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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 3-16, 2002.

OS TUPIS E A TURÂNIA. HIPÓTESES SOBRE A ORIGEM DO


HOMEM E DA CIVILIZAÇÃO NAS AMÉRICAS NA SEGUNDA
METADE DO SÉCULO XIX E PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX

M aria Helena P. T. M achado *

MACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e a Turânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização


nas Américas na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do XX. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 3-16, 2002.

RESUMO: Este artigo tem como ponto central o estudo das teorias a respeito da
origem do homem americano e da antigüidade da civilização nas Américas, no contexto
intelectual do século XIX e primeiras décadas do XX. Seu objetivo é mapear estas teorias
no ambiente intelectual europeu e norte-americano para, em seguida, as vincular às
discussões latino-americanas e brasileiras a respeito do grau de desenvolvimento, de
civilização e de aperfeiçoamento das populações americanas originais (pré-conquista)
e o papel da América na história do mundo civiüzado. Para atingir tais objetivos, o artigo
analisa aspectos do desenvolvimento da filologia comparada, da etnologia e da antropologia
para acompanhar a elaboração do monumento teórico-ideológico que foi denominado
como de civilização indo-européia para, em seguida, buscar esclarecer o impacto destas
discussões nas nascentes disciplinas da arqueologia e antropologia latino-americanas.

UNI I ERMOS: Americanismo - Hipóteses sobre as Origens da Civilização - Filologia


comparada.

Este artigo tem como ponto central o estudo aperfeiçoamento das populações americanas
das teorias a respeito da origem do homem originais (pré-conquista) e o papel da América no
americano e da antigüidade da civilização nas mundo civilizado.
Américas, no contexto intelectual do século XIX e A partir dos finais do século XVIII assiste-se
primeiras décadas do X X .1Seu objetivo é mapear na Europa interesse crescente a respeito da origem
estas teorias no ambiente intelectual europeu e e evolução do homem e das civilizações, interesse
norte-americano para, em seguida, as vincular às este focado tanto no território europeu, quanto nas
discussões latino-americanas e brasileiras a respeito terras coloniais. As primeiras décadas do XIX,
do grau de desenvolvimento, de civilização e de neste sentido, foram marcadas pelo surgimento da
arqueologia como disciplina científica e pela
popularização de relatos de viajantes, aventureiros
e arqueólogos amadores sobre as paragens
distantes e civilizações perdidas. Episódio extrema­
(*) Depto. de História da Faculdade de Filosofia, Letras e
mente significativo deste momento foi a “descober­
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
(1) Este artigo é parte do projeto de pesquisa “Viagens e
ta” dos senhorios maias na década de 1830/40,
Viajantes no Brasil e na América, 1840-1900” que venho que alimentou hipóteses das mais díspares sobre a
desenvolvendo com financiamento do CNPq. origem desta civilização. Por exemplo, um dos mais

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M ACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e a Turânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização nas Américas na segunda
metade do século XIX e primeiras décadas do XX. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 3-16, 2002.

populares viajantes e pesquisadores das ruínas ser pensadas.2 Este texto pretende enfocar alguns
maias, Auguste de Le Plongeon (1826-1908), destes debates, mostrando como eles se reportavam
divulgou, com persistência e entusiasmo, sua a um horizonte intelectual emoldurado pelo
interpretação sobre a origem destes povos. comparativismo das línguas e das instituições sociais
Segundo ele, os maias haviam sido povos altamente dos povos, entendidas como costumes e tradições,
evoluídos que teriam construído os grandes produzindo os contextos nos quais os diferentes
monumentos e pirâmides que então estavam sendo axiomas biológicos ou raciais foram discutidos. Da
encontrados pelos viajantes europeus nas florestas mesma forma, se procurará apontar as conexões entre
tropicais da Guatemala e do Iucatã, e que teriam, as polêmicas hipóteses que alimentavam estes debates
por volta de 11.500 anos atrás, imigrado para o e o processo de construção de uma identidade
Vale do Nilo, onde teriam fundado a civilização americana-brasileira no período considerado.
egípcia (Le Plongeon 1886 e 1900). Em primeiro lugar, farei uma localização sumária
Outro ramo do conhecimento que emergiu das grandes questões que animaram o campo da
neste período e tomou-se fundamental foi o do filologia comparada para em seguida discutir os três
estudo das línguas, campo composto pela lingüística grandes ramos lingüísticos canonizados por esta
e pela filologia comparada. O estudo das línguas, discussão (ariano, semítico e turaniano). Em seguida,
semíticas e jafética, i.e., indo-européias e, mais farei algumas considerações sobre esta discussão no
tarde, a invenção do tronco turaniano, informavam âmbito dos intelectuais brasileiros da segunda metade
e muitas vezes conduziam os debates raciais e do XIX e inícios do XX, enfocando os escritos de
etnológicos na Europa, tendo os filólogos, por Couto de M agalhães no livro O Selvagem, de
algumas décadas, apontado os caminhos pelos Gonçalves Dias, no livro Brasil e Oceania, de
quais as discussões raciais se desenvolviam Vamhagen em L ’Origine Tourainienne des
(Poliakov 1996). Américains Tupi-Caribes et des Anciens Egyptiens
Na segunda metade do século XIX, as teorias de 1876 e, finalmente, o folheto de Câmara Cascudo
a respeito da origem do homem americano e da de 1933, O Homem Am ericano e seus temas.
antigüidade da civilização nas Américas passaram
igualmente a fazer parte integrante das preocupa­
ções dos intelectuais latino-americanos, inclusive A árvore e a escada: a filologia com parada
dos brasileiros, interessados na construção de uma e a origem das civilizações
identidade americana-brasileira original. Inúmeros
estudos especulavam sobre as mais variadas
Uma das principais vertentes no campo da
hipóteses a respeito do tema: supunha-se, por filologia que mobilizou os intelectuais europeus desde
exemplo, a origem indo-européia tanto do quéchua a Ilustração refere-se à constituição do tronco lingüístico
e quanto do nahuatl, ao mesmo tempo em que se ariano, depois denominado de indo-europeu. Léon
aventava a possibilidade de ligação das antigas Poliakov (1996), no livro The Aryan Myth, elabora
civilizações americanas às civilizações clássicas do extensa análise a respeito das bases teórico-ideológicas
mundo ocidental (Wauchope 1962). Estas especu­ que legitimaram o arianismo na Europa, sobretudo
lações, ao mesmo tempo em que abordavam temas na Alemanha, procurando traçar as profundas
presentes nos debates raciais da época, desloca­ implicações psicológicas e culturais que subjaziam às
vam a discussão para as questões das origens e do discussões filológicas e da lingüística histórica. Neste
desenvolvimento das civilizações, buscando sentido, o autor mostra como as discussões filológicas
estabelecer padrões de evolução línguístico-
culturais que permitissem estudar as sociedades
erigidas pelo homem nos diferentes períodos e (2) Ver, por exemplo, Kuper (1988), sobretudo a primeira
parte, “The Invention of Primitive Society", bem com o a
regiões da terra.
análise de Trautmann (1997) a respeito da constituição do
De fato, os estudos filológicos se enraizaram arianismo no contexto do Império Britânico e a discussão de
como um campo estratégico nos debates europeus Poliakov (1996) sobre a história da construção do mito ariano
a respeito da origem do homem e das civilizações da superioridade racial na Europa, sobretudo o capítulo
no globo, dando as cartas na definição dos termos “The Aryan Epoch” Todos estes livros, construídos a
partir de perspectivas diversas, apontam o papel definidor
por meio dos quais as questões da inferioridade/
da filologia comparada e da lingüística histórica na
superioridade das raças e das civilizações puderam definição do campo teórico de debates sobre o tema.

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MACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e a Turânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização nas Américas na segunda
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cifravam as principais angústias das nações européias A busca para delimitar o local da origem do
frente ao seu outro interno (como os judeus na homem rapidamente antepôs os defensores do
Alemanha) ou frente às populações não-brancas Egito Antigo e do Oriente Médio, fiéis à interpreta­
coloniais. Tomando como objetivo o desvendamento ção literal da Bíblia aos defensores da índia como o
das teorias a respeito da origem e filiação das línguas e berço da humanidade. Ainda segundo grandes
dos povos que haviam povoado o continente europeu, pensadores europeus, como Diderot, na índia não
Poliakov refaz a história da construção do mito ariano, se localizaria apenas a origem da humanidade como
desde finais do XVIII, colocando-o no contexto do também este seria o local de nascimento das mais
crescimento do nacionalismo germânico e dos debates antigas ciências exercitadas pela humanidade. A
raciais a respeito do mundo colonial (Ásia e Oriente mudança do pólo da origem da civilização do Egito
Médio, sobretudo). Esta discussão teve repercussões para a índia resultou em diferentes movimentos de
profundas nos quadros das nascentes ciências do idéias que alcançaram fenomenal impacto em áreas
homem, resultando no estabelecimento, amplamente como da filologia, arqueologia e etnologia, ofere­
referendado ao longo da segunda metade do XIX, cendo os elementos para a construção ideológica
de uma hierarquia das línguas e das civilizações das línguas e civilizações arianas ou indo-européias
espalhadas ao redor do mundo, que foram organizadas e na filosofia e literatura alimentando o idealismo e
numa escala evolutiva baseada em padrões lingüísticos, o romantismo (Poliakov 1996:185).
na análise da cultura material e na presença/ausência Ainda segundo Poliakov, o naturalista francês,
de instituições sociais e políticas tidas como universais. Pierre de Sonnerat, em sua Voyage aux Indes
Segundo Poliakov, desde os finais do século Orientales de 1782, delimitou a índia como o
xvm haviam surgido, em diferentes países europeus, berço da humanidade, alimentando interpretações
debates a respeito da origem do homem, discussão esta que lançaram mão de visões grandiosas e idealiza­
emoldurada pela questão da veracidade não só do relato das das fontes originais da civilização européia,
bíblico como de sua datação. Foi buscando elementos visões estas que foram divulgadas repetidamente
para escrutinar as afirmações bíblicas é que estudiosos nos livros de viagem que ganharam um público
da arqueologia, geografia e etnologia começam a leitor cativo e chegaram a atingir os grandes
pesquisar no alto das montanhas os resquícios das mais pensadores europeus. O filósofo Kant, por
antigas civilizações. Neste sentido, afirma Poliakov: exemplo, elaborou uma nova interpretação da
teoria astronômica e ártica de Bailly, determinando
“Assim como Linnaeus, os estudiosos
o Tibet como o lugar de origem da humanidade
da Ilustração, os quais em sua m aior parte
(Poliakov 1996:185-186).
professava o monogenismo, geralmente
A associação entre o romantismo e o orientalismo
viam as m ontanhas como o berço da
é bem conhecida e seus expoentes se voltaram para
humanidade. Isto era certamente verdade
a índia em busca das raízes da cultura européia e
do ponto de vista dos geógrafos, em sua
das origens da hum anidade/ A combinação da
maneira de ver, a existência de conchas
exaltação do primitivo com a espiritualidade e o
marinhas em todas as altitudes confirmava
orientalismo permearam o idealismo e o romantis­
a hipótese do dilúvio universal, corroboran­
mo. Ambos os movimentos inspiraram vertentes
do a narrativa bíblica. Nos dia de hoje é
que apoiaram a valorização da origem ariana dos
fa to conhecido que as mais altas montanhas
povos europeus, cujo resultado foi a legitimação da
se localizam na índia e China. M as o fa to é
superioridade “natural” das civilizações derivadas
que a tradição, talvez devido à relutância
dos “antigos e nobres troncos arianos” . Diz
dos brancos europeus de adm itir sua
Poliakov:
fü ia çã o aos amarelos, focalizava sua
atenção nas bordas m ais próxim as dos
“Adotando p o r um m omento o estilo de
H im alaia e da Caxem ira ” (Poliakov
Herder, poder-se-ia dizer que os alemães,
1996:184-185).3
tentando desvencilhar-se da filiação

(3) As traduções deste e dos trechos a seguir retirados do (4) Said (1990) analisa o surgimento do orientalismo com o
citado livro de Poliakov são de minha autoria. campo de saber.

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metade do século XIX e primeiras décadas do XX. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 72: 3-16, 2002.

judaico-cristã, logo responderam a estas Neste quadro, posições intermediárias


aspirações; com Schopenhauer a Alemanha começaram a surgir, como a professada por
desejou ser filha da índia e do budismo, Ludwig Von Schlõzer (1735-1808), que considera­
com Nietzsche, filha da Pérsia e seguidora va o relato bíblico do Dilúvio como verdade, mas
de Zaratustra. E certamente verdade que tinha dúvidas a respeito da veracidade do episódio
Herder, com seus anseios pelo primitivo, de Babel. Apesar da desqualificação da Bíblia
com seus exageros e também com seus como um todo como verdade histórica, foi Von
lampejos geniais, parece ter ao mesmo Schlõzer que introduziu o nascimento de Jesus
tempo antecipado e aprofundado as como ano zero da história ocidental e propôs a
contradições do romantismo alemão, e divisão das línguas entre semítica ejafética,
talvez não apenas da Alemanha ” (Poliakov incluindo o persa (língua que teria dado origem ao
1996: 187). tronco ariano) (Poliakov 1996: 188-189).
Além disso, o crescente interesse sobre a índia
Foi neste sentido que o orientalista Raymond estimulou novos estudos lingüísticos, como foi o caso
Schwab afirmou ter sido Herder o iniciador da do francês, Anquetil du Peyron, que tendo ido para a
voga de exaltação do primitivo e do infantil na índia como soldado, dedicou-se ao estudo da língua
cultura ocidental, admiração esta evocada até os dos pársis. Note-se que o primeiro interesse dos
dias de hoje pelos intelectuais e artistas, quando europeus esteve voltado para o estudo do persa. Seria
exauridos pelo racionalismo ocidental (Poliakov por meio dele é que se fez a aproximação ao
1996: 187).5 conhecimento da índia propriamente dita, isto até
Para o autor de The Aryan Myth, uma das pelo menos os finais do XVIII. A mudança de
linhas de reflexão derivada destas conjecturas perspectiva se deu com a conquista da Bengala
vinculava a origem da espécie humana à origem da pelos ingleses, o que suscitou a fundação da Asiatic
língua, considerando-as questões distintas, porém Society ofCalcutta, em 1784. Note-se, no entanto,
relacionadas. O maior debate girava em tomo das que a “renascença orientalista”, cujo maior impulso
possibilidades de determinação da língua falada por deveu-se à ação dos próprios intelectuais britânicos,
Adão ou da língua original da humanidade. Mais causava desconforto aos ingleses, pouco à vontade
uma vez, esta discussão, atravessada por contendas com a idéia de serem aparentados aos nativos de pele
ideológicas, antepunha os defensores da interpreta­ escura, subordinados ao Império Britânico. Na
ção literal da Bíblia aos defensores de uma visão verdade, a valorização do arianismo e dos arianos
mais heterodoxa dela, cujo escopo repousava, ao como fonte originária da cultura ocidental, colocava
menos na Alemanha, num mal estar relativo ao os ingleses em posição pouco confortável, numa
parentesco dos germânicos aos semitas-judeus, o situação inversa a vivida pelos intelectuais germânicos
que desembocou numa tentativa, encetada pelos cujo maior desafio era responder às questões ligadas
intelectuais europeus, de desvinculação de ambas a origem semítica da humanidade e o parentesco
as civilizações. No entanto, vozes dissonantes entre europeus e povos do Oriente Médio. Em
podiam ser ouvidas neste debate. Johann-David decorrência, as discussões a respeito da veracidade
Michaelis (1717-1791) da Universidade de da Bíblia e a aceitação da descendência das línguas
Gõttingen, embora fosse o maior estudioso do européias do tronco indo-europeu se desenvolveu na
hebreu de sua época e um dos fundadores da Inglaterra num cronograma diferente dos países da
Escola Exegese Superior da Bíblia, militava contra Europa continental. Apesar disso, grande parte do
a emancipação dos judeus, recusando-se a aceitar estudo e divulgação da cultura ariana se deveu à
a genealogia de Noé como fato histórico comprovável. ação de estudiosos ingleses, como bem demonstra
Apesar da existência de posições como a acima Thomas Trautmann em seu livro a respeito do
elencada, persistiram nas principais academias desenvolvimento dos estudos eruditos sobre o
alemãs defensores ferrenhos da veracidade da arianismo na Grã-Bretanha (Trautmann 1997:28-29).
Bíblia e do relato de Noé (Poliakov 1996: 189). A partir dos anos de 1780, os administradores
ingleses na índia, parte dos quais se caracterizava
por serem eruditos e estudiosos do hinduismo, se
(5) Sobre a conexão entre a criatividade artística e o primitivismo
associaram aos brâmanes, muitos deles também
no pensamento ocidental, ver Torgovnick ( 1996: 3-22). contratados pela administração inglesa, e começa­

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ram a traduzir para o inglês (passando pelo persa) 7. Dos filhos de Moisés, o ramo jafético
as antigas leis e textos sagrados hinduístas. O poeta se espalhou pelo norte da Europa e lançou-se
e jurista inglês, William Jones foi nomeado, em nos oceanos. Tendo sido pastores nômades,
1783, juiz da Corte Superior da Bengala, dando início não cultivaram a escrita. Os descendentes de
a uma nova fase dos estudos orientalistas. Ele se pôs a Ham inventaram o alfabeto, a astronomia e
estudar diretamente o sánscrito, tomando-se um dos outras artes, povoando a índia e a África.
principais estudiosos do hinduísmo e das línguas Mais tarde passaram para Grécia e Itália,
arianas (Poliakov 1996:189-190 eTrautmann 1997: outros atravessando as montanhas chegaram à
40-52). Foi a partir destes estudos que Jones se China e ainda, parte destes, indo ainda mais.
convenceu da possibilidade de traçar analogias bem além, chegaram ao M éxico e Peru. Já os
próximas entre a mitologia hindu e greco-latina. De descendentes de Shem teriam povoado a
acordo com Jones: “Existe uma similaridade península arábica (Trautmann 1997:51-52).
marcante entre os principais objetos de culto na
O modelo interpretativo proposto por W. Jones
Grécia e Itália antiga e o país que agora habita­
foi reinterpretado por Friederich Schlegel, o qual, por
mos. . . ” (apud Poliakov 1996:190). Estabelecendo
seu tumo, estabeleceu correlações antropológicas às
as linhas de descendência e a conexão entre as
semelhanças detectadas entre os indo-europeus no
línguas, ele propôs um esquema histórico explicativo
âmbito da língua, entendida como monumento cultural
da origem e difusão das línguas e civilizações humanas
principal, cuja associação a outras características
o qual, por sua vez, confirmava o relato bíblico de
comuns, analisadas em conexão com a filologia, tais
Moisés e seus filhos. Segundo Trautmann, em síntese,
como os mitos, hábitos e costumes, formavam o
as conclusões a que chegou Jones foram:
conjunto analítico daquilo que se denominava
1. Persas, hindus, romanos, gregos, teoricamente como uma civilização. Desta forma,
egípcios e etíopes falavam a mesma língua e Schlegel estabeleceu pioneiramente uma relação direta
professavam a mesma religião. entre língua e raça, abrindo caminho para construção
do mito da raça ariana. Embora Schlegel tenha sido
2. Judeus, árabes, assírios, os falantes do um romântico de primeira geração, menos compro­
siríaco e abissínios possuíam uma língua metido com aspectos irracionalistas e regressivos que
ancestral comum, diferente das línguas arianas. caracterizaram o auge da ideologia romântica na
Europa e, além disso, não estivesse ao menos
3 . 0 terceiro ramo, não conectado aos conscientemente comprometido com o anti-semitismo,
anteriores, era o tártaro. concebeu e deu forma ao mito da raça ariana.
Note-se, no entanto, que a militância política de
4. Na origem Deus havia criado apenas Schlegel o havia levado a envolver-se na campanha a
um casal humano, mas à medida que eles se favor da emancipação judaica, tendo inclusive se
reproduziram, a tendência foi a da dispersão, casado com uma judia, filha do filósofo Mendelssohn.
formando novas línguas, governos e códigos Embora incensado por sua concepção da raça
de leis. germânica, mais tarde foi acusado pelos nazistas de
carecer de instinto de raça (Poliakov 1996: 190-191).
4 . 0 lugar original dos primeiros homens A visão de Schlegel foi fundamental na
havia sido o Irã, local de onde os três ramos Alemanha, ligando os arianos do norte da índia à
haviam emigrado. idéia de um alto desenvolvimento intelectual, uma
civilização de guerreiros e sacerdotes vegetarianos
5. Os episódios bíblicos como os do que, por alguma força magnética obscura, haviam
Dilúvio e da Torre de Babel eram verdades se tomado carnívoros e imigrado, formando
históricas e puderam ser localizados nos textos colônias. Embora ele próprio tenha sempre se atido
sagrados hinduístas. a aspectos mais gerais desta construção ideológica,
seus seguidores deram o passo em direção a ligar o
6. A língua original da humanidade, falada mito ariano ao nacionalismo germânico, a começar
por Noé, não pôde mais ser encontrada, por seu irmão August-Wilhelm Schlegel, passando
apesar dos esforços dos filólogos. por Goethe, Hegel, e se difundindo rapidamente
pela França (Poliakov 1996: 192-193).

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MACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e a Turânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização nas Américas na segunda
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Como notou Trautmann, o pensamento das americanas, enfatizando a conclusão de Albert


ciências humanas dos séculos XVIII e XIX se Gallatin que asseverava que, tendo estas línguas se
guiava por dois paradigmas: o da escada e o da desenvolvido isoladamente daquelas faladas nos
árvore. O primeiro, dominante na antropologia da outros continentes, acabaram por desenvolver
segunda metade do XIX, orientava suas análises apenas entre si mesmas características comuns.
inspirando-se na estrutura de uma escada, a qual, Ainda de acordo com o citado filólogo, o aspecto
por meio da evolução, conduzia a humanidade a uma definidor mais importante para a análise destas
progressiva sucessão de formas hierarquizadas. Já a línguas residia naquilo que Alexander Von Humboldt
segunda visão, aquela que via as nações6 como parte (1769-1859) havia chamado de processo de
de uma árvore de muitos galhos, conduzia as “aglutinação”, que se definia como um sistema de
interpretações dos lingüistas, marcando igualmente o colagem que permitia que as línguas acumulassem um
pensamento etnológico e concebia o desenvolvimen­ grande número de significados utilizando-se de uma
to humano por meio de uma sucessão de ramos só palavra (Kuper 1988:50). Além disso, ao refletir
aparentados, partindo de um tronco comum. Nesta sobre os estudos fisiológicos poligenistas, Haven
visão, as nações humanas poderiam estar divididas rejeitou suas conclusões, optando pela interpretação
em culturas-tronco ou mães e culturas derivadas ou filológica monogenista. Escrutinando as novas
filhas, mas elas não estavam hierarquizadas de forma descobertas da arqueologia este autor concluía que:
evolutiva. A visão da árvore marcou a lingüística
As deduções derivadas das investiga­
histórica do século XIX e foi predominante na
ções científicas, filológicas e fisiológicas,
biologia, tendo Darwin deixado claro na Origem das
tendem a provar que as raças americanas
Espécies que o conceito vinha da lingüística e da
possuem grande antigüidade. Suas religiões,
etnologia para a biologia, e não ao contrário. Note-
doutrinas, superstições. e artes, similares
se que, em princípio, tanto o paradigma da escada
àquelas das eras mais prim itivas da hum a­
quanto o da árvore eram monogenistas, sendo que o
nidade. Todas as suas características
segundo, aquele da escada, servia para asseverar a
mostram afinidades com as prim itivas
veracidade da Bíblia e era a chave da chamada
condições das raças asiáticas.1
“etnologia mosaica”,i. é, derivada de Moisés
(Trautmann 1997:9). Uma visão panorâmica das discussões filológicas
No livro The Invention o f Primitive Society, possibilita a recuperação dos principais debates em tela
Adam Kuper mostra que um dos primeiros modelos no período. Como já vimos anteriormente, os filólogos
explicativos da origem das civilizações americanas, europeus estabeleceram as relações entre as línguas
perpassado pelas discussões que antepunham o sempre considerando que, mesmo de maneira
monogenismo ao poligenismo, encontra-se no campo distante, todas as línguas européias eram aparentadas
das discussões filológicas e misturava raça e língua, ao sánscrito, sendo seu lugar de origem a índia. Quanto
porém dando primazia à língua. Um dos debates à língua semita, acreditava-se que era igualmente
mais significativos a este respeito era aquele que derivada do sánscrito e originária da Ásia.
opunha os arianistas aos defensores daproeminência O professor de sánscrito de Oxford, Max Müller
dos semitas na origem da civilização, debate este que (1823-1900), o maior filólogo de sua época e grande
alcançou grande impacto tanto nos estudos filológicos divulgador da filologia comparada, disseminou a idéia
europeus quanto nos nascentes estudos arqueológi­ da existência de um terceiro ramo, que ele denominou
cos e lingüísticos nos EUA. Esta disputa teórica, de “turaniana”. Este ramo lingüístico estaria dividido
estabelecendo um campo de discussões na América geograficamente entre norte e sul. Em seu setor norte,
do Norte teve, por seu tumo, grande ressonância na as línguas turanianas incluiriam a Turquia, a Finlândia,
América Latina. Samuel Haven, por exemplo, em a Mongólia e o País Basco e, em seu ramo sul, as
sua obra Arqueologia dos Estados Unidos, regiões tropicais, nas quais se encontrariam a maior
publicada em 1856 pelo Smithsonian Institution, parte ou mesmo todas as outras línguas do mundo,
reviu em detalhe os estudos lingüísticos das línguas do tâmil (a principal língua indiana dravídica, não

(6) O termo nação aqui está sendo utilizado na sua acepção (7) Samuel Haven, Archaeology o f the United States,
do século XIX, significando povo, grupo étnico ou tribo. citado em Kuper(1988: 51).
M ACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e aTurânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização nas Américas na segunda
metade do século XIX e primeiras décadas do XX. Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 12: 3-16, 2002.

relacionada ao sánscrito) às línguas dos índios america­ análise da lingüística histórica, Müller propôs um
nos. Note-se aqui a concepção de um a oposição modelo sintético que opunha a categoria de
constante entre norte e sul (Kuper 1988: 51-52). primitivo, anárquico, nômade disperso, com povos
Como sublinha Kuper, a interpretação de Max falantes de língua de aglutinação em estado de
Müller considerava que as línguas turanianas do sul contínua mudança à de sociedades agrícolas,
formariam um grupo bem diversificado possuindo centralizadas e civilizadas, com elites capazes da
apenas poucas características lingüísticas comuns. escrita, possuidoras de línguas mais estáveis e
Müller acreditava que os povos turanianos, por serem avançadas, caracterizadas pela amalgamação.
nômades, possuíam línguas abertas, vulneráveis tanto a Müller acatava a divisão da humanidade entre os
muitas mudanças quanto ao surgimento de dialetos superiores arianos e semitas e os inferiores turânios,
variados. Conforme argumentava ele, os termos porém, ao mesmo tempo, o modelo por ele
denominativos de parentesco, por exemplo, mostra- utilizado reafirmava a existência de uma só origem
vam-se estáveis nas línguas arianas, mas não nas da humanidade, asseverando o paradigma
turanianas. No entanto, embora as palavras mudassem, monogenista do desenvolvimento da humanidade
os conceitos podiam ficar estáveis. Elas também, em forma de árvore (Kuper 1988: 53-54).
segundo Müller, possuíam a característica determinada O famoso etnólogo norte-americano, Lewis
pela análise lingüística proposta por Humboldt, de serem Morgan (1818-1881), nos anos de 1850, estudando
línguas de tendência à aglutinação (Kuper 1988:52). e comparando os iraqueses, ojibwas e outros grupos
Ainda seguindo a análise proposta por Kuper, indígenas norte-americanos, concluiu que eles possuíam
Max Müller, utilizando-se da tipologia proposta por termos denominativos de parentesco com raízes
A. Humboldt, que classificava as línguas segundo seus lingüísticas comuns. Buscando nos filólogos, sobretudo
princípios gramaticais, conceituados como os de em M ax Müller e J.S. M cllvaine, as bases para
“isolamento, aglutinação e inflexão”, propôs o compreensão deste fato, Morgan concluiu que os
ordenamento dos troncos lingüísticos numa escala de povos indígenas norte-americanos eram turanianos e
desenvolvimento progressivo. No primeiro estágio e que as estruturas lingüísticas do complexo sêneca-
mais atrasado, se encontrariam as línguas caracterizadas iroquês era similar ao do tâmil-telegu (dravídico).
pelo isolamento, nas quais cada palavra consistia de Isto o levou a concluir a origem asiática dos índios
uma única raiz estável. Num estágio superior se norte-americanos. O sistema de parentesco montado
encontrariam aquelas caracterizadas pela aglutinação, por Morgan vai se inspirar e correlacionar as instituições
nas quais as raízes se colariam para formar novas sociais básicas dos grupos étnicos norte-america­
palavras. Finalmente, as línguas colocadas no nos aos estágios lingüísticos (Kuper 1988:49-56).
estágio mais desenvolvido se caracterizavam pelo
amalgamamento, no qual, as inflexões das raízes
originais, antes simplesmente coladas, se amalga­ Os tupis e a turânia: o contexto latino-
marían! formando verdadeiras novas palavras. am ericano e os intelectuais brasileiros
Segundo o esquema proposto, as línguas
turanianas do sul caracterizavam-se pela aglutinação, No Brasil, assim como em outros países da
enquanto as turanianas do norte, assim como indo- América Latina (Pera e México, obviamente devido
européias e semíticas, por serem amalgamadoras, se ao desenvolvimento das antigas civilizações
encontravam em um estágio posterior e mais indígenas, mas também Argentina, Venezuela, entre
desenvolvido da aglutinação. Neste sentido, embora outros) estas discussões vão encontrar eco e vou
esta interpretação concordasse que todas as línguas aqui apenas citar algumas delas.
possuíam uma origem una e comum, em termos Já em 1858, Gonçalves Dias (1823-1864)
lingüísticos, a Europa, Oriente Médio e norte da índia escrevia o estudo Brasil e Oceania no qual ele se
estavam conectados por línguas aparentadas que se perguntava a respeito da origem do homem
opunham àquelas dos trópicos. No entanto, embora americano (Gonçalves Dias s/d).8 Note-se que seus
as línguas européias fossem de amalgamamento
elas, no passado, haviam sido de aglutinação e,
antes ainda, isoladas (Kuper 1988: 52-53).
(8) Este texto de Gonçalves Dias foi publicado original­
Buscando responder às questões a respeito do mente na Revista do Instituto H istórico e Geográfico
desenvolvimento dos povos tendo por guia a Brasileiro em 1858.

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M ACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e a Turânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização nas Américas na segunda
metade do século XIX e primeiras décadas do XX. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 3-16, 2002.

argumentos seguiam os passos das discussões ções, os povos da Oceania, denominados como
acima elencadas, que entre outros temas opunha, malaios, polinésios e melanésios, procurando determi­
em termos lingüísticos, um norte mais desenvolvido nar característicás aproximativas destes grupos aos
a um sul atrasado, na figura da turânia do sul. tupis. Embora não se reporte ao conceito de língua ou
Seguia Gonçalves Dias igualmente a hipótese de civilização turaniana, conceito cunhado quase
Lewis Morgan que afirmava serem os grupos simultaneamente ao seu trabalho de 1858, parece que
indígenas do norte mais desenvolvidos que os do o autor segue os passos aconselhados por M. Müller
sul. O próprio Morgan, para corroborar esta e vê os povos da Oceania como possíveis turanianos
hipótese, havia tido que concluir que os astecas e provavelmente aparentados aos tupi. Assevera o
eram mais atrasados do que os iraqueses, em autor que os malaios-maometanos estavam em estágio
estudo no qual este teve que reinterpretar e civilizatório superior aos tupis, já os polinésios
contradizer as crônicas que unanimemente afirma­ conformavam uma cultura em certos termos similar à
vam a existência do estado e até de uma monarquia dos tupis (civilização bárbara mas completa) e os
no México, em contraste com a estrutura de chefia melanésios (negros) eram inferiores. Embora a ligação
e confederação dos índios pueblos norte-america­ não esteja explicitada, supõe-se a possível unidade ou
nos (Kuper 1988: 68-70). Podemos acompanhar o descendência entre polinésios e americanos, na figura
eco destas discussões nas seguintes passagens de dos tupi.9
Gonçalves Dias: “Em primeiro lugar para mim é Ainda dois autores devem ser lembrados no
fo ra de dúvida que a raça tupi, longe de ser quadro desta discussão. O primeiro, Francisco
autóctone, era uma última ou única raça Adolfo Vamhagen (1816-1878) em seu texto
conquistadora ” (Gonçalves Dias s/d: 4). L'origine tourainienne des américains tupi-
Na seqüência do texto, após elencar uma série caribes et des anciens égyptiens de 1876
de características da cultura material, dos hábitos, propugnava que os tupis eram um povo invasor,
da linguagem que pretensamente confirmavam esta vindo do norte, aparentado originalmente aos
asserção, afirmava o citado autor: egípcios e fenicios.10Estas suas hipóteses não se
caracterizavam, no entanto, como conclusões de
“Há ainda outro exemplo tirado
última hora pois, já em 1851 ele afirmava que:
também da sua linguagem, e que parece
provar concludentemente que os tupis eram “Temos idéia de haver lido que o uso
conquistadores, e não os prim itivos habitan­ antigo de chamar-se à gente por tios procede
tes do país: é o uso de certas palavras, de do tempo dos fenicios e egípcios. Sendo
certas frases, de certas interjeições, de que assim teríamos nestes fa to s mais um ponto
só as mulheres se serviam; enquanto os de contato para a possibilidade de relações
homens tinham outras da mesma ordem outrora entre o Egito e a América, acerca do
exclusivamente suas, para designar os que o Lord Kingsborough apresentou tantas
mesmos objetos ou exprimir os mesmos probabilidades. E certo que a mesma
sentim entos” (Gonçalves Dias s/d: 5). expressão tupi quer dizer tio, segundo
M ontoya. . . ” (Vamhagen 1851:408).11
Conclusão: os tupis formavam uma raça
invasora superior que, vinda do norte, havia
conquistado os grupos tapuias de origem mongol
inferior e tomado suas mulheres. O resultado teria (9) Estas afirmações constam da segunda parte do livro,
sido a decadência dos tupis mais civilizados, devido caps. I a IV (Gonçalves Dias s/d: 243-355).
à sua integração a uma população mais bárbara e (10) Alguns dos argumentos e informações aqui
apresentados a respeito de Vamhagen apoiam-se na
atrasada. A confirmação da proveniência setentrio­
dissertação inédita de Laura Nogueira de Oliveira (2000).
nal dos tupis se encontraria inclusive na semelhança (11) Lord Kingsborough, Visconde Edward King (1795-
de seus costumes com os hurões e iraqueses. Além 1837), que aparece no texto, foi um dos principais
disso, existiriam três raças na América do Sul: a estudiosos e financiador de viagens de pesquisa ao
ando-peruano, a tupi e a pampeana, esta a mais M éxico e acreditava serem os mexicanos descendentes de
uma das Doze Tribos de Israel. Ele coligiu e publicou a
atrasada (Gonçalves Dias s/d: 1-21).
importante série Antiquities ofM exico: com prising fac-
Na segunda seção do livro, Gonçalves Dias tenta sim iles o f ancient Mexican paintings and hieroglyphics,
descrever, por sinal com certa carência de informa­ publicada em Londres entre 1830 e 1848.

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M ACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e a Turânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização nas Américas na segunda
metade do século XIX e primeiras décadas do X X. Rev. do Museu de A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 72: 3-16, 2002.

Em linhas gerais, Vamhagen acreditava que os tupi Note-se que nesta passagem C outo de
conformavam uma raça invasora e possuidora de uma Magalhães deixou claro que a principal língua indígena
língua altamente desenvolvida, que guardava traços de do Brasil, a língua nacional por excelência, projetava-se
elegância e sutileza comparáveis ao grego e ao egípcio favoravelmente no contexto da lingüística histórica,
e que haviam entrado em processo de decadência na podendo inclusive possibilitar, com seu estudo e
América. Os tupi deveriam descender de um povo deciframento, a evolução do conhecimento das línguas
adiantado que haveria conquistado, em alguma no âmbito dos debates europeus. Inspirado pela língua
época, toda a América. Seriam estes conquistadores é que Couto vai fazer um estudo das civilizações e da
provavelmente descendentes das raças uralo-altaicas, origem do homem, em especial no Brasil. Em primeiro
de origem turaniana. Por não encontrar possibilidades lugar, argumentava este autor que “esta alta antigui­
concretas de comprovação, Vamhagen acaba dade do tronco americano, que o iguala aos mais
concluindo que os americanos deveriam descender velhos do mundo” era uma verdade arqueológica,
dos cários, povo da Ásia Menor, de tendência pirata, embora esta ainda não tivesse sido aceita pelos
que desenvolvera uma civilização adiantada, porém estudiosos europeus. Pois, segundo ele, continuava
instável, e que após a Guerra de Tróia teriam se retirado a pairar dúvidas quanto à antiguidade dos vestígios
para a América, para escapar da vingança grega contra encontrados em terras brasileiras, que ainda
os povos derrotados. A não-existência de traços da careciam de datação mais precisa. No entanto,
civilização, escrita e língua específica dos cários seria concluía Couto, os vestígios dos povos americanos
conseqüência de sua tendência à instabilidade e deveriam ser anteriores à pedra polida e, portanto,
pirataria, explicando, desta forma, sua miscigenação “a antiguidade do homem americano é grande,
e posterior decadência na América, aonde teriam porque precede as prim eiras imigrações dos
contatado os povos mais antigos e atrasados que aqui Árias na Europa, e remonta até a data do
viviam (Vamhagen 1876 e Nogueira 2000:90-100). período paleolítico da parte oriental daquela
José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898) região” (Magalhães 1975 [1876]: 34). A proposta
foi o autor que mais detalhadamente tratou de de Couto é que as pesquisas arqueológicas
explicar a origem do homem e da civilização na deveriam ser desenvolvidas em áreas altas e
América, sobretudo no Brasil. Em O Selvagem montanhosas do Brasil, uma vez que seria aí que se
afirmava ele, certamente inspirado por Max Müller, poderiam encontrar os vestígios mais antigos.
que por sinal aparece citado muitas vezes ao longo Em seguida, Couto de Magalhães passa a
do livro, sempre corroborando a importância do discutir a questão da filiação lingüística do tupi,
estudo das línguas e da filologia como estratégia propondo sua localização em termos de desenvolvi­
para compreender os segredos das civilizações, mento evolutivo no conjunto das línguas americanas
que: “Nenhum a língua prim itiva do mundo, nem e seu parentesco com as línguas asiáticas, isto é com
mesmo o sânscrito, ocupou tão grande extensão o ramo ariano e não-dravídico. Segundo ele, as
geográfica quanto o tupi e seus dialetos ...” línguas americanas teriam todas chegado ao estágio
(M agalhães 1975 [1876]: 28). de aglutinação, porém restaria indicar o verdadeiro
Além da extensão geográfica alcançada pelo parentesco que elas teriam entre si, sendo que para
tupi, que a tomava “uma das maiores línguas da realização deste objetivo a estratégia mais correta
terra” (Magalhães 1975 [1876]: 28), esta possuía seria o comparativismo. Para este autor, as línguas
também, nas palavras de Couto de Magalhães, americanas se dividiriam em dois grandes grupos; um
qualidades superlativas de beleza e elegância: primeiro composto pelas línguas derivadas do tronco
ariano e, um segundo, pelas línguas gerais não-
“Pelo lado da perfeição, ela é admirável; arianas. No primeiro grupo, isto é, no das línguas
suas form as gramaticais, embora em mais de americanas derivadas do tronco ariano, se localizari­
um ponto embrionário são, contudo, tão am o quéchua (Peru) e as línguas maias do quiche,
engenhosas, que na opinião de quantos a do chaque-chiquel, (cakchikel) e do zutuil (tzotzil).
estudaram, pode ser comparada às mais No segundo grupo estaria o tronco tupi-guarani
célebres. Muitas questões hoje obscuras em (Magalhães 1975 [1876]: 50). Na opinião de Couto
filologia e lingüística encontrarão no estudo de Magalhães se havia uma língua no Brasil derivada
desta, que constitui uma nova fam ília, a sua do tronco ariano, esta deveria ser o guaicuru
decifração.” (M agalhães 1975 [1876]: 28) (Magalhães 1975 [1876]: 52).

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MACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e a Turânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização nas Américas na segunda
metade do século XIX e primeiras décadas do XX. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 3-16, 2002.

Já em relação às línguas “nobres” americanas, As conclusões de Couto de Magalhães a


localizadas nas áreas dos antigos impérios maia e respeito da origem dos povos e das línguas
inca, este autor reconhece a configuração da americanas dos grandes impérios são muito claras.
língua como uma das expressões do desenvolvi­ Segundo ele: “ Uma raça ariana, portanto, esteve
mento civilizatório, estabelecendo a origem e o largamente em contato com os índios am erica­
desenvolvimento destes povos a um cruzamento nos e os incas ou seus progenitores eram filh o s
com a grande família branca, isto é com as línguas dos plateaux ou araxás da Asia C e n tra r
arianas, tanto na forma do sánscrito quanto das (Magalhães 1975 [1876]: 51-52).
línguas semitas, provenientes do Egito. Para tal, O enfoque das idéias destes três autores -
Couto de M agalhães segue a orientação do Gonçalves Dias, F.A. Varnhagen e Couto de
famoso Abade Charles Étienne Brasseur de M agalhães - e de suas idéias a respeito da
Bourbourg (1814-1874) que havia sido, nos anos origem dos povos e línguas am ericanos e
de 1860, o grande defensor das teorias da brasileiros permite que, em bora sucintam ente, se
influência egípcia sobre os maias e da origem faça um quadro da im portância destas discussões
atlântida dos povos da antiguidade. Erudito, no ambiente intelectual latino-americano e
grande conhecedor das línguas mexicanas maia e brasileiro. Contextualizada pelas leituras de
náhuatl, o Abade havia desenvolvido uma carreira estudiosos europeus e, em m enor m edida, de
como especialista e pesquisador dos povos autores norte-am ericanos nos cam pos da
mexicanos até a década de 1860 quando, tendo filologia, arqueologia, antropologia e etnologia,
se convencido de que teria sido a Atlântida o os intelectuais latino-americanos no século XIX
berço dos povos da antiguidade, passou a divulgar buscaram estabelecer o lugar e a contribuição
teorias pouco ortodoxas. Idéias estas que, apesar dos povos indígenas e de suas civilizações no
de terem sido fortemente criticadas pelos especia­ conjunto das civilizações humanas. Reafirmando
listas, ganharam considerável divulgação tanto na o monogenismo, conectando os povos am erica­
Europa quanto nos Estados Unidos e na América nos ao relato bíblico, à etnologia m osaica, à
Latina, chegando ao Brasil, como o comprova a diáspora das Doze Tribos de Israel, à A tlântida e
argumentação de Couto de Magalhães no aos contatos nas duas direções com povos
Selvagem .12 egípcios ou arianos antigos, os intelectuais latino-
Com relação ao que Couto cham a da língua americanos do XIX pretendiam delim itar o lugar
dos incas, para ele o quéchua, a com provação da civilização am ericana no grande painel dos
de sua filiação ao sánscrito, justificada devido à povos da humanidade.
localização, em sua gramática de “centenas ou Estas idéias, extensamente discutidas na
milhares de vocábulos sánscritos” aparece segunda m etade do século XIX , vão ser
escorada no trabalho do estudioso argentino reavaliadas no contexto intelectual dos anos de
Vicente Fidel López (1815-1903) que havia, em 1930, incorporando ao antigo debate, novas
princípio, com parado positivam ente o quéchua molduras provenientes tanto da evolução da
com os textos sagrados dos Vedas. M ais tarde, arqueologia e da etnologia quanto pela incorpora­
apoiado no trabalho de um eminente egiptólogo ção de certas correntes intelectuais extra-
europeu que havia visitado a Argentina, Fidel acadêmicas que se tornaram muito populares tanto
López publicou em francês uma obra que buscou na Europa, quanto nos EUA e países da A mérica
com provar esta hipótese, intitulada Les Races Latina no início do século XX, como a teosofía. A
A ryennes du Pérou, L eur Langue, Leur discussão do panfleto de 1933 do famoso
Religión, Leur Histoire, que figurou na Exposi­ folclorista Luís da Câmara Cascudo (1899-1986),
ção de Filadélfia de 1876.13 intitulado O Homem Am ericano e Seus Temas, é
um bom exemplo desta tendência. É este um
ensaio no qual o autor se propõe a tecer um
balanço crítico das teorias então em voga a
(12) Sobre Brasseur de Bourbourg, ver Wauchope (1962: respeito da origem do homem americano. Toman­
19-21 e 44-48).
do por base as diretrizes dos trabalhos apresenta­
(13) Este livro de Vicente Fidel López foi publicado em
Paris, pela editora de A. Frank, em 1871. Consta da folha dos no XXII Congresso de Americanistas,
de rosto uma edição do autor, impressa em Montevidéu. ocorrido em Roma em 1926 e que definiam como

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M ACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e a Turânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização nas Américas na segunda
metade do século XIX e primeiras décadas do XX. Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 7 2 :3-16, 2002.

certa a origem adventicia do homem am ericano e como o principal tronco lingüístico civilizado, isto é
as migrações neolíticas pelo estreito de Behring o ariano/indo-europeu. Portanto, o ponto de vista
com o a rota fundam ental de acesso às terras de Câm ara Cascudo, assim com o o de diversas
americanas, Câm ara Cascudo vai discutir estas gerações de intelectuais e cientistas americanos é,
hipóteses contrapondo-as às teorias concebidas pode-se dizer, difusionista,14e tem como questão
por intelectuais americanos, sobretudo latino- fundante a reflexão sobre o papel das culturas e do
americanos. Teorias estas que, de form a geral, homem americanos no grande conjunto das
enveredavam por duas vertentes explicativas; uma civilizações.
prim eira que defendia o caráter autóctone do Para C âm ara C ascudo, o problem a central
homem americano ou ainda uma segunda que, na discussão do problem a da origem do homem
em bora aceitasse a hipótese adventicia, rebatia as am ericano não reside na ausência de pesquisas
conclusões a que haviam chegado os sábios de caráter arqueológico, antropológico ou
europeus, considerando o povoam ento do lingüístico interessadas no deslindamento deste
continente muito anterior e muito mais variado em im portante assunto, muito menos se encontra
termos culturais do que davam a supor a premissa escassez de fontes m ateriais ou culturais que se
das migrações mongóis, realizadas via estreito de prestem às reflexões dos estudiosos. De fato,
Behring, tidas como únicas e exclusivas fontes do para o autor, o mais grave problem a a ser
povoam ento original da América pelos citados enfrentado no deslindam ento da questão da
estudiosos europeus. origem da civilização na A m érica encontra-se no
Igualm ente, não se furta o autor a apresentar aspecto fortem ente ideológico do problem a. A
sua interpretação pessoal a respeito da questão, leitura deste ensaio deixa claro que para Câm ara
esta baseada em fontes heterodoxas, provenien­ Cascudo - e, para m uitos intelectuais de sua
tes tanto da antropologia racial do século XIX, geração - a delim itação da origem do hom em e
da antropom etría, da glotología, da arqueologia, da cultura am ericanos se integra fortem ente na
quanto da teosofía. De fato, seguindo a sugestão base da construção de uma identidade am ericana
proposta por H aeckel, entre outros, e abraçada e latino-am ericana. N este sentido, o autor
por intelectuais am ericanos, e cujo escopo foi esclarece desde o início de sua argum entação
extensam ente desenvolvido por Mme. H elena P. que considera os cientistas europeus, que tão
B lavatsky (1831-1891), em ísis sem Véu (1872) freqüentem ente têm visitado e estudado os restos
e A D outrina Secreta (1888), C âm ara Cascudo materiais e a fontes culturais am ericanas, parciais
postula a existência dos continentes da Lem úria e e guiados por asserções preconcebidas que os
da A tlântida, com o berço da origem da vida e da tornam m uito propensos a considerar desde logo
civilização humanas. Segundo o autor, a existên­ a origem adventicia e relativam ente recente do
cia dos continentes perdidos surgia como homem americano como um axioma indiscutível,
explicação m ais abrangente e satisfatória dos que viria a corroborar o caráter subsidiário da
intricados argumentos a respeito dos insolúveis cultura am ericana frente à civilização européia.
problem as e m istérios que ainda pesavam sobre
a determ inação da origem da vida hum ana no
N ovo M undo. (14) A idéia de que alguns artefatos básicos das culturas
O partido que toma Câm ara Cascudo a humanas, com o a cerâmica, o arco e flecha, entre outros,
respeito da origem do homem nas Américas o teriam sido inventados por determinado grupo humano e
coloca no âmbito das discussões dos dentistas- se difundido pelo mundo, criando blocos culturais,
com eçou a ser colocada em discussão com os livros de
naturalistas e antropólogos americanos, que, desde
Friedrich Ratzel, Anthropogeographie (1882-91) e The
pelo menos a segunda metade do século XIX, H istory ofM ankind (1885-8), cuja edição inglesa de 1896
vinham postulando a filiação das grandes civiliza­ traz uma introdução escrita pelo célebre antropólogo E.B.
ções americanas - sobretudo a maia, asteca e inca Tylor. Franz Boas (1858-1942) levou esta discussão para a
- às civilizações clássicas - principalmente egípcia, etnologia norte-americana, acrescentando o relativismo
cartaginesa, grega ou turaniana - e as línguas cultural e a interpretação de uma absorção peculiar por
cada grupo dos elem entos culturais difundidos (Trigger,
americanas - náhuatl, quéchua, aimará, tupi, entre
1989: 150-155). A visão expressa por Câmara Cascudo
outras - ao então considerado pelos defensores da neste texto parece estar escorada numa interpretação um
tese dos continentes perdidos e pelos teosofistas tanto quanto vulgarizada do difusionismo.

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MACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e a Turânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização nas Américas na segunda
metade do século XIX e primeiras décadas do XX. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 3-16, 2002.

Assumindo uma postura americanista e A hipótese de Lund, assim como de outros


nacionalista, Câm ara Cascudo vai discutir o estudiosos americanos (por origem ou adoção),
axioma da origem adventicia do homem am erica­ cujas idéias e hipótese foram entusiasticamente
no, contrapondo as teorias dos “sábios euro­ apresentadas por Câmara Cascudo no decorrer
peus” , que o autor acusa serem mais “doutrinas deste ensaio, acabam por levantar o problema
intocáveis” do que hipóteses científicas, aos fundamental subjacente à discussão da origem do
estudos realizados por estudiosos americanos, homem nas Américas, que é o da datação e das
cujas conclusões pendem para o pólo oposto, origens étnicas das possíveis levas migratórias que
optando pela origem autóctone ou pelo menos teriam dado origem às civilizações indígenas no
muito antiga da humanidade americana. Segundo continente. É neste ponto que Câmara Cascudo
o autor, o aspecto com plicador deste entrecho­ postula a factibilidade da existência dos continentes
que de conclusões, que redunda na dificuldade perdidos, o que, segundo ele, viria a explicar
de se estabelecer as bases seguras para determ i­ cabalmente o mistério de muitos resquícios e ruínas
nação da origem do hom em am ericano é a falta de civilizações extremamente sofisticadas em
de consideração, por parte dos europeus, das regiões onde o colonizador encontrou apenas
pesquisas realizadas pelos eruditos americanos, selvagens - como seria o caso, lembra o autor, da
cujas conclusões foram sistematicamente Ilha do Marajó, no norte do Brasil - como viria a
desconsideradas, por razões escoradas no mero demonstrar a unidade da família humana e das
preconceito e arrogância dos estrangeiros. civilizações, colocando em pé de igualdade
Procurando sanar o que ele denomina de diferentes culturas, línguas e civilizações, nas quais
silêncio preconceituoso, Câmara Cascudo, no o homem americano e sua cultura encontrariam o
decorrer do ensaio, procura apresentar as justo lugar.
pesquisas, achados e conclusões daqueles que ele Civilizações perdidas e reencontradas nos
considera como os principais estudiosos da vestígios deixados por povos e costumes m isterio­
questão da origem do homem na América. É com sos, línguas e escritas desconhecidas e impossíveis
este objetivo que nomes como o de Florentino de serem decifradas - todos estes motivos
Ameghino (1853-1911), de origem argentina e alimentaram a imaginação do homem do século
autor da tese da origem pam peana do homem XIX, justificando o surgimento de teorias imagina­
am ericano, apresentada em La A nteguedad dei tivas, baseadas no indecifrável ou no improvável.
Hombre en el Plata, de 1915 e Rafael Requena, No entanto, por trás dos continentes perdidos e
médico venezuelano e estudioso das antigas das sacerdotisas egípto-maias corria todo um
civilizações indígenas do norte de seu país e autor campo teórico de debates que procurava repensar
do livro Vestigios de la Atlántida, de 1932, a origem do homem e das civilizações a partir dos
aparecem neste ensaio, reputados como a e em confronto com os parâmetros cientificistas
expressão cultural que honra todo o continente. do XIX. Todos sabemos que a partir de meados
Igualmente estão aqui citadas as hipóteses de do XIX as correntes de pensamento dominantes
Peter W ilhelm Lund (1801 -1880) da metade do no campo das ciências do homem se apressaram
século XIX, baseadas no exame dos fósseis por buscar seu lugar no novo panteão das
localizados na Lagoa Santa, em Minas Gerais, ciências, cujo passe de entrada parecia exigir que
cujas suposições embora aparentemente viessem a se abjurasse o dogma cristão da origem una da
confirmar a premissa européia do caráter adventi­ humanidade. Outras correntes, porém, às vezes
cio da “raça americana”, a contradizia mortalmen­ percorrendo caminhos pouco ortodoxos, busca­
te. Afirmava Lund que o homem americano não só ram reintegrar as grandes questões do humanismo,
era contemporáneo dos animais de grande porte - reafirmando a origem única dos homens e de suas
e, portanto, lançava para o passado rem oto as civilizações sob uma roupagem que reivindicava
migrações para o continente americano - como o uma nova ciência, regida por aquilo que na
próprio territorio americano, ou pelo menos o ascensão inexorável do paradigma cientificista só
plateau central brasileiro era, sem dúvida, a poderia se manifestar na forma do esotérico, do
porção mais antiga do mundo e já conhecia a vida misterioso e do intangível. É esta recusa de se
humana quando outras partes do globo ainda submeter aos princípios científicos do século XIX,
jaziam submersas nos oceanos. baseados no racismo, que parece ter m ovido a

14
M ACHADO, M.H.P.T. Os Tupis e a Turânia: hipóteses sobre a origem do homem e da civilização nas Américas na segunda
metade do século XIX e primeiras décadas do X X. Rev. do Museu de A rqueologia e E tnologia, São Paulo, ¡ 2 : 3-16, 2002.

história da busca das origens perdidas do homem imaginativas que explicaria porque, embora
e de suas civilizações. Seria tam bém a visão derrotadas pela ciência, elas perm aneçam tão
hum anista que perm eava esta busca e suas teorias populares nos dias de hoje.

MACHADO, M.H.P.T. Tupians and Turanians: hypotheses on the origins of man and civilization
in the Americas in the nineteenth and early twentieth centuries. Rev. do Mus eu de
A rqueologia e Etnologia, São Paulo, 72: 3-16, 2002.

ABSTRACT: This article examines nineteenth and early twentieth-century theories


on the origins of man and civilization in the Americas. Following an analysis of these
theories within the European and North American contexts, the discussion focuses on
Latin American (especially Brazilian) intellectuals who wrote on the development of
pre-Columbian civilizations and on the role of ancient America in the history of
civilization. In order to understand the impact of these debates on the emerging fields
of Latin American archaeology and anthropology, this article analyzes different aspects
of the development of comparative philology, ethnology, and anthropology, which
contributed to the edification of the theoretical and ideological monument that came to
be known as Indo-European civilization.

U NITERM S: A m ericanism - H ypotheses on the Origins of Civilization -


Comparative Philology.

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Recebido para publicação em 14 de junho de 2002.

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