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ANO I+ Fasc, 2 + Abril-Junho 1991 ‘Trimestral Director Jorge de Figueiredo Dias Professor Catedritico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Conselho redactorial: Jorge de Figueiredo Dias, José de Faria Costa, José Manuel Meirim, José Narciso Cunha Rodrigues, José Sousa € Brito, Manuel Ant6nio Lopes Rocha, Manuel Cortes Rosa, Manuel Costa Andrade, Mario de Aratijo Torres. Secretério de redacsao José Manuel Meirim Colaboradores permanentes Américo Taipa de Carvalho, Anabela Miranda Rodrigues, Ant6nio Almeida Costa, Ant6nio Castanheira ‘Neves, Antonio Henriques Gaspar, Armando Leandro, Boaventura Sousa Santos, Concei¢do Valdégua, Damiao Cunha, Eliana Gersio, Fernanda Palma, Fernando Ferreira Ramos, Fernando Oliveira Sé4, Frederico Costa Pinto, Frederico Isasca, Gongalves da Costa, Joao Castro e Sousa, Jorge Ribeiro de Faria, José Anténio Barreiros, José Garcia Marques, José Joaquim Gomes Canotilho, José Manso-Preto, José Menéres Pimentel, José Saldanha Sanches, José Souto de Moura, Manuel Maia Goncalves, Manuel Simas ‘Santos, Maria Rosa Crucho de Almeida, Maria Joao Antunes, Maria Leonor Assungao, Marques Ferreira, Mario Paulo Tenreiro, Miguel Pedrosa Machado, Miranda Pereira, Nuno S4 Gomes, Odete Oliveira, Paulo Sousa Mendes, Raul Soares da Veiga, Robalo Cordeiro, Rodrigo Santiago, Rui Pereira, Teresa Alves Martins, Teresa Beleza, Teresa Serra. 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Perspectiva juridico-penal Manuel Anténio Lopes Rocha Subjectividade ¢ motivagdo no novo processo penal portugué’ Alvaro Laborinho Liicio Da alteracao dos factos objecto do Processo Penal Manuel Marques Ferreira JURISPRUDENCIA CRITICA, A determinagao da medida concreta da pena privativa de liberdade e a escolha da pena nialiacael . . Acérdao do Supremo Tribunal de Justiga de 21 de Margo de 1990 3.* Seccdo — Processo n° 40 639 Anotagao de Anabela Miranda Rodrigues Problema do concurso de circunstancias qualitativas do furto ... Acérdao do Supremo Tribunal de Justiga de 25 de Junho de 1986 3." Secgdo — Processo no 38 495 Anotagao de Fernanda Palma 169 175 205 221 243 259 CRONICA LEGISLATIVA, Legislacdo respeitante ao 1. trimestre de 1991 Mario de Aratjo Torres Norictas Cooperacao judicidria em matéria penal no ambito das comunidades europeias José Augusto Sacadura Garcia Marques O surgir da Revista Portuguesa de Cigncia Criminal . O direito criminal em debate 289 295 313 315 + PROF. DOUTOR EDUARDO CORREIA Na ordem natural das coisas, os desencontros sao, talvez, mais frequentes que as constantes salientadas pelas confluéncias entre os homens e os factos. Por isso, os desejos e as sais intengdes — ainda que solidamente estruturados em legitimas expectativas — dissolvem-se, nao poucas vezes, em coisa nenhuma, quando confrontados com a irreprimivel forga de um real verdadeiro cortante e doloroso. De nada valeram, pois, os propésitos firmes ¢ espiritualmente solidérios — co- mungados por todos os que lancaram e concretizaram o projecto da Revista Portuguesa de Ciéncia Criminal — de poderem contar, no primeiro numero, com algumas palavras de abertura, safdas ainda da mao do Mestre de toda uma grande «familia» de penalistas portugue- ses: o Prof. Doutor Eduardo Correia. E se aquele ntimero vinha a publico assim amputado — porque a dureza das limitagdes da vida vencera, de novo, a justa e simples sede dos homens em terem a palavra de um homem —, j4 0 que ora se abre traz a marca dos aconteceres sentidamente tristes. Carrega 0 fardo de tudo aquilo que déi em siléncio e que nao pode ser dito, porque quando dizivel j4 0 é, tao-s6, em rasto de meméria. Boa, por certo. Mas irre- missivelmente mem6ria. Morreu o Senhor Doutor Eduardo Correia. Seria insensato querer, aqui e agora, tentar dar, mesmo que s6 em esboceto, uma ideia da personalidade marcante de Eduardo Correia. Mais do que retratar ou desenhar as dreas onde as influéncias perscru- RPCC 2 (1991) 169 tantes do seu espirito e obra chegaram, € dever da Revista Portuguesa de Ciéncia Criminal salientar 0 quanto o nosso direito penal deve a Eduardo Correia. E se do Mestre se pode dizer que foi talvez um dos tiltimos exem- plos de «legislador» solitério — lembremo-nos da génese do actual Cédigo Penal —, ao arrepio de uma tendéncia que varre a Europa legiferante, nomeadamente a partir da 2.* Guerra Mundial, j4 isso, por si s6, seria mais do que suficiente para que o penalista fosse lembrado € estudado por todos os que se dedicam 4s coisas da ciéncia penal. No entanto, de tudo aquilo que nos legou Eduardo Correia — e tanto foi —, enquanto cultor empenhado do direito penal, ao lado do marco importante que a feitura de um Cédigo representa para a vida dos povos, seria erro imperdodvel nao fazer sobressair a profundidade do rasgo dogmiatico, 0 equilibrio das solugdes, a pertinéncia dos per- guntares e das perplexidades, a acutilancia da argumentagao. Tudo referéncias que se postulavam, nao como exercicio estiolante em honra de uma auto-suficiente conceptologia, mas sempre enquanto instru- mentarium e horizonte que permitisse aceder ao justo ou por ele ser-se surpreendido. E, porque homem verdadeiramente preocupado com a Justiga, sabia que esta, em direito penal, gira, inapelavelmente, em torno do homem-delinquente. Daf 0 constante empenhamento tedrico, politico e mesmo social com que, sem nunca esmorecer, lutou por uma dignifi- cagao juridico-institucional dessa personagem, tio complexa e tao amitide incompreendida, que o homem sofredor de uma pena repre- senta. Por ele passaram, também, os tragos fundamentais, mesmo os que se prendem com a vontade politica — era na altura Ministro da Justiga —, da reforma prisional que vigora no nosso sistema peni- tencidrio. Se a enunciagiio factual, quer dos momentos mais relevantes da vida ptiblica e cientifica, quer da propria produgio te6rica e doutrinal da personalidade de Eduardo Correia, nao constitui, como se apreende de imediato, o fim precipuo desta nota, é inegdvel que, no percurso da sua carreira de homem e de professor, se detectam sinais de uma 170 RPCC 2 (1991) construgao que poucos ou raros conseguem levar a cabo e por isso se nao pode calar. Ele foi construindo uma «escola» de direito penal. Nao uma «escola» no sentido tradicional de fechamento e defesa acérrima de um idedrio comum em que os «outros» aparecem, bastas vezes, mais na veste de in ZS¢W, 72, 1960, pp. 42-92, p. 43; STRATENWERTH, AT’, como na nota 90, § 9, n° 360, p. 122; HIRSCH, «Vor. § 32», in LK, n.° 92, p. 51, @ MAURACH/ZIPR, AT’, Tb 1, § 17 III, n° 32, p. 219. RPCC 3 (1991) 351 RAUL SOARES DA VEIGA Ultrapassada a acuidade da controvérsia entre as teorias da direc- ¢ao da vontade (Willensrichtung) e da declaragao da vontade (Willens- erkldrung)*, a doutrina passou a centrar-se na distingo entre os casos em que 0 invito laeso € elemento do tipo de crime e em que a veri- ficag&o da contrariedade ou nao do ofendido a conduta do agente teria uma natureza meramente factual — casos ditos de acordo (Einver- stdndnis) — e os casos em que 0 invito laeso nem implicitamente é elemento do tipo de crime e em que se requer que 0 consentimento seja valido, porque livre e esclarecido — casos ditos de consentimento (Einwilligung) ®. ® E hoje genericamente aceite que 0 consentimento, nao tendo que revestir os requisitos de uma declaragao de vontade negocial como pretendia a «teoria da decla- ragio da vontade» (Willenserkldrungstheorie) principalmente atribuida a ZITEL- MANN, tem de ultrapassar o dominio de uma mera vontade interior, ao contrério do que permitia conceber a «teoria da direc¢4o da vontade» (Willensrichtungstheorie de BINDING), desenvolvida destacadamente por MEZGER. Assim, hd hoje um largo con- senso na adopgao de uma posicao intemédia, seja pela reducdo da «teoria da decla- ragdo da vontade», e assim se fala numa eingeschrankte Willenserkldrungstheorie, seja pelo enfraquecimento da «teoria da direcgao da vontade», falando-se numa ab- geschwéchte Willensrichtungstheorie. O que se exige € que a vontade tenha sido exteriorizada (Willensdusserung), sendo indiferente que o tenha sido através de uma declaragao verbal ou escrita ou através de simples accées concludentes. Seguimos aqui, de perto, MAURACH/ZIPF, AT’, Tb 1, 17 III, n.° 62, p. 229, e ESER, Strafrecht I, como na nota 2, 8, p. 86, n.° 9. De todo 0 modo, a controvérsia entre a «teoria da declaragao da vontade» e a «teoria da direcgio da vontade» trouxe a nosso ver um grande contributo para a dogmiatica penal, ao salientar a independéncia da questo do efeito do desconheci- mento do consentimento, da adesio, seja 4 concepeao objectiva ou a pessoal da ilicitude, seja teoria objectiva ou a subjectiva da tentativa. Nao obstante as questées estarem inegavelmente conexionadas, a referida controvérsia permitiu que se esgri- misse mais com argumentos decorrentes do instituto do consentimento e menos com meras decorréncias Iégico-formais da adopgdo de certa teoria e nao doutra noutros Ambitos. ® Neste sentido v., por todos, GEERDS «Einwilligung und Einverstindnis des Verletzten im Strafrecht», in GA, 1954, pp. 262-269, resumindo a tese da sua disser- tagao Einwilligung und Einverstindnis des Verletzten, Kiel, 1953. A GEERDS ficou a dever-se essencialmente a fixagio da terminologia e 0 subli- nhar da natureza puramente factica do Einverstéindnis a0 contrario do Einwilligung, uma vez que a doutrina anterior distinguia j4 os casos de consentimento excludente da tipicidade e os de consentimento justificante. 352 RPCC 3 (1991) SOBRE 0 CONSENTIMENTO DESCONHECIDO Na sequéncia desta distingao, Geerds dividia também os efeitos do desconhecimento do consentimento: tratando-se de Einverstdndnis, porque o acordo do ofendido implicava a exclusao da tipicidade, o facto s6 seria punivel nos termos da tentativa impossivel ; j4 nos ca- sos de Einwilligung, considerando-se que 0 conhecimento do consen- timento tem de ser tido em conta para a exclusio da ilicitude, o facto deve ser punivel como crime consumado e nao como tentativa **. Os termos da discussao foram, porém, substancialmente alterados, com 0 inicio da década de 70, com um surto de importantes trabalhos que equiparam Einverstdndnis e Einwilligung afirmando, com base numa teoria do bem juridico de cariz individualista, que em todos os casos de consentimento relativo a agressdo de bens juridicos dis- poniveis a sua lesio deixa de ser possivel e portanto tais agressdes deixam de ser tfpicas *, HA que destacar ainda, fundamentalmente, a monografia de Arzt sobre vicios da vontade no consentimento*’ e os estudos centra- dos sobre a parte especial de Wimmer ® e mais recentemente de Schle- hofer®, que contribuiram para a queda da regra Einversténdnis — mero % GEERDS, como na nota 83, in GA, 1954, p. 267, e como na nota 81, in ZS1W, 72, 1960, p. 45. *S GEERDS, como na nota 83, in GA, 1954, pp. 264 ¢ 267, e como na nota 81, in ZStW, 72, 1960, p. 44. 8 MICHAEL MARX, «Zur Definition des Begriffs ‘Rechtsgut’», KéIn-Berlin- Bonn-Miinchen, Carl Heymanns Verlag, 1972; Kientzy, Der Mangel am Straftatbes- tand infolfe Einwilligung des Rechtsgutstrdgers, Tubingen, Paul Siebeck, 1970; ZIPF, Einwilligung und Risikoiibernahme im Strafrecht, Neuwied-Berlin, Luchterhand, 1970; SCHMIDHAUSER, Strafrecht, AT, Lehrbuch', 1970, 8/131 segs. Anteriormente, j4 HIRSCH, «Soziale Adiquanz und Unrechtslehre», in ZS*W, 74, 1962, pp. 78-135, maxime pp. 104-105, afirmara que o consentimento (Einwilligung) devia ser tomado como um problema de tipicidade, mas na perspectiva de uma delimitagao do tipo pela adequagao social. V. como na nota 10, p. 102, quanto as ofensas corporais, e p. 131, quanto ao dano. " Willensméngel bei der Einwilligung, Frankfurt em Main, Atheniium Verlag, 1970, maxime pp. 24 € segs. ®§ Die Bedeutung des zustimmenden Willen: 1980, pp. 1-7. * Einwilligung und Einversténdnis, Ké\n-Berlin-Bonn, Carl Heymanns Verlag, 1985, v. p. 83. Heidelberg, Esprint-Verlag, PCC 3 (1991) 353 RAUL SOARES DA VEIGA facto — Einwilligung — declaragio valida, hoje geralmente contes- tada Existe assim actualmente uma posicao doutrinaria, que ja difi- cilmente se pode considerar minoritdria®!, que obtém quanto ao consentimento desconhecido uma solugdo unitéria — a punigao por tentativa impossivel —, j4 que em todos os casos em que € eficaz, o consentimento (Einverstdndnis ou Einwilligung), excluira sempre a ti- picidade. Paralelamente, a questdo da relevancia do desconhecimento do consentimento veio sendo discutida no émbito geral da problematica dos elementos subjectivos das causas de justificagado °, em termos que poderiamos referir como afloramentos das discuss6es entre a teoria da ilicitude objectiva®’ e a teoria do ilicito pessoal’, ou entre a teoria objectiva”* e a teoria subjectiva da tentativa °°, Analogamente a discus- sao entre os defensores da ilicitude objectiva e os da ilicitude pessoal, °* ‘Neste sentido v. v. g., MAURACH/ZIPR, AT’, Tb 1, 17 III, n.* 30.€ 31, pp. 218 ¢ 219, © STRATENWERTH, Strafrecht, AT I, 3. Aufl., Colénia, Berlim, Bona, Munique, Carl Heymanns, 1981, § 9, n.° 369, p. 124. *' Contando, designadamente, com as adesdes, além dos autores jé citados, de: KUHNE, «Die strafrechtliche Relevanz eines auf Fehlvorstellungen gegriindeten Rechtsgutsverzichts», in JZ, 34, 1979, n° 8, pp. 241-246; RUDOLPHI, «Arzt, Gunther: Willensmiingel bei der Einwilligung...», in ZSiW, 86, 1974, Literaturbericht, pp. 82- -89; ROXIN, «§ 13. Die Einwilligung», in Manuscrito do Tratado (Strafrecht AT), ainda incompleto (para publicagao); WEIGEND, «Uber die Begriindung der Straflosig. keit bei Einwilligung des Betroffenen», in ZS¢W, 98, 1986, pp. 44-72. ® Em extensio sobre esta questio, v. HERIBERT WAIDER, Die Bedeutung der Lehre von den subjektiven Rechifertigungselements..., Berlim, Walter de Gruyter, 1970. ° SPENDEL, por tiltimo em «Notwehr und ‘Verteidigungswille’...», como na nota 9, p. 208, V. também ROHRER, «Uber die Nichtexistenz subjektiver Rechtferti- gungselemente», in JA, 1986, Heft 7, pp. 363-369 e a contundente critica que HERZ BERG Ihe dirige, «Subjektive Rechtfertigungselemente?», in JA, 1986, Heft 11, pp. 541-543. * V. RUDOLPHI, «Inhalt und Funktion des Handlungsunwertes im Rahmen der personalem Unrechtslehre», in FS fiir Maurach, Karlsruhe, C.F. Miiller, 1972, pp. 51-73, maxime, p. 53. °’ SPENDEL, como na nota 9. ** V. FRISCH, «Grund-und Grenzproblem des sog. subjektiven Rechtfertigung- selements», in FS fiir Lackner, Berlin-New York, Walter de Gruyter, 1987, pp. 114- -148, maxime p. 129, e RUDOLPHI, como na nota 2. 354 RPCC 3 (1991) SOBRE 0 CONSENTIMENTO DESCONHECIDO os «objectivistas» afirmam que, verificados os pressupostos objectivos de uma causa de justificagdo, o facto torna-se licito, enquanto os «sub- Jectivistas» afirmam que, tal como nos tipos incriminadores, os tipos justificadores s6 esto preenchidos se se verificarem, além dos seus elementos objectivos, os seus elementos subjectivos. Uma concepgiio objectivista leva 4 impunidade dos casos de consentimento desconhe- cido, enquanto uma posigio subjectivista, no seu rigor, leva a punig&o por crime consumado *”, Colocada a questio em termos de «teorias da tentativa», enquanto para os objectivistas o mero desvalor de accZio nao basta para funda- mentar 0 ilicito, e portanto verificado objectivamente 0 consentimento © facto terd de considerar-se justificado, ainda que 0 agente nao o conhecesse, para os subjectivistas, se a situagdo objectiva se verifica, mas 0 agente nao agiu com base nela porque a desconhecia, estar- -se-A face a uma situagio idéntica a da tentativa, em que nao obstante poder nao haver desvalor de resultado, a mera existéncia de desvalor de acco ja justifica a punigdo %. A discussdo sobre 0 regime juridico dos casos de consentimento desconhecido passa, assim, actualmente, pela propria discussao do lu- gar do consentimento na teoria da infracgdo como delimitagao da tipi- cidade ou como causa de justificagio. A colocagao do consentimento ao nivel da tipicidade leva & solu- ¢ao da tentativa impossivel. A inclusao do consentimento nas causas de justificagao coloca a discussio ao nivel da falta dos elementos subjectivos das causas de Justificagdo e impde, como questo prejudicial, que se obtenham con- clus6es, primeiro relativamente 4 sua prépria existéncia quanto a todas ou quanto a algumas, segundo quanto ao contetido exacto desses ele- mentos subjectivos, e igualmente quanto 4 generalidade ou quanto a certa causa de justificagéo. Que tenhamos conhecimento, nio existe, porém, qualquer monografia relativamente ao objecto do nosso estudo — 0 regime juridico dos casos de consentimento desconhecido. ® Assim, com s6lida fundamentagao, v. GALLAS, «Zur Struktur des strafrechtli- chen Unrechtsbegriff, in FS fiir Bokelmann, como na nota 12, 1v, pp. 172-174. °% Assim v. g., JESCHECK, Tratado I (Lehrbuck'), como na nota 10, § 34, v, p. 523. RPCC 3 (1991) 355 RAUL SOARES DA VEIGA Dentro deste pano de fundo, h4 que salientar, contudo, duas con- cepg6es auténomas: ) Por um lado, a de Jakobs, que distingue trés modalidades de relevancia da vontade real do ofendido conforme a acgéo do agente: acordo (Einversténdnis), consentimento justificante (rechtfertigend Einwilligung) e consentimento excludente da tipicidade (tatbestand- sausschliessende Einwilligung). Nao havendo especialidades de monta na fundamentacdo dos casos de acordo, para Jakobs, enquanto 0 con- sentimento excludente da tipicidade corresponde as ituagdes em «que © conflito social depende [da existéncia] de uma certa forma de telagao entre um bem ¢ 0 seu titular» ® e se ela falta ndo poderé haver preen- chimento do tipo, os casos de consentimento justificante decorrem, por seu turno, do valor que a ordem juridica atribui a rentincia a interesses em que se consubstancia a declaragao de consentimento: se um valor Superior ao interesse publico da protecg’o de bens alheios relativa- mente ao agente, haverd justificagao; se um valor inferior, nao a haver4; ») A concepgao de Hruschka ™, por outro lado, parte da contesta- ¢ao dos préprios termos da discussao entre consentimento justificante e excludente do tipo. Distinguindo dois niveis linguisticos das nor- mas '*!, um nivel de linguagem priméria das normas (Ebene der pri- mdrsprachlichen Normen) e um nivel de meta-linguagem das normas (Ebene der metasprachlichen Normen), ou, dito de outra forma, o nivel das normas imperativas e 0 nivel das normas sobre a aplicagao de nor- mas (v. g. permissivas), 0 autor considera que as questées de conflitos de valoragao s6 ganham sentido quando colocadas no segundo nivel normativo, sendo equivalente, ao nivel da linguagem primaria, que se considere 0 consentimento uma causa de justificagio ou um elemento do tipo (ou, 0 que é 0 mesmo, o consentimento uma excep¢ao a incri- minacao ou 0 nao consentimento um elemento da incriminacao). ® JAKOBS, como na nota 80, p. 358, 14. Abschn, 1: «dass der soziale Konflikt von einer bestimmt gearteten Beziehung zwischen einem Gut und seinem Triger abhiingt.» “®° Strafrecht nach logisch-analytischer Methode, como na nota 2, pp. 370 e segs. Como na nota 2, pp. 364-366. 356 RPCC 3 (1991) SOBRE O CONSENTIMENTO DESCONHECIDO Assim, Hruschka distingue: em primeiro lugar hé que determinar se O consentimento é ou nio eficaz e sé o sendo ele poderd ser impu- tdvel ao ofendido; em segundo lugar, sendo 0 consentimento imputdvel ao ofendido e tendo entdo o valor de causa de justificagao ao nivel de linguagem primaria das normas (tal como v. g. na legitima defesa), ha que determinar se nfo existe algum facto precedente do agente que torne o facto consentido numa actio illicita in causa e, portanto, 0 con- sentimento inimputdvel ao consentidor (tal como v. g. na conduta do agente provocador na legitima defesa); em terceiro lugar, hé que pon- derar, j4 ao nivel da meta-linguagem nas normas, se nada haveré que torne ainda eficaz 0 consentimento, entao de novo imputavel ao con- sentidor, como, por exemplo, uma situagdo objectiva de consentimento Ppresumido (do mesmo modo que uma situagao objectiva de estado de necessidade defensivo, nos casos de legitima defesa do agente provo- cador). Apesar da coexisténcia de toda esta multiplicidade de concep¢des, atendendo a hegemonia da teoria do ilicito pessoal, é seguro afirmar que a posicéo dominante na Alemanha Federal € a da punigdo dos casos de consentimento desconhecido. Por outro lado, tendo em vista a unidade do regime da tentativa idénea e inidénea (v. § 23, Abs 3 StGB), que leva a coincidéncia de solugdes entre os defensores de que 0 consentimento, quando eficaz, é causa de exclusio da tipicidade e grande parte dos defensores de que é causa de exclusao da ilicitude, a solugio preponderante é a da punicdo dos casos de conhecimento desconhecido com a pena da tentativa, se bem que nao se possa consi- derar encerrada a polémica entre os defensores da punigao da tentativa e os da punigao por crime consumado. 2.4. Direito austriaco Nao contendo uma norma geral sobre 0 consentimento do ofendido, © StGB (tal como o StGB) prevé 0 consentimento do ofendido apenas como causa de justificagdo especifica dos crimes contra a integridade fisica ', referindo, além da justificagao das ofensas corporais (Kérper- 1 § 90, (1) Eine Kérperverletzung oder Geftihrdung der kérperlichen Sicher- heit ist nicht rechtswidrig, wenn der Verletzte oder Gefahrdete in sie einwilligt und die Verletzung oder Gefthrdung als solche nicht gegen die guten Sitten verstisst. RPCC 3 (1991) 357 RAUL SOARES DA VEIGA verletzung), a justificagao da colocagao em perigo da seguranca corpo- tal (Gefiéihrdung der kérperlichen Sicherheit). Nao obstante, 0 consentimento € reconhecido como um instituto juridico de ambito geral !", Sendo consensual a exigéncia de conhecimento do consentimento para que o facto consentido seja Iicito ", j4 no hd unanimidade para as consequéncias juridicas da sua falta, Assim Zipf, que, em consequéncia de considerar que a existéncia de consentimento implica a nao verificagao dos tipos que tutelam bens juridicos disponiveis e de, Por isso, s6 poder defender que na falta do seu conhecimento haja uma situagao idéntica a da tentativa impossivel (que seria caracterizada por s6 haver desvalor de ac¢ao), alcanga indu- bitavelmente uma solucao de punibilidade face ao direito alemao (com base no § 23, Abs 3, StGB, que considera toda a tentativa impossivel punivel), admite que 0 mesmo raciocinio conduza a uma solugao de impunidade face ao § 15, Abs 3, 6StGB, que considera impune a ten- ° Neste sentido, ziPF, «Die Bedeutung und Behandlung der Einwilligung im Strafrecht», in OJZ, 32, 1977, Heft 14/15, pp. 379 e segs.; NOWAKOWSKI, «Nachbe. merkungen zu § 3: Zu einigen anderen Rechtfertigungsgriinden», in WK, 20, Liefe- rung, §§ 3-5, 1984; MYERHOFER/RIEDER Das dsterreichische Strafrecht, Erster Teil, StGB, 2, Auflage, Wien, Staatsdruckerei, 1981, p. 359, n° 1. Para z1Pr, porém, 0 consentimento nao é uma causa de justificagdo, mas uma causa de exclusio do préprio tipo. Para além da obra citada, v., do mesmo autor, detalhadamente, Einwilligung und Risikoiibernahme, 1970, p. 28, j4 colocando @ estudo do consentimento apenas na tipicidade, MAURACH/ZIPF, AT’, Tb 1, como na nota 11, § 17, m1, pp. 217 seg No sentido da doutrina maioritéria_ pronunci: se NOWAKOWSKI, como na nota 10, p. 78, n.° 36, considerando o consentimento como causa de justificagio, Por todos, Z1PF, como na nota 103, p. 384, que considera ser ainda Assim, necessdrio que 0 agente aja em consondncia (in Ubereinstimmung) com 0 conheci mento do consentimento. NOWAKOWSKI, «Zur subjektiven Tatseite der Rechtferti- gungsgriinde», in OJZ, 32, 1977, Heft 21, p. 575, u, considera que quem conhece os Pressupostos objectivos de uma causa de j ficagdo necessariamente os leva em conta na sua acgio. . Esta posi¢ao da doutrina deriva fundamentalmente da recepgio na Austria da teoria do ilicito pessoal, a0 contrério do que sucedera até aos anos 50. Assim, TRIFFTERER, «Zur subjektiven Seite der Tatbestandsausschliessungs — und Rechtfer. tigungsgriinde», in FS fiir Oehler, Col6nia, Berlim, Bona, Munique, Carl Heymanns Verlag, 1985, pp. 209-225, maxime p. 211. 358 RPCC 3 (1991) SOBRE 0 CONSENTIMENTO DESCONHECIDO. tativa que «em nenhumas circunstancias fosse possivel» (unter keinen Umstdnden méglich war). Ja Nowakowski '** considera que, sendo os pressupostos objecti- vos de uma causa de justificago desconhecidos do agente, nao se Ihe podem imputar os efeitos benéficos da sua acgiio, pelo que, subsistindo a imputacao da leso de um bem juridico, o agente deve ser punido por crime consumado. Leukauf/Steininger defendem ainda uma outra posigao '”, a de que se, por um lado, o facto praticado na ignordncia do consentimento do ofendido nao pode deixar de ser considerado um facto ilicito, na medida em que nao se verificam todos os pressupostos para a justificagao, por outro lado afirmam que o facto tem de ser deixado impune, pois nao ha nenhuma norma que preveja, em termos estritos, a punibilidade, con- forme é exigéncia do principio da legalidade. Da conjugagio das duas afirmagées retiram que, sendo o facto ito, apesar de nao punivel, pode contra ele haver legitima defesa. Em face das posigdes apresentadas niio nos parece possivel afirmar que haja uma posic3o preponderante na doutrina austriaca quanto a punibilidade do facto praticado sem conhecimento do consentimento do ofendido. 2.5. Direito suigo Entre as causas de justificagao previstas na lei penal suiga — ar- tigos 32 a 34 do SchwStGB (actes licites ou rechtmdssige handlun- gen) — nio est4 previsto o consentimento do ofendido. A doutrina ja de ha muito vem, porém, considerando o consenti- mento do ofendido como causa de justificagio supra-legal ues § 105 71pR, «Die Bedeutung...», como na nota 103, p. 384, V. '66 «Zur subjektiven...», como na nota 104, p. 577. 107 «Ubersicht zu § 3», in Kommentar zum StGB, 2, Autlage, Eisenstadt, Pruge Verlag, 1977, n° 9, p. 78. 105 Neste sentido: HAEFLIGER, «Uber die Einwilligung des Verletzten im Straf- recht», in Schweizerische Zeitschrift fiir Strafrecht [Revue Pénale Suisse], 67, 1952, pp. 92 € segs.; NOLL, Ubergesetzliche Rechifertigungsgriinde, insbesondere die Ein- willigung des Verletzten, Basel, 1955, Erster Teil, 1, 5.2., p. 14, €, identicamente, Die Rechifertigungsgruende des schweizerischen Strajgesetzbuches, Kriminalistisches Institut des Kantons Zuerich, Wintersemester 1963-1964, p. 16; PAUL LoGoz, Com- RPCC 3 (1991) ase RAUL SOARES DA VEIGA Curiosamente, quer apresentando o conhecimento do consenti- mento como dispensdvel ', quer como pressuposto da exclusdo da ilicitude ""°, parece haver coincidéncia quanto ao regime juridico aplicdvel: punigo nos termos da tentativa impossivel |", Nao havendo limitagées decorrentes do texto legal, € no entanto defensvel qualquer das posigées tedricas sobre a punibilidade do facto praticado sem conhecimento do consentimento, com ressalva apenas para a tese da impunidade, que, por razées de coeréncia normativa, dificilmente se harmonizaria com o artigo 23 do SchwStGB, que, tal como 0 § 23, Abs 3, do StGB, considera a tentativa impossivel sempre punivel, apenas conferindo ao juiz a faculdade de atenuar livremente a pena (nos termos do artigo 66 SchwStGB) ou mesmo de isentar de pena [artigo 23, alinea 2)], nos casos de actuacao «por falta de com- Preensdo» («par défaut d’ intelligence», «aus Unverstand»). 2.6. Direito francés A doutrina francesa reconhece muito limitadamente a eficdcia do consentimento, em homenagem a natureza publica do direito penal e a mentaire du Code Pénal Suisse, Delachaux & Niestlé, Editeurs, Neuchitel-Paris, s.d., p. 167, n.° 5, alinea c); NOLL/TRECHSEL, Schweizerisches Strafrecht, AT, 1, Ziirich, Schultess Polygraphischer Verlag, 1986, § 26/8, pp. 134 segs. '® Diz HAEFLIGER, como na nota 103, Pp. 93-94: «Es geniigt, dass die Einwilli- gung des Verletzten objektiv vorhanden ist. Ob der Tater davon Kenntnis hat oder nicht ist am sich gleichgiltig. Der Tater, der nicht um die Einwilligung weiss, ist aber allenfalls wegen untauglichen Versuches zu bestrafen,» "0 Afirmam, por seu turno, NOLL/TRECHSEL, como na nota 108, p. 136: «Damit die Einwilligung die Handlung rechtfertigt, muss sie bestimmte Voraussetzungen er. fullen: [...] ). Als subjektives Rechtfertigungselement ist die Kenntnis des Taters von der Einwilligung erforderlich; fehlt sie, so liegt untauglicher Versuch vor.» NOLL, Ubergesetzliche Rechifertigungsgriinde, como na nota 103, Zweiter Teil, v, 6, p. 134, afirma dever aplicar-se a pena do crime consumado, apesar do fun- damento que aduz para a punibilidade mais se coadunar com a punigdo por tentativa impossivel: «Die dem Tater nicht bekannte Einwilligung des Verletzten vermag den Handlunsgsunwert der Tat nicht aufzuheben.» Contudo, mais tarde, considerou que a questdo da puni¢do por tentativa ou por crime consumado € ainda uma questdo em aberto «Tatbestand und Rechtswidrigkeit: Die Wertabwigung als Prinzip der Rechtfertigung», in ZS¢W, 77, 1965, Pp. 1-36, maxime p. 18. 360 RPCC 3 (1991) SOBRE 0 CONSENTIMENTO DESCONHECIDO prevaléncia nesse ambito do interesse geral sobre o interesse in- dividual. Para um sector da doutrina, salvo os casos de «acordo», em que © préprio tipo de crime pressupée a contrariedade 4 vontade da vitima, © consentimento nao tem qualquer eficdcia dirimente da res- ponsabilidade penal '”. Para outros autores, porém, mesmo ao abrigo da regra da légalité des excuses (artigo 65 do CP francés) sio de admitir casos de relevancia justificante do consentimento '. Alguns autores defendem ainda, em certas condigées, a eficdcia justificante do peensearimento, mesmo fora dos casos expressamente previstos na lei", ? Assim: R. TAHON, «Le consentement de la victime», in Revue de Droit Pénal et de Criminologie, 32@me anné (1951-1952), n. 1, Outubro de 1951, pp. 323 e segs., maxime pp. 327-328; MERLE/VITU, Traité de Droit Criminel, Paris, Cujas, 1967, pp. 332-333; BOUZAT/PINATEL, Traité de Droit Pénal et de Criminologie, 2. ed., Paris, Dalloz, 1970, pp. 374-376, n.% 302 e 303; JEAN PIERRE DELMAS SAINT-HI- LAIRE, «Faites justificatifs», in Juris-Classeur Pénal, 2, 1978, pp. 30 e segs., maxime n.* 196, 206 € 208; LAINGUI/LEBIGRE, Histoire du Droit Pénal, 1, Le Droit Pénal, Paris, Cujas, s. d., p. 110. Assim também PEDRAZZI, Consenso dell’ Avente Diritto, 1961, nota 1, referente 4 doutrina francesa, cit. por RIZ, / consenso, como na nota 124, p. 13, nota 32. Em doutrina mais antiga propugnava-se nao s6 a puni¢o do agente do crime, mas ainda a da propria vitima que consentira — assim, RENE FLEURY, Du Consentement de la Victime dans les Infractions, Lille, Camille Robbe ed., 1911, p. 116; JEAN PRADEL, Droit Pénal, 1, 5." ed., Paris, Cujas, 1986, p. 569, n.° 485, € p. 573, n° 490, 13 Assim STEFANI/LEVASSEUR/BOULOC, Droit Pénal Général, 11." ed., Paris, Dalloz, 1980, pp. 329-331, n.* 357 a 360. A estas posigdes se refere JESCHECK, Tratado, como na nota 10, p. 524, generalizando como se fosse a posigao carac- terfstica da doutrina francesa, sendo que parece ser uma posigao minoritéria. 4 Neste sentido, ANTOUNH FAHMY ABDOU, Le Consentement de la Victime, Paris, 1971, p. 557, n.° 386, quando o consentimento seja relative a um «direito privado» ou a um «direito a liberdade», FRANCOISE ALT-MAES, «L’inneficacité du consentement de la victime dans les infractions contre les biens», in Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal Comparé, n.° 1, Janeiro-Margo de 1984, p. 17, quando © consentimento nos crimes contra o patriménio se consubstancie na transmissao da posse ou no abandono de um direito real de fruigdo, ou seja, numa «oferta unilateral», cujos efeitos dependem do seu conhecimento ¢ aceitagao pelo agente. SEYYED MOH- SEN NASR, L’ Influence du Consentement de la Victime sur la Responsabilité Pénale, Lyon, 1933, p. 140, defendera jé, mas apenas de jure constituendo, a plena eficécia justificante do consentimento. RPCC 3 (1991) 361 RAUL SOARES DA VEIGA E justamente nestes tiltimos autores que encontramos alguma refe- réncia ao conhecimento do consentimento. Abdou '5 considera irrele- vante a ignorancia do consentimento, por se tratar de um crime im- Possfvel, que, segundo ele nao € punivel face a lei em vigor !'®, O mesmo autor sugere, porém, a incriminagdo do crime impossivel, que, segundo ele, pode revelar a perigosidade criminal do seu agente '17, E, concretizando, afirma que a pratica do crime na ignorancia do con- sentimento do ofendido «pode ter um grande significado quanto a apreciagdo do cardcter perigoso do agente» ''*, De acordo com este raciocinio, se o crime impossivel for punivel face A lei francesa "9, entao também 0 facto praticado sem conhecimento do consentimento 0 devera ser. A discussao 6, assim, transferida para outra sede. Para Alt-Maes '” 0 consentimento («oferta unilateral») sera total- mente ineficaz se o agente o ignora e sé-lo-4 ainda se, apesar de conhecida, a oferta que o consentimento encerra nao for aceite pelo agente |', Face as teses (minoritarias) que consideram que 0 consentimento do ofendido pode afastar a punigdo do agente, parece, pois, haver a Preocupagio de ressalvar a punibilidade dos casos de consentimento desconhecido do agente, seja pela sua aproximagio ao problema da punibilidade do crime impossivel, seja pela defesa da ineficdcia do consentimento nessas circunstancias. "5 Le Consentement, como na nota 114, p. 571. "© ABDOU, como na nota 114, loc. cit. "7 Como na nota 114. 48 Como na nota 114, ‘No sentido da punibilidade da tentativa impossivel face 4 ordem juridica francesa, v. A, VARINARD, «Tentative», in Juris-Classeur Pénal, 11, 1979, Pp. 14 e segs., maxime no 114 "29 «L’inefficacité», como na nota 144, pp. 16 ¢ 17. "! Ap. 16 diz ALT-MAES: «La validité du consentement dépend de la connais- sance que l’agent pénal en a, l'efficacité du consentiment est soumise a I’acceptation par cet agent de l’offre faite.» No mesmo local, mas na nota 38, a autora dé conta de que a sua posigio se opée a da maioria da doutrina, que considera que a eficécia do consentimento nao depende nem do seu conhecimento nem da sua aceitagao pelo agente. 362 RPCC 3 (1991) SOBRE 0 CONSENTIMENTO DESCONHECIDO Tais casos sero, porém, sempre punfveis para a maioria da dou- trina, mas por esta considerar 0 consentimento do ofendido irrelevante em direito penal. 2.7. Direito italiano A posigao amplamente dominante em Italia tem sido, a partir da vigéncia do Cédigo Rocco ', a de que o consentimento do ofendido tem eficdcia justificante independentemente do seu conhecimento pelo agente, essencialmente com base no argumento de que, por forga do artigo 59° do CP italiano, as scriminanti se encontram configuradas de forma exclusivamente objectiva, e especialmente 0 consentimento dell’ avente diritto 3, "2 V. artigo 50.° do Cédigo Penal italiano. Anteriormente, sob 0 dominio da es- cola positiva, a opinido dominante era a inversa. Sendo 0 consentimento ignorado pelo agente, considerava-se que a sua accao revelava tanta perigosidade e tanta anti- Socialidade como tendo inexistido o consentimento — assim FERRI, Princfpios de Direito Criminal. O Criminoso e 0 Crime, trad. do italiano por LUIZ LEMOS d’OLI- VEIRA, com prefacio de BELEZA DOS SANTOS), Coimbra, Arménio Amado, 1931, pp. 393, nota 2, e 446. Fora da escola positiva também GRISPIGNI, I! Consenso dell’ Offeso, Roma, 1924, considerando 0 consentimento como um negécio juridico de direito privado de natureza recepticia (além de unilateral, no formal, gratuito e revogdvel — v. pp. 102 e segs.), teria de, coerentemente, fazer depender a eficdcia do consentimento do seu conhecimento ou ao menos da sua cognoscibilidade pelo agente, mas nega-o expressamente, dizendo: «o bem tomnou-se pelo consentimento objecto impossivel de qualquer ofensa juridica» (p. 284). Para uma evolugio da dogmitica penal italiana, em especial quanto A questo do consentimento do ofendido, desde a escola classica ¢ 0 Cédigo de 1889, passando pela escola positiva e 0 projecto Ferri, até & escola técnico-juridica e ao Cédigo Rocco, v. HANS WALTER POLL, Die Einwilligung des Verletzten in der italienischen Strafrechtslehre und Gesetzgebung, Col6nia, 1937, maxime pp. 64-93. "3 Assim j4 BATTAGLINI, Teoria da Infraccdo Criminal, (trad. do italiano por AUGUSTO VICTOR COELHO, com prefacio de CAVALEIRO DE FERREIRA), Coimbra, Coimbra Editora, 1961, p. 275. Actualmente, pronunciam-se neste sentido: BOSCARELLI, Compendio di Diritto Penale, Parte Generale, 5." ed., Milano, Giuffré, 1985, na p. 61, a0 considerar que 0 consentimento é eficaz mesmo se nao tiver sido manifestado (teoria da direcgio da vontade); FIANDACA/MUSCO, Diritto Penale, Parte Generale, Bologna, Zanichelli, RPCC 3 (1991) 363 RAUL SOARES DA VEIGA 2.8. Direito inglés O direito inglés é imbufdo, como a generalidade dos sistemas jurf- dicos anglo-americanos, por uma relevancia significativa do valor da autonomia individual, 0 que implica a admissdo, como principio, de que © consentimento exclui a ilicitude '*, A discusséo é colocada ao nivel dos pressupostos concretos do consentimento eficaz 25, com especial destaque para o consentimento de menores '*° e de doentes 1985, p. 119, que citam na nota 2 SPAGNOLO, Gli elementi soggetivi nella struttura delle scriminanti, Napoli, 1979, p. 99, de acordo com o qual se deve considerar necessdrio para a eficdcia justificante das scriminanti previstas nos artigos 50.° a 54.° © conhecimento da situagao justificante, excepto para o consentimento (dell avente diritto), maxime p. 124, socorrendo-se ai da autoridade de BETTIOL e de PAGLIARI; MANZINI, Tratado di Diritto Penale Italiano, 5.‘ ed., vol. 1, (a cura del Prof. GIAN DOMENICO PISAPIA), Torino, UTET, 1981, p. 631; BRICOLA, Codice Penale, Parte Generale, Torino, UTET, 1984, n, cap. xm (a cura di ALESSANDRO GAMBERINI), Pp. 491; Riz, HI Consenso dell’ Avente Diritto, Padova, CEDAM, 1979, pp. 134-139, méxime pp. 137-138, nas quais o autor estriba a sua posi¢do ndo apenas na natureza objectiva das causas de justificagao (cause di esclusione dell’ antigiuridicita), mas ainda na sua subscrigao da tese de que o consentimento do ofendido tem o valor de rentincia & tutela do bem juridico, que considera ser incompativel com a afirmacao de que possa haver uma lesio do bem juridico disponivel apés 0 consentimento v. p. 138, e mais detalhadamente o capitulo e os §§ 9. e 10.° do capitulo m da mesma obra). RIZ, idem, p. 137, cita GIUSEPPE GUARNERI, Diritto Penale e Influenze Civilistiche, Milano, ed. Bocca, 1947, p. 261, para quem, apesar de nem todas as scriminanti serem objectivas, 0 «consenso» teria um regime puramente objectivo. '* V., por todos, GLANVILLE WILLIAMS, Textbook of Criminal Law, 2.“ ed,, Lon- don, Stevens, 1983, pp. 549 e segs. Assim também Riz, como na nota 124, p. 14, e cf. 0s autores ai citados, referindo-se ao direito anglo-americano. SV. GLANVILLE WILLIAMS, como na nota 125, pp. 550 e segs. Assim também JESCHECK, como na nota 10, p. 524, e cf. os autores af citados, em referéncia ao sistema inglés e ao dos EUA. 2 V. v. g. PATRICIA KEITH-SPIEGEL, «Children and Consent to Participate in re- search», in MELTON/KOOCHER/SAKS, Children’s Competence to Consent, Nova lor- que, Londres, Plenum Press, 1983, capitulo 10, pp. 179 segs. V. g., a pp. 187 e segs. discute-se a validade do chamado vicarious consent, em especial do consentimento dado pelos progenitores (Proxi-consent), em vez dos menores, para a participagdo destes em investigagdes cientificas, apés a p. 186 se terem enunciado as condigdes regra para a validade do consentimento nessas investigagdes. 364 RPCC 3 (1991) —.... SOBRE 0 CONSENTIMENTO DESCONHECIDO intemnados "’, e ao nivel da delimitacao dos inalienable rights, insus- ceptiveis de serem ofendidos licitamente '*. De particular interesse é a consagragdo no recente projecto de Criminal Code para Inglaterra e Gales, concluido pela Law Com- mission (n.° 143) em 15 de Novembro de 1984”, de diversas dispo- sigdes relativas ao consentimento do ofendido™. Relativamente a Clause 88 '*! — que substitui a section 5 (2) (a) do Criminal Damage Act 1971, onde se previa apenas a crenga no consentimento e no con- sentimento presumido como excludente da comissao de uma Offence of Damage to Property ** — esclarece-se nas Preliminary Provisions: «This Clause [...] applies where the actor knows that he has the ow- ner’s consent as well as where he mistakenly believes that the owner has consented or would consent if he knew of the circumstan- ces. The clause does not apply where the owner in fact consents (or would consent) if the actor is unaware that this is so *°.» Quer dizer "27 O mesmo sucede nos EUA. V. v. g. a minuciosa andlise de MILLS/GUTHEIL, «Legal approaches to treating the treatment-refusing patient», in DOUDERA/SWAZEY, Refusing Treatment in Mental Health Institutions — Values in Conflict, Ann Arbor, Michigan-Washington D. C., Alpha Press, 1982, pp. 103 segs. A p. 104 propde-se os requisitos para o tratamento excepcional de doentes que hajam recusado ser tratados. "8 Assim RIZ, como na nota 14, loc. cit. "2 The Law Comission, Criminal Law, Codification of the Criminal Law, a report to the Law Comission, ordered by the House of Commons to be printed 28 March 1985, London, her Majesty’s Stationery Office, reprinted 1986, pp. 167 € segs. — craft Criminal Code Bill. "8° V, sections 77 (2); 88 (a), (), pp. 206-209; v. Schedules, Schedule 1, Illustrations, 77 (II); 80 (), (I), AID, (IV), (V); 88 (D, (ID, pp. 237-238; e cf. chapter 4, Preliminary Provisions, clause 77 (15.48 e 15.49), p. 155, clause 80 (15.52), p. 156, clause 88 (16.13), p. 159. '! A clause 88 (a) dispde: «A person does not commit an offence to which this section applies if: (2) He knows or believes that the person whom he believes to be entitled to consent to the destruction or damage has so consented.» 182 Sobre a section 5 (2) (a) do Criminal Damage Act. 1971, v. SMITH & HOGAN, Criminal Law, 5.* ed., Londres, Butterworths, 1983, pp. 637-638 € GLANVILLE WILLIAMS, como na nota 125, pp. 908-909. "3 Clause 88 (16.13), p. 159. RPCC 3 (1991) 365 ZL RAUL SOARES DA VEIGA que © mero consentimento, ou consentimento presumido, desconhe- cido do agente parece ser considerado irrelevante '*, 2.9, Conclusdes de direito comparado a) Aspectos gerais O problema da relevancia do desconhecimento do consentimento do ofendido é, como vimos, um problema sentido em todos os ordena- mentos juridicos espacial, cultural, histérica ou juridicamente proximos do nosso sistema e aos quais nos referimos. A solugao maioritariamente propugnada em cada um depende, como € préprio do fenémeno juridico, das normas af vigentes, Parece, porém, poder retirar-se como conclusao da microcompara- ¢ao efectuada que existe um sentimento geral da justiga da punig&o de quem pratica um facto tipificado como crime sem conhecer 0 consen- timento da vitima. E de salientar também uma tendéncia genericamente sentida para que a punigao seja menos grave do que nos casos em que nao tenha havido consentimento. Por ultimo, nao se propugna em nenhum dos sistemas analisados a especial impunidade dos casos de desconhecimento de consentimento manifesto. b) Quanto ao direito portugués Muitas das quest6es suscitadas em ordenamentos estrangeiros revelam-se intransponiveis para o direito portugués. Com efeito, nao falta no CP portugués uma norma da Parte Geral que preveja 0 consentimento do ofendido como causa de justificagao, '* Em sentido contrério parece, porém, pronunciar-se GLANVILLE WILLIAMS, como na nota 124, quando afirma na nota 1 da p. 908: «Where the owner consents to the act there is no actus reus, and this is true event though the defendant did not know that the owner consented.» 366 RPCC 3 (1991) SOBRE O CONSENTIMENTO DESCONHECIDO apenas de parceria com o Cédigo italiano, e por isso questdes como a recondugio do consentimento a casos de exercicio de um direito, como no direito brasileiro, como a inadmissibilidade de criagaio de causas de justificagio supralegais como nos direitos francés e espanhol, carecem de sentido face a nossa lei. De igual modo o problema da natureza objectiva das causas de justificagao impedindo a punibilidade dos casos de consentimento des- conhecido, como sucede no direito italiano, ou de eventuais violagdes do principio da legalidade, se se considerasse tais casos puniveis, nao obstante serem materialmente ilicitos, como alguns defendem no direito austrfaco, nao devem ter lugar na discussio do direito portugués face a norma do artigo 38.°, n.° 4. Como nota final querfamos sublinhar a importancia da referéncia feita ao direito inglés, que nao resulta obviamente da pertenga a uma mesma familia de direitos, mas de ser 0 nico ordenamento juridico da Europa ocidental onde encontrémos, quer na lei vigente, quer no pro- jecto de CP, disposigao equivalente 4 do nosso artigo 38.°, n.° 4, se bem que no Ambito mais restrito dos crimes patrimoni: De todo 0 modo resulta agora demonstrada a pertinéncia do trata- mento legislativo da matéria contida no artigo 38.°, n.° 4, e o pionei- rismo desse tratamento pelo legislador portugués. RPCC 3 (1991) 367

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