez
Janeiro por sua grande habilidade ao piano, ele
nunca tenha sido cantada no Rio de Janeiro (MATTOS, mesma compôs belas modinhas6 [grifo do autor,
1970, p. 327). BALBI, 1822, v.2, p. ccxij].
3
A data da apresentação é dada pelo Padre Perereca
(SANTOS, 1943).
6
4
Informação retirada de CARVALHAES (1910) e KÜHL (2002). “Dona Marianna est une dame renommée à Rio-Janeiro pour sa
grande force sur le piano; elle a même composé de jolies
5
Informação retirada de KÜHL (2002). modinhas”.
simpósio de pesquisa em música 2006 11

Senhora Gardiner, filha do médico Francisco


Antonio Pereira, e esposa do professor de
química da academia militar do Rio de Janeiro.
Ela toca piano quase tão bem quando dona
Mariana, e compôs também algumas belas
modinhas 7[BALBI, 1822, v. 2, p. ccxiij].

Ou seja, mesmo não sendo músicas de


profissão, algumas senhoras chegaram a compor
música no Rio de Janeiro com algum mérito. Fica
patente, portanto, a necessidade de estudos
mais aprofundados sobre estas intérpretes,
compositoras e consumidoras de música
impressa. Com este artigo se espera, além de
divulgar novos dados a respeito da pioneira
Lapinha, estimular pesquisas sobre a presença
feminina no meio musical do Brasil colonial e
imperial.

_______________________________
7
«Madame Gardiner, fille du médecin Francisco Antonio
Pereira, et épouse du professeur de chimie de l´académie
militaire de Rio-Janeiro. Elle touche du piano presque aussi
bien que Dona Marianna, et a composé aussi quelques jolies
modinhas.»

Este artigo é resultado parcial de nossa pesquisa de doutorado em música no Instituto de Artes da UNICAMP. Esta
pesquisa conta com o apoio financeiro da FAPESP.

Referências
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Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.
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BALBI, Adrien. Essai statistique sur le Royaume de Portugal et d’Algarve, comparé aux autres états de
l’Europe, et suivi d’un coup d’oeil sur l’état actuel des sciences, des lettres et des beaux-arts parmi les
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_____ Essai statistique sur le Royaume de Portugal et d’Algarve, comparé aux autres états de l’Europe, et
suivi d’un coup d’oeil sur l’état actuel des sciences, des lettres et des beaux-arts parmi les Portugais des
deux hémisphères. Paris: Rey e Gravier, 1822.

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Garcia, Sigismund Ritter von Neukomm, Marcos Portugal. Rio de Janeiro: Funarte, 2002.

CARVALHAES, Manoel Pereira Peixoto d´Almeida. Marcos Portugal na sua música dramática. Lisboa:
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VIEIRA, Ernesto. Diccionário biographico de musicos portuguezes: história e bibliographia da musica em


Portugual. Lisboa: Typographia Mattos Moreira & Pinheiro, 1900.
SAFO NOVELLA: a voz da poeta grega reapropriada por
Barbara Strozzi (Veneza, 1619 – 1677)
Silvana Ruffier Scarinci
Escola Municipal de Música de São Paulo

Resumo
O presente trabalho aproxima-se da obra da compositora seiscentista italiana Barbara Strozzi através de uma
ótica interdisciplinar e crítica, na qual sua música é vista como um texto que se entrelaça a outros textos,
buscando compreender significados culturais, sociais e ideológicos que permeiam toda sua obra. Sua forte
afirmação forse detta sarò Saffo novella (talvez chamada serei a nova Safo) - exórdio de toda sua produção –
leva-nos a compreender de que maneira sua obra ligava-se à voz da poeta grega.

O primeiro dos oito volumes de Cantatas de Longinus, Sobre o sublime2. Sua tradução para o
Barbara Strozzi inicia-se com um dueto para duas latim da Ode II circulou na Itália do século XVI,
sopranos e baixo-contínuo, no qual a assim como seu comentário a respeito do poema,
protagonista – mulher – canta: no qual elogia a capacidade de Safo em descrever
sensações físicas com total ausência de mediação.
Mercé di voi, mia fortunata stella, Não podemos concluir positivamente que
volo di Pindo in fra i beati cori
Barbara Strozzi conhecesse a tradução de
e coronata d’immortali allori
Robortello e os comentários de Longinus. Mas já há
forse detta sarò Saffo novella.
quase um século a sombra inspiradora de Safo
Graças a ti, minha estrela afortunada, fazia-se presente na vida intelectual veneziana e só
em vôo de Píndaro entre coros divinos assim a compositora poderia ter invocado o nome
e coroada com louros imortais, da poeta grega de forma tão contundente. Seu pai
talvez chamada serei - a nova Safo. revela intimidade com a poesia de Safo, ao citá-la,
na descrição de uma missa de Monteverdi em
Os textos do primeiro livro de Madrigais são memória do Grande Duque Cosimo II de’ Medici, em
de autoria do poeta e libretista Giulio Strozzi, abril de 1621: “As solenidades de luto começaram
pai elettivo1 de Barbara. É extremamente com uma queixosa sinfonia, capaz de arrancar
significativo o fato de Strozzi iniciar sua obra lágrimas, e ainda provocar pesar, imitando o antigo
anunciando-se como uma nova Safo, aquela a modo Mixolídio redescoberto por Safo na
quem o pai entrega uma voz, feminina, autora, Antigüidade” 3.
re-encarnando a voz da poeta grega. Sem poder Eis a seguir a Ode II traduzida para o
ignorar a força de tal exórdio, perguntamo-nos português4:
que significado esconde-se atrás da identificação
de Strozzi com Safo. Como se dá a recepção de Igual dos deuses esse homem
Safo na Itália seiscentista e que importância me parece: diante de ti
podemos inferir de sua forte afirmação? sentado, e tão próximo, ouve
À grandeza de Safo já se referia Platão, a doçura da tua voz,
que a chamava de “a décima musa.” O próprio
e o teu riso claro e solto. Pobre
Aristóteles dizia que ao passo que Homero era
de mim: o coração me bate
considerado “o poeta”, Safo seria “a poeta”, de assustado. Num ápice te vejo
“honrada pelo povo de Mytilene, apesar de ser e a voz me vai;
uma mulher”. As traduções das obras de Platão e
Aristóteles já circulavam na Itália desde o século
XVI, mas a verdadeira Safo é introduzida pela 2
Hoje sabe-se que a obra é de autor anônimo, porém, na época
primeira vez numa tradução de Francesco de Robortello, era conhecida como de autoria de Denys
Longinus (In: LEBÈGUE, H. Du sublime. Paris: Les Belles
Robortello (Veneza, 1554) do tratado de Lettres, 1997)
3
1
FABBRI, P. Monteverdi. Trad. Tim Carter. Cambridge University
Aos dez anos de idade, Barbara Strozzi é adotada pelo pai Press, 1994. Pg 179.
biológico, e este passa a se referir a ela como filha
4
elettiva. ALVIM, P. tr. Safo de Lesbos. São Paulo: Ars Poética, 1992.
14 SIMPEMUS3

a língua paralisa; um arrepio fizeram, mas raramente mantiveram sua identidade


de fogo, fugaz e fino, masculina. Ovídio criaria um novo gênero literário,
corre-me a carne; enevoados no qual inaugura a presença da heroína na
os olhos; tontos os ouvidos.
literatura, entregando a palavra à mulher. As suas
Heroídes consistem numa série de cartas de
O suor me toma, um tremor
me prende. Mais verde sou mulheres abandonadas a seus amantes: Penélope a
do que uma erva – e de mim Ulisses; Ariadne a Teseu; Dido a Enéias; Safo a
não me parece a morte longe… Fáon. Ovídio perpetuou uma imagem arquetípica do
amor feminino já criada por Safo e aqui
É estonteante a violência erótica do poema potencializada nas vozes de tantas heroínas. Em
e a descrição de sintomas físicos que Safo Ovídio, o herói, símbolo da lealdade masculina em
constrói. Comentadores da antiguidade referiam- relação à pátria e seus deveres civis, é
se ao poema como um texto de diagnóstico paradoxalmente um homem incapaz de manter sua
médico: sintomas de amor, segundo Plutarco e lealdade em relação à mulher amada.
de medo, segundo Lucretius. Em Ovídio, a intensidade da dor traduz-se em
O poema cria um triângulo agudo: a todas as possíveis manifestações corporais. Sua Safo
persona poética que observa, em sofrimento, a entrega-se à dor física com a mesma veemência
moça e o homem que sentam juntos, numa cena com que a personagem da poeta grega entregava-se
de intimidade amorosa. O observador5 encontra- à violência de seu desejo: “não tive receio de ferir
se excluído da cena de amor, paralisado em seu meu peito nem de soltar gritos, arrancando meus
desejo e sofrimento devastador. A felicidade do cabelos, como uma mãe que vê ser levado para a
par força o observador a admitir sua própria pira fúnebre o corpo inanimado do filho querido
impotência, sua solidão e anseio frustrado. Safo que ela perdeu”7. As flutuações entre o desejo
inaugura uma tradição retomada por muitas furioso de vingança e a sintomatologia da dor física
outras autoras que lhe sucederam: o tema da do abandono estarão ainda presentes nos lamentos
exclusão, ou do abandono em seu sentido femininos do século XVII - podemos lembrar as
etimológico, o sentir-se banido da relação imprecações contra Teseu da Arianna de Rinucinni
amorosa6. A poesia feminina e o abandono contrapostas a súbitas contrações de
parecem intrinsecamente relacionados e arrependimento a que se entrega imediatamente.
inúmeras foram as mulheres que usaram o A poeta e (provável) cortesã Gaspara Stampa
mesmo motivo até os nossos dias: de Gaspara (1523-1554), cerca de cem anos antes de Barbara
Stampa a Sylvia Plath, de Mariana Alcoforado a Strozzi, era já reconhecida como “a nova Safo de
Emily Dickinson. A persona poética Safo oferece nossos dias, à altura dos gregos na língua toscana,
uma voz que suas sucessoras tomam emprestada, mais casta que ela, e muito mais bela”8. Desde seu
e seu poema torna-se um poema arquétipo primeiro poema reconhecemos uma ambição
feminino. A dor da perda transforma-se em força semelhante a Petrarca: instituir uma obra exemplar
criadora – a mulher assume-se autora no espaço da própria vida e do próprio amor. Ecoando
solitário do abandono. Neste sentido, o abandono Petrarca, Stampa abre sua Rime com idênticas
possui uma força extremamente libertadora: a palavras: Voi, ch’ascoltate... Trata-se de um texto
mulher que se vê banida, nada mais tem a no qual um autor adota as vozes de mulheres e cria
perder, e as leis do decoro que lhe impingem o um modelo do “feminino” sobre o qual autoras do
silêncio podem, enfim, ser quebradas. início do período moderno irão se basear. Já na
Não somente mulheres dedicaram sua epístola dedicatória de sua Rime, em despedida a
poesia ao tema do abandono: homens também o seu amante, Stampa alinha-se com a tradição do
abandono: “ao receber este pobre livreto, tu
poderás oferecer-me a cortesia de um simples
5
No poema original em grego não há nenhuma referência suspiro, o qual, de tão longe, poderá refrescar a
quanto ao gênero do/a observador/a. Tornou-se lugar memória de tua esquecida e abandonada Anaxilla.”
comum confundi-la com a própria Safo, criando assim uma 9
ligação não necessariamente verdadeira entre a poeta e o Estas linhas ecoam o arquétipo feminino criado
lesbianismo. Sem descartar esta possibilidade, prefiro
pensar que Safo fala da sensação do desejo e rejeição
muito além do gênero, justamente oferecendo a homens e 7
Idem.
mulheres uma voz que expresse essa sensualidade
8
extraordinária aliada à dor física do desejo não realizado. Na primeira edição póstuma da Rime de Gaspara Stampa
6
(1554), sua irmã, Cassandra, lhe dedica o moto.
A idéia de uma tradição do abandono na poesia a partir de
9
Safo é desenvolvida por LIPKING, em Abandoned Women Citado em: GASPARA, Selected Poems. Editado e traduzido por
and poetic tradition (The University of Chicago Press, Laura Anna Stortoni e Mary Prentice Lillie. New York: Italica
1988). Press, 1994.
simpósio de pesquisa em música 2006 15
por Ovídio: “Parte, afortunada carta, gritei, ela Ardia, chorava e cantava; ardo, choro e canto;
te estenderá depressa sua bela mão... que em chorarei, arderei, cantarei sempre
meu lugar, até lá, esta carta passe a noite (até que a Morte ou Fortuna ou o tempo lave
contigo” 10. Nas vozes de tantas heroínas, o o engenho, olhos, coração, estilo, fogo e pranto)
autor latino faz da epístola um meio de exercitar
uma voz que rompe o silêncio ao qual o Assim também a Safo de Ovídio proclamava a
abandono amoroso as forçou. A conquista de uma criação poética como resultado das lágrimas: Elegia
voz feminina realiza-se neste paradoxo: se por flebeli carmen (a elegia é uma poesia de lágrimas).
um lado o abandono as faz calar, é neste espaço A única solução para o apaziguamento da angústia
de interioridade silenciosa que surge o poder de provocada por tal dilema é a morte, que a tudo
uma voz própria, autora, realizando-se plena na igualaria: engenho, olhos, coração, estilo, fogo e
carta amorosa - ou, na ópera barroca, no pranto.
monólogo feminino: il duol che sí mi punge / non
Em novo contexto, encontramos o antigo
mandasse in oblio, / e l’udisse ei, per cui pianti
traço sáfico no primeiro Soneto de Rime amorose
e cantai11... (a dor que assim me fere / porque
(1602) de Giovan Battista Marino, poeta que
não pode o olvido levar / que ele escutasse, por
influenciaria todas as esferas da cultura italiana em
quem eu chorei e cantei...).
sua época:
Ao seguir o modelo de Petrarca e seus
poemas dedicados a Laura, Stampa ao mesmo
tempo inverte o papel do autor petrarquista Proemio del Canzonieri
sobrepondo o modelo das Heroídes - uma mulher
Altri canti di Marte e di sua schier
escrevendo epístolas ao homem que a abandona.
gli arditi assaltie l’onorate imprese,
Trabalhando nesta tradição, através de seu la sanguigne vittorie e le contese,
temperamento apaixonado e tempestuoso, sua i trionfi di Morte orrida e fera.
naturalidade, Stampa a expande além dos limites
da linguagem delicada e contida de Petrarca. A I’ canto, Amor, da questa tua guerrera
paixão pelo Conde de Treviso, Collaltino Collalto, quant’ebbi a sostener mortali offese,
tem papel similar à paixão por Laura na poesia come un guardo mi vinse, un crin mi prese:
de Petrarca; ambos os autores usam os nomes istoria miserabile ma vera.
dos amantes metaforicamente: soave colle
Duo begli occhi fur l’armi onde traffitta
(suaves montes) ou l’aura serena (o ar/Laura
giacque, e di sangue in vece amaro pianto
serena). No Canzoniere, o tema principal é o do sparse lunga stagion l’anima afflitta.
amor por uma mulher chamada Laura, que, ao
contrário de Stampa, permanece intocada e Tu, per lo cui valor la palma e ‘l vanto
inacessível. Já Stampa relata sua vivência Ebbe di me la mia nemica invitta,
amorosa, na qual a descrição do amor físico é Se desti morte al cor, dà vita al canto.
declarada sem rodeios, sua paixão é “agressiva e
os versos que a expressam, diretos e vigorosos” Primeiro poema do Cancioneiro
12
. Gaspara Stampa, em todos os tempos - Que outros cantem sobre Marte e suas tropas,
passado, presente e futuro - cantará. Como Safo, sobre seus corajosos ataques e feitos gloriosos,
cantará sobre seu ardor e seu pranto, que se as vitórias sangrentas e os combates,
transformam no elemento fundador de sua os triunfos da Morte horrenda e feroz.
poesia:
Eu canto, Amor, sobre tua guerreira
de quem suportei mortais ataques,
Arsi, piansi, cantai; piango, ardo e canto; e sobre um olhar que me venceu, e como suas
melenas
piangerò, arderò, canterò sempre
história infeliz mas verdadeira me prenderam:
(fin che Morte o Fortuna o tempo stempre
a l’ingengo, occhi e cor, stil, foco e pianto) Dois belos olhos foram as armas, onde trespassada
jaz a alma aflita, e ao invés de sangue,
meu pranto amargo corre, por longo tempo.

10
Tu, por cujo valor as palmas e o orgulho fez
OVÍDIO, Carta XVIII, de Leandro a Hero.
reinar sobre mim a invencível inimiga,
11
GASPARA S., Ibid., p. 57. Se deste a morte ao coração, dás vida ao canto.
12
PHILLIPPY, P. ‘Altera Dido’: the model of Ovid’s Heroides
in the Poems of Gaspara Stampa and Veronica Franco.
Italica, v. 69, n. 1 (spring 1992), p. 1-18.
16 SIMPEMUS3

Em Marino, a tópica do abandono gerando Ligada através do pai à Academia degli Incogniti,
música/poesia se expressa claramente no final na qual Marino era admirado como o maior poeta
epigramático do Soneto, na linha 14. Um daqueles tempos, Strozzi pode ser mais bem
epigrama - uma solução engenhosa que explica e compreendida ao percebermos o que está em jogo
cria um clímax - revela a solução do que se na obra do inventor da meraviglia. Com Marino
anunciou no início do poema: à colocação surge uma mudança decisiva na perspectiva
antitética de morte (canti de Marte) e amor (I’ sentimental, íntima, psicológica e humana da
canto, Amor) surge a única possibilidade de vida, poesia. Aspectos jocosos e lúdicos permeiam a
a do canto poético, que se opõe à morte do poética marinista em oposição à antiga gravità e
coração. Alinhando-se com a tradição ovidiana, o mesmo piacevolezza de Petrarca. O grave e
poema declara uma poética que se opõe ao profundo tornou-se engenhoso, superficial, e
tradicional motivo épico: que outros cantem a aparente; o agradável e ameno tornou-se sensual,
guerra, aqui caberá cantar o amor. A guerreira coquete e sedutor. O autor maneirista não busca
de Marino distancia-se radicalmente da guerreira mais emocionar, mas provocar um prazer de ordem
de Tasso: Clorinda é uma personagem de intelectual; o espectador não “sente” determinadas
profundidade trágica, a guerreira de Marino é emoções, mas pensa e deleita-se quando
uma mulher anônima e sedutora que brinca com compreende o jogo da meraviglia.
um assunto anterior-mente tão grave, o amor. O último livro de Cantatas de Barbara Strozzi
Agora presenciamos, numa guinada jocosa e é repleto de exemplos desta ordem. Em seu
irônica, uma perda de subjetividade da L’Astratto, presenciamos o antigo topos do
personagem e da própria cena amorosa. A cena abandono, revestidos dos conceitos marinistas
passa a ser relatada pelo autor, que nos olha de traduzidos engenhosamente em sua música. Talvez
dentro do poema, com um meio sorriso, num a peça mais caracteristicamente maneirista de
gesto puramente teatral: istoria miserabile ma Strozzi, L’Astratto, justapõe a idéia da criação
vera. O amor transfigura-se em puro jogo poética/musical às dores do abandono amoroso:
erótico, no qual os sentidos substituem o Voglio sì, vo' cantar: forse cantando trovar pace
sentimento: a guerreira flerta com as armas de potessi al mio tormento! A roupagem musical que a
seu olhar, aprisiona com os próprios cabelos. A autora dá ao poema vai ainda além do que Marino
tendência na poesia marinista de transformar o fez em seu Proemio del Canzonieri. Estamos aqui
que era de âmbito interior em objeto exterior, assistindo a uma cena puramente teatral, na qual a
de usar imagens para acessar uma subjetividade presença de um eu narcíseo salta aos olhos
tão intelectualizada a ponto de se anular, fez (podemos dizer que salta mais aos olhos que aos
com que Marino fosse rotulado como “o poeta ouvidos, em função de seu forte apelo cênico). É
dos cinco sentidos”: o amor não era mais o possível pensar que L’Astratto constitui-se numa
estímulo para emoções interiores, mas uma fonte peça auto-referencial, correspondendo à tentativa
de delícias sensuais. O que está em jogo em de Stampa e seu Rime em criar uma obra exemplar
Marino não é mais a retórica introspectiva de da própria vida. Deparamo-nos com uma
Petrarca, que abrangia uma vasta gama de personagem que incansavelmente tenta encontrar a
nuances psíquicas. Mesmo alinhando-se a música certa para anular a dor, e nesta busca
tradições anteriores e ainda reproduzindo antigos incessante, descobre-se produzindo centenas de
topos, a sua obra inserese em uma nova estética. canções, mas nunca encontrando o fim de seu
O novo estilo cria uma relação ativa entre autor tormento.
e leitor. Agora vemos-nos obrigados a reagir
intelectualmente à nova poesia, decifrando seu
jogo artificial de meraviglia. O poeta passa a
observar furtivamente o espectador de dentro de
sua obra, tornando-se quase um voyeur desta
relação. Este fenômeno é recorrente na obra de
Strozzi e, como vimos, desde sua primeira peça
estabelece-se esta clara relação entre
autora/obra/espectador.
Barbara Strozzi encontra-se neste vértice
estético: no ambiente cosmopolita, sofisticado e
coquete da Serenissima, o gosto maneirista pelo
novo e artificial e o desejo de causar surpresa no
espectador marcam profundamente sua obra.
simpósio de pesquisa em música 2006 17

L'Astratto
O Distraído
Voglio sì, vo' cantar: forse cantando Quero sim, quero cantar: pois talvez cantando,
trovar pace potessi al mio tormento! encontrar paz poderia a meu tormento!
Ha d'opprimere il duol forza il concento. O poder da música oprimirá a dor.
Sì, sì, pensiero, aspetta: Sim, pensamentos, esperem:
a sonar cominziamo comecemos a tocar
e a nostro senso una canzon troviamo. e de acordo com nosso sentimento, uma canção
encontremos.
"Ebbi il core legato un dì “Estivesse meu coração preso um dia
d'un bel crin..." aos seus belos cabelos...”
La stracerei: subito ch'apro un foglio Já os rasguei: assim que inicio a página
sento che mi raccorda il mio cordoglio. sinto que só relembro minha dor.
"Fuggia la notte e sol spiegava intorno..." “Partia a noite e o sol espalhava sua luz...”
Eh sì, confondo qui la nott'e 'l giorno! E sim, confundo aqui a noite e o dia!
"Volate, o Furie “Voai, ó fúrias
e conducete e conduzi
un miserabile um miserável
al foco eterno!" ao fogo eterno.”
Ma che fo nell'inferno. Mas já estou no inferno!
"Al tuo ciel vago desio “A teu céu, meu belo desejo,
spiega l'ale e vanne a fè..." abre as asas e vamos com confiança...”
Che quel che ti compose Pois aquele que te criou
poco sapea dell'amoroso strale! pouco sabia da flecha do amor!
Desiderio d'amante in ciel non sale. Desejo de amante ao céu não sobe.
"Goderò sotto la luna..." “Gozarei sob a lua...”
Or questa sì ch'è peggio! Agora esta ainda é pior!
Sa il destin degl'amanti e vuol fortuna! Conhece o destino dos amantes e ainda espera
Misero! I guai m'han da me stesso astratto e sorte!
cercando un soggetto Infeliz! Meus problemas me distraíram de mim
per volerlo dir sol cento n'ho detto. mesmo, e
buscando um tema de canção,
encontrei uma centena.
Chi nei carcere d'un crine Quem no cárcere de melenas
i desiri ha prigionieri, Os desejos aprisionou,
per sue crude aspre ruine por sua crua e áspera ruína
nemmen suoi sono i pensieri. nem mesmo seus são os pensamentos.
Chi, ad un vago alto splendore Quem a um belo e inacessível esplendor
die' fedel la libertà entrega confiante sua liberdade
schiavo alfin tutto d'amore escravo total, ao fim, do amor
nemmen sua la mente avrà. nem mesmo sua a mente terá.
Quind'io, misero e stolto, Quando eu, miserável e estúpido,
non volendo cantar, cantato ho molto. sem querer cantar, muito cantei.
(Giuseppe Artale13)

O distanciamento arguto se cria já no


compasso 5, quando a Venus canora rompe o
discurso aparentemente sério, melismático e arioso
do primeiro verso com uma frase que se situa
13
Giuseppe Artale (1628-1679) foi um poeta marinista de claramente em outro registro. Trovar pace potessi
importância.
surge em recitativo parlato, seco e rítmico,
18 SIMPEMUS3

contrastante com a abertura intimista e lírica, poderoso para seduzir do que um belo rosto em
exórdio de uma gravità que nunca se realizará. O lágrimas15.
verbo potere (poder), no condicional, aparece A música de Barbara Strozzi, sempre na voz
delineado musicalmente como uma pergunta masculina, coloca-a em diálogo estreito com os
pela frase ascendente, e o ponto de interrogação freqüentadores da Accademia degli Unisoni. As
é traduzido pela pausa de semicolcheia. O gesto academias de intelectuais em Veneza, com raras
é novamente afirmativo da presença de um forte exceções, não eram freqüentadas por mulheres. A
“eu”: um autor que sai de uma interioridade Accademia degli Unisoni, portanto, estabelecia-se
(indicado pelo uso implícito do dêitico “io” como um espaço de normas violáveis, ecoando o
[voglio]), de um monólogo interior, para clima transgressor da Accademia degli Incogniti. Os
distanciar-se, ironicamente, mirar o público e intelectuais que freqüentavam a academia da
sorrir coquetemente de sua própria dor (Fig. 1). Venere Canora, dedicavam seus poemas a ela.
O mesmo artifício é usado diversas vezes Barbara Strozzi responde a tais poemas musicando-
na peça: os repetidos rompimentos com o os e cantando-os. Apropria-se da voz masculina,
registro sério e uma súbita intervenção para fora estando ela mesma numa posição normalmente
desta interioridade auto-reflexiva e burlesca, reservada a um homem, ao presidir uma academia.
transformam a peça em puro exercício da Podemos ver esta apropriação, por um lado, como
arguzia marinista. Para suscitar maior uma afirmação deste lugar viril e afirmativo que a
meraviglia, o efeito do imprevisto é obtido com autora escolhe, de uma mulher que se vê como
as mudanças bruscas e inesperadas, a mobilidade sujeito que se auto-constrói. Por outro lado,
das situações e gestos dramáticos repentinos. Barbara Strozzi brinca com estes homens que lhe
Após outra frase que suspende o fluxo coerente dedicam tais poemas, responde-lhes jocosamente
do discurso pela intromissão da consciência do com uma música que provoca, seduz e reafirma
autor (Sí, sí, pensiero aspetta), começa a corajosamente seu lugar de cortesã. Outro exemplo
canção/ária em ritmo pendular, dançante claro desta forte presença autoral surge na Cantata
(compasso 20). A peça compõe-se de retalhos de Apresso ai molli argenti (Fig. 4).
situações, reminiscências e motivos musicais.
A autora existe – afirma e reafirma sua
Estes elementos superpostos, fragmentados e
existência, nos espia, num duplo flerte, de dentro
aparentemente casuais revelam um caráter
da sua obra: flerte com o autor do poema (Barbara
próprio do repertório maneirista14, num exercício
Strozzi, a cortesã, responde jocosa à provocação de
de meta-literatura, artificialmente construída
um homem que lhe dedica o poema da Cantata) e
sobre si mesma (Fig. 2).
com o espectador, que subitamente se depara com
A peça termina com uma confirmação um personagem inesperado na peça.
frenética do moto que permeia a tradição do
A música da Virtuosissima Cantatrice mostra-
abandono transformando-se em música: non
se profundamente autoral, desde sua primeira
volendo cantar, cantato ho molto (sem querer
obra, Mercè di voi até sua produção mais tardia e
cantar, muito cantei) (Fig. 3).
madura, como L’astratto. A música em geral, como
Como Safo, Stampa e tantas outras, a dor arte temporal e evanescente, possui um aspecto
do abandono em Strozzi transforma-se em fenomenológico particular em relação a outros
elemento propulsor de sua música. Aqui textos. Sua existência realiza-se somente no
transfigurada pela ironia maneirista, inserida no momento da performance, e intérpretes fortes
cenário intelectual dos Incogniti, a dor reverte- costumam usurpar o lugar do autor naquele
se em canto como na poesia de suas instante. Barbara Strozzi torna-se, portanto, dupla
antepassadas. No entanto, este canto surge autora: responsável pela criação original, recria sua
revestido de uma aparência jocosa e coquete, música a cada aparição pública. A superposição
com um sorriso sedutor mascarando uma particular dos papéis de cantora e compositora
interioridade que raras vezes se vislumbra. Não convida-nos a estratégias hermenêuticas distintas
poderia ser diferente, pois no ambiente de uma das que se abordaria com outros compositores: não
cortesã veneziana, como teria recitado a própria podemos ignorar como estas duas vozes tornam-se
Barbara Strozzi na “Polêmica do canto e das indissolúveis. Como vimos, o público que escutava
lágrimas”, um belo rosto cantando será mais sua música é o público da Accademia degli Unisoni,

14 15
Utilizo-me do termo “maneirista” a partir dos conceitos de Em minha tese de doutoramento, encontra-se este documento
Arnold Hauser em seu livro Maneirismo: a crise da traduzido, o qual relata um discurso sobre a polêmica entre o
renascença e o surgimento da arte moderna. São Paulo: poder do canto ou das lágrimas recitado na Accademia degli
Perspectiva, 1993. Unisoni, em Veneza, 1638.
simpósio de pesquisa em música 2006 19
homens da refinada intelligenza veneziana que papéis tradicionais e valores hegemônicos, banida
freqüentavam a academia para presenciar a de uma sociedade que simultaneamente a admira e
música da cortesã Barbara Strozzi. Música e inveja. L’astratto é, portanto, um manifesto de sua
autora tornam-se uma só, e os atributos da própria condição, expressando a uma só vez a longa
cortesania – inteligência, sedução, sofisticação tradição de vozes que transformam a solidão do
intelectual, coqueteria – fazem-se presentes em abandono em música com a bravura poética de uma
sua música. De forma similar a Gaspara Stampa, nova estética carregada de erotismo e sedução.
a obra de Strozzi torna-se assim uma obra
exemplar de sua própria vida. A cortesã é uma
mulher inerentemente abandonada, subvertendo

Fig. 1

Fig. 2

Fig 3a
20 SIMPEMUS3

Fig. 3b

Fig. 4

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O mito da música nas atividades da Companhia de Jesus no Brasil colonial
Marcos Tadeu Holler
Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo
A atuação musical dos jesuítas na América Espanhola deixou vários legados, como partituras, instrumentos
e representações iconográficas, o que permite uma reconstrução mais precisa da música do período. Por
esse motivo, geralmente se associa à Companhia de Jesus a imagem de uma ordem na qual a música
desempenhava um papel importante. Até que ponto essa imagem corresponde à realidade?
Algumas respostas a essa questão podem ser encontradas na própria documentação jesuítica referente ao
Brasil colonial. Para este trabalho foi realizado um levantamento de referências à música em textos
jesuíticos dos sécs. XVI a XVIII, em sua maior parte manuscritos, encontrados em acervos brasileiros e
europeus, sobretudo no Arquivo da Companhia de Jesus em Roma.

A atuação dos padres da Companhia de português, podem-se compreender vários aspectos


Jesus na América colonial é geralmente da música praticada nos estabelecimentos
associada à imagem de uma ordem na qual a jesuíticos do Brasil colonial.
produção musical desempenhava um importante
papel, sobretudo devido à vasta documentação
A música nos regulamentos da Companhia de
encontrada sobre a América Espanhola; a leitura
Jesus
dos documentos jesuíticos sobre o Brasil revela,
porém, uma outra realidade. Antes da criação oficial da Companhia de
Jesus, a música já era objeto de preocupação do
O presente trabalho baseia-se em um
Padre Inácio de Loyola. O primeiro regulamento da
levantamento de documentos de autoria
Companhia foi a Prima Societatis IESU Instituti
jesuítica com informações sobre a prática e o
Summa, que consistia de cinco capítulos ou
ensino musical no Brasil colonial. O
parágrafos, elaborados em Roma por Loyola e seus
levantamento foi realizado em acervos
seguidores, em 1539. Segundo a Summa, nos
brasileiros e europeus, sobretudo no Arquivo da
estabelecimentos jesuíticos não se deveriam usar,
Companhia de Jesus (ARSI), em Roma. Os
“na missa e em outras cerimônias sacras, nem o
documentos encontrados abrangem uma vasta
órgão e nem o canto” (SUMMA, 1539, p. 19). Os
área geográfica, que vai das aldeias da Amazônia
capítulos da Summa serviram de esboço para a
até o extremo sul dos domínios portugueses, e
elaboração de um documento mais extenso, a
um período de mais de dois séculos; além disso,
Formula Institutis Societatis IESU, que foi revisada
as informações sobre música são esparsas, o que
e incorporada em 1540 à bula Regimini militantes
não possibilita uma observação detalhada da
ecclesiæ, do Papa Paulo III, que oficializou a
prática musical em cada estabelecimento
criação da Companhia de Jesus, e em 1550 à bula
jesuítico, durante todo o período de sua atuação.
Exposcit debitum, do Papa Julio III, que a
Entretanto, a leitura dos documentos nos
confirmou. Na elaboração da Formula, a proibição
permite entrever algumas características comuns
à música foi considerada demasiadamente restritiva
à atuação da Companhia de Jesus no Brasil
pelo revisor papal, o Cardeal Ghinucci,
colonial.
principalmente porque o uso extensivo da música
nas práticas da igreja luterana era um atrativo para
Jesuita non cantat os fiéis, e assim essa proibição foi excluída dos
Os regulamentos estabelecidos nas textos incorporados às duas bulas.
primeiras décadas de existência da Companhia Em 1547, após ter sido eleito Superior da
de Jesus foram determinantes para a atuação Companhia, Loyola dedicou-se, com a ajuda de seu
musical dos jesuítas nos séculos seguintes, ao assistente, o Padre Juan Alfonso de Polanco, à
menos nas assistências de Portugal. elaboração do que viria a ser o principal conjunto
Observando-se o processo de formação desses de regras da Companhia: as Constituições da
regulamentos e a documentação sobre missões Companhia de Jesus. A primeira versão das
jesuíticas em outras regiões de domínio Constituições foi promulgada em 1552 e publicada
22 SIMPEMUS3

em 1558, em latim. Sem a sanção de externos à criação, um aspecto importante da Companhia de


Companhia, as restrições à prática musical nos Jesus era o que chamavam de “cuidado dos bens
estabelecimentos jesuíticos voltaram a surgir. O espirituais”, ou seja, as atividades como catequese,
capítulo 3, com o título “do que se devem pregação, confissão, comunhão e administração de
ocupar e do que se devem abster os membros da sacramentos e a atuação junto ao povo, através da
Companhia”, proíbe expressamente o coro nos educação e obras assistenciais. Segundo Loyola, a
ofícios e Horas Canônicas: música absorveria os padres e tiraria sua atenção
do trabalho cotidiano. O próprio texto das
Porquanto as ocupações assumidas com vistas à Constituições deixa claro que haveria lugares de
assistência das almas são de grande importância sobra para os que desejassem ouvir música em um
e próprias da nossa Instituição, e muito ofício, mas “aos nossos, porém, convém que
freqüentes, e como por outro lado nossa tratem do que é mais próprio à nossa vocação
residência neste ou naquele lugar seja incerta, para a glória de Deus” (CONSTITUTIONES, 1583
que os Nossos não usem o coro para Horas [1558], p. 210). Diversos textos traduzem a reação
Canônicas ou Missas e para outras coisas que se dos padres diante do afastamento do povo das
entoam num ofício, uma vez que há lugares de
igrejas devido à ausência da música nos cultos, mas
sobra onde se satisfaçam aqueles a quem sua
não se encontrou outra justificativa para a
devoção mover a ouvi-las.1 (CONSTITUTIONES,
1583 [1558], p. 209-210) proibição à prática musical além das apresentadas
por Loyola.
Um comentário a esse trecho proíbe o uso
do canto: A imposição do Papa Paulo IV
Se for indicado em algumas Casas ou Colégios, Em 1555 o Cardeal João Pedro Carafa foi
[...] poderia ser dito somente o ofício nomeado Papa Paulo IV, o que alteraria as
vespertino. Assim também de ordinário nos restrições à música na Companhia de Jesus.
domingos e dias de festa, sem o chamado canto Segundo o Padre Gonçalves da Câmara
figurato ou firmo,2 mas em tom devoto, suave e (Mem.LuGon, [1555], p. 712), Loyola já havia
simples: [...] No mesmo tom poder-se-ia dizer o manifestado seu temor pelo Cardeal Carafa, que
ofício que se costuma chamar ‘das trevas’, com ameaçava obrigar a Companhia a instituir o coro
as suas cerimônias, na Semana Santa.
em suas práticas, o que realmente ocorreu. Em 6
(CONSTITUTIONES, 1583 [1558], p. 209n-210n)
de agosto de 1558, O Padre Diego Lainez, que fora
O texto veta ainda a entrada de eleito Superior após a morte de Loyola, foi
instrumentos musicais, assim como de mulheres, chamado à presença de Paulo IV e advertido com
nas casas e colégios da Companhia: relação à proibição ao coro; dois dias depois, a
ordem foi levada oficialmente aos jesuítas pelo
Deve-se cuidar para que não entrem mulheres Cardeal Afonso Carafa, sobrinho do Papa (CULLEY;
nas Casas nem nos Colégios da Companhia. [...] MCNASPY, 1971, p. 226). Não existem registros
e instrumentos de qualquer espécie que sejam escritos dessa ordem, a qual foi transmitida
para recreação ou mesmo para a música e verbalmente pelo Cardeal Carafa.
também livros profanos e outros objeto desse
De acordo com a Crônica de Polanco, em
tipo. (CONSTITUTIONES, 1583 [1558], p. 96-97)
1555, antes mesmo das ordens expressas do Papa
Paulo IV, Loyola decidiu permitir o uso do coro na
A restrição à prática musical não provinha
igreja do Colégio da Companhia em Roma, ainda
de um gosto pessoal do Padre Loyola. O Padre
que sob determinadas circunstâncias, para que a
Luís Gonçalves da Câmara, a quem Loyola ditou
iminente decisão do Papa não se chocasse com os
sua Autobiografia, afirma que em Manresa, ele
preceitos da Companhia:
“ouvia todos os dias a missa maior e as
Vésperas e Completas, tudo cantado, e
sentia nisso grande consolação” (Act.LuGon, Para que o Pontífice não modificasse uma
1553-1555, p. 388). Os motivos para as restrições característica da Companhia, este ano o Padre
à música tinham um fundo prático: desde sua Inácio espontaneamente decidiu que os ofícios das
Vésperas deveriam ser cantados em nossa igreja
aos domingos e dias festivos, assim o Pontífice
1
Os trechos das Constituições transcritos neste capítulo talvez ficasse satisfeito e não ordenasse a
foram traduzidos por Fernando Ota. introdução do coro na Companhia. Dessa forma,
2
O termo canto figurato significa música polifônica, ou, em após debater com os precursores da Companhia,
alguns documentos jesuíticos, fabordão, o que será decidiu-se pela introdução de um canto que não
discutido mais adiante; canto firmo refere-se ao canto
fosse contra os preceitos das Constituições; a
monódico, ou gregoriano.
simpósio de pesquisa em música 2006 23
escolha foi feita pelo próprio Padre Inácio e proibições anteriores relativas à música, mantendo
constituía do canto figurado (chamado de a permissão de seu uso em ocasiões especiais, como
falsum bordonem) para a edificação do povo. mostram muitos documentos. As restrições à
(Cro.JoPol.1, 1555, p. 33)
prática musical tornaram-se uma constante entre
os jesuítas pelos séculos seguintes e, segundo
Segundo Murray Bradshaw (apud KENNEDY,
MacDonnel (1995, cap. 3), deram origem ao mote
1982, p. 23-24), o fabordão encaixava-se
“jesuita non cantat”, que se tornou comum entre
perfeitamente nas idéias do Concílio de Trento
os clérigos católicos.
sobre a música litúrgica, pois era um repertório
constituído basicamente de peças corais,
Jesuítas no Brasil
homofônicas, construídas sobre melodias do
Observando-se as proibições ao uso da
canto gregoriano, tornando-se por essas
música nos regulamentos da Companhia de Jesus,
características a prática musical mais comum nos
parece um paradoxo que a documentação sobre a
colégios jesuíticos na Europa, embora nenhum
música na atuação dos jesuítas nas Américas seja
exemplo tenha sido preservado.
tão abundante. Pouco tempo após a chegada de
Além do uso do fabordão, a Crônica do
Nóbrega no Brasil (e décadas antes do início da
Padre Polanco deixa claro que a música deveria
atuação dos jesuítas na América Espanhola) as
ser realizada em ocasiões determinadas: nas
referências à música eram freqüentes, e não existe
Vésperas dos domingos e dos dias festivos. Além
indícios de uma contradição com os preceitos da
disso, a música deveria ser executada pelos
Companhia de Jesus. Como isso pode ter ocorrido?
alunos dos colégios: segundo Polanco, Loyola
A resposta pode ser encontrada nos documentos
optou pelo fabordão porque “muitos alunos do
sobre a Companhia de Jesus na Índia.
nosso colégio e do Colégio Germânico, e dentre
os que vêm do Norte, conhecem bem este tipo
Jesuita non cantat in Provincia Indica
de canto” (Cro.JoPol.1, 1555, p. 33).
Como no Brasil, as missões da Companhia de
O Padre Polanco, por comissão do Padre
Jesus na Índia estavam sob a assistência de
Loyola, descreveu os ofícios realizados com
Portugal. Os documentos do séc. XVI sobre essas
música algumas semanas mais tarde, deixando
missões mostram grande semelhança com os relatos
claro que a música havia sido realizada pelos
sobre o Brasil do mesmo período; em número
estudantes, sem que os padres tivessem deixado
consideravelmente maior, sua leitura pode fornecer
suas funções:
informações relevantes também sobre a atuação
O ofício, que se começou a cantar na dos jesuítas na América Portuguesa. O acesso a
Quarta-Feira Santa e as Vésperas que se esses documentos foi facilitado graças à sua
começaram no dia de Páscoa, tiveram muito publicação em 18 volumes da série Monumenta
sucesso, e de grande maneira conquistaram as Historica Societatis IESU, com o título Documenta
almas de muitos; mas não por isso diminuíram Indica, editados pelo Padre Joseph Wicki.
os confessores ou pregadores, porque os Em 1543 os jesuítas portugueses chegaram à
colegiais bastam para fazer esta festa. Índia e antes mesmo da vinda do Padre Nóbrega ao
(Car.JoPol.1, 1556, p. 245)
Brasil, já se haviam dado conta da utilidade da
música no processo de conversão dos gentios. Os
Esse relato mostra uma característica
documentos jesuíticos referentes ao Brasil não
marcante da Companhia de Jesus até a sua
deixam claro qual era o encaminhamento da
extinção: a prática musical não deveria ser
Companhia no que concerne ao uso da música na
realizada por padres, para que estes pudessem
catequese, o que, por outro lado, é evidente nos
continuar com sua atuação junto aos “bens
documentos relativos à atuação dos missionários na
espirituais”.
Índia. Em uma carta de Goa de 1545, o Padre
Antônio Criminalis expressa a Loyola a sua
Permissões e restrições após 1556
preocupação com o fato de os meninos cantarem
Loyola faleceu em 1556 e, segundo Tejón,
nos ofícios, apesar de ser do agrado dos locais:
“a atitude da Companhia de Jesus a respeito da
música passou a depender não somente da maior Eu gostaria que [os meninos] não cantassem coisa
ou menor compreensão do carisma do fundador, alguma, mas dizem que isso escandalizaria o povo,
mas também de cada Padre Geral, seu caráter e porque já têm este costume, e que isso parece
qualidades” (2001, p. 2776). Além disso, em agradar muito ao Senhor Deus. Meus companheiros
1559, um ano após ter instruído a Companhia dizem que aprenderão a cantar, mas eu lhes digo
sobre o uso do coro, o Papa Paulo IV faleceu, que não lhes prometam tal coisa, porque vai um
pouco além do meu sentir, e me parece que não
mas a Companhia de Jesus não retornou às
devemos cantar. (Car.AnCri, 1545, p. 20-21)
24 SIMPEMUS3

As instruções do Padre Inácio de Azevedo, em


Não foi encontrada a resposta de Loyola a sua primeira visita ao Brasil, mostram que as
essa consulta do Padre Criminalis, mas é restrições à prática musical expressas nas
evidente que as práticas musicais continuaram, e Constituições deveriam ser seguidas, exceto nas
em instruções de 1558 o Padre João de Polanco aldeias:
permite o canto na Índia, já que ele atrai o
gentio:
Acerca de cantar missas e outros ofícios divinos, e
procissões, etc., nas partes onde há curas e
Deve-se permitir o canto na Índia e em outros
vigários que o fazem em nossa igreja, os nossos
lugares distantes, mesmo que isso não seja
guardem as Constituições, procurando ajudar as
permitido à Companhia na Europa, se nesses
almas com as confissões, e pregações, e ensinar a
locais isso for um auxílio para o culto de Deus
doutrina cristã, e evitar-se-á a emulação dos
e para o proveito espiritual, como se observou
curas. Nas partes onde não há outros sacerdotes,
em Goa e na Etiópia. (Instr.JoPol.2, 1558, p.
como é Piratininga ou em aldeias entre os índios,
77)
ali poderão fazer, segundo ver o Provincial que
convém para a edificação do povo, mas de
Os textos sobre a Índia posteriores aos séc. maneira que não faltem por isso nos ministérios já
XVI não foram consultados, pelo fato de ditos. (Vis.IgAzev, [1566], f. 137v)
existirem somente em manuscritos, e por não
serem o objeto principal deste trabalho. Nota-se Diferentemente do que ocorre com outras
a ausência de estudos musicológicos que ordens, são bastante escassas as referências à
envolvam a Companhia de Jesus em Portugal e prática musical realizada por padres jesuítas, o que
suas assistências, e trabalhos adicionais sobre o coincide com esses regulamentos. Essas referências
tema poderão contribuir para uma compreensão surgem geralmente nos primeiros anos da
mais acurada da música feita pelos jesuítas no Companhia de Jesus e são comuns no séc. XVI,
Brasil. sempre associadas à atividade junto aos índios,
porém tornam-se mais raras nos documentos
posteriores.
Jesuita non cantat in Provincia Brasilica
Nos estabelecimentos jesuíticos voltados para
Por meio dos documentos mostrados acima
a formação da população urbana, fora do âmbito da
percebe-se que algumas regras da Companhia de
catequese indígena, as restrições à prática musical
Jesus relativas à música foram mantidas em
eram obedecidas mais rigorosamente. Vários
Portugal e nas missões da Índia. A prática
documentos descrevem eventos realizados com
musical é permitida como uma ferramenta de
música nos colégios e seminários e, em quase sua
conversão do gentio; nos estabelecimentos
totalidade, esses documentos mencionam a
urbanos, pode ser utilizada em eventos sacros,
participação de externos à Companhia de Jesus,
desde que seja restrita a determinadas ocasiões,
como religiosos de outras ordens (sobretudo
e que não seja realizada pelos padres, para que
mercedários e carmelitas), músicos contratados,
estes possam ocupar-se do cuidado com o bem
seminaristas e estudantes dos colégios.
espiritual.
Assim como a prática, também o ensino da
A leitura dos documentos mostra que essas
música nos colégios e seminários do Brasil deveria
características são também presentes na atuação
ser realizado por externos, e não por padres.
dos jesuítas no Brasil colonial, desde a sua
Dentre os estabelecimentos jesuíticos urbanos do
chegada até o momento da expulsão. A
Brasil colonial, o único sobre o qual se encontraram
utilização do canto e de instrumentos pelos
repetidas referências ao ensino musical foi o
jesuítas junto aos índios foi o aspecto mais rico e
Seminário de Belém da Cachoeira, na Bahia. O
influente da sua atuação musical no Brasil
Regulamento do Seminário, um documento único e
colonial. A influência da atuação jesuítica no
relevante para a história do ensino no Brasil,
período colonial provavelmente pode ser ainda
menciona o ensino de solfa, canto e instrumentos
hoje percebida no uso das rabecas e gaitas na
aos internos, porém estabelece que “de nenhuma
música popular e folclórica no Norte e Nordeste
maneira os Nossos ensinem solfa nem toquem
do Brasil; porém, devido à interrupção de suas
instrumentos, nem cantem e muito menos na Igreja
atividades com a expulsão dos padres em 1759, é
e no côro”, e que o “mestre de música seja um
difícil determinar até que ponto a atuação dos
secular” (Ord.SemBel, [1696], p. 183). O
jesuítas influenciou a formação da cultura
Regulamento parece ter sido realmente seguido. O
brasileira ou de identidades culturais regionais
professor externo de música é mencionado pelo
contemporâneas.
Padre Manoel Correia em sua visita ao Seminário, já
simpósio de pesquisa em música 2006 25
em 1693 (Vis.ManCor, 1693, f. 327v), e a Ânua da
Província do Brasil de 1699, do Padre João Por meio desse documento percebe-se que
Antonio Andreoni, Reitor do Colégio da Bahia, ainda no final do séc. XVII a música não era uma
menciona prática usual nos estabelecimentos jesuíticos
urbanos, ainda que fosse bastante utilizada nas
o canto músico com um professor externo, após aldeias.
os estudos de letras, para que sirvam nos dias
festivos no templo à religião e à piedade, com o Considerações finais.
prazer santo e doce dos que ouvem aquela Dentro dos preceitos da Companhia de Jesus
melodia, e admiram a discrição conjunta e com a música não ocupava uma posição de destaque,
ordem. (An.JoAnd.1, 1699, f. 443) diferentemente do que ocorria em outras ordens,
como a dos beneditinos. Além disso, a música tinha
Um documento extremamente elucidativo
um caráter funcional, de atuação externa, e não
é uma carta do Padre Jodoco Peres, Superior das
devocional; por essas características, a atuação dos
missões no Maranhão, ao Padre Geral, relatando
jesuítas nas Américas foi também mais
a expulsão dos jesuítas do Maranhão pela
conseqüente.
população em 1684, na revolta de Bequimão, e o
seu reestabelecimento em 1685. O Padre Peres Mesmo que a produção musical nos
demonstra sua preocupação com o fato de estabelecimentos jesuíticos, sobretudo da América
padres seculares e de outras ordens terem Espanhola, tenha sido bastante intensa, ela se
realizado ofícios nas suas igrejas com música, restringiu às aldeias ou reduções, voltadas para ao
durante a sua ausência: trabalho junto aos índios, e não é uma ocorrência
observada nos estabelecimentos urbanos, como
Os religiosos de outras ordens esforçaram-se colégios e seminários.
contra nossa infame expulsão [...] e serviram- De qualquer modo, a música na atuação dos
nos com seu trabalho, cantando os ofícios jesuítas no Brasil ainda é um tema que não foi
divinos nas nossas igrejas; me pergunto agora se
esgotado, e futuros estudos poderão revelar
depois (quando então faltarem os clérigos, ou
importantes aspectos dos primórdios da história da
outros músicos seculares) continuaremos a
celebrar nossas comemorações com missas música no Brasil.
recitadas, sem canto algum. (Car.JodPer, 1685,
f. 125)

Referências
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CULLEY, Thomas S.J.; McNASPY, Clement J. S. J. Music and the early jesuits (1540-1565). Archivum
Historicum Societatis IESU, Roma, v. 60, n. 80, jul-dez 1971, p. 213-245.
KENNEDY, Thomas Frank S.J. Jesuits and music: the European tradition 1547-1622. Tese (Doutorado) -
Universidade da Califórnia, Santa Barbara, 1982.
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University, 1995. Disponível em: <http://www.faculty.fairfield.edu/jmac/sj/cj/cj1se.html> Acesso em 30
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Evidências evolucionistas na historiografia musical sobre os jesuítas
Dalton Martins
Universidade Estadual Paulista

Resumo
Este texto pretende fazer algumas considerações sobre algumas evidências de um pensamento evolucionista
em textos de historiografia musical sobre os jesuítas. O período abordado é de 1908 à 1954, orientado em
função das fontes estudadas. O evolucionismo introduz-se no Brasil aproximadamente em 1870, oferecendo
pressupostos para a compreensão do “atraso” brasileiro em relação ás nações européias “civilizadas”. Após o
Modernismo, os pressupostos evolucionistas vão sendo substituídos por outros que privilegiavam a construção
de uma “cultura brasileira”. No entanto, mesmo após o advento do Modernismo, podemos permanecer um
traço evolucionista em nossa historiografia musical dedicada aos jesuítas, e, demonstrá-lo é o objetivo deste
texto.

Introdução e o pensamento brasileiro - combinado à


O objetivo deste texto é discutir sobre hermenêutica, para a análise do conteúdo dos
algumas evidências de um pensamento textos.
evolucionista nos textos de historiografia musical
produzidos no período de 1908 a 1954, que Evolucionismo no pensamento brasileiro
tratam da contribuição dos jesuítas na história
Dentre as teorias européias que tinham como
da música de São Paulo. O período estudado
pressuposto comum a evolução dos povos três delas
correspondente às datas de publicação das
tiveram um impacto real no Brasil: o positivismo de
fontes utilizadas: 1908 é o ano de publicação de
Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de
A música no Brasil, de Guilherme de Melo; em
Spencer. Tais teorias foram utilizadas como
1954, ano das comemorações do IV Centenário da
fundamento científico por nossos historiadores-
fundação da cidade de São Paulo, foram
sociólogos - dentre eles, Silvio Romero, Capistrano
publicados vários textos sobre a música de São
de Abreu, Nina Rodrigues e Euclides da Cunha -
Paulo.
desde o declínio do Romantismo até o Modernismo,
José Honório Rodrigues afirma, em Teoria ou seja, entre 1870 e 1922.
da História do Brasil que há “uma estreita
O pressuposto básico do evolucionismo pode
conexão entre a historiografia de um período e
ser grosseiramente apresentado da seguinte
as predileções e características de uma
maneira: o “simples” evolui para o “complexo”;
sociedade” (RODRIGUES, 1978, p. 32). Assim,
sob tal pressuposto, as sociedades “primitivas”
através de uma aproximação das principais idéias
evoluem para as sociedades “civilizadas”. Através
presentes na sociedade brasileira neste período,
de vários experimentos empíricos, os primeiros
poderíamos conseguir elementos para a
sociólogos e etnólogos procuravam estabelecer as
compreensão de nossa historiografia musical.
leis que governavam o processo evolutivo dos povos
O principal indício do que chamaremos (ORTIZ, 1985, p. 14).
traço evolucionista na historiografia musical
A partir dessas teorias, nossos pensadores
dedicada à contribuição dos jesuítas na história
tentavam compreender as diferenças entre o
da música de São Paulo, a nosso ver, se
brasileiro e o europeu, o processo de formação e
manifesta através do jogo de oposições que
evolução da civilização brasileira e as possibilidades
ocorre entre o jesuíta (civilizado, culto, erudito,
do Brasil se constituir uma nação “civilizada”
cristão etc) e o indígena (selvagem, inculto,
(ORTIZ, 1985, p. 14-15). Vejamos a seguir o reflexo
grosseiro, pagão etc). A partir dessas oposições,
do evolucionismo na historiografia musical.
base para a nossa compreensão dos textos, se
desenvolve toda uma série de considerações que, Os intelectuais brasileiros de fins do século
até aproximadamente meados da década de XIX e início do século XX procuravam, através das
1950, considerava os jesuítas como “formadores” teorias evolucionistas, compreender as caracterís-
e “civilizadores” do Brasil. ticas do povo brasileiro, e suas diferenças em
relação ao povo europeu. Esta questão se
Combinaremos o método histórico - para a
consubstanciava nas investigações sobre o “caráter
análise das relações entre historiografia musical
nacional”:
28 SIMPEMUS3

membros da mesma pátria ou comunidade do


O dilema dos intelectuais desta época [o fim do biografado (KERMAN, 1985, p. 38-39). Assim, as
século XIX e início do século XX] é compreender teorias evolucionistas proporcionaram novas
a defasagem entre teoria e realidade, o que se abordagens para a historiografia musical, que
consubstancia na construção de uma identidade enfatizaram, por exemplo, o estudo da gênese das
nacional. (ORTIZ, 1985, p. 15). formas e dos gêneros musicais.
Assim, ao contrário das teorias evolucio- A partir do Modernismo, os conceitos de raça
nistas européias, nas quais os conceitos de raça e e meio são substituídos pelo de cultura (LAHUERTA,
meio tinham alcance limitado, no Brasil estes 1997, p. 96), o qual, aparentemente, minimiza as
conceitos são largamente utilizados pelos nossos contradições sociais e a latente impossibilidade das
pensadores, pois viriam a especificar as três raças formarem um povo. Isso se dá em razão
“particularidades” da nossa “evolução” (ORTIZ, de que o Modernismo abandona a “explicação do
1985, p. 16). atraso brasileiro”, e propõe um projeto de âmbito
nacional, que visava, em primeiro lugar, criar uma
na medida em que a realidade nacional se “literatura brasileira”, e posteriormente, organizar
diferencia da européia, tem-se que ela adquire as diversas manifestações populares, unificando-as
no Brasil novos contornos e peculiaridades. A sobre o conceito de cultura nacional.
especificidade nacional, isto é, o hiato entre
teoria e sociedade, só pode ser compreendido
quando combinado a outros conceitos que A reforma brasileira, que terá de modernizar e
permitem considerar o porquê do ‘atraso’ do nacionalizar o país, não é um fenômeno
país (ORTIZ, 1985, p. 15). simplesmente estético. Se começou sob este
aspecto, porque, pela sensibilidade, é que se
iniciam as reações em toda parte, não se deve
O evolucionismo na historiografia musical confinar, por isso, neste argumento fechado. Antes
Em Teoria e História Peter Burke trata das é preciso que se alastre e opere em seus centros
dissensões ocorridas ao longo do século XIX entre de vida ativa, econômicos e sociais [...]. Para esse
duas classes básicas de profissionais que tinham esforço é chamada a inteligência brasileira. O
estudo de nossos problemas, a análise profunda de
como objeto o estudo da sociedade:
nossas camadas sociais, a indagação dos seus
historiadores e teóricos sociais. Os historiadores
desejos e necessidades, a psicologia exata do povo
estavam interessados nos aspectos que tornavam são elementos de verificação indispensáveis para
seu objeto particular, distinto, singular, e assim, qualquer obra construtora neste sentido [...]. Para
trabalhavam sobre “fatos”; os “teóricos” a realização dessa obra nacional é que o país
estavam interessados nas “leis” que presidiam os reclama o esforço de todos os homens de
estágios de evolução da sociedade, e assim, se inteligência e ação. (ALMEIDA, 1928, p. 3).
orientavam para a compreensão dos aspectos
gerais, para a elaboração de “leis” (BURKE, Embora o evolucionismo vá, gradativamente,
2002, p. 14). perdendo sua força em outros setores do
pensamento brasileiro – como na sociologia, por
Este antagonismo entre teóricos e
exemplo - sua influência parece permanecer em
historiadores proporcionou uma nova perspectiva
nossa historiografia da música paulista até
à historiografia da música. Segundo Dwight Allen,
aproximadamente fins da década de 1960, como
o evolucionismo de Spencer ofereceu à
veremos a seguir.
historiografia musical uma nova abordagem,
pois, ao invés de permanecer biográfica e
O evolucionismo na historiografia musical
factual, poderia tornar-se “científica”, na
brasileira
medida em que, semelhantemente à nascente
Se no âmbito da historiografia musical
sociologia, encarasse a música como um
internacional o evolucionismo proporcionou o
organismo que se cria, desenvolve e transforma
surgimento de novas abordagens e novos objetos,
em virtude de certas leis ou princípios (ALLEN,
no Brasil, porém, ele se adapta à problemática da
1962, p. 110). Como se sabe a historiografia
contribuição das três raças na formação do povo
musical que se desenvolveu neste período estava
brasileiro, questão que se desdobra na
tradicionalmente ligada a ideologias nacionais e
historiografia através da investigação sobre a
religiosas, e talvez por tal motivo permanecia
criação de uma música “brasileira”. No entanto, é
principalmente biográfica; ela procurava narrar a
interessante observar a permanência do que
vida e a obra daqueles considerados “grandes
chamamos de evidências evolucionista, em nossa
indivíduos” ligados à sua nação ou à sua religião,
historiografia musical, quando estes pressupostos
e, além disso, era realizada, principalmente, por
passam a ser paulatinamente substituídos a partir
simpósio de pesquisa em música 2006 29
da assimilação dos novos pressupostos do movi- mundo o faz expressar-se em termos de
mento modernista. É de se notar ainda que a “evolução”. Porém, os casos mais interessantes, ao
historiografia da música brasileira parece não ter nosso, ver são aqueles de autores que escrevem a
sido tratada como uma ciência, com fontes, partir da década de 1920, portanto, já durante o
métodos e fundamentos e objetivos próprios, Modernismo, e ainda mais, daqueles autores ligados
mas que, ao nosso ver, constitui-se uma espécie diretamente à reflexão sobre as diretrizes,
de “literatura”. Evidentemente, essa questão é questionamentos e tendências do movimento, como
bastante controversa. Porém, o fato desta é o caso de Renato Almeida.
historiografia musical não veicular através de Outro artigo que nos oferece importantes
livros especializados – salvo raras exceções – mas considerações para a compreensão da influência de
em revistas e jornais, e dirigir-se para um um pensamento evolucionista na historiografia dos
público leigo, nos parece reafirmar este caráter jesuítas é A música em São Paulo, de João da
“literário”, o que confirmaria sua tendência à Cunha Caldeira Filho, publicado no suplemento
generalizações e conclusões sem o devido estudo literário de O Estado de S.Paulo, em 25 de janeiro
dos problemas. de 1954, para as comemorações da IV Centenário
O primeiro aspecto desse traço evolucio- da cidade:
nista, ao nosso ver, se manifesta através do jogo
de oposições que ocorre entre o jesuíta (civili- Assim, a civilização do Planalto do Piratininga
zado, culto, cristão etc) e o indígena (selvagem, acordou ao som da música, e da música da Igreja
inculto, pagão etc). A partir dessa oposição se católica. A garganta rude do selvagem e os lábios
desenvolve toda uma série de considerações que eruditos dos padres cantavam acompanhados por
nos levam a crer na influência de um traço instrumentos grosseiros tangidos pelas mãos
evolucionista na historiografia da música desajeitadas dos pequenos brasís, realizando a
brasileira do início do século XX até primeira manifestação musical da história de S.
Paulo. (CALDEIRA FILHO, 1954, p. 129).
aproximadamente a década de 1960.
Em A música no Brasil (1908), Guilherme Como se pode ver acima, na visão do autor,
de Mello afirma que as manifestações teatrais os padres da Companhia de Jesus são homens que
utilizadas pelos jesuítas na catequese - os autos possuem “lábios eruditos”, e o indígena, por sua
- representam “a primeira exibição da arte vez, possuiu “garganta rude” e “mãos desajei-
musical brasileira baseada no sistema diatônico- tadas” que tangem “instrumentos grosseiros”. Mais
cromático dos povos cultos” (MELO, 1908, p. 7). adiante, se referindo ao uso dos autos na
O que nos interessa aqui é que este autor situa catequese, o autor nos diz que estas peças eram
historicamente, segundo ele, a primeira “destinadas a moldar a alma rude do índio segundo
manifestação de um sistema musical “culto” em os princípios eternos da espiritualidade cristã”
solo brasileiro. (CALDEIRA FILHO, 1954, p. 129). O jogo de
A evidência de um traço evolucionista, que oposições entre as expressões “lábios eruditos” e
se manifesta através da expressão “povos “princípios eternos da espiritualidade cristã”, da
cultos”, é clara, no entanto requer um maior parte dos jesuítas, e, “garganta rude” e “alma
esclarecimento: se entendermos um sistema rude”, da parte dos indígenas, nos sugere certa
musical como expressão de uma determinada idéia de “escala evolutiva”, em que a
cultura, admitindo que tal sistema “delimita” os espiritualidade do índio é “primitiva”, e a do
limites de “mundo sonoro” desta cultura, jesuíta “civilizada”, pois é alicerçada sobre
poderíamos entender, segundo a afirmação de “princípios eternos”.
Guilherme de Melo, que os jesuítas trouxeram o Outro aspecto onde se manifesta esse traço
sistema musical se uma cultura “superior”. Ou evolucionista na historiografia dos jesuítas, ao
seja, reconhecer o sistema musical dos jesuítas nosso ver, reside nas considerações em torno da
como “culto” (cultivado) implica boa receptividade da música pelos indígenas.
necessariamente em reconhecer o sistema Praticamente todos os autores que se detiveram
musical dos índios como “inculto” (não sobre a contribuição dos jesuítas á música
cultivado); se, segundo o pressuposto brasileira chamam a atenção para este fato.
evolucionista, o que é cultivado é mais complexo Renato Almeida, por exemplo, nos diz dos jesuítas:
do que o que é cultivado – pois o “simples”
evolui para o “complexo” - então, a cultura dos Dispostos a conquistar novos servos para Deus [...]
jesuítas é “superior” à cultura dos indígenas. esses homens extraordinários compreenderam que
Guilherme de Melo escreveu sua obra em lhes deveriam falar à sensibilidade. Percebendo
1908, o que torna compreensível se sua visão de esse domínio da música sobre o gentio, os jesuítas
30 SIMPEMUS3

empregaram-na para a catequese. (ALMEIDA, parece ignorar os fatores históricos relacionados à


1926, p. 189-190). catequização, e assim, costuma tratar a ação
jesuítica como uma “necessidade natural”, ou seja,
O mesmo autor continua, dizendo que os a cristianização dos povos selvagens e a criação da
acentos da música trazida pelos jesuítas futura nação brasileira. Além disso, tais autores
empolgavam os indígenas “que, desde a primeira trabalharam num contexto onde estavam presentes
missa, se deixaram enleiar pelas suas melodias” diversas teorias evolucionistas, que consideravam
(ALMEIDA, 1926, p. 189). Caldeira Filho, por sua que povos “primitivos” evoluem para povos
vez, nos diz que o pendor dos indígenas para a “civilizados”.
música dos jesuítas [grifo nosso] fora responsável Apesar do declínio de tendências
pelo êxito da catequese (CALDEIRA FILHO, 1954, evolucionistas no estudo dos problemas brasileiros,
p. 129). Gastão de Bittencourt, diz que os com o Modernismo, que cedem espaço a
jesuítas, “certos da grande verdade a que se abordagens que visavam, antes de tudo, a
refere Simão de Vasconcelos, ‘a suavidade do unificação da cultura brasileira, a historiografia
canto fazia entrar nas almas a inteligência das musical dedicada aos jesuítas mantém um traço
coisas do céu’, iniciaram com a sua catequese, a evolucionista em textos produzidos de 1908 até
divulgação do gosto pela música” (BITTEN- aproximadamente meados da década de 1950.
COURT, 1945, p. 20).
Contradições à parte, se poderia dizer,
Como veremos a seguir o que estes textos finalmente, que a tendência verificada em nossa
parecem difundir é a idéia de que, por mais historiografia musical, que lança mão do recurso
distantes que estivessem os índios dos jesuítas, dos “heróis-civilizadores” que “nacionalizam” o
em termos “evolutivos”, havia algo que os atraía Brasil, está em perfeita consonância com a
e que os ligava àquela música. Segundo Renato tendência musical modernista, que, a partir da
Almeida: “Havia uma influência indefinível e síntese de um fundamento harmônico europeu aos
instintiva que atuava sobre a sensibilidade elementos nativos, com a predominância do
grosseira dos índios e aqueles cantos e aqueles primeiro, deveria construir a verdadeira música
hinos lhes pareciam vozes celestiais” (ALMEIDA, “brasileira”.
1926, p. 189). Por sua vez, Vicenzo Cernicchiaro
nos diz que em cada raça humana se encontra o
fundamento de todas as outras manifestações
artísticas, e assim, presume que “a música deva
interessar igualmente todo espírito humano de
grau superior ou inferior, no desenvolvimento e
perfeição da arte que o circunda”
(CERNICCHIARO, 1926, p. 27)1.
Segundo nos parece, tais textos
evidenciam uma idéia de que há uma espécie de
“fundamento comum” às diferentes raças, ou
seja, de que criaturas da mesma ”espécie”,
distintas apenas pela raça, estariam sujeitas às
mesmas “leis evolutivas”. Se Renato Almeida
prefere se manifestar em termos de uma
“influência indefinível e instintiva”, Cernicchiaro
é mais explícito ao afirmar, indiretamente, que
o espírito humano subdivide-se em “graus”
inferiores ou superiores.

Conclusão
Ao se concentrar na cronologia e
narrativa da vida dos “grandes homens” e dos
“formadores” do Brasil, a historiografia musical
brasileira, que surge no início do século XX,

1
“... la musica debba interessare in pari ogni spirito umano
di grado inferiori o superiori, nello svolgimento e
perfezione dell’arte che lo circunda”.
simpósio de pesquisa em música 2006 31

Referências
ALLEN, Dwight. Philosophies of music history: a study of general histories of music 1600-1960. New York:
Dover, 1962.
ALMEIDA, Renato. Compêndio de história da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1948.
_____ História da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1926.
ALMEIDA, Renato. Amplitude do espírito moderno. Movimento. Revista de crítica e informação, v. 1, n. 2,
nov. 1928.
BITTENCOURT, Gastão de. História breve da música no Brasil. Lisboa: Seção de intercâmbio do S. N. I, 1945.
BURKE, Peter. História e teoria social. Trad. Klauss Brandini e Roneide Venâncio Majer. São Paulo: Editora
da UNESP, 2002.
CALDEIRA FILHO, João da Cunha. A Música em São Paulo. O Estado de S.Paulo; Edição do IV Centenário. São
Paulo, v. 75, n. 24.145, 25 de janeiro de 1954, p. 129-131.
CERNICHIARO, Vicenzo. Storia della musica nel Brasile dai tempi coloniali sino ai nostri giorni (1549-1925).
Milano: Fratelli Riccioni, 1926.
LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: Moderno, modernista, modernização. In: LORENZO, Helena
Carvalho de; COSTA, Wilma Pereira da (org.). A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo:
Editora da UNESP, 1997.
KERMAN, Joseph. Musicologia. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
MELLO, Guilherme Theodoro Pereira de. A música no Brasil desde os tempos coloniaes até o primeiro
decênio da República por Guilherme Theodoro Pereira de Mello. Bahia: Typographia de S. Joaquim, 1908.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.
RODRIGUES, José Honório. Teoria da história do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1978. 5. ed.
ROMERO, Silvio. História da literatura brasileira, 2. ed. Rio de Janeiro: Garnier, 1902.
Políticas públicas para cultura e produção musical em
Curitiba - 1971 a 1983
Ulisses Quadros de Moraes
Universidade Federal do Paraná

Resumo
Este trabalho apresenta uma proposta metodológica de análise de fontes em relação às políticas públicas
para a área da música popular e para a produção musical curitibanas, no período que se estende entre os
anos de 1971 e 1983, com a utilização dos conceitos de campo, habitus e capital Simbólico, desenvolvidos
por Pierre Bourdieu. O recorte temporal definido se deve, principalmente, por ser relativo aos mandatos de
Jaimer Lerner (1971 a 1974), Saul Raiz (1975 a 1979) e novamente Jaimer Lerner (1979 a 1983), período de
implementação do que se tornaria conhecido por “lernismo” na capital paranaense, e que promoveu
profundas modificações urbanísticas e culturais em Curitiba.
A utilização dos conceitos de campo, habitus e capital simbólico, como norteadores teóricos da pesquisa, se
deram graças a contribuições dos professores doutores Dennison de Oliveira, meu orientador, e Judite Maria
Trindade e Luiz Carlos Ribeiro, professores do departamento de História da Universidade Federal do Paraná.
Durante toda a sua carreira intelectual, Bourdieu manteve estreitos laços com questões relativas à educação,
cultura, arte, comunicação e política. Suas obras As regras da arte, Economia das trocas simbólicas, O poder
simbólico e razões práticas, são onde o autor desenvolve com brilhantismo os conceitos aqui utilizados,
principalmente no que se refere à noção de práticas sociais, as relações de poder nelas existentes e os
limites e as regras de atuação individuais e coletivos.
De posse desses conceitos, vamos abordar nossas fontes dentro da perspectiva de Campo Artístico-Cultural
(onde nossos atores agiram) o qual abarcará os Sub-Campos Político (gestores públicos), Artístico e Cultural
(músicos populares e produtores) e da Imprensa (jornalistas ligados às artes e à cultura). Por fim, os
resultados práticos das políticas públicas Lernistas para a promoção da musica curitibana nos cenários local e
nacional serão analisadas à luz das fontes disponíveis.

Marcar época é, inseparavelmente, fazer existir uma nova posição para


além das posições estabelecidas, na dianteira dessas posições, na
vanguarda, e, introduzindo a diferença, produzir o tempo.
- Pierre Bourdieu

Introdução jovem arquiteto Jaime Lerner1, do Teatro Paiol, o


O presente trabalho tem por objetivo a qual se tornaria um dos símbolos das ações públicas
discussão metodológica para um estudo sobre as para a área da música2; b) a criação, em 1973, da
políticas públicas para a cultura voltadas para a Fundação Cultural de Curitiba3, responsável pela
música popular em Curitiba entre os anos de implementação das ações culturais municipais; c) a
1971 a 1983, correspondes aos mandatos dos promoção – num movimento conjunto dos músicos e
prefeitos Jaime Lerner (1971 a 1974), Donato compositores curitibanos e poder público municipal
Gulin (presidente da Câmara Municipal de – do Movimento Artístico do Paiol – MAPA4, um dos
Curitiba que assumiu interinamente a prefeitura
em 1974), Saul Raiz (1975 a 1979) e novamente 1
A respeito do Paiol, ver
Jaime Lerner (1979 a 1983), período de www.fundacaoculturaldecuritiba.com.br: “Antigo Paiol de
implementação do que viria a ser conhecido por Pólvora transformado em teatro em 1971, o Teatro do Paiol é
um símbolo cultural e histórico de Curitiba. Sua criação foi o
“lernismo” na capital do estado do Paraná, com marco das reformas urbanísticas e culturais implementadas
a promoção de mudanças urbanísticas e culturais na cidade a partir da década de 70.” (grifo nosso).
significativas. 2
A imagem do Teatro Paiol se tornaria posteriormente o símbolo
A escolha desse recorte se deveu aos da Fundação Cultural de Curitiba.

seguintes fatores: a) a inauguração, em 1971, no 3


Lei Ordinária 4545/1973 de 05/01/1973, que cria a Fundação
Cultural de Curitiba.
primeiro ano do primeiro governo do então
4
O MAPA, desenvolvido ao longo dos anos 1974 e 1975, foi uma
grande ferramenta para a projeção local de alguns dos nomes
ainda hoje considerados como de expressão na música popular
curitibana. Com o objetivo de estabelecer mecanismos de
simpósio de pesquisa em música 2006 33
acontecimentos mais marcantes da década de 70 Dentre suas inúmeras publicações ao longo de
no campo da música popular; e d) os resultados mais de 30 anos de carreira, sua obra rompeu os
efetivos dessas ações e sua relação com as limites das ciências sociais, abrangendo áreas da
iniciativas governamentais estadual e federal, história e filosofia principalmente, influenciando
contextualizadas num cenário nacional de grande um universo consideravelmente amplo das ciências
efervescência social e política. humanas. Nas palavras de Habermas, “com Pierre
Considerando que qualquer ação que Bourdieu, desaparece um dos últimos grandes
objetive a inserção de uma produção artística sociólogos do século XX, indiferente às fronteiras
num mercado consumidor e dar condições de entre as disciplinas”.
viabilidade a seus produtores – subsistência e Entretanto, a despeito do vasto alcance
capacidade de investimento, devemos pensar nos bourdieuniano, optamos por nos atermos a três
valores simbólicos produzidos por essas ações e conceitos fundamentais de seu pensamento, no que
na conseqüente existência de demanda para se refere à noção de praticas sociais, suas relações
esses valores. Dada à concentração dos agentes de poder e os limites e as regras de atuação
da indústria cultual no eixo Rio – São Paulo5, individuais e coletivos que se traduzem nas
qualquer atividade que se efetivasse fora desses estruturações de estruturas estruturadas e
limites encontrava dificuldades para sua estruturantes. Falamos dos conceitos de campo,
manutenção e subsistência plenas. Desse modo, habitus e capital simbólico, que encontram sua
os investimentos públicos mostraram-se como fundamentação em três importantes obras de nosso
uma espécie de salva-guarda para a música de autor: A economia das trocas simbólicas, O poder
regiões periféricas àqueles centros. Para a simbólico e As regras da arte6.
música de Curitiba, por exemplo.
Lançaremos mão de documentos escritos, Sobre o conceito de habitus
registros em áudio e fontes orais, utilizando para
Não é tarefa fácil a compreensão do
sua análise conceitos propostos pelo sociólogo
pensamento de Pierre Bourdieu, dada sua extrema
francês Pierre Bourdieu, especificamente no que
complexidade de raciocínio e uma exposição
concerne à noção de campo, com incorporações
bastante rebuscada de idéias e princípios.
também das noções de habitus e capital
Entretanto, numa leitura mais atenta de seus
simbólico.
escritos, nos deparamos com uma coerência e
solidez impressionantes vindos de sua erudição e da
Pierre Bourdieu abrangência de suas influências intelectuais.
Pierre Bourdieu, nascido na França em Iniciamos nosso trabalho abordando o
1930, foi um dos principais intelectuais de sua conceito de habitus, nos utilizando primeiramente
época. Professor de sociologia no Collège de de um alerta do próprio Bourdieu:
France, diretor da Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais e diretor da revista Actes de a noção de habitus exprime, sobretudo, a recusa a
Recherche en Sciences Sociales, suas toda uma série de alternativas nas quais a ciência
contribuições para o pensamento contemporâneo social se encerrou, a da consciência (ou do sujeito)
foram inúmeras, sempre com enfoque para e do inconsciente, a do finalismo e do
questões de educação, cultura, arte e, em seus mecanicismo, etc. (BOURDIEU, 2003, P. 60).
últimos anos de vida, também para os estudos de
comunicação e política. Norteando-nos por essa recomendação,
Intelectual atuante tanto nos meios esboçamos nosso entendimento acerca desse
acadêmicos quanto políticos, Bourdieu se habitus, que pode ser entendido por um conjunto
manteve intransigente aos limites existentes de propensões que permitem aos indivíduos agirem
entre sua militância política e o rigor acadêmico dentro de uma estrutura social determinada com
de suas pesquisas.
6
Essas obras, de suma importância para a compreensão do
pensamento de Pierre Bourdieu no que se refere à noção de
produção e divulgação da música curitibana, do movimento Campo, Habitus e Poder Simbólico, podem ser assim
resultou um LP, lançado em 1975, com canções de seus resumidas: O Poder Simbólico, onde o autor discorre sobre a
principais atores. gênese dos mecanismos de ação e coerção em uma sociedade;
A Economia das Trocas Simbólicas, um estudo da simbologia
5
Gravadoras e distribuidoras, jornais e revistas de circulação social presente em práticas nos diversos níveis de poder em
nacional, além de redes de televisão, têm suas sedes, uma sociedade; e As Regras da Arte, uma análise sobre a
mesmo nos dias atuais, concentradas em sua quase autonomização do fazer artístico, tendo como foco “A
totalidade nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. educação sentimental”, de Gustave Flaubert.
34 SIMPEMUS3

vistas à manutenção de sua dinâmica que sofrem influências – e, portanto, modificações –


organizacional. Desse modo, o habitus adquire de seus atores.
uma conotação conservadora na dinâmica social. Entretanto, os campos têm de ser entendidos
Seguindo a definição de Bourdieu, o relacionalmente no conjunto social. Sendo
habitus deve ser pensado efetivamente forjados através de ações e reações,
campos determinados relacionam-se entre si,
como sistema das disposições socialmente estabelecem ligações com outros campos e
constituídas que, enquanto estruturas estrutu- formam, por conseqüência, espaços sociais mais
rantes, constituem o principio gerador e abrangentes, conexos, influenciadores e influen-
unificador do conjunto das práticas e das ciados.
ideologias características de um grupo de A respeito dessas relações, temos, mais uma
agentes. (BOURDIEU, 2005, p.191).
vez, o auxílio do próprio Bourdieu,

Procuramos o conhecido, o seguro. É claro


O campo, no seu conjunto, define-se como um
que não podemos desprezar o dinamismo das sistema de desvio de níveis diferentes e nada, nem
ações individuais ou coletivas, dinamismo esse nas instituições ou nos agentes, nem nos actos ou
que encerra em seu bojo a luta pela prevalência nos discursos que eles produzem, têm sentido
de determinadas idéias em relação a outras e senão relacionalmente, por meio do jogo das
que pode se constituir na luta pela dominação o oposições e das distinções. (BOURDIEU, 2003, p.
que, consequentemente, resulta em 179).
modificações das estruturas sociais. Entretanto,
“o habitus [...] indica a disposição incorporada, Para nossa pesquisa, o aspecto relacional dos
quase postural” (p. 61), disciplinando campos será de extrema valia. Entendendo que
comportamentos, do que deriva campos nosso “objeto em questão não está isolado de um
estruturados e estruturantes dos mais diversos. conjunto de relações de que retira o essencial de
Em nossa pesquisa, a identificação dos suas propriedades” (idem, p. 27), a dinâmica
habiti de nossos atores em seu campo distinto, interna de um campo, as inter-relações de seus
será de extrema relevância para que possamos vários agentes e as reações resultantes desse
compreender as “regras da arte” constituídas ao processo, nos fornecerão clareza e abrangência
longo de 12 anos de história. quanto às conceituações Bourdieunianas7.

7
“Uma das dificuldades da análise relacional está, na maior
Sobre o conceito de campo parte dos casos, em não ser possível apreender os espaços
sociais de outra forma que não seja a de distribuições de
A começar pela idéia bourdieuniana de propriedades entre indivíduos. É assim porque a informação
campo, vamos encontrar nas palavras de Roger acessível está associada a indivíduos. Por isso, para apreender
Chartier uma definição bastante elucidativa a o sub-campo do poder econômico e as condições econômicas e
sociais de sua reprodução [por exemplo,] é na verdade
respeito de sua amplitude conceitual, a sua obrigatório interrogar os duzentos patrões franceses mais
natureza relacional e sua abrangência importantes. Mas é preciso, custe o que custar, precaver-se
metodológica. Para Chartier contra o retorno à “realidade” das unidades pré-construídas.
Para isso, sugiro-vos o recurso a esse instrumento de
construção do objecto, simples e cômodo, que é o quadro dos
caracteres pertinentes de um conjunto de agentes ou de
Os campos, segundo Bourdieu, têm suas instituições: se se trata, por exemplo, de analisar diversos
próprias regras, princípios e hierarquias. São desportos de combate (luta, judô, aikidô, etc.) ou diversos
definidos a partir dos conflitos e das tensões no estabelecimentos de ensino superior, ou ainda diversos jornais
que diz respeito à sua própria delimitação e parisienses, inscreve-se cada uma das instituições em uma
linha e abre-se uma coluna sempre que se descobre uma
construídos por redes de relações ou de propriedade necessária para caracterizar cada uma delas, o
oposições entre os atores sociais que são seus que obriga a pôr a interrogação sobre a presença ou ausência
membros. (CHARTIER, 2002, p. 140). dessa propriedade em todas as outras – isto, na fase
puramente indutiva da operação; depois, fazem-se
desaparecer as repetições e reúnem-se as colunas que
Os campos são, pois, caracterizados por registram características estrutural ou funcionalmente
equivalentes, de maneira a reter todas as características – e
espaços sociais, mais ou menos restritos, onde as essas somente – que permitem descriminar de modo mais ou
ações individuais e coletivas se dão dentro de menos rigoroso as diferentes instituições, as quais são, por
certa normatização criada e transformada isso mesmo, pertinentes. Esse utensílio muito simples tem a
faculdade de obrigar a pensar relacionalmente tanto as
constantemente por essas próprias ações. unidades sociais em questão como as suas propriedades,
Dialeticamente, esses espaços, ou estruturas, podendo estas ser caracterizadas em termos de presença ou
de ausência (sim/não). Mediante um trabalho de construção
trazem em seu bojo uma dinâmica própria deter- dessa natureza – que se não faz de uma só vez, mas por uma
minada e determinante, na mesma medida em série de aproximações – constoem-se, pouco a pouco, espaços
sociais os quais – embora só se ofereçam em forma de
simpósio de pesquisa em música 2006 35
Faremos, assim, uma análise das relações era do que uma dentre outras tantas atividades a
entre os meios políticos, artísticos e culturais da serviço de uma ordem maior.
cena curitibana dos anos 70, procurando Mas como poderemos identificar a gênese do
entender a atuação de seus agentes, suas “mundo das artes” ou da autonomização de seus
limitações e suas estratégias para efetivar ações agentes, o que levou à elaboração ideológica do
visando interferir nos rumos da produção musical que entendemos hoje por arte e/ou artista? Uma
de então. Essa idéia nos auxiliará a definir resposta possível nos é dada por Bourdieu:
diferentes aglutinações de atores que
constituirão nosso conceito de campo. Assim,
o processo conducente à constituição da arte
nosso trabalho estará voltado para a construção
enquanto tal é correlato à transformação da
do campo artístico-cultural (onde nossos atores relação que os artistas mantêm com os não-
agiram) o qual abarcará os sub-campos político artistas e, por esta via, com os demais artistas,
(gestores públicos), artístico e cultural (músicos resultando na constituição de um campo artístico
populares e produtores) e da imprensa relativamente autônomo e na elaboração
(jornalistas ligados às artes e à cultura). concomitante de uma nova definição da função do
artista e de sua arte. (BOURDIEU, 2005, p. 101).
Nessa perspectiva, analisaremos as
relações entre as personagens dentro e fora
desse campo8, as tensões de seus diferentes Para ser possível a construção de um campo
agentes entre si, e, por fim, os resultados dessas artístico autônomo, foi necessária uma nova
relações para a construção de um ambiente de definição do artista e da própria arte na sociedade,
atuação artística e política visando à exposição e o que se deu como resultante da modificação
a valorização da produção musical de Curitiba. gradativa da idéia social da própria arte. Agora não
mais um ofício como outro qualquer, mas sim um
ofício com um status especial, ligado à erudição e a
Sobre o conceito de capital simbólico distinção.
Antes de falarmos sobre o capital Como conseqüência, essa elaboração tem de
simbólico, é necessária uma breve explanação ser observada num jogo determinado de poder,
acerca do processo de autonomização dos com suas ações e contradições. Se à força de uma
agentes artísticos. ação ou de um poder de ação para a efetivação
É sabido que as artes musicais não gozaram desse capital simbólico está vinculado seu
ao logo dos séculos do mesmo status que gozam enraizamento numa determinada estrutura – força
em nossos tempos. Até o século XVIII, a depen- essa aceita tanto pelos que a exercem quanto pelos
dência que os “trabalhadores dessas artes” que desse exercício sofrem suas influências – seu
tinham em relação à nobreza ou à igreja, reconhecimento por todos os agentes de uma
interferia sobremaneira em sua produção. Além sociedade é condição primeira para sua introjeção
disso, e com sua atuação limitada às como valor social.
necessidades de seus financiadores, os “artistas”
de então não possuíam ampla liberdade criativa9, O capital simbólico – outro nome da distinção – não
nem tampouco essa liberdade era requerida ou é outra coisa senão o capital, qualquer que seja a
almejada por eles. O fazer artístico nada mais sua espécie, quando percebido por um agente
dotado de categorias de percepção resultantes da
incorporação da estrutura da sua distribuição,
quer dizer, quando conhecido e reconhecido como
relações objetivas muito abstractas e se não possa tocá-los
nem apontá-los a dedo – são o que constitui toda a algo de óbvio. (BOURDIEU, 2003, p. 145).
realidade do mundo social”. (BOURDIEU, 2003, p. 29–30).
8
É preciso que entendamos que tanto no interior quanto na Aceito por todos como ingrediente natural da
órbita de nosso campo artístico-cultural, gravitam atores estrutura social, desse capital simbólico deriva um
com objetivos diversos. Se há, é certo, um esforço para a
manutenção das estruturas de poder e organização nos poder simbólico que é
seus mais variados aspectos dentro de cada campo, há
também esforços de agentes ainda excluídos desse campo,
no sentido de promover sua inserção e, por conseqüência, um poder que aquele que lhe está sujeito dá
participação efetiva na consolidação dessa estrutura. Um àquele que o exerce, um crédito com que ele o
jogo de forças, às vezes com objetivos similares, às vezes credita, um fide, uma auctoritas, que lhe confia
antagônicos, que constituem a natureza dos campos.
pondo nele a sua confiança. É um poder que existe
9
Podemos pensar que essa “liberdade criativa”, ainda não porque aquele que lhe está sujeito crê que ele
estava presente nos anseios artísticos. Pelo contrário, a
existe. (idem, p. 177).
autonomização das produções artísticas e intelectuais é
que viria a favorecer, mais adiante, o aparecimento do
chamado valor artístico como o entendemos hoje.
36 SIMPEMUS3

Novamente nos cabe recorrer à Bourdieu relações, que deve ser posto à prova como tal.
para entendermos o que é realmente esse poder (BOURDIEU, 2003, p. 32).
simbólico:
A construção de nosso modelo de pesquisa
O poder simbólico é um poder de construção da
está baseada, como já dissemos, em fontes
realidade que tende a estabelecer uma ordem documentais escritas, arquivos de áudio e
gnoseológica: o sentido imediato do mundo (e, depoimentos orais (fontes orais). Abordaremos as
em particular, do mundo social) supõe aquilo a relações entre as políticas públicas para a música
que Durkheim chama o conformismo lógico, popular e as ações dos agentes artísticos (músicos,
quer dizer, “uma concepção homogênea do produtores e jornalistas culturais), no campo
tempo, do espaço, do número, da causa, que político-cultural curitibano, procurando entender o
torna possível a concordância entre as esforço conjunto dos atores de um tempo
inteligências”. (ibidem, p. 9).
determinado por nosso recorte, em construir um
mercado para a produção de seus bens simbólicos,
A esse poder simbólico, reconhecível e sem restringir nosso raciocínio a um pensamento
reconhecido pelos atores de seu tempo, cabem economicista. Pelo contrário, buscaremos nas ações
as análises mais cuidadosas, à luz das fontes sociais as práticas de seus diferentes agentes, seus
disponíveis. Quem exerce esse poder? Em nome objetivos, seus fundamentos e suas conquistas.
de quem? Sobre quem? Quais seus objetivos?
Dividimos nossas fontes em dois grandes
Quais suas limitações? Quais suas conseqüências?
grupos, a saber: fontes documentais, que se
Onde ele está localizado?
subdividem em fontes escritas e registros em áudio;
A todas essas questões, precisamos relacio- e fontes orais, que construiremos com entrevistas
nar o valor atribuído às ações dos agentes sociais realizadas com alguns dos nomes mais atuantes de
e o poder que dessas ações emana. Na nosso recorte temporal.
construção do campo artístico-cultural
abrangendo os gestores públicos, artistas e
produtores culturais e jornalistas ligados à arte e Fontes documentais
a cultura na Curitiba dos anos 70 e 80, As fontes documentais escritas que serão
investigaremos as condições em que esse campo utilizadas são bastante abundantes. Em relação às
se constituiu, suas conseqüências para a ações públicas municipais, os arquivos da Câmara
efetivação de práticas e valores políticos, Municipal de Curitiba disponibilizam toda a
artísticos e culturais e sua interferência nos legislação da capital paranaense desde 194710.
rumos das ações artísticas musicais de então. Contendo decretos legislativos, emendas à lei
Procurar o poder simbólico resultante das orgânica, leis complementares, leis ordinárias e
práticas sociais desses agentes e o real resoluções, os documentos são sinais importantes
significado desse Poder, suas origens e seu dos rumos da política cultural levada a cabo pelos
reconhecimento pelos atores de nosso “palco”. gestores públicos no período estudado. Os Anais da
Isso constitui, em última instância, a tarefa mais Câmara, documentos impressos disponíveis em
importante de nossa pesquisa. arquivos na Câmara Municipal de Curitiba, também
serão consultados como fontes sobre os debates
ocorridos acerca dos processos legislativos
Tipologia das fontes
concernentes ao nosso tema.
Nos arquivos da Casa da Memória - Fundação
Construir o objeto supõe também que se tenha,
Cultural de Curitiba - há uma vasta documentação
perante os factos, uma postura activa e
sistemática. Para romper com a passividade composta de publicações oficiais, relatórios anuais
empirista, que não faz senão retificar as pré- da Fundação Cultural e da Prefeitura Municipal de
construções do senso comum, não se trata de Curitiba, dentre outros. Nesses documentos, nossas
propor grandes construções teóricas vazias, mas atenções estarão voltadas para a visão dos gestores
sim de abordar um caso empírico com a sobre as características culturais da capital
intenção de construir um modelo – que não tem paranaense, sua relação com os demais órgãos
necessidade de se revestir de uma forma públicos (Secretaria de Estado da Educação e
matemática ou formalizada para ser rigoroso –,
Cultura e Teatro Guaira, principalmente) e a
de ligar os dados pertinentes de tal modo que
elaboração e efetivação de projetos para a música
eles funcionem como um programa de pesquisas
que põe questões sistemáticas, apropriadas a popular.
receber respostas sistemáticas; em resumo,
trata-se de construir um sistema coerente de 10
Disponível digitalmente no sítio <http://www.cmc.pr.gov.br>
simpósio de pesquisa em música 2006 37
Os gestores públicos municipais comporão, despendida pela imprensa local às investidas
portanto, nosso sub-campo político do período musicais curitibanas.
lernista, sobre o qual vamos proceder a um Não obstante Aramis Millarch ter sido apenas
estudo de práticas administrativas bem como de um dentre vários jornalistas a escreverem sobre
suas relações com outras esferas do poder música, seus textos requerem um cuidado especial
público. por sua paixão pelas artes e por sua ligação com a
No que diz respeito ao sub-campo artístico valorização dos movimentos artísticos e culturais
e cultural, concentraremos nossas atenções locais, além de seu nome ser um dos mais
também nos arquivos da Casa da Memória, além expressivos da imprensa local, lembrado com
do acervo do Museu da Imagem e do Som (MIS), unanimidade por todos os atores, seus
este último vinculado à Secretaria de Estado da contemporâneos.
Cultura do Paraná. Não podemos deixar de lado outro veículo de
Na Casa da Memória, há registros em comunicação da imprensa escrita que teve um
11
áudio de eventos ocorridos no Teatro do Paiol, papel importante em nosso recorte temporal.
que serão úteis para conhecermos as Falamos do periódico Gazeta do Povo, que também
características estéticas da produção musical guarda preciosidades relativas ao nosso tema.
curitibana, além de serem uma mostra do poder Com essa documentação, comporemos nosso
de aglutinação de público que essa produção acervo de fontes escritas, que será comple-
detinha. Alguns outros registros em áudio e uns mentado com a realização de entrevistas, conforme
poucos em vídeo estão sob responsabilidade do descrito a seguir.
Museu da Imagem e do Som, principalmente os
referentes a espetáculos realizados no auditório
Salvador de Ferrante. Essa documentação nos Fontes orais
dará indícios preciosos a respeito da produção da Após o levantamento prévio da documentação
música popular dos anos 70 e 80. mencionada, achamos que poderíamos ter um
Por último, ainda estarão sob nossos acréscimo de conteúdo mediante realização de
olhares os arquivos dos meios de comunicação da entrevistas com alguns dos protagonistas da cena
imprensa escrita, que comporão nosso sub-campo musical curitibana. Elaboramos um mapeamento de
jornalístico. As produções de seus agentes nomes que apareceram com mais freqüência nos
contêm pistas sobre sua relação com as textos jornalísticos e em cartazes e panfletos de
expectativas dos artistas e gestores públicos de divulgação de espetáculos musicais realizados no
então e sua contribuição para a exposição das Teatro Paiol, administrado pela prefeitura de
ações políticas voltadas para a música popular e Curitiba, e no Auditório Salvador de Ferrante14.
da produção musical dos talentos curitibanos. Elegemos num primeiro momento os artistas
Nesse sub-campo, elegemos como foco de nossas Paulo Vitola, Marinho Galera, Celso Pirata, Aderbal
atenções o jornalista Aramis Millarch12, um dos Fortes, Sergio Maluf, Euclides Cardoso, Gerson
mais importantes e atuantes profissionais da Fisben e Carlos Amaral15, todos eles personagens
área, que esteve em plena atividade nas décadas bastante atuantes na cena musical dos anos 70.
de 70 e 80. Já temos catalogados centenas de Desses, realizaremos entrevistas com Paulo Vitola,
artigos assinados por ele em diversos cadernos Marinho Galera, Celso Pirata e Sergio Maluf, por se
principalmente do jornal O Estado do Paraná, tratarem de nomes de destaque no Movimento
com boa parte de seus escritos disponíveis para Artístico Paiol – MAPA, foco artístico de nossas
consulta13. Esses textos nos darão um indício do atenções, e cujas obras obtiveram maior
volume das produções musicais do período em repercussão junto ao público e à critica
questão e serão bons exemplos da atenção especializada. Também realizaremos uma
entrevista com o ex-prefeito de Curitiba, Jaime
Lerner, cujo depoimento deverá acontecer no
11
primeiro semestre de 2007.
Estão disponíveis para consulta na Casa da Memória de
Curitiba, fitas de rolo e cassete com o registro em áudio de
muitos espetáculos realizados no Teatro Paiol desde sua 14
inauguração no final de dezembro de 1971. Além desses dois teatros, destacava-se também, nos anos 70 e
80, o Teatro do SESI. Localizado próximo ao passeio público,
12
Alem de jornalista atuante, Aramis Millarch foi o primeiro área central de Curitiba, o espaço foi destruído por um
presidente da Fundação Cultural de Curitiba, quando de incêndio no final dos anos 80.
sua fundação em 1973. 15
Mais dois nomes teriam presença obrigatória em nossas
13
Dos milhares de artigos escritos por Aramis Millarch ao entrevistas, não fosse o fato de terem prematuramente
longo de sua carreira, muitos foram já digitalizados e estão falecido. São eles Paulo Leminski e Palminor Rodrigues, o
disponíveis no sítio <http://www.millarch.org/> Lápis.
38 SIMPEMUS3

O que justifica nossa opção pela resultantes, são de suma importância para
elaboração de entrevistas com algumas das construirmos um panorama sobre um lado da
personagens dessa história, pode ser apreendido história curitibana ainda muito pouco explorado
pelas palavras de Robert Frank: pela historiografia. A exceção de artigos e
pesquisas acadêmicas publicadas recentemente
A história é, entre outras coisas, um inquérito sobre o tema16, pouco se sabe desse cenário.
quase no sentido policial do termo, com É nesse contexto que procederemos ao
indícios, depoimentos e testemunhas. O estudo das fontes, procurando decifrar os enigmas
depoimento oral não constitui necessariamente que nos propõe as ações políticas, musicais e
uma prova, mas pode ser uma boa contribuição jornalísticas na década de 70.
para a busca da prova ou das provas (FRANK,
1999, p. 106). Por último, vale lembrar que nossa pesquisa
não negligenciou a importância de outras vertentes
musicais. A música erudita, a música folclórica, a
Ao lado da análise das fontes documentais,
música regional ou sertaneja são extremamente
os depoimentos de agentes da cena musical
relevantes para uma construção mais fiel desse
curitibana dos anos 70 serão de extrema
passado. Entretanto, deixamos essa tarefa para
importância. De um lado, músicos e produtores
projetos futuros que, imbuídos do ideal de
culturais, com seus anseios, seus projetos de
entender a participação da produção musical
vida e sua relação com a burocracia, já que o
curitibana num contexto nacional, almejarem
MAPA também era uma associação que possuía
avaliar suas ações, suas limitações e, é claro, suas
uma estrutura organizacional que demandava
realizações, que foram muitas.
afazeres distintos – embora conexos – aos
artísticos. De outro os gestores públicos, com sua
visão administrativa “inovadora” e, obviamente,
detentora dos recursos financeiros e de infra-
estrutura disponíveis na Curitiba da época.
Assim, sabendo que

Os depoimentos não só auxiliam na


reconstrução de organogramas administrativos e
no esclarecimento das funções dos diferentes
órgãos, como permitem novas análises sobre
suas relações e sobre os processos de tomada de
decisão. Possibilitam também refletir sobre
tremas como o esprit de corps dos funcionários,
permanências e transformações em seus
conflitos geracionais, em seus projetos e
representações. Permitem em suma que a
descrição das grandes estruturas dê lugar a uma
história dos homens. (FERREIRA, 1994, p. 7 e 8),

as fontes orais serão ferramentas-chave


para um entendimento das ações, conquistas e
limitações resultantes de um complexo de
relações entre os agentes da musica popular, os
gestores do poder público local em suas várias
instâncias e a imprensa, suas inter-relações num
contexto regional, onde se inserem
principalmente os órgãos públicos estaduais e
federais, e suas conseqüências para a visibilidade
da produção da música popular curitibana em
16
âmbito local, estadual e nacional, num período Referimo-nos às publicações dos professores Marcelo
Sandmann, do Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e
de consolidação da indústria cultural no Brasil. Vernáculos acerca de aspectos da produção musical dos anos
Entendemos que o estudo das políticas 90; e Dennison de Oliveira, do Departamento de História,
abordando o suposto sucesso do planejamento urbano
públicas para cultura e as relações da produção implementado em Curitiba nos anos 60 e 70, ambos do Setor
artística local com essas políticas bem como as de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal
do Paraná. (op. cit.)
conseqüências, êxitos e fracassos delas
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TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Edições 34, 2002.
Música e identidade dekassegui
Beatriz Senoi Ilari
Universidade Federal do Paraná

Resumo
O movimento Dekassegui – que em japonês significa ‘movimento daqueles que trabalham longe de casa’ – se
tornou popularmente conhecido em 1990, quando a lei de imigração japonesa permitiu a contratação de
nipo-descendentes para trabalhar em empresas japonesas. Apesar de haver um grande número de
trabalhadores brasileiros residindo atualmente no Japão, a adaptação à terra do sol nascente continua sendo
difícil para a maioria dos nipo-brasileiros, e o idioma japonês a primeira barreira. Assim que chegam ao
Japão, muitos nipo-brasileiros passam por uma profunda crise de identidade já que possuem características
físicas “japonesas”, mas são, culturalmente falando, uma mistura de japonês e brasileiro. Tais conflitos,
aliados às dificuldades inerentes a qualquer processo migratório, representam um desafio para a sociedade
japonesa. Considerando que a música exerce um papel importante na identidade, é importante
compreender seu papel na construção (e reconstrução) das identidades pessoal, cultural e nacional dos nipo-
brasileiros residentes no Japão. O presente estudo foi baseado em observações de campo e entrevistas
realizadas com crianças e adultos nas municipalidades de Kariya-Shi e Homi-Danchi (província de Aichi-Ken)
em julho e agosto de 2005, com financiamento da Fundação Japão. Os resultados sugerem que o uso da
música por dekasseguis está diretamente ligado a questões identitárias. Enquanto a música brasileira
pareceu servir como forma de preservação da identidade brasileira, a música japonesa esteve presente no
cotidiano dos dekasseguis somente quando foi percebida como sendo semelhante à música brasileira ou
quando foi vista como via de acesso à vida japonesa. Implicações do presente estudo para as áreas de
psicologia social e relações internacionais são apresentadas ao final do texto.
Palavras-chave: Dekassegui, música, identidade, relações internacionais Brasil-Japão

Em 2008, o Brasil comemora o centenário contratação de nipo-descendentes até a terceira


da imigração japonesa no país. Foi exatamente geração para as empresas japonesas (KAWAMURA,
em 18 de junho de 1908 que o navio japonês 2003). Segundo HIGUCHI & TANNO (2003), a
Kasato Maru atracou no porto de Santos com 781 preferência por nipo-descendentes foi tanto racial
imigrantes, dando origem a uma longa e rica quanto etnocultural. O imenso contingente de
história de relações internacionais entre os dois trabalhadores nipo-brasileiros rapidamente ficou
paises (NINOMIYA, 2000; SATO, 2003). conhecido como movimento dekassegui, ou,
A década de 1990 foi particularmente ‘movimento de pessoas que trabalham longe de
importante para as relações Brasil-Japão. O casa’.
Brasil vivia a ascensão e subseqüente crise da Era
Collor, e atravessava um período de grave crise Breve histórico do movimento dekassegui
econômica, apresentando uma taxa altíssima de
O movimento dekassegui é mais antigo do que
desemprego. Ao mesmo tempo, o Japão sofria
se costuma pensar. Kitagawa (1998) considera
uma grande crise de mão de obra em sua
quatro fases principais:
indústria, por possuir um índice elevado de mão
de obra qualificada e sem interesse para o
trabalho “braçal” pesado (HIGUCHI & TANNO, • 1964: Vinda de uma grande massa de
2003; KAWAMURA, 2003). Foi exatamente nesta trabalhadores de Okinawa ao Japão para trabalhar
época que o país viu crescer exponencialmente o na construção do parque olímpico para os jogos de
1972;
número de ofertas de empregos conhecidos por
3K1 (KITAGAWA, 1998; ROTH, 2002). Desprezados • 1985: Supervalorização da moeda japonesa (o
pelos japoneses, os anúncios começaram a atrair iene) no mercado internacional, o que gerou um
aumento de 13.000 estrangeiros trabalhando
milhares de imigrantes ilegais. Com o intuito de
ilegalmente no país;
regularizar a entrada de trabalhadores estran-
geiros no país, o governo japonês aprovou um • 1987: Início das intermediações, via agências de
empregos2, das relações entre trabalhadores nipo-
adendo à lei de imigração que permitia a
brasileiros e empresas japonesas;

1
Kiken-kitsui-kitanai, ou, perigoso-pesado-sujo. 2
Também conhecidas como brokers.
simpósio de pesquisa em música 2006 41
• 1990: Data da modificação da lei de imigração identidade, já que possuem características físicas
japonesa, que permitiu a entrada de milhares japonesas3, mas são, culturalmente falando, uma
de trabalhadores nipo-descendentes (sobretudo mistura de japonês e brasileiro (LINGER, 1999;
brasileiros e peruanos) no Japão. MIYASAKA et al, 2002; ROTH, 2002). Como sugere
Sato (2003, p. 1), os dekasseguis são ‘japoneses
Segundo as estatísticas do Governo do aqui, brasileiros lá’. Tal conflito leva muitos
Japão, há aproximadamente 360.000 nipo- dekasseguis a um questionamento profundo acerca
brasileiros trabalhando nas fábricas do país. Por de suas identidades nacional, cultural e pessoal.
esta razão, diversos pesquisadores têm Mas como se definem a identidade japonesa e a
investigado o movimento dekassegui e seu identidade brasileira? Estas duas identidades podem
impacto sobre os indivíduos e sobre as mesmo co-existir?
sociedades japonesa e brasileira (CARIGNATTO, Murphy-Shigematsu (2004) argumenta que ser
2002; GALIMBERTTI, 2002; HIGUCHI & TANNO, japonês não é nem uma questão biológica ou de
2003; KAWAMURA, 2003; KITAGAWA, 1998; nacionalidade, mas sim uma questão de experiência
MIYASAKA et al, 2002; ROTH, 2002). Mais e de conhecimento cultural. Entretanto, sua visão
recentemente, alguns estudos têm investigado o contradiz todo o conceito de Nihonjinron – uma
ajuste das famílias nipo-brasileiras ao estilo de ideologia bastante controversa que enfatiza a
vida japonês (veja KAWAMURA, 2003; LINGER, homogeneidade japonesa e seu caráter singular em
1999). O que a maioria desses estudos sugere é todos os aspectos da vida (KANNO, 2000). Para
que, apesar de haver um grande número de muitos seguidores desta ideologia, os japoneses que
trabalhadores brasileiros residindo atualmente não se parecem japoneses são chamados de haafu4,
no Japão, a adaptação à terra do sol nascente muito embora tal descrição pouco tenha a ver com
continua sendo difícil para a maioria dos nipo- suas identidades (MURPHY-SHIGEMATSU, 2004). A
brasileiros. Isso ocorre porque, ao cruzar definição de uma identidade japonesa é ainda mais
fronteiras, o indivíduo carrega consigo traços difícil quando se consideram os indivíduos que têm
étnicos, lingüísticos, religiosos e culturais ascendência japonesa, mas não possuem
(KITAGAWA, 1998), que têm um impacto direto nacionalidade ou qualquer vivência cultural
sobre a identidade em pelo menos três níveis: semelhante àquela dos japoneses que habitam o
nacional, cultural e pessoal. Japão (como é caso de muitos nipo-brasileiros). Em
outras palavras, apesar de sua aparência
Definindo identidades monolítica, a identidade japonesa é muito mais
multifacetada do que se costuma pensar (MURPHY-
Ainda que as nações sejam facilmente
SHIGEMATSU, 2004).
traçadas num mapa geográfico, o mesmo não
ocorre quando o assunto é a identidade nacional No entanto, a tarefa se torna ainda mais
ou a identidade cultural. De acordo com Murphy- árdua quando o assunto é a identidade brasileira. A
Shigematsu (2004), a nacionalidade de um história do Brasil contribuiu para criar um país
indivíduo não é mais que um artefato legal. mestiço, com grandes variações culturais e muitos
Segundo Folkestad (2002), o conceito de naciona- contrastes (RIBEIRO, 1972/1994). Muitos antropó-
lidade é constituído a partir de um processo ‘de logos e historiadores têm escrito sobre o tempera-
cima para baixo’ e pode ser compreendido como mento e a identidade dos brasileiros. Buarque de
uma espécie de elo que mantém indivíduos de Hollanda (1936), por exemplo, descreve o brasileiro
diferentes origens culturais e étnicas num mesmo como sendo cordial; alguém que gosta de agradar a
grupo. Já a identidade cultural advém de um todo custo, e que não mede esforços para fazê-lo.
processo ‘de baixo para cima’ porque freqüen- Já Da Matta (2001) fala sobre o caráter malandro
temente se baseia em manifestações que são dos brasileiros, que são freqüentemente relapsos e
bastante tradicionais, e, em muitos casos, mais preguiçosos no trabalho, apesar de serem ótimos
antigas que muitos limites territoriais. Por esta amigos. É interessante notar, porém, que os nipo-
razão, fica fácil compreender o porquê de muitas brasileiros nem sempre combinam com as
pessoas possuírem mais de uma identidade definições supracitadas. No Brasil, são
cultural (FOLKESTAD, 2002). E como não poderia freqüentemente vistos como um grupo diferenciado
deixar de ser, a identidade pessoal refere-se a de brasileiros, com identidades e manifestações
atributos pessoais altamente idiossincráticos, tais
como personalidade, traços físicos e intelectuais, 3
Entende-se por características físicas japonesas todos os
entre outros (veja TARRANT et al, 2002). atributos que nos fazem reconhecer um japonês como tal (os
olhos puxados, o cabelo preto e a cor da pele, entre outros).
Assim que chegam ao Japão, muitos nipo-
4
Haafu vem do inglês half.
brasileiros passam por uma profunda crise de
42 SIMPEMUS3

culturais próprias, inclusive preferências e crianças cursavam normalmente a escola e falavam


práticas musicais. japonês. Diferentemente, apenas 3 adultos
declararam ser completamente fluentes em
japonês. Com exceção de uma senhora que era
Sobre música e identidade
professora de língua japonesa para estrangeiros,
Na vida cotidiana, a música é freqüente- todos trabalhavam como dekasseguis, atuando em
mente usada para construir e expressar linhas de montagem de automóveis, fábricas de
identidade (HARGREAVES et al, 2002). alimentos e na construção civil.
Preferências e gostos musicais servem para
A maioria das entrevistas ocorreu na
ilustrar valores pessoais e de grupos, atitudes e
residência dos participantes e durante um
estratificação social (ILARI, 2006), e para indicar
churrasco da comunidade nipo-brasileira de Aichi-
questões referentes à identidade em seus três
Ken, bem como em uma escola. Durante a
níveis principais. Isso ocorre porque os gêneros e
entrevista, cada participante foi convidado a falar
estilos musicais são passíveis de associações
sobre sua vida antes e depois da chegada ao Japão,
estereotípicas que, por sua vez, afetam a
sua ocupação atual (e anterior, quando era o caso),
identidade em muitos níveis. Hammarlund (1990,
seus conhecimentos musicais, suas habilidades com
apud FOLKESTAD, 2002), sugere que há muitas
o idioma japonês, suas impressões de ambos os
funções para a música que faz menção à
paises, e a expressão de sua identidade brasileira
nacionalidade, embora cada uma delas dependa
no Japão. O entrevistado também foi convidado a
de contextos sócio-culturais e de circunstâncias
gravar uma canção de sua preferência, em
particulares, bem como das identidades étnicas e
português ou japonês.
culturais dos indivíduos que participam das
diferentes práticas musicais. Ou seja, a relação As questões centrais que nortearam o
entre música e identidade nacional é bem mais presente estudo foram:
complicada do que parece. • Qual o papel da música na construção da
Segundo Hargreaves et al (2002), é identidade em crianças e adultos dekasseguis
necessário fazer uma distinção entre identidade residentes no Japão?
em música (ou identidade musical) e música na • Quais os repertórios que as crianças e
identidade. O presente estudo concentrou-se na adultos dekasseguis selecionam para ouvir no
segunda distinção, isto é, nos possíveis efeitos da dia-a-dia?
música sobre a identidade. Especificamente, • Há alguma relação entre o repertório
este estudo investigou o papel da música no escolhido pelos dekasseguis e o processo de
processo de construção (e reconstrução) da adaptação ao Japão?
identidade – nacional, cultural e pessoal – de
crianças e adultos dekasseguis, residentes na • De que maneira a fluência no idioma
província de Aichi-Ken, Japão. japonês influencia os comportamentos musicais
dos dekasseguis?

Discursos dekassegui: Coletando dados no


Japão Os dados das entrevistas foram transcritos e
analisados, através da categorização e ordenação
As longas horas de trabalho, bem como sua
de temas recorrentes (vide VAN MANEN, 1990). As
natureza árdua, dificultam o acesso do
anotações e fotografias tomadas no Japão e as fitas
pesquisador ao universo do dekassegui (vide
de DAT contendo as gravações das canções também
KAWAMURA, 2003). Para o presente estudo,
foram usadas para enriquecer e validar os dados
foram realizadas entrevistas semi-estruturadas e
obtidos através das entrevistas.
não-estruturadas, gravações em áudio e
observações e anotações de campo em
comunidades dekassegui nas cidades de Kariya- Japonês aqui, brasileiro lá: Mudança, adaptação e
Shi e Homi-Danchi, durante o mês de julho de identidade
2005. Entre os entrevistados estavam 11 crianças Como é comum em histórias de imigrantes, a
em idade-escolar e 7 adultos; a maioria maioria dos entrevistados imigrou para o Japão por
residente no Japão por mais de uma década. motivos financeiros, isto é, com o intuito de ganhar
Apenas 4 das 7 crianças eram nascidas no Japão. muito dinheiro para garantir um futuro melhor no
Os demais entrevistados (crianças e adultos) Brasil. Apesar de a maioria dos adultos dekasseguis
eram todos nascidos no Brasil e residiam em estar no Japão por mais de uma década, todos
cidades de São Paulo, Paraná, Alagoas e Mato expressaram o desejo de retornar ao Brasil ‘algum
Grosso antes da vinda ao Japão. Todas as dia’. Embora alguns entrevistados tenham feito
simpósio de pesquisa em música 2006 43
referências a incertezas quanto ao futuro, proposta por Buarque de Hollanda (1936), já que,
nenhum dekassegui falou em imigrar nem sempre é fácil ou possível ser cordial em
permanentemente, e muitos falaram no desejo momentos difíceis. Enquanto no Brasil o dekassegui
de serem enterrados no Brasil - talvez como uma pode relaxar no trabalho ou em casa, no Japão isso
última tentativa de preservação da brasilidade. não é possível já que não há familiares ou amigos
Conforme sugeriu Murphy-Shigematsu (2004), a que possam ampará-lo em momentos difíceis, o que
combinação entre cidadania estrangeira e provavelmente o torna mais retraído e competitivo,
residência permanente é algo pragmático; muitas e possivelmente menos relaxado e confiável. O
pessoas que ficam longe de seus países por muito famoso ‘jeitinho brasileiro’ discutido por DaMatta
tempo compreendem o processo de naturalização (2001) parece não encontrar muitos espaços no
ou residência permanente como uma ameaça à âmbito da vida cotidiana no Japão.
sua identidade nacional. Aparentemente, foi o
que ocorreu aqui. Negociando identidades e gêneros musicais:
Assim como em outras pesquisas (LINGER, sertanejo, enka e axé
1999), as crianças entrevistadas para o presente No entanto, um aspecto do jeitinho brasileiro
estudo também tinham opiniões contraditórias parece se manter quase intacto no Japão: o
acerca de um possível retorno ao Brasil. Somente jeitinho musical. A música foi citada, tanto pelas
aquelas que tinham nascido ou imigrado para o crianças quanto pelos adultos, como forma de
Japão antes dos 5 anos de idade e eram conforto e pertencimento durante o interminável
completamente fluentes em japonês período de adaptação à terra do sol nascente.
expressaram o desejo de permanecer no país. Isso ficou especialmente evidente nos
Esse dado confirma que o conhecimento de uma discursos dos adultos, conforme as palavras de uma
língua continua sendo uma espécie de das entrevistadas:
‘passaporte’ para uma nova cultura e,
possivelmente para uma nova identidade, Assim que eu cheguei no Japão, eu decidi que iria
conforme sugerem alguns estudos sobre ouvir muita música japonesa – para ver se eu
bilinguismo (KANNO, 2000). Vale notar que todos conseguiria aprender o japonês e conhecer a
os adolescentes e adultos dekassegui música daqui, para curtir com meus ‘futuros
mencionaram suas dificuldades de adaptação no amigos’ japoneses. Mas depois de um tempo, eu
Japão, e que a falta de fluência no idioma desisti. Era muito difícil cantar numa língua que eu
japonês tornava tudo ainda mais difícil. não compreendia e, além disso, eu comecei a ter
saudade de tudo e de todos do Brasil. Foi aí que eu
Muitas crianças e adultos falaram a comecei a assistir ao canal brasileiro [TV a cabo],
respeito da dificuldade em estabelecer relações a ouvir rádio brasileira na internet e a me
cordiais no Japão, não apenas com os japoneses, enturmar somente com brasileiros. Eu disse para
mas, sobretudo, com seus compatriotas (vide mim mesma: - ‘Por que eu deveria tentar cantar
MEIHY, 1998). Segundo Abbey (2002), a uma canção japonesa? Nenhum dos meus colegas
identidade do imigrante está freqüentemente de trabalho [japoneses] vai me convidar para uma
situada num cruzamento de culturas, o que gera festa mesmo!’
ambigüidades tanto em relação à cultura do
Todos os entrevistados disseram cantar ou
‘novo país’ quanto à cultura de origem. Em sua
ouvir música brasileira como forma de permanecer
dissertação, Saito (2003, p. 64) registrou uma
‘mais perto’ do Brasil, e para manter suas
fala muito presente no discurso dos dekassegui
identidades brasileiras – individualmente ou em
entrevistados para este estudo:
grupos. De acordo com eles, a música brasileira
sempre acompanha festas e churrascos da
A primeira coisa que a gente aprende aqui no comunidade, bem como momentos de descanso e
Japão é que somos brasileiros. A segunda é lazer em casa. Muitos gêneros musicais foram
odiar todo e qualquer brasileiro que vive aqui.
mencionados, mas o gênero sertanejo despontou
como o favorito dos entrevistados. Nos grandes
De acordo com alguns entrevistados, a
centros urbanos do sudeste e sul do Brasil, o gênero
maioria dos brasileiros ‘muda completamente’
sertanejo é freqüentemente associado a pessoas de
de identidade depois que chega ao Japão.
origem humilde que migraram do campo para a
Segundo eles, talvez isso ocorra por conta do
cidade. A música sertaneja também está bastante
isolamento, das dificuldades pessoais ou da
associada a pessoas sentimentais (vide ILARI, 2006).
aspereza da vida num país estrangeiro.
Considerando que grande parte dos entrevistados
Entretanto, a explicação pode estar mais
provinha de grandes centros urbanos do sudeste e
relacionada com a noção de ‘homem cordial’
sul do Brasil, a preferência pelo gênero sertanejo
44 SIMPEMUS3

pode oferecer pistas acerca dos estados ‘deslocamento temporal’, que acompanha o
psicológicos e possivelmente, das condições cotidiano de muitos imigrantes. A idéia de
sócio-econômicas dos participantes. Segundo deslocamento temporal vai de encontro com os
Higuchi e Tanno (2003), o perfil sócio-econômico estudos que sugerem uma mudança gradativa (e
dos dekassegui vem mudando consideravelmente muitas vezes drástica) na percepção que os
nas últimas décadas, com um contingente maior imigrantes têm de suas culturas e países de origem
de pessoas de classes mais desfavorecidas (vide BAR-YOSEF, 1968; HOLLERAN, 2003;
buscando por trabalho no Japão. RUMBAUT, 1997). Muitas vezes, as percepções que
É interessante notar que a maioria dos o imigrante passa a ter de sua terra natal tornam-
adultos que citou o gênero sertanejo como sendo se dicotômicas (idílicas ou detestáveis). Para se
o seu favorito, falou também de sua preferência sentir ‘em casa’, alguns entrevistados descreveram
por enka5, argumentando serem gêneros a necessidade de reviver – de alguma maneira –
‘praticamente idênticos’. Como disse um dos situações e eventos passados, inclusive de natureza
entrevistados: musical. Para eles, ouvir canções do passado
constituía-se muitas vezes como uma maneira de
voltar no tempo, e manter suas ‘identidades
Antes de vir para o Japão eu detestava enka
antigas’. A música pareceu prover ou até mesmo
porque eu achava muito cafona. Eu detestava
quando eu ia aos matsuris [festivais japoneses] facilitar o surgimento de uma zona de conforto,
na comunidade nikkei6 e todo mundo ficava através da qual os dekasseguis ‘podiam ser quem de
cantando. Eu achava meio ridículo. Como sou fato eram’ – sem restrições.
um grande fã do Amado Batista e do Zezé de
Camargo e Luciano, trouxe todos os meus CDs
deles comigo, e costumava ouvir o tempo todo.
Em busca de uma identidade musical brasileira:
Depois que eu aprendi algumas palavras em funções da música nacional e estereótipos
japonês e comecei a ir aos karaokês com meus Muitos dekasseguis que tinham algum
colegas da construção, eu comecei a perceber envolvimento na comunidade japonesa, também
que enka é muito parecido com sertanejo. descreveram usos diversos da música, que variavam
Então eu escuto de vez em quando. Eu ainda
de acordo com seus acompanhantes. Entre
prefiro o sertanejo do Brasil, mas enka também
brasileiros, eles se sentiam livres para explorar seus
é bom!
estilos favoritos. Entretanto, na presença de
Além de sertanejo e enka, outros gêneros colegas japoneses, alguns relataram uma
musicais foram citados pelos entrevistados. preferência por estilos que fossem mais
Porém, muitos deles encontravam-se defasados estereotípicos, como o samba, a bossa-nova, axés e
em relação às ‘paradas de sucesso’ da outros ritmos/canções sugestivos de movimentos
atualidade. Por exemplo, axé foi um gênero corporais sensuais (como no caso da canção ‘Na
altamente citado pelos participantes, e Daniela boquinha da garrafa’ do grupo É o tchan). Este
Mercury foi citada como sendo sua principal resultado está em sincronia com a idéia de duas
representante; nenhum participante citou funções para a música nacional em território
nomes de artistas da atualidade. É pouco estrangeiro: emblemática e catalítica (vide
provável que tal fato esteja relacionado ao HAMMARLUND, 1990 apud FOLKESTAD, 2002).
acesso aos recursos midiáticos, já que todos os Enquanto a função emblemática da música está
entrevistados possuíam TV brasileira (canal a direcionada para fora, isto é, para imprimir idéias
cabo com a programação atual da Rede Globo) e (e estereótipos) nacionais para aqueles que não
computador com internet. Tal fato pode estar pertencem àquela cultura, a função catalítica da
mais relacionado ao trabalho excessivo de grande música serve para produzir uma sensação de
parte dos entrevistados, que passam muito pertencimento de um indivíduo ou grupo de
tempo no interior de fábricas ou na construção indivíduos a uma nação. Ambas as funções
civil e têm pouco tempo livre ou interesse para apareceram no contexto da presente pesquisa, mas
explorar novos gêneros musicais. Contudo, a foi principalmente quando a música pareceu
explicação mais plausível pode residir no exercer uma função emblemática que emergiram
diversos estereótipos do Brasil e dos brasileiros. A
criação e o reforço de tais estereótipos parecem
5
Enka é uma balada sentimental japonesa, muito popular no seguir um modelo de causalidade circular ou
Japão e no Brasil, inclusive em versões cover (YANNO,
2005). Uma característica do gênero é a constante
retroalimentação (SOARES & PEREIRA, 2005),
repetição de motivos melódicos, além da hiper- conforme ilustrado na figura 1:
expressividade vocal.
6
Nipo-brasileira.
simpósio de pesquisa em música 2006 45
musical em casa, já que as crianças não eram
nascidas na época em que estas canções eram
populares. É bem provável que as crianças tenham
aprendido tais canções com seus pais e parentes
próximos que, possivelmente, usavam a música
como forma de acalmar a saudade e mantê-las mais
próximas do Brasil ou como forma de imprimir
idéias e sentimentos nacionais nas identidades de
seus filhos.

Comentários finais
De maneira geral, o presente estudo sugere
que a música exerce um papel importante na
manutenção da identidade brasileira dos
dekasseguis residentes no Japão. Além de criar uma
zona de conforto, a música constitui uma
importante forma de expressão, através da qual o
dekassegui expressa sua brasilidade. Entretanto, é
interessante notar que, enquanto a música
brasileira serve para preservar a identidade
brasileira do dekassegui, a música japonesa só
aparenta ser incorporada à rotina por aqueles que a
concebem como uma rota de acesso à vida e à
cultura japonesas (veja DeFERRANTI, 2002).
Figura 1. Modelo de causalidade circular dos Para muitos dekasseguis, a incorporação da
estereótipos de música nacional. música japonesa aos hábitos musicais cotidianos
parece representar um passo na direção da
Ainda em relação à música e à identidade adaptação ao Japão. Esses indivíduos geralmente
nacional, foi interessante notar que todos os apresentam expectativas e pensamentos mais
adultos optaram por cantar em português. positivos em relação ao Japão que seus
Somente uma criança se recusou a cantar; todas compatriotas, e vislumbram-se como membros da
as demais cantaram em português e a maioria comunidade local, o que, de acordo com Chavez
cantou também uma canção em japonês. A (1994), exerce uma influência enorme sobre o
análise do repertório documentado revelou sucesso de sua adaptação e fixação no país. Porém,
algumas surpresas. Com relação à música apesar da ascendência japonesa, a maioria dos
japonesa, as crianças que se definiram como dekassegui ainda passa por um grande choque
sendo completamente bilíngües cantaram cultural quando chega ao Japão (veja LINGER,
canções e vinhetas de abertura de animés7; as 1999). Talvez por falta de informações atuali-
demais cantaram canções aprendidas na escola. zadas, alguns viajam para o país esperando
Novamente, há uma indicação da importância do encontrar a terra que seus ancestrais deixaram
idioma no acesso à música (e, portanto, cultura), para trás – um Japão rural e estereotipado (e com
com as crianças bilíngües encontrando-se mais alguns aparatos tecnológicos) – que muitas vezes
aculturadas aos bens culturais comuns à infância tem mais a ver com a nostalgia de seus parentes do
japonesa da atualidade (vide KANNO, 2000). que com o país em si. Outros esperam encontram
Também vale notar que, ao registrar uma canção no Japão uma vida idílica, tanto em termos da
em português, vários adultos e crianças cantaram tranqüilidade cotidiana quanto em termos
canções patrióticas de épocas remotas, como Eu econômicos. No entanto, o Japão ‘ideal’ é
te amo meu Brasil e Este é um país que vai prá rapidamente substituído por um Japão ‘real’ – com
frente, que remontam ao governo militar (1964- todos os seus aspectos positivos e negativos. Esse
1984). Meihy (1998) encontrou resultados choque, que é ao mesmo tempo um choque de
semelhantes em sua pesquisa sobre os brasileiros expectativas e um choque cultural, cria um
residentes em Nova Iorque. Tais escolhas podem deslocamento temporal que tem um impacto direto
estar diretamente relacionadas ao ambiente sobre a identidade em seus diversos níveis.
O presente estudo reforça a idéia de que a
7
Animé é um tipo de desenho animado japonês, muito questão identitária é latente no caso dos
apreciado pelas crianças japonesas.
46 SIMPEMUS3

dekassegui. Como ficou dito, os dekassegui são reconceituação do termo cidadania. Segundo ele,
‘japoneses aqui e brasileiros lá’. Lidar com esta isso só é possível se estendermos nossos
‘mudança’ de identidade é uma tarefa difícil, pensamentos para além da idéia de
sobretudo porque ela implica no reconhecimento multiculturalismo8, chegando ao transnaciona-
do fato de que, em seu próprio país de origem, lismo9, que sugere uma ênfase na ação humana,
os nipo-brasileiros são freqüentemente vindo a ‘permitir’, inclusive, a coexistência de
considerados como um grupo à parte e que se múltiplas identidades em um único indivíduo.
encontra numa intersecção identitária entre Obviamente, a compreensão do mundo através de
brasileiro e japonês. Como não poderia deixar de um viés transnacional tem um impacto direto sobre
ser, isso se reflete também na indústria cultural, os conceitos de naturalização e cidadania.
já que há muitos ídolos dekassegui, como o Por se tratar de uma forma de arte bastante
cantor brasileiro Joe Hirata, que permanecem democrática, a música pode servir para fomentar o
pouco conhecidos dos brasileiros e dos pensamento transnacional e, possivelmente, ajudar
japoneses, mas que são idolatrados pela os dekasseguis (e muitos outros migrantes e
comunidade nikkei, aqui e lá. imigrantes pelo mundo afora), no infindável
Como sugere Kitagawa (1998), embora o processo de negociação, construção e reconstrução
conceito de fronteira/borda esteja se diluindo a de suas identidades.
cada dia, as bordas étnicas e culturais que
existem entre os indivíduos não desaparecem
assim tão facilmente. Por ser tão importante na
vida diária, o conhecimento da língua é
certamente um passaporte para a adaptação do
indivíduo e reconstrução de sua identidade em
um novo país, já que é através da língua que
muitas trocas simbólicas vão ocorrer. Além disso,
em tempos de globalização e de constantes ______________________
8
migrações humanas, o estudo da identidade em Multiculturalismo – a idéia de que nações ou estados
homogêneos e monoculturais não existem.
seus três níveis é demasiado importante, 9
Transnacionalismo – a idéia de que as diferenças só podem ser
sobretudo se considerarmos suas implicações compreendidas se ultrapassarmos as barreiras territoriais ou de
para as questões de imigração e cidadania. nação.
Castles (2004) nos provoca sugerindo uma

Agradecimentos
O presente estudo faz parte de um projeto de pesquisa intitulado Documenting songs and chants of Japanese and
Japanese-Brazilian children, financiado pela Fundação Japão (órgão cultural do governo japonês), que me concedeu o
‘Japan Foundation Fellowship 2005’, oferecendo todas as condições necessárias para a realização da pesquisa de campo
no Japão, entre julho e agosto de 2005. Sou grata à Dra. Yoko Minami (Universidade Kinjo-Gakuin de Nagoya), Kimi
Kodama (Escola Elementar de Homi-Danchi), Emi Antunes (Kariya-Shi) e Luciana Kimie Eguti (Birdo Studio) pelo auxílio
durante a coleta de dados. Agradeço ainda ao Prof. David J. Hargreaves (Universidade de Surrey-Roehampton, Inglaterra)
por seus inúmeros comentários a uma versão preliminar deste artigo.

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Globalization and Brazilian jazz artists
Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Abstract
The 90’s introduced to the world the reality of globalization where technologies like internet and digital
recordings became part of any mucian’s life musician, regardless the type of music created. There were
drastic changes in the way artists presented, sold and advertised their music. Almost as important was the
hope that, alongside with those changes, new opportunities would be presented for jazz artists who were
traditionally left out of the standard outlets for musical production. It was a time for expectations of
renewed. In Brazil, famous for its music, mostly non-classical, musicians were excited because globalization
could provide a chance to bring new audiences to their music; a process that started in the 60’s but had
come to a stall in the 80’s. Whichever these expectations were, globalization worked in the opposite way for
Brazilian jazz musicians. Those artists saw their opportunities shrink dramatically not only inside their own
country but specially abroad, where international jazz festivals started to fill their roasters with Brazilian
pop singers being touted as “jazz artists” when, strangely enough, they try to stay away from the label jazz
when performing in Brazil. What could be done to bring the real Brazilian Jazz once again to Europe?

Introduction moved away from the Brazilian jazz artists to focus


Brazilian music is known and has been (only), (this time) for commercial reasons, on pop
gaining praise around the western world, artists with reasonable success in Brazil. Much has
especially since the second half of the last been discussed among Brazilian jazz musicians
century. In the late 50’s, with the huge success about the reasons why, instead of their music, pop
of bossa nova the music of Brazil almost became music and pop artists are now presented as jazz
present in the main venues such as movies, music attractions in jazz festivals, rather than Brazilian
festivals and record stores worldwide. Since pop artists being shown in pop venues and Brazilian
then, Brazilian music has been associated with jazz artists appearing in jazz festivals. The actual
jazz and tunes like Desafinado, Girl from reason is probably the most obvious, the language
Ipanema and Quiet Nights (Corcovado), and as it barrier. Because Portuguese – the language we
is now, these songs have become part of the speak and of course, the language that the local
main core of the jazz standard repertoire. The pop artists use for their singing – is not well spread
widespread presence in the 60’s and 70’s of or spoken fluently in many countries in Europe, it
bossa nova created a new interest in the music will be a bit difficult to sell Brazilian singers to
of a land that even though a bit far away could European pop audiences. For a jazz audience, used
offer new possibilities for the jazz audiences to more subtle artistic messages, that barrier would
around the globe. In that period, when not be impossible to overcome. But why forget the
globalization was a word not present in Brazilian jazz artists altogether? Well, that is what
anybody’s mind and the music industry we will attempt to discuss here.
executives were still mesmerized by the power
that rock and pop music could have in their Brazilian Jazz Scene
sales, the main attraction that Brazilian music
First of all, we need to understand that the
offered was in its musical elements such as
world Brazilian jazz is not used to describe the
harmony, melody, and rhythm making an
music produced in Brazil that shares roots with the
immediate connection with jazz. Songs would
jazz music worldwide. Brazilian jazz inside the
work better in instrumental versions whereas
country goes with the label of música instrumental
once only someone who could understand
– in English, instrumental music. The first question
Portuguese would understand. Artists like
any foreigner will ask is: and what about vocal jazz,
Egberto Gismonti, Hermeto Paschoal, and fusion
or when the music, although still jazz, is sung?
group Azimuth were regular features in jazz
Well, we do not have plenty of that and most of all;
festivals worldwide but specially in Europe. From
there are commercial reasons that will be discussed
the mid 80’s on the situation changed and not
later on that can illustrate more on that specific
only Brazilian jazz music but Brazilian music as a
case. But for our purpose here, Brazilian jazz is
whole, although still associated with jazz,
simpósio de pesquisa em música 2006 49
mainly instrumental music or, as the expression subject of independent production. The last
might imply, the music created by research made public credited to instrumental
instrumentalists. That music is not only closely music less than 1% of the market for recording
associated with jazz but also has some of the products.
basic structures of jazz like rhythm, and
improvisation. It is a musical art form, similarly
Globalization and Major Record Labels in Brazil
to jazz itself that except for short periods of
time, when it caught major media attention for Most of recording companies present in
different reasons, relies on alternative means to Brazilian marketplace are multi-nationals like EMI,
be produced, promoted, and performed. PolyGram, Warner, Sony, etc. They are responsible
for the core of the music recorded since the first
We can say that the local jazz scene in
half of last century. These companies had for many
Brazil offered three main outlets for the
years divisions dedicated to instrumental music and
production of Brazilian jazz musicians. The first
such artists like, for example, Egberto Gismonti
is the local club scene that, although still
(signed for years with EMI), Hermeto Paschoal
available, it has not only declined in the last ten
(signed with Warner) and Victor Assis Brasil (signed
years or so but also provides very low income for
also with EMI) were recorded and released by the
musicians. The appeal to perform in clubs is only
majors. It all disappeared in the late 80’s when the
artistic freedom and a place for meeting and
divisions dedicated to that music were put to rest.
getting together with others fellow musicians.
During the period the Brazilian jazz artists had
The second outlet would be the opportunity to
support from the majors they had good distribution
perform in music festivals around the country.
and promoting. These artists had opportunities to
Even though there are not many festivals where
play inside and outside the country and Brazilian
the main or only focus is only jazz, we can say
jazz was perceived, around the globe, mainly as an
that most festivals will have in their roster, al
instrumental music. Few singers like Milton
least a few Brazilian jazz artists. However, these
Nascimento, who had a strong connection with the
festivals rely mostly on corporate sponsorships or
jazz world, would do artistic projects in the jazz
government support and many times the support
style. Milton Nascimento for example, released a
can be withdrawn without further explanation.
record with Wayne Shorter where Brazilian and
Festivals happen every year but most of them do
American musicians shared the chairs rather
not last for many editions, whatever the reasons
evenly. Around that time, it was fairly common for
for that may be. The third and most impressive
Europeans promoters to organize and bring to tours
outlet for the production of local jazz artists is in
in Europe artists like Pau Brasil – a jazz group from
the form of an effervescent independent CD
São Paulo – Egberto Gismonti, Wagner Tiso,
production. Here, the advent of digital media for
Hermeto Paschoal and some others. Every year a
recording and reproducing music has allowed
hand full of Brazilian jazz artists would come to
musicians to record and sell, despite lacking
Europe and do a series of concerts, some of them in
efficient distribution, their music. Having a CD
jazz festivals.
out is, for the Brazilian jazz musician, a chance
to be heard and let his/her music go beyond The situation would change completely in the
borders. The CD makes their music more 90’s when possibly, encouraged by the growing
respectable and also create a situation so where interest in the new trend called world music, the
their music will not die when the performance major record companies in Brazil started to
ends or performance opportunities shrink. It is promote Brazilian pop music around world in a
reasonable to believe that more than 90% of the more aggressive way. The music from Brazil is a bit
Brazilian jazz music available on CD is too present and already fairly known to be labeled
independent endeavors once we do not have a world music, a term applied to more exotic forms
strong record company with its focus on jazz. of music. Because its historic association with the
Even the major jazz companies that had jazz jazz audience, the preferred way to promote and
divisions during the 60’s, 70’s and part of the present Brazilian pop music around the world
80’s simply closed those divisions due to lack of, chosen was to labeled it as jazz and bring those
reasonable profits, according to their view. The artists to jazz festivals. It is important to consider
actual numbers of the independent music that jazz festivals themselves had already become
production in Brazil is not known because multicultural events and basically anything
research made on the subject were funded by nowadays can be presented in a jazz festival. The
the major labels and those companies, for marketing strategy was very simple with European
obvious reasons, decided to simply ignore the jazz promoters and record companies working
together with Brazilian based branches of multi-
50 SIMPEMUS3

national recording companies. CDs of Brazilian simply disregard, but what can they do? Basically
pop artists are being released in Europe by their nothing. When I sent a few friends an email asking
companies’ affiliates – most of the times as jazz if they want to send me a CD for me illustrate my
– while the subsidiaries in Brazil would cover presentation, I was surprised to be contacted by
some of the traveling expenses like plane tickets people that I had never had even met expressing
and even in some cases, housing, and musician’s sympathy and saying they wanted to be part of it. I
dues making those artists very attractive in the had not called anyone, but my email spread as
cost-benefit column. people forwarded it to each other traveled. People
Gradually even promoters that used to called me on the phone and even some Brazilian
bring Brazilian jazz artists to Europe to play in jazz musicians living and working abroad wanted to
the continent started to shift and in a short pitch in. Unfortunately, I had to travel light and
period of time the interest was only on singers, just chose just CDs that I could assemble in few
blocking the way for a whole new generation of days to bring in with me.
jazz artists from Brazil to play in European jazz
festivals. The situation got to a point that a Globalization and Brazilian jazz music
famous jazz drummer in Brazil who was trying to
At first globalization seemed to be, for a
book gigs in Europe for his band when
Brazilian jazz musician, a more democratic
approached the local representative of one of
approach to promote and sell their music, but what
the agents that book Brazilian acts received a
really happened is that globalization changed the
reply that said “Brazilian jazz has to have
perception of the Brazilian jazz music to something
vocals.” Strangely enough this was the same
not even close to jazz. If pop artists are now jazz
agent who brought Hermeto Paschoal and
musicians, what is, or how, an actual jazz musician
Egberto Gismonti to Europe in the seventies.
will be perceived? The answer is…, well, we do not
Apparently, he had a change of heart.
need to answer because they are not perceived at
all.
The Brazilian jazz musician situation There has been few Brazilian Jazz artists to
From the view point of a Brazilian jazz manage somehow to play in few venues in Europe
musician the most frustrating aspect of this but in most cases, they had to cover their own
situation is to see that pop artists are perceived expenses for traveling and touring can be a very
and labeled as jazz musicians worldwide, while gruesome experience due to lack of a local support.
inside their own country they go to incredible To change that we might have to start using
lengths to dissociate themselves from anything the globalization to do what it promised to do in
even remotely related to jazz. Sometimes even the first place, create a democratic venue to let
explicitly declaring in interviews their people who are not heard to develop a voice. The
completely dislike for jazz music. So, in Brazil jazz community is by definition a minority, sharing
they are pop artists but abroad they are jazz a small percentage of the global music market. So
musicians, how can that be? For a singer to be we need to connect this scattered minority to make
perceived as a jazz singer means less opportunity it a collective effort. Although jazz is also by
in performance venues and certainly almost no definition an open art form that survived and
chance to land a fat recording contract. There developed through the decades by accepting
are some singers that present themselves as jazz everyone with his/her own style and cultural
acts but in that case they will face the same background, making that probably the reason why
situation as any jazz musician, meaning less jazz is everywhere. By having a definition of jazz
opportunities and basically total independent that will not created an exclusion, but will rather
production, promotion, and managing of their draw a clearer line between pop and jazz, maybe
art. we can bring to the scene artists that are, right
For a Brazilian jazz musician, singer or now, truly excluded.
instrumentalist, who finance independently
his/her CD and has to be responsible for their
own booking, seeing that the same people that
despise jazz in their country having a chance to
perform in jazz festivals abroad and being
presented as jazz musicians is a terrible fact to
Juventude e seus referenciais rítmico-melódicos: estilos musicais
Rosemyriam Cunha
Faculdade de Artes do Paraná

Resumo
As experiências sonoras, rítmicas e melódicas que as pessoas vivenciam no decorrer de suas trocas sociais
podem se configurar em preferências que irão se circunscrever dentro de estilos musicais. Tais estilos não se
limitam apenas ao tipo de música que as pessoas gostam de escutar. Parece que a influência ultrapassa os
limites das estruturas musicais abrangendo a construção de valores, as posturas perante o mundo, as
maneiras de adornar o corpo, de vestir-se e de situar-se corporalmente no mundo. Essa escolha, porém, não
é arbitrária. Ela se constrói de acordo com os elementos sócio-culturais e afetivos com os quais a pessoa
interage no decorrer de sua vida. Em se tratando de jovens, estes buscam referenciais para a formação de
seus repertórios sonoro-afetivo-culturais nos ambientes onde transitam. O objetivo desse trabalho foi o de
conhecer os estilos musicais preferidos dos jovens e o significado do repertório musical por meio do qual eles
expressam esses estilos. Como resultado, encontramos que o grupo de rapazes estudado escolheu três estilos
musicais. As letras das canções que se inserem nos estilos aproximam-se da descrição da realidade em que
vivem, trazem elementos para o entendimento de contradições emocionais e ainda servem como base
rítmica para a expressão de sonoridades coletivas.
Palavras chave: estilo musical, jovens, musicoterapia

Este trabalho nasceu do pressuposto de tros. Boggdan e Biklen (1994) propõem esse tipo de
que a música com seus componentes ritmo, intervenção defendendo uma postura ativa do
intensidade e poesia, poderia se constituir em pesquisador que se envolve ativamente na ação das
um meio de expressão dos significados e sentidos pessoas traçando os objetivos de seu estudo.
que as pessoas constroem no decorrer se sua O primeiro encontro foi destinado a
trajetória histórica. entrevistas orientadas para o conhecimento das
Considerando a música como um elemento preferências musicais e das histórias das vidas dos
de expressão social e cultural do qual a rapazes. Os encontros subseqüentes, com fre-
juventude se apropria para falar de si e do qüência de duas vezes por semana, durando em
mundo em que vive, decidiu-se estudar o média uma hora e meia, se constituíram em
universo dos jovens e suas sonoridades. atividades criativas que tinham por base inter-
O objetivo que norteou essa pesquisa foi o venções e técnicas musicoterapêuticas. A expec-
de conhecer os estilos musicais preferidos desses tativa era a de estimular da expressão musical dos
jovens e o significado do repertório musical por rapazes de forma que eles se expressassem em
meio do qual eles concretizam esses estilos. atividades dirigidas à percussão de instrumentos
Para tanto foi planejado um processo científico musicais, audição de músicas gravadas e à
de musicoterapia que, de acordo com Bruscia expressão e interpretação de canções.
(2000), consta de um processo musicoterapêutico Os encontros se realizavam na sede do
com início e fim pré-determinados durante o programa. Dois estagiários do curso de musico-
qual o grupo interage por meio de atividades terapia colaboraram na coleta de dados e o edu-
musicias e o musicoterapeuta colhe os dados cador dos jovens permanecia na sala no decorrer
para seu estudo. Vamos entender musicoterapia dos encontros.
como a utilização científica da linguagem As sugestões e pedidos musicais dos jovens,
musical com o objetivo de “aumentar as sua expressões sonoras e rítmicas, seus depoi-
possibilidades de ação” da pessoa no âmbito mentos foram acatados e gravados em fitas K7 e
individual como social (RUUD, 1998). posteriormente transcritos. Todas as ações produ-
Os dados dessa pesquisa foram coletados zidas durante os encontros tiveram por base os
junto a um grupo de 18 rapazes, cuja idade conteúdos e interesses revelados pelo grupo.
variava entre 13 e 17 anos. Esses jovens eram O grupo e a musicoterapeuta se reuniam ao
egressos da rua e participavam de um programa redor do material preparado para o trabalho:
de sócio-educativo. Todos eles moravam com aparelho de som, instrumentos musicais, letras de
suas famílias e pertenciam a um nível sócio- canções e CDs. Alí tinham a oportunidade de tocar,
econômico baixo. cantar e sugerir suas músicas. Muitas vezes o
A coleta foi efetivada por meio da inves- pedido era o de ouvir. Recostavam-se nos tatames
tigação-ação num processo que somou 18 encon- ao chão, ouviam as canções e logo em seguida
52 SIMPEMUS3

refletíamos sobre a música e os temas que cena deixando de ser mencionadas ou requisitadas.
recordavam mediante a ação da escuta. Em meio a protestos e desqualificações
Suas solicitações de músicas e CDs foram manifestadas por adeptos de um ou outro estilo, ao
atendidas. A cada sessão, novos pedidos eram ter que escutar elementos não pertencentes ao
anotados e trazidos no encontro seguinte. Assim “seu território”, o que se estabeleceu foi uma
os rapazes puderam construir e se apropriar de tolerância na qual aceitava-se a presença sonora do
um repertório de musical que foi se formando outro, na expectativa de que o “seu território” logo
por meio de suas próprias sugestões. se faria presente.Também a linha que separava
Ao requisitar músicas específicas, cantores esses espaços foi virtual, pois alguns jovens
preferidos, conjuntos de seu interesse, o grupo transitavam entre os territórios, aceitando mais do
revelou sua vivência musical. Também revelaram que um estilo musical.
referências e escolhas por meio das canções que
interpretavam durante os encontros e das Os estilos
expressões verbais que realizaram.
Estilo, do grego stûlos ou coluna, pode ser
Todas as formas de expressão concretas entendido como o conjunto de tendências, gostos,
objetivadas no decorrer do processo foram consi- modos característicos de comportamento de um
deradas como dados relevantes para esta grupo, ainda, o conjunto de traços que identificam
pesquisa como ritmos, intensidades, letras de determinada manifestação cultural de acordo com
músicas, relatos orais e improvisações musicais. definição do Dicionário Houaiss (2001).
Os dados foram classificados em categorias O grupo de rapazes trouxe para as atividades
de codificações, analisados e interpretados sob o musicoterapêuticas, manifestações sonoro-musicais
apoio de teóricos da psicologia e da musicote- em diferentes estilos. Porém, no decorrer dos
rapia. Para a análise dos discursos sonoros foi encontros, três estilos se destacaram pela sempre
utilizada a perspectiva da reconstrução da presença configurando-se na opção dos jovens
emoção estética proposta por Vygotsky (1999), quanto a sua maneira de apresentar-se e expressar-
indicando um estudo dos elementos concretos e se ao mundo.
da estrutura que constitui a própria expressão,
Tanto é que, esses jovens adornavam-se em
passando para a análise funcional dos mesmos,
cortes de cabelo, adereços e vestimentas,
reconstruindo assim a emoção estética.
procurando imitar ídolos que representavam seus
Também Bauer e Gaskell (2002) estilos de preferência. Quando percebiam a
apontaram os passos para a análise das presença de seus territórios sonoros e musicais
manifestações musicais. Esses autores oferecem prediletos, adotavam posturas corporais diferen-
um enfoque que apresenta a música e o ruído ciadas, denotando talvez sua identificação. Nas
como dados sociais quando relacionados ao audições e interpretações do rap, os jovens que
contexto social onde são produzidos e acolhiam com mais ênfase esse tipo de música,
assimilados. Nesse sentido, a linguagem sonora é ficavam em pé, estufavam o peito e aumentavam a
considerada um indicador cultural que reflete os intensidade da voz enquanto cantavam as rimas.
valores e o mundo vivencial daqueles que a Quando o rock era solicitado e entrava em cena,
produzem. Os autores recomendam que, para recostavam-se nos tatames ao chão e sua postura
fins de análise, os eventos sonoros e suas assumia maneiras de cantar em voz suave, de
dimensões de ritmo, melodia e sonoridades pouca intensidade, confessando os versos que
sejam registrados e transcritos e, por fim, cantavam, numa atitude meditativa. Já quando o
relacionados ao grupo social que a produz (p. samba fazia presença, todos ficavam em pé e o
366). interesse era direcionado para a percussão intensa
Nos primeiros encontros o grupo deixou do ritmo sincopado.
claro, por meio de nove solicitações para o rap, Esses dados são confirmados por Maheirie,
quatro para o samba e sete para o pop rock, os estudiosa da música e suas implicações sociais,
estilos musicais que costumavam vivenciar. Esses quando indica que “o estilo é vivenciado em todos
territórios musicais previamente delimitados nos os setores da vida, inclusive na produção e
primeiros encontros foram se confirmando no desenvolvimento dos valores adotados pelo sujeito”
decorrer do processo. Dentre todo o conjunto de (2001, p. 71). Para oportunizar um maior
músicas citadas e interpretadas no decorrer da entendimento sobre esse assunto, segue uma
pesquisa, três raps, três rocks e dois sambas articulação entre a construção histórica dos estilos
permaneceram presentes em todos os encontros. preferidos desses jovens e de suas manifestações
Canções de outros estilos entraram e saíram de
simpósio de pesquisa em música 2006 53
enquanto expressavam-se por meio das canções identidades grupais, Ruud (1990) cita o rock como
que constituíam o seu repertório. uma proposta juvenil de contradição aos consensos
culturais. Explica que o sentido invertido de
estética, ou seja, com os sons distorcidos e
O rap
amplificados, grande parte da música do rock “
A origem musical do rap foi o canto falado criou o pânico necessário para sacudir o código de
da África ocidental adaptado à música jamaicana valores burgueses da estética do som” (p. 45).
da década de 1950 e à influência da cultura Nesse sentido o rock se constitui num ruído cultural
negra dos guetos dos Estados Unidos no pós que desmantela o vínculo entre o poder econômico
guerra. È considerado o estilo que iniciou a e a constituição ideológica da naturalidade das
constituição de uma identidade musical negra, já emoções despertadas por meio da música.
que serviu como forma de extravasar
Ao se impor como uma linguagem sonora
sentimentos de revolta.
eletrônica barulhenta, amplificada e distorcida, o
No Brasil, na década de setenta, surgiu a rock abalou o sentido de beleza na música. Os
primeira manifestação da juventude negra, nos ouvidos das gerações anteriores acostumados aos
subúrbios do Rio de Janeiro. O resgate da sons acústicos dos instrumentos estranhou aquela
identidade negra foi se infiltrando nos bailes da nova música. “Se alguém desafia meu sentido do
época inspirando a mistura de batidas brasileiras que é beleza em música, está desafiando as
ao soul e funk. Desse germe desenvolveu-se o verdadeiras raízes da minha identidade” (RUUD,
rap brasileiro evoluindo em temas que vão da 1990, p. 45). Essa suposição indica que a percepção
exaltação da cultura até a voz de protesto atual dos códigos musicais não é natural, neutra. A
(CASSEANO et al, 2001). Como resultado temos música está imersa em noções de classes sociais e
um estilo particular que funciona como estímulo culturais, razão pela qual as pessoas passam por
à juventude negra, veiculando informações que experiências emocionais diferentes quando
visam a formação de ouvintes críticos e enga- expostas ao mesmo estilo sonoro.
jados. O rap é um estilo de música que apresenta
No Brasil o rock vocal aparece mais marca-
frases declamadas e rimadas sobre uma base
damente no movimento Jovem Guarda, na década
rítmica instrumental. A base rítmica resulta de
de 70. Explodindo depois da Bossa Nova e do
técnicas específicas de discotecagem. As letras
Tropicalismo, vem para o cenário musical como um
falam de exclusão, violência social,
projeto dedicado quase que exclusivamente à
discriminação racial, descrevendo o dia a dia das
juventude, è a música de voz jovem. Os
favelas.
comentários de Tatit (1996) a respeito desse
A realidade que o rap desfila em suas rimas projeto apontam para o apelo mercadológico
marcadas é dura. Dentre os raps trazidos pelo associado à figura do ídolo, à vendagem de discos,
grupo, o mais solicitado foi Domingo no Parque, uma ênfase na concepção musical simples, no que
composto e interpretado pelo conjunto Os tange à harmonia e arranjo instrumental,
Racionais. A canção traça um paralelo entre o provocando estímulos diretos ao físico e exigindo
mundo dos brancos que se divertem nos parques pouca elaboração intelectual.
e o negro que não possui espaços de lazer nas
Em meados dos anos setenta, seguindo o
favelas. Denuncia o difícil acesso aos brinquedos
sucesso dos Beatles, grupos vocais proliferaram no
modernos e o fácil contato com as armas de
Brasil. Em 1985 refletindo o movimento punk,
fogo.
surgiu o conjunto Legião Urbana, trazendo uma
Foi difícil ingressar nesse mundo de mensagem musical caracterizada por gritos de
denúncias e protestos ao lado dos rapazes, quase independência, do faça por você mesmo, tirando
crianças. Retornando aos dados de suas histórias proveito de uma sociedade que precisava de ilusões
de vida, levantadas na entrevista inicial, para sobreviver e incluindo ídolos rebeldes.
entendemos que a mensagem veiculada nessas
Titãs, Paralamas do Sucesso foram bandas
rimas se assemelhavam aos fatos vivenciados nos
requisitadas para incrementar o repertório das
seus cotidianos. Havia uma relação entre a
canções. Mas, Legião Urbana foi a mais marcante
experiência concreta de suas existências e as
do processo. A canção Pais e Filhos foi solicitada no
letras cantadas nas poesias do rap (CUNHA,
sexto encontro sendo, daí em diante, cantada em
2003).
todas as reuniões.
A letra da canção traz o apelo da presença
O Rock dos pais, a necessidade de ser aceito e amado, a
Ao considerar que a música pode ser um problemática das relações familiares.
meio efetivo para comunicar valores e
54 SIMPEMUS3

Quando percebiam a presença sonora do samba é um exemplo de tática de resistência,


território do rock, os rapazes sentavam-se ao movimento de afirmação dos valores culturais da
redor do aparelho de som e acompanhavam o raça negra (p. 29).
intérprete. Permaneciam concentrados, ouvindo O estilo do samba era agradável ao grupo que
e cantando, introspectivos. se manifestava executando o ritmo nos
As canções por eles solicitadas, dentro instrumentos de percussão disponibilizados duran-
desse estilo supostamente barulhento e te os encontros: pandeiros e atabaques. Os sambas
estridente, trouxeram mensagens românticas, foram aparecendo no cenário musical do grupo
linguagem leve, fazendo com que a presença do colaborando com melodias para a sonorização
estilo do rock significasse momentos de calma e instrumental. A batida do samba era algo que
reflexão. Entravam em contato, nesse momento, pertencia ao grupo. Alguns demonstravam
com questões de amor familiar, relações de facilidade em interpretar esse estilo de canções.
pertencimento e sexualidade. Produziam o som como se fosse uma extensão de
Suscitando uma estética nova e emoções seus corpos, com domínio e segurança. O ritmo
diferentes, o rock permite ao jovem o trânsito sincopado do samba agregava os jovens na
entre as transgressões sonoras e sentimentais execução instrumental. Cantar era pouco
próprias à fase de suas vidas, desafiando o interessante nesse momento, percutir o ritmo era o
equilíbrio de sua personalidade ao sinalizar que importava.
alterações comportamentais. Na sua trajetória histórica o jovem tem
Parece que para esses jovens, a música de lançado mão da intensidade sonora intuindo
sua época proporcionou uma experiência capaz maneiras particulares de defender seu espaço
de ampliar e aprofundar suas percepções social e de reafirmar valores culturais. Nessa
emotivas possibilitando que eles se apoderassem preocupação de afirmar e representar o próprio
dos seus próprios sentimentos (TEPLOV, 1977). território, a expressão mais explicita da cultura
juvenil foram os sinais sonoros de forte inten-
sidade como forma de auto-representação.
O Samba
A manifestação sonora tem sustentado
Originário das rodas de canto, nas quais práticas que permitem ao jovem reivindicar seu
uma voz improvisava a frase melódica e o coro papel no meio social, reafirmando-se como a
respondia, o samba se caracterizava pelo meneio pessoa que, ao tomar consciência de si exige que o
corporal com o qual o improvisador, ao projetar outro tenha também consciência de sua existência.
para frente a região do umbigo, indicava a outro Parece que essa foi a estratégia adotada pelo grupo
componente sua vez de cantar. Daí a no que tange à percussão do samba.
denominação semba ou umbigada (TRAMONTE,
A perspectiva histórica nos traz o conhe-
2001). É um gênero de canção popular, de ritmo
cimento de que a prática abusiva do som em
sincopado e compasso de dois tempos. Surgiu a
intensidades fortes não é exclusividade do jovem
partir do século XX aproveitando estribilhos
contemporâneo. Desde os primórdios da era
repetidamente cantados ao som de palmas e
moderna a força sonora é característica da
batuques, aos quais se acrescentavam versos
juventude. Também os rapazes foco deste estudo,
declamatórios.
lançaram mão de uma batida rítmica em forte
O samba determinou a forte influência do intensidade, representativa do seu meio sócio-
negro na cultura brasileira e colaborou para o cultural, apara marcar presença, delimitar espaço,
progresso longo e penoso da sua inserção na mostrar força e poder, aproveitando as
sociedade brasileira. Ainda no início dos anos de possibilidades e os momentos da musicoterapia.
1900, as reuniões e batuques dos negros eram
alvo de perseguição e proibição por parte das
autoridades. A resistência negra representada Conclusão
por grupos culturais que reivindicavam o direito Por meio da música e dos estilos musicais
de tocar a sua música e praticar sua religião, eleitos como de sua preferência, esse grupo de
exigiu dos negros táticas de não-violência, rapazes constituiu territórios sonoros delimitados
modelos de ação adotados por futuros pelo rap, rock e samba. Por entre esses limites
movimentos pacifistas. sonoros e rítmicos eles transitavam e expressavam
Essa estratégia adotada na busca pela valores pessoais, intensidades sonoras, atitudes e
hegemonia cultural expressa o querer do negro: posturas corporais, protagonizando suas identi-
ser um cidadão global, não viver em guetos dades.
fechados, ser considerado um igual. No Brasil, o
simpósio de pesquisa em música 2006 55
As rimas do rap oferecem referenciais A intensidade com que as percussões foram
identificatórios para a juventude da periferia. Os feitas indicou que a juventude está sempre
dados indicaram que, para esses rapazes, os ver- envolvida em sonoridades fortes, timbres distor-
sos desse estilo de canção narraram de forma cidos e em produções vocais potentes.
organizada e clara a realidade concreta em que Por meio da expressão de canções, da
viviam. Embora conscientes da conotação sócio- delimitação de estilos musicais, esses jovens
política desse estilo musical, os jovens se expressaram o momento histórico em que viviam. A
apropriaram dessa linguagem como forma de música configurou-se como um signo impregnado da
entender o meio em que viviam. Parece que cultura e do meio social onde viviam.
tomaram as letras mais como uma explicação do
Os rapazes desse grupo construíram, por meio
que como um apelo social.
do repertório de estilos e canções, um conjunto de
O rock, mesmo sendo caracterizado como significados e sentidos afetivo-culturais que se
um estilo musical de sonoridade estridente e concretizou nas melodias, letras, ritmos,
pelas idéias de contestação, proporcionou ao intensidades e verbalizações por eles produzidas. A
grupo os momentos mais românticos, intimistas e música como manifestação humana, revelou fatos
reflexivos. Foi por entre melodias lentas do rock de um determinado tempo e espaço social ao
nacional que esses jovens expressaram mesmo tempo em que oportunizou aos jovens a
sentimentos contraditórios de amor e ódio e busca pelo entendimento das contradições que
temas de relacionamento amoroso. vivenciavam em seu cotidiano concreto.
O samba foi o estilo que reuniu o maior Por essa ótica, os estilos musicais como
número de adeptos. O ritmo do samba foi o ritmo manifestação de um determinado contexto sócio-
do grupo. A percussão do samba proporcionou histórico revela os sujeitos concretos que viven-
aos rapazes momentos de prazer e alegria. ciam o cotidiano de determinada época. A música
Durante a produção sonora, o samba mediou a como manifestação construída pelo homem e para
expressão das raízes culturais e sociais do grupo. o homem destinada, revela as tendências esté-
Agregados no fazer comum, na ação coletiva, os ticas, as formas de expressão, os traços de com-
jovens integraram-se à cultura por meio de portamentos e as dinâmicas afetivo-emocionais da
signos musicais. sociedade da qual emerge.

Referências
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CASSEANO, P. DOMENICH, M. & ROCHA, J. Hip-hop: a periferia grita. São Paulo: Editora Fundação Perseu
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TRAMONTE, C. O samba conquista passagem: as estratégias e a ação educativa das escolas de samba.
Petrópolis: Vozes, 2001.
VYGOTSKY, Liev Semionovitch. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Laurindo Almeida e o jazz de samba: uma outra história sobre as
origens da concepção harmônica da bossa nova
Alexandre Francischini
Universidade Estadual Paulista

Resumo
Este trabalho tem como objetivo fazer um breve levantamento biográfico e uma análise musical de suas
composições populares correspondentes ao período de 1949 a 1958, com o intuito de reconhecer os
elementos musicais que supostamente continham a gênese da Bossa Nova. Para isso, a pesquisa pretende
trabalhar com uma metodologia histórica, com um enfoque na análise musical. E como referencial teórico
buscaremos autores como Ruy Castro, José Ramos Tinhorão, Jomard Muniz de Britto, Walter Garcia, Marcos
Napolitano e outros autores que sob diferentes pontos de vista, analisam o “fenômeno” Bossa-Nova.

Um brasileiro que o Brasil desconhece Carmem Miranda, Pixinguinha (Alfredo da Rocha


A história de Laurindo José de Araújo Viana) e Garoto (Aníbal Augusto Sardinha),
Almeida Nóbrega Neto começa em uma vila Laurindo integrou o Regional da Rádio Mayrink
chamada Prainha, hoje, cidade de Miracatu, Veiga – principal veículo de comunicação do Brasil
localizada no Vale do Ribeira a 120 quilômetros na época – onde permaneceu por onze anos.
de São Paulo, no dia 2 de setembro de 1917, e Neste período gravou mais de vinte discos
termina em Los Angeles, Califórnia, nos Estados pela Odeon e RCA Victor, acompanhando artistas
Unidos, no dia 26 de julho de 1995. como Carmen Costa, Dorival Caymmi, Alvarenga e
Durante os seus setenta e oito anos de Ranchinho, Ary Barroso, Aracy de Almeida e
vida, Laurindo Almeida, nome com o qual ficou Orlando Silva.
conhecido mundialmente, acumulou uma vasta Na área da música erudita, gravou inúmeros
produção musical, gravou mais de cem discos de concertos de Villa-Lobos e Radamés Gnattali,
carreira – entre música popular e música erudita compositores com os quais cultivou grande
– participou compondo ou tocando em mais de amizade por toda a vida. Laurindo seria, inclu-
oitocentas trilhas sonoras para filmes de sive, o grande divulgador da obra de Villa-Lobos no
Hollywood, tais como O Poderoso Chefão, Os exterior, e também um dos coresponsáveis pelo
Imperdoáveis, Os Dez Mandamentos, A Song período em que este permaneceu nos Estados
Star, Fogo em Maracaibo e centenas de outras. Unidos da América.
Foi agraciado com diversos prêmios em reconhe- Em decorrência do fechamento dos cassinos
cimento ao seu trabalho como compositor e ins- pelo governo Dutra em 1946, Laurindo Almeida,
trumentista. Dentre eles, destacam-se cinco um músico então já consagrado aqui no Brasil, viu-
Grammy’s Awards, sendo quatro por álbuns de se obrigado a tentar a sorte em terras desco-
composições de peças clássicas e um por álbum nhecidas, assim em março de 1947, Laurindo
de performance jazzística, além de um Oscar1 desembarcou nos Estados Unidos somente com a
por composição de trilha sonora. roupa do corpo e um violão.
Oriundo de uma família de músicos, Neste período de adaptação, Laurindo
Laurindo Almeida iniciou seus estudos de violão trabalhou com o grupo Carioca Boys, que mais
aos nove anos, mesma idade em que começou a tarde se chamaria Samba Kings, do qual
acompanhar seu pai em serestas pela cidade de participavam também antigos companheiros do
Santos, e a tomar aulas de piano com sua mãe, Brasil, como Nestor Amaral e Joe Carioca2. Foi
fatos que talvez expliquem sua versatilidade através deste grupo que fez seu primeiro trabalho
tanto na música popular quanto na música em Hollywood, tocando e atuando no filme “A
erudita. Song is Born”, de Danny Kaye, do qual partici-
Sua carreira musical começou efetiva- param também Benny Goodman, Tommy Dorsey,
mente em 1936, quando juntamente com Ella Fitzgerald, Louis Armstrong e Nat King Cole.

1
Refere-se trilha sonora do filme “The Magic Pear Tree", e
2
trata-se do único Oscar ganho por um brasileiro na história Músico brasileiro que inspirou Walt Disney a compor o
deste prêmio. personagem Zé Carioca.
simpósio de pesquisa em música 2006 57
Outro fato de grande importância para Laurindo Almeida é mais do que um violonista
Laurindo Almeida foi o seu ingresso como solista eclético, ele é o violonista mais completo de sua
na banda de Stan Kenton, uma das grandes geração, provavelmente do mundo inteiro. Ele
possuía toda técnica dos violonistas clássicos,
orquestras americanas da época.
além de ser um grande violonista de Música
Em seu livro O jazz do rag ao rock, o Popular Brasileira. O seu violão reproduzia todos
crítico musical Joachim E. Berendt relata este os valores rítmicos, todos os maneirismos de uma
fato da seguinte forma: música popular brasileira rica ao mesmo tempo
sendo um grande violonista de Jazz.
Outro guitarrista que ocupa uma posição toda Júlio Medaglia3
especial no jazz é o brasileiro Laurindo
Almeida, um músico do nível dos grandes
Do ponto de vista musical, sabe-se que,
concertistas deste instrumento – de um Andrés
Segovia ou Vicente Gómez. Almeida introduziu grosso modo, a Bossa Nova foi uma fusão de ritmos
a guitarra tradicional no jazz; melhor dizendo, brasileiros, especificamente do Samba com o Jazz
reaplicou a tradição da guitarra não- norte-americano.
eletrificada no jazz moderno. Quando Sob esta ótica, existe a hipótese – como dito
integrante da banda de Stan Kenton na anteriormente – de que Laurindo Almeida tenha
segunda metade dos anos 40, Laurindo Almeida
sido um dos precursores deste movimento, por já
realizou uma série de solos, os quais
misturar, muito antes de seu advento, ritmos
irradiavam tanto calor como poucas vezes se
viu em gravações desta orquestra (BERENDT, brasileiros com harmonias jazzísticas. Isto em
1975, p. 228) decorrência de já viver nos Estados Unidos desde o
começo da década de cinqüenta, sobretudo
quando integrante (solista) da orquestra de Stan
A partir de 1960, Laurindo Almeida
Kenton, uma das grandes orquestras que
montou sua própria banda, com a qual tocaria
influenciariam Tom Jobim e João Donato na fase
até pouco antes de sua morte. Este grupo, o
pré-bossa-nova.
L.A. Four, cuja característica principal era a
fusão de música erudita e jazz, gravou mais de Em depoimento ao documentário Laurindo
dez álbuns e tinha como integrantes o Almeida “Muito Prazer”, Oscar Castro Neves
saxofonista Bud Shank, com o qual Laurindo já afirma:
tocara desde o começo da década de cinqüenta,
o contrabaixista Ray Brow e o baterista Shelly É impossível se falar de Bossa Nova sem falar de
Manne, substituído depois por Jeff Hamilton. Garoto, de Radamés Gnattali, de Laurindo
Almeida... não só porque o Laurindo era um
Laurindo Almeida pertence a um grupo de
guitarrista de impecável técnica, mas também
elite de violonistas brasileiros que compuseram porque era um guitarrista moderno, já com
trabalhos importantes para este instrumento e, acordes de Jazz, vivendo dentro do Jazz.
juntamente com Canhoto (Américo Jacomino),
Paraguassú (Roque Ricciardi), Armandinho (Ar-
Ainda que estas afirmações restrinjam-se aos
mando Neves), Dilermando Reis e Garoto (Aníbal
aspectos musicais da obra de Laurindo Almeida
Augusto Sardinha), contribuiu para a emancipa-
que supostamente contribuíram para o surgimento
ção do violão, com status de merecedor de sério
da Bossa Nova, elas andam na contramão de tudo
estudo musical. Contudo, por algum motivo não
que se sabe a respeito das origens deste
teve o mesmo reconhecimento de seus contem-
movimento.
porâneos em nosso País. No Brasil, sua obra é
pouco conhecida e seu nome pouco divulgado, Em decorrência destes fatos, surgem
porém, exerceu grande influência, tanto em algumas perguntas, tais como: teria sido Laurindo
relação aos músicos brasileiros quanto aos ame- Almeida realmente um dos precursores da Bossa
ricanos, que o têm como precursor da bossa- Nova? Caso tenha sido, de que maneira especi-
nova, visto que dez anos antes de seu ficamente se deu sua contribuição para este
surgimento – atribuído a João Gilberto e Tom movimento musical? Por outro lado, quais os
Jobim – suas composições já sintetizavam ritmos fatores políticos, econômicos, sociais e musicais
brasileiros de várias localidades com o jazz que contribuíram para que Laurindo permane-
norte-americano. cesse esquecido em seu próprio País? Por que a

A grande polêmica 3
Depoimento transcrito do documentário Laurindo Almeida
“Muito Prazer”, escrito e dirigido por Leonardo Dourado, Rio
de Janeiro: Telenews, 1999.
58 SIMPEMUS3

musicologia brasileira (talvez imbuída de uma UNESP em 2004; a dissertação de mestrado de


perspectiva nacionalista) nunca deu a devida Marcelo Alves Brazil, com o título Baden Powell e
atenção ao seu trabalho? Estas questões revelam o Jazz na Música Brasileira, apresentada a UNESP
a problemática de nossa pesquisa e no decorrer em 2004 e a dissertação de mestrado de Gilson
deste trabalho procuraremos respondê-las. Antunes, com o título Américo Jacomino
“Canhoto” e o desenvolvimento da arte solística
do violão em São Paulo, apresentada à ECA/USP
Uma lacuna na historiografia da MPB
em 2000.
No Brasil, o material disponível sobre a vida
O Brasil não gosta mesmo de quem faz sucesso
e a obra de Laurindo se resume em um
lá fora. O Laurindo é respeitadíssimo pela nata
documentário chamado Laurindo Almeida: “Muito
da música americana, e aqui, ‘babau’. Eu
mostrei há pouco o Guitar from Ipanema, LP Prazer”, escrito e dirigido por Leonardo Dourado,
gravado em Nova York que lhe valeu o Grammy pela Telenews do Rio de Janeiro em 1999, exibido
em 1964 a um jovem músico que me perguntou em três episódios pela GNT no ano 2000, e em
que Laurindo era esse... pequenas citações em livros de história da música
- Tom Jobim 4 popular brasileira.
Dada a importância de sua obra e sua
representatividade no exterior como legítimo
Este comentário serve bem ao propósito
representante de uma escola violonística brasi-
de ilustrar o curioso fato de que um músico
leira, gozando do prestígio por ser o único músico
brasileiro, consagrado internacionalmente, e
não-americano a ser citado nas três edições da
como descrito anteriormente, com mais de cem
famosa Enciclopédia do Jazz, do crítico musical
discos de carreira, além de cinco Grammy’s
Leonard Feather, julgamos necessária uma pes-
Awards e um Oscar, tenha passado
quisa que possa, de certa maneira, contribuir
despercebido, tanto pela crítica especializada,
tanto para a memória de Laurindo de Almeida
quanto pelo meio acadêmico brasileiro.
quanto para a construção da história da Música
Outro dado a ser considerado é que estas Popular Brasileira.
afirmações acerca de Laurindo Almeida na
gênese da Bossa Nova, fazem parte de uma
polêmica e nunca foram objeto de estudo no Acerca da bossa-nova
meio acadêmico, de forma sistemática, A Bossa Nova não é considerada somente um
lançando mão de recursos metodológicos que gênero musical, mas sim um movimento musical.
possam proporcionar uma visão mais Deste modo, para o seu advento, foi necessária
amadurecida sobre este assunto. uma conjunção de fatores, dentre eles os
Para confirmar este fato, fizemos uma históricos, políticos, econômicos e sociais, além
pesquisa em bancos de teses e dissertações das dos musicais. Não se pode atribuir, portanto, a
três universidades públicas do Estado de São uma única pessoa – seja ela quem for – a
Paulo (USP, UNESP e UNICAMP), em bancos responsabilidade por seu acontecimento.
nacionais como o da CAPES e CNPq, e interna- Em decorrência deste fato, torna-se impor-
cionais como o RILM e o ProQuest, e tante esclarecer que este projeto de pesquisa não
constatamos que já existem inúmeros trabalhos tem como objetivo imputar a criação da Bossa
sobre a temática bossa-nova, porém, não Nova a Laurindo Almeida, mas sim analisar como
encontramos qualquer trabalho que tenha como se deu sua contribuição para este movimento
objeto de pesquisa o violonista Laurindo musical.
Almeida. No entanto, sobre seus Com o propósito de formar um referencial
contemporâneos brasileiros, pode-se encontrar teórico para as questões extra-musicais, busca-
a dissertação de mestrado de Luciano Linhares remos autores como Ruy Castro, José Ramos
Pires, com o título Dilermando Reis: o violonista Tinhorão, Jomard Muniz de Britto, Marcos
brasileiro e suas composições, apresentada a Napolitano e outros autores que sob diferentes
UFRJ em 1995; a dissertação de mestrado de aspectos e pontos de vista, analisam o “fenô-
Andréa Paula Picherzky com o título Armando meno” Bossa-Nova.
Neves: choro no violão paulista, apresentada a
Outro dado a se considerado, é que as
inovações que a Bossa Nova introduziu na Música
4
Comentário acerca de Laurindo Almeida, feito por Tom
Popular Brasileira percorrem além dos aspectos
Jobim em almoço com Ricardo Cravo Albin, o idealizador
do dicionário da Música Popular Brasileira. (extraído do interpretativos que estão mais ligados à perfor-
site www.dicionariompb.com.br) mance musical, os aspectos harmônico, melódico e
simpósio de pesquisa em música 2006 59
rítmico, este último em especial. Vejamos este Johnny Alf e João Donato. O Jazz, por sua vez já
comentário feito por Tom Jobim, extraído do exercia influência sobre música brasileira sob
livro Música Popular Brasileira, de José Eduardo outros aspectos muito antes disso, e segundo o
pesquisador Alberto T. Ikeda com a temporada de
Homem de Mello:
Harry Kosarin Jazz-Band em São Paulo, no período
que vai de agosto de 1919 até fevereiro de 1920,
Eu tinha uma série de sambas-canção de fica fora de qualquer dúvida a presença da
parceria com [Newton] Mendonça mas a música jazzística entre nós.(p. 117)6
chegada do João abriu novas perspectivas: o
ritmo que o João trouxe. A parte instrumental
- harmonia e melodia – essa já estava mais ou O próprio Laurindo, em entrevista ao
menos estabelecida (GARCIA, 1999, p. 20). escritor e jornalista Sérgio Augusto7, afirmou que
seria fortemente influenciado pelo Jazz quando
em uma turnê com o Regional da Mayrink Veiga,
Se pudéssemos separar estes três
em um cruzeiro pela Europa em 1936, em visita a
elementos estruturais da música, notaríamos
um bar francês chamado Rock Club, teria assistido
que o advento da Bossa Nova se deu em função
a uma apresentação com o guitarrista Django
da criação de uma “batida de violão”. Esta
Reinhardt e o violinista Stephane Grappelly que
nova concepção rítmica, criada e consagrada
seria decisiva em sua fusão de música brasileira e
por João Gilberto, marcaria o início da Bossa
jazz. Isto pode ser facilmente observado na série
Nova com o disco Chega de Saudade de 1958.
de discos Brazilliance, volumes 1, 2 e 3 gravados
Como resultado da influência do Jazz pela Word Pacific Jazz Records, em 1953. E
sobre o Samba – fator co-responsável pela segundo consta – e há de se verificar – foi o
concepção musical da Bossa Nova – a primeiro registro, nos Estados Unidos, de
“simplificação do ritmo harmônico5” se deu em improvisação jazzística sobre ritmos brasileiros.
função da valorização do emprego de
Deste modo, torna-se importante verificar
dissonâncias acrescidas aos acordes.
sob que aspecto se deu a sua contribuição para o
Em seu livro Bim Bom: a contradição sem advento da Bossa Nova, e talvez, de modo análogo
conflitos de João Gilberto, Walter Garcia – um ao caso da batida de João Gilberto, delimitar o
dos autores que adotaremos como referencial marco inicial da concepção harmônica da Bossa
teórico para as questões musicais – se atém Nova. Inicialmente não com pretensões de atribuir
especificamente ao ritmo harmônico da Bossa sua criação a Laurindo Almeida, mas somente
Nova, traçando sua gênese, tanto do ponto de verificar em que nível se deu a sua contribuição à
vista histórico, quanto do ponto de vista linguagem musical deste movimento.
técnico-musical, analisando todo o processo de
confecção desta nova batida.
Objetivos da pesquisa
Com relação à melodia, de modo geral, as
inovações não estavam contidas em maior parte Objetivos gerais
nos aspectos estruturais, e sim na maneira de Contribuir para um melhor conhecimento da
emissão desta melodia através do canto falado, história da Música Popular Brasileira nas décadas
deixando assim, voz e instrumentação, com o de 50 e 60, tendo como enfoque a vida e obra do
mesmo grau de importância. Como exemplo, compositor, arranjador e instrumentista Laurindo
basta pensar em cantores como Roberto Almeida.
Menescal e Nara Leão, e cantores de períodos
anteriores à Bossa Nova como Orlando Silva e Objetivos Específicos
Elizete Cardoso, que notaremos diferenças
1.Fazer uma análise musical, especificamente de
significativas na emissão da melodia.
algumas de suas composições populares
correspondentes ao período de 19498 a 19589,
Sobre o aspecto harmônico da Bossa Nova
existe somente o consenso sobre a influência
das harmonias jazzísticas que gradualmente
6
foram incorporadas pelo Samba, IKEDA, Alberto T. Apontamentos históricos sobre o jazz no
Brasil: primeiros momentos. Artigo publicado pela Escola de
principalmente na fase pré-Bossa Nova por Comunicação e Artes (USP) v. 13, 1984, p. 111-124.
7
Sérgio Augusto foi repórter especial da Folha de São Paulo de
5
1981 a 1996, e atualmente escreve no Caderno 2 do jornal O
Neste caso nos referimos a redução ou síntese da batucada Estado de São Paulo e na revista Bravo.
do samba pelo violão, como já apontado no livro Bim Bom:
8
a contradição sem conflitos de João Gilberto de Walter Ano do lançamento de seu primeiro LP nos E.U.A. denominado
Garcia. Concert Criation for Guitar.
60 SIMPEMUS3

com o intuito de reconhecer os elementos


musicais que supostamente continham a Mais adiante:
gênese da Bossa Nova.
2.Realizar um breve levantamento biográfico e Esse divórcio, iniciado com a fase do samba tipo
contextual, a fim de verificar quais os fatores bebop e abolerado de meados da década de 40,
políticos, econômicos e sociais que, de certo atingiria o auge em 1958, quando um grupo de
modo contribuíram para que Laurindo Almeida moços, entre 17 e 22 anos, rompeu
passasse despercebido em nosso País, e ao definitivamente com a herança do samba popular,
mesmo tempo ser considerado um precursor modificando o que lhe restava de original, ou
seja, o próprio ritmo (p. 231).
da Bossa Nova.
3.Fazer o levantamento e a catalogação da
discografia de Laurindo Almeida, com o Estas citações, de José Ramos Tinhorão,
intuito de obter uma visão mais abrangente de extraídas de seu livro Pequena História da Música
sua obra musical10. Popular, revelam no melhor dos casos, um certo
descontentamento do historiador com o “afasta-
mento do samba de suas raízes populares” e com a
Questões, teorias e procedimentos “perda de sua originalidade”, na medida em que
metodológicos sofre influências de outros gêneros musicais, tais
Com relação aos métodos, nossa pesquisa como bolero e o be-bop.11
pretende trabalhar com uma abordagem musi- Diante desta perspectiva de valorização do
cológica histórica, porém, não apenas “puro”, e sendo Tinhorão, durante muito tempo,
descritiva, mas interpretativa como propõe um dos principais formadores de opinião da música
Joseph Kerman em seu livro Musicologia: popular brasileira, pode-se imaginar as razões do
completo descaso da musicologia brasileira em
O que sustento e procuro praticar é uma relação a Laurindo Almeida, afinal, um músico que
espécie de musicologia orientada para a compõe choros e valsas, ao mesmo tempo em que
crítica, uma espécie de crítica orientada para grava concertos de Bach, e ainda vai para os
a história (KERMAN, 1987, p. 13). Estados Unidos promover a “tão famigerada” fusão
de samba com jazz, não poderia ser transformado
Deste modo, a obtenção dos resultados em um ícone nacional.
desta pesquisa deve passar não somente por Com relação aos procedimentos metodo-
uma análise de partituras, ou seja, uma análise lógicos, esta pesquisa prevê a captação de
musical, mas também por uma análise dos entrevistas com pessoas ligadas direta ou
fenômenos históricos, políticos e sociais que indiretamente ao violonista, além de consultas a
contribuíram tanto para o advento da Bossa acervos públicos e particulares, livros, artigos,
Nova, quanto para hipótese de que Laurindo sites, documentários e teses de autores que nos
Almeida seja um dos precursores deste forneçam dados que possibilitarão uma análise
movimento musical. posterior, com o intuito de extrair elementos que
Em decorrência deste fato, pretende-se possam aprofundar nossa pesquisa.
neste trabalho, dialetizar determinados Além disso, faremos o levantamento de
conceitos que, diante de uma concepção discos e partituras de Laurindo Almeida, e após
nacionalista, por muito tempo foram difundidos uma audição crítica, serão selecionadas as peças
nos debates sobre música popular brasileira, tais musicais que serão analisadas, com o propósito de
como: verificar, principalmente, sob quais aspectos pode-
se dizer que tenha sido um dos precursores da
Historicamente, o aparecimento da bossa nova Bossa Nova.
na música urbana do Rio de Janeiro marca o Para as questões relacionadas à análise
afastamento definitivo do samba de suas raízes musical, em decorrência da inexistência de uma
populares (TINHORÃO, [s.d.], p. 230).
metodologia brasileira adequada para análise de
música popular, adotaremos os quatro volumes do
9
Ano do lançamento do disco Impressões do Brasil, método Harmony, dos autores Barrie Nettles e
juntamente com o álbum Chega de Saudade de João
Gilberto, reconhecidamente o marco inicial da Bossa-Nova. Alex Ulanowsky, editados pela Berklee College of
10 Music 1987 e 1988.
Visto o grande volume de discos lançados no Brasil e
E.U.A., e em decorrência do difícil acesso, e a inexistência
11
de uma catalogação destes álbuns, julgamos necessário Be-bop é um estilo de Jazz que predominou nos E.U.A. na
este levantamento. década de 40.
simpósio de pesquisa em música 2006 61

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Expressão e sentido na música brasileira: retórica e análise musical
Acácio Tadeu de Camargo Piedade
Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo
O presente artigo pretende comentar a aplicação da “teoria das tópicas” em análise musical para o caso da
música brasileira. A retomada do plano expressivo-retórico na análise musical se deu recentemente, com
autores que se dedicaram ao período clássico da música européia, como Leonard G. Ratner, V. Kofi Agawu e
Robert S. Hatten. Esta perspectiva ilumina de forma importante a compreensão das músicas pelo fato de,
através da análise musicológica e da interpretação de pontos expressivos no texto musical, apresentar nexos
culturais da musicalidade em foco. O objetivo principal desta comunicação é discutir a aplicabilidade desta
teoria no campo da música popular brasileira.

Introdução de forma intensiva os recursos analíticos das várias


A quantidade de estudos acadêmicos sobre teorias de análise musical3.
música popular brasileira tem crescido De fato, a análise musical foi, durante muitos
rapidamente desde a década de 80. Estas anos, pensada como válida somente para a música
investigações, produzidas tanto no Brasil como erudita, pelo fato de que esta circula através de
no exterior, têm se fundamentado numa vasta suporte escrito, a partitura, objeto
quantidade de práticas através de variadas representacional que serve de base para a análise.
perspectivas teóricas e metodológicas1. Uma Muitos autores comentam os aspectos culturais e
parcela destas pesquisas trabalha sob a ideológicos que estão por trás da preferência pela
perspectiva musicológica utilizando um de seus música erudita e exclusão da música popular do
recursos mais típicos: análise musical a partir de horizonte musicológico, alegando uma suposta
partituras. Ocorre que o papel da partitura no inferioridade musical no que tange à complexidade
mundo da música popular é bastante particular, formal e harmônica típicas da música erudita4.
e envolve sistemas de notação e conceitos Nesta direção, muitos autores se apóiam nas idéias
específicos, como cifragem de acordes, lead- de ADORNO (1983, 1994), em busca de consistência
sheet, edição de songbooks, etc. Além disso, para um discurso que já se encontra extremamente
grande parte da música popular não está desgastado no início do século XXI5. A partir dos
perpetuada em partitura, mas sim em gravações anos 80, surgem diversas críticas e movimentos de
fonográficas2. Por isso, o analista musical muitas desconstrução e oposição ao formalismo na análise
vezes tem que transcrever gravações e criar sua musical, entre eles o que se convencionou chamar
partitura de trabalho para empregar os métodos de Nova Musicologia. Desta forma, os nexos sócio-
analíticos. Em geral, o foco da análise é a esfera culturais e históricos se tornaram pontos relevantes
melódica (e sua segmentação em temas, frases, na análise musical, abrindo o campo para a música
motivos, etc.) e a forma (organização da popular. O paradigma atual na área envolve um
apresentação das estruturas musicais no tempo), pluralismo de tendências (AGAWU, 2004)6.
porém a compreensão da música popular muitas Propostas de elaboração de uma musicologia
vezes exige a abordagem de vários outros da música popular já foram elaboradas, como a
aspectos como, por exemplo, a performance e a proposta de análise semiótica de Philip Tagg
recepção. Mesmo assim, a análise musical é uma (TAGG, 1987). Um dos pontos importantes dos
ferramenta fundamental no estudo de qualquer estudos de música popular é a descrição e análise
repertório musical, pois ilumina de forma
reveladora o texto musical propriamente. No 3
Dois exemplos: BERLINER (1994) para o jazz, e LUCAS (2002)
âmbito da música popular, contudo, só para o congado mineiro.
recentemente os estudos começaram a empregar 4
Não é o caso adentrar este debate aqui: remeto o leitor a
MIDDLETON (1990, 1993), HAMM (1995), entre muitos outros.
1 5
Por ex. BASTOS (2005), ULHÔA e OCHOA (2005), e DUNN Em geral, há aí uma simplificação do pensamento adorniano
(2001) e McCANN (2005). que ignora as profundas contribuições deste filósofo para a
2
estética (ver BÜRGER, 1988; JAMESON, 1991). Ver também
Note-se que a música popular, em sua dimensão histórica, SHUKER (1998).
não pode ser compreendida isolada da história da
6
fonografia: fonografia e música popular se desenvolvem de Para alguns autores, a Musicologia atual atravessa uma crise
forma irmanada ao longo do século XX. devido ao seu próprio crescimento (NATTIEZ, 2005).
64 SIMPEMUS3

dos gêneros musicais. Gêneros como o heavy A idéia de figura e de retórica musical
metal (WALSER, 1990) ou a canzona italiana pressupõe, portanto, uma compreensão da música
(FABBRI, 1982) são manifestações do mundo enquanto discurso. As unidades musicais deste
empírico que são compreendidas pelos nativos discurso são, muitas vezes, atribuídas de qualidade
como gênero. Como no mundo literário (DUCROT ou ethós, isto por meio de convenção cultural
e TODOROV, 2001), no universo musical gêneros (diga-se, histórica e tácita)7. O encadeamento
e estilos constantemente se formam ou se destas unidades compõe parte do discurso musical
transformam, sendo que análises sincrônicas e sua lógica. Para Meyer, por exemplo, o uso de
tornam a discussão muitas vezes infértil. Por convenções deste tipo se dá como controle da
isso, a perspectiva de tratar os gêneros musicais expectativa, da satisfação ou suspensão das tensões
da forma como Bakhtin trata os gêneros de fala musicais geradas nos processos formais da música
(BAKHTIN, 1986), ou seja, como discursos, tem- tonal, o que comprovaria a importância da emoção
se revelado uma ferramenta teórica interessante e do significado na música (MEYER, 1956).
para abordar o tema (ver PIEDADE, 1999). Nesta direção, recentemente retomou-se uma
perspectiva de compreender a música em sua
Retórica musical e tópicas dimensão retórica: destaco aqui o que alguns
autores denominam oportunamente topics, e que
No século XVII, muitos teóricos basearam-
envolve uma teoria da expressividade e do sentido
se nos escritos de Aristóteles e Cícero sobre
musical que se pode chamar de “teoria das tópicas”
Retórica para descrever a oratória da música,
(RATNER, 1980; AGAWU, 1991; HATTEN, 1994,
configurando uma disciplina que se chamou
2004). O universo estudado nestas obras é o da
Musica Poetica (principalmente com Joachim
música européia do período clássico, e algumas das
Burmeister). Estas idéias desembocaram, no
tópicas trabalhadas por estes autores são: alla
século seguinte, nos estudos da Teoria dos Afetos
breve, aria, brilliant style, empfindsamkeit,
(principalmente com Joahann Mattheson).
fanfare, hunt style, learned style, pastoral, Sturm
Fundamental na filosofia aristotélica é a noção
und Drang, entre outras. Trata-se aqui de tópicas
de topoï, entendidos como lugares-comuns (loci-
de um período refletindo a weltanschauung de uma
communes) produzidos acerca de silogismos
época. Há uma distância muito grande deste
retóricos e dialéticos. Os topoi formam a
universo de tópicas para o caso da música
“Tópica”, as fontes que estão na base de um
brasileira, pensada como uma unidade sócio-
raciocínio. Uma retórica musical sugere uma
cultural em consolidação ao longo dos séculos XIX e
visão da música como discurso, ancorando-se na
XX. Porém, creio que há aqui também uma visão de
idéia de figuras da retórica musical. Na retórica
mundo que permeia este longo período e este
tradicional, figura é todo fragmento de
território simbólico, e que esta teoria é uma
enunciado cuja “configuração aparente não está
interessante via para a compreensão da significação
conforme à sua função real”, resultando em uma
musical e da musicalidade em geral, sendo
transformação ou transgressão “codificada do
perfeitamente adequada para o estudo da música
próprio código” (ANGENOT, 1984, p. 97). A
brasileira, principalmente no âmbito da construção
retórica, sobretudo na elocutio, distingue as
de identidades. Resta encontrar as tópicas que
figuras de palavras (ou tropos) das figuras de
entram em ação neste universo.
pensamento, que intervêm mais diretamente na
organização do conjunto do discurso. Conforme Tópicas seriam, portanto, as figuras da
Moisés, figuras de palavras dizem respeito à retórica musical. Gostaria de enfatizar que as
formação lingüística e consistem na tópicas são também topológicas, ou seja, sua
transformação desta, por meio de categorias da plenitude significativa se dá não apenas por sua
adiectio, detractio, transmutatio, enquanto feição interna, mas também pela posição de sua
figuras de pensamento dizem respeito aos articulação no discurso musical. Entendo que deve
pensamentos (auxiliares), encontrados pelo haver alguma significação implícita na progressão
sujeito falante para a elaboração da matéria e, destas posições na cadeia sintagmática de um
por conseguinte, são, em princípio, objeto da discurso musical8. Isto tem implicações na análise
inventio. Estas últimas, portanto, distinguem-se
dos tropos, visto que estes implicam na mudança 7
Estou enfatizando o caráter simbólico, portanto, o que não
semântica dos vocábulos. As figuras de retórica quer dizer que não haja também significação de ordem
icônica ou indexical.
não são meros ornatus adjacentes ao
8
pensamento, mas um trabalho específico sobre a Configurando aquilo que Agawu chama de “plot”, ou seja, um
“roteiro”, “a coherent verbal narrative that is offered as an
própria significação (MOISÉS, 2004, p. 188). analogy or metaphor for the piece at hand” (AGAWU,
1994:33).
simpósio de pesquisa em música 2006 65
do processo temático, para além dos século XIX e início do XX, período de gênese do
desenvolvimentos de RETI (1951), ou seja, do choro, o flautista, solista do grupo, usualmente era
processo temático e desenvolvimento motívico o único músico que sabia ler partitura, e sua
em direção à unidade formal. Assim, pode-se performance era marcada por frases modificadas
supor que se pode recompor uma espécie de em relação ao original, como que desafiando seus
“roteiro”, ou esquema narrativo, que se acompanhantes a segui-lo (DINIZ, 2003). Alguns
encontra em um nível mais abstrato do que mecanismos e frases musicais revelam este lado
aquele do próprio motivo (MEYER, 2000). brincalhão, isto de forma a exibir algum virtuosismo
O trabalho de visualizar uma tópica instrumental. De fato, trata-se de um conjunto de
envolve uma hermenêutica que não é estrangeira tópicas que chamarei de brejeiro. O brejeiro na
ao campo da análise musical. Porém, o problema musicalidade brasileira é brincalhão, difere do
não se limita a encontrar, interpretar ou nomear gesto que se entende por scherzando, por seu
as tópicas encontradas no discurso musical, mas caráter menos infantil e mais malicioso e
a explicar como estes governam a sucessão dos desafiador. A figura do malandro na cultura carioca
afetos e gestos9. No caso de música escrita, a e brasileira em geral alude a este tópico: o
cadeia de tópicas expressivas se encontra malandro que ginga com os pés, é esperto e
determinada pela própria partitura, onde figuras competente (na ginga), desafiador (quem me
podem se articular diversas vezes em diferentes pega?). A expressão musical deste caráter da
momentos e ordenações. Já em improvisações, brasilidade se dá através das tópicas brejeiro, que
as posições das tópicas podem ser móveis, tendo envolvem transformações musicais presentes,
o caráter de espaço de possibilidade que se abre inicialmente, no choro. Os flautistas de choro e
em determinados pontos do discurso musical10. suas variações melódicas que desafiam seus
Creio que as tópicas de um discurso musical acompanhantes a não se perder na música, alguns
(entendido como posições estruturais dotadas de temas de Pixinguinha (o início e certas passagens
qualidade sígnica determinadas) são de “Um a zero”), Ernesto Nazareth (“Apanhei-te
experimentadas pelos próprios intérpretes na sua cavaquinho”; aliás, este título expressa a brejeirice
prática musical, bem como pela audiência. Os do cavaquinho). Muitas vezes está em jogo um tipo
estudos da retórica musical devem incluir, de “ataque falso” de nota, no qual um “deslize”
portanto, a esfera da recepção como nexo cromático no agudo faz crer que houve erro, e no
teórico (CANO, 1998). Enfim, tópicas são objetos entanto se trata de uma transformação brejeira.
analíticos da significação musical, signos que Outras vezes, o tópico se manifesta mais na
podem ser comparados ao que Tagg chama de dimensão rítmica, como é o caso de certas
museme, especialmente o que ele define como “quebras” e deslocamentos irregulares que
genre sinecdoche (TAGG, 2005). parecem brincadeiras rítmicas que,
desafiadoramente (para os acompanhantes e
Tenho me dedicado ao estudo das relações
ouvintes), atravessam os tempos como que
entre retórica, poética e música, bem como à
brincando, sem se deixar perder.
busca de possíveis tópicas da musicalidade
brasileira., isto através de análises de partituras Há um outro conjunto de tópicas, que estou
de música brasileira popular e erudita, bem designando “época de ouro”, no qual reinam os
como de transcrições de improvisações (PIEDADE, maneirismos das antigas valsas e serestas
2006). Comentarei aqui alguns conjuntos de brasileiras, impera a nostalgia de um tempo de
tópicas que venho estudando. simplicidade e lirismo, de ruralidade e frescura. Um
pouco do mundo lusitano está presente aqui, nas
evocações do fado e na singeleza das modinhas.
Em busca de tópicas da música brasileira Como se fosse um mito, manifesta-se aqui um Brasil
Há na musicalidade brasileira um estilo profundo, vindo do passado através de volteios e
simultaneamente brincalhão e desafiador, floreios melódicos (vários tipos de apojaturas e
exibindo audácia e virtuosismo, isto de forma grupetos), padrões rítmicos (maxixe, polka,
graciosa e, principalmente, interesseira, dobrado estilo “banda”) e certos padrões motívicos
individualista e maliciosa. Trata-se de um gesto (escala cromática descendente atingindo a terça do
profundo, impresso já na gênese de alguns acorde em tempo forte) que estão fortemente
gêneros, como o choro. Por exemplo, no final do presentes no mundo do choro e em vários outros
repertórios de música brasileira, tanto na camada
9
superficial quanto em estruturas mais profundas11.
Ver MEYER (2000:263).
10
Um exemplo é o que chamei de ‘citação em contexto’ (ver 11
Estruturas mais profundas no sentido da perspectiva
PIEDADE, 2005). schenkeriana, como aliás adota AGAWU (1991).
66 SIMPEMUS3

Das “Valsas de Esquina”, de Francisco Mignone, a (pentatonismo); experimental (especialmente na


certos trechos de composições de Hermeto exploração timbrística); atonal (evocando um
Pascoal, as tópicas época de ouro se apresentam cultivo erudito de “vanguarda”); tropical
com melodias em primeiro plano, em estilo (estratégias icônicas denotando as florestas e a
cantabile, sempre com lirismo e nostalgia. exuberância tropical, como os pássaros em Villa-
Outro conjunto de tópicas é o nordestino: Lobos). A listagem certamente não se esgota aqui,
a musicalidade nordestina é um recurso dada a dimensão continental da musicalidade
fortemente empregado na expressão da brasileira.
brasilidade (PIEDADE, 2003). Desde cedo este Acredito que na música brasileira,
Nordeste profundo se apresentou musicalmente independentemente da oposição popular/erudito,
ao Brasil em diversos repertórios musicais. O uma retórica se faz presente, articulando tópicas
baião e a escala mixolídia, usada mediante uma que colocam em jogo identidades e referências
série de padrões, se tornaram índice da culturais que constroem um universo musical
identidade brasileira, por exemplo, nas entendido como brasileiro. Assim, creio que se
composições nacionalistas de Camargo Guarnieri pode levantar conjuntos de figurações que se
e de outros compositores que se opunham ao apresentam tanto em Egberto Gismonti, Chico
atonalismo do movimento Música Viva dos anos Buarque e Pixinguinha quanto em Villa-Lobos,
4012. Guerra-Peixe, Cláudio Santoro, entre tantos outros.
A análise musical mostra que tópicas Afirmo, portanto, o rendimento de investigações
brejeiro, época de ouro e nordestino são da dimensão expressiva da música brasileira, bem
articuladas de forma intensa em diversos como da análise musical detalhada dos textos
repertórios da música brasileira erudita e musicais deste vasto repertório, desta forma
popular. contribuindo para dissolver as fronteiras entre o
mundo erudito e popular. A perspectiva retórica e a
Além deles, pode-se apontar para alguns
“teoria das tópicas” representam orientações de
outros conjuntos: a presença da musicalidade do
análise musical que superam o mero formalismo, ao
jazz permeia várias esferas da música brasileira.
envolver simultaneamente conhecimentos musicais
Na investigação da chamada “musica
e interpretações histórico-culturais. Desta forma,
instrumental”, ou jazz brasileiro, caminha-se em
funcionam como via de acesso à significação e aos
direção a um conjunto de tópicas bebop, de
nexos culturais em jogo na música brasileira.
acordo como uso específico deste termo entre
músicos brasileiros (ver PIEDADE, 2003, 2005); o
universo afro-brasileiro constitui um conjunto de
tópicas afro, presente nos batuques, lundus,
jongos, etc13. Outros conjuntos a serem
mencionados são: tópicas sulinas (envolvendo a
música tradicional das terras gaúchas e gêneros
musicais argentinos, uruguaios e paraguaios tais
como guarânia, chacarera, milonga, tango, etc.,
envolvendo especialmente a superposição
rítmica de 3 contra 2 tempos); tópicas caipiras
(que evocam o mundo rural conforme a
imaginação do Brasil do sudoeste e central,
tendo a figura do caipira e seus duetos em terças
e sextas paralelas, bem como os ponteios da
viola caipira como referenciais mais evidentes);
outros possíveis conjuntos a serem investigados:
tópicas ameríndios (principalmente no uso de
flautas nativas e de percussão do tipo “pau-de-
chuva”); árabe (mais recentes, com a influência
da world music, principalmente através de
escalas e ornamentações); oriental

12
Ver NEVES (1981).
13
Neste caso, há um interessante artigo que busca levantar
tópicas afro no repertório pianístico brasileiro (CAZARRÉ,
1999).
simpósio de pesquisa em música 2006 67

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Relações de gênero e musicologia:
reflexões para uma análise do contexto brasileiro
Maria Ignez Cruz Mello
UDESC

Resumo
Este trabalho parte de uma discussão sobre música e relações de gênero no contexto da música indígena no
Brasil, passando por um recorte bibliográfico da literatura atual sobre questões de gênero na musicologia e
na teoria musical ocidental, inserindo tais reflexões dentro de uma perspectiva de crítica pós-moderna que
pretende se aproximar de uma análise feminista no campo musicológico. Trabalhos da área da antropologia,
como o de Maria Mello (2005), e da musicologia, como os de Susan McClary (1994) e Susanne Cusick (2001)
servem de base para esta reflexão, que ao final, aponta caminhos para futuras pesquisas que tratem da
dimensão das relações de gênero no cenário da música brasileira.

>|< feminina no Brasil. Nesta comunicação, partindo de


É muito comum se ouvir falar da uma discussão sobre música e relações de gênero
inexistência ou, ao menos, da irrelevância da em um contexto que difere radicalmente daquele
mulher no cenário da composição musical no da musica ocidental, a saber, o da música indígena
meio erudito da música ocidental. Também não das terras baixas da América do Sul, passando por
se observa uma quantidade expressiva de um recorte bibliográfico da literatura atual sobre
mulheres no campo da regência orquestral ou questões de gênero no campo da musicologia e da
coral, da teoria musical ou da musicologia. Indo teoria musical ocidental, pretendo apontar alguns
mais adiante, vê-se que as mulheres, também no caminhos para futuras pesquisas que possam ajudar
cenário da música popular, vão merecer algum a preencher a lacuna existente em relação ao caso
destaque como compositoras somente a partir da brasileiro, ainda pouco estudado. Tais reflexões se
segunda metade do século XX e, ainda assim, em inserem dentro de uma perspectiva pós-moderna de
número consideravelmente inferior aos homens. crítica a conceitos como “música em si” e “música
Pretendo nesta comunicação refletir sobre o que absoluta”, aproximando-se de uma análise
há por trás destes fatos que, ao mesmo tempo feminista no campo musicológico.
em que naturalizam uma série de “incapacidades
femininas”, mascaram as estratégias que dão >|<
sustentação a esta realidade estatística.
Em minha tese sobre os Wauja (MELLO,
O papel da mulher, sob o prisma de 2005), um dos grupos indígenas que vivem no Alto
diferentes áreas do conhecimento, tem sido Xingu, apresento uma densa etnografia de um ritual
sistematicamente revisto nos últimos vinte anos, musical, o ritual de iamurikuma, realizado
compondo um campo de estudos que se passou a exclusivamente pelas mulheres. Este ritual é
conhecer por “estudos feministas”. O universo analisado em seus aspectos musicais e sob o ponto
musical, tanto no que concerne à produção de vista das relações de gênero, dentro dos marcos
quanto aos estudos sobre estas produções, tem teóricos da antropologia social. Procuro mostrar
sido, por longo tempo, uma prerrogativa que entre os Wauja, bem como entre outros grupos
masculina. Contudo, nas últimas décadas, indígenas, as questões de gênero estão ligadas
pesquisas originadas no campo dos estudos indissociavelmente à música, desde o que se
culturais, da antropologia, da musicologia e da observa na mitologia quanto o que se vê nas
história têm mostrado novos caminhos para se práticas rituais. No Alto Xingu todas as aldeias
pensar tanto o trajeto feminino ao longo das possuem uma “casa das flautas”, também chamada
transformações e da consolidação de várias por “casa dos homens”, que ocupa o centro de uma
narrativas que permeiam a música ocidental, aldeia circular e não pode ser freqüentada pelas
quanto as implicações que as relações de gênero mulheres. As flautas que esta casa abriga,
têm sobre a política e a produção musical chamadas kawoká, não podem ser vistas pelas
mundial. mulheres, sob pena de virem a sofrer um “estupro
Sob este angulo, algumas áreas ainda não coletivo”. Se num primeiro momento pensamos em
trataram suficientemente do assunto, como é o dominação masculina, não se pode dizer que as
caso dos estudos sobre a produção musical mulheres simplesmente se submetam a ela, pois,
70 SIMPEMUS3

durante o iamurikuma elas ocupam também o a diferença de sexo à capacidade reprodutiva,


centro da aldeia e ameaçam os homens com seus assim como há também em toda parte uma
cantos, entoando provocações e denúncias. Elas construção social feita sobre estes dados
colocam de forma poético-musical sentimentos elementares que, no entanto, não se traduz da
individuais em um plano coletivo e assumem o mesma forma em todo lugar (HÉRITIER, 1996, p.
domínio de seus corpos através da música. 22). Sabe-se que o sistema das relações de gênero
Partindo da afirmação das mulheres Wauja de está ligado às atribuições sociais de papéis, poder e
que “música de iamurikuma é música de flauta”, prestígio, sendo sustentado por ampla rede de
e com base nas análises de mitos e em análises metáforas e práticas culturais associadas ao
musicológicas, é apresentada a ligação entre a masculino ou ao feminino. Desde Platão, vê-se uma
música vocal do ritual de iamurikuma e a música preocupação no Ocidente com o poder exercido
instrumental das flautas kawoká. Destas análises, pela música e, em torno desta ansiedade, muito se
ressalta a complexidade das construções tem elaborado em termos de metáforas de gênero,
composicionais (MELLO, 2006) que tanto as diferença sexual, atração e repulsa sexual.
músicas de iamurikuma quanto as das flautas Apresento a seguir uma reflexão sobre parte da
kawoká apresentam, bem como surpreende o bibliografia da musicologia e da teoria musical
grau de imbricação entre os dois repertórios. atuais, no sentido de inserir as discussões em torno
Estas operações musicais complexas exigem uma das relações de gênero neste campo.
excelente memória e alto grau de conhecimento Como aponta Joseph Kermann (1985), a
tanto por parte das mulheres cantoras quanto tradição musicológica esteve sempre muito mais
dos flautistas mestres. Como os motivos rítmicos voltada para análises formais do que para questões
e melódicos dos cantos de iamurikuma podem sensíveis às humanidades, e isto se deve muito ao
ser vistos como uma versão cantada e feminina fato de que, no desenvolvimento da música
daqueles apresentados nas músicas de kawoká, ocidental tonal, surgiu todo um conjunto de
fica evidente que o aspecto sonoro do repertório pressupostos teóricos, explicitados através de
das flautas não é objeto de proibição, mais sim, convenções e construções retóricas repletas de
que são estes sons comuns “que unem a extrema metáforas sexuais. Estas se ligam a questões de
masculinidade, exclusiva e interdita às mulheres, gênero que estão na base de um paradigma
representada pelo complexo simbólico das narrativo poderoso, em cujo âmago está o ponto
flautas kawoká, e a feminilidade em sua de vista masculino. Contudo, apesar da
expressão mais marcante, o iamurikuma” (2005, centralidade destas questões, a disciplina não
p. 11), formando um único complexo mítico- parece tratá-las de modo consciente (McCLARY,
musical. 1994). Por exemplo, neste modelo androcêntrico,
Trazer estes dados para a discussão em os tempos fortes de um determinado trecho musical
torno do papel da mulher e do feminino no são considerados “masculinos”, enquanto que os
campo da musicologia atual tem como objetivo fracos, “femininos”; sobre as tríades maiores, é
principal desconstruir certas formulações dito que elas exercem atração, em oposição às
universalizantes que tanto o discurso comum menores, ligadas à repulsão; também percebe-se
quanto o discurso acadêmico se esforçam por “ímpetos procriativos” ocorrendo por meio das
manter. Ao tratar de povos que vivem e pensam qualidades dinâmicas da música tonal; ou ainda a
as relações de gênero de forma tão peculiar e idéia prevalente, desde o século XVII, do processo
tão explicitamente associadas ao campo da desencadeado pela expectativa (clímax) e
música, nos vemos forçados a reformular nossas resolução da expectativa, também chamado de
próprias idéias a este respeito em nossa tensão vs. relaxamento, presente no cerne da
sociedade1. música ocidental, o que parece uma forte metáfora
da atividade sexual. A forma sonata-allegro é
estruturalmente um exemplo deste modelo: o tema
>|<
de abertura deve ter um “caráter masculino”,
De modo geral, nos estudos sobre relações enérgico, determinado, heróico, enquanto que o
de gênero, é consenso que há uma condição tema subsidiário é “feminino”, flexível,
biológica dada para toda a humanidade que liga considerado o “outro”. Todos estes pontos são
“naturalizados”, de modo a que “o feminino” nunca
1
Devemos também considerar que não estamos tratando de dê a última palavra neste contexto: no mundo da
povos presos a um passado inatingível, muito pelo
contrário, estes povos estão nos dias de hoje vivendo seus narrativa musical tradicional não há terminações
rituais de forma plena, mesmo que em contato com a femininas (McCLARY, 1994, p. 16).
sociedade envolvente, tão repleta de ofertas de bens,
como CDs, DVDs, e outras mídias a que eles têm acesso.
simpósio de pesquisa em música 2006 71
Como nos lembra Susan McClary, para o as características que há muito estão ligadas ao
bem ou para o mal, a música nos socializa. Ela próprio objeto da musicologia, a música. Esta
contribui fortemente na formação das antiga associação da música com o universo
identidades de indivíduos, pois os ensina a feminino faz com que os musicólogos tentem
experimentar emoções, desejos e até mesmo sistematicamente manter as mulheres longe do
seus próprios corpos (1994, p. 53). Se boa parte campo, na tentativa de atingir um reconhecimento
dos estudos que tratam do universo da música como ciência, de serem vistos como racionais,
pop já têm claro que a música lida direta e sérios e objetivos. Desta forma, a marginalidade do
deliberadamente com a sexualidade (WALSER, gênero na musicologia acentuou a marginalização
1993; COHEN, 1991), não se pode dizer o mesmo histórica das experiências musicais das mulheres,
dos estudos sobre a música erudita. Estes, bem como reforçou a ocultação do que é tido como
especialmente os realizados pelo viés de uma feminino na “vida real”.
musicologia presa aos moldes do pensamento Entender o porquê da misoginia impregnada
social do final do século XIX, gostam de afirmar na musicologia nos faz ir mais fundo na rede de
que a música clássica trata apenas de coisas metáforas pelas quais nossas idéias de gênero são
“superiores”, que ela não seria contaminada pelo constantemente reforçadas. Cusick enfatiza que,
“libidinal”, ou quem sabe, mesmo pelo social para os homens da associação norte-americana, a
(McCLARY, 1994, p. 54). presença das mulheres traria à tona a similitude
Para alguns autores, orientados por um entre música e poder erótico (p. 478). Haveria,
posicionamento mais ideológico em relação ao portanto, uma necessidade de controle sobre o
campo de estudos musicológicos (cf. HATTEN, fluxo do desejo para que a objetividade da
2004, ver adiante), seria imprescindível revelar musicologia fosse afirmada. A exclusão do prazer
as construções de gênero, sexualidade e poder seria então importante para a aceitação no campo
que estão presentes tanto no texto musical das ciências, lembrando que a ciência,
quanto no discurso sobre a música que o meio particularmente nos Estados Unidos, é o campo
teórico e o musicológico se esforçam por legitimador das profissões.
desenvolver (p. 4-5). Assim sendo, a musicologia, posta como a
Nesta esteira, o trabalho de Susanne Cusick ciência da música, busca disciplinar e treinar
(2001) analisa os primeiros movimentos da compositores, intérpretes e ouvintes a se
academia norte-americana em torno da fundação separarem da intuição, sentimentos e imaginação,
da New York Musicological Society, em 1930, e todos aqueles atributos femininos associados à arte
da American Musicological Society, em 1934. musical. Seguindo de perto as pesquisas
Cusick apresenta uma breve história de como a musicológicas ao longo da história, McClary (1994)
compositora Ruth Crawford, na época uma observa que há uma constante tentativa de
proeminente estudante de composição que já dissociação da atividade musical de uma carga
possuía várias obras publicadas, se interessou em supostamente “feminilizadora”: talvez pelo fato
estudar contraponto atonal com o Prof. Charles desta arte, assim como a dança, estar ligada aos
Seeger e teve seu ingresso barrado ao se prazeres sensuais, os musicólogos parecem assumir,
candidatar para compor o quadro da New York ao longo da história da música ocidental, uma
Musicological Society. Sua exclusão deliberada postura extremamente formalista. Definem a
foi, anos mais tarde, assumida por Seeger2, pois música como a mais ideal (em oposição à física ou
ele acreditava que, com isso, estaria evitando material) das artes, insistindo na dimensão racional
que chamassem a então emergente musicologia da música, e clamam por virtudes tidas como
de “trabalho de mulher”. Este pequeno episódio masculinas, tais como objetividade, universalidade
serve a Cusick para mostrar como a questão de e transcendência, além de lançarem mão, em
gênero está no âmago da identidade da diferentes épocas e ocasiões, da proibição da
musicologia norte-americana e, por extensão, da participação feminina.
musicologia contemporânea em geral. O medo Neste caminho de cientificização, observa-se
levantado por Seeger era de que a musicologia claramente o projeto hegemônico do “homem
fosse associada à posição que a mulher ocupava branco”, heterossexual, classe-média ocidental, de
(e ainda ocupa em muitas áreas) na “vida real”, ditar os cânones que devem ser aceitos e de
ou seja, inferior, sem poder, caracterizada pela provocar a exclusão do que crê ser inadequado,
emocionalidade, sensualidade, frivolidade, todas projeto já tão contestado pelas correntes pós-
modernas do pensamento contemporâneo que vêm
2
Que se tornou marido de Ruth algum tempo depois deste
episódio.
72 SIMPEMUS3

nas grandes narrativas3, formas exacerbadas de Frankfurt o impediu de ver a importância da música
exclusão social. Segundo Ellen Koskoff, a popular e das grandes mudanças que ocorriam no
construção de cânones - estes pensados como mundo da música ocidental.
conjunto de trabalhos que corporificam valores Já Charles Hamm (1995) detecta os modelos
que são medidos e controlados como um discurso narrativos modernistas sobre música popular que
- que advêm desta postura universalizante da têm sido construídos a partir dos fins do século
música ocidental por si só não representaria um XVIII, que se ligam às lutas e estruturas de classe
problema: a questão surgiria com o processo de européias. Estes escritos são construções que têm
canonização, ou seja, “the institutionalization of em sua base uma estrutura hierárquica e
certain works over others through the imposition excludente, que privilegia um gênero musical (e
of hierchies of self-invested values upon other sexual) em detrimento de outros. São narrativas
people and their musics” (KOSKOFF, 2001, p. como a da autonomia musical -ligada ao idealismo
547). germânico que explicita divisões como highbrow e
Dentro desta narrativa masculina da lowbrow-, a narrativa da cultura de massa -todos
musicologia estabelece-se implicitamente uma aqueles que produzem, criam e/ou consomem os
hierarquia na vida acadêmica musical que produtos de massa são de classe, etnia ou moral
sistematicamente desvalorizou a performance e “inferiores”-, as narrativas da autenticidade -
a educação musical em prol da valorização da valorização da música folclórica ou da música de
ciência da música. Os instrumentistas e culturas diferentes a partir de seu grau de “não-
educadores necessitariam de outros que contaminação”. Com o desvendamento destas
pudessem falar em seu lugar, ou seja, dos narrativas, torna-se possível perceber que elas
musicólogos. Estes, por sua vez, proclamariam o estão sendo articuladas ainda hoje em relação a
que deveria ser a mais alta forma de música, a diferentes fenômenos no mundo da música.
“música absoluta” ou a “música em si”, elevando Voltando à questão da autonomia da
a Forma Musical ao verdadeiro prazer que a musicologia em relação aos “encaixes” sociais, vê-
música pode oferecer, o prazer da mente. se que esta postura é amplamente aceita por
Toda esta discussão parece remontar às teóricos da música de um modo geral, e que todas
idéias de Adorno sobre música, que mereceram as narrativas e posturas por eles assumidas estão de
longa análise de Richard Middleton (1990). Este acordo com o proclamado ideal do “homem-branco
autor, ao mesmo tempo em que reitera a classe-média norte-americano ou europeu”, ou
importância do pensamento de Adorno para os seja, que através da objetividade e da exclusão da
estudos sobre música, critica duramente seu sensualidade, pode-se alcançar a “forma pura” e o
pessimismo diante do desenvolvimento das prazer que o entendimento desta provoca na
sociedades industriais e ataca sua utilização do mente. Fred Maus (1993), em seu ensaio sobre
“método imanente” para criar uma autonomia da teoria musical relacionada ao discurso masculino,
música em relação à esfera sócio-cultural, trata as idéias de Hanslick, descritas em seu
revelando sua perspectiva etno e eurocêntrica clássico livro O belo na música (HANSLICK, 1989),
(p. 44-45). Como exemplo da riqueza de um como que ressoando as poderosas características do
repertório repudiado por Adorno, Middleton patriarcado ocidental - exaltação da dominação
analisa uma canção da Tin Pan Alley - famoso masculina (heterossexual) sobre todas as outras
reduto nova-iorquino de produtores de hits das formas de relacionamento humano. Na crítica a
primeiras décadas do século XX - e avalia como o Hanslick, Maus observa que a “música absoluta”
etnocentrismo do pensador da Escola de deixa de fora de suas fronteiras toda música que
não corresponde ao modelo proposto. Márcia Citron
3
O termo “pós-moderno” aparece nos anos 80, para dar
(1991), por sua vez, também relaciona a idéia de
conta da exaustão dos pressupostos modernistas, como o “música absoluta” à representação cultural da
fim daquilo que Lyotard chama de grandes narrativas masculinidade, pois esta se caracterizaria por
(LYOTARD, 1986) e com mudanças na ordem da economia e
da produção industrial (HARVEY, 1993). Já GIDDENS (1991) considerar seus pressupostos como universais. Ela
afirma que o que vivemos hoje não corresponde ao fim da crê que cultuar a “música absoluta” é cultuar a
modernidade, mas sim a uma radicalização e masculinidade, ou seja, a experiência da “música
universalização das conseqüências da modernidade,
embora possamos ver relances da emergência de novos em si” não pode ser considerada inocente, livre das
modos de vida e formas de organização social. Algumas relações de gênero e livre da política que lhe dá
características desta modernidade radicalizada seriam: a
dissolução dos grandes relatos e, com eles, do
sustentação.
evolucionismo; o desaparecimento da teleologia histórica; Também para Cusick, destronar a “música em
o reconhecimento da reflexividade constitutiva da
modernidade; por fim, a evaporação da posição si” é um dos objetivos de uma musicologia
privilegiada do Ocidente. feminista, visto que cultuá-la significaria cultuar a
simpósio de pesquisa em música 2006 73
imagem da masculinidade. Para ela, este quais chamou de crítica e ideológica (HATTEN,
destronamento representaria uma ameaça à mais 2004). A primeira, representada por musicólogos
profunda crença das democracias capitalistas como Joseph Kerman, Leo Treitler e Leonard
ocidentais: a idéia de indivíduo liberal, aquele Meyer, buscou superar o positivismo e o formalismo
que se vê como livre para escolher o que quiser, em prol de análises e interpretações com uma
quando quiser. A experiência encorajada pelo crítica historicamente mais informada. Na segunda
culto da “música absoluta” é a de uma experiên- orientação, que envolve um posicionamento mais
cia estética onde o indivíduo pode imaginar a si ideológico, Hatten coloca Lawrence Kramer e Susan
próprio como um anjo, até mesmo um Deus, em McClary, envolvendo a crítica pós-moderna, a
um espaço que seria como o éter onde não desconstrução, a hermenêutica e o feminismo,
haveria gênero, sexualidade ou corpos (2001, p. revelando as construções de gênero, sexualidade e
494). Contudo, os musicólogos não se perdem no poder no texto musical (p. 4-5).
éter da fruição, pois eles são os guias das viagens Como se pode depreender do que foi escrito
musicais. Para Maus, a audiência, de um modo até aqui, esta comunicação centrou-se claramente
geral, pode ser descrita como bottom, os “de nesta segunda orientação, por concentrar autores e
baixo”, enquanto que os musicólogos seriam trabalhos que questionam as relações de gênero no
vistos como top, os “do alto”. Com isso, esta campo da música. Os dados apresentados sobre a
audiência (nós, a maioria) parece gostar de música indígena servem aqui de contraponto para
assumir uma posição de subordinada, de aprendiz nos ajudar a pensar questões que rotineiramente
dos superiores, ao mesmo tempo em que temos como claras e certas, como por exemplo: (1)
aprende a confundir sua subordinação com uma em geral se crê que sociedades indígenas não
participação imaginária na divindade através da possuem música estruturalmente elaborada,
identificação com a entidade chamada “música enquanto que na sociedade ocidental,
em si”. principalmente no meio da música erudita, falar de
Cusick, por sua vez, faz um paralelo entre tal elaboração é quase uma obviedade; (2) uma
esta relação da audiência com a “música em si” sociedade que coloca a “casa dos homens” em seu
e a leitura de novelas, afirmando que em ambas centro e proíbe as mulheres de freqüentá-la pode
existiria uma fantasia de mobilidade e controle ser vista como machista e autoritária, enquanto
social. A imobilidade física imposta pela sala de que a sociedade em que vivemos é tida como
concerto nos coloca na posição de top e bottom “idealmente” liberal e democrática. Contudo,
simultaneamente, momento em que há uma depois do que foi dito sobre a música ocidental e o
liberação de nossos rígidos papéis sexuais, papel das mulheres neste cenário, dificilmente
políticos, de etnia e de classe. Tudo estaria poderíamos comparar a atuação das mulheres na
projetado na “música em si”, que nos fornece o música erudita àquela das mulheres indígenas que
modelo sônico da imagem de Deus, nos termos tomam o centro da aldeia e impõe suas idéias e
como o indivíduo da classe média o concebe, anseios através das músicas que criam e executam
aquele indivíduo liberal descrito pela teoria publicamente. Neste contexto indígena, homens e
política clássica (p. 495). mulheres produzem, interpretam e absorvem a
Cusick apresenta, por fim, o que poderia música de forma equilibrada e entrelaçada,
ser uma musicologia feminista, observada em procurando expor e conter o que há de mais
dois planos explicitamente políticos de conflitante nas relações sociais, enquanto que na
salvamento do feminino na música: o primeiro, sociedade ocidental, através de um discurso
chamado de “Onde estão as mulheres?”, que universalizante, impõem-se significados claramente
busca retirar as mulheres compositoras e “generizados”.
intérpretes do obscurantismo. O segundo plano, A dimensão das relações de gênero no cenário
chamado de “Como as mulheres e o feminino brasileiro revela-se em estruturas institucionais que
têm sido representados?”, tem como intenção não têm sido estudadas sob esta perspectiva, tais
salvar o poder expressivo, sensual e erótico da como Academia Brasileira de Música, Sociedade
música. Neste sentido, a prática musical poderia Brasileira de Música Contemporânea, Sociedade
ser vista como relacionada ao aprendizado da Brasileira de Musicologia. Há uma carência de
prática erótica, dos relacionamentos sociais e pesquisas musicológicas produzidas no Brasil que
sensuais. problematizem pontos como: faixa etária das
Segundo Robert Hatten, toda a discussão mulheres que atuam no cenário da música
das últimas décadas em torno de uma busca do pop/rock, em grupos folclóricos e na música
significado musical foi orientada e afetada erudita; questões étnicas e raciais que perpassam
basicamente por duas correntes musicológicas às os grupos musicais; produções individuais e
74 SIMPEMUS3

coletivas; formas de organização dos grupos; passo importante a ser dado. O estudo da
visões da mídia sobre as mulheres na música, musicalidade brasileira revista sob tal perspectiva
entre outros. O estudo das trajetórias de vida de poderá revelar como o “feminino” e o “masculino”
mulheres emblemáticas da música brasileira, tais se projetam e se constroem através do discurso
como Chiquinha Gonzaga, Carmem Miranda, musical, tanto no nível das estruturas
Guiomar Novaes, Dolores Duram, revistas sob a composicionais, dos arranjos instrumentais e
ótica de uma musicologia orientada pelos vocais, bem como no plano das letras das canções.
estudos de gênero, representaria também um >|<

Referências
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p.102 -117.
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GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1991.
HAMM, Charles. Putting popular music in its place. Cambridge: Cambridge University Press, 1995.
HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Campinas: Editora da UNICAMP, 1989.
HARVEY, D. A condição pós-moderna, São Paulo: Loyola, 1993.
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KOSKOFF, Ellen. What do we want to teach music? One apology, two short trips, three ethical dilemmas, and
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LYOTARD, J. F. O Pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
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McCLARY, Susan. Feminine endings: Music, gender, and sexuality. Minneapolis: University of Minnesota,
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MIDDLETON, R. Studying popular music. Philadelphia: Open University Press, 1990.
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_____ Processos composicionais em um ritual musical indígena. In: DOTTORI, M.; ILARI, Beatriz (org.) ANAIS
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WALSER, Robert, Running with the Devil: Power, gender, and madness in heavy metal music. Hanover, NH:
Wesleyan University Press, 1993.
Aspectos da oralidade na atual produção musical nordestina:
a relação palavra e música na obra de Elomar
Nivea Lazaro dos Santos
Universidade Federal Fluminense

Resumo
O trabalho propõe uma reflexão em torno da relação palavra e música na obra do cantor e compositor
Elomar Figueira. Partindo-se do conceito de oralidade, define-se a premissa sobre a qual se pensará a obra
deste compositor. Compreende-se que são duas as acepções da palavra: uma oralidade discursiva e outra,
formal. A obra elomariana é analisada respeitando-se tal distinção.
Do ponto de vista formal, observa-se como a linguagem escolhida por Elomar se relaciona com sua música.
Quanto ao discurso, a reflexão reside nos traços de oralidade presentes em sua obra. A análise realizada
aponta caminhos para uma melhor compreensão da relação entre composição e cultura e de como palavra e
música se imbricam atendendo às intenções do compositor.
Palavras-chave: oralidade; palavra; música; Elomar.

Houve um tempo em que a fronteira entre Do conceito de oralidade. Duas acepções a serem
literatura e música era tão tênue a ponto do observadas
ofício do poeta não denotar uma clara distinção Dentre as acepções do vocábulo "oralidade",
entre falar e cantar, o que indica a estreita podem-se encontrar tanto traços semânticos
relação entre as duas artes por via da voz. relacionados ao discurso e à condição do que é oral
Partindo-se desta asserção, neste trabalho em si. No artigo de Luciana Ferreira M. Mendonça
pretende-se mostrar a íntima relação entre sobre literatura e oralidade, por exemplo,
literatura e música da atual produção musical encontram-se os pares oralidade / audibilidade e
nordestina acentuando as marcas da oralidade na poeta / compositores. Tais relações podem ser
obra do compositor, cantador e violeiro Elomar manifestas na tradição temática da cantoria
Figueira como representante deste segmento nordestina e na performance desta.
musical. Os estudos de Paul Zumthor (ZUMTHOR, 1993)
Seguindo a distinção no conceito de orali- sugerem que, houve um tempo, estas duas artes –
dade apresentada neste trabalho, a obra de literatura e música – não apresentavam contornos
Elomar se revela um exemplo peculiar (e bem rígidos e aparentemente estáticos como nos nossos
diferente dos cantadores pesquisados pelos dias. Em seu livro "A letra e a voz", Zumthor difere
pioneiros em folclore no Brasil). Apesar da os tipos de oralidade e enfatiza a funcionalidade da
aversão à exposição midiática, Elomar teve e voz em relação ao texto.
tem contato com diversos outros mundos. É Desta forma, o autor distingue os tipos de
homem estudado e, ao mesmo tempo, resgatador oralidade: oralidade primária, mista, segunda e a
das antigas lendas, contos, mistérios e valores dos meios de comunicação. Na oralidade primária,
que, não raro, ainda figuram o imaginário não há contato com a escrita e a base da
nordestino, sincretizando influências folclóricas e comunicação é exclusivamente oral. Na mista, há
eruditas em sua música. uma influência da escrita, mas tal influência é
Em vista dos estudos encontrados sobre parcial e externa. A oralidade segunda parte de
oralidade e música nordestina (em sua maioria, a uma cultura já letrada, apresentando um caminho
cantoria e seus estilos) cujo foco é quase que de retorno à oralidade. E a última refere-se à
exclusivo no aspecto discursivo desta relação, oralidade pertencente à cultura de massa. À luz
propõem-se aqui caminhos para uma análise não desta classificação, a música de Elomar será
restritiva ao aspecto discursivo do texto, mas observada sob a definição da oralidade mista.
uma análise que também considere os aspectos Diante destes conceitos de oralidade, é
formais da palavra e da voz como elemento que possível compreender o termo em vista de dois
dialoga com o significado musical de uma obra. aspectos: o discursivo e o formal. No primeiro, o
conceito em questão atrela-se à própria temática
da produção musical e no segundo, este se analisa
76 SIMPEMUS3

na medida em que se observam as relações realização exclusivamente nordestina, a supressão


formais entre palavra e música. do fonema /d/ em "veno", "prossiguino", dentre
Retomando Zumthor, este propõe o outras formas gerundivas, é característica do
conceito de índices de oralidade. Os índices de nordeste do Brasil.
oralidade constituem-se de indicações sobre o O próprio léxico também aponta respostas. As
uso da voz no texto, são marcações que indicam alusões à lua, aos animais, à vida no campo em si
a intervenção da voz no texto (ZUMTHOR, 1993). indicam um estilo de vida que não é comum aos
O autor coleta textos entre os séculos X e XV grandes centros. Como afirma o compositor:
contendo notações musicais sugerindo a íntima
relação entre voz/ música e poesia. Então decidi que, ao tratar de temas ligados à
É na observação da intenção de voz que se sociedade rural, dos roçadianos, sempre iria
estabelece uma relação mais estrutural entre escrever na sua variação lingüística." (ELOMAR, in
música e palavra/ literatura. Como, por GOBBI, 2005 )
exemplo, compreender o que motivou a
modificação da versão portuguesa da lenda da Assim posto, é preciso relembrar a
Donzela Teodora de prosa para verso na versão diferenciação baseada no conceito de oralidade.
brasileira e qual a relação intrínseca na escolha Para fins de análise, empregarei o termo "oralidade
das palavras, na forma de falar que alteram o discursiva" para a oralidade que se refere ao
significado do "texto musical". Seriam tantos os conteúdo temático do texto propriamente dito em
exemplos que cabe agora dissecar uma amostra oposição à "oralidade formal" que se relaciona com
da música nordestina através do bardo sertanejo o aspecto formal da língua portuguesa.
Elomar. Passo ao aspecto que denominei por
oralidade formal, sobre o qual a análise de como as
Relação palavra/ literatura e música na obra de palavras e a melodia de uma canção se relacionam
Elomar constituem um dos fatores determinantes à feitura
Análise da oralidade formal e interpretação de uma obra.

A primeira observação a respeito da lingua- Na canção "Faviela", por exemplo, observa-se


gem empregada nas canções de Elomar acontece a sincronia da sílaba tônica com a mudança de
nas palavras do próprio cantador: "uma vez que a acorde. Trata-se de uma composição em compasso
gente canta em linguagem dialetal sertaneza" quaternário que, via de regra, apresenta um tempo
[sic]. Mas qual o diferencial dessa "linguagem inicial forte, o seguinte sendo fraco, outro, mezzo
dialetal sertaneza" para que o músico a chame forte e o seguinte também fraco, seguindo a
"dialetal"? fórmula F f Mf f.

Uma breve comparação desta linguagem Embora se reconheça a mensuração da


com a norma culta do português pode sugerir tal música, é interessante observar que o intérprete (o
resposta. próprio Elomar) não a segue fielmente como afirma
Mário de Andrade a respeito dos cantadores:
Em relação ao português pertencente à
dita norma culta, observa-se, no dialeto
sertanejo usado por Elomar, um dado O cantador aceita a medida rítmica justa sob todos
os pontos de vista a que a gente chama de Tempo
conservador em certa medida. Este fenômeno
mas despreza a medida injusta (puro preconceito
refere-se às nasalizações e de como estes se
teórico as mais das vezes) chamada Compasso.
diferenciam da norma culta do nosso português. (Mário de Andrade, apud CASCUDO, 1939: 145).
Tomando-se, por exemplo, os vocábulos "lũa",
"madĩa", "mĩa" e "cumpaĩa", observamos, nos três
últimos exemplos, a queda do fonema Neste sentido, Andrade distinguiu os termos
representado pelo dígrafo "nh", mas não da tempo e compasso ao tratar dos cantadores.
nasalização. Há, nestes exemplos, uma redução Em Faviela observa-se que o compositor
que remonta do português arcaico (TARALLO, interpreta sua canção exatamente nestes moldes,
1994). No caso de "lũa", houve a queda de outro sendo recorrente em todas as estrofes em que há
fonema (/n/), ainda assim, mantendo-se a uma leve precipitação do tempo inicial, o tempo
nasalização tal qual nos outros vocábulos. forte (F) onde recai a sílaba tônica das palavras1.
Além dos exemplos citados, ocorrem
1
diversos outros tipos de supressão de fonemas. Para o aprofundamento de uma análise musical de Elomar,
seria ideal utilizar suas partituras. No entanto, estas não
Desconsiderando a apócope observada nos verbos estão disponíveis para venda. Um songbook contendo cerca de
empregados no infinitivo por não se constituírem dez óperas escritas pelo compositor está sendo produzido pela
simpósio de pesquisa em música 2006 77
Observa-se também o ralentar do Dentro do mesmo exemplo, outro elemento
acompanhamento da viola de Elomar, sempre que sugere a relação do texto (como um todo) com
marcante nas finalizações de cada verso e, por o jogo harmônico instrumental, referem-se aos
vezes, no início destes. Ainda, nas palavras do graus de tensão da harmonia e de como estes se
mesmo pesquisador sobre o tempo da cantoria: conjugam com a tensão da história narrada pela
música. Assim, tem-se uma canção desenvolvida no
São movimentos livres acentuados por fantasia tom Fá maior. Que encerra todos os ciclos
musical, virtuose pura, ou por ocasião harmônicos da música, apresentando uma resolução
prosódica. Nada tem com o conceito tradicional própria do sistema tonal indicado nas finalizações
da sincopa e com o efeito contratempado dela. conjugadas com as palavras "chegá", "lá". Com o
Criam um compromisso sutil entre o recitativo e monossílabo "pai" há uma preparação para um outro
o canto estrófico. (Mário de Andrade in ciclo, uma mediação para o momento de tensão na
CASCUDO, 1939: 145). música indicado na mudança do acorde de um grau
maior para o menor (Fá menor), acentuado por ser
Afora a questão do contratempo, presente justamente o acorde que indica o tom da música.
na música de Elomar, o "compromisso entre o Este outro ciclo apresenta seu ponto de partida na
recitativo e o canto estrófico" é evidente em sílaba tônica de "tomem". E, encerrando este ciclo
suas composições. A presença deste efeito de tensão, a tônica de "priguntá". Visualizando a
"contratempado" não apaga a imbricação letra, torna-se mais compreensível esta mudança
concernente aos limites entre música e palavra na narrativa do texto:
na obra de Elomar. Bem ao contrário. O falar não
segue estas normas rítmicas. A bença madĩa cabei de chegá
Daí um dos laços da música de Elomar com Do rêno das pedra das banda de lá
a cantoria nordestina estudada pelos folcloristas, Meu pai mando queu vince aqui te salvá
haja vista que já é consenso classificar cantoria
Tomem queu subesse das nova de cá
como gênero poéticomusical por diversos autores
De nada isquecesse de li priguntá
(RAMALHO, 2000).
(ELOMAR, 1984).
Retomando o compromisso mencionado por
Mário de Andrade, é na viola de "Cantiga do
Estradar" e "Faviela" (ELOMAR, 1984: Faixas 7 e Algumas elucidações sobre esta estrofe corro-
9) que se revela esta conjugação entre o canto e boram para a compreensão dessas alterações
acompanhamento. Em primeira instância, é harmônicas. A canção narra a jornada de um
possível que se precipite em dizer que o "malonguinho" de 15 anos cujo pai pede que vá à
instrumental na música de Elomar esteja sujeito casa de sua madrinha levar notícias de sua família e
à palavra, às suas estrofes. Contudo, a exemplo também trazer notícias de lá ao seu pai. Ao chegar
do rojão, do ponteio da viola entre suas estrofes, à casa de sua madrinha, ele a saúda e pede sua
percebe-se que o instrumental na música de benção. Nos versos seguintes, ele esclarece os
Elomar adquire feições próprias, distintas das objetivos de sua viagem. Essa divisão é claramente
estrofes, sem estar isoladas destas. Os dois acompanhada pela harmonia da canção.
elementos coocorrem e dialogam um com o A exemplo de "Faviela", o mesmo jogo rítmico
outro, sendo enfatizados individualmente, cada que conjuga palavra e música se apresenta em
um ao seu tempo e à sua intenção. Em "Faviela", “Cantiga do Estradar”. Observe-se a estrofe:
por exemplo, dentro da estrofe inicial, ao final
de cada verso, o tempo musical é preenchido Tá fechando sete tempo
com um pequeno solo de viola, estrutura
qui mia vida é camiá
harmônica que se revela como característica do
pulas istradas do mundo
músico.
dia e noite sem pará
(ELOMAR, 1984, Faixa 7)

Casa de Cultura de Vitória da Conquista. Um projeto de Excetuando o vocábulo “istradas”, todos os


catálogo digital de todas as suas gravações e outras
partituras foi selecionado por um programa da Petrobrás e outros unem sílaba tônica à acentuação do
aguarda, somente, a liberação do patrocínio para sua compasso (quaternário) e à mudança de acordes.
elaboração.
Esta mesma combinação segue a estrofe seguinte,
no entanto, a melodia e a harmonia assinalam o
aumento da tensão descrita na letra. A divisão
78 SIMPEMUS3

rítmica à qual se submetem os acordes que Elomar nasceu em Vitória da Conquista, Bahia
seguem dos versos sete ao dez acompanham as em 1937. Aos sete anos de idade, deixou a vida
sílabas das palavras concordando com esta urbana e rumou para São Joaquim de onde saiu
mesma tensão que coopera com o texto da apenas para estudar em Salvador. Entre suas
música. chegadas e partidas da terra natal, teve contato
Além destes elementos, outro parece ainda com a música dos cantadores Zé Krau, Zé Guelê e
mais marcante nesta canção e nas obras de Zé Serradô. Além dos cantadores é preciso
Elomar de modo geral: os solos que ocorrem no ressaltar, na sua infância, a presença das músicas
decorrer das estrofes acompanham a melodia da do hinário cristão de base evangélica (profissão de
música, reafirmando assim seu texto poético, fé de sua família por parte de mãe). Mas é na
unindo-o ainda mais à música. capital que descobre a música de câmara.
Tratou-se até esta etapa de uma oralidade Figueira Mello compõe desde os onze anos de
formal, intrínseca à música e ao texto. Uma idade, entretanto, é aos dezessete que inicia suas
oralidade que revela um movimento interno no "composições literárias e musicais" no formato que
poema-canção (ou canção-poema). se consolidou posteriormente. Já nessa época
adquire fluência na leitura musical, ao passo que
sua escrita musical precisa ainda ser desenvolvida.
Oralidade discursiva ou textual Somente no início da década de 80, abre mão da
A despeito da oralidade discursiva ou arquitetura como sustento no, passando a dedicar a
textual, considere-se uma breve interpretação maior parte do seu tempo ao exercício da
acerca de outra obra deste cantador: composição. Radicado em Vitória da Conquista,
além da música, Elomar ocupa-se de atividades
Cada pedaço desta canção, que se delimita agro-pecuárias em suas fazendas.
musicalmente em trechos de caráter diferente, Daí percebem-se traços distintivos entre os
se apóia na força ancestral e contundente da cantadores/ repentistas pesquisados por Cascudo,
tradição oral, transmite um clima de magia Mota entre outros folcloristas e músicos que se
permanente da primeira à última linha [...]
encaixariam em uma outra categorização como
Misteriosamente, como numa colagem, surge o Elomar. Contudo, observa-se que, o discurso
tema do veadinho branco, que aparece no
musical de Figueira remete ao mesmo legado da
mundo do romance de encantamento medieval
música dos cantadores.
e que é também transmitido pela História do
Imperador Carlos Magno, um dos textos A temática elomariana é predominante-
matrizes de nossa cultura popular e sertaneja. mente a respeito da vida do homem do campo, o
(FERREIRA, Jerusa Pires, apud XANGAI, 1984: homem sertanejo. A exemplo do que ele mesmo diz
Faixa 1). ao afirmar que trata de temas da sociedade rural.
Mas que temas, em sua obra, constituem amostras
Segundo, Cascudo, a História do Imperador do arcabouço da tradição oral nordestina?
Carlos Magno, ao lado de outras obras como a Em seu álbum solo, Cantoria Brasileira 3, a
Donzela Teodora, Lunário Perpétuo dentre primeira canção "Donzela Teodora" trata da história
outras, compõem fonte de erudição dos de uma donzela que desafiou todos os sábios de um
cantadores. Como o comentário sugere, o rei, obtendo por recompensa "mili dobra de oro".
compositor tem conhecimento das obras de base Segundo Cascudo, a origem árabe do conto é
da tradição folclórica do sertão. indiscutível e chegou a nós, via Espanha e Portugal,
Diz-se de Figueira Mello o seguinte: através da tradução de Carlos Ferreira Lisbonense
(CASCUDO, 1939). Tal narrativa encontra-se nas
edições do Lunário Perpétuo e do Manual
Daqui leu todos os poetas, escritores e profetas
hebreus; leu os mélicos e os clássicos gregos; os Enciclopédico (fontes literárias da cantoria
latinos, incluindo Esopo e o Fedro; os italianos, nordestina). A versão sertaneja está em verso,
franceses, ingleses, espanhóis, russos e, por enquanto as demais se mantêm em prosa. A
último, os alemães, tendo, é claro, antes disto respeito desta alteração, uma das motivações que
perpassado pelos essenciais patrícios. (ELOMAR, podem tê-la favorecido está na adequação da
2006) forma narrativa à música. Os registros mais antigos
da música ocidental (que datam da Idade Média)
No intuito de esclarecer tal afirmação é apontam a preferência da poesia, da versificação
preciso explicitar alguns dados biográficos do para a musicalização das estrofes (ZUMTHOR,
compositor. 1993).
simpósio de pesquisa em música 2006 79
Também desta forma, a relação entre sugerindo este clima de melancolia vivido pela
texto e música se estabelece. Trata-se de uma personagem.
melodia nos moldes descritos por Andrade, Os elementos religiosos presentes no texto
revelando o compromisso entre o recitativo e as remetem a uma das fontes da cantoria sertaneja:
estrofes, de acompanhamento instrumental que
conjuga acordes e sílabas tônicas. A música de
Menos lido, mas inseparável dos cantadores
Elomar comporta uma harmonia que sugere a
letrados, todos campeões do ortodoxismo católico.
influência da música medieval (CÂNTICOS, 1996). Os recursos de orações, explicações de fácil
Em História de Vaqueiros (XANGAI, 1986) o teologia... catecismo, regras morais, tudo vinha da
tema se aproxima mais do presente: uma espécie ‘Missão Abreviada’ (CASCUDO, 1939, p. 92).
de "louvação" aos heróis do sertão:
Em todo caso, não se desconsidere o his-
Mas foi tanto dos vaquero que rênô no meu sertão tórico familiar de Elomar, ascendente de uma
Qui cantano um dia intero num menajo todos não família de cristãos novos (daí o sobrenome
(XANGAI, 1986, Faixa 9) "Figueira").
Nesta parte da análise, é possível observar
que, a influência cultural da capital, não anulou em
É um mote revelador de traços que
Elomar as raízes de uma oralidade tipicamente
remetem às canções de gesta (um dos temas de
"sertaneza". Seja consciente (como ele afirmou ser)
base da cantoria tradicional). Uma narrativa da
ou não, suas canções revelam muito da vida, do
saga dos vaqueiros, contando o corpo a corpo dos
contexto do homem do campo cujo elo com o
heróis com animais (no caso, o boi) ou outros
legado colonizador europeu é mais evidente quando
elementos do imaginário nordestino (nesta
comparado ao "urbanóide" (usando a terminologia
canção, o lobisomem).
do próprio compositor). Tal elo se expressa no
Em se comparando esta canção com a diálogo entre temas e música. O jogo harmônico de
anterior, a primeira, aponta uma aproximação suas canções, os instrumentos utilizados em suas
maior das raízes medievais ibéricas, mas, ambas composições (todos à base da viola e do violão),
apresentam melodias recitativas. As duas heranças do contato com o europeu (SOLER, 1978 in
constituem narrativas, bem como grande parte RAMALHO, 2000), diferenciam-no da música urbana
da obra de Elomar. e o aproximam da produção ibérica medieval.
Considere a letra de Patra Véa do Sertão:
Considerações finais
Patra véa do sertão
Ao nos deparar com uma obra musical ou
Terra donde eu nasci literária, muitas vezes, surge a pergunta de como o
Teus campo de solidão compositor ou autor chegou àquela forma, qual o
Me alembra ôtro sertão significado dela, daquele conteúdo. Uma melhor
Qui a sagrada letra canta compreensão em torno da questão da oralidade
E muitu longiu daqui pode elucidar algumas respostas de como a
intenção de um intérprete (seja ele músico ou
Pl’as banda da Terra Santa
poeta) atua em uma determinada obra.
Nos campo de Abraão
Segundo Ramalho, "os estudos sobre tradição
No sertão do Rei Davi
oral e cultura escrita têm revelado aportes
(ELOMAR, 1991, Faixa 3)
importantes para se entender melhor a confluência
de modos de pensar com os quais convivemos no
O trecho corresponde a uma das árias de momento atual." Ratifico: os estudos sobre
Elomar. Trata-se de uma mulher que, após oralidade apontam diretrizes para a compreensão
aceitar a proposta de fuga de sua prima, lança do arcabouço ideológico do homem atual, tanto no
um lamento, um grito de dor despedindo-se de seu aspecto conservador, quanto no seu aspecto
sua terra. transformador.
Primeira observação de como o texto E, de um modo intrínseco, compreender
dialoga com o significado da harmonia da melhor a relação palavra/ literatura e música nos
canção, ocorre na tonalidade desta. É uma dá pistas de como o contexto histórico-social se
melodia triste com finalizações em intervalos manifesta nas características de um dado estilo
descendentes (PRIOLLI, 1979), cujo tom é menor musical, de um dado artista. A obra se revela,
então, um microcosmos de seu contexto social que,
80 SIMPEMUS3

através dos elementos próprios da arte (formais motivos que o levaram a regressar ao campo,
e discursivos como a denúncia e a descrição, por constituindo assim, um modo de chamar a atenção
exemplo), corroboram com uma melhor para o modus vivendi e o modo de pensar do
compreensão da ideologia que transmite. homem proveniente de uma região tão peculiar do
Em se tratando de oralidade, poderia se país?
pensar que a escolha de Elomar enquanto corpus Creio que é nesse aspecto que o cantador-
para a análise não constituísse um bom exemplo, violêro-poeta-compositor Elomar Figueira tem seu
por se tratar de um compositor que lugar, sua voz e vez de evidenciar a cultura
deliberadamente escolheu o linguajar de suas nordestina. Mostrando que nem só de reprodução
canções e seu modo de vida também, posto que vivem os cantadores, mas, criando e revisitando seu
teve opções outras que não a música. Mas, não imaginário, seu folclore, penetram em traços da
seria também justamente essa escolha pessoal alma brasileira que o homem "urbanóide" costuma
do cantor provocadora da reflexão sobre os sufocar.

Nota da autora: As partituras de Elomar não estão disponíveis para venda. Um songbook contendo cerca de dez óperas
escritas pelo compositor está sendo produzido pela Casa de Cultura de Vitória da Conquista. Um projeto de catálogo
digital de todas as suas gravações e outras partituras foi selecionado por um programa da Petrobrás e aguarda, somente,
a liberação do patrocínio para sua elaboração.

Referências
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<http://www.dicionariompb.com.br> Acesso em 11 de agosto de 2006.
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GOBBI, Nelson. Elomarianas. NordesteWeb Notícias. Curitiba, 20 ago. 2005. Disponível em:
<http://www.nordesteweb.com/not07_0905/ne_not_20050820a.htm> Acesso em 12 de agosto de 2006.
MENDONÇA, Luciana Ferreira de Moura. Literatura e oralidade: da canção poética à canção popular.
Disponível em: <http://intercom.org.br/papers/xxi-ci/gt04/GT0409.PDF> Acesso em: 16 jul. 2006.
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PRIOLLI, Maria Luisa de Mattos. Princípios básicos da musica para a juventude. Rio de Janeiro: Casa Oliveira
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TARALLO, F. Tempos lingüísticos: itinerário histórico da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1990.
XANGAI. Xangai canta Cantigas, Incelenças, Puluxias e Tiranas de Elomar. Rio de Janeiro, 1986, CD.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Os estilos e as idéias em Villa-Lobos
José Ivo da Silva
Universidade Estadual Paulista

Resumo
A partir de conceitos estético-musicais lançados por Arnold Schoenberg em seu artigo “New Music, Outmoded
Music, Style and Idea”, presente no livro “Style and Idea”, procede-se a uma abordagem da obra de Villa-
Lobos com o objetivo de refletir sobre a pertinência de tais conceitos na obra do compositor brasileiro,
levando-se em consideração a contemporaneidade dos dois artistas e suas diferentes posturas frente à
música do século XX.
A síntese do artigo de Schoenberg e seus conceitos fundamentais sobre estilo e idéia é o primeiro passo.
Posteriormente, o dimensionamento do conjunto da obra de Villa-Lobos em seus aspectos composicionais e
estéticos, apoiados em análises, tese e dissertações sobre o compositor brasileiro, feitas por alguns
estudiosos e pesquisadores das últimas décadas. Por meio de reflexão sobre estes trabalhos serão
apresentados conceitos e tendências que delinearam as características do compositor Heitor Villa-Lobos, às
quais sublinham-se as convergências e divergências com o pensamento do criador do sistema dodecafônico.
O contexto histórico vivido pelo compositor brasileiro desempenha igual importância e propicia abordar
outros conceitos como o nacionalismo, o “manifesto antropofágico” do modernismo brasileiro e as
tendências contemporâneas modernas absorvidas em sua música. E por fim, conclui-se, baseado neste
exercício reflexivo, se esta apreciação tornaria os estilos e idéias de Villa-Lobos em Estilo e Idéia no âmbito
do pensamento universal.

Abordar Villa-Lobos a partir de Schoenberg idéia temática. A “Idéia” para Schoenberg


parece um contrasenso, mas a intenção é constitui o aspecto mais importante para a obra de
contextualizar a obra de Villa-Lobos sob a ótica arte, tal conceito é exposto por ele da seguinte
de alguns conceitos lançados por Arnold maneira: “Em sua mais corrente acepção, o termo
Schoenberg em “Estilo e Idéia”, no capítulo “idéia” se dá como sinônimo de tema, melodia,
“Música Nova, Música Antiquada, Estilo e Idéia”1, frase ou motivo. Quanto a mim, considero a peça
e ampliar esses conceitos para outros autores. em sua totalidade como idéia: a idéia que seu
(SCHOENBERG, 1963, p. 67-84) criador quis realizar”. Um sistema de sucessão de
Schoenberg, no artigo acima citado, trata notas produz um estado de inquietude causado pela
separadamente de cada um dos termos do título dúvida de sua direção tonal:2
do artigo, isto é, música nova, música antiquada,
estilo e idéia. Faz duras críticas aos pseudo- O sistema mediante o qual se restabelece o
historiadores, como profetas estéticos, que equilíbrio é para mim a idéia real da compo-
lançam slogan como “Música Nova”, tentando sição. É possível que a freqüente repetição de
incentivar a produção de novidades, mas não temas, grupos, e inclusive partes mais extensas,
possuem a menor responsabilidade como tenha de ser considerada como intentos para
conseguir um equilíbrio prévio para a corres-
criadores. Posteriormente, relaciona os termos
pondente tensão. [...] Uma idéia não perece
do título considerando suas significações, nunca. (SCHOENBERG 1963, p. 82-83)
interrelações e historicidade, e traz conceitos
pessoais aos quais condiciona as transformações
para uma nova música a resultados conquistados A concepção de idéia em Schoenberg parece
por verdadeiros artistas, ou seja, por aqueles aproximar-se de uma visão metafísica, quando diz
que possuem a “Idéia”. O conceito de “Idéia” que ela nunca perece; isto faz lembrar
trabalhado por ele engloba mais do que a simples Schopenhauer e a filosofia de Platão:

1
em que os objetos do mundo não eram mais que
Trata-se da palestra intitulada “Neue und veraltet Musik
oder Stil um Gedanke”, proferida por Schoenberg no
aparências, meras sombras das coisas verdadeiras,
Kulturbund de Viena em janeiro de 1933 (W.R.). Seu texto as quais o homem não podia conhecer neste
está incluído nos escritos reunidos de Schoenberg, mundo, feito todo ele de representações
publicados por Leonard Stein, sob o título Style and idea. imperfeitas. Entendendo que para Platão as coisas
Possui, portanto uma versão em inglês (Belmont
Music/Faber & Faber) outra em francês (Buchet/Chastel) e
também em espanhol (Taurus). 2
Todas a citações em outras línguas foram traduzidas pelo
autor.
82 SIMPEMUS3

perfeitas e absolutas existiam no mundo das que difere dos modelos utilizados por Schoenberg,
idéias, onde as almas, antes de se encarnarem tido como conservador em relação ao aspecto
nos corpos, puderam vislumbrá-las. No mundo formal (SALLES, 2005, p. 77). Villa-Lobos, em várias
das idéias existe a beleza total e completa, mas
ocasiões, demonstra não ter uma busca formal
coisas belas do mundo eram belezas
preconcebida. O inusitado está presente como um
incompletas, eram apenas representações
imperfeitas da verdadeira beleza, que estava estigma de sua originalidade.
fora do alcance e da compreensão do homem. Para Schoenberg, a idéia, como fundamento
No entanto Schopenhauer pondera que existe mais importante de uma composição, moldará o
uma coisa absoluta que o homem conhece estilo. Nunca partirá de um estilo preconcebido: “O
totalmente: a vontade. [...] A vontade aqui estilo é a qualidade da obra e se baseia nas
nada tem a ver com a decisão racional por uma
condições naturais que definem quem as realizou.
opção de agir, mas trata-se de um ser absoluto,
Com efeito, aquele que conhece suas faculdades
essência primeira, a coisa em si, o noumeno,
que é irredutível e gera todas as coisas deste poderá dizer de antemão como será exatamente a
mundo (COBRA, 2003). obra terminada quando, todavia, não a está vendo
mais que em sua imaginação”. Aqui atribui ao
compositor, compreendido como verdadeiro artista,
Schopenhauer fazia parte da biblioteca de
o status de artífice e conhecedor da natureza do
Schoenberg. No entanto, Anton Webern, em uma
material com que trabalha. (SCHOENBERG, 1963, p.
de suas aulas reunidas em “O Caminho para a
80)
música nova”, comenta a busca de Schoenberg
por uma definição da palavra “idéia” inserida em Villa-Lobos, em suas inquietações, tinha
um contexto aplicável à compreensão deste presente essa responsabilidade de artífice e trazia
termo no universo musical. Isto aconteceu consigo o domínio do material musical. A
justamente quando ministrou a palestra quantidade e variedade de composições contidas
intitulada “Música Nova, Música Antiquada, Estilo em sua trajetória extrapolam qualquer expec-
e Idéia”, em janeiro de 1933. (WEBERN, 1984, p. tativa. Alguns musicólogos e pesquisadores
106-107) sublinham nesta obra, ao analisarem aspectos
composicionais, a multiplicidade estilística e sua
Mais adiante, neste capítulo, Schoenberg
inventividade temática como traços característicos
traça uma linha de compositores germânicos,
de seu trabalho composicional. Como, então,
começando com Bach e seguindo até alguns de
abordar estilo e idéia em seus procedimentos
seus contemporâneos, para demonstrar a
composicionais?
transformação musical de todo esse período. Ele
utiliza o termo “Variação em Desenvolvimento” Lisa Peppercorn expõe sua dificuldade em
para compreender a estrutura em sua comple- estabelecer um desenvolvimento na trajetória de
xidade de relações internas e construtivas da Villa-Lobos, porque não há uma linha contínua de
tradição musical. O conceito de “Variação em evolução em sua obra. A autora condiciona essa
Desenvolvimento” de Schoenberg traz consigo a dificuldade a fatores da personalidade do
idéia do universal, e é introduzido para ilustrar a compositor brasileiro e a outras razões de ordem
transformação homofônico-melódica do fim do externa:
Barroco para o Classicismo, que continua durante
o século XIX. Esse conceito fundamenta o Ele pode, por um tempo, aderir a certos estilos
princípio de unidade, coerência e inteligibili- ou subitamente pular para trás, utilizando uma
dade, considerados por Schoenberg necessários forma de expressão própria, aparentemente
para sustentar a qualidade artística da música abandonada, ou começar uma linha inteiramente
nova. Ele parece gostar de fazer o inesperado,
como obra de arte: “O que quer que aconteça
embora isto possa atualmente torná-lo intranqüilo
em uma peça de música não é nada além de
e impedi-lo de estar atado a algum estilo ou tipo
reestruturação infinita de uma mesma idéia especial por um longo tempo. Se chamado em
básica” (SCHOENBERG, 1984, p. 208). alguma ocasião para um novo trabalho, ele
Uma crítica comum feita à obra de Villa- responderia a este chamado, mesmo que isto
Lobos é a de utilizar uma sucessão de idéias sem significasse mudar completamente para uma nova
desenvolvimento, o que lhe confere um caráter forma ou deixar um trabalho inacabado
(PEPPERCORN, 1992, p. 16-17).
episódico. O emprego de estruturas não
reiterativas evidencia uma busca de modelos de
composição por músicos no início de século XX, O que ela quer dizer com estilos nesta frase?
principalmente com Debussy e Stravinsky. Isso Não parece se tratar de um traço da
envolve uma elaboração criteriosa de montagem individualidade artística do compositor, mas sim
simpósio de pesquisa em música 2006 83
uma roupagem que se molda conforme uma Ao se observarem esses procedimentos
necessidade premente, estabelecida por incluídos nesta listagem, constatam-se traços de
situações externas. uma prática importante de muitos compositores do
O estilo como conjunto de características início do século XX, entre eles Igor Stravinsky e,
de um autor ou de uma época é a acepção mais sem nenhuma dúvida, também Villa-Lobos.
comum que se encontra nos dicionários. No As inquietações de Stravinsky não corres-
trecho acima, Peppercon não deixa muito claro pondiam, contudo, às de Schoenberg estreita-
se essa mudança estilística na escrita musical de mente ligadas à tradição germânica. Em Stravinsky,
Villa-Lobos está ligada ao domínio da linguagem a riqueza rítmica irregular e a manipulação
musical, na história do compositor, para um tímbrica da massa sonora predominavam como
amadurecimento, quando diz que ele retoma características essenciais de sua música, ainda
algo não terminado, ou uma simples mudança no assim, ele trabalhava o material sonoro dialogando
tratamento musical dado às suas composições, com a tradição tonal, porém, criando uma
ou mesmo uma mudança de gênero. Nestes casos complexidade de sobreposição tonal. Suas
haveria uma diferença entre estilo ou estilos. repetições transformadas, organizadas em
Schoenberg diz mais sobre estilo: fragmentos, abriram possibilidades estruturais na
forma musical comparadas aos mosaicos cubistas de
Picasso. Alguns desses traços foram retirados dos
As regras positivas e negativas se deduzem de
caminhos trilhados pela música russa e francesa,
uma obra terminada como constitutivas de um
estilo. Cada pessoa possui suas próprias atingindo dessa maneira uma estética pessoal anti-
impressões digitais, e a mão do artífice tem sua romântica, negando a idéia de desenvolvimento
personalidade; fora dessa subjetividade se alinhada com a tradição germânica. Considera-se
estendem os traços que determinam o estilo do também em seu primeiro período criativo a
produto terminado. [...] De suas faculdades utilização de temas de caráter nacional.
naturais depende o estilo de tudo quanto faça,
Villa-Lobos, em sua trajetória de compo-
e seria um erro esperar que uma ameixeira
sitor, passou por essas duas escolas, porém fez sua
desse ameixas de cristal, ou pêras, ou chapéus
de feltro (SCHOENBERG, 1963, p. 79). escolha. O conceito de estilo, pensando-se na obra
de Villa-Lobos, agora consiste em uma espécie de
base de sustentação caracterizada por um conjunto
O conceito de estilo em Schoenberg de práticas estabelecidas em um determinado
acena para uma marca individual construída por período histórico, filtradas por escolhas pessoais
meio de um ambiente que propicie escolhas para resoluções de questões musicais de um
pessoais, às quais ele chamou regras positivas e compositor, perfazendo “suas impressões digitais”,
negativas de uma prática musical de um como diria Schoenberg.
determinado período. Antes de expor o conceito
Seguindo este raciocínio, Gil Jardim identifica
de estilo como marca individual, Schoenberg faz
em Villa-Lobos, na sua Bachianas 7, a presença de
uma listagem de características negativas
J. S. Bach, I. Stravinsky e L. V. Beethoven, em um
contextualizadas na época em que escreveu este
processo que denominou “Estilo Antropofágico”
artigo:
(JARDIM, 2005). Nesta abordagem, feita por meio
de análise dos procedimentos composicionais
Ao lado destas proibições oficialmente utilizados por Villa-Lobos na Bachianas 7, notam-se
autorizadas, tenho observado características
de Bach os aspectos formais e a textura
negativas, tais como: notas pedais (em lugar
contrapontística no último movimento “Conversa”;
dos baixos melódicos e harmonia resolutiva),
ostinatos, seqüências (em lugar de variações de Stravinsky, o material rítmico e uso do ostinato
progressivas), fugatos (com igual finalidade), da Tocata (Desafio), e finalmente, na aproximação
dissonâncias (para encobrir a vulgaridade dos formal do scherzo beethoveniano, a Giga (Quadrilha
motivos temáticos), objetividade (neue Caipira). No entanto, Jardim relaciona “Estilo
Sachlichkeit), e uma espécie de polifonia, Antropofágico” ao Modernismo brasileiro pensado
substitutiva do contraponto, a qual, por suas na figura de Oswald de Andrade em seu “Manifesto
imitações inexatas, tivera merecido Antropofágico”, quando enfatiza o caráter crítico
antigamente a repulsa, ao qualificá-la de
do primitivismo brasileiro a devorar e digerir a
“Kapellmeistermusik”, ou o que eu chamo de
cultura do colonizador, e vê o resultado disso em
“contraponto Rhabarber” (um contraponto
carente de significação temática). obras singulares como as de Villa-Lobos. Nesta
(SCHOENBERG, 1963, p. 78-79) mistura digestiva de estilos variados, a utilização
do material nacional traz unidade ao conjunto.
84 SIMPEMUS3

Pode-se, então, chamar este procedimento aspiram a conquistar o mercado, existe um traço
composicional de “estilo nacionalista”? comum apreciável em todos esses movimentos:
nenhum deles se preocupa de oferecer novas
Sabe-se que, quando Villa-Lobos chegou a
idéias, mas sim tão só de oferecer um novo estilo.
Paris, pela primeira vez, levando debaixo do (SCHOENBERG, 1963, p. 78)
braço suas composições e dizendo que não estava
lá para aprender, mas sim, para mostrar seu
trabalho, essa música era marcadamente de uma Quando Schoenberg fala de nações pequenas
estética francesa, mais precisamente influen- que aspiram a um mercado, referindo-se a afãs
ciada por Debussy. Mesmo tendo em sua nacionalistas, estabelece uma distinção entre a
produção peças de características nacionais, isso hegemonia musical universal de uma parte da
não era um diferencial em sua obra até aquele Europa, formada por Alemanha, Áustria, Itália e
momento. França, e uma Europa periférica, fora dessa
hegemonia, composta por Rússia, Escandinávia,
Paulo Guérios conta que, logo após a
Bohemia, Inglaterra e Espanha.
chegada de Villa-Lobos a Paris, houve um almoço
no estúdio da pintora Tarsila do Amaral, cercado Essa hegemonia consolidada na noção de
por pessoas como o poeta Sérgio Milliet, o “música absoluta” traz consigo o conceito idealista
pianista João Souza Lima, o escritor Oswald de da autonomia da música que, por sua vez, se opõe
Andrade, o poeta Blaise Cendrars, o músico e à música nacionalista, tida como dependente de um
compositor Erik Satie e o poeta e pintor Jean sistema musical externo. Com isto, o valor artístico
Cocteau, entre outros. Logo depois do almoço atribuído às obras nacionalistas sofre uma
houve uma conversa animada e o assunto se depreciação, independentemente de sua qualidade
desviou para a arte da improvisação musical. intrínseca, justificada por razões extramusicais, e
Villa-Lobos sentou-se ao piano e começou a definida por elementos de uma música de estilo
improvisar. Ao terminar, Cocteau criticou o que nacional extraídos da cultura de seu compositor.
ouviu, dizendo tratar-se de uma emulação dos Há na afirmação de Schoenberg sobre os
estilos de Debussy e Ravel, e prosseguiu-se uma “afãs nacionalistas” uma clara oposição entre
discussão acalorada. Guérios levanta a hipótese nacional e universal. Quando Carl Dahlhaus se volta
de que, a partir deste momento, Villa-Lobos ao classicismo vienense para confirmar este caráter
tenha percebido que um diferencial para sua universal, contextualizado no Iluminismo, constata
produção musical, em solo estrangeiro, seria sua desintegração causada por particularismos no
uma inflexão de caráter nacional. (GUÉRIOS, século XIX:
2003b)
Entretanto, esse fato isolado, embora A dialética do nacionalismo e universalidade na
significativo, tem por trás de si uma conjunção música não pode ser capturada em uma simples
de fatores que direcionará a obra villalobiana a fórmula. A noção de comunidade humana,
cosmopolitismo, nacionalismo e individualismo
seus estilos musicais ou estilo: a influência da
estão todos incluídos na estética musical no século
música popular urbana; o contato com outros
XIX, e isto é, precisamente, porque o pensamento
fenômenos regionais pesquisados ou não por ele, do século XIX foi circulando em volta destas
de uma incontestável variedade; várias categorias antropológicas, de forma que as
orquestras européias, no início do século XX, relações entre elas eram muito emaranhadas.
trazendo um repertório com obras de Debussy, Uma das características reivindicadas pelo
Stravisnky, Pucinni, Wagner, Strauss e Mahler; a século XIX refere-se à individualidade
participação na Semana de Arte Moderna em verdadeiramente original enraizada no ‘espírito
1922; os encontros com Darius Milhaud e Arthur nacional’. [...] Esperava-se que um compositor
Rubinstein e outras variantes que não se tem fosse original, levasse em frente o novo na
como identificar. Esse emaranhado de maneira que, ao mesmo tempo, manifestasse as
acontecimentos estaria em consonância com o “origens” de sua existência. Na estética de
Schumann, esta originalidade era oposta, de um
conceito de estilo de Schoenberg, caso se
lado, pelo epigonismo, e de outro, pela justa
pensasse que todos esses fatores estão na medida (juste milieu) musical, significando uma
construção de um estilo pessoal de Villa-Lobos. mistura cosmopolita de elementos de vários estilos
Schoenberg, no mesmo capítulo, faz o nacionais (DAHLHAUS, 1989, p. 37).
seguinte comentário:
Outro ponto importante tratado por
À parte os afãs nacionalistas em exportar Dahlhaus, a respeito do conceito histórico do
música com que até as pequenas nações nacionalismo no século XIX, quando situa a Europa
simpósio de pesquisa em música 2006 85
para fazer uma distinção entre estilo nacional e O século XX apresenta o nacionalismo gerado
nacionalismo: por um idioma popular, vindo ainda da música
folclórica, mas utilizando uma linguagem moderna.
O Nacionalismo, a crença no espírito de um Dentre os compositores destaca-se Béla Bartók ao
povo como uma ativa força criativa, é uma idéia lado de Villa-Lobos. O aproveitamento do material
com um caráter e uma função as quais é simples folclórico, utilizado por esses dois compositores,
para identificar com o fenômeno de estilo apresenta alguns aspectos comuns nos
nacional: em outras palavras, eles não serão procedimentos composicionais, um deles é o
com sucesso obrigados a uma definição pelo emprego de sistemas conjugados, nos quais
mero ato de descrever características musicais tonalidade, atonalidade e modalidade convivem no
tangíveis (apud BÉHAGUE, 1994, p. 147).
mesmo contexto composicional. Há, porém, um
método diferente na aplicação desses conceitos nos
O estilo nacional é visto pelo senso comum processos composicionais deles, como, por
como nacionalismo, o que impede que se veja exemplo, aproveitamento da “secção áurea” como
claramente tudo que inclui o conceito de um sistema composicional por Bartók (MOLINA,
nacionalismo musical. Essa maneira de ver pode 2004, p. 80-117).
funcionar em alguns casos, especialmente no Villa-Lobos, embora não articulasse clara-
Romantismo, no qual o nacionalismo estava mente uma metodologia de trabalho, possuía um
limitado ao estilo nacional. Contudo o fato de poder de assimilação incomum, voltado aos
Maurice Ravel ter escrito Bolero ou Rapsódia acontecimentos musicais que o cercavam, e dotava
Espanhola não faz dele um nacionalista, já que o a sua música de uma complexidade sempre
conceito de nacionalismo abrange uma maior atualizada com as manifestações musicais de seu
significação, inclusive ideológica. A idéia do tempo, claro que com particularidades que o
nacionalismo como um fator estético, colocado interessavam. Além disso, utilizava suas fontes
por Dahlhaus (p. 147), discute a aceitação dos musicais (música indígena, popular urbana,
ouvintes de uma obra musical feita por um regional, de origens africanas, música universal
compositor que deseje que ela seja nacional em como chamava música da tradição européia)
seu caráter, sendo que a história deve aceitá-la aparentemente, sem fazer reflexão metodológica.
como um fato estético, mesmo que uma análise Em conseqüência disto, quando interrogado sobre a
estilística fracasse para produzir evidências. presença de temas folclóricos em sua música, Villa-
Não se pode isentar Schoenberg de Lobos respondia: “o folclore sou eu”.
compactuar com essa visão hegemônica A constatação de que os modelos da música
configurada na tradição germânica. Sua famosa européia eram vistos por Villa-Lobos como
frase quando vislumbrou o sistema dodecafônico universais e de que houve uma intervenção direta
“Com esse sistema estaremos garantindo a ou indireta do folclore na sua música se encontra
hegemonia da música alemã por mais 100 anos” em um artigo na revista “Diapason”, feito por Maria
demonstra que a idéia nacionalista está presente Alice Volpe, quando ela cita uma classificação
em sua contextualidade. Em todo esse período realizada pelo próprio compositor sobre sua obra:
de predomínio germânico nos séculos XVIII e XIX
não faltaram em suas músicas temas populares
o musicólogo Adhemar Nóbrega [...] afirma que o
de suas regiões, como também não faltaram
próprio Villa-Lobos classificou a sua obra em
estruturas musicais européias com temas
cinco grupos, segundo o nível de aproveitamento
populares de outras regiões. do folclore, independentemente de uma
Não obstante, a noção de originalidade linearidade cronológica. No primeiro grupo, obras
presente na música de caráter nacional ou os “com intervenção indireta do folclore”, entre as
“afãs nacionalistas” eram vistos de maneira quais figuram o Ciclo brasileiro (1936); no
indistinta, tratados eufemisticamente como segundo, as obras “com alguma intervenção
direta do folclore”, entre as quais a Prole do
“exóticos”. Isto é, tudo o que estava fora dos
Bebê (1918, 1921); no terceiro, obras “com
paradigmas musicais europeus, neste momento, influência folclórica transfigurada e permeada
entrava em um cesto desqualificado chamado com atmosfera musical de Bach”, nas quais se
“exotismo”. As mais diversas escalas, incluem as Bachianas brasileiras e os Prelúdios
organizadas de maneiras distintas, a para violão; e, finalmente, obras “em controle
irregularidade rítmica, os instrumentos total do universalismo”, incluídas aí as Sinfonias
diferentes de regiões distantes dos centros n.º 6 e n.º 7 (1944, 1945) e várias obras
europeus, tudo entrava no mesmo camerísticas da década de 40 (VOLPE, 2006, p.
compartimento – o “exótico”. 33).
86 SIMPEMUS3

Embora sejam apresentados quatro grupos aqui expostos, no entanto apontam para um
de obras em vez de cinco, este trecho ilustra caminho estético diferente do assumido pelo
como Villa-Lobos pensava sua produção musical. compositor brasileiro, que é claramente
A denominação de uma parte de suas nacionalista permeado de modernidade.
composições como “controle total do O nacionalismo presente na obra de Villa-
universalismo”, pautada por formas tradicionais Lobos espelha um processo histórico definido por
tais como concertos, sinfonias, quartetos de uma opção pessoal consciente, mas também por
cordas, demonstra consciência dessa direção uma necessidade premente estabelecida por
formal para modelos clássicos. O período dos fatores de identidade. Já o sentido antropofágico e
últimos quinze anos de sua vida ficou marcado o nacionalismo eclético, sugeridos por Gil Jardim e
por encomendas, principalmente de entidades e Gerald Béhague, convergem para aspectos da
orquestras norte-americanas, período no qual há diversidade cultural apresentada ao século XX, e
uma grande quantidade de obras com essas indicam que todos estes aspectos somados
características. confundem o propósito de definir o estilo e a idéia
A distinção feita por Dahlhaus entre o na obra de Villa-Lobos, porque só ressaltam
estilo nacional, universal e o nacionalismo faz pluralidade. As fontes múltiplas que formam a
parte da reflexão feita por Béhague, quando cultura brasileira apontam para essa pluralidade:
aborda o conjunto de aspectos inclusos na obra desde materiais folclóricos, indígenas, música
de Villa-Lobos. Aponta para um compositor de urbana até herança européia. Contudo há um traço
um “nacionalismo eclético”, com uma linguagem característico que define o gesto villalobiano
moderna, principalmente no período de sua presente nas tintas de sua orquestração e
segunda estada em Paris, ocasião em que se deu instrumentação, na edificação de sua harmonia, na
o importante contato com Edgar Varèse, época criação de seus temas, no espelhamento descritivo
em que se vê uma preocupação com texturas da fauna e flora brasileiras, no alinhamento lúdico
musicais, e comenta a série dos Choros: da cultura infantil brasileira etc. Indica um estilo
pessoal marcado por uma variedade temática
construído gradualmente de um simples gênero incomum.
urbano (Choros n.° 1), as mais complexas A característica essencial de um compositor,
formas e expressões em uma amálgama de afirmada por Schoenberg, está presente em Villa-
pulsos e peças da tradição musical nativa e Lobos, isto é, a de um artífice que utiliza seu
afro-brasileira, melodias de cirandas das material com a consciência de um inventor, não só
crianças (cantigas de roda), outros gêneros de
pautado pelo instinto, imaginação e assimilação,
danças populares urbanas, acontecendo em uma
freqüente atmosfera carnavalesca, mas tudo
mas também por muito trabalho, assumindo as
com um decidido vocabulário técnico moderno contradições implicadas no fato de ter sido um
(BÉHAGUE, 1994, p. 156). homem de atitudes e não um formulador reflexivo.
Essas atitudes se transformaram em uma gigantesca
produção, na qual se encontram obras-primas
Arnold Schoenberg é uma referência
incluídas no repertório de orquestras de todo o
incontestável na música do século XX.
mundo, integradas ao repertório universal, que
Representa um investigador incansável de
ficaram como lições importantes para as gerações
questões musicais colocadas para o sedimentário
subseqüentes de compositores, brasileiros ou não.
histórico desta arte durante todo período que
viveu, seja no campo estético, seja na
composição musical, seja como professor. Os
conceitos de Schoenberg refletem algumas
características do idealismo alemão, são
pertinentes para a compreensão de alguns pontos

Referências
BÉHAGUE, Gerard. Heitor Villa-Lobos: the search for Brazil’s musical soul. Austin: University of Texas Press,
1994.
COBRA, Rubem Queiroz. Página de Filosofia Contemporânea. Schopenhauer, 2003. Disponível em:
<http://www.cobra.pages.nom.br> Acesso em 15 de março de 2006.
DAHLHAUS, Carl. Nineteenth-century music. Los Angeles: University of California Press, 1989.
simpósio de pesquisa em música 2006 87
GUÉRIOS, Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos e o ambiente artístico parisiense: convertendo-se em um músico
brasileiro. Mana, v. 1, n. 9, p. 81-108, 2003b Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo> Acesso em 27 de
junho de 2006.
JARDIM, Gil. O Estilo antropofágico de Heitor Villa-Lobos. São Paulo: Philarmonia Brasileira, 2005.
MOLINA, Sergio Augusto. Os sistemas conjugados de Bela Bartók: as técnicas de composição empregadas no
Quarteto IV. Dissertação (Mestrado) - Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 2004.
PEPPERCORN, L. M. Villa-Lobos collected studies. Aldershot: Scolar Press, 1992.
SALLES, Paulo de Tarso. Processos composicionais de Villa-Lobos: um guia teórico. Tese de Doutorado do
Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas. São Paulo, 2005.
SCHOENBERG, Arnold. El estilo y la idea, Madrid: Taurus, 1963.
_____ Style and idea. Berkeley: University of California Press, 1984.
STRAVINSKY, Igor. Poética musical em 6 Lições. Trad. Luiz Paulo Horta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
VOLPE, Maria Alice. O mito: “A música brasileira começa comigo”. Diapason, n. 3, p. 34-35, 2006.
WEBERN, Anton. O Caminho para a música nova. Trad. Carlos Kater. São Paulo: Novas Metas, 1984.
A atualidade da estética musical de Adorno
Igor Tadeu Baggio da Silva
Universidade Estadual Paulista

Resumo
Trata-se de sugerir a atualidade e pertinência de algumas noções fundamentais da reflexão estética
adorniana sobre a música para o contexto atual de criação musical. Através das idéias de música radical e de
música informal, ambas centrais no pensamento de Adorno sobre a música da primeira metade do século XX,
será esboçado um questionamento acerca de alguns princípios norteadores da poética musical recente. O
foco desse questionamento será a implicação ideológica de algumas reflexões sobre música que se propõem
pós-modernas.
Palavras-chaves: estética musical, música contemporânea, modernismo, pós-modernismo.

A visão de Theodor Adorno em relação à Valorizando o aspecto contingente do material


produção musical da primeira metade do século musical, ou seja, seu estado histórico atual e,
XX é intrigante, ainda hoje, sob vários aspectos. opondo toda e qualquer pretensão de totalidade
Em sua grande maioria, suas idéias continuam por parte daquele material musical proveniente da
tendo um valor inegável, mesmo que entendidas tradição musical austro-germânica do passado, essa
a partir de um certo distanciamento histórico. A música radical soará, muitas vezes, como o veículo
reflexão adorniana sobre arte e, especifica- de resistência das vanguardas que se debatiam em
mente, sobre música, opera sempre sob a figura uma relação intransigente com o público.
da ruptura existente entre os homens e os Para entendermos melhor essa virada em
fenômenos artísticos no contexto socioeconômico direção a um conteúdo de caráter contingente na
e político do mundo ocidental de então, arte moderna, devemos nos voltar a Hegel. Em seus
principalmente no continente europeu e nos Cursos de Estética, ao levantar a tese a respeito da
EUA. No âmbito da criação musical, essa ruptura “autonomia formal das particularidades indivi-
será sempre veiculada, em diversos de seus duais”1 na arte do romantismo tardio, Hegel não só
escritos, como uma crise que afeta a música que está analisando a questão da perda da orientação
se recusa a nascer sob os auspícios da indústria tradicional nessa arte, comparando os conteúdos
cultural, almejando refletir imanentemente o formalizados pela arte dos períodos históricos
status quo de maneira crítica. A posição crítica anteriores com os formalizados pela arte de seu
que a arte deveria assumir é concebida por tempo, como está refletindo sobre as possibilidades
Adorno como a única postura possível aos artistas de existência e subsistência para uma arte que
que ainda quisessem conservar a integridade de deveria estar fundada, dali por diante, sobre
suas orientações estéticas e filosóficas frente ao pressupostos tão frágeis e contingentes. Essa
mecanismo do capitalismo avançado, que visa autonomia formal das particularidades individuais
incorporar toda e qualquer manifestação significa para Hegel o processo histórico pelo qual a
artística através da lógica de mercado amparada arte romântica chegara a um ponto onde não
na absolutização do valor de troca frente ao possuía mais compromissos com conteúdos
valor de uso. provenientes de valores históricos de caráter
Em Adorno, o conceito de música radical, absolutizantes. Ou seja, a arte de seu tempo não se
que provém desse estado de coisas e da propunha mais a refletir e representar conteúdos
conseqüente necessidade crítica no domínio da de ordem mítica, religiosa e metafísica. A
criação artística, será sempre, ao longo dos autonomia no domínio do fazer estético, que nasce
escritos sobre música, a idéia que nortearia uma nesse momento, estará fundada sobre os conteúdos
possível emancipação intelectual dos sujeitos, o que melhor repre-sentam o que é contingente e
desdobramento da verdade, que é histórica, bem efêmero: o homem e seu interior, isto é, a
como a concepção de uma transformação social subjetividade. Essa análise de Hegel sobre a
utópica. Emancipação, verdade e utopia são as progressão histórica que o espírito absoluto faz em
categorias que formarão o télos nunca direção ao âmbito da contingência da subjetividade
alcançado, porém, sempre vislumbrado pela
filosofia crítica da sociedade e da arte como 1
HEGEL, G.W.F. Cursos de estética. Trad. Marco Aurélio Werle e
concebidas pelo pensador frankfurtiano. Oliver Tolle. São Paulo: EDUSP, 2000, v. 2, p. 309-346.
simpósio de pesquisa em música 2006 89
humana, culminará na famosa tese sobre “o fim Adorno, essa crítica só é legítima e capaz de
da arte”, ou melhor, sobre a dissolução da forma escapar da incorporação mercadológica de uma
de arte romântica.2 É importante lembrar que maneira: como crítica imanente, uma crítica ao
dentro do sistema filosófico hegeliano, a arte nível do próprio material. Dessa forma, uma crítica
cede lugar, depois de sua auto-reflexão e estética imanente é o processo pelo qual uma obra
tomada de consciência histórica como de arte toma e desenvolve os materiais artísticos
manifestação do espírito absoluto, à religião. da tradição histórica que lhe é anterior, sejam
Esta, por sua vez, dá lugar para a filosofia, estes materiais de cunho técnico, formal ou
depois de um percurso em direção à estético. A não legitimidade de uma liberdade total
determinação fenomenal que é semelhante ao frente ao material herdado da tradição é
anteriormente levado a cabo pela arte.3 justificada aqui a partir do entendimento de que
A partir do que acaba de ser exposto através dos diversos problemas técnicos, referentes
através da tese sobre a autonomia formal das a cada área de criação artística, se faz presente um
particularidades individuais no domínio do fazer conteúdo imanentemente social. Tal conteúdo
artístico, Hegel constata uma mudança histórica social é interpretado como o descompasso
qualitativa no domínio das relações entre os existente, a nível social, entre as forças e as
artistas e os conteúdos possíveis de serem relações de produção.4 Advém dessa interpretação
formalizados nas obras de arte pós-românticas. a noção da necessidade em se compor música com
Adorno interpretará essa mudança como uma o material historicamente mais avançado para que
secularização da arte atrelada à dialética do a crítica ao nível da forma estética seja possível.
esclarecimento e, portanto, como um resultado Como exemplos dessa arte que se opõe
do crescente processo de racionalização pelo imanentemente à sociedade, Adorno ressalta,
qual vem passando a civilização ocidental em desde os anos trinta, principalmente as obras da
todos os seus domínios. Ele refletirá sobre essa fase do atonalismo livre provenientes da segunda
mudança de paradigma equalizando a aura de escola de Viena. Contudo, para não se ter uma
liberdade individual frente aos materiais visão unilateral da reflexão adorniana sobre
artísticos herdados, que parece ser a música, faz-se necessário examinar alguns
conseqüência primeira desse momento de momentos dessa reflexão que são portadores de
ruptura, com uma noção de necessidade histórica perspectivas distintas quanto ao desenvolvimento
imanente contida nos mesmos materiais. Nessa da Nova Música no contexto da primeira metade do
reflexão, insistirá na perda da imediatidade da século passado.
música e da arte em geral em relação ao homem A primeira tentativa de Adorno de reunir
como uma conseqüência do processo de suas reflexões sobre música em um único texto é o
alienação proveniente da relação contraditória seu ensaio de 1932 Zur gesellschaftlichen Lage der
existente entre o caráter autônomo da arte e o Musik (Sobre a situação social da música). Aqui o
caráter heterônomo da sociedade baseada nos autor apontará quatro caminhos possíveis para a
pressupostos da economia de mercado. composição de uma música que nega, em sua lei
Nesse ponto, volta-se a tocar na questão formal, a lógica da mercadoria que compõe e
referente à impossibilidade da arte que quer define a maioria das demais manifestações musicais
manter sua autonomia ceder aos mecanismos de da época. Para ele, a música do período do
incorporação e de fetichização materiais próprios atonalismo livre de Schoenberg, e as composições
à indústria cultural. Como já exposto anterior- de Berg e Webern do mesmo período, são as mais
mente, a possibilidade crítica no domínio avançadas e radicais naquele momento. Isso porque
estético instala-se como uma necessidade para
aqueles criadores que ainda acreditam no 4
Adorno apropria-se desses dois conceitos fundamentais da
conceito de arte tal como este havia sido filosofia marxista para explicitar o caráter fragmentado da
sociedade e a relação de dependência do material musical em
fundado pela tradição filosófica ocidental. Para relação àquele caráter social. Em Marx os conceitos dizem
respeito à contradição própria à dinâmica do modo de
2
Ibidem, p. 338-346. produção capitalista. Simplificadamente temos que “essa
contradição explica a existência da história como uma
3
Dentro do sistema filosófico de Hegel, o espírito absoluto é sucessão de modos de produção, já que leva ao colapso
a origem e o fim último de toda e qualquer determinação necessário de um modo de produção e à sua substituição por
histórica. Esse espírito absoluto progride dialeticamente, outro. E o binômio forças produtivas / relações de produção
ao longo da história e através dos diferentes subjaz, em qualquer modo de produção, ao conjunto dos
empreendimentos e instituições humanas, em direção à processos da sociedade, e não apenas ao processo
unidade e à consciência de si. Cf. HEGEL, Enciclopedia de econômico.” HARRIS, Laurence. Forças produtivas e relações
las ciencias filosoficas: lógica, filosofia de la naturaleza, de produção. In: BOTTOMORE, Tom. (org.). Dicionário do
filosofia del espíritu. Trad: Eduardo Ovejero y Maury. pensamento marxista. Trad: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro:
Ciudad de México: Juan Pablo, 1974, p. 382-400. Jorge Zahar, 2001, p. 157.
90 SIMPEMUS3

essas obras tratavam o material musical de obras. A orientação estética desses dois compo-
maneira dialética visando uma depuração dos sitores, devido às suas posturas de exoneração
elementos tradicionais herdados que ainda subjetiva frente à história, é entendida por Adorno
possuíssem resquícios comunicativos passíveis de como diretamente advinda da estética própria aos
banalização. As outras três perspectivas são produtos e mercadorias da indústria cultural.6
exemplificadas pela música de Stravinsky, Uma perspectiva diferente da presente no
Bartók, Hindemith e Eisler. Perspectivas menos ensaio que se acaba de analisar é lançada pela
avançadas em relação ao uso dado ao material Filosofia da nova música de 1949, obra que
musical, afirma Adorno, mas que ainda assim são particulariza as idéias presentes no livro Dialética
consideradas como potencialmente críticas. Os do esclarecimento no âmbito da música. Nessa obra
procedimentos do Stravinsky neoclássico, por de 49, Adorno parece ver o panorama musical de
exemplo, são tratados como um objetivismo uma maneira drasticamente polarizada. Na
musical, algo como uma proposta irreal e introdução do livro temos que a única maneira de
impossível de ser levada a sério na sociedade abordar os problemas levantados pela Nova Música
cindida de então. Visando escapar ao estado de é através da análise de seus extremos através de
alienação que aflige a música, tais um método dialético. Assim, Schoenberg e
procedimentos irão buscar amparo em formas Stravinsky são colocados lado a lado como os
musicais arcaizantes na crença de que as mesmas epígonos das duas correntes mais representativas
escaparam ao processo de reificação, que seria da música daquele momento: a música
um fenômeno recente. Tal atitude é considerada dodecafônica e o neoclassicismo. Como pano de
uma ilusão devido ao fato de que, o compositor fundo para essa polarização está presente a idéia
que procedesse dessa maneira, em relação ao do progresso do material musical associada ao
material, teria em mente uma sociedade desdobramento de um conteúdo de verdade
reconciliada, que não existiu no passado e que (Warheitgehalt) através das composições. Por sua
está longe de ser a sociedade do presente, não vez, este conteúdo de verdade será o que garantirá
estando ao alcance de nenhuma forma estética o papel crítico da música dentro da lógica social
promover tal reconciliação por conta própria. Em que, agora, é vista por Adorno através de lentes
outras palavras, a arte não tem o poder de ainda mais negras. O que se coloca hoje como mais
romper o estado de alienação social que a separa importante, na interpretação da Filosofia da nova
dos sujeitos através de procedimentos criativos música, obra que é, sem dúvida, a mais mal
imanentes, restando a ela, arte, uma missão entendida das que Adorno escreveu sobre música, é
crítica. Bártok também é mencionado nessa o entendimento imparcial das teses ali contidas.
categoria, mesmo tendo sido considerado em Antes de tudo, é preciso entender que essa obra
escritos anteriores, do início da carreira de não se trata de uma defesa sem mais da música de
Adorno, como uma segunda opção, em termos de Schoenberg em detrimento da de Stravinsky. Ambas
potencial crítico, à música da segunda escola de as músicas são encaradas como caminhos distintos
Viena. A terceira possibilidade de composição é que levaram a uma mesma perspectiva de bloqueio
aquela apontada por Adorno como um tipo criativo e de fetichização através do
híbrido entre as duas formas de composição desenvolvimento lógico de suas potencialidades
mencionadas anteriormente. Misturando alguns composicionais. Schoenberg, depois da fase
elementos materiais avançados historicamente expressionista, onde efetua a emancipação do
com outros advindo da cultura popular compositor como “sujeito expressivo”7, se vê
administrada, o autor descreve tal música como compelido, seguindo a lógica desse material
guardando semelhanças com alguns emancipado, a objetivar essa nova possibilidade
procedimentos próprios ao surrealismo francês. expressiva através de um princípio construtivo
Essa é a categoria utilizada para explicar obras totalizante, desembocando assim na racionalização
como as da fase de L’histoire du soldat em do material através da técnica serial. Tudo isso
Stravinsky. Finalmente, as composições de visando a preservação da autonomia do sujeito
Hindemith e Eisler são enquadradas, respecti- através de procedimentos composicionais dialéticos
vamente, nas categorias de Gebrauchmusik e que visariam fazer frente às contradições sociais
Gemeinschaftsmusik5 por ignorarem as
exigências materiais e formais que são colocadas
imanentemente pelo processo de composição das 6
ADORNO, Theodor W. On the social situation of music. Trad.
Wes Blomster. In: LEPPERT, Richard (org.). Essays on music.
Berkeley: Cambridge University Press, 2002, p. 396-397.
5 7
Literalmente música para uso e música da comunidade ou PADDISON, Max. Adorno’s aesthetics of music. Cambridge:
comunitária, respectivamente. Cambridge University Press, 2001, p. 266.
simpósio de pesquisa em música 2006 91
encarnadas pelos diferentes aspectos do material se desvincular das propostas típicas da estética do
musical. Por outro lado, a música de Stravinsky é modernismo clássico.
apresentada como não dialética devido a não A propósito, hoje, em meio a um contexto
tomada de consciência, por parte do sujeito artístico dito pluralista, teria lugar na história uma
criador do compositor, de sua condição de música que se propusesse radical? A arte
alienação junto às possibilidades expressivas que imanentemente responsável, como concebida por
ele julgaria estar dando vazão. Adorno analisa a Adorno parece ter mesmo acabado, juntamente
postura deixada transparecer pelas composições com os movimentos das vanguardas, que já
neoclássicas do compositor se utilizando de tomamos como históricas. A relação problemática
categorias psicanalíticas como repressão e que muitas das obras contemporâneas estabe-
despersonalização. Esse sacrifício do sujeito, que lecem com a História parece ser sintomática. O
está contido de maneira programática no texto heroísmo da música de Schoenberg, contem-
da Sagração da Primavera, estaria baseado em porânea aos gritos expressionistas, mostra-se,
uma crença na possibilidade de se poder saltar muitas vezes, aos ouvidos de ecléticos
ao longo da história em direção a uma condição compositores pós-modernos, como algo anacrônico
social idealisticamente objetivada e e estereotipado. Como entender isso, já que as
caracterizada pela relação reconciliada entre o contradições sociais que essa música visava refletir,
homem, a coletividade e a natureza. Esse é o segundo Adorno, em sua lei formal mais íntima, não
quadro interpretativo dominante utilizado na foram resolvidas e sim incrementadas? A atualidade
Filosofia da nova música para entender os de uma obra como Erwartung, nesse sentido,
processos composicionais presentes ao longo da estaria garantida. Sendo assim, o que estaria sendo
produção stravinskyana. Tais processos seriam, refutado da estética musical de Adorno pelos
então, artificiosos, mas consistiriam, em última compositores do mundo ocidental pós-1950? A
análise, numa impossibilidade para aqueles que resposta possível passa pela reflexão de que talvez
não quisessem abrir mão de sua consciência o público nunca tenha estado preparado para
histórica e social. abdicar do caráter de linguagem da música,
Por último, como uma perspectiva prove- presente nela, como uma segunda natureza, graças
niente do fim da vida de Adorno, poderíamos ao uso sistemático do tonalismo ao longo de
mencionar o ensaio de 1961, Vers une musique trezentos anos de história. Essa reflexão encontra
informelle, no qual, o filósofo frankfurtiano faz eco nas atuais tentativas de se configurar uma
uma reflexão acerca das principais tendências estética pós-moderna que teria em vista obras
que despontam no contexto da música pós-1950, concebidas, quase que unilateral-mente, sob o
revisando seus conceitos de forma e material princípio da comunicabilidade do bem soar e de
musicais. Nesse momento, se faz presente um uma volta à figuração amparada em uma retomada
vislumbre de que talvez o paradigma iniciado do sistema tonal.
com o contexto descrito por Hegel, comentado Como réplica a essa postura, que parece
acima, aponte para uma nova direção. Nesse tomar o som de maneira fetichista, voltemos um
ensaio de 61, já se delineia uma resposta instante às palavras do próprio Adorno:
estética alternativa ao enrijecimento ocorrido na
música por conta do serialismo integral, por um
Os compositores têm a agonizante escolha. Eles
lado, e da música composta sob os princípios da
podem se fingir de surdos e continuar marchando
indeterminação, por outro. Mostra-se aqui um como se a música ainda fosse música. Ou eles
programa estético um pouco mais aberto em podem alcançar o nivelamento por conta própria,
relação a uma música que não se baseasse tão transformando a música em uma condição normal
estritamente na categoria do material, e que e no processo buscar por qualidade, quando
estivesse, portanto, mais voltada para a possível. Ou eles podem, por último, se opor a
liberdade subjetiva do compositor; uma proposta tendência com uma guinada ao extremo, com a
que aproximava-se do ideal expressivo daquelas perspectiva de mesmo assim serem incorporados e
nivelados apesar de tudo8.
criações da fase atonal de Schoenberg. Por
óbvio, não se tratava de retomar a estética
expressionista, mas sim, o espírito de renovação
presente em tal estética. Em um momento no
qual a relação com o público se tornava cada vez
mais problemática para os compositores 8
ADORNO, Theodor. W. The relationship of Philosophy and
vanguardistas, as reflexões de Adorno parecem Music Trad. Wes Blomster. In: LEPPERT, Richard (org.).
Essays on music. Berkeley: Cambridge University Press, 2002,
se voltar para aquelas músicas que começavam a p. 135-161. Tradução nossa.
92 SIMPEMUS3

A criação artística crítica e autônoma negação das relações existentes entre as diferentes
que Adorno defendia, não precisa ser entendida, formas de arte e as demais manifestações humanas
necessariamente, como uma categoria histórica e e sociais, como se a música e as demais artes
datada. Antes, deveria se constituir em um ponto constituíssem um setor isolado e incomunicável
passível de reflexão para todo e qualquer com o restante das instituições e práticas sociais.
compositor de qualquer época. A postura Essa comparti-mentação dos diversos setores da
contemporânea, em muitos momentos, parece vida social e cultural vivenciada atualmente,
aparentada daquela já descrita na Filosofia da parece levar, nesse caso, a uma forma pejorativa
nova música e que acaba escamoteando o sujeito de l’art pour l’art. Confundindo arte responsável e
na esperança de objetivar uma obra de arte que crítica com arte engajada, muitos compositores
teria o poder sobrenatural de solucionar, por correm para um abraço vazio com um público
conta própria, o estado de alienação que se hipotético com medo de serem tachados sob o signo
interpõe entre a sociedade e os fenômenos de um anacrônico vanguardismo.
artísticos.9 Claro está que as soluções desse Seria precipitado, pois, lermos os escritos que
problema fogem às possibilidades de qualquer compõe a estética musical de Adorno como
arte, estando, antes, no âmbito da própria reflexões limitadas ao contexto do modernismo
sociedade e de suas instituições constituintes. De artístico da primeira metade do século vinte. Sua
qualquer maneira, muitas escolhas estéticas reflexão acerca de uma música responsável,
maneiristas de hoje parecem se enquadrar na primeiro como uma música radical e,
segunda escolha possível apontada por Adorno no posteriormente, como uma música informal,
parágrafo citado acima. mostra que ele não mantinha uma postura
Como apontado logo no início desse texto, unilateral em relação às composições de
ao tratar-se da passagem dos Cursos de Estética Schoenberg, Berg e Webern, mas que estava alerta
de Hegel, a ilusão de uma extrema liberdade em para a dialética da história. Nesse sentido, sua
relação ao passado acaba por limitar ainda mais própria noção de autenticidade, quanto às
as verdadeiras opções estéticas de uma época e composições musicais, sofreu algumas alterações
pode levar toda uma geração, ou mais, de quantitativas ao longo de sua vida, como pode-se
artistas criadores a um estado de contínua crise depreender do estudo aprofundado dos seus
de identidade histórica. Porém, o ecletismo principais escritos sobre música. Para Adorno, que
elevado a estilo parece desembocar numa também fora compositor, se a sociedade se
concepção ideológica do que seria uma real fragmenta ainda mais, a música que surgir desse
estética contemporânea e a determinação de tal contexto deverá acolher imanentemente aspectos
postura como pós-moderna parece apenas dessa fragmentação de maneira a reflexionar essa
desabonar ainda mais a tentativa de se heteronomia social.11 Ou seja, a contradição entre
estabelecer algo como uma produção artística o material musical, que, desde Vers une musique
consciente de si mesma e plena de valor. Nesse informelle já era tomado como algo que se
sentido, vale à pena, uma última vez, a desintegrava e que perdia sua resistência frente ao
admoestação adorniana: domínio da técnica composicional e, a necessidade
de se compor novas formas musicais capazes de
O que outrora foi verdadeiro numa obra de arte estabelecer alguma noção de unidade através da
e foi desmentido pelo curso da história, só pode síntese entre os seus materiais continua atual.
de novo vir à luz quando se modificarem as Adorno oferece reflexões interessantes nesse
condições em virtude das quais aquela verdade sentido em suas monografias sobre Mahler e Berg.
foi liquidada: tão profunda é, no plano estético, Para o filósofo, esses compositores compunham
a penetração recíproca do conteúdo de verdade com ruínas, ou seja, com um material musical
e da história. 10 historicamente gasto. Mesmo assim, não abdicaram
da integridade subjetiva e, tampouco, da noção de
A atitude cética, em relação ao passado uma forma musical sintética e auto-reflexiva.
recente, que deixam transparecer alguns desses Para tornar mais concreto o que nesse
criadores aparentemente independentes de hoje, momento se questiona, é válida a receita do cozido
parece ser devida, em grande medida, a uma musical pós-moderno, dada pelo compositor belga
Boudewijn Buckinx:
9
ADORNO, Theodor. W. Filosofia da Nova Música. 2.ed. Trad:
Magda frança. São Paulo: Perspectiva, 1989, p. 109-165.
10 11
ADORNO, Theodor. W. Teoria estética. Trad: Artur Morão. PADDISON, Max. Adorno’s Aesthetics of Music. Cambridge:
Lisboa: Edições 70, [s.d.], p. 54-55. Cambridge University Press, 2001, p. 275-276.
simpósio de pesquisa em música 2006 93
? Então o pomo fez um grande cozido com um q A estética musical de Adorno conseguiu
de expressionismo, um q de neoclassicismo, um alcançar o que nenhuma outra reflexão teórica
q de vanguarda, um q de modernismo anterior conseguira, no âmbito da música, ao
moderado?
desvelar o mecanismo complexo das inter-relações
* Um q de romantismo, um q de classicismo, um e dependências existentes entre a música e a
q de barroco, um q de Idade Média, um q sociedade histórica que a vê nascer. Nesse
oriental, um q de cultura africana, um q de pop
processo, entendeu que as artes e, principalmente
e de rock. 12
a música, possuem um papel social muito grande
frente às contradições existentes entre os estados
Depois desse banquete, a autonomia das de desenvolvimento intelectual e material da
composições que visavam refletir a heteronomia humanidade. Antes de acatarmos irrefletidamente
social passa a afirmar tal heteronomia como se a proposta de uma estética musical pós-moderna,
essa constituísse o seu em-si. Há, assim, uma nada melhor que voltarmos aos Musikalischen
renúncia ao caráter sintético e auto-reflexivo da Schriften (Escritos musicais), que constituem quase
forma musical e do momento de possibilidade metade de toda a obra adorniana, para dar-lhes sua
crítica, na composição musical, em troca de um merecida atenção. Se não por outro motivo, ao
caráter de pastiche, que se acredita menos para que possamos seguir em frente em
comunicativo e que acaba sendo incorporado busca de uma verdadeira identidade estética
como entretenimento junto ao público, mesmo contemporânea.
quando muitas dessas composições ostentam
alguma pretensão mais séria. Aqui, se tornam
oportunas as palavras de Rainer Rochlitz em seu
ensaio sobre Adorno e o modernismo: “A
modernidade artística é assim um teste para a
integridade do sujeito estético frente ao
insignificante e ao não-estético”.13
para uma atitude despreocupada frente à
história da primeira metade do século XX e, que
toma o material musical de maneira pré-crítica
como algo dado pelo simples rótulo estilístico das
mais diversas experiências estéticas de épocas
passadas, seria necessário que as antinomias
presentes em todos os domínios da música e,
principalmente da sociedade, ao fim desse
período, tivessem sido resolvidas. Sabemos que
em muitas instâncias isso não aconteceu. A
arbitrariedade composicional acaba por se erigir
em estilo pessoal e tal atitude acaba por se
cristalizar em músicas cuja pretensão a um valor
estético reside, unicamente, no fato de essas
acreditarem estar manifestando o espírito dos
tempos e um retorno a um estado anterior de
proximidade junto ao público. Ao se tomar
aparência estética heterônoma por conteúdo
histórico e social autônomo, a arte perde não só
sua pretensão à verdade, mas, principalmente,
sua pretensão crítica contra a incorporação como
entretenimento.

12
BUCKINX, Boudewijn. O pequeno pomo: ou a história da
música do pós-modernismo. Trad: Álvaro Guimarães. São
Paulo: Ateliê, 1998, p. 128.
13
ROCHLITZ, Rainer. Language for One, Language for All:
Adorno and Modernism. Trad. Roberta Brown. In: RAHN,
John (org.). Perspectives on Musical Aesthetics. New York:
Norton, 1994, p. 27. Tradução nossa
94 SIMPEMUS3

Referências
ADORNO, Theodor W. Essays on music. Trad. Wes Blomster. Berkeley: Cambridge University Press, 2002.
_____ Filosofia da nova música. 2. ed. Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva, 1989.
_____ Teoria estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, [s.d.].
BUCKINX, Boudewijn. O pequeno pomo, ou a história da música do pós-modernismo. Trad. Álvaro Guimarães.
São Paulo: Ateliê, 1998.
HARRIS, Laurence. Forças produtivas e relações de produção. In: BOTTOMORE, Tom. (org.). Dicionário do
pensamento marxista. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
HEGEL, G. W. F. Cursos de estética. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. São Paulo: EDUSP, 2000.
_____ Enciclopedia de las ciencias filosoficas: lógica, filosofia de la naturaleza, filosofia del espíritu. Trad:
Eduardo Ovejero y Maury. Ciudad de México: Juan Pablo, 1974.
PADDISON, Max. Adorno’s Aesthetics of Music. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.
ROCHLITZ, Rainer. Language for One, Language for All: Adorno and Modernism. Trad. Roberta Brown. In:
RAHN, John (org.). Perspectives on Musical Aesthetics. New York: Norton, 1994.
A Bar Form nas canções de Nepomuceno
Rodolfo Coelho de Souza
Universidade de São Paulo

Resumo
Tomando como ponto referência a "Bar Form" - uma forma poético-musical característica da canção alemã -
este trabalho discute a hipótese de que Nepomuceno teria utilizado modelos europeus para o
desenvolvimento de um projeto de canções brasileiras de câmara. A análise de duas canções, "O wag'es nicht"
e "Coração indeciso", estabelece a existência de uma ponte de ligação entre as formas utilizadas nos
repertórios compostos em língua estrangeira e em português. Essa constatação circunscreve alguns limites
para a referida hipótese.
Palavras-chave: Música Brasileira, Análise Musical, Forma Musical

Introdução Uma das dificuldades para demonstrar a


A historiografia musical brasileira tem primeira parte dessa tese é conseguir individualizar
postulado que, em princípios do século vinte, a características nas canções de Nepomuceno que
partir da emulação do Lied europeu, apareceu no fossem marcantes no repertório do Lied europeu e
Brasil um novo gênero: a canção de câmara ao mesmo tempo ausentes da tradição da canção
erudita brasileira. Esse gênero teria nascido do brasileira anterior, isto é, nas modinhas e nas árias
desafio de utilizar poemas em português, e a de influência italiana.
seguir encontrado sua essência com a Uma possibilidade surgiu quando, analisando
incorporação de elementos musicais a canção de Nepomuceno O wag'es nicht, sobre
considerados autênticamente brasileiros. Embora poema em alemão de Nikolaus Lenau, verificamos
essa historiografia reconheça a existência de que ela tem a estrutura de uma Bar Form, uma
precursores na obra dos românticos do século forma muito antiga e marcante na tradição do Lied
dezenove, considera que a formação desse alemão. Esta peça, datada de 1894, da fase de
gênero ocorreu somente a partir da obra de estudos do compositor na França, comprova que
Alberto Nepomuceno. naquele momento ele estava absorvendo
conhecimentos composicionais típicos da tradição
José Maurício, Francisco Manuel da Silva e do Lied.
Carlos Gomes escreveram belas modinhas que A seguir escrutinamos o repertório de canções
ainda hoje gozam de certa popularidade, mas em português de Nepomuceno para verificar a
os seus trabalhos jamais foram incluídos nos ocorrência de utilização dessa mesma forma.
estranhos programas dos virtuosi de então. A Encontrou-se apenas uma canção, escrita em 1903,
aceitação da música brasileira, da canção em
que utiliza a Bar Form.
língua nacional, nos concertos do repertório
erudito, data do começo do século XX, graças A análise comparativa dessas duas canções,
aos esforços de Alberto Nepomuceno, a que expomos a seguir, pode ajudar a esclarecer a
primeira grande figura do Lied no Brasil. (MARIZ gênese da canção de câmara brasileira realizada na
2002, p.30). obra de Nepomuceno.

A tese implícita nessa afirmação - que com O modelo Bar Form


conteúdo similar circula em textos de outros
A Bar Form é uma forma poético-musical cuja
autores da nossa musicologia - é que
origem remonta à poesia medieval alemã. Os
Nepomuceno, posicionando-se em defesa do
minnesingers, trovadores pertencentes às classes
canto em português numa polêmica travada com
nobres, que exerceram sua arte nos séculos XII ao
críticos da época, teria se sentido desafiado a
XIV, escreveram poemas e canções de amor cortês
compor canções tipicamente brasileiras. Para
utilizando a forma Bar. Os Meistersinger, que os
realizar esse projeto teria adaptado modelos da
sucederam nos séculos XIV a XVI, continuaram a
canção erudita européia, especialmente do Lied
usar essa forma. A Bar Form cristalizou-se na
alemão, e, a seguir, incorporado materiais
tradição do Lied pela utilização do padrão formal
musicais de caráter nacional.
AAB.
96 SIMPEMUS3

frequência nas canções de Wolf - por exemplo nas


Na Bar Form - AAB - a frase melódica A é canções Der Gärtner (No.17) e Gebet (No.28) do
cantada duas vezes sobre o texto dos dois primeiro ciclo de Wolf, sobre poemas de Möricke,
primeiros versos de cada estrofe (chamados de de 1888 - poderia confirmar este elo entre
Stollen), o último, B (chamado de Abgesang), Nepomuceno e Wolf. Todavia Lawrence Kramer
geralmente mais longo e cantado apenas uma esclarece que as canções de Wolf só obtiveram
vez, contém material melódico novo. (GROUT
repercussão pública a partir da "atividade da Wolf-
1996, p.67).
Verein (Sociedade Wolf) em Viena, a qual em oito
anos de existência (1897-1905) promoveu vinte e
Uma das razões pelas quais essa forma seis concertos das canções de Wolf" (KRAMER 1996,
assumiu grande importância na cultura alemã p.196). Nesses concertos Wolf declamava os
protestante é que os corais luteranos são poemas e a seguir fazia executar sua versão
frequentemente compostos em Bar Form. No musicada. A canção de Nepomuceno, objeto de
século dezenove, os Meistersingers e as formas nosso estudo, é de 1894. Embora seis anos posterior
musicais a eles associadas, ganharam, na ópera às primeiras canções de Wolf sobre textos de
Os Mestres Cantores de Nurenberg de Wagner, Möricke, é três anos anterior ao início da
valor de símbolo da cultura alemã. Também em repercussão pública da sua obra. Portanto é pouco
diversas outras situações, algumas menos plausível advogar influências de Wolf sobre
previsíveis, como no dueto "Là ci darem la mano" Nepomuceno. Se há coincidências de estilo é
do Don Giovanni de Mozart, encontramos o uso porque ambos estavam sintonizados com as
dessa forma. inquietações da linguagem musical do seu tempo.
É importante ressaltar as diferenças entre Nos Lieder de Brahms a Bar Form também
a Bar Form AAB e os modelos binário AB e aparece, porém com muito mais frequência numa
ternário ABA, entre os quais ela se situa. A Bar variante em que há no final uma breve recorrência
Form não é um binário que apenas repete a parcial do material inicial, como uma
primeira parte, porque sua seção final B reminiscência, que altera o sentido da forma,
(Abgeseng) quase sempre incorpora segmentos aproximando-a das estruturas ternárias. Anterior-
das partes anteriores A (Stollen) para promover mente a Brahms a forma ternária parece não ter
uma mudança intrínseca no sentido daquele tido uma tradição forte no Lied alemão. Musgrave
material. Há na seção final da Bar Form um aponta que um tipo de forma ternária no qual "a
sentido de contraposição às partes anteriores idéia central da primeira estrofe é sutilmente
que não é característico da forma binária. Por variada para criar uma segunda estrofe (ou grupo
outro lado, conforme enfatiza Julio Bas (BAS central), contrastante mas relacionada à primeira,
1947, p.170), a estrutura tonal da Bar Form, antes de ser recapitulada por uma reprise variada
diferentemente da forma ternária, deve da primeira, é talvez a mais característica
permanecer numa única tonalidade. A segunda contribuição de Brahms à tradição germânica"
seção é uma repetição sem transposição da (MUSGRAVE 1985, p.44).
primeira, com eventuais mudanças ornamentais.
Essa propensão de Brahms a promover o
A terceira deve apresentar algum contraste com
retorno do material inicial na conclusão da canção
as seções anteriores para ser considerada uma
justifica que, ao usar a Bar Form, ele tenha
seção diferente, e muito embora reaproveite
preferência por essa variante chamada de
fragmentos delas, não pode servir-se da
Reprisenbar. Hancock, analisando a canção Die
estratégia de uma modulação global para
Trauernde Op.7 No.5 de 1852 (e também, com
alcançar esse contraste porque nesse caso a peça
resultados semelhantes, Schön war, das ich dir
terminaria fora da tônica. Por isso é frequente
weihte Op.95 No.7 de 1884) comenta:
que breves modulações ou tonicizações ocorram
transitoriamente, especialmente na terceira
parte. As três estrofes estão na forma Reprisenbar
(AABa) em Lá menor. Cada uma das duas
Que autores teriam servido de modelo a primeiras estrofes constitue uma previsível e até
Nepomuceno na utilização da Bar Form? monótona Stollen. Quando a Abgesang começa,
Cogitamos, inicialmente, que tivesse existido contudo, o registro desloca-se para o agudo, ...
uma influência dos Lieder de Hugo Wolf sobre culminando num inesperado, ou mesmo chocante
Nepomuceno, tão próximas e avançadas para o acorde de Lá maior, ...e a canção termina com um
período, pelo uso de alterações cromáticas, nos retorno da parte final do Stollen, uma volta à
pareciam as respectivas linguagens harmônicas. resignação. (HANCOCK 1996, p.126).
A constatação de que a Bar Form aparece com
simpósio de pesquisa em música 2006 97
Deve-se ressaltar que a variante com as duas primeiras estrofes em tom de queixa
Reprisenbar AABa não deve ser confundida com amorosa (seções A: comp. 1-9 e A': comp 10-18), e
a forma AABA. Esta pode ser considerada uma a última com o sujeito mudando para uma atitude
variante da forma ternária ABA, com a mera de rejeição da amada (seção B: comp.19-25, a:
repetição da primeira estrofe. O retorno de comp.26-31), sugeriria naturalmente a Bar Form
materiais na Reprisenbar (indicada pelo 'a' que Nepomuceno utilizou na música desta canção.
minúsculo na fórmula AABa) faz-se geralmente A coincidência com a variante da Reprisenbar
por uma breve citação de parte do material da preferida de Brahms, nos faz supor que, também
Stollen (seja de seu início, seja do fim), como aqui, Nepomuceno tenha utilizado modelos
fechamento da Abgesang. Formalmente esse brahmsianos, como em outras obras do período em
retorno não pode ser considerado uma nova que foi composta esta canção (como a Sonata para
seção, apenas um prolongamento da última piano em Fá menor Op.9, do ano anterior, que é
parte. eloquente nesse sentido). Os estudos em Berlim,
Verifica-se que em O Wag'es Nicht Nepo- poucos anos antes, com Heinrich Herzogenberg, um
muceno escolhe usar a variante Reprisenbar, o ardoroso admirador de Brahms (CORRÊA, 1985),
que nos permite presumir uma influência de ainda deviam estar fortemente presentes no
Brahms. Já a canção Coração Indeciso, além de espírito do jovem compositor.
apresentar características fraseológicas As três seções permanecem centradas em
diferentes de O Wag'es nicht, tem uma forma torno de uma tonalidade, Si menor, um requisito
geral que segue o modelo clássico AAB da Bar que já justificamos acima. Entretanto, na seção A,
Form. Nepomuceno realiza uma breve tonicização da
dominante e a seção B inicia-se com uma
modulação para a tônica relativa, que a seguir
Comentários analíticos sobre O Wag'es Nicht
caminha, cromaticamente (enfatizando a mudança
de atitude do poema), de volta à tônica Si menor.
O wag' es nicht, mit mir zu scherzen,
Os encadeamentos típicos do cromatismo pós-
zum Scherze schloss ich keinen Bund;
wagneriano nos permitem enquadrar o estilo
o spiele nicht mit meinem Herzen,
weisst du noch nicht, wie sehr es wund? harmônico desta canção dentro das tendências de
vanguarda da música européia do fim do século
Weil ich so tief für dich entbrannte, dezenove. Diversas passagens merecem destaque
weil ich mich dir gezeigt so weich, pela sua criatividade harmônica. Na passagem dos
dein Herz die süsse Heimat nannte, compassos 7-8, o baixo cromático suporta uma
und deinen Blick mein Himmelreich. resolução de engano: o acorde de sétima diminuta,
que cria a expectativa de progredir para a
O rüttle nicht den Stolz vom Schlummer,
subdominante, resolve na subdominante
der süsser Heimat sich entreisst,
napolitana. Já no compasso 20, a condução
dem Himmel mit verschwiegnem Kummer,
auf immerdar den Rücken weist. cromática ao acorde da napolitana tem caráter
meramente ornamental, como um "acorde borda-
dura". Nas passagens dos compassos 20 para 21, e
Não ouses brincar comigo, 21 para 22, o encadeamento das harmonias se dá
Por graça não travo união; por mero deslizamento cromático, ignorando as
Não troces com meu imo, expectativas de funcionalidade tonal dos acordes.
Pois machuca! sabes não? Ressalve-se que estas passagens de harmonia
cromática certamente permitiriam outras
Por ti tão forte queimava,
interpretações. O que importa salientar é, que
E assim mostrei-me passível;
Teu coração, doce morada, nesses encadeamentos, Nepomuceno estende a
Teu olhar chamei paraíso. funcionalidade da harmonia aos limites de sua
dissolução. Digna ainda de registro é, no compasso
Não perturbes o prazer do enlevo 23, a suspensão sobre o acorde de Tristão, de sabor
Que da doce morada se livra, tipicamente pós-wagneriano.
Ao céu, em tom-desalento,
Para sempre as costas vira.
O modelo Bar Form nas canções em português
Percorrendo as 45 canções em português da
A estrutura em três estrofes do poema de obra completa para voz e piano de Nepomuceno
Lenau (tradução de Ricardo Hiendlmayer Neto), (PIGNATARI, 2004), encontramos uma única canção
98 SIMPEMUS3

que utiliza o modelo Bar Form. Trata-se da As duas primeiras estrofes repetem seus
canção Coração Indeciso, publicada em vida do materiais musicais com variações mínimas. A
compositor pela Editora Sampaio Araujo & Cia do mudança mais sugestiva é, no compasso 28, a
Rio de Janeiro, como seu Op.30 No.2, sobre o introdução de um Fá# como ponto culminante da
poema de Frota Pessoa transcrito abaixo. melodia da segunda estrofe, realizada como
apogiatura superior. A linguagem harmônica é
francamente tonal, com muito menos recurso aos
Ao princípio era apenas simpatia,
já bem perto do amor, cromatismos wagnerianos que a canção em alemão.
e minha alma vibrava; a alma fulgia A estrutura tonal alterna, nas duas primeiras
num festivo esplendor. estrofes, os modos menor e maior da tonalidade de
E tu tão meiga e doce Mi. A terceira estrofe, que se inicia com um
e terna eras então... desenho igual ao das duas estrofes anteriores, já no
Tomei como se fosse segundo compasso apresenta um desenho melódico
meio sim, meio não! diferente, embora a harmonia continue sempre
semelhante. A frase final, cujo equivalente na
Depois já era mais que simpatia,
Stollen contrastava pelo modo maior, sugerindo o
muito mais, era amor
um palpitar perpétuo; a alma sofria sentimento de esperança do sujeito, na Abgesang
num perpétuo terror. permanecerá em menor, para acentuar a desilusão
Mas teu olhar espera! do sujeito. Afora o uso ocasional de antecipações e
dizia. E que expressão! suspensões que turvam sutilmente a clareza
Comigo tinha que era funcional dos acordes, e uma passagem cromática
meio sim, meio não! não-funcional no compasso 16, pouco há para
comentar a respeito da inventividade harmônica
Finalmente foi mais que simpatia
desta música. Embora não se possa generalizar a
e foi mais do que amor;
partir de um único caso, verifica-se nesta canção a
foi paixão, desvario; eu não vivia
senão por seu favor. validade de nossa hipótese de que a complexidade
Mas tu quando eu por fim do tecido harmônico-melódico de Nepomuceno se
te abri meu coração, rarefaz nas canções em português, compara-
não me disseste sim tivamente à ambição aventurosa das primeiras
nem me disseste não. canções em línguas estrangeiras.

Obviamente não se trata de um poema da


grande qualidade literária, mas, tal como Conclusões
Brahms, Nepomuceno muitas vezes preferiu A tese de que Nepomuceno desenvolveu a
recorrer a versos sugestivos, embora canção de câmara brasileira baseando-se no seu
literariamente medianos, de autores conhecimento da canção erudita européia,
contemporâneos, de suas relações pessoais, hoje especialmente do Lied alemão, comporta duas
quase desconhecidos, sobre os quais ele se sentia leituras. A primeira, cuja prova é quase auto-
à vontade para escrever música com força evidente pela mera audição de suas obras, é que
expressiva que sobrepuja o poema. Nepomuceno pretendeu compor canções brasileiras
O crítico Otávio Beviláqua, contemporâneo com a mesma ambição artística que o Lied tinha na
de Nepomuceno, referiu-se a esta canção como cultura européia. Em outras palavras, canções com
"uma modinha metida a besta" (MARIZ 2002, p. uma relação intrínseca entre música e poesia
62). Esse comentário me parece um equívoco. extraida de fontes literárias, canções com uma
Não existe nesta canção o caráter típico da escrita harmônico-melódica comprometida com as
modinha. O estilo melódico é declamatório, linguagens musicais avançadas em seu tempo. A
quase recitativo, em oposição ao cantabile das segunda leitura, mais sutil, que requer
modinhas. Sob o ângulo formal, a modinha comprovação, é que para a realização do seu
tenderia a enfatizar o caráter estrófico do projeto de canções em língua portuguesa,
poema, enquanto o uso estrito da Bar Form Nepomuceno teria transplantado modelos da
introduz uma modificação radical de sentido na tradição européia, para dar conta dos objetivos
última estrofe. Portanto não há aqui elementos acima referidos.
formais que nos remetam ao estilo das modinhas, Uma maneira que encontramos de testar esta
nem há traços de pedantismo que justifiquem o segunda hipótese foi selecionar uma característica
comentário pejorativo de Beviláqua, marcantemente idiomática da canção européia,
aparentemente endossado por Mariz. verificar sua ocorrência nas poucas canções que
simpósio de pesquisa em música 2006 99
Nepomuceno escreveu em língua estrangeira e, em língua portuguesa, Nepomuceno utilizou o
com sorte, encontrá-la também nas canções em modelo formal clássico da Bar Form. Como essa
português. canção pertence ao período central de sua
Um dos modelos idiossincráticos da canção produção, e não às primeiras tentativas de escrever
alemã é a chamada Bar Form. Esta pesquisa sobre poemas em português, não se pode deduzir
demonstrou que Nepomuceno de fato conhecia desse achado que a assimilaçao de modelos
este modelo porque empregou-o numa canção europeus tenha sido a chave imediata do caminho
composta sobre poema em alemão, numa que ele utilizou para criar o gênero da canção
variante chamada de Reprisenbar pela qual erudita em língua portuguesa. Pode-se porém
Brahms tinha preferência. Essa coincidência nos afirmar que suas canções em língua materna
permite afirmar que as canções de Brahms são a continuaram a dialogar com os modelos das canções
fonte provável dos modelos que Nepomuceno européias ao longo de sua carreira, como se esses
utilizou quando se deixou influenciar pelo Lied modelos fossem um repositório de signos
alemão. carregados de conotações significantes, pertinentes
à nossa cultura, que eram resgatados à medida que
A pesquisa constatou também que, em pelo
as relações intrínsecas da composição justificavam.
menos uma, mas apenas em uma de suas canções

Referências
BAS, Julio. Tratado de la forma musical. Buenos Aires: Ricordi, 1947.
CORRÊA, Sergio N. A. Alberto Nepomuceno: catálogo geral. Rio de Janeiro: Funarte, 1985.
GROUT, Donald e PALISCA, Claude. A history of Western music. New York: W.W. Norton. 5a.ed, 1996.
HANCOCK, Virginia. Johannes Brahms: Volkslied/Kunstlied. In: HALLMARK, Rufus (org.) German Lieder in the
nineteenth century. New York: Schirmer, 1996.
KRAMER, Lawrence. Hugo Wolf: Subjectivity in the Fin-de Siècle Lied. In: HALLMARK, Rufus (org.) German
Lieder in the nineteenth century. New York: Schirmer, 1996.
MARIZ, Vasco. A Canção brasileira de câmara. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.
MUSGRAVE, Michael. The Music of Brahms. Londres: Clarendon, 1985.
PIGNATARI, Dante; COELHO de SOUZA, Rodolfo (org.). Alberto Nepomuceno: Canções para Voz e Piano. São
Paulo: EDUSP, 2004.

Partituras analisadas

O wag’es nicht. Alberto Nepomuceno (música); Nicolau Lenau (letra).


Coração indeciso. Alberto Nepomuceno (música); Frota Pessoa (letra).
100 SIMPEMUS3
simpósio de pesquisa em música 2006 101
102 SIMPEMUS3
simpósio de pesquisa em música 2006 103
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La doble génesis del concepto de textura musical
Pablo Fessel
Universidad Nacional del Litoral, Argentina

Resumen
El desarrollo histórico del concepto de textura en la teoría de la música despliega contenidos relevantes para
su determinación ulterior, el primero de los cuales está dado por su origen. El concepto cuenta con una
doble génesis. La transposición del término desde su acepción plástica al metalenguaje musical se produjo
en dos momentos históricos distintos, en lenguas distintas y, presumiblemente, de modo independiente en
cada una de ellas.
La “primera” génesis del concepto se produjo en el ámbito de la crítica musical inglesa hacia comienzos del
sigo XX, por parte de críticos como C. Hubert Parry y George Dyson. Parry (1911) caracteriza la textura como
un entramado que puede incluir su correspondiente armonización: la textura remite así a una simultaneidad
no necesariamente “consistente”. Dyson (1923) identifica el concepto con las propiedades armónicas de las
sonoridades de la música moderna. La textura ocupa el lugar tradicionalmente asignado a la armonía en la
caracterización de las propiedades de la música. Estos enfoques establecen las líneas generales sobre las
cuales será caracterizado en adelante el concepto en la musicología de habla inglesa.
La “segunda” génesis del concepto de textura se produce en el ámbito de la teoría de la música en lengua
alemana, en el marco de las discusiones del círculo de Darmstadt sobre la música post-serial. Se reiteran
aquí los dos rasgos característicos de la introducción del concepto en el ámbito de la musicología
anglosajona: su vinculación con la problemática de la música contemporánea, así como la doble perspectiva
de que es objeto. La representación de la simultaneidad musical será interpretada mediante los conceptos
de Struktur y Textur.
György Ligeti (1960) introduce estos conceptos en el marco de una reflexión crítica de la composición serial y
de sus consecuencias formales. Con Helmut Lachenmann (1970) estos conceptos se integran en una tipología
jerárquica de materiales. Gianmario Borio (1993) ubica esa contraposición en el marco de la renovación de
materiales y procedimientos compositivos desarrollada hacia fines de la década del ‘50, en el contexto de la
música informal. La textura se constituye como concepto general de los materiales musicales.

Una de las expresiones de la articulación compositores como György Ligeti y Helmut


reciente entre historia y teoría de la música está Lachenmann, en el contexto de una discusión sobre
dada por la consideración, dentro de esta última, la música post-serial.
de su propia historicidad, entendida en un
sentido doble como el modo en que sus
La “primera génesis” del concepto de textura: La
formulaciones registran los desarrollos
crítica musical inglesa
compositivos que le son contemporáneos y como
expresión de su propio desenvolvimiento La primera consideración teórica del
histórico. Ese es el marco que vuelve relevante concepto de textura se produjo en el ámbito de la
un estudio de los orígenes del concepto de crítica musical inglesa, en las primeras décadas del
textura musical, los cuales ponen en evidencia siglo XX. Hasta entonces el término “textura” había
una articulación entre problemas de teoría de la sido empleado, en la crítica inglesa y angloparlante
música, de composición y de recepción histórica. en general, simplemente como una categoría de
escritura, en expresiones como “textura polifónica”
La reconstrucción histórica del concepto
o “textura homofónica”.1 El término “texture”
de textura hace posible identificar una doble
carece de una entrada propia en la primera edición
génesis. La transposición del término “textura”
del diccionario editado en 1900 por George Grove2
al metalenguaje musical se produjo en dos
(una situación que no se modificará hasta la edición
momentos históricos distintos, en lenguas
distintas y, presumiblemente, de un modo
independiente en cada una de ellas. En el primer
caso se trata de la introducción del término en la 1
Cf. por ejemplo PARRY, C. H. The art of music (Londres: Kegan
crítica inglesa de la primera mitad del siglo XX. Paul, 1893), p. 193 y 295; y GOETSCHIUS, P. Counterpoint
applied in the invention, fugue, canon and other polyphonic
En el segundo, el concepto se incorpora al forms (New York: Schirmer, 1902), p. 82.
pensamiento musical alemán, por parte de 2
A dictionary of music and musicians. Londres: Macmillan, 1900.
106 SIMPEMUS3

de 19803), donde se lo emplea sólo como líneas melódicas, sino que pueden incluir su
traducción del vocablo italiano “tessitura” en su correspondiente armonización, posibilidad ilustrada
sentido corriente – a falta, según Henry Collins con fragmentos de Ein Heldenleben y Elektra de
Deacon, el autor de la entrada correspondiente, Richard Strauss. Se presenta así el caso, expresado
de un equivalente directo en inglés.4 en términos figurados, de un entramado de
La representación teórica de la armonías.
simultaneidad había estado caracterizada hasta En segundo lugar, la textura remite a una
entonces por una orientación tipológica, basada simultaneidad musical no necesariamente “consis-
en un reducido conjunto de “categorías tente”:
estilísticas” (en la denominación de Guido
Adler)5 tales como polifonía, homofonía, entre [L]os desarrollos más extremos de la textura que
otras. La formulación del concepto de “textura” se presentan ahora con frecuencia son tales que
en el contexto de la crítica inglesa puede varias melodías o figuras representativas corren
entenderse como resultado de la inadecuación simultáneamente sin consideración alguna del
de las categorías tradicionales de escritura hecho de estar en la misma tonalidad, o de
musical para dar cuenta de sonoridades nuevas, representar armonías consistentes. Los
propias del lenguaje del postromanticismo compositores alemanes han arribado a la más
extrema extravagancia en lo que podría
alemán.6 Esas nuevas texturas pusieron en
denominarse verdaderamente un libertinaje
evidencia tanto la inadecuación de las categorías
positivo en la aplicación de los principios de la
estilísticas existentes, como la insuficiencia del textura, los cuales han evolucionado hasta nuestro
conjunto de todas ellas para su representación tiempo. Ellos seguramente no lo consideran como
teórica. un problema de textura; sin embargo, su posición
En 1911 el crítico Charles Hubert Parry es fundamentalmente explicable sobre esa base.
tituló “Texture” dos capítulos de su libro Style in Las varias partes que componen la textura están
tratadas con tal independencia que parecen ir por
musical art, originado en clases dictadas en la
su cuenta sin consideración alguna de lo que las
Universidad de Oxford.7 El sentido que el término otras están haciendo. […] la tendencia parece ser
asume entonces es actual en más de un aspecto. no sólo hacer que las varias líneas individuales
En primer lugar, Parry caracteriza la prosigan sus cursos independientes, sino
textura, en coincidencia con la etimología del adjuntarse las armonías que les corresponden, y
término, como un entramado, como “el modo en emplear sucesiones de acordes como ingredientes
de la textura, sin poner la menor consideración en
el cual las hebras se entretejen”8. Sin embargo,
las falsas relaciones y choques de notas
tales “hebras” no se identifican sin más con
subordinadas que resultan [de este modo] 9

3
The New Grove dictionary of music and musicians. Stanley Pueden reconocerse dos elementos de
Sadie org. Londres: Macmillan, 1980. Cf. ‘Texture’, v. 18,
p. 709. actualidad en el concepto de textura de Parry. Por
4
Cf. DEACON, H. C. Tessitura. A dictionary of music and
un lado, el valor agregado que el concepto
musicians, v. 4, p. 94. El término no aparece tampoco en representa con respecto a las categorías esti-
diccionarios como los de CARMICHAEL, S. (A new dictionary lísticas tradicionales (categorías como polifonía,
of musical terms. With a short prefatory explanation of
the elementary rules of music. Londres, Augener, 1878) o homofonía, etc., definidas siempre con presu-
BAKER, T. (A dictionary of musical terms, 9. ed. New York: puestos lineales), valor dado por la posibilidad de
Schirmer, 1905). Como en el caso del Grove, se lo representar un entramado compuesto de elementos
identifica con la tesitura en diccionarios como los de
WOTTON, T. (A dictionary of foreign musical terms and no lineales. Por otro lado, la legitimación de la
handbook of orchestral instruments. Leipzig: Breitkopf & simultaneidad en cuanto tal, independientemente
Härtel, 1907, p. 199) y DUNSTAN, R. (A cyclopaedic
dictionary of music. Londres: J. Curwen, 1908, p. 429).
de la consistencia mutua entre sus elementos
5
componentes.10 La caracterización de Parry
ADLER, Guido. Der Stil in der Musik. Leipzig: Breitkopf &
Härtel, 1911. Reimpresión de la 2 ed. de 1929: (Walluf:
Sändig, 1973). 9
Ibíd., p. 204-205.
6
La música de Richard Strauss desempeña un papel 10
La presentación simultánea de materiales cuya relación
significativo en este contexto: contaba a comienzos del aparece como no consistente en música de la primera década
siglo XX en Inglaterra como representación paradigmática del siglo XX está tematizada por Guido Adler en el contexto de
de lo contemporáneo. una universalización del término ‘heterofonía’. Cf. ADLER, G.
7
PARRY, C. H. Texture. Style in musical art (Londres: Über Heterophonie. Jahrbuch der Musikbibliothek Peters für
Macmillan, 1911), p. 173-206. 1908 (1909), p. 17-27. Véase asimismo las consideraciones de
E. J. Dent sobre la autosuficiencia de las sonoridades
8
PARRY, op. cit., p. 185. Las citas fueron traducidas ‘modernas’, ‘consideradas por sí mismas’. Cf. DENT, E.
expresamente. Agradezco a Gerardo Sachs su revisión de Harmony. A dictionary of modern music and musicians (Arthur
mis traducciones del alemán. Eaglefield-Hull [org.] Londres: J. M. Dent, 1924), p. 215.
simpósio de pesquisa em música 2006 107
destaca, de este modo, el elemento de aquellas de un cuarteto, puede no haber reales
multiplicidad del concepto. partes en el sentido contrapuntístico del término.
Todo está sujeto a exigencias verticales y
Una década más tarde, en un artículo
armónicas. [...] Explotamos masas y contrastes, y
denominado “La textura de la música moderna”, el medio es el color más que la línea; la trama es
George Dyson identifica el concepto con las empapelado más que tapicería. Y la efectividad
propiedades armónicas de las sonoridades de la del discurso de un compositor contemporáneo
música moderna.11 La textura ocupa el lugar puede depender casi exclusivamente de la
asignado tradicionalmente a la armonía en la delicadeza u osadía de sus métodos armónicos. 14
caracterización de las propiedades de la
música.12 La metáfora que sustituye la tapicería por el
Al igual que en Parry la música moderna se empapelado pone en evidencia un elemento de
caracteriza como un desarrollo de la textura,13 ilusionismo en la textura, en la cual la sonoridad
desarrollo cuyo antecedente se retrotrae a la desempeña un papel más importante que el
música de Johann S. Bach. Ambos momentos his- entramado.15 El énfasis en el enfoque de Dyson está
tóricos se distinguen, no obstante, en el carácter dado por las nuevas sonoridades de la música
en última instancia horizontal de la textura contemporánea. Esta concentración en el contenido
bachiana, contrapuesto al carácter de altura de los materiales conduce, signifi-
esencialmente vertical de las texturas cativamente, al problema de la consistencia entre los
contemporáneas. elementos componentes de la textura. Mientras que
Parry formulaba el problema de la consistencia a
La textura moderna es normalmente vertical, partir de una concepción de la textura entendida
armónica, una trama [fabric] de salpicaduras de como entramado, Dyson llega al mismo como
sonido. Las partes orquestales parecen ahora resultado de su tratamiento de la múltiple
secciones horizontales cortadas a través de un tonalidad.
paisaje. Son como las líneas de contorno de un
mapa de artillería. Aparecen cuando la trama
Strauss podía hacer a menudo modificaciones
alcanza un grado particular de elevación.
detalladas en sus sucesiones de acordes a efectos de
Desaparecen cuando la textura es delgada. Su
producir el efecto total dentro de una distancia
función en la técnica es ocasional, casi casual.
comparativamente respetable de lo que solía
Incluso cuando el aparato orquestal es
llamarse armonía. Nuestros contemporáneos no
relativamente constante, como en las partes de
tienen esas reservas. Las columnas armónicas siguen
cuerda de una orquesta, o, verdaderamente, en
atrevidamente su propio curso, e ignoran o desafían
las buenas maneras tradicionales del mismo modo
11 como lo hicieran los primeros pioneros del
Cf. DYSON, G. The texture of modern music. Music &
Letters, v. 4, n. 2, 1923, p. 107-18; n. 3 (1923), p. 203-18; contrapunto.16
y n. 4 (1923), p. 293-312. Dyson emplea indistintamente
los términos ‘moderno’, ‘nuevo’ y ‘contemporáneo’, los
cuales asumen de este modo un valor estrictamente La remisión a los orígenes del contrapunto se
cronológico, desprovisto de significación estética. sigue de la analogía que establece Dyson entre el
12
Esto se pone en evidencia todavía más claramente en la desarrollo de este “contrapunto armónico”
reedición del artículo, al año siguiente, en el contexto de moderno y “los experimentos tentativos que
un libro dedicado a la música moderna. Cf. DYSON, G. The
new music (Londres: Oxford University Press, 1924), p. 55- elaboraron el organum a partir del canto llano, y el
116. Allí, el capítulo sobre textura aparece a continuación contrapunto a partir del organum.”17
de un capítulo sobre “Melodía y ritmo”, y en forma
inmediatamente anterior a un capítulo sobre forma, El contrapunto armónico, ejemplificado con
denominado “Problemas de arquitectura”. El capítulo está pasajes de Salome de Strauss, está definido como
dividido por su parte en tres fragmentos, tal como había
aparecido en Music & Letters, fragmentos que serán ahora
una textura en la cual “las fibras melódicas de los
denominados “La expansión de la tradición”, “Múltiple contrapuntistas han devenido corrientes armónicas
tonalidad” y “Cromatismo”, respectivamente. Dyson
volverá a publicar partes completas del trabajo, así como
algunos de los ejemplos musicales, en el artículo 14
“Harmony” en la tercera edición del Grove. Cf. DYSON, G. Ibíd., p. 109. Los subrayados son nuestros.
Harmony. Grove’s dictionary of music and musicians, 3. 15
Ese elemento de ilusionismo ligado a la textura reaparece en
ed., (H. C. Colles [org.], Londres: Macmillan, 1927), v. 2, enfoques posteriores como los de de Jonathan DUNSBY (Cf.
p. 527-39. Considerations of Texture. Music & Letters, v. 70, n. 1, 1989,
13
Cf. DYSON, G. The Texture of Modern Music, p. 108. La p. 46-57.) y Federico MONJEAU (Cf. Forma. La invención
caracterización de la música moderna por su desarrollo de la musical. Ideas de historia, forma y representación. Buenos
textura se corresponde con una caracterización del ‘período Aires: Paidós, 2004, p. 69-127.).
sinfónico’ por su ocupación con los problemas de arquitectura 16
Ibíd., p. 215.
musical, y del ‘período del drama musical’ con los del
17
tematismo. Cf. ibíd., p. 108. Ibíd., p. 213.
108 SIMPEMUS3

compuestas, las cuales pueden aproximarse y vinculación del concepto con la problemática de la
retirarse, combinarse o chocar, tal como lo música contemporánea, así como la doble
hacían las partes individuales de la polifonía”.18 perspectiva de que el concepto es objeto. Esta
En síntesis, los enfoques de Parry y de dualidad de perspectivas obtiene aquí una
Dyson establecen las líneas generales sobre las correspondencia inmediata en la terminología.21 La
cuales será caracterizado ulteriormente el representación de la simultaneidad musical será
concepto de textura en la musicología de habla interpretada mediante los conceptos de Struktur y
inglesa.19 Se trata, en el caso de Parry, de una Textur.22
caracterización de tipo formal, centrada en la György Ligeti, en un ensayo escrito en 1959 y
representación de la constitución en sí de la titulado “Metamorfosis de la forma musical”,23
simultaneidad musical, y en el otro, de una introduce estos conceptos en el contexto de una
caracterización del contenido de los materiales; reflexión crítica del estado de la composición serial
en el caso particular de Dyson, de su contenido y de sus consecuencias formales. En ese marco, y
de altura. con una consideración relativamente marginal,24 la
“estructura” queda caracterizada como un
entramado [Gefüge] cuyos elementos constitutivos
La “segunda génesis” del concepto: El
son distinguibles, y que se conforma como producto
pensamiento musical alemán
de las interrelaciones entre aquellos. El concepto
La “segunda génesis” del concepto de de “textura” designa en cambio un complejo más
textura se produce en el ámbito de la teoría de homogéneo, menos articulado, en el cual apenas
la música en lengua alemana, en el marco de las pueden discernirse sus elementos constitutivos.25
discusiones del círculo de Darmstadt sobre la Mientras que la estructura se analiza en términos
música post-serial.20 de sus componentes, la textura se describe en
Se reiteran aquí los dos rasgos carac-
terísticos de la introducción del término en el 21
Hasta entonces, la terminología musical alemana presentaba
ámbito de la musicología anglosajona: la como equivalente aproximado de texture un término cargado
de la misma duplicidad. Tal es el caso del término Satz,
considerado en algunas de sus acepciones, aquellas
18
Ibíd., p. 213. homologables a las del término texture, y con exclusión de
aquellas otras, en las cuales es entendido como categoría
19
Más allá de las recurrencias de un empleo del concepto formal. El término remite por una parte a problemas de
simplemente como denominación comprensiva del contenido, cuando alude a aspectos ligados a diferentes
conjunto de categorías estilísticas. figuraciones instrumentales (como en Klaviersatz), o, en un
20 sentido general, a la disposición del material musical. (Satz
Al igual que en el caso de la crítica musical inglesa, se como musical setting. Cf. LEUCHTMANN, H. Dictionary of
registra al menos una mención anterior del término en la Terms in Music = Wörterbuch Musik [5ta. ed. Stuttgart, 1998],
literatura musical alemana. En 1832, en el contexto de un p. 263.) Remite por otra parte a elementos ligados al número
debate sobre la logicidad armónica de la introducción del de partes involucradas en la textura (como en
Cuarteto en do, K. 465 de W. Mozart, Gottfried Weber Zweistimmigensatz) así como a la relación entre éstas en
introduce el término Textur para designar un entrelazado términos fundamentalmente rítmicos (en los casos de
completo de melodía y armonía: “Un comprehensivo Homophonensatz, o Polyphonensatz). Cf. DRABKIN, W. e I.
análisis de toda la textura armónica y melódica del pasaje PFINGSTEN. Satz. The New Grove Dictionary of Music and
en cuestión nos permitirá identificar todas esas causas, Musicians (2. ed. Stanley Sadie org., Londres: Macmillan,
tanto individuales como en sus relaciones, y asimismo dar 2001), v. 22, p. 322-23.
cuenta de qué es esto, que con esas resonancias tanto nos
22
extraña y llama la atención tan rudamente a nuestro El término Struktur asume en la terminología musical alemana
oído.” WEBER, G. Über eine besonders merkwürdige Stelle múltiples sentidos, entre ellos uno vinculado a la lógica
in einem Mozart’schen Violinquartett aus C. Caecilia v. 14, compositiva, sentido que, si bien no es completamente
n. 53-54, 1832, p. 10. (Los subrayados son de Weber.) independiente del que se relaciona con el problema de la
Sobre los protagonistas y las vicisitudes del debate, cf. simultaneidad musical, no es tampoco homologable con éste.
VERTREES, J. Mozart’s String Quartet K.465: the History of Sobre la multiplicidad de sentidos del término Struktur, cf. ,
a Controversy. Current Musicology, v. 17, 1974, p. 96-114. E. Was heißt strukturell? Melos, v. 31, n. 6-7, 1964, p. 220-26;
El empleo no parece haber tenido precedentes ni y Zum Terminus ‘Strukturell’. Terminologie der neuen Musik
continuidad inmediata en la tradición crítica alemana. De (Berlin: Merseburger, 1965); y KROPFINGER, K. Bemerkungen
hecho, el término aparece en el contexto de un uso zur Geschichte des Begriffswortes ‘Struktur‘ in der Musik. Zur
pronunciado de expresiones latinas, lo que Ian Bent asocia Terminologie der Musik des 20. Jahrhunderts (H. Eggebrecht,
a una remisión por parte de Weber al paradigma retórico org. Stuttgart: Musikwissenschaftliche Verlags-Gesellschaft,
como instancia explicativa del pasaje. (Weber habla de la 1974), p. 188-204.
‘significación retórica del pasaje’.) Cf. BENT, I. Music 23
analysis in the nineteenth century, v. 1: Fugue, Form and LIGETI, G. Wandlungen der musikalischen Form. die Reihe 7,
Style (Cambridge: Cambridge University Press, 1994), p. 1960, p. 5-17.
157-60. Es sugestiva, no obstante, la recurrencia de un 24
La distinción se formula en una nota al pie de página. Cf.
patrón: la introducción del término parece asociada en ibíd., p. 13.
todos los casos (tanto en éste, como en el caso de Parry y
25
el de Ligeti, que se trata a continuación) al problema de La distinción de Ligeti refigura para los materiales
representar simultaneidades musicales impropias con contemporáneos esa antigua distinción, establecida por la
relación a las categorías analíticas vigentes en cada musicología histórica en el marco de las categorías lineales,
momento histórico y para cada tradición. entre las einstimmige y las mehrstimmige Kategorien.
simpósio de pesquisa em música 2006 109
términos de rasgos estadísticos generales.26 material complejo, pero en última instancia
Con Helmut Lachenmann la contraposición homogéneo.29 En la “estructura”, en cambio, las
entre los conceptos de Textur y Struktur propiedades parciales adquieren una función en el
adquiere valores adicionales. En su ensayo “Tipos resultado global del material.
sonoros de la nueva música”, escrito en 1966,27
estos conceptos se integran como los grados Esa originalidad se debe más bien precisamente al
superiores de una tipología jerárquica de hecho de que en tales estructuras de sonido
materiales. A los parámetros tradicionales de [Klang-Struktur] no son las puras cualidades de los
descripción tales como la altura, el timbre, la sonidos detallados las que vuelven a su efecto
duración y la intensidad, Lachenmann agrega una heredado, sino que esos detalles son funciones de
un orden y miembros de disposiciones precisas, y
distinción entre los conceptos de sonoridad como
como tales despliegan entre ellas una diversidad
“estado” y de sonoridad como “proceso”. inmediatamente efectiva de parentescos y
Caracteriza a la “sonoridad-textura” relaciones de contraste de diferentes niveles, y a
[Texturklang] el hecho de que puede cambiar partir de tal interdependencia se comprenden y
continuamente desde el punto de vista de sus comunican en forma totalmente nueva. De la
particularidades acústicas sin recurrencias de interacción intencional de tales relaciones de
ninguna clase, lo que la distingue de la sonidos resulta ese carácter global único e
“sonoridad-fluctuación” [Fluktuationsklang], inconfundible de una estructura [Struktur-klang].30
emplazada un escalón más abajo en la jerarquía
de materiales, cuyas modificaciones son, de una La diferenciación entre textura y estructura
u otra forma, recurrentes. La textura, si bien se manifiesta asimismo en lo relativo a sus
prolongable discrecionalmente, se constituye no respectivas propiedades temporales. La
obstante como un material estático, en la temporalidad propia [“Eigenzeit”] de la textura,
medida en que esas modificaciones operan en el como la de la sonoridad-timbre [Farbklang] y de la
plano de los elementos componentes y no de su sonoridad-fluctuación, es todavía independiente de
resultante global. Esa distinción entre la duración efectiva de que los materiales son
propiedades parciales y globales de la textura da objeto. Estos tres materiales se ordenan en una
lugar a una especificación ulterior del material. escala en la cual su duración efectiva ocupa un
Las propiedades globales derivan de una lugar de relevancia creciente. En la sonoridad-
combinación estadística de las propiedades estructura [Strukturklang] la ensambladura
parciales de la sonoridad. La resultante global de temporal interna del material se vuelve tan
la textura es, en consecuencia, más pobre que diferenciada, que éste adquiere implicancias no
los elementos particulares que la componen. sólo sonoras sino formales. La sonoridad-estructura
se constituye como proceso, y su duración efectiva
la característica general de una textura no es ya se vuelve una propiedad esencial de su constitución
en ninguna parte necesariamente idéntica a las en tanto que material. Su temporalidad propia se
características de los detalles audibles en ese vuelve idéntica de su duración efectiva. En virtud
momento, excepto en el sentido negativo de de estas dos propiedades, la funcionalización de sus
que el carácter general, calificado como momentos parciales, así como la incidencia
resultado estadístico, se sigue del nivel de los efectiva del tiempo, la estructura se presenta como
detalles – así como precisamente la masa es
síntesis posible del dualismo entre sonoridad
más primitiva que sus miembros individuales.28
(material) y forma.
La distinción de Lachenmann entre los
Se trata, como en el caso de Ligeti, de un
conceptos de textura y estructura pone en juego de
26 este modo un conjunto complejo de elementos. Por
La textura se va a constituir en el pensamiento compositivo
alemán como designación de cierto tipo de materiales un lado, mantiene la oposición formulada por Ligeti
musicales. Karlheinz Stockhausen emplea el término por entre materiales homogéneos (la textura) y
esos mismos años para caracterizar los materiales que
componen su obra Gesang der Jünglinge, materiales
materiales estratificados (la estructura). Esa
entendidos como unidades formales. Cf. STOCKHAUSEN, K. oposición adquiere en Lachenmann
Musik und Sprache III. In: Texte, v. 2: Aufsätze 1952-1962 determinaciones ulteriores, con la oposición entre
(Köln: DuMont, 1964), p. 58-68.
la constitución puramente estadística de la textura
27
Cf. LACHENMANN, H. Klangtypen der neuen Musik.
Zeitschrift für Musiktheorie , v. 1, n. 1, 1970, p. 21-30.
29
Reimpreso en LACHENMANN, H. Musik als existentielle Lachenmann menciona como ejemplo de una textura el final
Erfahrung. Schriften 1966-1995 (J. Häusler org. de Sonant, de Mauricio Kagel.
Wiesbaden: Breitkopf & Härtel, 1996), p. 1-20. 30
Ibíd. Lachenmann menciona como ejemplo de estructura la
28
Ibíd., p. 28. pieza completa Structure Ia para dos pianos de Pierre Boulez.
110 SIMPEMUS3

y la constitución funcional de la estructura. Una una negación del momento de genuina


tercera determinación está dada por el grado de multiplicidad contenido en el concepto. Hace de tal
evolución interna genuina de los materiales, esto multiplicidad una forma mediata de la unicidad.
es, su carácter estático o dinámico (procesivo). Requiere de las sonoridades concurrentes cierta
La determinación más precisa de que estos forma de complementación.
conceptos son objeto por parte de Lachenmann Así, pueden identificarse dos elementos de
deriva en una reducción en el alcance descriptivo organicidad en el concepto de Struktur de
de la distinción misma. Lo que en Ligeti tenía la Lachenmann. El primado de las relaciones por sobre
forma de una contraposición entre dos clases de la materialidad misma de las sonoridades,
materiales, cuya distinción estaba fundada sobre identificado por Borio, y la negación del momento
la presencia o ausencia de estratificación, se de multiplicidad.
transfigura en Lachenmann en una
La creciente autosuficiencia estética del
contraposición que identifica, en el caso de la
material en tanto que material en la música
estructura, dicha estratificación con una
informal termina por disolver la dicotomía entre
funcionalización de las relaciones entre los
estructura y textura. Borio toma en consideración
elementos componentes del material.
dos pasajes correspondientes a obras separadas por
Esta reducción se pone particularmente de algo más de una década: Kreuzspiel (1951), de
manifiesto en la crítica de Gianmario Borio a la Karlheinz Stockhausen y Fluktuationen (1964) de
contraposición de Lachenmann, crítica que se Isang Yun. El primer pasaje33 es caracterizado como
plantea en el marco de una historización de la una textura compleja compuesta de múltiples
discusión.31 Borio ubica la contraposición entre estratos de diferente timbre y movimiento. Esos
textura y estructura en el marco de la elementos, sin embargo, remiten en Kreuzspiel a
renovación de materiales y procedimientos una meta-estructura, dentro de la cual no
compositivos desarrollada hacia fines de la representan simplemente componentes de una
década del ‘50, en el contexto de lo que, sonoridad compleja, sino que asumen una función
adoptando la caracterización de Adorno, en una totalidad coherente.34 En Fluktuationen35 en
denomina música informal.32 cambio, las relaciones funcionales no dan cuenta
Borio identifica un trasfondo organicista en de la totalidad de los materiales. Un análisis
la jerarquización de Lachenmann de la detenido de la obra, concluye Borio, no puede
estructura por sobre la textura, así como en la separar los elementos funcionales del complejo
asignación de propiedades funcionales a la sonoro mismo que compone la textura.36
primera. Dicho enfoque, señala Borio, presupone El concepto de textura asume de este modo
en última instancia que la inclusión de los el elemento de multiplicidad del concepto de
elementos individuales en un complejo estructura, y pone entre paréntesis el aspecto
entramado funcional, en el cual quedan relativo a la funcionalidad de los elementos que la
relegadas a un plano secundario sus cualidades componen. Textura se constituye así como
materiales, garantiza por sí misma el sentido y concepto general de los materiales musicales.
valor estético de la obra musical. Pero es
precisamente tal primacía de la estructura, esto
es, el valor abstracto de las relaciones Conclusiones
funcionales sobre las propiedades materiales de La genealogía del concepto de textura revela
la sonoridad, lo que la obra musical informal significativas particularidades. Una de ellas está
pone en cuestión. dada por su doble génesis. El concepto surgió en
Esa preeminencia de las relaciones sobre la forma independiente en dos contextos teóricos
materialidad de las sonoridades se extiende distintos. El primero es el contexto de la crítica
asimismo a la relación entre los estratos musical inglesa de comienzos del siglo XX, en
identificables en la simultaneidad sonora. El autores como Parry y Dyson. El segundo está dado
carácter funcional de la estructura representa por la discusión en el pensamiento musical alemán
alrededor de la música post-serial, en autores tales
31 como Ligeti, Lachenmann y Borio. En los dos casos
Cf. BORIO, G. Überlegungen zu Struktur und Textur.
Musikalische Avantgarde um 1960. Entwurf einer Theorie
der informellen Musik (Laaber: Laaber, 1993), p. 92-101. 33
La referencia es a los cc. 46-53.
32
Cf. ADORNO, Th. W. Vers une musique informelle. 34
Darmstädter Beiträge zur Neuen Musik 4 (1961), p. 73 ss. Cf. BORIO, G. Op. cit., p. 95-97.
Trad. de A. Brotons Muñoz y A. Gómez Schneekloth. Vers 35
Borio analiza los cc. 1-21.
une musique informelle. Escritos musicales I-III. (Obra
36
completa, v. 16. Madrid: Akal, 2006), p. 503-549. Cf. BORIO, G. Op. cit., p. 97-99.
simpósio de pesquisa em música 2006 111
el concepto se revela en su naturaleza Se presenta así en la historia del pensamiento
antinómica. La contraposición entre una musical en el siglo XX una dualidad de perspectivas
concepción de la textura entendida como en lo que respecta a la representación de la textura
entramado, en el caso de Parry, con una musical. Esta dualidad distingue y mantiene como
concepción de la textura como nueva categoría antagónicos los elementos de multiplicidad y de
de la verticalidad en sustitución de la armonía, concreción contenidos en el concepto. La
en el caso de Dyson, puede ser caracterizada introducción del término “textura” en la
como una contraposición entre una concepción terminología musical supone una articulación
formal (formal en tanto centrada en la teórica significativa. No es accidental que esa
constitución en sí del entramado más que en las articulación haya tenido lugar con relación a la
hebras que lo componen) y una concepción caracterización de la música contemporánea. Se
material, concreta, de la textura. Una trata de una nueva conceptualización, a partir de
contraposición análoga se establece entre los una perspectiva más amplia que la que brindaban
conceptos de Struktur y de Textur de Ligeti; el las antiguas categorías, de un problema teórico que
primero asociado a una idea de multiplicidad, el se hizo visible una vez que su premisa – la
segundo a una particular conformación del constitución de la simultaneidad musical – se volvió
material musical.37 objeto de una pronunciada diversificación en el
Cada una de estas orientaciones cuenta plano de la composición musical. Es en dicho
con sus propios antecedentes en la historia de la marco, el de la renovación de los materiales
teoría. Los enfoques que entienden la textura musicales y sus ordenamientos formales, en el cual
como representación de la constitución de la el concepto de textura asume plena entidad.
simultaneidad se inscriben en la tradición de las
categorías estilísticas. Estas categorías
conforman una tipología, elaborada de acuerdo
con principios relativos al número de partes, así
como a las relaciones melódicas, armónicas o
rítmicas entre las mismas. Una característica tan
general como inexpresada de esta tradición está
dada por la presuposición de linealidad como
atributo fundamental de los componentes
últimos de la textura,38 así como por una
identificación acrítica de éstos con las partes
vocales o instrumentales implicadas. La segunda
orientación, la representación de la textura
entendida como caracterización de los
materiales, encuentra su antecedente en
tratados de composición o de instrumentación,
donde algunas configuraciones texturales son
consideradas bajo la forma de “efectos de
disposición” de los materiales. Tal es el caso del
tratado de instrumentación de Carl Czerny de
1848.39

37
La doble génesis descubre asimismo una constante
epistemológica. En ambos casos el concepto resulta de una
inadecuación de las categorías existentes para dar cuenta
de una nueva concepción de la simultaneidad y los
materiales musicales. Incluso el caso aislado de Gottfried
Weber, considerado en la nota 20, se ajusta a esta
constante.
38
Cf. la crítica de esta presuposición en FICKER, R. Primäre
Klangformen. Jahrbuch der Musikbibliothek Peters für
1929, v. 36, 1930, p. 21-34.
39
CZERNY, Carl. School of Practical Composition. Trad. de J.
Bishop. (Londres: R. Cooks, c1848) 3 Vols. op. 600. Cf. la
reseña del parágrafo “Of Unusual Combinations of
Different Instruments” en TODD, R. Orchestral texture and 1986), p. 191-226; y RATNER, L. New Sounds. Romantic Music.
the art of orchestration. The orchestra: Origins and Sound and Syntax (New York: Schirmer, 1992), p. 1-129.
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112 SIMPEMUS3

Referências
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Forma musical e referencialidade: uma análise comparativa entre
Mortuos Plango, Vivos Voco de Jonathan Harvey e
Points de Fuite de Francis Dhomont
Arthur Rinaldi e Edson Zampronha
Universidade Estadual Paulista

Resumo
Neste artigo apresentamos os resultados de uma análise comparativa feita entre as obras eletroacústicas
Mortuos Plango, Vivos Voco, de Jonathan Harvey, e Points de Fuite, de Francis Dhomont. Primeiro
comentamos cada obra individualmente, e em seguida comparamos os resultados obtidos. As características
mais relevantes encontradas são: ambas apresentam uma íntima relação entre a referencialidade das fontes
sonoras e forma musical; ambas empregam uma construção formal similar próxima às construções
tradicionais, e ambas usam sons específicos com o objetivo de articulação de seus segmentos. Conclui-se
realizando breves considerações sobre o uso da relação íntima entre referencialidade e forma musical na
música contemporânea recente.
Palavras-Chave: Forma – Referencialidade – Análise – Música Eletroacústica

Introdução menino, ambas inserem esta voz num contexto


Nesse artigo realizamos uma análise artificial composto de sons eletrônicos, e ambas
comparativa de duas importantes peças eletro- utilizam textos sacros (GRIFFITHS, 1984, p. 99).
acústicas compostas no início da década de 1980: Francis Dhomont nasceu em 1929, na França.
Mortuos Plango, Vivos Voco, de Jonathan Harvey, Desde 1963 dedica-se exclusivamente à composição
e Points de Fuite, de Francis Dhomont. Ambas de obras eletroacústicas, cujas primeiras
composições são relevantes dentro do cenário experiências pessoais remontam ao final da década
musical eletroacústico, mas advindas de linhas de 1940. Sua música é fundamentalmente
estéticas e influências diferentes. acusmática, incluindo em seu discurso musical as
Jonathan Harvey nasceu em 1939 na múltiplas referencialidades de um som. Para tanto,
Inglaterra. Durante seus estudos universitários se baseia na síntese que François Bayle realiza
teve contato com a música atonal, dodecafônica entre a concepção de objeto sonoro de Pierre
e serial pós-1950. Segundo Griffiths, “a Schaeffer e a concepção sígnica do fenômeno
concepção weberniana de serialismo é sonoro segundo C. S. Peirce, incluindo em seu
fundamental” para Jonathan Harvey: “uma discurso musical as múltiplas referencialidades de
concepção de música em constante movimento, um som.
mas que permanece sempre no mesmo lugar” Sua obra Points de Fuite é estereofônica. Foi
(GRIFFITHS, 1984, p. 88). composta em 1982, e faz parte de um ciclo,
Sua obra Mortuos Plango, Vivos Voco foi denomidado Cycle de l´errance. Este ciclo é
composta em 1980 e é octofônica. Esta peça composto de três peças: Points de fuite, ... mourir
ganhou notoriedade pelos processos de trata- un peu e Espace / Escape.
mento, especialmente os processos de re-síntese
sonora1, utilizados na manufatura da peça. Digno Comentários analíticos sobre as obras analisadas
de nota é a similaridade entre esta peça e
Nossa análise tem como foco principal a
Gesang der Jünglinge, de Stockhausen. Ambas
organização formal e sua relação com outros
utilizam como material musical a voz de um
aspectos da composição. Analisamos cada obra
individualmente e posteriormente comparamos os
1
Re-síntese é o nome genérico dado a um conjunto resultados obtidos. Ambas análises foram realizadas
diversificado de técnicas de síntese sonora. Estas técnicas
possuem de três etapas básicas: a análise de um som a partir da escuta das obras, utilizando como ponto
gravado (freqüentemente uma análise de espectro), a de partida o conhecimento prévio das linhas
modificação das informações obtidas através desta análise,
e finalmente a síntese de um novo som a partir destas
estético-composicionais às quais os compositores
informações modificadas. mais se aproximam.
114 SIMPEMUS3

uma pausa. Os trechos desta segunda parte estão


Mortuos Plango, Vivos Voco, de Jonathan organizados do seguinte modo:
Harvey
Os principais materiais sonoros da obra • Trecho 1 (1’41” a 2’13”) – predominância de centro
derivam da voz de um menino e de sons de sinos. harmônico sobre Dó, mas com forte polarização sobre Sol;
A análise espectral do sino mais grave da constituído por sons consonantais secos e por sons
Catedral de Winchester serviu de elemento harmônicos contínuos;
estrutural nesta obra. Seu som fundamental e • Trecho 2 (2’13” a 3’31”) – predominância de centro
seus oito primeiros harmônicos servem para harmônico sobre Fá, com passagens em torno de Si e Dó;
polarizar as alturas de cada uma das partes da constituído predominantemente por sons do tipo massa
harmônica em glissando;
obra. No entanto, embora Harvey tenha dividido
a obra em oito partes, é muito destacado o • Trecho 3 (3’31” a 4’10”) – predominância de centro
harmônico sobre Sib; constituído por sons contínuos,
agrupamento delas em três partes distintas.
tanto sons de vozes como sons do tipo massa harmônica;
A primeira parte estende-se do início da
• Trecho 4 (4’10” a 5’00”) – predominância de centro
peça até 1’41”, e apresenta uma importante harmônico sobre Dó; constituído predominantemente por
divisão em 0’50”. Até 0’50” há o predomínio de sons do tipo massa harmônica fixa e massa harmônica
sons com pouca modificação, muito próximos dos variável (glissandos);
sons originalmente gravados. Além disso, é nítida • Trecho 5 (5’00” a 5’34”) – predominância de centro
a presença de um centro harmônico2 sobre a nota harmônico sobre Lá; constituído por sons do tipo massa
Dó, acentuada pelos pedais graves presentes harmônica combinados com ataques de sons de sinos,
tanto na voz como nos sons de sinos. Esta camada assim como pelos sons de vozes ao final;
está composta por sons de sinos que se rarefazem • Trecho 6 (5’34” a 6’34”) – predominância de centro
e que, em 0’50”, dão lugar a uma camada harmônico sobre Mib; constituído por uma camada de
composta por sons sintetizados do tipo massa massa harmônica e por sons de sinos modificados, assim
harmônica3. Estes sons do tipo massa harmônica como pelos sons de sinos no início;
se contrapõem a uma camada de sons de voz
elaborada de modo similar à camada anterior de Esta segunda parte apresenta, assim, carac-
sons de sinos. terísticas de um desenvolvimento realizado a partir
A segunda parte da peça começa em dos materiais iniciais.
1’41” e termina em 6’34”. Nesta parte A terceira parte começa em 6’34” e termina
predominam sons que são transformações dos no final da peça, em 9’01”. Uma de suas principais
principais sons apresentados inicialmente. Eles características é a retomada da sonoridade pre-
geram um contraste com os sons iniciais, sente na primeira parte. Esta retomada consiste na
principalmente porque os sons perdem muito de utilização dos materiais sonoros com pouca
sua referencialidade. Além disso, também são modificação, tal como apareceram na primeira
introduzidos sons ruidosos, como sons de parte, assim como no retorno do centro harmônico
consoantes secas (“k”, “t” etc.), glissandos e sobre Dó. Outra de suas principais características é
sons do tipo massa complexa inarmônica4. A a apresentação de materiais formando camadas:
segunda parte se divide em seis trechos distintos. uma camada de som de sino forma um pedal grave,
Cada trecho explora centros harmônicos regular e repetitivo sobre Dó; uma camada de sons
diferentes e apresenta materiais sonoros também de vozes forma uma massa sonora que se repete
diferentes. É importante observar que o início de com certa regularidade, e uma camada de sons
cada trecho ou é pontuado por um evento sintetizados altera os harmônicos do pedal grave
sonoro, ou está separado do trecho anterior por realizado pela camada de sons de sinos.

2 Points de Fuite, de Francis Dhomont


O termo centro harmônico é utilizado neste artigo para
indicar a clara relação de subordinação existente entre as A peça apresenta diversas articulações
freqüências encontradas num determinado trecho a uma
freqüência fundamental predominante.
formalmente importantes. Em nossa análise,
3
segmentamos a peça em três partes. A primeira
O termo massa harmônica se refere a sons cujas principais
freqüências componentes seguem a ordenação encontrada parte estende-se do início da peça até 6’01”, e
na série harmônica. apresenta dois materiais contrastantes conectados
4
O termo massa complexa inarmônica se refere a sons com por uma transição. Do início da peça até 1’17”
altura indefinida, resultado de suas principais freqüências aparece um primeiro material composto
componentes não seguirem a ordenação encontrada na
série harmônica.
exclusivamente por sons do tipo massa harmônica
simpósio de pesquisa em música 2006 115
contínua que apresentam o mesmo envelope complexa inarmônica (som de uma bola deslizante
dinâmico (aumento e decréscimo de dinâmica) e em glissando), recurso outra vez utilizado para
espectral (início mais ruidoso transformando-se articular esta segunda parte em dois trechos. A
em um espectro mais harmônico) (ROY, 1996, p. partir de 8’54” há uma sobreposição diversificada
32). De 1’07” a 1’17” predomina um som ruidoso, de sons provenientes dos dois materiais
do tipo massa complexa inarmônica, que realiza contrastantes da primeira parte da peça. Neste
um glissando descendente. Este som produz uma trecho destaca-se o retorno dos sons complexos
articulação e permite a introdução de um trecho referenciais e dos sons de altura variável (aqui
com junção de transição. A transição tem início ascendentes e descendentes). Toda esta segunda
em 1’17” e está composta predominantemente parte é concluída, tal como na primeira parte, por
por sons do tipo massa harmônica granular5 com meio de uma considerável diminuição da densidade
envelopes dinâmico e espectral semelhantes ao de eventos.
trecho anterior. Além disso, destacam-se neste A partir de 11’11” tem início a terceira parte
trecho os sons de altura variável descendente da peça. Esta parte é breve, e se caracteriza por
(glissandos). Em 2’40” surge um som com maior ser uma re-apresentação exclusivamente dos
destaque, novamente realizando um glissando primeiros materiais da exposição da peça, o que
descendente, que encerra esta transição. tem conseqüências importantes, tal como
De 2’43” a 6’01” surge um segundo comentaremos adiante. Desaparecem os sons
material contrastante no qual há a complexos e retornam os sons de massa harmônica
predominância de sons complexos inarmônicos contínua, dessa vez sobrepostos em uma única
em grande parte com claras referencias às suas camada. Esta re-apresentação tem a nítida função
fontes sonoras (automóveis, aviões, trens). De de conclusão. Assim como a primeira e a segunda
2’43” até 3’06” os sons aparecem de forma mais partes são concluídas com uma rarefação, esta
isolada, com poucas sobreposições. De 3’06” a seção é ela mesma uma rarefação quando
3’25” surge um som ruidoso, do tipo massa comparada com as partes anteriores, concluindo a
complexa inarmônica (som de uma bola obra como um todo.
deslizando), realizando um glissando
descendente. Tal como nas duas vezes
Comparação dos Resultados
anteriores, este tipo de som gera uma
articulação e, a partir de 3’28” ocorre uma maior A comparação entre as duas obras nos
densidade de eventos, resultado da justaposição permite observar o que segue:
e sobreposição de diversos sons complexos, 1) As duas obras apresentam um primeiro
inclusive de sons de altura variável descendente trecho dedicado à exposição dos materiais
(glissandos). Na conclusão deste trecho principais; segue-se um segundo trecho com
novamente está presente o mesmo som de massa características de desenvolvimento, finalmente
complexa inarmônica que realiza um glissando e segue-se um trecho que re-expõe os materiais
conclui os trechos anteriores. Logo após a iniciais da obra.
apresentação desse som, a primeira parte da A obra Mortuos Plango, Vivos Voco apresenta
peça é encerrada através de uma rápida estes três trechos de forma bastante clara. Já a
diminuição da densidade de eventos. obra Points de Fuite é mais ambígua. Sua exposição
A segunda parte estende-se de 6’01” a apresenta dois materiais diferentes, cada um deles
11’11”. Sua principal característica é a seguidos de um breve desenvolvimento. O
reutilização dos sons das partes anteriores, desenvolvimento do primeiro material funciona
combinando-os e modificando-os de um modo como uma transição ao segundo. E o
similar a um desenvolvimento musical desenvolvimento do segundo funciona como um
tradicional. No primeiro trecho, de 6’01” a prolongamento que permite a introdução da
8’54”, aparecem quase que exclusivamente sons segunda parte da peça. Além disso, a reexposição
oriundos do primeiro material da peça, mas agora dos materiais no final da obra é breve, e apresenta
combinados de modo mais diversificado e com somente elementos do primeiro material da
maior número de sobreposições. De 8’48” a 8’54” exposição. Nas duas obras observa-se que a re-
surge novamente um som ruidoso do tipo massa exposição dos materiais iniciais é realizada
superpondo-se camadas de sons cujo resultado final
5
O termo granular é empregado para descrever a percepção é um evento sonoro unificado. Embora as duas
globalizada de um conjunto de diversos sons de duração obras apresentem diferenças no modo como
muito curta. Nesses casos, a escuta foca a percepção
global dos eventos sonoros, em detrimento da percepção realizam suas construções formais, a característica
individualizada dos sons componentes.
116 SIMPEMUS3

geral de exposição, desenvolvimento e re- possível retirar a referencialidade do segundo


exposição se mantém. material e ao mesmo tempo identificar que se trata
2) Ambas as obras empregam um do segundo material (já que é a referencialidade
determinado som específico e bastante mesma que o identifica), não há como introduzir
característico para realizar a articulação e este material nesta terceira parte e concluir a obra.
transição entre os principais trechos da obra. Por esta razão, é possível interpretar esta ausência
como o resultado de uma necessidade formal para a
No caso de Mortuos Plango, Vivos Voco este
geração de uma terceira parte conclusiva, o que
papel é dado aos ataques de sino, observáveis ao
confirma a profunda relação entre referencialidade
início de quase todas as divisões formais da peça.
e forma musical também neste aspecto da obra.
No caso de Points de Fuite esse papel é dado a
um som complexo de altura variável (um Esta conexão profunda entre referencialidade
glissando descendente), observável ao final de (e sua suspensão) e forma musical é de grande
quase todas as divisões formais da peça. Além significação. A referencialidade pode ocorrer
disso, devemos ressaltar que esses sons de exclusivamente na superfície do discurso musical.
articulação, em ambas as peças, são quase Neste caso, introduzem na obra as características
sempre preparados por certos processos, como de suas fontes sonoras e possíveis significações
diminuição da dinâmica e diminuição da associadas a estas fontes. No entanto, o que se
densidade de eventos. Essas preparações observa nestas duas obras é algo diferente.
ressaltam o surgimento desses sons de Observa-se uma clara e profunda associação entre
articulação e tornam mais claras as mudanças de construção formal e referencialidade dos materiais
trechos e partes ao longo das peças. A diminuição utilizados. A referencialidade não só introduz
da densidade de eventos aparece de modo mais possíveis significações na obra, como ela participa
decisivo em Points de Fuite já que suas três intimamente da própria construção do discurso
partes terminam com uma rarefação e sua musical. Esta associação entre discurso formal e
terceira parte ela mesma é uma rarefação que referencialidades dos materiais utilizados passa,
conclui a obra como um todo. assim, a adquirir um profundo valor na construção
do discurso musical, e na construção do sentido da
3) Nas duas obras há uma conexão profunda
obra. E esta associação profunda parece ser uma
entre referencialidade dos materiais utilizados e
das soluções de destaque no uso de sons
forma musical.
referenciais dentro da composição electro-acústica,
Em Mortuos Plango, Vivos Voco os sons principalmente das obras compostas após 1980, já
iniciais da obra remetem claramente às suas que resolve um dos grandes problemas referentes à
fontes sonoras, No trecho com características de utilização de sons com referencialidade clara
desenvolvimento esta referencialidade é dentro do contexto da música ocidental, a qual
suspensa em grande parte, e os sons adquirem sistematicamente excluiu a utilização de materiais
uma característica mais abstrata. Na re- sonoros que realizam imitações ou apresentações
exposição dos materiais no final da obra esta diretas de suas fontes (ZAMPRONHA, 2002).
referencialidade é novamente retomada, e de
forma bastante clara. No caso da obra Points de
Fuite A referencialidade e a ausência de Considerações Finais
referencialidade são um dos pontos centrais para O objetivo deste trabalho foi analisar e
a constituição da oposição entre os dois materiais comparar as obras eletroacústicas Mortuos Plango,
constituintes da exposição. Principalmente se Vivos Voco, de Jonathan Harvey, e Points de Fuite,
levarmos em conta que estes materiais são de Francis Dhomont buscando extrair elementos
morfologicamente similares, o que foca o que possam indicar alguns procedimentos de
contraste na ausência ou presença de construção formal característicos da música pós-
referencialidade. No trecho com características 1980. Os resultados obtidos indicam que as
de desenvolvimento esta oposição é fundamental características gerais observadas podem ser
para que a escuta possa associar os sons ao sintetizadas da seguinte maneira: as duas obras
primeiro ou ao segundo materiais da exposição. apresentam uma segmentação formal similar
Na terceira parte, no entanto, a reapresentação (exposição de materiais, trecho com características
dos materiais é incompleta. Apresenta somente de desenvolvimento, e re-exposição dos materiais
materiais da primeira parte, já que a segunda iniciais) que apontam para uma releitura da
parte, por sua referencialidade, é um contraste tradição musical; as duas obras apresentam certos
com a primeira e, assim, não permite gerar um sons bastante característicos que têm a função
encerramento conclusivo. Assim, como não é específica de articular e conectar segmentos da
simpósio de pesquisa em música 2006 117
obra, e, finalmente, as duas obras apresentam confirmado em um conjunto maior de obras, este
uma associação profunda entre forma musical e tipo de associação entre referencialidade e forma
referencialidade dos materiais sonoros utilizados. musical poderá ser um dos elementos que permitem
Esta última característica observada se entender a diversidade da música atual (ou pelo
reveste de grande importância quando se menos parte dela) como um conjunto de variações
considera que esta á uma contribuição efetiva sobre como a referencialidade pode adquirir
que permite integrar a referencialidade dos características discursivas dentro de uma obra. E,
materiais utilizados dentro da construção do desta maneira, indica como podem ser utilizados
discurso musical. Esta é uma solução que parece sons com referencialidade clara dentro da obra,
não se limitar às duas obras analisadas. Os algo que a música ocidental sistematicamente
estudos realizados até o momento indicam que excluiu de seu universo composicional, mas que
este procedimento ocorre também em músicas agora parece estar presente de forma integrada ao
instrumentais e mistas do mesmo período. Se discurso musical.
efetivamente este mesmo procedimento for

Referências
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Uma aproximação matemática para variações de agógica em frases:
Furtwängler e os scherzos de Beethoven
Ricieri Carlini Zorzal
Universidade Federal da Bahia

Resumo
Neste artigo é proposta uma aproximação polinomial para a variação agógica que ocorre em frases
selecionadas nos scherzos de Beethoven, na interpretação de Furtwängler. A metodologia está fundamentada
na proposta de Mazzola e Beran (1998) e emprega duas ferramentas computacionais, o Sound Forge 8.0 e o
Excel 2003. Concluímos que a flutuação agógica apresentou um comportamento polinomial de pelo menos
quarta ordem e que a interpretação de cada frase guarda suas particularidades em seus inícios e fins.

Introdução Em levantamento de trabalhos que realizaram


Levantamentos bibliográficos sobre medições no pulso das músicas, Goebl et al (2005)
pesquisa em performance musical têm apresentam uma grande variação no erro estimado
demonstrado um diverso panorama para a área por cada pesquisa, de 1 a 15 ms. Acreditamos que
(GABRIELSSON, 1999; 2003; GOEBL et al 2005). pesquisas em performances orquestrais a cautela
Gabrielsson (2003, p. 224-225) aponta que deve ser maior e o intervalo proposto por Dodson
medidas em performance concentram o maior parece satisfatório.
número de pesquisas e que grande parte dessas As durações foram obtidas com auxílio da
medidas estão relacionadas a flutuações agógicas ferramenta computacional Sound Forge 8.0 e
em diversos níveis estruturais em música. referem-se à unidade de compasso, que no caso do
O objetivo desta investigação é descrever a scherzo é a mínima pontuada. A tabela mostra as
flutuação do pulso em frases selecionadas dos durações totais de cada frase, em segundos:
scherzos de Beethoven e propor uma
aproximação matemática para o comportamento
Sinfonia Frase 1 Frase 2
dessa flutuação. Metodologicamente, este
trabalho está fundamentado na proposta de 1 4,968 4,650
Mazzola e Beran que dizem que a transformação 2 10,511 10,582
da partitura em performance deveria ser descrita
3 8,321 8,172
em “termos efetivamente matemáticos” (1998,
p. 40). 4 14,360 14,385
5 6,870 6,703
Material e métodos 6 11,263 11,008
Objeto de estudo 7 11,447 11,336
Selecionamos duas frases iniciais e 8 19,463 19,647
consecutivas, com mesmo número de compasso,
de cada um dos scherzos das sinfonias de 1 a 8
Para o cálculo do andamento, quando todos
de Beethoven na interpretação de Furtwängler.
os tempos do compasso faziam parte da mesma
Os dados foram coletados de gravações
frase, não consideramos flutuações agógicas
realizadas entre 1948 e 1954, sendo que as
internas. Convertemos a duração em andamento e
Sinfonias 2 e 8 são gravações ao vivo.
quando os limites de frase e compasso não
coincidiam, o trecho passava por divisão
Coleta de dados proporcional. A sinfonia 8 é a única que apresenta a
Toda coleta de dados possui um erro semínima como unidade de andamento, as outras
associado. Considerando casos como reverb, têm como unidade a mínima pontuada. A tabela
acordes assincrônicos e o erro humano, Dodson apresenta as expressões matemáticas utilizadas:
(2002) estima a confiabilidade dos dados de sua
análise da Sinfonia n° 40 de Mozart em ± 20 ms.
simpósio de pesquisa em música 2006 119
Sinfonias 1-7 Sinfonia 8 ambas as frases o primeiro membro revela um
contorno suave e o segundo uma progressão
Três tempos “bagunçada”. Os dados colhidos sugerem que a
⎛ 60 ⎞ ⎛ 60 ⎞
pertencentes à T =⎜ ⎟ T = 3⎜ ⎟ intenção do intérprete era tratar cada membro de
mesma frase ⎝d ⎠ ⎝d ⎠ frase de forma agógica semelhante. Quais fatores
influenciaram a “desordem” no pulso do segundo
Apenas um tempo membro de cada frase? O fato é que os primeiros
1 ⎛ 60 ⎞ ⎛ 60 ⎞
pertencente à T = ⎜ ⎟ T =⎜ ⎟ oito compassos são orquestrados apenas com cordas
frase 3⎝ d ⎠ ⎝d ⎠ e os oito seguintes com cordas e madeiras.
Instrumentos de diferentes famílias, e,
Dois tempos consequentemente, diferentes formas de ataque,
2 ⎛ 60 ⎞ ⎛ 60 ⎞
pertencentes à T= ⎜ ⎟ T = 2⎜ ⎟ dificultam o controle da pulsação pelo regente? A
mesma frase 3⎝ d ⎠ ⎝d ⎠ Sinfonia 8, por exemplo, é orquestrada por
instrumentos de diferentes famílias em suas duas
Onde T é o andamento na unidade indicada pelo primeiras frases e apresenta um contorno obtuso,
compositor e d a duração mas ela é executada a um terço do andamento da
sexta sinfonia. Então o andamento também é uma
variável que influencia nesse controle? Essas
Os dados foram organizados em planos
respostas estão além do escopo deste trabalho.
cartesianos Txn, onde n é o número do
compasso. Quando a frase começa com anacruse Similaridade no desenho entre as duas frases
adotamos o zero. e diferenças relevantes nos andamentos das
anacruses, quando estas estão presentes, são
observações aplicáveis aos outros trechos
Análise de dados estudados.
O contorno
O gráfico mostra a primeira frase da sexta
sinfonia e sua repetição indicada pelo ritornello. Linhas de tendência
O contorno dos andamentos ao longo dos O comportamento obtuso observado no
dezesseis compassos revela uma similaridade contorno de alguns dos trechos analisados sugeriu
agógica entre as frases. O ponto discrepante fica uma aproximação matemática que relacionasse
por conta das anacruses. É perceptível que no funcionalmente os dados levantados. Após a
oitavo compasso há um alargamento no pulso que plotagem dos pontos, procedemos a investigação
sugere o final de um membro de frase. Com dos dados com o auxílio do Excel. Testamos o
esses dados, torna-se visível que a probabilidade ajuste polinomial para relacionar os andamentos.
de diferença nas durações entre uma frase e sua Uma importante característica foi observada no
repetição. comportamento das funções. Ela nos mostra que,
num polinômio Axn + Bxn-1 + Cxn-2 +...+ Wx + Z, à
medida que aumentamos o valor de n, os
coeficientes que acompanham as variáveis de maior
grau tendem a zero. Dois exemplos, o melhor e o
pior ajuste, demonstrarão essa afirmação.
O gráfico traz uma equação que ajusta os
andamentos da primeira frase do scherzo da oitava
sinfonia. O coeficiente de correlação, R2, nos
mostra que a função expressa bem os pontos neste
caso. R2 é um valor entre zero e um que quanto
mais próximo de um, melhor a curva representa os
pontos. Um erro de execução, uma entrada
precipitada em 0,179s, diminuiu o valor da
Figura 1 anacruse de 77,22 para 62,76. Tal erro não alterou
as propriedades da curva associada.
Trata-se de procedimento comum entre
intérpretes uma variação agógica para separar
estruturas musicais. No exemplo do contorno
apresentado temos dois momentos distintos. Em
120 SIMPEMUS3

Figura 2

Figura 4
Ajustes cujo R2 ficaram abaixo de 0,7, que
é o valor mínimo aceitável, demonstram fraca
relação polinomial entre os andamentos ao longo A tabela mostra o valor de R2 de cada ajuste
do tempo. A segunda frase da Sinfonia 2, no polinomial com grau igual a 6. Entre parênteses
gráfico abaixo, foi o pior ajuste. estão os valores para ajustes de quarta ordem.
Percebemos que a variação de R2 não é constante,
alguns ajustes perdem muito com a redução da
ordem polinomial, outros nem tanto.

Sinfonia Frase 1 Frase 2


1 0,9862 (0,9777) 0,8701 (0,8173)
2 0,4694 (0,3547) 0,3995 (0,2009)
3 0,7151 (0,4557) 0,5507 (0,2071)
4 0,6189 (0,4380) 0,6351 (0,5040)
Figura 3
5 0,8237 (0,7401) 0,6361 (0,2624)

Se a gravação é ao vivo ou não parece 6 0,8335 (0,7726) 0,7501 (0,4412)


exercer pouca interferência numa possível 7 0,7109 (0,6614) 0,6186 (0,2756)
relação polinomial na variação do pulso.
8 0,9939 (0,9680) 0,9835 (0,9483)
Exatamente as duas únicas gravações ao vivo de
nosso estudo apresentaram o melhor e o pior
ajuste. Mesmo não sendo um comportamento ideal
Em casos onde a regressão com polinômios para todos os trechos analisados, o ajuste
de grau seis apresentou R2 > 0,8, como no polinomial revelou resultados com boas
exemplo abaixo, o ajuste de quarta ordem aproximações. A primeira frase da sinfonia 1 e as
mostrou-se satisfatório. Cada grau a mais na duas frases da sinfonia 8 apresentaram progressões
função de regressão polinomial significa um grau com elevado grau de representação pela curva
de liberdade a menos em sua construção. Isso associada.
implica em dizer que um ajuste de quarto grau é
melhor que um de sexto, quando em ambos os À guisa de conclusão
casos temos R2>0,7. Ou seja, ordens cujos É impossível definir um único andamento para
coeficientes estão próximos de zero podem ser cada trecho estudado. Essa parece uma afirmação
desconsideradas sem perda significativa na ousada, mas raros foram os compassos que,
qualidade do ajuste. No caso do exemplo abaixo consecutivamente, sustentaram seus andamentos
pudemos ajustar os pontos à um polinômio de inalterados. Prova disso são os contornos
terceira ordem com um R2 satisfatório. apresentados. Se pudéssemos atribuir um
andamento a determinada música, teríamos uma
linha reta paralela ao eixo X, ou seja, sua função
teria a forma y=b onde b é um número positivo
qualquer. Então para que servem as indicações de
simpósio de pesquisa em música 2006 121
andamento dos compositores? Segundo Botstein, podem influenciar no controle do pulso pelo
elas devem ser lidas no contexto de algum regente.
entendimento de práticas passadas (2005, 2). É importante salientar que uma frase musical
Mas as indicações de andamento de Beethoven oferece poucos dados para que se configure uma
para os scherzos de suas sinfonias não foram as análise de regressão nos moldes estatísticos. A
adotadas por Furtwängler. À exceção do scherzo necessidade de polinômios de ordens elevadas
da sétima sinfonia, os outros andamentos também é um problema. A estatística aceita, com
mantiveram um comportamento médio sempre concessões, ajustes de até terceira ordem. As
abaixo da indicação do compositor. Há muita frases estudadas apresentavam um comportamento
discussão sobre as marcações de andamento de médio de um polinômio de, pelo menos, quarta
Beethoven. ordem. Então, nossas aproximações matemáticas
Se os contornos provaram que não há um não puderam extrapolar as unidades representadas.
andamento definido para cada música, as linhas Outros limites à inferência foram as
de tendência evidenciaram uma relação particularidades agógicas de cada frase. Mesmo
matemática em algumas frases. O sendo consecutivas, suas características
comportamento obtuso de alguns trechos e a diferenciavam suas curvas associadas. As frases
dispersa progressão de outros sugerem que há apresentaram discrepâncias, principalmente, em
fatores, como orquestração e andamento, que seus inícios e fins.

Referências
BOTSTEIN, Leon. History and Performance Practices. The Musical Quarterly, v. 88, n. 1, 2005, p. 1-6.
DODSON, Alan. Performance and Hypermetric Transformation: An Extension of the Lerdahl-Jackendoff
Theory. Music Theory Online, v. 8, n. 1, 2002. Disponível em:
<http://mto.societymusictheory.org/issues/mto.02.8.1/mto.02.8.1.dodson_essay.html> Acesso em 15 de
julho de 2006.
GABRIELSSON, Alf. Music performance. In: DEUTSCH, Diana (org.) Psychology of Music, 2. ed. San Diego:
Academic Press, 1999, p. 501-602.
GABRIELSSON, Alf. Music performance research at the millennium. Psychology of Music, v. 31, n. 3, 2003, p.
221-272.
GOEBL, Werner; DIXON, Simon; DE POLI, Giovanni; FRIBERG, Anders; BRESIN, Roberto; WIDMER, Gerhard.
Sense in Expressive Music Performance: Data Acquisition, Computational Studies and Models, 2005.
Disponível em: <http://www.cp.jku.at/research/papers/Goebl_S2S2_2005.pdf> Acesso em 20 de julho de
2006.
MAZZOLA, Guerino; BERAN, Jan. Rational Composition of Performance. In: KOPIEZ, R. e AUHAGEN, W. (org.)
Controlling Creative Processes in Music. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1998, p. 37-67.
Dahlhaus e a análise de segunda ordem
Antenor Ferreira Corrêa
Universidade de São Paulo

Resumo
Neste artigo tive um duplo objetivo: apresentar a análise de segunda ordem, abordagem esboçada pelo
musicólogo alemão Carl Dahlhaus e explanar a respeito dessa proposição analítica, buscando seu
entendimento e avaliando suas possibilidades de aplicação. Justifica-se essa empreitada pela
disponibilização de conhecimento na disciplina de análise musical, área de estudo indispensável à formação
do músico.
Palavras-chave: Análise musical. Teoria da Música. Harmonia. Estética. Dahlhaus.

Introdução gostaria de ver empregada na confrontação das


O musicólogo alemão Carl Dahlhaus (1928- obras musicais, uma espécie de hermenêutica da
1989) é uma personalidade de grande própria análise musical, ou seja, uma análise de
notoriedade e relevância na história da música. segunda ordem. Esta idéia foi apenas esboçada,
Autor de vastíssima bibliografia (entre estas não merecendo posteriores desdobramentos
alguns verbetes para o Grove’s Dictionary) é textuais. Contudo, acredito que por meio da
considerado uma das maiores autoridades dentre investigação detida de seus escritos e da maneira
os estudiosos que buscaram reunir música e com que apresentou suas análises musicais, seja
filosofia, e seus escritos têm influenciado possível lograr um maior entendimento dessa
músicos e teóricos ao redor do mundo. Embora proposta. E este é, portanto o objetivo deste
seja mais conhecido dos brasileiros pelos seus trabalho: apresentar o conceito dahlhausiano para
textos em estética1, Dahlhaus também realizou análise musical e refletir sobre a mesmo, além de
aprofundadas pesquisas nas áreas de exemplificá-lo com análises realizadas pelo próprio
historiografia, teoria e análise musicais. Um de Dahlhaus e verificar suas possíveis aplicações.
seus livros mais destacados sobre análise musical Dentre a ampla bibliografia considerada, dois
é Analysis and Value Judgment (originalmente livros constituíram-se como a fundamentação
publicado em 1970), em que Dahlhaus discute teórica principal: Analysis and Value Judgment, no
acerca da possibilidade de fundamentar a qual o autor mencionou seu conceito e desenvolveu
apreciação musical em critérios objetivos, tendo, uma série de análises musicais, e Schoenberg and
assim, a análise musical como seu princípio de The New Music, em que a problemática da tradição
sustentação. Este livro é dividido em três partes: versus vanguarda é tratada tendo por base,
Premissas, Critérios e Análises. Na primeira critérios técnicos, estéticos, históricos e poéticos
parte, Dahlhaus se atem à diferenciação entre da linguagem musical.
julgamentos de valor subjetivos e objetivos. No
segundo capítulo, elenca uma série de critérios
Análise de Segunda Ordem
que podem sustentar um juízo estético. Entre
outros, ele discorre sobre princípios formais, Uma análise pode comportar, entre outras,
diferenciação e integração, analogia e finalidades teórica ou estética. Pode ser empregada
compensação, abundância de relações para sustentar a edificação de um sistema2 de
(temáticas, motívicas, etc) e audibilidade. Na organização de fenômenos musicais e, também,
parte final, Dahlhaus oferece uma fundamentar uma apreciação crítica. Dahlhaus
exemplificação de suas propostas ao elaborar conhecia a fundo essas facetas e, além de escrever
críticas estéticas para algumas obras do muito a esse respeito, valeu-se de análises para
repertório, tendo por base sua abordagem promover juízos críticos sobre obras do repertório.
analítica. Também observou que análises realizadas tanto por
críticos quanto por músicos consistiam, em sua
Nesse trabalho, Dahlhaus mencionou en
passant um tipo de abordagem analítica que
2
Uma teoria pode ser pré-condição (é necessário que haja um
1
Talvez isto se deva ao fato de que o único livro de Dahlhaus sistema teórico que norteie a realização de uma análise) e,
traduzido para o idioma português seja, justamente, um também, resultado de análises musicais (quando um modelo
livro de estética: Estética Musical. Lisboa: Edições 70, teórico é obtido pelas deduções efetivadas a partir da análise
1983. direta das obras).
simpósio de pesquisa em música 2006 123
maior parte, de indicações de graus ou de é que possibilita a compreensão dos chamados fatos
funções dos acordes. O plano formal era tratado harmônicos e permite que o entendimento dessas
de modo semelhante, havendo apenas uma relações seja transmitido. No entanto, para a
espécie de relato de seções e regiões tonais consecução teórica não basta apenas indicar os
exploradas pelo compositor. Estes tipos de elementos comuns, mas sim, promover a explicação
abordagens, além de carecer de profundidade, das possibilidades de combinações feitas destes
têm pouca utilização prática. Na opinião de fenômenos. A harmonia não é uma instituição auto-
Dahlhaus não passavam de tautologias já que suficiente, validada em si mesma, ela só tem seus
“frequentemente, análises musicais ou aspectos comunicativo e significativo valorados se
fragmentos analíticos (em sua maior parte estiver amparada por uma teoria que organize e
descrições de harmonias e tonalidades) sofrem torne inteligíveis os fenômenos harmônicos por ela
da obscuridade de suas propostas e contemplados.
consequentemente provocam a suspeita de que Imagine-se, por exemplo, uma análise em que
são desnecessárias” (DAHLHAUS, 1983, p. 9). foram descritos os graus de um determinado
Ao deparar com esses tipos de análises encadeamento harmônico. Uma das possíveis
descritivas, percebe-se que estas revelam mais maneiras de prosseguir para um nível interpretativo
acerca da teoria analítica do que a respeito da posterior seria considerar as relações que os
própria obra. Isto deve-se ao fato da análise acordes mantém entre si e para com o centro
constituir-se de um procedimento taxionômico, tonal, isto é, avaliar sua dimensão sintática. Ao
em que um dado observado é reportado e/ou combinar sons de maneira lógica e expressiva, a
classificado segundo um modelo prévio. Isto fez música liga-se ao aspecto da comunicação,
com que Dahlhaus apontasse para a inutilidade permitindo ser considerada como linguagem,
desse procedimento, porque uma análise não decorrendo dai a possibilidade de ser analisada em
deveria funcionar como demonstração ou prova termos de seus elementos básicos de construção e
de uma teoria nem como tradução para outro estruturação, ou seja, elementos sintáticos.
idioma de uma particularidade da obra. O relacionamento funcional3 já é, de fato,
Argumentava que não bastava apenas isolar e conhecido há tempos por aqueles que empregam o
enumerar os acordes, abstraindo-os de método de análise preconizado por Riemann. Nesta
elementos rítmicos; outrossim, era preciso que o teoria os acordes são considerados segundo o tipo
caráter individual da estrutura e das relações de vínculo que mantém para com a tônica. As
harmônicas fosse “expressamente demonstrado e relações existentes entre as progressões acórdicas,
articulado por uma interpretação da análise: isto é, de acorde para acorde, remontam aos
uma análise de segunda ordem” (p. 9. Grifo postulados de Rameau no seu tratado de harmonia
meu). De outro modo, as análises tornar-se-ão (1722). A noção de progressão de fundamentais
meras aplicações de nomenclaturas ou rotulações implicava que as notas reais escritas no baixo
“que não dizem nada pois são inobjetivas” (p. 9). contínuo não eram as verdadeiras fundamentais dos
Se os elementos observados no plano musical são acordes, pois estes, independentemente de
considerados como fatos ou dados empíricos, encontrarem-se invertidos ou não, possuíam um
deve haver, então, uma interpretação desses baixo (ou nota fundamental natural e racional)
dados. Esta hermenêutica da análise estaria a subentendido. Este baixo implícito, por seu turno,
cargo da análise de segunda ordem, preconizada era o elemento viabilizador das conexões entre os
por Dahlhaus, e indicaria a maneira acordes. Esta formulação de Rameau foi por ele
organizacional subjacente ao relacionamento mesmo denominada de basse fondamentale, que na
desses fatos, sua forma de integração e conexão, visão de Dahlhaus é uma teoria de progressões
seu contexto e seu modus operandi. acórdicas. Note-se a correspondência deste
O problema que se apresenta de imediato princípio com o cartesianismo, que substituía a
é saber como realizar essa interpretação da ordem real pela racional, ficando a cargo da razão
análise. Seria útil, portanto, primeiramente a a competência para organizar as sensações. A
definição de seus termos. Uma análise harmônica diferença entre as propostas de Riemann e Rameau
é uma comparação de um fato constatado com é que este se concentrava nas distintas tendências
um modelo sugerido por alguma teoria. Por que os acordes têm para progredir (descer ou subir
teoria entende-se uma proposição para o uma quinta, por exemplo), enquanto aquele definia
funcionamento, organização e ordenação das
relações existentes nos fatos observados. Nesse
sentido, uma teoria da harmonia, ao propor um 3
Sobre uma análise mais detida do conceito de função ver
modelo de ordem para o relacionamento sonoro, Função e refuncionalização em CORRÊA (2006).
124 SIMPEMUS3

estados ou estatutos harmônicos das tríades (T-


D-S).
Tomando-se como exemplo o Prelúdio n°.
1 (em dó maior) do Cravo bem Temperado de
Bach, observa-se que o mesmo possui uma
concatenação entre acordes baseada,
majoritariamente, em graus conjuntos
diatônicos. A concepção harmônica dessa
movimentação, entretanto, é funcional, pois
sempre faz referência à tônica principal da obra
(dó maior). Mesmo em passagens com ligeiros
afastamentos da tonalidade inicial, em que
ocorrem tonicizações no nível estrutural
secundário (comp. 6, 10 e 12), a idéia básica do
relacionamento harmônico continua,
encontrando sua fundamentação no ciclo de
quintas.
Exemplo. 2: Camargo Guarnieri, Sonata n. 3 para
No relacionamento acórdico, por sua vez, violoncelo e piano, II movimento, compassos 16-28
as conexões ocorrem a partir da movimentação (parte do piano).
linear de entidade para entidade envolvidas na
A partir, principalmente, do pós-romantismo,
passagem em questão. O cromatismo é o agente
o relacionamento funcional foi sendo substituído
de integração desse artifício, já que a condução
pelo acórdico. Não era interesse principal dos
acórdica não implica a primazia de algum pólo
compositores manter vínculos com um único pólo
de atração. Os Prelúdios de números 2 e 4 do
tonal, mas sim, expandir o discurso harmônico por
opus 28 de Chopin são exemplos do
regiões inusitadas, ou seja, explorar tonalidades
relacionamento acórdico, cuja movimentação é
cada vez mais afastadas do ponto de partida. Em
realizada, predominantemente, por meio de
médio prazo, esta tendência conduziria à
cromatismos. No Exemplo 2 é mostrada uma
fragmentação do sistema tonal e impulsionaria o
progressão baseada no relacionamento acórdico.
engendramento de diversos artifícios
Trata-se de uma sucessão iniciada em um acorde
composicionais, como pandiatonicismo; tonalidades
de Fm com sétima no baixo cuja movimentação é
expandida, suspensa e flutuante; atonalidade e
realizada, predominantemente, por meio de
pantonalidade4; entre outros. Essa situação
cromatismos, fazendo com que o sentimento
demandaria a criação de outras proposições
tonal, ou seja, a indução para um pólo de
analíticas para explicar as relações entre as
atração, seja enfraquecido. Nota-se que as
entidades acórdicas, pois estas não mais
harmonias usadas não pertencem exclusivamente
comportavam explicações nos modelos teóricos
ao campo harmônico de Fm, este é estendido
vigentes. Uma questão a ser considerada seria, por
pelo acréscimo de acordes de outras regiões
exemplo, que princípio de base permite a
tonais.
articulação entre entidades acórdicas ou
aglomerados sonoros envolvidos no discurso musical
pós-tonal? Qual a lógica, ou psicológica, subjacente
a essas progressões?
Sobre esse estado de coisas, Dahlhaus verifica
que:

Na Música Nova do século XX, a idéia de processo


Exemplo 1: J. S. Bach, Cravo Bem Temperado, harmônico foi universalmente degradada em
Prelúdio n. 1 em dó maior, compassos 5-19 favor da noção de sistema harmônico, mas sem
(verticalização da movimentação linear). abolir a relação dialética existente entre sistema
e processo. A variação de ênfase é tão
claramente aparente no dodecafonismo de
Schoenberg e, mais especialmente, Webern

4
Sobre uma conceituação mais detida sobre esses
procedimentos ver Estruturações harmônicas pós-tonais
(2006), capítulo 5.
simpósio de pesquisa em música 2006 125
quanto é nos métodos de camadas ou de complementaridade, foi relegado em favor de
estratificação desenvolvidos por Stravinsky. relações acórdicas complementares subjetivas. “O
(DAHLHAUS, 1990, p. 69).
cromatismo dinâmico-processivo é substituído por
uma complementaridade estática-estrutural tais
Enquanto desenvolvimento continuado, o como as existentes entre as notas ou complexo de
discurso harmônico consistiria de um conjunto de notas de uma série dodecafônica:
etapas ordenadas com um objetivo a ser complementaridade cuja característica estética
atingido: a consecução tonal. Além disso, essencial é poder, em princípio, ser revertida no
compreendido historicamente, isto é, no tempo” (p. 70). A possibilidade desta reversão no
conjunto seqüencial do fluxo do pensamento tempo deve-se ao fato de que não há uma
musical, a harmonia deixa transparecer a direcionalidade implícita nos agregados “atonais”
concomitância entre o pensamento de época e as como há no discurso tonal.
modificações ocorridas no decurso temporal. A
É possível notar que Dahlhaus não
passagem de um estágio para outro (por
acreditava no retorno da forma processual:
exemplo, no acolhimento de dissonâncias ou uso
funcional renovado) é entendida linearmente e
não de forma abrupta. Esse percurso teve no Uma posterior objeção à tentativa de reviver uma
cromatismo seu principal elemento dinâmico, forma dinâmica da harmonia é o simples fato de
que a atmosfera de a-historicidade [...] é unida à
expressivo, integrador e impulsionador. Essa
tendência de considerar todas as coisas como
condição processual, no entanto, foi substituída utilizáveis e de jovialmente empilhar camada
pela noção mais perene e atemporal de um sobre camada de um todo heterogêneo
conjunto de elementos interconectados por constituído de diferentes fragmentos estilísticos e
atributos quaisquer, um sistema de interações5. citações. O resultado virtualmente inevitável
disto tudo é um efeito que em Stravinsky foi uma
A dinâmica implícita na resolução de tensões, técnica precisamente calculada que claramente
pelos movimentos de sensível, é suprimida nos estabeleceu suposições estéticas designadas para
sistemas não hierárquicos como o serial, em que neutralizar o elemento processual, mas que no
as doze notas da gama temperada são similares presente geralmente parece não ser mais que um
cego agarramento a uma lata de biscoitos do
no que se refere a primazias funcionais. No
passado (p. 70).
discurso pós-tonal, de um modo geral, a
propensão dinâmica dos cromatismos é nivelada, E ao mesmo tempo admitia a possibilidade
anulando a expectativa gerada pela resolução dos novos complexos acórdicos serem
das tensões cromáticas. Dahlhaus aponta que isto compreendidos intelectual e perceptualmente:
é válido tanto para Stravinsky quanto para
Schoenberg, pois
Certamente, se desejamos fazer justiça estética
ao complexo de técnicas de superposição na
Enquanto a tensão interna do que nós Sagração da Primavera [...], devemos não falhar
chamamos de harmonia estática stravinskyana ao apreciar que a neutralização da funcionalidade
é devido a esse elemento dinâmico suprimido, tonal dos acordes não deve ser entendida como
a harmonia de Schoenberg (como a determinadas (um fato auto-contido que nós
sistematização da técnica dodecafônica pode temos que aceitar pelo que ele é), mas como um
ser interpretada) é conseqüência [...] do procedimento que pode ser compreendido.
cromatismo do Tristão, e similarmente Quando uma tônica é mutilada funcionalmente
representa um fenômeno de neutralização. A por ter uma dominante colocada sobre ela, o
conexão entre acordes, em que um segundo ouvinte deve tornar-se consciente que isto é o
acorde apresenta as notas da escala cromática resultado de um conflito e não apenas um fato
ausentes no primeiro, está baseada sobre o mudo. (p. 69).
princípio da complementaridade, a adição de
partes para compor um todo, e também, sobre
o movimento de sensível nas vozes, ou seja, Essa articulação via complementaridade é
sobre um elemento expressivo e dinâmico demonstrada no exemplo a seguir (Ex. 3).
(DAHLHAUS, 1990, p. 69).

Dahlhaus acrescenta ser difícil identificar


o momento em que esse aspecto dinâmico do
movimento de sensível, que dominou
inicialmente esse tipo de harmonia baseada em

5
O acorde-centro de Scriabin é um exemplo deste tipo de
pensamento harmônico.
126 SIMPEMUS3

Este vínculo absoluto com a historicidade


pode ser demonstrado em várias das análises feitas
por Dahlhaus, porém, a seguir tomarei como
exemplo a análise do Quarteto de Cordas n. 3, opus
30, de Schoenberg.
Dahlhaus, de saída, apresenta uma questão
estética: o conceito schoenberguiano de analogia.
De acordo com esta idéia, todas as partes de uma
Exemplo 3. Webern, Gleich und Gleich. Op. 12,
n. 4, compasso 18.
composição deveriam estar igualmente
desenvolvidas, isto é, nenhum dos parâmetros do
discurso musical devia apresentar menor cuidado na
Fazendo uso de suas formações
sua composição. Os elementos temáticos, por
arquetípicas, Webern apresenta três agregados
exemplo, não receberiam um grau maior de
sonoros (clave de sol, mão direita do piano) que
elaboração em detrimento dos elementos rítmicos.
juntos compõe-se de nove notas do total
Schoenberg, no entanto, era acusado de contraria o
cromático. As três notas ausentes são articuladas
seu próprio princípio, pois os fatores intervalares
na voz mais grave (clave de fá, mão esquerda do
da técnica serial mereciam maior importância que
piano), completando o total cromático. Percebe-
os componentes rítmicos, dinâmicos e formais. Com
se então, que diferentemente da teoria
isso, as composições dodecafônicas acabavam por
funcional, na qual os acordes distinguiam-se e
apresentar um ritmo “tonal” ao lado de formas
relacionavam-se pelas funções que cumpriam (T-
tradicionais.
S-D), nas concepções sistêmicas (sobretudo após
a emancipação da dissonância e conseqüente No Quarteto n. 3, Schoenberg faz uso da
neutralização do dinamismo implícito no forma sonata em ambiente atonal, o que na visão
cromatismo) as relações passam a ser de de Dahlhaus “é um desejo historicamente atrasado
complementaridade e não dialéticas, em que a que não logrará êxito, pois sua substância
formação posterior complementa a anterior ao (tonalidade) foi desintegrada, e a marca da
invés de se opor funcionalmente. Nota-se, esterilidade histórica ou filosófica é o fracasso
também, que a abordagem de Dahlhaus está estético” (DAHLHAUS, 1983, p.83). Ao encontro
sempre atrelada ao entendimento histórico, desse juízo, Dahlhaus oferece uma descrição dos
conforme tratado a seguir. procedimentos técnicos utilizados por Schoenberg,
descrevendo a série, suas inversões e
retrogradações, bem como a maneira como estão
Análise e Contexto Histórico associados às suas respectivas células rítmicas, para
Espécie de consenso entre os biógrafos de ao final concluir:
Dahlhaus é a influência que ele recebeu de duas
escolas do pensamento histórico: “os
historiadores estruturalistas franceses ligados a O princípio básico da forma sonata restaurado pelo
dodecafonismo – após o declínio da disposição
Fernand Braudel e a teoria crítica do círculo de tonal – é o desenvolvimento técnico, a elaboração
Frankfurt” (Robinson, 2000). De acordo com temática, que no Terceiro Quarteto de Cordas,
Robinson, dos estruturalistas Dahlhaus formou contudo, está exposto ao criticismo por ser
sua concepção de história enquanto sucessão de tautológico. Dodecafonismo, a rede de inversões,
transposições e fragmentações da série – o
complexas interações de estratos, enquanto teria
criticismo continua – é em si mesmo nada mais que
emprestado da escola de Frankfurt as imagens de uma conseqüência extrema (e historicamente, o
constelação e de campo de força como princípios último passo) da elaboração temática que na
para a história escrita. Desta escola teria composição com 12 sons, na qual cada nota é
herdado, também, sua atitude analítica, deduzida da série, estende-se no movimento
inteiro ao invés de restringir-se à parte do
desenvolvimento da exposição e ao
desenvolvimento, enquanto seção em si.
que não era empregada primariamente para Elaboração temática, como Theodor Adorno
revelar conexões musicais ocultas em uma obra, expressava, é “pushed back into the material 6”;
mas para sondar a história sedimentada dentro porque a “deformação” do material geralmente
dela. Brilhante analista, Dahlhaus preferia não consiste de elaborações temáticas a todo o
apresentar os passos de suas análises, nem momento, elaboração temática como uma técnica
mesmo os resultados, mas as conclusões específica da composição torna-se uma duplicação
históricas advindas destas descobertas supérflua. A forma sonata, o criticismo continua, é
(Robinson, 2000).
6
Redundar forçosamente no material (composicional).
simpósio de pesquisa em música 2006 127
Considerações Finais
desprovida de substância, porque a única O intuito deste trabalho foi oferecer uma
substância deixada após a dissolução da
tonalidade, ou seja, a elaboração temática, é
abordagem preliminar à proposta de análise de
anulada pela técnica serial propriamente dita – segunda ordem. Esta idéia vem da repulsa, por
antes do ato composicional – e não pode, assim, parte de Dahlhaus, às análises musicais de cunho
ser constitutiva de uma forma particular. meramente descritivo, chamadas por ele de
(DAHLHAUS, 1983, p. 85). tautológicas; assim, na tentativa de dar um passo
adiante, preconiza uma interpretação da análise.
É possível perceber que o teor das
A observação dos modos de relacionamento
preocupações de Dahlhaus antes de
acórdico segundo sua sintaxe serviu como uma
essencialmente técnicos, são históricos,
maneira de dar prosseguimento às análises. Neste
buscando avaliar não só os artifícios
sentido, a explanação sobre a substituição ocorrida,
composicionais empregados pelo compositor,
principalmente no século XX, da concepção
mas, sobretudo, a correspondência entre esses
harmônica processual pela sistêmica mereceu uma
elementos e a época de onde surgiram. Do
apreciação mais detida. A seguir, a descrição
mesmo modo que é válido indagar a respeito dos
sumária do atrelamento histórico intrínseco ao
motivos que levaram Ravel a compor uma valsa
discurso analítico de Dahlhaus, também se
em 1919, é lícito questionar o uso das formas
apresentou como um importante material para
tradicionais em ambientes atonais. E esse tipo de
ampliar o entendimento musical ao encontro do
questionamento é uma constante nas análises de
compreensão da hermenêutica da análise, ou seja,
Dahlhaus.
da análise de segunda ordem.

Referências
CORRÊA, Antenor Ferreira. Estruturações harmônicas pós-tonais. São Paulo: Editora da Unesp, 2006.
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ROBINSON, J. Bradford. “Carl Dahlhaus”. Grove Music Online. 2000. Disponível em: <www.grovemusic.com>
O uso do cromatismo como gerador de unidade na
mazurca op. 68 de Frédéric Chopin
Mauricy Martin e Tarcísio Gomes Filho
Universidade Estadual de Campinas

Resumo
O presente artigo realiza um recorte enfocado na análise da Mazurca op.68 n.3 em Fá maior de Frédéric
Chopin (1810 – 1849), considerada por historiadores como a sua última obra. Tem como objetivo demonstrar
como o compositor, utilizando o cromatismo, trabalha a unidade estrutural da peça. Este trabalho é parte de
outro maior e fruto da parceria, em desenvolvimento, entre professor e orientando no curso de Doutorado
em Música da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, na linha de Práticas Interpretativas, na qual
outras peças do repertório pianístico e tipos de análise são pesquisados. Trabalhos de Arnold Schoenberg e
Ralph Turek subsidiam os comentários analíticos, e estes apontam para questões referentes à estrutura
formal, harmonia e caracterização das linhas melódicas. A conclusão destaca informações obtidas pela
análise e que contribuem para um melhor entendimento da obra.
Palavras-chaves: Chopin, Mazurca, Análise, Harmonia.

Introdução tonalidade, foi sendo explorada exaustivamente


fazendo com que os compositores românticos
Devemos a Chopin a extensão dos acordes, fossem trilhando um percurso que, por fim, os
sejam plaqués, arpejados ou em bateria, conduziu até o limite extremo do sistema tonal.
aquelas sinuosidades cromáticas e enarmônicas
das quais suas páginas oferecem exemplos tão
A Mazurca em fá menor op. 68 de Frédéric
surpreendentes, aqueles pequenos grupos de
Chopin é um bom exemplo desta prática da
notas justapostas que caem como gotas de
orvalho matizando sobre a figura melódica. inserção do cromatismo na harmonia. Esta peça foi
– F. Liszt escrita em 1844, o mesmo ano da morte do
compositor, por isso, historiadores acreditam que
Muito embora o chamado Período esta tenha sido a sua última composição. Neste
Romântico na Música tenha nascido sob bases Opus são ao todo quatro peças, as Mazurcas n.1 em
sólidas do tonalismo, herdadas da tradição de Dó maior (1829), n. 2 em Lá menor (1827) e n.3 em
Bach e Rameau, uma das maiores características Fá maior (1829) e n.4 em Fá menor (1844).
no que se refere à estrutura de suas obras é a Chopin escreveu 55 Mazurcas para piano,
utilização da harmonia cromática. Esta caracterizadas por um cromatismo rebuscado e
utilização apontou para um caminho de fluidez do movimento harmônico. Algumas possuem
descaracterização da pureza das tonalidades certo conteúdo de virtuosismo e reminiscências de
clássicas pelo seu uso cada vez mais progressivo harmonia e melodia de origens populares, muito
em explorações harmônicas com acordes embora não tenha feito nenhuma citação direta das
alterados e pela ampla liberdade de modulações. danças polonesas. Segundo o pianista e musicólogo
Segundo estudos de Ralph Turek em “The Charles Rosen, “As Mazurcas representam a
elements of music – concepts and applications”1 suprema realização de Chopin com a pequena
esta situação foi gerada pelos seguintes compor- forma, tal como o são as Baladas em relação a
tamentos: mistura de modos; acordes de função grande forma” (ROSEN, p. 605).
enarmônica; expansão da tonicização (longas
áreas de funções secundarias) e harmonias Análise
lineares. Com estes procedimentos as mudanças A Análise da peça está enfocada em três
de planos tonais ocorriam de maneira mais parâmetros: Macroestrutura, Harmonia e Linhas
brusca que no classicismo, as modulações Melódicas. Em “Macroestrutura” relata-se sobre a
incidiam entre tons cada vez mais distantes e a distribuição das Seções em comparação com
utilização dos acordes de sétima diminuta, que número dos compassos e Centros Tonais;
permitem modular a praticamente qualquer “Harmonia” trata do uso dos acordes, cadências e
progressões e em “Linhas Melódicas” discorre-se
sobre as características dos contornos melódicos e
1
TUREK, Ralph. The elements of music – concepts and do cromatismo utilizado.
applications. New York: McGraw-Hill, 1996.
simpósio de pesquisa em música 2006 129
Macroestrutura
As Seções que compõem a Mazurca estão
mencionadas na tabela a seguir com os seus
respectivos compassos e Centros Tonais,
explicitando também o uso da harmonia
cromática pela relação entre as tonalidades.

Seção Compassos Centro Tonal


Exemplo 2. Compassos 6 –7
A 1-8 Fá menor
A’ 9-14 Fá menor Em relação aos acordes utilizados, A Seção A’
B 15 – 23 Lá Maior
apresenta acordes em mutação2 e uma harmonia
linear como mostra a figura a seguir:
C 24-31 Dó menor
Transição 32-40
A Da capo
A’

Tabela 1. Seções da mazurca

Harmonia

Seção A
A Seção A inicia com uma ambigüidade
tonal, uma vez que a nota dó, na qual a melodia
é introduzida, pode ser ouvida como tônica ou
como dominante. Além disso, a entrada dos
acordes no segundo tempo ainda não produz uma
sensação de estabilidade harmônica, uma vez o
compositor utiliza o acorde na primeira inversão.

Exemplo 1. Compassos 1 e 2

Esta ambigüidade tonal permeará toda a


Figura 1. Acordes em mutação e Harmonia linear.
obra. Somente no compasso 23 aparecerá uma
cadência perfeita em Fá menor. A tonalidade é
Seção B
sugerida nos compassos 6-7 pelo movimento da
A Seção B possui o centro tonal em Lá Maior
linha do baixo, delineando uma progressão V- i.
estabelecendo, desta maneira, um distanciamento
em relação à tonalidade principal.

2
Termo utilizado por Ralph Turek “Chord Mutation” para as
alterações cromáticas que vão ocorrendo, simultaneamente,
em um determinado acorde durante uma passagem musical
(TUREK, 1996, p.242).
130 SIMPEMUS3

Exemplo 4. Compassos 23 - 31
Exemplo 3. Compassos 15-20
Linhas melódicas
Na tabela 1, apresentada no inicio do Na Seção A, ao analisar as notas dos primeiros
trabalho, verifica-se que a Seção B está, segundo tempos de cada compasso na linha do soprano e os
Schoenberg,3 em um centro tonal indireto. acordes da linha do baixo, é possível visualizar uma
Utilizando o “Quadro de Regiões em Menor,” do passagem cromática descendente. Com isso Chopin
mesmo autor, conclui-se que se trata da região reforça a ambigüidade tonal estabelecida no
da mediante maior aumentada, como mostra a primeiro compasso.
figura a seguir4.

Exemplo 5. Compassos 1 – 7

Na Seção A, o desenho cromático é


ornamentado principalmente por intervalos de
segundas ascendentes e descendentes, conferindo à
linha do soprano um contorno mais linear. Este
mesmo desenho cromático é utilizado na seção A’,
Figura 2. Quadro de Regiões em Menor de Schoenberg. porém variado por meio do uso de intervalos mais
amplos, alterando a linearidade do contorno
Seção C melódico.
A Seção C é harmonicamente mais estável
que as anteriores. Na linha do baixo verifica-se a
progressão V - i (dó menor) apresentada duas
vezes, o que lhe reforça a estabilidade
harmônica (c. 26-27, 28 – 29).

3
SCHOENBERG, Arnold. Funções estruturais da harmonia. São
Paulo: Via Lettera, 2004.
4
No quadro de Schoenberg entende-se por: m = Mediante
menor, sm = Submediante menor, Sub T= Subtônica, M = Exemplo 6. Compassos 9-14
Mediante maior, SM = Submediante maior, v = Quinto
menor, t = Tônica menor, sd = Subdominante menor, D =
Dominante, T=Tônica, SD = Subdominante, m# = Mediante A Seção B apresenta um desenho cromático
menor aumentada, sm# = Submediante menor aumentada, ascendente e apesar do material utilizado se
M# = Mediante maior aumentada, SM# = Submediante
maior aumentada e NP = Napolitana (SCHOENBERG, 2004, configurar em Lá Maior, distante da tonalidade
p.38 - 49). original, possui a mesma extensão da Seção A.
simpósio de pesquisa em música 2006 131
dominante. Neste momento, com um “da capo”
indicado há um retorno à seção A.
É interessante também observar o contorno
melódico predominante nas seções:

A – conjunto
A’ - disjunto
B – conjunto
C – disjunto
A – conjunto
A – conjunto
Exemplo 7. Compassos 15-20 A’- disjunto

Na Seção C o material melódico apresenta Por fim é importante verificar os desenhos


cromatismo mas em uma dimensão bem menor cromáticos utilizados nas diferentes seções desta
que antes. Melodicamente, assemelha-se à Seção mazurca e que deram portanto unidade estrutural e
A’, isto é , o contorno melódico em segundas. melódica a obra.
Com esta Seção mais estável é criado um maior
impacto para a chegada da Transição no
compasso 23. A chegada à Transição é realizada
por meio do uso do desenho cromático da Seção
B mas em retrógrado no contralto.

Exemplo 8. Compassos 30-34

Na linha do soprano verifica-se o seguinte Figura 3. Desenhos cromáticos


desenho delineado: sol- fá# - mi – mib- ré- réb-
dó- si - lá – láb e na linha do contralto : dó – si – Conclusão
sib – lá – láb- sol - fá# - fá. O estudo de análise da Mazurca Op.68 em Fá
menor de F. Chopin permitiu um conhecimento
mais profundo sobre a peça, demonstrando tam-
bém a sua coerência estrutural. Conclui-se que o
compositor utilizou uma harmonia cromática e
linear realizada por meio da mutação de acordes e
da enarmonia.
Outros pontos importantes são o uso do
acorde de tônica na segunda inversão, gerando uma
ambigüidade tonal, logo no inicio da peça, e a
presença de quatro desenhos cromáticos que
articulam as seções fortalecendo e dando
Exemplo 9. Compassos 32-40 inteligibilidade à organização total da Mazurca. São
apresentados três desenhos descendentes e um
Ao aproximar do fim da Transição (c.40) ascendente, ficando então a estrutura da peça,
Chopin escreve um acorde de Fá menor (Tônica) delineada pela presença destes quatro desenhos
mas na segunda inversão. Então mesmo aqui, a cromáticos.
ambigüidade tonal continua uma vez que o
acorde 6/4 funciona harmonicamente como
132 SIMPEMUS3

Referências
ATWOOD, William G. The Parisian worlds of Frédéric Chopin. New Haven CT: Yale University Press, 1999.
BRANCO, João de Freitas. Chopin: um improviso em forma de diálogo. Lisboa: IST PRESS, 1999.
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POURTÀLES, Guy. Vida de Chopin. (Trad. Aristides Ávila). São Paulo: Cultura Brasileira, 1955.
ROSEN, Charles. A geração romântica. (Trad. Eduardo Seincman). São Paulo: EDUSP, 2000.
SCHOENBERG, Arnold. Fundamentos da composição musical. (Trad. Eduardo Seincman). São Paulo: EDUSP,
1991.
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STOLBA, K. MARIE. The development of Western music: a history. Dubuque, IA: Brown & Benchmark, 1994.
TUREK, Ralph. The elements of music: concepts and applications. New York: McGraw-Hill, 1996.
Poucas Linhas de Ana Cristina de Silvio Ferraz: a performance da clarineta e
suas transformações em contexto eletroacústico
Flávio Ferreira da Silva, Maurício Alves Loureiro, Sérgio Freire
Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo
As transformações musicais ocorridas durante o século XX exerceram grande influência sobre a Performance
Musical. O surgimento da gravação musical transformou a performance principalmente pelas alterações
provocadas na escuta e nos padrões de referência. A música eletroacústica mista trouxe importantes
novidades como a interação com sistemas eletrônicos e alto-falantes, necessidade da manipulação de
interfaces pelas quais o intérprete controla a eletrônica e a exigência da compreensão da parte eletrônica
não notada. A peça Poucas Linhas de Ana Cristina, para clarineta e eletrônica, de Silvio Ferraz pode ser
tocada com e sem eletrônica e foi utilizada neste trabalho como objeto para observação das diferenças que
o intérprete encontra ao tocar em contexto eletroacústico. Através da análise da eletrônica e de sua relação
com a clarineta podemos observar e apontar elementos como articulação, dinâmica e duração de notas
longas que devem receber tratamentos distintos em ambas as situações.

Introdução que originalmente indicava que melhor seria a


O século XX foi um período marcado por gravação quanto mais ela fosse fiel a uma
transformações tecnológicas que tiveram grande performance ao vivo, agora se torna reflexivo,
influência em todas as áreas do fazer musical, comparando a reprodução com os próprios padrões
entre elas a performance. A possibilidade de gra- da indústria de gravação (IAZZETTA, 1997). Para
vação sonora permitiu a captura do som, levando Chanan (1995), outro ponto importante é que os
a outras formas de abordagem do material acús- intérpretes passaram a ouvir suas performances
tico e posteriormente a uma nova estética assim como os outros o ouvem, alterando a sua
musical denominada música eletroacústica. A referência e a sua interpretação. Além disso, a
utilização de materiais tradicionalmente possibilidade de edição de gravações permitiu a
considerados não musicais, a atuação alteração de velocidades e correção de erros como
diretamente na matéria sonora sem a pequenas desafinações, a gravação individual de
intermediação da notação e do intérprete e a instrumentistas e de trechos musicais curtos,
exploração do interior do som, extrapolando o fazendo com que estas gravações atingissem um
nível da nota musical, são as principais nível de perfeição acima do normal e se tornassem
características desta nova estética. A inclusão do referência para os intérpretes em suas
instrumento tradicional neste novo contexto performances ao vivo.
musical, originando a música eletroacústica Outras alterações foram trazidas para a
mista, passou a exigir novas habilidades do performance a partir de 1952 pela música eletro-
intérprete instrumentista como a interação com acústica mista com a peça Musica su Due
sistemas eletrônicos e alto-falantes, a Dimensioni, para flauta, pratos e fita magnética,
manipulação de interfaces para controle da de Bruno Maderna. A interação com sistemas
eletrônica e a compreensão de elementos eletrônicos e com alto-falantes, a sincronização
musicais não notados realizados pela eletrônica. com partes pré-gravadas, a manipulação de
As primeiras transformações trazidas pelas dispositivos e o controle do resultado sonoro
tecnologias eletrônicas à área de Performance acrescentam peculiaridades à performance. Para
Musical remontam-se à época do surgimento da Mari Kimura (1995), o instrumentista é responsável
gravação musical devido, principalmente, as por todo o resultado sonoro do concerto. No
alterações sofridas pela escuta musical. Segundo entanto, sabemos que é quase impossível para o
Iazzetta (1997), com o início da gravação instrumentista que está no palco ter um pleno
comercial, a indústria de gravação direcionou-se conhecimento do resultado sonoro que chega ao
ao ouvinte, criando seus próprios padrões de público, o que demanda o auxílio de um técnico de
recepção. Com o aumento do consumo de som. Outro ponto considerado por Kimura é a
gravações, as pessoas passaram a ouvir música interação com partes pré-gravadas ou com
em casa, desvinculando-a da performance, o que eletrônica ao vivo, principalmente no que se refere
alterou o conceito de fidelidade. Este conceito, ao tempo. As músicas com partes pré-gravadas
apresentam uma inflexibilidade temporal que
134 SIMPEMUS3

obriga o intérprete a tocar em tempos muitas


vezes desconfortáveis, dispersando sua atenção
de outros aspectos musicais, como o resultado
sonoro, por exemplo. As peças com eletrônica ao
vivo ou sistemas interativos permitem maior
flexibilidade temporal, mas exigem do intérprete
outras habilidades como a manipulação de
dispositivos ao mesmo tempo em que toca o seu
instrumento. Porém, tanto nas músicas com
Figura 1. Dispositivo de Fairbanks, Everitt e Jaeger.
partes pré-gravadas quanto nas músicas com
eletrônica ao vivo ou sistemas interativos é
Quatro leitores instalados em um cilindro
necessário que o intérprete tenha uma boa
giratório processam a transposição a partir da
compreensão do resultado sonoro da eletrônica.
velocidade relativa entre gravação e leitura
Para isso, é necessário um sistema de análise que
resultante da rotação do cilindro, cuja direção
compreenda a parte da eletrônica e o resultado
determina a transposição ascendente ou descen-
sonoro de sua união com o instrumento.
dente (a Figura 1 mostra um exemplo com dois
A peça Poucas Linhas de Ana Cristina, para leitores). Se o cilindro gira em direção contrária à
clarineta e processamento eletrônico ao vivo, de fita, a velocidade relativa aumenta, alguns trechos
Silvio Ferraz (1999) desperta o interesse sobre as da fita são lidos mais de uma vez e a transposição é
diferenças da performance instrumental em ascendente. Se ele gira na mesma direção da fita, a
contexto eletroacústico, pois ela pode ser tocada velocidade relativa diminui, alguns trechos não são
com ou sem eletrônica sem nenhuma alteração lidos e a transposição é descendente. A
na partitura da clarineta. Nossa hipótese é que implementação digital deste dispositivo utiliza uma
alguns aspectos como dinâmica, articulação e linha de atraso variável (variable delay), que
velocidade, entre outros, devem ser tratados de funciona como uma memória que recebe dados de
forma diferente na presença/ausência da um apontador de entrada (input pointer) e
eletrônica. Neste trabalho apresentaremos uma armazena estes dados por um tempo até enviá-los a
análise da eletrônica e sua relação com a parte um apontador de saída (output pointer). Numa
da clarineta no discurso musical, identificando as linha de atraso variável, o apontador de saída ora
diferenciações na realização de aspectos se aproxima, ora se afasta do apontador de
específicos da performance nas duas versões. entrada, variando o tempo de atraso, o que simula
o giro do cilindro do dispositivo de Fairbanks,
Poucas Linhas de Ana Cristina Everitt e Jaeger.
O processamento eletrônico Uma diferença constante entre as velocidades
A eletrônica da peça Poucas Linhas de Ana de entrada e de saída resulta numa transposição
Cristina foi desenhada por Silvio Ferraz em fixa do sinal original. Este é o tipo de operação
ambiente Max/MSP para processamento do som realizada pelo objeto Max/MSP denominado
da clarineta em tempo real e sua principal harmv2, cuja linha de atraso é construída com os
interferência no som instrumental é a objetos MSP tapin (apontador de entrada) e tapout
transposição de alturas e a formação de melodias (apontador de saída). O tapout é controlado por um
em contraponto. Para isso, o autor utiliza três oscilador dente-de-serra gerado pelo objeto
harmonizers em paralelo, uma ferramenta que phasor. A freqüência ph do phasor, para um dado
transpõe a altura de um som em tempo real sem intervalo de transposição ∆f é calculada por
alterar sua duração (ROADS, 1996, p. 444). O ph = ± ∆f fw , onde w é o tamanho da janela de
exemplo mais antigo de harmonizer é o
leitura e f a freqüência do sinal. A linearidade
dispositivo de Fairbanks, Everitt e Jaeger,
deste tipo de oscilador garante uma transposição
implementado em um gravador de fita magnética
para o intervalo definido. A direção da transposição
(Figura 1). Seu funcionamento pode servir como
é oposta ao sinal da freqüência do phasor, ou seja,
uma ilustração para a compreensão dos
quando a freqüência é negativa, o tapout se
algoritmos utilizados atualmente em
aproxima do tapin, o tempo de atraso diminui e a
processamento digital de sinais (LAROCHE,
transposição é ascendente. Quando a freqüência do
1998).
oscilador é positiva, indo de 0 a 1, o tapout se
afasta do tapin, o tempo de atraso aumenta e a
transposição do sinal de áudio é descendente. Para
simular a alternância dos leitores no cilindro, este
simpósio de pesquisa em música 2006 135
harmonizer utiliza dois tapout defasados em 180º 1962; MOORE, 1990 e ROADS, 1996). Este
e multiplicados por uma função de amplitude, reverberador tem como objeto principal o newverb,
responsável pela suavização das emendas (fade- que simula o efeito natural de uma sala com as
in e fade-out) e pela continuidade do sinal de primeiras reflexões e reverberação difusa. Este
saída. Miller Puckette (2006), diz que neste tipo objeto trabalha com dois valores controláveis: o
de transpositor, o oscilador dente-de-serra volume de saída do reverb (segunda entrada) e a
executa duas funções: (1) controlar o tempo de sua duração (terceira entrada). No patch aqui
leitura na linha de atraso e a transposição daí analisado, estes valores podem ser controlados
decorrente; e (2) controlar o envelope de ampli- manualmente pelo usuário ou podem funcionar
tude. O objeto harmv2 trabalha com quatro automaticamente. A programação destes presets é
entradas (inlets): (1) entrada do sinal de áudio; feita a partir de um algoritmo que faz com que o
(2) valor da transposição, que pode variar de tempo de duração do reverb seja móvel, tendo
duas oitavas abaixo a duas oitavas acima (-2400 a valores pré-determinados para duração inicial e
2400 cents); (3) tamanho da janela de leitura da duração final em cada preset. Estes valores são,
linha de atraso (window size); (4) tempo de então, utilizados para a produção de uma rampa
atraso entre o som direto e o processado. que vai do valor inicial ao valor final de duração. O
No patch da peça Poucas Linhas de Ana mesmo algoritmo que controla a duração é
Cristina, o som é transposto em tempo real por utilizado também para o volume de saída do
três harmonizers harmv2 em paralelo. O valor de reverberador, tornando-o dependente da duração
transposição pode ser fixo, determinado nos (última entrada) e do volume geral (penúltima
sliders de transposição da tela principal, ou entrada). O subpatch responsável pela
móvel, utilizando um algoritmo que gera três reverberação tem três saídas: a primeira controla a
valores de transposição, um para cada duração do reverb, a segunda desliga o volume
harmonizer. A transposição móvel pode ser geral no final da peça e a terceira controla o
automática, através de valores pré-determinados volume do reverb. Depois de reverberado, o som é
(presets), ou manipulada em tempo real pelo enviado para a saída e para o espacializador
usuário. A transposição móvel pode ocorrer por espaco, capaz de operar a dois e a quatro canais.
glissando ou formar melodias (subpatches O processamento da peça opera com dez
deslizador e saltador, respectivamente), sendo programações (presets), sendo que nove deles
ambas randômicas. Para a geração dos três controlam os parâmetros da transposição e do
valores de transposição, são utilizados três reverb ao longo da peça e o décimo é responsável
saltadores e três deslizadores. O deslizador por desligar o volume geral no final.
realiza uma transposição em glissando criando
uma rampa que vai de 0 a 4800 cents (quatro
A clarineta e a eletrônica
oitavas). Durante o glissando ascendente,
algumas intervenções descendentes ocorrem, É importante que a análise musical observe
mas em média a subida é predominante. Para tanto a partitura quanto a relação do instrumento
manter o caráter de transposição contínua, o com a eletrônica para uma melhor compreensão do
deslizador é utilizado em apenas um momento resultado sonoro desejado pelo compositor. Como
da música (preset 5) onde a clarineta toca duas Poucas Linhas de Ana Cristina pode ser tocada com
notas muito longas e frases lentas, como ou sem a eletrônica, são necessárias diferentes
veremos mais adiante. Durante as notas longas, a posturas do intérprete nas performances das duas
eletrônica realiza um longo glissando e em versões.
contraponto às frases lentas são realizadas O início da peça cria um estatismo tenso
pequenas desafinações. O saltador realiza uma através da repetição da terça menor Sol – Mi1 em
transposição móvel não contínua, formando uma rítmica movida com pequenas variações e
“melodias” que atuam em contraponto com a dinâmica pp. Ao longo desta repetição, o Sol é
clarineta, para as quais existem duas substituído por um Lá bemol e a tensão desemboca
possibilidades rítmicas, ryth1 e ryth2, que em uma seqüência de escalas acentuadas com
podem ser manipuladas na tela principal do dinâmica mp que conduzem a um maior dinamismo
patch e que controlam a quantidade de valores (Figura 2). Enquanto isso, a eletrônica, em seu
de transposição gerada pelo saltador: quanto
mais valores gerados, mais rápida a melodia. 1
Como a peça foi escrita para clarineta em Sib, os nomes de
Terminado o processo de transposição, o nota citados no texto se referem às notas escritas, ou seja,
soam uma segunda maior abaixo. Para nos referirmos às
som é enviado para um reverberador no subpatch notas, utilizaremos a nomenclatura que considera o Dó
reverb (sobre reverberadores cf. SCHROEDER, central (261 Hz) como Dó 4.
136 SIMPEMUS3

primeiro programa, realiza o processamento sem transposição (window size), o que gera uma espécie
defasagem entre o som direto e o processado de eco. Como a clarineta tem notas mais longas do
(delay = 0) e utiliza os três saltadores com ryth1, que no início, ao invés dos blocos sonoros iniciais,
formando blocos sonoros a partir da transposição podemos ouvir pequenas melodias criadas pela
do som da clarineta e gerando uma massa sonora eletrônica que fazem contraponto com a clarineta.
disforme com grande densidade textural. Em Comparando-se estes dois momentos, percebe-se
seguida, a clarineta retorna à repetição da terça uma diferenciação de graus de importância da
inicial, que leva a um segundo momento da eletrônica no resultado sonoro final. Se
peça, menos movido e que passa a explorar o inicialmente a massa textural da eletrônica deve
registro agudo da clarineta. Neste trecho, a permanecer em segundo plano, permitindo a
parte da clarineta apresenta uma polifonia clareza do movimento interno criado pela
virtual em dois planos, um construído a partir da clarineta, no segundo momento, a eletrônica forma
terça menor inicial em três oitavas diferentes e o melodias que dialogam com a parte instrumental,
outro a partir de um cromatismo que vai do Fá passando para um plano de igualdade com a
sustenido 6 ao Lá bemol 6 no registro agudíssimo, clarineta. Apresenta-se aqui uma diferenciação
tudo em uma dinâmica que varia de pp a mf, significativa entre as versões com e sem eletrônica,
como pode ser visto na Figura 3. Aqui a devido ao maior cuidado que deve ser observado
eletrônica já executa o seu segundo programa, com o equilíbrio de intensidade entre as notas
cuja única alteração em relação ao primeiro é agudas acentuadas da clarineta e as melodias da
um grande aumento no tamanho da janela de eletrônica.

Figura 2. Início da peça com repetição da terça menor, desembocando nas escalas acentuadas.

Figura 3. Polifonia em dois planos da clarineta.

Em seguida, passa a ser explorada uma (ms) e os saltadores têm velocidades e taxas de
sonoridade da clarineta que aparece pela transposição diferentes, o que faz com que eles
primeira vez no trecho da Figura 2: um som sejam mais independentes e gerem melodias
multifônico onde o instrumentista canta uma diferentes das do programa 2. Neste caso, o
nota ao mesmo tempo em que toca outra. Aí, intérprete deve atentar-se para que, durante os
inicialmente o clarinetista toca estes multifônicos longos, as melodias da eletrônica
multifônicos longos em dinâmica ppp e, em apareçam com clareza em plano principal, e que,
seguida, uma melodia com bastante exploração durante a melodia microtonal, ela passe para
microtonal, que é uma citação da peça Ninphea segundo plano como uma massa textural aguda que
para oboé solo do mesmo compositor. acompanha a melodia. O trecho das escalas
Simultaneamente, a eletrônica executa o seu acentuadas da Figura 2 retorna, mas agora com
terceiro programa que apresenta diferenças em algumas modificações influenciadas por elementos
relação aos dois anteriores: o som processado que apareceram no decorrer do percurso musical,
aparece com um atraso de 360 milissegundos tais como as variações microtonais (Figura 4).
simpósio de pesquisa em música 2006 137
Identifica-se aqui uma intenção clara do entre as duas possibilidades de performance. No
compositor de retornar a momentos que, caso de performance com eletrônica, as notas da
baseado na filosofia de Gilles Deleuze, ele clarineta devem ter uma duração tão longo quanto
denomina de território. (FERRAZ 1998a; 1998b; o necessário para uma boa realização do glissando,
2005). Para Silvio Ferraz, o importante em uma para que ele seja percebido com clareza, mas
composição musical é a criação destes podem ser mais curtas quando tocadas sem a
territórios, que trazem diferentes tipos de eletrônica. Após este glissando, uma melodia ainda
sensação. O território é um centro estável em estática e cíclica é tocada pela clarineta enquanto
torno do qual a peça gira e que deve ser a eletrônica funciona realizando pequenas
retorcido e deformado, deve conduzir a outras desafinações ainda em caráter de glissando,
sensações e tornar-se outro território, e depois passando novamente para segundo plano.
retornar como o território inicial, mas
deformado. A similaridade destas escalas
(Figuras 2 e 4) e de mais outra que será vista
mais adiante sugerem a formação de um
território, sendo os demais elementos
deformações e incrustações que interferem na
sua estabilidade.
Figura 5. Terça menor inicial construída a partir de um
espelho rítmico que pode ser observado comparando a
e b.

Figura 4. Retorno das escalas da figura 2.

Logo após estas escalas, o próximo


momento (Figuras 5a e 5b) é uma clara
deformação do movimento de terça menor do Figura 6. Última escala do território.
início da peça. Suas principais características são
a complexidade rítmica permeada de pequenas Na última seção, que aparece como última
transformações com apojaturas que dificultam conexão deste território, a parte da clarineta é
sua realização e compreensão e a construção baseada principalmente nas notas Mi 3, Mi 4 e Mi
rítmica a partir de espelhos. Neste momento, o bemol 5, mas a escala completa utilizada para a
quarto programa da eletrônica apresenta um sua construção pode ser vista na Figura 8. Apesar
aumento considerável do tamanho da janela de do aparente estatismo pela insistência do Mi, uma
transposição (de 218 ms no programa 3 para 797 movimentação é criada através de acentuações
ms) e do tempo de atraso (de 360 ms para 1672 irregulares e de efeitos como slap (som parecido
ms), mantendo os mesmos valores do programa 3 com um estalo de língua com altura definida),
para as variáveis dos saltadores. A fusão do frulato (som bastante rugoso de altura definida) e o
atraso digital com os efeitos de eco produzidos multifônico já mencionado. A eletrônica retorna
pelo tamanho da janela gera uma profusão aos saltadores, todos com a mesma velocidade de
sonora que se acumula pouco a pouco, criando transposição (ryth1), e anula o atraso digital (delay
uma massa textural crescente. A terceira escala = 0), voltando à massa textural do início. No
do território mencionado (Figura 6) surge no programa 7, a eletrônica volta a utilizar
meio desta textura crescente e, como as duas velocidades de transposição diferenciada nos
anteriores, é seguida por um grande dinamismo saltadores e, pela primeira vez, apresente valor
ainda mais tenso que nos leva à última para realimentação (feedback = 0,43),
incrustação, que traz uma grande estatismo transformando o atraso digital em um pequeno eco.
(Figura 7). Neste momento, a eletrônica, O programa 8 utiliza um atraso digital de 666 ms
executando o programa 5, deixa de usar os que somado à grande movimentação da clarineta
saltadores e passa para os deslizadores, cria novamente uma tensão que culmina numa
realizando, durante as duas notas extremamente explosão em fff (Figura 9), onde a eletrônica volta
longas da clarineta, um grande glissando a fazer melodias em diálogo com a clarineta.
predominantemente. Aqui a eletrônica passa Novamente, mesmo estando em fff, a dinâmica das
para o plano principal, ficando as notas da notas acentuadas devem permitir a clareza das
clarineta como suporte para os glissandos. Este melodias da eletrônica.
trecho mostra uma diferenciação significativa
Figura 7. Notas longas e melodia cíclica da clarineta.

Figura 8. Escala utilizada para a construção na última seção da peça.

Figura 9. Notas acentuadas que dialogam com a eletrônica no final da peça.

Conclusão falta de uma prática freqüente com eletrônica pode


O principal objetivo é descrever a análise comprometer a compreensão musical e prejudicar a
da peça Poucas Linhas de Ana Cristina, performance. Como podemos ver nesta análise da
observando a relação entre a eletrônica e a peça Poucas Linhas de Ana Cristina, o estudo
clarineta e os pontos que apresentam também da eletrônica é essencial na observação de
diferenciações entre as performances com e sem elementos como dinâmica, articulação e duração
eletrônica. Nas músicas com eletrônica ao vivo de notas longas que devem ser tratados de forma
uma das principais dificuldades é que para a para diferenciada ao serem tocados com e sem a
a realização da eletrônica, um maior contato do eletrônica. Pretendemos ainda realizar uma análise
intérprete com a eletrônica é necessário, a partir dos resultados sonoros das versões para clarineta
de um maior conhecimento e habilidade de solo e para clarineta e eletrônica com a finalidade
manipulação do equipamento e software de observar as diferenciações entre as sonoridades
específicos envolvidos. Mesmo podendo estudar resultantes nas duas versões.
individualmente a partitura do instrumento, a

Referências
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v. 10, n. 3, 1962.
Transformações e funções motívicas: uma análise do enérgico – 1º movimento
da Sonata Breve para piano de Oscar Lorenzo Fernandez
Maria Bernardete Castelan Póvoas
Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo
Este artigo faz parte de uma pesquisa maior que abrange a análise global da Sonata Breve para piano (1947)
de Oscar Lorenzo Fernandez. A escolha desta obra justifica-se em dois aspectos: a relevância do material
nela contido para o aprofundamento de questões estruturais e musicais, e a carência de estudos analíticos
sobre as composições do compositor supracitado. O objetivo deste estudo foi levantar aspectos analíticos
sobre a utilização do motivo em uma obra musical e mostrar a estrutura do primeiro movimento da sonata, o
Enérgico, visando sua realização instrumental. A estrutura do Enérgico foi determinada a partir do exame de
um motivo básico. Foram destacados e analisados elementos derivados e recapitulados, e discutidas relações
os contextos: melódico, rítmico e harmônico decorrentes de modificações e transformações do motivo. Como
referencial teórico, optou-se por realizar a análise a partir das teorias variação progressiva e transformação
temática de Arnold Schoenberg e Rudolf Reti, respectivamente. A análise revelou que o motivo básico é
gerador do desenvolvimento do Enérgico e fator de unidade estrutural. Os resultados da análise mostraram
que a compreensão da estrutura de uma composição é essencial para a sua interpretação e realização
músico-intrumental. Com este trabalho pretende-se contribuir para a produção crítica e analítica sobre a
música brasileira.

Introdução 1920/30, foi substituída por uma temática original.


Dentre as composições para piano de Os elementos nacionalistas acontecem como que
Lorenzo Fernandez, foi destacada a Sonata filtrados em uma linguagem pessoal (KIEFER, 1986).
Breve. Para a priorização de procedimentos Segundo os autores citados, as últimas obras
técnico-musicais a serem aplicados na sua apresentam uma concepção mais universalista de
realização pianística, tornou-se necessária a sua composição. Para Neves (1977, p. 62), Lorenzo
análise. Fernandez mostrou que “a adesão inteligente à
escola nacionalista não impede o desenvolvimento
A Sonata Breve, obra em três movimentos
de uma linguagem pessoal e não funciona como
(Enérgico, Sombrio e Impetuoso), foi composta
elemento uniformizador”.
por Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1948) em
setembro de 1947, é sua última obra para piano Em uma análise preliminar, observou-se que
e uma das últimas composições. Dedicada à Ivy esta sonata apresenta uma estrutura fortemente
Improta, foi estreada pela pianista Leonor relacionada ao trabalho motívico. Para um melhor
Macedo Costa em maio de 1949, nove meses após entendimento sobre o “motivo”, decidiu-se
a morte do compositor ocorrida em 27 de agosto conduzir o estudo através do aprofundamento de
de 1948 (FRANÇA, 1950) e encerra uma produção suas possibilidades na abrangência de uma obra.
pianística de 33 obras entre peças isoladas e Optou-se por trabalhar as teorias analíticas de
coleções que, no conjunto, somam 82 transformação motívica propostas por Arnold
composições. Esta sonata, juntamente com o Schoenberg (1874-1951) e Rudolf Reti (1885-1957).
segundo Quarteto de Cordas (1946), a Primeira e A escolha dos dois autores ateve-se às seguintes
a Segunda Sinfonia (1947), forma o grupo de razões: Schoenberg, quando expõe sobre a variação
obras que representam a última fase de Lorenzo progressiva, explica como o compositor cria,
Fernandez. Mariz (1950, p.135) destacou como oferecendo um enfoque metodológico para a
características comuns às duas primeiras obras à sistematização do processo analítico e Reti, através
Segunda Sinfonia: “unidade temática, exclusão transformação temática, estabelece um referencial
de ornamentos, universalismo, [...] politona- para a investigação analítica a partir do que o
lidade e polirritmia”. compositor cria.
A citação direta da temática folclórica e Toda obra contém, internamente, duas forças
popular, procedimento musical freqüente nas capazes de dar sentido à forma musical, a externa
composições de Lorenzo Fernandez até a década que diz respeito ao esboço arquitetônico e a
140 SIMPEMUS3

interna que compreende a formação melódico- Chamamos motivo algum elemento musical seja
rítmica mais o esquema harmônico. “Há, ele uma frase melódica ou fragmento ou até
contudo, [...] outras qualidades essenciais mesmo apenas uma característica rítmica ou
dinâmica que, por ser constantemente repetida e
necessárias para moldar agrupamentos musicais
variada através de um trabalho ou secção, assume
dentro do todo arquitetônico, [...] que nada mais
um papel no ‘design’ composicional (RETI, 1951,
são do que as relações temáticas e motívicas” p.11).
(RETI, 1951, p.109).
Para Frisch (1984, p.22) Reti provou,
O design diz respeito ao esboço estrutural,
através da análise de inúmeras obras, que a
aos pontos que interligam os conteúdos. Para o
grande maioria das composições musicais
autor, “na maioria dos trabalhos da literatura
significativas “de Bach até Debussy evoluem
musical os diferentes movimentos de uma
organicamente de um simples motivo [...] e que
composição estão conectados pela unidade
a “Transformação Temática” de Reti equivale à
temática” (RETI, 1951, p.11) que, por sua vez, é
“Variação Progressiva” de Schoenberg. Segundo
operacionalizada pela formação de temas idênticos
Epstein (1980, p. 208), “Schoenberg manifesta
e não somente por uma afinidade de modo. E esta
sua convicção de que a unidade composicional
unidade estabelece a homogeneidade entre os
surge dos relacionamentos entre as propriedades
temas de um movimento, entre os movimentos de
das formas motívicas”. Dunsby e Whittal (1988)
uma peça de estrutura maior ou entre peças de um
tratam destas teorias como uma evolução no
opus ou série.
pensamento reducionista da análise de relação
entre tema e estrutura. Sendo o motivo básico uma célula condutora
e, portanto, fator de projeção do discurso musical
A análise processou-se através de estudos
preponderante em uma obra musical, torna-se
realizados no fac-símile da Sonata Breve. Foram
indispensável considerar-se seus componentes
destacadas modificações, transformações e
melódicos, rítmicos e harmônicos nos planos
funções exercidas pelo motivo no
horizontal, vertical e direcional. Um modelo básico
desenvolvimento do Enérgico nos contextos:
cumpre a função de fator de identidade entre
melódico, rítmico e harmônico, mostradas
estruturas musicais através da sua recorrência
relações existentes entre o motivo básico e as
exata, modificada ou transformada. A música, na
linhas temáticas e levantados aspectos
sua condição primordial, consiste das mais
referentes à articulação, ao timbre e à textura.
primitivas repetições, e o elemento que funciona
como fator unificador [...] o motivo, pode
O motivo manifestar sua presença somente através da
O termo motivo tem sua origem na palavra repetição” (SCHOENBERG, 1975, p.265). Sendo a
latina motivu, “que move [...] pode fazer repetição um meio e não somente um fim, as
mover”.(FERREIRA, 1987, p. 949). Schoenberg formas mais artísticas obscurecem este fato por
(1980, p.15) definiu motivo como sendo “uma uma variedade de caminhos. [...] A repetição é o
unidade que contém uma ou mais características estágio inicial da técnica formal da música, a
de intervalo e ritmo. [...] Sua prática consiste de variação e o desenvolvimento seu mais alto estágio
repetições freqüentes, algumas delas sem de desenvolvimento” (op. cit. p.265). Tem-se,
mudanças e, a maioria delas variadas”, desta forma, uma compreensão do que Schoenberg
responsáveis pela produção de novas formas do trata por variação progressiva.
motivo que são os “materiais para continuidades, Sobre a transformação temática, Reti (1951,
contrastes, novos segmentos, novos temas ou p. 67) esclareceu que as possibilidades são
novas secções dentro de uma peça”. Schoenberg inumeráveis e que o compositor, ao utilizar-se da
(1983, p.9) ampliou este enunciado dizendo que técnica temática, não só “inverte, aumenta, ou
“as características do motivo são intervalos e simplesmente varia os contornos, mas transforma-
ritmos, combinados para produzir um [...] os no sentido pleno da palavra”. Ele determinou
modelo ou contorno que implica usualmente em como categorias de transformação a inversão, a
harmonia inerente”. interversão e a reversão: inversão, movimento
Para a compreensão da função do motivo contrário e retrógrado. A interversão consiste na
como força direcional da linha estética de uma troca entre sons de um contorno motívico ou
composição musical, aplica-se a definição de temático e resulta na produção de novas
Reti: configurações.
A recorrência de um motivo ou de suas
características assegura a ordem e a coerência
simpósio de pesquisa em música 2006 141
formal e quando adotada como princípio de
construção musical “deverá produzir inter-
relação, coerência, lógica, compreensão e
fluência [...]. Tudo depende do seu tratamento e
desenvolvimento” (SCHOENBERG, 1983, p. 9).
Tais condições fazem do motivo um agente do
inter-relacionamento entre contornos. Para Reti
(1951, p.4), demonstrar a unidade entre
diferentes movimentos ou partes deles, suas
inter-relações mais profundas, além daquelas
relacionadas às afinidades de estilo, modo ou
tonalidade é questão primordial. Da força
Figura 2. 1º Segmento, fragmentos x e y (FERNANDEZ,
gravitacional exercida pelo motivo depende o 1968, p. 1).
equilíbrio entre os dois sentidos direcionais que
formam o design de uma composição, o
horizontal e o vertical, através dos quais é O primeiro segmento, funciona como
gerado o material sonoro. proposta motívico-temática e detém as relações
intervalares que servem de base ao segundo
segmento e demais procedimentos melódicos
O Enérgico: o motivo básico e suas subseqüentes, presentes no contorno horizontal do
recorrências Enérgico.
Primeiro contorno temático
O Enérgico inicia com a apresentação de
um primeiro contorno temático formado por dois
segmentos. O segmento inicial, A, contém dois
fragmentos (Figura 2). O primeiro fragmento (x)
é apresentado em uníssono e corresponde a um
motivo inicial, modelo básico (Figura 1) que, no Figura 3a. Relações intervalares, Segmento temático
decorrer do discurso musical do Enérgico, A, fragmento x.
aparece no estado original, modificado e
transformado melódica, rítmica e
harmonicamente.

Figura 3b. Relações intervalares, Segmento temático


A, fragmento y.

Figura 1. Motivo básico (m.b.)


O segundo segmento temático, B (Figura 4),
compassos [2] ao [4], corresponde à conclusão da
proposta inicial e à primeira pontuação cadencial.
O segundo fragmento (y) é diafônico. Inicia Sua textura é mais densa devido a uma maior
no ré da linha para execução da mão direita compactação sonora causada pela presença de
(m.d.), segue ao dó sustenido e, antes de ir ao acordes e reiterada pela utilização dos registros
dó natural passa pelo lá que interrompe o médio e grave. Há predominância de movimento
cromatismo iniciado no mi bemol do motivo. Na paralelo com discreta movimentação melódica,
mão esquerda (m.e), a linha descendente rítmica e harmônica. O motivo (m.e.) faz
também iniciada no mi bemol, segue em contraponto com a continuidade temática
cromatismo descendente do ré até o lá sem delineada por acordes paralelos de sétimas maiores
interrupções. A idéia de cromatismo está contida (m.d.).
no motivo inicial e o segundo fragmento já
caracteriza uma progressão do elemento
cromático.
142 SIMPEMUS3

que faz conexão entre o primeiro e a apresentação


segundo contorno temático da exposição.

Figura 4. 2o Segmento temático (B), compassos


[2]-[4] (FERNANDEZ, 1968, p. 1).

Em uma análise superficial pode-se não observar


a relação entre este segmento e o modelo
inicial. No entanto, se analisada suas estruturas Figura 6. Expansão rítmica do motivo básico.
melódicas, esta relação torna-se evidente
(Figuras 5.a e 5.b).
O segundo tema e demais procedimentos do
plano horizontal do Enérgico foram examinados,
segundo padrões melódicos e rítmicos de
referência.

Contorno Horizontal: Padrões melódicos e


rítmicos
Como referencial para a análise do contorno
Figura 5a. Relação entre segmento B e motivo. melódico do "Enérgico”, foram organizados padrões
conseqüentes das permutas uma tabela de entre os
sons do motivo básico inicial, mostrados na Figura
7.

Figura 5b. Relação 2, padrão 1d modificado.

Neste segmento, encontra-se definido o


fator harmônico mais recorrente na sonata, o
acorde de sétima. Seu uso freqüente coloca-o
como a cor tímbrica essencial do Enérgico,
encontrada nas seguintes formações harmônicas
de sétimas: maior com terça maior e com terça
menor, menor com quarta justa e sem terça,
maior com trítono, e de oitava menor (sétima
aumentada) e quinta diminuta.
Este contorno temático inicial, resultante
da conexão entre os segmentos A e B, primeiro
correspondente à proposta motívico-temática e o
segundo, à resposta, representa uma síntese do
Enérgico devido à compactação das principais
configurações melódicas, rítmicas e harmônicas
nele contidas, além de deter a densidade
textural e as qualidades tímbricas mais
características. Estas se estendem nos compassos
[5] ao [13] e deste ao [14] encontra-se a primeira
expansão rítmica do motivo (Figura 6), passagem
simpósio de pesquisa em música 2006 143

Figura 7. Padrões melódicos de referência.

Na primeira coluna, à esquerda da tabela,


encontram-se representados o motivo básico e os
três contornos melódicos nele contidos e, na
segunda coluna, as respectivas reversões. Nas
colunas três, quatro, cinco e seis, encontram-se
os padrões resultantes das permutas entre os
sons do modelo e suas reversões. Nas linhas
intermediárias estão outros contornos
decorrentes da mudança de altura do som inicial
de cada padrão. Alguns deles se repetem, razão
pela qual estão entre parênteses. Figura 8. Padrões rítmicos de referência.
Para Schoenberg (1983, p. 58), as
“circunstâncias que produzem os vários aspectos
A diferença entre os padrões 3.a.l e 3.a.2 é
do motivo básico provêm das considerações de
de acentuação métrica. O primeiro faz parte de
variedade, estrutura e expressividade”. Sua
passagens que dependem de subdivisão ternária e o
concepção sobre a abrangência do trabalho
segundo obedece à métrica simples na reexposição,
motívico também foi explicitada quando tratou
conforme as figuras seguintes.
sobre conexão. Segundo esclarece, de um mesmo
motivo derivam novas figurações e recorrências
de particularidades que podem agir como
elementos unificadores. Reforçando a coerência
global das estruturas ou formas, ao trabalho
motívico, é acrescido o inter-relacionamento
harmônico.
O ritmo do motivo básico serve de base
para fórmulas rítmicas resultantes de sua
expansão (1), contração (2) e transformação (3),
mostradas na figura seguinte.

Figura 9a. Similaridade rítmica, compasso [1].


144 SIMPEMUS3

Figura 11. Expansão e fragmentação motívica,


compassos [92]-[94]. (FERNANDEZ, facsimile).

Figura 9b. Similaridade rítmica, compasso [60].

Dos compassos [72] ao [79], o contorno


delineado pela mão esquerda reafirma a função do
motivo de elemento propulsor, em repetições,
ritmicamente em contraído e expandido conforme
Figura 12.

Figura 9c. Similaridade entre formações rítmicas.

Nos compassos [73] e [74] encontram-se


outros exemplos de expansão e modificação
motívica conforme mostra a figura seguinte. Figura 12. Contração e expansão rítmica, compassos
[72]-[74] (FERNANDEZ, 1968, p. 4).

O motivo é ritmicamente contraído na


recapitulação (m.e.) entre os compassos [60] e
[71], exercendo a função de ostinato rítmico, base
para o segundo tema. Nos compassos [61]-[64] tem
seu último som (fá#) repetido (Figura 13.a), nos
quatro seguintes é intermediado por oitavas
repetidas (Figura 13.b) e nos compassos [68]-[71] é
repetido em duas alturas e intercalado por acordes
Figura 10. Expansão e modificação motívica. de sétima sem a terça (Figura13.c).
(FERNANDEZ, 1968, p. 4).

A extensão cadencial do final da


recapitulação para a coda contém o motivo
expandido (ritmo e melodia) com os sons
distanciados, caracterizando uma fragmentação.

Figura 13a. Contração rítmica, compasso [60].

Figura 13b. Contração rítmica, compasso [63].


simpósio de pesquisa em música 2006 145

Figura 13c. Contração rítmica - acordes de sétima


sem terça.

A partir do compasso [68] há ênfase no


motivo básico ritmicamente contraído, na mão
esquerda, priorizando o mi e o lá - relação de
quarta justa até o compasso [79], sempre situado
na segunda parte do tempo, intercalado por
oitavas e acordes de sétima. Contrasta Figura 15. Motivo modificado - elemento de
ritmicamente com o contorno melódico conexão, compasso [4] (FERNANDEZ, 1968, p. 1).
desenhado por acordes na mão direita.
Entre os compassos [80]-[92] ocorre um O segundo contorno temático inicia no
jogo de sonoridades. Os efeitos tímbricos são compasso [15], tem caráter lírico com
provocados por trocas de registro entre características de melodia acompanhada e
recorrências do motivo duplicado nos registros contrasta com o tema inicial.
médio e agudo, intermediadas por oitavas (m.e.)
acordes de sétima (m.d.) nos registros grave e
médio. Há alternância entre os materiais do
motivo e de parte do segmento B, conforme
Figura 14 (compassos [84]-[91]).

Figura 16. 2o segmento temático, compassos [15]-


[22] (FERNANDEZ, fac-símile).

Nas figuras seguintes o primeiro e o segundo


contornos temáticos são confrontados.
Figura 14. Alternância motivo básico e segmento
B, compassos [84]–[91] (FERNANDEZ, fac-símile).

O motivo básico tem sua seqüência


melódica alterada em conexões que preparam a
reapresentação do tema, no compasso [4] (Figura
15) e [30], anterior ao início do
desenvolvimento.

Figura 17a. Comparação entre temas, primeiro


tema, compassos[1]-[4].
146 SIMPEMUS3

Figura 19. Segundo contorno temático, ritmo


contraído, compasso [60] (FERNANDEZ, 1968, p. 3).

Nos compassos [65]-[71] o trabalho melódico


(m.d.) tem sua continuidade sobre material do
Figura 17b. Comparação entre temas, segundo segundo fragmento do segmento B modificado
tema, compassos[15]-[20]. sobre a linha da mão esquerda em ostinato. Apesar
do contraste entre o primeiro e o segundo tema, o
primeiro segmento do segundo caracteriza uma
A comparação entre os segmentos iniciais
transformação do motivo inicial e o segundo
dos dois temas mostra particularidades comuns.
representa uma inversão modificada do segmento B
do primeiro sujeito. Os compassos [72]-[80] (Figura
20) caracterizam-se por permutas entre padrões
motívicos e os padrões rítmicos l.c, 1.a, 2, 3.a.2 e
3.a.3,e 3, l.c, m.c e 1.d modificados. Acorde de
sétima sem a terça encontram-se no contorno para
a mão esquerda, com ênfase em fragmentos do
Figuras 18a. 2o contorno temático, relação 1,
segundo tema intercalados por reapresentações do
motivo básico. motivo básico ritmicamente contraído.

Figuras 18b. 2o contorno temático, relação 2,


motivo básico modificado.

Sobre a homogeneidade entre temas, Reti


(1951, p.4) esclareceu que “o primeiro e o
segundo sujeitos de uma sonata são, [em geral],
considerados contrastantes, certamente não
idênticos [...]. Na realidade eles são
contrastantes na superfície mas idênticos em
substância”. Para Kiefer (1986), existe um
sensível contraste entre o segundo e o primeiro
temas do Enérgico embora haja reminiscências
deste no segundo. Na reexposição, os segmentos
A e B do segundo tema são literalmente
reapresentados a uma terça abaixo da exposição.
O motivo encontra-se contraído ritmicamente em
uma figuração (m.e.) ostinato. A reexposição
tem características politonais com trabalho sobre
mi, ré e fá sustenido conforme compassos [60]- Figura 20. Transformação motívica, compassos [72]-
[80] (FERNANDEZ, 1968, p. 4).
[64] mostrados na Figura 19.

Aspectos da estrutura vertical do Enérgico


No contexto harmônico do Enérgico, os
intervalos conversíveis de quarta aumentada e
quinta diminuta, sétima maior e segundas menores
contidos no motivo básico (Figura 3.a),
correspondem à base da estrutura harmônica do
Enérgico, esta mesclada por acordes diferenciados
com ou sem agregação de notas que contém, via de
simpósio de pesquisa em música 2006 147
regra, a sétima, a segunda, a quarta ou a quinta. base para a segunda recorrência do fragmento B do
Contudo, é a sétima que tem a função de suporte primeiro tema, onde a textura é intensificada por
harmônico e é fator de unidade no sentido intervalos harmônicos de quartas e quintas
vertical. "As características de um motivo são aumentadas e diminutas, agregados.
intervalos e ritmos combinados para produzir um
memorável contorno que implica, via de regra,
numa harmonia inerente" (SHOENBERG, 1981,
p.9).
O ré, terceiro som do motivo, em suas
repetições vem acompanhado no baixo pelo dó
sustenido e do dó bequadro (ver Figura 2). As
inversões dos intervalos de segunda menor e
maior, resultantes desta coincidência vertical Figura 22. Acordes de 7as/intervalos harmônicos
são, respectivamente, as sétimas maior e menor. agregados, compassos [8] e [9] (FERNANDEZ, 1968, p.
Esta estrutura melódico-harmônica é reiterada 2).
no segmento B, vertical e horizontalmente
(compassos [2] e [3], Figura 4), em suas Nos compassos [68] e [69], os acordes de
recorrências (compassos [6] e [7] e [10]-[12]. sétima (m.e.) encontram-se também em
Estes últimos caracterizam uma extensão e alternância com o motivo básico. Nos compassos
pontuação cadencial anterior à apresentação [63]-[71] da recapitulação, o compositor utiliza-se
tema. Nos compassos [32]-[37] do da terceira inversão do acorde de sétima com
desenvolvimento, o acorde de sétima faz parte supressão da terça em posição afastada (m.e.), fato
do contorno temático, intensificando a textura este que resulta em uma seqüência de acordes de
nas recorrências do fragmento y (segmento 1) em nona. A transição, entre os compassos [25] ao [29]
oitavas (compassos. [1], [5] e [31]). contém uma figuração de acordes, formada por
A estrutura melódico-harmônica baseada oitavas, quintas e segundas em (m.d.) seqüências
em acordes de sétima na primeira posição (m.d.) descendentes paralelas com oitavas (m.e.),
acompanhados por oitavas (m.e.), é mantida nos fragmentos do segundo tema e o motivo
compassos [38]-[42], extensão cadencial da modificado. Os acordes com segunda agregada
pontuação entre as duas partes do (m.d.) funcionam como suporte harmônico, em
desenvolvimento. O pedal de ré que inicia no ostinato, para fragmentos do segundo tema.
compasso [38] é mantido até o compasso [58], Quando movimentados paralelamente com as
final do desenvolvimento. oitavas (m.e.), servem de base ao motivo
modificado. A força destas seqüências reside no
fato delas englobarem o segmento B e o motivo
básico.

Figura 21. Extensão cadencial, compassos [38]-


[42] (FERNANDEZ, 1968, p. 2).

Na última parte do desenvolvimento, a


característica politonal do segmento B do
primeiro tema continua presente através do
emprego de acordes paralelos de sétima,
trabalhados sobre um pedal de ré. A textura é
intensificada por uma linha intermediária de
quintas e de acordes de sétima com supressão da Figura 23. Agregados harmônicos, compassos [23]-
[28] (FERNANDEZ, 1968, p. 2).
terça. Nos compassos [8] e [9] (Figura 22), [23]-
[25], [49]-[59], [68]-[69] (Figura 13.c) e [75]-[80]
(Figura 21) há forte presença destes acordes. Acordes idênticos a estes fazem parte do
Nestas partes ocorrem passagens politonais a movimento melódico-harmônico entre os compassos
exemplo da Figura 23. No compasso [8] estas [71]-[77] e [79] e da extensão cadencial do final da
formações harmônicas configuram-se em uma recapitulação (compassos [92]-[94]). O contorno
seqüência descendente sobre cromatismo livre, vertical está submetido, via de regra, à sétima.
148 SIMPEMUS3

O acorde de nona e outras formações primeira modificação rítmica do motivo (Figura 6).
verticais decorrem da agregação de uma ou mais A segunda parte da exposição contém o segundo
notas, ou são resultantes da coincidência vertical tema (compassos [15]-[22], Figura 16) e a transição
do movimento dos planos horizontais. (compassos [23]-[29], Figura 24) para o
desenvolvimento. A secção do desenvolvimento tem
duas partes: 1a- compassos [31]-[42] e 2a-
Enérgico: macro estrutura
compassos [43]-[59] com uma extensão cadencial
O Enérgico segue os princípios formais do (compassos [38]-[42], Figura 19) entre elas.
allegro de sonata, apresentando secções de
A primeira parte da recapitulação (compassos
exposição (compassos [1]-[23]), desenvolvimento
[59]-[73], Figura 19) apresenta material do segundo
(compassos [23]-[59]), recapitulação (compassos
tema (m.d.) apoiado em repetições do motivo
[59]-[94]) e coda (compasso [95]). Sua textura
básico, estas intercaladas por sons repetidos e
geral é densa, definida pelo tratamento
seqüências (compassos [60]-[67]) de acordes de
melódico-harmônico e polifônico, com livre
sétima sem terça (Figuras 13.c, 20). A segunda
utilização de contraponto. No decorrer das três
parte (ver Figura 20), caracterizada pela permuta
secções há constantes mudanças de compassos.
entre padrões motívicos, tem início no ponto de
Na exposição, dos compassos [1] ao [14]),
elisão com o término da primeira parte (compasso
observa-se a alternância das fórmulas 6/♪ e 9/♪.
[73]). Há ênfase no motivo básico ritmicamente
Do compasso [15] até o [29] há alteração da
diminuído (m.e.), aumentado (d.m.) e modificado
métrica e do andamento, modificação esta
(m.d.). A terceira parte (compassos [80]-[94])
preparada pela indicação do rallentando no
apresenta uma maior concentração de trabalho
compasso [11] e definida pela citação "tranqüilo"
sobre material do primeiro contorno temático. As
(compasso [15]), Figura 16, e na passagem de
interrupções do movimento horizontal, provocadas
conexão ao desenvolvimento (compasso [30]). A
pelas pausas, têm significativa força rítmica e
métrica de subdivisão ternária é retomada e
imprimem um caráter definitivamente enérgico e
mantida até o compasso [58], onde inicia a
brilhante. Estas características são reiteradas pelo
recapitulação. Esta nova secção retorna à
jogo sonoro, resultado da exploração dos timbres
métrica simples, com base nas fórmulas 2/4 e
grave-médio e médio agudo. A recapitulação
3/4 que se alternam. A coda final não apresenta
termina com uma extensão cadencial de três
indicação métrica nem barra de compasso, mas
compassos (parte na Figura 11) que prepara a coda
detém subdivisão simples. Na figura seguinte
final em termos de dinâmica (ff -pp) e de
pode ser visto um esquema geral do Enérgico.
andamento. Esta coda é caracterizada por
contrastes de ritmo, dinâmica, andamento e
caráter, com apresentação do segundo contorno
temático no registro médio no registro grave do
piano e o modelo básico nos registros médio-agudo.
A dinâmica indicada para o contorno temático é p-
mf-p e para as chamadas do motivo básico é fff
com diminuição gradativa até o ppp. A expansão
rítmica do motivo, nas duas últimas apresentações
auxilia o decrescendo final.

Conclusões
O Enérgico foi construído segundo o princípio
composicional da recorrência motívica. Este
processo construcional está determinado pela
Figura 24. Esquema geral do Enérgico. manipulação do motivo básico, apresentado no
início deste primeiro movimento da Sonata Breve.
A exposição (compassos [1]-[30]) tem seu O discurso musical adquire impulso no
primeiro contorno temático motívico direcionamento melódico ascendente e suspensivo
apresentado nos quatro primeiros compassos e do motivo básico: lá, mi b, ré, projetado a partir da
prioriza os sons lá -ré. Os compassos [10]-[12] sétima maior, esta adotada como cor tímbrica do
completam a primeira parte da exposição. Os contorno melódico-harmônico. O desenvolvimento
compassos seguintes, dois, fazem a conexão da composição é decorrente da reprodução dos
entre as partes da exposição e caracterizam a materiais melódicos, rítmicos e harmônicos,
simpósio de pesquisa em música 2006 149
inerentes ao motivo, através de suas recorrência aos parâmetros tradicionais de movimento e de
no estado original, modificado e transformado, resolução harmônica e politonal, a exemplo da
aos quais se agregam os efeitos promovidos por Figura 19. O delineamento melódico está
procedimentos como expansão e contração construído em sólidas bases tonais, mas apoiado em
melódica e rítmica, polirritmias e acentuações. A um contorno harmônico livre. A análise mostrou
esta metamorfose motívica aliam-se as que a ocorrência de acordes de nona e demais
diferentes funções que o modelo básico assume agregados está invariavelmente submetida ao
como responsável por aspectos de ordem acorde de sétima maior com terceira maior ou
estética: variedade textural, tímbrica e menor.
articulações que influem diretamente na A compreensão do texto musical através do
expressividade. O motivo básico promove a processo analítico foi essencial na decodificação do
evolução do movimento, imprimindo suas texto musical e com reflexos no nível do
características na formação estrutural nos desempenho instrumental, tanto no aspecto técnico
diferentes níveis do espaço sonoro. quanto no musical. São necessários mais estudos
O Enérgico pode ser situado no limiar entre para o aprofundamento desta análise.
o tonal porque as funções não estão totalmente
descaracterizadas, atonal porque não obedece

Referências
FERNANDEZ, O. Lorenzo. Sonata breve. New York: Peer-Southern Organization, 1968.
_____ Sonata Breve. Fac-símile, 1947.
BUARQUE DE HOLANDA, Aurélio. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.
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KIEFER, Bruno. História da música brasileira. Porto Alegre: Movimento, 1986.
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RETI, Rudolf. The thematic process in music. Londres: Faber, 1951.
SCHOENBERG, Arnold. Fundamentals of musical composition. Londres: Faber, 1983.
_____ Models for beginners in composition. New York: Schirmer, 1980
_____ Style and idea. Berkeley: University of California, 1975.
A preparação do ambiente da livre improvisação: antecedentes históricos, as
categorias do objeto sonoro e a escuta reduzida
Rogério Luiz Moraes Costa
Universidade de São Paulo

Resumo
Este texto busca explicitar os pressupostos necessários para a realização de uma proposta de livre
improvisação musical. O autor baseia suas reflexões em uma prática experimental onde os conceitos aqui
apresentados foram vivenciados, analisados e testados. Para construir sua argumentação o autor começa
explicitando os antecedentes históricos que tornam possível a realização de performances de livre
improvisação e termina assinalando o papel fundamental exercido por uma nova atitude de escuta baseada
nas categorias de objeto sonoro e escuta reduzida - criadas por Pierre Schaeffer no âmbito de suas
pesquisas sobre a música concreta - para que, num ambiente aparentemente desprovido de sistemas de
referência explícitos como é a livre improvisação, a interação entre os músicos se estabeleça.

Introdução ausência deles. Ele pode ser um músico


A improvisação, genericamente falando - proveniente do território do jazz que, em sua busca
especialmente a coletiva - é um fazer musical por novas formas de expressão e liberdade criativa
com características específicas, onde muitas acaba se deparando com o esgotamento dos seus
linhas de força convergem. Trata-se de antigos sistemas de referência ou um
pensamento musical em ação onde o que compositor/intérprete de música erudita ocidental
importa é a participação em um processo, que, em seu contexto específico vivencia o mesmo
criativo, expressivo, lúdico e interativo em fenômeno e se volta para novas formas de
tempo real. Neste contexto, é secundária (ou expressão que podem incluir as músicas étnicas, o
inexistente) a idéia de criação de obras. Por jazz etc.
isto, podemos dizer que a improvisação traça um A proposta de livre improvisação que
território diverso do da composição. apresentamos supõe a preparação de um "lugar"
Pensemos, conforme a definição proposta (espaço-temporal) propício a uma espécie de fluxo
por Derek Bailey (1993, p. xi) a partir de duas vital musical produtivo. Este lugar deve se tornar
formas básicas de improvisação: de um lado a um espaço de jogo, de processo, de conversa e de
improvisação idiomática, que é aquela que se dá interação entre músicos. Nele as forças e energias
dentro do contexto de um idioma musical, social ainda livres1, informadas, podem adquirir
e culturalmente delimitado histórica e geografi- consistência na forma de uma sucessão de estados
camente - como, por exemplo, a improvisação provisórios, num devir sonoro/musical. Este espaço
na música hindu - e de outro a livre só é possível devido a um desejo/vontade de
improvisação. Nesta última, supostamente, não potência que funciona como um combustível para
há um sistema ou uma linguagem previamente as ações e interações entre os improvisadores. Para
estabelecida, no contexto da qual se dará a isto, é necessário partir de uma escuta intensa,
prática musical. reduzida, que abstrai as fontes produtoras, os
significados musicais2 e os gestos idiomáticos
A livre improvisação, que é a que nos
inevitáveis presentes nas enunciações de cada
interessa comentar neste texto, só se apresenta
músico, e que prioriza as qualidades propriamente
como possibilidade, no mundo contemporâneo,
sonoras das ações instrumentais.
cada vez mais integrado e onde as "membranas" -
lingüísticas, culturais, sociais - e as fronteiras,
1
devido à intensa interação, eventualmente se …o essencial não está nas formas e nas matérias, nem nos
temas, mas nas forças, nas densidades, nas intensidades
dissolvem ou ao menos perdem sua rigidez. (DELEUZE, 1997, p. 159).
Neste contexto, os territórios se interpenetram e 2
Pierre Schaeffer diferencia o objeto musical - aquele que
os sistemas interagem cada vez mais, de maneira adquire seu sentido no contexto de um sistema ou idioma
que os idiomas tornam-se mais permeáveis. musical discursivo (por exemplo, um acorde de 7a. de
dominante numa cadência autêntica perfeita numa música
A figura do livre improvisador - que, nesta "clássica) - do objeto sonoro resultante de uma atitude de
atividade é diferente do intérprete ou do escuta voltada para as qualidades intrínsecas do mesmo,
desvinculado de qualquer sistema apriorístico. Seria o caso do
compositor já que ele é ao mesmo tempo e de mesmo acorde de 7a. numa obra de Debussy em que o que
certa forma, um pouco dos dois - lida com vários importa não é tanto sua função num discurso linear e sim sua
sonoridade específica, verticalizada (vide, por exemplo, o
sistemas simultaneamente ou mesmo com a
Prelúdio VII/ vol.I).
simpósio de pesquisa em música 2006 151
Antecedentes históricos da livre improvisação descontínuo: uma altura específica numa região
Podemos dizer que, para o músico, um específica e cuidadosamente escolhida de um
ambiente de improvisação é longamente instrumento, produzida através de uma articulação
preparado. Por exemplo, ao contrário do que rigorosamente definida, se torna, não parte de um
imagina o senso comum, no jazz, a improvisação acorde, mas sim de um agregado harmônico, de
não é uma performance sem preparação. De fato uma densidade de algo que por acaso é definida
haveria segundo Paul Berliner, uma vida inteira por notas de alturas definidas /.../ a ênfase é
de preparação e conhecimento por trás de toda colocada na experiência ao invés da estrutura
e qualquer idéia realizada por um improvisador (NYMAN, 1999, p.44). Assim, seus procedimentos
(1994, p. 17). Por outro lado, a possibilidade da inauguram uma escrita em que se busca de forma
livre improvisação - que não se dá no contexto intencional, uma escuta de massas sonoras e
de um idioma específico - é preparada por uma texturas. Além disso, para ele, a questão da forma
série de fatores presentes na história e na é tratada de uma maneira particular, enquanto
geografia da música. Vamos proceder agora, a resultado de um processo de desdobramento de
uma enumeração de algumas das principais elementos e componentes à maneira de um
referências históricas (práticas e teóricas) que organismo.
tornam possíveis as práticas de livre Na mesma linha de referência podemos citar
improvisação a partir da configuração de novas a obra de Ligeti que, a partir da utilização de
formas de escuta. procedimentos contrapontísticos incomuns
Em primeiro lugar, temos as pesquisas (micropolifonia) em obras como Atmosphères, Lux
conduzidas por Pierre Schaeffer no âmbito da Aeterna e Continuum, cria também a sensação de
música concreta. Dali emerge a formulação do texturas em micro-movimento. Nestes procedi-
conceito de escuta reduzida do objeto sonoro mentos de Ligeti se percebe o impacto do advento
com todas as implicações que dela decorrem e da música eletrônica no pensamento composi-
que detalharemos no item seguinte. A cional moderno. O chamado "tecnomorfismo3” que
improvisação livre, conforme a vivenciamos no daí se origina é também uma importante referência
contexto de nosso laboratório prático - é uma na preparação do plano de consistência da livre
prática em que este tipo de escuta orientada improvisação. Ligeti chega, inclusive, a explicitar a
para o objeto sonoro tem grande relevância. influência determinante de sua experiência com a
música eletrônica em sua escrita instrumental:
Temos também a obra e as reflexões do
compositor francês Edgard Varèse em busca da
Quando minha peça orquestral Apparitions foi
"autonomia do som". Tanto quanto John Cage,
executada em 1960 em Colônia e, um ano depois,
Varèse almeja a “liberação do som”
quando a peça orquestral Atmosphères foi
(reivindicação precocemente veiculada por executada em Donaueschingen, era comumente
Debussy que dizia que qualquer som em mencionado o seguinte: essas peças, na verdade
qualquer combinação e em qualquer sucessão parecem ser música eletrônica arranjadas para
são doravante livres para serem usados numa orquestra. Essa afirmação é certamente estranha -
continuidade musical). Esta liberação do som, como algo pode ser eletrônico quando é
sua percepção e uso como fenômeno autônomo, puramente instrumental - de qualquer maneira,
desvinculado de qualquer sistema (os idiomas, ou contém um grão de verdade; isto é, sem as
experiências no estúdio eletrônico, as peças
linguagens segundo Schaeffer) implica em
orquestrais nunca poderiam ser compostas daquela
diferentes propostas de atuação conforme o
maneira (LIGETI, 1970, p. 1-2).
caso. Varèse permanece ligado à tradição
européia da composição: predomina o conceito Temos também como referência a obra do
de permanência da obra, da construção de um compositor italiano Giacinto Scelsi. Nesta, o que se
objeto artístico por parte de um compositor que almeja é uma espécie de molecularização do som
incumbe eventuais intérpretes de veicular, da através de um processo contínuo de micro-
maneira mais próxima possível de suas intenções
originais, a sua criação, transmitida através de
3
uma instrução detalhada: a partitura. A escuta, O tecnomorfismo, segundo Tatiana Catanzaro, se relaciona
com a utilização metafórica de um processo tecnológico
no entanto, já é outra, pois ela se dirige a aplicado em um meio diverso ao qual este foi concebido; no
verdadeiros “objetos sonoros” plenos de caso, à música composta para instrumentos mecânicos
múltiplas possibilidades de escuta (o sentido de (tradicionais). Ou seja, a abstração de uma idéia tecnológica
(como a manipulação de uma fita magnética, a análise de um
linearidade, de direcionalidade e de causalidade espectro sonoro via computador, etc.) é aplicada à música
característicos da tonalidade são atenuados). tradicional instrumental e/ou vocal mecânica (CATANZARO,
Para Varèse não importa a nota como elemento 2002, p. 73).
152 SIMPEMUS3

percepções. Ele se propõe a "viajar dentro do estruturações é uma conseqüência e uma


som". O conceito de molecularização e a necessidade inerente à proposta de se enfatizar o
conseqüente intensificação estão presentes de fazer. Num texto de 1957, Cage nos diz: “o que
forma clara na crescente importância que o será feito é aos poucos liberar completamente os
timbre vai assumindo na produção musical sons das idéias abstratas a respeito deles e cada
contemporânea. Podemos observar que há um vez mais deixá-los ser unicamente e fisicamente
grande movimento na música ocidental, em que eles mesmos”. (NYMAN, 1999, p.50). A idéia é que
o timbre, antes insignificante com respeito à o compositor, o intérprete e o ouvinte estejam
escritura, é recuperado, reconhecido primeiro entrelaçados num mesmo personagem. A vontade
como fenômeno autônomo e a seguir como de romper com a divisão entre vida cotidiana e arte
categoria predominante – terminando quase por transforma o artista em um formulador de
submergir ou absorver as outras dimensões do processos, um desencadeador de experiências, um
discurso musical, de sorte que as agenciador de propostas. Vida e arte se mesclam. O
microflutuações do som (glissandos, vibratos, artista é um educador. Na livre improvisação estão
mutações do espectro sonoro, trêmulos...) presentes os elementos propostos por Cage: o
passam do estado de ornamento ao de texto. engajamento com o fazer, o momento, o processo,
Tudo isto é molecularização4. o som, a experiência, a significação imediata e
Citemos também a música experimental cotidiana. Trata-se de colocar em movimento um
norte americana e a revolução conceitual promo- devir. Por outro lado os intérpretes estão
vida por John Cage: sua aproximação com o Zen engajados num processo intenso de diálogo e
e as demais formas de pensamento oriental e interação que gera “processos de cristalização”
suas conseqüências sobre o fazer musical num sentido Varesiano. Os sons libertados das
ocidental; seus questionamentos estéticos sobre idéias abstratas em processos interativos e
a noção de obra artística separada da vida, sua dinâmicos são colocados em movimento.
adesão a uma espécie de dadaísmo que O “problema” de Cage é que ele não quer
questiona a solenidade do fazer artístico na (aparentemente), mas continua sendo o formu-
cultura ocidental. A escuta aqui se coloca como lador das propostas. Ele é quem põe os intérpretes
ato não intencionado ou como uma escuta sem em movimento. O desejo pertence ao
propósito integrada naturalmente na vida. Com compositor/formulador. Por mais que trabalhe com
relação à já citada idéia de liberação do som, o acaso é ele quem desencadeia o processo e
Cage é mais radical do que Varèse. Há para ele, delimita o material. É ele quem faz o lance de
sobretudo, uma ênfase no processo, na dados (ao menos o lance inaugural). O resultado é
experiência, no fazer musical em detrimento da que cada vez menos se consegue engajar o
permanência de um objeto artístico que queda aí intérprete neste projeto. É um projeto
desmistificado. O uso de qualquer som ou ruído, exteriorizado. Além disto, em Cage não há uma
a liberação do som com relação aos sistemas e às preocupação com o som em si: o que importa é o
conceito de som e de processo. A livre
4
improvisação não é assim.
Podemos fazer aqui uma aproximação deste conceito de
molécula com o conceito de dobra conforme delineado por Não podemos deixar de citar enquanto uma
Deleuze ao descrever em que medida as micropercepções fundamental referência para a nossa proposta, a
desterritorializam uma escuta das macropercepções.
prática e as reflexões de músicos como Derek
Conforme Silvio Ferraz: "O que podemos notar é que as
séries de dobras não correspondem a uma seqüência de Bailey e todos os grupos de free improvisation
pontos de vista de um mesmo objeto, como notamos nas europeus e norte americanos que se ligam a uma
variações clássicas. As séries de dobras, séries de
micropercepções, correspondem às configurações (ou
longa história de desenvolvimento do jazz norte
atualizações) de um objeto. São constituídas de americano e a uma preocupação com o intérprete
experiências sensoriais simultâneas e divergentes, da enquanto formulador e enunciador de discurso
intuição e do pensamento, que se cruzam, ora ressoando
uma nas outras, ora se justapondo.” (FERRAZ, 1998, p. musical.
177). Na improvisação não se trata de micropercepções Resumindo podemos dizer que a livre
aplicadas a objetos anteriormente compostos, mas de um
improvisação só é possível no contexto de uma
mesmo tipo de configuração aplicada doravante ao
processo em seu devir. busca de superação do idiomático, do simbólico, da
Na música tradicional cada músico toca uma “célula” e, com
representação, do gestual, do sistematizado, do
os ensaios apreende a função da célula. Na canção os controlado, do previsível, do estático, do
músicos estão, por assim dizer, em função da melodia- identificado, do hierarquizado, do dualista e do
texto. Na improvisação livre cada músico não sabe o que
vai realmente resultar dos objetos que toca. É uma música linearizado em proveito do múltiplo, do
molecular, trabalhada passo a passo, uma música feita de simultâneo, do instável, do heterogêneo, do movi-
perto. A molécula não sabe qual será sua função no
organismo…
simpósio de pesquisa em música 2006 153
mento, do processo, do relacionamento, do vivo, significativo para ele. Citamos aqui Pierre
da energia e do material em si. Schaeffer para ilustrar este ponto:

A escuta reduzida Assim é que, participando de uma conversação


Para que seja possível a livre improvisação familiar entre diversas pessoas, eu passarei de um
interlocutor a outro, sem desconfiar um instante
devemos ouvir, de fato, os sons. Falamos aqui,
da extravagante confusão de vozes, ruídos,
ao mesmo tempo, da percepção que é uma ação
risadas, a partir da qual eu efetuo uma
empreendida por um sujeito (ouvir), e um objeto composição original diferente da que cada um de
a que supostamente esta ação se dirige (os sons). meus companheiros estaria em condições de
Na realidade, na perspectiva que aqui assumimos realizar por sua própria conta. (SCHAEFFER, 1993,
esta separação entre sujeito e objeto não ocorre p. 94).
e nesta expressão ("ouvir, de fato, os sons") o "de
fato" deve ser colocado entre parêntesis. Isto Todavia, para Schaeffer, que conduz seu
implica, primeiramente, em assumir que a pensamento com base na fenomenologia de
percepção é uma atividade cognitiva e que toda Husserl, o objeto sonoro concreto, que é um
atividade cognitiva se dá através de um processo fenômeno físico-acústico, é uma realidade
de configuração de problemas a serem resolvidos anterior, pré-existente e por isso, transcende às
a cada momento. Ou seja, para nós a cognição variadas percepções que dele venhamos a ter.
não parte de uma realidade supostamente pré- Assim, a partir de um mesmo objeto, é possível
estabelecida a ser percebida ou representada, configurar várias escutas. Mais à frente no mesmo
mas sim, se configura a partir de um cenário livro, temos que:
(ambiente) em que se confrontam o objeto e o
sujeito através de um ato particular de Ele (o objeto sonoro) é aquilo que permanece
idêntico ao longo do fluxo de impressões diversas
percepção, que emerge num determinado
que dele tenho, embora estas com ele se
contexto, e que envolve tanto o objeto quanto o
relacionem através de minhas intenções
sujeito com sua história, seu corpo e sua diversas/…/ no objeto sonoro que estou a escutar
linguagem. Deste modo o processo continuado do sempre há mais a entender; é uma fonte de
viver é que configura um mundo percebido a potencialidades jamais esgotada/…/ que dele eu
cada momento a partir de problemas reais. perceba sucessivamente aspectos diversos, que ele
Assumindo as conseqüências desta forma não seja jamais igual, identifico-o sempre como
de pensamento, temos que, entre outras coisas, este objeto aí bem determinado/…/Estas
o ato de ouvir é resultado de um processo que qualificações variam, como a própria escuta, em
função de cada experiência e de cada curiosidade.
envolve o objeto sonoro/musical - realização
Todavia, o objeto sonoro único, que torna possível
acústica de um enunciado musical, fenômeno
essa multiplicidade de aspectos qualificados do
físico sonoro capaz de mobilizar/perturbar o objeto, subsiste sob a forma de uma auréola de
nosso órgão auditivo - e o sujeito, num processo percepções (idem, p.100). Acreditamos que o
de configuração. Assim, "ouvir os sons" implica princípio da nossa classificação permite assinalar,
em um ato humano que surge a partir de uma para o mesmo objeto quadros diversos, de acordo
necessidade, de uma disponibilidade e de uma com a intenção de escuta. A procura de uma
prontidão configuradas na relação com uma tipologia absoluta é ilusória (p. 345).
determinada realidade acústica. Há, portanto,
uma intenção de escuta que emerge como Então o que é o objeto sonoro para Pierre
necessidade a partir de um "problema": a Schaeffer? Para construir sua teoria e dentro dela,
interação entre músicos que assumem seus o conceito de objeto sonoro, base para a música
instrumentos como uma espécie de extensão de concreta, Pierre Schaeffer distingue,
suas vozes e decidem iniciar um jogo: um jogo genericamente, quatro formas de escuta: o ouïr, o
em que o que importa é a continuidade do écouter, o enténdre e o compréendre. Com o
próprio jogo (a livre improvisação). intuito de ilustrar estas formas de escuta podemos
Para Cage, que parte da idéia de silêncio, examinar algumas características da improvisação
num certo sentido, toda e qualquer escuta pode com base em duas delas: a improvisação idiomática
se tornar um ato de composição. Pensemos na - que é aquela que se apóia em algum idioma
proposta contida em sua peça 3'44" em que o musical socialmente determinado e delimitado -
silêncio emoldura uma escuta intencionada. O supõe uma forma de escuta que enfatiza, sem
sujeito seleciona, recorta, a partir do grande excluir as outras, o compréendre: o idioma, o
caos sonoro, aquilo que, por determinado motivo sentido, o léxico, a sintaxe e enfim a história e a
(necessidade ou disponibilidade), se torna geografia em que se insere este idioma. Neste tipo
de escuta, os sons valem por sua função dentro de
154 SIMPEMUS3

um sistema que os articula. Schaeffer define o …poderíamos, eventualmente, livrando-nos do


termo musicalidade neste contexto. Por banal, 'expulsando o natural', tanto quanto o
exemplo, quando certa freqüência (uma nota), cultural, encontrar um outro nível, um autêntico
objeto sonoro/…/ que seria acessível a todo
assume certo valor expressivo dentro de um
homem ouvinte? (SCHAEFFER, 1993, p. 247).
determinado discurso musical (uma melodia)
articulado sobre um sistema hierarquizado e
A escuta reduzida seria, assim, como a escuta
gramaticalizado (o sistema tonal), ela não vale
do bebê que traz um ouvido ainda
por si mesma. Seus atributos acústicos e
descondicionado, apesar de ainda inábil. A questão
perceptivos se definem em função de seus
da habilidade se colocaria às vezes como um
relacionamentos com os outros elementos e de
empecilho para a livre improvisação, pois o preço
sua colocação dentro do discurso5. Isto é
de ser hábil num determinado sistema
absolutamente claro no contexto de um discurso
(territorializado) e, por isso, capaz de reconhecer
melódico tonal. Fazendo uma analogia com a
os seus traços pertinentes é ser praticamente surdo
linguagem verbal: o som das palavras só adquire
àquilo que não lhe é pertinente. Assim, é incomum
sentido no contexto dos idiomas em que elas são
e difícil a prática da improvisação entre músicos
pronunciadas. Este processo demonstra uma
que não compartilham do mesmo idioma. É o caso
forma de configuração de escuta que surge
de uma sessão entre um músico de jazz e um
enquanto necessidade na consolidação de uma
músico hindu, por exemplo. O preço de se ter uma
linguagem musical comunitária.
identidade ou pertencer a um território com
Já na improvisação livre - que é aquela
"membranas muito rígidas" é não conseguir uma
que procura não se subordinar a nenhum idioma
permeabilidade que torne possível a invasão de
específico (e nem a eles se opor,
elementos provenientes do Caos, espaço onde as
necessariamente) - supõe-se que a ênfase recaia
energias estão soltas, informes, ainda não se
sobre o entendre6 que é uma intenção de escuta
organizaram em sistemas e por isso não
dirigida às características pré-musicais do som
delimitaram fronteiras e territórios. Assim, para a
descontextualizado de sistemas abstratos ou
prática da livre improvisação, poderíamos imaginar
idiomas e tomado como um objeto em si mesmo.
como diria John Cage, que os sons são somente
Neste sentido, a livre improvisação se dá mais
sons - não geraram ainda, linguagem,
propriamente num ambiente de escuta reduzida
representação - e que, portanto, poderiam se
que é segundo Schaeffer uma escuta que busca
juntar de formas imprevisíveis e novas.
escapar tanto de uma intenção de compreender
No entanto, em qualquer um destes
"significados" (semânticos, gestuais ou mesmo
contextos, a escuta exercida pelo improvisador,
musicais no sentido de estar inserida em algum
visa o som produzido por ele, pelos outros músicos
idioma) quanto de uma identificação de causas
e também, o som que resulta da interação entre
instrumentais. Ela é dirigida aos atributos do som
todas as atuações. Isso porque cada som
em si, ou seja, ao objeto sonoro. Considerando o
introduzido tem - inevitavelmente - um peso
fato de que todo músico é condicionado pela sua
específico e sua presença determina modificações
biografia (o pré-existente: idiomas e sistemas)
na performance que assim se constitui enquanto
temos que, para sustentar esta proposta - a de
um fluxo incessante de transformações. Ao mesmo
uma livre improvisação - é necessário uma
tempo, cada som será introduzido devido a um ato
disciplina ou uma intenção de escuta. Schaeffer
de vontade específica voltada para os vários
se questiona sobre a possibilidade desta intenção
momentos daquela performance particular e será
de escuta:
manifestação de um pensamento sonoro ou musical
específico. No caso da improvisação livre de
idiomas que propomos aqui, para que este tipo de
escuta múltipla seja possível é necessário construir
5
Pensemos numa nota no contexto de uma fuga de Bach. uma disciplina através de um empenho redobrado
6
Poderíamos imaginar uma seqüência que vai da sonoridade à de atenção e concentração ou, dito de outro modo:
musicalidade que se baseia nos balanços da escuta criados é necessário almejar uma intenção de escuta
por Schaeffer e que em princípio poderiam se aplicar da
seguinte maneira à livre improvisação: no início se dá, voltada para o objeto sonoro. Trata-se da escuta
através de uma prática, uma tipologia (que é uma reduzida conforme conceituação de Pierre
identificação dos objetos sonoros no seu contexto) que
desemboca numa morfologia (que qualifica estes objetos
Schaeffer. Como tentativa de formulação de uma
em sua contextura). A partir desta dinâmica pode-se ferramenta adequada a este tipo novo de escuta,
atingir (com auxílio de gravações e registros) uma análise Schaeffer propõe em seu Tratado o Solfejo dos
dos objetos que daí emerge e pode-se (ou não) elaborar
uma teoria das estruturas musicais - síntese abstrata - que Objetos.
dirá respeito unicamente àquele grupo específico.
simpósio de pesquisa em música 2006 155
Conclusão através da qual ele nos coloca diante de sua
A experiência de se juntar músicos - concepção aberta da “invenção música” que se
provenientes dos mais diversos meios, com ou serve de objetos sonoros que não são ainda
sem experiência de improvisação - sem qualificados de musicais, mas que poderiam sê-lo.
absolutamente nenhuma preparação do Trata-se do parágrafo intitulado "O menino e a
ambiente, na maior parte dos casos, pode folha de capim":
resultar em fracasso e frustração para aqueles
que participam: uma sensação de vazio diante de O homo faber envelhecido só toca stradivarius. É
uma não-interação, um não-relacionamento, um preciso, portanto, rejuvenescer os quadros. Vamos
escutar um menino que apanhou uma folha
não-acontecimento, uma prática que não cria
adequada, espicha-a entre as suas duas palmas e
nada de significativo, nem para os músicos, nem
agora a sopra, enquanto o côncavo das suas mãos
para eventuais ouvintes. O insucesso é a lhe serve de ressonador… ele escolheu, por sua
conseqüência da ausência de interação. Neste própria conta, entre as fontes de sons, uma que
caso os ambientes não se configuram, não lhe parecia das convenientes à sua atividade. Com
adquirem consistência e as performances não efeito, esse menino experimenta os seus sons uns
fluem não se sustentam. Não se delineiam após os outros, e o problema que ele coloca é
estados transitórios; não há conversa. menos o da identificação do que o do estilo de
Concluímos que neste caso os músicos não fabricação. Por outro lado, a sua intenção é
visivelmente 'música'. Se o resultado não parecer
são livres para "conversar" usando seus
musical aos seus ouvintes exasperados, não se
instrumentos. Ou não são capazes de constituir
poderia negar ao autor uma intenção estética, ou
uma prática sem que haja um sistema que pelo menos uma atividade artística… O seu
unifique os procedimentos. Haverá sempre a objetivo é gratuito, senão gracioso; confessêmo-
necessidade da imposição de algum sistema ou lo, ele é mesmo musical. Não satisfeito em emitir
idioma: "vamos improvisar numa jam-session de sons, ele os compara, ele os julga, acha-os mais
jazz? Ah! Agora sim temos uma referência!” A ou menos bem sucedidos, e a sua sucessão mais ou
resposta sobre a viabilidade da participação menos satisfatória. Como havíamos dito do homem
neste tipo de proposta depende da vivência de de Neanderthal, se esse menino não faz música,
quem a faz então?… O que escuta então o ouvinte,
cada músico com o idioma proposto como
mesmo negligente, mesmo reticente, mesmo
ambiente. Concluímos também que, de certa
hostil? Por um momento - o que não é de hábito -
forma, os músicos estão presos aos sistemas e, objetos sonoros… O nosso ouvinte ficará limitado a
na maioria dos casos estão presos a tipos de suportar uma coleção de objetos desprovidos de
escuta que privilegiam, sobretudo o parâmetro sentido musical… Obrigado a escutar, pois os
das alturas. Eles, por isto não ouvem os sons objetos são agressivos, ele formará,
(numa perspectiva de escuta reduzida). Ou implicitamente julgamentos de valor. Chegará até
melhor, ouvem os significados dos sons dentro de a murmurar…: 'Eis aí um mais bem sucedido que os
um determinado sistema de referência (é o outros'… Não se escuta mais o som pelo evento,
mas o evento sonoro em si mesmo (SCHAEFFER,
compréendre de Schaeffer).7 Num caso como
1993, p. 283-284).
esse, existe uma necessidade de se estabelecer
causalidades, direcionalidades, dualidades, hie-
Esta reflexão aponta para o tipo de relação
rarquias, comparações etc. O som aqui se insere
que se procura estabelecer entre os músicos e
enquanto um signo no contexto de uma sintaxe
entre os músicos e os sons na livre improvisação. É
específica. O som (o descontínuo) precisa estar
um tipo de interação e de pensamento sonoro não
articulado em frases melódicas, ritmos, enca-
apoiado em linguagens ou sistemas de referência -
deamentos harmônicos, contrapontos, séries etc.
embora eles surjam não intencionalmente e
(o contínuo), referenciados em sistemas pré-
inevitavelmente - e que busca, não a sonoridade
estabelecidos. Enfim, é muito difícil ser livre. A
musical convencional, mas um livre pensar sonoro.
este propósito vale a pena transcrever em parte
uma pequena “parábola” contada por Pierre
Schaeffer no "Tratado dos objetos sonoros"

7
"Por fato de código explícito, existem condicionamentos dos
sons musicais praticados, por exemplo, por uma
coletividade num contexto evidentemente histórico e
geográfico. Opera-se assim um afastamento deliberado do
evento sonoro (sem deixar de ouvi-lo) e das circunstâncias
que ele revela em relação à sua emissão, para apegar-se à
mensagem, ao significado, aos 'valores' de que o som é
portador." (SCHAEFFER, 1993, p. 106).
156 SIMPEMUS3

Referências
BAILEY, Derek. Improvisation, its nature and practice in music. Ashbourne: Da Capo Press, 1993.
DELEUZE, Gilles. Mil Platôs IV. São Paulo: Editora 34, 1997.
BERLINER, Paul F. The infinite art of improvisation. Chicago: The University of Chicago Press, 1994.
NYMAN, Michael. Experimental Music, Cage and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
LIGETI, Györg. Auswirkungen der elektronischen auf mein kompoistorisches schaffen. In: Experimentale
Musik. Berlin: Mann Verlag, 1970.
CATANZARO, Tatiana. Influências da linguagem da música eletroacústica sobre a linguagem da música
contemporânea. In: ANAIS DO FÓRUM DO CENTRO DE LINGUAGEM MUSICAL – CLM. São Paulo: Departamento
de Música da ECA-USP, 2002, p. 73-85.
FERRAZ, Silvio. Música e repetição: a diferença na composição contemporânea. São Paulo: EDUC, 1998.
SCHAEFFER, Pierre. Tratado dos objetos musicais. Brasília: Editora da UnB, 1993.
Emoção: a essência da expressividade na performance musical
Márcia Kazue Kodama Higuchi
Universidade de São Paulo

Resumo
Esta pesquisa faz um paralelo entre elementos observados no meio musical, assim como dados coletados
em musicologia com um levantamento de informações a respeito da expressividade, na psicologia
cognitiva, e a neuropsicologia, visando o entendimento do papel da emoção no processo de transmissão de
idéias e/ou sentimentos através da interpretação musical.
O levantamento de informações interdisciplinares referentes à expressão das emoções permitiu elaborar
uma teoria no qual possibilita entender de que forma a emoção do interprete no decorrer da performance
musical, pode influenciar o processo da transmissão expressiva musical.
Palavras-chave: Música, expressividade, emoção.

A expressividade na composição musical cognitiva e neuro-psicologia, que permitisse


A música tem um poder imenso. Tem a compreender melhor o aspecto universal da
capacidade de causar várias reações nos estados emoção e seu papel na expressividade musical,
mentais, físico e emocional do ser humano. A visando compreender melhor o processo de
música pode, desde relaxar, até exaltar e transmissão de idéias e emoções através da
excitar; transmitir sentimentos agradáveis e interpretação musical.
desagradáveis; trazer recordações; causar
alegria, euforia como também tensão e medo. As Prazer, espontaneidade e expressividade
emoções provocadas por essa arte são reais e
podem ser extremamente puras e profundas. Quantas vezes o vi levantar-se do sofá onde estava
Uma composição musical pode ter a deitado e pegar meu lugar no piano para tocar.
capacidade de representar cenas, despertar Como ele sentia a peça — que eu tinha tocado
afetos ou manifestar determinadas idéias e mal, que seja dito —, numa forma completamente
emoções. Esta capacidade é denominada diferente, apesar d’eu ter trabalhado longa e
arduamente nela! Assim terminava a aula, para
expressividade musical. Porém não é qualquer
não querer esquecer essa experiência, que tinha
combinação de sons que produz toda essa magia. escutado de uma forma religiosa. Na aula
Para conseguir transmitir um determinado senti- seguinte, quase satisfeito com a moda imitativa
mento ou idéia, o músico necessita de uma que eu havia trabalhado a peça, eu a toquei
combinação de sons apropriados e isso envolve novamente. Infelizmente, quando terminei,
muito conhecimento, técnica e sensibilidade, Chopin, mais uma vez, esticado sobre o sofá,
além da capacidade de conciliar o raciocínio, a levantou, com uma repreensão, sentou-se ao
habilidade e o sentimento. piano dizendo, ‘escute, é assim que deveria de
ser’. E ele procedeu a tocar novamente numa
Porém, uma composição com elementos maneira totalmente diferente. Eu pude responder
expressivos não é suficiente para que as idéias e apenas com lágrimas que essa demonstração não
os sentimentos contemplados em uma música se assemelhava em nada com a primeira.
possam ser transmitidos aos ouvintes. No meio Desencorajamento envolveu todo meu ser. Então
musical é bastante difundida a idéia de que para ele sentiu pena de mim, dizendo que estava quase
ocorrer efetivamente essa transmissão, é bom, ‘apenas não do jeito que o sinto’ (apud
necessária uma execução musical condizente. Há EIGELDINGER, 1986, p. 55 e 56)1.
vários estudos importantes (como o trabalho de
De acordo com o levantamento feito por
MEYER, 1958) que enfatizam a questão cultural
Eigeldinger, Chopin — respeitado e admirado por
da expressividade, outros (como o livro de
sua musicalidade — exigia naturalidade e simpli-
CHRISTIANI, 1974) fundamentam a dependência
cidade na execução pianística. Nada era mais
da racionalidade na questão expressiva musical.
estranho à natureza de Chopin do que exagero,
A importância da emoção na fingimento e sentimentalidade. Mas a execução
expressividade musical é bastante difundida no seca e inexpressiva também lhe era insuportável.
meio musical, mas geralmente esse conceito é Quando a peça era espontaneamente expressada,
defendido com argumentos empíricos. Este
trabalho buscou colher dados na psicologia 1
Tradução da autora.
158 SIMPEMUS3

com musicalidade inata, ele sentia uma grande muitas áreas cerebrais supérfluas, facilitando a
felicidade. distração.
Portanto, ao que parece, Chopin não exigia Na verdade, pensar demais no que está
de seus alunos uma interpretação definida. Mas acontecendo causa interrupção do fluxo – até a
esperava deles uma interpretação simples e idéia ‘Como estou fazendo isso maravilho-
samente’ pode interromper o fluxo. [...] O sinal
natural de acordo com suas inspirações do
característico do fluxo é uma sensação de alegria
momento, ou seja, sempre cambiantes de acordo
espontânea, e mesmo de êxtase. Por ser tão bom,
com seu estado de espírito. Pois ao exigir é intrinsecamente compensador... As pessoas em
simplicidade, espontaneidade e sinceridade para fluxo exibem um controle absoluto sobre o que
conseguir a expressividade, provavelmente estão fazendo, as reações perfeitamente
Chopin acreditava que a expressividade estaria sincronizadas com as cambiantes exigências da
vinculada à espontaneidade. tarefa. E, embora atuem no ponto mais alto
quando em fluxo, não se preocupam com seu
Atualmente, alguns dados conhecidos pela
desempenho, com a questão de sucesso ou
psicologia indicam a hipótese da real existência
fracasso - o que as motiva é o puro prazer do ato
desse vínculo. Durante duas décadas, o psicólogo em si. (GOLEMAN, 1995, p.104).
Mihaly Csikszentmihalyi coletou histórias de
máximo desempenho, no qual centenas de Esses dados coletados por Csikszentmihaly
profissionais de várias áreas, inclusive a musical, coincidem com algumas experiências vivenciadas
descreveram momentos em que se superavam por mim. Muitas vezes ao tocar piano, senti algo
em uma determinada atividade. que pode ser descrito como êxtase, pois uma
emoção intensa parecia envolver-me totalmente.
Nós entramos num tal nível de êxtase no qual As emoções sentidas foram desde uma grande
parece que não existimos. Tive essa sensação alegria até uma tristeza profunda, mas mesmo
várias vezes. Minha mão parece ser assim, ao tocar, tinha a sensação que uma beleza e
independente de mim, e nada tenho a ver com
um prazer imensos seqüestravam toda minha
o que se passa. Simplesmente fico ali
mente. As mãos pareciam não ser comandadas por
observando, em estado de respeito e
encantamento. E a coisa simplesmente flui por mim, adquirindo capacidade própria para tocarem
si mesma. (Mihaly Csikszentmihalyi apud sozinhas, realizando fraseados, nuanças de
GOLEMAN,1995, p.102). dinâmica e rubatos inusitados. Os dedos
conseguiam tirar timbres lindos, alguns dos quais
Essa descrição retrata o estado de um nunca tinha sequer ouvido, e todas essas mudanças
compositor nos momentos que ele julga que sua soavam naturais. E era como se cada nota
arte atinge o máximo de seu desempenho, e essa expressasse com uma profunda fidelidade, a
descrição é semelhante à de outras centenas de emoção que estava sentindo. Nesses momentos,
pessoas pesquisadas. O estado que descrevem é não tinha a menor noção de tempo ou espaço e
chamado de “fluxo” por Csikszentmihaly mesmo quando a emoção envolvida era de tristeza,
(GOLEMAN, 1995). por alguns momentos, uma grande felicidade se
Segundo Goleman (1995) quase todas as manifestava.
pessoas algumas vezes experimentam o fluxo, Quando esse fenômeno ocorria, parece que
sobretudo quando atingem o máximo do seu simultaneamente acontecia uma transmissão de
desempenho ou ao conseguirem transpor os seus sentimentos através da música. Mesmo as pessoas
limites. que, em circunstâncias normais, costumavam
No fluxo, a pessoa consegue se concentrar ignorar as execuções pianísticas, quando ouviam a
totalmente na atividade que está desenvolvendo música sendo tocada naquele estado de êxtase
e toda a emoção é dirigida e canalizada para a freqüentemente vinham comentar muito
realização daquela tarefa. Assim, ela perde emocionadas dizendo “que música bonita”.
noções de espaço e de tempo. A qualidade da Em contrapartida, quando durante a
atenção em fluxo é relaxada, mas altamente execução, ao invés do sentimento de prazer, a
concentrada. O cérebro se encontra num estado mente estava repleta de preocupações – relacio-
frio, e as tarefas são executadas com um nadas a qualquer aspecto — desde pessoal (horá-
dispêndio mínimo de energia mental, ativando rio, problema de saúde, etc), até técnico-inter-
apenas circuitos neurais sintonizados com a pretativo (dinâmica, articulação, etc) ou mesmo a
demanda do momento. Uma concentração preocupação em impressionar o ouvinte – a
forçada e contaminada de preocupações ativa interpretação soava artificial, a emoção era inibida
e a recepção do ouvinte não era comovida. Quando
simpósio de pesquisa em música 2006 159
havia um elogio, geralmente referia-se à atividade, dirigindo e canalizando toda a sua emoção
execução (técnica motora), e não mais à música para execução daquela tarefa (GOLEMAN, 1995).
em si. • A qualidade da atenção em fluxo é relaxada. As
tarefas são executadas com um mínimo dispêndio de
No começo, esses fatos eram percebidos energia mental, ativando apenas circuitos neurais
como simples coincidências. Entretanto o au- sintonizados com a demanda do momento
mento da freqüência fez com que essas mani- (GOLEMAN, 1995).
festações deixassem de ser ocasionais passassem • Portanto, se em fluxo as atividades psico-motoras e
a ser relevantes, desencadeando uma observação a emoção da pessoa estão concentradas na tarefa e
mais apurada para verificar se haveria ou não um são ativados apenas os circuitos neurais sintonizados
vínculo entre o estado de prazer e a expres- com aquela demanda, isto significa que a emoção,
sividade musical. fruto legítimo daquela expressão, estaria isenta de
fingimento, seria autêntica. Assim, toda a emoção
Por mais de sete anos, foram realizadas sentida estaria explicitamente representada por
comparações empíricas entre o estado de envol- cada gesto, toque e feição da pessoa que a estivesse
vimento emocional — manifestado por músicos, manifestando.
professores e alunos — e a qualidade expressiva • Para inibir, fingir ou exagerar uma emoção, seria
de suas execuções. necessária uma concentração forçada, o que
necessariamente interrompe o fluxo expressivo.
Com raras exceções, a capacidade expres-
Portanto seria razoável concluir que, para atingir o
siva tanto dos músicos profissionais como dos fluxo em uma performance musical, é necessário
estudantes, parece ser proporcional a seu estado que essa execução ocorra isenta de preocupação, ou
de prazer, assim como a inibição emotiva parece seja, o mais espontâneo possível.
ser proporcional ao estado de preocupação
enfrentado tanto pelos alunos, como dos Assim, podemos deduzir que Chopin sabia o
professores e intérpretes. que exigir de seus alunos para que conseguissem
Os alunos, após tocarem expressivamente atingir a expressividade. Possivelmente por essa
uma peça, ao serem questionados sobre quais razão ele tenha repreendido seu aluno por um
seriam os pensamentos envolvidos durante a esforço de imitação de sua própria execução. Além
execução, respondiam que estavam compro- disso, é ainda provável que, na sua opinião, esse
metidos emocionalmente com a música em si, caminho não levaria o aluno a atingir a
sem se preocuparem com notas, tempo, expressividade desejada.
dinâmica, ou qualquer outro aspecto. E uma Ao exigir simplicidade, espontaneidade e
observação muito interessante diz respeito ao sinceridade para obter a expressividade na
fato que, nestas ocasiões, estes estudantes execução, Chopin também provavelmente acredi-
tocavam de uma forma peculiar. tava que a expressividade estivesse vinculada à
As dinâmicas nem sempre eram tocadas espontaneidade.
como foram estudadas, e uma enorme variedade
de rubatos, fraseados e nuanças timbrísticas que A expressão das emoções
não tinham sido trabalhados em aula, fluíam de
Sempre gostei do velho e sábio ditado que
uma forma simples e natural, sem qualquer
diz: “ninguém nasce sabendo”, mas hoje eu sei que
exagero, e cada nota possuía seu próprio
ele está incompleto. Na verdade está faltando a
significado dentro do contexto musical. Todas
esse provérbio, um verbo no final da frase, como
essas variações ou nuanças não pareciam
por exemplo: “Ninguém nasce sabendo falar” ou
premeditadas. Ao contrário, qualquer tentativa
“ninguém nasce sabendo tocar piano”, etc... Se o
de controle poderia interromper a
provérbio se restringir a essas três palavras, ele se
expressividade. Muitas vezes, um erro bastava
tornará incorreto pois, na realidade já nascemos
para que toda aquela magia dissipasse, e
sabendo e muito. Na verdade, apenas uma parte da
voltasse tudo ao seu estado normal, pois a
capacidade dos seres humanos é passível de um
preocupação invadia a mente dos alunos e
aprendizado. Ninguém ensina um recém-nascido a
perturbava todo o seu estado de prazer.
mamar. Quando nascemos, o nosso organismo já
Estas observações demonstraram haver conhece todas as funções vitais básicas necessárias
indícios de que a expressividade esteja, de para a nossa sobrevivência e nenhuma dessas
alguma forma, vinculada com o estado de funções é aprendida. A capacidade mental de um
prazer, pois: recém-nascido é muito restrita, assim como o seu
controle motor. Por esta razão, a natureza tratou
• O fluxo é um estado no qual a pessoa consegue de automatizar todas estas funções vitais e ainda
concentrar-se e integrar-se totalmente à sua
as tornou subconscientes. E, portanto, este é o
160 SIMPEMUS3

motivo pelo qual o nosso corpo já nasce a mesma emoção do executante. Esse é
sabendo, pois caso contrário não seria possível a possivelmente o canal pelo qual o pianista transmite
nossa sobrevivência. suas idéias e emoções ao ouvinte.

A maior parte das atividades e movimentos


Identificação de expressões
das pessoas, como o batimento cardíaco, é
As descrições de cada expressão abordada
automática e involuntária. Geralmente, o ser
por Darwin são minuciosas e ricas. Para poder
humano sequer se dá conta desse conjunto
chegar à conclusão de que todas as principais
coordenado de ações, realizado involuntária e
expressões exibidas pelo homem são iguais ao redor
subconscientemente. Outras funções, como a
do mundo, por exemplo, Darwin colheu
respiração, podem ser sentidas, e algumas delas
informações de homens e mulheres de diferentes
podem, de certa maneira, ser controladas até
idades e culturas, inclusive daquelas consideradas
determinado limite, mas esses processos
como pessoas “das mais selvagens e peculiares
também são automáticos e involuntários.
raças humanas”, o que significa dizer represen-
Da mesma forma, o ser humano pode
tantes de populações com pouco contato com os
conseguir até segurar a respiração, mas apenas
europeus porque, na época em que foi realizado
durante algum tempo. Também não tem recursos
este estudo, o mundo ainda desconhecia os
inatos para impedir uma sensação repentina de
fenômenos da comunicação pelos meios de
medo ou ansiedade, simplesmente por querer
comunicação de massa e da globalização. Portanto
isolar-se de tais emoções. Em resumo, o controle
as influências culturais eram menos comuns.
que o ser humano tem do seu corpo é limitado.
Atualmente, mais de um século depois2,
Segundo a conclusão a que chega
algumas explicações sobre a fisiologia dessas
Duchenne (apud DARWIN, 2000), até mesmo um
expressões já são bem conhecidas. Segundo a
sorriso verdadeiro não é voluntário, o que
ciência, o sistema nervoso, ao receber alguma
significa dizer que um sorriso proposital não
informação ou estímulo que provoque uma emoção,
consegue ser idêntico ao espontâneo, pois a
ativa automaticamente uma cadeia de reações,
autêntica expressão de alegria em um sorriso
preparando o corpo para uma resposta específica a
natural requer a contração de dois músculos,
cada situação.
sendo um deles ativado apenas
Assim, ao sentir raiva, “o sangue flui para as
involuntariamente, ou seja, é impossível
mãos, tornando mais fácil sacar da arma ou golpear
movimentá-lo propositadamente (DAMASIO,
o inimigo; os batimentos cardíacos aceleram-se e
1996).
uma onda de hormônios, [...] energia suficiente
Portanto, a espontaneidade é importante
para uma atuação vigorosa (GOLEMAN, 1995, p.
para a expressividade por dois motivos. Além de
20)”. “Ao sentir amor, o conjunto das reações
ser importante para se manter em fluxo, há uma
provoca um estado geral de calma e satisfação,
outra questão fundamental pela própria
facilitando a cooperatividade (GOLEMAN, 1995, p.
fisiologia do ser humano: é difícil fingir uma
21).
expressão inexistente.
As reações procedentes das emoções são
Em 1872, foi publicado pela primeira vez o
automáticas e involuntárias, influenciando todas as
livro The expression of the emotions in Man and
atividades do ser humano como a postura do corpo,
Animals. Nesse trabalho, Charles Darwin (2000)
a cor da pele, a feição do rosto, os gestos, a
divulga três constatações importantes
entonação da voz, a forma de expressão. Reflete-se
envolvendo a questão da expressão humana, que
também na forma de tocar música.
podem inclusive colaborar para um melhor
Quando o pianista, por exemplo, sente raiva,
entendimento da expressividade musical:
o seu sangue flui para as mãos, e uma onda de
1. Um levantamento detalhado mostrou que as
hormônios gera uma energia suficiente para uma
principais expressões exibidas pelo homem — atuação vigorosa. Isso fará com que todo o seu
como sofrimento, tristeza, alegria, ódio — são modo de tocar seja modificado. Portanto, existe
iguais ao redor do mundo. Portanto, as variações uma forte propensão para que – quando um músico
fisiológicas refletidas nas interpretações estiver com raiva – seu corpo manifeste esse
resultantes dos sentimentos dos músicos, seriam sentimento, produzindo um toque fique mais
em muitos aspectos universais. rígido, um ritmo mais marcado e um fraseado mais
2. O homem tem a capacidade para reconhecer agressivo, ao passo que, quando este mesmo
instantaneamente as variações de expressões.
Dessa forma, o ouvinte teria capacidade para
2
identificar os sentimentos do executante. Pesquisas posteriores como de Paul Ekman (1973), concluíram
3. A existência do sentimento de empatia. Assim, o que a expressões tem componentes tanto universais como
culturais.
ouvinte, além de reconhecer, pode também sentir
simpósio de pesquisa em música 2006 161
músico estiver sentindo amor, o seu toque se palavras como tais. Escutam os sons das palavras,
torne mais terno, com o ritmo menos marcado e mas é como se estivessem ouvindo um idioma
o fraseado mais expressivo. estrangeiro.
Retomando os estudos de Darwin, o ser Sacks comenta que apesar da incapacidade
humano tem a capacidade de reconhecer as de compreender as palavras, os afásicos entendem
expressões de seu semelhante. Para reforçar quase tudo daquilo que lhes é dito. Parentes e
esta conclusão, Darwin descreve uma pesquisa enfermeiras, que conheciam bem aqueles
realizada por Duchenne, que mostrou três fotos pacientes, às vezes mal conseguiam acreditar que
de um mesmo homem a 24 pessoas. A primeira eles eram mesmo afásicos. Aliás, para poder
exibia a sua expressão passiva habitual. A comprovar a afasia, o neurologista precisava fazer
segunda, um sorriso espontâneo que foi imedia- um esforço extraordinário para suprir tom de voz,
tamente reconhecido por todos, que o viram ênfase ou inflexões sugestivos, pois se o médico
como fiel e natural. Ao mostrar a terceira com falasse com naturalidade, eles percebiam parcial
um sorriso artificial, três das “24 pessoas sequer ou até mesmo totalmente o sentido do que lhes era
conseguiram dizer do que se tratava, enquanto dito.
as outras, apesar de perceberem que a expressão
era próxima de um sorriso, deram respostas A fala – a fala natural – não se constitui apenas por
como “uma piada maliciosa”, “tentando rir”, palavras [...] só em proposições, ela consiste na
expressão vocal – em que exprimimos tudo o que
“risada forçada”, “sorriso pela metade”, etc.
queremos dizer com todo o nosso ser [...] Essa era
(DARWIN, 2000, p. 191).
a chave para a compreensão dos afásicos, mesmo
Portanto, a associação dessas explicações quando eles não conseguiam entender coisa
nos leva a acreditar que se a expressão humana alguma da palavra em si. Pois, embora as
está alicerçada em bases fisiológicas, este palavras, as construções verbais em si mesmas
terreno é também comum e dá origem à possam nada transmitir, a linguagem falada
expressividade interpretativa musical. normalmente é impregnada de tom, envolta em
uma expressividade que transcende o verbal; e é
Tom do sentimento precisamente essa expressividade, tão profunda,
variada, complexa e sutil que é perfeitamente
Chopin, em seu Projet de Méthode (apud
preservada na afasia (SACKS, 2001, p.97).
EIGELDINGER, 1986), escreveu que a música é a
manifestação de nossos pensamentos e senti-
Para Sacks, as pessoas que convivem
mentos através dos sons, e que a linguagem
estreitamente com afásicos a princípio não
indefinida do homem é som. Música, a língua
percebem grandes mudanças. Gradativamente,
indefinida.
porém, passam a perceber uma grande mudança na
Mas, a análise de alguns estudos realizados
qual a compreensão da fala dos afásicos é
na área da neurociência fornece claros indícios
substituída por uma imensa intensificação da
de que a música poderia ser bem mais do que
percepção das expressões vocais imbuídas de
uma linguagem indefinida.
emoção.
De acordo com o neurologista Oliver Sacks,
tom, ênfases e inflexões têm a capacidade de Em outras palavras, eles desenvolvem uma
manifestar nossos pensamentos e sentimentos. sensibilidade notável quase infalível ao tom e ao
Formada por tons, ênfases e inflexões, a música sentimento. Portanto, parentes, médicos, amigos e
provavelmente também possui a mesma capaci- enfermeiras que convivem com afásicos têm a
dade de manifestação. Entretanto para Sacks, ao sensação de que não se pode mentir para eles, já
contrário do que Chopin acreditava, o som não é que como não compreendem as palavras, não
uma linguagem indefinida. Ele pode ser uma podem ser enganados por elas. Além disso, aquilo
forma de expressão até mais precisa do que a que os afásicos conseguem compreender, acaba
própria palavra. tendo uma precisão infalível. As expressões que
De acordo com Sacks, afásicos são pessoas acompanham as palavras são espontâneas e
que, em virtude de uma lesão em uma involuntárias e essas não podem ser simuladas ou
determinada região do lado esquerdo do falsificadas, como se pode tão facilmente fazer
cérebro3, perdem a capacidade de compreender com palavras.
as palavras em si. Elas têm a percepção do som, A capacidade desenvolvida por afásicos
da entoação e da expressão daquilo que lhes é descrita por Sacks é uma grande evidência de que o
dito, mas não são capazes de distinguir as ser humano possui a capacidade de perceber a
expressão de emoções por meio de “tons”. E não
3
são apenas os afásicos que teriam esse dom de
Conhecida como lobo temporal.
162 SIMPEMUS3

reconhecer o “tom do sentimento” (SACKS, 3. Uma interpretação condizente com esse propósito
2001). Apesar das pessoas sem afasia não terem 4. A identificação pelos ouvintes dos elementos
esse dom tão desenvolvido quanto os afásicos, expressivos presentes na música
5. A empatia por parte do ouvinte.4
esse dom é natural a todos os seres humanos.
Conclusão
Empatia: via de transmissão da emoção O poder da música em expressar senti-
Na empatia encontramos mais uma mentos é reconhecido desde a antiga Grécia,
possibilidade de explicação do processo da porém uma composição musical com elementos
transmissão de sentimento do intérprete para o expressivos não seria suficiente para que as idéias
ouvinte. Uma vez que a emoção do intérprete é e os sentimentos imbuídos na música fossem
reconhecida pelo ouvinte através do tom, a transmitidos aos ouvintes. Para possibilitar essa
empatia viabiliza naturalmente a transmissão transmissão, seria necessária uma interpretação
dos sentimentos. Segundo Darwin: condizente com esta proposta.
Apesar da questão cultural e a racionalidade
influir diretamente na expressividade, os dados
O sentimento de empatia é normalmente
interdisciplinares apresentados nesta pesquisa
explicado pelo fato de que, quando vemos ou
sabemos do sofrimento de alguém, a idéia do levam-nos a compreender que a expressão humana
sofrimento é tão fortemente evocada que nós está alicerçada nas mudanças fisiológicas
mesmos sofremos... é surpreendente como a resultantes da emoção do intérprete, e este
empatia pelo sofrimento alheio pode despertar terreno é também comum e dá origem à
as lágrimas mais facilmente do que a nossa expressividade interpretativa musical, reforçando a
própria aflição... Causa ainda mais impressão idéia defendida por vários educadores musicais de
que a empatia pela felicidade ou sorte daqueles que a emoção no momento da execução musical é
que amamos ternamente provoque em nós essa
fundamental para uma interpretação expressiva,
mesma reação...
não é mito ou folclore, mas é real.
Portanto, pelo que foi tratado até agora,
para que uma música tenha capacidade para
influenciar partes “ocultas da alma” e das
“esferas sentimentais” dos ouvintes, são
necessárias: __________________
4
Embora a questão da parte da empatia do ouvinte seja um
1. Músicas que contenham elementos expressivos assunto de extrema relevância, a sua abordagem foge ao escopo
2. A compreensão desses elementos pelos desta pesquisa, pois trata-se de um tema muito complexo,
intérpretes profundo e extenso.

Referências
CHRISTIANI, Adolf. F. The principles of expression in pianoforte playing. New York: Da Capo Press, 1974.
DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DARWIN, Charles. A expressão das emoções no homem e nos animais. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
GARDNER, Howard. Estruturas da mente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
GOLEMAN, Daniel. Inteligência emocional. Rio de Janeiro: Objetiva. 1995
EIGELDINGER, Jean-Jacques. Chopin pianist and teacher. Nova York: Cambridge University Press, 1986. In:
MEYER, Leonard. The Meaning of Emotion in Music. Chicago: University of Chicago Press, 1956.
SACKS, Oliver. O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu. Rio de Janeiro: Companhia das Letras,
2001.
SCHERER, K. R.; EKMAN, P. Approaches to Emotion. Hilsdale: Lawrence Erlbaum, 1984.
Estrelinhas brasileiras: um paralelo entre canções folclóricas brasileiras e
internacionais
Maria Ignês Scavone de Mello Teixeira
Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Resumo
O trabalho aqui apresentado começou no início da década de 1990, em um estudo minucioso sobre o paralelo
a ser estabelecido entre as peças contidas no primeiro livro para piano do Método Suzuki, que é composto
por dezenove canções folclóricas internacionais, e a adaptação de sua harmonia e tonalidades a dezenove
músicas folclóricas brasileiras.
O título Estrelinhas Brasileiras é devido ao fato de que Estrelinhas é o nome de uma peça emblemática do
repertório do Método Suzuki. É uma conhecida melodia do folclore francês, tendo inclusive sido adaptada
pelo compositor Wolfgang Amadeus Mozart com o título: “12 Variações sobre: Ah! Vous dirai-je, Maman” KV
265.
Shinichi Suzuki (1900-1999), músico japonês criador do método que leva seu nome, também fez variações
sobre o tema das Estrelinhas (em inglês Twinkle, twinkle little stars), e os diferentes ritmos são utilizados
como exercícios técnicos de grande valor no desenvolvimento pianistico.
Suzuki (1983) organizou as músicas de seu primeiro volume, com um grau progressivo de adiantamento de
forma que ao ultrapassarem as dificuldades técnicas das peças musicais, os alunos evoluam no domínio do
instrumento.
Estrelinhas Brasileiras é portanto, uma coletânea de melodias folclóricas do nosso cancioneiro, adaptadas
para o estudo de piano para principiantes, com aspectos similares aos encontrados no Volume I do Método
Suzuki, aproveitando deste, conhecimentos e habilidades adquiridas e dificuldades já vencidas nos
acompanhamentos, tonalidades e melodias.
Estreitar o contato com nossas raízes musicais, procurando divulgar as canções folclóricas brasileiras no
âmbito nacional e internacional, sobretudo nos paises onde o Método Suzuki é adotado, é ainda outra
intenção do livro Estrelinhas Brasileiras.

Algumas considerações sobre o Método Suzuki Defendia ainda o músico japonês que as
ou Método da Educação do Talento Musical habilidades naturais aparecem através da prática: o
O método da educação do talento musical, recém-nascido ouve sua mãe e familiares falando, e
Método Suzuki, foi criado no Japão pelo com um ano de idade aproximadamente, começa a
violinista e pedagogo Shinichi Suzuki (1900- repetir as primeiras palavras como “mamãe,
1999), na década de 1950 e é baseado nos papai”, até começar a formular pequenas frases.
princípios do aprendizado da língua materna. Então, por volta dos dois anos de idade, já possui
um vocabulário bastante extenso, e aos quatro anos
O termo Educação do Talento é uma
começará a ter as primeiras noções da escrita e
alusão ao fato de que a aquisição dos
leitura de sua língua materna.
conhecimentos da língua materna é acessível a
qualquer criança. O aprendizado musical segundo O mesmo processo é aplicado no Método da
o modelo do Método Suzuki, é semelhante ao do Educação do Talento Musical, ou Método Suzuki; as
aprendizado da língua materna, o que levou o crianças criadas num ambiente musical adequado,
músico a acreditar que “talento não é um acaso poderão adquirir habilidade musical e chegarão a
do nascimento” (SUZUKI, 1983, p. 9), pois trata- dominar seu instrumento, com a mesma facilidade
se de educar e lapidar o talento natural que cada com que aprendem a sua língua materna.
ser humano traz dentro de si. As crianças que iniciam cedo o estudo de um
Suzuki, (1983), costumava dizer “no Japão instrumento pelo Método Suzuki, têm encontrado
todas as crianças falam japonês!” (p.11), idioma rápido domínio do aprendizado, pois sua didática é
complexo, como qualquer outro, mas tão fácil facilitadora da aquisição da prática instrumental.
para as crianças japonesas. Ele observou que Os recursos indicados por essa metodologia
todas as crianças aprendem a falar a língua incluem ouvir e praticar o repertório,
materna, por mais difícil que seja; falam e desenvolvendo em primeiro lugar o ouvido musical,
entendem com desenvoltura e naturalidade seu a coordenação motora e habilidades técnicas no
idioma, num processo gradativo e sem grandes instrumento. “Nenhum talento é pequeno demais
dificuldades. para uma tentativa” (SUZUKI, 1993, p. 38).
164 SIMPEMUS3

Implicações da Idéia da Língua Materna aprenderá no instrumento, do mesmo modo como o


Suzuki (1983), usou algumas palavras chave bebê ouve sem interrupção todos os sons da
no decorrer do desenvolvimento de suas teorias linguagem de seu idioma.
que são muito utilizadas para nortear a prática A repetição agrada as crianças, pois é comum
educativa musical pelos professores que aplicam verificarmos que elas gostam de ouvir as histórias
o método, como: “educação é amor” (p. 7) , repetidas vezes, assim como cantar e ouvir as
“talento não é um acaso do nascimento” (p. 9), mesmas canções. “Nós temos que praticar e educar
“habilidade gera habilidade, habilidade gera nossos talentos, isto é repetir as atividades até que
sucesso, sucesso motiva” (p. 13) “boas condições elas aconteçam naturalmente, de modo fácil e
ambientais produzem habilidades superiores” (p. simplesmente” (SUZUKI, 1993, p. 43).
19) e defendia ainda o respeito à Após memorizar todas as melodias pelo fato
individualidade, entre outros conceitos. de ouvir, o processo de aprendizado do instru-
No que diz respeito à “educação é amor” mento será facilitado assim como acontece com o
(p. 7), o papel dos pais tem uma especial aprendizado das palavras do vocabulário da língua
relevância dentro do Método Suzuki, que possui a materna. A prática de ouvir ajuda a desenvolver a
simbologia do triângulo eqüilátero, ou seja, os habilidade musical com mais naturalidade.
pais, os alunos e os professores, têm a mesma O respeito à individualidade vai levar os
importância, na construção do conhecimento educadores musicais e os pais a fazerem uma
musical dos educandos. leitura detalhada de cada criança, observando cada
O comparecimento dos pais para passo de seu desenvolvimento para que o
acompanhar as crianças pequenas na aula de aprendizado musical seja natural, tornando o ato
música, e no estudo em casa, é encorajado, de tocar lúdico e prazeroso.
porque promove melhores resultados de
aprendizagem. Esta presença traz o incentivo da
Estrelinhas Brasileiras e o Método Suzuki
coragem, da iniciativa, da responsabilidade e
proporciona momentos de participação efetiva As canções folclóricas em geral são parte da
dos pais na educação musical da criança. cultura de uma nação. Elas já são assimiladas pelos
“Estudos revelam que inúmeras pessoas desde a mais tenra idade, quando os pais cantam
destacadas e originais em suas realizações, para seus filhos. Estes entram em contato com as
foram estimuladas pelos pais ou outros parentes músicas por meio da voz de adultos, de outras
desde a infância” (FERGUSON, 1938, p. 75). crianças e ouvindo gravações.
A construção de um ambiente ideal para A afetividade que acompanha a vivência
facilitar o desenvolvimento das habilidades musical infantil junto aos seus familiares, torna
musicais das crianças, é bastante indicado pelo essa experiência prazerosa, divertida e de fácil
sistema Suzuki de ensino musical. Suzuki (1983), aprendizado.
refere-se a este aspecto acreditando que o O conhecimento adquirido das melodias
indivíduo recebe grande influência do meio. folclóricas desde a primeira infância, quando as
O ambiente musical pode e deve ser crianças ouvem e repetem essas canções, resulta na
estimulado em casa não somente pelo estudo do familiaridade dos temas musicais nelas
instrumento, mas pelo contato com obras encontrados, na memória e no imaginário infantil,
musicais, por meio da audição de gravações e como os sons da sua língua materna.
também pela presença constante em salas de As canções que conhecidas e cantadas,
concerto. As canções folclóricas cantadas pelos tornam-se muito mais fáceis de serem tocadas, da
pais e familiares desde o nascimento da criança mesma forma como no aprendizado do idioma
possuem grande significado na construção do natal, ou seja, torna-se mais fácil escrever as
conhecimento musical e do imaginário infantil. palavras conhecidas que são pronunciadas com
“Muitos de nós guardamos no inconsciente, desenvoltura. Este é portanto o processo da
lembranças de acalantos associados a um colo iniciação de um instrumento musical pelo método
quentinho, fragmentos de canções que, ao serem Suzuki: conhecer as músicas pela audição para
entoadas,remetem-nos à infância” (FONTOURA E depois aprender a tocá-las.
SILVA, 2001, p. 1). Este pensamento levou Suzuki (1983) a
Ainda como agentes facilitadores do desenvolver seu método iniciando com as canções
processo de aprendizagem, cabe aos pais tomar folclóricas internacionais, que são muito familiares
algumas providências em casa, como levar a às crianças, o que é um fator que facilita a
criança a ouvir diariamente o repertório que execução das peças no instrumento musical.
simpósio de pesquisa em música 2006 165
Na elaboração do livro Estrelinhas Brasi- (KOPPELMAN, 1978, p. 2). O aprendizado das
leiras, foi utilizado o mesmo raciocínio para a canções contidas no livro Estrelinhas Brasileiras,
determinação dos seus objetivos. As canções utilizando o mesmo processo didático apresentado
folclóricas brasileiras, em geral conhecidas pelas no Método Suzuki, poderá enriquecer o repertório
crianças, e são portanto facilitadoras no pianístico infantil, de modo natural, se levarmos
exercício do aprendizado do piano, pois suas em conta o fato das crianças já conhecerem as
melodias já se encontram sedimentadas na sua melodias do folclore brasileiro, podendo dominá-las
memória . com facilidade.
Cada música do volume I do Método Suzuki Resgatar pela audição, pela apreciação e pela
possui uma correspondente brasileira, no que diz interpretação as músicas do folclore brasileiro,
respeito à tonalidade, à harmonia, ao caráter, à assim como ampliar a técnica pianística dos alunos
dinâmica, à alternância melódica das mãos principiantes pelo método aqui citado, foi a
esquerda e direita, e foram adaptadas peças em principal preocupação na elaboração deste
uníssono no mesmo padrão do livro do Método trabalho, sabendo também que “a compreensão
Suzuki, procurando inclusive manter sempre que áudio-oral auxilia o fluxo musical e a linha rítmica a
possível o final semelhante nas duas versões. A serem introduzidos”, como mostra Patkin (1997),
parte harmônica das músicas ali contidas, segue no prefácio do livro aqui apresentado.
padrões muito semelhantes aos do método japo- As canções já conhecidas pelas crianças lhes
nês, utilizando os baixos de Alberti, acordes trazem prazer pela familiaridade, pela facilidade
perfeitos maiores e inversões, para observar o com que as aprendem a tocar, e causam
paralelo estabelecido entre as canções inter- encantamento aos adultos ao vê-las executá-las
nacionais e as brasileiras. com habilidade no instrumento. “Habilidade gera
No ensino de piano, a coordenação das sucesso, e sucesso motiva” (SUZUKI, 1993, p. 13).
mãos direita e esquerda, é um fator que requer As semelhanças encontradas nas peças da
muito trabalho dos principiantes, sejam eles coletânea brasileira – Estrelinhas Brasileiras com o
adultos ou crianças. No Método Suzuki, o método de canções folclóricas internacionais que o
primeiro livro se comparado aos primeiros livros inspirou – Método Suzuki, nos mostram a beleza
de outros métodos de iniciação, possui peças das canções populares infantis, e das bases
bem mais complexas, principalmente para a mão culturais das diferentes nações. As cantigas
esquerda, mas que com a aplicação da originárias das raízes de uma cultura são
metodologia adequada são facilmente apreciadas, sobrevivem ao longo dos anos, e devem
assimiladas. O livro Estrelinhas Brasileiras ser valorizadas. “Uma canção folclórica é como
observa a mesma complexidade, em se tratando uma corrente feita de elos invisíveis, porém fortes,
de alunos iniciantes. tão fortes, a ponto de unir países, continentes, um
“Suzuki acreditava que o primeiro princípio planeta inteiro”. (FONTOURA E SILVA, 2001, p. 1).
no estudo de um instrumento é aprender a ouvir”

Referências
FERGUSON, Marilyn. A Conspiração Aquariana. Rio de Janeiro: Record, 1995.
FONTOURA, Mara; SILVA, Roberto Lydio. Cancioneiro Folclórico Infantil: um pouco mais do que já foi dito.
Curitiba: Cancioneiro, 2001.
KOPPELMAN, Doris. Introducing Suzuki Piano. San Diego: Dichter Press, 1978.
SUZUKI, Shinichi. Educação é Amor. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 1983.
SUZUKI, Shinichi. Suzuki Piano School. Tokio: Zen-on Music, 1978.
TEIXEIRA, Maria Ignês Scavone de Mello. Estrelinhas Brasileiras. Curitiba: Editora UFPR, 1997.
Significação musical: produções a partir do “fazer musical” e de histórias de
relação com a música
Patrícia Wazlawick
Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo
O objetivo deste texto é discutir a significação musical ao tecer uma interface interdisciplinar entre aspectos
da Musicologia, Musicoterapia e Psicologia Histórico-Cultural. Trabalhamos com aportes teóricos de Reimer,
Meyer, Martin, Stige, Ruud, Vygotski e Luria. Neste “interjogo” enfatizamos que a significação musical pode
ser tecida a partir da relação dinâmica entre os elementos propriamente musicais ao estarem atrelados à
construção de significados e sentidos, por sujeitos em relação, a partir de suas vivências e experiências nos
contextos histórico-culturais. Os significados e sentidos da música demonstram sua utilização viva e a
constante movimentação de sujeitos implicados com a atividade musical, que constituem esta atividade
enquanto ela também se faz constituinte deles.
Palavras-chave: significação musical; significados e sentidos da música; perspectiva histórico-cultural.

Apontamentos iniciais (resultado da relação de seus elementos) e com


Este texto pretende discutir a questão da toda uma rede de significados construídos no
significação musical a partir de uma interface mundo social.
interdisciplinar entre temáticas da Musicologia, A atividade musical, enquanto integrante de
Musicoterapia2 e da perspectiva Histórico- uma cultura, criada e recriada pelo fazer reflexivo-
Cultural da Psicologia. Nesta trama existe a afetivo do homem, é vivida no contexto social,
possibilidade da significação musical emergir das histórico, localizado no tempo e no espaço, na
objetivações musicais ao estarem articuladas e dimensão coletiva onde pode receber significações
situadas com os/nos momentos das histórias de que são partilhadas socialmente, e sentidos
relação com a música vividas por sujeitos singulares que são tecidos a partir da dimensão
concretos. Neste ponto a significação musical afetiva e dos significados compartilhados. Desta
passa a contemplar também a idéia de produção forma, falamos de vivências coletivas e singulares
de significados e sentidos da música. da música, sempre em meio ao contexto histórico-
Ao direcionarmos a compreensão pelo viés social.
da Psicologia Histórico-Cultural, percebemos que Entendendo a música como um fazer que se
a música é criada pela utilização cultural e constrói pela ação do sujeito em relação no
pessoal dos sons. A música age sobre a cultura contexto histórico-cultural, entendemos o sujeito
que lhe dá forma e de onde ela deriva, ao como constituído e constituinte do contexto no
mesmo tempo em que se insere na estrutura qual está inserido. De acordo com Zanella (1999),
dinâmica onde ela própria se formou (TOMATIS & “todo indivíduo enquanto ser social insere-se,
VILAIN, 1991). Está inserida nas várias atividades desde o momento em que nasce, em um contexto
sociais, donde decorrem múltiplos significados. A cultural, apropriando-se dele e modificando-o
cultura dá os referenciais, bem como os ativamente, ao mesmo tempo em que é por ele
instrumentos materiais e simbólicos que cada modificado” (p. 153). As manifestações culturais
sujeito se apropria para criar, tecer e orientar derivam da atividade humana conjunta, assim como
suas construções, neste caso, as atividades as características singulares do sujeito, sendo social
criadoras e musicais. Quando se vivencia a e historicamente constituídas. As atividades
música se relaciona com a matéria musical em si culturais contribuem, em relação às significações
engendradas e apropriadas pelos sujeitos que as
2
De acordo com o musicoterapeuta norte-americano Dr. executam, para a constituição dos sujeitos (p. 153).
Kenneth Bruscia, “a musicoterapia é transdisciplinar por
Configura-se, então, uma dinâ-mica entre sujeito,
natureza. Isto significa que ela não é uma disciplina
isolada, singularmente definida e com fronteiras contextos sociais, cultura, linguagem, pensamento,
imutáveis. Ao contrário, ela é uma combinação de muitas atividade, emoções, sentimentos e dimensão
disciplinas em torno de duas áreas: música e terapia [...].
Disciplinas relacionadas com a música se fundem com as
artístico-criadora, como visto em Vygotski (1987,
disciplinas relacionadas com a terapia para formar o 2003), Geertz (1989), Caroll (1987), Maheirie (2001,
híbrido designado de musicoterapia” (Bruscia, 2000, p.8). 2003).
Na área da música pode-se citar, dentre as disciplinas,
também a Psicomusicologia, Etnomusicologia, Musicologia Sendo assim, discutiremos neste artigo, os
e Nova Musicologia. significados e sentidos de acordo com a Psicologia
simpósio de pesquisa em música 2006 167
Histórico-Cultural, a significação musical de com o momento e a situação dados” (LURIA, 1986,
acordo com concepções estéticas, e na interface p. 45). O sentido pode designar algo
com a Musicoterapia, as questões de como pode completamente diferente de pessoa para pessoa e
se dar a “construção” desta significação. em circunstâncias diversas, pois do significado
objetivo da palavra a pessoa separa aquela “parte”
Significados e Sentidos que lhe interessa, de acordo com a situação, e
Vygotski (1987, 1992) e Luria (1986), no configura o sentido. Este está diretamente ligado
estudo do pensamento e da linguagem como ao uso da palavra, de modo idiossincrático.
funções psicológicas superiores, apontam para a
mediação semiótica na constituição da A mesma palavra possui um significado, formado
consciência humana. A palavra é tomada como a objetivamente ao longo da história e que, em
forma potencial, conserva-se para todas as
unidade fundamental da linguagem. Nesta
pessoas, refletindo as coisas com diferente
posição ela apresenta dois componentes
profundidade e amplitude. Porém, junto com o
principais: o primeiro é sua referência objetal, significado, cada palavra tem um sentido, que
pois designa um objeto, traço, ação ou relação; entendemos como a separação, neste significado,
o segundo é o seu significado, compreendido daqueles aspectos ligados à situação dada e com
como a função de separação de determinados as vivências afetivas [grifo nosso] do sujeito
traços no objeto, sua generalização e a (LURIA, 1986, p. 45).
introdução em um determinado sistema de
categorias (LURIA, 1986). Na base do sentido encontra-se a percepção
Tanto Vygotski quanto Luria observaram do que o falante quer precisamente dizer, bem
que estes dois componentes da palavra não como quais são os motivos que o levam a efetuar a
permanecem imutáveis. “A palavra constitui-se alocução verbal. Assim, o sentido é o elemento
em um aparelho que reflete o mundo externo em fundamental da “utilização viva”, ligada a uma
seus enlaces e relações [...] à medida que a situação concreta afetiva (emoções e sentimentos)
criança se desenvolve, muda o significado da por parte do sujeito.
palavra, quer dizer que também muda o reflexo Relacionando significado e sentido, Maheirie
daqueles enlaces e relações que, através da (2003), aponta, em base a Vygotski, que o
palavra, determinam a estrutura de sua significado engloba a dimensão coletiva, ou seja, as
consciência” (Vygotski citado por LURIA, 1986, p. significações que são vividas coletivamente. O
44). sentido, por sua vez, envolve o vivido de forma
Segundo Luria (1986) o significado é “o singular. Ambos são produzidos no contexto social,
sistema de relações que se formou uma vez que é impossível descolar o sujeito de seus
objetivamente no processo histórico e que está contextos. O sentido é uma formação dinâmica e
encerado na palavra” (p. 45). Quando se assimila complexa que tem zonas de estabilidade diferente,
o significado da palavra, domina-se a experiência sendo o significado uma dessas zonas de sentido,
social, refletindo o mundo com plenitude e por sua vez, aquela mais estável, um pouco mais
profundidade diferentes. precisa. Ao estar de acordo com as vivências nos
Segundo Vygotski (1992) o significado de diferentes contextos, o sentido que a palavra
uma palavra reflete a união ou a unidade do adquire pode se transformar.
pensamento e da linguagem. Diz ele: “uma Existe, segundo Vygotski (1992), um
palavra carente de significado não é uma dinamismo entre significados e sentidos das
palavra, é um som vazio” (p. 289). O significado palavras. Compreende o autor que “a palavra em
é o traço necessário que se faz constitutivo da sua singularidade tem só um significado. Mas este
própria palavra, é uma generalização ou um significado não é mais que uma potência que se
conceito conferido por sua utilização no contexto realiza na linguagem viva e no qual este significado
histórico-social, que surge como um fenômeno do é tão somente uma pedra no edifício do sentido”
pensamento, construído e compartilhado em uma (p. 333). O significado da palavra pode, então, ser
coletividade. Sendo assim, o significado não é enriquecido com o acréscimo dos sentidos
permanente, é uma formação dinâmica, posto procedentes do contexto, que mudam
que varia de acordo com a mudança das formas constantemente de um sujeito a outro, inclusive
de funcionamento do pensamento. para o mesmo sujeito em diferentes situações.
O sentido, por sua vez, configura o
A palavra cobra sentido no contexto da frase, mas
“significado individual da palavra, separado
a frase o toma por sua vez no contexto do
deste sistema objetivo de enlaces; está
parágrafo, o parágrafo o deve ao contexto do livro
composto por aqueles enlaces que têm relação e o livro o adquire no contexto de toda a criação
168 SIMPEMUS3

do autor. O verdadeiro sentido de cada palavra A posição absolutista indica que a signifi-
está determinado, em definitivo, pela cação musical encontra-se exclusivamente no
abundância dos elementos existentes na próprio trabalho de arte, nas relações estabele-
consciência referidos ao expresso pela palavra
cidas intrinsecamente na composição musical. Esta
em questão. Segundo Pauhlan, o sentido da
posição prima por um significado abstrato,
Terra está no Sistema Solar, que complementa
a idéia de Terra; o Sistema Solar tem sentido na intelectual, intramusical (MEYER, 1956). Reimer
Via Láctea e o sentido da Via Láctea..., quer (1970) complementa que no absolutismo o
dizer que nunca abarcamos o sentido completo significado da obra está nela mesma, é para ser
das palavras. A palavra é uma fonte inesgotável encontrado dentro dela.
de novos problemas, seu sentido nunca está A posição referencialista explica que a música
acabado. Em definitivo, o sentido das palavras comunica significados que se referem ao mundo
depende conjuntamente da interpretação do extra musical dos conceitos, estados e caráter
mundo de cada qual e da estrutura interna da
emocional, idéias, atitudes, eventos que a obra se
personalidade (VYGOTSKI, 1992, p. 334).
“refere”, ou seja, significados que seriam
encontrados fora de seu contexto, fora de suas
Sendo assim, o “sentido” requer e
qualidades puramente artísticas. A função da obra
pressupõe que exista “relação”. Aí vários
de arte seria ajudar a entender, fazer vivenciar
movimentos são possíveis: as palavras podem
algo que está “fora” dela.
dissociar-se de seu sentido; podem mudar de
A posição absolutista admite outras duas
sentido; os sentidos podem modificar as
posições: a formalista e a expressionista. O
palavras; o sentido pode separar-se de uma
formalismo absoluto diz que o significado da música
palavra e pode somar-se a outras; as palavras
é puramente intelectual, existindo a partir da
podem ser substituídas sem alterar-se o sentido.
percepção e da compreensão das relações musicais
Movimentos que apontam para relações entre
na composição. Os sons na música significam
sentido e palavra, no plano que interliga estes
“somente eles próprios” (REIMER, 1970, p. 20). Por
signos, e que são possíveis graças aos
reconhecer e apreciar a “forma pela forma” prima
movimentos engendrados por sujeitos que estão
apelo aspecto do significado advindo de uma
em relação, articulando-os em contextos de
compreensão intelectual-racional. “Os sentimentos
vida.
e emoções definidos não são suscetíveis de serem
Nesta dinâmica entre significados e senti-
personificados na música. Ao contrário, as idéias
dos, a dimensão objetiva não pode ser descolada
expressas pelo compositor são inicialmente e
da dimensão subjetiva. O sujeito existe e
principalmente de natureza puramente musical” (p.
relaciona-se no todo das dimensões objetivas e
21).
subjetivas, que se entrecruzam, que se afirmam,
O expressionismo vinculado ao absolutismo
que se formam uma na outra, que se negam,
defende a idéia de que o significado da música
onde suas ações são sentidas, significadas, onde
reside na percepção e compreensão das relações
existe a estreita relação entre pensamento,
musicais do trabalho artístico, sendo estas relações
emoção e sentimento, onde a vida se realiza e só
capazes de estimular sentimentos e emoções no
é possível nesta totalidade dialética.
ouvinte (MEYER, 1956). Concorda com o formalismo
quando diz que o significado e o valor da obra de
Significação em Música
arte é para ser encontrado nas qualidades estéticas
Concepções advindas da área da
da obra. Não aceita os significados extra-musicais
Musicologia e Estética sobre a experiência
do referencialismo, mas aponta que a relação da
musical remetem ao fato de que a música tem
arte com a vida deveria ser reconhecida (REIMER,
um significado e que este significado é
1970). Os expressionistas absolutos acreditam que
comunicado para quem a faz e para quem a
“os significados emocionais expressivos emergem
ouve. Meyer (1956) ao estudar o tema das
em respostas à música e que estes existem sem
emoções e significados na música retoma as
referência ao mundo extramusical de conceitos,
conhecidas idéias estéticas sobre as posições
ações e estados emocionais humanos” (MEYER,
absolutista e referencialista do significado
1956, p. 4).
musical.
Os expressionistas referenciais dizem que a
Reimer (1970) compartilhando das idéias
expressão emocional depende da compreensão do
de Meyer (1956) ressalta que os termos
conteúdo a que a música se refere fora dela.
“absolutismo” e “referencialismo” indicam
Mesmo com todas estas tentativas de
“onde ir” para encontrar o significado e o valor
explicação sobre o que a música venha a significar,
da obra de arte.
percebe-se que não existem significados universais
simpósio de pesquisa em música 2006 169
da música. Ao se considerar a existência de Então, de que forma se pode olhar esta
significados específicos exclui-se as caracterís- questão? Como compreender os aspectos de
ticas culturais bem como espaços-temporais significação e comunicação em música? O
presentes nos diversos momentos da história direcionamento destes estudos aponta que é
humana. Além disso, não se pode esquecer que importante centrar a análise nos elementos
estes estudos acerca da significação musical musicais e também nos significados e experiências
baseiam-se no mundo sonoro da música afetivas a partir da relação vivida com a música.
ocidental. Talvez seria o momento de se voltar para a
Alguns pontos falhos podem ser construção pessoal e social do significado musical,
encontrados nestas posições. Meyer (1956), para as ações que cada pessoa, em relação com a
salienta que a posição expressionista absolutista música, estabelece ao longo de sua vida. Nesta
não conseguiu explicar os processos nos quais perspectiva, é preciso atentar para os aspectos que
padrões sonoros percebidos são experenciados permitem compreender que a música tem
enquanto sentimentos e emoções. Já os formalis- significado para cada pessoa na medida em que se
tas apresentam dificuldade de explicar como vincula à experiência vivida, passada, presente e
uma sucessão abstrata, não-referencial de notas, do porvir, e quando proporciona articular o vivido
torna-se significativa, ou seja, não conseguem junto aos sentimentos e emoções à própria música.
explicar em que sentido tais padrões musicais Em termos de construção social do significado
podem ter significado, ao mesmo tempo em que musical, Martin aponta que “os significados da
não explicam a relação que possa existir entre a música não são nem inerentes nem reconhecidos
passagem do significado musical para o intuitivamente, mas emergem e tornam-se
significado em geral. estabelecidos (ou transformados, ou esquecidos)
Meyer indica que uma possibilidade para como uma conseqüência das atividades de grupos
este impasse seria de as duas posições – de pessoas e contextos culturais particulares”
absolutista e referencialista – deixarem de ser (MARTIN, 1995, p. 57).
oponentes e tornarem-se aliadas, uma vez que As pessoas em relações, de acordo com
“os mesmos processos musicais e comporta- contextos histórico-culturais atribuem e constroem
mentos psicológicos similares originam ambos os significados à música, a partir de suas vivências e
tipos de significado, sendo que ambos deveriam experiências. Salienta Martin (1995), que são os
ser analisados caso se queira entender as sujeitos, como seres humanos criadores e sociais,
variedades da experiência musical” (MEYER, que dotam as coisas - e também os sons e a música
1956, p. 4). - com significados, em um processo onde a
Contrapondo a estas posições, percebe-se construção da realidade acontece a nível coletivo e
que os sentimentos e as reações despertadas singular.
pela música não são iguais para todas as pessoas A música, enquanto uma produção, enquanto
nas diversas épocas e lugares, mas que seriam resultado da ação criadora do homem no meio
produtos do experenciar humano. É difícil haver sócio-histórico e cultural deve ser compreendida
uma generalização que explique a comunicação e em todas as instâncias desta trama, construída pelo
a significação musical, já que este processo é fazer humano, impulsionada por suas necessidades,
dialético e acontece inserido na dimensão cultu- mas também pela busca de beleza, criatividade,
ral, por meio da ação dos sujeitos. permeada pela dimensão afetiva e pelo sentir. Não
Esta idéia também pode ser verificada em se pode se restringir ao olhar uni direcionado da
Maheirie (2003). De acordo com a autora, “as partitura musical de modo técnico enquanto única
músicas, na medida em que provocam no e exclusivamente estrutura musical, pois junto dela
fisiológico determinadas reações, podem, a encontra-se um mundo de movimentos, de
partir daí, nos remeter a estados emocionais dinâmicas e de significados construídos pelo
intensos, em que só as ações poderão lhes dar sujeito, que vibram nele próprio e onde a música
uma significação. Esta, não sendo estabelecida a toca, os quais busca compreender.
priori na música, também não o é nas emoções,
posto que o que nos emociona não emocionará A construção dos significados e sentidos da
necessariamente os outros” (p. 150). música no contexto social
Aponta Meyer que, “em um sentido geral, Aqui se parte da compreensão do Dr. Brynjulf
teóricos da música se preocupam mais com a Stige (1998), musicoterapeuta norueguês, junto de
gramática e a sintaxe da música do que com seu Ludwig Wittgenstein (1975), quando este estudou
significado ou a experiência afetiva que emerge aspectos da linguagem, das palavras e do
de tal experiência” (1956, p. 6). significado em sua obra Investigações Filosóficas,
170 SIMPEMUS3

acerca do uso das palavras. Wittgenstein dizia que a música sempre está em um contexto e, como
que a função principal da linguagem não era tal, é uma parte de um processo produtor de
nenhuma representação lógica, e sim a significado. O significado da música tem como foco
comunicação social. “Se tivéssemos que nomear a situação particular dentro do contexto cultural
qualquer coisa que é a vida da palavra, do signo, particular (RUUD, 1998).
nós deveríamos dizer que era o seu uso” Como dizia Wittgenstein (1975) o significado
(Wittgenstein citado por STIGE, 1998). Para depende do “jogo”, pois é uma construção social.
Wittgenstein os sinais, os signos adquirem vida Assim, o significado da música depende do jogo, da
no uso. A palavra no jogo da linguagem adquire o cena, do cenário, do contexto, dos personagens,
seu significado como um movimento em um dos músicos, instrumentistas, cantores, ouvintes,
processo comunicativo. A linguagem depende dos suas canções e suas narrativas. Depende do sujeito
usos que as pessoas, os grupos, as comunidades e que utiliza a música, que se relaciona e com ela
sociedades fazem. está implicado, que constrói seus significados em
Wittgenstein (1975) via o significado base a esta relação. Existe uma construção social e
vinculado ao uso, ou seja, o significado não era particular do significar em música, sempre em um
compreendido por ele como algo pré-fixado, contexto social.
rígido, imutável, universalizado. O significado da Strathern (1997), ao discutir as idéias de
palavra, justamente pelo seu uso devia ser Wittgenstein, diz que a linguagem da arte é
entendido como algo dinâmico, em constante metafórica. “Sendo metafórica, uma obra de arte é
movimento. Ao se perguntar pelo significado fixo ao mesmo tempo ela própria e algo mais. Dizer de
da palavra, tomado como único, estar-se-ia uma obra de arte que o que ela exprime é
paralisando a investigação. A questão seria de se inexprimível é uma contradição” (p. 36). Por
voltar para os sentidos atribuídos pelas pessoas, perceber a obra de arte e “este algo mais”, que
pelos grupos, de acordo com suas formas de vida. pode se relacionar com os seus sentidos, o sujeito
Seriam estas “formas de vida” que levariam aos constrói o significado da música, onde a música “é”
“jogos de linguagem”, de acordo com os usos das para ele, faz parte de sua vivência, significa para
palavras, que não são os mesmos entre as ele.
diferentes comunidades. Trabalhar-se-ia, então, Stige (1998) destaca da obra de Wittgenstein
com significados permeados pelos sentidos um trecho onde este filósofo ao invés de sublinhar
atribuídos pelas pessoas de acordo com o uso das diferenças entre palavras e música, indicou
palavras, em seus contextos. semelhanças entre elas: palavras e música
Assim, Stige (1998) aponta que a linguagem poderiam ser polissêmicas, abertas e preservar a
e o contexto não podem ser separados, e que o possibilidade de um significado que muda. Palavras
significado é um conhecimento local. O autor faz e música apresentam construções mútuas de
este novo percurso teórico, especificamente para significados. São vários significados, cambiáveis,
compreender a significação da música na Musico- não fixos, abertos, condizentes com os sentidos do
terapia articulada ao contexto social, onde sujeito.
então, poder-se-ia compreender que a música Para Maheirie (2003) a música carrega um
terá o seu significado, assim como a linguagem, a significado social por estar em relação com o
partir de seu uso, a partir do contexto, do jogo e contexto social onde está inserida, ao mesmo
dos jogadores que trazem para estes contextos tempo em que possibilita aos sujeitos a construção
de jogos de sons, de vibrações, de ondas sonoras, de múltiplos sentidos singulares e coletivos.
de canções e músicas a sua utilização, os seus
significados e sentidos. A música teria o seu O sentido da música [...] é sempre permeado pela
significado local em nada descolado do seu afetividade. Em primeiro lugar, percebemos sua
sonoridade, depois degradamos um saber anterior
contexto.
que tenha uma relação com os elementos
O significado como uso, seja das palavras
percebidos deste som para, em seguida,
que da música é um significado social e também transformarmos este saber e constituirmos um
singular (sentido), construído, criado e re-criado sentido àquela música. Posteriormente,
nas relações e ações pessoais e sociais estabelecemos, de forma singular, um significado
condizentes com o que é vivido e experenciado. para a música, compactuando ou não com seu
O Dr. Even Ruud, musicoterapeuta norue- significado coletivo. As características daquela
guês, compartilha da idéia de Wittgenstein sonoridade surgem como um complexo
(1975) acerca do significado da música. Segundo representativo que aparece determinado pela
Ruud, a filosofia de Wittgenstein é pertinente
para a compreensão do significado musical, visto
simpósio de pesquisa em música 2006 171
consciência afetiva3, a qual, por sua vez, lhes 2003). É de modo emocionado que o sujeito
dá nova significação (MAHEIRIE, 2003, p. 150). constrói os significados da música em sua vivência,
a partir de seus sentidos, objetivando sua
Para compreendermos a significação subjetividade, tornando-a “audível” para ele e para
musical na Musicoterapia, precisamos fazer a os outros. Os significados e sentidos ressoam nas
leitura a partir do resgate dos movimentos e vivências do sujeito e são construídos na sua
momentos que compõe a história de vida de um relação com a música. Estes significados partem
sujeito. Este resgate permeia o vivido, ou seja, a das vivências afetivas do sujeito, demonstrando a
dimensão do passado, o presente e as projeções utilização viva da música, uma vez que mudam, se
futuras. Nesta temporalidade histórica, a partir desconstroem e são recriados, porque também são
do discurso verbal e musical do sujeito, pode-se constituídos pelos sentidos, ligados ao uso da
aproximar dos significados compartilhados música de modo idiossincrático e em relação.
coletivamente por estes sujeitos, e dos sentidos
singulares construídos para suas vivências
pessoais nas histórias de relação com a música,
que passam a configurar uma significação
musical que é construída, é histórica, é
temporal, é provisória, e diz respeito a este
sujeito, que vivencia determinadas relações em
um determinado contexto sócio-histórico e
cultural de vida. Isto permite identificar que a
significação musical é sempre “local” e depende
das vivências que o sujeito estabelece com a
música, em sua história.
Na prática da Musicoterapia esta
compreensão é fundamental. Para “conhecer” o
sujeito pode-se lançar mão deste recurso que
permite conhecê-lo a partir das narrativas que
constrói sobre sua história de relação com a
música. Também com esta compreensão é
possível aproximar-se de forma mais coerente de
seus significados e sentidos, a partir do modo
como vivencia a atividade e experiência musical
em um contexto musicoterapêutico. Lembrando
que a compreensão desta dinâmica deve levar
em conta a leitura da música e da dimensão
afetiva no contexto cultural, onde o sujeito
encontra-se situado historicamente. Ou seja, não
basta que o profissional musicoterapeuta faça
análises musicais centradas apenas na partitura
para conhecer a relação do sujeito com a música
e como isto se dá em sua vida, mas que articule
a esta análise a dinâmica entre significados e
sentidos construídos na história de vida do
sujeito, que também contempla uma história de
relação com a música.
As emoções e os sentimentos, integrantes
da atividade humana junto do agir e do pensar,
configuram a construção dos significados singu-
lares da música, de acordo com a vivência do
sujeito e de sua própria reflexão acerca de si e
de suas experiências. A música despertando a
afetividade pode construir a forma como o
sujeito significa o mundo que o cerca (MAHEIRIE,

3
Consciência afetiva: verificar Sartre (1936/1965) e Maheirie
(2002, 2003).
172 SIMPEMUS3

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perspectiva histórico-cultural. Revista de Ciências Humanas, edição especial temática, 1999, p. 145-158.
A voz na arte e a sensualidade na expressão
Lara Janek Babbar
Universidade Federal do Paraná

Resumo
Um estudo acerca da expressividade da voz sob o prisma da sensualidade no âmbito da fruição e da criação
artística. Na primeira discussão, a voz é apresentada como importante ferramenta de expressão do ser
humano. São apresentados alguns parâmetros que discriminam índices de comunicação. A seguir, analisa-se a
voz como veículo de conteúdos estéticos que, consolidado à sensualidade, torna sua manifestação artística
expressiva e sensual.

Introdução
Esta pesquisa apresenta um panorama
acerca da expressividade e da sensualidade a obra de arte é expressiva enquanto é forma, isto
relacionadas ao uso da voz como fenômeno é, organismo que vive por conta própria e contém
artístico. Evidencia-se a voz como importante tudo quanto deve conter. Ela exprime, então, a
meio da expressão humana, rica em sonoridades personalidade do seu autor, não tanto no sentido
de que a é, e nela até a mínima partícula é mais
que informam ao interlocutor situações
reveladora acerca da pessoa de seu autor do que
específicas. São estabelecidos alguns parâmetros qualquer confissão direta, e a espiritualidade que
vocais que, articulados, constituem ferramentas nela se exprime está completamente identificada
de comunicação fortes. A seguir, apresenta-se o com o estilo. A forma é expressiva enquanto o seu
conceito de sensualidade que, na esfera artística ser é um dizer, e ela não tanto tem quanto, antes
ou cotidiana, contribui para um sentido mais é um significado. (PAREYSON, 1989, p. 30)
elaborado.
A voz humana é uma maravilhosa
Expressividade e voz manifestação da expressividade. Na contingência
de uma adaptação do aparelho digestivo e
No âmbito da expressão faz-se necessário o
respiratório, é o resultado do desenvolvimento
treinamento dos modos mais diversos de uso dos
muscular e nervoso muito elaborado. Por
sentidos para a proposição e para a compreensão
conseqüência, tem-se a voz como uma sonoridade
dos conteúdos. Ao artista cabe um estudo
do ser humano que apresenta índices expressivos
criterioso sobre o comportamento humano em
muito significativos para a sua manifestação.
todas as esferas da vida, para que no momento
da arte, sua representação sugira veracidade. A literatura existente sobre a voz é escassa,
principalmente em se tratando do seu uso artístico.
Como ponto de partida para a discussão
Os limites das discussões cobrem aspectos de
acerca de expressão, recorre-se a Alfredo Bosi
tessitura, de velocidade, seu mecanismo de
(1995, p.50): “A idéia de expressão está
sustentação. As questões dedicadas à estética vocal
intimamente ligada a um nexo que se pressupõe
e de interpretação artística via voz são rasantes e,
existir entre uma fonte de energia e um signo
de um modo geral, em forma de críticas. Não existe
que a veicula ou a encerra. Uma força que se
uma organização dos recursos, das possibilidades,
exprime e uma forma que a exprime”.
que permita uma criação artística da voz.
A expressão se manifesta por meio de uma
Por exemplo, a mentalidade vigente em
linguagem e atende a uma demanda interna,
algumas escolas tradicionais de canto operístico é a
elaborada via intelecto, sustentada por uma
de que os cantores devem tratar seu timbre como
correspondência psíquico-emocional, ou pela
entidades estanques, sua identidade vocal
forma em si. Como bem exposto por Luigi
imaleável. Em função disto, no item repertório, tais
Pareyson (1989, p. 30): “Toda operação humana
cantores se vêm na condição de sonorizar
contém a espiritualidade e personalidade de
personagens que se adaptem à sua voz, e não do
quem toma a iniciativa de fazê-la e a ela se
contrário. Com tal mentalidade, o trabalho de
dedica com empenho; por isso, toda obra
expressividade vocal, e o resultado artístico,
humana é como o retrato da pessoa que a
apresenta-se muito deficitário.
realizou.” Em arte, contudo, Pareyson
condiciona a expressão de modo especial:
174 SIMPEMUS3

Voz na arte apresenta conforto nas estruturas laríngeas e


sonoridade firme e homogênea. O ponto, ou
O início da comunicação é o início da infância. melhor, a região de empostação capaz de
Certamente a criança desenvolveu conheci- apresentar estas propriedades localiza-se na
mento e controle considerável sobre variáveis posição posterior da cavidade bucal e faríngea. O
da comunicação bem antes da primeira som emitido neste pré-amplificador pode ser
‘palavra’ inteligível. (REES apud BOONE, 1994, redirecionado a outros pontos de ressonância do
p. 67). tórax e da cabeça. Tem-se então, o princípio básico
da técnica vocal de ressonância do corpo inteiro. As
Independentemente do idioma, as possibilidades de impostação, a partir disso, são
primeiras experiências vocais do ser humano infinitas.
estão muito ligadas a um contexto de anseio de
informar do seu prazer (contentamento) ou Foco
desprazer (dor, raiva, fome), e isto ocorre
O foco é uma resultante sonora que evidencia
mediante o uso de recursos expressivos diversos
nitidez de texto. O foco posicionado no alto e no
para cada situação. As pessoas que cuidam dos
centro da cabeça, atrás dos olhos, encontra
bebês, por sua vez, desenvolvem uma
ressonância preferencial da gama média/aguda do
sensibilidade e uma percepção capaz de decifrar
timbre, favorecendo nitidez das consoantes.
tais anseios numa articulação sem texto.
Na idade adulta, esta capacidade de
expressão imediata diminui pela contingência de Ressonância e ressonadores
diversos fatores, resultando em limitações A exploração das possibilidades de
extremas de recursos, afetando sua capacidade ressonância é a essência de uma voz expressiva.
de comunicação e relacionamento, e mesmo, sua Além de garantir a audibilidade e calibrar o volume
saúde. Assim, e por exemplo, verifica-se a sonoro, os ressonadores fixam gamas harmônicas
existência de palavras enfraquecidas em função que se traduzem em expressividades diferenciadas.
do uso, por modismo, de um padrão expressivo Algumas ressonâncias importantes:
irônico ou frívolo (como no caso de “querida...” ,
ou “my darling...”) evitadas na situação de cabeça: intelectualidade, racionalidade;
expressão de estima legítima. E ao contrário,
máscara: alegria, emotividade;
dificuldades de expressividade com palavras cuja
parte posterior da cabeça: ponderação ou defesa;
fôrma sonora não se alinha ao significado
correspondido (como em “eu te amo...”). queixo (ponta): confiança, segurança;
mandíbula: agressividade, raiva;
Perceber se o interlocutor de uma
comunicação está alegre ou triste, atencioso ou clavícula: resistência a circunstâncias emocionais
distraído, não oferece muitas dificuldades. quaisquer;
Porém, reproduzir tais estados com finalidade porção superior do esterno: temor;
artística, por exemplo, é extremamente difícil. O porção média do esterno: angústia, tristeza,
domínio da voz é preciso com treinamento. O depressão;
estudo dos mecanismos de expressividade porção inferior do esterno: altruísmo, bondade,
instrumentaliza o fruidor para a compreensão boa vontade, arrogância, orgulho;
dos conteúdos, e a familiaridade com coluna vertebral: força, equilíbrio,
mecanismos estéticos possibilita ao artista uma responsabilidade.
atividade de representação saudável e eficaz. quadril: sensualidade.
Alguns parâmetros vocais:
Postura
Impostação e empostação Refere-se aos procedimentos em relação ao
Num primeiro momento, a distinção entre corpo inteiro que favorecem a emissão do som.
impostação e empostação é muito importante. Num primeiro momento, é importante o
Compreende-se por empostação o acionamento estabelecimento de eixos imaginários de
de um conjunto muscular que prima pelo sustentação do corpo, para que a dinâmica de
resguarde da saúde vocal do indivíduo. A tensões e relaxamentos relativos condicionem as
impostação refere-se à eficiência e à ressonâncias. Após o treinamento, tais eixos são
agradabilidade da voz, atendendo, assim, ao capazes garantir homogeneidade sonora mesmo se
âmbito da estética. Uma voz empostada
simpósio de pesquisa em música 2006 175
a pessoa encontra se em movimento, ou em ocasião. Todas as outras pressões terão uma
posição desfavorável à emissão da voz. acomodação de menor esforço de concentração,
uma vez que as pressões sonoras são mais suaves e
progressivamente mais audíveis. Além disso,
Timbre
atenta-se ao fato de que, quanto mais distante da
É o resultado da combinação de fonte sonora, mais esférica se apresenta a frente
harmônicos, sons puros, presentes na voz. Em da onda.
condições em que a exploração da ressonância
do corpo inteiro é pobre, tais harmônicos podem
estar presentes na voz e nunca serem Dicção e emissão
percebidos. Disso se vislumbram possibilidades No âmbito da dicção encontra-se a pronúncia.
que servem tanto a uma composição básica da Uma dicção clara tem-se no contraste apresentado
voz, e isto será a tradução mais ou menos precisa entre as sílabas das palavras, nas tônicas de cada
das disposições do indivíduo enquanto palavra, de cada frase, e de cada idéia. A emissão
personalidade e infinitas possibilidades de refere-se a um conjunto de sonoridades válidas a
alterações sutis desta formulação que traduzem um contexto, encontrando, em certa medida,
estados de espírito, quanto à reprodução de implicações culturais. O erro de emissão, muitas
estados de espírito ou de personalidade. O vezes resulta em falta de polidez.
timbre chamado completo é aquele que é
equilibrado por pressões sonoras que evidenciam
Contorno
as possibilidades de harmônicos nas gamas
graves, médias e agudas de cada som e Contorno é a capacidade de assemelhar-se ou
simultaneamente. Na prática isto acontece com não aos parâmetros vocais, do interlocutor ou aos
grande pressão sonora no tórax (gama grave), sons concorrentes no ambiente.
média pressão na coluna e clavícula (gama
média) e baixa pressão sonora na cabeça (gama Massa
aguda), exceto na máscara – ossos da face – que
É o ajuste das propriedades expressivas e
respondem pelo brilho e expressão de conteúdos
sensuais da voz no ambiente em que ela é
do papel (alta pressão).
produzida. Por este parâmetro é possível a
particularização de um assunto.
Arco
É a maneira como o som vocal se projeta Afinação
no ambiente. É gerado pelas possibilidades de
Na esfera da voz, a afinação é a capacidade
ressonância. Pode sugerir sentimentos, estados,
de emitir um som de altura igual a um padrão, ou
preocupações pessoais, coletivas, entre outros,
emitir determinado som na altura correta de
em razão da capacidade de, com o domínio de
acordo com um sistema estrutural de construção
sua projeção, explorar as implicações da
musical.
tridimensionalidade sonora. Assim, como modelo
básico o arco se projeta no espaço radialmente
assumindo a forma aproximada de um ovo em Intensidade
expansão, com o bico na direção da boca do È possível considerar a intensidade sob dois
emissor. Porém, isto será na verdade, uma aspectos. O primeiro é oriundo da física do som, da
somatória de várias projeções radiais que vêm amplitude sonora, e o segundo do impacto
dos ressonadores do indivíduo, já com zonas de expressivo que ela gera. A dicotomia entre ambos
pressão definidas, criando matizes que são aspectos conceitos é verificada quando a mensagem
apenas traduzíveis unidimensionalmente por mais intensa está centrada na passagem da fala, ou
linhas que, a despeito da curvatura que musical, emitida com amplitude mínima, tendendo
aparentam, são semelhantes a vetores (definem ao pianíssimo.
valor, direção, sentido).
É preciso, no entanto, esclarecer que o Velocidade e ritmo
ouvinte precisa perceber tridimensionalmente o
Há dois entendimentos a considerar.
som para saborear os arcos da voz. Para isto,
Primeiro, a velocidade da voz atende ao tempo de
aconselha-se o ouvinte a fixar atenção na gama
resposta muscular e da resultante expressiva
mais grave do complexo sonoro a que está
apresentada. Uma voz é veloz pela rapidez de
exposto. Tendo feito isso, ele automaticamente
trocas de ajuste. O outro, é a manipulação rítmica
estará atento à linha de maior pressão sonora na
176 SIMPEMUS3

do conteúdo que se expressa. Apresentar um moralidade e linguagem. O corpo, o


texto sob uma cadência ternária ou sincopada comportamento, e a capacidade de produção de
traduz-se em diferente sensação ao interlocutor, cada pessoa são considerados ornamentos, ou
e então, numa compreensão distinta. “indicadores de aptidão”: “A teoria da influência
No universo da voz, existe a possibilidade sensorial lembra-nos de que a escolha do parceiro é
de alteração do pulso interno da sonoridade e mediada por capacidades perceptuais, e que à
estipulando relações de intensidades distintas medida que novas capacidades de percepção
(ritmo interno). Disso, pode-se apresentar uma evoluem, abre-se caminho para a evolução de
resultante de voz paisagística ou fotográfica, ou novos tipos de ornamentos sexuais” (MILLER, 2001,
do contrário, contaminada de vitalidade e de p. 164). Neste contexto, a relação entre
contemporaneidade. sensualidade e sexualidade é muito estreita, mas a
abrangência dos dois conceitos e seus
dimensionamentos encontra ressonância muito
Cobertura profunda com a existência humana.
Num primeiro momento, a cobertura é o Dentre as atividades humanas em que a
fechamento de algumas vogais (principalmente sensualidade é mais requisitada, é a artística. A
do A e do I), e, portanto, uma providência arte é um veículo de comunicação e de informação
tímbrica que ameniza a estridência. Das muito importante. A produção do material de arte
possibilidades de cobertura da voz surgem véus vincula-se com a ordenação de mecanismos
harmônicos distintos que, associados aos demais estéticos que condense um conteúdo. Daí a
parâmetros, resultam em atmosferas expressivas importância do estudo e do domínio das
diversas. As coberturas (relação oro-faríngea) ferramentas de expressão. Da mesma forma, a
são: sofisticação da transmissão de um conteúdo inclui
critérios na proposição das gamas sensoriais. O
ó – alegria; desvelo do artista nesses níveis molda, por esses
meios, um conteúdo sensorial, e transforma sua
ô – tristeza;
criação, em obra sensual.
é – afirmação;
Deste modo, para o uso em arte da voz, o
ê – dúvida; artista deve estar apto a perceber e solucionar
m – sensualidade elegante; sinais expressivos pessoais, por exemplo, que
n – sensualidade vulgar; interferem na comunicação do conteúdo estético.
l – interferência na percepção do “tempo”. Recursos como a criação de derivadas nos arcos
ruidosos a um modelo interpretativo, podem ser
válidos.
Sensualidade na vida e na arte
A ação do artista talentoso articula sua fala
ao que se faz necessário dizer, e ao que se é
Para os chineses, a beleza sensual não residia permitido comunicar. Portanto, o mero acúmulo de
na riqueza do efeito nem na atração física, mas mecanismos e recursos não torna o criador mais
na elegância, no requinte, e na discriminação. capaz, ao contrário, quanto mais equipamento
O apelo aos sentidos era sempre moderado pela
disponível, mais difícil podem ser as decisões a
atividade do espírito. (ROWLEY apud OSBORNE,
1974, p. 109)
serem tomadas e maior é o talento exigido. Isto
está contido na obra de arte, e é verificável:

A sensualidade é uma característica


O mundo sugerido pelo objeto estético é a
vinculada à expressão do sentir. Ela corresponde
irradiação de uma qualidade afetiva, a experiência
à ativação da sensibilidade no comunicar, ou urgente e precária na qual o homem descobre num
seja, é a proposição do sentir. instante o sentido de seu destino, quando ele está
A importância da sensualidade e da sua totalmente engajado nessa prova. O artista está
compreensão expandida é justificada pelos sempre presente em sua obra e tanto mais
atuais estudos acerca da evolução da espécie presente, quanto mais discreto: nós reconhecemos
humana. Para o psicólogo evolucionista Doutor melhor sua voz quando ela profere uma palavra
que não é a sua. (DUFRENNE, 1972, p. 55)
Geoffrey Miller, a necessidade de tornar-se mais
atrativo sexualmente seria o fator determinante
para compreender a evolução das espécies, Também é preciso reavaliar a acomodação
incluindo neste panorama o desenvolvimento da territorial das emoções e dos conteúdos do
sofisticada cultura humana, a arte, a tecnologia, intérprete. A necessidade de expressão do homem
simpósio de pesquisa em música 2006 177
tem sua justificativa sob três pilares (sobre- A sensualidade no uso artístico da voz pode
vivência, reprodução e morte). Para cada oferecer sabores exclusivos. Interferindo na forma
emoção, o indivíduo apresenta um raio de e nos parâmetros de expressão, a sensualidade é a
abrangência, um limite de apresentação do conexão com o subjetivo do que se pretende
impacto sensual, e pode ser manifestada na comunicar.
esfera visual (pelo gesto) ou auditiva (pela voz).
Como exemplo, existem pessoas que se revelam
Conclusão
inteligentes a uma distância de 5 metros, mas
aos 7 metros esta característica não é tão O estudo realizado abrangeu o universo da
evidente. Esses limites são sensíveis às voz como importante ferramenta de expressão e
circunstâncias, como nos sustos, em que estas sensualidade humana. As possibilidades de
projeções se contraem, e às interfaces com percepção de alguns dos parâmetros e, conse-
outros territórios (outras pessoas). qüentemente, de seu treinamento, fundamenta um
diferente prisma para o saborear e o realizar
A delimitação das emoções do cantor de
artístico, atendendo de modo mais eficaz o que se
ópera (ou do ator) deve ser treinada, ampliada e
pretende expressar.
dominada, pois no palco, cada personagem
interpretado exigirá um sistema de composição Dessa maneira, para além do que se diz, fala
particular. O mesmo ocorre com o treinamento e muito a composição vocal. Das infinitas
da voz do ator. possibilidades, revelam-se intenções que, perce-
bidas, condicionam o usuário à disciplina de seu
A busca de uma sensualidade rica se torna
próprio aprimoramento. Portanto, o treinamento
a principal chave dos cantores intérpretes da
dos parâmetros vocais dispõe a pessoa não somente
obra de Mozart, por exemplo. Apesar de
na busca do efeito expresso, o que atrai e chama
apresentar uma escrita aparentemente simples,
atenção, mas também e principalmente, na busca
a revelação musical mozartiana acontece quando
dos conteúdos do expresso, sendo este, por fim, o
o intérprete oferece, além de seus recursos
agradável mecanismo estético único de uma
técnicos, uma realimentação sensual.
expressão sensual.

Referências
BOSI, A. Reflexões sobre a arte. 5. ed. São Paulo: Ática, 1995.
BOONE, D.; PLANTE, E. Comunicação humana e seus distúrbios. Trad. Sandra Costa. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1994.
DUFRENNE, M. Estética e filosofia. Trad. Roberto Figurelli. São Paulo: Perspectiva, 1972.
MILLER, G. A Mente seletiva. Trad. Dayse Batista. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
OSBORNE, H. Estética e teoria da arte. Trad. Octávio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1978.
PAREYSON, L. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
O instrumentista interface
Fabiana Moura Coelho
Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo
O presente artigo propõe o estudo de técnicas da flauta aplicadas à música contemporânea. Aborda também
o desenvolvimento de um conjunto de gestos sonoros com o objetivo de dirigir a ação do instrumentista em
performances interativas. No contexto desta pesquisa, o músico terá participação fundamental na construção
do material sonoro agindo como interface do processo criativo.
Palavras-Chave: flauta, interface, gesto sonoro, interatividade, computador.

Introdução Gesto sonoro


Ostrower (1977) afirma ser a criatividade O conceito de gesto sonoro vem se
um comportamento natural do ser humano. desenvolvendo ao longo dos últimos anos, como
Mesmo num ambiente racionalista e reducionista apresentado por Iazzetta (1997). Trata-se da
existe a possibilidade de criação, compreendida significação musical do movimento, o qual está
no potencial vinculado à sensibilidade de cada intimamente ligado à ação musical. Aplicado aos
indivíduo. A partir deste ponto de vista, os conceitos de técnica e tecnologia, intensamente
valores culturais funcionariam como um filtro na utilizados em música a partir do começo do século
orientação da percepção dos fenômenos da XX, o gesto sonoro passou a englobar não somente a
natureza. Ostrower conclui: “A criatividade não emissão do som, como também a técnica
seria então senão a própria sensibilidade”. empregada e a tecnologia aplicada (IAZZETTA,
Ela amplia a sua visão ao enfatizar que a 1997).
necessidade de comunicação é propulsora do A música sempre esteve relacionada ao gesto
processo criativo: “No cerne da criação está a do intérprete, porém a sua importância e
nossa capacidade de nos comunicarmos por meio significação apenas nas últimas décadas passaram a
de ordenações, através de formas. Por meio de ser estudadas. Trata-se, então, da relação
ordenações se objetiva um conteúdo expressivo instrumento/instrumentista e o som por eles
[...]. O formar, o criar é ordenar e comunicar”. gerado, num movimento contido no espaço-tempo.
A autora afirma também que o potencial Garcia (2002) aborda o “gesto dinâmico” em
criador é desenvolvido no trabalho cotidiano, na Density 21.5 de Edgard Varèse. Segundo o autor, o
concretização da matéria, inclusive nas Artes, termo simboliza as complexas marcações de
não sendo, portanto, a atividade artística o único dinâmica da peça e mostra as linhas que contêm
campo de ação criativa do ser humano, o que um crescendo, ou um decrescendo, um piano súbito
seria uma deformação da realidade. Assim, a ou um acento, mais importantes que o nível
ação do homem, sujeita a condicionantes sociais, absoluto de dinâmica. Isto significa que, por
a um contexto cultural que fornece as condições exemplo, nos quatro últimos compassos, é mais
e até mesmo a capacidade de realização de importante guardar força para a última parte do
propostas criativas, necessariamente implica crescendo que obter um fortíssimo que não tem
transformação, seja da matéria, da percepção ou para onde ir. “O importante neste trecho é o
do próprio sujeito criativo. enorme ‘gesto dinâmico’ que começa no B4 e
Partindo do pressuposto de que o termina no B6” (GARCIA, 2002, p. 36). Assim, na
intérprete tem uma função que deve manifestar- performance musical, o som percebido depende dos
se de maneira criativa, o estudo ampliou o caminhos gestuais do instrumentista, estando a
universo “das ordenações e das formas” significação intrinsecamente ligada ao gesto.
vinculado à técnica da flauta. O Instrumentista
Interface deve exercer a sua função musical Tecnologia & músico
como produto de sua criatividade e do potencial
Sob a ótica da utilização da tecnologia em
imanente do seu vocabulário expressivo. Busca-
música, Boulez (1977) afirma que, enquanto a
se, portanto, a aproximação entre a técnica
criação e a criatividade musical passavam por fase
instrumental e o potencial criativo do intérprete.
de progresso e investigação, os instrumentos
simpósio de pesquisa em música 2006 179
musicais estavam em período de estagnação, Desenvolvimento de tecnologia & gesto musical
com sua técnica voltada à música conservadora. Para elucidar a interação do gesto e da
Nesse ambiente, a utilização de equipamentos expressão musical com dispositivos eletrônicos,
tecnológicos, ainda que não tenham sido criados pode-se apontar um ponto inicial na criação de
para essa finalidade, encontra aí base para o seu Leon Theremin: o Theremin, em 19191. Este
desenvolvimento. (BOULEZ, 1977): instrumento, pioneiro, foi o primeiro a produzir
som sem necessitar do contato físico do
osciladores, amplificadores e computadores não instrumentista. Apenas a movimentação da mão
foram inventados para criar música; entretanto, realizada em torno de uma antena controla a
e particularmente no caso dos computadores, emissão sonora, exigindo uma grande precisão
suas funções são tão facilmente generalizadas, gestual por parte do intérprete. Historicamente,
tão eminentemente transformáveis, que tem esta é a primeira referência de eventos sonoros
havido uma intenção de direcionar diferentes
realizados a partir do gesto sem contato direto com
objetivos dos preestabelecidos: uma conjunção
acidental criará uma mutação.
um meio físico (ROWE, 1993; GLINSKY, 1992).
Clara Rockmore, aluna de Leon Theremin, era
violinista, quando um problema em suas mãos a
Ampliando a idéia de Boulez, a utilização
impossibilitou de tocar, o que a fez dedicar-se ao
de dispositivos tecnológicos pode criar uma
Theremin. Clara transportou a técnica do violino
mutação. Neste caso, qual seria o processo,
para o Theremin, com um método de “dedilhado
estrutura ou, eventualmente, o organismo que
aéreo” que dava precisão ao controle do som
sofreria esta "transformação genética"? Num
emitido pelo aparelho. Desta forma, criou um meio
recorte mais específico, pode-se fazer uma
de interação com a tecnologia e especializou seu
leitura da citação acima como um indicador de
gesto de modo a tornar-se uma virtuose do
que processos tecnológicos podem ser
instrumento.
subvertidos pela ação do músico. Uma subversão
criativa seria, através da performance musical, O Theremin, então, aproximou o instru-
transmutar as funções “tão facilmente mentista do conceito de Gesto Sonoro e dessa nova
generalizadas, tão eminentemente transformá- relação com o instrumento. Assim, partindo-se de
veis”. Neste caso, o agente da ação estudos de Bartolozzi (1967), Dick (1975) e Heiss
transformadora seria o intérprete. Esse músico, (1966, 1968, 1972)2, procurou-se analisar parâme-
imbuído de uma ótica interacionista, deixa de se tros de execução contemporâneos que elucidassem
posicionar no processo musical de forma passiva essa nova relação e, paralelamente, permitissem a
para uma atuação ativa, onde suas ações e/ou visualização prática do conceito de Gesto Sonoro.
gestos musicais funcionariam como substrato e Os parâmetros de execução escolhidos foram:
ele/ela seriam a interface do processo sonoro. 1) som percussivo, 2) ataque percussivo, 3)
Por outro lado, o impasse, na época em harmônicos, 4) glissando, 5) frulatto, 6) bend, 7)
que Boulez escreveu, era a rejeição por parte tocar e cantar, 8) whistle tone, 9) sons eólios, 10)
dos instrumentistas à diversidade de novas multifônicos. Tais parâmetros, escolhidos em razão
propostas musicais, pois estavam acostumados a da pesquisa ter sido desenvolvida com base na
uma estrutura consolidada por séculos. Naquele flauta transversal, foram transcritos através de
momento, os dois caminhos que se apresentavam notação adequada, gravados e analisados sob o
eram um historicismo conservador, que ponto de vista do conteúdo espectral de cada
necessitava de expressão, e a investigação sonoridade.
tecnológica, que fomentava padrões de É de se ressaltar que uma das referências
sonoridade diferentes dos habituais. Para fazer internacionais nesse tipo de estudo, atualmente, é
uso dessa nova tecnologia, era necessário que os
compositores aprendessem a manipular os 1
Theremin apenas passou a ser conhecido por esse nome após a
equipamentos e uma nova orquestração surgiria, invenção do instrumento. Anteriormente, seu nome era Lev
Termen. Veja http://www.thereminworld.com/
criando um novo fluxo entre o ideal e o material.
2
Desta forma, o conhecimento tecnológico faria Bartolozzi, Dick e Heiss são autores fundamentais no estudo
das técnicas empregadas na música contemporânea.
parte de sua invenção. Originou-se então uma Bartolozzi apresenta técnicas para se produzir sons diferentes
nova linguagem, que não seria a adaptação de dos convencionais, como efeitos e multifônicos, na flauta,
oboé, clarinete e fagote. Dick elaborou um método de flauta
idéias antigas, mas um despertar para o novo. voltado especialmente para a técnica empregada na música
contemporânea. Heiss apresenta novas técnicas empregadas
na obtenção de diferentes sonoridades na flauta, utilizadas
nas composições contemporâneas, listando dedilhados
especiais para a produção de multifônicos.
180 SIMPEMUS3

o IRCAM (Institut de Recherche et Coordination Observou-se que alguns harmônicos pre-


Acoustique/Musique) que foi dirigido por Pierre sentes em E5 se mantêm, perdendo a intensidade,
Boulez, desde sua fundação até 1992, e dá na execução do B5 e, ainda com bastante
continuidade à pesquisa derivada dos conceitos intensidade, encontram-se, na passagem do E5 para
apresentados anteriormente. O IRCAM realiza o B5, os harmônicos das duas notas. Dessa forma, a
estudos com sistemas computacionais direcio- nota posterior mostrada na seqüência sugere estar
nados ao processamento em tempo real de som e entrelaçada na anterior.
música. Esses sistemas são usados por
compositores para produzir trabalhos nos quais a
Whistle tone
interatividade combina partes instrumentais e
partes sintetizadas por computadores3. Por Neste gesto alguns harmônicos são
extensão, uma das fontes pesquisadas foi o acentuados, como se observa no sonograma
website do IRCAM, no qual se encontra um apresentado abaixo, pois se trata de uma
catálogo de técnicas de execução não sonoridade em que o controle da pressão do ar
tradicionais para flauta, na mesma linha de sobre o bocal faz com que o instrumento funcione
pesquisa deste trabalho. como um filtro de banda estreita (é selecionado
aproximadamente apenas um harmônico superior).
O resultado é obtido soprando-se com menos
Resultados4 pressão e com a embocadura relaxada. A dinâmica
Harmônicos possível para este gesto fica próxima do pianíssimo,
Este gesto sonoro é obtido, na flauta, tendo em vista o alto grau de controle do
mudando-se a pressão e a direção do ar soprado intérprete na obtenção precisa do harmônico
no bocal, a partir do dedilhado convencional de desejado.
uma nota fundamental. As notas geradas a partir
desta interação seguem a ordem de ressonância
natural dada pela Série Harmônica.

Figura 1

No trecho analisado, foi executado um


intervalo melódico de quinta justa, a partir do Figura 3
dedilhado da nota uma oitava abaixo da nota
mais grave do intervalo. Ou seja, com a posição
de E4, foram produzidas as notas E5 e B5, com Foi feita a análise espectral de um pequeno
apontado abaixo. trecho no qual foi tocada a nota G5. Ficou
demonstrado no sonograma que o harmônico mais
acentuado nesse tipo de som é o 2º harmônico, ou
seja, uma oitava acima do som produzido (G6).
Nota-se também que os outros harmônicos são
muito atenuados, o que gera este timbre que se
Figura 3 aproxima da sonoridade de um som senoidal (com
apenas uma componente espectral).

3
Veja http://www.ircam.fr/ Tocar e cantar
4
A pesquisa original analisou também gestos sonoros Este gesto sonoro é obtido através da
referentes a som percussivo, ataque percussivo,
harmônicos, glissando, frulatto, bend, tocar e cantar,
emissão vocal de uma nota ao mesmo tempo em
whistle tone, sons eólios, multifônicos. Contudo, a que outra é executada na flauta.
dimensão do presente artigo tornou imperiosa a exposição
de apenas três deles.
simpósio de pesquisa em música 2006 181
Verifica-se, através do sonograma apresen- A tabela acima demonstra, comparativa-
tado, que há uma mistura homogênea dos sons. mente, a intensidade dos parciais produzidos em
Desse modo, o instrumento, ao ser estimulado dois efeitos estudados. Dessa maneira, fica
pela voz, gera um timbre muito específico, que explicitada a considerável diminuição de intensi-
pode ser estudado pelo compositor para dade relativa dos parciais produzidos no gesto
obterem-se os resultados desejados. Há estudos whistle tone. A diferença de intensidade entre o 4º
que mencionam a utilização de modelos parcial e o 2º parcial (G7 e G6) é de 56 dB. Assim, o
matemáticos para mensurar a interação da voz 4º parcial, G7, é aproximadamente 105,6 vezes
com o instrumento. menos intenso que o 2º parcial, G6. Isso significa
que soam simultaneamente duas notas, uma delas
398107,17 vezes mais intensa que a outra.
No caso do gesto denominado “harmônicos”,
o espectro demonstra a diminuição gradativa da
intensidade dos parciais. Pode-se perceber uma
redução linar de 7 dB entre o 2º e o 3º e entre o 3º
e o 4º parciais. O 4º parcial é 102,3 vezes menos
intenso que o 2º parcial, o que indica que, do ponto
de vista do conteúdo espectral, o timbre de cada
um dos efeitos estudados está relacionado à
intensidade dos harmônicos produzidos.
Desta forma, o gesto sonoro denominado
Figura 4
“whistle tone” provoca a sensação de som puro,
pois seus harmônicos são muito mais atenuados,
Conclusão tornando-se quase inaudíveis. O gesto sonoro
denominado “harmônico” provoca uma sensação de
parciais 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º incorporar um conteúdo espectral mais denso, pois
G5 nota G6 D7 G7 B7 D8 F8 G8 A8 o conteúdo espectral resultante é mais complexo e
a coloração é mais intensa.
intensidade - - - - -
Através da visualização nos sonogramas dos
whistle

30 96 86 100 104
dB dB dB dB dB gestos sonoros estudados, foi possível obter
E4 nota E5 B5 E6 G#6 B6 D7 E7 F#7 informações menos subjetivas e mais concretas a
intensidade - - - - 75 - respeito da mudança dos parâmetros para obtenção
32 49 56 dB 77 de sonoridades específicas para a flauta. Mesmo
Harmônicos

dB dB dB dB nos sons tradicionais do instrumento, é possível


B4 nota B5 F#6 B6 D#7 F#7 A7 B7 C#8 observar, através dos sonogramas, o significado das
intensidade - - - - mudanças de “cor” e “brilho” amplamente tratadas
32 55 55 62
no ensino da flauta. Portanto, este mecanismo de
dB dB dB dB
análise poderá ser incorporado à dinâmica de
trabalho do flautista, favorecendo o estudo do
Tabela 1 instrumento e o seu desenvolvimento musical.

Referências
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182 SIMPEMUS3

GLINSKY, A. The theremin and the emergence of electronic music. Tese (Doutorado) - New York University,
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IAZZETTA, F. Revendo o papel do instrumento na música eletroacústica. ANAIS DO II ENCONTRO DE MÚSICA
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OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
ROWE, R. Interactive music system. Cambridge: The MIT Press, Massachusetts, 1993.
O papel das alturas numa abordagem composicional baseada em
temporalidades musicais
Ticiano Albuquerque de Carvalho Rocha
Universidade Federal da Paraíba

Resumo
Esta comunicação expõe alguns dos procedimentos utilizados pelo Autor na criação de um discurso musical
que toma como referências temporalidades musicais distintas, algumas das quais baseadas no universo da
música indígena brasileira. Os procedimentos, em especial aqueles referentes à organização das alturas,
estão sendo aplicados na composição de uma peça musical para orquestra de câmara que constituirá parte
dos requisitos para a conclusão do curso de mestrado em composição pelo Autor.
Palavras-Chave: Tempo musical; temporalidades; música indígena; organização de alturas.

Introdução conhecemos por experiência direta”, relacionado


A partir da interação entre diferentes ao transitório, à sensação de passagem (LANGER,
sensações de tempo, o autor busca desenvolver 1953, p. 111).
um discurso musical e uma estrutura formal a A autora afere ao tempo experiencial a
serem concretizados com a composição de uma qualidade de conter volume em si, especifi-
peça para orquestra de câmara que faça camente tensões – intelectuais, emocionais, etc. –
referências ao universo da música indígena que tornam qualitativa a percepção do tempo, pois
brasileira. Dentro desse objetivo, foi são capazes de provocar experiências envolvendo
desenvolvida uma ferramenta de organização das expectativas e tensões. Para essa autora, o tempo
alturas em um sistema fechado, bem como musical é uma espécie de tempo virtual, pois
procedimentos destinados ao tratamento dos reflete uma imagem do tempo experiencial. Dessa
vários parâmetros musicais, visando contribuir forma, as tensões do tempo experiencial, quando
com a representação de temporalidades migradas para o tempo virtual da música,
específicas. Nessa peça, algumas partes da permeiam a seqüência de eventos da música com
criação musical se utilizam de referências ao tensões e conteúdos qualitativos.
universo da música indígena brasileira para a sua Dependendo da freqüência e dos conteúdos
solidificação. Nesta comunicação será dado qualitativos desses eventos, alguns trechos de
enfoque principal ao procedimento de utilização tempo, determinados por eventos puramente
das alturas, procedimento esse que utiliza como musicais, poderão apresentar certas propriedades
ponto de partida uma escala da música xavante que alteram a percepção de tempo tradicional do
como uma das referências à música indígena, homem. Segundo Kramer (1988, p. 5), que defende
referências essas também abordadas em outras um ponto de vista ainda mais radical, a música é
questões da peça. capaz de criar, alterar, distorcer e até destruir
O tempo, apesar de ser utilizado no diferentes sensações de tempo.
cotidiano do homem comum apenas como uma Duas principais propriedades do tempo
ferramenta de contagem de horas, dias, anos, musical – linearidade e não-linearidade – são
sempre foi tema de profundas reflexões e descritas por Kramer:
grandes debates: Como ponto de partida, o que é
tempo? Enquanto essa questão continua aberta,
Identifiquemos linearidade como a solidifica-
no decorrer dos séculos, múltiplos conceitos,
ção/materialização de alguma(s) característica(s)
teorias e interpretações foram desenvolvidos. da música em conexão com implicações que
Entre essas interpretações do tempo, podemos emergem de eventos anteriores da peça. Então
ressaltar a de Susanne Langer, que distingue dois linearidade é progressiva. Não-linearidade, por
tipos principais de tempo. O primeiro deles, o outro lado, é não-progressiva. É a solidifica-
tempo do relógio, é definido como pura ção/materialização de alguma(s) característica(s)
seqüência, “uma abstração especial da da música em conexão com implicações que
experiência temporal provocada pelo relógio” emergem de princípios ou tendências que
governam uma peça inteira ou uma seção
(MOURA, 1993, p. 6). O segundo é o tempo
(KRAMER, 1988, p. 20).
experiencial, isto é, o “tempo como o
184 SIMPEMUS3

Para Kramer (1988, p. 19), existem ainda percepção momentânea (durante a execução da
as várias possibilidades temporais intermediárias peça), e outra, a percepção posterior (após a
entre linearidade e não-linearidade. Além do audição da peça). Para o primeiro movimento foi
mais, segundo ele, virtualmente toda música se pretendido que entre esses dois modos de
utiliza de ambos os processos, em maior ou percepção houvesse um contraponto a ser
menor grau. configurado como uma percepção momentânea
Essas características estão, de certo modo, não-linear contra uma percepção posterior linear.
presentes em algumas visões do tempo próprias Para o segundo movimento uma percepção
de determinadas culturas indígenas brasileiras. momentânea linear é colocada contra uma
Na tribo Kamayurá, do Alto Xingu, por exemplo, percepção posterior não-linear. Além disso, cada
o tempo é relatado de dois modos distintos: um seção tem uma predominância temporal particular,
deles refere-se a um “tempo histórico” (com seja ela linear ou não-linear.
características lineares) e um outro, a um
“tempo mítico” (com características não- Metodologia
lineares):
Nesta peça, uma das abordagens utilizadas
para tornar possível essa representação temporal
Para o Kamayurá há dois sistemas diferentes e parte dos conceitos apresentados pela Teoria da
complementares de morõneta, ‘explanação’, Informação e interpretados por Barry. Para ela o
das coisas do mundo, cada um deles estando
tempo percebido é proporcional ao esforço
colado num tempo de referência próprio, a
exercido pela mente humana para processar as
saber, no ãng, ‘tempo histórico’, ou no mawe,
‘tempo mítico’ (MENEZES BASTOS, 1972, p. informações musicais. Para quantificar esse
109). processamento de informações, e consequen-
temente a percepção temporal, ela leva em conta
dois fatores, a velocidade (andamento) e a
O tempo histórico é o tempo das durações
quantidade de informações. Em sua “Teoria de
prováveis, no qual os eventos têm começo e fim.
Densidade/Andamento” (1990, p. 167) afirma que,
O tempo mítico é o tempo da mitologia
em um mesmo andamento, a duração percebida
Kamayurá, no qual está a origem para todas as
aumenta à medida que o conteúdo informacional
definições. As duas temporalidades existem
aumenta além do usual. O aumento da duração
simultaneamente em todas as coisas, pois tudo
percebida também ocorre quando uma quantidade
pode ser explicado tanto no “tempo mítico”
de informações abaixo do usual é apresentada para
quanto no “tempo histórico”. Menezes Bastos
o ouvinte, essa baixa quantidade de informações
conclui afirmando:
demanda um maior esforço mental para relacionar
e processar informações que se encontram esparsas
Se, assim, portanto, o ãng é o tempo no discurso musical. Dessa maneira ocorre o mesmo
experimental, memorial e esgotavelmente efeito de expansão da duração percebida criado
atual, o mawe é, definidamente, o tempo pela grande quantidade informacional. Para a
cosmológico, imemorial e daquilo que sempre
autora existe entre esses dois pólos o nível usual de
acontece de forma inesgotável, de um lado,
pois, se colocando o acontecido, o discreto, de
informações, no qual as durações são mais
outro, o que pode acontecer, o contínuo fielmente percebidas.
(MENEZES BASTOS, 1972, p. 110). Essa percepção de duração estendida tem
ligação direta com o tempo não-linear de Kramer.
As decisões estruturais da peça são Pois é nesse tempo musical de maior duração
tomadas em função das referências temporais. percebida que o ouvinte não consegue estabelecer
Isso significa que, na organização de parâmetros conexões, devido a grande quantidade de
como altura, ritmo, forma, textura, etc., estes processamento. Seja a taxa de informações alta ou
estão subordinados a um objetivo maior – criar baixa. Há também uma ligação entre o tempo mais
um discurso musical cujos agentes principais são fielmente percebido e o tempo linear descrito por
duas temporalidades musicais relacionadas, Kramer, já que nesse tempo os eventos musicais
nesse nível, especificamente ao tempo mítico e ocorrem em uma frequência média que possíbilita a
ao tempo histórico dos Kamayurá. compreensão dos sons na medida em que estes
ocorrem para o ouvinte.
A aplicação dessas temporalidades no
conteúdo formal da peça foi elaborada de Podemos então verificar que não apenas o
maneira a estabelecer dois tipos de percepção material, mas principalmente os procedimentos –
temporal que interagem entre si. Uma sendo a
simpósio de pesquisa em música 2006 185
modos de aplicação – são essenciais para o convencionais, tais como fragmentos melódicos,
objetivo de uma representação temporal. padrões rítmicos e progressões harmônicas, como
guias do discurso musical. Consistência timbrística
refere-se ao uso mais comedido de variações
Partindo desses conceitos alguns procedi-
timbrísticas, visando dar maior unidade aos agentes
mentos foram desenvolvidos visando representar
de um mesmo nível do discurso musical.
diferentes temporalidades.
Entre os procedimentos utilizados para a
criação do tempo não-linear, estão: baixa Alturas
incidência de recorrências, alta densidade O sistema de alturas tem por base dois modos
harmônica, alta densidade rítmica, complexidade diferentes, dos quais são formadas três tabelas de
textural e modulações timbrísticas. Baixa referência: nas duas primeiras, é levado em
incidência de recorrências refere-se ao uso consideração o princípio de equivalência de oitava
limitado de recorrências de organizações (as alturas são classes-de-notas), e na terceira, o
intervalares, rítmicas, texturais e timbrísticas princípio de registro fixo (as alturas são notas).
específicas, visando à supressão de unidades O primeiro modo, escolhido por suas
formais identificáveis. Alta densidade harmônica propriedades intervalares assimétricas, faz parte do
é a aplicação de várias organizações escalares universo da música indígena Xavante. O segundo
distintas, de acordo com as operações do sistema modo foi criado artificialmente, pelo autor, a partir
de alturas descrito abaixo, tendo em vista a do primeiro, buscando-se estabelecer uma
criação de conteúdos harmônicos densos e organização intervalar mais simétrica. O Exemplo 1
heterogêneos (cromáticos e microtonais). Alta apresenta os padrões intervalares de cada modo.
densidade rítmica corresponde à utilização de
ritmos complexos e sobreposição de métricas
distintas. Complexidade textural caracteriza a
criação de faixas texturais ricas e/ou modo 1 < 1 1 1 4 2 3 >
simultâneas, para funcionarem como unidades modo 2 < 3 2 1 1 3 2 >
(de larga escala) de um discurso sem referências Exemplo 1
óbvias a eventos passados ou futuros. Modulações
timbrísticas referem-se ao procedimento que faz
uso de variações constantes de timbre (em
termos de instrumentação e orquestração), A primeira tabela, da qual são geradas as
objetivando a acentuação de nuanças variadas de outras duas, é formada pelo cruzamento desses dois
colorido tonal nas unidades texturais. modos. Suas alturas são originadas a partir de
Para a criação do tempo linear, os transposições do modo 2 (dispostas horizon-
seguintes procedimentos são utilizados: alta talmente), determinadas pela organização inter-
incidência de recorrência, subtração contextual, valar das alturas do modo 1 (dispostas vertical-
densidade rítmica mediana, simplicidade mente), como mostra o Exemplo 2. Os padrões
textural e consistência timbrística. intervalares dos modos estão representados pelos
números situados entre as linhas e colunas de
Alta incidência de recorrência caracteriza
alturas.
o procedimento de uso estendido de recorrências
de organizações intervalares, rítmicas, texturais
e timbrísticas específicas, de tal modo que
unidades formais identificáveis sejam reconhe-
cidas e processadas. Subtração contextual é o
procedimento aplicado a um determinado
agrupamento denso de alturas (vertical, horizon-
tal ou diagonal), que consiste na gradual
subtração dessas alturas, à medida que o
agrupamento sofre desdobramentos ou recorrên-
cias no tempo até a emergência de materiais
referenciais (unidades formais identificáveis).
Densidade rítmica mediana refere-se à utilização Exemplo 2
de métricas regulares e definidas. Simplicidade
textural significa a utilização de texturas simples
que permitam a criação de unidades e eventos
186 SIMPEMUS3

A tabela 2, ilustrada no Exemplo 3, é uma


versão microtonal da tabela 1.1 Ela toma como
referência os mesmos intervalos da tabela 1, só
que proporcionalmente divididos, de maneira a
estabelecer modos microtonais – cada intervalo
de semitom equivale a um intervalo de quarto de
tom, e cada intervalo de tom, a um intervalo de Exemplo 4
semitom. Os padrões intervalares dos modos
estão representados pelos números situados
A tabela 3 é formada por várias transpo-
entre as linhas e colunas de alturas.
sições da organização escalar ampla (a parte de
registros fixos da tabela), dispostas horizontal-
mente. Essas transposições são determinadas pela
organização intervalar das alturas do modo 1 (dis-
postas verticalmente), como mostra o Exemplo 5.

Exemplo 3

Os conteúdos (organizações escalares


horizontais e verticais de classes-de-notas)
Exemplo 5
dessas duas tabelas são utilizados simultanea-
mente, estratificados nas diversas faixas
texturais da peça. Essa organização das alturas, Verifica-se que, como resultado dessa
ao buscar uma saturação informacional na organização, ocorre repetição da terceira e quarta
dimensão harmônica – e, dessa forma, diminuir a notas de cada transposição em todas as suas
quantidade de referenciais auditivos para o oitavas, conferindo-se a essas notas a qualidade de
ouvinte –, objetiva acentuar uma percepção não- classes-de-notas. Verifica-se também que, nas
linear do tempo musical, como dito anterior- quatro primeiras transposições, as seis primeiras
mente. notas de cada transposição se repetem uma oitava
Na tabela 3, os modos são aplicados acima nas seis últimas notas da transposição
levando-se em consideração registros fixos (sem seguinte.
equivalência de oitava) em determinadas faixas A aplicação do conteúdo dessa tabela é feita
do espectro tonal. Duas transposições do modo 2, de maneira diferente das demais. Aqui, o princípio
distantes uma sétima maior, são dispostas de de subtração contextual é aplicado às suas
forma contígua, cobrindo a faixa de duas oitavas transposições horizontais, de tal forma que, no
do espectro tonal, em registros fixos. avanço do discurso musical, o modo 2 amplo, de
Em sua aplicação prática, essa organização doze notas, se transmuta no modo 2 inicial, de seis
escalar ampla (modo 2 amplo) pode ser notas. Através desse recurso (que, no caso, visa
transposta para as duas faixas do espectro tonal uma simplificação informacional ao longo da peça),
acima e duas abaixo, de acordo com demandas entre outros, a tabela 3 serve de sustentação
das tessituras dos instrumentos, como mostrado harmônica para os trechos de predominância do
no Exemplo 4. tempo linear

Conclusão
Essas manipulações de alturas constituem
apenas uma parte do conjunto de procedimentos,
referido anteriormente, utilizado na tentativa de
concretizar as diferentes representações tempo-
rais. Todos os passos para a criação desse sistema
1
de alturas foram guiados para tal fim, partindo da
referência da música indígena até o método de
simpósio de pesquisa em música 2006 187
aplicação das alturas ao longo da peça. Cada Os procedimentos composicionais aqui
parâmetro musical não explorado nesta relatados vêm sendo testados em computador
comunicação foi submetido a uma linha de utilizando softwares sintetizadores e, em condi-
planejamento semelhante. ções específicas, vêm apresentando resultados
positivos no que se refere aos objetivos almejados.

Referências
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KRAMER, Jonathan. The time of music. New York, Londres: Schirmer, 1988.
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MOURA, Eli-Eri. Manipulations of time in music. Artigo não publicado.
Atribuições de aspectos musicais nos efeitos sonoros
André Luis Battaiola, Daniel Avilez
Universidade Federal do Paraná

Resumo
Uma característica da indústria nacional de Jogos Eletrônicos é a proporção programador/Artista menor que
um, diferente da proporção, em média dois, que se encontra em mercados consolidados como Estados Unidos
e Europa (“A Industria de Desenvolvimento de Jogos Eletrônicos”, Abragames, 2004). Os artistas referidos na
pesquisa englobam os game designers, os modeladores 3D e os ilustradores. Os profissionais de áudio, em
geral, não são contabilizados porque há um número pequeno deles presentes na indústria referida e, em
geral, não se dá o devido valor à produção do áudio de um jogo.
Estes fatos, bem como, a exclusão dos profissionais do áudio no processo de design de um jogo, o que inclui:
produção do roteiro, definição de personagens, interfaces, etc, ocasiona uma dissociação entre imagem e
som. Note-se que a trilha sonora é, em geral, muito valorizada na produção de um filme, onde profissionais
altamente capacitados trabalham em concordância com o restante da equipe, por outro lado, a produção da
trilha sonora de um jogo pode se tornar muito mais complexa devido aos efeitos relacionados à interação.
Por exemplo, associar uma música a uma cena é relativamente simples, pois o próprio fato de ser uma
música já demonstra que há organização e coerência nos materiais empregados, neste caso sons. Para a
criação de uma música, em geral, se respeitam regras e formas bem conhecidas, porém, um efeito sonoro, o
qual deve ser repetido várias vezes no processo de interação entre o jogador e o jogo, precisa ser muito bem
planejado para não causar stress no jogador e nem diminuir a sensação de ação e reação.
A produção de efeitos sonoros pode apresentar apresenta os seguintes problemas: dissociação entre o nível
da ação e o impacto do som (p.ex, ação suave e som agressivo); desconexão do efeito sonoro com a música,
o que pode ocasionar uma ruptura do jogador com o clima da cena do jogo; falta de harmonia estética e de
intensidade entre musica, efeito sonoro e ação; e diferenças gritantes entre os efeitos sonoros (p.ex, o som
de um tiro de um jogo simples, em princípio, deve manter a simplicidade coerente com os outros sons e a
própria interface).
Nota-se que muitos destes problemas estão atrelados a desconsiderações musicais em relação aos efeitos
sonoros. Então para a organização e composição dos efeitos sonoros propõem-se que atribuições musicais
sejam empregadas a estes, em especial o processo e pensamento da música concreta.

Objetivos Introdução
Nota-se que a estética e as características A potencialidade do áudio como interface é
da música eletroacústica ainda não foram inegável. Segundo Heilig (1992) a ênfase humana
absorvidas pelo grande público e nem pelos com respeito aos sentidos usualmente é de 70%
desenvolvedores de jogos. A utilização da música pela visão, 20% pela audição, 5% pelo olfato, 4%
eletroacústica por parte do meio audiovisual vem pelo tato e 1% pelo paladar.
sendo aplicada principalmente pelos projetistas Um artifício interessante que é muito
de áudio, porém, a apropriação que vem explorado pelos artistas do radio, teatro e cinema
ocorrendo está centrada principalmente na para a integração e a potencialização dos dois
questão técnica, de uma vertente da música sentidos – visão e audição – é a utilização da
eletroacústica, a música concreta. impressão sonora de um ambiente, a Paisagem
A presente pesquisa tem o objetivo de Sonora desenvolvida por Murray Schafer na
estudar e aplicar a técnica e o pensamento Universidade Simon Fraser no Canadá. A paisagem
estético composicional da música concreta, sonora propõe uma escuta musical de todos os sons
sobre dos efeitos sonoros e ruídos dos presentes que nos rodeia, percebendo seus desenvolvimentos
em Jogos Eletrônicos. Expondo assim, a e suas características. No livro O Ouvido Pensante,
potencialidade e a ampla gama de aplicações Murray Schafer propõe o ensino da musica através
deste estilo musical, fato este ainda pouco da paisagem sonora, explorando cada som,
conhecida e explorada por profissionais do áudio. despertando assim nos alunos uma visão totalmente
livre e desprovida de preconceitos sobre o que é
musica.
simpósio de pesquisa em música 2006 189
Desde cedo, os encenadores souberam tirar musica eletroacústica, na composição da trilha
proveito dos aperfeiçoamentos das técnicas de sonora de um jogo.
reprodução e difusão do som. Um espaço, com
A produção da trilha sonora de um jogo pode
efeito, não se define apenas pelos elementos
visuais que o constituem, mas também por um se tornar muito mais complexa devido aos efeitos
conjunto de sonoridades características ou relacionados à interação. Por exemplo, associar
sugestivas, que tecem para o ouvido uma uma música a uma cena é relativamente simples,
imagem cuja eficiência sobre o espectador foi pois o próprio fato de ser uma música já demonstra
mil vezes comprovada. Sabe-se, aliás, que a que há organização e coerência nos materiais
audição é um veiculo de ilusão mais sensível empregados, neste caso sons. Para a criação de
que a visão. (ROUBINE, 1998). uma música, em geral, se respeitam regras e
formas bem conhecidas, porém, um efeito sonoro -
Na produção de um jogo, em geral, não se repetido várias vezes no processo de interação
dá o devido valor ao processo de sonorização. O entre o jogador e o jogo - precisa ser muito bem
produto é tido como acabado sem a planejado para não causar stress no jogador e nem
implementação do áudio, pois raramente é diminuir a sensação de ação e reação.
designada uma função importante no processo de A produção de um efeito sonoro muitas vezes
funcionalidade do jogo. A não inclusão dos apresenta os seguintes problemas:
profissionais do áudio no processo de design de
um jogo, o que inclui: produção do roteiro,
1. dissociação entre o nível da ação e o impacto do som
definição de personagens, interfaces, etc; pode
(p.ex, ação suave e som agressivo);
ocasionar uma dissociação entre imagem e som.
2. desconexão do efeito sonoro com a música (falta de
Um dos fatores responsáveis por esse harmonia estética), o que pode ocasionar uma ruptura
problema é a desinformação dos designers de do jogador com a cena do jogo;
jogos perante as possibilidades da mídia sonora. 3. grande diferença de intensidade entre a música e o
A citação abaixo contida no documento “A efeito sonoro;
Indústria de Desenvolvimento de Jogos 4. diferenças gritantes entre os efeitos sonoros (p.ex, o
Eletrônicos no Brasil”, elaborado pela Abragames som de um tiro de um jogo simples, em princípio, deve
em 2004, revela dois aspectos interessantes: manter a simplicidade coerente com os outros sons e a
própria interface);
Um ponto curioso é que as desenvolvedoras 5. utilização de sons padrões, comuns à internet e a
brasileiras apresentam uma proporção jogos eletrônicos antigos, que pela sua familiaridade
programadores/artistas (ilustradores e perdem o interesse.
modeladores 3D), diferente de mercados
consolidados no desenvolvimento como Todos esses problemas estão atrelados à falta
Inglaterra e Estados Unidos. Nesses países,
de comprometimento entre os sons e a música. Uma
normalmente, existem dois artistas para cada
programador. Pode ser que a proporção esteja
forma de suprir esse problema é a utilização da
diferente porque existem muitos cursos de música concreta, pois a sua estética prevê a
graduação em Ciência da Computação que construção da música pela inserção de ruídos ou
estimulam o desenvolvimento de jogos. Talvez, efeitos sonoros.
as empresas ainda não estejam dando a ênfase
necessária na parte visual dos jogos.
Atribuição de aspectos Musicais nos efeitos
sonoros.
Esta citação revela que se o aspecto visual
Na música ocidental dos últimos dois séculos
de um jogo ainda carece de maior atenção, a
foram e ainda são trabalhados principalmente
questão do áudio é praticamente desconsi-
elementos como: Melodia, Harmonia, ritmo.
derada. Note-se também que o conjunto de
Somente a partir do século XX e, em especial, no
profissionais que participam da produção de um
pós-guerra é que tais elementos começaram a
jogo foram enquadrados nas seguintes
serem extrapolados. Para poder entender essa
categorias: Programador, Game Designer,
extrapolação desse “novo” tipo de música é
Modelador 3D, Ilustrador, Gerente de projetos,
necessário primeiramente conhecer os principais
Administrador, Outros. Dentre elas, não aparece
parâmetros envolvidos na qualidade de um som,
nenhum profissional relacionado à área de áudio.
pois é com a possibilidade de controle total na
Para tentar minimizar esse problema, esta manipulação desses parâmetros, com o auxílio da
pesquisa, em andamento, analisa a possibilidade tecnologia, que a música eletroacústica trabalha
de uso da música contemporânea, em especial, a para organizar os sons.
190 SIMPEMUS3

Musica Eletroacústica serialismo, duas características incompatíveis com


Possui duas principais vertentes, que ao meios multimídia.
longo do tempo foram se aproximando, a Musica Não é recomendável ser ter som com alta
Eletrônica (Elektronische Musik) e a Musica Con- complexidade musical em um ambiente multimídia,
creta (musique concrète). Segue um breve histó- principalmente em um jogo, pois a maior parte da
rico sobre esse tipo de expressão musical, ressal- atenção do jogador recai sobre as decisões e as
tando a importância e o uso para o meio audio- interações com o jogo. Sobre este fato Ney
visual, principalmente para os jogos eletrônicos. Carrasco afirma (2005):

Musica Eletrônica Em uma situação em que a música não acontece


sozinha, mas associada a outras linguagens, a
O início do desenvolvimento da música
atenção do espectador não pode, e não deve,
eletrônica data de 1890 com os primeiros concentrar-se unicamente sobre ela. Isso faz com
experimentos de construção de instrumentos que a capacidade de compreensão de
eletrônicos, como o Telharmonium por Thaddeus determinadas sutilezas do discurso musical seja
Cahill. No entanto, esse tipo de instrumento prejudicada. Construções extremamente com-
começou a ter real importância musical com o plexas, que exijam uma atenção especial e uma
surgimento do Theremin (1924) e as Ondas atitude de audição consciente, em muitos casos
Martenot (1928). O termo Eletronische Musik é não obterão do espectador essa atenção, ou a
obterão pelo seu desvio para o discurso musical,
empregado somente em 1949, para identificar as
prejudicando a compreensão da mensagem como
experiências de Herbert Eimert e Robert Beyer
um todo.
na radio WDR de Colônia (Alemanha).
A grande premissa da música eletrônica é a
No cinema esse tipo de musica foi e é ainda
Síntese Sonora (“Dado um grupo de componentes
muito utilizada em filmes ficção cientifica, dado
harmônicos, a operação de misturá-los para
seu caráter artificial e estranho ainda para maioria
formar um som complexo é chamado de síntese
dos espectadores.
sonora.” [ROEDERER]). Neste caso, ela consiste
na criação de sons por meio de geradores ou
osciladores de freqüência e/ou amplitude. Tais Música Concreta
osciladores geram principalmente ondas Surgiu com os experimentos de Pierre
senoidais. Com base na teoria de Fourier, a qual Shaeffer e Pierre Henry com fitas magnéticas no
“demonstra que qualquer forma de onda pode estúdio da radio RTF em Paris. Seus experimentos
ser decomposta em uma soma de ondas contavam com sons naturais gravados ou
senoidais” [CÂNDIDO], torna-se possível a criação “concretos” (fonte do nome: Música Concreta)
e a organização de sons e, portanto, o que chamados mais tarde de objeto sonoro. Estes eram
origina as musicas por meio de processos manipulados, de forma um tanto quanto rudimentar
eletrônicos. para os dias de hoje, cortando e colando as fitas
Está técnica de geração de som foi muito magnéticas, então alterando o som natural. Cortar
explorada pela indústria dos jogos eletrônicos no e colar são apenas um dos inúmeros modos de
seu inicio: modificar um som, a rotação do gravador de fita
também foi muito utilizada, tanto para frente,
O Computer Space foi o primeiro jogo de galeria executando o som mais rápido, quanto para traz,
(arcade) do mercado, lançado em 1971 pela processo que modifica totalmente o som original.
Nutting Associates, a contar com um canal de Esses e outros métodos concretos de
áudio gerado eletronicamente por um circuito modificação de um som geram resultados
integrado que incluía explosões e sons de fundo surpreendentes auditivamente. O principal motivo
que lembram captação de freqüência via rádio
é que esse som, totalmente novo, é gerado a partir
com alternâncias de graves e agudos. (SILVA,
de um som natural e muitas vezes comum ao dia-
2005).
dia, então sua complexidade harmônica (timbre) é
similar ao som natural, mas o resultado final é
A contribuição da música eletrônica para totalmente novo. Isto o torna apto a receber uma
os jogos eletrônicos não foi além do aparato significação nova, pois nunca ninguém o tivera
tecnológico, por uma razão de complexidade ouvido anteriormente.
estrutural. A música eletrônica tem como
Tais possibilidades foram logo absorvidas pelo
características principais a estética abstrata e o
cinema, principalmente pelos projetistas de áudio
simpósio de pesquisa em música 2006 191
(Sound Designer), sobre esse aspecto Tony mais com relação a abstrações sonoras precon-
Berchmans escreve (2006): cebidas, mas com relação a fragmentos sonoros
existentes concretamente, e considerados como
objetos sonoros definidos e íntegros, mesmo
A primeira vez que o termo sound design quando e sobretudo se eles escaparem das
apareceu nos créditos de um filme foi definições elementares do solfejo.
Apocalipse Now (1975) do diretor Francis Ford
Coppola. Graças às emergentes possibilidades
técnicas da época e à busca de novos caminhos A interpretação da palavra solfejo deve ser
para o som do cinema, este filme marcou uma feita conforme sugerido por Ananay Aguilar na sua
fase em que o som ganhou uma importância dissertação “Processos de estruturação na escuta
especial no cinema. De lá para cá, houve uma de Musica eletroacústica” (2005):
evolução sonora absurda, e hoje temos sound
design em todo tipo de comunicação audiovisual
além do cinema, como televisão, videogames, Vale notar a ligeira diferença entre a acepção do
internet etc”. termo em português e em francês. Enquanto o
Conceitualmente, sound design (ou desenho de solfejo em português denota uma atividade ligada
som, como em português pode-se chamar) é a à leitura e entonação correta das notas musicais, o
criação, manipulação e organização de termo solfège implica um estudo dos princípios
elementos sonoros. É o processo que reproduz o elementares que regem a música, ou seja, está
rugir de um tiranossauro rex, ou o som de uma mais aparentada com a teoria musical do que com
arma-laser, o tiroteio de uma sangrenta o solfejo em língua portuguesa.
batalha, ou ainda, a voz de um computador
futurista.
Pode-se notar que a fundamental preo-
cupação de Pierre Schaeffer é a utilização do
Nesta introdução sobre as técnicas e as objeto sonoro como material de composição e não
utilizações da música concreta nos meios somente o simples fato da técnica de manipulação
audiovisuais, nota-se que o pensamento de um som existente na formação de um novo som.
Schaferiano (aquele em que Murray Schafer Modo simplista que muitos projetistas de áudio
considera a paisagem sonora como composição encaram a contribuição da música concreta.
musical) é parcialmente utilizado, ou seja, se
No livro Tratado dos objetos musicais escrito
utilizam sons conhecidos no dia-a-dia, no
por Pierre Schaeffer em 1966 existem vários
entanto, não se considera uma montagem destes
princípios formativos para a criação da música
sons para formar, em termos composicionais, um
concreta. Estes são, em sua maioria, totalmente
determinado cenário.
aplicáveis à criação de efeitos sonoros.
Flo Menezes, no artigo “Um olhar retros-
Para justificar tal afirmação, é de grande
pectivo sobre a história da música eletro-
valia uma referencia à paisagem sonora criada por
acústica” (1996) escreve sobre a função do
Murray Schafer. Utilizando apenas sons do cotidiano
evento sonoro como música:
(paisagem sonora) Murray Schafer ensina às
crianças todas as propriedades do som e da música,
A partir da noção de matéria concreta, de alem de conceitos sobre ruído, silêncio, tempo e
objeto concreto ou, empregando o termo
composição. Torna-se evidente então a eficácia da
preferido de Pierre Schaeffer, de objeto sonoro,
que deve ser entendido no sentido que vai do análise musical ao englobar os sons ou ruídos, o
ruído de uma porta ao de um suspiro, passando qual podemos também chamar de efeitos sonoros.
neste percurso pelo instrumento ‘tradicional’
de música, é a partir, pois dessa noção bem
estendida, que se estabeleceu definitivamente Discussão
o conceito de pan-música, de uma musica na
O projeto que impulsionou o estudo para a
qual cada evento sonoro possa ter lugar – na
medida em que a intenção assim o deseje. formulação deste artigo foi a animação Purungo. Na
formulação desta animação foram seguidas as
etapas de criação de um modo rigoroso, ou seja, a
Na definição de Pierre Schaeffer de música
formatação do roteiro, a produção do storyboard e
concreta fica ainda mais evidente a apropriação
a realização de reuniões com toda a equipe de
do objeto sonoro (som gravado) no fazer musical
criação. Isto possibilitou o planejamento adequado
(1993):
da trilha sonora.
Foi estabelecido um plano de composição,
Tomar partido composicionalmente dos
materiais oriundos do dado sonoro experi- com conflitos (tensões), clímax e resoluções em
menta; eis o que chamo, por construção, de função da animação. Decidiu-se, então, que a
música concreta, para que possa pontuar a sonorização começaria pela produção dos efeitos
dependência em que nos encontramos, não sonoros. Finalizada essa etapa, notou-se que todas
192 SIMPEMUS3

as metas planejadas para a trilha sonora problemas. Observou-se que estes problemas estão
(incluído a música) tinham sido alcançadas pela mais atrelados à concepção estética dos efeitos
composição através dos efeitos sonoros. sonoros do que aos problemas técnicos, o que
O resultado da sonorização desta animação motivou a pesquisa sobre música eletroacústica
pode ser escutado e entendido como uma música descrita neste documento.
concreta. Despertando, assim, a percepção da Para o desenvolvimento da pesquisa, foram
relação entre efeito sonoro e a música. estudados conceitos e realizadas diversas
experiências em música eletroacústica, o que
proporcionou uma visão abrangente sobre o tema e
Conclusões
uma ampliação das possibilidades de aplicação.
A análise da incorporação do áudio as
O acréscimo das linhas de pesquisa de
interfaces dos jogos de computador evidenciou
cognição, semiótica e linguagens musicais, sem
os problemas descritos na Introdução deste
dúvida, seria de grande valia para continuação
relatório.
desta pesquisa. Que como apresentado nos tópicos
Na elaboração das trilhas sonoras de duas anteriores apresenta resultados novos e
animações (Edugraph e abertura do Congresso consistentes.
SBGames) e de quatro jogos (EEHouse e fases 1,
2 e 3 do Edugraph), procurou-se evitar esses

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CA: Michael Wise Productions, 2001.
Gesto & interpretação mediada para marimba
César Adriano Traldi, Jônatas Manzolli
Universidade Estadual de Campinas

Resumo
A pesquisa aqui descrita vincula a interpretação musical e a interação do músico em processos de mediação
tecnológica com o objetivo de ampliar a sua percepção sonora e a sua capacidade de interagir com a
diversidade de gestos e sonoridades vinculados à música contemporânea. São apresentados dispositivos e
parâmetros de interação que ampliam as possibilidades da interação em tempo real nas obras para marimba
e eletrônicos ao vivo.
Palavras-chave: Marimba, interação, sensores, interfaces, gesto

Introdução descreveremos alguns dispositivos de interação. Em


A música interativa surge no final do século “Sensores”, falaremos sobre o princípio de
XX e rapidamente torna-se uma das principais funcionamento e as propriedades físicas dos
linhas composicionais do inicio do séc. XXI. sensores. Na seção “Interpretação Mediada e
Robert Rowe (1993) comenta que o desenvol- Marimba” descreveremos as obras Daydreams e A
vimento dos meios eletrônicos possibilitou a Gravidade Liberta observando os dispositivos de
execução de composições algorítmicas em tempo interação utilizados. Esta pesquisa tem sua
real, assim os sistemas musicais computacionais metodologia focada para um processo de interação
são capazes de modificarem seu comportamento entre a prática instrumental e a construção de
sonoro em função de estímulos gerados por novos meios e dispositivos para interpretação
músicos em performance. Em 2001 teve início mediada da marimba. Os resultados preliminares
uma série de conferências anuais na busca de apontam para a necessidade de uma nova visão
criar novos dispositivos e instrumentos de interpretativa que fomenta no intérprete o
interação em tempo real intitulada de NIME1, aumento da sua capacidade de controle de
onde intérpretes e pesquisadores têm estruturas sonoras e amplia sua habilidade de
demostrando novos dispositivos e meios de correlacionar eventos e sonoridades da marimba.
interação em tempo real.
O percussionista Kumor (2002) comenta Elemento de performance: o gesto
que a performance de obras contemporâneas Para elucidar a interação do gesto e da
exige do intérprete conhecimentos que vão além expressão musical com dispositivos eletrônicos,
do padrão curricular. Esta pesquisa busca estudar pode-se apontar um ponto inicial na criação de Lev
essas possibilidades de interação verificando a Termen (posteriormente mudado para Leon
postura do intérprete frente a essa nova Theremin): Theremin em 1919. Este instrumento foi
linguagem musical. O objetivo é entender e o primeiro a produzir som sem necessitar do
descrever as possibilidades e a importância da contato físico do instrumentista. Apenas a
performance do intérprete nessas obras. movimentação da mão realizada em torno de uma
Através de oficinas, esses dispositivos, antena controlava a emissão sonora, o que fazia
equipamentos e elementos de performance, são com que fosse necessária uma grande precisão
testados e estudados de maneira a ajudar gestual por parte do intérprete. Historicamente,
intérpretes a desempenharem performances esta é a primeira referência de eventos sonoros
coerentes e que ajam de maneira positiva no realizados a partir do gesto sem contato direto com
resultado final da obra que executam. um meio físico (ROWE, 1993; GLINSKY, 1992). Clara
Na seção “Elemento de Performance – O Rockmore, aluna de Leon Theremin, era violinista,
Gesto” descreveremos o conceito de Gesto quando um problema em suas mãos a impossibilitou
Sonoro e Gesto Físico. Segue a seção de tocar o violino e ela então passou a se dedicar
“Processamento em Tempo Real” onde ao Theremin. Clara transportou a técnica do violino
para o theremin, com um método de “dedilhado
1
New Interfaces for Musical Expression aéreo” que dava precisão ao controle do som
194 SIMPEMUS3

emitido pelo aparelho. Desta forma, criou um intrinsecamente ligado ao gesto sonoro e de forma
meio de interação com a tecnologia e ampliada, ao movimento corporal do
especializou seu gesto de modo a tornar-se uma percussionista.
virtuose do instrumento. O gesto sonoro foi também conceituado por
Guardadas as devidas proporções, o que se Iazzetta (1997b): “Trata-se da significação do
pretende fazer, a partir da interação com os movimento, que está intimamente ligado à ação
computadores, é repetir a experiência realizada musical. Aplicado aos conceitos de técnica e
por Clara Rockmore. Para que o gesto possa ser tecnologia, intensamente utilizados em música a
utilizado como meio de ligação entre intérpretes partir do começo do século XX, o gesto sonoro
e dispositivos de interação ao vivo como passou a englobar não somente a emissão do som,
computadores, sensores e outros, ele deve ser como também a técnica empregada e a tecnologia
estudado, compreendido e ampliado, uma vez aplicada”.
que além de ser o fio condutor da interação O gesto sonoro nada mais é do que os
homem-máquina, ele será o elemento diferentes caminhos sonoros possíveis de serem
fundamental na conexão direta entre o material produzidos nos instrumentos. Escalas, glissandos,
eletrônico e a geração sonora dos instrumentos acordes, notas longas, notas curtas são alguns
no momento da interpretação. exemplos de gesto sonoro. Após a captação dos
Raul do Valle ao estudar o gesto ligado à gestos sonoros através de sensores como,
técnica instrumental menciona: “Um gesto é um microfones ou sensores piezo-elétricos, esses dados
movimento que envia um sinal a um observador. são enviados a computadores que podem
Para tornar-se gesto, um ato deve ser visto e reconhecê-los através de softwares como o
comunicar uma informação” (VALLE, 1996). Max/MSP e PD. Essas informações podem ser
O Gesto será por nós tratado nesse utilizadas para definir as ações do computador.
trabalho em duas formas: Nesse trabalho, realizamos oficinas onde
estudamos essas interações, de maneira a elucidar
aos intérpretes quanto à importância de sua
1.Gesto Sonoro;
execução nessas obras. Um gesto sonoro executado
2.Gesto Físico, subdividido em duas de uma maneira inadequada poderá transmitir
vertentes: informações inadequadas ao computador,
Gesto Físico Incidental ou Residual transformando o que deveria ser um dialogo entre
Gesto Físico Cênico intérprete e máquina, numa confusão de
informações, onde não existe coerência entre
perguntas e respostas.
O enfoque será no sentido de observar e
estudar os movimentos, a técnica e as
disposições cênicas, que são gerados e estão Gesto físico incidental ou residual
diretamente envolvidos na performance Segundo Frank Kumor (2002), o movimento e
instrumental. Raul do Valle (1996) fala da a música instrumental possuem uma relação
importância de que os gestos sejam claros, sem inseparável. O movimento quando acompanhado de
equívocos e impossíveis de se confundir, um significado é denominado de gesto. O gesto
exprimindo força, amplitude e velocidade iguais incidental é o movimento natural e inevitável do
a cada uma de suas manifestações. intérprete, na execução instrumental.
O gesto incidental nas músicas para percussão
Gesto sonoro é mais importante e mais facilmente evidenciado
do que em obras compostas para outros
Segundo Iazzeta (1997): “A música sempre
instrumentos, isso é devido à grande extensão
esteve relacionada ao gesto do intérprete, porém
espacial necessária para a execução dos
a sua importância e significação apenas nas
instrumentos de percussão ou de obras que
últimas décadas passaram a ser estudadas”. A
requerem configuração de diferentes instrumentos.
partir desta observação não é difícil verificar que
A movimentação neste espaço, junto com o grande
se trata então da relação instrumento/
movimento muscular na performance desses
instrumentista e o som por eles gerado, num
instrumentos, cria uma intrigante e sutil “dança”,
movimento contido no espaço-tempo ou no
segundo Kumor (2002) esta “dança” ocorre com a
processo dinâmico gerado pelo músico. Assim, na
mudança de posição do músico, com o ato de se
performance musical, o som percebido depende
estender e inclinar-se no instrumento, e na
dos caminhos gestuais do instrumentista, estando
movimentação de braços, pulsos e mãos no controle
simpósio de pesquisa em música 2006 195
das baquetas ou das próprias mãos que serão tornando-se também uma arte que se expressa por
utilizadas para produzir os sons nos meios visuais. Na próxima seção vamos tratar
instrumentos. especificamente do que Kumor denomina de Gesto
O estudo e a compreensão do movimento Cênico.
residual ou incidental utilizado na execução da
técnica instrumental devem ser parte regular do Gesto cênico
vocabulário de percussionistas. O gesto musical
No séc. XX ocorreu um grande crescimento na
está diretamente ligado com a produção sonora
experiência com música para percussão. Os
do instrumento. Muitos estudos têm sido feito
compositores passaram a ver os instrumentos de
com respeito à eficiência do movimento corporal
percussão como instrumentos com grande potencial
incorporado à técnica de execução instrumental.
como solistas e em música de câmara. Somado a
O percussionista deve utilizar-se de técnicas e
isso, alguns compositores adicionaram novos
métodos de estudo que desenvolvam eficiência
elementos na performance, a descrição do
física para o melhoramento da performance.
movimento ou o gesto cênico (movimento com
Devido a importância do gesto residual significado).
inerente à performance da marimba, esta
A inclusão da ação cênica em trabalhos para
pesquisa desenvolveu uma busca pela
percussão atuais e a performance com desafio
compreensão deste gesto de maneira que ele
técnico não é ainda parte do padrão curricular de
possa servi como meio de comunicação entre
percussionistas e esse trabalho tem como objetivo
intérprete e máquinas. O gesto residual do
aproximar intérpretes dessa nova linguagem
intérprete poderá ser captado através de
musical.
sensores de movimento e transformado em
informações para o computador. Para que isso O Movimento físico com significado recebe o
possa ocorrer com sucesso, o intérprete deve ter nome de gesto cênico e deve ser pensado portanto,
consciência da importância e das inúmeras como o movimento do corpo que é descrito pelo
possibilidades gestuais existentes de maneira a compositor, um movimento específico, planejado e
padronizar movimentos para que possam ser que é um elemento integrado na performance. Isto
captados e compreendidos pelos meios não deve ser confundido com o gesto residual que é
eletrônicos. Os diferentes tipos de qualidade produzido naturalmente em execução instrumental,
sonora causada pelo gesto residual também o gesto residual, também é um gesto pensado e
podem ser captados através de microfones e com significado, mas a sua utilização é apenas
servirem como meio de interação. pensada para a melhor produção sonora. Já no
gesto cênico seu significado é visual e está
Para que o gesto residual possa ser
diretamente ligado ao movimento físico do
utilizado como meio de interação é necessário
intérprete e não à geração sonora.
seu estudo e entendimento, para isso realizamos
oficinas onde as diferentes possibilidades foram Problemas de interpretação e performance
testadas. O objetivo é formar um padrão gestual imprecisas surgem quando o percussionista é
que possa ser captado pelos meios eletrônicos e requisitado para tocar estes gestos descritos pelo
que ao mesmo tempo não comprometa a compositor. Isto ocorre por que o percussionista é
performance e a geração sonora do instrumento. geralmente treinado para o gesto incidental
necessário na técnica de execução do instrumento,
Ao falar sobre o movimento incidental,
mas não é treinado para movimento gestual
Frank Kumor (2002) diz: “O movimento inciden-
desenhado, a adição do gesto cênico como um
tal produzido na performance de instrumentos de
elemento na performance de uma composição
percussão cria uma dança única em várias
acaba por confundir o percussionista e, portanto
composições, e compositores como John Cage
representa um problema físico e musical.
tiveram consciência dessa condição”. Vários
compositores que observaram este fenômeno Portanto, este trabalho tenta auxiliar os
consideraram o movimento corporal como sendo intérpretes a entenderem e notarem a importância
parte integral na performance em suas do gesto nas obras em que executam,
composições. Alguns compositores passaram a principalmente nas obras contemporâneas que
dar tal importância ao gesto dos instrumentistas utilizam gestos desenhados. O gesto é estudado e
que algumas obras só podem ser apreciadas e descrito através das oficinas, de maneira a
compreendidas quando são assistidas em demostrar a importância gestual para a produção
performances ao vivo, nessas obras a música sonora e para a performance visual da obra. No
deixou de ter apenas um caráter auditivo, contexto de obras interetivas, o gesto muitas vezes
terá que ser alterado para que os diferentes
196 SIMPEMUS3

dispositivos e sensores possam captar e transmi- Este conjunto de informações será fornecido de
tirem as informações para os computadores. alguma maneira para o computador digital através
de interfaces apropriadas. Em particular este
trabalho apresenta três processos de interação
Processamento em tempo real
homem-máquina nos quais foram estudados e
O desenvolvimento de novos dispositivos e construidos diferentes modelos de interpretação.
meios eletrônicos nas décadas de 60, 70 e 80 Portanto, podemos dividir o processo em três fases:
possibilitaram uma ampla rede de inter-relações
entre a dimensão instrumental e a
eletroacústica, surgindo a possibilidade da a) captação da informação através de sensores que
a convertem em sinal elétrico (analógico);
interação em tempo real, driblando a questão do
tempo fixo do suporte magnético que se b) conversão do sinal analógico em digital para
interpretação através de software dedicado;
defrontava com a inevitável maleabilidade do
gesto instrumental. É nesse contexto que se c) interpretação e processamento computacional.
inserem as obras que fazem uso de eletrônicos ao
vivo (live-electronics), ou seja, com a Apesar dos sensores terem sido criados para
transformação sonora ao vivo dos sons outras finalidades parafraseando (BOULEZ, 1977),
instrumentais, com a flexibilização da dimensão podem ser utilizados como veículo de comunicação
temporal através da determinação operante do entre instrumentistas e computadores.
intérprete no ato da execução, com a interação
entre instrumento e meios eletrônicos ocorrendo
em tempo real, surge flexibilização do tempo em Princípio de funcionamento e propriedades
duas vertentes: físicas
Intuitivamente o princípio de funcionamento
de um sensor pode ser descrito da seguinte forma:
1.Sons produzidos pelo instrumento sendo
transformados ao vivo; o valor de estado de uma grandeza que caracteriza
um parâmetro medido no meio ambiente é
2.Técnicas em tempo real onde a execução
instrumental leva à produção de estruturas quantificado por outra grandeza física como
sonoras controladas por computadores, que intensidade de luz, calor e som ou grandezas
não necessariamente dependem, direta- mecânicas como posição, velocidade e força. De
mente, dos sons produzidos pelos maneira geral, estes parâmetros são relacionados
instrumentos. com variação temporal, pois a base fundamental da
música é o tempo. Em síntese, uma variação da
O equipamento mais utilizado atualmente grandeza física provoca no sensor uma variação do
para o processamento em tempo real é o seu sinal elétrico de saída.
computador com a utilização de softwares como A partir deste princípio fundamental é
Max/MSP e PD. Esses softwares possibilitam uma possível classificar e caracterizar os sensores
enorme variedade de efeitos timbrísticos, a segundo os seguintes critérios:
utilização de diferentes dispositivos de captação
para a interação com o intérprete e a reprodução faixa operacional (range): faixa de medida em que
de sons ou trechos musicais que podem ser os valores são válidos.
previamente gravados ou captados durante a resolução: menor incremento da grandeza medida
performance da obra. que provoca mudanças na saída do sensor.
sensibilidade: relação entre a variação da
Sensores grandeza de saída (tensão, corrente, etc) e a
variação da grandeza medida.
Para que haja alguma forma de interação
linearidade: se a razão entre as variações das
entre o instrumentista e eletrônicos e, em
grandezas medidas pelas variações das grandezas
particular, o computador, são necessários de saída são constantes, o sensor é linear. Em
dispositivos capazes de capturar variações de instrumentos analógicos, isto corresponde a
parâmetros provocadas pela ação do intérprete. escalas lineares. Uma outra possibilidade, muito
Estes dispositivos são denominados, de forma freqüente, é ter-se uma escala logarítmica, o que
geral, neste trabalho de sensores. De forma indica um sensor usando uma conversão de energia
intuitiva, os sensores coletam informações do exponencial.
meio ambiente sobre parâmetros físicos histerese: fenômeno em que ao se alterar uma
relacionados com o instrumento e ações, como o grandeza num sentido (por exemplo, de um valor
gesto aqui estudado, produzidas pelo intérprete. baixo para um valor alto), a medida segue uma
simpósio de pesquisa em música 2006 197
curva que ao se alterar a mesma grandeza no Sensores de velocidade
sentido contrário, a curva de medida é Radares de ultra-som: baseados no efeito Dopper,
diferente. um sensor de som junto com um emissor de ultra-
exatidão ou erro: diferença absoluta entre o som pode determinar a velocidade de um objeto.
valor medido pelo sensor de uma grandeza
física e o valor real dela.
Interpretação mediada e marimba
relação sinal/ruído: relação entre a potência do
sinal entregue pelo sensor e a potência do Uma das primeiras obras que encontramos no
ruído, isto é, a potência de saída caso a repertório para Marimba e eletrônicos ao vivo é
grandeza medida não troque nenhuma energia Daydreams (1991) de Philippe Boesmans. O
com o sensor. percussionista Robert Esler (2003) comenta as
resposta em freqüência: as freqüências das dificuldades de execução dessa peça naquela época
variações da grandeza medida que o sensor é e até mesmo nos dias atuais no que tange a
capaz de acompanhar. Geralmente, complexidade da tecnologia utilizada através de
representado por um diagrama ganho vs.
inúmeros dispositivos eletrônicos aplicados à
freqüência, diagrama de Bode.
interação entre o intérprete e o computador. A
interface utilizada foram sensores piezoeléctricos
Sensores de presença nas teclas da marimba, a informação recebida era
Nesta classe de sensores as medidas são enviada para um conversor MIDI analógico, e o
relacionadas à interferência que a presença de computador transmitia a informação apropriada
objetos feitos de materiais específicos criam em baseado em uma seqüência de eventos progra-
feixes de luz, como infra-vermelha, campo madas em uma antiga versão do Max.
magnético ou diodos emissores de luz (LEDs).
Microfones e sensores de movimento
Micro-switches: pequenas chaves elétricas. São Algumas peças mais atuais utilizam alguns
colocadas nos pontos onde se deseja
dispositivos mais modernos na interação
estabelecer a presença de algum objeto.
intérprete/computador, um exemplo é A Gravidade
Reed switches: chaves com contatos em
Liberta (2003), para marimba e eletrônicos ao vivo,
material ferro-magnético que se fecham com a
do compositor espanhol Ricardo Climent. Nessa
proximidade de um campo magnético (imã).
obra, o computador reage em tempo real aos
Sensores óticos: a emissão e a repecpção de
estímulos provocados pelo intérprete de forma que
diodos emissores de luz (LEDs) e/ou foto-
transistores é interrompida pela presença de ao tocar o instrumento o computador capta os sons
algum objeto. gerados, através de microfones, e o transmite com
alterações utilizando alguns efeitos como:
duplicação, repetição, distorção e alteração
Sensores de posição timbristica.
De uma forma geral, os sensores de posição Ampliando as idéias reativas encontradas na
também podem ser usados como sensores de peça Daydreams. Além de o intérprete conseguir
presença, embora o contrário seja falso. estabelecer tal interação com o computador
através do ato de tocar, ele também tem a
Sensores potenciométricos: uso de resistências possibilidade de interagir com a maquina e
com um cursor metálico que acompanha a interferir nos sons que estão sendo gerados através
posição de um objeto. de gestos das suas mãos onde estão sensores numa
Encoders: também são chamados de luva que captam esses movimentos e provocam
codificadores, são sensores de posição novos estímulos ao computador fazendo com que
constituídos de um ou mais sensores óticos de ocorram alterações no som que está sendo gerado.
barreira que detectam a passagem de
alterações em uma superfície constante.
Apesar dos diferentes meios tecnológicos de
interação em tempo real utilizados em Daydrems e
Sensores de Ultra-som: usam um emissor de
A Gravidade Liberta, podemos notar que em ambos
ultra-som, tipicamente, um cristal piezo-
elétrico, e um receptor, um microfone. Uma os casos é exigido do intérprete um conhecimento e
onda de som ultra-sônica, acima de 20 kHz é familiarização com a tecnologia utilizada que não
emitida e refletida por um obstáculo, através faz parte da grade curricular convencional. Essas
do cálculo do tempo de ida e volta é possível duas peças demonstram algumas das inúmeras
determinar a presença dos obstáculos e a sua possibilidades de dispositivos de interação entre
posição. intérprete e eletrônicos ao vivo, mas também
198 SIMPEMUS3

mostram a necessidade de uma nova visão a) Perspectiva de Interação Homem-Máquina: é


interpretativa. importante levar em conta quais os objetivos
tanto dos movimentos de controle quanto dos
sons gerados, do nível de controle exigido do
Metodologia “instrumentista”, assim como se o sistema é
A metodologia utilizada na pesquisa apoia- controlado por uma ou por várias pessoas, se
estas pessoas estão no mesmo espaço físico ou
se em três elementos fundamentais:
em diferentes regiões, se o objetivo final é
uma forma de comunicação ou a exploração
construção de novos dispositivos com sensores de um espaço.
diversos;
mediação através de processo computacional; b) Perspectiva Tecnológica: analisam-se quais as
oficinas de performance onde é realizada a tecnologias empregadas para a aquisição dos
validação do processo bem como as medidas de movimentos, o tipo de correspondência entre
desempenho do sistema e avaliada a reação do as variáveis eletrônicas derivadas dos
músico. movimentos físicos e as variáveis de controle
dos sons a serem produzidas ou alteradas e
finalmente as opções de algoritmos
Através da realização de oficinas de disponíveis para a geração sonora.
performance como meio de integração entre a
prática instrumental e os dispositivos estudados,
o intérprete-pesquisador vincula o conteúdo Primeiros resultados
teórico e tecnológico desenvolvido na construção Com os resultados obtidos na análise das
de interfaces com sua prática instrumental. oficinas já realizadas observamos que nessas obras
Como estudo de caso aplicado à interpretação da o intérprete deixa a postura de ser apenas meio de
marimba, apresentamos a interação do execução para assumir a posição de elemento de
intérprete com o computador através do gesto. coesão, onde através da adaptação, molda-se a
Wanderley (2006) ao falar sobre a cada obra. A forte presença da improvisação
interação entre homens e máquinas em somada à necessidade do conhecimento dos
performances em tempo real, aponta como dispositivos utilizados em performance nessas obras
principal questão surgida: como utilisar esta colocam o intérprete na posição de co-criador das
capacidade de geração sonora em tempo real? obras que executa.
Ou, como tocar um computador?
É preciso decidir quais os tipos de Projeções e conclusão
controles que serão postos à disposição dos O grande número e diversidade de
possíveis músicos. É necessário criar dispositivos dispositivos eletrônicos de interação tornam
(normalmente à base de sensores eletrônicos inviável o estudo de todos eles, mas temos como
diversos) que serão conectados ao computador objetivo pesquisar alguns que demonstram grande
para controlar a geração sonora. potencial nessa função como os sensores de pressão
Segundo Wanderley (2006) quando e luz.
tratamos de sistemas de geração sonora A utilização de dispositivos eletrônicos de
controlados por gestos, graça à flexibilidade interação em tempo real na marimba aponta para o
oferecida pela geração sonora por meios desenvolvimento de uma nova visão interpretativa
eletrônicos, o projeto de interfaces gestuais não no instrumento que possibilite ao intérprete a
necessita seguir os padrões existentes dos interação com inúmeros dispositivos.
instrumentos musicais acústicos a que estamos
A análise que fazemos é que a utilização de
acostumados. Graças ao enorme desenvol-
técnicas interpretativas mediada fomenta no
vimento da tecnologia de sensores, praticamente
intérprete o aumento da sua capacidade de
qualquer ação física pode ser transformada em
controle de estruturas sonoras e amplia sua
sinais elétricos que serão, em seguida, utilizados
habilidade de correlacionar eventos e sonoridades
para gerar novos sons ou controlar sons já
da marimba.
existentes. Existem varias opções para a análise
e comparação de sistemas de geração sonora
controlados por gestos, entre eles:
simpósio de pesquisa em música 2006 199
Referências
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1986, 1977, p. 5-14.
BOULEZ, P. Gerzso, A. Computers in music. Scientific American, v. 258, n. 4, 1988.
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KUMOR, F. Interpreting the relationship between movement and music in selected twentieth-century
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MANZOLLI, J. The development of a gesture interface’s laboratory. II CONGRESSO BRASILEIRO DE
COMPUTAÇÃO E MÚSICA. Anais..., Recife, 1996.
ROWE, R. Interactive music system. Cambridge: The MIT Press, 1993.
VALLE, R. Encadeamento: uma nova gestualização sonora. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de
Campinas, 1996.
WANDERLEY, M. Instrumentos musicais digitais: Input devices and music interaction laboratory, music
technology area – Faculty of Music / McGill University, Montréal, 2006.
O processo de produção musical na indústria fonográfica:
questões técnicas e musicais envolvidas no processo de
produção musical em estúdio
Frederico Alberto Barbosa Macedo
Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo
Buscamos neste artigo descrever o modo como o processo de produção musical em estúdio desenvolveu-se,
paralelamente ao surgimento das diversas tecnologias de gravação, produção e reprodução sonora, até
estabelecer-se nas fases hoje praticadas pela indústria fonográfica. Definimos inicialmente os papéis do
produtor fonográfico e do engenheiro de som, figuras fundamentais neste processo. Descrevemos, em
seguida, cada uma de suas fases: pré-produção, gravação, edição, mixagem e masterização. Explicamos
algumas técnicas de produção atualmente utilizadas, discutindo suas vantagens e desvantagens, levando em
consideração os resultados musicais desejados e a concepção artística e musical que se tem em mente. Para
isto, utilizamos referências diversas, entre elas Bahia (1998a, 1998b), Burgess (2002), Dias (2000), Vidal
(1999), Monteiro (1999) e Martin (2002). Em seguida discutimos algumas importantes questões de natureza
musical, que influenciam o modo como o processo de gravação deve ocorrer, explicando alguns fatores
musicais e estilísticos que devem ser levados em consideração ao se gravar estilos baseados na performance
grupal, como a música clássica e o jazz. Em seguida explicamos alguns procedimentos específicos utilizados
na produção de música eletrônica, usando, entre outras referências, Schrank (2002). Por fim, concluímos com
algumas observações referentes às transformações trazidas pelas diversas tecnologias no processo de
produção sonora, acentuando, especialmente, a fragmentação do processo em várias fases e o surgimento de
inúmeros agentes envolvidos na produção e na tomada de decisões referentes ao trabalho que está sendo
criado. Chamamos a atenção, também para a diversidade de técnicas hoje disponíveis e para a necessidade
de sua adequação à concepção musical que se tem em mente para se chegar a bons resultados.

Introdução material já gravado” (RATTON, 2004, p. 108). Em


O processo de produção em estúdio sofreu seguida vieram os gravadores multipistas, ou
diversas modificações ao longo da história da multitrack2 , que permitem que cada instrumento
indústria fonográfica, estando intimamente seja gravado independentemente. Esta técnica
ligado ao desenvolvimento das tecnologias de ofereceu uma grande flexibilidade ao processo de
produção e reprodução do som. Inicialmente, produção, possibilitando que várias decisões, antes
este processo consistia no mero registro de uma tomadas durante a gravação, pudessem ser adiadas
performance. As possibilidades de manipulação para outras fases do processo: a edição, a mixagem
do material gravado praticamente não existiam e e a masterização.
o resultado final dependia, em última análise, da Hoje a produção em estúdio se dá através de
capacidade dos músicos e cantores de realizar cinco fases bem definidas: pré-produção, gravação,
uma boa performance. edição, mixagem e masterização, realizadas
Com o surgimento da fita magnética, o através do trabalho conjunto de uma equipe de
processo de gravação foi se tornando cada vez profissionais – produtores, cantores, instrumentis-
mais dependente de operações realizadas após o tas, arranjadores, técnicos e engenheiros de som,
registro do som. Em primeiro lugar, permitiu que cujos papéis comentamos a seguir.
se fizessem edições de gravações realizadas em
diferentes momentos, selecionando os melhores O produtor e o engenheiro de som
trechos de cada take1, para montar a versão
O produtor coordena a equipe que trabalha
definitiva. O próximo passo foi dado pelo
em um projeto específico. Ele define a concepção
surgimento do overdub – ou overdubbing –,
musical do projeto e coordena sua realização.
técnica que possibilita “gravar um novo material,
Quando contratado por uma gravadora, ele
ao mesmo tempo que se ouve (sem apagar) o
funciona como um intermediário entre esta e o

1 2
“Gravação completa de uma música ou de uma parte de “Gravador que pode gravar e reproduzir mais do que duas
uma música. Equivale à tomada de uma cena de um filme” pistas (tracks) de áudio, simultânea e independentemente”
(OLIVEIRA In. BURGESS, 2002, p. 3 - N. do T.). (RATTON, 2004, p. 101),
simpósio de pesquisa em música 2006 201
artista. Quando é um profissional autônomo, ele suas fases. Projetos de música eletrônica, de
intermédia a relação entre o artista e o música pop, de rock, de jazz ou de música erudita
mercado, ou entre aquele e as gravadoras que necessitam de equipamentos e salas diferenciadas.
possam estar interessadas na sua contratação. Além disso, para um mesmo projeto podem ser
Segundo Dias (2000, p. 92), o produtor precisa utilizados vários estúdios diferentes.
ter “conhecimento musical, do mercado, do A pré-produção deve considerar os recursos
público e, sobretudo, dos detalhes técnicos que orçamentários disponíveis para o, bem como definir
poderão transformar um disco e um artista num os prazos de realização, lançamento, distribuição,
produto musicalmente sofisticado, ou de divulgação e vendas. O mercado trabalha a partir
sucesso”. Além disso, precisa ter habilidades de uma coordenação de diversos setores e
especiais no trato com as pessoas. “O produtor é profissionais, e para que tudo funcione bem, este
o catalisador na química que é coordenar pessoas planejamento deve ser feito e seguido de forma
em torno de um projeto”, afirma Bahia (1998a, mais precisa e objetiva possível.
p. 84).
O produtor trabalha diretamente com o
Gravação
técnico ou engenheiro de som, cujo papel é
traduzir em som as idéias daquele, viabilizando Nessa fase a execução musical será
tecnicamente suas concepções e observando transferida para a máquina de gravação. O mais
sempre a qualidade da gravação. Nas gravadoras importante é fazer uma captação do som com a
independentes e pequenos estúdios é comum o melhor qualidade técnica e musical possível. Bons
produtor e o técnico serem a mesma pessoa. Nas equipamentos, ambiente adequado e um bom
gravadoras e estúdios profissionais, as duas técnico são essenciais. Também é fundamental
funções geralmente são desempenhadas por conseguir que os músicos tenham uma boa
pessoas diferentes, o que libera o produtor para performance, o que se consegue realizando um
se concentrar nos aspectos propriamente artís- bom trabalho de pré-produção, a escolha adequada
ticos da produção. As etapas técnicas – gravação, dos músicos e a criação de um ambiente favorável.
edição, mixagem e masterização – sempre neces- A fase da gravação pode ser realizada, hoje,
sitam do trabalho do engenheiro de som, e um de três maneiras diferentes: ao vivo, em overdub e
mesmo profissional – em princípio – pode ser através de computadores ou seqüenciadores.
responsável por todas as fases, porém o mais Diversos fatores devem ser levados em
comum hoje – pelo alto nível de especialização – consideração ao se optar por uma delas, entre eles
é se utilizar técnicos diferentes para cada uma a instrumentação e os arranjos, a qualidade dos
das fases da produção. ambientes de gravação, a disponibilidade dos
músicos e a própria concepção musical do projeto.
A pré-produção
É a primeira fase da produção. Nela se Gravação ao vivo
desenvolvem todos os processos prévios para a É a forma mais antiga. Nela, os músicos
execução do projeto artístico, que o transfor- tocam juntos ao vivo e grava-se a performance do
marão, enfim, em um produto fonográfico. É grupo. De acordo com Monteiro (1999, p. 89),
uma etapa fundamental para o bom andamento “existem muitas formas de se gravar ao vivo no
de um projeto, pois é aí que o trabalho começa a estúdio, e é importante compreendermos que o
tomar forma. Fazem parte dela: termo ao vivo diz respeito a um grupo de músicos
tocando juntos ao mesmo tempo e, preferen-
A escolha do local de ensaio. Encontros com cialmente, avistando-se uns aos outros”.
compositores. Audição e seleção de repertório. Inicialmente, esse tipo de gravação era
Concepção, criação e desenvolvimento dos realizado com um único microfone captando todo o
arranjos [...]. Escolha do(s) estúdio(s) e do(s)
técnico(s). Levantamento das técnicas ou conjunto. Com o surgimento dos primeiros mixers3
tecnologias a serem empregadas no projeto e da tecnologia estereofônica4 tornou-se possível
[...]. Estimativa mais realista de custos. Esboço utilizar vários microfones ao mesmo tempo, mas,
da estratégia e do projeto de marketing para o
produto (BAHIA, 1988b, p. 80). 3
Mesas de som de múltiplas entradas que permitem o ajuste e o
equilíbrio de várias fontes sonoras (microfones).
Basicamente, um estúdio precisa ter os 4
“Sistema de reprodução sonora em duas vias (canais)
equipamentos, o ambiente e o técnico separadas, posicionadas uma de cada lado do ouvinte, de
adequados à realização do projeto ou de uma de forma a lhe dar a sensação de posicionamento espacial
(linear) do som” (RATTON, 2004, p. 61).
202 SIMPEMUS3

ainda com os músicos tocando juntos e com o O controle individual sobre cada uma das
registro sonoro sendo feito do conjunto. Com o partes gravadas é muito maior e podem-se realizar
surgimento dos gravadores multipistas, tornou-se edições, processamentos e adição de efeitos para
possível a gravação do conjunto ao vivo, com cada trilha considerada individualmente, bem como
cada um dos instrumentos utilizando diferentes substituir partes já gravadas ou adicionar novas
pistas de gravação. Monteiro (1999, p. 90) partes ao arranjo. Atualmente, a gravação em
considera como vantagem desta técnica o fato overdub é a mais utilizada na indústria fonográfica,
de que ela preserva “toda a mágica e especialmente em música pop, rock e música
espontaneidade, além de oferecer durante a popular em geral.
mixagem toda a flexibilidade de que o produtor e Embora ao término da gravação muitas
o engenheiro necessitarão para tratar individual- decisões referentes ao resultado final já tenham
mente a voz e os instrumentos musicais”. Mas sido tomadas, é comum se gravar várias versões de
mesmo com a microfonação múltipla, e um mesmo instrumento ou voz, ou mesmo versões
utilizando-se gravadores multipistas as alternativas de partes instrumentais e vocais
possibilidades de edição ainda eram bastante específicas, que poderão estar ou não presentes na
limitadas, especialmente devido aos edição final.
vazamentos5. Este limite foi superado com o
surgimento do overdub e das gravações ao vivo
realizadas em salas isoladas acusticamente6. Edição
A vantagem da gravação ao vivo é que ela A fase de edição consiste na seleção dos
mantém a interação entre os músicos, o que dá à melhores trechos de cada uma das partes gravadas
música uma atmosfera mais convincente e mais e na montagem desses trechos em uma versão
natural. “Quando tocam juntos no estúdio, final. Pode ser feita após a gravação de cada uma
mesmo sem se verem, os músicos da banda das partes, de um certo número delas ou de todas.
sentem, por empatia, as oscilações dinâmicas e Nesse processo podem ser realizados também
de tempo que acontecem de forma orgânica”, outros procedimentos técnicos, como eliminação de
afirma (2002, p. 87). Também Martin (2002, p. ruídos e vazamentos, pequenas correções de ritmos
340-1) observa que “engenheiros e músicos mais fora do tempo, eliminação de trechos de silêncio e
jovens estão chegando à conclusão de que a utilização de afinadores eletrônicos7. Martin (2002,
qualidade de uma gravação “ao vivo”, com vários p. 342) descreve os benefícios da edição em
instrumentos juntos, acrescenta tensão e multipistas:
emoção ao som, ainda que seja mais difícil lidar
com ela”. procuro guardar todas as execuções que puder. Às
vezes, uma única frase maravilhosa surgirá de uma
interpretação sem graça [...]. Se eu colocar cinco
Gravação em Overdub execuções lado a lado no multipista, poderei então
selecionar a melhor parte de cada execução [...].
Surgiu como uma conseqüência da possibi- Dessa maneira, uma execução completa poderá ser
lidade de se realizar gravações adicionais sobre montada como o produto de vários takes.
um material já gravado. A técnica – criada por
Les Paul, em torno de 1950 – revolucionou o Com o surgimento do áudio digital, foram
processo de produção em estúdio, definindo suas desenvolvidas várias ferramentas que ampliaram
diversas fases. Agora, não era mais necessário muito as possibilidades de edição do material
que os músicos estivessem juntos em um mesmo gravado. Ao final da edição, têm-se as trilhas
ambiente para que a música fosse gravada. definitivas que serão utilizadas na versão final,
“Agora era possível captar múltiplos takes prontas para serem mixadas.
tocados pelos mesmos músicos. Músicos e
instrumentos podiam ser gravados separada-
mente, em momentos diferentes e em ambientes Mixagem
sonoros diferentes” (BURGESS, 2002, p. 3). Segundo Vidal (1999, p. 54), “é o processo
pelo qual se busca o equilíbrio correto e a melhor
5
“Sons indesejáveis que são captados por um microfone. combinação de timbres entre as diferentes fontes
Exemplo: quando um microfone é posicionado em frente a
um instrumento, e capta também o som de outros
sonoras já gravadas”. Na mixagem se realiza o
instrumentos no ambiente, esses outros sons são equilíbrio de volume entre os vários sons,
vazamentos” (RATTON, 2004, p. 150).
6
Esta, uma das técnicas mais interessantes, pois preserva a
7
interação entre os músicos, permitindo, também, edições Processadores em hardware ou software que permitem a
e acréscimos posteriores. afinação de vozes desafinadas.
simpósio de pesquisa em música 2006 203
juntamente com o tratamento e processamento desde os anos 60, o padrão da indústria
individual de cada uma das trilhas, bem como o fonográfica8.
posicionamento de cada som no campo estéreo.
Muitos dos recursos utilizados nesta etapa podem
Masterização
ser empregados na gravação, mas seu uso na
mixagem permite um maior controle – e que se A última fase do processo é a masterização,
teste várias opções – antes de se chegar ao também chamada de pós-produção. É uma das
resultado definitivo. etapas mais técnicas da produção em estúdio, e
consiste na preparação das matrizes que serão
O trabalho de mixagem envolve um nível
enviadas à fábrica. A masterização deve levar em
considerável de conhecimento técnico e domínio
consideração a mídia final na qual a gravação será
no uso de vários equipamentos, processadores,
comercializada – disco de vinil, fita magnética, fita
efeitos, bem como um treinamento auditivo que
digital, CD, DVD –, pois cada uma delas possui
possibilite perceber bem os resultados destes
características específicas.
procedimentos sobre o som. Envolve também
uma boa dose de sensibilidade artística e de Na masterização é definida a ordem das
conhecimento musical, influenciando não apenas músicas, os fade in e fade out9 e o intervalo entre
o aspecto técnico da música como também seus as faixas. São utilizados os mesmos recursos da
aspectos artísticos. Por isso a mixagem deve ser mixagem, só que, agora, ao invés de se trabalhar
acompanhada pelos responsáveis pelas tomadas sobre as trilhas consideradas individualmente,
de decisões referentes ao projeto, de modo a trabalha-se sobre a gravação como um todo. Assim,
imprimir nele a concepção que se tem em busca-se uma homogeneidade de timbre, volume e
mente. sonoridade para todas as faixas.
Muitas vezes, o que se pretende em uma A masterização é também um processo de
mixagem é uma clareza maior na gravação e um finalização artística do trabalho realizado nas fases
alto nível de fidelidade em relação ao som anteriores, e pode alterar radicalmente o resultado
original. Em outros casos, busca-se alterar final. Por isso deve ser acompanhada pelos
intencionalmente este som para que possa se responsáveis pelo projeto. Ao final, tem-se a
adequar a alguma proposta estética os idealiza- matriz, que será enviada para a fábrica para que
dores têm em mente. Na mixagem, é importante seja reproduzida em série.
que todos os elementos estejam a serviço de
uma linguagem expressiva. Comparando a música Algumas considerações referentes ao estilo
com a pintura, Bahia (1988c, p. 34-35) observa musical
que:
Essas cinco fases podem sofrer algumas
variações, especialmente na gravação de música
expressão [...] artística depende muito mais da clássica e jazz. A produção de música eletrônica,
composição como um todo do que do traço ou
por sua especificidade, será tratada adiante.
do realismo objetivo dos detalhes. Assim como
encontramos a genialidade na perfeição No caso da música clássica e outros
matemática de Da Vinci, que retrata as imagens agrupamentos acústicos – big bands, por exemplo –,
com perfeição e fidelidade, também a o produtor tem um papel mais restrito que na
encontramos nos borrões e no movimento dos
traços nervosos e rítmicos de Van Gogh [...] a música pop ou no rock. Se nestes estilos o produtor
genialidade também está presente nas imagens pode ter uma influência bastante grande na
lisérgicas e não lineares de Salvador Dali. concepção artística do trabalho, naqueles ele tem
uma influência bem menor; e seu trabalho consiste
A mixagem envolve uma grande dose de basicamente no registro da performance do músico
criatividade e pressupõe uma coerência com a ou do conjunto.
proposta estética do artista. Mixar uma música Devido ao caráter de espontaneidade pre-
pop, romântica, punk ou eletrônica envolve sente no jazz e à interação entre os músicos
conceitos e procedimentos diferentes. Ao final
da mixagem, a gravação multipistas é reduzida 8
Com o surgimento do sistema Surround os formatos com mais
para o formato final no qual será comercializado, de dois canais chegaram ao mercado, sendo implementados,
geralmente em dois canais (estéreo) que é, por exemplo, nos home theaters.
9
“Ato de se aumentar/diminuir gradativamente o nível (volume)
de um sinal de áudio. Muito usado em mixagens” (RATTON,
2004, p. 62). Os fade in e fade out são também utilizados na
masterização, especialmente nos finais de músicas que
terminam com o desaparecimento do som (fade out).
204 SIMPEMUS3

durante a execução ser fundamental, é qual, diversos loops – ou samples13 – são sobrepostos
recomendável que se grave ao vivo. Um dos mais uns aos outros a fim de realizar toda a parte de base –
importantes produtores de jazz, Orrin Keepnews ou mesmo todas as partes – de uma música. Muitas
(apud SHUKER, 2002, p. 226), observa: “creio que vezes estes loops são extraídos de discos de outros
há casos em que acreditarei na validade de artistas, procedimento bastante usual no rap e na
overdubbing e layering10. Mas também acho que música tecno em geral, sendo a técnica de mais
o uso pode ser exagerado, afetando e reduzindo utilizada pelos produtores DJs.
a espontaneidade, que é uma parte importante Outro procedimento básico na música eletrônica
do jazz”. é a utilização de timbres gerados a partir de
Pode-se considerar que, em qualquer gênero sintetizadores, em hardware ou software. Muitos
musical, quando um produtor quer manter a destes funcionam como instrumentos convencionais,
interação entre os membros de um grupo musical, comandados por teclados ou outros tipos de
deve realizar a gravação ao vivo. Se a intenção é controladores. Neste caso, são gravados como qualquer
captar o ambiente original – uma sala de concertos, outro instrumento acústico ou elétrico, ou seja,
um teatro ou outro –, a gravação deve ser feita no baseados na performance do instrumentista. Podem
local. Se a intenção é captar apenas a interação também ser utilizados através da programação de
entre os músicos, a gravação pode ser feita em salas seqüenciadores ou computadores. A utilização dos
isoladas – preferencialmente mantendo o contato diversos timbres sintéticos, bem como a variação em
visual entre os músicos – ou tratadas com anteparos tempo real de parâmetros de efeitos aplicados sobre
entre os músicos, para minimizar o vazamento. O estes timbres estão entre os principais procedimentos
nível de possibilidades de manipulação do material utilizados na produção de música eletrônica.
na fase da mixagem pode variar, dependendo do Um outro recurso fundamental é a utilização de
modo como é feita a gravação, sendo maior na seqüenciadores e baterias eletrônicas, que podem
gravação em salas isoladas, e menor em ambientes comandar sintetizadores e instrumentos eletrônicos
compartilhados por todos os membros do grupo. diversos. Com estes equipamentos é possível a
realização de efeitos e programações que não podem
A música eletrônica ser realizadas através da performance, ou que, mesmo
que sejam possíveis, estejam fora da possibilidade de
Com o grande desenvolvimento das
execução instrumental do programador.
tecnologias de produção sonora, ocorrido após os
anos 1950, surgiu a música eletrônica, que pode ser O processo de produção da música eletrônica
definida como aquela que se utiliza exclusivamente possui certas peculiaridades, não seguindo as etapas já
– ou em larga escala – de várias destas tecnologias. clássicas da produção musical. De acordo com Schrank
(2002, p. 56):
A música eletrônica nem pode ser
apropriadamente definida como um gênero, pois se
caracteriza mais pelas tecnologias empregadas em O que pode ser observado é que o processo de criação
de uma canção eletrônica reúne edição, gravação e
sua produção do que por considerações de ordem mixagem no mesmo momento [...] sua pós-produção é
estética. Assim, vários estilos musicais, que têm sempre necessária. Ela consiste em abrir a mixagem
muito pouco em comum, são agrupados sob um no computador e alterá-la com efeitos como cortes,
mesmo rótulo por se utilizarem de forma aberta e viradas e filtros. Muitos momentos de uma música
evidente destes recursos. eletrônica são desenvolvidos desta maneira.

As primeiras técnicas utilizadas pela música


Isso acontece porque, ao contrário do que ocorre
eletrônica11 foram baseadas na manipulação de
na música não-eletrônica, muitos dos efeitos mais
gravações realizadas em fita magnética: acele-
interessantes não são efeitos propriamente musicais –
ração, retardamento, retrogradação, recortes,
no sentido de idéias melódicas ou harmônicas que
edição, transposição e utilização de loops12. Esta
chamam a atenção por si mesmas – , mas efeitos que
uma das mais importantes da atualidade, através da
surgem no processo de mixagem, como a aplicação de
filtragem e a modificação de parâmetros de efeitos em
10
Gravação em camadas, sobreposições.
tempo real. Burgess (2002, p. 33) observa que, “na
11
dance music, as idéias de produção, as partes, os sons
Mais precisamente, na música concreta francesa, uma
corrente musical de vanguarda criada por Pierre Schaeffer e a composição em si estão intimamente ligados”.
nos anos 50. As mesmas técnicas foram utilizadas pelos
compositores alemães da música eletrônica, mas,
trabalhando apenas sobre sons gerados eletronicamente e
armazenados em fita magnética.
12 13
Trechos pré-gravados colocados em repetição. Loop amostrado digitalmente.
simpósio de pesquisa em música 2006 205
Conclusões é similar ao status anteriormente atribuído apenas aos
Dois aspectos importantes merecem ser men- compositores ou grandes intérpretes
cionados no desenvolvimento do processo de produ- O processo de produção musical em estúdio se
ção em estúdio: a fragmentação em várias fases e o desenvolveu, por um lado, intimamente associado ao
conseqüente surgimento de diversos personagens desenvolvimento das tecnologias de produção musical
associados a este processo. Se até o final do século e, por outro lado, ao próprio desenvolvimento geral da
XIX o processo de produção e veiculação da música música, de seus estilos, de suas concepções e de seus
podia ser pensado a partir dos três agentes tradi- ideais estéticos. Se inicialmente a produção em estúdio
cionalamente associados ao fazer musical – o compo- se restringia ao registro de uma performance, hoje
sitor, o intérprete e o ouvinte – a partir do desen- existem vários procedimentos técnicos e musicais que
volvimento das técnicas de produção em estúdio e podem ser utilizados para se chegar ao resultado
de sua segmentação nas fases descritas, surgiram sonoro desejado, técnicas diversas a serem empre-
vários outros agentes associados ao trabalho de gadas em função dos objetivos musicais e das
produção musical. Músicos, produtores, intérpretes, concepções estéticas que se tem em mente. Desse
arranjadores, engenheiros de som, programadores, modo, não podemos falar que existe um processo, ou
diretores artísticos, divulgadores e mesmo uma técnica de produção adotada universalmente pela
executivos de gravadoras, todos contribuem de indústria fonográfica, mas, sim, que existem pro-
alguma forma e interferem, em diferentes medidas cedimentos técnicos e rotinas de produção diversos,
nos processos de decisão que resultarão no trabalho cuja utilização deve ser avaliada a partir dos objetivos
final de produção. Esta multiplicação dos diversos musicais que se tem em mente. Nas palavras de
agentes envolvidos na produção musical levou a um Burgess:
deslocamento das noções tradicionais de autoria, na
medida em que, dependendo da influência de cada Não existe uma forma correta ou incorreta de fazer
um destes agentes no processo de produção, muitas discos. Existe, sim, uma forma apropriada e uma
vezes eles reivindicam o reconhecimento de sua forma inapropriada de fazer um disco específico. [...].
participação como uma sendo de natureza autoral. A sonoridade e a atitude da produção precisa combinar
com a sonoridade e a atitude da música. [...] o
Isto explica por que, no seio da indústria princípio geral afirma que a produção deveria estar
fonográfica, o status de diversos personagens – totalmente coerente com o estilo do artista e o
produtores, intérpretes, arranjadores, músicos, conteúdo da música e das letras (BURGESS, 2002, p.
engenheiros de som e, mais recentemente, os DJs – 97).

Referências
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_____ A Arquitetura dos Espaços Virtuais: dimensões e sensações virtuais no tempo. Música e Tecnologia, v. 10, n.
81, mai. 1998b.
BURGESS, Richard J. A Arte de Produzir Música. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002.
DIAS, Márcia Tosta. Os Donos da Voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo:
Boitempo, 2000.
GUEIROS Jr., Nehemias. O Direito Autoral no Show Business: tudo o que você precisa saber. Rio de Janeiro: Gryphus,
2005.
MARTIN, George. Produção Musical. In: MARTIN, George (org.). Fazendo Música: o guia para compor, tocar e gravar.
Brasília: Editora da Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.
MONTEIRO, Manny. De Volta para o Futuro: como nos velhos tempos. Música e Tecnologia, v. 11, n. 98, nov. 1999.
RATTON, Miguel. Dicionário de áudio e tecnologia musical. Rio de Janeiro: Editora Música e Tecnologia, 2004.
SCHRANK, Jomar. Be-a-beat! Gravação, Edição, Mixagem e Masterização da Música Eletrônica. Música e Tecnologia,
v. 15, n. 130, jul. 2002.
SHUKER, Roy. Vocabulário de Música Pop. São Paulo: Hedra, 1999.
VIDAL, Rodrigo. Mixagem: acreditem em seus ouvidos. Música e Tecnologia. Rio de Janeiro, v. 11, n. 94, mar. 1999.
Improvisação & interpretação mediada
Cleber da Silveira Campos, César Adriano Traldi, Jônatas Manzolli
Universidade Estadual de Campinas

Resumo
Descrevemos neste artigo um estudo sobre performance mediada por processos tecnológicos. O objetivo da
pesquisa foi estabelecer um aprofundamento no estudo do processo de composição de obras “semi-abertas”
na qual os participantes buscam novas sonoridades através da interação entre improvisação, instrumentos de
percussão e tratamento computacional em tempo real. A metodologia adotada faz parte da pesquisa de
mestrado em andamento onde são estudadas técnicas de interpretação mediada. O processo de interação
aqui descrito culminou com a composição da obra “Sinergética”, que engendra o conceito de colaboração,
alvo do estudo aqui reportado.
Palavras-Chave: Improvisação, interação, eletrônicos, sinergia, cooperação.

Introdução instrumentos de percussão, sensores e interfaces


No artigo “Instrumentos Musicais Digitais”, computacionais.
Wanderley (2006) comenta que a introdução de A pesquisa aqui apresentada se insere no
modelos de computadores pessoais com grande contexto das Técnicas Interpretativas Mediadas,
capacidade de processamento e a baixo custo onde utilizamos a improvisação como principal
popularizou a geração sonora em tempo real ferramenta para ampliar o escopo da sonoridade
(síntese sonora). Isto criou a possibilidade de dos instrumentos de percussão. Também buscamos
utilização de computadores pessoais na criação novos caminhos e possibilidades na interação da
de sons de alta qualidade em modo de percussão múltipla com eletrônicos em tempo real.
processamento nativo, isto é, sem a adição de Nosso estudo busca as sutilezas sonoras e os
placas de processamento extras para o cálculo detalhes de cada gesto, como conseqüência das
das amostras sonoras. Associadas ao diferentes técnicas aplicadas aos instrumentos de
desenvolvimento contínuo de novos métodos de percussão, para que assim ganhem uma nova
síntese sonora nos últimos 50 anos, estas importância ao tornarem-se matéria prima para a
máquinas possibilitaram o aparecimento de criação de novas sonoridades e material de
novos instrumentos musicais nos quais a geração comunicação entre intérpretes/percussionistas e
sonora é toda realizada pelo computador. A meios eletrônicos.
vantagem deste método de geração sonora Segundo Rowe (1993), uma parte substancial
comparada aos sintetizadores eletrônicos dos esforços de desenvolvimento tem-se voltado ao
(analógicos ou digitais) já existentes há várias contexto de performances ao vivo, que é
décadas é a sua inerente flexibilidade, pois estes justamente o alvo do nosso estudo. Sistemas
computadores podem simular inúmeros métodos computacionais direcionados ao processamento
de síntese por software e assim serem utilizados sonoro em tempo real são utilizados em
em diferentes contextos. composições nas quais combinam-se partes
Wanderley aponta para uma questão que instrumentais e partes sintetizadas/processadas
se colocou desde então: como utilizar esta pelo computador.
capacidade de geração sonora em tempo real? Boulez (1988) evidencia a necessidade de
Ou, como tocar um computador? uma maior interação entre músicos, cientistas e
É nesse contexto que nosso trabalho busca, técnicos, a fim de trazer uma espécie de
através do estudo de técnicas de interpretação consciência cooperativista coletiva entre essas três
para percussão no contexto da música classes. Para que isso aconteça, seria necessário
contemporânea, buscar novas sonoridades e que todos adquirissem o conhecimento da
desenvolver a postura interpretativa dos tecnologia envolvida nesses princípios, gerando
intérpretes envolvidos no processo interativo assim uma linguagem comum entre música e
dessa obra. O trabalho aqui reportado é o tecnologia.
resultado de uma série de oficinas realizadas, Em sua dissertação de mestrado, Dias (2006)
onde os pesquisadores estudam a integração de comenta que atualmente existe um movimento de
pessoas que acreditam que os sons em tempo real
simpósio de pesquisa em música 2006 207
tornam as obras mistas mais semelhantes às diferentes técnicas de execução e pelo
composições convencionais, aproximando-as da processamento sonoro em tempo real.
prática pré-eletroacústica. Segundo essa Com o desenvolvimento de diversos aspectos
vertente, a utilização de sons pré-gravados não musicais, a partir de um guia de improvisação em
possibilita ao intérprete uma atmosfera de forma de partitura gráfica, gradativamente foram
performance “confortável”. surgindo novas texturas musicais. Juntamente com
O estudo que apresentamos neste artigo, o compositor os intérpretes selecionaram e
parte da interação entre percussão múltipla e organizaram elementos como: padrões de manipu-
tratamento computacional realizado com o lação, instrumentação, técnicas de execução e
software Max/MSP1. O Max/MSP é um ambiente disposição da configuração dos instrumentos, de
para desenvolvimento de programas para maneira a criarem um diálogo entre os sons
interação sonora em tempo real. A tecnologia é acústicos e eletrônicos buscando uma coesão
utilizada para modelagem musical ampliando sonora ao discurso musical.
assim as possibilidades tímbricas através do
controle dos parâmetros de percepção musical
Descrição do processo criativo
como amplitudes de onda, timbres, espaço,
tempo, gerando novas ferramentas de A partir da consolidação desses processos, a
composição (RONDELEUX, 1999). estrutura passou a ser subdividida em três grandes
seções. A primeira é formada por um breve início
Na seção “Da Oficina à Composição”, o
com efeitos de apito e roem-roem, indo
artigo apresenta o processo de composição da
rapidamente para instrumentos de pele com a
obra através de oficinas de interação no qual
utilização de dinâmica iniciando em forte
descrevemos o processo de criação. Segue a
decrescendo e a utilização de notas espaçadas. Na
descrição da “Metodologia” utilizada. Em
segunda seção são utilizados instrumentos de metal
“Improvisação” apresentamos a relação entre
e madeira com dinâmica meio forte e um maior
novas possibilidades interpretativas e sonoras
número de notas em relação à primeira parte. A
relacionadas às estruturas de composição que
terceira seção foi formada pela utilização de
utilizam à improvisação como elemento
instrumentos de pele com dinâmica iniciando em
fundamental da obra. Finalmente, apresentamos
fraco crescendo até fortíssimo e início com notas
os resultados e as considerações finais onde
espaçadas aumento a densidade até o clímax da
discutimos e projetamos os próximos passos do
obra. As três seções são interligadas por pequenas
trabalho.
pontes/intersecções onde os elementos e os
timbres utilizados são uma mescla da seção
Da oficina à composição anterior e da próxima.
Estrutura do processo criativo As interfaces utilizadas foram cinco
As oficinas foram realizadas por dois microfones, sendo três deles unidirecionais
percussionistas que compartilham uma mesma (cardióide) e dois omnidirecionais. Os microfones
configuração de percussão formada por oito tom- foram utilizados para captar o material sonoro
toms, um bumbo sinfônico, quatro tambores de produzido pelos instrumentos de percussão e enviar
freio, um temple bell, cinco tubos de alumínio para um computador, onde o som foi processado
de diferentes tamanhos e espessuras, quatro através do software Max/MSP.
latas de diferentes tamanhos, quatro wood-
blocks, um apito e um roem-roem2.
A realização da obra, num processo
sinérgico de experimentação/composição, foi
concretizada com as diversas peculiaridades
tímbricas encontradas pelos três agentes do
processo, ampliando assim as possibilidades
sonoras de cada instrumento modificado por

1
Software desenvolvido pelo IRCAM (Institut de Recherche et
Coordination Acoustique/Musique)
2
Instrumento tradicional do norte do Brasil, que produz som
através da fricção de um barbante em um cabo de
madeira, sendo amplificado através de um cilindro de
papelão preso na outra extremidade do barbante.
Figura 1. Imagem do Patch - Max/MSP utilizado na obra.

Metodologia
A metodologia foi dividida em três etapas: A interação entre intérpretes e eletrônicos
nessa obra tem um fluxo recorrente onde os
intérpretes geram sinal para o computador e
1. Criar, selecionar e utilizar os modelos sonoros
que irão formar a estrutura da obra, observando respondem as sonoridades produzidas pelo mesmo.
as diversas características dos instrumentos na Pode-se ampliar este processo, pois há também
execução das oficinas; uma troca de informação entre os dois
2. Fomentar aptidão com as percussionistas, onde a interação entre ambos é
interfaces/processamentos sonoros implicados estimulada pelo processamento sonoro gerado pelo
na mediação dos processos tecnológicos computador.
utilizados;
3. Explanar o escopo das sonoridades desses
instrumentos e adequá-las ao processo de
composição, ampliando assim a paleta tímbrica
utilizada no processo de improvisação.
Figura 2. Ilustração do sistema de interação entre percussão múltipla e computador utilizado.

Improvisação peça pelo primeiro grupo que sua visão encontrar;


ele decidirá o andamento, [...], o nível dinâmico
Segundo o ponto de vista de Eco (1965), a
fundamental e a forma geral dos ataques segundo
característica principal da música instrumental
os quais os grupos devem ser articulados. Ao fim
está relacionada à liberdade de interpretação do primeiro grupo, ele lerá as indicações de
atribuída pelo intérprete na performance de uma andamento, de intensidade fundamental e de
obra. Assim o intérprete assume o papel de co- forma de ataque. Em seguida, sem intenção
autor da obra ao executar estruturas preconcebida, ele dirigirá sua visão em direção a
improvisadas dando assim uma nova perspectiva um outro grupo qualquer e o tocará de acordo com
para a estrutura musical, utilizando novos as três indicações anteriormente lidas, [...]
parâmetros estruturais como: duração de notas, encontrando um mesmo grupo pela segunda vez,
ele deve interpretar o grupo segundo as indicações
escolha de timbres, etc. Desta maneira, a
entre parêntesis, [...] encontrando um mesmo
improvisação determina a estética da música em
grupo pela terceira vez uma das possíveis
questão. realizações da peça se encontrará acabada
Eco (1965) transfere ao intérprete a função (TRAJANO, 1998).
de co-autor da obra. Neste âmbito, a obra
marcante é a Klavierstuck XI de Stockhausen, Assim, podíamos prever que as formas de
composta em 1956, onde o intérprete (nesse caso indeterminação do percurso musical a serem
um pianista), escolhe o caminho a ser seguido, seguidas pelo intérprete se diversificassem e
no momento da execução, entre algumas das alargassem cada vez mais. Surgem as primeiras
regras oferecidas na partitura. obras que utilizavam como matéria prima o texto,
na qual os músicos poderiam reagir conforme a
A Klavierstück XI é uma obra bem particular do inspiração momentânea. Stockhausen aumenta essa
repertório pianístico deste século. Trata-se de complexidade compondo peças onde utilizava a
uma obra na forma aberta apresentada em uma interação de vários textos e grupos de músicos
página única com a dimensão de 93x53 cm - reagindo ao mesmo tempo em salas diferentes e
uma apresentação por si inusitada. Ela contém
recebendo estímulos uns dos outros através de
19 grupos de variados tamanhos, sendo a
circuitos elétricos manipulados pelo compositor
execução destes orientada pelas instruções que
se encontram no verso da partitura: “O (por um dos autores dos textos verbais) durante a
intérprete se colocará à frente da partitura sem interpretação. No séc. XX, a improvisação tornou-se
idéia preconcebida e começará a execução da
210 SIMPEMUS3

uma prática comum de grupos instrumentais e Nessa obra a improvisação é o elemento


elemento composicional de diversos estilos. principal da música, assim as oficinas de preparo da
Na pesquisa aqui descrita, utilizamos a obra ganham uma grande e vital importância para
improvisação como elemento fundamental da conscientização e criação de uma linguagem que
obra. Através da improvisação foi possível a proporcione o desenvolvimento e a coesão da obra.
criação e execução de estruturas ritmicas É durante as oficinas que os dois percussionistas
complexas, criando assim novas sonoridades que juntamente com o compositor/programador, irão
não seriam possíveis de serem representadas selecionar os caminhos e as sonoridades que, ao
através da notação tradicional e que critério deles, melhor desenvolvem a obra. É nesse
ocasionariam no aumento da dificuldade de momento que os intérpretes assumem a posição de
execução da obra para os dois percussionistas. A co-criadores, pois é através da experiência musical
interação com dispositivos eletrônicos cria novos de cada um que os elementos principais da obra
elementos na performance e exigem dos serão selecionados.
intérpretes uma nova postura interpretativa
como observado pelo percussionista norte Resultados
americano Frank Kumor:
Como resultado dessas experiências, notamos
que a realização de obras com interação entre
A música para percussão obteve um tremendo intérpretes e eletrônicos em tempo real,
crescimento no século XX a medida em que os necessitam de intérpretes que conheçam a
compositores começaram a olhar para ela como
tecnologia envolvida e suas possibilidades. Esse
um meio representativo para obras solo e
conhecimento foi obtido no nosso trabalho através
música de câmara. Em paralelo com o
desenvolvimento dado pelos compositores a das oficinas de maneira que os intérpretes/
obras para percussão, alguns deles adicionaram pesquisadores desenvolveram a capacidade de
novos elementos na interpretação como o uso “prever” a reação do computador aos seus estímu-
do movimento ou de gesto corporal com los sonoros e assim, no momento de performance,
significado específico. A inclusão destes antecipar a ação do outro instrumentista. Ou seja,
elementos em obras recentes para percussão desenvolveram uma paleta de gestos sonoros e
apresenta-se ao intérprete como um desafio estruturas improvisadas para se adaptar a
técnico que não está ainda identificado no
determinados gestos do outro instrumentista ou a
padrão curricular do ensino de percussão
determinada resposta sonora do computador,
(KUMOR, 2002).
evidenciando assim um processo recorrente nas
diferentes performances da obra.
Através da utilização da improvisação os
As improvisações em obras “semi-abertas”
intérpretes puderam dedicar maior atenção para
geram uma espécie de indeterminação controlada,
as diversas interações que estavam ocorrendo
pois ao determinar alguns parâmetros iniciais
durante o processo. Primeiramente, ambos os
utilizados no processo, obtemos as chamadas
intérpretes interagiam entre si, através do
máscaras de tendência, ou seja, uma determinada
diálogo estabelecido entre a execução dos
amostra final obtida por esse processo
instrumentos disponíveis no set-up e as respostas
reapresentará em algum momento algumas
obtidas pela geração de estímulos entre ambos,
características, mesmo que sejam muito pequenas,
num processo sinérgico estabelecido na execução
adquiridas pela influência dos parâmetros inicias
da obra. Por outro lado, ao interagirem em
referidos na amostra. Observamos que após a
tempo real com o computador, ampliam-se ás
realização de algumas oficinas, os intérpretes
possibilidades sonoras gerando assim novos
passaram reagir de maneira similar em cenários
estímulos e novas interações estabelecidas em
interativos semelhantes, pois buscavam referências
dois sentidos:
sonoras memorizadas anteriormente. Desta forma,
a obra adquiriu gradativamente uma estrutura
1. Busca de determinadas sonoridades encontradas e musical própria, que pode ser notada pela
pré-estabelecidas nas oficinas, definidas como recorrência de alguns elementos nas diversas
interessantes á serem executadas, relacionando-as
performances já realizadas da obra.
com determinados efeitos gerados pelo computador;
Este senso de equilíbrio musical, por parte
2. Resposta às novas sonoridades resultantes do
tratamento eletrônico dos sons. dos intérpretes e compositor, é único. Assim a
realização da mesma obra por outros
instrumentistas irá resultar em uma nova estrutu-
ração e, conseqüentemente, em novas sonoridades,
simpósio de pesquisa em música 2006 211
diretamente vinculadas às experiências uma nova visão interpretativa dos percussionistas
assimiladas nas oficinas de preparação e frente a obras mediadas por processos tecnológicos
relacionadas ao conhecimento e à vivência em tempo real e que utilizam a improvisação como
musical de cada um. elemento de coesão estrutural. Trata-se de agir
sobre a estrutura da obra, e de determinar a
duração das notas ou a sucessão dos sons, num ato
Conclusão
de improvisação criadora, ou seja, o intérprete
Notamos que a utilização de técnicas passa da posição de simples executante, onde a
interpretativas mediadas num contexto vinculado performance está totalmente pré-determinada,
a utilização de elementos de improvisação exigiu para uma postura de co-criador.
dos intérpretes a capacidade de controle de
Nas próximas etapas da pesquisa buscaremos
diferentes estruturas sonoras e a habilidade de
elementos de interação multi-modal com dança,
percepção e reação aos eventos e as sonoridades
imagens e outros. Projetamos também o
geradas pelo computador.
desenvolvimento de novos dispositivos, ambientes
Os elementos estudados nesse trabalho interativos e continuaremos nossa atividade de
mostraram a necessidade do desenvolvimento de performance.

Agradecimentos
Esta pesquisa tem o apoio da FAPESP e CAPES, através de bolsa de mestrado e do CNPq através de bolsa de
produtividade em pesquisa.

Referências
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mista. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2006.
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technology area – Faculty of Music / McGill University, Montréal, 2006.
TRAJANO, E. A Klavierstück XI de Stockhausen: uma imensa melodia de timbres. XI ENCONTRO NACIONAL DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA. Anais..., Campinas, 1998
Implementação de um visualizador algorítmico de notação musical
microtonal para o programa Pure Data
Marcus Alessi Bittencourt
Universidade Estadual de Maringá

Resumo
Desde que foram criados os programas para Computer-Assisted Composition (CAC) e para Digital Signal
Processing em tempo real, sempre se tentou reunir as funcionalidades básicas destes em um só aplicativo,
unindo seus aspectos composicionais e performáticos (PUCKETTE, 2002 e 2004). Esta comunicação apresenta
um software que criei para acrescentar a visualização de dados sonoros em notação musical à funcionalidade
básica do programa Pure Data de Miller Puckette.
Palavras-chave: Composição Musical, Computação Musical, Composição Algorítmica.

Introdução. Pierre Barbaud (BARBAUD, 1966), estes têm


Desde que foram criados os programas utilizado o poder de cálculo dos computadores
para Computer-Assisted Composition (CAC), como auxílio à aplicação de conceitos e princípios
como os famosos PatchWork (LAURSON 1989) e matemáticos à escrita e estruturação musicais. Nos
OpenMusic (ASSAYAG et al, 1999) do Institut de anos 70, compositores como Grisey e Murail
Recherche et Coordination Acoustique/Musique também valeram-se do computador para estudar a
(IRCAM) de Paris, responsáveis pelos estudos que constituição de timbres e projetar composições
geraram por exemplo, entre outros, o repertório baseadas nos dados levantados. O time de
da música Espectral de Tristan Murail, Gérard programadores, pesquisadores e compositores do
Grisey e Jonathan Harvey, e desde que foram IRCAM de Paris, atendendo a essas necessidades,
criados os programas para Digital Signal tem desenvolvido famílias de programas para essa
Processing em tempo real como o Max/MSP, o finalidade, como o PatchWork e seu sucessor, o
Pure Data e o jMax, sempre se tentou reunir OpenMusic.
características e funcionalidades básicas destes Sendo a maioria destes programas muito
em um só aplicativo integrado (PUCKETTE, 2002 semelhantes no que tange à interface (todos se
e 2004). agenciam por meio de patchers, constituindo um
Fortes do ponto de vista "performático", os ambiente visual de programação completo com
softwares para DSP têm uma linhagem que vem data structures, funções, métodos e objetos, onde
de longa data, desde o programa Patcher um programa é montado e representado por um
(PUCKETTE, 1986), passando por uma longa lista patch), é natural pensar no intercâmbio e
de desenvolvimentos posteriores, como o interconversibilidade de funções entre estes
MAX/Opcode (ZICARELLI, 1990), o Max/FTS softwares.
(PUCKETTE e ZICARELLI, 1990), o PureData Esta comunicação apresenta um software que
(PUCKETTE, 1996), o notório Max/MSP criei para acrescentar a visualização de dados
(ZICARELLI, 1997), até chegar, mais sonoros em notação musical à funcionalidade básica
recentemente, ao jMax (DÉCHELLE et al, 1998), do programa Pure Data de Miller Puckette, em um
este já um projeto infelizmente defunto. Todos modelo inspirado no das caixas chord e chord-seq
estes softwares têm sido extremamente úteis do PatchWork e OpenMusic, com aproximação de
para o agenciamento de música eletroacústica frequências ao oitavo de tono e notação rítmica
em tempo-real, servindo de verdadeiros "cavalos- proporcional.
de-batalha". Aqui, o Max/MSP (no campo
comercial/proprietário) e o Pure Data (no campo
Implementação do Software
do sofware-livre, gratuito) têm se mantido os
mais ativos e utilizados atualmente. O software foi implementado em três sub-
partes básicas, a saber:
Fortes do ponto de vista "composicional",
os softwares para Computer-Assisted
Composition, desde os pioneiros trabalhos de NotatorCore
Lejaren Hiller (HILLER, 1958) com o computador Este corresponde ao manufaturador de um
ILLIAC, de Iannis Xenakis (XENAKIS, 1971) e de arquivo eps (encapsulated postscript) contendo a
simpósio de pesquisa em música 2006 213
notação calculada em linguagem postscript para IRCAM e tendo também experimentado nas minhas
impressão gráfica. Este software foi construído próprias obras musicais com o uso de sinais de
em linguagem C e programado a partir de uma acidentes para microtons, resolvi por adotar a
tradução que fiz para C dos comandos em seguinte simbologia, dada a sua adequação às
linguagem Lisp utilizados para desenhar em minhas necessidades e à disponibilidade dos sinais
postscript os caracteres musicais no software nos programas de notação CMN (fonte dos glifos
CMN (Common Music Notator), escrito por Bill utilizados) e Finale (http://www.codamusic.com):
Schottstaedt na Stanford University. Este
programa, uma extensão para o CM (Common
Music) de Heinrich Taube (TAUBE, 1991), por sua
vez utiliza uma tradução para o Lisp realizada
por Matti Koskinen da fonte musical para o
MusicTex de Daniel Taupin (TAUPIN, 1996). Este Figura 1. Tabela dos símbolos de acidentes utilizados,
meu programa, que não possui interface gráfica, em oitavos de tono temperados (os acidentes marcados
recebe uma linha simples de comandos contendo com [*] não são utilizados no software).
uma matriz de quadras de números, cada quadra
correspondendo a uma nota-evento. Os números
Ao contrário dos modelos de notação do
da quadra correspondem aos parâmetros tempo-
PatchWork e do OpenMusic, que só usam acidentes
de-início, duração (ambos medidos em
de sustenidos, pensei em criar uma série de
segundos), freqüência (medida em Hertz) e
princípios fixos de regras para enharmonização que
amplitude (linear, medida entre 0 e 1, repartissem ao máximo possível o uso de bemóis e
preferencialmente) do evento. sustenidos. Assim, foram eliminados o uso dos
O NotatorCore notará os eventos da matriz acidentes de alteração de 3/4 de tono (trocados
em um longo sistema único com quatro pelos correspondentes sinais de 1/4 de tono vindos
pentagramas, estes representando a maior parte do nome de nota vizinho), e dos bemol-mais-oitavo
do espectro sonoro humanamente audível. Uma e sustenido-menos-oitavo, que vão de encontro ao
régua temporal é desenhada embaixo do sistema, "ideal histórico" dos acidentes tradicionais (uma
iniciando no tempo do primeiro evento e nota bemolizada sendo idealmente mais baixa que
terminando no tempo do último evento (ou do a sustenida e vice-versa). O processo de conversão
primeiro evento mais dez segundos, o que for de uma frequência para uma notação começa
mais longo). A notação do ponto de ataque dos localizando-se a nota natural ou nota com sustenido
eventos é notada segundo um sistema mais próxima da frequência a ser convertida e
proporcional, colocando-se uma cabeça preta de calculando-se um valor de desvio desta para
nota no local de tempo correspondente sobre a aquela, que será, obviamente, de no máximo 1/4
régua. A duração da nota-evento é representada de tono. Deste ponto, a escolha enharmônica
por um travessão grosso em cinza claro (para não procede de acordo com o seguinte algoritmo:
obscurecer o pentagrama e as notações), no
mesmo princípio proporcional descrito acima. A
amplitude é representada pelo tamanho da
cabeça da nota, sendo que a maior amplitude
dada é representada pelo tamanho natural usual
e a menor, por um tamanho de um décimo do
tamanho natural. A freqüência é marcada
segundo uma aproximação ao oitavo de tono
mais próximo (em um sistema de temperamento Figura 2. Tabela de aproximação e conversão
enharmônica.
igual de 48 subdivisões por oitava) com o A4
fixado a 440 Hz. Considerei esta subdivisão como
bastante razoável, não só por esta encaixar-se Desta maneira, o NotatorCore prepara, a
bem dentro do temperamento igual de 12 sons partir da matriz de quadras fornecida, um arquivo
da tradição musical ocidental, mas também simples de texto com as instruções em postscript
devido a sua proximidade ao coma sintônico necessárias para a impressão gráfica da notação
(aproximadamente 21.51 cents, contra os 25 calculada, segundo o formato encapsulated (eps) e
cents do oitavo de tono, sendo 1200 cents = 1 os princípios descritos acima.
oitava). Conhecendo a literatura a respeito da
notação microtonal, analisando os modelos
fornecidos pelos PatchWork e OpenMusic do
214 SIMPEMUS3

NoteViewer Z_visualizer
Este corresponde ao GUI (graphical user Este consiste em um objeto/elemento
interface), a ser invocado de dentro do Pure externo de biblioteca confeccionado para o Pure
Data. Construído em linguagem C com as Data, a ser instanciado dentro de um pd patch. Este
bibliotecas gtk+ 1.2 e Cairo graphics, o GUI é a objeto recebe mensagens (message boxes) de
parte do software que realiza a tarefa de dentro do Pure Data e as repassa interpretadas via
desenhar numa scrolled window a notação UNIX socket para o GUI NoteViewer. As mensagens
elaborada pelo NotatorCore. São também interpretáveis pelo Z_visualizer são:
incluídos no GUI alguns controles clicáveis para
navegação e ajuste da imagem, mais um botão
[connect] : abre uma janela com o
para salvar o arquivo eps fabricado pelo
NoteViewer e estabelece um socket de
NotatorCore. O programa mantém uma matriz de
comunicação com este.
quadras na memória (cada quadra como antes:
tempo, duração, frequência e amplitude de uma
nota-evento) e, cada vez que esta matriz é [disconnect] : fecha o socket de comunicação
alterada, ele aciona o NotatorCore, que então com o GUI e fecha a janela deste.
prepara a notação do novo estado atual desta
matriz de eventos e lê o eps formado
[empty] : esvazia a notação de eventos.
desenhando-o na scrolled window. O NoteViewer
comunica-se com o Pure Data via um UNIX
socket, recebendo uma nota-evento (quadra) de [send COMMAND time dur freq amp], sendo
cada vez, junto com um comando básico, dentre este command ou "add" ou "resetadd",
os seguintes possíveis: "add" que adiciona o segundo explicação acima.
evento à matriz existente, e "resetadd", que zera
a matriz primeiro e depois adiciona a esta o A figura seguinte exemplifica o processo. A
evento. O programa também recebe notação corresponde ao resultado quando do
internamente mais dois comandos: "quit", para acionamento do bang button do pd patch.
desconexão do socket e fechamento de sua
janela, e "empty", para zerar a matriz.

Figura 3. Exemplo de uso do objeto visualizador [Z_visualizer] no PureData, com a janela do GUI NoteViewer.
simpósio de pesquisa em música 2006 215
Possibilidades de Utilização
No melhor da tradição da Computer-
Assisted Composition (CAC) (ver LAURSON 1989,
BARRIÈRE 1990, ASSAYAG et al. 1993 e 1999,
XENAKIS 1971), este software é especialmente
útil para a visualização de dados musicais
gerados por algoritmos e análise FFT. A
visualização pode ser impressa com qualidade Figura 5. Visualização de uma série harmônica de
superior (o eps é também facilmente conversível fundamental C2.
em formato pdf Acrobat Reader por meio do
programa eps2pdf de Sebastian Rahtz), podendo
Considerações finais
assim ser juntada aos materiais de estudo e
esboços do compositor. À quantização rítmica Este programa foi criado inicialmente como
tradicional dos programas de CAC preferiu-se um proof-of-concept primeiro de um desejo que eu
optar por uma notação de tipo proporcional, ainda tenho de tornar o programa OpenMusic do
baseada na progressão natural do tempo. Uma IRCAM obsoleto pela absorção das funções deste ao
"barra-de-compasso" pontilhada em cinza é Pure Data, um programa gratuito, peça de
desenhada a cada segundo para auxílio à leitura. software-livre e amplamente utilizado e apreciado
em todo o mundo. Tendo adquirido em diversas
Sendo que o Pure Data integra
outras ocasiões e projetos de programação muitos
eximiamente as funções de cálculo matemático e
conhecimentos sobre a linguagem postscript, a
de Digital Signal Processing (e em tempo real),
programação de sockets, de GUIs em gtk+ e de
não há quebra entre os processos de cálculo,
externals para Pure Data, o uso deste arsenal
análise, ressíntese e visualização de dados
técnico na confecção de um aplicativo que serviria
musicais. Por exemplo, o notório objeto para
efetivamente como auxílio à pesquisa para criação
análise FFT [fiddle~], de Miller Puckette, pode
sonora foi uma tentação à qual não resisti. No
ser facilmente utilizado para agenciar uma
entanto, apenas o uso em projetos reais de criação
notação musical dinâmica, em tempo real, da
e pesquisa musicais confirmará a utilidade do
evolução do espectro de frequências de um som
aplicativo.
digitalizado:
Quanto a possibilidades futuras de
desenvolvimento deste projeto, a biblioteca Cairo
dá amplas possibilidades de extensão da
visualização à plotagem de ondas sonoras, e ao
desenho e uso de maquetes, no espírito mesmo
original do OpenMusic. Interações via clicagem do
usuário por sobre o GUI e por sobre os elementos
desenhados podem ser facilmente capturáveis e
transferidas de volta ao Pure Data para que sirvam
de controle para alguma tarefa qualquer. Adicionar
Figura 4. Visualização de instantes da análise do
capacidades de processamento de mensagens MIDI
espectro de freqüências de dois gongos javaneses.
também não é difícil. Enfim, há muitas
possibilidades. Que venham as idéias.
Em outra experiência, requisitei a simples
visualização de uma série harmônica:

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Links importantes.
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Documentação sobre o PureData: http://www.crca.ucsd.edu/~msp/Pd_documentation/index.htm
Miller Puckette: http://crca.ucsd.edu/~msp/
Max/MSP: http://www.cycling74.com/
simpósio de pesquisa em música 2006 217
IRCAM - Institut de Recherche et Coordination Acoustique/Musique: http://www.ircam.fr/
jMax: http://freesoftware.ircam.fr/rubrique.php3?id_rubrique=14
OpenMusic: http://freesoftware.ircam.fr/rubrique.php3?id_rubrique=15
Manual de referência: Cairo Graphics API: http://www.cairographics.org/manual/
Tutorial GTK+: http://www.gtk.org/tutorial/
Tutorial UNIX Sockets: http://www.cs.rpi.edu/courses/sysprog/sockets/sock.html/
Guia para o PostScript: http://www.cs.indiana.edu/docproject/programming/postscript/postscript.html/
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Schoenberg e o progresso:
o projeto estético de Arnold Schoenberg segundo Theodor Adorno
Valéria Muelas Bonafé, Marcos Branda Lacerda (orientador)
Universidade de São Paulo

Resumo
A segmentação e a diversidade, que caracterizam o trajeto composicional de Arnold Schoenberg, tornam
bastante complexa a compreensão do seu projeto estético. Em seu texto Schoenberg e o Progresso, de 1941,
Theodor Adorno apresenta uma reflexão crítica a respeito da nova música, mais especificamente sobre
Arnold Schoenberg e a técnica dodecafônica. Obra já amplamente comentada é suporte importante para a
compreensão do pensamento filosófico de Adorno, bem como para a discussão do projeto estético de
Schoenberg. Buscamos neste artigo iluminar alguns pontos que consideramos de grande valia para o
esclarecimento do percurso traçado por Adorno em seu texto, na tentativa de nos aproximar desta
importante leitura do projeto estético de Arnold Schoenberg.
Palavras-chave: estética, música, Theodor Adorno, Arnold Schoenberg, expressividade, Aufklärung.

Introdução se no prefácio às Sátiras para coro de Schoenberg,


‘é o único que não leva a Roma’. Por essa razão – e
não pela ilusão de que se trata das maiores
A maior parte dos músicos concordará que o personalidades – somente estes dois autores são
destino da música nestes últimos sessenta anos considerados [...] somente eles, por uma
foi determinado principalmente pela obra de coerência que não conhece concessões, exaltaram
dois compositores: Schoenberg e Stravinsky os impulsos presentes em suas obras até
(LEIBOWITZ, 1999, p. 31). transformá-las nas idéias imanentes do objeto”
(ADORNO, 2004, p. 14).
Apesar de aparentemente reducionista, já
que num primeiro momento tal sistematização Este trabalho é dedicado ao comentário
poderia sugerir relegar a um segundo plano apenas do primeiro desses dois artigos que
tendências importantes como o impressionismo compõem a Filosofia da Nova Música, intitulado
de Debussy ou as pesquisas de politonalidade de Schoenberg e o Progresso1, terminado entre 1940 e
Béla Bartók, esta afirmação de Leibowitz 1941. Para comentar tal texto, nos serviremos de
apresenta uma leitura bastante corriqueira duas bases de reflexão que nos serão de suma
acerca dos caminhos que a música erudita importância para a compreensão da leitura que
ocidental enveredou na primeira metade do Adorno apresenta a respeito do projeto estético
século XX. Dessa forma, não nos é de Arnold Schoenberg: a discussão apresentada
surpreendente o fato de que, para compor sua pela Dialética do Esclarecimento, de Adorno e
Filosofia da Nova Música, Theodor Adorno tenha Horkheimer e a reflexão sobre a modernidade, de
escrito exatamente dois artigos, um dedicado a Freud.
Schoenberg e outro a Stravinsky. Porém, é
A Filosofia da Nova Música está intimamente
importante notar que Adorno não se contentou
relacionada com a Dialética do Esclarecimento,
em justificar a escolha desses protagonistas a
publicada em 1947, em parceria com Max
partir do senso comum, evocando simplesmente
Horkheimer. No prefácio da Filosofia da Nova
um suposto “destaque incontestável” dos dois
Música, Adorno afirma: “O livro está concebido
compositores. Logo na introdução do seu livro,
como uma digressão à Dialektik der Aufklaerung”
Adorno justifica o porquê de se pensar a nova
música a partir de Schoenberg e Stravinsky: 1
Para melhor compreensão do nosso texto, optamos por utilizar
todas as citações do artigo Schoenberg e o Progresso a partir
da tradução para a língua portuguesa que, apesar de ser
Na verdade, a natureza desta música [música
bastante imprecisa, não nos trará aqui, especificamente,
moderna] está impressa unicamente nos maiores problemas.
extremos e só eles permitem reconhecer seu
conteúdo de verdade. “O caminho do meio”, lê-
simpósio de pesquisa em música 2006 219
(ADORNO, 2004, p. 11). Portanto, ao comentar fases: tonal (até 1908), atonal (1908 a 1915),
a Filosofia da Nova Música, é fundamental que dodecafônica (de 1923 a 1933) e “híbrida”3 (a partir
tenhamos como suporte a discussão apresentada de 1934).
por Adorno e Horkheimer na Dialética do Herdeiro da tradição alemã “Wagner-
Esclarecimento: Brahms”, sua produção foi marcada inicialmente
pelo gestual e pela gramática romântica, como em
O que nos propuséramos era, de fato, nada Verklärte Nacht de 1899 e em Gurre-lieder de
menos do que descobrir por que a humanidade, 1911. Segundo Pierre Boulez (1995, p. 310), nas
em vez de entrar em um estado obras dessa primeira fase “a tonalidade é
verdadeiramente humano, está se afundando empregada de maneira mais ampla, embora
em uma nova espécie de barbárie (ADORNO, tradicional; as relações são muito cromáticas, mas
HORKHEIMER, 1986, p. 11).
as estruturas tonais em geral são respeitadas”.
Boulez ainda aponta que o Segundo Quarteto em
Grosso modo, o que estava em jogo na F#m Op. 10, de 1908, seria a última obra dessa
Dialética do Esclarecimento era a reflexão fase tonal.
sobre a tensão resultante do embate entre De acordo com René Leibowitz e Pierre
racionalidade e natureza. Através da Boulez de 1908 a 1916, num período que
racionalidade, o homem pôde se diferenciar da compreende do Op. 11 (Três peças para piano) ao
natureza e garantir sua liberdade, tornando-se Op. 22 (Quatro melodias para Canto e Orquestra),
dono do seu próprio destino. Porém, essa estaria delimitada uma segunda fase de
mesma racionalidade também pôde servir como Schoenberg: “É o período dito ‘atonal’ de
instrumento de dominação do próprio homem e, Schoenberg, que começa em 1908 e termina
portanto, inversamente, determinando fim a durante a Primeira Guerra Mundial” (LEIBOWITZ,
sua liberdade.2 1999, p. 77). Desse período podemos citar ainda
Além dessas questões apresentadas na outras obras como Erwartung Op. 17, Die
Dialética do Esclarecimento, consideraremos Glückliche Hand Op. 18 e as Seis Peças para Piano
ainda a reflexão freudiana sobre os processos de Op. 19. São também dessa fase as importantes
racionalização e dominação na modernidade, experimentações com a Klangfarbenmelodie,
reflexão esta que se relaciona diretamente com procedimento utilizado na terceira das Cinco Peças
as formulações de Adorno e Horkheimer e que, para Orquestra Op. 16, e com o Sprechgesang,
portanto, pode nos oferecer um campo profícuo utilizado no Pierrot Lunaire Op. 21. Segue-se um
para a discussão. período de oito anos no qual Schoenberg não
publica qualquer obra musical dedicando-se
Arnold Schoenberg: considerações gerais exclusivamente às atividades didáticas.

Schoenberg foi um dos principais protago- Em 1920 começa a compor as Cinco Peças
nistas no desenvolvimento do pensamento para Piano Op. 23 que são publicadas em 1923. Na
musical ocidental no século XX, tendo influen- última dessas cinco peças, a Walzer, apresenta pela
ciado importantes compositores não só da sua primeira vez o seu sistema dodecafônico. Dessa
época, como seus alunos Anton Webern e Alban forma inicia sua terceira fase, caracterizada por
Berg, mas também muitos outros que se composições dodecafônicas, como a Serenata Op.
seguiram, como Pierre Boulez, Karlheinz 24 e a Suíte para Piano Op. 25.
Stockhausen, Henri Pousseur, Luciano Berio, Diferentemente dos períodos anteriores, é
Hans-Joachim Koellreutter, Cláudio Santoro, difícil delimitar quando se encerra essa fase
Willy Corrêa de Oliveira, entre outros. estritamente dodecafônica e se inicia a fase
Além de compositor, se dedicou também às chamada aqui de “híbrida”, onde faz uso ora de
atividades de professor, publicando importantes sistemas seriais, não necessariamente com doze
trabalhos como Harmonia, Fundamentos da sons, e ora retorna ao sistema tonal. Tanto
Composição, Exercícios Preliminares de Leibowitz quando Boulez comentam sobre esse
Contraponto, Funções estruturais da Harmonia, momento coincidir com sua mudança para os
entre outros. Estados Unidos, em 1933:

A produção musical de Schoenberg pode


ser dividida, para fins de estudo, em quatro
3
O termo híbrido é utilizado por Vladimir Safatle para nomear
2
Auschwitz: planejamento administrativo de um assassinato essa quarta fase de Schoenberg. SAFATLE, Curso de Estética
em massa: barbárie civilizada. III – A filosofia da música de Theodor Adorno.
220 SIMPEMUS3

Sua atividade americana é estranhamente


dividida entre certas obras puramente seriais e A arte é, em seu estágio mais elementar, uma
outras de ‘conciliação’ nas quais se esforça por simples imitação da natureza. Mas logo torna-se
operar uma síntese entre os dados tonais e as imitação num sentido mais amplo do conceito,
exigências da série [...] por isso as últimas isto é, não mera imitação da natureza exterior,
obras de Schoenberg aparecem poluídas por mas também da interior. Em outras palavras: não
uma certa inconsistência: não são representa, simplesmente, os objetos ou
absolutamente homogêneas (BOULEZ, 1995, p. circunstâncias que produzem a sensação, senão,
318). antes de tudo, a própria sensação, eventualmente
sem consideração ao “quê”, “quando”e “como”.
Podemos encontrar diversas obras tonais E a posterior conclusão acerca do objeto externo,
provocador da impressão, reduz-se à causa de sua
nesse último período, como a Suíte para
insignificante presença imediata. Em seu nível
Orquestra de Cordas de 1934, a Segunda Sinfonia
mais alto, a arte ocupa-se, unicamente, em
de Câmara Op. 38 de 1939, as Variações para reproduzir a natureza interior (SCHOENBERG,
Órgão Op. 40 de 1941 e Variações para Orquestra 1999, p. 72).
de Harmonia Op. 43 de 1942.
Para Adorno, a organização do sistema tonal
O princípio de expressão em Schoenberg está conectada a dois elementos temporais
Logo no início do seu texto Schoenberg e o principais: passado e futuro. O que o sistema tonal
Progresso, Adorno afirma que o que há de tenta realizar a todo o momento é a união desses
realmente novo em Schoenberg é a mudança de dois tempos no presente. Os elementos passados –
função da expressão musical (ADORNO, 2004, p. memória - estão garantidos pela constituição de
40) e que “as inovações formais de Schoenberg unidades temáticas e seus desdobramentos. Os
estavam estreitamente ligadas ao conteúdo de elementos futuros - expectativa - estão garantidos
expressão” (p. 40). Portanto, antes de qualquer pelas progressões harmônicas e cadências, por
consideração acerca do projeto estético de exemplo, que, mesmo quando não se resolvem,
Arnold Schoenberg, torna-se inadiável a remetem à expectativa e atualizam a memória do
compreensão do que, para Adorno, compõe este ouvinte. Porém, Adorno aponta que esse tempo
conteúdo de expressão e o que exatamente futuro só é possível porque as regras já estão
caracteriza essa mudança de função da dadas. São elas que permitem a expectativa e
expressão musical. garantem o jogo. Ao recusar as regras da
tonalidade, Schoenberg acaba com a possibilidade
Ao consultar os livros de história da
de jogo e como resultado, anula esse tempo futuro:
música, é corrente encontrarmos a constatação
é a expectativa que não se realiza. É este
de um exagero do princípio de expressão na obra
raciocínio que leva Adorno a afirmar que é a
de Schoenberg, muitas vezes classificado como
angústia5 o elemento fundamental da
um compositor ultra-romântico. Mas, para além
expressividade em Schoenberg.
desta rápida e superficial constatação, o que
exatamente está em jogo na expressividade da Após essas considerações sobre a mudança de
música de Schoenberg? função da expressividade em Schoenberg, Adorno
conclui que “com a negação da aparência e do
Ainda no início do seu texto Schoenberg e
jogo, a música tende ao conhecimento” (ADORNO,
o Progresso, Adorno aponta que a expressividade
2004, p. 40). Este é um ponto fundamental para
em Schoenberg é profundamente diferente do
compreendermos o que para Adorno, no fim do seu
que se via anteriormente na música tradicional
texto, aparece como solução para o impasse que
até o Romantismo. Para ele, a música dramática
ele verifica na nova música. Mas, antes de
ofereceu “de Monteverdi a Verdi, um modo de
comentar esta solução proposta, é necessário que
expressão estilizado e ao mesmo tempo mediato,
entendamos o que para Adorno caracteriza este
isto é, a aparência da paixão” (p. 39). Adorno
impasse.
afirma que a nova música se opõe a isso:
Schoenberg, em sua tentativa de expor a
toda a expressividade musical estivesse submetida a leis
natureza interior, precisa criticar de antemão gerais e convencionais. Para compreender facilmente a que
essa categoria de aparência4 das obras. Adorno está se referindo, podemos pensar, por exemplo, num
clichê bastante simples: a insistente utilização de tonalidades
menores para expressar tristeza e dor.
4
Essa categoria de aparência das obras a qual Adorno se 5
Adorno se apóia no conceito psicanalítico de angústia onde o
refere diversas vezes em seu texto, está relacionada ao sujeito se encontra numa situação de não realização: há uma
fato de que, para ele, durante toda a história da música, energia libidinal que não se satisfaz em representações de
elementos que foram naturalizados e sedimentados objetos.
passaram a funcionar como fórmulas, fazendo com que
simpósio de pesquisa em música 2006 221
Dodecafonismo: inversão da dominação racionalidade humana” (p. 57), resultou um sistema
Para Adorno, as regras dodecafônicas não de domínio sobre a natureza que em princípio
são meramente inventadas, mas, além de garantiria a emancipação do homem. Porém, essa
conseqüências ligadas às modificações do dominação da natureza se inverte contra a
conteúdo de expressão, são também resultado do autonomia e liberdade subjetivas próprias. Essa
“esclarecimento progressivo do material natural inversão é muito importante para Adorno. Para ele,
da música” (p. 60). a racionalidade dodecafônica se revela contrária à
liberdade subjetiva, como se engendrasse uma
Partindo de uma analogia realizada por
dinâmica própria e heterônoma: “esta técnica
Ernst Krenek entre a técnica dodecafônica e o
escraviza a música ao liberá-la. O sujeito impera
contraponto de Palestrina, Adorno reconhece a
sobre a música mediante o sistema racional, mas
importância do rigor de ambas as técnicas: “o
sucumbe a ele” (p. 59). Adorno aponta que a
que aparece como esfera de suas normas é
liberdade do compositor “ao realizar-se no domínio
simplesmente o rigor da disciplina através da
sobre o material, converte-se numa determinação
qual deve passar toda a música que não queira se
do material, que se impõe, estranha, ao sujeito, e
converter em objeto da maldição da
o submete à sua obrigação” (p. 59).
contingência” (p. 94). Para Adorno, é no cerne
das mais rigorosas regras onde se pode encontrar A partir dessas considerações sobre a técnica
maior liberdade. dodecafônica, estão, portanto, postos em jogo, os
conflitos da nova música.
Mas, para esse entendimento das regras
como instrumento de liberdade, se faz
necessária uma compreensão crítica que vá mais O conhecimento como resposta à inversão da
adiante do que meramente a apreensão e a dominação
realização dos parâmetros normativos. E é essa No fim do seu texto, Adorno passa a apontar
compreensão crítica que precisa estar em saídas para o que, em princípio, pareceria uma
operação para que regras didáticas não se grande aporia. Comenta que diante destes conflitos
convertam em normas estéticas: “a ordem que com a linguagem por ele gerada, o compositor
nós chamamos “forma artística” não é uma “deve admitir objetivamente a gratuidade e a
finalidade em si, mas apenas um recurso. Como fragilidade desta linguagem no ato de composição”
tal devemos aceitá-la, porém rechaçando-a (p. 86) já que “estridentes sistemas paranóicos
quando pretende apresentar-se como algo mais, estão prontos a devorar qualquer um que,
como uma estética” (SCHOENBERG, 1999, p. 72). ingenuamente, queira considerar a linguagem por
Portanto, a construção de uma técnica de ele criada como definitivamente válida” (p. 87).
racionalização é de suma importância, porém, é Para melhor compreensão dessa conclusão de
preciso que a música tão logo a reconheça, possa Adorno, parece importante evidenciar a base de
dela se emancipar, mas não recaindo numa reflexão freudiana que acreditamos estar por traz
irracionalidade qualquer, mas sim absorvendo de tal raciocínio.
essa técnica e a superando:“somente na técnica A teoria freudiana de progresso vincula o
dodecafônica, a música pode aprender a desenvolvimento subjetivo do sujeito com as etapas
continuar sendo dona de si mesma; mas ao de desenvolvimento social. Em seu livro Totem e
mesmo tempo só pode fazer isto com a condição Tabu, Freud parte da reflexão sobre a onipotência
de não render-se a si mesma” (ADORNO, 2004, p. de pensamentos para comentar a “evolução da
94). maneira do homem visualizar o universo” (FREUD,
Adorno problematiza ainda o fato de que a 1974, p. 111). Para tanto, enuncia três fases:
tentativa de criação de uma nova linguagem faz animista - onde “os homens atribuem a onipotência
com que o compositor passe a ter que dar conta a si mesmos” (p. 111). Essa fase é marcada pela
de problemas que a linguagem musical infra- indistinção entre homem e natureza; religiosa -
subjetiva cuidava de solucionar em seu próprio onde a onipotência é transferida para os deuses.
engendramento e, essa ausência de infra- Essa fase surge no momento de ruptura entre
subjetividade, faz com que o compositor se homem e natureza como modo de defesa contra o
defronte, por exemplo, com elementos de “desamparo sentido pelo sujeito ao se defrontar
exterioridade e mecanicidade presentes na com a irredutibilidade da contingência de sua
linguagem que ele mesmo criou. Para Adorno, a posição existencial” (SAFATLE, 2005, p. 122);
necessidade de “compreender com critério de científica - onde já não há onipotência humana: “os
ordem tudo o que constitui o fenômeno musical e homens reconheceram a sua pequenez e
de resolver a essência mágica da música na submeteram-se resignadamente à morte e às outras
222 SIMPEMUS3

necessidades na natureza” (FREUD, 1974, p. esclarecimento veio para marcar essa distinção,
111). Para Freud, essa fase científica não chegou separando homem e natureza. Porém, para Adorno,
de fato a se concretizar já que “um pouco da esse processo de racionalização se generaliza numa
crença primitiva na onipotência ainda sobrevive razão instrumental6, que passa a dar conta de
na fé dos homens no poder da mente humana, todas as esferas de valor (incluindo a estética, as
que entra em luta com as leis da realidade” (p. artes e, portanto, também a música) utilizando a
111). submissão através do cálculo, da unificação e da
Portanto, o raciocínio de Adorno parte da atribuição de denominadores comuns ao que, em
idéia de que a tentativa de dominação da principio, não possui nem mesmo semelhanças
natureza e de emancipação (passagem do estado (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 23). É importante
anímico para o estado religioso) leva o notar que, para Adorno, esse processo de submissão
compositor a criar uma linguagem que propicie a só é possível a partir da ruptura entre sujeito e
dominação integral do material (técnica objeto. Para ele, quanto mais o sujeito se afasta de
dodecafônica), mas, tão logo esse processo é um objeto, maior sua possibilidade de dominação
totalizado e levado ao extremo, a linguagem se sobre esse objeto. Porém, como conseqüência, é
torna autônoma e o domínio se inverte: o sujeito também exatamente nesse afastamento que o
sucumbe à linguagem por ele criada (estado sujeito percebe sua alienação. Adorno ainda insiste
religioso). Isso significa dizer que na tentativa de no fato de que, ao submeter o objeto à razão
dominação da natureza, o sujeito subordina o instrumental para poder assim dominá-lo, o sujeito
material a si mesmo, ou seja, à sua razão nega a história. Simplesmente porque, para
matemática. Inversamente, tal tentativa resulta Adorno, as possibilidades de transformação do
num compêndio de regras que degrada o sujeito objeto estão dentro do próprio objeto e não fora
a escravo do material. É dessa forma que Adorno dele.7 Essa reflexão nos permite compreender,
conclui que a razão dodecafônica se inverte em finalmente, porque para Adorno a categoria de
não-razão. Este processo de dominação do historicidade dos materiais, parece orientar grande
material inicialmente “permite ao sujeito parte da crítica contida em Schoenberg e o
romper a barreira da matéria natural em que até Progresso.
agora estava confinada a história da música”, Após essa breve digressão, podemos retornar
mas, como conseqüência, essa “dessensibilização com maior clareza ao ponto onde tínhamos parado:
do material, forçado no cálculo da série, a razão que se inverte em não-razão. Para Adorno,
contribui justamente para esta abstração de má a solução de tal problemática se coloca da mesma
lei, que logo o sujeito sente como auto- forma que em Freud: a necessidade de passagem
alienação” (ADORNO, 2004, p. 96). para o estado científico. Para isso, o compositor ao
identificar essa auto-alienação precisa admitir sua
O preço que os homens pagam pelo aumento pequenez frente à linguagem: é “em meio a seu
de seu poder é a alienação daquilo sobre o que horror pela linguagem musical alienada, que já não
exercem poder. O esclarecimento comporta-se é sua, que o sujeito reconquista sua
com as coisas como o ditador se comporta com autodeterminação [...] A música torna-se
os homens. Este conhece-os na medida em que consciente de si mesma, como é consciente o
pode manipulá-los. O homem da ciência conhecimento” (ADORNO, 2004, p. 96). Essa auto-
conhece as coisas na medida em que pode alienação, resultante da dissolução da identidade
fazê-las (ADORNO, HORKHEIMER, 1986, p. 24).
entre sujeito e objeto, possibilita, portanto, o
surgimento da obra de arte fragmentada em
É nesse momento que podemos oposição à obra de arte fechada8. A obra de arte
compreender com maior clareza o porquê da
afirmação de Adorno no prefácio a Filosofia da 6
"Tendo cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um
Nova Música: “O livro está concebido como uma instrumento. No aspecto formalista da razão subjetiva,
digressão à Dialektik der Aufklaerung” (ADORNO, sublinhada pelo positivismo, enfatiza-se a sua não-referência
a um conteúdo objetivo; em seu aspecto instrumental,
2004, p. 11). Temos aqui, demonstrada na esfera sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza-se a sua submissão a
musical através da análise do projeto estético conteúdos heterônomos. A razão tornou-se algo inteiramente
schoenberguiano, toda a reflexão desenvolvida aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu
papel de domínio dos homens e da natureza tornou-se o único
na Dialética do Esclarecimento. Vale a pena, critério para avaliá-la” (Horkheimer, 2001, p. 29).
portanto, abrir aqui um breve comentário apenas 7
Assim como Marx, Adorno olha o movimento histórico como
para lembrarmos, em linhas gerais, o que estava continuidade e ruptura. Para ambos, o objeto já carrega em si
em jogo em tal reflexão: no mito não havia sua própria negação.
distinção entre cultura e natureza. O 8
O conceito de obra de arte fechada de Adorno se assemelha
com o conceito de obra de arte aurática, de Walter Benjamin.
simpósio de pesquisa em música 2006 223
fechada guardava a identidade entre sujeito e continuamente, com cada modificação de seu
objeto e, com sua natureza intuitiva, tendia à procedimento, o que ele antes possuía” (ADORNO,
aparência. Portanto, “somente a obra de arte 2004, p. 99). É justamente essa capacidade de
transtornada abandona, junto com seu caráter negar continuamente que Adorno reconhece como
compacto, a natureza intuitiva e com ela a característica fundamental do projeto estético de
aparência” (p. 100). Schoenberg, que “durante toda a vida se deleitou
A reconquista da autodeterminação do em cometer heresias contra o ‘estilo’ cuja
sujeito e da autoconsciência musical como implacabilidade ele mesmo criou” (p. 98).
resposta ao horror à alienação é o que Adorno É esse raciocínio que leva Adorno a afirmar
reconhece na última fase de Schoenberg: a que os grandes momentos de Schoenberg são
obrigação do sistema acompanhada da alienação justamente os de sua última fase9, resultantes de
“induz o sujeito a separar-se novamente de seu “aquisições feitas tanto contra a técnica
material, e esta separação constitui a tendência dodecafônica, como em virtude dela [...] Porque o
mais interior do último estilo de Schoenberg [...] espírito que a concebeu continua sendo bastante
Precisamente porque o material, tratado exterior dono de si para continuar pesquisando
e superficialmente, já não lhe diz nada, o ininterruptamente a estrutura de suas espirais,
compositor obriga-o a dizer o que ele quer” (p. parafusos e roscas, como se por fim estivesse
96). disposto a destruir catastroficamente a sua obra-
prima técnica” (p. 61). Para Adorno, é o
esquecimento a força motriz schoenberguiana. O
Considerações finais
esquecimento possibilita a salvaguarda da tradição
que é nada mais do que o “esquecido que está
É essa força de esquecer que Schoenberg tem sempre presente” (p. 100) e simultaneamente
(ADORNO, 2004, p. 99). “deixa valer a potência da imaginação” (p. 100).
Para Adorno, essa força de esquecimento foi
Já no fim do seu artigo, após ter cumprido conservada até a última fase de Schoenberg, onde
sua trajetória de crítica (análise - apontamento e o compositor renegou o que ele próprio havia
localização de contradições - discussão de fundamentado: a fidelidade à onipotência do
possibilidades e soluções), percorrendo toda a material. Adorno vincula intimamente o
obra de Schoenberg, Adorno tece ainda alguns esquecimento à transcendência da subjetividade:
comentários sobre o projeto estético “no esquecimento, a subjetividade transcende
schoenberguiano de maneira geral, fornecendo- incomensuravelmente a coerência e a exatidão da
nos uma peça fundamental para completar a imagem, que consiste na recordação onipresente de
montagem do nosso quebra-cabeça. si mesmo” (p. 100).
Adorno comenta que Schoenberg transitou São essas considerações sobre o
entre obras dodecafônicas (“desde o quinteto de esquecimento - peça fundamental para a
sopros até o Concerto para Violino”), obras compreensão do projeto estético de Schoenberg -
tonais (“algumas obras para coro, a Suíte pra que permitem Adorno afirmar na conclusão do seu
Cordas, o Kol Nidre e a Segunda Sinfonia de artigo que: “como artista, Schoenberg reconquista
Câmara”), obras com fins funcionais (cita a para os homens, através da arte, a liberdade” (p.
Música de acompanhamento para uma cena de 100).
filme e a ópera Von heute auf Morgen),
instrumentações de obras de Bach, Brahms e
Haendel, entre outras coisas, e que isso só foi
possível devido sua capacidade de esquecer: “em
nada se distingue talvez tão radicalmente
Schoenberg de todos os outros compositores
como na capacidade de censurar e negar

Tanto a dissolução da aura quanto a dissolução da obra


fechada, nesse processo de emancipação da arte, pode ter
um sentido positivo ou negativo. O que deriva da
dissolução de ambas, depende “da relação que sua própria
9
dissolução tenha com o conhecimento. Se esta dissolução é A última fase de Schoenberg é para Adorno o período pós-
cega e inconsciente a obra de arte cai na arte de massa da dodecafônico. René Leibowitz e Pierre Boulez identificam o
reprodução técnica [...] Como autoconsciente, em início desta fase a partir da mudança de Schoenberg para os
compensação, a obra de arte torna-se crítica e Estados Unidos em 1933. É um período híbrido onde
fragmentária” (ADORNO, 2004, p. 101). Schoenberg articula serialismo e tonalismo.
224 SIMPEMUS3

Referências
ADORNO, Theodor. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2004.
_____; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica in Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. 1).
BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz. São Paulo: Perspectiva, 1995.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1974. (Obras psicológicas
completas; v. 13).
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2001.
LEIBOWITZ, René. Schoenberg. São Paulo: Perspectiva, 1981.
SCHOENBERG, Arnold. Harmonia. São Paulo: UNESP, 1999.
SAFATLE, Vladimir Pinheiro. Curso de estética III: a filosofia da música de Theodor Adorno. Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2005.
_____ Depois da culpabilidade: figuras do supereu na sociedade de consumo. In: DUNKER, Christian; AIDAR,
José Luis, Zizek crítico: política e psicanálise na era do multiculturalismo. São Paulo: Hacker, 2005.
Razão e nostalgia: o lugar da música no pensamento moderno
Enrique Valarelli Menezes
Universidade de São Paulo

Resumo
A composição musical pode ajudar-nos a esclarecer problemas filosóficos modernos, assim como tais
problemas podem orientar-nos em uma interpretação da história da música. Frente à discussão sobre o lugar
da racionalidade no pensamento ocidental, autores como S. Freud o T.W. Adorno procuraram demonstrar
como os modos de funcionamento da razão ainda ocorrem sobre bases irracionais. Essa dicotomia
razão/irrazão, sempre presente na discussão filosófica da modernidade, pode encontrar uma figuração
interessante no objeto musical, já que a música, na história da estética, sempre foi colocada como a mais
"irracional" das artes, apesar de tecnicamente possuir uma histórica de progressiva racionalização.
Palavras-Chave: Modernidade, racionalidade, nostalgia, composição.

Intodução de uma liberação e autonomia da música como


Filosofia é na verdade nostalgia expressão artística, iniciada no iluminismo e levada
– Novalis ao extremo no romantismo. Como reação a um
mundo que se torna excessivamente racional, a
música é tomada por autores como Schopenhauer,
Em relação aos problemas estéticos da
Nietzsche, Wackenroder e Schelling por exemplo,
filosofia da arte em geral, a música sempre se
como aquilo que carrega o não apreensível pelo
desenvolveu com certa autonomia. Sua afinidade
conceito, aquilo que não pode ser dito pela
semântica com as outras artes sempre foi
palavra, e por isso - em termos gerais - é tomada
extremamente delicada e problemática, fazendo
como via de acesso a verdades que de outro modo
com que a música, na história da estética,
não seriam acessíveis.
oscilasce entre os extremos da "hierarquia" das
artes. Tal particularidade ocorre porque a A discussão acerca da superioridade ou
música sempre carregou um status próprio, inexpressividade da música como expressão
consequência, principalmente, de dois artística pode ser colocada também em linhas
problemas: a alta complexidade dos meios gerais através da dicotomia racionalidade/
técnicos com os quais se realiza e a irracionalidade: valorizada em seu caráter asse-
impossibilidade de expressar fatos racionais da mântico e não conceitual, afastado da linguagem
linguagem cotidiana. Em outras palavras, depois cotidiana, estaria no topo das artes, mas no
de árduo estudo para compreender e bem entendimento racional, ela cai para o último.
utilizar as técnicas de um instrumento ou da Independente da opinião de tal ou qual autor no
composição, instrumentista e compositor não que diz respeito à expressividade da música como
têm a capacidade de, com a linguagem linguagem artistica, essa discussão nos permite
adquirida, comunicar a alguém que vai à padaria identificar qual é o lugar dela na história do
ou passar uma receita de bolo. Nos escritos pensamento racional.
teóricos, é comum à música aparecer ou como a
mais privilegiada das artes ou como a mais Modernidade e Nostalgia
inexpressiva, e tal conceito sempre se constrói O progresso da racionalidade na cultura opera
sobre sua incapacidade de expressar conceitos. uma inevitável divisão entre ciência e poesia. Na
Segundo Enrico Fubini, "caso se queira modernidade, o método científico de compreensão
assinalar o momento de início de uma estética da natureza exige que os acontecimentos estejam
musical moderna [...] deveriamos dirigir-nos ao livres de qualquer explicação mágica irracional ou
setecentos, o século que assistiu a uma lenta e mitológica. A exigência do fim das relações místicas
laboriosa liberação da estética musical do acaba por separar também a linguagem entre as
racionalismo e do intelectualismo de origem diferentes artes: ela se vê dividida, incapaz de,
cartesiana, que haviam relegado a música ao através da soma de todas novamente, recostituir-se
último posto da hierarquia das artes" (FUBINI, em um todo orgânico. A separação entre signo e
1971, p. 10). Tal momento coincide com a busca imagem, que ocorre através do método científico,
226 SIMPEMUS3

retira da linguagem sua existência orgânica necessária à dura formação do indivíduo moderno,
outrora existente. Depois da separação, a e as estruturas racionais tentam deixar para trás o
vontade de conciliar novamente as coisas em um que há de obscuro do Eu. Contudo, a primazia da
Todo pleno de sentido é sempre nostálgica. "O razão não é total, e o esquecido pela racionalidade
abismo que surgiu com a separação, a filosofia continua existindo, apesar de escondido. O seguinte
enxergou-o na relação entre a intuição e o comentário de Adorno apresenta a música como
conceito e tentou sempre em vão fechá-lo de uma figuração dialética interessante para nosso
novo: aliás, é por essa tentativa que ela é referido problema: "Por seu puro material a música
definida. Na maioria das vezes, porém, ela se é a arte em que os impulsos pré-racionais e
colocou do lado do qual recebia o nome" miméticos se afirmam irredutivelmente, entrando
(ADORNO, 1985, p. 31). ao mesmo tempo em constelação com as
Tal abismo é também o que leva os tendências ao progressivo domínio da natureza e
teóricos a refletirem sobre o estado da música e dos materiais" (ADORNO, 1983, p. 262).
da linguagem. De modo geral, o fazem
comparando o estado de sentido na arte de sua A reconciliação com o Todo
época com o de uma época ideal, na qual o Todo
No história estética do pensamento musical
não se separava em diferentes acontecimentos, e
autônomo, a busca nostálgica de uma reconciliação
assim constituia a unidade anterior ao abismo.
com o Todo é constante. Como consequência de sua
Para o homem que faz essa projeção, separação da palavra, a música revela sua
noutros tempos, a vida e as coisas estavam assemanticidade, sua incapacidade de expressar
impregnadas do sentido que ele não cansa de conceitos fechados, e porisso é tomada muitas
procurar, e parece que esse só se retirou das vezes como inferior às artes racionais, mas também
coisas na medida em que aquele iniciou sua como capaz de comunicar-se diretamente com a
busca: num mundo dotado de mais sentido, essência, subtraindo assim a mediação humana.
anterior ao abismo, não se pensaria na distinção
Para alguns teóricos antigos, as melodias já
entre vida e essência, palavra e coisa, pois
existiam na natureza, plenas de virtuosismo e
seriam conceitos idênticos. Muitos teóricos
beatitude. A representação artística que as
idealizaram, desse modo, a Musiké grega, que
respeitasse estaria de acordo com a essência do
articulava sobretudo música, poesia, dança e
Universo. Boécio, por exemplo, em seu De
mímica como um mesmo acontecimento não
Institutione Musica, do século V, afirma que os
separado em diferentes termos: as partes
movimentos orbitais dos astros estariam vinculados
constituíam um todo orgânico, repletas de um
a uma relação perfeita e bem combinada, e que
sentido prontamente existente. Assim como para
suas diferentes velocidades consistiriam numa
Lucáks em sua Teoria de romance, também para
ordem racional de movimentos. Segundo ele, a
Rousseau e Rameau - em sua concepção
harmonia uniria as diferentes e contrárias potências
iluminista da música - o passado anterior à
dos quatro elementos que, juntos, formariam cada
divisão carregava um sentido imanente: a
corpo e organismo. A música humana é entendida
totalidade estava impressa em cada
como o universo e o si mesmo, já que o corpo
particularidade, e cada particularidade era
humano também é dotado de diferentes
expressão do todo. "Eis porque os tempos
componentes unidos, formando um único organismo
afortunados não têm filosofia, ou, o que dá no
que produz uma consonância. Não é à toa que não
mesmo, todos os homens desse tempo são
se assinavam as composições dessa época – para
filósofos, depositários do objetivo utópico de
eles, a música já estava escrita nas leis naturais,
toda filosofia." (LUKÁCS, 2000, p. 26). O sentido
bastava imitá-las. Era a concretização singularizada
da vida seria imanente, ou seja, o trabalho
- no homem, na matemática, na arte etc. – de um
filosófico dos modernos seria algo tão
Uno essencial e indiviso. Essa concepção de mundo
simplesmente óbvio que não teria razão de ser.
unívoca é que permite para a antiguidade uma
Na Modernidade, a existência de não-sei-o- segura imanência de sentido, sua organicidade
quê obscuro indica que aquela totalidade já não positiva; e para o homem moderno, um lugar para
está mais presente, e também que há anseios do projetar um mundo de sentido ideal.
sujeito burguês que não se ligam a
Batteux, em ensaio de 1747 entitulado Les
representações racionais. Em conseqüência dos
beaux arts réduits à um même principe, trata
progressos de seu racionalismo, o irracional sobra
também da imitação da natureza nas artes, e na
como um escondido esquisito, proibido pela
música inclusive. A arte imita a natureza, diz
razão, e a sensação de perda retorna de modo
Batteux, mas a supera e aperfeiçoa por selecionar
sintomático. O desamparo surge como seqüela
simpósio de pesquisa em música 2006 227
suas melhores características, descartando tudo sentimentos de modo mais completo. Em outras
o que de feio e desagradável possa apresentar a palavras, em sua origem as palavras eram
realidade. Em sua concepção, a poesia é a acentuadas musicalmente, e foi um desafortunado
"linguagem do espírito", enquanto que a música é efeito da civilização que causou a perda da
a "linguagem do coração": aqui já aparece a melodiosidade original e ficaram aptas somente
ruptura irreparável entre razão e sentimento, para expressar racionalizações; por outro lado, os
que se fará cada vez mais profunda. Para sons musicais que em outros tempos constituiam o
Batteux, "o que pertence ao coração entende-se acento da linguagem e representavam sua causa
imediatamente: basta sentir, não é necessário vital tornaram-se isolados e empobrecidos em sua
nomear [...] O coração tem sua própria capacidade expressiva." (FUBINI, 1971, p.39). Para
inteligência independente de palavras." Sem Rousseau, o canto melódico restituiria aquela
necessidade de mediação, a música aparece em unidade perdida. Em sua projeção ideal, "não havia
seu ensaio como uma linguagem universal, livre outra música que a melódica, nem outra melodia
de convenções, reconciliada com o todo através que o som modulado da palavra; os acentos
de sua especificidade. Entretanto ela já aparece formavam o canto, e falava-se tanto mediante os
separada das outras artes, e a possibilidade de sons como pelo ritmo e articulaçoes das vozes".
transcender a mediação e encontrar-se com o Entretanto, essa reconstituição da unidade
Todo só pode se dar através dessa despedaçada só poderia ocorrer na linguagem que
especificidade. não tivesse perdido completamente sua
Rameau, em seu Tratado de harmonia originalidade musical: as orientais e meridionais
reduzida a seu princípio natural, procura reduzir (árabe, persa e sobretudo o italiano). As linguas
a ruptura que começa a surgir entre arte e nórdicas seriam precisas, exatas, duras e
razão. Através de um perfil fisico-matemático articuladas, se prestariam a serem escritas e lidas,
calcado na tradição pitagórica, busca reinserir a falariam à razão, perdendo para esta sua
música em um lugar privilegiado na escala das musicalidade. Harmonia, contraponto, fuga e
artes. "Meu fim é o de restituir à razão os outros procedimentos técnicos seriam invenções
direitos que perdeu no campo musical". Explica a não-naturais, fruto de meras convenções sociais.
harmonia através de um princípio natural e
original, portanto racional e eterno, a teoria dos O sistema tonal: matriz artificial doadora de
harmônicos. A música causa deleite sentido
precisamente porque expressa, com sua
O anseio pela reconciliação com o Todo
harmonia, o divino de ordem universal, a
converte-se não só em nostalgia e desamparo, mas
natureza mesma. Para Rameau, a música
também em arquétipos artificialmente formados,
expressa não só emoções e sentimentos, mas
cuja intenção é semelhante ao da projeção ideal do
também a divina e racional unidade do mundo.
passado: a imanência orgânica do sentido. Em
Entre razão e sentimento, intelecto e
música, o tonalismo é uma forma artificial de
sensibilidade, natureza e lei matemática não há
grande importância. Por ter elaborado uma
nenhum contraste, mas sim uma perfeita
interpretação completa de tal sistema, usaremos
consonância: esses elementos devem, pois,
para o nosso entendimento a reflexão de Arnold
cooperar harmonicamente, num todo parecido
Schoenberg em seu Tratado de harmonia. Sua
com o que imagina Boécio.
primeira afirmação sobre o modo maior, baseada
A idéia de "reconstituir" algo que se perdeu na teoria dos harmônicos, é categórica: "A nossa
também está presente no pensamento de escala maior, a seqüência do-ré-mi-fá-sol-lá-si,
Rousseau. A concepção da Musiké aparece de cujos sons se baseiam nos modos gregos
modo fantasmático, como algo que deve ser eclesiásticos, pode ser explicada como uma
reestabelecido na expressão, tanto para Batteux imitação da natureza." (SCHOENBERG, 2001, p. 61).
e Rameau quanto para Rousseau. Assim, em seu É um raciocínio no qual se podem perceber ecos
Ensaio sobre a origem das linguas, Rousseau pitagóricos da concepção musical.
defende a composição vocal em detrimento à
Assim, "Se a escala é a imitação do som
instrumental: concebe a música únicamente
horizontalmente, em sucessão, os acordes são a
como canto, pois apenas desse modo ela voltaria
imitação vertical, simultânea. A escala é a análise
a encontrar-se em seu estado de natureza
do som, assim como o acorde é a síntese." (p. 67).
original. "Em um passado mítico, quando o
O sistema tonal, entendido nessas bases, seria
homem estava em estado de natureza, música e
então uma representação da natureza na música,
palavra constituiam um nexo indivisível, e o
como acontecia com o pensamento grego.
homem podia expressar suas paixões e
228 SIMPEMUS3

Mas Schoenberg é cauteloso ao chamar a ao reconhecer como esse prazer vinculativo


atenção para o fato de que "O descobrimento de aparece de modo tão inesperadamente simples.
nossa escala foi um feliz acaso para o Mas, mesmo nos autores que melhor
desenvolvimento da nossa música. Não só pelos realizaram suas lógicas, o tonalismo permanece
resultados obtidos, como também porque como uma aparição fantasmática daqueles tempos
poderíamos ter encontrado outra sucessão nos quais a vida não se separava da essência, e o
diferente, como os árabes, os chineses, os sentido estava impregnado em cada objeto e em
japoneses ou os ciganos. [...] E, acima de tudo: cada ação. Aliás, toda a história da música, desde o
semelhante escala não é o fim, a meta última da início da polifonia, evolui através de rupturas e
música, mas tão-somente uma etapa provisória." descontinuidades que atestam a perda de uma
(p. 64). O cuidado que Schoenberg toma é o de totalidade comum por meio do progresso da
lembrar que o tonalismo possui um contexto racionalização.
histórico, evitando assim considerar natural o
Frente à racionalidade crescente, a estética
que é socialmente desenvolvido.
musical recebe um lugar curioso: sua
Tanto a concepção de Boécio e da Musiké assemanticidade, sua incapacidade de expressar
grega quanto a do tonalismo encontram na conceitos (Hanslick e Fubini não cessaram de
imitação da Natureza sua matriz doadora de reiterar essa particularidade) colocam-na em
sentido. Entretanto, as diferenças que as posição análoga àquele não-sei-o-quê obscuro que
separam são visíveis: enquanto naquelas os sobra na razão, ela toma a forma desse vazio.
acontecimentos estariam organicamente Como reação romântica à racionalização, a música
relacionados num sentido indiviso e único, o é levada, por essas especificidades que a jogavam
tonalismo se autonomiza em relação às outras ao último degrau do sistema das artes, a um novo
artes, sendo essa separação um sintoma da perda lugar privilegiado. Adorno é preciso ao comentar
da totalidade orgânica, da cisão entre Eu e essa especificidade: "Não há dúvida de que a
Mundo. Na Musiké, o sentido surge da relação história da música é uma progressiva
mimética com a natureza em sua forma pura e racionalização. Teve passos, como a reforma
direta, enquanto que o tonalismo é um sistema guidônica, a introdução da notação mensural, a
de imitação artificialmente criado, onde o invenção do baixo contínuo, a afinação temperada,
sentido já está envolvido pelas formas e finalmente a tendência à construção integral da
mediadoras, o que impossibilita aquela música, irresistível desde Bach e hoje levada ao
totalidade homogênea do pensamento de Boécio. extremo. Não obstante, a racionalização -
Mas o sistema tonal ainda é depositário de inseparável do processo histórico do
um sentido comum, capaz de expressar os aburguesamento da música - é apenas um de seus
vínculos da esfera artística com a sociedade aspectos sociais, assim como a racionalidade ela
aonde nasce. Rigorosamente lógico, os própria, Alfklärung1, é apenas um momento da
encadeamentos e leis acústicas que regem suas história da sociedade, que permanece irracional,
estruturas estão em conexão com a vida comum, presa ainda a formas "naturais". No interior da
e cada composição realizada dentro desse evolução total de que participou através da
sistema é a expressão particular e fechada de um progressiva racionalidade, a música foi também, e
sentido maior, ficando automaticamente sempre, a voz do que ficara para trás no caminho
atrelada aos valores de um povo, cultura ou dessa racionalidade, ou do que fora vítima."
época. Em todo caso, é um estilo sócio-cultural (ADORNO, 1983, p. 262).
orgânico, capaz de realizar vinculações somente
através da realização de seus funcionamentos
A nova música e a ausência de uma prática
internos.
composicional comum
Após o declínio tonal na música erudita da
Por meio da realização de suas próprias
nossa época, é para alguns experiência de
lógicas e possibilidades, o sistema tonal entra em
espanto e algum pesar ouvir um compositor do
colapso. Sua utilização anacrônica transforma-se
séc. XVIII como Mozart, que tão bem expressou
em um pastiche: um aglomerado de siglas gerais,
aquele sistema. Seu pleno domínio técnico sobre
progressões estereotipadas, funções que se
a linguagem tonal converte-se - exatamente por
mecanizam e todo tipo de clichê sentimental jogam
ser um domínio ativo - em elogio do compositor
o afeto em direção ao valor de troca, à mercadoria.
ao sistema, e sua composição transforma-se em
O tonalismo se reifica, e aparece desqualificado
um prazer estético socialmente partilhado. Para
o nosso ouvinte nostálgico de hoje, o pesar se dá
1
Esclarecimento.
simpósio de pesquisa em música 2006 229
enquanto expressão. Para usar de uma metáfora em novo tratamento os cacos arruinados ao menos
da época, o compositor "perde a casa". Agora deixem aparecer uma fagulha daquele sentido que
estão impossibilitadas tanto a totalidade outrora estava vivo. Em outros casos, os restos
mimética da Musiké quanto a linguagem comum também são reunidos, colocados artesanalmente
do tonalismo. O compositor enfrenta um um ao lado do outro, mas apenas para ostentar o
problema de consciência: coagido pelo processo fracasso a que foram submetidos. Há ainda as
histórico do material musical ateou fogo em sua tendências mais novas que procuram renunciar ao
própria casa. temperamento - e assim ao tonalismo
Aqui encontramos nos problemas da definitivamente.
composição mais uma atualização da nostalgia As primeiras obras de A. Schoenberg revelam
moderna: o compositor se encontra o limite tenso entre a tonalidade e a atonalidade. O
impossibilitado de uma linguagem comum, material que aparece nessas composições provém
amputado de seus meios expressivos frequentemente da gramática tonal, tanto do que a
costumeiros, consternado por ter ele próprio os formou quanto do que a extinguiu: terças, trítonos,
queimado; seu desejo é de que ressuscite um sensíveis, dominantes, cromatismos, seqüências de
sentido que existia em uma linguagem passada, quartas, pés-métricos de dança etc. são colocados
mas que ele sabe impossível. Aqui, a Nova Música de modo que nunca representam a função que
é que carrega a aparição fantasmática do tinham naquele sistema. O sentido da composição
tonalismo, mostrando-se em tendências começa a se deixar transparecer em uma
distintas, que podem ser percebidas em soluções dificuldade acarretada pela insatisfação com um
diferentes. Como reação ao abismo que aumenta sistema de referência que apresenta seus meios
entre linguagem e expressão, a composição tradicionais de expressão já praticamente
significativa deixa à mostra sua crise. Há catalogados, e a impossibilidade ou contrasenso de
compositores que remontam os cacos que separar-se dele. Essa negação recíproca pode ser
restaram da casa que se perdeu e os juntam com observada logo nos primeiros compassos da Sinfonia
as conquistas técnicas de que dispõem, com a de Câmara Op.9:
esperança de que em uma nova organização ou

Figura 1

Logo nesses primeiros quatro compassos da “verdade”: buscando eliminar os ornamentos da


introdução podemos perceber alguns desses composição e desviar a expressão de uma
limites com os quais o compositor busca flertar: gramática clichê, o compositor tira do material a
Apesar da tonalidade indicada na armadura ser essência da sistematização tonal – as polarizações –
Mi Maior, o último acorde dessa seção é um Fá e constrói algo livre das estruturas acordais comuns
maior, em fermata, e a harmonia que o precede nas quais a convenção pesaria mais do que a
vem construída cromaticamente através da expressão. Se por um lado a construção
aproximação cromática e diatônica desse fá convencional dos acordes já não atrai sua atenção,
maior. Quatro compassos que atestam a situação procurando novos caminhos através de polarizações
do compositor frente ao material musical: cromáticas, a conclusão em um acorde triádico que
Podemos encarar os três primeiros compassos confirma o tonalismo em sua forma mais clichê (a
como a busca daquilo que Schoenberg chama de resolução cadencial 4 – 3) que de certo modo se
230 SIMPEMUS3

quer fugir, aparece como inevitável e talvez um forma através de uma "variação progressiva" à
pouco paródica; como se não resolver a maneira de Brahms desses "materiais
polarização inicial tirasse dela o sentido, mas impossibilitados" (no caso, a terça, retirada do
também como se usar essa forma cadencial contexto tonal), construindo assim uma peça
tirada de seu contexto tonal pleno causasse uma fechada e coerente, calcada na tradição alemã. A
sensação de saturação. fratura entre eu e mundo verte o que era
Na segunda peça do Opus 19 - já imerso no pressuposto formal em material composicional.
atonalismo - o que vemos é um manuseio da

Figura 2

Quanto às obras de sua fase dodecafônica, música como um entrave, carregado de força
é Pierre Boulez quem nos aponta a continuidade expressiva.1
da mesma antinomia (embora para chegar a Em Gustav Mahler, a situação desmantelada
conclusões diferentes): “A série intervém, em da linguagem aparece juntamente com uma certa
Schoenberg, como um mínimo denominador ausência de identidade. Seu romantismo levado ao
comum para assegurar a unidade semântica da limite faz retornarem à composição temas
obra; mas os elementos da linguagem assim folclóricos, imagens nostalgicas, produtos de
obtidos são organizados por uma retórica
preexistente.” (Boulez, 1981, p.244). Essa 1
Algo parecido acontece em Alban Berg em sua suíte lírica ou no
retórica preexistente é o que entendemos como concerto para violino, onde formas e gestos de extremo
lirismo, típicos do auge romântico do tonalismo, aparecem
aparição fantasmática do tonalismo, cristalizada exagerados e impossibilitados de acontecerem tal como eram,
no caminho das inovações técnicas racionais da por ocasião de estarem ligados não mais a uma gramática
tonal mas sim a seu inverso: o dodecafonismo.
simpósio de pesquisa em música 2006 231
lembranças arcaicas do compositor, misturadas à brasileiras quanto da tradição européia que aqui
erudição histórica tradicional da harmonia e do chegou. Composições como o seu trio para palhetas
contraponto, adquiridas em sua formação. Tal carregam uma certa "esquizofrenia", uma identida-
aproximação entre a música popular e a erudita, de que se confunde entre brasileiro popular e
antes de significarem um retorno à linguagem europeu erudito - definida, aliás, exatamente por
orgânica do passado, atestam, para o autor, a meio desse quiproquó. A melodia de caráter
impossibilidade tanto de uma quanto de outra. O folclórico aparece organicamente misturada a um
terceiro movimento de sua primeira sinfonia, por contraponto de tradição européia em passagens
exemplo, é construído sobre a tradicional canção abruptas, onde o tratamento dado aos materiais
popular "Frère Jacques", retrabalhada ao gosto não é o da tradição tonal, como em Mahler.
do criador. Tradicionalmente em tonalidade Também o desenvolvimento harmônico aparece
maior, Mahler transpõe o tema para a tonalidade impedido em sua acepção tradicional por essa
de ré menor. O tratamento contrapontístico confusão de uma coisa com outra, costurando e
estrutura o movimento, contradizendo a essência tecendo a noção de um sujeito artístico envolto por
popular do tema. duas tradições que pouco têm em comum. Essa
Em nossas terras também surgem saídas maneira de compor o encaixa em um novo modo de
para o problema. Como compositor nascido em aparição da Nova Música, que surge agora sob a
um país no qual a grande música clássica é forma objetiva da ostentação do fracasso tonal por
estrangeira, Heitor Villa-lobos não precisa compositores que, apesar de envolvidos com sua
colocar-se como participante de sua tradição. lógica, estão fora de sua formação tradicional e
Retira material tanto de festas folclóricas histórica.

Referências
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
_____ Idéias para a sociologia da música. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 259-268.
_____ Filosofia da nova música; São Paulo: Perspectiva, 1989.
BOULEZ, Pierre. Apontamentos de aprendiz; São Paulo: Perspectiva, 1981.
FUBINI, Enrico. La estética musical del siglo XVIII a nuestros dias; Barcelona: Barral, 1971.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance; São Paulo: Duas Cidades / Ed. 34, 2000.
SCHOENBERG, Arnold. Harmonia; São Paulo: Editora da UNESP, 2001.
O que é (pode ser) música? uma análise fenomenológica das atitudes de
escuta segundo Pierre Schaeffer
José Estevão Moreira, Rogério Costa (orientador)
Universidade de São Paulo

Resumo
As contribuições de Pierre Schaeffer no campo teorético da música são de grande importância para além
mesmo de seu propósito na música concreta. Schaeffer perscruta por longos caminhos e territórios do
pensamento na tentativa de fundamentar e justificar seus experimentos musicais na rádio francesa – bem
como o seu conceito de objeto sonoro – tecendo relações com diversas disciplinas do conhecimento
(semiótica, fenomenologia, física, psico-acústica...). Deste modo, nos conduz a rigorosos questionamentos
sobre conceitos e posicionamentos acerca da música e da própria concepção do que é (pode ser) música. Tais
reflexões revelam-se muito valiosas quando tomadas como ponto de partida para a pesquisa em diversas
frentes da atividade artístico-musical: desde a composição, tecnologia, filosofia, passando ainda pela
sociologia e educação.
O presente texto – parte resumida de pesquisa de Iniciação Científica – busca, justamente, subsídios para um
exame das intenções e atitudes de escuta na obra de Pierre Schaeffer baseando-se, para tanto, no Tratado
dos Objetos Musicais (1966).

Introdução 1993, p. 19), a investigação de Pierre Schaeffer


As contribuições de Pierre Schaeffer no levanta questões que trespassam à taxonomia de
campo teorético da música são de grande aspectos sonoros diversos, por adentrar também
importância para além mesmo de seu propósito pelo campo da Semiótica e Epistemologia referindo-
na música concreta. Schaeffer perscruta por se à música como uma “nota discordante no
longos caminhos e territórios do pensamento na concerto do conhecimento”. Isto feito propõe uma
tentativa de fundamentar e justificar seus revisão do sistema dizendo:
experimentos musicais na rádio francesa – bem
como o seu conceito de objeto sonoro – tecendo para começar advertimos que os termos mais
relações com diversas disciplinas do usuais de altura, duração, sensação e percepção,
conhecimento (semiótica, fenomenologia, física, objetos e estruturas, que são de uso cotidiano
psico-acústica...). Deste modo, nos conduz a entre uns e outros, não tem o mesmo conteúdo, e
rigorosos questionamentos sobre conceitos e designam circuitos diferentes da experiência ou do
uso. Já não se tratam de questões de princípio:
posicionamentos acerca da música e da própria
distinguir o som puro do chamado bruto, fundar
concepção do que é (pode ser) música. Tais um sistema musical sobre a tonalidade ou a série,
reflexões revelam-se muito valiosas quando sobre uma escala de cinco, seis, sete, doze ou
tomadas como ponto de partida para a pesquisa trinta sons, ou ainda sobre alturas em vez de
em diversas frentes da atividade artístico- timbres. Trata-se, mais do que terminologias, das
musical: desde a composição, tecnologia, próprias noções; e, mais do que noções, das
filosofia, passando ainda pela sociologia e atitudes do fazer musical (p. 19).
educação.
O presente texto – parte resumida de Schaeffer adota também a perspectiva da
pesquisa de Iniciação Científica – busca, Lingüística para abordar o problema da limitação
justamente, subsídios para um exame das não só da linguagem, porém também dos meios de
intenções e atitudes de escuta na obra de Pierre expressão instrumental salientando: “nenhuma
Schaeffer baseando-se, para tanto, no Tratado liberdade maior tem o compositor ao empregar uma
dos Objetos Musicais (1966). ‘linguagem’ instrumental: os sons da orquestra são
dados, da mesma forma como são dados os sons do
aparelho vocal. As ‘palavras’ da orquestra são as
O Tratado dos Objetos Musicais
notas, e não se podem esperar outras novas a não
No Tratado dos Objetos Musicais (1966) ao ser em uma zona de ‘neologismos’ [...]. As ‘frases’
propor “a classificação dos objetos sonoros em musicais estão evidentemente na dependência das
sua morfologia e sua tipologia” (SCHAEFFER, escalas, modos, regras harmônicas etc., segundo a
simpósio de pesquisa em música 2006 233
situação de semi-liberdade da frase da linguagem infere: “os musicólogos, confiantes no próprio
em relação à sintaxe. Finalmente os enunciados sistema, empenharam-se com toda naturalidade em
musicais estão sujeitos à observação final: há reduzir as linguagens primitivas e exóticas às
muitos estereótipos: cadências, respostas, noções e aos termos da música ocidental. E não
acompanhamento, resoluções, enquanto novos causa surpresa alguma que a necessidade de um
estereótipos são apresentados pelas músicas retorno às fontes autênticas tenha sido,
contemporâneas” (p. 43-44, grifo nosso]. precisamente, afirmada pelos músicos mais
A ruptura progressiva com a tradição modernistas - os da música concreta em particular -
musical dos princípios do Séc. XX, segundo o que se viram obrigados, por sua própria
Tratado, se deve a três fatores: (1) de ordem experiência, a pôr seriamente em dúvida o valor
estética, (2) o aparecimento de novas universal daquele mesmo sistema” (p. 29-30).
tecnologias e (3) o reconhecimento e interesse Após a constatação do problema cultural na
de “civilizações e geografias musicais distintas à música – bem como antropológico e semiótico –
ocidental” (p. 27-28). Schaeffer enumera “os três impasses da
Ao primeiro fator, o estético, verifica-se musicologia”, sendo o primeiro (1) o das noções
“uma liberdade cada vez maior na estrutura das musicais: “já não são apenas a escala e a
obras que consagrou, em meio século, a evolução tonalidade que vêm sendo negadas pelas músicas
acelerada da música ocidental. Não se trata mais aventurosas - bem como pelas mais primitivas.
apenas de uma ruptura progressiva das regras da Também a primeira dessas noções, a de ‘nota’
harmonia e do contraponto ensinados nos musical, arquétipo do ‘objeto’ musical,
conservatórios, mas de um questionamento das fundamento de toda notação, elemento de toda
estruturas musicais. Falar de dissonância e de estrutura melódica ou rítmica”. Desta decorrem os
politonalidade em relação a essa estrutura bem outros dois impasses: (2) o das fontes musicais,
definida que é a escala ocidental é uma coisa. referindo-se à limitação dos musicólogos diante de
Outra coisa é prender-se à própria estrutura, novas ou mesmo distintas sonoridades instrumentais
seja pelo emprego de uma escala de seis tons, – tecnológicas e/ou culturais – e (3) o problema do
como já havia feito Debussy, seja pelo emprego comentário estético, que se prende à “abundante
de uma escala de doze semitons, como fez literatura consagrada às sonatas, quartetos e
Schoenberg, cujas disposições canônicas do sinfonias” adotando estes e outros paradigmas
dodecafonismo visam eliminar toda tonalidade. como premissas para a produção musical (p. 31), e
Enfim, a partir desse momento certas noções - que podemos constatar também no pensamento de
mesmo tateantes, como aquela do ADORNO nas questões referentes ao fetichismo em
Klangfarbenmelodie - são o índice de uma música 1.
curiosidade que se volta para o emprego de
estruturas específicas, diferentes de uma Objetos Sonoros
estrutura das alturas” (p. 27-28).
O que é um Objeto Sonoro?
Ao segundo fator, do aparecimento de
A guisa de introduzir este conceito basilar em
novas técnicas, tem-se o exemplo da música
sua obra, Pierre Schaeffer remete-se a Pitágoras, o
concreta e eletrônica visto que “idéias musicais
qual era ouvido por seus discípulos por de trás de
são prisioneiras, mais do que se possa acreditar,
uma cortina, de maneira que a atenção destes era
da aparelhagem musical” (p. 38). Cita também
redobrada pois que, utilizando-se somente a
as imbricações entre sistemas e instrumentos: “o
fenômeno musical tem, portanto dois aspectos
correlativos: tendência à abstração, na medida 1
O conceito de Fetichismo desenvolvido por ADORNO refere-se
em que a execução possibilita estruturas; e ao problema do ouvinte que se prende a aspectos exteriores
aos musicais-artísticos, como por exemplo: a qualidade de um
aderência ao concreto, na medida em que ele cantor medida pela sua fama, a beleza de uma sala de
permanece vinculado às possibilidades concerto, a “nona-de-Beethoven”, os aparatos tecnológicos
instrumentais. Pode-se observar a esse respeito de um determinado acontecimento musical, etc. Uma espécie
de surdez que se atenta a pré-conceituações e contingências
que, de acordo com o contexto instrumental e na qualificação musical, colocando obras de grande valor
cultural, a música produzida é, sobretudo universal em invólucros – de glamour por exemplo – que
ofuscam sua verdadeira importância; ou ainda, o efeito
concreta, ou sobretudo abstrata, ou quase inverso, que privilegia obras impressionantes por outras
equilibrada” (p. 27-28). características que não musicais/artísticas. Estas são
características inerentes a uma escuta passiva que não se
O terceiro fator, o do interesse por esforça nem se interessa, portanto, a uma escuta ativa dos
culturas diferentes da ocidental, é considerado aspectos composicionais musicais. ADORNO, Theodor, O
como mais relevante por Schaeffer ao que Fetichismo na Música e a Regressão da Audição e também
Filosofia da Nova Música.
234 SIMPEMUS3

audição, não poderiam ser distraídos pela visão e objetivas e/ou subjetivas. Assim, fundamentar-se-
ainda, teriam um aumento da “curiosidade pelas á, segundo Schaeffer, o mínimo necessário para o
causas” (p. 83). A este respeito, descreve o entendimento do conceito de Objeto Sonoro:
seguinte: “à força de escutar objetos sonoros “tendo em vista que o objeto percebido (como
cujas causas [...] estão mascaradas, somos unidade intencional) corresponde a uma estrutura
induzidos a ouvir estes [...] e interessarmo-nos (da experiência perceptiva), temos sempre a
por objetos. A dissociação da vista e do ouvido tendência de separar esses dois aspectos: o objeto,
favorece aqui outra maneira de escutar: a escuta que estaria de um lado, e a experiência, que
das formas sonoras, sem outro propósito que de estaria do outro: ou ainda, a estrutura percebida e
escutá-las melhor, a fim de poder descrevê-las a atividade constituinte. Sabemos que isso de fato
através de uma análise do conteúdo de nossas já significa arruinar a noção de objeto, esquecer a
percepções” (p. 85). autenticidade da percepção. Mas tomar consciência
A esta escuta Schaeffer refere-se como de tal experiência é assumir um novo objeto de
Acusmática, ou seja, uma projeção sonora cuja pensamento, é exercer um certo recuo sobre a
procedência não é visível; um claro exemplo é do percepção para melhor examinar o mecanismo. Não
alto-falante, com o qual se pode ouvir qualquer é mais ouvir, é ouvir-se ouvindo. Por sua vez, esse
som que seja (re)produzido sem ter a referência mecanismo, se chego a analisá-lo, é em virtude de
visual do causador do som ouvido, que pode ser uma estrutura da consciência reflexiva, que por sua
originado de uma fonte que não se encontra no vez me permanece oculta... E assim por diante, ao
mesmo local onde é percebida - podendo infinito” (p. 255).
proceder de alguma gravação ou transmissão.
O Registro é de grande importância no As Quatro Escutas
sistema de Schaeffer, pois além de fundamental Schaeffer apresenta no Tratado, reflexões
para o propósito da música concreta, e de sua sobre: (1) o “fazer e o ouvir”, (2) objetos e
escuta acusmática, “a gravação auxilia de duas estruturas, (3) análise física do som e (4) problemas
maneiras: ao esgotar esta curiosidade – [das filosóficos e semânticos2. Esta seqüência relaciona-
causas de um som] – nos impõe pouco a pouco o se com a segmentação proposta por Schaeffer aos
objeto sonoro com uma percepção digna de ser processos da escuta, para uma análise sistemática
observada por si mesma; por outro lado, em do fenômeno sonoro/musical. Estas quatro escutas
virtude de escutas mais atentas e refinadas, ela são partes integrantes na análise aprofundada do
nos revela progressivamente a riqueza desta conceito de objeto sonoro, no concernente à
percepção” (p. 85). “O gravador permite fixar a percepção, tendo em vista que o próprio conceito
atenção sobre um som em si mesmo, sobre sua de objeto sonoro (e/ou musical) disposto no
matéria e a sua forma” (p. 41). Tratado não pode prescindir de uma escuta ativa,
Ainda na definição do conceito de objeto, participativa, que se posiciona em relação ao
o Tratado também aponta alguns equívocos acontecimento sonoro.
quanto ao que não é objeto sonoro: (a) o objeto A seguir, enumeramos os conceitos das quatro
sonoro não é o instrumento que tocou; (b) não é escutas (p. 89-110), sobre os quais Schaeffer erige
a fita magnética - ou seja, não é o meio material o seu sistema analítico: (1) escutar, (2) ouvir, (3)
de armazenamento; (c) os mesmos poucos entender e (4) compreender.
centímetros de fita magnética podem conter
Escutar - é perceber pelo ouvido, atitude
uma quantidade de objetos sonoros diferentes -
passiva. Para ilustrar, imagine-se uma “paisagem
conclusão decorrente da anterior; (d) o objeto
sonora” (SCHAFER, 1991) onde se escutem diversos
sonoro não é um estado de alma - ou seja, não é
acontecimentos, porém sem que se preste atenção
subjetivo, particular, incomunicável e sim
a qualquer deles, de maneira que se configure um
objetivo, descritivo, analisável (p. 87-88).
“background” sonoro sem qualquer “objeto”
Porém, estes dados preliminares são específico em destaque. Pode-se pensar, em uma
apenas introdutórios visto que, no cidade, o barulho de diversos acontecimentos
desenvolvimento de seu sistema, Schaeffer simultâneos como: sons de pessoas, buzinas,
promove uma “escuta da escuta”, ou seja, motores, helicópteros, aviões, sirenes, etc. Deste
analisa os processos pelos quais os objetos modo, escuta-se o que se chega à percepção, sem a
sonoros são percebidos e, também, em um outro
momento, põe em questão problema do
julgamento das impressões obtidas no
2
conhecimento perceptivo, que podem resultar Encontramos esta organização implícita na apresentação do
tratado (p. 19-20).
simpósio de pesquisa em música 2006 235
focalização de qualquer elemento constituinte Aplicando-se o esquema à música, em uma
da “cena”. situação onde se propaga o som de uma invenção
Ouvir - é o direcionamento da escuta à para piano de Bach, por exemplo, em uma situação
fonte de um som. A partir do exemplo dado, um de escuta acusmática: (1) Escuta-se um som –
determinado som pode ser “buscado”, focalizado constata-se assim, uma audição, ou seja, uma não
- tal qual a visão, que pode mirar determinadas surdez fisiológica. (2) Ao dirigir-se a atenção para
características de uma imagem - seja pelo desejo este som, ouve-se o som. (3) Três pessoas com
de ouvir-se determinado objeto ou ainda pela experiências bastante distintas – um técnico de
surpresa de seu aparecimento, caso seja estúdio, um músico e um amador – estão ouvindo o
repentino. mesmo som, ou seja, o mesmo objeto, e retirando
cada qual, impressões diferentes que dependem de
Entender - exame dos dados obtidos pela
intenções de escutas diferentes: “estas
escuta. Após a escuta ativa, que seleciona um
qualificações variam, como a própria escuta, em
acontecimento, a natureza do som é
função de cada experiência anterior e de cada
identificada. Prosseguindo a contextualização
curiosidade. Todavia, o objeto sonoro único, que
anterior, um som que se apresenta na forma de
torna possível essa multiplicidade de aspectos
um “zigue-zague” que vai do grave ao agudo,
qualificados do objeto, subsiste sob a forma de uma
“escorregando” (utilizando termos musicais
auréola de percepções, por assim dizer, às quais as
tradicionais, um glissando) e faz o caminho
qualificações explícitas fazem implicitamente
inverso, insistentemente repetindo este
referência. Assim, quando eu concentro minha
processo. Entende-se então o som de uma sirene.
percepção qualificada sobre o detalhe de uma casa
Compreender - é o campo semântico, dos - janela, escultura sobre a porta - nem por isso a
significados atribuídos a um objeto sonoro ou casa deixa de estar presente e eu vejo essa janela
musical. Concluindo o exemplo, as informações ou essa escultura como pertencentes a ela” (p.
obtidas no Entender, acerca dos sons escutados e 101).
ouvidos, dão indícios para a compreensão de que
O técnico atenta, por exemplo, para as
o som ouvido – isto é o insistente glissando do
qualidades físicas do som (timbre, intensidade,
agudo para o grave e vice-versa – é uma sirene e
reverberação), segundo seu ofício; o músico analisa
que, dependendo da contexto/cultura na qual
a qualidade da interpretação e do som pianístico,
estão inseridos o ouvinte e a sirene, tem
não necessariamente como o técnico; o amador
diferentes significados: pode, por exemplo,
“aprecia” a música de acordo com seu gosto. (4)
representar uma ambulância e, por
Cada ouvinte é levado a compreender diferentes
conseqüência, suscitar angústia pelo
significados, também de acordo com os seus
entendimento de que uma vida está em jogo;
referenciais: o técnico de som pode deduzir que a
pode representar, em uma fábrica, a hora de
sala não é apropriada para gravação, ou mesmo que
intervalo para almoço; ou ainda, um toque de
o instrumento não se encontra em boas condições,
recolher. Ou seja, compreender é relativo aos
ou ao contrário, ambos são ótimos; o músico pode
significados agregados a determinados sons e é,
ponderar acerca da qualidade do pianista, bem
por conta disto, cultural.
como o estilo de sua escola de interpretação e seu
Com a delimitação de processos da escuta, nome; o amador pode referir-se a obra como
Pierre Schaeffer tem a intenção de “descrever os dramática, tensa e, supondo que não o saiba de
objetivos que correspondem a funções início, realizar classificações estilísticas - no caso,
específicas da escuta” (p. 97). Encontra-se no música barroca - e ainda a obra - invenção x - e o
Tratado o seguinte quadro: nome do compositor - Bach.
Embora o quadro acima apresente
seqüências, Schaeffer adverte no Tratado que “não
se deve inferir das divisões e numerações nem uma
cronologia nem uma lógica, a que se devesse
conformar o nosso mecanismo perceptivo” (p. 101).
Isso se verifica como um “artifício de exposição,
que com certeza não implica nenhuma sucessão
temporal, de fato, na própria experiência
perceptiva. A análise da percepção efetua-se
Figura 1
instantaneamente, colocando em jogo os quatro
segmentos ao mesmo tempo” (p. 103).
236 SIMPEMUS3

O capítulo “As quatro escutas” Schaeffer (b) Banal e prática - respectivamente,


encerra discorrendo sobre as atitudes de escuta quadrantes 1 e 4, 2 e 3. A escuta banal é o
examinando dois pares opositivos de escutas: contrário da escuta prática (especializada), pouco
natural e cultural, banal e prática. Brevemente, se “utilizando” dos quadrantes 2 e 3, ou seja, de
apontamos aqui algumas de suas características uma análise do objeto sonoro em si mesmo. Se
(p. 105-108): prende, sobretudo, aos signos, aos referenciais
(a) Natural e cultural - respectivamente, exteriores. A escuta prática se atém mais
representam os quadrantes 1 e 2, 3 e 4. A escuta profundamente às características do objeto sonoro,
natural é a “tendência prioritária e primitiva a porém, este exame é, em grande parte, subjetivo
servir-se do som como informativo do evento por se valer das experiências específicas de cada
[...]. A tendência aqui é visivelmente para o indivíduo. Se de um lado, a escuta prática é mais
setor 1 como finalidade, e pode-se supor um direcionada, a banal é mais geral e não perde o
“ouvido” particularmente apurado no setor 2”. “caráter de universalidade e de intuição global”.
Encontra-se na parte concreta do esquema. A Transcrevemos, a seguir, o quadro da página
cultural, ao contrário, é uma escuta “menos 102 do Tratado que apresenta as funções da escuta
universal que a precedente – no sentido de que com suas respectivas descrições, bem como as
ela varia de uma coletividade a outra”, e atitudes de escuta (Figura 2).
encontra-se na parte abstrata do esquema.
Lembrando que estes signos, não são
necessariamente musicais.

4. Compreender 1. Escutar 1e4


- para mim sinais (signos) - para mim indícios Referências
Exteriores
- diante de mim valores - diante de mim acontecimentos
(sentido/linguagem) exteriores (agente - Instrumento) Escuta Banal
Em referência a outras noções, sonoras ou não Emissão do som
Emergência de um sentido Reconhecimento das fontes

3. Entender 2. Ouvir 2 e3
- para mim - para mim percepções brutas, Experiência
esboços do objeto Interior
percepções qualificadas
- diante de mim Escuta Prática
- diante de mim
objeto sonoro qualificado objeto sonoro bruto
Seleção de certos aspectos articulares do som Recepção do som
Qualificação do Objeto Identificação do objeto

3 e 4: 1 e 2:
ABSTRATO CONCRETO
Escuta Cultural Escuta Natural

Figura 1

Schaeffer aponta que “o músico muitas ruídos, ficam rejeitados ao exterior desse domínio”
vezes ignora até que ponto a sua escuta prática (p. 110). Esta predisposição se vale também para as
opera um deslocamento e uma seleção dos demais qualidades de ouvintes contribuindo para
significados, criando um domínio reservado de uma dificuldade de compreensão encontrada pela
objetos ditos musicais. Os “não-valores”, ditos
simpósio de pesquisa em música 2006 237
música experimental, ou qualquer música da percepção com relação as sensações, visto que
estranha a uma determinada prática/cultura. estas impressões subjetivas se dão através de
Fenomenologia aparatos nervosos, componentes de um sistema
nervoso que por sua vez, não obstante, faz parte
Novamente, reportamo-nos ao início do
deste mundo, da matéria. À crença da ciência nos
Tratado a fim de levantar noções introdutórias
sentidos, Husserl denomina uma fé ingênua: a
fornecidas pelo autor acerca dos objetos
époché – ‘colocação entre parênteses’, ‘espanto’ –
sonoros: “na realidade, nós não percebemos os
seria justamente a tentativa de não subjugar aos
objetos, mas sim as estruturas que os incorporam
ditames dos sentidos e das sensações, a
[...]. Dos objetos às estruturas, e das estruturas
averiguação do objeto; tão pouco seria uma espécie
à linguagem, há, portanto, uma cadeia contínua
de dúvida metódica cartesiana explicando que “pôr
– tanto menos discernível quanto mais nos é
em dúvida a existência do mundo exterior, é ainda
familiar, espontânea – à qual estamos inteira-
tomar posição com relação a ele, substituir por
mente condicionados” (p. 40). A partir deste
outra tese, a tese de sua existência. [Assim] a
momento a atenção se volta para o objeto em si
époché é a abstenção de toda tese” (p. 241-242).
mesmo – após a fundamentação do processo da
“Se deixo de identificar-me com a minha
escuta – e deste modo deparamo-nos com as
experiência perceptiva, que me apresenta um
questões da percepção. Assim, “a noção de
objeto transcendente, torno-me capaz de
objeto sonoro, aparentemente tão simples,
surpreender essa experiência, bem como o objeto
obriga bem depressa a apelar para a teoria do
que ela me fornece” (p. 242).
conhecimento, e para as relações do homem com
o mundo” (p. 237), visto que, no campo da Este problema se constata quando, por
percepção todo julgamento transita no limiar exemplo, diferentes ouvintes ouvem o mesmo som
entre o subjetivo e o objetivo – o conhecimento e cada um compreende aquilo que for imanente às
de um fenômeno se dá pela interação destes dois suas experiências particulares, fazendo com que a
planos – sendo assim um profícuo campo para a percepção e definição do objeto sonoro em si
Fenomenologia (ORLANDI, 1980). mesmo não seja possível. Por exemplo, um músico
e um técnico de estúdio ouvem a “nota” lá do
Schaeffer recorre, então, à Lógica formal e
diapasão que pode ser classificada como uma onda
transcendental, onde Edmund Husserl afirma: “o
de 440 Hz. Neste caso, as duas classificações –
objeto é o pólo de identidade imanente às
“nota lá” e “440 Hz” – podem estar conjugadas;
vivências particulares e, todavia, transcendente
entretanto, podem estar completamente alijadas,
na identidade que ultrapassa essas vivências
pois que, para a música tradicional, este som já
particulares” (apud SCHAEFFER, 1993, p. 238):
carrega consigo o arquétipo de “nota musical”
podendo inclusive ser ouvido em oitavas diferentes
Essas vivências particulares são as múltiplas e instrumentos diferentes. Já a onda 440 do
impressões visuais, auditivas, táteis, que se diapasão, uma onda com timbre específico – sendo
sucedem num fluxo incessante, através das
o timbre resultado de infra-alterações da
quais eu tendo para certo objeto, eu o ‘viso’, e
os diversos modos segundo os quais eu me
freqüência – que não ocorre em outros instrumentos
relaciono com esse objeto: percepção, e/ou outra oitava. “Mas em que ele se distingue do
lembrança, desejo, imaginação etc (p. 238). sinal físico? [...] Ocorre que o sinal físico, na
realidade, não é ‘sonoro’, se por tal entendermos o
que é captado pelo ouvido. Ele é o objeto da física
Porém, “o objeto transcende não apenas
dos meios elásticos. A sua definição relaciona-se
os diversos momentos da minha experiência
com as normas e com o sistema de referência
individual, mas o conjunto dessa experiência
desta, sendo tal ciência, como toda física,
individual: ele se coloca em um mundo que eu
fundamentada na percepção de certas grandezas:
reconheço como existente para todos” (p. 239).
no caso presente, deslocamentos, velocidades,
Esta transcendência do objeto, então, permite
pressões” (p. 245). Nos dois casos não há objeto
uma imensa possibilidade de pontos de vista
sonoro, pois ambas concepções estão imbuídas de
distintos (subjetivo) – e não o esgotam. “A
significados e o mesmo acontecimento então opera
consciência do ‘mundo objetivo’ passa pela
diferentes valores significantes (p. 243). Deste
consciência do outro como sujeito, a supõe como
modo,
prévia” (p. 240).
Ainda sustentando-se em Husserl, Pierre
Schaeffer alude ao conceito de “époché”, quanto mais hábil me tornei para interpretar
índices sonoros, tanto maior a minha dificuldade
quando pondera sobre a limitação dos sentidos e
de entender objetos. Quanto mais fácil
238 SIMPEMUS3

compreender uma linguagem, tanto mais difícil Esta premissa norteou nosso olhar por dentre
ouví-la [grifos nossos] [...] e antes que um novo as reflexões de Pierre Schaeffer para que enfim
treinamento me seja possível e que possa ser pudéssemos chegar, não a uma conclusão, a uma
elaborado um outro sistema de referências,
resposta, porém sim, a outro ponto deveras
desta vez apropriado ao objeto sonoro, eu
complicado. Um questionamento filosófico, no qual
deveria libertar-me do condicionamento criado
por meus hábitos anteriores, passar pela prova a conclusão dele extraída se faz determinante para
do époché. Não se trata de forma alguma de um as condutas e posturas em relação ao fazer musical
retorno à natureza. Nada nos é mais ‘natural’ e para as atitudes e intenções de escuta, atuando
do que obedecer a um condicionamento. Trata- as primeiras sobre as últimas, e vice-versa, numa
se de um esforço ‘antinatural’ para perceber relação de reciprocidade. Contudo, tal
aquilo que antes determinava a consciência questionamento somente se faz possível e legítimo,
inadvertidamente (p. 246). na medida em que se submeta a um exercício
intencionado de afastamento da própria realidade,
Conclusão do xeque às noções mesmas, de uma audição da
escuta para, ecoando em seguida, em tom de
Conforme frisado na introdução pode-se
descoberta, ouvir-se: “O que é (pode ser) música?”.
constatar a polivalência dos escritos de Pierre
Schaeffer, que se apresentam de uma forma
abrangente pelas searas da música, lingüística, ________________
semiótica, filosofia, sociologia, educação e 3
Encontramos em "http://pt.wikipedia.org/wiki/alteridade
antropologia. Buscou-se aqui a realização de uma citação de François Laplantine “A experiência da alteridade (e a
série de apontamentos de passagens do Tratado elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem
teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar
dos Objetos Musicais de Pierre Schaeffer nossa atenção no que nos é habitual, familiar, cotidiano, e que
concernentes às questões da escuta onde, apesar consideramos ‘evidente’. Aos poucos, notamos que o menor dos
de recortados do texto original – como procede, nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações
inclusive, a própria música concreta – tais afetivas) não tem realmente nada de ‘natural’. Começamos,
então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós
excertos atendem a uma perspectiva animada mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da nossa
por um espírito de alteridade1. cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras
culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma
cultura possível entre tantas outras, mas não a única”.

Referências
ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
ADORNO, Theodor. Filosofia da nova música. Trad. Magda França. São Paulo: Perspectiva, 1989.
ORLANDI, Luís. Voz do intervalo: introdução ao estado do problema da linguagem na obra de Merleau-Ponty,
São Paulo: Ática, 1980.
SCHAFER, Murray. Afinação do mundo, São Paulo: Editora da UNESP, 1991.
SCHAEFFER Pierre. Tratado dos objetos musicais. Brasília: Editora da UnB, 1993.
Comentários sobre o choro atual
Adriano Maraucci Réa, Acácio Tadeu de Camargo Piedade (orientador)
Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo
O presente artigo pretende discutir aspectos do mundo do choro enfocando especialmente as novas
tendências e suas tensões em relação ao choro mais tradicional e ao jazz brasileiro. Apresentaremos uma
visão geral da história do choro e comentaremos alguns momentos cruciais da trajetória deste gênero,
destacando aspectos da construção da identidade no mundo do choro.

Quando se pensa em choro, logo vêm à transformações pelo choro. Neste período de
cabeça violões, cavaquinho, pandeiro e um passagem entre os séculos XIX e XX, formaram-se
solista na flauta, bandolim ou saxofone: ou seja, na cidade do Rio de Janeiro grupos como o “Choro
lembra-se logo da sonoridade do chamado Carioca” (considerado um dos primeiros), que se
“regional”, que tem uma presença muito forte tornaram muito populares em festas caseiras,
na música brasileira desde o início do século XX. transformando-se em um marco inicial do gênero.
Essa formação remete imediatamente a melodias Gostaríamos de ressaltar uma característica
conhecidas por muitos brasileiros, sendo logo importante da musicalidade chorística que surge
relacionadas a um Brasil antigo. Esta atmosfera nesta época, relacionada a seu caráter virtuosís-
nostálgica característica do choro relaciona-se a tico. Segundo DINIZ (2003), geralmente o único
um conjunto de símbolos que se associaram ao músico que sabia ler partituras, nos regionais, era o
gênero, mas também deve-se ao fato do choro flautista, que era o solista e o responsável pela
ser, realmente, um gênero antigo. qualidade e formação musical dos acompanhantes,
A historiografia da música brasileira1 pois os desafiava ritmicamente, tentando “quebrá-
mostra que o choro surgiu no final do século XIX, los” com frases modificadas, a fim de testar e
como uma das conseqüências artísticas de uma treinar o acompanhamento. Esta característica se
série de fatos importantes. Com a abertura dos manteve durante várias épocas e, pode-se dizer, é
portos no inicio do século XIX, o acesso à cultura recorrente até hoje não mais como um desafio do
européia - suas orquestras, partituras e danças flautista para os outros músicos, mas como um
de salão - passam a ser mais intensos. Das caráter “brincante” e ao mesmo tempo virtuo-
práticas musicais que se consolidaram ao longo sístico, que aliás está presente não só no choro,
do século XVIII e XIX vem o chamado “trio de pau mas em outros gêneros da música brasileira.
e corda” (cavaquinho, violão e flauta, que na Dentre os nomes da história do choro,
época era de madeira de ébano). Desta formação Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth ocupam
surge o choro, que inicialmente designava esta lugar importante: foram compositores pianistas
própria formação instrumental. Somente após contemporâneos deste momento inicial do choro,
este momento inicial é que a palavra choro co-responsáveis pela sua fixação enquanto gênero
passou a designar uma certa forma de tocar as através de músicas que se tornaram famosas na
músicas européias em voga: o choro passou a ser época e o são até os dias de hoje, tais como
entendido como uma interpretação peculiar das Atraente, Corta-Jaca, Apanhei-te Cavaquinho,
melodias já consagradas nos salões de dança Brejeiro e Odeon. Ambos compuseram peças
europeus, que passaram a ser executadas pelos escritas para o piano que tem importante papel na
conjuntos de choro, ao invés de orquestra de música brasileira. Nazareth era um pianista virtuoso
baile, e isto de forma mais sincopada e ao e compunha peças consideradas tecnicamente
mesmo tempo mais leve e brincalhona. Um difíceis de se tocar na época. Seu repertório
exemplo disto é a polca, que havia chegado da representa, de certa forma, a autonomia do choro
Europa em meados do século XIX e que virou uma em relação à música erudita e, ao mesmo tempo,
verdadeira febre, tendo logo sofrido estas sua interligação. Sua música somente foi bem
interpretada somente décadas depois, por músicos
1
As considerações históricas nesta parte inicial do artigo como Garoto, Jacob do Bandolim e Radamés
estão embasadas em CAZES (1999), TINHORÃO (1991), Gnatalli que, por sua vez, representam uma
BESSA (2005) e REILY (2000). geração do choro que já incorporara a importância
240 SIMPEMUS3

do estudo disciplinado para os instrumentistas, da construção da identidade nacional no século XX6.


conforme se nota com este depoimento: Não apenas o rádio, mas também a indústria
fonográfica foi essencial no desenvolvimento do
Meu caro Radamés, antes de Retratos, eu vivia choro. Aliás, a música popular, em sua dimensão
reclamando: é preciso ensaiar... E a coisa histórica, não pode ser compreendida isolada da
ficava por aí, ensaios e mais ensaios. Hoje, história da fonografia: fonografia e música popular
minha cantilena é outra. Mais do que ensaiar, se desenvolvem de forma irmanada ao longo do
é necessário estudar. E estou estudando. Meus século XX7.
rapazes também (o pandeirista já não fala
Desta forma, na sua trajetória rumo à
mais em paradas). Seu Jacob, o Senhor aí,
quer uma fermata? 2
constituição como gênero musical, o choro como
formação instrumental se transformou em modo de
tocar. Ou seja, indo da sonoridade instrumental à
Este processo de ensaios e aperfeiçoa- performance, o caminho do choro mostra como o
mento pessoal tem a ver com o fato do choro ser som dos violões e cavaquinho, pandeiro e a flauta,
uma música instrumental, inclusive que enfatiza foi se tornando importante na cultura brasileira.
a virtuosidade (no sentido amplo de boa Porém, a interpretação das danças européias
sonoridade, belo fraseado, agilidade, etc). A através desta sonoridade se dava através de um
instrumentalidade na música popular brasileira jeito carioca, “de fundo de quintal” (MOURA, 1983,
tem um percurso histórico antigo, que pode ser p. 52), e este seu modo performático, que incluía
iniciado no século XVIII, com o lundu, que, de elementos estruturais, como a polifonia da baixaria
início, era música instrumental (KIEFER, 1986). do violão de 7 cordas, isto e outras coisas, fez o
No início do século XX tocava-se muita música choro ir além de um modo de tocar e para
instrumental no Brasil. Em 1902, foram gravados consolidar-se como um gênero que iria atravessar
pela Banda do Corpo de Bombeiros na Casa um século culturalmente muito conturbado, para
Edison os choros que iniciaram a fase do registro chegar com força e identidade no século XXI.
fonográfico: Vejamos como o choro vai seguindo este percurso.
O fato é que, a partir dos anos 50, o choro
entre 1902 e 1920, a proporção era de 61,5% passou por um período de retração que iria durar
de música instrumental para 38,5% de música cerca de trinta anos, sendo neste período quase
cantada ... no ano de 1940, essa proporção se
que esquecido pela mídia e pelas gerações mais
invertera (CAZES, 1999, p. 45)3.
jovens, que se interessaram muito mais na música
dançante das gafieiras, na bossa-nova e nos gêneros
O choro, portanto, como música associados ao rock'n'roll. Justamente nos revolucio-
instrumental, teve a seu favor esta positividade nários anos 60, a era da bossa nova, da tropicália,
do instrumental na cultura musical brasileira da da jovem-guarda, do rock, dos experimentalismos,
época4. Neste cenário favorável, por volta da neste período o choro “desapareceu” das mídias.
década de 20, surge o músico Pixinguinha, que Nos anos 70, o Brasil jovem voltou-se para o rock e
veio a desempenhar um papel de estruturador da para o cenário internacional, criando certa aversão
linguagem harmônica, dos fraseados, contrapon- ao regionalismos e tradicionalismos. O choro,
tos e, sobretudo, da forma no choro que até hoje porém, atravessou este período na base da repro-
o caracterizam e definem como gênero musical. dução doméstica e parental, e despertou nos anos
Em suas primeiras gravações já se podia notar 80 com uma nova geração de grandes instrumen-
várias novidades em relação a um sopro mais tistas tais como Rafael Rabello, Armandinho, Paulo
rítmico, sem vibratos, usando força nos golpes de Moura, Joel Nascimento, Maurício Carrilho, Luís
ar. Pixinguinha é uma figura chave também na Otávio Braga, Henrique Cazes, Carlos Carrasqueira.
dimensão do arranjo5, e a trajetória de seu Note-se que muitos destes eram parentes dos
grupo, “Os Oito Batutas”, revela muitos aspectos grandes nomes da geração anterior. De fato, no
calor do quintal, ou melhor, da casa, da família, o
2 choro sobreviveu à longa seca. Ecoa aqui a
Carta de Jacob do Bandolim a Radamés Gnatalli (apud
TÁVOLA, 2006). importância dos laços de parentesco no mundo do
3
Note-se que grande parte destas gravações eram de bandas,
choro, um mundo que se mantêm ainda bastante
não apenas porque eram apreciadas mas também devido
ao alto volume de seu conjunto, que resultava em melhor 6
qualidade fonográfica. Ver BASTOS e COELHO .
7
4
Ver BASTOS e PIEDADE (2005). Muitos pesquisadores da música popular brasileira trabalham
estes fatores através desta perspectiva antropológica
5
Ver BESSA (2005). (BASTOS, 2005; MORELLI, 1991).
simpósio de pesquisa em música 2006 241
carioca, como modo de tocar e de viver, de década de 70, é preciso revisitar o período de
rememorar, de ser levemente “de fundo de consolidação da identidade do choro, compreen-
quintal”, mas hoje em outra dimensão e com dido no período entre 1930 e 1950. É possível ver
uma família e uma fertilidade muito maior. esse período como um espaço de tempo de
A partir dos anos 80, a palavra “choro” profundas modificações no universo da música
passou a exibir uma pluralidade bem maior do popular, e, não obstante, do samba e do choro,
que anteriormente. Em uma entrevista, Mauricio pois, por volta da década de 30, Noel Rosa (aliado a
Carrilho afirmou: outros sambistas como Geraldo Pereira e Moreira da
Silva) por fim estilizaram o samba que tinha a cara
do Rio de Janeiro, descolando-se um pouco daquela
Hoje, todo disco do Hermeto Pascoal tem
sonoridade mais baiana (ou afro). Muitos chorões
choro, mas ninguém fala que ele é um músico
de choro. Uma análise estética da obra do Tom haviam tido contato com este samba mais afro, e
vai revelar que metade dela é composta de agora participaram desta “mudança de paradigma”
choros. Mas se alguém lhe pedir para citar dez (SANDRONI, 2001), que introduziu no samba novas
choros do Tom Jobim, você vai titubear. Por síncopas e extensões na formas, como a mudança
que as pessoas só tratam como choro as de tonalidade entre uma parte e outra, que aliás
músicas do Pixinguinha para trás? Por que também era, nessa época, um ponto forte em
ninguém fala que Edu Lobo, Caetano, Chico muitos choros que contavam apenas com duas
são compositores de choro? O choro é uma
partes ao invés de três.
linguagem que sempre foi usada pelas pessoas,
só que ninguém chama de choro. Com o jazz, Muitos chorões (como o próprio Pixinguinha)
qualquer coisa que guarde mínima semelhança conviveram com os sambistas nas rodas das tias
é chamado de jazz (apud PELLEGRINI, 2005, p. baianas: é fundamental considerar a importância
30). desse diálogo samba-choro, sobretudo na dimensão
do ritmo, pois as articulações são muito seme-
Esta queixa revela muito do assunto que lhantes e, com certeza, houve enorme influência
este artigo pretende adentrar agora: o choro mútua. De fato, a história do choro não pode ser
novamente atravessando os séculos, nesta compreendida sem a história do samba, ambos
primeira década do século XXI, mantendo-se sendo fabricações de um Brasil que se constituía na
como choro, com seu conservadorismo e suas capital da República (ver VIANNA, 1995), em seus
transformações e tensões em relação a outros lugares chave, como a casa da Tia Ciata (MOURA,
repertórios da música brasileira. 1983).
Certos compositores da chamada MPB são Entre os anos 20 e 30, Pixinguinha começa a
considerados especialmente tocados pela musi- formular o que se tornaria uma das principais
calidade chorística, como Guinga (CAZES, 1998: características do choro: a sua forma em três
194). O mesmo ocorre com artistas como Heraldo partes. Neste tipo de rondó, geralmente há, em
do Monte, César Camargo Mariano, Hélio cada parte, uma exploração dos modos
Delmiro, Egberto Gismonti, que por vezes maior/menor da tônica, ou das tonalidades
executam e compõem choros, e entretanto, são relativas, ou visitas a uma tonalidade mediante,
associados pelos músicos em geral muito mais à não necessariamente nessa ordem. Na dimensão
música instrumental, o jazz brasileiro. Os melódica, consolidaram-se padrões de repetições,
chorões de hoje, aqueles que realmente “vestem de contracanto e maneirismos melódicos que
a camisa”, quem são? Como está o choro? viriam, posteriormente, a extrapolar o âmbito do
Vejamos mais de perto alguns fatos. choro. Para PIEDADE (2003), há um aspecto na
musicalidade brasileira que é claramente
É notável na fala acima, e em outros
chorístico, que migra, na forma de figuras de
discursos dos chorões, um certo antigo
retórica musical, para outros gêneros e discursos
ressentimento com a bossa nova e com o jazz,
musicais.
como que se estes tivessem sido os responsáveis
pela retração do choro entre o final dos anos No período em questão, o rádio iniciava sua
1950 até 1970, isto devido a uma suposta epopéia no Brasil: a chamada “era do rádio” foi
americanização geral do gosto do público. Pela importante na história do choro (ver PETERS, 2004).
visão de Maurício Carrilho, certas correntes da Com isso a difusão por rádio e fonográfica, músicos
música popular poderiam ser interpretadas como chorões e ouvintes começaram a entender o choro
derivações desse gênero. como um gênero musical, exibindo unidade e
especificidade em relação a outros repertórios
Para uma compreensão mais abrangente do
próximos. Este período, os anos 30, foi talvez o seu
choro que vem sendo tocado desde meados da
auge criativo do período de formação do choro,
242 SIMPEMUS3

consolidando elementos a partir dos quais se exemplo: um exímio clarinetista que estudou no
apoiará toda uma tradição estética nos anos mundo das bandas e depois foi aprender choro e
seguintes. jazz, acabando por desenvolver uma sonoridade
Passados mais ou menos 30 anos dessa muito pessoal e um estilo reconhecido. Mais
prática estandardizada, no final dos anos 50 o atualmente, Hamilton de Hollanda é um nome de
choro iniciou seu período de “adormecimento”. destaque: bandolinista virtuose, usa elementos de
Relacionam-se a este fenômeno fatos como a improvisação jazzística e tem um repertório
globalização cultural e a crise do modernismo abrangente, mantendo-se fiel a uma identidade de
(PIEDADE, 2003, 2005), a chegada poderosa da chorão, talvez devido à formação do grupo que o
televisão e o aumento na velocidade de acompanha e ao uso do bandolim, instrumento tão
transferência da informação, e as fortes ondas típico solista de choro pelo menos após Jacob do
do estrangeiro, como os movimentos hippie, o Bandolim. Depois dos instrumentistas fenomenais
rock’n’roll, enfim, há vários fatores que da “época de ouro”, esses jovens músicos da nova
causaram esta retração não apenas no choro, geração queriam tocar choro, mas ao seu modo.
mas que sufocaram também o samba e o bolero8. Muitos deles também tocaram e gravaram bossa
nova instrumental e ouviram gravações dos
A Bossa Nova conquistava, nestes anos
jazzistas norte-americanos, deixando-se influenciar
turbulentos, seu espaço internacional através de
e trazendo novidades formais para o choro, como o
um hibridismo rítmico-harmônico, que tem um
formato chorus de improvisação, aproximando-se
pé na história do samba e do choro. Relutante
do universo da música instrumental (ver BASTOS
aos modismos e às “modernidades”, os chorões,
PIEDADE, 2005).
que, na sua maioria, eram senhores de meia
idade, iniciam um processo de resistência Surgem a partir de meados dos anos 80
através de um verdadeiro culto da tradição, grupos que começam a arranjar temas clássicos do
marcada por uma existência familiar e isolada. A choro, isto através de substituições harmônicas e
partir destes guetos familiares, os chorões novos caminhos contrapontísticos, menos lineares e
trabalharam para divulgar sua música e conseguir tonais (ZAGURY, 2005), além de utilizarem, na
mais adeptos, como uma família que busca instrumentação, baixo elétrico, guitarra e bateria,
aumentar sua rede de laços sociais. Mesmo esta como o grupo “Nó em pingo d’água”, (iniciado em
postura de conservação e reprodução, caracterís- 1978).
tica deste período, impregnou o mundo do choro Durante os anos 90, o Brasil fez parte da onda
e está presente na constituição de sua imagem mundial de valorização das identidades tradições
hoje, fazendo parte de uma espécie de portfólio locais, após a desterritorialização e a fragmentação
que os músicos devem compartilhar para se identitária causada pela globalização (ver
enquadrarem na categoria de chorão, embora APPADURAI, 1994; HARVEY, 1993; ORTIZ, 1988).
hoje o cenário esteja bem mais aberto que Jovens músicos buscaram as fontes da musicalidade
naqueles duros anos. brasileira nos repertórios que estavam abandonados
Os músicos da geração que surgiu a partir pela mídia e pelos estudos musicais: gêneros
dos anos 80 tiveram mais acesso a uma formação nordestinos como frevo, baião e maracatú, gêneros
musical mais ampla, através do contato e estudo afro-bahianos como afoxé e samba-de-roda, entre
de outras músicas. Por exemplo, o grande muitos outros. Surgiram várias fusões, como o
violonista Raphael Rabello, talvez o maior Mangue Beat, e grupos que procuram executar os
virtuose desta geração, estudou e gravou música repertórios “autênticos” da música brasileira, como
erudita, teve intensos contatos com o violonista o choro. Curiosamente, o conservadorismo chorís-
Paco de Lucia e a música flamenca. Nos anos 80 tico encontrou, neste olhar “recuperador”, uma
e 90, os músicos de choro não tinham tanta força para o restabelecimento de seu tempo mítico,
resistência ao externo, aceitavam mais algumas anterior às experimentações e aberturas dos anos
mudanças e aglutinavam às suas interpretações 80: o velho choro consolidado na época de
novas particularidades. Paulo Moura é outro Pixinguinha voltou com tudo, e a sonoridade do
“regional” volta a agitar a cultura brasileira, e
8
Pode-se dizer que o samba “não morreu”, ao contrário, cresce o interesse dos jovens por este rico mundo
também renasceu por volta dos anos 80, com o pagode. conservado, “autenticamente” brasileiro.
Este gênero, também associado ao tropo “fundo de
quintal”, veio a fortalecer-se enormemente no início do Os grupos de choro mais recentes, como o
século XXI, dominando a mídia e atraindo o público jovem. “Trio Madeira Brasil”, parecem preservar apenas a
Já o bolero, que foi tão apreciado e que desempenhou um
importante papel no samba-canção e na música brasileira instrumentação como legado do “choro-raiz”, pois
em geral (ver ARAÚJO, 1999) parece que ainda não tocam músicas de muitos compositores não
“acordou” do choque dos anos 60. considerados chorões. Já o grupo carioca “Tira a
simpósio de pesquisa em música 2006 243
Poeira”, realiza a provocação de seu nome com o fortalecimento identitário, que retomou uma
executando choros clássicos com a sonoridade certa tradição conservadora do choro, e com estas
clássica, porém como inovações musicais no fronteiras nubladas que dividem os gêneros. Uma
âmbito das improvisações e na inserção de forma de detectar estas tensões é a realização de
seções novas. Muitos violonistas atuais tocam etnografia e análise do discurso nativo.
choro com viola caipira, pandeiristas acompa- O choro atual saiu de seus obscuros anos 60
nham cantores de MPB e tocam em trios de jazz; e 70 com uma nova força: o interesse jovem. Da
hoje se toca jazz com instrumentos do choro, resistência e da estratégia de sobrevivência
música erudita na viola, etc. Alguns instru- baseada em núcleos familiares à conquista de um
mentistas atuais, como Hamilton de Holanda, público fiel, à idealização do choro como patri-
Rogério Caetano e Gabriel Grossi, tiveram sua mônio musical do Brasil, ao surgimento de
iniciação musical no choro, mas depois gravadoras exclusivas (como a carioca “Biscoito
expandiram seus repertórios: é possível vê-los Fino”), bem como de uma fatia do mercado
acompanhando velhos mestres do choro, mas editorial (os songbooks e métodos). Atravessador de
também tocando com ícones da musica séculos, o choro passou da condição de trio de pau
instrumental brasileira, como Hermeto Paschoal e corda para um modo de tocar, saiu do quintal,
e Guinga (CAMPOS, 2005). Esta circulação é consolidou-se na musicalidade brasileira, resistiu às
característica da época atual, embora haja forças inimigas no seio da família e, hoje, está
muitas tensões entre estes dois gêneros: o choro sendo estudado, tocado e apreciado por um público
e a música instrumental. Esta tensão tem a ver crescente.

Referências
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244 SIMPEMUS3

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Acompanhamento instrumental do Canto Gregoriano:
três níveis de desconfiguração
Tadeu Paccola Moreno
Universidade Federal do Paraná

Resumo
O Canto Gregoriano conceitua-se, via de regra, como prática puramente vocal. No entanto não são raros os
exemplos em que se alia à melodia um acompanhamento instrumental, tradicionalmente organístico. O
presente artigo tem como objetivo lançar um breve olhar sobre tal acompanhamento, enfatizando a
desconfiguração de três das principais características sonoras canto em questão causada por tal prática.
O Canto Gregoriano pode ser brevemente conceituado como prática monódica, modal e ritmicamente ligado
ao texto. Incluir a essa realidade um acompanhamento instrumental desfaz a monodia em hetero ou
polifonia, desconfigura o modalismo com a inclusão, nos exemplos abordados, de tríades e traz um problema
ao ritmo que depende da palavra. Sendo o Canto Gregoriano uma prática musical de função definida, tais
desconfigurações poderiam ser obstáculos em sua inclusão no rito do qual faz parte. Assim faz-se necessário
um estudo sobre a posição da Igreja quanto à inclusão de instrumentos em seu culto, o que pode ser
realizado por meio de documentos eclesiásticos. Enfim será abordado um exemplo ilustrativo dos níveis
propostos de desconfiguração presentes no acompanhamento instrumental do Canto Gregoriano por meio de
uma partitura para órgão do século XVIII.

Introdução monofônico em uníssono da liturgia cristã",1


O presente artigo tem como objetivo conceito esse que não seria mal empregado se
lançar um breve olhar sobre o acompanhamento relacionado ao Canto Gregoriano. A diferença,
instrumental do Canto Gregoriano, numa portanto, não é principalmente de ordem
tentativa de abordar três aspectos sonoros do estrutural.
canto que são desconfigurados com a adição do Houve por volta do século VIII uma
acompanhamento: a textura, o modalismo e o organização e recorte do repertório existente de
ritmo. cantochão para o uso da Igreja Cristã. Tal
Não se pretende especular sobre a organização é atribuída ao papa Gregório Magno,
autenticidade das práticas em questão e sim porém, "apesar da antiguidade da lenda que liga
traçar caminhos pelos quais se possa investigar a Gregório Magno com este repertório [Canto
mudança que um acompanhamento traz à Gregoriano], não parece ser possível ainda
execução do Canto Gregoriano. demonstrar conclusivamente qual foi seu papel em
relação a ele".2 O Canto Gregoriano é tomado pelo
Há um fator neste caso que não pode ser
autor como um repertório específico da prática
ignorado: o local e a função da prática em
musical do cantochão, porém pode-se confrontar
questão. O Canto Gregoriano não pode ser disso-
tal abordagem com a idéia de CARDINE, de que o
ciado do rito ao qual surgiu para servir. Portanto
termo cantochão ou cantus planus seria próprio
outra idéia norteadora das investigações a seguir
uma prática privada de expressividade, o que seria
é a função que a prática musical abordada tem e
um termo descabido para designar o Canto
como a adição de elementos externos a ela - o
Gregoriano.
acompanhamento instrumental - a afeta.
A estruturação das alturas na monofonia do
Canto Gregoriano, entoada em uníssono, dá-se por
Canto Gregoriano - estruturação musical. meio de modos melódicos que se classificam por
Uma primeira diferenciação necessária se "suas notas finais de cadência, a tessitura, ou
dá entre os conceitos "Canto Gregoriano" e ambitus, de suas melodias e uma altura interna
"cantochão", visto que tal distinção é ainda conhecida como nota de recitação ou tenor, em
ignorada, por exemplo, por CARVALHO que
afirma que "cantochão, hoje, é sinônimo de
1
Canto Gregoriano". Cantochão, numa breve New Grove dictionary of music and musicians (Londres:
Macmillan, 1980), verbete ‘Plainchant’; tradução minha.
definição, pode ser descrito como "o canto oficial
2
Ibid., verbete ‘Gregorian Chant’.
246 SIMPEMUS3

volta da qual a melodia parece circular".3 Sua necessidade de desviarem o número crescente de
qualidade modal também determina que "não se convertidos de tudo que os ligava ao seu passado
admite a nota sensível" (MARIE-ROSE). É comum pagão” (GROUT). A permissão dos instrumentos
que se atribua os nomes dos modos gregos, como musicais é atribuída ao papa Vitalino (657-672),
dórico ou mixolídio, aos modos utilizados no mas "por uma razão ou outra, as referências de
Canto Gregoriano. Porém tal atribuição ignora as órgãos presentes ou usados em igrejas antes do séc.
qualidades específicas - a nota de recitação, por IX definitivamente não são confiáveis".5 Pode-se
exemplo - dos modos em questão e, portanto, observar a admissão gradativa dos instrumentos no
não é completamente fiel. rito católico à medida que o passado pagão torna-
No que diz respeito à duração das notas no se mais distante. Ao observar-se os documentos
Canto Gregoriano, considera-se que "o ritmo eclesiásticos do séc. XX pode-se notar tal mudança
gregoriano difere do ritmo da música moderna" comparando a simples permissão dos instrumentos
(MARIE-ROSE). Tratar do ritmo no canto grego- em 1903 à sua recomendação e elogio no Concílio
riano é uma tarefa árdua, uma vez que, segundo Vaticano II, sessenta anos depois.6
CARDINE, "mais que sobre o ritmo, os teóricos Quando se trata de Canto Gregoriano é
modernos discutiram sobre a modalidade do comum tomá-lo como prática puramente vocal,
Canto Gregoriano". Comenta o autor que "deve- visto que a organização deste repertório, atribuída
se procurar a base do ritmo gregoriano na ao Papa Gregório Magno, deu-se numa época em
estreita ligação que une as melodias ao texto que não se admitiam instrumentos na Igreja. No
latino". Esta abordagem é argumentada pelo fato decorrer de doze séculos, porém, a Igreja Católica
de que em notações antigas mesmas inflexões mudou e também mudaram as práticas musicais,
melódicas têm grafias diferenciadas dependendo como se vê na carta encíclica sobre música sacra
da palavra em que são empregadas, o que faz do publicada pelo Papa Pio XII: "O próprio canto coral,
ritmo de tais inflexões dependente do texto. que, pelo nome do seu restaurador, São Gregório,
MARIE-ROSE comenta que, equivocadamente, começou a chamar-se “Gregoriano”, a começar dos
houve tentativas de se colocar um metro no séculos VIII e IX, em quase todas as regiões da
ritmo gregoriano, ou seja, notá-lo num sistema Europa cristã, adquiriu novo esplendor, com o
proporcional, próprio da música moderna. acompanhamento do instrumento musical chamado
Abordar influências da música moderna no 'órgão'".
cantochão como equívocos ilustra o fato de que Apesar do "novo esplendor" trazido pelo
"os admiradores do dialeto gregoriano do órgão, trata-se de um elemento externo à liturgia
cantochão encontram nele uma perfeição e, portanto, sempre foi abordado com certo
clássica e pureza de estilo".4 o que mostra que cuidado pelos documentos oficiais. "Como o canto
qualquer das características acima mencionadas deve ter sempre o foco principal, o órgão e outros
que se modifique poderia desconfigurar em instrumentos devem meramente sustentá-lo e
algum grau a "pureza de estilo" da prática do nunca oprimi-lo" (PAPA PIO X).
Canto Gregoriano. Tal desconfiguração torna Tal tipo de recomendação encontra-se
necessário um resgate de documentos eclesiás- presente nos documentos eclesiásticos desde o séc.
ticos que tratam do assunto, uma vez que a XVIII, na encíclica Annus Qui, do papa Bento XIV
concepção original desta prática designa que ela que autoriza os instrumentos "contanto que estes
seja desacompanhada. venham a ser usados exclusivamente para sustentar
o canto da palavra" (PAPA BENTO XIV). A encíclica
O tratamento da Igreja sobre os instrumentos Instrutio de Musica Sacra et Liturgia, de 1958,
musicais - documentos eclesiásticos. também traz limitações ao uso dos instrumentos,
determinando que se leve em consideração o
Sabe-se que a presença dos instrumentos
momento da missa, o dia singular e o tempo
musicais na Igreja Cristã foi primariamente
litúrgico. Tal constante retorno à instrução de que
banida visto que “certos aspectos da vida
musical antiga [anterior à igreja cristã] foram
liminarmente rejeitados [...] por que sentiram a 5
Ibid., verbete ‘Organ’.
6
"Embora a música própria à Igreja seja puramente vocal,
3
Ibid., verbete ‘Plainchant’. O conceito de tenor, ou corda música com o acompanhamento do órgão é também
de recitação, é mais aprofundado por CARDINE, que a permitida". - PAPA PIO X
define como "grau da escala modal sobre o qual se situa a
salmodia quando, durante a missa ou ofício, uma antífona "Tenha-se em grande apreço na Igreja latina o órgão de tubos,
é acompanhada de versículos salmódicos." instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de dar às
cerimônias do culto um esplendor extraordinário e elevar
4
Ibid., verbete ‘Gregorian chant’. poderosamente o espírito para Deus. " PAPA PAULO VI.
simpósio de pesquisa em música 2006 247
a prática instrumental não ultrapasse sua função caráter musical, não textual. A notação da clave e
pode ser um forte indício de que os das notas é própria da escrita neumática, porém a
instrumentistas tiveram alguma tendência a linha melódica se distribui num pentagrama, não
exageros dentro do rito litúrgico. num tetragrama. O uso da sensível (dó sustenido) e
a freqüência do si bemol indicam uma influência do
tonalismo na escolha dos acordes - incluindo, por
Acompanhamento instrumental do Canto
exemplo, a dominante com sétima no baixo. Assim,
Gregoriano
neste exemplo, temos elementos próprios do
Mesmo como parte oficial das possibili- cantochão - a melodia e a notação - e elementos
dades de música sacra católica, a execução de que podem ser relacionados às melodias
acompanhamento instrumental ao Canto acompanhadas da época - acordes próprios do
Gregoriano ainda hoje não encontrou um padrão tonalismo, pentagrama e barras de compasso.
definido. Uma possibilidade de tal instabilidade
dá-se no fato de que aplicar um acompanha-
mento polifônico ou heterofônico a uma prática
concebida como monódica traz a necessidade de
uma escolha entre características de uma ou de
outra criando, ao final das contas, um híbrido
entre as duas práticas.7
O modalismo da prática gregoriana, como
visto, não prevê acontecimentos sonoros
distintos da monodia vocal. Portanto qualquer
acompanhamento instrumental já é estranho à
natureza sonora em que o repertório foi
Exemplo 1
concebido. Assim não há como encontrar na
estruturação gregoriana subsídios para decisões
acerca de quais intervalos harmônicos executar A escritura de uma linha grave sobre a qual se
no acompanhamento. erguem acordes em notação numérica pode ser
Foi com base nas melodias do cantochão comparada a um baixo cifrado de uma melodia
que a heterofonia, sob a forma de organum, acompanhada. A diferença é que melodia acompa-
começou a existir (KIEFER, 1968). Assim pode-se nhada é um procedimento musical baseado numa
atestar que uma possibilidade coerente de estrutura de duração proporcional das notas. A
acompanhar o cantochão seria recorrer à prática determinação de durações de dobro, metade ou
que derivou diretamente dele, sobrepondo sob e terça parte de um pulso fixo foi uma ferramenta
sobre as notas da melodia intervalos de quarta, importante para que se pudessem unir conco-
quinta e oitava. Porém vê-se que é comum, mitantemente na cultura ocidental aconteci-
como por exemplo no Mosteiro de São Bento de mentos musicais distintos.8 Talvez tenha sido por
São Paulo e na Igreja da Ordem em Curitiba, o tal razão que o autor preferiu utilizar-se da nota-
uso de um acompanhamento triádico, baseado ção neumática, que não tem nenhum vínculo com
em acordes maiores e menores formados com tal proporcionalidade de duração. Há edições em
base no modo do canto executado. uso hoje de cantochão transcrito para a notação
moderna, com colcheias e semínimas, como no
Para ilustrar esta prática de acompa-
exemplo a seguir:
nhamento triádico pode-se recorrer a um exem-
plo: o Acompanhamento de Hinos, Seqüências e
Cantochão - organizado no séc. XVIII para se
executar em Portugal, nas missas e ofícios da
Basílica de Nossa Senhora e Santo Antonio (Ex.
1).
Numa breve descrição do que se dá no
exemplo abaixo, temos a melodia a ser acompa-
nhada transcrita para clave de fá. Para cada nota
Exemplo 2
há um ou dois acordes escritos em cifras numé-
ricas. As barras de compasso separam frases de
8
Pode-se aqui traçar um paralelo entre o exemplo abordado e os
7
BORBA conceitua hibridismo como “associação de elementos recitativos operísticos, por exemplo, mas não é o objetivo
de procedências distintas”. deste breve artigo aprofundar-se em tal questão.
248 SIMPEMUS3

Os signos utilizados no exemplo são Nota-se que no terceiro acorde temos o que
próprios da notação proporcional e são dificil- seria a subdominante da tonalidade de ré menor e,
mente dissociáveis da idéia de dobro e metade, o a partir dela, traça-se uma cadência da forma como
que pode levar o executante a cantá-las, mesmo ocorre na música tonal. Há também um retardo
se tratanto de cantochão, tendendo a seguir um utilizado no penúltimo acorde. Tais elementos
pulso fixo. mostram uma forte influência da música tonal que
Pode-se encontrar na mesma edição do se praticava na época, mesmo assim não se pode
exemplo 1 a seguinte instrução: "Recomenda-se falar de música tonal baseada numa melodia de
muito aos organistas que em todo o cantochão cantochão, uma vez que se mantém o ritmo ligado
que acompanharem levantem sempre as mãos do à palavra.
órgão nas vírgulas ou pausas que encontrarem Assim vê-se como a textura monofônica, o
pelo meio das missas, hinos ou qualquer outra modalismo e o ritmo dependente do texto são
cantoria para irem juntos e conformes com o modificados pela adição de um acompanhamento
coro" (SANTO ANTONIO, 1761). O que é outro instrumental ao Canto Gregoriano. Tais descon-
indício que a notação neumática tenha sido figurações podem se estender além do exemplo
escolhida para que os organistas sigam o mesmo abordado a toda proposta similar. Assim abre-se um
ritmo dos cantores nas músicas, e não o caminho possível de estudo das práticas de inclusão
contrário. de instrumentos no Canto Gregoriano, investigação
Sobrepondo os acordes descritos à linha que se pretende fazer futuramente. Outro aspecto
melódica do "baixo cifrado" (a própria melodia) que se deve ponderar é o destaque do canto sobre
tem-se uma possibilidade da música proposta: os instrumentos, uma vez que, como trabalhado no
início do artigo, os instrumentos dentro da igreja
são permitidos sob a condição de não oprimirem o
texto a ser cantado.

Exemplo 3
Referências
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CARVALHO, Luiz Edgar. Manual de canto gregoriano. São Paulo: Paulus, 1994.
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costume acompanharem os orgãos da Real Basilica de Nossa Senhora e Santo António junto à Villa de Mafra. - Lisboa:
No Mosteiro de S. Vicente de Fora, 1761.
Código Morse em música
Samantha Batista
Universidade Federal do Paraná

Resumo
Há anos a música vem sendo relacionada a códigos e padrões rítmicos, utilizados em alguns casos para
criptografar mensagens em composições.
O Código Morse é muito popular entre radioamadores pela facilidade de transmissão de mensagens a longa
distância com equipamentos simples e com baixo sinal tanto de transmissão quanto de recepção. É
representado através de marcas (ou tons) curtas e longas, tendo nas marcas curtas (também chamadas de
“ponto”) a base rítmica da transmissão de uma mensagem.
Associando o código Morse à música podemos tanto analisar quanto compor peças apenas transformando o
alfabeto Morse em padrões rítmicos.
Muitos compositores já se utilizaram deste recurso para ocultar mensagens em músicas (tanto no meio
erudito quanto no popular), em músicas para jogos, filmes e programas de tv.
Palavras-chave: Código Morse, padrão rítmico, mensagem oculta.

Código Morse
Criado por Samuel Morse em 1835, o código A .- T - Ponto [.] .-.-.-
Morse é um sistema que se utiliza de durações B -... U ..- Vírgula [,] --..--
temporais para representar letras, números e Dois pontos ou sinal
C -.-. V ...- ---...
pontuações. Foi desenvolvido para transmitir de divisão [:]
mensagens a longa distância através do telégrafo Ponto de
elétrico. A idéia inicial era que o código D -.. W .-- interrogação ou sinal ..--..
de repetição [?]
transmitisse apenas números e as mensagens
E . X -..- Apóstrofo ['] .----.
fossem traduzidas com a ajuda de um dicionário;
Traço de união ou
mais tarde sofreu uma expansão para que F ..-. Y -.-- -....-
sinal de subtração [-]
representasse também letras e pontuações. O
Barra de fração ou
aparelho receptor da mensagem criava G --. Z --..
sinal de divisão [/]
-..-.
marcações em uma fita de papel que depois
Parêntese à esquerda
eram traduzidas em mensagens. Ao mover-se H .... É ..-.. -.--.
[(]
dentro e fora da posição de marcação da fita, o Parêntese à direita
aparelho receptor da mensagem fazia o som de I .. -.--.-
[)]
um “click” que foi aprendido pelos operadores Aspas (antes e após
J .--- 1 .---- .-..-.
como “início” e “fim” das marcas, tornando o as palavras) [“ ”]
uso da fita de papel desnecessário. O código K -.- 2 ..--- Sinal de igual [=] -...-
morse foi muito utilizado também no rádio e por L .-.. 3 ...-- Compreendido ...-.
radioamadores, já que necessitava de equipa- M -- 4 ....- Erro ........
mentos simples, largura de banda menor (entre Cruz ou sinal de
N -. 5 ..... .-.-.
100 e 150 Hz) que comunicações vocais (4000 Hz) adição [+]
e por poder ser utilizado em lugares com O --- 6 -.... transmita -.-
bastante ruído e com baixo sinal de recepção. P .--. 7 --... espera .-...
Em 1848, Friedrich Clemes Gerke criou o código Q --.- 8 ---.. Final de transmissão ...-.-
morse internacional moderno. Desde então o Sinal de início de
código não havia sofrido alterações, até o dia R .-. 9 ----. -.-.-
transmissão
vinte e quatro de maio de dois mil e quatro Sinal de
S ... 0 ----- -..-
(24/05/2004) – sessenta anos depois da primeira multiplicação
transmissão telegráfica – quando foi adicionado o
caractere “@” (arroba) como um “AC” juntos –
Tabela 1
primeira adição ao código desde a I Guerra
Mundial.
Código Morse e Ritmo
O código morse é representado por marcas –
ou tons, se for transmitido pelo rádio – curtas
250 SIMPEMUS3

(pontos) e marcas longas (traços), que podem ser


vocalizados como DIT (ou DI, para manter o ritmo
no meio das palavras) e DAH respectivamente.
A duração de um DIT é que determina o
ritmo da mensagem. Um DAH tem conven-
cionalmente três vezes a duração de um DIT; o
espaço entre pontos e traços de uma mesma
letra é de um DIT, os espaços entre as letras de
uma palavra têm duração de um DAH e os Exemplo 1
espaços entre palavras têm duração de sete DITs.
Pingala, um matemático e músico que
No exemplo acima o ponto vale uma
viveu na Índia entre 400 a.C. e 200 a.C., fez um
semicolcheia e o traço é qualquer nota de valor
estudo em prosódia de palavras muito parecido
maior que uma semicolcheia.
com o que é o código morse, intitulado
Chandahsutra, em que ele dividiu as sílabas em Se analisarmos novamente os mesmos motivos
curtas e longas e cada sílaba longa tinha o podemos ter variações. Como no exemplo seguinte
comprimento de duas sílabas curtas (HALL, utilizando a mesma peça.
2005). Este estudo ajudou a determinar o ritmo
da leitura em sânscrito, além de ser o primeiro
indício de um código binário como utilizamos
hoje.

Código Morse como Motivo


As combinações de pontos e traços que
representam as letras, números e pontuações
podem ser utilizadas como motivo para
composição ou análise de músicas.
De acordo com Smirnov (2005), podemos Exemplo 2
criar motivos com o alfabeto morse da seguinte
maneira:
A análise poderá diferenciar de acordo com a
duração determinada para pontos e traços.

Código Morse como mensagem oculta em música


Muitos compositores gostam de ocultar
mensagens em suas músicas e o código morse
também pode ser utilizado para este fim.
Em Music and Morse Code, Dmitri Smirnov
apresenta um exemplo disso na música erudita:

Numerous examples exist of composers purposely


using Morse code in their compositions; the
following is a fragment from the solo cello part of
Tabela 2 Messagesquisse by Pierre Boulez, which he
dedicated to Paul Sacher: the name “Sacher” is
encoded by various means including by way of
Na tabela acima o ponto tem a duração de
Morse code (Pierre Boulez. Messagesquisse for 7
uma colcheia e o traço de uma mínima. celli, 1976, b.13):
A seguir temos a análise do Minueto em Sol
Maior de Beethoven tendo como base motivos
criados com o alfabeto Morse:
simpósio de pesquisa em música 2006 251
a mensagem "THE RUSSIANS ARE COMING" em
Simultaneously, the five rests of the celli (2-6) código Morse nos créditos iniciais do jogo.
repeat the same rhythmic patterns (with col No programa de TV “Inspector Morse” de
legni batutti), but in rotation mode, spelling
1987, Barrington Pheloung – compositor do tema e
“Sacher” in various presentations:
da música da série – utilizou um motivo musical
2. ERSACH…. baseado na palavra “MORSE” em código Morse no
3. HERSAC….
tema de abertura. E em um documentário sobre a
4. CHERSA….
5. ACHERS….
série ele diz que ocasionalmente soletrava na
6. SACHER…. música do episódio o nome do assassino; e quando o
público descobriu isso ele passou a soletrar o nome
de algum outro personagem da série para
In the episode before the cadenza, Boulez
“enganar” o telespectador mais atento.
returns to the same idea, however, this
example suggests a different approach (Pierre John Williams também utilizou código Morse
Boulez. Messagesquisse for 7 celli, 1976, na música do filme “E.T.” quando o extra-terrestre
bb.117-118): estava telefonando para casa.
Outro exemplo é do compositor Vladmir
Ussachevsky3 que utiliza código Morse em sua
gravação “Wireless Fantasy”4
A 5ª Sinfonia de Beethoven contém como
principal motivo rítmico a letra “V” do alfabeto
morse.

Muitos outros exemplos podem ser encon-


trados nas referências bibliográficas deste artigo.
Podemos perceber que, apesar de não ser tão
utilizado quanto era antigamente, o código Morse
Though the six accompanying celli (playing ainda tem sua utilidade, não apenas na transmissão
semitone trills) encrypt the name of the de mensagens via rádio, mas também no mundo da
dedicatee in the shuffled order: “Sreach”, the música.
rhythm of the accents in m. 118 present it in its
recognisable form: “Sacher”.

Podemos encontrar exemplos também na


música popular. Em 1981, no álbum “Moving
Pictures”, a banda Rush lançou a música “YYZ”,
que tem o ritmo baseado no alfabeto morse das
letras yyz ( -.--/ -.--/ --..). No álbum “Hounds of
Love” de Kate Bush, a música “Watching You
Without Me” contém “S.O.S.” (.../---/...) em
morse. A banda Pearls Before Swine, em seu
álbum “One Nation Underground” na música
intitulada “Miss Morse” (gravada em 1967),
ocultou ritmicamente em seu refrão o seguinte comando um submarino nuclear e como este submarino
código: “DIT DIT DAH DIT, DIT DIT DAH, DAH DIT afetaria a III Guerra Mundial.
DAH DIT, DAH DIT DAH”1 3
Compositor russo (1911 - 1990) que emigrou para os Estados
Unidos em 1931, onde estudou música na Eastman School of
Em um jogo da Microprose chamado “Red Music. Em 1951 começou a trabalhar com música eletrônica.
Storm Rising”2, o compositor Ken Lagace ocultou Foi professor da Columbia University até sua aposentadoria
em 1980. Em 1959, junto com Otto Luening, fundou o
Columbia-Princeton Eletronic Music Center em Nova York.
Também ensinou na Universidade de Utah e de 1968 à 1970
1
foi presidente da American Composers Alliance.
Soletrando em código morse a palavra ‘fuck’.
4
2
Música lançada em 1960 no CD “OHMS: the early gurus of
Jogo de computador baseado no livro “Red Storm Rising” de eletronic music: 1948 - 1980”.
Tom Clancy e Larry Bond, onde o jogador tem sob seu
252 SIMPEMUS3

Referências Bibliográficas
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<http://www.sju.edu/~rhall/research.html> Acesso em 9 de setembro de 2006.
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Acesso em 29 de agosto de 2006.
_____ “Musik und Morsen”. Disponível em: <http://www.qsl.net/dk5ke/musik.html> Acesso em 19 de
setembro de 2006.
SMIRNOV, Dmitri N. “Music and Morse code”. Disponível em:
<http://homepage.ntlworld.com/dmitrismirnov/MorseMusic.html> Acesso em 29 de agosto de 2006.
TULGA, Phil. “Morse Code Music”. Disponível em: <http://www.philtulga.com/morse.html> Acesso em 4 de
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_____ “Where do you hear morse code?” eHam.net, ham radio on the net. Disponível em:
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WIKIPEDIA. “Código Morse”. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%B3digo_Morse> Acesso em 4
de junho de 2006.
WIKIPEDIA. “Pingala”. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Pingala> Acesso em: 09 de setembro de
2006.
WIKIPEDIA. “Vladmir Ussachevsky”. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Ussachevsky>
Acesso em 9 de setembro de 2006.
As obras de Alberto Nepomuceno compostas entre 1890 e 1894
Igor Simões Correia, Norton Dudeque (orientador)
Universidade Federal do Paraná

Resumo
Esta pesquisa apresenta a análise de algumas das obras de Alberto Nepomuceno (1864–1920) compostas
entre 1890 e 1894, período em que esteve estudando na Alemanha, mais especificamente em Berlin e
Viena. Durante este período, Nepomuceno esteve primeiramente na Hochschule fur Musik, onde ingressou
em 1890 e estudou com Heinrich Herzogenberg (1843–1900), e entre 1892-94 no Sternsches Konservatorium
der Musik. Alberto Nepomuceno é reconhecido como tendo sofrido grande influência da música de Richard
Wagner (1813–1883) e da escola germânica, no entanto outras influências podem ser notadas na sua obra
além da esfera wagneriana. Uma destas refere-se ao que Nepomuceno observou e aprendeu em seus
estudos em Berlim e Viena. Mais precisamente, Nepomuceno pode ter sido também influenciado pela
música de Johannes Brahms (1833–1897), uma suposição que vai de encontro à convicção geral de que
Wagner exerceu a maior influência sobre a sua obra. Outras implicações desta hipótese podem ser
inferidas: um dos métodos de composição preferidos por Brahms e observado por Arnold Schoenberg (1874–
1951) em "Brahms The Progressive" (1947) faz referência ao conceito de variação progressiva o qual
tipificou grande parte da produção composicional de Brahms. Nepomuceno possivelmente pode ter
adotado esta técnica de composição em algumas das obras selecionadas para esta pesquisa. Este talvez
seja o principal ponto de interesse para este trabalho, ou seja, a de demonstrar que Nepomuceno adotou
uma técnica composicional típica da produção brahmsiana em detrimento da crença geral de que Wagner
sempre foi o modelo inspirador para a sua música.

Introdução particularmente. Sua experiência como professor o


Em 1890, o jovem Alberto Nepomuceno levou a escrever seu trabalho mais conhecido, Die
deixa Roma, após dois anos de estudo, e parte Lehre von der musikalischen Komposition,
para Berlim, onde permanece até 1894. praktisch-theoretisch [Um guia prático e teórico
Primeiramente se inscreve na Academia Meister para a composição musical]. O trabalho foi escrito
Schule, e em 1892 é admitido na Sternsches em quatro volumes, e o primeiro foi traduzido para
Konservatorium der Musik (VERMES, 1996, p. 32). o inglês em 1852 (BURNHAM, 1997 p. 6). Neste
trabalho A. B. Marx propõe uma grande ênfase no
Na primeira instituição de ensino que
motivo musical, e o método de ensino é sempre da
freqüenta, Alberto Nepomuceno estuda compo-
estrutura mais simples até a mais complexa, desde
sição com Heinrich Herzogenberg (1843 – 1900),
um período usando apenas acordes de tônica e
quem era um importante acadêmico em Berlim
dominante, até a forma sonata completa. Esta
nas últimas décadas do século XIX. Professor de
tradição do ensino da composição e das formas
composição que já havia passado pela
musicais pode ter influenciado fortemente o
Hochschule für Musik, Herzogenberg fazia parte
Fundamentos da Composição Musical de Arnold
do círculo profissional e de amizades de
Schoenberg, quem passou pelo conservatório como
Johannes Brahms (1833–1897) e suas obras
professor em 1902 e 1911 (DUDEQUE, 2005(b) p.
apresentam uma forte influência do mesmo.
213).
Além disso, tinha um grande interesse pela arte
do contraponto. É bem possível que sua ideologia Marx acreditava que a forma sonata havia
pedagógica incluísse técnicas composicionais de atingido sua maior realização nas mãos de
Brahms, já que ele mesmo as utilizava Beethoven, em seu terceiro volume do tratado de
(DUDEQUE, 2005(b) p. 213). composição, quase todos os exemplos musicais são
tirados da obra de Beethoven (BURNHAM, 1997, p.
As idéias pedagógicas na área de teoria e
91). Marx era um grande estudioso e entusiasta da
composição no Sternsches Konservatorium der
obra de Beethoven (BURNHAM, 1997, p. 157).
Musik, segunda instituição onde Nepomuceno
estuda, possivelmente passaram muito tempo, Ademais, em sua chegada à Alemanha,
mesmo após sua saída, sob a influência das idéias Alberto Nepomuceno possivelmente deve ter
de Adolf Bernhard Marx (1795-1866). (DUDEQUE, tomado consciência de duas escolas que pareciam
2005(b), p. 213). Marx começou a lecionar na estar em vigor desde 1860, Grout chamou a
Universidade de Berlin em 1830, ensinando primeira de Classicismo Romântico, tendo como
história da música, repertório e composição maior expoente Brahms e a segunda de Radicalismo
254 SIMPEMUS3

Romântico, representada por Richard Wagner Romântico. A última sinfonia de Brahms havia sido
(1813–1883), sendo as duas derivadas de Ludwig composta apenas nove anos antes da sinfonia de
Beethoven (1770-1827). Este tipo de classificação Nepomuceno. Estas obras orquestrais de Brahms,
sempre levanta problemas de generalização das assim como a do compositor brasileiro, são clássicas
obras dos compositores envolvidos, evidente que em vários aspectos, como por exemplo, todas elas
estas eram apenas tendências da época e um estão dentro do arquétipo de quatro movimentos, e
trabalho poderia ter características de ambas. cada qual possui uma forma reconhecível dentro
No entanto pode-se dizer que determinado dos padrões clássicos; o uso de técnicas de contra-
compositor ou obra pode ter sido influenciado ponto e de desenvolvimento motívico; e o fato de
mais ou menos por uma escola definida (GROUT, não desfrutarem de um programa, como nas sinfo-
1980, p. 594). Tendo como professor de nias de Hector Berlioz, ou de um nome sugestivo
composição, a partir de 1890, Herzogenberg, para as peças (a sinfonia de Alberto Nepomuceno é
estudando no conservatório onde a tradição conhecida apenas como Sinfonia em Sol menor).
pedagógica de A. B. Marx ainda era forte, é bem Apesar destas características clássicas, os
possível que as obras de Nepomuceno durante dois compositores apresentam também um típico
este período tenham adquirido um caráter vocabulário musical romântico: as harmonias idio-
germânico específico, o caráter da música de maticamente românticas; a utilização de uma or-
Brahms e consequentemente de Beethoven. questra e de um colorido orquestral maior1; a or-
ganização das tonalidades entre os movimentos2; e
Discussão a construção da forma a partir de pequenos mo-
O primeiro sinal de um Nepomuceno mais tivos, através de variação progressiva, um roman-
clássico é a escolha da forma para sua expressão tismo neste caso, mais característico de Brahms.
musical, dentre as peças selecionadas para esta A utilização de sentenças na apresentação de
pesquisa pode-se notar uma sonata para piano e temas foi uma técnica empregada por Beethoven e
uma sinfonia nos moldes de Beethoven e Brahms, Brahms em muitos de seus trabalhos, Alberto
além da própria Suíte Antiga Op.11 contendo Nepomuceno também fez uso desta técnica em
peças estilizadas do período barroco, período o algumas de suas composições, os temas principais dos
qual Brahms tinha imensa afinidade, sendo até primeiros movimentos da Sinfonia em Sol menor, do
colecionador de música antiga. Estas peças já Quarteto n. 3 e da Sonata para Piano em Fá menor são
apontam para uma direção diferente da tomada alguns dos exemplos. Estas sentenças, codificadas por
por Richard Wagner, quem sempre tentou criar a Schoenberg, geralmente aparecem na música clássica
obra de arte do futuro, de quem as obras mais como partes de grandes formas, na configuração de
importantes foram óperas e quem era contra a uma apresentação e um pequeno desenvolvimento da
música absoluta, aquela feita por Brahms, por idéia musical completa. (SCHOENBERG, 1996, p. 48).
estar longe de suas origens, a fala e a dança. Uma sentença é geralmente constituída de oito
(DAHLHAUS; DEATHRIDGE, 1988, p. 85). Segundo compassos, trazendo em seus dois primeiros, o que
Grout, a história da sinfonia no século XIX tem pode ser chamado de idéia básica, esta idéia traz em si
dois caminhos, os dois derivados das obras o material fundamental do tema, em geral alguns
sinfônicas de Beethoven. Sendo a quarta, a motivos. Logo após segue uma repetição da idéia
sétima e a oitava sinfonias a inspiração para os básica, que não precisa ser literal, e que, segundo
compositores de música pura, ou música absoluta William Caplin, deve manter um prolongamento da
nos padrões da música do período clássico. O tônica principal da peça. Podemos chamar estes quatro
caminho distinto tem como maiores modelos a compassos então de frase de apresentação, já que
quinta, a sexta e a nona sinfonias de Beethoven. agora foi “apresentada” ao ouvinte a idéia básica. Para
Apesar desta diferenciação, é muito explicar a frase de continuação um exemplo clássico de
problemática a delimitação de fronteiras ou o sentença na música de Beethoven pode servir para um
emprego de títulos incondicionais a estes melhor entendimento:
compositores. Apesar disto, depois de 1860, a
história criou duas escolas composicionais opos- 1
Este colorido difere dos “coloristas” a quem Rimsky-Korsakov
tas, o Classicismo Romântico, tendo como maior se refere, Delibes, Bizet, e Borodin sendo alguns deles, para
ele, a música de Brahms não se voltava para as cores, assim
expoente Brahms, e um tipo especial de como esta sinfonia de Nepomuceno. (RIMSKY-KORSAKOV,
radicalismo Romântico, sendo Richard Wagner 1964, p. 2)
(1813-1883) o principal representante. (GROUT, 2
Na primeira sinfonia de Brahms temos o seguinte esquema de
1980, p. 593-594). tonalidades entre movimentos: Dó menor; Mi maior; Láb e Si
maior; Dó menor e maior. Na sinfonia de Alberto Nepomuceno
A sinfonia de Alberto Nepomuceno o esquema segue sendo: Sol menor; Dó maior; Sib Maior e Ré#
pertence aos moldes e à escola do Classicismo menor; Sol menor e maior.
simpósio de pesquisa em música 2006 255

Ex. 1. Beethoven, op. 2 n. 1

A frase de continuação geralmente é sua duração no tempo. Então podemos falar de


composta por mais quatro compassos que detêm uma idéia de dois compassos, que se junta com
a função de “continuação” e de “cadência”. uma outra idéia de dois compassos para formar
uma frase de quatro compassos, que por sua vez
Nesta seção ocorre uma desestabilização do
pode se juntar com outra frase para formar um
contexto estrutural, harmônico e rítmico do que
tema de oito compassos. (CAPLIN, 1998, p. 9)
vinha acontecendo. Em relação à estrutura pode-
se observar a quebra da idéia básica em unidades
menores, este processo que ocorre nos Esta descrição sobre a estrutura de
compassos 5 e 6 será chamado de fragmentação. agrupamento pode ser útil no momento, pois será
Há também uma aceleração do ritmo harmônico apresentada a sentença do Quarteto nº. 1 de
nos quatro últimos compassos da estrutura, uma Brahms, Op. 51 nº. 1. Antes, porém, apresentar-se-
mudança na harmonia durante a apresentação á a estrutura de agrupamento da Op. 2 nº. 1 de
levava dois compassos para acontecer, aqui, na Beethoven. Nesta primeira sentença da Sonata,
frase de continuação, acontece a cada compasso pode-se notar um agrupamento simples de 2 + 2 + 1
e no sétimo a cada dois tempos. Junto com a + 1 + ½ + ½ + 1, onde a apresentação tem seus
função de continuação segue a função de quatro primeiros compassos divididos em grupos de
cadência, esta desempenha o papel de dois, e a continuação, onde ocorre a fragmentação,
fechamento da estrutura apresentada, a se dissolve em grupos de um compasso e a cadência
cadência pode ser constituída de material antes em grupos de meio compasso mais um, último
já apresentado, geralmente, no entanto, o compasso que termina a função cadencial.
material sofre apenas liquidação. A liquidação A primeira sentença do Quarteto de cordas
acontece quando um motivo tem suas nº1 de Brahms pode não ser tão simples (Ex. 2).
características sistematicamente abandonadas, A estrutura de agrupamento nesta sentença é
pode-se observar que o motivo b tem mais complexa do que a de Beethoven em sua
características bem definidas, porém no Sonata para piano. A estrutura de Brahms inicia
compasso 7 este já se torna um motivo com uma idéia básica de “1 2/3” compassos, logo
convencional, que poderia pertencer a qualquer em seguida segue para uma fragmentação de 1
cadência. compasso mas sempre começando no último tempo
do anterior. A terceira e última fragmentação gera
A forma de uma peça musical pode ser descrita uma hemíola, pois toma uma forma de compressão
minimamente como um discreto arranjo de 2/3 de compasso, enquanto a cadência (que
hierárquico, com durações temporais aqui não desempenha o seu papel por completo)
perceptivelmente significantes, o que é tem um compasso completo. Resumindo a estrutura
chamado de estrutura de agrupamento do
de agrupamento de Brahms, 1 2/3 + 1 + 1 + 2/3 +
trabalho musical. Cada grupo, o qual contém
um “chunk” de música (como psicólogos
2/3 + 2/3 +2/3 + 1, ou seja, mais abstrusa que a de
diriam) em um dos níveis da hierarquia, pode Beethoven.
ser neutralmente identificado em termos de
Ex. 2. Brahms, Op. 51 n. 1
A estrutura da sentença nesta peça de seguida, dos compassos 8 ao 11, acontece mais um
Brahms também se difere, desde seu início, da “condensamento” do material motívico, ou seja,
sentença de Beethoven. A idéia básica é fragmentação. Desta vez desaparece o motivo a e
apresentada, no entanto, somente uma vez, e ao apenas o b é trabalhado, e o que antes tinha a
invés de repetir a idéia básica, o compositor já duração de um compasso, passa agora a durar ½
introduz a idéia de frase de continuação com compasso. A estrutura de agrupamento de
uma fragmentação, quase que de imediato, da Nepomuceno (Ex. 3) então é a seguinte 2 + 2 + 1 + 1
primeira frase. Sua primeira parte da frase de + 1 + ½ + ½ + ½ + ½ + ½ + ½ + (½ cadência), ou
continuação dura dois compassos relativos1, em seja, de acordo com este fator a frase de
seguida sofre mais uma redução e passa a ter apresentação se assemelha mais com a de
pequenas frases de 2/3 de compasso cada uma. Beethoven e a frase de continuação com a de
Dos compassos 2 ao 7 nota-se uma frase de Brahms. Outro fator importante para o acúmulo de
continuação expandida, ou seja, unidades de energia na frase de continuação é a aceleração do
fragmentação e ou progressões seqüenciais ritmo harmônico, como em Beethoven e
adicionais ao processo de continuação, neste diferentemente de Brahms, Nepomuceno acelera a
caso observa-se um aumento de unidades taxa de mudança da harmonia no tempo, o que
fragmentárias. mudava a cada compasso, com exceção do último,
Outra diferença importante é a falta de na frase de apresentação, muda, nesta seção, a
uma função cadencial completa, no caso de cada semínima pontuada.
Beethoven pode-se ver a liquidação aconte- No final da frase de continuação dever-se-ia
cendo, o movimento cessando e a sentença encontrar uma cadência, entretanto, não é o caso
sendo fechada por um movimento melódico e nesta sentença de Nepomuceno. Depois da grande
harmônico bem característico de cadência, o geração de energia providenciada pela expansão da
ouvinte pode perceber que o fim da sentença continuação, o compositor opta por interromper a
está próximo. Já neste exemplo de Brahms, o sentença bruscamente na dominante. Apesar de a
ouvinte não percebe a chegada da cadência, não harmonia oferecer espaço para o que é chamado de
existe liquidação, nem um movimento melódico cadência interrompida, não é o suficiente para
e ou harmônico que suporte esta idéia de criar uma função cadencial. Sobre a função
chegada. A função cadencial, como em cadencial na música da geração clássica Caplin diz:
Beethoven, aqui não existe. No entanto, depois “Além do componente harmônico necessário, uma
da parada brusca da melodia e da harmonia em função cadencial geralmente contém uma
Láb, Brahms toca um acorde de dominante em identidade melódica, uma fórmula altamente
que o lab da melodia desce para sol, dando assim convencional que ocorre frequentemente em
a entender, que ali existe uma cadência trabalhos do estilo clássico” (CAPLIN, 1998, p. 43).
interrompida. Apesar de ser menos obvia na geração romântica, a
Alberto Nepomuceno faz um uso peculiar falta de relaxamento melódico na peça de
da estrutura da sentença no início de sua Sonata Nepomuceno é muito parecida com a que acontece
(Ex. 3). no quarteto de Brahms, no caso do corte de
movimento em Brahms, a parada acontece no
Nota-se a apresentação com dois
acorde de Láb, o sexto grau da escala, que logo a
compassos da idéia básica e uma repetição da
seguir segue para a dominante, dando um maior
mesma. Já na frase de apresentação pode-se ver
sentido ao fim da sentença com uma cadência
uma diferença em relação à sentença de
interrompida, diferentemente de Nepomuceno que
Beethoven e de Brahms, Nepomuceno ao final de
simplesmente corta o movimento na dominante e
sua apresentação acrescenta uma dominante da
deixa o ouvinte muito mais perplexo com a
dominante e fecha no V menor, diferente do que
interrupção.
sugere Caplin, já que aqui não há um
prolongamento da tônica e sim um afastamento
em relação à mesma.
Dos compassos 5 ao 11 existe o que
podemos chamar de frase de continuação
expandida, como no quarteto de Brahms, só que
neste caso observa-se, dos compassos 5 ao 7,
uma progressão seqüencial em terças e uma
fragmentação do material motívico a e b. Em

1
Seus dois compassos da primeira parte da continuação estão
defasados com os compassos realmente escritos, ou seja,
compassos absolutos.
Ex. 3. Nepomuceno, Sonata para piano Op. 9 – comp. 1-11

A continuação da sonata também traz relaxamento que havia sido previamente negado.
semelhanças e diferenças entre essas três peças (MORGAN, 2003, p.15-16).
discutidas. Em Beethoven logo após o término da
sentença a música segue para a transição em Nepomuceno, assim como Brahms, também
direção ao segundo grupo temático fazendo uso oferece certo “conforto” depois da brusca parada
dos motivos a e b, buscando um afastamento da de sua sentença na dominante, o ritmo e a melodia
tônica1. No quarteto de Brahms, porém, sofrem uma aumentação, o que ajuda a refletir
acontece de diferente maneira, sobre uma uma sensação de relaxamento, uma melodia que
intervenção entre a primeira sentença do anda mais devagar. No entanto, todo o resto dos
quarteto e a transição para o segundo tema fatores parece elevar a tensão proporcionada no
Robert P. Morgan afirma que: final da sentença, como por exemplo, a harmonia,
que continua a mudar duas vezes por compasso
A fraca, quase seqüencial extensão que segue (apesar de agora apresentar uma nota pedal). No
(compassos 9 e 10) mina ainda mais a chegada término da sentença não há um desvio para a
da dominante, convertendo-a em um mero subdominante, portanto, a função desta
caminho até a subdominante. [...] O modelo intervenção se difere um pouco da de Brahms.
de Beethoven repensado por Brahms, é crucial
Nepomuceno prolonga a dominante fazendo um
para o entendimento da extensão que ocorre
modelo e seqüência na mão esquerda, seu modelo e
do compasso 11 ao 22, a qual adquire um
propósito lírico, e de conforto claro, como uma seqüência passa pelas tonalidades de Dó maior, Mib
resposta a este começo incomum e intenso. Maior e Sol maior, ou seja, as três notas que
Movendo-se devagar, regularmente de dois em formam a tríade da dominante menor de Fá menor,
dois compassos (até o compasso 19), mesmo tonalidade principal da peça. Além disso, a melodia
com uma textura contrapontística, o trecho é “comprimida” e “expandida” durante o trecho e
carrega a música do desvio em direção à é deslocada do modelo e seqüência encontrado no
subdominante, para a dominante, provendo, baixo, criando assim um tipo de síncope estrutural
assim, um balanço tonal e formal. Aqui está o
(Ex. 4).
Há claramente uma ambigüidade funcional
nesta intervenção de Nepomuceno, pois à primeira
1
No entanto, em Beethoven, o afastamento da tônica pode vista parece ser uma seção aonde a tensão irá, e
começar já na apresentação do tema, como na sonata Op.
53, “Waldstein”. (ROSEN, 1998, p. 68).
precisa, ser diluída, no entanto, as técnicas usadas
simpósio de pesquisa em música 2006 259
pelo compositor apresentam um acúmulo de aparecem depois de um corte brusco na sentença,
energia. Depois da intervenção a peça apre- e a diferença funcional entre as mesmas, enquanto
senta, finalmente, a transição para o segundo uma tem função, além do relaxamento, de retorno
grupo temático, com uma utilização clara do à harmonia de dominante, a outra sublinha a
tema b. harmonia de dominante e o relaxamento acontece
O mais interessante aqui é a similaridade apenas superficialmente.
estrutural entre a intervenção no Quarteto de
Brahms e a Sonata de Nepomuceno, que

Ex. 4. Nepomuceno, Sonata para piano op. 9 – comp. 11–21

Sobre a escrita para piano, Nepomuceno piano, mas para todos os outros meios musicais.
também apresenta algumas características da Podem ser observadas também, todas estas
escrita de Brahms para piano. A escrita pianística qualidades na música para piano de Alberto
do compositor alemão era mais densa que a de Nepomuceno; o exemplo 4 demonstra as melodias
Beethoven, em suas peças utilizava figuração de dobradas em oitava, com utilização de terças e
acordes quebrados, ocorria o freqüente uso sextas ocasionais; o exemplo 5 demonstra o
dobra da melodia em oitavas, terças e ou sextas deslocamento métrico característico de Brahms e o
e, além disso, apreciava muito o efeito do exemplo 6 apresenta este deslocamento empregado
deslocamento métrico. Essa última característica por Nepomuceno:
era muito marcante em sua música, não só para
260 SIMPEMUS3

Ex. 5. Johannes Brahms, Capriccio op. 76/v – comp. 1-18

Ex. 6. Alberto Nepomuceno, Folhas D’Álbum/ii – comp. 38–48


A maneira como os temas se relacionam contrastantes, com a conexão entre motivos de
entre si, principalmente na Sonata e na Sinfonia difícil entendimento.
de Nepomuceno, é uma influência do estilo A idéia de um pequeno motivo ser gerador de
composicional de Beethoven, o trabalho com toda a obra é um pensamento que existiu tanto na
pequenos motivos em oposição a melodias música de Brahms quanto na música de Wagner e
completas e regulares, deixando com que a foi um problema que persistiu durante o
música cresça e se desenvolva a partir de romantismo musical. No entanto, o caminho, ou a
pequenas idéias musicais. Este tipo de trabalho solução tomada por esses dois compositores foi
composicional foi também extensamente usado diferente, e esse é um dos pontos mais importantes
por Brahms, é uma maneira de manter a deste trabalho. Brahms trabalha com pequenos
proporção clássica em um trabalho de escala motivos fazendo com que todas as formas
romântica. Os pequenos motivos podem temáticas e motívicas subseqüentes sejam
facilmente se transformar em teias de períodos derivadas da primeira, é literalmente um processo
muito maiores do que uma melodia fechada orgânico que acontece durante a música, o que foi
periodicamente, uma melodia muito longa chamado por Schoenberg de variação progressiva.
acarretaria em uma peça musical com um ritmo Já Wagner, em seus trabalhos mais importantes,
muito lento. (ROSEN, 1998, p. 394-396). Partindo trabalha com esses motivos fazendo com que todas
destes motivos, Beethoven estabelece, no as outras formas, sejam antes de tudo, versões
primeiro movimento de sua sonata mais diferentes do mesmo material não necessariamente
conhecida como Waldstein (Op. 53), seus temas transformando estes materiais no decorrer da
como se fossem nascidos um do outro. (ROSEN, música. (DAHLHAUS e DEATHRIDGE, 1988, p. 97).
1998, p. 397). Esta técnica caracteriza o termo Quando então, as principais peças de Nepomuceno
variação progressiva, criado por Schoenberg a deste período são analisadas, pode-se ver uma
partir de observações analíticas da música de maneira bastante próxima de trabalhar os materiais
compositores do século XVIII e XIX, como Haydn, musicais àquela de Johannes Brahms, ou seja,
Beethoven e Brahms, sobre a variação existem evidências do emprego da técnica de
progressiva: variação progressiva.
Sobre o amadurecimento de Nepomuceno
A coerência e a compreensibilidade que são tão durante este período podem-se explicitar alguns
importantes para Schoenberg dependem no fatores relacionados ao seu Quarteto de cordas n. 3
princípio da similaridade e do reconhecimento e à sua Sinfonia em sol menor. Antes, porém, deve-
motívico. A noção de Grundgestalt reflete esta
se lembrar o contato que Nepomuceno teve com o
idéia e pode ser considerada como inovadora.
estudo do contraponto. Em 18901, mesmo antes de
Junto com a Grundgestalt, Schoenberg
formulou uma série de conceitos originais com o chegar a Berlim, Nepomuceno envia uma carta a
propósito da elucidação e da avaliação crítica Frederico Nascimento, comentando sobre um curso
de um discurso musical; eles serviriam para de contraponto que ainda demoraria um mês para
explicar a continuidade do discurso musical e a concluir e sobre uma eventual tradução do manual
conexão de idéias musicais. Finalmente, a Polifonia de De Sanctis. (VERMES, 1996, p. 31). Em
interação dessas noções e a Grundgestalt Berlim, Herzogenberg, seu professor de composição
podem ser vistas como parte de um processo de até 1892, tem um forte interesse na arte do
desenvolvimento motívico maior: o princípio da
contraponto e na música de Bach, interesse este,
variação progressiva. (DUDEQUE, 2005ª, p.
que pode ter influenciado suas atividades
132).
pedagógicas. Tendo em vista estas atividades de
Nepomuceno fica um pouco mais claro entender
Sobre a idéia do motivo como fonte suas escolhas na composição de seu quarteto n. 3,
geradora de toda a obra, A. B. Marx, quem já principalmente no segundo movimento do mesmo.
havia explorado noções sobre a unidade na No segundo movimento deste quarteto,
música, comenta que “o motivo é a configuração apenas intitulado como Andante, é claro observar a
primaria (Urgestalt) de tudo que é musical”. forma como sendo um tema com variações, sendo o
(DUDEQUE, 2005b, p. 226). tema uma seção no estilo coral:
A Grundgestalt, ou seja, a idéia básica,
pode ser derivada de duas maneiras para
Schoenberg. A primeira apresenta um desenvol-
vimento de estágios intermediários dentro da
idéia de variação progressiva, que são usadas 1
Segundo Correa, em 1889, Alberto Nepomuceno já teria
para a continuidade e fluência do discurso enviado o Tratado de harmonia, contraponto e fuga de De
Sanctis a Leopoldo Miguez no intuito de ser adotado no
musical e a segunda reflete as variações por Instituto Nacional de Música do rio de Janeiro. (CORREA,
mediação que podem gerar variações 1996, p. 9).
Ex. 7. Alberto Nepomuceno, Quarteto n.3 em ré menor/ii – comp. 1–13

Das quatro variações seguintes apenas uma O primeiro movimento do quarteto, porém,
não apresenta um estilo contrapontístico tão parece ser de longe o mais bem elaborado, mesmo
presente, a segunda. A primeira é um pequeno assim, ainda fica aquém do primeiro movimento de
fugato, a terceira apresenta um pequeno jogo sua Sinfonia composta três anos mais tarde, onde
canônico e a quarta, e última, é um retorno ao as técnicas composicionais aprendidas por
estilo coral. Por estas características, este movi- Nepomuceno parecem ser usadas em função da
mento principalmente, tem um caráter de exer- música e não o contrário.
cício de contraponto, onde existe uma preocu- Por motivo de comparação, serão mostrados
pação quase que única com esta técnica. Os o primeiro tema do primeiro movimento do
outros movimentos também apresentam caracte- quarteto n. 3 e o primeiro tema do segundo
rísticas contrapontísticas fortes, principalmente movimento da sinfonia, respectivamente:
o quarto movimento que começa como uma fuga.

Ex. 8. Alberto Nepomuceno, Quarteto n.3 em ré menor/i – comp. 1–16


O primeiro tema do Quarteto é uma antecedente. No entanto, o conseqüente apenas
sentença composta, Ex. 8, possui 16 compassos, ameaça começar, mesmo com a diminuição do
sendo eles 6 de frase de apresentação, 2 de motivo ascendente no compasso 5, a ligação com o
interpolação, e 8 de frase de continuação. início dos dois compassos que caracterizam a idéia
Apesar desta forma um pouco mais sofisticada da básica é perceptível. Porém, a harmonia muda, a
sentença, o que temos principalmente são melodia muda, a técnica de modelo e seqüência
acompanhamento e melodia de uma maneira aparece, uma pequena fragmentação deste modelo
bastante simples. e seqüência acontece, ou seja, antes mesmo de
Já no Ex. 9, no primeiro tema do segundo começar um conseqüente, o compositor surpreende
movimento da Sinfonia temos um pequeno com uma seção contrastante, que começa no
ternário que começa com um antecedente, uma compasso 6 e se estende até o compasso 16. A re-
idéia básica de 2 compassos, seguida por uma exposição traz de volta a frase antecedente com
idéia contrastante nos dois seguintes, o que, algumas pequenas modificações que são apenas
para Caplin, caracterizaria um antecedente de ornamentais. Desta vez Nepomuceno não ameaça
um período. Para completar um período comum, começar um conseqüente, segue direto para a
o compositor teria que escrever o conseqüente, o seção de transição da grande forma. Além disso,
qual seria constituído da, reaparecendo, idéia neste trecho o uso de contraponto entre as vozes é
básica e da mesma idéia contrastante que se evidente e uma maior elaboração harmônica
transformasse de modo que a cadência do também pode ser encontrada.
conseqüente fosse mais forte que a cadência do

Ex. 9. Alberto Nepomuceno, Sinfonia em Sol menor/ii – comp. 1–21

Demonstrados estes exemplos da música de senvolvimento e o amadurecimento das composições


Alberto Nepomuceno fica um pouco mais claro o de- do mesmo. Evidente que dizer que uma obra de arte é
264 SIMPEMUS3

melhor do que a outra pode abrir espaço para mui- pensamentos, adaptando-os e utilizando-os em sua
tas discussões, mas pode-se dizer que as técnicas música.
aprendidas por Nepomuceno foram mais bem No entanto, uma questão preocupante é a
empregadas nas obras que se aproximam do fim sua maneira como alguns compositores são rotulados, como
estadia em Berlim. já foi dito, a música do Nepomuceno deste período não
é uma cópia da música nem de Beethoven e nem de
Conclusão Brahms, algumas das idéias destes compositores foram
adaptadas aos propósitos de Nepomuceno. Além disso,
A principal conclusão alcançada nesta
quatro anos é um período muito curto na vida de um
pesquisa é que os processos composicionais de
compositor, não se pode analisar toda sua obra
Alberto Nepomuceno se assemelham bastante aos
baseado apenas nessas peças compostas durante este
processos utilizados por Beethoven e Brahms,
período. Por isso, pode-se dizer que este é um trabalho
porém, esses processos são utilizados de maneira
que está apenas começando, pois Alberto Nepomuceno
bastante pessoal, sem que se torne uma mera cópia
viveu até 1920 e depois de 1894 sabe-se que sua
da música destes dois compositores alemães. Seria
música tomou outras direções, e seria necessária outra
ilógico pensar o contrário, pois estas idéias faziam
pesquisa como esta para descobrir certamente que
parte do ambiente e das pessoas que o rodeavam e
rumo a mesma teria tomado.
Nepomuceno acabaria absorvendo estes

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conservatórios europeus. SIMPÓSIO DE PESQUISA EM MÚSICA 2004. Anais..., Curitiba, 2004, p. 108-115.
_____ Alberto Nepomuceno e a criação de uma música brasileira: evidências em sua música para piano. São Paulo,
1996. Dissertação (Mestrado em Artes) – Instituto de Artes, UNESP.
WIKIPEDIA. “The sonata in scholarship and musicology”. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/> Acesso em 14 de
março de 2006.
Análise de improvisações na música instrumental:
em busca da retórica do jazz brasileiro
Marina Beraldo Bastos, Acácio Tadeu Piedade (orientador)
Universidade do Estado de Santa Catarina

Resumo
Este artigo apresenta trata da análise musical de temas e trechos de improvisações no âmbito da chamada
música instrumental brasileira, ou jazz brasileiro. A partir de estudos prévios, nos quais buscamos
compreender este gênero da música brasileira em sua dimensão sócio-cultural, pretendemos agora
adentrar no texto musical para adensar sua compreensão musicológica. A análise se pautou na busca de
padrões musicais que cristalizam gestos expressivos recorrentes, entendidos como tópicas de uma retórica
musical do jazz brasileiro.

Introdução (Brazilian Jazz). Este último termo pode sugerir


Este artigo trata da análise de improvi- que a música instrumental seja uma adaptação
sações no repertório da chamada “música nacional do jazz norte-americano, o que absoluta-
instrumental”, gênero da música popular mente não confere. Ao contrário, a música instru-
brasileira que, em seu desenvolvimento mental exibe uma configuração estável como
histórico, dialoga profundamente como o choro, gênero da música popular brasileira, embora seja
com a bossa-nova e com o jazz (BASTOS e parte do jazz global principalmente pelo espírito de
PIEDADE, 2005). Inicialmente, o artigo apresenta liberdade de criação e improvisação (PIEDADE,
uma breve reflexão sobre este gênero musical e 2003; ATKINS, 2003). Nesta perspectiva, a música
suas designações. Em seguida, discutiremos instrumental pode ser chamada de jazz brasileiro
questões sobre análise de música popular, em (empregaremos ambas as designações como sinôni-
particular o caso da análise de improvisações, e mos).
apresentaremos uma descrição sumária da O jazz brasileiro, assim, surgiu nos anos 60,
corrente analítica que desenvolve a idéia de no contexto da bossa nova, com as versões
“tópicas” (topics). Apresentaremos, então, instrumentais deste repertório, principalmente nos
análises de trechos de improvisações musicais trios de piano2. A partir deste momento, quando
para ali comentar a presença de algumas tópicas predomina o diálogo entre bossa nova e jazz norte-
do repertório. americano, a música instrumental consolida-se com
a incorporação de aspectos da musicalidade de
outros gêneros, ao mesmo tempo mantendo uma
Sobre Música Instrumental
linguagem peculiarmente própria, mais direta-
Como já foi comentado anteriormente1, a mente relacionada aos mundos do jazz interna-
designação “música instrumental” é ambígua, cional e da música brasileira, constituindo uma
pois há diversas outras músicas instrumentais no característica que PIEDADE (1997) chama de fricção
Brasil, e apesar disto os músicos e ouvintes deste de musicalidades, e que envolve a questão da
repertório não têm dificuldade no reconheci- identidade nacional e da globalização3. De fato, a
mento do gênero musical que leva o nome de música instrumental é o jazz brasileiro, se enten-
música instrumental. Algumas de suas marcas são dermos o jazz como fenômeno global que deixou de
claras: o destaque para os instrumentistas ser exclusivo do território norte-americano e tem
(improvisações, valorização do virtuosismo), a hoje muitos “novos endereços” (NICHOLSON, 2005).
concepção harmônico-melódica e os arranjos que Pretendemos neste artigo mostrar, a partir das
empregam técnicas e formas jazzísticas, entre análises de temas e improvisos do repertório em
outras. Há outras designações, como, por toque, como as musicalidades brasileiras e
exemplo, “música universal” (conforme Hermeto jazzísticas estão ali impressas. A perspectiva
Pascoal), “música brasileira contemporânea” analítica que adotaremos é o que se poderia
(conforme Arismar do Espírito Santo), ou ainda
“jazz brasileiro”, principalmente no exterior 2
Para uma discussão do desenvolvimento histórico da “Música
Instrumental”, ver BASTOS e PIEDADE (2005).
1 3
PIEDADE (1997, 1999). Ver também PIEDADE (2005).
266 SIMPEMUS3

chamar de “teoria das tópicas”, que explici- improvisações trazem à tona os diversos estilos
taremos abaixo. Antes, porém, apresentaremos individuais, reconhecidos pela audiência, e que por
uma breve discussão sobre o debate da vezes fazem referências culturalmente comparti-
musicologia e análise da música popular. lhadas muito significativas, como por exemplo no
caso de paródias e citações5. Porém, não é este
aspecto que nos interessa aqui, embora ele também
Análise de Música Popular
esteja presente. A natureza da improvisação em
Após vários debates e confrontações ao música, no barroco europeu, na música tradicional
longo do século XX, a música popular se tornou o indiana, no jazz (ver BAILEY, 1993), enfim, em
objeto de estudo legítimo da musicologia todas as culturas musicais, é tal que o aspecto
contemporânea (entendendo-se o campo da individual está permeado por um discurso anterior e
musicologia no seu sentido amplo, incluindo a mais profundo: a cultura. Membro de uma cultura,
etnomusicologia). A partir dos anos 60, o indivíduo é o agente que “fala” na improvisação,
investigações sobre música popular da área porém sua expressividade depende do uso de
multidisciplinar dos Estudos Culturais mostravam fórmulas “sintáticas” que propiciem a comuni-
a riqueza deste repertório e apontavam a cação. Além disso, a improvisação é um fenômeno
inadequação da Musicologia tradicional. Esta, de temporal, envolvendo, assim uma dimensão
sua parte, respondia com insultos, desprezo ou simbólica que é interpretada pela audiência e pode
silêncio em relação aos nascentes estudos de ser compreendida pelo analista (IMBERTY, 1981).
música popular (MIDDLETON, 1993). O debate, Portanto, para dar conta destas considerações,
naquele momento, resultava de uma definição nossa hipótese é que a improvisação (no jazz
de Musicologia que foi construída desde o brasileiro) envolve o uso de signos musicais
momento de formação da disciplina, no século convencionais que apontam para uma referen-
XIX, segundo a qual esta área restringe seu cialidade no sentido da uma retórica musical,
objeto de estudo à música erudita ocidental. manifesta através de “tópicas”.
Seus métodos típicos, como os recursos de
análise e teoria musical, revelavam sua
preferência pelo texto musical, em detrimento Retórica e tópicas
de aspectos sociológicos e culturais. Ao mesmo O que estamos chamando de tópicas aparece
tempo, grande parte da chamada Etnomusi- na semiótica defendida por AGAWU (1991): este
cologia radicalizou a investida na direção oposta, autor parte do princípio de que o repertório da
desprezando (até recentemente) o sentido intra- música clássica européia (aproximadamente de
musical (MORAES e PIEDADE, 2005). Atualmente, 1770 a 1830, objeto deste trabalho) é
as fronteiras entre disciplinas estão submetidas a explicitamente orientado para o ouvinte. Agawu
desconstruções constantes, e pode-se falar em propõe uma teoria da música clássica instrumental
termos de uma Musicologia ampla, que inclui os com duas principais dimensões comunicativas:
estudos de música popular, especialmente expressão e estrutura. As unidades de expressão
aqueles que abarcam a análise do texto musical. interagem dentro de uma estrutura definida pelos
O principal problema dos métodos de termos convencionados da retórica musical. Agawu
análise em geral, no caso de sua aplicação para comenta um exemplo interessante: o uso da
os estudos de música popular, tem sido a expressão “alla turca” por Mozart em trecho da
tendência ao formalismo. Uma solução para a ópera Die Entführung aus dem Serail, que estreou
análise de música popular seria tentar trazer o em 1782. Na cena, a personagem está furiosa, mas
nível de significação intra-musical para o Mozart escreveu no estilo alla turca para injetar um
primeiro plano sem que a análise torne-se toque de comédia. Ora, está em jogo a
meramente formal (MIDDLETON, 1993). A comunicação com o público da época, no texto
abordagem expressiva das “tópicas” é uma opção musical sendo utilizados códigos compartilhados
nesta direção (ver a seguir). Quando se trata de daquele contexto: menos de cem anos antes da
analisar improvisações, em geral a análise se estréia da ópera, os vienenses haviam expulsado os
orienta no sentido da compreensão do estilo turcos de Viena, e então os turcos às vezes eram
individual de um músico4. No caso do jazz, as tema de diversão popular, sendo considerados

4 5
De fato, a análise estilística é uma abordagem importante, Sobre paródia no jazz, ver MONSON (1994). Muitas vezes há
e LARUE (1980) é um suporte teórico muito conhecido na citações em referência a estilos de outros instrumentistas,
Musicologia. Exemplos recentes produzidos no Brasil: sobre como quando o saxofonista Joe Henderson cita Charlie Parker
o pianista Bill Evans, ver GIMENES (2003); sobre o (ver MURPHY, 1990). Para um enfoque do jazz europeu, ver
guitarrista Alemão Stockler, ver PRESTA (2004). WILSON (1999).
simpósio de pesquisa em música 2006 267
divertidos e exóticos. Em adição à capacidade de
Mozart no domínio destes códigos extra-musicais
está sua capacidade musical, a forma como o
compositor manipula o texto musical a fim de
atingir o resultado comunicativo. Agawu mostra
que, desta forma, o gênero “alla turca” torna-se
uma espécie de categoria músico-cultural,
presente em outras obras do período, que é o Brejeiro
que Agawu chama de topics. No esquema Este conjunto tem relação com o jogo musical
analítico de Agawu, a cadeia de topics aponta o que existe, particularmente no mundo do choro,
plano expressivo da música, enquanto que o envolvendo a questão do desafio, da “quebração”
plano estrutural é abordado através de rítmica, da ambigüidade melódica e da malícia. No
diferentes perspectivas estruturalistas (Schenker, samba também há várias dimensões do brejeiro,
Rosen, Ratner e a do próprio Agawu, “começo- evocado pela figura do “malandro” e sua ginga.
meio-e-fim”). Este jogo envolve também uma competição entre
A adaptação deste modelo para a música os próprios músicos: é comum entre os chorões um
popular brasileira é uma forma de lidar com o tipo de brincadeira onde um músico solista tenta
aspecto expressivo da musicalidade brasileira em “derrubar” o outro utilizando padrões difíceis. Este
suas várias faces. Acreditamos que eles estão é um fato histórico, profundamente arraigado na
presentes não apenas na música escrita como musicalidade chorística: no início do século XX, os
também nas improvisações, e nesta comunicação flautistas chorões sabiam ler partitura e faziam
trataremos especificamente deste plano das estes desafios musicais com muita virtuosidade
improvisações, pois acreditamos que há ali (DINIZ, 2003). No “Um a Zero”, de Pixinguinha e
tópicas que sendo utilizadas pelos músicos no sua Benedito Lacerda, marcado como “choro vivo”, o
busca de comunicabilidade com o público. brejeiro se apresenta logo de início na ambigüidade
entre a nota fá e a nota sol. Outra “brincadeira” é
desenvolvida através dos deslocamentos rítmicos
Análises
nos compassos 8-11, onde um padrão melódico
Através da análise de trechos de constituído no âmbito de três colcheias “atravessa”
improvisações, previamente transcritos por nós, o dois por quatro, de forma necessariamente
apresentaremos aqui elementos de conjuntos de irregular.
tópicas que pudemos recolher. A estes conjuntos
chamamos de: nordestino, brejeiro, época de
ouro e bebop6.

Nordestino
Estas tópicas remetem à musicalidade do
nordeste brasileiro. Destaca-se o uso da escala
mixolídia e, em menor escala, dórica. Há um
número muito grande de tópicas neste conjunto,
dada a importância desta musicalidade na música
brasileira. Pudemos recolher e nomear algumas,
que estarão nas análises abaixo. Por ora,
apresentamos aqui um elemento claramente
empregado de forma retórica no jazz brasileiro
(e em muitos outros repertórios), que podemos
chamar de “cadência nordestina”: trata-se de
uma frase cadencial com estrutura 2-1-6-1-1.
Época de ouro
Chamamos de “época de ouro” este conjunto
de tópicas que remete a um sentimento de nostal-
gia ligado ao Brasil do passado e à musicalidade de
gêneros antigos, tais como modinha, valsas e
serenatas. Há diversas configurações melódicas
6
Para um maior aprofundamento teórico sobre estas tópicas, para as tópicas época de ouro (EO): grupetos,
ver PIEDADE (2006) e o artigo de PIEDADE neste volume. apojaturas, certas aproximações cromáticas
268 SIMPEMUS3

(cromatismo 5-b5-4-3 ou 3-4-#4-5, ou ainda 3-2-


1-7M-7, todas estas aproximações sendo
cadenciais, a última nota estando geralmente em
tempo forte, conforme seu uso nas “baixarias”
de choro). Como exemplo, apresentaremos aqui
a apojatura de nona (em ré menor) e a de sexta
(em fá maior), ambas seguidas de arpejo
descendente:

Encontram-se diversos exemplos deste


padrão e de outros EO na literatura. Salientamos
que o que está acima escrito, isoladamente,
nada representa, e que este mesmo padrão é
utilizado em diversas outras musicalidades do
planeta. Entretanto, no (con)texto musical
brasileiro, estes mesmos padrões são empregados
de forma tal que apontam para o universo
referencial específico em questão. Especial-
mente, como estamos tentando enfatizar neste
artigo, se fazendo presentes nas improvisações
no âmbito do jazz brasileiro.
Apresentaremos abaixo a transcrição de
um dueto de clarinete e voz presente na canção
“Minha Palhoça”, de J. Cascata, conforme canta-
da por Mônica Salmaso e tocada por Nailor
“Proveta” no disco “Voadeira” (SALMASO, 2001).
A partir do compasso 10, a parte da voz
apresenta o tema da canção, e a parte de
clarinete é uma improvisação de acompanha-
mento que articula padrões melódicos que
podem ser compreendidos como tópicas,
indicados por colchetes inferiores. Vemos aqui
alguns padrões EO: grupeto no c. 8; resposta 3-
4-4#-5 no c.10; no c. 13-14 há uma progressão
tipo linha de baixo de choro (“baixaria”)
conduzindo à 7a menor (3-2-1-7M-7); logo no c.
15, aparece o arpejo 6-5-3-1 acima mencionado;
nos c. 21-22 há, novamente, uma condução do
tipo “baixaria”; no c. 28-29 ocorre uma forma
arpejada de tríade maior, muito comum na
melódica chorística; em seguida, o clarinetista
emprega, no c. 32, uma breve frase que remete
ao blues (evocando a escala blues menor): esta
referência ao blues em um ambiente EO é um
exemplo de fricção de musicalidades (PIEDADE,
2003); outra típica “baixaria” se apresenta nos c.
35-37; por fim, o padrão cromático típico 3-4-4#-
5.
simpósio de pesquisa em música 2006 269
Bebop e evocações da simplicidade infantil (c. 10, que
Este termo cobre a referência ao mundo do chamamos de ciranda), bem como um “maxixado”
jazz através de procedimentos melódicos tipica- (c. 20), que eventualmente poderão constituir
mente jazzísticos, uso de certas padrões e con- outro conjunto de tópicas.
venções, como notas-de-aproximação cromática Apresentaremos agora a transcrição de um
típicas do jazz, fraseados do tipo Charlie Parker, trecho musical no qual aparecem variadas tópicas.
uso de escalas e frases outside (ou seja, “fora” Trata-se de um excerto da improvisação de
da tonalidade ou do acorde-referência). É saxofone de Nailor “Proveta” na música “Baião de
evidente que, no contexto do jazz internacional, Lacan”, de Guinga, conforme a gravação no CD
o termo se refere ao jazz dos anos 40 e a figuras “Bixiga”, da BANDA MANTIQUEIRA (1999).
como Charlie Parker, Dizzie Gillespie e Thelonius
Monk. No entanto, no discurso nativo dos músicos
brasileiros (cf. PIEDADE, 2003), o termo aponta
para um conjunto de tópicas musicais jazzísticas
construídas sob o tenso diálogo que se estabe-
lece entre a musicalidade brasileira e a do jazz
norte-americano. Como exemplo, apresentare-
mos abaixo uma improvisação do baixista Itiberê
Zwarg na música “Viva o Rio”, de Hermeto
Pascoal (PASCOAL, 2002).

Note-se o uso de tópicas nordestinas de forma


entrecortada com tópicas bebop, outro exemplo de
fricção de musicalidades do jazz brasileiro. A
composição de Guinga aponta fortemente para o
nordestino, e a improvisação de “Proveta” segue
neste universo, porém dialogando com outras
musicalidades. Logo no início (trecho não transcri-
to), há uma longa referência ao experimental
(escalas rápidas e agudas, sem referência tonal, uso
de harmônicos e articulações que exploram timbres
não-convencionais, o acompanhamento utiliza
acordes distantes da tônica, conferindo densidade),
desembocando em padrões nordestinos sobre um
acorde único (F#7) sob o ritmo de baião. Nos c. 1-6
do trecho transcrito, “Proveta” explora a escala de
F# empregando graus alterados (b2 e 6m); do c.6
para o c. 7, cria uma cadência arpejada que aponta
para D7/9, portanto um trecho outside, e logo em
Note-se o uso de tópicas brejeiro (encaixe seguida utiliza um padrão nordestino que, de forma
irregular de células motívicas, causando desloca- incompleta, cita a composição “O ovo”, de
mento rítmico, c. 12-19). Há também outros Hermeto Pascoal, surpreendendo o ouvinte com um
procedimentos significativos, como antecipações salto para a 9a ao invés de cair na 3a , como aliás
270 SIMPEMUS3

faz adiante, após um trecho outside, nos c. 22- jazz. Evidentemente, como salientam estes
24, apresentando a citação; esta é repetida autores, as transcrições são desde sempre
obsessivamente nos c. 25-27, trazendo uma nova interpretações parciais e limitadas, já que somente
surpresa na cadência para a nota lá natural. A alguns elementos podem ser destacados em
improvisação continua, mas o trecho em toque partitura, e mesmo assim muitas vezes de forma
nos serve de exemplo suficiente para mostrar o precária. A transcrição musical é uma técnica muito
uso de tópicas. empregada na Etnomusicologia, e por isso mesmo
nesta disciplina ela tem sido largamente discutida
(ver BARZ e COOLEY, 1996; NETTL, 1964). Ao
Comentários Finais
mesmo tempo, afirmamos o rendimento de
Para concluir esta comunicação, podemos investigações da dimensão expressiva da música
afirmar que constatamos o interesse teórico- brasileira no nível das improvisações, em busca de
metodológico da transcrição de improvisações gestos expressivos compartilhados, configurados
para posterior análise, bem como da aplicação como tópicas. O estudo da retórica musical
da “teoria das tópicas” para estudo do jazz subjacente às improvisações através da teoria das
brasileiro. No primeiro caso, podemos dizer que tópicas é uma avenida interessante para a
se trata de um procedimento que já vem sendo compreensão da musicalidade brasileira, podendo
realizado de forma interessante por BERLINER contribuir significativamente para a Musicologia
(1994) e MONSON (1996) em seus estudos sobre o Brasileira.

Referências bibliográficas
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Conservação e restauração de partituras:
a problemática da coleção Renée Devrainne Frank de música paranaense do
Museu da Imagem e do Som de Curitiba
Charlene Neotti Gouveia Machado
Universidade Federal do Paraná

Diversos estudos quantitativos de acer- defende a separação dos acervos de entidades1.


vos brasileiros têm denunciado a negligência com Para seguir esse princípio é necessária a
a qual são tratados os documentos musicais. No contextualização das informações, separando o que
Paraná é gritante a situação de um dos acervos é uma coleção e o que é arquivo. O acervo em
mais importantes de registro da história do questão é claramente de uma coleção particular,
Estado: o acervo do Museu da Imagem e do Som ou seja, trata-se de um da coleta de partituras que
de Curitiba. Depositado numa sala despreparada, interessavam a pianista Renée Devrainne Frank.
as coleções Renée Devrainne Frank, Bento Tanto partituras como atas, programas de
Mossurunga e Estelinha Egg esperam o término concerto e documentos pessoais não receberam
da reforma estrutural no prédio sede do MIS. nenhum tratamento técnico: estão separados em
Esta comunicação vem apresentar um envelopes de papel comum Kraft, suscetíveis aos
levantamento das categorizações e classificações ataques de agentes naturais. Externamente esses
aplicadas à coleção Renée Devrainne Frank – do envelopes trazem uma numeração aleatória – e
antigo acervo da SEEC - por iniciativa do grupo alguns sem essa numeração ou qualquer informação
de pesquisa “Música Brasileira: Estrutura e Estilo, a respeito do conteúdo dos envelopes. Além de
Cultura e Sociedade”, que objetiva resgatar os poeira, muitas obras estão com clipes e fita
acervos paranaenses e o contexto histórico que adesiva, ou seja, não passaram nem por higie-
os permeiam (vida musical curitibana, relações nização, enquanto repousam no esquecimento de
sociais entre simpatizantes e ativistas de pesquisadores, acadêmicos, músicos e do governo
correntes ideológicas diversas, o uso dessa do Estado. A política administrativa também
música, instituições e sociedades civis). negligencia o tombamento, falta esta, que pode
Um dos acervos que pode ser colocado acarretar no sumiço de cartas e outras partes de
como um dos mais significativos da pequenas dimensões.
documentação paranaense, ocupa doze gavetas Ainda sobre a estrutura física, vale salientar
do arquivo musical do MIS. Pertencente a que a reforma na infra-estrutura do edifício do MIS
pianista Renée Devrainne Frank, a maioria das não é medida suficiente para uma boa acomodação
composições paranaenses contidas no acervo são desse material. Na sede não existe uma câmera fria
obras da primeira metade do século XX. Além nem espaço para a construção de uma. A falta de
destas encontramos obras de compositores bibliotecários preparados para dirigir acervos
europeus como Franz Liszt, Richard Wagner, musicais – desabituados com o manuseio e
Robert Schumann, Gabriel Faurè e Claude classificação de partituras - também prejudica a
Debussy. O denso volume de música de câmara conservação dos documentos, pois as visitas se
para piano ou canto coral se explica pelo círculo tornam perniciosas para o acervo por não serem
social do qual Renée fazia parte e, com o Trio orientadas e supervisionadas.
Paranaense, apresentava-se em encontros no Com um rico volume de material manuscrito,
Instituto Neo-Pitagórico, nos clubes Concórdia e das quais grande parte é autógrafa, encontramos
Thalia e no próprio solar dos Frank, além de documentação política – sobre regimentos de
outras tertúlias lítero-musicais. agrupamentos musicais, instituições filosóficas e
Para a coleta e identificação de desse estéticas-; de ensino – anotações de aulas, cartas e
material, o formulário adotado é o RISM contratos de professores -; e sociedade – programas
(Répertoire Internacionale des Sources de concertos, livros pessoas, atas que denunciam o
Musicales), que apesar de reunir informações
que outras normas descritivas não satisfazem, 1
COTTA, André Guerra. Reflexões sobre a utilização de
não sugere nenhuma metodologia de tratamento elementos descritivos do RISM no processo de catalogaçãio de
físico de acervos, nem sobre o princípio da acervos musicais. VI ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA,
Juiz de Fora, 22-25 jul. 2004. Anais... Juiz de Fora: Centro
proveniência – um princípio da arquivologia que Cultural Pró-Música, 2006, p. 85-94.
simpósio de pesquisa em música 2006 273
repertório dos encontros e saraus. O original da Um Caderno de Documentação Musical,
Ópera Sidéria, o manuscrito da opereta Marumby publicação de 1992, editado pela Secretaria de
e anotações de aulas ministradas pelo professor Estado da Cultura, é o único veículo que registra,
Nicolau dos Santos estão se desfazendo nos ainda que com dados superficiais, as obras
pacotes que amarrotam as gavetas. existentes no acervo Renée. Algumas obras
paranaenses de significativa importância que
constam no acervo segundo esse Caderno, são:

Brasílio Itiberê II - sobrinho Bento Mussurunga Luiz da Silva Bastos


(1896-1967) (1879-1970)
Emiliano Pernetta “Oração da noite”
(1886-1921) para 3 vozes femininas e meio
soprano solista ou ainda para 4
vozes e contralto solista.
Silveira Neto “Saudade Sombria” para
canto, piano e conjunto
“Hino de Morretes”
instrumental / “Trova
Rústica” para canto e piano.
Dario Vellozo “Hymno à Primavera”, com grande
repercussão em 22 de setembro de
1912 – INP e Revista Fanal. Para
canto e piano
Tasso da Silveira “Canto Absoluto” para 4 vozes
mistas ou para 4 vozes mistas mais
orquestra/ “Contemplação” para 3
vozes iguais ou para quatro vozes
mistas ou ainda pra orq. de câmara
e 3 vozes femininas/ “A dor meu
Senhor” para 4 vozes mistas/ “A
infinita vigília” para 3 vozes iguais
Jayme Ballão

Domingos Nascimento
“Himno do Paraná” para
canto e piano

“A todo o panno: sambinha


final” / “O amor tem fogo”
/ “A batuta da Avenida”.
Todas para canto e piano.

Benedito Nicolau dos Santos Augusto Stresser Léo Kessler


(1882-1924)
João Itiberê da Cunha
(1870-1953)
Emiliano Pernetta “A vovozinha”, uma opereta
(1886-1921) infantil em 3 atos. Sua estréia foi
em 13 de maio de 1913, no antigo “Papilio Innocentia”, inspirada em
Clube Literário de Paranaguá. E tão Inocência de Taunay, é uma scena
logo representada, em 1921, nas lírica. Obra de 1917.
cidades de Ponta Grossa e
Curitiba.*
Silveira Neto Uma “Cantata”, comemorativa a
chegada do corpo de Brasílio
Itiberê da Cunha. Encontra
também com o título do
compositor homenageado.Em
1913. Expõe temas do próprio
Brasílio.
Dario Vellozo “Flor de Lótus”
para Canto e piano
274 SIMPEMUS3

Jayme Ballão “Sidéria” ópera em 3 atos.


Orquestrado pelo suíço Léo
Kessler.

Domingos Nascimento “A um lyrio” barcarola – canto e


piano

“Marcha Thiumphal”, por


ocasião da posse do Sr.
Carlos Cavalcanti no cargo
de presidente do Estado.
Kessler publicou uma
transcrição para piano
excessivamente
simplificada.
“Opereta Marumby”, libreto
também do compositor,
ambientado em uma confeitaria da
Rua das Flores. Ópera de costumes
paranaenses. Sua estréia foi em 19
de dezembro de 1928, no Teatro
Guaíra, pelo Grupo Teatral da
Sociedade Renascença (companhia
articulada por Salvador de
Ferrante).*

A tabela construída privilegia as canções, que Mas o desinteresse no acervo Renée Frank e a
são em sua totalidade poemas simbolistas impossibilidade de iniciativa pública de construção de
musicados por compositores paranaenses – entende- um acervo digital para as obras, fica mais evidente
se por paranaenses compositores nascidos aqui ou quando visitamos o site do Museu. Neste, no link que
que se estabeleceram na então capital emancipada. direciona o pesquisador a uma breve descrição das
São hinos, óperas, operetas e canções, com coleções que o arquivo reúne e abriga, nem mesmo
construções musicais clássicas, que nos fazem sucintamente o acervo de partituras é citado. O
questionar o uso que faziam dessa música. A referido site limita-se a numerar os acervos
simplicidade da forma musical nos faz entender que fotográficos, de vídeo, cinematográfico e de áudio.
a música servia como veículo de propagação das Sobre as publicações diz que possui poucas com
idéias agregadas aos poemas empregados nessas “informações sobre música” e outras áreas do
obras vocais, figurando de forma secundária. conhecimento artístico.2
Sempre com caráter de marcha, eles parecem Vale reiterar a preocupação com o término do
anunciar uma revolução, instituir uma mudança na processo de identificação desse acervo. Muitas das
forma de pensar, embutindo idéias do pensamento obras que constam no catálogo não foram
de Pitágoras, dos gregos e egípcios, e agindo encontradas, e outras tantas lá presentes não estão
“visualmente” para a disseminação de idéias anti- listadas no referido Caderno de Documentação Musical
clericais. Outra informação que confirma essa da Secretaria de Cultura. Somente o término da
intenção política é o alcance social que algumas sistematização documental dará mais subsídios para
dessas obras tiveram. O Hymno à Primavera, de afirmar com precisão o valor histórico desses
Dario Vellozo e Luiz da Silva Bastos, datado de 22 impressos musicais, as escolas composicionais e o
de setembro de 1912, gozou de grande repercussão verdadeiro propósito dessas músicas no cenário de
e foi executada durante anos na Escola Normal uma Curitiba com pouco mais de 50 mil habitantes.
durante as aulas de música e em todas as três
edições da Festa da Primavera (1911, 1912 e 1913).
Além da análise, identificação, descrição e
restauração desse acervo, faz-se necessário um
novo arranjo físico. Uma das sugestões que trago
com este trabalho é a acomodação desse material pela Petrobras, no ano de 2005. Deste trabalho resultou um
digitalmente, como já realizado com o Acervo do site que disponibiliza parte das imagens recolhidas
(www.acmerj.com.br) e um DVD-Rom, que além de conter as
Cabido Metropolitano do Rio de Janeiro1, em 2005. ilustrações do site, também disponibiliza outros documentos.
2
1
Site do Museu da Imagem e do Som
Projeto com a participação dos musicólogos Antonio Campos (http://www.pr.gov.br/mis/acervo.html)
Monteiro Neto, Marcelo Hazan e André Cotta, patrocinados
simpósio de pesquisa em música 2006 275

Referências
COTTA, André Guerra. Reflexões sobre a utilização de elementos descritivos do RISM no processo de
catalogação de acervos musicais. VI ENCONTRO DE MUSICOLOGIA HISTÓRICA, Juiz de Fora, 22-25 jul. 2004.
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Produções Artísticas, 2005. 1 DVD-ROM.
Música: linguagem formadora de identidades sociais
Auro Sanson Moura
Universidade Federal do Paraná

Resumo
Para a maioria das pessoas, não há dúvidas. Ouvir música é um dos grandes prazeres que se pode ter. Mas que
poder é esse que a música tem de emocionar as pessoas ? O que faz com que um punhado de notas, sons ou
ruídos, possa ser tão atraente aos ouvidos? O que é que a música tem de tão especial? Ou ainda, que relação
temos com a música, que a faz tão importante para cada um de nós? Será que ela pode ser considerada uma
forma universal de linguagem? E mais ainda, será que a música pode mesmo ser considerada uma linguagem?
Por que ela une algumas pessoas ao mesmo tempo em que é motivo de discórdia entre outras? Como podemos
sentir a intenção do compositor quando ouvimos uma obra? Ou como é que podemos interpretar o que
ouvimos?
Além de expressar nossos sentimentos, a música pode também evocar estados afetivos e comportamentais,
como lembranças (emoções) da infância, de momentos que tiveram alguma importância na vida da pessoa, ou
no caso dos estados comportamentais, algo que pode estimular a pessoa a ter determinadas reações, como
alegria, melancolia, euforia, entre outros. Qual seria sua relevância na formação de nossa identidade? Até
que ponto ela pode nos influenciar?
Se pudermos pensar na música como uma forma ativa de linguagem, que pode transmitir informação,
podemos fazer uma ponte entre essas informações e o gosto musical. A vivência musical é com certeza um
dos caminhos (não o único) para o aumento do nível cultural da população e talvez um dos mais acessíveis,
apesar de ainda ser, de certa forma elitizada. É possível que a escola seja utilizada também como um meio
de atingir o aluno no ponto certo, a vontade de aprender sobre assuntos de seu interesse.
Um exemplo específico aqui abordado será o dos surdos; como e onde se situam nessa busca interminável por
uma própria identidade. A música pode ser usada nesse processo de inserção do indivíduo à sociedade e os
profissionais podem (e até devem) ter isso como objetivo. Mas além das crianças em situação de risco, pode-
se utilizar técnicas que envolvam música, para crianças e/ou pessoas com deficiências das mais variadas, no
processo de socialização e formação da identidade desses indivíduos.

Para a maioria das pessoas, não há dúvidas. algum embasamento. Infelizmente, não só na
Ouvir música é um dos grandes prazeres que se música, somente poucos têm tido a chance de se
pode ter. Apesar de algumas diferenças, todos beneficiar de obras e/ou peças importantes da arte,
concordam que a música exerce um papel muito que acaba sendo vista como de “posse” de uma
importante em suas vidas, seja acompanhando os elite intelectual. A educação, de um modo geral,
trabalhos do dia-a-dia, seja como objeto de pode alterar esse panorama.
estudos mais aprofundados, ou mesmo quando se Este trabalho pretende criar uma relação
trata da principal fonte de renda de um músico entre a música e a formação da identidade pessoal
profissional. e também da identidade social, isto é, a identidade
Além desses apontamentos, ainda pode-se individual no contexto de determinados grupos.
fazer uma distinção de classes através do Também pretende verificar a função da música
repertório musical escolhido. Por exemplo, como meio de melhoria de nível sócio-cultural,
normalmente, os indivíduos mais instruídos, com inserção na sociedade, ou apenas como forma de
uma melhor formação cultural, terão preferência lazer das pessoas em geral. Um exemplo específico
por gêneros musicais melhor construídos, com aqui abordado será o dos surdos; como e onde se
maior carga de informação e, assim dizendo, situam nessa busca interminável por uma própria
mais complexos. Por outro lado, as pessoas com identidade, não a de deficiente, mas sim a de
menor nível de instrução tendem, na maioria das criança, de adolescente e de cidadão.
vezes, a preferir gêneros musicais de fácil
compreensão. Isso não pode ser afirmado como
Definindo identidade e linguagem
uma verdade absoluta, mas é o que tem sido
observado na maioria das vezes. Muito Segundo John Sloboda, “as crianças sim-
provavelmente, isso ocorre devido ao próprio plesmente adquirem o conhecimento através de
acesso à informação, pois as pessoas podem suas experiências sociais diárias. Conseqüente-
escolher o que ouvir, entre vários estilos e com mente, tal conhecimento tende a ser universal em
simpósio de pesquisa em música 2006 277
uma cultura, e constitui a base sobre a qual as há costumes diferentes. Seria interessante explanar
habilidades mais específicas serão construídas”1. sobre o conceito de cultura, citando algumas definições
A partir dessa afirmação, podemos tentar cabíveis. Citando Geertz, quando diz que “a cultura é
melhor vista não como complexos de padrões de
entender a construção dessas habilidades
comportamento [...], mas como um conjunto de
específicas (por exemplos os processos cognitivos
mecanismos de controle [...] para governar o
realizados para aquisição de linguagem, fala, comportamento”, pode-se entender a cultura como
modelos comportamentais, entre outros) como uma maneira interpretar os acontecimentos, um modo
um passo para a formação de uma identidade, a de possibilitar que o homem encontre “sentido nos
partir do momento em que a pessoa, criança, acontecimentos através dos quais ele vive”2.
adolescente, começa a descobrir novas maneiras • A identidade étnica, que varia de acordo com as
de se comunicar, através dessa nova habilidade descendências e características físicas é algo imutável.
adquirida. Para tanto, teremos que compreender Mais do que apenas características genéticas, a
o termo identidade de uma maneira um pouco identidade étnica depende da cultura familiar, ou até
mais abrangente, como fatores que determinam a mesmo da identificação do indivíduo com sua terra, seu
maneira com que a pessoa se relaciona, age ou povo, ou dos seus descendentes.
pensa. Outra maneira de compreender o conceito • A identidade nacional é relativa ao país de origem ou
de identidade é imaginar que vários outros tipos residência por tempo prolongado, continente e
de identidades acabam por formar uma características geográficas, entre outras. Difere da
identidade étnica por não se basear tão fortemente em
identidade geral do indivíduo. Alguns estudiosos
características como raça, descendências, entre outras.
como Folkestad e Hargreaves, entre outros, já
mapearam alguns tipos, como identidade pessoal,
identidade social, identidade cultural, identidade A soma de todas estas identidades irá
étnica, identidade nacional, que serão constituir a identidade pessoal do ser humano.
sucintamente definidos a seguir: Dependendo da situação e do momento da vida, um
tipo de identidade pode se sobressair. A linguagem
e a música estão diretamente ligadas à questão da
• Identidade pessoal (características idiossincráticas) é
identidade e, por esta razão, são discutidas a
talvez a mais complexa de ser descrita, mas é ela
que normalmente se sobressai às outras, devido aos seguir.
seus fatores determinantes para a caracterização
e/ou diferenciação dos indivíduos. A música é linguagem?
• A identidade social é normalmente formada a partir
A função primordial da linguagem é a
de grupos de convívio, através de interesses comuns,
comunicação, e é através fala, a maneira mais
ou amizades. É provavelmente nesse nível de
identidade que a música possa ter um papel comum de comunicação entre os humanos, que
fundamental, principalmente em fases como a estamos acostumados a obter informações, nos
adolescência, em que as descobertas são muitas e comunicar com outros da mesma espécie. Mas ela
muito intensas, quando há uma propensão maior à não pode ser encarada como a única forma, já que
influência dos outros, já que a identidade pessoal temos consciência da existência de outras formas
ainda não está totalmente formada. Podemos dizer “não-faladas” de comunicação. É o caso da
que a identidade social se trata das características linguagem de sinais, que utiliza símbolos para
que as pessoas adquirem a partir de relações sociais,
representação de fatos e/ou objetos e que nada
no convívio com outras pessoas.
tem em comum com a língua (aqui no caso a língua
• A identidade cultural depende de fatores muitas portuguesa) falada, tanto que a oralização de
vezes mais antigos do que a própria civilização
deficientes auditivos que se utilizam dessa
(ILARI, 2006), sendo possível, inclusive, que um povo
tenha mais de uma identidade cultural (FOLKESTAD,
linguagem, é extremamente difícil, não só pela
2002), já que algumas culturas são muito mais deficiência, mas pelo desconhecimento das signifi-
antigas que as próprias nações. Também porque uma cações das palavras e sons. Para Vygotsky, “a
cultura pode ser formada a partir de outras várias atividade [...] de criação de significado é a
culturas, e em cada grupo social, em cada família, precondição para a criação de linguagem” 3.

1
“Children simply acquire the knowledge through their
everyday social experiences. In consequence, such
knowledge tends to be universal in a culture, and is the 2
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro:
ground on wich more specialized skills may be built.” Ed. LTC, 1989.
SLOBODA, John A. The musical mind; The cognitive
psychology of music. – Music as a cognitive skill. New York:
Oxford University Press, 1985. Tradução do autor. 3
NEWMAN, Fred; HOLZMAN, Lois. Lev Vygotsky – cientista
revolucionário. São Paulo: Loyola, 2002, p. 131.
278 SIMPEMUS3

Então como podemos sentir a intenção do significados construídos no mundo social. É no


compositor quando ouvimos uma obra? Ou como é mundo social que definimos e convencionamos o
que podemos interpretar o que ouvimos? que consideramos como sendo música e quais as
funções e usos de determinada peça musical 5.
Ao ouvirmos uma música, estamos expostos
a rajadas de melancolia, de fúria ou de alegria, e
sentimos tudo isso. Provavelmente, é por que de Contrariando Borges Neto (2005) em que,
alguma maneira as informações estão chegando após uma longa explanação acerca do tema, conclui
até nós; está havendo uma forma de que música não é linguagem, e Voloshinov (em
comunicação entre o espectador e o compositor. nome de Bakhtin) que diz: “Não é a atividade
De que maneira pode haver comunicação? Através mental que organiza a expressão, mas ao contrário,
da linguagem. Falada ou escrita, através de sinais é a expressão que organiza a atividade mental”, e
ou telepatia; se há comunicação, há algum tipo ainda “A palavra está presente em todos os atos de
de linguagem envolvida. Na própria música, há compreensão e em todos os atos de interpretação”,
trechos de melodias analisadas que recebem este trabalho pretende considerar a música como
nomes de figuras gramaticais, como frase, sendo também uma forma de linguagem, devido aos
períodos, entre outros, dando ainda mais a apontamentos anteriores, de que a música pode
sensação de que música e linguagem estão muito sim, ser uma forma de linguagem, não verbal, mas
próximas. Se pudermos pensar a música como linguagem. O próprio Bakhtin diz em dado
uma forma ativa de linguagem, que pode momento, após se dirigir à música como “fenômeno
transmitir informação, podemos fazer uma ponte ideológico”, que “É impossível, [...] exprimir em
entre essas informações e o gosto musical, que palavras, de modo adequado, uma composição
na maioria das vezes sofre grandes influências na musical” 6, causando certa contradição em seu
adolescência, mesma época em que a identidade discurso. Assim, “não podemos deixar de refletir
pessoal tende a se desenvolver mais que música também é linguagem (não verbal), o
efetivamente, devido também à saída da que significa dizer que ela também se constitui
infância. condição de conhecimento e de ordenação de
pensamento” 7.
De acordo com Sloboda (1983), a música pode
A música enquanto linguagem
soar como uma espécie de expressão vocal das
emoções; pode vir a provocar os mesmos estados
Quando a gente entende uma coisa assim, talvez afetivo-emocionais da linguagem falada. Ao
nem seja necessário falar. Talvez a música, em considerar a música como linguagem, devemos
si, dê conta do que há para dizer 4.
pensar que ela é capaz de transmitir informações,
causar emoção, assumir diversos significados, ser
Que poder é esse que a música tem de compreendida de maneira particular, pode estar
emocionar as pessoas ? O que faz com que um associada a fatos ou acontecimentos, entre outros.
punhado de notas, sons ou ruídos, possa ser tão A música muitas vezes parece conseguir expressar
atraente aos ouvidos? O que é que a música tem nossas emoções ou sentimentos. Fazendo um
de tão especial? Ou ainda, que relação temos paralelo com o pensamento vygostkyano, quando da
com a música, que a faz tão importante para afirmação de que “as relações entre pensamento e
cada um de nós? Será que ela pode ser palavra são, na linguagem da criação de significado,
considerada uma forma universal de linguagem? E o instrumento-e-resultado”8, podemos imaginar que
mais ainda, será que a música pode mesmo ser com a música haja essa mesma ligação. Segundo
considerada uma linguagem? Por que ela une Georges Snyders, A música como linguagem é sem
algumas pessoas ao mesmo tempo em que é dúvida mais diretamente comovente do que a
motivo de discórdia entre outras?
5
DEL BEM, L. Ouvir música: novos modos de vivenciar e falar
precisamos ter em mente que, quando sobre música. In: SOUZA, J. Música, cotidiano e educação.
vivenciamos música não nos relacionamos Porto Alegre: UFRGS, 2000, p. 102.
somente com matéria musical em si (altura, 6
VOLOSHINOV, Valentin (Em nome de BAKHTIN, Mikhail).
duração, intensidade, timbre, estrutura e Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986,
expressão) e suas relações. Logo que ouvimos os p. 38.
primeiros sons de qualquer música, começamos 7
SEKEFF, Maria de Lourdes. De música e educação. Revista da
a assimilá-los a partir de uma rede de Academia Nacional de Música, vol XIV. Rio de Janeiro:
Sermograff, 2003
4 8
NESTROVSKI, Arthur. O livro da música. São Paulo: NEWMAN, Fred; HOLZMAN, Lois. Lev Vygotsky – cientista
Companhia das letrinhas, 2000, p. 33. revolucionário. São Paulo: Loyola, 2002, p. 146.
simpósio de pesquisa em música 2006 279
linguagem propriamente dita, mas liga-se estamos absorvendo informações abstratas, que
freqüentemente a ela”9. serão assimiladas de maneiras diferentes em cada
Além de expressar nossos sentimentos, a um de nós. A música em si não forma a identidade
música pode também evocar estados afetivos e das pessoas, ou de grupos, apenas faz a ponte entre
comportamentais, como lembranças (emoções) as pessoas e os interesses comuns, mas realmente
da infância, de momentos que tiveram alguma parece ser uma maneira de se afirmar como pessoa,
importância na vida da pessoa, ou no caso dos deixando a infância para trás.
estados comportamentais, algo que pode
estimular a pessoa a ter determinadas reações, Quando se escuta uma música assim, é como se a
como alegria, melancolia, euforia, entre outros. gente tivesse aprendido uma coisa que ninguém
Dependendo do estímulo enviado, haverá uma mais tira. É o que faz a gente ser do jeito que é12.
resposta emocional diferente. "A música é um
canal fundamental de comunicação: ela fornece Música e identidade de grupos
meios através dos quais as pessoas podem
Quando se fala em identidade social, pode-se
compartilhar emoções, intenções e significados,
vir a pensar em grupos, em "tribos", ou momentos,
mesmo que suas línguas faladas sejam
fases da vida, como o que ocorre com adolescentes,
mutuamente incompreensíveis"10.
em que a música tem um papel muito forte,
determinando a que grupo um desses indivíduos
Música e formação de identidade pertence. A mídia também tem um grande poder de
Se a música pode evocar sentimentos, nos manipular as pessoas e desempenha um papel muito
levar a certos níveis comportamentais e “importante” nesse sentido, ditando normas de
influenciar tanto as nossas vidas, qual seria sua conduta e modismos, moldando o comportamento
relevância na formação de nossa identidade? Até das pessoas de acordo com as regras do sistema
que ponto ela pode nos influenciar? Certamente, estabelecido pela sociedade em que se vive.
cada um deve ter um exemplo próprio. Aquele A música pode estimular a chamada coerência
garoto que cantava na escola, o que seria dele comportamental (ROEDERER, 1998), fenômeno no
hoje se não tivesse se entusiasmado com uma qual ocorre um processo de equalização dos estados
banda de rock, ou se não tivesse tido apoio dos emocionais de um grupo. Trata-se, porém de um
pais para comprar sua primeira guitarra? Ainda fenômeno mais raro, por depender da maneira
estaria se dedicando à música? A música pode ter como as informações musicais são recebidas e
influência sobre a formação de identidade? processadas por cada um. A familiaridade com a
informação, treino e o gosto musical, as associações
A ansiedade dos adolescente em relação à sua internas e todos os processos cognitivos ligados à
identidade, e a procura de suas diferenças motivação e aos estados afetivos que ela provoca,
certamente não são coisas novas11 são fundamentais e definitivos para determinar o
estado mental de cada indivíduo em um momento
específico. Mas no geral, sabe-se que pessoas de um
A música tem sido frequentemente usada
mesmo grupo tendem a comportar-se de maneira
como uma maneira de se construir e expressar
muito semelhante. Como cita Snyders, “sabemos da
identidade (Hargreaves et al, 2002), pois
alegria que os jovens encontram em comunicar-se
proporciona uma forma de expressão que as
com outros jovens, com outras pessoas, com suas
palavras nem sempre suprem. Talvez por isso ela
músicas, através de suas músicas”13.
seja tão importante quando da construção da
identidade de uma pessoa; ao ouvir música, Se a música pode ser considerada linguagem,
transmite informações, sentimentos, evoca estados
afetivos, como ficam os indivíduos deficientes
9
SNYDERS, Georges SNYDERS, Georges. A escola pode ensinar auditivos? Até que ponto essa deficiência irá
as alegrias da música? São Paulo: Cortez, 1992, p97.
resultar num afastamento dos grupos sociais de
10
"Music is a fundamental channel of communication: it outros indivíduos ouvintes? Apesar da música
provides a means by which people can share emotions,
intentions and meanings even though their spoken “ouvida” ter uma forma subjetiva de transmissão
languages may be mutually incomprehensible"- desses já citados estados afetivos, ela então não
HARGREAVES, David J.; MACDONALD, Raymond A.R.; pode ser transmitida também através das vibrações,
MIELL, Dorothy E. What are the musical identities, and why
are they important? In: Musical Identities. New York: baixas freqüências, que podem ser sentidas pelos
Oxford University Press, 2002, p. 1. Tradução do autor.
12
NESTROVSKI, ARTHUR. op.cit., p. 29.
11 13
SNYDERS, Georges., op. cit., p149. SNYDERS, Georges. op. cit., p. 92.
280 SIMPEMUS3

surdos? Eles ficam alheios realmente a esse tipo da cultura, além de uma outra função, a de integra-
de mensagens subjetivas? Estão à margem dessa ção na sociedade, que remete aos movimentos
constituição de identidade própria? sociais, como o caso daqueles apoiados na cultura
Em uma experiência de convívio com Hip Hop, ou mesmo em trabalhos desenvolvidos em
adolescentes surdos, nota-se que em suas vidas locais como ONG’s. Esses movimentos tem como
falta algo que é muito importante na formação objetivo tirar das ruas, ou apenas do ócio, crianças
de todo jovem: a música. Normalmente é através ou jovens que demonstrem interesse pela música,
de gostos comuns, como time de futebol, bandas ou que vejam na mesma uma oportunidade de
preferidas, prática de esportes, que a maioria melhoria de vida, tendo em vista principalmente o
dos adolescentes forma seus grupos de amigos e aspecto cultural, dentre outros.
não raramente, é influenciada em seus gostos
pessoais. A música normalmente define alguns Música, identidade e trabalho social
dos grupos em locais como escolas e bairros,
A idéia de identidade e formação de
entre outros, mas no caso desses jovens surdos,
indivíduos pode remeter a uma forma de se tentar
em que falta uma parte importante da formação
dar melhores condições para pessoas com
inicial (a vivência musical), como se dá esse
problemas gerados pela má distribuição de renda,
processo? Percebe-se que eles são muito
desigualdade social, entre outras situações que se
suscetíveis à programação de TV, à moda,
fazem presentes na vida cotidiana do Brasil.
informações visuais, em geral. E é claro, o
Trabalhando música com crianças, jovens, ou
conteúdo da televisão, assim como a música pop,
mesmo adultos que normalmente não teriam acesso
nem sempre é composto de material de alto
a esse tipo de informação, pode-se ter muitas boas
nível, e isso ligado à memória quase que
surpresas, melhoria de vida, não somente de renda,
unicamente visual desses indivíduos, pode causar
mas também a questão de acesso à cultura, de
uma maior dificuldade de formar uma identidade
novas expectativas na vida de um cidadão, uma
própria, o que ocorre sim, mas de uma maneira
nova visão de mundo.
típica dos portadores dessa deficiência, muitas
vezes exaltando uma característica dos Algumas experiências tiveram êxito ao
adolescentes em geral, uma condição submissa conseguir fazer com que crianças muito pobres, ou
de aceitação de informações da mídia, e no caso mesmo jovens em situação de risco, como usuários
dos surdos, de informações visuais que pouco de drogas ou envolvidos com o tráfico e/ou
acrescentam às suas pessoas. criminalidade, tivessem acesso ao estudo de
música, e conseqüentemente, pudessem vir a
encontrar melhores condições de vida, incentivo ao
Música suas funções na sociedade estudo, bom desenvolvimento em outras áreas,
De acordo com Allan Merriam (1964), a melhor convívio familiar, e a própria dedicação a
música pode ter diversas funções na sociedade, uma causa, tendo o aprendizado musical tanto
como por exemplo, a função de comunicação, em como um meio de se chegar a algum lugar, ou
que o autor diz que a música não é uma forma mesmo uma finalidade. Como sugere Mário de
universal de linguagem, mas uma linguagem Andrade:
direcionada a pessoas de uma mesma cultura.
Quando Merriam cita a função de validação ainda não se percebeu na nossa terra que a cultura
das instituições sociais e dos rituais religiosos, o é tão necessária como o pão, e que uma fome
autor sugere que é a música é um dos elementos consolada jamais não equilibrou nenhum ser e nem
que ditam o adequado e o impróprio na felicitou qualquer país14.
sociedade, além de ter o papel de divulgar
lendas, mitos e preceitos religiosos. A música, Essa “fome” de cultura pode ser saciada
nesses casos, pode servir como uma forma de coletivamente, reunindo grupos de uma comunidade
doutrinamento, principalmente em se tratando e oportunizando a integração, como diz Merriam:
de funções religiosas. Em algumas religiões, por
exemplo, há muitos casos de uso de melodias
A música, então, fornece um ponto de
famosas com letras reescritas, citando passagens convergência no qual os membros da sociedade se
bíblicas, ou ainda promovendo a crença em reúnem para participar de atividades que exigem
algum tipo de religião, como ocorre
freqüentemente em igrejas evangélicas.
Merriam cita o papel da música na 14
ANDRADE, Mário de. Oração de Paraninfo. In: Aspectos da
contribuição para a continuidade e estabilidade música brasileira. São Paulo: Martins/MEC, 1974, p. 245.
simpósio de pesquisa em música 2006 281
cooperação e coordenação do grupo (MERRIAM, adolescente, criança ou adulto (dependendo do
1964, p. 226). período da vida em que estejam).
Todos esses fatores tornam a formação de
Esse tipo de trabalho com função social uma identidade consolidada muito mais difícil, já
pode ser desenvolvido com base na aprendizagem que todos esses conteúdos da televisão são
coletiva, usando a oralidade como meio de se momentâneos, desaparecendo na mesma velocidade
chegar aos indivíduos, e fazer com que o e proporção com que surgem, deixando o indivíduo
aprendizado ocorra através da vivência musical, mais suscetível à variação de comportamento
isto é, pela prática de música. estimulada pela mídia e criando um padrão
A arte não é a única forma de se realizar comportamental questionável, tanto no surdo
trabalhos com uma função de socializar quanto nos indivíduos em geral, o que é péssimo
indivíduos, ou simplesmente dar nova motivação para a sociedade, que necessita de cidadãos
para viver. No entanto, é através dela e também pensantes e contestadores.
do esporte que se tem obtido bons resultados,
principalmente nos países mais pobres, com o Considerações finais
mérito de não somente doutrinar, mas também
A música como linguagem parece ser algo tão
dar chance de uma profissão e incentivar o
óbvio, mas ao mesmo tempo tão complexo de se
cuidado com a saúde, além de incentivar a busca
explicar por meio de palavras. Quem nunca ouviu
por novos conhecimentos, o auto-conhecimento,
uma música e se emocionou? Ou como é que às
inclusive.
vezes podemos entender o que a seqüência de notas
A música pode ser usada nesse processo de de uma música instrumental está nos dizendo? Nem
inserção do indivíduo à sociedade e os tudo parece necessitar de explicações teóricas,
profissionais podem (e até devem) ter isso como embasadas em milhares de teorias nada musicais,
objetivo. Mas além das crianças em situação de mas o homem parece gostar de complicar as coisas,
risco, pode-se utilizar técnicas que envolvam ditando normas para que as pessoas precisem saber,
música, para crianças e/ou pessoas com por exemplo, que uma das formas de linguagem
deficiências das mais variadas, no processo de mais acessíveis para a transmissão da cultura entre
socialização e formação da identidade desses diferentes povos (a música) não é linguagem. Claro
indivíduos. que trata-se de uma definição mais subjetiva da
linguagem, mas ainda assim, muito eficiente.
Música e crianças especiais A vivência musical é com certeza um dos
Muito tem se estudado sobre o ensino de caminhos (não o único) para o aumento do nível
música para crianças com algum tipo de cultural da população e talvez um dos mais
deficiência, ou melhor dizendo, portadores de acessíveis, apesar de ainda ser, de certa forma
necessidades especiais. No entanto, é na escola elitizada. É possível que a escola seja utilizada
especial que se nota a falta de preparo dos também como um meio de atingir o aluno no ponto
professores, e consequentemente, o baixo certo, a vontade de aprender sobre assuntos de seu
aproveitamento por parte dos alunos, que muitas interesse.
vezes sequer percebem o despreparo dos As funções da música podem ser inúmeras,
profissionais. Uma das causas para tal desde o prazer que sentimos por simplesmente
despreparo, é a idéia de que as aulas de música, ouvir uma música da qual gostamos, ao papel da
principalmente nos casos de alunos deficientes, música para a sociedade. Pode-se pensar em
são apenas momentos de recreação. relação à transmissão de cultura, a possibilidade de
Quando se fala no ensino de música para utilizá-la como ferramenta poderosa para
indivíduos portadores de necessidades especiais, integração de deficientes ou pessoas em situação de
geralmente exclui-se naturalmente os surdos, risco a um grupo melhor estruturado, dentre outros.
visto que para os mesmos, a música parece não Todos esses certamente já seriam motivos mais do
ter utilidade. Como estão praticamente alheios à que suficientes para que a estudássemos muito mais
música, acabam por ter outros estímulos como a fundo.
ponto de referência durante o processo de
formação de identidade. Tais estímulos
(geralmente visuais) acabam determinando a
formação de suas identidades, a de surdo e a de
282 SIMPEMUS3

Referências
BORGES NETO, José; Música é linguagem? In: I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE COGNIÇÃO E ARTES MUSICAIS –
SINCAM, Curitiba, 2005. Anais..., Curitiba: Editora do DeArtes, 2005.
FOLKESTAD, G. National identity and music. In: MACDONALD, R.A.R.; HARGREAVES, D. J.; MIELL, D. E.
Musical identities. New York: Oxford University Press, 2002.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. LTC, 1989.
MACDONALD, R.A.R.; HARGREAVES, D. J.; MIELL, D. E. Musical identities. New York: Oxford University Press,
2002.
NESTROVSKI, Arthur. O livro da música. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2000.
NEWMAN, Fred; HOLZMAN, Lois. Lev Vygotsky: cientista revolucionário. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
ROEDERER, J.G. Introdução à física e à psicofísica da música. São Paulo: EDUSP, 1998.
SCHAFER, Murray R. O ouvido pensante. São Paulo: Editora da UNESP, 1992.
SEKEFF, Maria de Lourdes. De música e educação. Revista da Academia Nacional de Música, v. 14, 2003.
SLOBODA, John A. The musical mind: the cognitive psychology of music. New York: Oxford University Press,
1985.
SNYDERS, Georges. A escola pode ensinar as alegrias da música? São Paulo: Cortez, 1992.
VOLOSHINOV, Valentin (Em nome de BAKHTIN, Mikhail). Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo:
Editora Hucitec, 1986.
| sessão de pôsteres |

A aplicação de elementos modais nas aulas de música


Luís Bourscheidt
Universidade Federal do Paraná

Esta pesquisa em andamento tem como tema central a aplicação de elementos da música modal com
crianças entre 7 e 9 anos de idade. A investigação pretende verificar a utilização destes elementos como
forma de ampliar as possibilidades musicais e o universo sonoro dessas crianças, hoje freqüentemente
restrito aos modos Maior e menor. Por meio deste trabalho, busca-se discutir a pertinência desse tipo de
material musical, questionando o que ele pode acrescentar ao ensino da música e à prática musical. Também
serão analisados e descritos os aspectos cognitivos da percepção destas escalas modais nas crianças, num
contexto de prática instrumental e vocal. Assim sendo, serão utilizados basicamente os métodos Orff e
Orff/Wuytack, por se adequarem perfeitamente a este tipo de sonoridade. A metodologia utilizada será a
Pesquisa-ação, tendo como categorias de análise a criação, a apreciação e a interpretação. Para a pesquisa
empírica, serão planejadas 8 aulas onde estes elementos serão aplicados – conforme as categorias acima – e,
posteriormente, os dados serão analisados e descritos em forma de relatório. A coleta de dados se dará pela
observação das aulas e através de entrevistas semi-estruturadas com as crianças do grupo.

Meus caros pianistas


Raimundo Fortes Filho, Diana Santiago (orientadora)
Universidade Federal da Bahia

“Meus caros pianistas” trata-se de um projeto de doutorado em andamento na área de execução


musical (piano) na Universidade Federal da Bahia. O compositor brasileiro Francis Hime, através de
conversas com pianistas eruditos, descobriu o quanto eles gostariam de tocar músicas populares, não o
fazendo por ausência de partituras. Escreveu trinta arranjos de suas peças mais significativas e melhor
adaptáveis à linguagem do piano, que foram gravadas em seu Songbook lançado em 2001 por Almir Chediak.
O objetivo deste projeto consiste em encontrar elementos de conexidade entre o erudito e o popular,
através de possíveis relações intertextuais com compositores brasileiros e eruditos, na análise dos trinta
arranjos pianísticos de Hime. A formação erudita de Hime, a composição idiomática na produção dos seus
arranjos pianísticos, a textura orquestral e o trabalho em conciliar a rítmica do samba e do samba-canção
com uma forma de acompanhamento contrapontístico constituem pontos de partida para o desenvolvimento
dessa pesquisa.

Maracá: instrumento da feitiçaria da pajelança indígena à cura maranhense


Cláudia Padilha

Música é ritmo, som e magia. Ritmo é pulsação vital, expansão e contração. Som é energia, vibração.
Ritmo e som dão vida, expressão e espírito à música. A música convoca o espírito criador, a magia. Da magia
original nasceu a ciência, a religião e a arte.
Em muitas religiões, o som pode ser um elo de comunicação do mundo material com o mundo
espiritual e invisível. Ele tem um poder mediador e hermético. Assim, os instrumentos musicais são vistos
muitas vezes como objetos mágicos. Os instrumentos são vozes. E são sagrados.
O maracá é um instrumento de feitiçaria indígena e possui significado místico. Seu som imita uma
cascavel. A maior parte dos grupos indígenas associa seu som a poderes mágicos. São, portanto, os
instrumentos preferidos dos pajés, mediadores entre o mundo humano e o sobrenatural. Nas sociedades
indígenas, magia e religião estão interligadas.
284 SIMPEMUS3

O maracá é um instrumento religioso, que sinaliza poder espiritual, se usado num contexto ritual, em
comunicação com entidades espirituais. Nas práticas de cura, enxota do corpo da vítima os espíritos
malignos, sendo um importante elemento da comunicação xamânica.
No Maranhão existe um ritual associado a práticas terapêuticas, curativas, a cura maranhense, tambor
de curador ou pajelança de negro. Um conjunto heterogêneo de práticas e representações que reúne
elementos do catolicismo popular, das culturas indígenas e do Tambor de Mina.
Em São Luís é também chamado de “Brinquedo de Cura” e é realizado pelo Mestre, Pajé ou Curador.
Perseguidos pela polícia até a década de 50, os curandeiros eram chamados de feiticeiros e acusados
de fazer “magia negra”, e o curandeirismo era encarado como uma prática ilegal da medicina.
Segundo a cosmologia de várias religiões afro-brasileiras, existem na natureza entidades não visíveis,
constituídas de energia e com grandes poderes. No Maranhão, os caboclos encantados são agrupados em
“linhas”, conjunto de espíritos de uma mesma família. As linhas se dividem em água salgada, da mata, água
doce e astral – domínios da natureza. A “linha de cura” é a linha de água doce e os pajés são chamados de
“batedores de maracá”.
Na pajelança maranhense a música é essencial, sem ela não há pajelança. Os instrumentos usados são
pandeiros, cabaça e maracá, junto com as palmas. Existe uma recorrência de perfis rítmicos e melódicos e
um estilo vocal característico. O ritmo da pajelança se chama toque e a música e letra, doutrina.
Usado pelo curador quando recebe seu mestre de cura ou um caboclo curador, o maracá é o símbolo
maior da pajelança, que também é conhecida como linha de maracá.

O Fino da Bossa e Zimbo Trio: uma perspectiva histórica e suas repercussões na


moderna música popular brasileira (1965 - 1967)
Cristina Gomes Machado
Universidade do Estado de Santa Catarina

O presente trabalho tem a intenção de apresentar nosso projeto de pesquisa em andamento que irá
analisar a participação do grupo Zimbo Trio no programa O Fino da Bossa no período de 1965 a 1967, tendo
em vista a Moderna Música Popular Brasileira (MMBP).
Primeiramente, julgamos necessário conhecer o momento histórico e a reestruturação que a indústria
cultural brasileira passou na década de 60, pois nesse contexto a música passa a ser um veículo de discussão
ideológica. Serão abordadas questões como: a necessidade de reorganizar as bases de expressão e circulação
social da música popular, a simultaneidade de uma explosão criativa procurando não negar a tradição (samba
urbano dos anos 30), a dúvida de qual tradição a ser seguida, as contradições do engajamento político
perturbado pelas demandas da indústria cultural, a preocupação dos compositores e intelectuais com a
Jovem Guarda inserida no mercado musical e como os efeitos do novo circuito comercial musical da canção
engajada e nacionalista faziam parte desse cenário, levando a uma conquista de autonomia no campo
musical popular.
O pensamento intelectual de esquerda deste período foi marcado pelo debate sobre o papel do
nacional e do popular na cultura brasileira. As esquerdas acreditaram ser possível atingir uma transformação
radical pela via revolucionária através da conscientização das camadas populares e esta seria alcançada
tendo a cultura como seu principal instrumento. Caberia às artes e aos artistas politicamente “engajados” a
tarefa de levar o conhecimento crítico ao povo incentivando-o a lutar pela revolução. A idéia de “revolução
brasileira”, tendo como base a ação dos camponeses e das massas populares marcou o debate político e
estético entre os anos de 1964 e 1968.
Vale dizer que não pretendemos fazer um estudo detalhado, mas apenas apontar dados
imprescindíveis para um melhor entendimento do contexto.
Por outro lado, é fundamental entender o que é a Moderna Música Popular Brasileira, sua proposta e
implicações: derrubadora dos mitos tradicionais da música popular brasileira, sempre representados nas
canções louvando a beleza do morro e do sertão, da vida simples e plena do favelado e do sertanejo, numa
empostação retórica nacionalista. Como contraponto, tínhamos um público que se apresentava com um gosto
mais refinado e constituído em sua maior parte por universitários, intelectuais, jornalistas, familiarizado
simpósio de pesquisa em música 2006 285
com as questões políticas e sociais tais como a injustiça e a desigualdade, abrindo novas propostas e novos
horizontes na sua construção e historicidade
Também não podemos nos furtar de mencionar a idéia da “linha evolutiva” ou a busca de uma
evolução orgânica da MMPB como conceito na Música Popular Brasileira. Essa idéia expressa pelo compositor
Caetano Velloso em 1966, em entrevista à Revista Civilização Brasileira, remete à Bossa Nova como
referência moderna nessa "linha" na medida em que, rompendo com o tradicionalismo, esse movimento
legitima e revitaliza a MPB, dando continuidade à sua tradição (QUINTELA, 2004).
Por fim, cabe situar o programa O Fino da Bossa, lugar eleito como palco da consagração da MMPB
como um fenômeno “de massa”, atingindo um público eclético, amplo e variado, assim como seu impacto e
importância no cenário artístico musical e suas reverberações até os dias de hoje. Citando Marcos
Napolitano:
O Fino da Bossa abria caminho para a superação do impasse de conciliar comunicação e expressão,
qualidade e popularidade, mercado e engajamento, levando a uma solução momentânea as dicotomias
lançadas pela eclosão da Bossa Nova. (1998: 303)
É importante notar os pólos norteadores da conduta musical aplicada no repertório dos programas e
adotada pelo Trio, sendo este co-participante na elaboração dos números musicais da cantora Elis Regina e
outros artistas, compositores e intérpretes convidados.
Tal análise será feita a partir de entrevistas com os próprios músicos do Zimbo Trio e demais
participantes do programa, e da eleição de alguns temas musicais analisados sob o ponto de vista de arranjo
e concepção musical daquele momento, valendo-nos basicamente de três CDs: Elis Regina no Fino da Bossa –
Vol. I, II, III, coletânea de alguns programas (gravação ao vivo).

Referências
AMORIN, Edgard Ribeiro de. Televisão – a fase musical da TV Record. Revista D’art, n. 8, 2001.
CAMPOS, Augusto de. Informação e redundância na música popular de vanguarda. In: Balanço da bossa e outras bossas,
São Paulo: Perspectiva, 1978.
GALVÃO, Walnice N. MMPB: uma análise ideológica. Saco de gato: ensaios críticos. São Paulo, Duas Cidades, 1976.
LINS E BARROS, Nelson. Música popular e suas bossas. Movimento, n. 6, 1962.
_____ Bossa nova: colônia do jazz. Movimento, n. 11, 1963.
MELLO, Zuza Homem de. Programa do Zuza e O Fino da Música. São Paulo, 1981.
NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). São Paulo: Anna
Blume, FAPESP, 2001.
_____ O conceito de MPB nos anos 60. História: Questões e Debates, n. 31, 1999 (2000), p. 11-30.
_____ A canção engajada no Brasil: Entre a modernização capitalista e o autoritarismo militar (1960/ 1968). Revista
Ciência Hoje, 24/25, ago/1998.
_____ A arte Engajada e seus Públicos (1955/1968). Estudos Históricos, Rio de janeiro, n. 28, 2001.
_____ A idéia de linha evolutiva na música popular brasileira – 1962/1967. II SIMPÓSIO LATINO-AMERICANO DE
MUSICOLOGIA, Curitiba. Anais..., Curitiba: Fundação Cultural de Curitiba, 1998.
PAIANO, Enor. O berimbau e o som universal: lutas culturais e indústria fonográfica nos anos 60. Dissertação (Mestrado
em Comunicação Social) – Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, 1994.
286 SIMPEMUS3

Pequeno panorama utilização da viola e da rabeca no fandango dos litorais sul de


São Paulo e norte do Paraná
Daniella da Cunha Gramani
Universidade Federal do Paraná
No fandango atual, os instrumentos mais utilizados são os de corda (viola e rabeca), percussão (adufo
ou pandeiro e tamanco) e a voz. No entanto cada região guarda suas peculiaridades que vão desde a inserção
de outros instrumentos quanto a características de construção e execução diferenciadas.
A viola é instrumento presente em toda a região. É chamada de viola branca, viola cabocla ou viola
de fandango. Há variações quanto à forma de construção e ao número de cordas. A maioria das violas de
fandango possui uma meia corda, cuja cravelha está no corpo do instrumento. Esta meia corda é chamada de
turina, cantadeira ou piriquita e dá a referência de tonalidade do canto para o violeiro.

Número de Forma de Número Afinação Turina


construtores construção de cordas
- Cocho Fôrma - Pelas Intaivada Pelo -
três meio
Morretes 1 x 10 x
Paranaguá 4 x 8 x x x
Guaraqueçaba 4 x 8 x x x x
Cananéia 5 x x 7 x x
Iguape 4 x 9/10 x

Também são encontradas na região três afinações, chamadas “pelo meio”, “pelas três” e
“intaivada”, onde a diferenciação não está somente na afinação das cordas, mas também no posicionamento
dos dedos no braço da viola. Vale ressaltar que no fandango basicamente são utilizados os acordes de função
tônica e dominante e a tonalidade pode variar.
A rabeca é utilizada para acompanhar a melodia ou para realizar pequenos contracantos.
Normalmente só há uma rabeca tocando por vez. Assim como a viola, possui especificidades em cada região.
Outros instrumentos também utilizados no fandango da região: pandeiro, adufo, tamanco, surdo,
timba, ganzá, triângulo, zabumba, machete, bandolim, cavaquinho e violão.

Os dados aqui apresentados foram coletados em uma pesquisa realizada entre maio e julho de 2005 pela equipe do
Projeto Museu Vivo do Fandango, um projeto realizado pela Associação Caburé. A equipe do projeto era composta por
Alexandre Pimentel e Joana Correa (coordenação geral), Daniella Gramani (coordenação Paraná), Dauro Marcos do Prado
(coordenação São Paulo), Rogério Gulim e Osvaldo Rios (direção musical). Fotos: Felipe Varanda

Referências
BRITO, Maria de Lourdes da Silva; RANDO, José Augusto Gemba (org.) Fandango de mutirão. Curitiba: Gráfica Mileart,
2003.
CÕRREA, Joana; GRAMANI, Daniella; PIMENTEL, Alexandre (org). Museu vivo do fandango. Rio de Janeiro: Associação
Caburé, 2006.
DIEGUES, A. C. (org.) Enciclopédia Caiçara. Volume 5: Festas lendas e Mitos caiçaras. São Paulo: HUCITEC, NUPAUB,
CEC/USP, 2006.
| conferência |

Um objeto fugidio: voz e conhecimento musicológico

Elizabeth Travassos

Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO

Objeto de múltiplos discursos – de especialistas e de leigos –, a música ocupa um lugar sui


generis nas humanidades, onde se constituiu uma área ‘musicológica’ integrada por várias
disciplinas (História da Música, Análise Musical, Etnomusicologia, Educação Musical). Algumas
clivagens importantes separam as perspectivas consolidadas nessa área. No pólo ‘formalista’, os
estudiosos debruçam-se sobre a ‘música’ concebida como ‘objeto autônomo’ ou ‘relativamente
autônomo’ dos ‘contextos sociais e históricos’ em que se origina; no pólo ‘contextualista’,
sublinham-se os elos que ligam o objeto musical ao mundo social e às circunstâncias históricas.
Reproduz-se, à primeira vista, a dicotomia entre perspectivas internalista e externalista, que
se oferecem como alternativas na abordagem de outras produções simbólicas, como a literatura.
Contudo, elas não padeceriam do problema da articulação musicológica, identificado por Charles
Seeger – a saber, o problema das limitações intrínsecas à linguagem verbal quando seu referente
não pode ser ‘traduzido’ verbalmente.
Para ilustrar o estatuto paradoxal de objeto de difícil apreensão musicológica, em torno do
qual emergem, porém, múltiplos discursos, trago à discussão o caso da voz. Reivindicada por
especialistas no campo musical – cantores, professores de canto e de técnica vocal – e fora dele –
médicos, fonoaudiólogos, psicanalistas, entre outros –, a voz é, de modo exemplar, um fenômeno
de natureza ‘bio-psico-social’ que convoca, inevitavelmente, diversos saberes.

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