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II ENCONTRO DO NEMAT:

NOVOS CAMINHOS
PARA A HISTÓRIA

Anais
ELETRÔNICOS
II ENCONTRO DO NEMAt:
NOVOS CAMINHOS
PARA A HISTÓRIA
Universidade Federal de Pernambuco
Programa de Pós-Graduação em História da UFPE
Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt)

06 a 09 de novembro de 2017
Recife, Pernambuco.

Anais
ELETRÔNICOS
II Encontro do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt):
Novos caminhos para a História.

Comissão Organizadora

Élida Nathalia Olimpio da Silva (Graduanda em História UFPE)


George Félix Cabral de Souza (Departamento de História da UFPE)
Henrique Nelson da Silva (Doutorando PPGH-UFPE)
Jeffrey Aislan de Souza Silva (Doutorando PPGH-UFPE)
Jéssica Rocha de Sousa (Mestranda PPGH-UFPE)
Luanna Maria Ventura dos Santos Oliveira (Doutoranda PPGH-UFPE)
Paulo Fillipy de Souza Conti (Doutorando PPGH-UFPE)

Comissão Científica

Breno Almeida Vaz Lisboa (SEDUC)


Cristiano Luis Christillino (UEPB)
George Félix Cabral de Souza (UFPE)
Gian Carlo de Melo Silva (UFAL)
Jeannie da Silva Menezes (UFRPE)
José Bento Rosa da Silva (UFPE)
Luiza Nascimento dos Reis (UFPE)
Suely Creusa Cordeiro de Almeida (UFRPE)
Virgínia Maria Almoêdo de Assis (UFPE)
Wellington Barbosa da Silva (UFRPE)

Catalogação na fonte:
Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408

E56s Encontro do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (2. : 2017 nov.


06-09 : Recife, PE).
II Encontro do NEMAt : novos caminhos para a história : anais
eletrônicos [recurso eletrônico] / Programa de Pós-Graduação em
História - UFPE; [Comissão organizadora : Élida Nathalia Olimpio
da Silva]... [et al.]. – Recife: Editora UFPE, 2018.

Inclui referências.
ISBN 978-85-415-1008-0 (online)

1. História – Congressos. 2. Brasil – História – Congressos. 3.


África – História – Congressos. I. Universidade Federal de
Pernambuco . Programa de Pós-Graduação em História. II. Silva,
Elida Nathalia Olimpio da (Org.). II. Título.

907 CDD (23.ed.) UFPE (BC2018-044)

Todos os direitos reservados aos organizadores: Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer
meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos,
fonográficos e videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial em qualquer
sistema de processamento de dados e a inclusão de qualquer parte da obra em qualquer programa
juscibernético. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua
editoração.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 10

PARTE I – ÁFRICA, DIÁSPORA E CULTURA AFRICANA. 12

A EDUCAÇÃO MISSIONÁRIA E O PROCESSO CIVILIZADOR COMO AGENTES DE


TRANSFORMAÇÕES ENTRE MBUNDOS E TSONGAS SÉCULO XIX.
Cecília Gomes da Silva 13

INSTITUIÇÕES POLÍTICAS NO SEMI-PRESIDENCIALISMO: UMA ANÁLISE A


PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DA GUINÉ-BISSAU.
Flaviano Fernandes da Silva 25

OS ESTUDOS AFRICANOS E SEUS DESAFIOS METODOLÓGICOS.


Graziella Fernanda Santos Queiroz 38

FRONTEIRAS EFÊMERAS NA CAPITANIA DE ANGOLA, SÉCULOS XVI E XVII.


Leandro Nascimento de Souza 48

DIÁSPORA AFRICANA: A VINDA DOS ESTUDANTES GUINEENSES PARA AS


UNIVERSIDADES PRIVADAS.
Renata Maria Franco Ribeiro 63

PARTE II – COMÉRCIO ATLÂNTICO, ESCRAVIDÃO E MESTIÇAGEM. 66

OS HOMENS PARDOS DA VILA DO PENEDO E AS ESTRATÉGIAS DE DISTINÇÃO


SOCIAL NA COMARCA DE ALAGOAS (1750-1819).
Fabianne Nayra Santos Alves 67

OS ARTÍFICES DOS MARES: O TRABALHO DOS OFICIAIS MECÂNICOS NAS


EMBARCAÇÕES, SÉCULO XVIII.
Henrique Nelson da Silva 79

ENTRE O COMÉRCIO LIVRE E O MONOPÓLIO: A ALFÂNDEGA DE PERNAMBUCO


E AS DINÂMICAS FISCAIS ANTES E DURANTE A COMPANHIA DE COMÉRCIO DE
PERNAMBUCO E PARAÍBA (1724-1780).
Luanna Maria Ventura dos Santos Oliveira 92

REDES MERCANTIS E DIÁSPORA SEFARDITA: CRISTÃOS-NOVOS NA ECONOMIA


COLONIAL PARAIBANA.
Maria Eduarda de Medeiros Brandão 102

PARTE III – ELITES, ADMINISTRAÇÃO, GOVERNO E PODER NA AMÉRICA


PORTUGUESA. 117

FORMAÇÃO, ATUAÇÃO E IDENTIDADE DOS PROFESSORES RÉGIOS EM


PERNAMBUCO ENTRE 1759 E 1825.
Elaine Cristina Gomes da Cunha 118

A IMPRENSA DA REVOLUÇÃO PERNAMBUCANA DE 1817 E SUAS IDEIAS


PRESENTES NA CONFEDERAÇÃO DO EQUADOR EM 1824.
Fred Cândido da Silva 132

ANÁLISE E SISTEMATIZAÇÃO DAS CORRESPONDÊNCIAS DA CÂMARA DO


RECIFE NO SÉCULO XVIII: O DEFICIENTE ABASTECIMENTO DA CIDADE.
Mateus Bernardo Galvão Couto 147

ENTRE O LOCAL E O CENTRAL: UM PANORAMA DA COMUNICAÇÃO POLÍTICA


NA CÂMARA MUNICIPAL DE OLINDA (1646-1711).
Pedro Ivo Gomes de Melo 158

PARTE IV – POLÍTICA, BUROCRACIA, ESCRAVIDÃO E CIDADANIA NOS


OITOCENTOS. 169

MANDONISMO POLÍTICO, SEGURANÇA E MÃO DE OBRA: OS DILEMAS DO


RECRUTAMENTO NA PROVÍNCIA DA PARAHYBA NA DÉCADA DE 1860.
Alysson Duarte Cabral 191

MAPEAMENTO DO COMÉRCIO DE ESCRAVIZADOS NOS BAIRROS CENTRAIS DO


RECIFE, 1831-1844.
Arthur Danillo Castelo Branco de Souza 205

A LEI DO VENTRE LIVRE NA DOCUMENTAÇÃO ECLESIÁSTICA – PERNAMBUCO,


1871 – 1879.
Elida Nathalia Olimpio da Silva 223

O CENÁRIO RECIFENSE NOS ANOS FINAIS DA ESCRAVIDÃO (1880- 1888).


Elisiane Araujo Cordeiro 234

CASAMENTO NAPOLITANO: REPERCUSSÕES DOS CASAMENTOS DE S.M.I. O


IMPERADOR DOM PEDRO II E DA PRINCESA IMPERIAL DONA JANUÁRIA NO
RECIFE.
Janina Rita Silva de Souza 250

O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE PERNAMBUCO: UMA INSTITUIÇÃO JUDICIÁRIA


NA TRANSFORMAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO IMPERIAL (SÉCS. XVIII E
XIX).
Jeffrey Aislan de Souza Silva 259

ENTRE RESISTIR E NEGOCIAR: A PARTICIPAÇÃO DOS HOMENS NEGROS NO


EXÉRCITO DA PROVÍNCIA DA PARAÍBA DO NORTE (1850-1864).
Josilene Pereira Pacheco 276

AS FAMÍLIAS INTERGERACIONAIS DAS LIBERTAS RITA, MARIA E LUIZA:


FREGUESIA DE ÁGUA BRANCA/PROVÍNCIA DAS ALAGOAS, (SÉCULO XIX).
Marília Lima de Araújo 295
CRIME E CASTIGO: PENA DE MORTE E A MANUTENÇÃO DA ORDEM NO
IMPÉRIO BRASILEIRO (1830-1876).
Oseas Batista Figueira Júnior 310

ADMINISTRAR E DEFENDER: PAPÉIS DAS CÂMARAS MUNICIPAIS NA AMÉRICA


PORTUGUESA (SÉC. XVI E XVII).
Sandriano José da Silva 326

OS DEPUTADOS DA ASSEMBLEIA PROVINCIAL DE PERNAMBUCO NA DÉCADA


DE 1850.
Thiago Soares de Macedo Silva 339

PARTE V – RELIGIÃO, FAMÍLIA E JUSTIÇA NO MUNDO ATLÂNTICO,


SÉCULOS XVII E XVIII. 352

OS NÍVEIS DE TENSÕES NA COLÔNIA HOLANDESA: OS OFICIAIS DE JUSTIÇA


TRANSGREDINDO AS NORMAS DA COLÔNIA AO UTILIZAREM DE VIOLÊNCIA
CONTRA A POPULAÇÃO CIVIL (1637-1644).
Filomena Cristina da Silva Marques 353

OS EMBATES JUDICIAIS NA RELAÇÃO DE PERNAMBUCO COM AS CAPITANIAS


VIZINHAS ENTRE 1655 E 1760.
Iviana Izabel Bezerra de Lira 368

PROBABILISMO JURÍDICO E O PENSAMENTO SALMANTINO NA AMÉRICA


PORTUGUESA: UMA ANÁLISE A PARTIR DO CONFLITO ENTRE O JUIZ TEIXEIRA
DA MATTA E O BISPO SANTA TERESA.
Maria Alice Mendes Rocha 385

ALIANÇAS ESTRATÉGICAS: OS MAGISTRADOS E AS MONARQUIAS IBÉRICAS


NO SÉCULO XVIII.
Paulo Fillipy de Souza Conti 402

ROMPENDO AS MOLDURAS: O DECORO E A TEATRALIDADE NOS PAINÉIS DA


IGREJA DA ORDEM TERCEIRA DO CARMO DO RECIFE.
Rafael Lima Meireles de Queiroz 420

SANTO OFÍCIO E SEUS HORIZONTES NA PRIMEIRA VISITAÇÃO EM


PERNAMBUCO.
Raíssa Toledo de Oliveira 437

TECENDO REDES: FORMAÇÃO FAMILIAR E RELAÇÕES DE PODER NA VILLA


DAS ALAGOAS (1801-1810).
Vanieire dos Santos Oliveira 447

A RACIONALIDADE DOS ARRANJOS MATRIMONIAIS DA ELITE MERCANTIL DE


PERNAMBUCO NO SÉCULO XVIII.
Poliana Priscila da Silva 464
APRESENTAÇÃO

O Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt) entrou em atividade no ano de


2013. Primeiramente, foi uma iniciativa de um pequeno grupo de alunos da graduação em
História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), interessado em estudar a História
de Pernambuco. Com a inserção do Prof. Dr. George Félix Cabral de Souza (UFPE), na
condição de coordenador, o Núcleo deu um grande passo acadêmico, tornando-se um grupo
de pesquisa com reuniões regulares e também ampliou a espacialidade a ser estudada,
ingressando nos estudos do Mundo Atlântico.
Ao inserir o núcleo de estudos em uma perspectiva mais ampla, estabeleceu-se a sua
ligação com o Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, mais especificamente, a sua
afinidade com a linha de pesquisa Mundo Atlântico. Dessa forma, o NEMAt começou a
aparecer na vida acadêmica dos estudantes da UFPE e as propostas de estudos, discussões e
pesquisas, passaram a ser conduzidas pelos professores da Pós-Graduação e pós-graduandos
do curso de História da UFPE vinculados à linha de pesquisa mencionada. Ao mesmo tempo,
o NEMAt também se apresentou como meio de promoção de conferências e palestras de
professores e professoras da UFPE e de profissionais de outras universidades, possibilitando 10
trocas de conhecimento e de experiências de pesquisa.
Assim, o Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico foi configurado dentro de sua visão
atual: fomentar estudos, debates e experiências de pesquisas que contemplem diversas
temáticas e temporalidades em um recorte espacial, o Mundo Atlântico, congregando as
diversas dimensões e conexões políticas, econômicas, sociais e culturais nos espaços
compreendidos nos territórios ligados direta ou indiretamente ao complexo Atlântico.
Em 2016, em meio às adversidades políticas e econômicas, decidimos dar um passo
além do que até então estava sendo proposto. Realizamos o I ENCONTRO DO NEMAT,
originalmente pensado como uma espécie de “aquecimento” para o VI Encontro Internacional
de História Colonial. Rapidamente, o evento ganhou vida própria e contou com a presença de
mais de 80 participantes, mais da metade apresentando trabalhos em simpósios temáticos.
Naquele momento, percebemos que o NEMAt poderia oferecer mais, possibilitando uma
nova oportunidade de reunir profissionais e estudantes no calendário anual.
Em 2017, o NEMAt, através dos seus componentes, dá mais um salto em seus
objetivos reunindo representantes de um número maior de instituições. Além de professores e
estudantes da UFPE, teremos também representantes da UFRPE, UPE, UNICAP, UFAL,
UEPB, UFF e UFRGS entre palestrantes, ministrantes de minicursos e coordenadores de
simpósios temáticos. E entre os participantes das diversas modalidades, reunimos estudantes
de um número maior de universidades, aos quais expressamos – desde já – a nossa gratidão,
respeito e desejo de aprofundar ainda mais as nossas relações.
Por fim, que sejam bem vindos e bem vidas ao II ENCONTRO DO NEMAT: NOVOS
CAMINHOS PARA A HISTÓRIA e desejamos que seja mais uma rica experiência
acadêmica e que possamos estimular um número cada vez maior de estudantes a ingressarem
nos estudos que enfocam a dinâmicas atlânticas, seja na modernidade ou contemporaneidade.
A organização.

11
PARTE I

ÁFRICA, DIÁSPORA
E CULTURA
AFRICANA
A EDUCAÇÃO
MISSIONÁRIA E O
PROCESSO
CIVILIZADOR COMO
AGENTES DE
TRANSFORMAÇÕES
ENTRE MBUNDOS E
TSONGAS SÉCULO XIX.

CECÍLIA GOMES DA SILVA

MESTRANDA (UFAL)
INTRODUÇÃO

O continente africano é composto por uma vasta rede de culturas e costumes que
interferem diretamente na vida social dos que o povoam, dentre essas praticas destacamos a
poligamia, que é um forte atrativo de discussão quando se pensa em trabalhar e pesquisar a
vida e a cultura desses povos, principalmente durante o período de dominação portuguesa
desde o império a republica.
A poligamia para essas sociedades é parte integrante de suas culturas, de seus
costumes, relacionando-se aos mecanismos destinados á obtenção de poder e ao domínio no
14
meio social e familiar. Entende-se que a poligamia é uma pratica ancestral que tem relação
direta com a linhagem1 e com o parentesco dessas sociedades, portanto pré-existente nos
grupos étnicos que compõem esse continente.
Segundo o histórico desses povos notamos que a poligamia sempre existiu nas
sociedades de Angola e Moçambique, e que foram as diferentes praticas realizadas através do
processo de colonização as principais responsáveis pela diminuição, ou mesmo extinção,
desse costume, considerado em nossa pesquisa como um método de manutenção da
ancestralidade e de obtenção de poder.
Isso porque aos olhos dos portugueses a poligamia apresentava características
diferentes das que conheciam em relação a organização familiar e social causando estranheza
quando comparadas aos discursos morais tanto orientais quanto ocidentais. Por isso os
discursos de civilização e moralidade europeias foram utilizados como argumentos para

A autora é mestranda em História pela Universidade Federal de Alagoas, membro do LAHAFRO (Laboratório
de História da África e Afro-Brasileira do ICHCA-UFAL) e bolsista do programa de incentivo a pesquisa
acadêmica FAPEAL.
1
Relação que se estabelece através de parentesco, de antepassados comuns; dos membros de uma em comum
família
justificar e legitimar as intervenções da república portuguesa nas colônias do continente
africano.
Intervenções estas que podem ser identificadas principalmente através das
influências adquiridas com a presença dos colonizadores portugueses e de sua religião,
católica, que ditava valores e propagava comportamentos que deveriam ser responsáveis por
minimizar as práticas culturais desses povos.
Nesse sentido propomos com este trabalho entender como o processo de civilização
portuguesa funcionou como estratégia para a proibição da pratica poligâmica entre ao
mbundos de Angola e os tsongas de Moçambique durante o século XIX.

A POLIGAMIA

Poligamia é o que se entende pela junção matrimonial de mais de um individuo de


sexos diferentes da mesma espécie, ou de um homem com mais de uma mulher2. É uma
pratica que teve seu aparecimento ainda na época dos primórdios da organização social dos
grupos entre as sociedades africanas e que esta ligada a etnicidade 3 e a linhagem desses
povos. 15
E uma pratica onde o casamento com mais de uma mulher tinha como significado a
obtenção de riquezas, status social e abundância de procriação para os homens que
compunham a família, assim como sinônimo de economia e demografia para essas
sociedades, assim viver em um lar polígamo, para esses povos, podia ser melhor do que outras
alternativas postas principalmente para as mulheres como a prostituição, a escravidão, e a
fome.

[...] A prosperidade mede-se pelo número de propriedades. A virilidade pelo número


de mulheres e filhos. Um grande patriarca deve ter várias cabeças sob o seu comando.
Quando se tem poder é preciso ter onde exercê-lo, não é assim? Abraão, Isac, Jacob,
foram polígamos não foram? Na bíblia, só Adão não foi polígamo[...]4.

Éra uma prática que existia não somente nas sociedades patriarcais, onde seguiam-se
as regras ditadas por uma pessoa mais velha do sexo masculino, podendo ser o pai, mas
também nas sociedades matriarcais, nas quais o papel de liderança e poder era exercido pela
pessoa mais velha do sexo feminino, podendo ser a mãe, em ambas, imperando razões sociais

2
JUNOD, Henri. Usos Costumes dos Bantu. Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique,1996, p. 212.
3
É a autoconsciência da especificidade cultural e social de um grupo particular, ou seja, o fato de se pertencer a
um grupo culturalmente ligado
4
CHIZIANE, Paulina. Niketche: Uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p.27.
ou religiosas que aceitavam ou negavam essa prática. Por isso as sociedades que aceitavam
acabavam impondo algumas restrições que remetiam desde ao número de casamentos até as
regras de comportamento para o desenvolvimento dela, pois um homem polígamo só poderia
ter tantas esposas quanto puder sustentar.
Seu aparecimento faz referência à diferentes motivos entre eles as leis de sucessão
que regulavam a família estabelecendo como legitimo o direito de um irmão herdar a mulher
viúva de seu irmão mais velho, fosse ele casado ou não; o grande numero de sociedades
patriarcais nas quais era impossível que uma mulher solteira ficasse independente de seus
pais, irmãos e marido; e à escassez de homens devido à partida para as guerras, onde para não
ficarem solteiras as mulheres eram tomadas por esposas por homens casados ou não.

CIVILIZAÇÃO COMO ESTRATÉGIA CONTRA A POLIGAMIA

Após a conferencia de Berlim e a divisão dos territórios africanos entre as potencias


colonizadoras ficando Portugal com a tutela dos territórios correspondestes a região de

16
Angola e Moçambique, este rapidamente estabeleceu para suas colônias estratégias de
colonização baseadas principalmente na política de trabalho mercantil e na educação
missionária, tomando como justificativa principalmente o processo de trabalho divino, que
salva, dignifica e santifica.
Esse processo nos dois territórios teve inicio durante o império português tendo como
base as doutrinas da igreja católica e as leis do Código Civil Português e da Legislação
Portuguesa para o Ultramar que estabeleciam as condições legais e as regras segundo as quais
os territórios portugueses do ultramar teriam que cumprir obediência, modificando assim suas
formas de organização política, social, familiar, educativa e religiosa.
Dentre suas primeiras modificações, destacamos o processo de escravização para o
trabalho interno e externo através do trafico mercantil, o que embora já existente para esses
povos diferenciava-se do processo português, pois segundo Henri Junod a escravidão era o
resultado das guerras entre os grupos e não o motivo delas. Elas eram realizadas como uma
forma de obtenção de terras e demais propriedades, como animais, mulheres e homens, uma
vez que este se fazia de fundamental importância e meio de obtenção de riquezas para esses
povos.
Essa característica é um dos fatores que contribuiu para o alargamento da poligamia,
pois pela cultura e costumes dos povos africanos a poligamia já era praticada dentro desses
grupos que se utilizavam da escravidão para obtenção de riquezas e propriedades. Porém com
a crescente saída de escravos do sexo masculino para escravidão fora dos espaços africanos,
as mulheres capturadas passaram a ser cada vez mais incluídas dentro das comunidades
utilizadas para a captura, alargando, portanto o espaço familiar e a prática da poligâmica.
Outra atitude fundamental foi a tomada de propriedades, neste sentido através da
dominação dos povos de Angola e Moçambique os portugueses tomavam suas terras e
registravam-nas como suas, segundo suas próprias leis, e essas apropriações eram realizadas
através do confisco, principalmente das terras mais férteis.
O objetivo desse confisco era principalmente o lucro através da produção para
comercialização, o que acontecia tanto através de guerras como através da exigência do
registro de propriedade o que ignorava completamente o significado da terra e da apropriação
para esses povos que não entendiam o significado de propriedade privada, pois a terra era um
bem comum da sociedade e por isso não pertencia a um individuo em particular. O solo era
sempre visto e entendido como um patrimônio das linhagens 5 e estas podiam dele usufruir de
diversas maneiras sem dele se apropriarem e sem a ele danificarem.
Essa apropriação vai interferir diretamente na prática da poligamia, pois nessa relação

17
quando um homem desejava firmar um casamento com uma ou mais de uma mulher, ele
muitas vezes realizava o pagamento do lovolo 6 através da entrega de terras já que a mulher
adquirida iria fazer parte de sua linhagem e a terra era um bem linhageiro.
Outra de suas formas de impor a dominação foi a utilização do trabalho compulsório,
imposto quando a administração portuguesa em ambos os territórios já estava bem
consolidada, esse trabalho costumava durar de seis meses a um ano com obediência as regras
e normas estabelecidas pela Coroa portuguesa, ou o trabalho forçado como uma forma de
correção para quem era considerado vadio o que não lhes permitia possibilidades de adquirir
quais quer bens e assim vir a alcançar mais de um casamento.
Destaca-se ainda a cobrança de impostos o que segundo Leila Hernandez era realizada
tanto através do imposto pessoal, cobrado a todos que residissem nas regiões de dominação
portuguesa; quanto através do imposto indígena de capitação cobrado apenas aos nativos da
região pelo usufruto da terra; e do imposto da palhota, cobrado por unidades de moradia.
Essas atitudes tinham forte influencia no combate a pratica da poligamia, isso porque o
imposto estabelecido retirava dos homens a possibilidade de obterem mais esposas, uma vês

5
Relação que se estabelece através de parentesco, de antepassados comuns; dos membros de uma em comum
família.
6 É um costume tradicional praticado até hoje por algumas sociedades de em bens materiais ou financeiro pelo

noivo diante da proposta de casamento.


que os bens que possuía eram de fundamental importância para a aquisição de muitas
mulheres já que a depender de cada sociedade muitas vezes essas mulheres não se
estabeleciam em uma única palhota7 mas cada uma delas poderia se estabelecer em uma
palhota diferente se tornando quase impossível para esse homem pagar os impostos por cada
uma das palhotas.
Essa dificuldade é notável no artigo sobre a família indígena de Rodrigues Junior
registrado na Revista da Imprensa do Boletim da Agencia Geral das Colônias de número 394
de 1958 que diz:

Lemos que no Transval, em tempos, o Departamento de Negócio Indigenas procurou,


num momento dado, lutar directamente contra a poligamia da maneira seguinte: Como
todo o homem tinha que pagar imposto segundo o número das suas mulheres, fixou-se
a taxa da primeira em duas libras e das seguintes em quatro. Decerto que o imposto
resultou de algum modo, mas não atingiu o objetivo desejado, visto que o negro viu
apenas a impossibilidade de ter mais mulheres por falta de dinheiro. 8

Dessa forma, segundo o relato acima podemos sugerir duas interpretações para que a
implementação desse imposto não tenha atingido o objetivo desejado. Primeiro a de que esse
homem se vendo impossibilitado de pagar o imposto por cada uma das palhotas que possuía 18
tenha passado a omitir dos administradores portugueses a quantidade de mulheres que
realmente possuía e assim poder pagar menos impostos e continuar com a prática poligâmica.
Segundo que de fato, embora esses homens não tenham deixado de praticar a
poligamia e se tornado monogâmicos como pretendiam os portugueses a quantidade de
mulheres por eles adquiridas possa ter diminuído de forma significativa para a sobrevivência
dessa prática devido à dificuldade de pagamento do imposto que dobrava seu valor a partir da
segunda mulher adquirida, o que no caso de homens que teriam a possibilidade de ter quatro
ou cinco esposas devido a quantidade de seus bens teriam adquirido menos esposas do que o
desejado.
Dentre todas as estratégias e mudanças realizadas pelos portugueses é possível
perceber na leitura das fontes que a mais significativa no que diz respeito ao combate a
poligamia foi a inserção do missionarismo e da religião católica. Isso porque foi através dos
jesuítas e sua dedicação a conversão dos povos de Angola e Moçambique que a maioria das
tradições culturas destes foram eliminadas ou sofreram severas transformações.
7
Habitação rústica construída com uma estrutura de tronco, ramos e palha sob o chão de terra batido que serve
de abrigo, em Moçambique denomina-se palhota, em Angola denomina-se Cubata.
8
JUNIOR, Rodrigues. A família indígena. In: Boletim da Agencia Geral das Colônias, nº 394 de 1958. p. 207.
Foi com o objetivo de civilizar esses homens que se formaram várias missões nos
diferentes territórios que compunham as suas duas colônias. Embora em algumas lugares
predominou a distribuição de apenas dois tipos de missões em outros havia um numero de
missões superiores a quantidade de territórios o que é demonstrado no quadro a seguir.

Distribuição das Missões Portuguesas

Região Missão Total


-Muxima -Clero de Sarnache 02
-Ilha de Loanda -Espírito Santo
-Ambris
-Dondo
Angola -Pongo Andongo
-Novo redondo
-Mossamedes
-Porto Alexandre
-Benguela
-Lourenço Marques -Manhiça 05
-São Paulo de Messano
-Magude
-São José de Langhene
-Malaiçe 19
-Manica -Franciscanos Portugueses 01
Moçambique -Sofala
-Gaza -Changuene 02
-Muchopes
-Inhambane -Humoine 02
-Inharrime
-Tete -Borama 02
-Angonia
Total Geral 14
FONTE: Boletim da Agencia Geral das Colônias nº 16 de 1926.

Em Moçambique são também dois os grupos de missões religiosas que o Estado


subsidia e aproveita para a civilização dos povos: um de missionários associados, em que há
pessoal eclesiásticos e auxiliares leigos, outro de missionários independentes: o primeiro
grupo é dos Franciscanos portugueses, que trabalham sobretudo nos territórios da Companhia
de Moçambique, o segundo, em maioria constituídos elementos do antigo colégio eclesiástico
de Sernache.9 Além dos dois grupos listados acima, missionários franciscanos portugueses e

9
CORREIA, J. Alves. As missões religiosas como instrumento de civilização portuguesa. In: Boletim da
Agencia Geral das Colônias, nº 16 de 1926, p. 75-79.
eclesiásticos de Sernache, estes se dividiam em ouros grupos dentro dessa região além de suas
sucursais.
A igreja era considerada uma das principais instituições responsáveis pelo processo
educativo de uma sociedade, era através também dela que se podia ter acesso aos melhores
métodos educativos capazes de transformar qualquer pessoa em um verdadeiro cidadão
civilizado através do que segundo a descrição de Norbert Elias podemos chamar de Manual
educativo que conteria os modelos de comportamentos padrões necessários a uma sociedade
evoluída. 10
O programa das missões, portanto, tinha como objetivo de, satisfazendo as vontades da
republica portuguesa e continuando com o que foi iniciado ainda no império português,
desenvolver grandes contingentes de trabalhadores para suprir as necessidades tanto de
Portugal quanto de Moçambique. Dentro desse programa destacava-se segundo o relato do
Padre Alves Correia, um dos padres designados pela Coroa para uma das missões de
Moçambique, disponível nos Cadernos Coloniais número 31 de 1936, a responsabilidade
sobre:
20
a) A educação e instrução do nativo português, homem e mulher, dentro ou fora
da colônia, procurando aperfeiçoa-lo pela morigeração dos costumes, pelo abandono
de suas superstições e selvajarias, pela elevação moral e social da mulher e pela
dignificação do trabalho. O ensino da língua portuguesa, coadjuvado,
provisoriamente, pela língua indígena, com exclusão absoluta de qualquer outra,
será obrigatório em todas as escolas indígenas, e nelas, com o ensino da moral e das
letras, se devem dar lições das grandezas e glórias de Portugal;
b) A educação e instrução geral, para a cultura e engrandecimento das colônias,
podendo os directores das missões fundar escolas, colégios ou estabelecimentos de
ensino,[...]
c) O ensino agrícola, [...] nas quais o indígena possa aprender práticamente as
variadas culturas por métodos de progressiva evolução, melhorando gradualmente os
seus rudimentares e primitivos processos de trabalho, [...]
d) O ensino da pecuária, feito, quando possível com ensaios de novas raças ou
cruzamentos aperfeiçoados;
e) O ensino profissional, fundando, administrando ou dirigindo escolas de artes
e ofícios ou simples oficinas;
f) O ensino doméstico, procurando fazer da mulher indígena cuidadosa dona de
casa e boa mãe de família;
g) A assistência sanitária ao indígena, [...] abrindo dispensários, hospitais,
enfermarias, asilos, creches, gafarias, ou outras instituições de caridade [...] 11

10
ELIAS, Norbert. O processo civilizador volume I: Uma história dos costumes. Tradução Ruy Jungmann;
revisão e apresentação, Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. P. 83.
11
CORREIA, Pe. Alves. Processos educativos, antigos e modernos, nas missões religiosas portuguesas.
Portugal: In: Cadernos Coloniais, nº31 de 1936, p. 3.
Nesse sentido várias foram as especializações de trabalho oferecidas por essas escolas,
ao mesmo tempo em que instruía esses homens, mulheres e crianças no ensino da história,
geografia e língua de sua metrópole.
Só as 14 missões de Moçambique demonstradas no quadro acima, no inicio da republica
portuguesa conseguiu instalar do Tete a Lourenço Marques um total de 79 técnicas de
educação profissional de homens e mulheres sem contar as escolas que ofereciam os ensinos
primários e secundários como mostrado no quadro a seguir.

Elementos do Ensino Profissional

Missão Escolas Total


-Manhiça -Oficina de alfaiate 02
-Oficina de carpinteiro
-São Paulo de Messano -Sem definição 13
-Magude -Oficina de olaria 06
-Oficina de pedreiro
-São José de Langhene -Internato feminino 04
-Malaíce -Oficina de funileiro 03
-Oficina de carpinteiro

-Changuene
-Oficina de sapateiro
-Oficina de alfaiate 04
21
-Oficina de sapateiro
-Muchopes -Oficina de tipografia 03
Moçambique -Oficina de encadernação
-Humoine -Oficina de carpinteiro Sem definição
-Oficina de pedreiro
-Inharrime -Oficina de carpintaria Sem defnição
-Boroma -Oficina de alfaiataria 09
-Oficina de sapataria
-Oficina de carpintaria
-Oficina de pedreiro
-Angonia -Oficina de alfaiataria 35
-Oficina de carpintaria
Total Geral 79
FONTE: Boletim da Agencia Geral das Colônias nº 16 de 1926.

Dentro desse processo educativo oferecido através das escolas missão duas se
destacaram como geradoras de problemas para os governadores portugueses, a educação
específica para as mulheres e para crianças. Isso porque devido a longa convivência entre
esses povos os missionários percebiam que para conseguirem organizar de fato essas
sociedades e suas famílias seria necessário implantar uma educação específica tanto para as
mulheres casadas como para as crianças.
Com a justificativa e o discurso de ser a família cristã um fator de fundamental
importância começaram a formação de institutos religiosos para a classe feminina da
sociedade, para Angola, tendo como responsáveis as irmãs de São José de Cluny no ensinao
das mulheres para o trabalho, o amor, e o respeito a Portugal. Para Moçambique nos
territórios de Gaza as responsáveis pelas missões femininas foram as irmãs religiosas do
Instituto Feminino inaugurado em 1934 entre as regiões de Manjacaze, Chibuto e
Chongoense.
Apesar de terem os missionários investido fortemente principalmente na educação
técnica para os homens e na missão feminina para as mulheres, na tentativa de combater o
aumento da prática poligâmica, estes com o tempo percebeiam que muitos deles não
retornavam as suas velhas praticas abandonando os preceitos da religião cristã, mas que sim
permaneciam em ambas as práticas. 12
Assim passaram esses missionários a investir na educação das crianças, pois
precisavam retirar os costumes nativos da memória desses povos ainda durante seu processo
de formação, ou seja, ainda durante a infância. Essa educação deveria ser uma educação moral
e religiosa realizada de forma prática e não teórica orientando-os a utilização de atos 22
religiosos que serviriam para a completa formação de suas vidas enquanto cristãos.
A educação cristã deveria, portanto atuar sobre essas crianças e jovens de modo
progressivo, preparando-os para servirem de instrumentos formadores de uma consciência
religiosa e cristã no meio social em que viviam prevenindo-os para os possíveis perigos que
os pudessem cercar na sua sociedade e na família, o que era uma referencia aos processos da
educação segundo os costumes tradicionais como a iniciação e a prática da poligamia.

CONCLUSÃO

Este trabalho é um resultado preliminar de uma pesquisa na qual procuramos


mapear algumas imagens fornecidas pela presença portuguesa e a prática da poligamia nas
sociedades banto de Moçambique e Angola, através do estudo de algumas cartas contendo
registros e relatos da estruturação dessas.
Através dessa pesquisa é possível perceber que os métodos de civilização
empregados pelos portugueses nos territórios de Angola e Moçambique são apontados nessa
como os maiores responsáveis pela diminuição de muitos dos costumes locais, principalmente
da pratica da poligamia. Isso porque os portugueses ao inserirem novas formas culturais
12
JUNOD, Henri. 1996.
desconhecidas a essas sociedades tinham como objetivo destituí-las de suas cargas culturas
para facilitar o aproveitamento de sua força de trabalho.
Destacamos dentre esses métodos como o mais influente a educação promovida
através das missões, estas que tentaram de todas as formas por meio do ensino religioso e
escolar modificar a realidade desses povos. Primeiro com estudos técnicos específicos aos
homens para que pudessem exercer um oficio em serviço da própria colônia e do colonizador.
Depois com iniciativas voltadas ao ensino da mulher, tornando-as boas donas de casa e
influenciadoras dos seus maridos nas questões que diziam respeito à religião cristã. Por ultimo
inserindo um ensino especifico para as crianças, onde poderiam agir com maior produtividade
já que estas estariam ainda em fase de aprendizagem em relação aos costumes locais., ficando
mais fácil retira-los inserindo o modelo português de educação.
Nossa analise mostra, portanto que os grupos étnicos que formavam os povos
mbundo e tsonga de angola e Moçambique foram intensamente submetidos a uma forte
tentativa de aculturação, principalmente em relação a pratica poligâmica, por parte dos
portugueses durante o período em que se estabeleceram nessas colônias. Tentativas estas que

23
perpassaram tanto o âmbito social como familiar desses povos.

REFERÊNCIAS

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colonial, 1880-1935. São Paulo: Ática/Unesco, 1985.

HEINTZE, Beatrix. Angola Em Movimento: Vias de Transporte, Comunicação e


História. Colónia: Rüdiger Köppe Verlag. 2008.

JUNOD, Henri. Usos Costumes dos Bantu. Maputo: Arquivo Histórico de


Moçambique,1996.

CHIZIANE, Paulina. Niketche: Uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador volume I: Uma história dos costumes. Tradução
Ruy Jungmann; revisão e apresentação, Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1994..

MILLER, Joseph C. Poder Político e Parentesco. Os antigos estados Mbundu em Angola,


Luanda: Arquivo Histórico Nacional, 1995.

MUNANGA, Kanbegeje. O universo cultural africano. In: Revista Fundação João Pinheiro.
Belo Horizonte, 1984.
LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações;
tradução Regina A. R. Bhering e Luiz Guilherme B. Chaves. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.

FONTES

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Vozes. Disponível em:<http://www.wlsa.org.mz/?target=texpoligamiaYolanda>. Acesso em:
29 de maio 2012, 21:32:46

MALUNGA, Didier. A poligamia na realidade sócio-jurídica moçambicana: Poligamia:


Mitos, ritos e implicações legais. Publicado em 22 out. 2010. Disponível em:http:<//
http://www.webartigos.com/artigos/a-poligamia-na-realidade-socio-juridica-
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nº 394 de 1958. Disponível em:<http://memoria-
africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGC-N394&p=205>. Acesso em 05 de
novembro de 2016. p. 205.

CORREIA, J. Alves. As missões religiosas como instrumento de civilização portuguesa.


Portugal: Boletim da Agencia Geral das Colônias, nº 16 de 1926. Disponível 24
em:<http://memoria-africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/BGC/BGC-N16&p=72>.
Acesso em 19 de outubro de 2016. p. 72.

CORREIA, Padre Alves. Processos educativos, antigos e modernos, nas missões religiosas
portuguesas. Portugal: In: Cadernos Coloniais, nº31 de 1936. Disponível em: <
http://memoria-
africa.ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/CadernosColoniais/CadernosColoniais-
N31&p=03>. Acesso em 14 de maio de 2016. p. 3.

LISBOA, Acto Colonial (1933). Acto Colonial de 19 de março de 1933. Disponível em


<http://dre.pt/application/dir/pdfgratis/1933/04/08300.pdf>. Acesso em 03 de maio de 2017.

LISBOA, Constituição (1911). Constituição Política da Republica Portuguesa de 21 de


agosto de 1911. Disponível em <http://www.arlamento.pt/parlamento/documents/CRP-
1911.pdf>. Acesso em 03 de maio de 2017.
INSTITUIÇÕES
POLÍTICAS NO SEMI-
PRESIDENCIALISMO:
UMA ANÁLISE A
PARTIR DA
CONSTITUIÇÃO DA
GUINÉ-BISSAU.

FLAVIANO FERNANDES
DA SILVA

MESTRANDO (UFPR)
1- INTRODUÇÃO1

Este trabalho tem por objetivo analisar o funcionamento das relações


institucionais, mais especificamente, entre os poderes constitucionais do primeiro-
ministro e do presidente da república a partir da Constituição da República da Guiné-
Bissau, enfatizando algumas das causas principais das instabilidades política e
governamental dentre as quais se destacam os excessos dos poderes presidenciais, as

26
demissões de governos e os golpes de Estado, resultando no que podemos classificar
como fragilidade democrática.
Com base neste objetivo, buscaremos responder as seguintes questões ou
problemas: as fragilidades das instituições políticas guineenses são fonte de
instabilidade da democracia e de conflitos de interesses nesse país? Nesse mesmo
sentido, a falha da democracia guineense se deve a ambiguidades dos poderes atribuídos
aos órgãos superiores da soberania (nomeadamente, presidente da república e primeiro-
ministro) pela Constituição e também pelo sistema político adotado?
Propomos realizar um levantamento bibliográfico sobre o tema de modo geral,
bem como a literatura existente sobre a questão política na Guiné Bissau, juntamente
com a legislação local, a exemplo da Constituição da República da Guiné-Bissau e
também entrevista com personalidades política.

2- O PROCESSO DA DEMOCRATIZAÇÃO
Durante o processo da democratização da Guiné-Bissau que se deu no início da
década de 1990, os constituintes da Carta Magna deste país cometeram falhas em

1
O autor é mestrando do curso de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná, Pesquisador do
Núcleo de Estudo Afro-Brasileiro (NEAB-UFPE).
relação ao processo da revogação da referida Lei Orgânica, isto porque mantiveram
intactas as cláusulas presidenciais do regime autoritário que delimitam altos poderes ao
Presidente da República2. Igualmente, adotaram o sistema semipresidencialismo
(presidencial-parlamentar), que outorga poderes significativos ao Presidente da
República, como destacaremos no primeiro capítulo. Desta forma, o “legado
autoritário”3 termina vigorando durante o processo democrático, mantendo o status quo
dos protagonistas do antigo regime, como é o caso, principalmente, do ex-presidente
João Bernardo Vieira.
O semipresidencialismo guineense enfrenta grandes dificuldades em relação à
consolidação das instituições democráticas (Executivo, Judiciário e Legislativo), no que
tange as questões políticas e legislativas que ocasionam fragilidade do processo
democrático guineense, tais como os altos poderes do presidente inscritos na
Constituição em relação ao funcionamento do Executivo, Legislativo e Judiciário. As
constantes interferências externas (países vizinhos e organismos internacionais) nos
assuntos internos da Guiné-Bissau, e as das Forças Armadas, nos assuntos políticos,

27
refletem negativamente no funcionamento das instituições políticas, comprovando a
fragilidade destas, sendo assim incapazes de resolver problemas de cunho político,
social e econômico, entre os quais, a pobreza generalizada, a fraqueza da economia e as
revoltas constantes das chefias das Forças Armadas que culminam em golpes de Estado,
assassinatos e/ou graves violações dos direitos humanos. Conforme enfatiza Huntington
(1994),
as circunstâncias que contribuem para o estabelecimento inicial
de um regime democrático também podem não contribuir para
sua consolidação e estabilidade de longo prazo. Ao nível mais
simples, a democracia envolve: (1) o fim de um regime
autoritário; (2) a instalação de um regime democrático; (3) a
consolidação do regime democrático 4.

Tal problemática assenta-se em alguns aspectos, como o enquadramento político


e governamental, a implementação do sistema político, o funcionamento das instituições
a partir do regime multipartidário, a difícil relação entre o Primeiro Ministro e o
Presidente da República e, por fim, a relação entre este último e a Assembléia Nacional
Popular (ANP).

2
Ver poderes presidenciais na Constituição de 1996, artigos 68 e 69.
3
Ver SOUSA CORDEIRO, Roberto (2010). A Constituição guineense do período da transição política e
as prerrogativas militares à luz dela: legados autoritários. Disponível em: http://didinho.org
(Estudos/Pesquisas). Acessado no dia 20 de setembro de 2012.
4
HUNTINGTON, Samuel (1994, pp.44-45).
3- ALTOS PODERES PRESIDENCIAIS NO SISTEMA
SEMIPRESIDENCIALISTA: CAUSA DAS INSTABILIDADES
POLÍTICA E GOVERNAMENTAL

Na Guiné-Bissau, durante a democratização, vários governos e corpos


legislativos (Parlamentos) foram demitidos pelos presidentes João Bernardo Vieira 5e
Koumba Yalá, que governou de2000 a 2003, os quais alegaram a “existência de crise
política institucional” como argumento para tomar suas iniciativas presidenciais. Estas
medidas são baseadas em preceitos constitucionais que facultam poderes significativos
ao Presidente da República, mas, na maioria das vezes, foram decisões tomadas com
base nos interesses e compromissos políticos.
Por exemplo, as eleições presidenciais realizadas em 19 de junho (primeiro
turno) e em 24 de julho (segundo turno) de 2005 proporcionaram a vitória de João
Bernardo Vieira ao cargo de Presidente da República, derrotando o candidato Malam
Bacai Sanha. Eleito em outubro de 2005, Vieira utilizou suas prerrogativas e poderes
6
28
constitucionais que o semipresidencialismo guineense faculta ao Presidente, para
destituir o Primeiro Ministro do Governo do Partido Africano para Independência da
Guiné e Cabo Verde ( PAIGC), Carlos Gomes Jr, sob o argumento da existência de uma
“grave crise institucional”e, em contrapartida, elegeu como chefe do Executivo, o seu
amigo e chefe de campanha política durante a já referida eleição presidencial, abrindo
uma nova fase de instabilidade governamental.
Nesta nova fase, o chefe do estado maior general das forças armada, general
Baptista Tagme Na Waie, assegurou que alguns oficiais do exército estariam a preparar
uma rebelião, com o apoio do MFDC 7, que luta pela independência desta região do
Senegal, limítrofe a Guiné-Bissau. Na Waie citou, entre os alegados conspiradores, o
general Bitchofela Na Fafé, ex-presidente do comitê militar para restauração da ordem
constitucional e democrático na Guiné-Bissau, aliado do Carlos Gomes Jr. Disse que

5
Governou duas vezes, na primeira vez, de 1980 (por sublevação de golpe) a 1994, quando houve a
abertura democrática em que ele saiu vencedor da primeira eleição guineense no mesmo ano, mandato
que terminou em 1999, e, na segunda, de 2005 a 2009.
6
Segundo o artigo 104. 2. da Constituição de 1996, “o Presidente da República pode destituir o Governo
em caso de grave crise política que ponha em causa o normal funcionamento das instituições da
República, ouvidos o Conselho de Estado e os partidos políticos representados na Assembleia Nacional
Popular”.
7
Movimento das Forças democráticas de Cassamansa.
havia o risco de uma nova guerra civil, como o de junho de 1998 a maio de 1999 que
derrubou o ex-presidente João Bernardo Nino Vieira, depois de grupos de oficiais
liderados pelo brigadeiro Ansumane Mané.
Militares armados guardavam os principais edifícios de Bissau, incluindo a
presidência da república. Carlos Gomes Junior estava impedido de entrar no seu
gabinete, sob a alegação de se estar perante um “golpe de estado constitucional”,tendo
em consideração que, semanas antes, catorze deputados do PAIGC, abandonaram o
partido e passaram atuar como oposição. E assim, nomeou-se um novo governo. E este
novo governo foi apoiado por Fórum constituído por vários partidos que apoiaram o
presidente João Bernardo Vieira nas eleições presidenciais.
Sabe-se que a estabilidade governamental no processo da democratização é um
fator importante para a estabilidade democrática. Porém os mandatos presidenciais de
João Bernardo Vieira e de Koumba Yalá foram marcados por constantes mudanças de
chefes de governos. Segundo Juan Linz (1985), a política do modelo presidencialista é
menos favorável à democracia do que ao modelo parlamentarista.8As experiências

29
destas figuras políticas no cargo mais alto do Estado comprovam que, em democracias
frágeis, quanto mais altos forem os poderes presidenciais garantidos pela Constituição,
menos provável será a estabilidade do governo e da democracia.
Levando em conta estas questões constitucionais ameaçadoras da tranquilidade
governamental, em 28 de fevereiro de 2001, a ANP começou a discutir a revisão
constitucional e na data de 5 de abril do mesmo ano aprovou e decretou uma nova “lei
fundamental”, na qual os poderes presidenciais foram reduzidos substancialmente. Mas
o então Presidente da República, Koumba Yalá (eleito em janeiro de 2000), não estava
de acordo com tais reduções e, em 23 de maio, comunicou para ANP sua negação da
promulgação, isto é, aparentemente, seu “veto presidencial9”. Desta forma,
impossibilitou de entrar em vigor a nova aprovação da lei constitucional, o que poderia
ajudar a garantir a estabilidade do governo 10. Tal como Koumba Yalá, desde 2000, os
sucessivos presidentes eleitos democraticamente demonstraram indiferença em relação à
aprovação de nova “Lei Magna” que reduza os poderes presidenciais.

8
Sobre isso conferir: Scott Mainwaring e Matthew Shugart Juan Lins, Presidencialismo e Democracia:
uma Avaliação Crítica. 1985, p.194.
9
Sobre veto presidencial, ver art. 69. 2. (Constituição de 1996).
10
SILVA, António E. D. (2010). As Constituições da Guiné Bissau. Que constitucionalismo?, p. 11.
Disponível em: http://didinho.org/estudosepesquisas.htm. Acessado no dia 20 de setembro de 2012.
Outros obstáculos governativos são os mais de 40 grupos étnicos existentes na
Guiné-Bissau o qual a formação do executivo não leva em consideração somente o
mérito, mas, sim incluir o maior número possível dos integrantes de cada grupo étnico
no executivo.
Sendo assim, em democracias frágeis, onde instituições políticas enfrentam
dificuldades para superar os conflitos de cunho político e institucional, normalmente, os
chefes de governo têm pouca probabilidade de terminar seus mandatos e realizar
políticas públicas. Além do Presidente, a Assembléia Nacional Popular11 adquire,
também, poderes para destituir o governo em caso de não aprovação da moção de
confiança ou da aprovação da moção de censura pela maioria absoluta da câmara
legislativa12. Com esta crítica ou avaliação, não pretendemos diminuir a importância dos
poderes presidenciais constitucionais com relação ao funcionamento equilibrado e
consensual entre as instituições políticas (Executivo e Presidencial), principalmente, em
um país como a Guiné-Bissau, que, na maioria das vezes, depende do respaldo da
comunidade internacional para executar a sua política interna (aprovação do Orçamento
Geral do Estado). Neste caso, o Executivo depende do total apoio da representatividade
do Presidente da República para implementar o seu programa de governo. Isto porque, 30
segundo a Constituição, este último, no plano da política externa, é responsável pela
“representação de Estado da Guiné-Bissau” (art. 68, alínea a, da Constituição) e pela
“ratificação dos tratados internacionais” (art. 68, alínea e, da Constituição)13.
Lucela (1996, p. 838) enfatiza que Maurice Duverger, ao definir o
semipresidencialismo, afirma que, “o semipresidencialismo significa um regime onde
existe um Presidente da República eleito através do sufrágio direto e universal a quem
são atribuídos poderes consideráveis”. E este Presidente coexiste com um Primeiro-
Ministro com poderes executivos substanciais e responsáveis perante o parlamento 14.
A tipologia dos poderes presidenciais apresentada por Duverger, serve de base
para a diferenciação dos dois tipos de sistemas democráticos apresentada na referida
obra, a saber:
“... na acepção ocidental nos surge dotado de verdadeiro
centro de gravidade: por um lado o parlamentar, que

11
Segundo o art. 76, a Assembléia Nacional Popular (ANP) é o órgão supremo legislativo e de
fiscalização política representativa de todos os cidadãos guineenses. Decide sobre as questões
fundamentais da política interna e externa do Estado.
12
Ver art. 85. 5. Uma das competências da ANP na Constituição de 1996.
13
Ver competências do Presidente na Constituição de 1996.
14
COSTA LOBO, Marina y AMORIM NETO, Octavio (Coords.). O Semipresidencialismo nos Países de
Língua Portuguesa. Lisboa: ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2009, p.19.
concentra o essencial da soberania em assembléias
diretamente eleitas pelo povo e cujos membros se acha
mais ou menos estreitamente vinculados a partidos
políticos; e por outro lado o presidencial norte-
americano, onde o presidente da república, além de
representar a nação, chefia (e de certo modo é) o
governo, investido na plenitude do poder executivo. Ao
pé deles, o semipresidencial faz figura de tipo intermédio
e conceitualmente instável, apesar de concebido para
assegurar estabilidade política das fraquezas vividas
no parlamentarismo15”.

Condenado à ambiguidade, como mostram Costa Lobo e Amorim Neto (2009),


oscila entre os dois tipos principais, hora de um lado e hora do outro, passando a ser
denominado de premier-presidencial e presidencial-parlamentar16:
“Os regimes premier-presidenciais conferem a um chefe
de Estado eleito pelo povo escassos poderes sobre o
governo, se caracterizam também pela separação entre a
sobrevivência do Parlamento e do Governo. O Presidente
tem o poder de designar o Primeiro-Ministro, que, por
sua vez, designa o resto do Governo. O Parlamento, não
obstante, tem o poder de destituir o Primeiro-Ministro e o
Governo através da votação de uma moção de censura ou
da derrota de uma moção de confiança 17”.
“Os sistemas presidenciais-parlamentares outorgam ao
31
chefe de Estado amplos poderes sobre o governo
(designação e demissão), mas não há separação entre a
sobrevivência do parlamento e a do governo, já que o
parlamento também pode demitir o governo. Este é único
tipo de executivo onde o Governo pode ser destituído
tanto pelo Chefe de Estado como pelo Parlamento 18”.

A Guiné Bissau, tal como a República de Weimar, é um caso clássico de um


regime presidencial-parlamentar. Nesse sentido, ainda segundo aqueles autores:
“Este sistema, com exceção de Portugal e Cabo Verde
(dois países da Comunidade dos Países da Língua
Portuguesa que adotaram o modelo do regime
semipresidencialista), apresentam valores muito baixos
ou nulos nos índices de pluralismo político e direitos
cívicos permitidos. O que comprova este argumento são
as instabilidades de instituições democráticas e as
violações dos direitos humanos19”.

15
LUCELA, Manuel de. Semipresidencialismo: teoria geral e pratica portuguesas (I). Lisboa: Ics.
Instituto de ciências sociais, 1996, p. 838.
16
COSTA LOBO, Marina y AMORIM NETO, Octavio (Coords.). O Semipresidencialismo nos Países de
Língua Portuguesa. Lisboa: ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2009, p.20.
17
Op. cit., p. 20.
18
Op. cit., p. 20.
19
Op. cit., p. 20.
Portanto, o segundo modelo de semipresidencialismo (presidencial-parlamentar),
adotado em Guiné Bissau, a nosso ver, pode ser uma das causas da instabilidade política
e governamental neste país, tendo em conta que o seu critério possibilita altas
competências ao Presidente da República dificultando o funcionamento do governo
eleito democraticamente, que goza de menos margem de manobra em relação à
autonomia política e implementação das políticas públicas. Pois, entre os altos poderes
constitucionais do Presidente da República com relação à “destituição das instituições
políticas”20 (Executivo e Legislativo), além de também, segundo art.68, alínea m da
Constituição de 1996, o alto chefe do Estado pode “presidir ao Conselho de Ministros,
quando entender”. Esta cláusula apresenta certa ambiguidade constitucional, na medida
em que entra em contradição com uma das cláusulas que estabelece competência do
Governo (art. 97.2), no qual lemos que o “ Primeiro-Ministro é o Chefe do Governo,
competindo-lhe dirigir e coordenar a ação deste e assegurar a execução das leis”,
embora o deva “sem prejuízo de outras atribuições que lhe forem conferidas pela
Constituição e pela lei, informar ao Presidente da República acerca dos assuntos
respeitantes à condução da política interna e externa do País” (art. 97.3).
Desta forma, vemos que existe uma falha na Constituição condicionada pelo 32
sistema semipresidencial, isto porque ela estabelece que o chefe de governo goze de
determinada liberdade, no que diz respeito às suas ações políticas, ao mesmo tempo o
limita através das competências que permitam a interferência do Presidente nos assuntos
do governo. Seguindo Rousseau, as instituições funcionam em sociedades onde as
relações de poder são definidas e precisam refletir a distribuição desse poder.21
Outra fonte de instabilidade política institucional induzida pela Constituição é o
poder concedido ao Presidente em relação à dissolução da Assembléia Nacional Popular
sob o argumento da “grave crise política” (art. 69. 1, alínea a). A gravidade da crise
institucional em caso de queda da ANP pelo Presidente gera instabilidade
governamental, na medida em que o Governo termina sendo dissolvido pelo próprio
Presidente, o qual forma um novo governo através de iniciativa presidencial.
Diferentemente da crise política entre Presidente e o Governo, a destituição deste

20
Segundo o artigo 104.2 da Constituição de 1996.
21
Para uma discussão sobre o assunto em Rousseau, ver Holmes, Steven, “ Lineages of the rule of Law”.
In: Maravall, José e Przeworski, Adam (Org.). Democracy and the rule of Law. Nova York: Cambridge
University Press, 2003, pp.19-61.
segundo pelo primeiro, não acarreta o fim do funcionamento do Parlamento, isto é, a
demissão do Governo não resulta em deposição da ANP.
A nosso ver, nos artigos 69.1 (alínea a) e 104.2 da Constituição não está
claramente especificado o significado da “grave crise política”, tida como motivo das
exonerações da ANP e dos governos. A idéia da “grave crise política” pode ser
considerada relativa, pois, o que significa “grave crise política” para o Presidente, pode
não ser para o Parlamento e/ou para o Governo. Os referidos artigos constitucionais
precisam ser analisados pelos constituintes no ato da revogação constitucional e deve-se
levar em conta que são uma das fontes da instabilidade política e governamental.
A estabilidade democrática em alguns países que adotaram o sistema do
semipresidencialismo como modelo de governo, como no caso de Cabo Verde e
Portugal, nos ajuda a perceber que, este modelo em si pode não ser causador de
conflitos políticos em Guiné-Bissau, porque durante a democratização não fora pensada
e/ou analisada qual seria a linha do modelo do presidencialismo (premier-presidencial) e
(presidencial-parlamentar) adequada para a nossa realidade, como forma de garantir a

33
estabilidade política.
Logo, numa realidade política como a guineense onde os interesses pessoais
imperam sobre os interesses coletivos, jamais o segundo modelo (presidencial-
parlamentar) favorecerá a estabilidade democrática.22
As nossas indagações são seguintes: será que os protagonistas do processo da
democratização guineense tinham idéia da existência dessas duas linhas de
semipresidencialismo? Se sim, até que ponto percebeu que a segunda linha era mais
eficaz para a realidade da Guiné-Bissau? Até que ponto seria possível adotar a primeira
linha (premier-presidencial), sendo que ela não favoreceria o protagonista da transição
política? Aceitaria o então presidente João Bernardo Vieira abrir mão de seus altos
poderes presidenciais garantidos na Constituição do regime autoritário?
Há um depoimento de Helder Vaz23(um dos líderes políticos que participaram da
transição), em que pondera se “regime semipresidencialismo na Guiné-Bissau seria
inocente ou culpado da instabilidade”.O referido político assegurou que:

22
North, Douglass C. e Thomas, Robert P. The rise of the western world: a new economic history.
Cambridge University Press, 1973, p. 6.
23
Membro fundador do Partido da Resistência da Guiné-Bissau/Movimento Bá-Fatá (RGB), e ex-líder e
deputado do mesmo. Foi Diretor Geral dos Países da Língua Oficial Portuguesa (CPLP). Atualmente é
candidato à presidência da República da Guiné Bissau. Entrevista feita no dia 21 de setembro de 2012,
através do Facebook. Entrevistador: Flaviano Fernandes da Silva.
“No passado, eu defendi o semipresidencialismo, por
achar que era uma boa cura para a ditadura de partido
único. Hoje, que o semipresidencialismo se revela
causador de instabilidade, devido a uma classe política
menos preparada do que a que tínhamos entre 1992 -
1998, eu acho que há que buscar soluções mais adaptadas
à realidade que temos hoje, com um abaixamento geral
da capacidade da classe política. Esta é uma modesta
opinião baseada na experiência empírica”.

Helder Vaz não conseguiu explicar porque o semipresidencialismo era uma boa
cura para a ditadura do partido único. Se a classe política do semipresidencialismo do
período de 1992 a 1998 era mais preparada que a atual, por que não fora capaz de
negociar conflitos políticos impedindo que a guerra civil acontecesse em 1998? Na
verdade, durante o período referido por Helder Vaz, o sistema semipresidencialista
adotado na Guiné Bissau já tinha apresentado vários cenários de instabilidade política e
governamental, entre os quais:
 Tentativa de golpe de Estado liderada por Mama Cassama, de apelido “Rambo”,
em 17 de março de 1993;
 Assassinato do major Robaldo de Pina, assessor do então Presidente João
Bernardo Vieira, por militares (17 de maio de 1993); 34
 Assassinato do jornalista português Jorge Quadros, assessor de imagem de
Presidente João Bernardo Vieira, alegadamente por ordem da segurança de
Estado (novembro de 1993);
 A demissão do Primeiro Ministro (Manuel Saturnino da Costa) pelo Presidente
da República João Bernardo Vieira depois das primeiras (presidenciais e
legislativas) eleições realizadas em 1994;
 As denúncias das vendas ilegais de armamentos para os rebeldes de
Casamansa24(uma das causas da guerra civil de 1998);
 A demissão e tentativa de assassinato do Chefe do Estado Maior General das
Forças Armadas, Brigadeiro Ansumane Mané, culminando na referida guerra
civil.
Portanto, no processo da democratização, o regime do PAIGC e o presidente
João Bernardo Vieira preocuparam-se mais em delinear estratégias que poderiam evitar
seus fracassos (perdas do poder) nas eleições legislativas e presidenciais, do que levar
em consideração algumas questões cruciais que poderiam garantir a estabilidade

24
Região do Senegal, situada na zona norte da Guiné-Bissau, que reivindica independência durante três
décadas.
democrática, como as limitações dos poderes presidenciais em democracias, o combate
ao analfabetismo, a fragmentação étnica em democracia, o papel da sociedade civil em
transição política, limitação das atuações das Forças Armadas em democracia, etc. Estas
questões não foram levadas em conta nas agendas do então partido e governo e, assim,
pouco eram consideradas como sérias, para que se garantisse uma democracia
consolidada.

4- CONSIDERAÇÕES FINAIS
A constituição da República é uma ferramenta jurídica importante para analisar
o estado da democracia. A ambiguidade do seu conteúdo pode refletir negativamente
nas ações dos autores sociais e políticos, provocando a instabilidade política e
governamental no processo democrático. Ela é guia para uma relação institucional
efetiva ou não. Isto porque os autores políticos agem ou não em função das normas
estabelecidas na Constituição da República, que confere e limita os poderes do
Presidente, Executivo e do Legislativo. Por isso, sempre que ela passa pelo processo da
elaboração e da revogação, os interesses da nação precisam ser postos acima dos
interesses políticos e partidários.
35
A falha ou o insucesso da democracia é resultado da ambiguidade da
Constituição e da escolha do sistema político adotado. Desta forma, são importantes os
papéis dos constituintes e/ou das elites políticas com relação à elaboração da
Constituição democrática de acordo com a realidade concreta, não permitindo a
influência total dos autores políticos do antigo regime no processo da redação
constitucional, através do processo de transição mais aberto e inclusivo,onde a
sociedade civil precisa ser membro importante em relação às formulações das decisões
políticas. Caso contrário, é provável que a democracia venha a enfrentar situações de
instabilidades, como é o caso da Guiné-Bissau.

5- BIBLIOGRÁFICAS
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Bissau e Outros Ensaios. Bissau: INEP. 1996.
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constitucionalismo?Disponible en: http://didinho.org/estudosepesquisas.htm.Acessado
no dia 20 de Maio de 2017.

8- DOCUMENTOS OFICIAIS
Constituição da República da Guiné Bissau. Aprovada a 27 de novembro de 1996.
Disponível em: http://www.anpguinebissau.org/leis. Acessado no dia 20 de Maio de
2017.

37
OS ESTUDOS
AFRICANOS E SEUS
DESAFIOS
METODOLÓGICOS.

GRAZIELLA FERNANDA
SANTOS QUEIROZ

MESTRANDA (UFRPE)
1. À guisa de problematização
Em uma palestra proferida por um renomado professor de História do sul do país este
afirmou que o estudo de África no Brasil deveria ser calcado na marca mais forte, segundo
ele, que esta deixou: a escravidão. Alguns ouvintes pareciam estar atônitos, entretanto muitos
silenciaram, talvez por medo de refutar uma autoridade.

2. O que quer este trabalho?


A explanação do acontecimento supracitado foi a instiga fulcral para esta escrita
questionadora, bem como pela progressiva necessidade de conhecer teorias que interrogam a
ordem genealógica da episteme ocidental. 39
Assim, este trabalho surgiu principalmente por eu ser umas das ouvintes da palestra.
Do mesmo modo, através da evidência do diálogo cada vez mais frequente no espaço
acadêmico das ciências humanas com temáticas africanas e de suas diásporas e da consciência
que apesar disto o trato com estes conteúdos passa por resistências e indagações recorrentes
sobre a sua relevância no contexto histórico e cultural brasileiro. A proposta aqui é, pois,
apresentar uma investigação em caráter inicial sobre os estudos africanos e indicar possíveis
fatores de tal aversão por alguns, bem situar historicamente o surgimento destes estudos. Em
seguida, serão evidenciadas práticas escolares e acadêmicas que através de uma perspectiva
multidisciplinar intentam por discursos descolonizadores que longe de subalternizar povos e
culturas, pluralizam e problematizam a própria categoria humanidade.

3. A análise acerca da fala


Os estudos étnicos, africanos1 e pós-coloniais eclodem na segunda metade da década
de 60 nos Estados Unidos através de embates de segmentos historicamente subalternizados

* A autora é mestranda em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.


(negros, mulheres, indígenas, gays) que pleiteavam por mais representação e participação em
espaços de conhecimento e poder. Entretanto, mais do que serem reconhecidos como camadas
sociais que depois de muita contestação tem conseguido problematizar a episteme moderna,
são relegados a discursos meritocratas que diminuem a sua atuação com a assertiva de que
também esses grupos estão sendo privilegiados pela performance das elites majoritárias de
poder com suas minorias2. No Brasil não é incomum presenciar falas de que a Lei 10.639/03 3,
11.645/084, Lei de Cotas5 ou o fato de ter mais pessoas negras nas universidades é uma
benesse do Estado para com essas populações.
Quais motivos levam um professor a diminuir a importância do estudo de África? Será
que ele esqueceu que História é memória, identidade, poder? Ou será que para ele a
escravidão responde todas as questões relacionadas às afrodescendências no Brasil?
Palavras como racismo epistemológico, eurocentrismo, linha de cor 6, colonização do
ser, saber e poder tem relação com aquele posicionamento.
África de Pré-História, de grandes civilizações, narrativas vivas, línguas e costumes
que tanto falam de cá, dos antepassados; de literaturas contemporâneas, embates de longa
duração, neocolonialismo transvestido de globalização. Não é preciso estudar isto? E por que

40
é fundamental saber sobre feudalismo europeu ou da formação da Itália, ou sobre a atual
situação política da França?
Um notável número de intelectuais problematiza a racionalidade científica moderna,
que produz, segundo estes, a ideia de raça como fundamento do padrão universal de
classificação e dominação social em que as experiências culturais dos povos colonizados e
historicamente subalternizados, são pormenorizadas, sinalizadas muitas vezes como saber

1
O conceito Estudos africanos aqui inserido não diz respeito necessariamente a este tipo de escola que foi
criado, mas sim a toda e qualquer temática de pesquisa que tenha relação com África e tenha proposta
descolonizadora.
2
Ver MALDONADO-TORRES, Nelson 2006, p. 107. Transdisciplinaridade e decolonialidade. Revista
Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016.
3
BRASIL. Presidência da República. Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.
Brasília, 2003. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 21
fev. 2016.
4
BRASIL. LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: [s.n.], 2008.
5
BRASIL. LEI Nº 12.711, DE 29 DE AGOSTO DE 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e
nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, Seção 1, p. 1, 30 de ago. 2012.
6
Autores como W.E.B Du Bois (2007), Achille Mbembe (2014), Frantz Fanon (1968;2008) e Nelson
Maldonado-Torres (2016) apresentam uma discussão conceitual acerca deste conceito que em síntese divide o
mundo entre quem pode ser considerado e respeitado enquanto humano e quem pode ser escravizado e/ou
subalternizado em diferentes áreas do ser/estar no mundo.
local e não considerado tão relevante quanto os coloniais 7. Frantz Fanon, Aníbal Quijano,
Samir Amin, Du Bois, Achille Mbembe, Sylvia Wynter, Inocência Mata, Muniz Sodré,
Boaventura de Sousa Santos. Quanto deles constam nas ementas?
Outro ponto em comum entre os autores supracitados é a ratificação da necessidade de
descolonizar teorias, práticas, pleitear por uma universidade de terceiro mundo, democratizar
os saberes. Como evitar que estes estudos e perspectivas funcionem apenas em seus
respectivos nichos? Ou como ampliar e fortalecer estes pensares em universidades de
sustentação epistemológica colonial?
Umas das possíveis respostas, é problematizar relações de poder constituídas na
sociedade através da diferença. Sejam elas raciais, étnicas, de gênero, de classe8; questionar
marcas do eurocentrismo que se configuram nas diferentes experiências e relações cotidianas
entre os indivíduos em âmbitos, como o da cultura, política, sociedade, ciência social que
acabam por constituir uma colonização mental9.
Há uma literatura recente que discute maneiras de questionar e agir sobre esta
colonização de mentalidades sobretudo no campo das ciências sociais. Para este trabalho
escolho evidenciar a transdisciplinaridade decolonial10. Pensar em novas categorias
metodológicas, disciplinares que para além da constituição de dualismos e antagonismos
41
pluralizem maneiras de entendimento e considerem as diferentes formas de expressão no
mundo. Através do corpo, da política, da arte, da cultura para que assim seja possível
amplificar espaços de descolonização, autonomia e desracialização. Em síntese, esta é a
proposta da transdisciplinaridade decolonial11.
Dessa forma, o estudo do continente africano e de suas diásporas estará mais voltado
para intercâmbios de pessoas, práticas culturais e intelectuais bem como implicará na
consideração de que a constituição de saberes está na diversidade de experiências e trajetórias
dos seres no mundo.
O ocidente é uma construção ideológica forte. Problematizar conhecimentos, ampliar
ou transcender métodos, teorias e práticas enriquecem o saber acadêmico com sentimento
humano, sem necessariamente negar a produção do saber ocidental, mas ampliar e

7
Para uma discussão aprofundada sobre constituição de categorias que subalternizam as populações
historicamente colonizadas ver MATA, Inocência. Estudos pós-coloniais: desconstruindo genealogias
eurocêntricas. Civitas, Porto Alegre, v. 14, n. 1, p. 27-42, jan.-abr.2014.
8
Construtivas análises dessas questões estão novamente em (MATA,2014); (MALDONADO-TORRES,2006)
bem como em WOODWARD, Kathryn. Uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da
(org.). Identidade e diferença. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
9
Ver AMIN, Samir. L´eurocentrisme: critique d’une idéologie. Paris: AnthroposEconomica, 1988.
10
Este conceito é evidenciado por Nelson Maldonado-Torres (2006;2016) e tem contribuído para pensar os
desafios da permanente luta por uma real descolonização do ser, do saber e do poder.
11
Ver MALDONADO-TORRES, Nelson. Transdisciplinaridade e decolonialidade. Revista Sociedade e Estado
– Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016.
democratizar o uso de diferentes epistemologias de compreensão de mundo e produção
intelectual.
É sabido, apesar de tudo, que a concretização de uma universidade de terceiro mundo
é quase utópica, e alguns dos teóricos citados aqui lecionam em universidades de centro.
Entretanto, o presente é ambíguo e possível. A transdisciplinaridade decolonial para estudos
étnicos e africanos é um conceito cunhado por Nelson Maldonado Torres e muita gente já o
põe em prática, mesmo sem necessariamente usar esta categoria/conceito.
O diálogo formativo e horizontal entre NEABs 12 e escolas; a inserção de cadeiras
voltadas para o estudo de África e diáspora africana em diferentes departamentos acadêmicos;
a formação de grupos de estudos que intentam pelo conhecimento de África por pensadores
africanos; eventos que pluralizam discussões e fatos ocorridos dentro de marcos históricos
marcadamente rememorados no contexto europeu são exemplos de como tem sido importante
os embates sociais e políticos por perspectivas plurais acerca dos estudos africanos e da
diáspora africana.

4. Atitudes e práticas descoloniais


Neste tópico, serão apresentados dois planejamentos de ensino desenvolvidos durante
a graduação em licenciatura em História que são ideias de atitudes e práticas descoloniais que
42
tiveram a intenção de perceber o continente africano em suas múltiplas relações com a cultura
brasileira através do objetivo principal em ambos de desconstruir ideias únicas sobre a África
repercutidas consequentemente em alguns de seus traços diaspóricos.

4.1 Histórias do continente africano13


OBJETIVO: Desmistificar e questionar as representações de África para os alunos refletidas
consequentemente em seus traços culturais diaspóricos.
CONTEÚDOS:
 Debate Historiográfico em torno da África e dos africanos no século XIX;
 Geografia física do continente africano;
 Importância da oralidade na História tradicional africana;
 Reinos na África Ocidental;
 Contribuições sociais, políticas e culturais da África no mundo;
 Continente africano hoje: desafios, possibilidades e importância da diáspora africana.

12
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros.
13
Este plano de ensino é indicado para turmas de 9ºano do ensino fundamental e foi aplicado no segundo
semestre de 2015 na Escola Estadual de Paulista, região metropolitana do Recife, durante a prática da disciplina
de Estágio Supervisionado 3.
Resultados

O objetivo geral das regências foi “desmistificar e questionar as representações de


África para os alunos refletidas consequentemente em seus traços diaspóricos”, e através da
atividade da 1ª aula e a atividade da última, é possível afirmar que ele foi atingido.
Durante a primeira atividade, foi pedido para que os alunos escrevessem
individualmente no papel palavras que vinham em mente quando ouviam o nome “África”,
após a recolha, solicitou-se que eles fossem falando o que escreveram para que fosse escrito
no quadro e comentado com eles o motivo da escolha das palavras.
A seguir está o quadro com as palavras mais escritas: pobreza, cultura dos escravos,
elefantes, desigualdade, selvagens.

43

Figura 1. Quadro com as palavras da primeira atividade da 1ª aula. Fonte: imagem tirada pela autora.

Na última das aulas, foi pedido para que novamente os alunos fizessem essa mesma
atividade com palavras que vinham em mente agora quando eles pensavam em África, a
maioria das respostas foi: conhecimentos, neve na África, cultura, griôs, respeito com os mais
velhos, existência de período pré-colonial, máscaras com significados e cores diferentes.
Figura 2: Atividade de um aluno na última aula da regência. Fonte: Imagem tirada pela autora

Concluiu-se que o objetivo pôde ser alcançado na medida em que os alunos


conheceram sobre a diversidade do continente africano e puderam perceber que a História da
África não pode ser limitada, estereotipada e contada por um único ponto de vista.
O ensino de História da África e cultura afro-brasileira nas escolas é fundamental para
dirimir preconceitos e histórias únicas marcadamente eurocêntricas. É indiscutível ampliar o
debate, profissionalizar os educadores e estabelecer experiências modificadoras que
promovam descolonização de saberes e pluralidade de histórias e sujeitos.

4.2 O Jogo dos orixás: conhecer para descolonizar14


Desenvolvido durante a disciplina “Educação para as Relações Étnico-Raciais no
Brasil”, na Universidade Federal de Pernambuco15, o jogo dos orixás foi um dos materiais
didáticos elaborado com o intuito de relacionar o aprendizado com prática, ludicidade e
posicionamento crítico no âmbito escolar sobretudo no que concerne à temática História da
África e culturas afro-brasileiras.
O “jogo dos orixás” é indicado para jovens do ensino fundamental 2, sobretudo de 12
a 15 anos de idade. O jogo foi pensado como culminância de cinco aulas anteriores que terão 44
como foco revisitar as narrativas acerca das culturas africanas e negras no Brasil com o
objetivo de desconstruir estereótipos e descolonizar saberes. O jogo tem pretensão de auxiliar
os discentes a entender diferentes cosmovisões, ou seja, maneiras de ver e sentir o mundo,
bem como na fragmentação de preconceitos e intolerâncias ao outro que não faz parte da
cultura que se considera como dominante – leia-se eurocêntrica.

Objetivo geral: Compreender narrativas africanas de origem do mundo através do material


didático proposto e estabelecer relações com culturas afro-brasileiras no intuito de promover
democracia entre as diferentes culturas que compõe o Brasil e assim implementar alternativas
para o cumprimento às Leis 10.639/03 e 11.645/08.

Objetivos específicos

1. Perceber o continente africano como alvo de diferentes narrativas ao longo do


tempo;

14
Este jogo foi apresentado, discutido e problematizado nas disciplinas de Educação para as relações étnico-
raciais no Brasil e Metodologia do Ensino de História 3. Este jogo foi elaborado pela autora deste trabalho e
encontra-se enquanto material didático disponível para acesso no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UFPE.
15
Disciplina ministrada pela professora Dayse Cabral de Moura, no Centro de Educação na UFPE.
2. Reconhecer a existência do continente africano antes da exploração europeia e sua
diversidade étnico-cultural;
3. Constatar a importância da oralidade para passagens de histórias e conhecimentos
na África subsaariana (origem do mundo, ciências da natureza, astronomia e fatos
históricos);
4. Compreender as narrativas de origem do mundo em sociedades da África Antiga,
sobretudo os reinos do Iorubo;
5. Relacionar as narrativas mitológicas dos orixás com os cultos religiosos de
matrizes africanas no Brasil e questionar motivações para a discriminação e
intolerância contra essas religiões;
6. Apontar as características pessoais e insígnias de orixás e a relação deles com a
cultura africana e afro-brasileira.

O “jogo dos orixás” enquanto material pedagógico acompanhado de aulas anteriores


pretende além de alertar para o que Chimamanda Ngozi Adichie 16 chamou de o perigo da
“História única”, propiciar a descolonização de saberes etnocêntricos que promovem ações
discriminatórias e intolerâncias em espaços que se apresentam em prol da constituição da
45
cidadania e do respeito às diferenças.

Como jogar o “Jogo dos Orixás”?


Para jogar se faz fundamental a aprendizagem acerca dos orixás, que terá acontecido
anteriormente em aulas. É indicado jogar no máximo 3 pessoas por partida.
O jogo “conhecendo os orixás” é composto por 18 peças. 9 delas correspondem a
imagens de orixás (Oxalá, Iansã, Iemanjá, Oxum, Nanã, Omolu, Xangô, Odé e Ogum). As
outras 9 peças contêm características pessoais e insígnas de cada orixá e não conterá o nome
de qual orixá possui aquela peculiaridade.
Todas as peças estarão dispostas na mesa, entretanto as peças que contêm as imagens
estarão viradas para baixo sem que os jogadores visualizem a imagem do orixá.
O jogo consiste em escolher 1 peça que contém a característica do orixá, descobrir a
qual orixá aquela peça remete e tentar achar na mesa 1 imagem do orixá que corresponde
aquela característica.

16
Discurso da escritora nigeriana Chimamanda Adichie em ocasião do evento Tecnology, Entertainment and
Design (TED). Disponível em:
https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt-br.
Acesso em: 19.02.2016.
Se o jogador ao pegar a peça que contém a característica do orixá e sabe a que orixá
ela remete, mas errar na imagem, as peças terão que ser devolvidas à mesa. Se acertar as
características e achar a imagem, o jogador ficará com as peças nas mãos.
O jogo é um mix de jogo da memória com jogo de conhecimento acerca do tema.
Jogará um jogador por vez. O jogo finaliza quando não houver mais imagens ou peças das
insígnias e quem tiver mais peças nas mãos vencerá o jogo.

5. Considerações
Os dois exemplos de práticas pedagógicas trazidos no texto buscam demonstrar
alternativas próximas e possíveis de estudar sobre as Áfricas que importam para o Brasil.
Como afirmou Carlos Serrano,17 estudar o continente africano é compreender melhor a
sociedade brasileira. A História da África e da diáspora africana passa pela escravidão de
seres humanos, mas não se resume a ela.
Voltando à situação inicial, do intelectual que afirmou que a História da África que
importa no Brasil é a que diz respeito à escravidão, talvez alguns dos ouvintes quisessem ter
dito a ele que a África tem mais histórias e os afrodescendentes fazem parte disto. Ele

46
também. Conhecimento une oceanos, estreita cosmogonias, cria moda, dá vida. A História faz
indivíduos se sentirem pertencentes a algo, possibilita a existência de rainhas, e não somente
sujeitos que em alguns momentos viveram em situação de subalternidade. Os estudos
africanos como todos os estudos que intentam para a pluralização de ideias de mundo,
evidenciam o que discursos com ideologias marcadamente eurocêntricas almejam silenciar:
há outras formas de pensar, de viver e de ser.

6. Referências Bibliográficas
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9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e
Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Brasília, 2003. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>.

BRASIL. LEI Nº 11.645, DE 10 MARÇO DE 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de


dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília: [s.n.],
2008.

17
Ver SERRANO, Carlos; WALDMAN, Maurício. Memória D' África: a temática africana na sala de aula. São
Paulo. Editora Cortez,2007.
BRASIL. LEI Nº 12.711, DE 29 DE AGOSTO DE 2012. Dispõe sobre o ingresso nas
universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p. 1, 30 de ago. 2012.

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FRONTEIRAS
EFÊMERAS NA
CAPITANIA DE
ANGOLA,
SÉCULOS XVI E XVII.

LEANDRO NASCIMENTO
DE SOUZA

DOUTORANDO (UFF)
Introdução: primeiras fronteiras

No século XV, após ter sofrido várias derrotas militares, a estratégia portuguesa na
África Central foi usar o máximo de exploração econômica com o mínimo de ocupação
territorial, com feitorias e fortalezas localizadas em pontos importantes na costa africana. No
século XVI, Portugal manteve seu comércio negreiro negociando com os reinos e chefes
locais africanos, através dos lançados1, e realizando várias alianças políticas e comerciais com
diversos grupos, tentando criar uma rede de subordinação, pois onde não houve negociações
havia a imposição militar por parte dos portugueses e seus aliados. Essa situação se modificou
49
com as invasões holandesas no Norte do Brasil em 1630, controlando a produção açucareira, e
posteriormente a invasão na costa africana, em que conquistaram Angola em 1641,
controlando o fornecimento de escravos da África atlântica para o Novo Mundo.
Com a retomada de Angola em 1648, Portugal teve outro desafio, recuperar o trato
negreiro. Com poucos territórios e pequenas alianças realizadas, Portugal enfrentou uma
grande concorrência mercantil, o Reino do Congo com o rei Quimpaco, e o Reino de
Matamba com a rainha Nzinga. Aliados dos holandeses, Quimpaco e Nzinga haviam feito
alianças políticas e comerciais com uma grande parte de chefes locais, muitas vezes pela
força, invadindo territórios, aprisionando escravos e influenciando a África Central com um
sentimento antilusitano, para manter suas autonomias políticas e econômicas, pois não
aceitavam a vassalagem ao Reino de Portugal. A posição de Portugal com relação a essa
situação foi de extrema cautela, pois havia um alto risco de outras invasões na costa africana e
no Brasil, além de que, o Reino ainda estava em conflito com a Espanha e a Holanda, logo

* O autor é doutorando em História Social pela Universidade Federal Fluminense.


1
Agentes na sua maioria formados por mestiços. Os lançados ou pumbeiros trabalhavam negociando com os
grandes chefes tribais ou reis africanos. Durante um tempo, internavam-se no interior da África-central,
trocavam os escravos por tecidos, vinho e objetos de quinquilharias, voltando com uma centena de escravos para
serem negociados com os agentes no litoral africano.
não poderia realizar investidas no interior africano e enfraquecer as defesas das outras regiões.
Mas a importância do trato negreiro para a produção açucareira, e os negócios da prata em
Potosí, na América, fizeram com que os governadores luso-brasileiros em Angola investissem
na expansão territorial no sertão africano. Esses governadores “brasílicos” colocaram em
prática ações que ampliaram o tráfico de escravos no Atlântico português, aumentaram a
influência de suas regiões de origem no negócio negreiro na África central. Essa situação
causou vários conflitos entre os poderes do Império luso e dos grupos africanos, pois houve
vários interesses envolvidos que vão colidir. Os governadores de Angola que saíram da
América Portuguesa levaram consigo gente de sua confiança para cargos administrativos e
militares, o que deixou insatisfeitos os colonos que já estavam na África, causando um jogo
político entre colonos do Brasil, de Angola e do Reino. Além disso, o Reino de Portugal teve
outro problema para administrar, o conflito entre as Ordens religiosas, a qual os governadores
também vão tentar tirar proveito para seus interesses.

1. A formação e o desenvolvimento da Capitania de Angola

D. Sebastião cria em 1571 a capitania de Angola, além de não ter nenhum custo para
50
portugal, pois os moldes da capitania era de acordo com o modelo dos exclusivismo privado
das primeiras capitanias no Brasil, D. Sebastião deu consessão de terras que não pertenciam
a Coroa portuguesa, e sim aos reis africanos. A capitania foi estabelecida do Rio Dande ao
Rio Cuanza, e se estendia trinta e cinco leguas da costa (COSTA E SILVA, 2011, p. 662).
Chegando em Luanda em 1575 com um grande numero de soldados, marinheiros, artíficis,
além de alguns jesuitas, Dias Novaes tentou estabelecer a colonização portuguesa na África.
De início ele teve dois problemas, o primeiro é que já havia comunidades portuguesas em
Luanda, advindas de São Tomé, grupos de comerciantes que não gostaram da idéia do
donatário ser o senhor econômico de terras que já eram influenciadas por eles. Esses grupos
se espalharam pela África Central, muitos deles indo para a corte de Ndongo, onde venderam
informações valiosas sobre os portugueses recém chegados. O segundo foi justamente o reino
de Ndongo e seus vassalos que não permitiram essa tomada territorial facilmente. Em 1579,
Dias Novaes e o rei de Ndongo entram em conflito, alguns dos vassalos do Ngola se aliaram
aos Portugueses como Muxima, Cambanbe, Quincunguela e Massangano (COSTA E SILVA,
2011, p. 663). Dias Novaes assim que saiu da Ilha de Luanda e foi para o continente, investiu
na construção de igrejas, casas, e fortificações, evidenciando que tinha vindo para ficar e não
apenas adquirir escravos, como acontecia na região desde 1526. Na política expansionista,
Dias Novaes usou de grande violência, espalhando pânico entre as populações, decapitou os
chefes tribais que capturou, saquiou as vilas e às queimou. O Rei do Ndongo possuia um
grande execito, e mesmo com o caos estabelecido por Novaes, o conflito teve perdas e ganhos
para os dois lados. Com a União Iberica em 1580, Felipe I de Portugal, retira o privilégio de
Dias Novaes, extinguindo a capitania hereditária, a qual Dias Novaes deixa de ser um
donatario e passa a ser um funcionario real, ou seja, o governador, isso fez com que as ações
de Novais sejam submetidas a autorização de Felipe I (SERRÃO, 1996, p. 144-145), mesmo
assim Novaes não desistiu da expansão até a sua morte em 1589, Sendo substituído por Luis
Serrão. No período filipino, a colonia de Angola obteve um modelo administrativo
semelhante ao da América, era administrado por um governador substituído a cada três anos,
centrado na cidade de São Paulo de Luanda 2, havia o conselho municipal, a câmara, e capitães
militares que administravam as fortalezas e suas redondesas, houve uma relação de
vassalagem entre os sobas3 e os governadores, e o tributo dessa relação era pago com
escravos. O interesse filipino em manter a colonia vinha de noticias sobre grandes minas de
ouro na Áfriaca Central, depois de muitas investidas a Coroa Ibérica certificou-se da falsidade

51
das informações, diminuindo a expansão e se preocupando em investir no tráfico de escravos
(SERRÃO, 1996, p. 146). No início do século XVII, a capitania de Angola passou por uma
série de administradores interessados especificamente no tráfico de escravos, os chamados
governadores asientistas4.
Em 1611, o governador de Angola, Bento Banha Cardoso, através de um alto
investimento da Coroa Ibérica, consegue estabelecer uma série de conquistas, submetendo 78
sobas, entre eles Anbundos e Inbangalas, alianças que vez por outra mudava de lado, pois o
reino de Ndongo continuava resistindo. Um grande desafio teve o governador Luiz Mendes de
Vasconcelos em 1617, estabelecer e manter a paz na região, combater o tráfico ilegal e a
corrupção na própria administração regia. O mesmo chegou com pretenções de ser o vice-rei
da África, mas acabou se utilizando das práticas dos antecessores, práticas comerciais ilícitas.
Conseguiu estabelecer a paz atravez de tratados comerciais com Rei de Ndongo, Ngola
Mbande5. Essa paz não durou muito tempo, pois Mbande queria controlar o comercio
favorencendo-se com os tipos de produtos e tributos negociados com os lusos. Esse
desentendimento retomou a guerra, Mbande possuia um grande exercito, mas Vasconcelos

2
Fundada em 25 de janeiro de 1576.
3
Chefes tribais na África central.
4
Asiento foram licenças ou concessões vendidas pela Espanha a negociantes de escravos na África Central, na
sua maioria de famílias portuguesas.
5
Chega ao poder eliminando os outros pretendentes a Coroa, sobretudo um filho de sua irmã Nzinga.
conseguiu estabelecer uma série de alianças militares e conseguiu chegar em Cabaça, o centro
do reino. O rei Mbande foge, e o seu palácio foi incêndiado, por conta das chuvas e doenças
que assolaram as tropas, Vasconcelos foi obrigado a retornar para Luanda, e retomar as
negociações de paz, mas uma vez fracassadas, retornando a guerra em 1620. A guerra gerou
uma grande crise no tráfico de escravos, sendo um desáfio para o próximo governador
(COSTA E SILVA, 2011, p. 420-426).
Em 1621, o governador João Correia de Souza, tentou estabelecer a paz com Mbande,
que mandou sua irmã Nzinga 6 como embaixadora nas negociações. Desde o início Nzinga
própos tratamento de igual para igual, sem relação de vassalagem, estabelecendo uma certa
paz entre Ndongo e a capitania de Angola. O governador enfrentou outros problemas como o
tráfico ilegal, e também as várias resistências dos outros reinos nas regiões próximas, a qual
saqueavam colonos nas regiões fronterissas. Nzinga em 1624 executou um golpe e assumiu o
reinado de Ndongo. Acusada de invenenar Mbande, e de eliminar os outros pretendentes, se
aliou aos Jagas e assumiu a política antilusitana. Através de sua rede de comunicação,
incentivou os negros em Luanda e as várias tribos vizinhas a se rebelarem contra os portugues
e se aliarem a ela. Neste mesmo ano o governador Fernão de Souza declara guerra contra
Nzinga que durou todo o seu mandato. A guerra se estabeleceu entre perdas e ganhos,
52
alianças e rompimentos, até 1629, onde as tropas lusas encurralaram Nzinga, onde ela foi
vencida mas não capiturada. Nesse momento assumiu em Ndongo o Ngola Ari, batizado de
Felipe, declarado rei do Ndongo, onde governou de acordo com os interesses lusos. No início
de 1630 Nzinga se aproveitou de uma crise dinástica no reino de Matamba e com seu exército
invadiu o reino e se proclama soberana, tornando o reino de Matamba um reino poderoso e
antilusitano. Esse reino se tornou um grande incomodo para a capitania de Angola, sendo um
concorrente no tráfico de escravos, e influenciando os outros reinos contra Portugal. Com a
restauração portuguesa em 1640, a ordem de Portugal foi de negociar, por tanto D. João VI
em 1641, ordenou a devolução do reino Ndogo a Nzinga. Mas Já tinha sido tarde, pois os
holandeses invadiram Angola no mesmo ano (VANSINA, 2010, p. 663-664).
Os conflitos entre a capitania de Angola com o reino do Ndongo e seus vizinhos,
como também com Nzinga, permitiram que o reino do Congo se reestruturasse, se tornando
um concorrente dos portugueses no tráfico de escravos, negociando no porto de Pinda com
franceses, ingleses e sobretudo holandeses. Essa concorrência e a influência dos outros
Estados europeus, fez com que a política do Congo fosse de monopolizar o tráfico de escravos
na África Central, fazendo com que a capitania de Angola fosse um inimigo a ser eliminado.
6
Ginga, Njinga ou Jinga, foi convertida ao catolicismo, sendo batizada e ganhando o nome cristão de Ana de
Souza.
Em 1641 assumiu no Congo o rei Garcia II, que investiu no enfraquecimento da influencia de
Portugal na região. Com a chegada dos holandeses na África central todos os problemas dos
portugueses serão potencializados (VANSINA, 2010, p. 664).

2. Holandeses em Angola e a restauração de Salvador de Sá

No dia 22 de Agosto de 1641, o Governador, Pedro César de Menezes recebeu a


noticia que haviam aparecido 22 naus flamengas na baía de Luanda. A esquadra do holandês
Houtbeen contou com dois mil soldados e novecentos marinheiros vindos do porto do Recife.
E Luanda, nessa época, não tinha forças que pudessem oferecer resistência a tal exército.
Ainda tentaram resistir no forte do Penedo, mas sem sucesso.
A política implantada pelos holandeses em Angola foi de caráter indireto,
estabelecendo acordos que visavam à cooperação, evitando ao máximo as guerras, vista como
revez ao bom andamento dos negócios negreiros na região. Muitos Sobas de territórios
adjacentes aos territórios de Luanda consideravam a presença holandesa como uma

53
alternativa em contraponto a presença portuguesa. Nesse mesmo momento o então rei do
Congo, Garcia II, escreveu para Maurício de Nassau no Recife, disponibilizando fortalezas e
outras facilidades comerciais, ao mesmo tempo em que anexava aos seus domínios vários
territórios ao Sul do Congo. Apesar das críticas aos portugueses, Garcia deixou claro que
permaneceria católico e que não aceitaria missionários, embaixadores ou colonos em seu
reino. A força do catolicismo congolês superava as alterações políticas nos territórios da
África-central, sobretudo para manter o prestígio e o apoio do bispado de Madrid e de Roma.
Outro ponto desfavorável para os lusitanos foi a aliança entre os holandeses e a rainha
Nzinga, que viu nessa conquista a possibilidade de obter vantagens comerciais e
principalmente para enfraquecer o rei do Ndongo, Ngola Ari, vassalo dos portugueses
(ALENCASTRO, 2000, p. 212).
Nesse momento houve as várias negociações portuguesas para a retomada dos
territórios que foram perdidos para os Países Baixos. Paralelamente, os colonos da América
portuguesa agiram, pois o Sul do Brasil, sobretudo o Rio de Janeiro, ficou sem abastecimento
de mão de obra escrava vinda da África-central, a qual o tráfico era monopolizado pelos
holandeses através do comércio bipolar entre o portos de Luanda e Recife.
Por volta de 1646 o foco de resistência estava concentrado nos arredores de
Massangano, que ganhou uma sobrevida com a chegada de Francisco de Souto Maior em
16457. Pressionados tanto pelo rei do Congo, Garcia II, quanto pela rainha de Matamba,
Nzinga, os holandeses evitaram ao máximo o conflito aberto com os lusos, justamente pelo
tratado de paz de dez anos assinado em 1641. Esse receio flamengo causou frustrações com os
reinos locais que queriam expulsar de uma vez por todas os lusos da África. Quando Nzinga e
Garcia II conseguiram planejar um ataque de grandes proporções a Massangano, a situação
dos portugueses em Angola foi revertida com a reconquista de Luanda por Salvador Correia
de Sá em 1648.
A colônia portuguesa na América era a maior beneficiária do comércio de escravos
vindo da África, essencial para manter em funcionamento os engenhos de açúcar no litoral.
Com o monopólio comercial holandês no tráfico de escravos na África Central para o Novo
Mundo, a partir de 1641, outras regiões do Brasil que não estavam integradas a ocupação
holandesa ficaram prejudicadas, sobretudo a Bahia e o Rio de Janeiro, a primeira pela
produção açucareira e a segunda pelo comercio de escravos para as minas de Prata na
América espanhola, através do porto de Buenos Aires. Para contrariar essas adversidades e
com o objetivo de reconquistar Angola e expulsar os holandeses, foi preparada uma expedição
para reconquistar Angola. Para comandá-la foi nomeado Salvador Correia de Sá e Benevides8,
que se tornou governador de Angola, de 1648 a 1651.
54
A reconquista era dificultada não apenas pela peculiar situação diplomática em que se
achava Portugal ante os Países Baixos, em guerra no Nordeste do Brasil, como pelas
dificuldades econômicas em que o Reino se encontrava, na iminência da Guerra da
Restauração, e pela logística envolvida. Nesse contexto, um dos principais interessados, foi
Salvador Correia de Sá, que tive vários agentes comerciais envolvidos com o tráfico de
escravos entre a África, o Rio de Janeiro e Buenos Aires. Estava disposto a romper com o
comercio bipolar holandês entre Luanda e Recife.
A reconquista de Angola resultou na rearticulação do abastecimento de escravos para
a Bahia, e principalmente o Rio de Janeiro, servindo como conexão para Buenos Aires e as
minas de prata em Potosí. Salvador de Sá deu impulso a diversas medidas administrativas,
favorecendo o desenvolvimento de Luanda. A expulsão dos holandeses na África Central
inaugura uma nova fase na administração de Angola, marcada pela governança de homens
extremamente vinculados aos seus interesses particulares enraizados principalmente na
América portuguesa.

7
Em uma das lutas de resistência Souto Maior fez prisioneira a irmã da rainha Nzinga, D. Barbara, que já tinha
sido prisioneira anteriormente.
8
Antes de restauração de Angola, Salvador de Sá foi Governador da Capitania do Rio de Janeiro de 1637 a
1642.
Conquistada a vitoria perante os holandeses, o desafio foi retomar o tráfico de
escravos, para tal, Portugal teria que recuperar o seu prestígio e as alianças com os reinos da
África central, principalmente o reino de Matamba da Rainha Nzinga, e o reino do Congo
com o rei Garcia II, e os sobas de várias tribos que foram submetidos pela força ou por
alianças políticas com relação de vassalagem. O período de quase oito anos de ocupação
holandesa em Angola favoreceu a política antilusitana, a qual os reinos dessas regiões se
aliaram aos holandeses, e tinham como intenção expulsar os portugueses da África Central
com intuito principal de serem os senhores no fornecimento de escravos diretamente com o
Novo Mundo. Esse foi o desafio enfrentado pelos lusos nessa nova fase de ocupação em
Angola, implantar uma superioridade política para eliminar os concorrentes no negócio
negreiro.
Salvador de Sá tenta reverter os danos que os holandeses trouxeram para o Rio de
Janeiro, logo tentou criar uma carreira de fornecimento de escravos Luanda-Rio-Buenos
Aires, Salvador de Sá quis expandir o território para que através da guerra adquirisse o
respeito e as alianças necessárias para recuperar o tráfico. Depois de expulsar os holandeses,

55
as tropas de Salvador de Sá se voltaram para o continente, para retomar o trato terrestre,
combateu e degolou vários sobas, o que facilitou a entrada para o interior. Com o reino do
Congo, Salvador de Sá conseguiu um tratado em que Garcia II teria que se retirar de alguns
territórios, que foram dos portugueses antes da ocupação holandeses. Com o passar do tempo
esse tradado foi desrespeitado, o que trouxe vários problemas para os sucessores de Salvador
de Sá em Angola. Nos primeiros meses de Salvador de Sá como governador de Angola, ele
enfrentou a força militar de Nzinga, derrotada, a mesma foi obrigada a assinar uma trégua, a
qual repassou vários escravos em troca da sua irmã Cambo, que teve como nome cristão D.
Barbara. Salvador de Sá não entrega a irmã de Nzinga, como também manteve as hostilidades
ao reino de Matamba. A Coroa Portuguesa não autorizou essa empreitada pelo fato que tinha
um custo muito alto, além de que, poderia ter desprotegido a costa, onde haviam varias
ameaças do retorno de holandeses e invasões de outros estados marítimos europeus, esse
propósito também foi apoiado pelos colonos remanescentes de Massângano que foram
contrários aos interesses dos grupos vindo do Brasil. No último ano de seu governo, Salvador
de Sá se alinhou as ordens régias e tentou estabelecer uma diplomacia de não agressão,
negociando as questões comerciais, sobretudo no fornecimento de escravos (ALENCASTRO,
2000, p. 262-264).
Salvador de Sá deixou o governo de Angola em 1651, mas o seu sucessor, Rodrigo de
Miranda Henriques, a qual foi muito próximo, teve o mesmo interesse na governança de
Angola, ou seja, continuou as operações da reabertura da carreira Luanda-Rio-Buenos Aires,
o governador conhecia bem as rotas da prata peruana, e as negociações comerciais do
Atlântico Sul, pois o mesmo já tinha sido governador da capitania do Rio de Janeiro de 1633
a 1637, segundo Luis Felipe de Alencastro “esse movimento desemboca no avanço pelo
litoral sul e na fundação da colônia de Sacramento” (ALENCASTRO, 2000, p. 271). Miranda
Henriques apesar de ter enviado alguns militares para castigar sobas inimigos nas regiões
mais próximas de Luanda, manteve suas forças concentradas na costa de Angola. Reparou
fortes danificados em Luanda, e mandou uma esquadra à Pinda e à Loango, para combater um
corsário holandês, melhorando as relações comerciais na região. Morreu aos dois anos de
governo sendo substituído por Bartolomeu de Vasconcelos da Cunha que manteve a mesma
política anterior (CADORNEGA, 1940, p. 72-77).
Em 1655 assumiu o governo de Angola Luiz Martins de Souza Chichorro, o mesmo
que como capitão-mor de Malaca foi conquistado pelos holandeses da Companhia das Índias
Orientais em 1641(ALENCASTRO, 2000, p. 272). Inteirou-se do negócio negreiro em quanto
esteve na sede do governo geral do Brasil, em Salvador. No seu governo retomou os conflitos
com o reino do Congo, pois Garcia II não manteve os tratados da época de Salvador de Sá,
criou grupamentos militares para ir combater os sobas aliados do Congo, mas recebeu ordem
56
da Coroa para interromper a empreitada e continuar com as negociações fazendo uso de
embaixadores para reafirmar o tratado de paz com o Garcia II. É nesse momento que começou
as divergências com relação ao reino do Congo, entre a Coroa lusa e os governadores de
Angola. Outra ação militar de Chichorro foi combater os piratas holandeses na costa da África
Central, diminuindo suas ações (CADORNEGA, 1940, p. 113-114).
O acontecimento de grande relevância e que trousse consequências positivas para a
influência portuguesa na região, foi a nova conversão ao catolicismo da rainha Nzinga em
1656, pelos capuchinos italianos, sobretudo o Frei Gaeta 9. Essa nova conversão possibilitou
alianças entre Nzinga e Portugal, onde no tratado de paz e cooperação, Nzinga teve a sua
Irmã, que era prisioneira dos portugueses, D. Barbara, devolvida. Essa aliança foi
fundamental para as ações militares dos portugueses na região, sobretudo contra o reino do
Congo. Na sua saída no governo de Angola em 1658, Chichorro foi atacado por piratas
holandeses na costa da Paraíba e acabou falecendo (CADORNEGA, 1940, p. 137).

9
O capuchinho italiano João António Cavazzi de Montecúccolo esteve em Angola, no Ndongo e em Matamba
de 1654 a 1667, com a morte de Gaeta, foi confidente da rainha Nzinga, sua obra “Descrição história dos três
reinos do Congo, Matamba e Angola”, apesar do profundo etnocentrismo do autor, para Cavazzi o reinado de
Nzinga antes da nova conversão era um “verdadeiro” inferno, com transexualismo, haréns de rapazes,
infanticídio, antropofagia, feitiçaria e luxuria.
3. Pernambuco em Angola: os mestres-de-campo10 governadores

Pernambuco restaurado pelos colonos lusos em 1654 teve um problema agravante na


questão econômica. A produção açucareira passou a sofrer a concorrência do mercado
internacional, do açúcar produzido pelos holandeses na Guiana e nas Antilhas, fazendo com
que para manter um preço competitivo no mercado, tinha-se que diminuir os custos de
produção, sobretudo nos gastos com a mão de obra escrava africana, que tinha aumentado
consideravelmente com as guerras atlânticas. Para tanto, em 1654, o negocio negreiro em
Angola abastecia o comercio carioca, e era de fundamental importância para a produção
açucareira em Pernambuco resgatar o comercio bipolar entre Luanda-Recife, como também
utilizar ações que proporcionassem um aumento nos números e baixa nos preços no mercado
escravista.
Desde 1646 houve uma preocupação em Pernambuco com relação ao que acontecia
em Angola, Martin Soares Moreno, Vidal de Negreiros e João Fernandes Vieira enviaram à
Corte relatórios sobre os acontecimentos do Congo e de Angola, informações de luandenses

57
no Recife que tinham vindo como prisioneiros. Nesses relatórios, João Fernandes Vieira
alerta a Coroa sobre as manobras de Salvador de Sá, que seu interesse em Angola esteve
restrito aos negócios peruleiros da prata, segundo Vieira isso poderia provocar uma investida
Espanhola contra Luanda, já que por conta dos conflitos atlânticos houve uma grande crise
internacional no mercado de escravos (ALENCASTRO, 2000, p. 259).
Em 1654, o almirante Brito Freyre, que foi governador de Pernambuco de 1661 a
1664, tentou convencer a Coroa lusa do projeto de reconquista de São Jorge da Mina, e
propôs o ataque logo depois da rendição holandesa, tendo como o Recife a base da saída da
expedição (ALENCASTRO, 2000, p. 270-271). Apesar da Coroa não aprovar o projeto, por
questões de custo-beneficio, ficou evidente a preocupação de Pernambuco com os
acontecimentos na África central e a necessidade de estar no controle do negocio negreiro.
Dois líderes do movimento de libertação, que tiveram prestígios perante a Coroa pelas
ações militares na expulsão dos holandeses, João Fernandes Vieira e André Vidal de
Negreiros, arquitetaram a resolução desse problema comercial, usaram a política de
favorecimentos em favor do comercio Recife-Luanda, pois eram os maiores senhores de
engenho de Pernambuco e Paraíba, e nada melhor para reverter o trato negreiro em seus
benefícios do que sendo governadores de Angola.

10
Mestre-de-campo é equivalente a coronel de infantaria, tem a jurisdição civil e criminal do seu terço com
apelação ao general (BLUTEAU, 2000, p. 457).
Foi muito conveniente que enquanto João Fernandes Vieira governasse Angola, André
Vidal de Negreiros governasse Pernambuco11, as duas costas atlânticas com o mesmo
objetivo, aumentar a produção açucareira através de uma bem sucedida forma de governar
Angola baseado no trato negreiro.
Querendo controlar o mercado de escravos, João Fernandes Vieira realizou várias
medidas para fortalecer militarmente a sua administração, logo de inicio ele colocou gente sua
para os cargos administrativos e militares, ocasionando assim uma demanda de colonos
pernambucanos para gerir seu governo, principalmente os militares que lutaram na expulsão
holandesa (MELLO, 2000, p. 330-331), pois o interesse de Vieira foi de expandir o território
português no interior da África central, recuperar as alianças e submeter à maior ameaça que
foi o Reino do Congo, além de tentar eliminar os intermediários no trato negreiro, pois na sua
perspectiva não se negociava com nativos e sim os conquistava. Para tanto, os militares
pernambucanos foram muito úteis, pois já tinham experiência em batalhas no ultramar. Vieira
pede autorização a Coroa para transferir grande parte da artilharia tomada dos holandeses para
Angola.
Entre suas medidas, estavam o fortalecimento da região já controlada, como obras nos
portos, ampliando seus cais, restauração e construção de fortalezas e ampliação do poderio
58
militar. Após esse controle teve inicio a expansão territorial, várias regiões foram
reconquistadas e outras submetidas pela primeira vez. Conquistou a região de Ambarca,
conseguiu a vassalagem das terras de Libolo e Quissama, recuperou o porto de Benguela,
criou rotas terrestres seguras, recuperou o rio Cuanza e o trato salineiro, além de iniciar
negociações para aliança política com os guerreiros Jagas do reino de Matamba que foram
governados pela rainha Nzinga. Essas conquistas arrecadaram um grande número de escravos
para o Brasil, principalmente Pernambuco. Suas medidas restauraram parte do prestigio
português que havia sido perdida no período holandês e pela influência do Reino do Congo
(SOUZA, 2013, p. 76-78).
Com o Reino do Congo Vieira foi mais cauteloso, usou de muita negociação, pois este
Reino era reconhecido pela Santa Igreja Católica, tinha seu bispado próprio e muita influência
com Roma e Madri. Nas negociações Vieira exigiu o cumprimento dos tratados anteriores, e
enquanto a resposta não vinha, atacou os vassalos fieis ao Congo. Depois de muitas ameaças
de invasão ao território congolês, em 1659, Vieira conseguiu que o Congo cumprisse parte de
acordos anteriores, principalmente na liberação de um grande número de escravos para

11
Inicialmente seu mandato seria de 1657 a 1660, mas em 1660, Negreiros requer a Coroa que lhe mantenha no
cargo até o fim do mandado do governador de Angola, João Fernandes Vieira, em 1661. (AHU-ACL-CU-015,
Cx. 7, D. 620).
Luanda. Medida que o fez perder parte do apoio que tinha para uma invasão (SOUZA, 2013,
p. 79-86). Outra medida importante de Vieira foi a denuncia do envolvimento dos jesuítas no
tráfico negreiro, que tinham tornado-se menos missionários e mais materialistas. Aliou-se aos
capuchinhos e acusou os jesuítas de várias irregularidades, ocasionando na sua excomunhão
pela ordem da Companhia de Jesus (SOUZA, 2013, p. 88-95).

59

O reino de Angola em 1658 (MELLO, 2000, p. 449)

Com o fim do seu governo e sem seu principal objetivo conquistado, submeter o reino
do Congo aos portugueses, Vieira teve a oportunidade de ter continuidade na sua política
expansionista através do seu sucessor, André Vidal de Negreiros. Na sua chegada, em 1661,
Negreiros passou alguns meses com a companhia de Vieira, onde o mesmo fez questão de lhe
passar todo o planejamento expansionista.
Para Negreiros também foi interessante a expansão para o interior africano, pois tinha
feito vários acordos com Vieira, que tinha vários agentes envolvidos no tráfico. Além de que,
tambem era um senhor de terras na América portuguesa, onde o sistema escravista foi muito
forte. Com isso a política implantada por Vieira teve continuidade, só que desta vez o intuito
maior foi a invasão ao Reino do Congo, submetendo-o a Portugal, aumentando ainda mais o
controle sobre a região e o tráfico de escravos. Mas essa medida não foi fácil, pois a invasão
tinha que ser justificada, principalmente em Roma. Para a igreja católica, o Congo era uma
porta aberta para uma melhor entrada do cristianismo nessa região africana, uma vez que os
próprios africanos a pregavam. Outro problema enfrentado por Negreiros foi a determinação
de Portugal, de 1664, que cancelava as investidas militares no interior africano, dando
prioridade a proteção da costa atlântica, sobretudo Luanda, pois havia muita ameaça de
invasões por parte de outros países interessados no comercio escravista.
O governo de Negreiros teve vários momentos de desentendimento com a Coroa
portuguesa, principalmente pela sua insistência na invasão ao Congo. Utilizando o seu
prestigio ele seguiu em frente e usou de várias estratégias para criar justificativas de avanço
militar no território congolês. Denunciou o Rei do Congo, Mulanza, de subtrair terras e metais
preciosos de Portugal, e declarou refutação ao caráter cristão do Congo, relatando que o
cristianismo era apenas uma fachada para agradar Roma, e os cultos pagãos sempre estavam
presentes nos rituais cristãos. Essas denúncias foram chamadas de cisma dos cônegos
congoleses o que causou um grande descontentamento ao Rei Mulanza, a qual declara guerra
60
a Angola portuguesa (ALENCASTRO, 2000, p. 291-292).
Com a guerra declarada por Mulanza, foi mais fácil para Negreiros ter o apoio que
precisava, logo tratou de montar a estratégia para vencer a guerra contra o Congo. Uma
grande vantagem para Negreiros foi a aliança com o Reino de Matamba, governado pela
rainha Nzinga e os guerreiros Jagas. Vários conflitos se estenderam no interior africano, mas a
guerra só teve seu desfecho com a batalha de Ambuíla em 1665. O exercito de Negreiro foi
composto por tropas luso-afro-brasílicas. Adquiridas nos conflitos contra os holandeses em
Pernambuco, na luta contra quilombos e até mesmo nos conflitos com indígenas, as tática de
guerrilhas brasílicas foram de fundamental importância para a vitória nesse conflito
(CADORNEGA, 1940, p. 219-222).

Conclusão: Fronteiras, uma discussão

O pesquisador Richard White fez uma análise sobre os espaços intermediários de


negociação de grupos com valores sociais distintos, e de como esses espaços de acomodação
apresentaram uma ausência de estruturas de dominação, o que vai resultar em diferenças e
ajustes nos significados das categorias sociais. Esses espaços de negociação também se
apresentam no contexto da África-central, principalmente entre portugueses e os grupos mais
próximos a capitania de Angola, gerando grupos sociais com interesses diversos. Segundo
White as categorias modernas e identidades variam de acordo com as conjunturas e jogos
sociais, gerando significados múltiplos, de acordo com a mobilidade dos sujeitos (WHITE,
2011). As autoras Hal Langfur (LANGFUR, 2006), e Sara Ortelli (ORTELLI, 2007), usam
questões como múltiplos usos das fontes, a contextualização dos documentos de acordo com
o contexto das “fronteiras”, principalmente quando se usa o conceito de “gestão” ou “Estado”,
pois eles são um conjunto de poderes, influências, grupos, vontades e interesses. Criando e
recriando os significados de acordo com as diferentes esferas de poder. Nesse aspecto muitas
das fontes são produzidas dentro desses interesses, gerando boatos para atingir fins,
contribuindo para inclusão dos sujeitos históricos dentro de classificações comportamentais
abaixo de uma certa “cidadania” ou “civilidade social”, contribuindo para criminalizar grupos
excluídos. A autora Nancy (NANCY, 2014) trabalha as construções sociais dentro dessas
diversas relações de poder, a qual as vezes há um reconhecimento das atribuições identidárias,

61
mas as vezes não, sendo relativo a qualidade e características nas mobilidades e dinâmicas
sociais. Cria-se assim um sistema de valores a qual surgem certas orientações.
Dialogando com a antropologia, podemos usar o autor Fredrik Barth, a qual utiliza as
fronteiras para compreender as dinâmicas do grupo. Ele dinamiza a identidade étnica
afirmando que ela não é estática, se transforma a partir das relações e como qualquer outra
identidade, coletiva ou individual dependendo do interesse, ou contexto. A interação entre os
sujeitos e grupos, permitem transformações continuas que modela a identidade, em processo
de exclusão ou inclusão, determinando quem esta inserido no grupo e quem não está.
Compartilham diversas características más principalmente esses grupos se organizam a fim de
definir o “eu” e o “outro”. Se manifestam de maneira à categorizar e interagir com os outros.
Exteriormente atribuem aos grupos étnicos uma identidade baseada em fatores objetivos e que
muitas vezes não correspondem as suas características reais. O autor recomenda que para
entender as dinâmicas desses grupos é necessário levar em consideração as características que
são significantes para os próprios atores. Os grupos étnicos possuem padrões valorativos que
os definem em quanto tal, e a forma como cada grupo ou cada um irá se portar em contato
com outros grupos, com o intuito de adquirir visibilidade e dialogar com outro. No entanto
esses padrões não são fixos, podem mudar e ressignificar-se em outro momento, conforme o
contexto social. Essas análises são de fundamental importância para compreender os vários
contextos que envolvem as categorias sociais e seus membros na Capitania de Angola na
segunda metade do século XVII.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Sul. São Paulo: Companhia das letras, 2000.
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro,
Contra-Capa, 2000.
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Companhia de Jesus, 1712. Edição fac-símile, CD-ROM, Rio de Janeiro: UERJ, 2000.
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Lisboa: Agência geral das colônias, 1940.
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Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2011.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. João Fernandes Vieira: Mestre-de-campo do Terço de
Infantaria de Pernambuco. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 2000.
MONTECÚCCOLO, Pe. João António Cavazzi de. Descrição histórica dos três reinos do
Congo, Matamba e Angola. Volume 2. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965.
NANCY E. Global Indios: the indigenous struggle for justice in sixteenth-century

62
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LANGFUR, Hal. The forbidden Lands. Stanford: Stanford University Press, 2006.
ORTELLI, Sara. Trama de una Guerra conveniente: nueva vizcaya y la sombra de los
apaches (1748-1790). México, D.F: El Colegio de México, centro de estúdios históricos,
2007.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Volumes 2, 3 e 5. Lisboa: Editorial
Verbo, 1996.
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João Fernandes Vieira, 1658 a 1661. Recife: Universidade Federal de Pernambuco,
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Geral da África Volume V. Brasília: UNESCO. 2010.
WHITE, Richard. The Middle ground. Cambridge University Press, 2011.
DIÁSPORA AFRICANA:
A VINDA DOS
ESTUDANTES
GUINEENSES PARA AS
UNIVERSIDADES
PRIVADAS.
RENATA MARIA FRANCO
RIBEIRO

GRADUANDA (UNILAB)
INTRODUÇÃO

Este trabalho buscou analisar as trajetórias e as estratégias de inserção no novo lugar


de moradia das (os) estudantes guineenses no caso estudantes vindos para o Estado do
Ceará/Fortaleza no Brasil, destacamos que esses/essas alunos/as não migraram pelo acordo
internacional para fins educacionais o PEC-G (Programa Estudante Convênio – Graduação),
este programa tem oportunizado estudantes de vários países a formação acadêmica superior
através da Cooperação Internacional Brasil-África nas Instituições brasileiras de ensino
Superior Públicas, criado em meados de 1964, o programa oferece vagas de graduação em 64
Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras a estudantes de países em desenvolvimento
com os quais o Brasil mantém acordo de cooperação educacional, cultural ou científico-
tecnológica1.
No caso os/as estudantes migrantes no recorte dessa pesquisa oriundos da República
da Guiné-Bissau, chegaram ao Brasil, por incentivo das IES Privadas do Estado do Ceará,
para tanto foi nosso interesse investigar alguns aspectos como: econômicos, culturais, bem
como o imaginário coletivo das/os estudantes em relação ao Brasil e as estratégias de
enfrentamento ao racismo nos espaços acadêmicos e socioculturais, assim como quais acordos
foram firmados entre os estudantes e as Instituições Privadas na Guiné-Bissau, tendo em vista
que as Instituições Privadas foram até o país de origem desses estudantes no caso Guiné-
Bissau país de Língua Oficial o português, que compõe a lista dos países da CPLP
(Comunidade dos Países de Língua Portuguesa).

A autora é graduanda no curso de Bacharelado em Humanidades pela Universidade da Integração Internacional


da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB); Graduação em História e Geografia na Universidade Estadual Vale do
Acaraú (UVA); Especialização em Educação para as Relações Étnico-Raciais na Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira(UNILAB). Professora na Emef Professor Júlio Holanda no
Município de Guaramiranga-Ceará.
1
Brasil-MEC.
O referido trabalho faz parte da pesquisa para conclusão do Curso de Pós-Graduação
em Políticas de Igualdade Racial no Ambiente Escolar na Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) no Ceará, ano de 2014 a 2016, no
entanto iniciou-se o delineamento dos seus caminhos na interação e sociabilidade com os
sujeitos pesquisados desde 2011, a pesquisadora motivada a partir do curso de
aperfeiçoamento em História da África no Departamento de História da Universidade Federal
do Ceará no ano de 2011, a partir dessas vivências acadêmicas iniciou-se uma aproximação
com os interlocutores na busca de dialogar com esses atores quanto as motivações da escolha
do Brasil e Fortaleza.
Mediante o acordo firmado entre as Universidades Privadas e os familiares dos
estudantes aprovados na seleção, buscou-se organizar a documentação necessária para
ingressar no Brasil, no caso “o visto Temporário IV”, os africanos, sobretudo, no que se refere
às experiências de jovens estudantes guineenses que cruzam o Atlântico num movimento
diásporo, iniciando uma intensa trajetória universitária e, sobretudo que não se restringe a
vida universitária, mas também ao convívio social, interações, experiências vivenciados sobre
questões étnico-raciais seja no ambiente acadêmico, ou no novo lugar de moradia na cidade 65
de acolhimento, para essa reflexão.
No caso presente, e/imigração temporária. Preferimos usar o termo “imigração
temporária” por acreditar que o conceito “imigração” em strictu sensu seria definitivo demais,
uma vez que esses estudantes entram no Brasil com o “Visto Temporário IV”2.
A presença de imigrantes africanos no Estado do Ceará iniciou na segunda metade da
década de 1990, quando chegou o primeiro grupo de estudantes oriundos de Angola. Neste
período vinham africanos oriundos de países de expressão portuguesa, em grupos de cinco a
dez estudantes, através do PEC-G3.
No caso dos nossos interlocutores, a escolha do Ceará-Brasil como novo lugar de
moradia, ainda que temporária para intercambio educacional e cultural se deu a partir da
propaganda feita pelas Universidades Privadas Faculdade de Tecnologia do Nordeste
(FATENE) localizada no Bairro Damas-Fortaleza, e Evolução localizada no Bairro Centro-
Fortaleza e do Presidente da Associação dos Estudantes Guineenses no Ceará AEGB-CE no
ano de 2008, foi nesse período na Guiné-Bissau foi realizado o processo seletivo que
consistia: uma prova de conhecimentos gerais como Língua Portuguesa, Matemática e
2
SUBUHANA, Carlos. Estudar no Brasil: Imigração temporária de estudantes moçambicanos do Rio de
Janeiro.2008.
3
LANGA, E. N. B. Diáspora Africana no Ceará: desafios diante da alteridade e ressignificações de identidades
étnico-raciais,2012.
redação. A simulação das despesas se deu em torno de 40. Mil francos CFA, moeda corrente
na Guiné-Bissau e países da região da África Ocidental, neste caso o câmbio varia em torno
de U$$100 nas despesas como papeladas. O caso dos guineenses, vindos para algumas
universidades privadas foi ofertado condições básicas de instalação, mensalidade acessível,
onde seus familiares que residem fora do país no caso de alguns países da Europa podiam
custear4.
A migração constitui um elemento permanente na história do homem e é tão antiga
quanto a própria humanidade.
No princípio do século XXI, estima-se que 200 milhões de pessoas, o equivalente a
3% da população mundial, vivem mais de um ano fora dos seus países de origem5.
Para os estudantes guineenses o líder Amílcar Cabral, é uma inspiração, em busca da
realização do sonho do ensino superior e qualificação profissional, desde o período colonial
aos dias de hoje, muitos jovens africanos, assim como Amílcar Cabral, que continua a ser
referência para os jovens africanos-estudantes. Amílcar se formou em Agronomia pela
Universidade de Lisboa com o objetivo de melhorar de vida do seu povo e contribuir para o
desenvolvimento social e econômico da Guiné-Bissau e Cabo Verde, razão de sua luta
política. 66
A MOBILIDADE AFRICANA

Sabe-se que o senso comum muitas vezes considera a África como um continente
homogêneo, isto reflete os conceitos equivocados a respeito do continente africano, sem
compreender e colocar foco nas diferenças e dinâmicas espacial, territorial, linguísticas,
étnicas e culturais, e sem compreender a espiritualidade que distinguem esses povos de
maneira análoga, a heterogeneidade das nações africanas refletiu-se na heterogeneidade dos
estudantes pesquisados, os quais vêm de países distintos, e que acabam construindo visões
muito particulares de mundo, do Brasil em especial em Fortaleza.
Os fluxos migratórios no contexto africano remontam historicamente aos processos
ancestrais, neste contexto “teria sido talvez um continente onde se deu a maior mobilidade
humana, não pelo fato de ter sido” berço da humanidade”, mas também por razões que vão
desde as complexas questões climáticas no interior da África”, aos processos violentos da
islamização, conflitos entre os diferentes impérios e reinos até o recente processo de

4
RIBEIRO, R. M. F.; TEIXEIRA, D. RICARDINHO. África, migrações e suas diásporas: reflexões sobre a
crise internacional, cooperação e resistências desde o Sul,2017.
5
TOLENTINO, Nancy Curado. Migrações, remessas e desenvolvimento: o caso africano,2009.
colonização que se iniciou com a invasão do continente pelas potências coloniais levando seu
povo a deslocar-se constantemente6.
O território que atualmente corresponde ao país da Guiné-Bissau foi ex-colônia de
Portugal, essa região anterior a chegada dos europeus portugueses era povoada por diferentes
grupos étnicos, com suas culturas, religiões, organização social com suas tradições, sobretudo
a presença dos grupos étnicos é anterior a presença europeia na Guiné-Bissau, quer do ponto
de vista de suas organizações políticas, econômicas, religiosas.
Sabe-se, “é inegável a dimensão global das migrações internacionais, não há país ou
região do planeta que esteja “imune” ao fenômeno migratório, como também não existe povo
que não tenha recebido a influência de diversos fluxos de migrantes ao longo de sua
formação” os africanos presentes em Fortaleza, hoje, vieram ao Brasil por diversos motivos:
procura da proteção do Estado brasileiro, trabalho, refúgio, estudo nas universidades
brasileiras, alguns no quadro de cooperação Brasil/`África.
Segundo a Divisão de Temas Educacionais (DTE), região o federal do Ministério das
Relações Exteriores do Brasil, (MRE) a ideia da criação de um Programa de Governo para
amparar estudantes de outros países adveio do incremento do número de estrangeiros no 67
Brasil, já nos princípios de 1960, bem como das consequências que este fluxo trouxe para a
regulamentação interna do status desses estudantes no Brasil.
Os países africanos lusófonos são Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau Moçambique e
São Tomé e Príncipe. Estes países partilham uma história comum, resultante de séculos de
domínio colonial por parte de Portugal. A relação colonial terminou apenas em meados da
década de 1970, após um conflito (particularmente em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau)
que durou até à transição de Portugal para a democracia em 1974. Atualmente, estes países
formam uma entidade designada PALOP (“Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa”).
Estes países são também uma parte proeminente da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP), uma organização intergovernamental formada em 1996 por Portugal,
Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, de que
passou a fazer parte Timor-Leste em 20027.

METODOLOGIA
6
TCHAM, I. Caminhos de Formação Acadêmica dos Estudantes Africanos no Mundo e no Brasil. Dissertação
de Mestrado Universidade Federal de Pernambuco. CFCH: Programa de Pós-Graduação em Antropologia ,2012,
p.12.

7
TOLENTINO, Nancy Curado. Migrações, remessas e desenvolvimento: o caso africano.2009.
Na pesquisa apresentada, a metodologia empregada consiste principalmente em
procedimentos adotados na pesquisa qualitativa em Humanidades, utilizando recursos
metodológicos combinados, quais sejam: a prática da etnografia, no âmbito da disciplina
antropológica a partir da convivência da pesquisadora junto aos estudantes guineenses, objeto
da nossa pesquisa, logo o método etnográfico se define pelas técnicas de entrevista e de
observação participante complementares aos procedimentos importantes para a pesquisadora
(o) adequar suas preocupações estritamente acadêmicas e à trama interior da vida social que
investiga.
É frequente se afirmar que o método etnográfico é aquele que diferencia as formas de
construção de conhecimento e suas práticas epistêmicas na Antropologia em relação a outros
campos de conhecimento das ciências humanas, neste caso: De fato o método etnográfico
encontra sua especificidade em ser desenvolvido no âmbito da disciplina antropológica, sendo
composto de técnicas e de procedimentos de coletas de dados associados a uma prática do
trabalho de campo a partir de uma convivência mais ou menos prolongada do (a) pesquisador
(a) junto ao grupo social a ser estudado8.
68
A prática da pesquisa de campo etnográfica responde, pois, a uma demanda científica
de produção de dados de conhecimento antropológico a partir de uma inter-relação entre o (a)
pesquisador (a) e o (s) sujeito (s) pesquisados que interagem no contexto recorrendo
primordialmente as técnicas de pesquisa da observação direta, de conversas informais e
formais, as entrevistas não-diretivas, etc.
A reflexão acerca das discussões sobre migração estudantil, nacionalismo, aos
discursos dos estudantes africanos em Fortaleza/Ceará, buscou analisar as interpretações dos
estudantes sobre suas trajetórias no processo de acolhimento, interação, e enfrentamento as
diferentes formas de preconceito e negação do que é ser africano e seu processo de elaboração
no contexto brasileiro.
No caso da pesquisa a maioria dos entrevistados se concentram nas proximidades do
Bairro Centro de Fortaleza, na Avenida Domingos Olímpio, Próximo ao Mercado São
Sebastião e Bairro Damas, são jovens na sua maioria do sexo masculino entre 20 a 37 anos,
foram entrevistados 40 estudantes, mas selecionamos para este trabalho e análise 4
entrevistas. As entrevistas foram realizadas em dois períodos: de agosto de 2011 a junho de

8
ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Etnografia: saberes e práticas.2008.
2014 e de maio de 2015 a março de 2016, as entrevistas analisadas neste trabalho foram
coletadas no segundo período de maio de 2015 a março de 2016.
O objeto das Ciências Sociais o essencialmente qualitativo, pois a realidade e
dinâmica e cheio de sentidos. Foi a partir dessas percepções, e contribuição de Minayo,
baseada nos pressupostos da pesquisa qualitativa, que tratamos nossos objetivos da pesquisa e
análise, a fim de compreender os sentidos que os estudantes atribuem suas trajetórias
acadêmicas9.

TRAJETÓRIAS DOS ESTUDANTES

Para iniciar nossas reflexões, destacaremos algumas entrevistas, muitos estudantes


africanos revelaram, nos encontros informais, em entrevistas estarem surpresos pelo lugar
ocupado pela África no imaginário social dos brasileiros, tanto no meio universitário, como
fora deste, os mesmos revelam que a experiência de estudar fora do país é um sonho dos
jovens guineenses, assim como Amílcar Cabral, que saiu da Guiné-Bissau para estudar e
retornou pra lutar pela independência da Guiné-Bissau, esse é o sonho e missão de todo 69
guineense, nossa obrigação de se formar, ter bastante conhecimento e lutar para ocupar uma
posição de destaque e contribuir no país, mesmo com as adversidades e fragilidade
econômicas, políticas e sociais, esse pensamento é recorrente nas falas dos estudantes
entrevistados.
Segundo os interlocutores os brasileiros não conseguem dimensionar como seu país
é rico, e isso também acontece com os guineenses.

Eu tenho 28 anos, sou da capital mesmo, no caso Bissau, cheguei aqui em 2010,
quando cheguei no Aeroporto Pinto Martins pude perceber tipo a dimensão, quero
dizer lá no meu país é pequeno, quando cheguei no centro onde a gente ficou logo
no início na Barão do Rio Branco, e do aeroporto até o centro, a gente viu que tudo
aqui é grande, tipo populoso. E não fomos recebidos por ninguém da Universidade
que foi pra lá não, no outro dia, já começou aquela preocupação, por que disseram
que tinha uma residência universitária, mas foi promessa falsa. Quando sai na rua,
no centro, no percurso da universidade, nossa, sem uma orientação, a não ser dos
amigos que já estavam aqui, a gente tinha se desesperado, se não tivesse essa ajuda
dos nossos compatriotas guineenses. (Entrevistado 01, Estudante Tecnologia da
Informação -Fatene)

9
MINAYO, Maria Cecilia de Souza. O desafio do conhecimento: Pesquisa Qualitativa em Saúde. 3“ ed. São
Paulo-Rio de Janeiro: Editora HUCITEC-ABRASCO, 1994.
O racismo pode ser considerado um crime perfeito, os mesmos preconceitos
permeiam também o cotidiano das relações sociais de alunos entre si e de alunos com
professores no espaço escolar10.

O que mais me espantou era o jeito, os olhares das outras pessoas, isso porque
pessoas olhavam muito pra você, tipo olha um africano, na universidade do mesmo
jeito isso não só nas ruas, eu pensava assim pessoas que tem formação, tipo pessoas
bem instruídas, com nível superior e tal são pessoas mais educadas, mas aqui no
Brasil, tem muita gente preconceituosa, que é na academia, é formada e tal... e são
pessoas que mais pratica o racismo, isso mesmo o racismo, o brasileiro não se
considera negro, diz pardo, você entende essas coisas. Fala ei o africano, o negão
assim...Mas eu não ligo não vim pra brigar, estou aqui pra estudar, e não é fácil, o
nosso visto não permite trabalhar, me viro do jeito que posso, não peço nada a
ninguém, respeito as pessoas, exijo ser respeitado. Eu gosto do Brasil, isso é parte
complicada que tô relatando, mas tem mais coisa bacana, os brasileiros são gente
boa, amigo, aqui eu já acostumei, vou voltar pro meu país, como Amílcar, estudou
fora, e mais tarde fez a revolução devido sua bagagem intelectual, sua capacidade de
integração, de um grande líder que foi. (Entrevistado 02, Estudante de Processo
Gerenciais -Evolução)

Nós estudantes aqui no Brasil enfrentamos algumas dificuldades, primeiro a língua,


isso por que cearense tem muitas gírias como afala aqui e outra o nosso país falamos
a nossa língua materna, a língua oficial o português varia um pouco, falamos
somente na escola. Falar das dificuldades foram muitas, para o aluguel, quem tem

70
dinheiro para dá 3 meses como calção? Um fiador? Quem vai ser fiador? O que vivi
aqui, eu nunca pensei sabe, pessoa muda de calcada, quando te ver, sai de perto de
você no ônibus, essas coisas tipo racismo, preconceito, soube o que é aqui. Mas olha
eu tô aqui mais de 8 anos, fiz muitos amigos também. (Entrevistado 03. Estudante
Rede de Computação-Evolução)

Temos formação técnica, fizemos cursos, alguns dos meus colegas tem curso
superior, aqui fez duas pós graduação mais não conseguimos colocação no mercado,
nem como estágio, isso está atribuído várias questões primeiro a falta de
oportunidades para nós estrangeiros, depois a questão da legislação, o preconceito,
isso existe muito. Eu estou aqui mas não pretendo ficar, estou me preparando,
voltarei para meu país, tenho que dá minha contribuição no desenvolvimento do
meu país. O apoio da nossa família que vive na em Portugal, e na Guiné-Bissau é
essencial para concluir esse sonho aqui no Brasil e mais tarde no meu
país.(Entrevistado4.Estudante Tecnologia da Informação-Fatene).

As narrativas acima dos interlocutores consistem em colocar suas vivências,


trajetórias, imaginário sobre o Brasil, sonhos traçados pelos estudantes e seus familiares, logo
é possível captar nas falas dos interlocutores suas particularidades, seus olhares quanto ao
Brasil-Fortaleza, local onde estão inseridos como estudantes estrangeiros, suas histórias de
vida, seu pertencimento étnico, suas motivações para migrarem, as questões de discriminação
envolve fortes doses de racismo nos espaços acadêmicos, sentem estranhamento quanto a
comunicação com professores brasileiros pois mesmos relatam que a comunicação é bem
informal, isso causa surpresa para os estudantes guineenses.

MUNANGA. K. Superando o Racismo na escola. “ edição


revisada /[Brasília]: Ministério da
10

Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. 204p.: il.


CONCLUSÕES

Como abordado a mobilidade dos estudantes guineenses se deu por motivos


estudantis, apoiados por seus familiares e motivados pelo sonho do diploma no exterior e pela
propaganda de algumas Instituições de Ensino Superior do Brasil-Ceará, com a garantia de
apoio sócio educacional, no entanto não foi essa realidade de apoio encontrada ao chegar no
Brasil-Ceará, sem apoio institucional e assumindo suas despesas estudantis, de alimentação,
moradia, transporte e mensalidades dos cursos, nesse cenário assumem temporariamente
novas responsabilidades, no entanto a maioria ados entrevistados residem em Fortaleza a mais
de 6 anos, nesse período, concluíram a graduação, pós-graduação ou estão cursando uma
segunda graduação e cursando mestrado nas instituições federais.
Nas falas dos interlocutores foi captada o desejo de retornar para o país de origem,
sobretudo no sonho de contribuir na construção democrática na República da Guiné-Bissau,
no entanto os mesmos relatam que não conseguem enxergar atualmente perspectivas de
retorno tendo em vista que o país não oferece oportunidade para os novos formandos, sem
oportunidade de concorrer a concursos públicos, pois o país não oferece concursos públicos.
71
Esses estudantes não podem exercer atividade remunerada, no entanto na sua maioria
precisam assumir suas despesas, essa condição deixo-os em situação de vulnerabilidades
tendo e vista que muitos desses estudantes com nível superior e pós-graduação assumem
atividades de forma precária.
Destaco que não há um número exato quanto aos estudantes regulares ou irregulares
no estado do Ceará, vindos para Instituições de Ensino Superior Privadas e, quais funções
assumem para custear suas despesas, na maioria das vezes mesmo com apoio de seus
familiares, é preciso exercer alguma atividade remuneradas, e sem nenhuma assistência do
Estado.

REFERÊNCIAS

BRASIL: MEC. Manual do Estudante Convenio. Encontrado em:


http://www.dce.mre.gov.br/PEC/G/docs/Manual_do_Estudante-Convenio_PT.pdf). Acesso
em: 20 de Nov. de 2017.
ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Etnografia: saberes e práticas. Artigo
publicado no livro organizado por Céli Regina Jardim Pinto e César Augusto Barcellos
Guazzelli Ciências Humanas: pesquisa e método. Porto Alegre: Editora da Universidade,
2008.
LANGA, E. N. B. Diáspora Africana no Ceará: desafios diante da alteridade e
ressignificações de identidades étnico-raciais in: VI Congresso Internacional de Estudos
sobre a Diversidade Sexual e de Gênero da ABEH, 2012, Salvador, Bahia.
MINAYO, Maria Cecilia de Souza. O desafio do conhecimento: Pesquisa Qualitativa em
Saúde. 3“ ed. São Paulo-Rio de Janeiro: Editora HUCITEC-ABRASCO, 1994.
MUNANGA. K. Superando o Racismo na escola. 2“ edição revisada /[Brasília]: Ministério
da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005. 204p.:
il.
RIBEIRO, R. M. F.; TEIXEIRA, D. RICARDINHO. África, migrações e suas diásporas:
reflexões sobre a crise internacional, cooperação e resistências desde o Sul. [recurso
eletrônico] / Bas´Ilele Malomalo; Elcimar Simão Martins; Jacqueline Cunha da Serra Freire
(Orgs.) -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2017, v. 3, p. 293-303.
SUBUHANA, Carlos. Estudar no Brasil: Imigração temporária de estudantes
moçambicanos do Rio de Janeiro. p. 210 Tese (Doutorado em Serviço Social). USP, 2005.
_______SUBUHANA, C. O estudante convênio: a experiência sociocultural de 72
universitários da África Lusófona em São Paulo, Brasil. Texto apresentado na 26 Reunião
Brasileira de Antropologia. Porto Seguro- BA, 2008.
TOLENTINO, Nancy Curado. 2009. "Migrações, remessas e desenvolvimento: o caso
africano". Instituto Superior de Economia e Gestão ñ SOCIUS. Workingpapers nº 9/2009
TCHAM, I. Caminhos de Formação Acadêmica dos Estudantes Africanos no Mundo e
no Brasil. Dissertação de Mestrado Universidade Federal de Pernambuco. CFCH: Programa
de Pós-Graduação em Antropologia ,2012.
PARTE II

COMÉRCIO
ATLÂNTICO,
ESCRAVIDÃO E
MESTIÇAGEM.
OS HOMENS PARDOS
DA VILA DO PENEDO E
AS ESTRATÉGIAS DE
DISTINÇÃO SOCIAL NA
COMARCA DE
ALAGOAS (1750 - 1819).

FABIANNE NAYRA
SANTOS ALVES

MESTRANDA (UFAL)
A Vila do Penedo foi um dos primeiros núcleos de povoamento da região meridional
da Capitania de Pernambuco, elevada à categoria de Comarca de Alagoas em 17061. Naquela
região, a partir de meados do século XVIII, nota-se uma participação cada vez maior de um
grupo de pessoas denominadas de pardos em instituições como irmandades e milícias, lugares
que proporcionavam o exercício da religiosidade católica, a defesa do território e manutenção
da ordem social ao mesmo tempo em que serviram como locais onde cada pardo pôde se

75
distinguir socialmente. Conquistar patentes militares através de serviços prestados à Coroa,
alcançar a liberdade (no caso dos que ainda estavam na condição de escravos), ocupar cargos
administrativos, ascender economicamente, entrar para irmandades eram etapas na busca por
mobilidade social. Nesta comunicação, mostraremos quais estratégias e como os homens
pardos da Vila do Penedo as utilizaram na busca por distinção social em suas trajetórias.

A historiografia tradicional alagoana 2 trata da formação da Vila do Penedo


basicamente como uma região de defesa. As incursões dos primeiros donatários da Capitania
de Pernambuco no século XVI visando garantir o monopólio do uso das terras pelo oceano até
alcançar o Rio São Francisco, a construção do Forte Maurício pelos holandeses no século
XVII são fatos que demonstram a relevância da região para a proteção do território ao norte

* A autora é mestranda em História Social pela UFAL e integrante do Núcleo de Estudos Sociedade, Escravidão
e Mestiçagens (NESEM-UFAL) onde participa, desde 2014, da pesquisa intitulada “História da Escravidão em
Alagoas: conceitos, instituições, dinâmicas sociais, econômicas e culturais – Séculos XVIII e XIX”. Orientador:
Prof. Dr. Gian Carlo de Melo Silva.
1
Os outros dois núcleos foram as vilas de Santa Maria Madalena da Lagoa do Sul (Vila de Alagoas) e de Porto
Calvo, ambas criadas ainda no século XVI. Segundo a historiografia alagoana, em 06 de outubro de 1706 uma
carta régia de D. João V eleva à categoria de comarca a região sul da Capitania de Pernambuco. Porém, devido
às agitações provocadas pela guerra dos mascates, a efetivação dessa nova condição só se dá após o fim das
disputas em 1711.
2
Os principais autores da historiografia clássica alagoana são: COSTA, Craveiro. História de Alagoas –
resumo didático. Maceió: Sergasa, 1983. DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. O bangüê nas Alagoas. Traços da
influência do sistema econômico do engenho de açúcar na vida e na cultura regional. – [2. ed.] - Maceió:
EDUFAL, 2002.
do rio. A ideia de região de defesa que vigorava desde o século XVI foi mantida como
justificativa até, pelo menos, o ano de 1819 quando o coronel da milícia dos pardos da Vila do
Penedo elaborou um quadro onde registrou os nomes de todos os oficiais que compunham o
regimento sob seu comando. Todas as cinco companhias sobre as quais conseguimos recolher
informações até o momento que atuaram na Vila do Penedo ou em freguesias circunvizinhas,
mas com sede na vila, tinham como objetivo a defesa das barras do Rio de São Francisco,
Barra do Peba e de Coruripe (que, juntas, compõem a região da foz do rio). Assim, a defesa
do território foi o fator chave que motivou a criação do regimento miliciano dos pardos da
Vila do Penedo, fundado como Terço Auxiliar na década de 1770. Porém, em uma localidade
sem registro de revoltas3 e sem ameaças ou invasão de outras nações, a manutenção de um
Terço Auxiliar, transformado posteriormente em Regimento de Milícias, o tamanho da área
que as companhias abrangeram4 e a escolha de um pardo, o coronel Francisco Manuel
Martins Ramos, para o cargo de comandante interino da Vila do Penedo em 1817 na ocasião
da elevação da Comarca de Alagoas para Capitania são indicativos do papel de destaque dessa
milícia. Fazer parte dessa instituição atribuía prestígio às trajetórias dos pardos perante a
sociedade. 76
A participação na irmandade de São Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila do
Penedo também foi importante no processo de distinção social. Não se sabe a data exata em
que a irmandade foi criada, o que se sabe sobre seus primeiros momentos é que, no ano de
1758, o comandante Manoel Martins Ramos ofereceu-se para financiar a construção da igreja
e seria pago de volta conforme a irmandade fosse arrecadando esmolas, proposta que foi
aceita pelos esmoleiros da ermida que funcionava no local onde foi edificada a Igreja de São
Gonçalo Garcia. Esses esmoleiros, já se organizavam em uma hierarquia semelhante a das
irmandades elegendo juízes, escrivães, tesoureiros, procuradores e mordomos5, porém
somente anos após a construção da igreja é que se percebe, na documentação disponível, uma
maior atuação dos pardos da Vila do Penedo devotos de São Gonçalo na sociedade. A

3
A única referência à revolta na Vila do Penedo é a respeito de um levante de africanos malês que foi subjugado
quando estava em vias de acontecer no ano de 1815.
4
Na mesma documentação existe o registro de companhias do regimento dos pardos da Vila do Penedo
operando na Vila de Alagoas, também sob o comando de Francisco Manuel Martins Ramos. No entanto, não
serão trabalhadas nesse momento em que buscamos compreender as dinâmicas na Vila do Penedo, onde parece
ter tido início e sido mais intenso esse processo de distinção dos pardos na Comarca de Alagoas.
5
Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de Penedo. Ereta em
Igreja própria que a sua custa fundaram por seu Administrador o falecido Comandante Manoel Martins
Ramos. Feito e aprovado em Mesa Geral de 16 de fevereiro de 1807, fl. 4. Disponível em
<http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/02441400>.
trajetória dos homens pardos nessa irmandade também nos ajudou a compreender como essa
instituição operou nas vidas e nas possibilidades de mobilidade, distinção e ascensão social na
hierarquia.

O elemento qualidade6 também interferiu diretamente nas possibilidades de agência


das vidas de cada pardo que veremos adiante. Essas características, que eram inatas, operaram
em conjunto com as conquistas pessoais de cada pardo. O trabalho/profissões, as patentes
militares, o acesso a cargos administrativos e políticos, a participação em irmandades unidas à
qualidade traçavam o perfil de indivíduos, famílias e dos grupos sociais. Assim, nesse
trabalho também apresentaremos um pouco do que foi possível reconstituir até o momento 7
do perfil dos pardos da Vila do Penedo a partir da análise desse grupo enquanto irmandade e
milícia dentro da sociedade e os caminhos percorridos por alguns deles individualmente no
período que vai da segunda metade do século XVIII às duas primeiras décadas do século XIX.

IRMANDADE DE SÃO GONÇALO GARCIA: FORMAÇÃO E ASCENSÃO DO


GRUPO DOS PARDOS DE PENEDO

Os pardos da Vila do Penedo parecem ter começado a reunir-se em grupo em meados


77
do século XVIII, mais especificamente em fins da década de 1750, na irmandade de São
Gonçalo Garcia. Evidentemente já existiam pardos na região sul da Capitania de Pernambuco
antes desse período. Segundo Félix Lima Júnior, a Vila de Alagoas abrigou uma irmandade de
devoção a Nossa Senhora do Amparo composta por moços pardos ainda no século XVII8. Há
indícios também da existência de devotos de São Gonçalo na Vila do Penedo para a primeira
metade do século XVIII, mas não sabemos se eram pardos. Porém, apenas após a festa da
Irmandade de Nossa Senhora do Livramento da Vila de Santo Antônio do Recife realizada em
1745, tida como um “espaço de reivindicação social”9 dos pardos dessa vila que cresciam
quantitativamente e ascendiam social e economicamente, é que esse grupo ganhou

6
Conjunto de características inatas a uma pessoa, tais como nação que poderia ser religiosa (de judeu ou mouro)
ou de origem geográfica (Angola, Mina, crioula, não entro no mérito da discussão a respeito de origem de porto
de embarque ou de grupo cultural); raça, que poderia incluir também as de judeu e mouro, bem como de negros
e mestiços e cor, que abrange branco, preto/negro, pardo/baço. In: SILVA, Gian Carlo de Melo. Na cor da pele,
o negro: conceitos, regras, compadrio e sociedade escravista na vila do Recife (1790-1810). Tese
(Doutorado em História) - Universidade Federal de Pernambuco. Recife: O autor, 2014, p. 44.
7
Este trabalho é parte de pesquisa de mestrado ainda em curso.
8
LIMA JÚNIOR, Félix. Irmandades. Maceió: Imprensa Oficial, 1970, p. 7.
9
BEZERRA, Janaína dos Santos; ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. “Pompa e circunstância” a um santo
pardo: São Gonçalo Garciaa e a luta dos pardos por inserção social no XVIII. Revista História Unisinos. São
Leopoldo, RS, v. 16, n. 1, jan-abr. 2012, p. 125. Disponível em: <
http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/htu.2012.161.10>. Acesso em 27/10/2017.
visibilidade e reconhecimento da sociedade, autoridades e demais instituições. Somente após
a institucionalização do culto a São Gonçalo Garcia, o primeiro santo pardo das Américas,
ocorrida naquele ano, é que os homens pardos da Vila do Penedo passaram a se expor pública
e abertamente como pardos dentro da instituição da irmandade.

Entre alguns episódios nos quais a irmandade esteve envolvida dentro do recorte deste
trabalho, selecionamos um que acreditamos revelar, com mais clareza, o lugar ocupado pelos
pardos na região. Trata-se da construção e administração do Hospital da Misericórdia da vila.
No ano de 1762, a mesa da irmandade de São Gonçalo Garcia enviou ao rei um requerimento
solicitando permissão para possuir um esquife10 com a justificativa de que não havia casa de
misericórdia na Vila do Penedo e que precisavam desse objeto para levar seus irmãos para
serem sepultados11. Uma década depois, em janeiro de 1772, a Ordem Terceira de São
Francisco da mesma vila também enviou requerimento ao rei, contudo solicitavam que fosse
revogada a provisão alcançada pelos pardos e que o esquife continuasse na posse dos irmãos
da ordem, que o tinha desde seu princípio (fins do século XVII12). Neste documento, os
pardos da irmandade são tratados pelo termo mulato. Apesar de pardo e mulato designarem
um conjunto de pessoas de mesma origem (filho de negro(a) bom branco(a), de acordo com
78
os dicionaristas13), “mulato, em contrapartida, é frequentemente empregado para indicar o
caráter suspeito de um indivíduo14. Obter, do rei, permissão para ter posse de um objeto que
sempre fora monopolizado pelos irmãos da Ordem Terceira de São Francisco claramente soou
como ameaça e provocou essa reação.

Alguns meses depois da tentativa de revogação da provisão pelos irmãos franciscanos,


os pardos da irmandade de São Gonçalo Garcia enviaram ao rei um novo requerimento. Desta

10
Cama usada para carregar mortos à sepultura.
11
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 175.
12
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 201.
13
Cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico [...].
Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. Disponível em:<
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/1> e SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da língua
portuguesa – recompilado dos vocabulários impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente
emendado e muito acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA natural do Rio de Janeiro
oferecido ao muito alto, e muito poderoso Principe Regente Nosso Senhor. Lisboa: Typographia Lacerdina,
1813. 1ª edição em Lisboa, Oficina Simão Tadeu Ferreira, em 1789, 2v. Disponível em:
<http://dicionarios.bbm.usp.br/en/dicionario/2>.
14
ALMEIDA, Marcos Antonio de. A Irmandade de São Gonçalo Garcia em Pernambuco: a apoteose dos
Homens Pardos em Recife (1745). In: ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de; SILVA, Gian Carlo de Melo;
RIBEIRO, Marília de Azambuja. Cultura e sociabilidades no mundo atlântico. Recife: Ed. Universitária da
UFPE, 2012, p. 427.
vez, a solicitação era pedindo confirmação de doação feita pelo Coronel João Pereira Álvares
“de quatro moradas de casas térreas para construção e estabelecimento de um hospital para
serem nele curados os enfermos pobres, necessitados que pela falta dele miseravelmente
costumam perecer [...]”15. Mais de 30 anos transcorreram para que alguma providência fosse
tomada. Nesse período, a irmandade buscou assegurar o direito à administração desses bens
entrando inclusive em conflito com possíveis herdeiros do coronel. Somente em 1807 é que
aparece algum resultado sobre o litígio dos bens do falecido Coronel João Pereira Álvares
quando Francisco Manuel Martins Ramos, então procurador da irmandade, pediu provisão à
Coroa para a eleição e constituição de uma mesa independente [à da irmandade] para a
administração do hospital16. O segundo compromisso da irmandade do ano de 186517, que a
registra como sendo Confraria da Santa Casa de Misericórdia do Glorioso Mártir São Gonçalo
Garcia, nos permite concluir que os pardos de fato alcançaram a permissão para a
administração dos bens deixados em doação e permaneceram à frente da Misericórdia da Vila
do Penedo.

Durante o período colonial, a instituição responsável pelos cuidados com os doentes,


famintos, pobres, necessitados de atenção e ajuda em geral, foram as Misericórdias, das quais
79
geralmente eram confrades os homens bons da sociedade. Teoricamente, descendentes de
africanos, pessoas que exerciam ofícios mecânicos ou possuíam sangue impuro de judeu,
mouro ou mulato não seriam considerados homens bons. No entanto, a vida cotidiana no
Brasil demonstrou que isso nem sempre acontecia. Homens pretos alcançaram altos postos
militares (ainda que, geralmente, em períodos e situações bastante específicas como o caso de
Henrique Dias e as tropas pretas que atuaram na restauração pernambucana), homens que
exerciam ofícios manuais formaram grupos de elite18 e, na Vila do Penedo, os pardos foram o
grupo de pessoas escolhido para construir e administrar o hospital da Misericórdia. Escolhido
porque, como visto, foi através de doação que a irmandade de pardos recebeu as posses para a
construção do hospital. Dessa forma, estar à frente de uma instituição de origem reinol, cuja
estrutura e composição se baseavam nas misericórdias de Portugal e que era considerada

15
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 203, fl. 1.
16
AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 462, fl. 3.
17
Compromisso da Irmandade do Glorioso Martyr São Gonçalo Garcia, erecta em Igreja fundada em
1758 pelo irmão da mesma Irmandade [...]. 1865. Arquivo Público de Alagoas. Caixa 5585.
18
Cf. GUEDES, Roberto. Ofícios mecânicos e mobilidade social: Rio de Janeiro e São Paulo (Sécs. XVII-XIX).
Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 379-423, Dez. 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2006000200379&lng=en&nrm=iso>.
access on 22 Oct. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X007013004.
como lugar para “homens bons e virtuosos e de boa fama”19 foi elemento que fez dos pardos
da Vila do Penedo um grupo distinto dos demais, em constante ascensão social e de trajetória
incomum se comparados a outros grupos de descendentes de africanos.

MILÍCIA DOS PARDOS: ASCENSÃO SOCIAL E TRAJETÓRIAS SINGULARES

A presença na milícia foi elemento chave na vida social dos pardos da Comarca de
Alagoas. Os ofícios enviados pelo comandante do regimento ao governador no ano de 1819
nos permitiram conhecer melhor a composição social do grupo e, a partir daí, compreender
suas dinâmicas.

Os 512 oficiais pardos registrados na milícia (transcritos até o momento) tinham


idades que iam dos 08 aos 67 anos, alguns viviam de soldo e a maioria exercia outras
profissões como ourives, negociante, músico, pintor, carpinteiro, vaqueiro, serrador,
marceneiro, sangrador entre outras. Dividiam-se em cinco companhias e o Estado Maior e
atuavam nas vilas de Piaçabuçu, Coruripe e Penedo. O regimento se reunia para operações na
Vila do Penedo, local de nascimento e moradia da maioria dos oficiais, mas encontramos
também alguns nascidos em Vila Nova e Propriá (Sergipe), Recife, Olinda, Bahia e Minas
80
(acreditamos que seja das Minas Gerais). O local de moradia é o dado com maior diversidade
e que mostra melhor o alcance territorial da milícia. Foram pelo menos 91 localidades
distribuídas entre os espaços urbanos das vilas e os rurais das freguesias o que pode explicar a
maior porcentagem (67,96%) de lavradores. Também foi feito o registro de companhias que
atuaram na Vila de Alagoas com objetivo de realizar a defesa da Barra do Francês, mas neste
momento é suficiente expor apenas o fato de que o regimento de milícia dos pardos, cuja
origem e sede eram na Vila do Penedo, tenha chegado a operar na sede da comarca20, a Vila
de Alagoas.

Outro dado presente no registro dos oficiais é a filiação, que sustentará a análise do
papel da milícia neste artigo, pois nessa instituição a família teve protagonismo. No quadro 1,
abaixo, temos os três tipos de filiação que constam nos registros: filho da igreja, filho de
outro e os casos onde constava o nome do pai. Ainda não encontramos documentação que nos

19
ABREU, Laurinda. O papel das Misericórdias dos 'lugares de além-mar' na formação do Império português.
Hist. cienc. saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, Dez. 2001, p. 593. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702001000400005&lng=en&nrm=iso>.
20
Por se tratar de uma região canavieira, o que não caracterizou a Vila do Penedo, as dinâmicas da Vila de
Alagoas provavelmente interferiram na composição da sociedade local e, obviamente, no perfil dos pardos.
ajude a confirmar, mas acreditamos que os filhos da igreja tenham sido os enjeitados21,
enquanto os filhos de outro provavelmente foram os ilegítimos, nascidos de relações que não
seguiam a moralidade cristã ou de gravidez indesejada22.

QUADRO 123
Filiações dos pardos oficiais do Regimento de Milícia
dos Homens Pardos de Penedo e Poxim (1819).
FILIAÇÃO Nº
Consta o pai 412
Da igreja 85
De outro 15
TOTAL 512

A entrada na milícia na Vila do Penedo, no decorrer da segunda metade do século


XVIII, tornou-se um costume entre os pardos, um legado deixado por homens que alcançaram
alguma mobilidade social a seus filhos. É interessante notar a diferença entre os pais sem
nenhuma qualificação (se é que podemos chamar assim os diferentes cargos na milícia) dos
que possuíam alguma distinção, que tinham não somente o nome registrado, mas a patente
que possuía. Em todas as companhias nota-se a existência de oficiais cujos pais também 81
possuíram patentes. Segundo Ronald Raminelli “no Antigo Regime, se recebiam benesses e
privilégios não somente devido às qualidades da pessoa, mas de toda a família e casa, a honra
era de fato acumulativa”24. Não raro vemos requerimentos de cartas patentes que descrevem
não somente os feitos pessoais do solicitante, mas de seus antepassados na busca por ascensão
social. Certamente, os serviços prestados à Coroa pelos pais influenciaram a mobilidade dos
filhos na estrutura interna da milícia. Dos 412 homens cujo registro consta o nome do pai, 33
(8%) seguiram os passos de seus genitores e continuaram a carreira militar. Destes, mais da
metade alcançou as altas patentes dos regimentos (sargento, alferes, tenente, coronel), como
pode ser visto no quadro 2 abaixo.

QUADRO 2
Filiação dos oficiais do regimento de milícias dos homens pardos de Penedo e Poxim
(1819)
NOME DO OFICIAL CARGO NA FILIAÇÃO

21
Crianças deixadas em casas de particulares, órgãos públicos ou na roda dos enjeitados dependendo da região.
22
Cf. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 68-96.
23
Os dados dos dois quadros foram retirados da seguinte fonte: Ofícios do comandante do Regimento de
Milícias dos Homens Pardos de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
24
RAMINELLI, Ronald. Matias Vidal de Negreiros Mulato entre a norma reinol e as práticas ultramarinas.
Varia hist., Belo Horizonte, v. 32, n. 60, p. 704, Dez. 2016. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-87752016000300699&lng=en&nrm=iso>.
MILÍCIA
Antonio Joaquim do 2º Sargento Tenente Joaquim Antonio do
Nascimento Nascimento
Manoel Joaquim do Cabo Tenente Joaquim Antonio do
Nascimento Nascimento
Francisco Antonio do Soldado Tenente Joaquim Antonio do
Nascimento Nascimento
Felix da Rocha Cirqueira Tenente Alferes João da Rocha Cirqueira
Bernardino da Silva Alferes
Laudacio Capitão Felix da Silva Laudacio
Manoel Vitorino da Rocha 1º Sargento Alferes Antonio Victorino da
Rocha
José Carlos da Silva 2º Sargento Alferes Manoel Victorino da Silva
João Pereira Alvares Porta Bandeira Coronel Martinho Pereira Alvares
Agostinho Ferreira Duarte Soldado Tenente Pantaleão Pereira
Vicente Pereira Alvares Soldado Coronel Martinho Pereira Alvares
José Virginio da Conceição Soldado filho natural do Tenente Joaquim
Antonio do Nascimento
Joaquim Elesbão Soldado Alferes Antonio Francisco de
Alcantara
Antonio José Soldado Tenente Manoel da Silva
Soldado
Manoel Rodrigues Tenente Procopio Rodrigues de

82
Farias
José Joaquim de Santa Anna Soldado Alferes Francisco Tavares
Manoel Moreira Sampaio Tenente Alferes Vicente João Damasceno
Silva Leite
Vicente Moreira Sampaio 1º sargento Alferes Vicente João Damasceno
Luiz Vieira da Costa Furriel Capitão Joaquim Manoel da
Trindade
Ignacio Joaquim Passos Leal Porta bandeira Secretario Ignacio Joaquim Passos
Felippe Neri da Trindade Cabo Capitão Joaquim Manoel da
Trindade
José de Araujo Passos Soldado Alferes Sebastião de Araujo
Passos
Joaquim de Araujo Passos Soldado Alferes Sebastião de Araujo
Passos
João Baptista Cabral Soldado Alferes Sebastião de Araujo
Passos
Manoel de Jesus Passos Soldado Alferes José de Araujo Passos
José Joaquim de Araujo Soldado Alferes José de Araujo Passos
Passos
Agostinho Pereira Leal Soldado Coronel Martinho Pereira
Valerio José da Trindade Tenente Capitão Joaquim Manoel da
Trindade
Joaquim Fortunato de Santa Alferes Capitão Joaquim Mendes Teixeira
Anna
Veríssimo José dos Santos 2º Sargento Ajudante Manoel Pinto dos Santos
José Francisco do Soldado Tenente Joaquim Antonio do
Nascimento Nascimento
José Gomes Furtuoso Soldado Alferes Gabriel de Santa Anna
Francisco Manoel Martins Coronel Capitão Manoel Martins Ramos
Ramos
Manoel Ferreira de Mello Tenente-coronel Capitão João Carlos de Mello

Como se pode ver, há casos em que mais de um filho foi encaminhado para a atividade
militar. O Tenente Joaquim Antonio do Nascimento, por exemplo, tinha quatro filhos: um no
posto de 2º Sargento, outro no de Cabo e os outros dois no de soldado. O Coronel Martinho
Pereira Álvares, o Alferes Vicente João Damasceno, o Capitão Joaquim Manoel da Trindade
são outros exemplos. O caso dos alferes Sebastião de Araújo Passos e José de Araújo Passos
também é interessante, pois além de os dois, provavelmente irmãos, terem formado uma
geração (ou parte) de uma família na milícia, seus filhos fazem parte da segunda (ou terceira,
caso o avô também tenham sido militar).

Da lista do quadro 2, a figura de Francisco Manuel Martins Ramos merece destaque.


Aos 39 anos, era coronel do regimento miliciano da Vila do Penedo e Procurador da
Irmandade de São Gonçalo Garcia (foi ele quem esteve à frente da disputa pelos bens do
Coronel João Pereira Álvares para a construção do Hospital representando a irmandade e 83
também quem escolheu os irmãos a ocuparem a Mesa da Administração25). Francisco era
filho do Comandante Manoel Martins Ramos, já citado anteriormente como o doador do
dinheiro para a construção da Igreja, e enteado do Sargento-Mor Libório Lázaro Leal. Com
esse currículo, foi escolhido pelo Governador Sebastião Francisco de Melo e Póvoas para
ocupar o posto de comandante interino da Vila do Penedo após a elevação da Comarca de
Alagoas à Capitania, em 1817, ocasião que nos legou uma interessante declaração. Quando
aconteceu de ser indicado para o mais alto posto da hierarquia social e política, o cargo de
comandante da vila, houve algum tipo de agitação na região. O motivo foi o fato de Francisco
ser um homem de ascendência africana. No ofício que enviou ao governador prestando contas
de seus serviços, o pardo declarou que publicou um edital para informar às pessoas sobre a
sua forma de comandar a vila26, e não para que o povo conhecesse o novo comandante,

25
AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 462, fls. 3 e 4
26
“Para os prevenir dos motivos porque seriam castigados, autorizando algumas medidas de Polícia com o
Respeitável Nome de Vossa Excelência, esperando que Vossa Excelência se Digne de Aprovar este meu arbítrio,
que só teve por fim a tranquilidade pública, e o evitar, mais com prudência, do que com castigo, os abusos da
plebe.”. In: Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos de Poxim e Penedo. 1819.
Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
porque sabia que “isto ia chocar com o amor próprio de algumas pessoas da primeira espécie
dos habitantes, que olhão a mistura de sangue Africano com odiosa preocupação”27.

Francisco, com essa bagagem, esteve à frente de dois grupos que se declaravam
publicamente enquanto instituições de pardos em uma sociedade escravista, com traços de
Antigo Regime e organizada de acordo com elementos que dificultavam ou impediam a
ascensão social. Sua trajetória e a dos pardos da Vila do Penedo revelam o modo como a
sociedade colonial do Brasil tratou as pessoas de ascendência africana, exigindo delas
comportamentos e esforços extras na vida cotidiana. Mostram também que estes grupos não
permaneceram sempre inertes em posições inferiores na hierarquia social, pelo contrário, os
pardos também conformaram grupos de elite.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O recorte temporal deste trabalho pode parecer muito limitado, mas circunscreve bem
o período em que o grupo de pardos se organizou na Vila do Penedo. Em 1758, foi iniciada a
construção da Igreja de São Gonçalo Garcia, um patrimônio próprio que parece tê-los dado
um suporte mais seguro para continuarem atuando e interagindo da mesma forma e no mesmo
84
espaço que os demais grupos (especialmente os grupos compostos pelos brancos28). Em fins
do século XVIII, na década de 1770, o Terço Auxiliar também se torna um espaço de atuação
dos pardos na Comarca de Alagoas.

A estrutura social baseada na ideia de defesa parece ter sido a forma coma sociedade
da Vila do Penedo se organizou e organizou sua população. A atividade açucareira, praticada
em larga escala nas outras vilas (Alagoas e Porto Calvo) e que exigia grandes quantidades de
terra para plantação e contingentes de escravos para o trabalho, não foi o foco da economia da
vila banhada pelo São Francisco. Regiões ribeirinhas serviam geralmente para o pastoreio,
como aconteceu na Vila do Penedo e a altitude na qual estava permitia uma melhor
visualização de quem chegava, outro fator que remete à proteção tanto das terras ao norte do
rio quanto da entrada para os sertões.

27
Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos de Poxim e Penedo. 1819. Arquivo
Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.
28
Para a Vila do Penedo foram o Regimento de Milícia dos Homens Brancos e a Ordem Terceira de São
Francisco que não necessariamente era composta somente por homens brancos, mas o episódio em que chamam
os pardos de mulatos relatado anteriormente nos permite concluir que nem eram pardos nem, muito menos,
pretos.
O ano de 1819 foi o momento em que eles estavam melhor organizados: a milícia, que
inicialmente atuou apenas em Penedo e nas regiões circunvizinhas, passou a ter companhia
também na Vilas de Alagoas, sede/capital até o ano de 1839, seu coronel foi escolhido como
Comandante Interino daquela localidade na ocasião da elevação da Comarca de Alagoas à
Capitania, a irmandade de pardos já havia se tornado a responsável pela administração do
hospital de misericórdia da vila. Esses episódios são reveladores da dinâmica empreendida
por esse grupo.

Toda a distinção, mobilidade e ascensão social alcançada, os espaços ocupados por


esses descendentes de africanos nos possibilita afirmar que a elite da Comarca de Alagoas,
pelo menos no período em questão, foi composta por homens pardos, mais especificamente os
que compuseram a irmandade de São Gonçalo Garcia e o Regimento de Milícia dos Homens
Pardos da Vila do Penedo.

REFERÊNCIAS

Arquivo Histórico Ultramarino


85
AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 175.

AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 201

AHU_ACL_CU_004, Cx. 3, D. 203.

AHU_ACL_CU_004, Cx. 6, D. 462.

Arquivo Púbico de Alagoas

Compromisso da Irmandade do Glorioso Martyr São Gonçalo Garcia, erecta em Igreja


fundada em 1758 pelo irmão da mesma Irmandade [...]. 1865. Arquivo Público de
Alagoas. Caixa 5585.

Ofícios do comandante do Regimento de Milícias dos Homens Pardos de Poxim e


Penedo. 1819. Arquivo Público de Alagoas. APA. Caixa 1511.

Fontes Digitalizadas
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico
[...]. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v. Disponível em:<
http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/1>.

Compromisso da Irmandade de S. Gonçalo Garcia dos Homens Pardos da Vila de


Penedo. Ereta em Igreja própria que a sua custa fundaram por seu Administrador o
falecido Comandante Manoel Martins Ramos. Feito e aprovado em Mesa Geral de 16 de
fevereiro de 1807. Disponível em <http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/02441400>.

SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da língua portuguesa – recompilado dos


vocabulários impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito
acrescentado, por ANTONIO DE MORAES SILVA natural do Rio de Janeiro oferecido
ao muito alto, e muito poderoso Principe Regente Nosso Senhor. Lisboa: Typographia
Lacerdina, 1813. 1ª edição em Lisboa, Oficina Simão Tadeu Ferreira, em 1789, 2v.
Disponível em: <http://dicionarios.bbm.usp.br/en/dicionario/2>.

86

Artigos, Dissertações, Livros e Teses

ABREU, Laurinda. O papel das Misericórdias dos 'lugares de além-mar' na formação do


Império português. Hist. cienc. saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 591-611,
Dez. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
59702001000400005&lng=en&nrm=iso

ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de; SILVA, Gian Carlo de Melo; RIBEIRO, Marília de
Azambuja. Cultura e sociabilidades no mundo atlântico. Recife: Ed. Universitária da
UFPE, 2012. 2012

BEZERRA, Janaína dos Santos; ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. “Pompa e
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Universidade Federal de Pernambuco. Recife: O autor, 2014.
OS ARTÍFICES DOS
MARES: O TRABALHO
DOS OFICIAIS
MECÂNICOS NAS
EMBARCAÇÕES,
SÉCULO XVIII.

HENRIQUE NELSON
DA SILVA

DOUTORANDO (UFPE)
O presente texto1 tem por objeto de estudo os oficiais mecânicos, sobretudo
carpinteiros e calafates, que trabalhavam nas embarcações durante as travessias marítimas, no
século XVIII. Nosso objetivo é realizar um breve estudo acerca dos papeis desses
profissionais na elaboração, manutenção e ressignificação dos modos de ser e fazer da vida
profissional nos diversos portos do mundo português; propomos também analisar as relações
de trabalho e de organização corporativa as quais os artífices portuários e das embarcações
estavam envolvidos, comparando-as às atividades artesanais nos centros urbanos, e entender o
lugar que esses artesãos ocupavam na hierarquia sócio profissional das embarcações. Este
estudo compõe um tópico da nossa tese de doutoramento que está sendo construída e,
portanto, as reflexões aqui presentes fazem parte dos nossos esforços em amadurecer as ideias
89
aqui trabalhadas. Utilizamos como fonte, a documentação referente aos fundos dos feitos
findos do Juízo da Índia e Mina e também da Conservatória da Companhia Geral de
Pernambuco e Paraíba, acervos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, e também a
documentação avulsa do Arquivo Histórico Ultramarino.

Em 24 de abril de 1775 aportou em Pernambuco o Navio Netuno. A embarcação havia


zarpado de Lisboa e estava à caminho de Goa na Índia. Tratava-se de um grande barco e
contava com dois carpinteiros e dois calafates listados hierarquicamente, o primeiro
carpinteiro Antônio José de Souza, o segundo carpinteiro Sebastião Antônio, o primeiro
calafate Manoel Antônio dos Santos e o segundo calafate Manoel da Silva. Além dos
mencionados artesãos, a embarcação ainda contava em sua tripulação com o boticário
Bernardo José e o sangrador José Malafaia.2 Estes profissionais eram fundamentais para a
circulação das embarcações através dos territórios que compunham o Império Português,

* O autor é Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco, na linha de Pesquisa Norte e
Nordeste no Mundo Atlântico, sob orientação da professora Drº Virginia Maria Almoêdo de Assis.
1
O presente texto compõe parte da nossa pesquisa que se propõe a analisar as estratégias de mobilidade social
por parte dos oficiais mecânicos no Brasil, particularmente na Capitania de Pernambuco.
2
AHU_ACL_CU_015, Cx. 119, D. 9098.
afinal, realizavam não apenas o suporte técnico durante as viagens, mas também compunham
uma rede de profissionais responsáveis pela construção de uma linguagem profissionais que
integrava os diversos trabalhadores especializados dos diferentes portos dos domínios lusos. 3
No caso do Navio Netuno, por se tratar de uma grande embarcação em uma viagem de
grandes distâncias e maior duração, contava com mais trabalhadores especialistas que o
costume praticado para as viagens no Atlântico. Em um ofício de 1799 a Junta Governativa da
Capitania de Pernambuco endereçada ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Rodrigo
de Sousa Coutinho, respondia à ordem que havia recebido de reencaminhar para o reino os
carpinteiros e calafates sobressalentes que chegaram nos navios àquela capitania. Segundo o
documento, o comboio que partiu para Pernambuco contava com mais carpinteiros e calafates
que o de costume, que seria um profissional de cada um dos dois ofícios.4 Dessa forma as
embarcações que realizavam as viagens ultramarinas para Brasil e África, eram
costumeiramente tripuladas por um mestre carpinteiro e um calafate. Além disso, pode-se
constatar que os artífices viajavam na categoria de oficiais com cabines próprias.
No início de 1770, o mestre carpinteiro português e morador do Recife, José
Rodrigues Papagaio5, após um longo período de trabalho em Pernambuco, viajou à Lisboa na
condição de carpinteiro da corveta Nossa Senhora do Monte e São Vicente Ferrer que vinha
90
de Angola e aportou em Pernambuco.6 A viagem fora um tanto exótica, a corveta Nossa
Senhora do Monte e São Vicente Ferrer saiu de Angola com destino a Lisboa, fazendo escala
em Pernambuco onde o mestre carpinteiro embarcou com a recomendação do então
governador Manoel da Cunha e Meneses (1769-1774), que já havia destinado outros serviços
ao artífice; a embarcação era capitaneada por Manuel Antônio Tavares e o tenente Albano de
Caldas e antes de sua partida de Angola, fora enviada uma série de cartas ao citado
governador de Pernambuco informando a importância de sua carga. Tratava-se de pelo menos
doze zebras, um viveiro com pássaros e outros animais que estavam sendo remetidos pelo
governador de Angola D. Francisco Inocêncio de Souza Coutinho ao Rei D. José I. Em

3
Aqui tomamos como referência as discussões acerca do império português, caracterizado por um monarquia
pluricontinental cujas redes de poder estavam alicerçadas em uma administração e justiça que apresentava
estatutos, hierarquias e características diversificadas. BOXER, C. R. O Império Colonial Português. Lisboa:
Edições 70, 1969; FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Fátima. O Antigo Regime nos
Trópicos: a Dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
4
AHU_ACL_CU_015, Cx. 211, D. 14328
5
José Rodrigues, cujo apelido é Papagaio, nasceu em Ourique e chegou em Pernambuco no final da década de
1740. Se tornou um dos principais carpinteiros da capitania. Em nossa tese de doutoramento abordamos a sua
trajetória.
6
AHU_ACL_CU_015, Cx. 108, D. 8373
Pernambuco os animais foram cuidados e a embarcação foi reparada, provavelmente com a
participação do mestre José Rodrigues, antes de zarpar.7
O mestre carpinteiro viajou entre os oficiais recebendo o soldo de 35$000 apenas pela
viagem de ida à Lisboa. Abaixo podemos analisar o quadro no qual inserimos os sujeitos
embarcados, suas funções e soldos a receber.

QUADRO I: TRIPULAÇÃO DA CORVETA NOSSA SENHORA DO MONTE


E SÃO VICENTE FERRER. 12 DE FEVEREIRO DE 1770
Função Nome Soldo
Oficiais
Capitão André Vieira de Mello 200$000
Capelão Padre Manoel Gueiros Coutinho 50$000
Piloto João do Reis 80$000
Sota piloto João dos Santos 40$000
Cirurgião Oliveira Pranquit Trabalhou pela passagem
Contramestre José Ribeiro 65$000
Carpinteiro José Rodrigues Papagaio 30$000
Praticante Ignácio correia 30$000
Marinheiros
Despenseiro Amaro José Lisboa 35$000
Marinheiro Antônio Francisco Lima 30$000
José Rodrigues 30$000
João Henrique
Manoel Freitas
A merecer
A merecer
91
José Pinto Machado A merecer
José Coelho A merecer
Ricardo José A merecer
Leandro José A merecer
Pedro Antunes A merecer
Antônio José da Costa A merecer
Antônio A merecer
Gonçalo José A merecer
Antônio Ferreira A merecer
Manoel Gomes A merecer
José Gomes A merecer
Manoel Antônio A merecer
João de Oliveira A merecer
Manoel Figueira A merecer
José Figueira A merecer
José Gonçalves A merecer
Calafate O preto João Cristóvão da Silva A merecer
Calafate O preto forro João Francisco 30$000
FONTE: AHU_ACL_CU_015, Cx. 108, D. 8373

Analisando o quadro acima, e tomando como centro o carpinteiro José Rodrigues,


podemos tecer algumas considerações; primeiramente, como já foi falado, o artífice foi listado
e viajou como oficial, o que lhe conferia privilégios dentro da embarcação que acabava por

7
Idem.
reproduzir parte da hierarquia social. Todavia o artífice recebeu o menor soldo entre os
oficiais e o mesmo que alguns marinheiros, que provavelmente são os mais experimentados e
trabalhavam constantemente naquela embarcação. De qualquer forma, o carpinteiro ainda
ganhava mais que a maioria dos marítimos, já que dezenove marinheiros receberiam de
acordo com o seu desempenho e julgamento do encarregado desse grupo durante a viagem,
daí a expressão “a merecer”. Certamente esse valor não chegaria aos 30$000 8. Os artífices
ainda detinham o privilégio de possuir cabines próprias e transportar um pequeno volume de
mercadorias em suas cabines, abrindo a possibilidade de se inserirem também nas atividades
comerciais.
O segundo aspecto observado por nós é a presença de dois calafates na embarcação.
Ambos eram negros e provavelmente eram africanos embarcados em Angola. Um deles,
descrito como “o preto” João Cristóvão da Silva deveria ser escravo de ganho e havia sido
engajado como artífice no navio; acreditamos ainda que Cristóvão era aprendiz em seu ofício
e que o seu senhor também estivesse no barco. A sua condição de escravizado também pode
ser observada pelo fato de que, entre os três artífices embarcados, foi o único que não recebeu
um soldo fixo, ficando “a merecer” como os outros marinheiros. O outro calafate era o “preto
forro” João Francisco cuja a sua condição de livre e de oficial mecânico lhe colocou entre os
92
doze homens que embarcaram com o valor do seu soldo fixado. Apesar de artífices, os dois
negros africanos, um forro e outro escravo, não foram listados como oficiais, como aconteceu
com o carpinteiro português e branco José Rodrigues Papagaio, ficando entre os marinheiros e
sem direito aos privilégios de viajar na condição de oficial. Por outro lado, o forro João
Francisco teve no reconhecimento de sua profissão de calafate, a justificativa para que se
engajasse com a sua soldada estabelecida com antecedência e ainda, com o mesmo soldo que
José Papagaio.
Sobre a participação de negros e mestiços, sobretudo livres e libertos, Jaime Rodrigues
afirma que a abundância de recursos naturais e terras, afastava a mão-de-obra livre e branca
do Brasil das atividades marítimas, ao contrário do que acontecia em Portugal. Tal
perspectiva se encaixaria principalmente para os navios que faziam o circuito negreiro,
ligando a América à África através do tráfico.9 Como a maior parte dos casos analisados por
nós nos processos são referentes a artífices residentes em Portugal, pouco podemos
8
Em outros documentos analisados por nós, e que não são trabalhados no presente texto, identificamos que o
valor máximo recebidos pelos marinheiros em uma viagem de ida e volta de Lisboa para o Brasil, era
normalmente 30$000.
9
RODRIGUES, Jaime. Marinheiros Forros e Escravos em Portugal e na América portuguesa (c.1760-c.1825).
Revista de História Comparada, Rio de Janeiro, 7, 1: 9-35, 2013.
acrescentar a essa discussão, mas considerando os casos de artesãos brasileiros, não nos
parece que ao menos para esses profissionais especializados havia uma pequena incidência de
negros livres, libertos ou escravizados. E isso se deve, principalmente pelo fato de que esses
ofícios eram controlados pelas redes corporativas nos centros urbanos, limitando o acesso de
muitos sujeitos aos ofícios. Mesmo assim, ainda foi possível encontrar uma história:
Em 1780 o “moleque preto” José, escravo do mestre carpinteiro Vicente José de
Oliveira viajou junto ao seu senhor da Bahia com destino à Lisboa a bordo do navio São
Marcos. No ano seguinte os dois viajaram de Lisboa à Salvador e depois retornaram à capital
do Reino. José era aprendiz de calafate e certamente acompanhava o seu senhor, que se
dedicava ao trabalho de carpintaria durante as viagens e nos portos. Temos aqui um projeto
em que o senhor poderia engajar o seu escravo nas viagens marítimas junto consigo, na
possibilidade de aumentar ainda mais os seus ganhos, atendendo a necessidade de um
carpinteiro e um calafate por embarcação. Inserir os escravos nos ofícios mecânicos era, sob o
olhar do senhor, uma forma de torna-lo ainda mais rentável, e sob o aspecto do sujeito
escravizado, uma possibilidade de alcançar uma condição diferenciada, mesmo como
escravizado, ou alcançar a liberdade através do trabalho. E embora essa afirmação simplifique
uma série de complexidades da vida social, foi assim que operaram os senhores e escravos
93
que têm sido analisados nos diversos estudos sobre a escravidão e em nossos estudos sobre os
oficiais mecânicos no Recife e outros centros urbanos.10 E assim operaram muitos dos
senhores artífices, engajando os seus escravos nos seus ofícios, ensinando-os, ou em ofícios
diferentes do dele, expandindo assim a atuação de suas oficinas. Outras vezes, os mestres
também eram contratados para ensinar seu ofício aos escravos de terceiros.
Acontece que em 1783 o mestre carpinteiro Vicente José de Oliveira entrou com uma
ação cível contra Antônio Godinho Neves, capitão do navio São Marcos. Segundo o mestre
carpinteiro, o escravo José havia viajado de Lisboa para a Bahia, e retornado, à serviço na
embarcação, e o seu soldo não fora pago. Segundo podemos analisar, José, aprendiz de
calafate, não teria embarcado com um soldo afixado previamente, como acontecia
normalmente com os artífices, mas tal como um marinheiro cujo pagamento seria acertado de
acordo com o seu “merecimento” ao fim da viagem. Ao chegar ao porto de Lisboa, julgou-se
que José deveria receber 19$000, o que não foi cumprido pelo capitão do navio, justificando
assim a ação cível.

10
SILVA, Henrique Nelson da. Trabalhadores de São José: artesãos do Recife no século XVIII. Dissertação de
Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco 2010.
Em seu argumento de defesa o capitão do navio São Marcos, Antônio Godinho Neves,
confirmou que José havia atravessado o Atlântico ao menos três vezes, no circuito Salvador -
Lisboa, mas que ele apenas acompanhava o seu senhor, não servindo “nos ministérios”.
Segundo Antônio Neves, o escravo José:

[...] nunca ferrou, nem largou pano algum, nem foi ao leme ajudar os mancebos,
como iam os amis serventes, e moços, não só por vir no navio sem emprego algum,
e só servindo ao acusador, seu senhor, sem ganhar soldada, como já tinha vindo da
Bahia para esta corte, e indo dela para a dita cidade nos anos de 1780 e 1781; como
por não ter corpo para serviço algum e só quando muito servir para varrer o convés
do navio [...]11

De acordo com as alegações do capitão do navio São Marcos, José – que


aparentemente era bastante jovem – não viajara por soldada; acompanhara o seu senhor
aprendendo o ofício de calafate e recebia apenas o sustento durante as viagens. Outras
testemunhas fizeram a mesma alegação, entre elas Domingos Pereira Lisboa, piloto do navio,
Antônio José Setuval, contramestre da embarcação e Damião André Ferreira e Antônio
Gnçalves, ambos marinheiros. Mas apesar das alegações e das testemunhas, o juiz da Casa da
Índia e Mina, Dr. Inácio de Carvalho da Silveira, condenou o réu a pagar a soldada do escravo
12
94
de 19$000 e ainda os custos do processo, que contabilizou 1$351.
O que deve ter favorecido o mestre carpinteiro Vicente José de Oliveira no processo,
deve ter sido o fato de que o seu escravo José estava listado entre os serventes que
trabalhavam na embarcação. Segundo o capitão do navio, isso aconteceu porque:

[...] não é lícito trazer do Brasil escravos sem serem matriculados por marinheiros,
ou serventes para poderem tornar a ir para o Brasil porque vindo sem essa
circunstância em chegando a alfândega desta cidade ficam logo livres por virtude da
lei novíssima que lhes confere a liberdade, e por isso para o acusador poder trazer e
levar o dito moleque, é que usou da cautela, de que todos usam, de os matricularem,
mas não por isso ganham soldada alguma. Porque os donos dos navios e capitães os
deixam trazer, e sustentam meramente por favor.13

De fato, a escravidão no território do Reino havia sido abolida desde 1761, e a defesa
do capitão do navio São Marcos explicita as estratégias para o transporte de sujeitos
escravizados, inclusive os que estavam sendo conduzidos pelos passageiros das embarcações.
Na ocasião, foi a precaução tomada para que a posse do escravo José permanecesse sob posse
do carpinteiro que trabalhava na embarcação e que antes das viagens vivia na Bahia. Embora,
11
PT/TT/JIM/JB/0012/00002.
12
Idem.
13
Idem.
claro, não podemos desconsiderar o fato de que José estivesse – de fato – trabalhando no
navio.
O certo é que tais processo nos apresentam, mesmo de forma pontual, alguns aspectos
da vida profissional, e como veremos adiante, também pessoal desses artífices de embarcação.
E no que se refere a vida profissional, nos voltamos para duas questões específicas: o que
impulsionava profissionais especializados a embarcarem em longas viagens marítimas, sob
todos riscos dessas atividades e se havia algum regulamento ou etiquetas que norteavam o
trabalho desses profissionais?
Sobre a primeira questão, sem dúvidas, nos escapam os desejos por aventura, conhecer
outras regiões do mundo, ambições e etc, aspectos que apenas podemos imaginar sobre a vida
dessas pessoas que encaravam viagem de anos ao Oriente, ou se habilitavam a viajar para
África ou Brasil. Mas apontamos aqui dois aspectos, primeiramente nos referimos a existência
de nichos profissionais especializados em atividades específicas de suas profissões, e em
segundo lugar enfatizamos o fator econômico, ou seja, os benefícios financeiros do trabalho
nos barcos.
A região portuária concentrava um grande número de trabalhadores especializados na
construção e reparo das embarcações que interligavam os diferentes recantos do Império
95
português. Este espaço, focalizando o porto do Recife, será analisado adiante, mas podemos
apontar que a área da ribeira das naus compreendia um grande conjunto de carpinteiros de
navios, calafates, tanoeiros e poleeiros, que iniciavam e terminavam as suas vidas
profissionais na lide com os barcos.
E aqui trazemos fragmentos da trajetória do carpinteiro de embarcações João
Francisco Varzim. Varzim. João Francisco era natural da Póvoa do Varzim, termo situado a
cerca de 30 Km ao norte da Cidade do Porto. A Póvoa, como ainda hoje é chamada, entre
outras atividades, distinguia-se pelo emprego na pesca e nas ocupações de apoio náutico,
construção e reparo de embarcações.14 Sem dúvidas era um grande reduto de artífices de
embarcações que atuavam junto a um dos portos mais movimentados do mundo naquele
período. E foi nesse espaço que Varzim nasceu e aprendeu o ofício de carpinteiro de
embarcações com o seu pai, Manoel Lopes, também oficial carpinteiro da ribeira da Póvoa,
que ensinou e inseriu seu filho na carpintaria. Em oito de maio de 1733, aos dezenove anos,

14
BAPTISTA. João Augusto Neves. Matosinhos Entre a Terra e o Mar. As estruturas sócio profissionais na
metade do século XVIII. Dissertação de Mestrado. Porto Faculdade de Letras, 2000.
João Francisco foi registrado como carpinteiro na ribeira e por lá trabalhou até treze de maio
de 1739 quando aceitou trabalhar em um navio que rumava a Pernambuco.15
Se engajar em uma viagem marítima atuando no conserto de embarcações certamente
não seria uma atividade extraordinária para João Francisco Varzim, haja vista que seria o
caminho de muitos outros artífices que nasceram e trabalhavam na Póvoa do Varzim.
Podemos imaginar que o seu pai tivesse feito algumas viagens marítimas até então. Mas
podemos acrescentar ainda um novo elemento. João Francisco, então com vinte e dois anos,
embarcou como carpinteiro rumo a Pernambuco após a morte do seu pai. De qualquer forma,
ao chegar em Pernambuco o carpinteiro Varzim decidiu se estabelecer na ribeira das naus de
Recife e aqui exercer seu ofício, da mesma forma que fazia na Póvoa do Varzim.
Segundo João Francisco, o seu estabelecimento se deu pelo fato de poder auferir
melhores salários para que pudesse sustentar a sua mãe viúva e suas três irmãs donzelas. Esta
afirmação nos indica que as possibilidades de ganhos no Recife poderiam ser mais
promissoras que nos antigos postos de trabalho portugueses, como em Varzim, sobretudo para
artífices jovens que ainda estavam buscando o seu lugar em um mercado de trabalho limitado
pela demanda e mais controlado por regulamentos corporativos. Esta seria a realidade
enfrentada João Francisco Varzim e, porque não, também experienciada pelo já citado
96
carpinteiro José Rodrigues Papagaio que também se estabeleceu em Recife no final da década
de 1740.16
Para infortúnio de João Francisco Varzim o seu estabelecimento com carpinteiro na
ribeira das naus do Recife foi atrapalhado pelo governador Henrique Luís Pereira Freire
(1737-1746) que por sua política de alistamento forçado, o carpinteiro acabou sendo engajado
nas tropas regulares; Varzim foi inserido no alistamento porque não possuía passaporte.
Embora o artífice tenha argumentado que não necessitava de passaporte uma vez que veio
como trabalhador de uma embarcação, restou ao carpinteiro implorar em requerimento ao Rei
D. João V a sua desvinculação na tropa e poder retornar ao Reino para assistir a sua mãe e
irmãs.17
O último despacho do requerimento feito por João Francisco Varzim foi emitido 06 de
abril de 1747, indicando que o carpinteiro teria ficado, no mínimo, por oito anos em
Pernambuco antes de poder retornar à Povoa, para sua mãe e irmão, se é que conseguiu algum

15
AHU_ACL_CU_015, Cx. 65. D5546
16
Idem.
17
Idem.
dia retornar. Mas casos como esses nos apresenta um grupo profissional cuja circularidade
estava atrelada às suas possibilidades de trabalho.
O mestre calafate Manoel de Souza Nunes parece ter sido um desses artífices de
embarcações bastante experientes nas viagens marítimas. Em 1785 atravessou o Atlântico de
Lisboa à Pernambuco trabalhando a bordo do navio Pérola do Mar, retornando no mesmo ano
ou no início de 1786. Manoel retornou a Pernambuco entre 1786 e 1787 trabalhando a bordo
de outro navio, o denominado Sacramento Nossa Senhora do Monte e do Carmo. Nas duas
ocasiões fora acertado o pagamento de 80$000 pela assistência como calafate nas viagens de
ida e retorno. Acontece que, no caso do trabalho realizado a bordo do navio Sacramento
Nossa Senhora do Monte do Carmo o soldo combinado ainda não havia sido pago em 27 de
setembro de 1787, levando o artífice a recorrer à justiça.18
O processo movido por Manoel Nunes contra o Leocádio de Fonseca, um dos
senhorios do navio Sacramento Nossa Senhora do Monte e do Carmo no juizado da Índia e
Mina, acabou expondo mais do que um ato de má fé. O mestre calafate afirmou que os
80$000 acertados era o pago costumeiramente, no caso à costa brasileira. Além disso, sobre o
seu procedimento durante a viagem, salientou:
97
Porque o acusador foi e veio no dito navio, e tanto na ida como na volta fez sempre
a sua obrigação, como é constante a todos, e se não recorreu os altas ao navio, e o
lugar da artilharia do navio no porto de Pernambuco foi por que não tinha obrigação
alguma para isso por ser bem sabido e prática geral observada que quando os navios
não consertam nesta cidade, e vão concertar a outros qualquer porto do seu destino,
não tem calafates e carpinteiros, obrigação de correrem os altos e lugar de artilharia
e se chamam oficiais de fora para o fazerem, e só determinam os calafates que vão
no navio a obra, ganhando o seu jornal como os mais de fora, e só trabalham no
mais que é preciso fora dos ditos concertos.19

Certamente a recusa do senhorio da embarcação em pagar o soldo combinado se deveu


ao fato de não ter o mestre calafate trabalhado nas obras realizadas no Recife, ou de ter este já
recebido por suas atividades naquele porto. Através das alegações do mestre calafate,
podemos observar ao menos dois aspectos sobre o regime de trabalho desses profissionais. O
primeiro é que a obrigação dos artífices de embarcação era atuar durante as viagens, e como
veremos adiante, também cuidar dos preparos antes de partir e também atentar aos reparos
após atracarem no porto de onde o artífice havia sido contratado; em segundo lugar, fica claro
que os reparos realizados em algum porto de destino ou durante as escalas, não ficavam sob

18
PT/TT/JIM/C/0055/00006
19
Idem.
responsabilidade do profissional, devendo as obras serem executadas pelos oficiais mecânicos
do porto local, podendo – inclusive – o carpinteiro da embarcação atuar nos consertos
recebendo o soldo sobressalente junto aos trabalhadores locais. Importante observar que o
mestre calafate Manoel de Souza Nunes tinha pleno domínio sobre os modos de trabalhar que
envolviam os artífices das embarcações e dos portos que interligavam o império português,
defendendo com bastante segurança os costumes que envolviam o seu trabalho. E é pela força
dos costumes que norteiam o trabalho que o mestre calafate acabou ganhando o processo e o
senhorio do navio pagou, além dos 80$000 acordados, ainda 2$847 referente aos custos
processuais.

Outro mestre calafate experiente nas atividades portuárias e nas embarcações foi
Antônio Joaquim de Azevedo; entre fevereiro e março de 1791 Azevedo embarcou no navio
o Condestável do porto de Salvador para o de Lisboa. Para o trabalho, que cobriria apenas a
viagem de ida, foi acertado o valor de 40$000. E assim como nos outros casos analisados por
nós, o soldo combinado não foi pago pelo proprietário do navio, e aqui também o artífice
requereu o seu soldo na justiça. E sobre o mestre calafate Antônio de Azevedo, informa-se o
seguinte no processo: 98

[...] Porque o acusador é mestre calafate, e como tal costuma ir em vários navios
para diferentes portos para fazer neles os consertos que pelo rigor do tempo
precisavam, e para esta corte no presente ano onde chegou no mês de abril, e isto em
um navio, por nome condestável, que veio da mesma cidade de que era dono
Francisco Caetano da Cruz.20

Portanto, fiando na descrição do documento, temos aqui um artífice que bem


representa a circularidade por entre os espaços do mundo português. E junto com ele as suas
ferramentas e técnicas de trabalho, que eram construídas e consolidadas a cada trabalho nos
diferentes portos e embarcações por onde atuava.
Os casos até aqui analisados21 indicam que por uma viagem de ida e volta para a costa
do Brasil pagava-se em média aos mestres carpinteiros e calafates o soldo de 80$000 ou cerca
de 40$000 por apenas um trecho.

20
PT/TT/JIM/C/0011/00014
21
No presente texto analisamos alguns casos que compõe um conjunto maior de documentos que nos permitem
apontar o valor médio de 80$000 pagos aos artesãos por uma viagem de ida e volta ao Brasil.
Em mais um caso, o calafate José Francisco, viajou trabalhando na galera Nossa
Senhora do Monte do Carmo e Santo Antônio das Almas de Lisboa para o Rio de Janeiro.
Para o trabalho ficou acordado previamente o soldo total de 75$800 compreendendo a ida e o
retorno; todavia durante a viagem o capitão Joaquim José de Oliveira fez escala em
Pernambuco para carregar mais mercadorias, alongando mais a viagem. E diante da mudança
no trajeto e no tempo da viagem o mestre calafate requereu a adição de 12$000 na forma de
costume. E não procedendo o capitão com o pagamento, nem da soldada e nem da escala,
requereu o artesão o pagamento na justiça, o que acabou obtendo sucesso tendo o capitão ao
final de tudo pago 87$800 ao mestre calafate e ainda mais $506 pelos custos do processo.22
Em 1777 o navio Santa Ana e São José partiu da Cidade do Porto com destino ao Rio
de Janeiro. No navio estavam engajados o calafate Antônio Gonçalves de Azevedo morador
da Freguesia de Santa Catarina e o carpinteiro Manoel Carvalho também morador da Cidade
do Porto. Para a viagem foi acordado com os artífices o pagamento correspondente a um
soldo e meio do que fora pago aos marinheiros, valor correspondente a 52$500, quantia
menor que a de outras viagens já registradas aqui, mesmo assim, acima do que seria pago a
grande maioria dos trabalhadores da embarcação. E assim como em outros processos, o
acordado antes da partida do barco – ainda em Portugal – não fora cumprido pelo capitão da
99
embarcação João Lopes da Costa, dando início a um processo movido pelos artesãos no
Juizado da Índia e Mina. Interessante como os artesãos se referem a si e aos seus ofícios no
processo:

Por aqui o autor António Gonçalves de Azevedo, mestre calafate, e o autor Manoel
Carvalho, mestre carpinteiro, ambos peritos em seus ofícios com aceitação geral,
atenta a sua inteligência, usando sempre de seus ofícios por que tem trabalhado
23
embarcado em diversas ocasiões para como foi servirem.

Como artífices experientes no trabalho em embarcações, ressaltam as muitas viagens


realizadas, a perícia e a inteligência. Neste trabalho abordamos em várias ocasiões os artífices
que relacionam as suas profissões à perícia e a inteligência, como marca dos ofícios
mecânicos, para aquele período. É importante afirmar que tais qualidades aparecem enquanto
instrumentos discursivos que se contrapõem ao estigma do trabalho, do defeito mecânico. E
mesmo que tal argumentação não seja colocada a partir da reflexão desses artífices,
acreditamos que a recorrência dessa afirmação expressa uma estratégia copiada e repetida

22
PT/TT/JIM/JB/0007/00005
23
PT/TT/JIM/JB/001500008
pelos profissionais estabelecidos e circulantes pelo mundo português, aspecto que
identificamos em nossas pesquisas ao analisar os artífices que viveram e trabalharam no
Recife durante o século XVIII. Certo é que a perícia, a especialização que o serviço requeria,
os diferenciava dos marinheiros, possibilitando-os um posto entre os oficiais graduados da
embarcação, e um soldo maior. No mesmo processo os artífices expressam bem essa visão:

Por ser pratica e estilo em todas as embarcações deste reino vencerem semelhantes
pessoas como os acusadores, soldada e meia em razão do seu laborioso e delicado
trabalho, para o que pagou a cada marinheiro trinta e cinco mil réis de soldada,
correspondendo inegavelmente a cada um dos acusadores cinquenta e dois mil réis,
como tem jurado.24

Assim os artífices diferenciam as suas práticas profissionais, laboriosas e delicadas,


justificando os seus soldos também diferenciados. Mas além disso, seguem em suas
justificativas:

E porque nestes termos e conforme aos direitos sendo esta prática e estilo da praça
[...] deve o réu ser condenado nas ditas quantias visto que sem razão ou fundamento
quer igualar os ofícios e empregos dos acusadores com os marinheiros sem
reflexionar que os oficiais de qualquer navio sempre são graduados e como faz
separado o seu interesse daquele que se determina aos marinheiros, assim ninguém 100
serviria ou se arriscaria em fazer viagem. 25

E ao contrário dos marinheiros, os artífices poderiam atuar em outros espaços, sendo o


trabalho nas atividades portuárias, conserto e fabricação de embarcações, e o trabalho nos
barcos durante as viagens, apenas um nicho entre tantos outros que os artífices poderiam
trabalhar. Embora, por outro lado, acreditamos que a maioria dos profissionais que atuavam
nesse nicho específico, a ribeira das embarcações, lá estivessem desde o ingresso na profissão.
De qualquer forma, os salários mais altos e uma condição, digamos, privilegiada nas viagens,
eram bons argumentos para que os artesãos se engajassem nos serviços.
Claro que devemos considerar ainda os perigos de se trabalhar nas viagens marítimas,
mas no que concerne aos salários, não temos dúvidas de que os soldos angariados nas viagens
fossem maior do que a média recebida pelos artesãos em terra, principalmente comparado aos
que atuavam no porto. A grande maioria dos trabalhadores portuários atuavam
subalternizados pelos mestres de ofício que ocupavam os cargos de construtores de navio ou

24
Idem.
25
Idem.
carpinteiros da ribeira e recebiam de acordo com o que havia sido estabelecido entre as partes
ou julgado pelos mestres.
O processo rolou até 10 de dezembro de 1778, mais de um ano após a chegada dos
artífices ao porto de Lisboa. E foi concluído com a condenação do capitão João Lopes da
Costa a pagar a soldada completa dos artífices e ainda $768 pelo custo do processo. Mas antes
disso, foi possível observar que ao menos o calafate Antônio Gonçalves de Azevedo se retirou
para a Cidade do Porto deixando o seu primo, Manoel de Azevedo e Silva, que também era
calafate como seu procurador. E que foram arrolados como testemunha no processo dois
calafates, Antônio Fernandes e Antônio Ramos da Silva, ambos moradores da Freguesia de
Santa Cataria no termo do Porto.26 Em outros casos ainda por analisar aqui, veremos a
recorrência do envolvimento de vários profissionais nos processos, expressando uma rede de
solidariedade entre os artesãos, o que materializa as tradições corporativas artesanais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cada viagem os trabalhadores estabeleciam ou fortaleciam suas redes


socioprofissionais, conectando técnicas de produção, hierarquias, costumes; em outros
101
termos, os modos de ser e fazer que começaram a ser estabelecidos ou fortalecidos nos portos
da Europa, África, e América desde do século XV, e no período em que tratamos – o século
XVIII – essas relações se aprofundavam ainda mais. E dizemos isso porque é interessante o
quanto as falas dos artesãos envolvidos nos processos cíveis tratando do pagamento de soldos
e empréstimos, entre outras causas, demonstravam conhecimento sobre as normas que regiam
o trabalho nos portos do mundo português em diversos continentes.
Os oficiais mecânicos que trabalhavam nas ribeiras e também nas embarcações tinham
a possibilidade de circular pelos diversos espaços do Império Português, trocando
experiências profissionais, estabelecendo formas de ser e de fazer que possibilitaram a
aproximação entre esses trabalhadores, construindo uma linguagem específica que os
particularizavam e permitiam a realização de suas atividades profissionais na Europa,
América, África ou Ásia. É notório também o quanto a referida linguagem arbitrava também
as relações desses trabalhadores com os seus contratadores, normalmente os proprietários das
embarcações e capitães dos navios. E justamente por esse papel amplo de mediação, a
linguagem, as normas profissionais, os costumes, esses elementos constituíram o principal

26
PT/TT/JIM/JB/0017/00007
argumento dos artesãos ao lidar com suas demandas nos processos contra os seus
contratadores, e que frequentemente lhes deram vitória, mesmo tratando de uma ação no
campo jurídico.
Por fim, podemos observar a presença de uma rede socioprofissinal e de um
regulamento corporativo que interligava os trabalhadores dos diversos portos, os que atuavam
nas diferentes ribeiras, conectadas pela circularidade desses artesãos nas diferentes viagens.
As regras que mediavam esta atividade profissional, garantiam os espaços de atuação dos
grupos locais, assim também referendavam as hierarquias e também os lugares privilegiados
desses trabalhadores especializados frente aos marinheiros nos navios e aos outros
trabalhadores não especializados nos portos. Dessa forma, podemos identificar que essas
regras corporativas estavam presentes tanto nos centros urbanos quando circulando nas
práticas dos artífices.27
Muito ainda precisa ser pensado e investigado acerca das dinâmicas as quais,
principalmente carpinteiros e calafates, estavam envolvidos ao se engajarem nas atividades
marítimas junto aos marinheiros e outros especialistas nas travessias oceânicas. E justamente
neste sentido que atualmente seguimos aprofundando as reflexões realizadas no presente
artigo para melhor entender as vidas e o trabalho desses homens que davam sentido, davam
102
vida, as redes de circulação econômicas e socioculturais que constituíam o mundo português.

27
Quando nos referimos aos regulamentos corporativos nos centros urbanos e as diversas práticas dos artífices,
consideramos uma bibliografia que aos poucos tem se configurado sobre os trabalhadores especializados no
Brasil, entre as quais podemos citar: FLEXOR, Op. Cit, 1974; LIBBY, Douglas Cole. Habilidades, artífices e
ofícios na sociedade escravista do Brasil Colonial. In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO, Júnia Ferreira (Org).
Trabalho Livre, Trabalho Escravo. São Paulo: Annablume, 2006; LIMA, Carlos A. M. Artífices do Rio de
Janeiro (1790 – 1808). Rio de Janeiro: Apicuri, 2008; MARTINS, Mônica. Entre a Cruz e o Capital: Mestres,
aprendizes e corporações de ofícios no Rio de Janeiro (1808-1824). Tese de Doutorado. Rio de Janeiro:
U.F.R.J./I.F.C.S., 2007. MENESES, José Newton Coelho. Artes fabris e ofício banais. O controle dos ofícios
mecânicos pelas câmaras de Lisboa e das vilas de minas gerais (1750-1808). Belo Horizonte: Fino Traço: 2013;
SANTOS, Beatriz Catão cruz. Irmandades, oficiais mecânicos e cidadania no Rio de Janeiro do século XVIII.
Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 26, nº 43: p.131-153, jan/jun 2010. SIQUEIRA, Mariana Nastari. Entre o
signo da mudança e a força da tradição: o conflito entre a Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano dos
sapateiros e a Câmara, Rio de Janeiro, c. 1764-c. 1821. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Seropédica, RJ, 2011. Silva, Henrique Nelson da. Trabalhadores de São José:
artesãos do Recife no século XVIII. Dissertação de Mestrado. Recife: Universidade Federal de Pernambuco
2010.
ENTRE O COMÉRCIO
LIVRE E O MONOPÓLIO:
A ALFÂNDEGA DE
PERNAMBUCO E AS
DINÂMICAS FISCAIS
ANTES E DURANTE A
COMPANHIA DE
COMÉRCIO DE
PERNAMBUCO E
PARAÍBA (1724-1780).

LUANNA MARIA VENTURA


DOS SANTOS OLIVEIRA

DOUTORANDA (UFPE)
Propomos com esse artigo iniciar uma discussão sobre o período do comércio livre,
mas especificamente, o porto do Recife no período de: 1530-1730. Esse artigo é fruto de um
esforço inicial da tese na qual pretendemos discutir a diferença entre o comércio livre e o
monopólio da Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba. O porto do Recife sempre
foi o principal porto da capitania de Pernambuco, mas não foi o único, buscamos identificar
sua origem e desenvolvimento ao longo do período colonial, discutiremos as possibilidades
emergidas ao longo do tempo, de possíveis transferências do porto de Pernambuco e das
mudanças estruturais realizadas.
104
O porto do Recife não foi o principal porto de Pernambuco no início da colonização da
capitania. Eugenio de Castro escreveu um breve artigo que tratava sobre os dois portos de
Pernambuco, no artigo: O “porto de Pernambuco” e O porto do “Rio de Pernambuco” em
1530. O primeiro referiu-se ao futuro porto do Recife, e o segundo refere-se a um porto
próximo do que conhecemos hoje, como Igarassu.

Segundo Castro, esse primeiro porto era banhado pela “...foz do rio de Pernambuco ou
do atual rio Igarassu, e á sombra da ilha de Itamaracá, seria pois o primeiro porto de
Pernambuco...”1. Ele afirma em seu texto que o primeiro porto de Pernambuco, depois
conhecido como “sorgidouro velho”, o do rio Igarassu2 foi onde Christovam Jaques teria
erguido, em 1516, a primeira feitoria portuguesa. 3

Em seu início, o porto do Recife não tinha relevância significativa, no entanto, com o
deslocamento de Duarte Coelho e sua família para Olinda e a sua fundação como vila em

* A autora é Doutoranda em História pela Universidade Federal de Pernambuco.


1
CASTRO, Eugenio de. O “porto de Pernambuco” e O porto do “Rio de Pernambuco” em 1530: Um aspecto
clássico da navegação quinhentista. Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambuco. Ns.
135 a 142, Vol. XXIX. Pernambuco, 1930. P. 161.
2
Também chamado por rio de Pernambuco, rio de Santa Cruz e de Rio dos Monstros. Idem págs. 160 e 161.
3
Ibidem p. 159.
1535, transformou o futuro porto do Recife, no porto de Pernambuco. Transformando o
primeiro porto da capitania, como “o velho”.4

A vida administrativa da capitania se desenvolveu na vila alta de Olinda, como já era


costume das cidades portuguesas, serem criadas em cidades altas. 5 No Recife, havia alguns
armazéns que estocavam os gêneros que seriam exportados – açúcar e pau-brasil – esses
ficaram conhecidos como “Passos do açúcar”6.

Os portos da América Portuguesa, sempre foram ambicionados por vários Estados que
aplicaram recursos à constituição de frotas mercantis, muitas comandadas por corsários, que
inúmeras vezes frequentaram o litoral do Brasil, negociando e tentando saquear esses
importantes entrepostos comerciais.
Confirmando esse interesse, temos em nossa história as invasões: ao porto do Recife
pelos ingleses liderados por James Lancaster em 15957, ao porto da Bahia pelos holandeses
em 1624;8 o período de dominação dos holandeses na capitania de Pernambuco que perdurou
por mais de duas décadas, 1630 a 16549; as armadas francesas ao Rio de Janeiro nos anos de
1710 e 171110; sem contar com os esporádicos assaltos feitos por corsários aos nossos
11
105
portos .
Sobre a chegada de diversos navios estrangeiros no porto do Recife, entre o final do
século XVI e início do XVII, o historiador José Antônio Gonsalves de Mello, faz um estudo
sobre os livros das Saídas das urcas do porto do Recife, expondo o descaminho das caixas de
4
Ibidem P. 161.
5
TEIXEIRA, Manuel C. A Forma da cidade de origem portuguesa, São Paulo: Editora UNESP: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2002.
6
COSTA, Pereira da F.A. Anais Pernambucanos. 1983, Vol. 1 .pág 350.
7
Revista DACultura. Forte do Brum. Ano II, número 3, jan/jun 2002. Acessada em 10/02/2016, ás 13:04min. In:
http://www.funceb.org.br/images/revista/10_4h1l.pdf
8
MARTINS, Ricardo Vieira; FIGUEIRAS, Carlos Alberto Lombardi. A Invasão Francesa ao Rio de Janeiro em
1711 sob a análise da Cartografia Histórica, I Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica, 2011. Acessado em
26/06/2015, ás 10:28min. In:
https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/MARTINS_RICARDO_V_E_FILGUEIRAS_CARLOS_AL
BERTO_L.pdf
9
Nossa historiografia é extremamente rica em relação a ‘estudos sobre o período de dominação holandesa na
Capitania de Pernambuco, constituindo o que viria a ser conhecido como Brasil Holandês. Entre os trabalhos
com maior ressonância na historiografia pernambucana, temos os de Evaldo Cabral com: Olinda Restaurada,
Rubro Veio e José Gonçalves de Mello: O Tempo dos Flamengos.
10
MARTINS, Ricardo Vieira; FIGUEIRAS, Carlos Alberto Lombardi. A Invasão Francesa ao Rio de Janeiro
em 1711 sob a análise da Cartografia Histórica, I Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica, 2011. Acessado
em 26/06/2015, ás 10:28min. In:
https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/MARTINS_RICARDO_V_E_FILGUEIRAS_CARLOS_AL
BERTO_L.pdf
11
1595, corsário inglês que saqueou o porto do Recife. In: FIORAVANTI, Carlos. Além do butim: Reinos
europeus apoiavam os ataques de corsários à costa brasileira como forma de contestar a divisão do Novo Mundo
por Portugal e Espanha. In: http://revistapesquisa.fapesp.br/2015/01/19/alem-do-butim/ . Revista FAPESP,
Ed.227, Jan 2015. Acessado em 29/07/2015 às 10:01h.
açúcar para Flandes, além de demonstrar que grande parte da origem das embarcações que
visitaram o Porto, eram da Europa, se sobressaindo em quantidade as Urcas de Hamburgo. 12
O próprio autor discutiu sobre a supremacia das Urcas em detrimento das caravelas e
embarcações pequenas, sem artilharia, que eram utilizadas pelos portugueses. Expondo que
várias autoridades que foram enviadas para o Brasil em Urcas fretadas pela Coroa.
As Urcas eram embarcações do norte da Europa que possuíam uma tecnologia náutica
mais avançada do que as das Coroas Ibéricas. Sobre a supremacia naval no norte da Europa,
Immanuel Wallerstein fala sobre a introdução de novas tecnologias na construção naval
holandesa e no avanço da navegabilidade. Sendo essa indústria naval um dos fatores que
contribuíram para a hegemonia holandesa na economia-mundo, durante o período de 1625-
1675, que inclui dentro desse recorte a invasão da WIC à capitania de Pernambuco.13
Sabemos que a invasão à Bahia, posteriormente, a ocupação de Pernambuco (1630-
1654) e o avanço até o Maranhão, foi fruto de uma investida maior dentro da lógica do
complexo atlântico. Sendo diversos ataques holandeses realizados dentro do período de
hegemonia holandesa, contra os territórios da Espanha. Podemos citar, a conquista e ocupação
de Luanda e Benguela(1641-1648) e a Cidade de São Tomé (1641-1648), entre outros
territórios do Oriente14.
106
Durante o período holandês em Pernambuco, cogitou-se transferir a sede do governo
para a Vila de Nossa Senhora da Conceição15, porém foi abandonada essa ideia, devido aos
problemas estruturais do porto da Ilha de Itamaracá, que já se encontrava assoreado. Ele não
conseguiria suportar o grande fluxo de navios, em decorrência da diminuição da barra que
poderia provocar naufrágios16.
Olinda foi incendiada e o Recife foi elevado a capital do Brasil holandês, após o
período de conquista da capitania e a retomada da produção do açúcar17. O porto do Recife
começou a viver um aumento significativo de movimento. A historiadora Suely Almeida
expões a primeira reforma do porto feita pelo tenente René de Monchy, por conta da

12
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Os Livros das Saídas das Urcas do Porto do Recife, 1595-1605. Revistas
do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Vol. LVIII. Recife, 1993.
13
WALLESTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno: O mercantilismo e a consolidação da economia-
mundo europeia, 1600-1750. Vol II, Porto: Edições Afrontamento, 1974. p. 108.
14
Idem p.101.
15
SANTOS, Josué Lopes dos. Organização portuária da Ilha de Itamaracá entre os séculos XVI e XVII:
articulações inter-regionais e internacionais. Recife: UFRPE, 2013. 139 p. Dissertação (Mestrado em História
Social da Cultura) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de História, Recife, 2013. p.58.
16
SANTOS, Josué Lopes dos. Op.cit. 2013.p. 58.
17
Existiram três fases do período holandês em Pernambuco: O período da conquista(1630-1637), o período da
expansão(1637-1644) e o período do declínio (1644-1654).
necessidade de aumentar o passadiço, que encostavam as barcas, os quais só comportavam
duas embarcações, vejamos:

Em 1638 foi contratada a construção de um novo passadiço pelo tenente


René de Monchy exatamente em frente a abertura da mesma praça, a nível
da água, da altura da mesma praça com 20 pés de largura e 15 braças de
comprimento (certa de 7m, 42x55m, 59) atingindo mar a dentro a
profundidade necessária a que mesmo em baixa mar os maiores barcos
possam nele atracar e desatracar; do lado direito da extremidade deveria ser
acrescentada uma largura de 12 pés e, para dentro de 30 pés, tudo sobre
traves e esteios, deveria ser construída ainda uma estacada que se estenderia
ao largo da Rua do Mar. Por esta obra foi paga a quantia de 2.300 florins. 18

O porto do Recife sempre apresentou alguns defeitos estruturais, os quais provocavam


vários acidentes. Mas com a dominação holandesa, o porto foi estudado propriamente,
iniciando-se alguns melhoramentos, além do aumento do passadiço, como o alteamento dos
arrecifes por meio de paredões reforçados a partir da Barra do Picão19. 107
No entanto, existem vários relatos do período holandês que demonstravam as
imperfeições do porto do Recife. Por exemplo, temos o relatório do coronel Artichofky de
1637, no qual ele aconselha o conde Maurício de Nassau e ao Conselho que o governo
mudasse de lugar, dizendo que Itamaracá era um melhor lugar, visto que o Recife era uma
região imprópria para os conquistadores, o ar era insalubre, pouca água, muito quente no
verão e húmido no inverno. Em relação ao porto, ele dizia que o porto de Itamaracá era mais
difícil de navegar e que em relação a segurança, o porto do Recife era “uma porta
escancarada”, sem grande dificuldade de navegar e ancorar20.
Como o Coronel era militar, compreendemos a sua preocupação em tornar a nova
conquista mais segura, por conta do medo da chegada de uma esquadra espanhola para
socorrer a capitania, como ocorreu na Bahia. O medo de invasão será uma constante durante
todo o período colonial no Brasil, seja qualquer nação que detenha o controle desse território.

18
ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. A Companhia Pernambucana de Navegação. Mestrado em História
pela UFPE, Recife, 1989. P. 99.
19
COSTA, Pereira da F. A. Op.cit. 1983, Vol.4 pág. 35-36. A Barra do Picão é uma pequena extensão de
arrecifes que fica do lado direito da entrada da Barra por onde ás embarcações adentram ao porto do Recife.
20
COSTA, José Césio Regueira. O Pôrto do Recife: roteiro de uma viagem através de sua história. Revista do
Arquivo Público, Anos VII a X – N. IX a XII. Secretaria do Interior e Justiça. Recife, 1952-1956. P. 67 e 68.
Imagem 1: da Planta da cidade do Recife de C.B. Golijath em 164821.

Segundo José António Gonçalves de Melo os holandeses já conheciam detalhes dos


portos do Brasil, por conta das esporádicas visitas ao nosso litoral. Que através dos
argumentos do Coronel, justifica a facilidade de adentrar e invadir a capitania de Pernambuco
que não tinha ainda um aparato mais complexo de fortificações, que foram sendo construídas
e aperfeiçoadas pelos holandeses.
Através da Imagem 1, podemos perceber que o Recife era praticamente restrito as
108
paliçadas que envolviam “os portas a dentro” e que o ficava na parte dos “portas a fora” eram
os dois fortes, o menor o forte de São Jorge e o maior o forte do Brum, que aparecem de
amarelo na imagem. Também é possível identificar uma grande restinga de areias que
assoreia o porto em sua extremidade.
Russell-Wood em seu artigo sobre o “Atlântico Português, 1415-1808” faz um
panorama geral da história imperial, sobre uma perspectiva mais ampla que enfatiza mais os
indivíduos do que à Coroa. Esse artigo contribui na perspectiva de analisar os acontecimentos
locais em uma perspectiva mais ampla, no entanto, o artigo contém alguns deslizes em relação
a construção dos principais portos do Brasil pelos portugueses.
O historiador coloca que “Em 1560, expulsaram os franceses da Baía de Guanabara e
construíram portos em baías ou estuários; Salvador, Recife e Rio de Janeiro tornaram-se os
“três grandes” portos22. Tal citação torna ambígua a ideia de construção dos portos, pois os
três citados são portos naturais. Podemos falar em uma construção administrativa ao redor
desses Portos, e até da escolha desses locais como principais portos do Brasil. No período que

21
MENEZES, José Luiz da Mota. Atlas Histórico Cartográfico do Recife. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana,
1988.
22
WOOD, John Russell. Histórias do Atlântico Português. São Paulo: Editora Unesp, 2014. P. 102.
o autor expõem, o porto do Recife já têm sua posição consolidada, como principal porto da
América portuguesa, até o período da invasão holandesa.
Em outro artigo, Russell-Wood retoma a discussão sobre os portos do Brasil colonial
colocando o porto do Recife como secundário, sem levar em consideração sua importância
histórica. Ele colocou o porto de Salvador e o do Rio de Janeiro como os principais portos do
Brasil, mas sabemos que a importância do porto do Rio de Janeiro foi decorrente da
descoberta do ouro das minas e portanto, datada do fim do século XVII. Salvador como sede
do governo-geral, sempre teve sua importância mais destacada, por conta da rota ser mais
rápida com os portos Africanos, decorrente do trato negreiro23.
No entanto, o artigo é bem interessante em relação a reflexão sobre os portos, a
simbiose entre os portos e o mar, mais especificamente o Oceano Atlântico, a relação entre o
“interior”, como algo subjetivo que extrapola o geográfico e conota a ideia de conexões:
pessoais, familiares, administrativas e comerciais, esse interior seria o interior de uma
“cidade” portuária, ao mundo que seria as possibilidades de destinos que o porto poderia
propiciar.
Outro ponto relevante, que ele traz para a discussão são os papéis multifuncionais dos 109
portos e da relevância do transporte marítimo e fluvial, em detrimento do terrestre para os
portos de Recife e Rio de Janeiro.24 Ele também coloca os portos como sinônimo de governo
que é cercado por fortes para promover a defesa da costa.25
Essa necessidade de fortificar as capitanias é uma constante na documentação do
século XVIII, são inúmeras cartas referentes a construções de fortalezas. Os navios
estrangeiros que recorrentemente visitavam os portos do Brasil, acabaram dando ênfase à
necessidade de viabilizar medidas de proteção às capitanias, como a sua fortificação, criação
de mecanismos de prevenção a ataques de corsários e piratas, como a constituição das frotas
que acompanhavam a saída dos navios, sendo dessa forma assegurada a travessia pelo
Atlântico26. As medidas de proteção do patrimônio da Coroa causaram grandes
inconvenientes aos moradores, já que provocavam a criação de tributação adicional27.

23
ALENCASTRO. Luiz Felipe de. O Trato dos viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul séculos XVI e
XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
24
WOOD, John Russell. Op.cit. 2014. P. 153.
25
Ibidem. p.154.
26
CARDOSO, Grazielle Cassimiro. A Luta pela estruturação da Alfândega do Rio de Janeiro durante o governo
de Aires de Saldanha de Albuquerque(1719-1725). Rio de Janeiro: UNIRIO, 2013. 186p. (dissertação de
Mestrado em História Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).
27
Por exemplo a implementação da dízima da Alfândega para fortificar a capitania, em 1711.
Voltando para o porto do Recife, o governo metropolitano conjecturou a possibilidade
do aproveitamento do porto de Tamandaré em detrimento ao do Recife, porém o governador
Caetano de Melo Castro28 opôs-se afirmando ser um inconveniente, pois além de ser distante
do Recife, o sítio era pouco saudável29. Propôs então a construção de um molhe que chegasse
até a barra. Para tal obra, criou-se no dia 6 de março de 1694, um imposto de mais de 400 réis
sobre as caixas de açúcar exportadas, sem trazer gasto algum para a Fazenda Real 30.
Caetano de Melo Castro também propôs a proibição que os navios não trouxessem
lastro de areia e sim de pedra, pois os lastros de areia eram lançados na barra e prejudicavam
o porto, “a ponto de não poderem entrar embarcações maiores, e pior carregadas, de modo
que é preciso carregarem fora com imenso trabalho, risco e despesa, o que até acontecia com
as embarcações da marinha de guerra, que vinham carregar madeiras, sob pena de uma multa
de 500 cruzados, para quem desobedece a essa ordem.31
As proposições do governador foram aceitas e aprovadas através de uma carta régia de
6 de março de 1694. Porém a câmara de Olinda era enérgica contra a cobrança do imposto
sobre as caixas de açúcar. Como a Câmara era composta por grandes senhores de engenhos,
seriam os mais afetados em relação a esse imposto.32
O molhe no porto do Recife deveria ser construído sobre os recifes submersos, entre a
110
barra grande e a pequena, segundo o governador Caetano Melo Castro em uma carta ao rei de
30 de abril 1696. O contrato foi arrematado por Antônio Fernandes de Matos. Vejamos o que
o governador almejava para o porto do Recife:

[...]que já estes navios, (os da frota real daquele ano) lograram parte
das conveniências dela, esperando que na frota futura ficasse de todo
fechado o porto, para se ir continuando em alterar os arrecifes e
entupir a barretina, por uma e outra causa ser menos dificultosa, e
que depois que se vencesse o que se julgava impossível, se poderia
então empreender a obra de segundo molhe, o que tudo tendo efeito,
ficaria este porto o melhor do mundo.33

28
Governou a capitania de Pernambuco de 13 de junho de 1693 a 5 de março de 1699.
29
COSTA, Pereira da F. A. Op. cit. 1983, Vol.4 pág. 384.
30
Ibidem. pág. 385.
31
COSTA, Pereira da F. A. Op. cit. 1983, Vol.4 pág. 459.
32
Ibidem. págs.385 e 386.
33
MELLO, Evaldo Cabral de. A Fronda dos Mazombos: Nobres contra mascates, Pernambuco, 1666-1715.
Editora 34, 2003. 2 edição. pág.144.
Podemos analisar a fala do governador, com muito entusiasmo em transformar o porto
do Recife em um grande entreposto comercial, as obras sobre o primeiro molhe foram
iniciadas. Confessava-se o mesmo governador ao rei “ser aquele o único meio de não perder o
porto, já tão melhorado”34, porém não se prosseguiu as obras de construção do molhe, pois o
empreiteiro faleceu ou por dificuldades posteriores.35
Algumas medidas paliativas foram tomadas no decorrer do século XVIII. Entre elas, a
constante da provisão de 14 de abril de 1715, proibindo que se jogassem entulhos na praia
defronte do Recife, para não danificar o porto; a real ordem de 12 de julho de 1730: “...que os
lastros dos navios, o lixo e caliça das casas se deitassem da parte da rua, ou porto da senzala, e
nunca da banda do ancoradouro dos navios, como se praticava, porquanto vinha daí a
obstrução da barra.”36
Outro ponto extremamente relevante, em relação ao melhoramento do porto, era
proibir a retirada de pedras dos arrecifes do porto do Recife, para a construção civil. Não
existiam nesse período pedreiras, os vereadores da câmara eram os que mais estimulavam
esse comércio. Vejamos o que o ouvidor João Guedes de Sá argumenta sobre esse assunto:
“os de Olinda, como tinham quase sempre a governanças de Pernambuco, logo informam que 111
os recifes têm pedra infinita e que se tira aonde não faz prejuízo.37
Encontramos um livro com as ordens régias da extinta Provedoria de Pernambuco,
datado de 1799, escrito por Francisco de Brito Bezerra Cavalcanti de Albuquerque, nele era
exposto que existiam duas ordens registras sobre o porto. A primeira era datada de 6 de
agosto de 1672 que ordenava que os lastros fossem de pedra e não de areia, pois os lastros
estavam entulhando a Barra. Nela era ordenado que o lastro fosse deitado aonde o patrão-mor
ordena-se, para quem não obedece-se, a pena seria de 300 Cruzados.38 Essa lei é anterior a
que já expomos nesse artigo de 1694, ratificada em 1696.
A outra lei citada do Francisco Albuquerque era a de 1730, a qual também já expomos
anteriormente, o interessante desse documento é o comentário do autor que afirmava:
“[...]com a prática atual tinham entupido a Barra, ao ponto de não poder entrar uma
embarcação de 70 caixas, onde fundeava uma Charrua de 800”39. Percebemos que o porto, na
primeira metade do XVIII, já sente o assoreamento causado pelos inúmeros navios que

34
COSTA, Pereira da F. A. Op. cit. 1983, Vol.4 pág. 456 e 457.
35
Idem
36
Ibidem. 459.
37
Ibidem. 184.
38
Albuquerque, Francisco Bezerra Cavalcanti de. Cathalogo das Reais Ordens existentes no arquivo da extinta
Provedoria de Pernambuco, 1799. Microfilme. Folhas: 117-118.
39
Idem
ancoraram nesse sítio ao longo do tempo. Diferente do argumento do Coronel do período
holandês que expunha o porto do Recife como sendo fácil de navegar e ancorar. A Reflexão
final que o autor do livro coloca é que as duas ordens estavam em vigor, mas não tiveram
observância, em suas palavras:

[...]Porque os lastros são ordinariamente de areia, se acaso alguma vez


deitaram alguma lancha em lugar determinado pelo patrão mor, o resto, que
é quase todo o lastro, e lançado na Barra, com que tem-se [...] entolhado, a
ponto de não poderem entrar embarcações maiores, e pior; carregadas de
modo que é preciso carregarem fora com imenso trabalho, risco, e despesa, o
que até acontece com as embarcações de sua alteza real, que vem carregar
40
madeiras.

Podemos perceber através desse relato que um dos fatores para o porto do Recife ter
sido assoreado ao longo do período colonial, foi fruto da desobediência na observação das leis
e ordens que proibiam a utilização dos lastros de areia, que diminuíam significativamente a
profundidade do Porto, impossibilitando que embarcações grandes adentrassem pelo Recife 112
de pedras e ancorassem mais próximo aos trapiches.

Referência Bibliográficas

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arquivo da extinta Provedoria de Pernambuco, 1799. Microfilme.

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40
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114
REDES MERCANTIS E
DIÁSPORA SEFARDITA:
CRISTÃOS-NOVOS NA
ECONOMIA COLONIAL
PARAIBANA.

MARIA EDUARDA DE
MEDEIROS BRANDÃO

GRADUANDA (UFPB)
Em sua obra, Gente da nação, José Antônio Gonsalves de Mello afirma que “é
merecedor de atenção o estudo de famílias cristãs-novas cujos membros localizavam-se
estrategicamente em pontos importantes do comércio açucareiro”1. Muitas, caracterizando-se
também como redes de comércio de grosso trato, expandiam seus negócios para além do
açúcar, caminhando pelos contratos de pimenta, tráfico negreiro, dentre outras possibilidades.
Embora fosse um contexto comum no ocidente mercantil que ia além da realidade cristã-nova,
é visto que estas famílias compartilhavam algumas singularidades; encontravam nas redes
uma alternativa às perseguições ibéricas àqueles de ascendência judaica.
116
Ao se localizarem estrategicamente, era viável escolher não apenas um ponto prolífico
financeiramente para o mercado, mas também um lugar que possibilitasse uma maior
liberdade, distante dos olhares inquisitoriais. A capitania de Pernambuco, prosperando e
distante do bispado da Bahia, tornou-se um lugar atrativo. Na segunda metade do séc. XVI,
com a expansão da indústria açucareira e os interesses colonizadores da metrópole lusitana, a
conquista da Paraíba se dá por meio de expedições.

Logo, este artigo se propõe a analisar a atuação dos cristãos-novos inseridos no


contexto das redes mercantis na conquista e primeiros momentos da capitania da Paraíba,
analisando as trajetórias individuais de agentes ligados à grandes famílias de grosso trato,
numa escala macro, partindo do global ao local, com foco nas dinâmicas do atlântico sul.

Circuitos e diáspora

* A autora é graduanda do curso de Licenciatura em História da Universidade Federal da Paraíba.


Agradecimentos especiais aos professores do departamento; Dr. Mozart Vergetti de Menezes e Dr. Ângelo
Emilio da Silva Pessoa por orientações e bibliografia.
1
MELLO, José Antônio Gonsalves De. Gente da nação: Cristãos-novos e judeus em Pernambuco (1542-1654). 2
ed. Recife: Massangana, 1996. p. 15
Tem-se por Sefardita2 o judeu originário da Península Ibérica e, considerando os
reinos de Portugal e Espanha, percebe-se diferentes processos em torno do fenômeno cristão-
novo. A região apresentava a mais numerosa 3 população judaica na Europa e as perseguições
vieram a se intensificar no séc. XIV, considerando as consequências socioeconômicas,
culturais e afins das campanhas de reconquista. Entretanto em Portugal as ideias antissemitas
foram mais tardias em relação à Espanha, tornando-se um lugar de asilo enquanto as inter-
relações afloravam, sendo significativo o número de casamentos mistos4, apesar das restrições
canônicas e segregações nas judiarias.

Foi apenas em 1492 que o édito espanhol dos Reis Católicos –– Isabel I de Castela e
Fernando II de Aragão –– foi decretado, ordenando um prazo de três meses para que os
judeus do reino se convertessem ou deixassem o território. D. João II se absteve de tomar
medidas similares e logo, segundo Rucquoi, “cerca de 80.000 judeus castelhanos instalaram-
se no reino vizinho”5, para o descontentamento da igreja e alta nobreza. Em 1496, D. Manuel
I, sucessor de D. João II, promulga o Édito de expulsão dos judeus de Portugal, que foi
aplicado apenas no ano seguinte. O decreto se dá não apenas devido à pressão dos setores
descontentes, mas também visando uma futura União Ibérica através do casamento com a 117
filha de Fernando de Aragão e Isabel Castela.

Não obstante, aqueles que se convertessem ao cristianismo no prazo de um ano


estariam aptos a continuar no reino. Contudo, diferente da Espanha, Portugal se via relutante
em deixar que os judeus partissem tão facilmente, chegando a organizar até mesmo batismos
em massa nos portos de embarque6. Afinal, seria uma grande perda para Portugal, em meio
aos seus primeiros passos em direção ao comércio ultramarino, abrir mão de um agente tão
favorável à economia do reino, sendo parte importante da burguesia em ascensão. Surge,
portanto, os recém conversos de Portugal tidos como cristãos-novos, que representavam a
maior parte dos, anteriormente, judeus.

2
Na versão da bíblia judaica (Tanakh) em aramaico compilada no início da alta idade média, traduziu-se Sefarad
como Spamia ou Ispamia, embora o termo “sepharad” em hebraico signifique “longe”. No relato do profeta
Abdias, Sefarad aparece como um lugar para os exilados de Jerusalém. Na Hispânia, sefaradi era o vocábulo
hebraico.
3
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: Judeus Portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2010. P. 28.
4
NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Perspectiva S.A, 1972. P. 27.
5
RUCQUOI, Adeline. História medieval da península ibérica. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. P. 305. Os
números podem variar de acordo com os levantamentos de cada trabalho.
6
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: Judeus Portugueses no Brasil holandês. PX. p. 29.
Devido à um ideal de nobreza construído em meio a séculos de reconquista, a imagem
do “cristão-ideal” carregava elementos herdados da guerra santa. Rucquoi afirmará que “a
existência de judeus não convertidos foi apresentada como um escândalo [...] e os
muçulmanos tornaram-se os sequazes de Satanás”7. O tema da pureza de sangue, fruto de
discussões de séculos anteriores, culminam no estatuto de Toledo (1449) e o cristão-velho traz
em seu sangue a pureza, enquanto o outro era impuro, no caso daqueles de ascendência
judaica, marrano8. A limpeza do sangue foi institucionalizada em Portugal em fins do séc.
XVI. Anita Novinsky, analisando a historiografia em torno da temática, afirma:

“[...] na segunda metade do século XVI, as preocupações de limpeza de


sangue passam a primeiro plano e adquirem caráter eminentemente social. As
instituições que os adotaram, excluíam de seus quadros qualquer descendente de
judeu, mouro ou negro”9.

A inquisição portuguesa, oficialmente instaurada em 1536 vinha imbuída nesses ideais


e os promulgava, perpetuando a ideia de sangue puro.

Em meio a esse processo na Península Ibérica, diásporas10 sefarditas foram ocorrendo,


indo de Marrocos à Roma e ao Império Otomano, espalhando a comunidade pelo mundo 11.
118
Realidade esta que perpetua a história da dispersão do povo hebraico; parte longa e
significativa de sua trajetória, que remonta à antiguidade, quando na primeira diáspora no
século VI a.C, Nabucodonosor II toma Jerusalém e ordena a retirada dos judeus para a
mesopotâmia, momento conhecido como “Cativeiro da Babilônia”. Nos séculos XVI e XVII,
apesar dos caminhos dentre os destinos já citados e outros, torna-se também bastante intensa a
migração para a Antuérpia e aos Países Baixos, mais especificamente a cidade de Amsterdã;
sendo esta uma diáspora construída através de redes que lucravam com a clandestinidade da
fuga12.

7
RUCQUOI, Adeline. História medieval da península ibérica. pX. P. 307.
8
Termo pejorativo direcionado àqueles que seriam suspeitos de judaizar em segredo. Em espanhol, faz
referência também a suínos.
9
NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia: 1624-1654. pX. P. 43.
10
Enquanto no grego, diáspora significa “dispersão”, no hebraico o termo é traduzido como “tefutzah”
(dispersado) ou Galut (exílio).
11
Para consultar um mapa, ver anexo 1.
12
Vainfas discorrerá sobre o tópico. Considerando a diáspora para os Países Baixos, afirmará que "a emigração
de cristãos-novos portugueses para a Holanda transformou-se numa fuga rodeada de perigos. Mas a rede de
agentes já estava montada e o negócio ficou ainda mais lucrativo no contexto da proibição. O período de
emigração livre foi, assim, muito curto. A emigração para a Holanda, fosse por mar ou por terra, assumiu o
caráter de fuga desenfreada na primeira metade do século XVII". (2010. p. 40).
Isto se dá em uma época que paralelamente a Europa expandia seus horizontes
comerciais, assim como o consumo de especiarias e a mentalidade em torno das trocas
comerciais se transformava, no processo de construção de uma dinâmica mercante que por
vezes se dava em meio a acordos entre mercadores, investidores e o Estado visando um
mercado transcontinental. Wallerstein (1974) argumentará que em fins do séc. XV e início do
XVI surge a economia-mundo europeia, sendo esta uma entidade econômica, e não política,
em larga escala, tomando forma de um sistema mundial conectado economicamente, sendo
apenas reforçado por laços culturais, dinâmicas políticas e afins. Logo, divide o mundo entre
centro, semiperiferia e periferia, com base nos papéis de cada localidade na dinâmica
capitalista, formulando assim seu conceito de sistema-mundo. Braudel, criador do termo
“economia-mundo”, trabalha com a ideia de economias-mundo que coexistem13 numa longa
duração, anterior à idade medieval. Considerando o mercado transcontinental que se formava,
Fernand Braudel abordará no segundo volume de Civilização material, economia e
capitalismo (1979) as circulações mercantis como sistemas de reciprocidade em circuitos
fechados. Redes14 com agentes de função atrelada ao seu posicionamento, contatos e a
realidade de determinado lugar. Para que este modelo seja efetivo, são necessários cooperação
e auxílio mútuo entre as partes, no que o autor denominará “solidariedade mercantil”15,
119
embora não exclua o atrito entre redes rivais.

Nesse cenário de além-mar, o império ultramarino português se torna peça-chave,


considerando sua posição territorial estratégica como rota entre o Atlântico, Mediterrâneo e o
Norte da Europa, sendo também um importante ponto marítimo de conexão com o Oriente e a
África.

Considerando uma conjuntura comercial tão tipicamente moderna, observa-se também


a ascensão burguesa que a acompanha, assim como a inserção de famílias abastadas que se
estabeleciam em localidades estratégicas, como Antuérpia e Veneza, monopolizando

13
Braudel, apesar das similaridades, apresenta discrepâncias em relação a Wallerstein, lançando por exemplo o
seguinte comentário: “Os nossos pontos de vista, quanto ao essencial, são idênticos, ainda que, para Immanuel
Wallerstein, não haja outra economia-mundo além da Europa, fundada a partir do século XVI somente, enquanto
que para mim, muito antes de ter sido conhecido pelo homem da Europa na sua totalidade, desde a Idade Média
e mesmo desde a Antigüidade, o mundo já estava dividido em zonas econômicas mais ou menos centralizadas,
mais ou menos coerentes, ou seja, em várias economias-mundos que coexistem”. (BRAUDEL, 1985, p. 54).
Ressalta-se que este trabalho estipula um diálogo maior com as perspectivas de Braudel.
14
Toda rede comercial liga uns aos outros certo número de indivíduos, de agentes, pertencentes ou não à mesma
firma, situados em vários pontos de um circuito ou de um feixe de circuitos. O comércio vive desses
revezamentos, dessas cooperações e ligações que se multiplicam como que por si sós com o crescente sucesso do
interessado. (BRAUDEL, 1979, p.125).
15
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo (séculos XV - XVIII): vol. 2, o jogo das
trocas. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. (p. 129).
determinado setor e investindo em outros, enquanto formavam laços comerciais entre grupos
e empresas variadas. As redes comerciais apresentavam uma diversidade de agentes enquanto
se fortalecia, expandia e se conectava a outras, multiplicando os lucros dos investimentos em
áreas como o tráfico negreiro e a indústria açucareira. Contudo, eram cautelosas em sua
organização e a endogamia, assim como o auxílio-mútuo entre seus contatos, era comum para
a defesa de sua estabilidade. Segundo Braudel, “seja qual for a forma do entendimento e da
colaboração mercantis, ela exige fidelidade, confiança pessoal, exatidão, respeito pelas ordens
dadas. Uma espécie de moral comercial muito rigorosa” 16.

Os judeus, imersos em um processo histórico de segregação, por vezes enfrentando


dificuldades como proibições para adquirir bens imóveis e posições fixas em instituições,
encontraram na acumulação de capital por meio das trocas comerciais uma maior segurança.
Braudel argumentará que uma das redes mais resistentes e lucrativas é a dos mercadores
judeus17, que remontam à antiguidade e se espalharam pelo mundo ao longo dos séculos,
tendo a sua atuação percebida em vários níveis, incluindo bancos, comércio de longa distância
e cobrança de impostos. Embora sejam redes que sofram fortes abalos de tempos em tempos,
devido às perseguições e expulsões. Em meio às diásporas, os antigos e novos contatos entre 120
as famílias e grupos ao redor do globo foram de grande auxilio no estabelecimento daqueles
que procuravam por asilo.

A mobilidade dos cristãos-novos foi essencial para o desenvolvimento desse cenário,


tornando-se agentes sine qua non ao se posicionarem estrategicamente em pontos prolíficos.
Mas também em ambientes que representassem segurança, tais como Amsterdã, devido à
política de tolerância religiosa, permitindo liberdade de culto àqueles que desejassem um
retorno às raízes judaicas, tornando-se uma espécie de “Jerusalém do Norte”18. Na América
Lusitana, percebe-se na documentação a presença dos cristãos-novos sefarditas desde a
primeira metade do séc. XVI19.

16
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo (séculos XV - XVIII): vol. 2, o jogo das
trocas. PX. P. 127.
17
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo (séculos XV - XVIII): vol. 2, o jogo das
trocas. PX. P. 133 – 134.
18
VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: Judeus Portugueses no Brasil holandês. PX. p. 35.
19
Sobre os cristãos-novos inseridos no contexto mercantil da américa portuguesa, ver: SALVADOR, José
Gonçalves. Os Cristãos-novos e o comércio no Atlântico Meridional (1978) para um enfoque nas capitanias do
Sul, a tese de SILVA, Janaína Guimarães da Fonseca. Cristãos-Novos no negócio da Capitania de Pernambuco:
relacionamentos, continuidades e rupturas nas redes de comércio entre os anos de 1580 e 1630 (2012) e a
Capitanias do Norte: Pernambuco e Paraíba

Diferentemente dos que migraram para outras localidades, o cristão-novo no Brasil,


tendo em vista o potencial econômico apresentado distante das perseguições europeias, com
agentes de origem similar e um potencial colonizador, acabou por criar raízes na terra e se
integrou na sociedade20. Abrigados por famílias ou pessoas de mesma ascendência, por vezes
chegavam ao território sem recursos e encontravam auxílio, ainda que através de onzeneiros21.
Logo, estavam aptos a ingressar nas oportunidades que melhor se encaixavam; muitos
tornando-se senhores de escravos, donos de engenho e afins, ascendendo socialmente e
angariando um prestígio que normalmente não alcançariam em Portugal. Consequentemente,
encontravam-se no núcleo da indústria açucareira, que ditava os rumos das capitanias.

A Nova Lusitânia (Pernambuco), capitania doada à Duarte Coelho em 1534, tornou-se


responsável pela maior produção de açúcar da colônia e em relação à Bahia, capital colonial,
detinha o maior número de cristãos-novos. José Antônio Gonsalves de Mello em Gente da
Nação, faz um levantamento quantitativo22 com base nas documentações inquisitoriais23 e 121
considerando as 625 pessoas que prestaram denúncias ou se confessaram ao tribunal na
primeira visitação, afirma:

Na Bahia dos 285 computados 209 declararam-se cristãos-velhos (73,3%), 22


cristãos-novos (7,7%) e 9 meio-cristãos-novos (3,2%). O total dos cristãos-novos
por inteiro ou em parte é de 31 (10,9%). Em Pernambuco dos 271 incluídos 203
disseram-se cristãos-velhos (74,9%), 21 cristãos-novos (7,7%) e 17 em parte
cristãos-novos (6,3%). Somam os cristãos-novos 38 (14%). (MELLO, 1989, P. 5).

Atribui, por fim, uma maior quantidade do grupo em Pernambuco à prosperidade


econômica da região, assim como o fato da Bahia ser, na época, sede do bispado.

As primeiras atividades oficiais, com intuito de permanência ligadas à indústria


açucareira na capitania datam de 1542, de acordo com a documentação disponível. Diogo
Fernandes e Pedro Álvares Madeira adquiriram terras em Pernambuco e levantaram o
Engenho Santiago, sendo o primeiro técnico açucareiro e o segundo, homem de capitais.

dissertação de RICARDO, Silvia Carvalho. As redes mercantis no final do século XVI e a figura do mercador
João Nunes Correia. (2007) para as capitanias do Norte.
20
NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia: 1624-1654. PX. P. 60.
21
Aquele que emprestava dinheiro a juros elevados, sendo uma prática malvista na sociedade.
22
Nota-se que os dados finais não cobriam de fato o total dos cristãos-novos, levantando-se a hipótese de
números maiores do que os analisados por Gonsalves de Mello, além de serem dados apresentados em 1989.
23
O primeiro Visitador do Santo Ofício chegou ao Brasil em 1591 e sua permanência se deu na Bahia, sede do
governo colonial, entre 1591 e 1593 e em Pernambuco entre 1593 e 1595. (MELLO, p.5).
Ambos, mais tarde, acusados de judaísmo. Na segunda metade do séc. XVI é apresentado um
aumento no número de senhores cristãos-novos, embora o número de lavradores de cana seja
maior e principalmente o de comerciantes, envolvidos sobretudo com o açúcar; produto que
no final do séc. XVI e início do XVII esteve em alta, gerando um aumento no número de
engenhos da região. Segundo Gonsalves de Mello;

Em Pernambuco o número de engenhos passou de 23 em 1570 (Gândavo)


para 66 em 1583 (Cardim) para 77 em 1608 (Campos Moreno): em trinta e oito anos
o número mais que triplicou. O preço da arroba de açúcar branco em Lisboa passou
de 1$400 em 1570 para 2$020 em 1610 (Simonsen)24.

A conquista do território paraibano se deu através de custos altíssimos não apenas em


termos financeiros, mas também nas baixas provenientes das guerras, principalmente dos
povos nativos da região, como os Potiguara que viviam na área do Rio Paraíba. Capitania tida
tradicionalmente como fundada em 1574, sobre terras que anteriormente pertenciam à
Itamaracá, teve sua conquista, como explanado por Regina Célia Gonçalves (2007), devido
aos levantes Potiguaras, intenções colonizadoras e em defesa contra os avanços franceses.
Embora a autora ressalte também os fortes interesses econômicos, tais como a exploração do
pau-brasil e a expansão da indústria açucareira. Para financiar as expedições, D. Sebastião I 122
negociou com a iniciativa privada, sendo indispensável considerando o momento de crise na
união ibérica, como por exemplo no caso de Frutuoso Barbosa; abastado comerciante de
Olinda inserido no comércio do pau-brasil, nomeado pelo Rei “capitão de mar e terra”,
liderando expedições e chegando a se tornar capitão-mor de 1588 a 1591.

Sendo a conquista efetivada também pelos interesses daqueles que residiam em


Pernambuco e Itamaracá, os investimentos partiram de áreas diversificadas. Levando em
consideração o potencial açucareiro da região, o capital investido por comerciantes ––
especialmente pernambucanos, de Olinda –– foi essencial, com foco na ampliação da
produção local do produto, dirigindo-se à continuidade e aumento no número de exportações.
Além de visar a mão-de-obra que o cativeiro indígena proporcionava. Nesse sentido,
Gonçalves (2007) atrelará também a expansão territorial aos interesses mercantis
ultramarinos. Porém, sabe-se que grande parte daqueles que participaram das guerras de
conquista na verdade faziam para evitar a pobreza ou elevar seu status financeiro,
consequentemente, nem todos eram abastados comerciantes, apesar de alguns, de fato, se
destacarem economicamente. Para aqueles que não se encaixavam nesse grupo, a várzea do
24
MELLO, José Antônio Gonsalves De. Gente da nação. pX.P. 10.
rio Paraíba era um lugar de oportunidades. A implantação da indústria açucareira, pouco
tempo depois, se deu de caráter similar, bastante vinculada ao comércio pernambucano,
considerando que o crédito e o capital voltados à construção de engenhos eram provenientes
da capitania.

Um dos cristãos-novos comerciantes em Pernambuco a participar da conquista da


Paraíba e estabelecer engenhos na região foi Ambrósio Fernandes Brandão, autor de Diálogos
das Grandezas do Brasil25 (1618), importante fonte para o estudo da colônia. Inicialmente
cobrador dos dízimos de açúcar26 do arrendatário, também cristão-novo, Bento Dias
Santiago27, termina por atuar nas expedições como capitão dos mercadores28.

Vainfas criará um verbete para seu nome no Dicionário do Brasil Colonial (2000) e
discorrerá que houveram denúncias fazendo menção às raízes judaicas de Ambrósio por parte
de um de seus funcionários, como a guarda dos sábados e a alusão ao fato da família ser
letrada, incluindo as mulheres29. Mello também buscará recompor parte de sua trajetória e
ressalta que outro episódio seria o depoimento30 do próprio Ambrósio admitindo ser cristão-
novo no processo de Bento Teixeira31, intelectual acusado e condenado por judaísmo,
heresias, tradução da Bíblia, entre outros. Contudo, ainda que em adição a esses detalhes as 123
referências bíblicas de sua obra sejam majoritariamente do Velho Testamento, não se tem
notícias de condenação pelo Santo Ofício e as fontes em torno de suas ações e trajetória são

25
“A obra é estruturada na forma de diálogos entre duas personagens, Brandônio e Alviano, que conversam
animadamente em estilo simples, contrariando o barroco então em voga [...] foi escrita, provavelmente, na
Capitania da Paraíba, mas faz menção à Bahia e Pernambuco. O primeiro manuscrito foi descoberto por
Francisco Adolfo de Varnhagen na Biblioteca Nacional de Portugal, na segunda metade do século XIX”
(NOVINSKY et al., p. 222).
MELLO, José Antônio Gonsalves De. Gente da nação. pX. p. 26-27.
26
27
Gonsalves de Mello trabalhará também um pouco de sua trajetória em Gente da Nação (1996). “Contratador da
cobrança dos dízimos de Pernambuco nas décadas de 1570 e 1580 e sesmeiro de Camarajibe”. (1996, p.35).
28
Informação retirada da página 16 do Summario das armadas que se fizeram, e guerras que se deram na
conquista do rio Parahyba; escripto e feito por mandado do muito reverendo padre em Christo, o padre
Christovam de Gouveia, visitador da Companhia de Jesus, de toda a província do Brasil. Fonte que narra as
expedições ao futuro território paraibano através de uma testemunha ocular jesuíta.
29
É interessante notar o papel que as mulheres desempenharam na transmissão do judaísmo, pois delas
dependiam a educação dos filhos nos costumes judaicos. Nesse sentido, enquanto a maioria das portuguesas
cristãs-velhas eram analfabetas, o número de letradas cristãs-novas era relevante. (Ver: GORENSTEIN, Lina. A
inquisição contra as mulheres; Rio de Janeiro, séculos XVII e XVIII. São Paulo: associação editorial humanitas:
FAPESP. 2005. E NOVINSKY, Anita. Et al. Os judeus que construíram o Brasil: fontes inéditas para uma nova
visão da história. São Paulo: Planeta do Brasil, 2015).
MELLO, José Antônio Gonsalves De. Gente da nação. pX. p.27.
30
31
Intelectual cristão-novo originário do Porto,1561 e autor de Prosopopéia (1601). Segundo Vainfas, “em 1596,
ele foi transferido para Lisboa até ouvir a sentença, em 1599:reconciliado com cárcere e hábito perpétuo, tendo
seus bens confiscados e abjurado faz heresias. Pouco tempo depois, foi novamente preso em Lisboa, por motivo
desconhecido. Muito doente, morreu em julho de 1600”. (2000, p. 76). Bastante trabalhado pela historiografia, é
interessante consultar MELLO, José Antônio Gonsalves De. Gente da nação: Cristãos-novos e judeus em
Pernambuco (1989), LIPINER, Elias. Judaizantes na capitania de cima (1969).
escassas, embora haja uma noção de que seu falecimento foi anterior ao domínio holandês e
diferentemente do comum, seus engenhos continuaram na família32.

Agentes cristãos-novos na Parahyba

Um dos principais agentes dos interesses econômicos das redes mercantis no processo
de ocupação e desenvolvimento da Parahyba foi a família Nunes Correia. De origem sefardita,
já se encontrava inserida numa trama de relações com grandes clãs mercantis na Europa, tais
como os Ximenes de Aragão e os Rodrigues d’Évora 33. Em terras brasileiras, o principal
expoente foi João Nunes Correia34, abastado comerciante português que atracou nas
capitanias do norte, mais especificamente em Pernambuco, por volta da segunda metade do
séc. XVI. Tornou-se, por fim, um dos mais proeminentes mercadores da colônia. Seus
investimentos financeiros eram diversificados, sendo contratador no tráfico de escravos
indígenas e africanos, lucrando através dos juros como onzeneiro, comerciante envolvido nas
exportações do pau-brasil, açúcar e nos contratos da pimenta, através das relações de além-
mar e administrando os engenhos em posse de seus irmãos35. 124
Henrique Nunes, filho mais velho e cabeça dos negócios da família, residia em Lisboa
e coordenava os investimentos e conexões internacionais que ligavam indiretamente as
regiões açucareiras do Brasil com Portugal, Angola e o Norte da Europa através de contatos
com demais familiares, tais como seu cunhado, Luís Mendes, no Porto e clãs mercantis
aliados, como os Ximenes na Antuérpia. O irmão mais novo, Diogo Nunes, tornou-se senhor
de engenho na Paraíba em parceria com ambos os irmãos. João Nunes e Diogo, assim como

32
GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na Capitania da Parayba (1585 – 1630).
São Paulo: Edusc, 2007. P. 99.
33
Ver RICARDO, Silvia Carvalho As redes mercantis no final do século XVI e a figura do mercador João
Nunes Correia. 2007. Dissertação (Mestrado em História Econômica) Universidade de São Paulo, São Paulo,
2007.
34
João Nunes Correia é uma figura já dissecada em obras diversas. Neste trabalho, optou-se pelo diálogo com
MELLO, José Antônio Gonsalves De. Gente da nação: Cristãos-novos e judeus em Pernambuco (1989), ASSIS,
Angelo Adriano Faria De. João Nunes, um rabi escatológico na Nova Lusitânia: Sociedade colonial e inquisição
no nordeste quinhentista (2011) e RICARDO, Silvia Carvalho As redes mercantis no final do século XVI e a
figura do mercador João Nunes Correia (2007). Contudo, até mesmo historiadores como Sônia Siqueira o
trabalharam. Esta, por exemplo, apresentando uma intervenção/debate na ANPUH de 1971, num artigo intitulado
O comerciante João Nunes.
35
ASSIS, Angelo Adriano Faria De. João Nunes, um rabi escatológico na Nova Lusitânia: Sociedade colonial e
inquisição no nordeste quinhentista. São Paulo: Alameda, 2011. P.107-110.
Ambrósio Fernandes Brandão, participaram ativamente da conquista da Paraíba36 –– sendo o
primeiro dos irmãos o mais atuante ––, não apenas com investimento de capital, mas também
militarmente, sendo um dos poucos em posse de cavalos37.

João Nunes, contudo, não era a mais bem quista figura da região. Suas ações eram
bastante controversas e seu poderio econômico representava a possibilidade de ascensão
social do cristão-novo, para o incômodo dos cristãos-velhos. Os altos juros cobrados nas
onzenas e o curto espaço de tempo para o pagamento que eram aplicados despertava a revolta
dos senhores de engenho devedores, que eram ameaçados de perderem suas propriedades caso
não quitassem a dívida. Inseriam-se nessa trama até mesmo seus familiares, tendo seu primo
mercador, Jerônimo Rodrigues, aberto falência e depositado a culpa em João Nunes Correia.
Diogo Nunes apresentou também desavenças com o irmão e apesar dos motivos principais
serem desconhecidos, as dívidas de Diogo com João foram apresentadas como um dos
sintomas.

Como resultado, João Nunes foi denunciado dezessete vezes durante a visitação
inquisitorial à Bahia e vinte e uma vezes em Pernambuco, sendo um dos nomes mais citados
nas delações. Foi acusado de ser o rabino dos judeus em Pernambuco, detentor da “bolsa dos 125
judeus” e outros casos, embora as repetições nas acusações aparecessem majoritariamente em
relação ao auxílio que prestava aos cristãos-novos recém-chegados e a principal, prestada pelo
pedreiro Pero da Silva que testemunhou ao trabalhar em uma obra do sobrado de João Nunes
um crucifixo empoeirado num lugar impróprio, próximo ao local de evacuação das
necessidades físicas. Outra das denúncias mais repetidas, seria o crime de adultério com
Francisca Ferreira, mulher casada com um de seus empregados.

Já Diogo Nunes teria sido acusado pelo Santo Ofício cinco vezes, sendo as principais
delações referentes aos seus pensamentos de que fornicação com uma mulher negra ou
solteira não seria pecado, desde que houvesse pagamento, assim como os maus tratos em
relação aos seus escravos. Angelo. A. F. Assis, debruçando-se sobre o testemunho de Lopo
Soares feito em 1593 destacará que “[...] mantivera “um negro amarrado, açoitando-o”, ao
qual dissera: “Jesus Cristo lhe não havia de valer”. (p. 266). Por fim, João Nunes foi mandado
em cárcere à Portugal para cumprir sentença, entretanto, conseguiu articular um acordo e ter a
sua liberdade através do pagamento de uma fiança de 4.000 cruzados com base nas

36
Os nomes de João Nunes e Diogo Nunes são citados diversas vezes ao longo do Sumário das Armadas. João
mais que Diogo. O autor lhes atribui a função de “mercador”.
37
ASSIS, Angelo Adriano Faria De. João Nunes, um rabi escatológico na Nova Lusitânia: Sociedade colonial e
inquisição no nordeste quinhentista.pX. P. 106.
ineficiências das provas. Rodrigo de Andrade d’Évora, apoiado por sua esposa Ana de Milão,
envolvida também no acordo e Jerônimo Henriques pagaram a fiança, a pedido de Henrique
Nunes. Seu irmão, Diogo, não teve a mesma sorte, sendo sentenciado, por heresia, a

“Ir ao auto-da-fé com a cabeça descoberta, cingido com uma corda, com
vela acesa na mão, abjuração de leve, instrução na fé católica, penitências
espirituais, pagamento de cem cruzados para as despesas do Santo Ofício,
pagamento de custas” 38.

Outro mercador desarticulado durante a Visitação inquisitorial foi Manuel Nunes de


Matos, que de acordo com os dados do “Livro de entrada e saída dos navios e urcas do porto
de Pernambuco” (1596 – 1605) estudado por Gonsalves de Mello, era o segundo maior
exportador de açúcar de Pernambuco (4.662 arrobas). Pertencia à rede dos Ximenes e tinha
em Lisboa o mesmo consignatário de Duarte Ximenes –– principal exportador de açúcar da
fonte, com 5.375 arrobas ––, João Moreno. Além de ser ligado por casamento à família
Milã39o, fiadora no processo de João Nunes e envolvida com produtos e áreas tais quais as
especiarias orientais e o comércio de pimenta, tráfico negreiro em Angola e Cabo Verde, com
o metalismo na américa espanhola, diamantes e pedras preciosas na Antuérpia e o açúcar nas
capitanias do norte. Primo e marido de Ana de Milão40, retorna ao reino após a prisão da 126
esposa e do seu sogro, Henrique Dias de Milão, chefe da família, ambos acusados de
judaísmo41. Manuel que em 1627 foi também condenado por práticas judaizantes, consta em
sua sentença “que seus ossos sejam queimados, relaxado à justiça secular”42, contudo,
diferentemente de seu sogro, consegue fugir para Amsterdã, seguido mais tarde por Ana de
Milão. Este passou, na cidade, a fazer transações para os Milão e manteve por lá relações com
as comunidades judaica e cristã-nova.

Enquanto ainda vivia nas capitanias do norte, foi também arrendatário da cobrança dos
dízimos de açúcar na Paraíba. A coroa, devido à limitação de recursos aplicados à empresa
colonial, valia-se dos homens de negócios para mediação, estes por vezes inseridos no

38
Processo nº 6344. Auto de fé: 09/10/1594.
39
Ver RICARDO, Silvia Carvalho. Expoentes mercantis e dinâmica de negócios: a família Dias de Milão
(1580-1624). Tese (Doutorado em História Econômica) -, Universidade de São Paulo. (2014).
40
Ana de Milão, esposa de Manuel Nunes de Matos não é a mesma Ana de Milão que tomou parte na fiança de
João Nunes, sendo a primeira sobrinha da outra. Ana de Milão (sobrinha), 20 anos, sentenciada ao “auto-da-fé de
05/04/1609. Confisco de bens, abjuração em forma, cárcere e hábito penitencial perpétuo sem remissão,
instrução na fé católica”. (Processo nº 279).
41
Henrique Dias de Milão (processo nº 6677), 75 anos, acusado de práticas judaicas, sentenciado ao “auto-da-fé
de 08/04/1609. Confisco de bens, excomunhão maior, relaxado à justiça secular” (queimado).
42
Processo nº 10600.
contexto das redes, dominando a área e lucrando também através do sistema colonial, além de
proporcionar um local social de maior influência e destaque até mesmo dentro da própria elite
mercantil. Matos, relacionado à duas grandes redes mercantis, assumiu a posição por volta de
1601.43

Considerações finais

Os cristãos-novos não representavam uma unidade e sim um pluralismo de pessoas


que se portavam de diferentes formas em relação à sua ascendência, conservando-a através de
uma prática cripto-judaica ou perpetuando de forma inconsciente e, como outros grupos
inseridos no contexto da época, mantendo um pensamento questionador perante a fé,
ironizando-a ou aceitando de bom grado a cristandade. Fruto das conversões ibéricas,
dispersaram-se pelo mundo em um processo de auxílio mútuo entre sefardís e contatos
externos, utilizando mecanismos inerentes à época para sobrevivência e conservação de seus
grupos.
127
As redes mercantis, nesse contexto, representavam para esse grupo em específico não
apenas uma resposta para os interesses de mercado inerentes à época, mas também uma
estratégia de sobrevivência e possibilidades de novos caminhos perante as limitações
impostas, sendo para o sefardí área familiar típica também de sua carga cultural ibérica.
Assim, como uma das estratégias adotadas, percebe-se a expansão das redes para áreas de
maior liberdade e com menor supervisão, sendo este o caso das capitanias do norte, mais
especificamente Pernambuco e Paraíba. Enviaram para essas capitanias agentes pertencentes a
poderosas famílias que formavam uma teia de relações com base nas exigências do cenário
mercantil, convivências e da ascendência em comum que carregavam. É importante notar a
diversidade de investimentos dos grupos e a variedade de funções exercidas pelos agentes;
senhores de engenho, onzeneiros, comerciantes e atividades relacionadas ao aparelho
burocrático estatal português.

Logo, a atuação dessas redes na capitania da Paraíba foi essencial para o


financiamento da conquista territorial e a instalação dos primeiros engenhos, que
correspondiam às demandas da indústria açucareira, assim como ao prosseguimento do
projeto colonizador lusitano, chegando a atuar também no setor tributário colonial. Ao passo

43
MELLO, José Antônio Gonsalves De. Gente da nação. pX. p. 11.
que as capitanias prosperavam, crescia também a necessidade de as supervisionar,
aumentando o controle da coroa sobre a colônia e impedindo a proliferação das heresias, além
de averiguar os possíveis criptojudaísmos dos cristãos-novos e suas relações com os países
baixos, protestante e em guerra com a península ibérica. Desarticulando assim peças-chaves
das redes, forçando um novo deslocamento.

Fontes

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Ana de Milão, processo nº 279.

Diogo Nunes Correia, processo nº 6344.

Henrique Dias de Milão, processo nº 6677.

Manuel Nunes de Matos, processo nº 10600

Outras Fontes

SUMÁRIO das armadas que se fizeram e guerras que se deram na conquista do rio Paraíba
128
scrito e feito por mandado do mui reverendo padre em cristo Cristovao de Gouvêa visitador
da Companhia de Iesu de toda a província do Brasil. Disponível em:
http://paraibanos.com/joaopessoa/doc/sumario_das_armadas.pdf . Acesso em: 18 de setembro
de 2017.

Anexos

Anexo 1 (mapa). NOVINSKY, A. et al. Mapa 3 ––


Diáspora Sefardi. In. Os judeus que construíram o
Brasil: Fontes inéditas para uma nova visão da história. 4
ed. São Paulo: Planeta, 2017. P. 59.
Referências

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Sociedade colonial e inquisição no nordeste quinhentista. São Paulo: Alameda, 2011.

AZEVEDO, Beatriz Libano Bastos. A prática dos contratos: homens de negócio e suas redes
de comércio. VII Encontro de Pós-Graduação em História Econômica & 5ª Conferência
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BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo (séculos XV - XVIII):


vol. 2, o jogo das trocas. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

______________________. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e açúcares: política e economia na Capitania da


Parayba (1585 – 1630). São Paulo: Edusc, 2007.

MELLO, José Antônio Gonsalves De. Gente da nação: Cristãos-novos e judeus em


Pernambuco (1542-1654). 2 ed. Recife: Massangana, 1996.

MENEZES, Mozart Vergetti De. Colonialismo em ação: fiscalismo, economia e sociedade na 129
capitania da Paraíba (1647 - 1755). Edição. João Pessoa: Editora UFPB, 2012.

NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia: 1624-1654. São Paulo: Perspectiva S.A, 1972.

______________________. Os judeus que construíram o Brasil: Fontes inéditas para uma


nova visão da história. 4 ed. São Paulo: Planeta, 2017.

RAGUSA, Helena. A presença judaica na produção historiográfica brasileira: um balanço.


Cadernos do CEOM, [S.L], v. 30, n. 46, jun. 2017.

RICARDO, Silvia Carvalho. Expoentes mercantis e dinâmica de negócios: a família Dias de


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______________________. As redes mercantis no final do século XVI e a figura do


mercador João Nunes Correia. 2007. Dissertação (Mestrado em História Econômica) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2007. doi:10.11606/D.8.2007.tde-16072007-122847. Acesso em: 2017-08-24.
SILVA, Janaína Guimarães da Fonseca. Cristãos-Novos no negócio da Capitania de
Pernambuco: relacionamentos, continuidades e rupturas nas redes de comércio entre os anos
de 1580 e 1630. 2012. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco,
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130
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WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno vol. 1: A agricultura capitalista e


as origens da economia-mundo europeia no século XVI. Porto: Afrontamento, 1974.
PARTE III

ELITES,
ADMINISTRAÇÃO,
GOVERNO E PODER
NA AMÉRICA
PORTUGUESA.
FORMAÇÃO, ATUAÇÃO
E IDENTIDADE DOS
PROFESSORES RÉGIOS
EM PERNAMBUCO
ENTRE 1759 E 1825.

ELAINE CRISTINA
GOMES DA CUNHA

DOUTORANDA (UC)
O presente artigo objetiva apresentar nosso projeto de doutoramento no qual visa analisar e
compreender a formação, atuação e formação da identidade dos Professores Régios nomeados
e enviados à Capitania de Pernambuco entre 1759 e 1825 de modo a apontar a gênese da
docência enquanto carreira dentro dos quadros do funcionalismo do Estado. A escolha por tal
temática partiu dos desdobramentos de nossa Tese de Mestrado defendida em 20091, na qual
apresentamos um estudo de caso sobre o Professor Régio Manuel da Silva Coelho e os
primeiros impactos das Reformas Pombalinas na Instrução Pública em Recife. Porém, e

133
apesar de termos feito exaustivo trabalho fundamentado em fontes manuscritas e impressas, o
limite de uma dissertação de mestrado não nos permitiu aprofundar em uma maior
diversidade de objetivos e, assim, compreender melhor as alterações no ensino introduzidas
em Pernambuco.

Neste momento, é importante ressaltarmos que apesar de existirem outros sujeitos ensinando
com ou sem permissão da Coroa portuguesa, mesmo que isto fosse terminantemente proibido,
como mestres régios e docentes particulares, devido aos limites próprios de um doutoramento
aonde há a necessidade de um recorte específico para não incorrerem digressões e confusões,
optamos por nos ater apenas aos Professores Régios. Tal decisão, para além do que foi
exposto acima, relaciona-se também com o fato de apesar de terem sido criados pelo Estado
português, de terem conteúdos estipulados por ele, de serem selecionados e pagos por aquela
instituição de poder, os estudos sobre aqueles docentes ainda estão incipientes.

Compreendemos melhor as Reformas Pombalinas na Instrução Pública, no sentido das suas


legislações, da relação das mesmas com a intenção da Coroa em controlar

* A autora é doutoranda pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.


1
Cunha, Elaine Cristina Gomes da Cunha (2009). O Professor Régio, o Bispo e o Ouvidor Geral: diversos
olhares sobre a educação em Recife (1759-1772). Tese de Mestrado em História. Recife: Universidade Federal
Rural de Pernambuco.
administrativamente melhor suas colónias e os impactos que as mesmas incidiram sobre os
domínios portugueses. Entretanto, ainda carecemos de investigações que se debrucem sobre a
quantidade, localização, identificação e atuação dos Professores Régios, sobre a arrecadação e
aplicação do Subsídio Literário ao pagamento deles e sobre a relação deles com os espaços
sociais para onde foram encaminhados. É sobre esta lacuna que nosso doutoramento se
debruçará ao tratarmos dos professores enviados a Pernambuco entre a 1759 e 1825.

Retomaremos o recorte temporal abordado na nossa Dissertação, porém não nos ateremos às
discussões já apresentadas nela, mas às lacunas acima descritas, e expandiremos tanto a
cronologia quanto os debates para 1825, por ser, oficialmente, o ano da Independência do
Brasil frente à Coroa Portuguesa. Desta forma, os nossos objetivos serão a compreensão da
primeira e da segunda fase das Reformas Pombalinas na Instrução em Pernambuco, da
atuação dos diversos agentes que se relacionavam diretamente com a execução e adaptação
das mudanças do ensino assim como apresentar e analisar a gestação da identidade docente
pernambucana já no período colonial brasileiro.

Ressaltamos que não queremos afirmar que a identidade docente posta nos termos atuais é a
134
mesma que se desenvolveu entre a segunda metade do século XVIII e início do XIX. O que
pretendemos apresentar e enfatizar é que sobre os Professores Régios enviados a Pernambuco
existiram diretrizes embrionárias, sementes das relações entre um grupo de sujeitos sociais
que viram no ato de ensinar um caminho para o que posteriormente passamos a chamar de
funcionalismo público.

A escolha pela Capitania de Pernambuco pautou-se pelo fato de que, diferente do que ocorreu
com outras regiões brasileiras, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e Salvador, existe uma
continuidade mais coerente e efetiva naquela capitania que nas outras. Ou seja, Pernambuco
possui registros que contemplam as Reformas Pombalinas na Instrução desde 1759, isto é,
desde os primeiro momento das alterações, possibilitando aos historiadores da educação
compreender da melhor forma como num determinado espaço ocorreram as adaptações,
omissões e execuções em torno daquelas mudanças e, assim, perceber num entendimento em
longa duração como ocorreu a construção da identidade docente brasileira.
Para que possamos perceber aquela construção identitária e as origens de uma carreira
docente em Pernambuco entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX,
dividiremos a nossa investigação em quatro etapas: revisão bibliográfica, levantamento
documental, análise das fontes catalogadas e entrelaçamento entre registros. No primeiro
momento, é imprescindível que tenhamos um entendimento crítico a respeito do que foi
publicado em torno das Reformas Pombalinas da Instrução, do contexto histórico tanto
português quanto brasileiro naquele recorte cronológico e sobre as discussões em torno da
construção da carreira docente no Brasil.

Fazendo isto, poderemos estabelecer convergências e divergências com os debates e as


problemáticas já postas nas bibliografias e, assim, posicionarmo-nos de maneira coerente.
Na segunda etapa, faremos levantamento, catalogação e transcrição de documentos
manuscritos. Esta fase compreende um dispêndio maior de nossa parte por se tratar de um dos
momentos mais importantes da construção de nossa tese visto que será através destas fontes
que poderemos colocar a nossa problemática em torno da construção da identidade docente no
período colonial. Além disto, recorreremos a um conjunto vasto de documentos que vão desde
as leis elaboradas em torno das Reformas Pombalinas na Instrução Pública a cartas de

135
Professores Régios aonde suas práticas, angústias e denúncias sobre a falta de alunos, de
pagamentos e de interferências de autoridades coloniais em seus cursos são relatadas.

Estes documentos estão divididos em fontes manuscritas (cartas dos professores(legislação


portuguesa sobre as mudanças no ensino e manuais2) que se encontram em diversos arquivos
luso-brasileiros possibilitando-nos uma compreensão abrangente e relacional do que
aconteceu em torno das mudanças pombalinas na educação.

Dentre os acervos destacamos os documentos encontrados no Arquivo Histórico Ultramarino,


pertencente ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), cujos manuscritos referem-se
especificamente às questões administrativas e, portanto, preservam as solicitações e
reclamações das Câmaras Municipais de Pernambuco sobre a arrecadação, recebimento e
coleta do Subsídio Literário3; no Arquivo Geral da Biblioteca da Universidade de Coimbra –
especificamente as fontes primárias que se encontram no Setor de Reservados – e no Arquivo

2
Citamos como exemplo as obras de Luis António Verney, “O verdadeiro método de estudar”, e de Ribeiro
Sanches, “Cartas sobre a educação da mocidade”.
3
Imposto instituido em 10 de Novembro de 1772, cujo objetivo era o pagamento dos ordenados dos professores
assim como para a criação e manutenção das aulas régias. Ter acesso a estes registros é extremamente
importante, pois nos possibilitará levantar o montante, mesmo que aproximado, do imposto arrecadado e do
quanto foi transferido aos docentes que se encontravam em Pernambuco.
da Universidade de Coimbra. Através dos manuscritos encontrados nestes dois últimos
acervos poderemos abordar a formação dos Professores Régios enviados a Pernambuco, a
partir do cruzamento de seus nomes com as fichas de alunos daquela instituição de ensino.
Assim, poderemos contabilizar quantos eram formados em teologia ou em direito, os anos de
suas graduações, os exames que fizeram ao se candidatarem como professores e, assim, tentar
compreender as suas formações.

Em relação aos acervos brasileiros destacamos o Arquivo do Estado de Pernambuco Jordão


Emerenciano – o qual preserva algumas correspondências entre governadores, bispos e
instituições régias em Portugal – e o Arquivo Municipal 13 de Maio, especificamente o
Acervo de Obras Raras, onde tivemos acesso às coleções impressas da legislação portuguesa
o que nos permitiu, desde a Dissertação de Mestrado analisar as leis a respeito da educação
em Portugal e no Brasil.

Diante deste amplo conjunto documental, e adentrando numa terceira etapa, utilizaremos

136
recursos metodológicos pertinentes aos historiadores e às problemáticas pedagógicas. Em
outras palavras, mesmo que recorramos a instrumentos específicos a uma área de
conhecimento, nosso objetivo primordial será compreender um processo pedagógico e a
emergência de uma profissionalidade no âmbito da educação inserido num determinado
contexto histórico. A Análise Documental realizada por parte do historiador não é catalogar
ou garimpar um conjunto de registros apenas, mas é criticá-lo, questioná-lo, testá-lo de modo
a perceber o conflito entre a diversidade de fontes, de “discursos” e o que tal significa num
determinado recorte cronológico. Mesmo quando o objeto de investigação é um único texto,
não se pode ater apenas a ele como fonte para compreensão de todo um contexto histórico.
Assim, e cada vez mais, exige-se no ato da escrita historiográfica, o confronto de fontes e de
produções bibliográficas, como afirma Malerba (2006). A História não se faz mais na pura e
simples concordância entre sujeitos e suas respetivas “provas materiais e/ou imateriais”, mas
na observação da existência ou não de divergências com outros sujeitos.

Para Rüsen4, estes embates tornam-se visíveis quando o investigador procura, de forma clara,
estabelecer a “metodização” com a qual as “perguntas”, os questionamentos feitos aos
registros permitirão, mesmo que numa etapa anterior até mesmo à sua coleta – pois parte-se

4
Rüsen, Jörn. Reconstrução do passado. Brasília: Editora da UnB, 2007.
do princípio que o historiador estabelece, recorta, escolhe com antecedência o recorte
temático e cronológico de seu corpo documental – um olhar geral e provisório, porém
essencial. É neste processo de metodização que as “problemáticas” são elaboradas de modo a
apontarem hipóteses ou questões.

Assim, consolida-se a dependência dos documentos, legando às investigações historiográficas


uma faca de dois gumes: por um lado afiada diante de uma excessiva preocupação sobre as
fontes dando a elas alto grau de validade, mas, por outro lado, se o recorte e a análise sobre as
fontes não forem coerentes, o historiador termina por fragilizar-se diante da apresentação de
possibilidades documentais e analíticas mais condizentes.

Dentre as possibilidades, escolhemos a Análise de Conteúdo, que, mesmo sendo definida por
B. Berelson, como “uma técnica de investigação para a descrição objetiva, sistemática e
quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação” (Janeira, p. 371), hoje, é utilizada nas
Ciências Sociais num sentido mais amplo. Laurence Bardin 5 vai além, apontando a existência

137
de uma ambiguidade, ou seja, mesmo servindo a um propósito objetivo e quantitativo, através
de cálculos de frequência que possibilitam a captação de dados “cifrados” a Análise de
Conteúdo, através da inferência, da interpretação feita pelo pesquisador sobre esses mesmos
dados, tem o carater subjetivo que não se pode negar.

Portanto, para Bardin a Análise de Conteúdo “oscila entre dois polos do rigor da objetividade
e da fecundidade da subjetividade” (1994, p. 09). Essa “ambiguidade” atrai número cada vez
maior de investigadores que tal como “espiões”, tentam revelar mensagens e intenções
repassadas que talvez estejam escondidas. Assim, essa técnica passa a ser instrumento
“mágico” capaz de fazer dos cientistas, sejam les sociais ou de saúde, detentores da
capacidade de leitura especial das mensagens. Essa leitura não se dá de forma aleatória, mas
pautada numa rigorosa sistematização que Claudinei Campos 6 denomina de fases. Essas
etapas, ao menos as iniciais, não são distintas daquelas que o historiador faz quando está no
processo de investigação em acervos, por isto, a Análise de Conteúdo converge de imediato
com a proposta metodológica do presente projeto de doutoramento.

5
Bardin, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1994.
6
Campos, Claudinei José Gomes. Método de Análise de Conteúdo: ferramenta para a análise de dados
qualitativos no campo da saúde. In: « http://www.scielo.br/pdf/reben/v57n5/a19v57n5.pdf » Acesso em 10 de
abril de 2014.
De acordo com Campos (2004), após a recolha do conjunto documental deve-se fazer a
chamada “leitura flutuante” do mesmo a qual significa um contato geral e não muito
estruturado da documentação, neste momento, o pesquisador se permite ter impressões gerais
dos dados conseguidos. “São empreendidas várias leituras de todo o material coletado, a
princípio sem compromisso objetivo de sistematização, mas sim se tentando apreender de
uma forma global as idéias principais e os seus significados gerais” (2004, p. 613). Essa
leitura flutuante possibilita ao investigador muitas inferências e, sobretudo, uma escolha das
unidades temáticas de análise mais consistente com o conteúdo das fontes. Mais do que a fase
de recolha de documentos, determinar quais as categorias de análise é o momento crítico de
qualquer investigação qualitativa. Pois como Campos aponta, nestes trabalhos busca-se
compreender um conjunto de problemáticas e estas devem relacionar-se com aquelas
unidades, pois, a princípio, serão elas fundamentais para suas “respostas”.

Escolhidas as unidades de análises, o pesquisador passa então a categorizá-las e

138
subcategorizá-las de modo a conseguir a perceber através delas os objetivos estabelecidos
para defesa de determinada hipótese apontada pelo pesquisador previamente. Evidentemente,
que o pesquisador deve estar atento se porventura a hipótese, os objetivos ou unidades
apontarem para outros caminhos, outras abordagens ou se necessitarem de outros
instrumentos de análises.

Na quarta etapa de nosso planeamento, e após a leitura de nosso corpus documental, faremos
o entrelaçamento dos registros (manuscritos e impressos), com a revisão bibliográfica e com a
Análise Crítica do Discurso de Norman Fairclough7.

As referências bibliográficas necessárias ao embasamento do nosso doutoramento divide-se


em duas categorias da historiografia luso-brasileira: aquela que trata da política e da
administração estabelecidas pela Coroa Portuguesa no período colonial e obras referentes à
História da Educação, especificamente aquelas que se detêm sobre as Reformas Pombalinas
na Instrução Pública.

7
Fairclough, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: Editora Universitária de Brasília, 2001.
Os debates historiográficos a respeito do período colonial estão se beneficiando dos trabalhos
de autores portugueses que através de análises comparativas tentam compreender a dinâmica,
no período colonial, entre Brasil e Portugal. Dentre os autores, destacamos António Manuel
Hespanha8 e sua clássica obra, “Às vésperas do Leviathan”, na qual a tese de uma monarquia
centralizada e absoluta é questionada e em seu lugar consolida-se a perspetiva da existência
de uma monarquia corporativa na qual o poder régio é limitado por outros como a doutrina
jurídica e a Igreja Católica. Compreender como o espaço brasileiro era entendido dentro da
lógica política e administrativa entre os séculos XVIII e XIX é essencial, pois nos permite
perceber as reformas no ensino para além de um contexto pedagógico e inseri-las nos anseios
da Coroa portuguesa em consolidar seu controle sobre a sua principal colónia na América.

Naquele recorte cronológico, além da necessidade em compreendermos os espaços de poder e


como os mesmos se interrelacionam é importante entendermos a atuação dos sujeitos que
estavam à frente dessas instituições. Neste sentido, a figura de maior destaque em Portugal
entre a segunda metade do século XVIII até o fim do mesmo é Sebastião de Carvalho e Mello,

139
mais conhecido como Marquês de Pombal. Apesar da vasta literatura sobre o mesmo, o
trabalho de Kenneth Maxwell9 articula a biografia sobre aquele personagem histórico, o
contexto da época na qual ele atuou e o impacto das denominadas alterações no ensino sobre
todo o domínio português. Em “Pombal: um paradoxo do iluminismo”, Maxwell (1996)
defende que Sebastião de Carvalho e Mello foi um precursor de um despotismo esclarecido
que tentava equilibrar a filosofia iluminista (e sua consequente defesa por homens autónomos,
livres) e os objetivos de um Estado centralizador, absolutista. Apesar das contradições
inerentes às tentativas de equilíbrio, Pombal conseguiu organizar a nação especialmente após
o terremoto ocorrido em 1755 que destruiu Lisboa e regiões vizinhas.

Além desses autores, achamos pertinentes as obras de duas historiadoras: Laura de Mello e
Souza10 e Maria de Fátima Gouvêa11. Apesar de adotarem linhas teóricas um pouco distintas,
estas investigadoras analisam, através da atuação de oficiais régios, a dinâmica da
administração portuguesa no ultramar. A compreensão a respeito da atuação, delimitação de
8
Outro trabalho de referência deste autor português é Hespanha, António Manuel (org). História de Portugal:
O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
9
Maxwell, Kenneth. Marquês de Pombal: o paradoxo do iluminismo. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
10
Souza, Laura de Mello e. O sol e a sombra: política e administração na América Portuguesa do século XVIII.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
11
Fragoso, João; Gouvea, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
deveres e da importância social que os cargos administrativos possuíam entre o século XVIII
e o século XIX é essencial para percebermos a multiplicidade de sentidos em torno de uma
identidade docente enquanto carreira dentro da malha do Estado.

Laura de Mello e Souza (2006) aborda a trajetória de seis governadores com o intuito de
mostrar os princípios adotados pela Coroa na escolha, nomeação, transferência e
reconhecimento de suas ações na malha administrativa ultramarina. Apesar de se voltar para a
micro-história daqueles indivíduos, ela os inscreve na estrutura política do Antigo Regime, tal
como uma colcha de retalhos que sendo composta de diferentes partes e formas eram
costurados de modo a dar unicidade (Souza, 2006, p. 255). Ou seja, esta autora não percebe
contradição entre a política geral portuguesa e as ações empreendidas por seus agentes nas
colônias. Mesmo nos momentos de negociação, entre eles e as elites locais, as decisões dos
oficiais são vistas por aquela historiadora como ajustamentos para a melhor aplicabilidade das
ordens régias e quando são mostradas as tensões, elas partem de outros sujeitos, não dos
“zelosos” governadores que pelo bem comum e da Coroa equilibravam cuidadosamente todos
os interesses12. Apesar de acreditarmos na responsabilidade ativa dos oficiais nos
“descaminhos”, adaptações ou mesmo não execução de ordens régias, o trabalho de Souza
140
(2006) é importante para compreendermos o panorama geral no qual os agentes políticos e
administrativos estavam inseridos.

Maria de Fátima Gouvêa também se detém sobre as trajetórias dos oficiais régios, mas ao
contrário de Laura de Mello e Souza, aquela historiadora aborda as negociações e adaptações
que esses agentes empregaram no Rio de Janeiro, entre os séculos XVII e XVIII, e as
estratégias que tanto os promoviam na localidade quanto os habilitavam receber maiores
mercês e privilégios por parte da Metrópole. Esses benefícios, conseguidos através do
reconhecimento do rei pelos serviços prestados, são identificados por Fátima Gouvêa como
“economia política de privilégios”, vendo nesta prática o fundamento do controlo da
Metrópole portuguesa sobre a colónia americana.

Assim, a dinâmica do “pacto colonial” não residiria numa imposição absoluta, mas numa
“troca de favores” aonde a Coroa teria por obrigação reconhecer, através da concessão

12
Pode-se perceber melhor esta posição da autora quando a mesma trata a administração do Governador
Sebastião da Veiga Caldas. Cf. Souza (2006) pp 253-283.
daqueles privilégios e mercês, o zelo, o empenho de seus representantes, e os oficiais
deveriam cumprir suas funções de modo a consolidar a exploração do ultramar.

É neste sentido, de representantes régios que precisam construir mecanismos de negociação


de modo a alcançarem as graças da Coroa – seja pelo pagamento de seus salários seja como
proteção diante de autoridades coloniais desconfiadas das reformas pombalinas – que
compreendemos os Professores Régios. Logo, a sua identidade transita entre a obediência ao
Estado e o trabalho característico à atividade docente.

Especificamente sobre as mudanças na instrução no Brasil a partir do século XVIII, Thais


Nivia de Lima e Fonseca13 chama a atenção para uma persistente dicotomia em torno das
análises tanto das Reformas Pombalinas quanto para o seu articulador, o Marquês de Pombal.
De um lado, encontra-se um considerável número de autores – os quais essencialmente
reproduzem acriticamente obras clássicas da educação datadas antes dos anos 80 do século
XX, como os trabalhos de Otaíza Oliveira Romanelli14 e de Sergio Buarque de Holanda15 –

141
que veem nas alterações o desmantelamento de um sistema pedagógico que já perdurava por
quase três séculos e que detinha uma ampla rede de colégios. Assim, as Alterações no ensino
foram, sob todos os aspetos, um fracasso que apenas atrasou o processo histórico da educação
brasileira conseguido através da Companhia de Jesus. Por outro lado, emergem estudos que
defendem aquelas mudanças, apontando o caráter inovador que as mesmas imprimiram na
elaboração de uma nova mentalidade pedagógica. Neste grupo, podemos mencionar Laerte
Ramos de Carvalho16 que mesmo compreendendo os percalços ocorridos em torno das
medidas viu nelas elementos de mudanças essenciais para a emergência de um ensino
secularizado no Brasil.

De acordo com Fonseca, estas abordagens, apesar da importância delas nos seus contextos de
publicação, não permitem uma compreensão ampla e próxima do que se encontra nas diversas

13
Fonseca, Thais Nivia de Lima e Fonseca. “As Câmaras e o ensino régio na América Portuguesa”.
Disponível em < http://www.redalyc.org/pdf/263/26329836009.pdf> Acessado em 18 de Abril de 2014;
Fonseca, Thais Nívia de Lima e (org.). As Reformas Pombalinas no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições,
2010; Fonseca, Thais Nívia de Lima e. O ensino régio na Capitania de Minas Gerais (1772-1834). Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2011.
14
Romanelli, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil (1930-1973). 31 ed. Petrópolis: Editora
Vozes, 2007.
15
Holanda, Sergio Buarque de (Org.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I: A época colonial. 10
ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
16
Carvalho, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas na instrução pública. São Paulo: Edusp, 1978.
fontes manuscritas e impressas sobre a temática. Assim, é imprescindível, para que haja
avanço nas investigações a respeito de qualquer assunto, uma revisitação crítica e criteriosa de
acervos documentais, da bibliografia produzida para que ocorra a introdução de novas
perspetivas, tornando o debate em torno da História da Educação do período colonial
dinâmica. Neste âmbito, mencionamos Thais Nívia de Lima e Fonseca como exemplo de
investigação que se coloca à margem daquela dicotomia e tenta mostrar as singularidades das
diretrizes estipuladas pelo Marquês de Pombal nos distintos espaços brasileiros. Fonseca,
ocupa-se da seleção, nomeação e atuação dos professores régios encaminhados a Minas
Gerais a partir de 1772, apontando como, mesmo de maneira incipiente, ocorreu a formação
de um grupo que se utilizou do magistério para se inserir no corpo de funcionários da Coroa
Portuguesa.

Especificamente sobre as mudanças no ensino em Portugal, existem os excelentes trabalhos,


no âmbito da História da Educação, elaborados por Joaquim Ferreira Gomes 17 – o qual fez
importante catalogação e publicação de documentos pertinentes às mudanças da instrução e o
papel do Marquês de Pombal na elaboração delas –, Áurea Adão (1994) – que enfatiza o
crescente controlo do Estado sobre a educação visando não a construção de uma nação nos
142
parâmetros iluministas (homens de pensamento livre e autônomos), mas leal à Coroa vendo
nela o sentido de progresso – e Rómulo de Carvalho (2001) – cujo trabalho possibilita
perceber de maneira geral o contexto e o impacto das mudanças no ensino dentro da História
portuguesa.

Através destes autores, conseguimos compreender como da Metrópole surgiram as diretrizes


das mudanças e como nela foram estabelecidas de modo a observarmos convergências e
divergências entre Portugal e Brasil. Apesar de existir sobre a Capitania pernambucana uma
parte dos registros e dos impactos das Reformas Pombalinas apresentados nas obras de Ruy
Bello (1978), Laerte Ramos de Carvalho e de Adriana Paulo da Silva (2007), eles não se
debruçaram profundamente e nem se voltaram para a identificação dos Professores Régios.
Bello (1978) pertence ao grupo de autores que, imbuídos de uma aversão ao antijesuitismo do
17
Ferreira, António Gomes; Mota, Luís (2013). “A formação de professores do ensino secundário em Portugal
no século XX”. In: Revista de Educação PUC-Camp, 18(1), 115-123; Ferreira, António Gomes; Mota, Luis
(2012). “Formar professores para cumprir a educação na república: a ideologia e a ação política”. In: Neto, V.
(Org.). República, universidade e academia. Coimbra: Almedina, 2012; Ferreira, António Gomes.; Mota,
Luis. “Educação e formação de professores do ensino secundário na Primeira República”. In: Exedra Revista
Científica, n.4, 2010. Disponível em: < http://www.exedrajournal.com/docs/N4/04A-luis_mota_pp_33-48.pdf >.
Acesso em: 28 de dezembro de 2013.
Marquês de Pombal, compreenderam em suas mudanças no ensino o retrocesso da evolução
da educação brasileira. Em sua rara obra, aborda apenas o impacto negativo das mudanças
sem tratar do aspeto que foi para Pernambuco o envio dos primeiros Professores Régios ao
Brasil. Carvalho utilizou-se do caso de um único professor, Manoel da Silva Coelho, para
exemplificar os obstáculos que as alterações na instrução pública sofreram no Brasil. Porém,
não apontou o desfecho do caso, não explicou a situação do docente – que vai além de um
mero questionamento ao não pagamento de seu salário – e em confronto com outras fontes
documentais, vemos que parte das informações e datas dos registros apresentadas pelo autor
estão equivocadas18.

No livro de Adriana Paulo da Silva19, há apenas um capítulo destinado às mudanças em


Pernambuco, visto que o objetivo da autora era compreender a inserção ou não de crianças
afro-descentes em aulas públicas no século XIX. Portanto, as Alterações no ensino foram
tomadas como contexto histórico e neste sentido retomou, tal como fez Carvalho, o caso do
Professor Régio Manuel da Silva Coelho.

Em “Discurso e Mudança Social”, Norman Fairclough (2001) compreende como no mundo


143
do trabalho existem sujeitos que se especializam na produção e reprodução de discursos
voltados à mudança de comportamentos, os quais ele os denominará de “tecnólogos”. Esse
autor cita, por exemplo, os manuais para evitar acidentes em locais de trabalho em fábricas, e
procura-la entendê-las a partir do contexto em que foram produzidas, quem são os seus
produtores e quais os sentidos as mensagens neles contidas foram ou não apropriadas pelos
trabalhadores e de que forma.

Através de uma série de fontes, Fairclough (2001) elaborou uma metodologia através da qual
se pode perceber como discursos são elaborados, apropriados e reproduzidos com o objetivo
de transformar mentalidades e como esses mesmos discursos podem conter sementes de
transformação para além daquilo que a princípio objetivavam. Desta forma, passamos a
compreender os Professores Régios como tecnólogos que imbuídos de um programa

18
Sobre a análise crítica à obra de Laerte Ramos de Carvalho conferir a Tese de Mestrado de Elaine Cristina
Gomes da Cunha.
19
Silva, Adriana Maria Paulo da. Processos de construção das práticas de escolarização em Pernambuco,
fins do século XVIII e primeira metade do século XIX. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007.
pedagógico e político elaborado pelo Estado português deveriam reproduzir e defender nos
espaços para onde foram enviados.

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Veiga, Cynthia Greive. História da Educação. São Paulo: Editora Ática, 2007.
A IMPRENSA DA
REVOLUÇÃO
PERNAMBUCANA DE
1817 E SUAS IDEIAS
PRESENTES NA
CONFEDERAÇÃO DO
EQUADOR EM 1824.

FRED CÂNDIDO DA SILVA

LICENCIADO EM HISTÓRIA
(UFPE)
Introdução.
Para Glacyra L. Leite a Revolução Pernambucana de 1817 foi a “primeira rebelião que
alcançou o poder contra o domínio português e contra o sistema monárquico de governo em
território brasileiro”, pelo menos por 74 dias1. 1817 representa um conjunto de eventos
relevantes na história de Pernambuco não somente pela luta que tivera ou pelos objetivos que
se almejou alcançar, mas também, pelas ideias que foram a base do movimento. Ideias
modernas, que no Brasil estavam adentrando e causando agitações, como por exemplo, a

148
Inconfidência Mineira e Baiana, de 1789 e 1797 respectivamente.
Como todo movimento que necessita da participação maciça da população, em 1817,
eram extremamente necessárias as instalações de uma imprensa para a difusão das ideias.
Como disse o monsenhor Francisco Muniz Tavares, autor da História da Revolução de
Pernambuco de 1817, “nessa época Pernambuco não gozava do inapreciável tesouro da
tipografia”2. Homem de visão distante, letrado, com acesso às ideias presentes naquele
período na Europa e na América do Norte e que estavam entrando na América portuguesa,
sabia do alto valor em ter uma tipografia para o sucesso do movimento.
Algumas das ideias presentes nas publicações da imprensa instalada em 1817
sobrepuseram as barreiras do tempo e atravessaram sete anos, chegando à Confederação do
Equador. Um pouco modificadas, interpretadas de maneira diferente, mas, bastante atuais para
a utilização por aqueles que seriam os responsáveis “teóricos” do movimento, destacando-se
Cipriano Barata e frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Vale ressaltar que este último foi
participante direto da sedição em 1817, “acusado de aprender o exercício de soldado; [...] de

* O autor é licenciado em História pela Universidade Federal de Pernambuco.


1
LEITE, Glacyra L. Pernambuco 1817: Estrutura e comportamentos sociais. Recife: Fundaj, Ed. Massangana,
1988, p. 07.
2
TAVARES, Francisco Muniz. História da Revolução de Pernambuco de 1817. Recife: Governo do Estado,
Casa Civil de Pernambuco, 1969, p. 64.
ser declamador; [...] de oferecer-se para missionar; [...] de ser Capitão de Guerrilhas; de ir no
exército do sul para missionar; de fugir com os rebeldes e na debandada ser preso”3.
A ligação ideológica entre esses dois movimentos se dá principalmente no que diz
respeito ao federalismo, à autonomia e ao republicanismo, ideias que serão analisadas no
decorrer do trabalho. Mas primeiramente, será abordada a Oficina Tipográfica da Segunda
Restauração de Pernambuco, assim denominada fazendo alusão à Restauração Pernambucana
de 1654 contra o domínio holandês.

1. A imprensa dos revolucionários de 1817.


Para o viajante e comerciante francês Louis-François de Tollenare, em nota do dia
trinta de março de 1817, “não havia imprensa em Pernambuco; mandaram vir uma de Londres
no mês de janeiro último; presentemente não sabem onde achar operários para fazerem
trabalhar”4. Para Pereira da Costa, em seus Anais Pernambucanos, esta tipografia foi colocada
em funcionamento em 28 de março daquele ano e o comerciante Ricardo Fernandes Catanho
teria sido o responsável pela vinda das instalações 5. Quanto à licença para funcionamento,
esta teria sido fornecida desde nove de novembro de 1816 a esse mesmo comerciante6. Mas,
porque esta tipografia permaneceu quase quatro meses inoperante?
149
Tomando como referência o texto de Tollenare visto acima, percebe-se que não
haviam pessoas hábeis para o manuseio das instalações. Pereira da Costa corrobora esta ideia:
“[Ricardo Fernandes Catanho] apesar de obter a necessária licença régia para trabalhar, não o
conseguiu à falta de pessoal habilitado para semelhante fim [...]”7. Desse modo, a oficina
tipográfica teria iniciado seu funcionamento na medida em que elevou-se a necessidade dos
revolucionários em utilizar tal meio de difusão de ideias.
Uma vez instalada, a Oficina Tipográfica da Segunda Restauração de Pernambuco
inicia sua produção material com a publicação do Preciso8. Entretanto, vários outros textos
3
Documentos Históricos da Biblioteca Nacional (DHBN). Vol. 106, 1954, p. 150.
4
TOLLENARE, Louis-François de. Notas Dominicais. Recife: Secretaria de educação e cultura, Coleção
Pernambucana, vol. 16, 1978, p. 154.
5
COSTA, Francisco A. P. da. Anais Pernambucanos. Recife: Governo de Pernambuco, Coleção Pernambucana,
2º fase, 2º edição, vol. VII, 1983, p. 394.
6
COSTA, Francisco A. P. da. Estabelecimento e desenvolvimento da imprensa em Pernambuco. In: Revista do
IAHGP. Recife: 1891, nº 39, pp. 25-41, pp. 28-29.
7
COSTA, Francisco A. P. da. Op. cit., 1983, p. 394.
8
TAVARES, Francisco Muniz. Op. cit., p. 64. Este documento contém uma descrição dos eventos do dia 6 ao
dia 10 de março de 1817 e também um forte caráter ideológico, o qual fala de classe, revolução, república e
outros termos. No IAHGP há dois originais dele. Parece que em um primeiro momento foram impressos com o
brasão de Portugal para frente – pois só tinham papéis com este brasão –, em um segundo momento, foram
impressos com o brasão para baixo e no verso do papel para não mostrá-lo – demostrando a preocupação em
evitar as interpretações que a contradição traria.
foram publicados e, versam sobre temas diversos. Temos que lembrar que essa imprensa na
qual estamos falando não se trata de uma imprensa periódica e com o fim único de produzir
material informativo. As tipografias eram utilizadas também para a produção de documentos
oficiais do governo estabelecido no poder. Desse modo, os revolucionários utilizavam essa
oficina tipográfica recém-instalada para imprimirem documentos que buscavam tranquilizar
os ânimos na região, angariar apoio nos arredores, estabelecer normas, extinguir impostos etc.
Ao fim do movimento, após a derrota dos revolucionários, a Corte publicou um aviso
em 15 de setembro de 1817, assinado por Tomás Antônio Vila Nova Portugal, solicitando ao
então Governador Luís do Rego Barreto que remetesse a tipografia para o Rio de Janeiro. O
aviso dizia: “tomando o governo em consideração o infame abuso que se fez da oficina
tipográfica em Pernambuco, houve por bem cassar a licença que concedeu por aviso de 9 de
novembro de 1816 para o seu estabelecimento”9.
A tipografia foi apreendida e por meio de um ofício em 8 de novembro de 1817 o
inspetor do Trem Real, tenente-coronel Raimundo José da Cunha Matos, enviou para o
governo da província o inventário do que foi encontrado na tipografia. Mesmo com a ordem e

150
o inventário a tipografia ainda tardou para ser remetida. Em 16 de setembro de 1818 é
possível ver um ofício em que consta a reclamação do Ouvidor-Geral da comarca, Antero
José da Maia e Silva, em relação ao não envio da tipografia. Nesse mesmo dia o Inspetor do
Trem publica uma portaria com a demanda de enviar as instalações da oficina tipográfica
através do brigue Gavião, porém, esta ordem ainda não seria acatada10.
Para Oliveira Lima “[...] havia pouca vontade de obedecer, por parte do governo
provincial, o qual era natural que não quisesse abrir mão de um elemento tão útil à
administração e cuja ausência se não podia mais conceber numa comunidade culta” 11. Mesmo
considerando válida essa possibilidade de motivação elencada pelo historiador pernambucano,
entendemos que não há como saber o real motivo. O que se sabe é que a tipografia só viria a
ser remetida ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1819, onde foi entregue ao Conde dos Arcos,
tornado ministro dos negócios da marinha e ultramar após comandar a repressão à revolução.
Entretanto, “ficara, porém, ‘boa porção de tipos’ e, para aproveitá-los, o Governador Luiz do

9
COSTA, Francisco A. P. da. Op. cit., 1983, p. 397.
10
Idem, pp. 397-398.
11
LIMA, Manuel de Oliveira. Nota LIII. In: TAVARES, Francisco Muniz. Op. cit., p. 326.
Rego autorizou, em 1821, a construção de um prelo de madeira, no qual veio a imprimir-se a
Aurora Pernambucana”12.

2. As ideias nas publicações da Oficina Tipográfica da Segunda Restauração de


Pernambuco.
Agora passemos a analisar algumas publicações, isso, com o intuito de encontrarmos
ideias dos revolucionários de 1817. A primeira seria uma proclamação de 31 de março de
1817, assinada pelos padres Bernardo Luiz Ferreira Portugal, Manuel Vieira de Lemos e João
Ruiz de Mariz, que assinam como “Os patriotas”13. Nesta proclamação, sob a forma de
pastoral, tenta-se legitimar a Revolução de 1817 frente a um suposto poder divino. A alegação
principal dos padres é a de que houve uma espécie de rompimento de contrato entre os
portugueses e os brasileiros, contrato este que teria sido estabelecido quando da expulsão dos
holandeses em 1654.
É de natureza de todos os contratos bilaterais de boa fé extinguirem-se todas
as vezes que os sócios faltam às condições estipuladas. [...] Os reis
portugueses faltaram a todas as obrigações que contraíram, despojando-nos
de nossos inalienáveis direitos. [...] Concedida pelos nossos próprios
esforços a restauração deste belo país, do poder batavo, e tendo nós a
generosidade de o entregar a João IV que se não atreveu a defendê-lo, e
151
menos a restaurá-lo: entrando esse chefe em si, prometeu por atos solenes,
assim como o seu sucessor, de não nos incomodar com os tributos, e não
14
mandar para a administração pública e força armada gente exótica . (Grifo
nosso).

A ação dos revolucionários em extinguir impostos foi enorme e pode ser vista em
outras publicações, por exemplo, o Decreto de abolição de impostos como subsídio militar e
os estabelecidos pelo Alvará de 20 de outubro de 181215. Este tinha implantado tarifas sobre
seges, lojas e embarcações para a criação de um fundo de capital do Banco do Brasil 16. Outro
exemplo seria as reclamações em relação aos prensários. Esses eram os intermediários pelos
quais o algodão tinha de passar para ser exportado. Ter uma prensa significava ter um lucro
avolumado, mais que isso, ter certo controle sobre os preços de compra e de venda do
produto. Os prensários compravam o algodão, prensavam-no e vendiam-no aos que faziam a

12
NASCIMENTO, Luiz do. História da Imprensa de Pernambuco (1821-1954). Recife: Editora da UFPE
(chamada anteriormente de Imprensa Universitária), vol. 01, 1968, p.10.
13
MELO, Mário. O governo eclesiástico na Revolução de 1817. In: Revista do IAHGP. Recife: 1952. Vol. XLII
(1948, 1949), pp. 90-95.
14
Idem, pp. 91, 92 e 93.
15
Revista Trimensal do Instituto do Ceará, Coleção Studart, documentos da Revolução de 1817, ano XXXI,
1917, doc. VIII, pp. 22-23.
16
Coleção Leis do Brasil de 1812. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891, pp. 64-67.
ponte entre a América portuguesa e a Europa. Os produtores, sem outras opções, tinham de se
submeter aos preços oferecidos, ainda mais quando esses monopolistas demoravam em
efetuar a compra, segurando o comércio e pressionando os produtores a aceitarem os preços
que algumas vezes eram 500 a 600 réis a menos por arroba. Os produtores, com despesas a
serem pagas, acabavam aceitando as ofertas17. Ao que parece, muitas vezes a ideia de
autonomia em 1817 estava interligada diretamente com a liberdade tributária e de comércio.
No plano de estruturação do Governo Provisório estavam elencadas as tentativas de
angariar apoio ao movimento. Aos Estados Unidos enviou-se Antônio Gonçalves da Cruz, o
Cabugá. Ao governo inglês, tentou-se entrar em contato por meio de Hipólito José da Costa,
jornalista residente em Londres, responsável pela publicação do Correio Braziliense 18. Ao
governo argentino, enviou-se um emissário, Félix Tavares de Lima. E para Moçambique,
chegou-se a fretar um navio para levar uma carta ao Capitão-General, que nesse período era
José Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque19.
As buscas de apoio internamente também estavam na ordem do dia dos
revolucionários. À Bahia, a tentativa se deu em forma de resposta a uma das três

152
proclamações do Conde dos Arcos, mais especificamente à primeira, em que ele afirma que
cada cidadão da Bahia seria soldado do rei20. Diz a proclamação dos pernambucanos, não
datada e denominada de Denodados Patriotas Baianos: “Ah! Corai Baianos, correi-vos da
injúria que faz a vosso entendimento, e a vosso coração o vosso proclamador; não pode ser o
dever de um povo nobre e generoso fidelidade a um déspota baixo e opressor” 21. Mesmo com
tal chamado, o povo baiano não aderiu à causa. Pelo contrário, dela viera a principal repressão
à revolução sob o comando do mesmo conde.
Não só à Bahia os pernambucanos se dirigiram por meio de proclamações impressas
na oficina tipográfica, esta também imprimiu uma proclamação que teve como destinatário o
povo cearense, cujo título foi Habitantes do Ceará povo brioso. Este texto trata de tentar
inflamar ainda mais os cearenses contra o poder real e, conseguir apoio além da região do
Crato. Clama ao Ceará ser o segundo a lutar contra a tirania real, dizem os pernambucanos:
Habitantes do Ceará, nós vos estendemos os braços; se imperiosas
circunstâncias vos não permitiram ser os primeiros em proclamar os
imprescritíveis direitos do homem, sede ao menos os segundos. [...] correi
aos braços dos vossos irmãos, muni-vos de coração e de vontade com os

17
DHBN, vol. 107, 1957, pp. 261-262.
18
DHBN, vol. 101, 1953, pp. 19-21.
19
LEITE, Glacyra L. Op. cit., pp. 214-225.
20
DHBN, vol. 101, 1953, p. 40.
21
Revista Trimensal do Instituto do Ceará, Op. cit., ano XXXI, 1917, doc. XXII, p. 44.
vossos amigos naturais. Jurai conosco que ou seremos um povo
22
independente e respeitável, ou morremos, porém vingados .

Denis A. M. Bernardes, em seu trabalho intitulado Pernambuco e sua área de


influência: um território em transformação (1780-1824), demonstra que Pernambuco por este
período era o centro econômico da região, cujo porto do Recife possuía grande movimento.
Ele nos diz que dentre as capitanias do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e
Pernambuco, esta última possuía a posição mais forte economicamente e, além disso, exercia
grande influência sobre aquelas por causa do “[...] papel exercido como principal porto
exportador e importador para o mencionado território”. Segundo o mesmo autor,
“praticamente toda a exportação e importação das capitanias do Ceará, Rio Grande do Norte e
Paraíba passavam pelo porto do Recife”23. Para George F. C. de Souza, essa centralidade
econômica do Recife se revertia também em uma centralidade política:
Essa interferência econômica tem como contrapartida uma interferência
política, pois as ações do poder municipal podiam representar a ampliação
ou a retração da lucratividade de determinadas atividades ou zonas
produtoras. Isto é, um grande centro consumidor acaba por assumir um papel
24

153
político proporcional ao seu potencial econômico . (Grifos nossos).

Logo, as capitanias que mais dependiam do porto do Recife e de Pernambuco sofriam


também uma interferência política advinda desta. Justamente essas capitanias foram as que
aderiram ao movimento, ainda que em parte, como é o caso do Ceará, com a região do Crato.
Ainda que não fosse explícito em 1817 ou talvez ainda não estivesse consciente entre os seus
participantes, a ideia de federação parece que já estava presente, e a união dessas regiões sob
a bandeira anticolonial sinaliza para esta conclusão.
Outro documento produzido pelos revolucionários foi o já falado Preciso. Ele foi
estruturado em nove parágrafos, os quais mesclam-se os ideais revolucionários, as críticas ao
poder até então estabelecido e as informações do dia seis ao dia dez de março. É possível
encontrar termos que foram utilizados em várias outras documentações dos revolucionários,
mas, em nenhum documento há uma reunião de diversas críticas e uma descrição com forte
teor ideológico quanto no Preciso. Vemos no título e no fim do documento a “construção” do

22
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Academia de Ciências de Lisboa (ACL), Conselho Ultramarino (CU),
Cx.278, doc. 18736.
23
BERNARDES, Dennis A. M. Pernambuco e sua área de influência: um território em transformação (1780-
1824). In: JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005,
p.400.
24
SOUZA, George F. C. de. Saciar para manter a ordem e o bem público: a Câmara Municipal do Recife e o
problema do abastecimento da Vila (séculos XVIII e XIX). Locus: Revista de História, Juiz de Fora, vol. 20, nº
01, 2014, pp. 111-127, pp. 115-116.
alvo contra o qual lutavam os revolucionários, no título: “Preciso dos sucessos que tiveram
lugar em Pernambuco desde a faustíssima e gloriosíssima Revolução operada e felizmente na
praça do Recife, aos seis do corrente mês de março, em que o generoso esforço dos nossos
bravos PATRIOTAS exterminou daquela parte do Brasil o monstro infernal da tirania real”.
No fim: “Viva a Pátria, vivam os patriotas e acabe para sempre a tirania real”25. (Grifos
nossos). No primeiro parágrafo também é possível ver esse alvo: “Depois de tanto abusar da
nossa paciência por um sistema de administração combinado acente para sustentar as vaidades
de uma corte insolente”. (grifo nosso).
O “Preciso” também fala que “a 8 se instalou o governo provisório composto de 5
patriotas tirados de diferentes classes”. (Grifo nosso). Entretanto, essas “diferentes classes”
pareciam não abranger a participação de componentes sociais não dominantes, ou seja, tinha-
se a falta do povo. Segundo Tollenare:
Não se vê nenhum entusiasmo, nenhum transporte entre o povo, que parece
crer só ter sido a revolução dirigida contra o governador e não contra o
príncipe; os novos governantes só pronunciam a palavra república em voz
baixa e só discorrem sobre a doutrina dos direitos do homem com os
iniciados. Parecem confessar que ela não seria compreendida pela canalha
26

154
[povo] .

Carlos G. Mota analisando a mentalidade de Antônio Luís de Brito Aragão e


Vasconcelos, advogado dos revolucionários, considera que o povo era formado por “‘lojistas’,
‘caixeiros de botequim’, ‘marchantes’, ‘camponeses que viviam de caça’, a ‘soldadesca’, os
‘rendeiros’, pequenos negociantes e até cirurgiões, sobretudo os do interior, como os
‘empíricos’ de Goiana”27. Quanto aos escravos, esses eram considerados juridicamente um
bem28. Tomando a referência de Tollenare, para além da junta, o povo parece não ter
participado da república que se propôs formar os revolucionários.
A última publicação produzida na Oficina Tipográfica da Segunda Restauração de
Pernambuco que vamos analisar é a Declaração dos Direitos Naturais, Civis e Políticos do
Homem. Pelo título já se vê a forte inspiração francesa, na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789. A declaração dos revolucionários pernambucanos é composta
por 32 artigos. O primeiro, já introduz do que o restante da declaração irá tratar: “Artigo 1º.

25
NASCIMENTO, Luiz do. Op. cit., 1968, vol. 01, p. 10, nota 1 do prefácio à primeira edição.
26
TOLLENARE, Louis-François de. Op. cit., p. 142.
27
MOTA, Carlos G. Nordeste 1817: Estrutura e argumentos. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1972.p. 242.
28
FRANÇA, Wanderson Édipo de. Gente do povo em Pernambuco: da Revolução de 1817 à Confederação de
1824. Clio – Revista de pesquisa histórica. Universidade Federal de Pernambuco, nº 33.1, 2015, pp. 23-44, p. 25.
Os Direitos naturais, civis e políticos do homem são: a liberdade, a igualdade, a segurança, a
propriedade e a resistência à opressão”29.
De uma maneira geral, Os artigos valorizam a liberdade, tratam da soberania nacional
e da resistência à opressão. O Artigo 5º estabelece, por exemplo, que “a liberdade de
imprensa, ou qualquer outro meio de publicar estes sentimentos não pode ser proibido,
suspenso nem limitado”. Sentimentos esses sobre qualquer objeto, segundo o Artigo 4º. No
Artigo 30º, há o direito de resistir: “os homens reunidos em sociedade devem ter um meio
legal de resistir à opressão”. O Artigo 31º trata de dizer quais são os momentos em que há
opressão: “[...] quando uma lei é violada pelos funcionários públicos na sua aplicação aos
fatos individuais. [...] quando os atos arbitrários violam os direitos dos cidadãos contra
expressão da lei”30. Este documento, como se verá a seguir, é o maior exemplo dessa
passagem de ideias de 1817 para 1824.

3. 1817 e 1824, algumas ideias publicadas.


Se em 1817 as ideias da revolução eram publicadas pela oficina tipográfica falada
acima, em 1824 coube principalmente ao frei Joaquim do Amor Divino Caneca, por meio de
seu Typhis Pernambucano, a difusão das ideias da Confederação do Equador. Embora sejam
155
dois períodos distintos – no primeiro, o Brasil como parte da monarquia pluricontinental
portuguesa e no segundo, o Brasil sob o governo imperial, já independente – e dois alvos
também diferentes – em 1817 o alvo principal era a Coroa portuguesa, em 1824 o Imperador
no Rio de Janeiro –, as bases ideológicas dos dois movimentos são no mínimo, parecidas,
quando não, iguais.
A declaração que acabamos de ver, em 1817 intitulada de Declaração dos Direitos
Naturais, Civis e Políticos do Homem, toma outro título em 1824: Bases para a formação do
pacto social redigidas por uma sociedade de homens de letras 31. Embora esse documento
apareça no Typhis em 1 e 15 de julho de 1824, logo, com autoria atribuída ao frei Caneca, no
Arquivo Histórico Ultramarino ele se encontra nos documentos referentes à Revolução de
1817, como vimos, com outro título e, além disso, sem assinatura e sem datação32.

29
AHU_ACL_CU, Cx.278, doc. 18736.
30
Ibid.
31
CANECA, frei Joaquim do A. D. In: MELLO, Antônio Joaquim de. Obras políticas e literárias de frei
Joaquim do Amor Divino Caneca. Recife: Assembleia Legislativa de Pernambuco, 3º edição, 1979, (1º edição,
1875), pp. 586, 587, 598 e 599.
32
AHU_ACL_CU, Cx.278, doc. 18736.
É necessário fazermos alguns esclarecimentos. Esse texto, pelo que parece, não foi
publicado primeiramente em 1824, mas sim, em 1817. Isto levanta alguns questionamentos
importantes! A autoria seria mesmo ou tão somente de frei Caneca, já que é possível que esse
texto tenha sido construído por mais de uma pessoa? Porque teria frei Caneca modificado o
título do mesmo quando de sua publicação em 1824? Teria sido mesmo escrito e publicado
em 1817?
Sobre esse último questionamento, a frase “Na Oficina Typographica da Republica de
Pernambuco 2º vez Restaurada [sic.]” constante no fim do documento acena para a impressão
em 1817, pois, assim ela era denominada: “Dos poucos productos que restam da typographia
republicana de 1817, vê-se que ella denominava-se Officina Typographica da 2º Restauração
de Pernambuco; [...] Na Officina Typographica da Republica de Pernambuco 2º vez
Restaurada [sic.]”33. Provavelmente se impressa, teria sido publicada. Aos outros
questionamentos, sobram suposições. Segundo Evaldo Cabral de Mello, se referindo ao frei,
a despeito das relações que mantinha com muitos dos revolucionários desde
os tempos do Seminário de Olinda, não há referência a participação sua nos
acontecimentos inaugurais da sedição de 6 de março, como a formação do
governo provisório. [...] Sua presença só se detecta nas últimas semanas de
existência do regime, ao acompanhar o exército republicano que marchava
ao sul da província a enfrentar as tropas do conde dos Arcos, ocasião em
156
34
que, segundo a acusação, teria exercido de capitão de guerrilhas .

Para Evaldo, em 1817 não teria ele participado da confecção – tampouco publicação –
do referido documento, já que teria participado tão somente acompanhando o exército
republicano. Para Denis A. M. Bernardes “não há qualquer registro de seu pensamento
político anterior a 1822, salvo o contido nos autos da devassa de 1817, que não é
propriamente a documentação ideal para o exame do seu pensamento”35, desse modo, poderia
o frei não ser o autor do texto.
Quanto à modificação do título, poderia ter sido ela uma reatualização para o momento
em que a província e o Império estavam vivendo. Essa reatualização passa diretamente pela
ideia de pacto social. Como nos mostra Denis A. M. Bernardes em texto já citado:
Em frei Caneca, a ideia do pacto social não é mero recurso ornamental de
clérigo lido e informado. Alimenta posições políticas concretas, alimenta-se
delas. [...] O processo da Independência foi uma ocasião privilegiada para
reatualizar o pacto social, reatualização que encontrou na escrita da
Constituição seu momento maior e fundante. Foi como um nascimento, mas
um nascimento projetado pela razão, construído pela vontade livre e
33
COSTA, Francisco A. P. da. Op. cit., 1983, pp. 30-31.
34
MELLO, Evaldo Cabral de. Caneca, Frei Joaquim do Amor Divino. São Paulo: Ed. 34, 2001, p. 15.
35
BERNARDES, Denis A. M. Pacto social e constitucionalismo em frei Caneca. Estudos avançados 11 (29).
USP, 1997, pp. 155-168, p. 155.
soberana de sujeitos políticos – os cidadãos –, despojados da antiga e odiosa
36
condição de súditos .

A ideia de pacto social para o frei não aparece somente em suas Bases para a
formação do pacto social redigidas por uma sociedade de homens de letras, mas também na
Dissertação sobre o que se deve entender por pátria do cidadão, e deveres deste para com a
mesma pátria. Frei Caneca procura demonstrar a relação que os cidadãos devem ter com a
pátria, quais os seus deveres. Mais que isso, fundamenta as origens das rivalidades entre os
brasileiros e os portugueses, destacando o papel de 1710 e 1817. Esta dissertação teria sido
escrita em 182237. Enfim, em relação a esse documento, não podemos fazer acusações ao frei,
pois, possivelmente ele pode ter sido um dos autores ou o autor. Entretanto, convergindo com
a seriedade do trabalho historiográfico apresentado neste texto, era necessário levantarmos
tais questionamentos acerca da origem do texto supracitado.
Em termos gerais, o movimento de 1817 utilizou a seu bel prazer as ideias advindas da
Ilustração, da Revolução Francesa e da Independência norte-americana. Além disso, um ponto
crucial na ideologia de 1817 se encontra na Restauração Pernambucana frente aos Flamengos.
Segundo Luiz G. Silva, “claro está que a primeira restauração fora àquela empreendida no 157
século XVII contra o domínio holandês, ao passo que a segunda era a vivida em inícios do
século XIX, a qual dava fim ao domínio da monarquia portuguesa sobre o mesmo
território”38. O panteão restaurador do século XVII sempre fora evocado de maneira veemente
pelos revolucionários de 1817, já que se considerava 1817 como a segunda restauração. Esse
panteão “servia, sobretudo, para estimular a adesão da larga camada social constituída pelos
negros livres da província à causa revolucionária”39.
Em 1824 ainda se encontravam traços dessa influência advinda da Restauração. No
primeiro número de seu Typhis, é para esse panteão que frei Caneca se volta: “[...] eu levanto
a voz do fundo da minha pequenez, e te falo, oh Pernambuco, pátria da liberdade, asilo da
honra e alcaçar da virtude! Em ti floresceram os Vieiras, os Negreiros, os Camarões e os Dias,
que fizeram tremer a Holanda, e deram espanto ao mundo universo”40. Ainda que a evocação
ao panteão restaurador em 1824 possa constituir uma “[...] evocação genérica, um discurso
vago, que visava aglutinar em torno dos autonomistas setores descontentes com o projeto do
36
Idem, p. 159.
37
CANECA, frei Joaquim do A. D. In: MELLO, Antônio Joaquim de. Op. cit., pp. 185 e 181.
38
SILVA, Luiz Geraldo. ‘Pernambucanos, sois portugueses!’: Natureza e modelos políticos das revoluções de
1817 e 1824. Almanack Braziliense, n°01, pp. 67-79, maio de 2005, p. 70.
39
Idem, p. 71.
40
CANECA, frei Joaquim do A. D. In: MELLO, Antônio Joaquim de. Op. cit., p. 417.
Rio de Janeiro”41, ela não deve ser descartada das características identitárias do movimento.
Tanto é que, as províncias que compunham a confederação foram participantes diretas de
1817, como nos lembra Luiz G. Silva:
A adesão das “Províncias do Norte” à causa pernambucana, retomada depois
em 1824, não repousava apenas no fato de o Recife constituir o único porto
de escoamento e o principal entreposto comercial para seus produtos. Ela
também se assentava na filiação histórica, na experiência da restauração.
Afinal, não apenas em Pernambuco, mas também na Paraíba, Rio Grande do
Norte e Ceará havia “netos dos Vieiras, dos Negreiros, dos Henrique Dias e
42
dos Camarões” .

A busca pela autonomia é outro ponto de discussão que envolve os dois movimentos.
Em 1817 essa busca parece que se deu mais no âmbito econômico. A luta para se desgarrar
dos impostos que incidiam sobre a província era enorme. Por sua vez, em 1824, a busca seria
por uma maior autonomia política. Não que em 1817 não tenha tido essa busca no âmbito
político ou em 1824 no âmbito tributário, mas essa diferença é bastante visível. No caso de
1824, a tentativa era de recuperar a autonomia que tivera entre 1821 e 1822. Essa autonomia
foi conseguida da seguinte forma segundo Marcus J. M. de Carvalho (1998, s/p):
O resultado prático mais imediato da revolução do Porto foi a demissão dos
governadores provinciais, nomeados pelo rei, e a formação de Juntas
Provisórias de governo, eleitas pelas Câmaras. [...] As províncias ganharam
158
mais autonomia do que tinham antes, ou mesmo do que viriam a ter durante
o resto do período imperial. O governo local foi de fato exercido durante este
curto período, entre 1821 e 1822. [...] ficava claro para os federalistas
pernambucanos que o aumento do poder do príncipe regente – ou mesmo a
separação de Portugal, sob a liderança do Rio de Janeiro – significaria a
perda da autonomia conquistada, a volta ao status quo ante, com as mesmas
famílias no mando local, e um governo autoritário e centralista na capital do
império. Em outras palavras, haveria uma internalização do sistema
43
colonial .

Com a independência e a centralização no Rio de Janeiro, a autonomia provincial é


perdida. Mais que isso, a desconfiança para com essa cidade aumenta, pois não surgira em
1824, mas sim, em 1817. Ainda quando a corte portuguesa estava instalada naquela cidade, as
reclamações já eram inúmeras. A carga fiscal que incidia na província pernambucana após a
instalação da Corte era enorme, Evaldo Cabral de Mello descreve esse peso:
[...] os tributos exigidos a partir da instalação da Corte no Rio, como a
contribuição anual de 40 mil cruzados para a reconstrução de Portugal, o
imposto sobre o algodão, equivalente a 10% do seu valor, gravando-o
duplamente de vez que ele já pagava o dízimo, e a imposição destinada à
41
SILVA, Luiz Geraldo. Op. cit., p. 73.
42
Idem, p. 71.
43
CARVALHO, Marcus J. M. de. Cavalcantis e cavalgados: a formação das alianças políticas em Pernambuco,
1817-1824. Revista Brasileira de História. São Paulo: Vol. 18, nº 36, 1998, s/p.
iluminação pública do Rio, que se tornou o símbolo da espoliação fiscal aos
olhos da gente de terra, e à manutenção da Junta de Comércio ali erigida. [...]
na sua condição de ‘parasito do Império português’, o Rio atraiu ‘o ódio de
44
todas as províncias’ .

Com a independência sob um governo monárquico, consequentemente a perda de


autonomia provincial, acentuam-se as rivalidades locais e dificultam as relações entre o norte
e à capital. Quando da dissolução da Assembleia Constituinte em 12 de novembro de 1823
por D. Pedro I, essas rivalidades tomam proporções que dificilmente seriam controladas.
Pouco mais de um mês depois surge o Typhis Pernambucano, com críticas à atitude de Pedro
e com sua famosa frase “Acorda, pois, oh Pernambuco, do letargo em que jazes! Atenta os
verdadeiros interesses, vê o perigo; olha o medonho nevoeiro que se levanta do sul, e que vai
desfechar em desastrosa tempestade”45.
Na esteira que iria culminar com o movimento de 1824, a defesa acerca da autonomia
possuía outra voz além do frei Caneca, a de Cipriano Barata em seu Sentinela da liberdade na
guarita de Pernambuco. Na edição do dia 8 de junho de 1823, ele nos diz: “nós não temos
feito este Império para meia dúzia de famílias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais
desfrutarem (...) nós somos livres, as províncias são livres, o nosso contrato é provisório e não 159
está concluído”46. É por meio dessa ideia de autonomia que os “teóricos” de 1824 vão agarrar-
se ao federalismo. Possuir independência política e jurídica estava na ordem do dia dos
revoltosos. Para Cipriano Barata:
Cada província precisa fazer suas Leis particulares, seus arranjos em
separado, o que só deve ser organizado dentro delas pelos seus naturais
governos privativos; havendo em separado Leis gerais que faça, a união
Imperial, e eis aqui a Federação. As Províncias são livres e Confederadas em
47
forma imperial, e não escravas [...] .

Em 1817, além da já falada ausência do povo na república, não se vê um teórico que


disserte sobre ela e muito menos como deveria ser implantada. Percebe-se que os textos
consideravam a tentativa de estabelecimento dessa forma de governo, no entanto, a ideia de
república vem diretamente das influências dos revolucionários, como já dissemos, Ilustração,
Revolução Francesa e Independência norte-americana. Importante abrir um parêntese nesse

44
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo:
Ed. 34, 2004, p. 29-30.
45
CANECA, frei Joaquim do A. D. In: MELLO, Antônio Joaquim de. Op. cit., p. 417.
46
LEITE, Glacyra L. Pernambuco 1824: a Confederação do Equador. Recife: Fundaj, Ed. Massagana, 1989, p.
118.
47
BARATA, Ciprinao. In: MOREL, Marco. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade. Salvador: Academia de
Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2001, p. 118.
momento do texto. Devemos atentar também, como demonstrou Luiz G. Silva em artigo
citado, para a influência dos movimentos da América hispânica na luta contra o jugo colonial,
mormente para os projetos políticos presentes na região da Bacia do rio da Prata. Tomando
por base as obras de Antônio Joaquim de Mello – como, por exemplo, as biografias de
Gervásio Pires e de José da Natividade Saldanha – Luiz G. Silva efetua essa demonstração,
para ele,
há que se conferir o devido destaque aos acontecimentos do Prata, os quais
forneceram aos revolucionários de Pernambuco, graças à sua proximidade
temporal, espacial e cultural, certas formas institucionais — como a Junta de
Governo Provisório — e uma noção, apenas aparentemente confusa, de
48
federalismo .

Tal noção faz parte também de 1817. Não atoa Marcus J. M. de Carvalho dirá que “a
origem do federalismo moderado em Pernambuco também remonta a 1817”49. Em 1824 o
federalismo representou o principal aspecto da república. Para o frei Caneca:
O Brasil tinha e tem todas as proporções para formar um estado federativo.
A grandeza do seu território, as diversíssimas riquezas do seu solo, os
diversos caracteres dos povos que o habitam, que formam tantas nações
diferentes, quantas as suas províncias, a simplicidade de seus costumes, que
os habilitam para a prática das virtudes republicanas, [...] a sua localidade
entre governos republicanos .
50 160
Além de falar sobre virtudes republicanas, não esqueçamos que ele propõe um pacto
social dos cidadãos com a pátria e vice-versa. Neste, a república é tema central, para não
delongarmos, citemos uma passagem: “Não tem mais preço o sangue e vida dos filhos na
estima de um virtuoso pai patriota, se se trata do bem da república”, além disso, todo homem
deve sacrificar sua vida para “[...] à conservação e bem da república; e é desta maneira que ele
se faz caro à pátria, e credor da imortalidade”51. A república, tanto em 1817 quanto em 1824,
não buscava fornecer direitos aos componentes sociais, mas sim, autonomia, seja ela política
e/ou econômica/tributária, por isso, a ideia de federalismo foi muito presente.

Considerações finais.
Alguns dos ideais presentes em 1817 e, que tiveram seara para publicação a Oficina
Tipográfica da Segunda Restauração de Pernambuco, em 1824 tiveram lugar no Typhis
Pernambucano e no Sentinela da Liberdade. São imprensas diferentes, entretanto, exerceram
a mesma função, qual seja, publicar as ideias dos insurgentes. Se em 1817 a oficina
48
SILVA, Luiz Geraldo. Op. cit., pp. 76-77.
49
CARVALHO, Marcus J. M. de. Op. cit., s/p.
50
CANECA, frei Joaquim do A. D. In: MELLO, Antônio Joaquim de. Op. cit., pp. 592-593.
51
Idem, pp. 212-213.
tipográfica ficou responsável por publicar os documentos oficiais do Governo Provisório, na
Confederação do Equador, os periódicos não tiveram essa função, sendo então responsáveis
por publicar as ideias do movimento, comentários acerca dos documentos do Império e, textos
que já tinham sido impressos em 1817 dentre outros.
Percebemos que os dois movimentos se encontram nas ideias que eram defendidas em
suas respectivas imprensas. Os direitos naturais, civis e políticos, o pacto social, a autonomia,
o federalismo e o republicanismo são os alicerces dessa aproximação. As lutas se deram
buscando a independência, primeiro, do jugo colonial, depois, da centralização do Rio de
Janeiro encabeçada pelo imperador D. Pedro. Em 1817, quando aguçou-se “[...] a percepção
de um domínio colonial que se tornara desde 1808 mais próximo e mais sufocante, o
ressentimento nativista concluiu que Lisboa já não estava em Lisboa, mas no Rio” 52. Para
1824, a linha de raciocínio á bastante parecida. Após a dissolução da Assembleia Constituinte
em novembro de 1823 por D. Pedro, concluiu-se que “o Brasil mudara apenas para continuar
o mesmo, comandado com mão de ferro a partir do Rio de Janeiro”53.
Para os revolucionários de 1817, lutar contra a Coroa portuguesa era a opção que se
sobressaia devido à alta carga de impostos e encargos, mas, devemos também lembrar, que 161
em relação a esse movimento, as ideias que circulavam na Colônia foram fatores
preponderantes para a eclosão do mesmo. Para a difusão das ideias necessitava-se de um
aparato que pudesse imprimi-las. Em 1823, com o fechamento da Assembleia Constituinte
por D. Pedro, os federalistas mais radicais viram as possibilidades de autonomia se exaurirem,
restando a opção da luta contra a monarquia, que pouco tempo tinha de vida, mas mostrava
que a centralização do poder, em detrimento dos poderes locais, seria a política a ser seguida.
Assim, esses federalistas, destaque para o frei Caneca, usavam as letras para mostrarem sua
indignação, mais que isso, para mostrarem as ideias que os norteavam frente ao governo de D.
Pedro. É no Typhis que se encontra grande parte do pensamento político do frei, é nesse
periódico que podemos encontrar boa parte das bases ideológicas circulantes nos movimentos
em Pernambuco de 1817 e 1824.

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Ultramarino (CU), caixa 278, doc. 18736, post. 4 de março de1817. Consultado por meio do
Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco. Instituto Arqueológico
Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).
52
MELLO, Evaldo Cabral de. Op. cit., 2004, p. 35.
53
CARVALHO, Marcus J. M. de. Op. cit., s/p.
BARATA, Cipriano. In: MOREL, Marco. Cipriano Barata na Sentinela da Liberdade.
Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembleia Legislativa do Estado da Bahia, 2001.

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163
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ANÁLISE E
SISTEMATIZAÇÃO DAS
CORRESPONDÊNCIAS
DA CÂMARA DO
RECIFE NO SÉCULO
XVIII: O DEFICIENTE
ABASTECIMENTO DA
CIDADE.

MATEUS BERNARDO
GALVÃO COUTO

GRADUANDO (UFPE)
O presente trabalho é fruto de uma pesquisa intitulada: “Análise e sistematização das
correspondências da Câmara do Recife (séc. XVIII).” e foi possibilitado pelo PIBIC/CNPq,
dessa forma, alguns resultados evidenciaram os diversos motivos que contribuíram para o
deficiente abastecimento da cidade do Recife. A pesquisa abrange uma das instituições mais
complexas do Império Ultramarino português: as câmaras municipais; especificamente a
Câmara Municipal do Recife no século XVIII. Eram órgãos administrativos fundamentais
para o bom funcionamento e manutenção da ordem e poder real na relação Portugal-colônias,

165
teoricamente. Nesse âmbito, é de suma importância o casamento entre leituras e análises das
bibliografias e dos documentos. A cronologia em questão é o século XVIII, mas alguns
documentos abordados remontam aos séculos XVII e XIX.
A fundação da Câmara Municipal do Recife (1709) é muito conturbada à luz de um
grande e antigo conflito. Por sua vez, é contemplada por Evaldo Cabral de Mello Neto em “A
fronda dos mazombos: nobres contra mascates”. Alguns estudos apontam que a elevação do
Recife à vila foi o estopim da Guerra dos Mascates (1710-1711). O fato é que a crescente
tensão entre os comerciantes reinóis (mascates) e a nobreza da terra (elite local ou senhores de
engenho) se intensificou devido à peripécia destes primeiros ascenderem cada vez mais aos
cargos edis, ou seja, político-administrativos.
A expulsão dos holandeses das terras pernambucanas concedeu à Olinda considerável
respeito, contudo, é certo que o efeito causado pela destruição da cidade arruinou e
empobreceu-a. Há um consenso sobre o Recife ter suplantado Olinda em aspectos políticos e
econômicos; é válido observar que era no Porto do Recife que desembarcava toda a
mercadoria para consequente distribuição nas localidades circunvizinhas. O principal grupo
que influenciava e manejava esse comércio portuário era o de norte-portugueses
(mascates/comerciantes reinóis), o qual adquiriu tão significativa importância à ponto de
interferir nas decisões de Olinda.
A gradativa escalada do Recife é consolidada com o desmembramento de Olinda,
fundação da Câmara Municipal e instituição de um termo1, agregando as freguesias de
Ipojuca, Cabo e Muribeca. Além desses coeficientes, George Cabral2 atesta uma
irregularidade: “Segundo as normas da coroa portuguesa para a colônia, devia-se observar
uma distância de pelo menos seis léguas entre uma vila e outra”, enquanto o Recife de Olinda
não tinha uma légua de distância sequer. Ao burlar essa norma especificamente, torna-se mais
evidente o jogo de interesses e o nível de influência dos mascates que se encontravam no
Recife.
A funcionalidade da Câmara é transparente, mesmo que limitada devido ao tempo de
pesquisa, onde três fontes documentais nos servem: a coleção Documentos Históricos3 da
Biblioteca Nacional, o Livro de Registros de Cartas da Câmara Municipal do Recife 4, que se
encontra fisicamente e em bom estado de conservação no Instituto Arqueológico Histórico e
Geográfico Pernambucano – IAHGP, e o Arquivo Histórico Ultramarino.
No que tange à bibliografia explorada, diante da explosão de estudos que datam do fim
do século XX referentes às instituições administrativas portuguesas (concomitante aos estudos
sobre a América hispânica). Em relação ao presente trabalho, podemos dividir as referências
em três vieses: a exploração de uma bibliografia de fins do século XX e início do XXI (a qual
166
denomino bibliografia clássica), a bibliografia recente e os trabalhos bibliográficos
específicos sobre a Câmara Municipal do Recife.
A bibliografia clássica trata as câmaras de uma maneira mais abrangente, a qual nos
possibilita entender o funcionamento dessas. Alguns estudiosos estão atentos para o certo grau
de autonomia que as câmaras adquirem, por vezes competindo com o poder central e os seus

* O Autor é graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco.


1
A palavra “termo” aparece no sentido “Termo de Vila ou cidade, o espaço que abrange a jurisdição dos seus
juízes” ( “BLUTEAU, D. Rafael.; SILVA, A. de Moraes (ref). Diccionario da Lingua Portugueza. Tomo
Segundo.Lisboa: Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.” p. 454)
2
SOUZA, George F. Cabral de. Patrimônio, territorialidade, Jurisdição e Conflito na América
Portuguesa: Pernambuco, século XVIII. pp. 81-96.
3 Coleção de documentos avulsos oriunda do “Projeto Resgate da Memória Hemerográfica Brasileira”, o
projeto, iniciado em 1928, consiste na transcrição de cartas e consultas referentes aos governos de Portugal e do
Brasil. Disponível em acervo digital e on-line, conta com 112 volumes, este último publicado em 2012.
4 O códice apresenta documentos dos séculos XVIII e XIX registrados por João Francisco Bastos, em
suma. Com 876 fólios, foi organizado à seguinte ordem: fólio 1-1 verso, 2-2 verso... 400-400 verso. Encontra-se
fisicamente no Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano – IAHGP.
representantes nas ordens e demandas coloniais. António Manuel Hespanha em sua obra5
enxerga uma fraqueza no poder central, do qual as câmaras tiravam proveito e tinham certa
autonomia. Ainda assim, evidencia as peculiaridades de cada municipalidade, seguindo os
exemplos de Macau e do Brasil. As limitações do poder central são ancoradas na distância
para com a colônia e as necessidades locais dessa última.
Alinhado a esse raciocínio, Hespanha aponta a heterogeneidade política como um dos
aspectos do poder central e suas aplicabilidades ao longo do Império Português. Não obstante,
normas particulares (locais) prevaleciam frente ao direito comum europeu, fator esse que dava
certa liberdade aos colonos. O cenário era propício, dessa forma, para a vigência do direito
local, onde o direito português só era aplicado aos portugueses.
O autor atenta para os vice-reis e governadores, os quais “gozavam de autonomia, pois as
cláusulas dos regimentos pontuavam a possibilidade de desobediência” 6. Sendo assim,
acredita numa hierarquia no cenário político-administrativo do século XVIII, arranjando da
seguinte forma: poder central; secretarias de Estado; vice-reis, governadores-geral e Relações;
governadores-local e ouvidores. As câmaras estavam subordinadas aos governadores-gerais,
relação que originou inúmeros conflitos.

167
Entendendo as câmaras municipais como extensão do reino, Maria Fernanda Bicalho, em
sua obra7, observa certo grau de uniformidade nessas instituições. À luz de Charles Boxer, as
interpreta como fundamentais para a “construção e manutenção do Império Português.” 8
Assim como Hespanha, alerta que cada Câmara tinha sua composição, seja no Reino ou no
Ultramar (atendiam às necessidades de cada localidade). Investiga os níveis de autonomias de
algumas câmaras, destacando Macau, Salvador e Rio de Janeiro. À autonomia, trata como
uma das causas a ascensão de homens ricos (elite local) aos cargos camarários.

5 HESPANHA, A. M. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes.


FRAGOSO, João.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F. (org.) O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica
imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). ed Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. pp. 163-189

6 HESPANHA, A. M. A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes.


FRAGOSO, João.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F. (org.) O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica
imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). ed Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. pp. 174 e 175

7 BICALHO, M. F. B. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. FRAGOSO, João.; BICALHO, M. F.;


GOUVÊA, M. de F. (org.) O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). ed
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. pp. 189-223

8 BICALHO, M. F. B. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. FRAGOSO, João.; BICALHO, M. F.;


GOUVÊA, M. de F. (org.) O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). ed
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 191
Já Maria de Fátima Gouvêa, em sua contribuição9, atenta para a proximidade entre os
enviados (da coroa) e o poder central. Tal proximidade sustentou uma certa autonomia desses
primeiros. Ainda mais, atesta a transferência de mecanismos da metrópole para o ultramar.
Assim, tem-se que a estrutura do ultramar português possibilita enxergar como se deu as redes
de relacionamentos entre o Brasil, África, Portugal e Orente.
No campo estrutural, de funcionamento e bastante abrangente, Charles Boxer procura
investigar a partir dos fatores externos que influenciaram nas condições, negócios e redes
locais; assim, observou as particularidades de 4 localidades: Macau, Goa, Luanda e Bahia 10. O
autor destacou a importância dos portos como ponto de investigação – dessa forma, podemos
até trabalhar e relacionar como uma hipótese para a suplantação do Recife à Olinda e a
consequente elevação à vila, uma vez que a cidade era o porto que fornecia Olinda e outras
dependências.
Além disso, Boxer trabalha o processo de eleição, abordando tanto oficiais como os
eleitores, o papel do Juiz da Coroa, assim como os pelouros. Não se restringindo aos cargos
edis, o autor trata dos outros funcionários, tais como: almotacés, tanoeiros, pedreiros e
alfaiates; esses, por sua vez, mantinham o vital funcionamento das vilas.
Sobre as bibliografias mais recentes, essas ganham maior detalhamento nas análises e se
168
restringem no que toca ao recorte temporal abordado. Uma gama de produções acontece no
século XXI, os temas são dos mais variados, desde temas como: a função dos almotacés, o
funcionamento das câmaras com ênfase nas localidades, entre outros temas.
À luz do trabalho11 de Ronald Raminelli - no qual realiza uma análise comparativa e
quantitativa (em relação às missivas) entre as principais câmaras da primeira metade do
século XVII à primeira metade do século XIX - busquei aproximar e comparar alguns
aspectos e resultados referentes à Câmara do Recife e outras câmaras. Nessa caminhada,

9 GOUVÊA, M. de F. S. Poder político e administração na formação do complexo atlântico português


(1645-1808). FRAGOSO, João.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F. (org.) O Antigo Regime nos Trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). ed Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. pp. 285-319

10 BOXER, Charles R. Portuguese Society in the Tropics: the municipal councils of Goa, Macao, Bahia, and
Luanda, 1500-1800. University of Winsconsin Press, 1965.

11 RAMINELLI, Ronald. J. Monarquia e câmaras coloniais sobre a comunicação política – 1640-1807.


Universidade Federal Fluminense – Brasil.
destacam-se alguns estudiosos e obras que me auxiliaram: Thiago Enes12, Geórgia da Costa
Tavares13, Avanete Pereira14, Maria Aparecida Borrego15 e Pablo Menezes16.
A bibliografia específica trata do processo local do Recife, o qual destaco as inúmeras
obras de George Cabral17 e a obra de Evaldo Cabral de Mello18. Essas primeiras tratam do
funcionamento, dos aspectos e problemas referentes à Câmara do Recife. A segunda trata,
sobretudo, do prelúdio e do advento da Guerra dos Mascates (1710-1711), a qual por muitos a
elevação do Recife à vila foi o estopim.
O presente artigo, no entanto, busca evidenciar alguns resultados encontrados na pesquisa
possibilitada pelo PIBIC/CNPq, intitulada: “Análise e sistematização das correspondências
entre a Câmara do Recife, o poder central e os seus representantes (séc. XVIII)”. Esta tinha
como objetivos principais: catalogar as correspondências num banco de dados, aferir o ritmo
administrativo e analisar as principais pautas.
De antemão, faz-se viável informar alguns dados gerais da pesquisa. A carta mais antiga
pertence ao ano de 1657 e a mais recente de 1812. Não obstante, sabemos que o nosso foco é
o século XVIII. Por completo, contamos com 539 documentos, sendo 68 da Coleção
Documentos Históricos da Biblioteca Nacional e 471 do Livro de Registro de Cartas da

169

12 ENES, Thiago. De Como Administrar Cidades e Governar Impérios: almotaçaria portuguesa, os


mineiros e o poder (1745-1808). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010.

13 TAVARES, G. da Costa. A atuação dos marchantes no Rio de Janeiro Colonial. Estratégias de mercado e
redes de sociabilidade no comércio de abastecimento da carne verde 1763-1808. Rio de Janeiro, 2012.

14 SOUSA, Avanete Pereira. Poder político local e vida cotidiana:a Câmara Municipal da cidade de
Salvador no séc. XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2013.

15 BORREGO, Maria Aparecida de M. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo Colonial (1711-
1765). São Paulo, 2006. pp. 62-128.

16 OLIVEIRA, Pablo M. e. Cartas, pedras, tintas e coração: as casas de câmara e a prática política em
Minas Gerais (1711-1798). Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas da UFMG, 2013. pp. 36-
65.

17 Como por exemplo: SOUZA, George F. Cabral de. Elite e Exercício de Poder no Brasil Colonial (A
Câmara Municipal do Recife, 1710-1822. Recife: ed. UFPE. 2015. Ou ainda mais: SOUZA, George Félix Cabral de.
Os Homens e os Modos da Governança:A Câmara Municipal do Recife no Século XVIII.Recife:Câmara Municipal
do Recife, 2003.

18 MELLO, E. C. de. A fronda dos mazombos, nobres contra mascates: Pernambuco, 1666-1715. 3a
edição. São Paulo: Editora 34, 2012.
Câmara Municipal do Recife. Destes documentos, 37 são editais19 - importante saber o
significado de Edito20 - e 5 são portarias21. O banco de dados conta com um total de 1577
documentados catalogados.
Em primeira mão, quantificamos as cartas emitidas e recebidas pela Câmara e
identificamos quem eram os principais contatos. Dentre as emissões da Câmara para alguma
autoridade disponibilizamos de 339 cartas e os receptores são em suma: reis (Dom João V,
Dom José I e Dona Maria I), governadores da capitania de Pernambuco (em especial Luis
José Correia de Sá, do qual se intensificou os contatos em 1754 e Dom Thomas José de
Mello, em fins do século XVIII), Fazenda Real, Câmara de Olinda, Ouvidor-geral, Juiz de
Fora, Almotacé, Corregedor José Joaquim Nabuco de Araujo, Bispo, Vice-rei, Vigário-Geral,
Mamposteiro-mor, Mesa de Inspeção, Câmara de Goiana, Prior do Convento de Nossa
Senhora do Carmo22, Padre Administrador do Colégio do Recife, Mesa de Direção da
Companhia Geral, Marquês de Angeja, Apóstolo São Pedro e Comandante da Praça.

No diálogo Câmara-autoridades, destacam-se dois órgãos: o poder central e os


governadores. O primeiro, por sua vez, conta com Dom João V como destinatário de 99
cartas, seguido por Dom José I com 38 e Dona Maria I com 11, respectivamente. Os
governadores receberam 74 cartas – lembrando que são números massivamente do século 170
XVIII, visto que algumas raras remetem aos séculos XVII e XIX.

No sentido contrário, ou seja, a Câmara como destinatária de alguma autoridade ou


particular, rastreamos 103 cartas. Os principais emissores são: governadores da capitania de
Pernambuco, Companhia de Jesus, Ouvidor-geral, Junta administrativa e Fazenda Real,
Câmara de Igarassu, Bispo, Câmara de Olinda, Câmara de Goiana/Itamaracá, Prior Frei do

19
“f. m. escritura, em que se contém o contexto de algum edito. adj. o que se faz por editos v.g. citação,
denúncia ou aviso.” (BLUTEAU, D. Rafael.; SILVA, A. de Moraes (ref). Diccionario da Lingua Portugueza. Tomo
Primeiro.Lisboa: Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. p. 462)
20
“f.m. ordem, mandato do Príncipe, ou Magistrado, que se afixa nos lugares públicos, para que chegue
a noticia de todos.” (BLUTEAU, D. Rafael.; SILVA, A. de Moraes (ref). Diccionario da Lingua Portugueza. Tomo
Primeiro.Lisboa: Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. p.462)
21
“[...] Letras patentes, que da aos Capitães, Governadores, com despachos e passaportes.” (BLUTEAU,
D. Rafael.; SILVA, A. de Moraes (ref). Diccionario da Lingua Portugueza. Tomo Segundo.Lisboa: Oficina de Simão
Thaddeo Ferreira, 1789. p. 221)
22
O convento era fundamental como espaço para realização de eventos de inúmeras naturezas.
Convento Nossa Senhora do Carmo, Vigario-geral, Padre Administrador do Colégio do
Recife, Mesa de Inspeção, Mamposteiro-mor, Comandante da Praça e Marquês de Angeja.

A Câmara como destinatária nos reserva um atrativo, pelo menos referente às fontes
documentais em questão: a ausência do poder central (na íntegra) como emissor; dessa forma,
os governadores da capitania encabeçam o posto. No total, são 51 cartas enviadas.

Rumando para um campo de observação mais amplo, mensuramos os principais eixos


referentes aos documentos examinados. As pautas se classificam em: “Administração” com
246 documentos; “Econômico” com 173 documentos; “Fiscalidade” com 54 documentos;
“Festa/Simbólico” com 20 documentos; “Defesa” com 4 documentos e “Outros” com 16.
Vale salientar que os eixos se repetem a depender do conteúdo da carta, como por exemplo:
uma determinada carta pode envolver os eixos “Econômico”, “Fiscalidade” e
“Administração”.
A análise das principais pautas funcionou sobre 4 desses eixos, foram eles: administrativo,
festivo/simbólico, econômico e fiscal. Os assuntos administrativos elucidaram a perpetuação
das disputas entre o Recife e Olinda (relações conflituosas) ao longo do século XVIII,

171
enquanto os festivos/simbólicos mostraram que a fé era a principal ferramenta usada pelas
autoridades na cobrança de taxas, tributos, impostos e/ou até presentes (assim, os colonos
eram usados para sustentar os luxos e gastos exacerbados reais).
Os eixos econômicos e fiscais se relacionam diretamente. Em síntese, os assuntos
econômicos apontam para uma deficiência no abastecimento da cidade do Recife. Já os
assuntos fiscais remetem à ausência/ineficiência dps almotacés na fiscalização do comércio.
Dessa forma, podemos interpretar que a deficiência no abastecimento é, não exclusivamente,
mas oriunda das denúncias sobre os exercícios dos almotacés.
Sobre o comércio e o consequente abastecimento, é evidente que depende de alguns
agentes, como por exemplo: marchantes (aqueles que fazem o transporte e vendem os
comestíveis) e os almotacés (uma das tarefas é fiscalizar e monitorar o comércio).
Os documentos em questão nos mostram a ação de atravessadores 23 - são os marchantes
que burlam o comércio. Há o caso da Câmara do Recife alertando o almotacé Ignacio Luis da
Costa Aguiar sobre a ação de atravessadores estocando farinhas. Diante disso, ordena-se a

23 “Atravessador (f. m.): o que compra toda a mercadoria, ou víveres para regatear, e vender a seu arbítrio
ele só” (BLUTEAU, D. Rafael.; SILVA, A. de Moraes (ref). Diccionario da Lingua Portugueza. Tomo
Primeiro.Lisboa: Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789. p. 141)
revista em algumas casas suspeitas e a implantação de multas para os estocadores, a carta é de
1769:
“Ordemnamos ao nosso Almotacé actual o Capitão Ignacio Luiz da Costa Aguiar, que por
nos chegar a noticia que se achão nesta Praça vários atravessadorez de farinhas,
comprando-as para as hirem revender fora dezta Praça, cauzando prejuízo ao Povo, o que hé
prohibido pellaz posturaz deste sennado, pois se achão varias cazaz, assim da parte de Santo
Antonio, como do Recife com avultado numero insacada, nas quaes fará revista, eachando-a
fará repartir pello Povo pello preço, que correr, e como aggressores daz mesmaz posturaz
lhes porá a cada hum delles a pena de seis mil reis, como determina a postura settenta, e
seis.”24

A deficiência no abastecimento é recorrente em todo o século XVIII e não é restrito ao


Recife. A obra de Georgia da Costa Tavares, anteriormente citada, nos mostra um pouco do
cenário do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII. Destacam-se a estrutura de
fiscalização e os agentes do comércio.
O Recife chama a atenção para o final do século XVIII, especificamente no período do
governador de Pernambuco Dom Thomas José de Mello (1787-1798). O fluxo de cartas
172
aumenta, tanto enviadas a partir da Câmara como para a Câmara por parte do governador. Na
documentação, esse recorte proporciona o maior entendimento e noção da complexidade que
engloba o comércio e o abastecimento. Além disso, a calamidade assola a população por
causa da relação conflituosa e do jogo de interesses que envolve a Câmara e os marchantes
(ou agentes do comércio).
Experimenta-se um período de ausência e ineficiência no que tange ao exercício dos
almotacés. Destaca-se um documento25, que retrata uma comunicação entre a Câmara e a
Junta da Fazenda Real de 1792, sobre a impunidade circulante na vila, onde a câmara solicita
a presença de capitães e comandantes dos sertões na fiscalização do comércio, desde a saída
(do interior, dos sertões) ao abastecimento nas praças. A carta trata diretamente da
convocação do Capitão-mor de Goiana.

24 BASTOS, J. F. Livro de Registro de Cartas da Câmara Municipal do Recife. 1804. f. 347 verso

25 BASTOS, J. F. Livro de Registro de Cartas da Câmara Municipal do Recife. 1804. ff. 67 verso e
68.
Além disso, a missiva apresenta a figura de Francisco Xavier Cavalcante de
Albuquerque, um comerciante e comprador suspeito de uma grande quantidade de gados
“acumulados”. Vendeu por 30 mil reis 10 arrobas de gados, os quais comprou por 4 mil
cruzados.
Outros problemas somam-se aos já tratados anteriormente, como os fatores físicos
(seca) e geográficos (distância) ampliam o déficit.
Algumas práticas se tornaram marcas registradas dos atravessadores. Algumas cartas
trazem a denúncia de como esses agentes burlavam e atrapalhavam o comércio:
monopolizando as mercadorias, revendendo-as de 4 a 5 vezes antes de chegarem à Praça
(assim, os produtos adquiriam preços exorbitantes, ou seja, o produto que custaria x nas
praças, passava a custa 4x ou 5x).
Como tentativa de controlar e suprir a deficiência no abastecimento, registrou-se uma
carta26 da Câmara do Recife para o governador Dom Thomas José de Melo, em 1792. O
diálogo é refente ao desembarque de mercadorias de um navio que ruma para a Ilha de Santa
Catarina. Solicita-se a descarga de farinhas.
Além disso, a Câmara toma medidas para regularizar e reordenar o comércio nas

173
praças. Em 1792, a Câmara escreve para a Fazenda Real a fim de frear a ação dos
atravessadores e controlar os preços. Dessa forma, propõe e apela para o poder régio:

“mandando a custa de sua Fazenda matar gados para lhe ser vendida a carne pello menor
preço, que sahir, se assim for será talves o unico meyo de tornar a trazer as carnes áo antigo
presso, ou áo mais commodo possivel; por que nestes cazo Vossa Excelencia, e mercêz darão
Providencias Santaz para se evitarem fraudes, e destruir os atravessadorez, e monopolistaz;
em prova do deduzido offerecemos a notoriedade publica, e suplicamos á Vossa Excelencia, e
mercêz não demorem as Paternaes Providenciaz, que Sua Mageztade manda dar de que
temos toda necessidade, e precizão, pois tendo faltado já muitos diaz as carnes, actualmente
não há gado algum, estão feixados os assougues, não fallando no preço alto porque a
necessidade obriga a comprar.”27

Diante das medidas tomadas pela Câmara, há uma reação instantânea dos marchantes
(e atravessadores) que foi denunciada pela Junta Administrativa da Fazenda Real à Câmara do

26 BASTOS, J. F. Livro de Registro de Cartas da Câmara Municipal do Recife. 1804. ff. 70 e 70 verso.

27 BASTOS, J. F. Livro de Registro de Cartas da Câmara Municipal do Recife. 1804. ff. 75 verso e 76
Recife e que dava continuidade ao sistema de abastecimento precário para a população. Os
marchantes abandonaram o comércio e os negócios de comestíveis, especificamente da carne.
Houve paralisação na compra de talhos para revenda nas praças e locais públicos por parte
desses agentes que, por sua vez, alegaram pobreza extrema28.
Como já exposto anteriormente, o debruçamento sobre o tema “o deficiente
abastecimento da cidade” é embrionário; são apenas algumas informações colhidas ao longo
da pesquisa. Entretanto, podemos realizar algumas reflexões sobre o tema.
Por que ocorreu um maior fluxo de cartas e diálogos no período do governo de Dom
Thomas José de Mello? Houve resistência ou revoltas populares devido ao déficit? Por que os
almotacés no Recife eram o retrato e responsabilizados pela impunidade?
Dentre os vários horizontes investigativos, podemos analisar algumas dessas reflexões,
uma vez que os documentos sejam reveladores, em partes.
Por exemplo, a questão dos almotacés no Recife podemos pensar realizando uma
análise comparativa com outras dependências. Uso o Rio de Janeiro, guardando as devidas
proporções e particularidades econômicas, políticas e sociais. Georgia nos diz:

“No exercício de suas funções, o almotacé atuava conjuntamente com o rendeiro do ver-o-
174
peso e o meirinho. O rendeiro do ver-o-peso era um cidadão que arrematava, por concessão
da Câmara Municipal, o direito de fiscalizar a correta utilização dos instrumentos de
pesagem e o de verificar se os pesos dos produtos vendidos estavam de acordo com o valor
solicitado. Era sua função levantar e comunicar as irregularidades cometidas pelos
comerciantes ao juiz almotacé, o qual, por sua vez, ordenava ao meirinho e ao escrivão que
fossem ao local denunciado para averiguar a ocorrência, apreender os instrumentos,
produzir provas para que pudesse ser aberto processo contra o comerciante.”29

Neste sentido, os documentos elucidam a função e o exercício – quase


– solitário do almotacé no Recife. Eles aparecem ao lado de soldados, no máximo, em poucas

28 “a necessidade, que padecia o Povo na falta de carne fresca nos assougues, por não ter havido quem
arematasse os talhos pellaz cameraz, por serem pobres os Marchantes” (BASTOS, J. F. Livro de Registro de
Cartas da Câmara Municipal do Recife. 1804. ff. 74 verso e 75).

29 TAVARES, G. da Costa. A atuação dos marchantes no Rio de Janeiro Colonial. Estratégias de


mercado e redes de sociabilidade no comércio de abastecimento da carne verde 1763-1808. Rio de Janeiro, 2012.
p. 44
referências, em oposição à situação dos almotacés no Rio de Janeiro. Além disso, a função de
almotacé era bastante exigida, pois lhe cabia:

“assegurar o abastecimento e regular as atividades comerciais de vilas e cidades, através da


inspeção de feiras, vendas e lojas, cobrança de devidos impostos, aferição de pesos e medidas
e inspeção das condições das mercadorias levadas à público. Também eram os responsáveis
pela limpeza e ordenamento urbano, além de fiscalizarem as condições das construções e sua
melhor disposição em meio à urbe, submetendo os infratores das disposições municipais à
multa e, em alguns casos, encaminhando-os às Casas de Cadeia e Câmara para que pudessem
prestar contas de seu descumprimento.”30

Assim sendo, percebe-se uma sobrecarga nos almotacés, principalmente no tocante ao


comércio e ao abastecimento nas Praças do Recife, que, em somatória, tornava o cargo
exaustivo.

Referências Bibliográficas

175
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30 ENES, Thiago. De Como Administrar Cidades e Governar Impérios: almotaçaria portuguesa, os


mineiros e o poder (1745-1808). Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2010. p. 64
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“BLUTEAU, D. Rafael.; SILVA, A. de Moraes (ref). Diccionario da Lingua Portugueza. Tomo


Segundo.Lisboa: Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789.”

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176
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FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 15. ed. São Paulo, Editora Nacional, 1977.
ENTRE O LOCAL E O
CENTRAL: UM
PANORAMA DA
COMUNICAÇÃO
POLÍTICA NA CÂMARA
MUNICIPAL DE OLINDA
(1646-1711).

PEDRO IVO GOMES


DE MELO

GRADUANDO (UFPE)
Diante de um crescimento no número de investigações sobre o período colonial
utilizando-se das câmaras municipais como objeto de estudo, o trabalho aqui apresentado foi
fruto das pesquisas realizadas entre agosto de 2016 e julho de 2017, período de vigência do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). O fundamento dessas
pesquisas visava o desenvolvimento de um panorama mais amplo possível da comunicação
entre a câmara municipal de Olinda com os poderes centrais e outras instituições para
dimensionar a capacidade de atuação da mesma.

178
Para isso, um dos pontos de partida que parecem ser mais coerentes para investigar a
interação existente entre Câmaras Municipais da América portuguesa e o chamado poder
central é analisar a concepção de Estado Moderno de acordo com a crítica feita pelos
trabalhos mais recentes. Antônio Manuel Hespanha 1 percebeu que o atual debate
historiográfico acerca das instituições políticas da Europa meridional está passando por uma
revisão das perspectivas mais basilares. De fato, os argumentos presentes na produção
bibliográfica deste autor forneceram parte dos elementos necessários que visam uma mudança
de referências para aqueles que simpatizam com o estudo da historiografia política de
Portugal no período conhecido como Idade Moderna.
Analisando as consequências e repercussões acadêmicas do seu livro Às vésperas do
Leviathan, Hespanha aponta que a sua relativização da noção de absolutismo português, bem
como a delimitação das fragilidades do controle do Estado suscitam debates que, em linhas
gerais, dão robustez ao conceito de monarquia corporativa. Com isso, constrói-se a imagem
de um império português estruturalmente heterogêneo, com uma centralização limitada e cujo
poder real participava de uma partilha do espaço político com poderes de hierarquias
flexíveis, com instituições como a Igreja, a fazenda, as câmaras municipais, entre outras.

1
HESPANHA, Antônio Manuel. “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos
correntes”. In: João Fragoso, Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa (Org.). Antigo Regime nos trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 163-188
Ao perceber essa noção de ausência de um centro definitivo para conjugar poderes e
normas, o legado acadêmico de Hespanha torna-se significativo para o estudo da
administração portuguesa por fugir da frequente dicotomia centralização-autogoverno,
ressaltando o estabelecimento de relações entre poderes com notável caráter de pluralidade.
Diante disso, o trabalho apresentado neste artigo se alinha com a perspectiva dos historiadores
Maria de Fátima Gouvêa e João Fragoso no que diz respeito à lógica de monarquia
pluricontinental, caracterizada, na palavra dos autores, como uma monarquia onde:

Há um só reino- o de Portugal- uma só nobreza de solar, mas diversas


conquistas extra-europeias. Nela, há um grande conjunto de leis, regras e
corporações –concelhos, corpos de ordenança, irmandades , posturas, dentre
vários outros elementos constitutivos- que engendram aderência e
significado às diversas áreas vinculadas entre si e ao reino no interior dessa
monarquia2.

Ainda segundo os autores, essa tipificação de governo tem como outra particularidade
a questão do protagonismo das conquistas do ultramar como fornecedoras de recursos para o
sustento da coroa e dessa primeira nobreza. Teria, portanto, a monarquia pluricontinental na
periferia a sua centralidade material. 179
Esses pensamentos corresponderiam a uma ótica geral que tange o debate
historiográfico acerca da administração do Império português. Assim sendo, torna-se
necessário fazer uma introdução sucinta sobre um segmento administrativo colonial que
compôs esse sistema de monarquia pluricontinental e que interferiu na dinâmica política e
econômica: as câmaras municipais.
No que se refere às dimensões territoriais, a hierarquia da administração colonial do
Brasil seiscentista respeita a seguinte sequência decrescente:

Em primeiro lugar vem o Estado do Brasil, seguido pelas Capitanias. Essas


são compostas por um pequeno número de Comarcas. No caso de
Pernambuco, elas são três, incluindo Alagoas, mas boa parte das capitanias
possuía apenas uma Comarca. Por sua vez, as Comarcas são compostas pelos
Termos, cuja sede, uma vila ou cidade, abriga a Câmara3.

Em outras palavras, a sociedade americana tinha em seu topo a coroa e em sua base as
municipalidades. Todavia, salienta-se que a gestão do Novo Mundo tem como protagonistas

2
FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Monarquia pluricontinental e repúblicas: algumas
reflexões sobre a América lusa nos séculos XVI-XVIII. Tempo, 2009, vol.14, no.27, p.42
3
SOUZA, G. F. C. Os Homens e os Modos da Governança: a Câmara Municipal do Recife do Século XVIII
num Fragmento da História das Instituições Municipais do Império Colonial. Recife: Gráfica Flamar, 2003. pp.
75-76
essas duas instituições, com a monarquia portadora de um caráter de administração universal
e as câmaras com um caráter de autogoverno das comunidades.
Com relação a sua composição, diante de algumas particularidades, pode-se dizer que
as câmaras municipais tendiam a serem compostas por um juiz-presidente, dois vereadores e
um procurador, eleitos de forma “indireta”. Além disso, outras figuras frequentes na
composição das câmaras eram os almotacés e escrivães, estes indicados pela vereação4.
É importante salientar que qualquer descrição sucinta corre o risco de ser incompleta
e, mesmo com muitos pontos em comum, a diversidade dos espaços colonizados, fez
necessária uma série de adaptações. Todavia, há uma espécie de consenso entre estudiosos da
municipalidade colonial no que diz respeito à autonomia das câmaras no ultramar, ainda que
esse grau de autonomia não seja preciso e uniforme. Consequentemente, nota-se a relevância
de estudar a atuação de cada câmara municipal para então determinar esse grau de liberdade
de administração das mesmas.
Diante desse panorama, o trabalho de Edmundo Zenha5 se torna notório por afirmar
que foi justamente pelas adaptações realizadas que as câmaras se colocaram como instituição

180
mais atuante nas colônias. Indo mais além, Zenha ainda destaca o caráter ambíguo dessa
instituição, por serem ora aristocrática, ora democrática. Aristocrática por representar um
instrumento de defesa dos interesses da nobreza da terra 6 e democrática por facultar a
participação da população e defender o interesse dos munícipes.
Uma crítica válida ao trabalho de Zenha diz respeito ao seu recorte temporal. Com
efeito, o resultado de sua pesquisa não aborda o período colonial do Brasil por completo,
estando restrito apenas aos dois primeiros séculos (1532-1700). Entretanto, para o intervalo
de tempo escolhido para investigar a câmara de Olinda nesse artigo, é possível fazer um
alinhamento mais coerente com a sua substancial obra.
Isto posto, a história da vila de Olinda, bem como da sua câmara, não é nenhuma
novidade para a historiografia sobre o Brasil colonial. Isso é compreensível devido,
sobretudo, à sua longevidade atrelada à importância para a administração colonial,
principalmente nos dois primeiros séculos de colonização no Brasil.
Uma das mais antigas câmaras da América portuguesa, a data oficial da sua fundação
foi 12 de março de 1537, sendo bastante provável que sua atuação tenha se dado algum tempo

4
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império”. In: João Fragoso,
Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa (Org.). Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa
(séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp 189-221
5
ZENHA, E. O município no Brasil (1532-1700). São Paulo: Progresso, 1948
6
Por nobreza da terra, recomenda-se a leitura de RAMINELLI, Ronald José. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e
Ultramar Hispânico, séculos XVII E XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015
antes do recebimento do Foral. Desde a sua fundação, a vila de Olinda foi concebida como
sede da capitania de Pernambuco e ainda no século XVI forma-se uma incipiente elite
açucareira, devido ao relativo sucesso da produção do açúcar na capitania de Pernambuco 7.
O espaço urbano de Olinda durante o início de seu povoamento e após a superação dos
embates com os indígenas correspondia a um espaço relativamente pequeno se comparado
com as dimensões que a jurisdição dessa municipalidade abrangia. Essas dimensões
correspondiam a aproximadamente todo litoral da capitania de Pernambuco e mais uma larga
faixa de terras interiores.
Esses fatores em conjunto transformaram a vila num símbolo de riqueza e poder. Tal
representação só sofreria uma transformação com a invasão holandesa em 1630, seguida da
destruição de boa parte do território de Olinda devido ao devastador incêndio provocado pela
invasão, ocasionando um despovoamento. Entre parênteses, tal incêndio acarretaria em
destruição de boa parte de documentos que serviriam de fontes históricas para melhor
compreender o período ante bellum.
De símbolo de riqueza e poder, Olinda passaria a representar um símbolo de força e

181
resistência aos invasores, se reerguendo após a restauração da capitania e retomando o posto
de sede da capitania. Porém, o desenvolvimento da cidade maurícia durante o governo
holandês ofuscou o prestígio olindense, já que, além de sede da administração holandesa, o
Recife também havia se tornado um relevante centro comercial.
Com essa transformação demográfica drástica ocasionada pela presença holandesa, é
dado início a uma conturbada separação de Olinda e criação da câmara do Recife, uma
disputa que duraria algo em torno de meio século. Neste contexto de tensões conhecido como
Guerra dos Mascates, do lado de Olinda estavam os endividados senhores de engenho, e do
lado do Recife estavam os seus mercadores credores.
Os detalhes dos eventos que constituíram este extraordinário conflito foram
notoriamente escrutinados nos trabalhos de Evaldo Cabral de Mello, especialmente em sua
obra A Fronda dos Mazombos, elaborada no intuito de “preencher a lacuna que representa a
inexistência de uma história da Guerra dos Mascates”8.Analisando o período entre 1666 e
1715, o autor não procurou traçar um panorama geral da história colonial de Pernambuco
nesse recorte temporal, mas sim entender quais eventos principais acarretaram nas alterações
de 1710.
7
Para investigar a relação entre a câmara e a elite açucareira, recomenda-se o capítulo 2 da dissertação LISBOA,
Breno Almeida Vaz. Uma elite em crise: a açucarocracia de Pernambuco e a Câmara Municipal de Olinda nas
primeiras décadas do século XVIII. Recife: O autor, 2011. pp. 74-113
8
MELLO, E. C. de. A fronda dos mazombos, nobres contra mascates: Pernambuco, 1666-1715. 3a
edição. São Paulo: Editora 34, 2012.
Sem a realização de uma leitura atenta das correspondências emitidas e recebidas pela
câmara de Olinda, não seria possível para o autor construir a sua análise, bem como suas
narrativas da história da Guerra dos Mascates. Foi através de tais documentos que essa
pesquisa também se fundamentou, almejando a tarefa de desenvolver um panorama da
comunicação política entre a monarquia e Câmara de Olinda.
Por “comunicação política”, foi levado em consideração o trabalho de Ronald J.
Raminelli, que utiliza bastante esse termo e o define em sua pesquisa como a troca de
correspondências entre a câmara e o monarca9. A análise e sistematização dessas
correspondências tem sido relevante para estudar a negociação, bem como o grau de
autonomia e subordinação dos oficiais dessa instituição. Levando em consideração que o
município de Olinda foi cabeça da capitania de Pernambuco, o terreno para investigar a
comunicação política com os poderes centrais tende a ser mais fértil, tendo em vista que eram
esses municípios que mantinham uma interação mais ativa com a Coroa.
O trabalho de Raminelli expõe análises de emissões camarárias da Bahia, Rio de
Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Maranhão. Economicamente, o caráter dessas vilas é

182
bastante plural: enquanto as três primeiras eram centrais em relação à economia colonial, as
duas últimas eram caracterizadas como sendo mais periféricas. Assim sendo, uma verificação
comparativa gera resultados mais sólidos por possuírem parâmetros. No entanto, as
correspondências emitidas e recebidas pela câmara de Olinda, mesmo sendo fontes já
parcialmente consultadas, ainda não foram alvo de uma catalogação com o intuito de
identificar as áreas de atuação da municipalidade.
Essa missão requer uma investigação minuciosa que envolve uma quantidade
consideravelmente extensa de documentos. Todavia, deve-se admitir que o caminho a se
percorrer para a realização dessa sistematização foi facilitado pelo Projeto Resgate Barão de
Rio Branco, que disponibilizou a documentação do Acervo Histórico Ultramarino para os
centros universitários e na UFPE se encontra no Laboratório de Pesquisa e Ensino em História
(LAPEH). Graças à tecnologia, foi possível o acesso organizado a um catálogo temático-
digital referente a dois séculos da história da administração pública municipal.
Com a iniciativa de digitalização do acervo da Biblioteca Nacional, também é possível
ter acesso online a diversas fontes de pesquisa. Da mesma forma que não é mais necessário se
deslocar para Portugal para ter acesso ao AHU, também não é necessário ir para o Rio de
Janeiro para ter acesso à obra Documentos Históricos, onde não só constam apenas

9
Raminelli, R. Monarquia e câmaras coloniais, sobre a comunicação política 1640-1807”, Prohistoria, Ano
XVII, num. 21, jan-jun. 2014, pp. 3-26
publicações de cartas, como também alvarás, ordens reais e demais papéis que já passaram
pelo processo de transcrição.
Depois de acessar todos os documentos que possuíssem nas ementas menções aos
termos “câmara” ou “senado” de Olinda/Pernambuco10, a principal ferramenta utilizada para
catalogar as correspondências foi o banco de dados eletrônico relacional FileMaker Pro,
programa que integra uma interface gráfica que dá a liberdade de modificar o banco de dados
de acordo com necessidade. Para o nosso objetivo, o programa teve a seguinte configuração:

183

Tal formato permite incluir a data, localização do documento (seja do AHU ou da


DHBN), século, município tratado, autor e destinatário da correspondência, enquadramento,
eixo, bem como a ementa e as palavras-chave. Se necessário, também há um espaço para
acréscimo de alguma nota referente aos documentos, geralmente dedicada para mencionar os
anexos dos mesmos.
Dessa maneira, é possível incluir não só as correspondências emitidas pela câmara,
como também as recebidas, identificando o emissor. Além disso, os enquadramentos e eixos
tornam-se fulcrais para delimitar a categoria da carta. Para o tópico enquadramento, existem
sete categorias, sendo elas: particular contra câmara, particular ligado à câmara, autoridade
para câmara, autoridade sobre câmara, autoridade sobre particular ligado à câmara, autoridade
sobre particular contra a câmara e, por último, câmara para autoridade. Já nos eixos temáticos
temos seis categorias: administração, fiscalidade, defesa, festa/simbólico e outro, para as
demais correspondências que não se encaixam nas cinco primeiras.

10
Em muitas cartas, identifica-se a Câmara (ou Senado) de Olinda como Câmara de Pernambuco
Ao se guiar pela perspectiva de que as câmaras possuem o ambíguo caráter de serem
democráticas e aristocráticas, as categorias que envolvem a terminologia “particular”
abrangem as correspondências onde foram encontradas relação com pessoas ou instituições
que tiveram alguma relação conflitiva (no caso de particular contra a câmara) ou vinculação
com a municipalidade (no caso de particular ligado à câmara).11
É possível perceber que o programa utilizado garante certo grau de maleabilidade,
permitindo realizar uma série de cruzamento de dados, ficando à preferência do que o
pesquisador queira buscar através da ferramenta. Desse modo, a título de exemplo, aquele que
estiver interessado pode gerar informações sobre a comunicação com determinado monarca
num recorte temporal específico, a comunicação entre determinadas câmaras sobre
determinado assunto, o ritmo administrativo e assim por diante.
Para não cair na armadilha de investigar a administração colonial sem atentar com
afinco para uma delimitação do recorte temporal, as correspondências analisadas da câmara
de Olinda se iniciam no ano de 1646, já que documentos de datas anteriores foram perdidos
com o passar do tempo12. Finalmente, o recorte temporal se encerra no ano de 1711, já que

184
esse é o fatídico ano em que se encerram os conflitos da Guerra dos Mascates.
Após a revisão da bibliografia relativa ao tema, realizada em paralelo com o
levantamento de fontes, foi possível notar que, dos 1034 registros de correspondências das
câmaras de Pernambuco e Itamaracá já inclusos no banco de dados utilizado nessa pesquisa,
468 missivas eram referentes a correspondências ativas e passivas da câmara de Olinda.
Todos esses documentos, oriundos do AHU, totalizam 45,26% do total de registros. Isso é
explicado, principalmente, pela razão -já mencionada anteriormente- de Olinda ser cabeça da
capitania. Com a inserção das 49 cartas encontradas no volumes dos Documentos Históricos
analisadas e sistematizadas durante esses 12 meses de projeto, o total de correspondências
catalogadas chegam a 517.
Salienta-se que, para uma investigação mais precisa da documentação disponível, é
necessário se atentar para os anexos presentes nas cartas, principalmente nas documentações
oriundas do Projeto Resgate (AHU). Como muitas das missivas são acompanhadas de outros
documentos, é preciso observar cada um destes, já que o gênero e conteúdo dos mesmos tende
a variar em demasia. Tais documentos podem ser, e.g, cópias das cartas, respostas de alguma

11
SOUZA, G. F. C Entre o local e o central: uma tentativa de sistematização da correspondência entre as
câmaras de Pernambuco e Itamaracá e os poderes centrais (Sécs. XVII e XVIII). [Relatório de pesquisa inédito,
projeto “O bom governo das gentes”, CAPES-COFECUB, n. 750/12] Paris: EHESS, 2015.
12
Esse fato impossibilita a realização de um estudo comparativo que envolva a comunicação política antes e
depois do período de ocupação holandesa em Pernambuco
instituição, ou papéis avulsos. Ademais, o número de anexos pode variar de uma unidade a
dezenas.
Apesar do desejo inicial do trabalho ser de identificar missivas dos séculos XVI, XVII
e XVIII, não foi possível encontrar correspondências anteriores a 1646 em nenhuma das
fontes consultadas, visto que parte da documentação produzida antes deste ano encontra-se
destruída pela ação do tempo e das consequências da ocupação holandesa que acarretou na
devastação de parte da vila de Olinda. Tais fatores corroboram para a perspectiva de que um
estudo meramente quantitativo não é suficiente para uma compreensão menos generalizante e
simplista das dimensões de atuação das câmaras municipais num contexto de monarquia
pluricontinental.
Explorando as possibilidades de investigação que o banco de dados fornece, foi
possível tentar elaborar um panorama temático da comunicação entre a câmara de Olinda e o
poder central através de um recorte temporal que abrange o processo final da Insurreição
Pernambucana e a Guerra dos Mascates. O ano inicial analisado foi o de 1646 –data do
primeiro documento catalogado- e se encerra com 1711, ano de término do conflito dos

185
Mascates. A lacuna entre os dois momentos representa a transição de um prévio símbolo de
riqueza e poder que Olinda possuía antes da presença holandesa, passando para um símbolo
de força e resistência aos invasores e de uma ofuscação do prestígio olindense com o
desenvolvimento do Recife durante os 24 anos de administração holandesa.
Das correspondências emitidas/recebidas disponibilizadas para acesso pela DHBN e
AHU, foi possível analisar e catalogar no banco de dados um total de 194 cartas. Tais
missivas, de acordo com a distribuição por enquadramento, se adequam na seguinte
distribuição:
QUADRO I: Quantidade de correspondências trocadas pela câmara de Olinda do
período compreendido entre 1646-1711 por enquadramento:

Enquadramento Totais
Particular contra câmara 5
Particular Ligado à câmara 24
Autoridade para câmara 13
Autoridade sobre câmara 56
Autoridade sobre particular ligado à 16
câmara
Autoridade sobre particular contra a 5
câmara
Câmara para autoridade 75
Total 194
Fonte: Correspondências do AHU e DHBN catalogadas no banco de dados do projeto. Elaboração

186
própria.
Através desses dados, é válido observar uma quantidade significativamente maior de
documentos disponíveis no enquadramento de “autoridade sobre câmara” e, principalmente,
“câmara para autoridade”, totalizando 56 e 75 cartas, respectivamente. Isso não significa
números exatos no que se refere ao total de documentos escritos nessa época, mas o fato de
esses dois enquadramentos serem os possuidores de maior quantidade de missivas possui
algumas explicações.
Os documentos escritos por uma autoridade e que tratam da câmara de Olinda são de
consultas do Conselho Ultramarino, órgão fundado em 1642 por D. João IV e que tratava de
assuntos administrativos referentes aos territórios do reino de Portugal. De fato, tal órgão
servia como intermediário de comunicação entre a câmara e o rei, atendendo as demandas das
municipalidades e oferecendo pareceres para uma posterior aprovação real. Como o Conselho
era sediado em Lisboa, é compreensível que as correspondências, neste caso, sejam mais bem
preservadas. Em tempo: só foi possível saber de muitas dessas cartas apenas pelas menções, já
que muitos documentos não podem ser encontrados, impossibilitando uma análise mais direta.
No recorte estudado, o enquadramento que dispõe de maior quantidade de cartas
correspondem às missivas enviadas pela câmara de Olinda para alguma autoridade. As
possíveis explicações para essa quantidade expressiva passam pela perspectiva de que
algumas câmaras possuem oficiais mais “comunicativos” em determinados períodos e locais
do que em outros. Entretanto, devido às determinadas situações nas quais se encontrou a
cidade de Olinda nos períodos envolvendo a expulsão dos holandeses e tensões entre a elite
olindense devido à emergência da vila do Recife, compreende-se que a câmara tenha
recorrido com mais frequência a autoridades centrais.
A única maneira de obter uma conclusão menos imprecisa é sabendo sobre quais
assuntos envolvem as correspondências da câmara. Logo, para identificar sobre o que os
oficiais da cabeça da capitania de Pernambuco tratavam com autoridades do poder central
entre 1646 e 1711, o recurso dos eixos temáticos, acessível no banco de dados, facilita
bastante a tarefa. Contudo, os eixos indicados (administração, fiscalidade, econômico, defesa,
festa e outro) muitas vezes não atendem ao conteúdo preciso do documento. Dessa forma,
muitos documentos podem conter traços do eixo administrativo com fiscalidade, ou do eixo
econômico.
Dos 75 documentos do enquadramento “câmara para autoridade” sistematizados no
programa, foi possível observar que um total de 44 (58,7%) tratavam de questões
administrativas, 16 (21,3%) missivas se enquadravam no eixo econômico, enquanto 10

187
(13,3%) se referiam ao eixo de fiscalidade e 5 (6,7%) no eixo de defesa. Nenhuma delas
tratou da questão festa/simbólico ou de outro assunto que não os enquadrados acima. Pelos
assuntos das correspondência enviada pela câmara ao monarca e seus conselhos, é possível
constatar que, pelo fato de Olinda receber mais intervenções régias por ser cabeça de
capitania, é compreensível que seja tal câmara a mais propícia, dentre as outras câmaras de
Pernambuco, a reagir politicamente –seja de forma positiva ou negativa– através da emissão
de documentos.
Sendo a câmara base da administração colonial portuguesa, é compreensível que os
resultados encontrados indiquem que mais da metade das correspondências no referido
período sejam do eixo administrativo. É compreensível, também, que num contexto de crise
na açucarocracia, os assuntos mais tratados pela câmara de Olinda sejam seguidos pelo eixo
econômico e fiscalidade.
Devido à mudança na dinâmica econômica do atlântico envolvendo a produção de
açúcar, somado ao problema das já comprometidas rendas de Pernambuco por conta do
dispendioso processo de Restauração, o tema econômico seria recorrente nas
correspondências durante o post-bellum. Ademais, a questão da carga fiscal incentivou a
emissão de correspondências para lidar com os impostos na capitania, seja da “imposição do
vinho” ou, posteriormente, o “Donativo voluntário dos povos para o dote da rainha de
Inglaterra e paz da Holanda”.
Neste panorama, definir o grau de autonomia da câmara de Olinda, mesmo que não
apenas através de aspectos quantitativos, ainda é motivo de discussão. De fato, a câmara
municipal olindense estava longe de ter plena autonomia, mas estava estabelecida numa
posição de solicitar negociações e fazer cobranças.

CONCLUSÕES

Como projeto de iniciação científica, o trabalho executado entre Agosto de 2016 e


Julho de 2017 chegou ao fim com um resultado satisfatório. Por meio da catalogação das
missivas, foi possível ter um contato inédito com uma instigante bibliografia, além de
documentos relevantes no debate historiográfico acerca da dimensão das câmaras municipais,
especialmente a de Olinda. Avalia-se como positivo, também, o bom aproveitamento da
tecnologia para produção de conhecimento histórico, seja no acesso a acervos digitalizados,
seja no processo de sistematização dos documentos.
Ao dar continuidade ao procedimento de catalogação, constata-se que, mais do que

188
antes do projeto, a base de documentos para estudar a câmara municipal de Olinda está com
maior sustentação para pesquisas futuras. Com efeito, munidos de uma maior variedade de
correspondências disponível para consulta pública, os debates sobre o estudo da troca de
correspondências entre a câmara de Olinda e outros poderes só tende a engrandecer. Apenas
com as consultas feitas nesta pesquisa, seguindo o referido recorte cronológico, já é possível
perceber com quem/quais instituições os oficiais da câmara de Olinda realizavam suas
negociações e sobre o que essas negociações se tratavam, fugindo de um modelo mais
generalista.
Entretanto, os resultados apresentados surgem como um pontapé inicial para que se
estabeleçam discussões mais profundas, demandando mais análises de documentos,
especialmente os anexos presentes nas cartas, podendo ser fonte de mais diversas discussões
historiográficas devido aos seus diversos conteúdos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Pernambuco século XVII. Recife: EDUFPE / EDUFAL, 1997.

BICALHO, Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral (Org.). Modos de governar: idéias e
práticas políticas no império português, séculos XVI-XIX . 2. ed. São Paulo: Alameda, 2007
BOXER, C. O império marítimo português. Lisboa: Edições 70, 2001.

CRUZ, M. D. Um Império de Conflitos: O Conselho Nacional Ultramarino e a defesa do


Brasil. Lisboa: ICS, 2015

FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F. (orgs.). O Antigo Regime nos


trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001

2015. LISBOA, B. A. V. Uma elite em crise: a açucarocracia de


Pernambuco e a Câmara Municipal de Olinda nas primeiras décadas do século XVIII.
Dissertação de mestrado. Recife: UFPE, 2011

MELLO, E. C. de. A fronda dos mazombos, nobres contra mascates: Pernambuco, 1666-1715.
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edição. São Paulo: Editora 34, 2012.

MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste,
1641-1669 . 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003

MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos flamengos: influencia da ocupacao
holandesa na vida e na cultura do norte do Brasil . 4.ed. -. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001

RAMINELLI, Ronald José. Nobrezas do Novo Mundo: Brasil e Ultramar Hispânico, séculos
XVII E XVIII. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015
189
SOUZA, G. F. C. Os Homens e os Modos da Governança: a Câmara Municipal do Recife do
Século XVIII num Fragmento num Fragmento da História das Instituições Municipais do
Império Colonial. Recife: Gráfica Flamar, 2003

ZENHA, E. O município no Brasil (1532-1700). São Paulo: Progresso, 1948.


PARTE IV

POLÍTICA,
BUROCRACIA,
ESCRAVIDÃO E
CIDADANIA NOS
OITOCENTOS.
MANDONISMO
POLÍTICO, SEGURANÇA
E MÃO DE OBRA: OS
DILEMAS DO
RECRUTAMENTO NA
PROVÍNCIA DA
PARAHYBA NA
DÉCADA DE 1860.

ALYSSON DUARTE
CABRAL

MESTRANDO (UFPE)
Encravada na região semi-árida a Parahyba teve suas ocupações territoriais no final do
século XVI, assim como ocorreu em todo território colonial essa ocupação se deu a partir do
litoral atlântico. As investidas para o interior do território, fenômeno que podemos verificar já
no iniciou do século seguinte seguiu o curso dos rios: Parahyba, Mamanguape e Sanhauá
desempenhando os rios um papel de fundamental importância nesse processo de
interiorização.

192
O cultivo nas áreas baixas (região litorânea), seguindo o território Província adentro
seguiu características de produções homogêneos (salvo raras exceções). Essas características
produtoras podem ser verificadas ainda hoje na Paraíba, onde no litoral predomina o cultivo
da cana-de-açúcar; seguindo o território em direção ao interior chegamos ao Brejo, principal
celeiro da Província na época do Imperio é no Brejo que podemos notar uma preocupação
notável com a mão de obra. Rasgando ainda mais o território provincial em direção ao Ceará
encontramos o Sertão agropecuáro com suas grandes áreas latifundiárias, onde predomina a
criação de gado. Falando sobre a pecuária no sertão Celso Furtado ressalta que a importância
desta vai além da utilização da carne para alimentação e da força motriz nos engenhos:

(...) a pecuária desempenhou certo papel de estabilizador das atividades econômicas


em seu conjunto. Nas fases de depressão da atividade econômica principal, a
pecuária podia absorver a mão-de-obra livre e a capacidade empresarial sobrantes
(...), no Brasil açucareiro o hinterland pecuário se apresentava como uma fronteira
móvel a conquistar. A abertura de fazendas de gado constitui, assim, de alguma
forma, um processo de colonização de povoamento (...) a abertura de uma fazenda
não exigia mais que algumas cabeças de gado (...).1

Marcado por famílias tradicionais, pelo paternalismo, pelo apadrinhamento, o Sertão


paraibano desde a época colonial estava marcado pelas tramas e rivalidades políticas entre

* O autor é mestrando em História pela Universidade Federal de Pernambuco.


1
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 14°ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. p. 96.
famílias tradicionais. São essas rivalidades, essas redes que na época do segundo reinado vão
marcar a política local, principalmente no entravamento de recrutas de braços para o Exército
e no envio de homens da Guarda Nacional para compor forças quando foram convocados.
O presente trabalho traz para a discussão a forte presença do mandonismo local, bem
como as tramas e redes entre as famílias político-latifundiárias na década de 1860 na
Parahyba, a escolha do recorte temporal deve-se ao fato da participação do Império na Guerra
do Paraguai (1864-1870), o que demandou um empenho dos representantes do governo
imperial na busca por braços para engrossar as fileiras dos combatentes. Na Província da
Parahyba tratamos dessa temática atrelando a mão-de-obra e a segurança, tendo em vista que
o período estudado constitui uma das últimas décadas da escravidão no Brasil, ressaltando
também o fato que na década de sessenta o Brejo paraibano passava por um período de grande
produção, de relevante apogeu econômico; este apogeu atingia também outros pontos do
estado o que engrossou todo um discurso em torno da preocupação com a mão-de-obra;
quanto a segurança percebemos que os discursos volta e meia toca no assunto, o que nos faz
pensar que era uma preocupação sempre presente na ordem do dia. Em um período que a

193
Parahyba, assim como as outras províncias do Império ficaram incumbidas de enviar braços
para honrar a pátria, a preocupação com os braços para a lavoura e com a segurança seja
individual, ou de propriedade fala mais alto.
Desta feita, somos tributários do brasilianista Richard Graham que investigou a
temática, segundo o autor o clientelismo “constituía a trama de ligação na política do século
XIX e sustentava virtualmente todo o ato político” e, “significava tanto o preenchimento de
cargos governamentais quanto a proteção de pessoas humildes, mesmo os trabalhadores
agrícolas sem terra”.2

Ainda segundo Graham:

Em nível nacional, o resultado das eleições era quase inteiramente previsível, mas
localmente, para alguns, tudo dependia do resultado. Indicações para cargos oficiais
ajudavam a ampliar o círculo de um chefe, e esse fato impelia-o a fazer pedidos às
autoridades provinciais, aos membros do congresso nacional, a ministros de
Gabinete e até ao presidente do Conselho de Ministros. Para demonstrar seu mérito
para tais indicações, tinha de vencer nas eleições, de forma que, de uma maneira
circular, mas real, ele era uma liderança por ganhar a eleição, e ganhava por ser uma
liderança. Por conseguinte, o próprio chefe local estava enredado num sistema que o
fazia cliente de outra pessoa, a qual também dependia de outras, numa série de
ligações que iam até a capital nacional3.

2
GRAHAM, Richard. Clientelismo e Política no Brasil do Século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997. p. 15-
16.
3
Idem. p.110.
Nas palavras do pesquisador nota-se o quão era importante o momento do pleito
eleitoral, sempre marcado por fraudes e violência, esse era também o momento em que os
potentados locais mediam forças, era comum lançar-se mãos de várias práticas para manter a
força política local, desde o recrutamento forçado, prisões e milícias armadas para combater o
potentado opositor, isso sem falarmos nas constantes fraudes.
Outro ponto importante a destacarmos era a lealdade do chefe local com o Governo
central, os primeiros sempre deviam favores aos últimos, seja em concessões de cargos ou em
proteção política, para Graham:
(...) o Gabinete conseguia controlar as eleições por meio de suas concessões aos
chefões locais. Tendo recebido um cargo, eles ligavam-se àqueles que o havia
concedido. Uma certa nomeação (...) não deixou de concorrer para que ele
compreendesse que a beijos não se opõe senão com abraços, escreveu um político.
O poder de nomear trazia consigo o poder de demitir, recompensas implicavam
punições, e protegidos desobedientes às vezes precisavam receber uma lição 4.

Seguindo nosso aporte historiográfico tomamos de empréstimo os estudos de José


Murilo de Carvalho, estudioso da política no Brasil imperial e na República Velha. Carvalho,
analisa a formação da elite política e do Estado Imperial, assim como a manutenção da
unidade territorial e centralização do poder, procurando entender como houve a conjuntura
entre a monarquia, a burocracia e os grandes proprietários. Dessa forma, o Estado era 194
construído por um grupo que ocupava o poder, resultando numa sociedade marcada pela
hierarquização e exclusão. Enfim, um Estado formado pela imposição dos interesses e
marcado por relações de poder entre os que compunham a elite imperial na época.

Segundo Carvalho:

O Brasil dispunha, ao tornar-se independente, de uma elite ideologicamente


homogênea devido a sua formação jurídica em Portugal, a seu treinamento no
funcionalismo público e ao isolamento ideológico em relação a doutrinas
revolucionárias. Essa elite se reproduziu em condições muito semelhantes após a
Independência, ao concentrar a formação de seus futuros membros em duas escolas
de direito, ao fazê-los passar pela magistratura, ao circulá-los por vários cargos
políticos e por várias províncias5.

A formação nessas escolas de direito referida por Carvalho era a Faculdade de Direito
de Olinda (Recife), responsável pela formação das elites nortistas e a Faculdade de Direito de

4
Idem. P. 113.

5
CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de Sombras: a política
imperial. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. P. 124.
São Paulo onde se formavam os filhos das elites sulistas. Embora que muitos nortistas
estudaram em São Paulo e vice-versa. É bom ressaltar que antes da instauração dessas
faculdades no Brasil essa elite estudava em Coimbra onde formou-se, por exemplo José
Bonifácio, o patriarca da Independência.
E nessa seara muitos voltavam para ocupar cargos públicos na burocracia imperial:
A importância do emprego público como oportunidade ocupacional era naturalmente
maior nos centros urbanos, sobretudo nas capitais do Império e das províncias, onde,
em 1872, se encontravam 10% da população, cerca de 1 milhão de pessoas. Era
também aí que a busca do emprego se dava com maior vigor, sobretudo no Rio de
Janeiro, onde boa parte das oportunidades no comércio era tomada por estrangeiros.
Se calcularmos que cerca de um terço do funcionalismo geral estava no Rio (cerca
de 15.000 pessoas), e que, segundo o Censo de 1872, a população masculina livre
ocupada desta cidade era de cerca de 85.000 pessoas, veremos que o emprego
público correspondia a mais de 15% do total de empregos, um número certamente
muito alto6.

Este grupo elitista mencionado por Carvalho estava enraizado na política imperial do
Brasil há algumas décadas, defendendo seus interesses e manobrando-se através de seus
cargos para manterem-se no poder. Conforme ressalta Dolhnikoff (2003, p. 432):

[...] a unidade e a construção do Estado foram possíveis não pela ação de uma elite

195
bem formada, articulada ao governo central, mas graças a um arranjo institucional
que foi resultado dos embates e negociações entre as várias elites regionais que
deveriam integrar a nação.

Eram grandes proprietários de terras, burocratas, diplomatas dentre outros que


disseminados por todos os pontos do império constituíam-se nos representantes dos interesses
imperiais nos diversos recantos do território. Essas manobras davam-se graças ao poder
econômico e simbólico que estes detinham nos arredores, o que englobava desde a cozinheira
do casarão ao dono do armazém. Para expandir ainda mais seu poder o coronel (fazendeiro)
adotava uma prática bastante comum: o filho mais talentoso era mandado pra estudar Leis em
Coimbra, o mais novo pra ser padre, enquanto o mais velho era o responsável por gerir a
herança. Estava desenhado o esquema de continuação e manutenção da relação de poder que
imperou por décadas, e de certa forma ainda encontra-se enraizado no sistema político
brasileiro.
Nesse aspecto, recentemente Maria Fernanda Martins vem demonstrar que, para
compreendermos o sistema político imperial, devemos voltar nossos olhares para as elites que
compunham o cenário burocrático em suas diversas localidades, as chamadas paróquias bem
como as diversas relações, redes e conchavos clientelísticos. Assim como os outros trabalhos

6
Idem. P.185.
aqui mencionados o de Martins parte de uma análise do Centro (Conselho de Estado) para as
províncias. Martins apud Busino (2006, p. 7), traz que a elite seria:
(...) a minoria que dispõe, em uma sociedade determinada, em um dado momento, de
privilégios decorrentes de qualidades naturais valorizadas socialmente (por exemplo,
a raça, o sangue, etc.) ou de qualidades adquiridas (cultura, méritos, aptidões, etc.).
O termo pode designar tanto o conjunto, o meio onde se origina a elite (por exemplo,
a elite operária, a elite da nação), quanto os indivíduos que a compõem, ou ainda a
área na qual ela manifesta sua preeminência. No plural, a palavra ‘elites’ qualifica
todos aqueles que compõem o grupo minoritário que ocupa a parte superior da
hierarquia social e que se arrogam, em virtude de sua origem, de seus méritos, de
sua cultura ou de sua riqueza, o direito de dirigir e negociar questões de interesse da
coletividade.

Nesse aspecto, além de ditar os rumos da política local à figura do coronel era
responsável no período das eleições por arrebanhar os votos de seus agregados, compadres e
de quem dele dependesse para compor alianças com seus aliados políticos. Alianças estas que
iam desde um cargo político na Vila até ao mais alto posto político do escalão imperial.
Entretanto, essa influência não era apena política, as práticas clientelísticas iam além da
obrigação em conseguir as quantidades de votos necessárias. Na época dos recrutamentos, por
exemplo, esses coronéis desempenhavam um papel de suma importância, eram eles os

196
responsáveis pela proteção de seus aliados e agregados, por outro lado, eles também poderiam
influenciar de forma direta para que os protegidos dos adversários políticos fossem
convocados.
Outro que debruçou-se sobre o impacto do clientelismo, estendendo-a para a Guarda
Nacional foi o historiador gaúcho André Fertig7, a analisar o papel exercido pela milícia entre
os poderes central e local no Rio Grande do Sul do oitocentos o autor entende:
[...] o clientelismo como política fundamentada nas relações pessoais, nas quais o
que está em questão são trocas de favores, em que geralmente aquele que detém o
poder concede a outro algum tipo de auxílio e proteção, através de cargos e outros
favores, e recebe em troca a fidelidade de seu subordinado [...].

Em seu livro clássico Coronelismo, Enxada e Voto (2012), o cientista político Victor
Nunes Leal analisou a prática do coronelismo, percebendo que ele superava os ditames do
mandonismo local. No mesmo trabalho, Nunes Leal tece comentários sobre as milícias
armadas pela elite rural, segundo o estudioso antes da instituição da Guarda Nacional e até
que esta se organizasse registrou-se a formação de milícias armadas, estas eram criadas nos
municípios e contavam com a legalização do Estado, com o intuito de castigar os culpados em
crimes de polícia.

7
FERTIG, André Atila. Clientelismo político em Tempos Belicosos: A Guarda Nacional da Província do Rio Grande
do Sul na defesa do estado imperial centralizado (1850-1873). Tese de Doutorado em História. Porto Alegre:
UFRGS/IFCH, 2003.
Como podemos notar nas palavras dos autores estas milícias não tinham apenas o
intuito de atender os interesses políticos dos coronéis, sua força consistia também na punição
da criminalidade formando um poder disciplinador capaz de colocar ordem coibindo os
crimes e as indisciplinas. Na Parahyba estas tarefas demandavam grande empenho por parte
dos “representantes das leis” nas respectivas comarcas e municipalidades, tendo em vista, que
em algumas correspondências dos presidentes da província encontramos ressalvas sobre a
importância dos coronéis locais, tanto no que diz respeito à garantia da ordem como no
recrutamento de homens para compor as forças que seguiam para a guerra.
Além da preocupação com a mão-de-obra podemos verificar também discursos com a
segurança da propriedade e da pessoa individual, no trecho a seguir retirado do relatório do
Presidente da Província em julho de 1865 notamos essa preocupação:

É a segurança de pessoa e de propriedade, que maior attenção deve merecer da parte


d’ aquelles, a quem é confiada a administração pública, porque cada vez que estas
forem attacadas se põe em perigo a manutenção e o respeito às leis, que nos regem;
e, perdido esse respeito e dado o primeiro passo na carreira do crime, a ordem e
tranqüilidade pública são também ameaçadas em seos fundamentos.8

Esse discurso nos leva a pensar outra questão importante, tendo em vista que partiu do
presidente da Província Odorico de Moura; nele podemos notar, sobretudo, o quanto o 197
mandonismo local ditava as regras na província naqueles anos. O envio de homens para o
conflito poderia, e deveria ser feito, afinal “as províncias medirão sua importância pelo
número de homens que enviar ao conflito”, mais jamais o território e a população local
poderia ficar desguarnecidos.
O Presidente ressalta ainda a emergência da administração pública em coibir os
constantes crimes e delitos que vinha em ascensão na Província no primeiro semestre de
1865: “Do 1°. de janeiro ao ultimo de junho deste ano o numero dos criminosos capturados
sobe a 131, que se classificação assim”:

8
Exposição com que Exm. Sr. Dr. Sinval Odorico de Moura Passou a Administração da Província da Paraíba ao
Exm Sr. Dr. Felisardo Toscano de Britto. 26 de julho de 1965. p.4.
De homicídio.........................................29
De tentativa de homicídio.....................12
De ferimentos........................................26
De furto...................................................5
De roubo..................................................2
De estellionato.........................................3
De estupro...............................................1
De resistência..........................................3
De reduzir à escravidão...........................5
De damno................................................5
De fuga de presos..................................10
De rapto...................................................1
De injurias...............................................1
De infantecidio........................................1 198
De falsidade.............................................1
Quebra de termo de bem viver..................1
De moeda falsa.........................................1
De perjúrio.................................................1
Desertores.................................................23
Total = 131 7

É por meio destes discursos que percebemos o papel desempenhado pelo mandonismo
local, onde o presidente da Província em todo instante ressalta que o território deveria ficar
guarnecido. Esse mesmo discurso escancara também como se dava as relações entre os
representantes do governo imperial e os potentados políticos locais; esses potentados gozavam
de uma relação com o governo central, relação esta que não era qualquer uma, uma vez que
foi possível negociar para que os braços parahybanos ficassem guarnecendo a província uma
vez que esta ficava cada vez mais violenta. Todavia, ressaltamos que os dados apresentados
acima referentes a meados de 1865 acompanhado do discurso do aumento da violência é parte
de uma estratégia do governo local em manter os “filhos da terra” em casa, a parahyba não
estava tão violenta naquele ano, uma vez que nos anos anteriores os números de delitos se
equivalem ou são maiores do que em 1865.
Em janeiro desse mesmo ano o decreto n°. 3.383 destacava a Guarda Nacional em
todas as províncias do império para marchar rumo ao Paraguai, a notícia desta medida não foi
bem recebida entre as elites locais, tendo em vista que além de sucateada esta instituição era
composta por membros da elite paraibana que em “nenhuma hipótese” admitia a participação
de seus filhos no conflito. Em meados de 1868 o presidente da província Odorico de Moura
lamenta as dificuldades em conseguir apoio dos comandantes da milícia no sertão da
província:
Sinto, entretanto dizer que nenhum resultado me foi possível obter de semelhante
providencia, visto como até a data, em que fiz entrega da administração, um só
Guarda não recebi do alto sertão, apezar das repetidas ordens, que para ali expedi.9

O discurso de Sinval Odorico de Moura com suas palavras carregadas de desculpas é


típico de quem não estava em uma posição confortável nos idos daqueles anos. É um discurso
voltado para o governo central a quem precisava se justificar por não conseguir enviar o
número de guardas nacionais solicitados pelo decreto de janeiro de 1865. Maranhense de
Caxias, Odorico de Moura é um personagem que fez história na política parahybana, seus
199
mandatos longos para o cargo da época 1864-1865, bem como sua volta a presidência da
Província em 1868 mostra que o mesmo gozava de algum prestígio junto ao mandonismo
local.
A guerra contra o Paraguai demandava maior empenho na política nacional, neste
contexto marcado por exacerbação da luta política foi instituída a Liga Progressista,
“migração de conservadores moderados em direção às hostes liberais, era uma coalizão
partida dos escalões superiores dos dois partidos”. Esta aproximação, ou ao menos tentativa
de aproximação, deu-se durante a gestão do Gabinete Olinda (maio de 1865 a julho de 1866),
segundo Wilma Costa10 o próprio “Olinda procurava caracterizá-lo como apartidário até
mesmo como condição para sua total imersão nas medidas da guerra”.Foi durante a gestão do
Marquês de Olinda, cujo limite de vida do partido pode ser verificado acima, que o conflito
ganhava novos contornos, desnudava-se novos desafios estratégicos, afinal a proposta
passaria da defensiva para ofensiva. Os entusiasmos iniciais dos Voluntários da Pátria foram
tornando-se aos poucos exíguo.

9
Relatório de exposição do Presidente da província da Parahyba Sinval Odorico de Moura ao seu sucessor Felisardo
Toscano de Brito, Parahyba do Norte 2 de Julho de 1868. P.12.
10
COSTA, Wilma Peres. A Espada de Dâmocles: o exército, a guerra do Paraguai e a crise do império: Campinas,
SP. Editora Hucitec, 1996 p.222.
No império brasileiro alguns diplomatas divergiam se não em parte, ao menos em
alguns aspectos do rumo que o conflito tomara:

Quando o conflito se tornou uma luta de posições, em 1866, ouviram-se importantes


vozes a criticar sua duração. A guerra era, segundo o senador Pompeu, consumidora
de recursos e causadora de uma possível ruína no país. Opinião com a qual
concordava o barão de Cotegipe, para quem ‘a maldita guerra atrasa-nos meio
século’!11

Contudo, os esforços diplomáticos voltavam-se para o intuito em deixar as desavenças


de lado e imbuir-se na causa comum: A guerra contra a República paraguaia. Neste contexto,
as redes clientelísticas nas diversas províncias constituíram a principal válvula de escape na
busca por reforços, como aponta a documentação pesquisada; era preciso um maior
contingente para o desafio proposto, além de suprirem as constantes baixas por deserções e as
constantes epidemias que dizimavam os batalhões; segundo Francisco Doratiotto (2002):

A epidemia de cólera matou, até fins de maio de 1867, 4 mil soldados brasileiros,
dos quais cerca de 130 oficiais, para logo em seguida desaparecer. Desse modo, o
Exército imperial sofreu perdas equivalentes a uma batalha decisiva, sem sair do
lugar.

Na Parahyba os longos anos da Guerra do Paraguai também foram marcados por


discursos e cartas em busca de recrutas como podemos notar acima nos governos de Odorico 200
de Moura, porém não é uma realidade exclusiva daquele presidente. Em outubro de 1867
quando a Província era governada interinamente pelo vice-presidente o EXM. SR. Barão de
Marau o palácio do governo recebe o seguinte circular advindo do Ministro da Guerra Lustosa
Paranaguá:

Em cartas confidenciaes de 14 de julho e 15 de setembro deste anno, ponderei a V.


Exc. a necessidade de remetter quanto antes para esta Côrte Recrutas, Voluntários e
Guardas Nacionaes designados afim de irem engrossar as fileiras do nosso exercito;
agora recommendo à V. Exc. que redobre de esforços, e seja seu constante empenho
a remessa de novos contingentes.12

Os dramas em conseguir recrutas para honrar a pátria no conflito não eram exclusivos
da Província nortista da Parahyba, pelas bandas do sul os dilemas encontrados pelas
autoridades imperiais seguiam o mesmo caminho:

Em novembro de 1866, Osório comunicou a João Lustosa Paranaguá, presidente do


gabinete liberal que governava o Brasil, a dificuldade em se obter novos soldados no
Rio Grande do Sul, província tradicionalmente supridora de recursos humanos e
materiais para as ações militares no Prata. Havia demora na organização de novas

11
DORATIOTO, Francisco. A Formação dos Estados Nacionais no Cone Sul. In: A América do Sul e a
Integração Regional. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), 2012, p. 19-41.
12
Circular. - Gabinete do Ministro. - Ministério dos Negócios de Guerra. - Rio de Janeiro, em 2 de Outubro de
1867.
tropas, escreveu Osório, porque muitos se esconderam nas matas, enquanto outros se
refugiaram no Uruguai. Poucos meses depois de iniciada a guerra, São José do Rio
Preto, minúscula vila paulista, foi abandonada por todos os habitantes, que fugiram
para as matas, de modo a evitar o recrutamento; na localidade ficou apenas o
subdelegado, que desempenhava a função de recrutador. Em São Paulo, 168 dos
1615 convocados, em 1865, para irem à guerra pagaram 600$000 réis por pessoa
para escaparem do serviço militar.13

Foram tempos difíceis para um Exército em formação durante o conflito, onde as


intempéries do tempo, as doenças, as baixas no campo de batalha e as próprias deserções
tiraram o sono daqueles patriotas mais bem entusiasmados e dedicados no teatro da guerra.
Na parahyba o mandonismo local freou o quanto pôde no envio de homens para o
front, todavia as divergências políticas também vieram à tona na Província, a famosa frase
“aos amigos tudo, aos inimigos à letra fria da lei” encontra por aqui bastante respaldo. As
famílias da elite política parahybana, com suas constantes redes e tramas políticas se
movimentaram para enviar os filhos das famílias rivais para o combate. Vejamos como um
memorialista relata essa questão:
Triste foi uma parte do recrutamento entre nós, onde predominou a perseguição
política. Muitos se alistaram levados pelo entusiasmo patriótico, mas uma outra
parte foi ‘voluntário da corda’. Eram arrancados à força dos seus lares e chegavam à
Capital paraibana (Parahyba, na época) acorrentados. A imprensa denunciava esta
201
atrocidade: ‘Basta trabalhar em Engenho de algum conservador ou ter nelle sua
residência, para ser immediatamente remetido a essa Capital o pobre guarda, a fim
de fazer parte do destacamento.’ E mais: ‘O povo que assiste ao deprimento
espetáculo, chama a esses grupamentos humanos de BANDO’... E ainda: ‘... um
novo espetáculo aflitivo presenciou esta capital, com a entrada do destacamento
policial ao mando do Alferes Paes Barreto, que trouxe do Pilar cerca de 30 Guardas
Nacionais para o destacamento de Guerra, todos de Gargalheiras ao pescoço...14

De uma forma, ou de outra, percebemos em discursos como estes como deram-se os


recrutamentos na Parahyba, isso sem contarmos que os braços enviados da Província não
foram tantos, como já relatamos anteriormente. Os combatentes paraibanos saiam de seu lar já
de uma forma abrupta, acorrentados, esses homens muitas vezes nem armas sabiam manusear,
realidade que não era exclusiva da Parahyba, o que explica em parte o despreparo do Exército.
Sem dúvidas a mão-de-obra na Província foi uma preocupação constante ao longo de
toda a década de 1860. Não devemos esquecer que a lei Eusébio de Queirós de 1850 proibia o
tráfico negreiro em todo território imperial; mesmo não dispondo de um grande número de
cativos por estas décadas a Parahyba conhecia nesses anos uma áurea de efervescência

13
DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
14
RAMOS, Adauto. A Paraíba na Guerra do Paraguai / Adauto Ramos – Paraíba: Sal da Terra Editora. 2 Ed – 2010.
p 8-9.
econômica. Vejamos o que diz o trecho do relatório da Assembléia de 1863 onde trata da
Fazenda Provincial:
A vista do balanço provisório concernente ao exercício de 1863 a receita arrecadada
até fim de Dezembro desse anno importou em Rs. 355:628$119, sendo a orçada na
importância de Rs. 266:778$355. Comparadas as cifras da receita e despeza
realisadas, resulta um saldo de Rs: 92:549$937, o que é muito favorável para as
rendas da Província.15

E diz ainda mais; “Este resultado lisongeiro, que apresentão as finanças da Província, é
devido ao alto preço do algodão, e ao maior desenvolvimento da sua cultura; tendo a
producção deste gênero attingido à mui largas proporções nestes últimos dois annos”. Por
certo esse apogeu econômico vivenciado nas áreas baixas e de solos férteis, tanto no brejo
como no litoral constituiu um fator de grande debate na política provincial da época, causando
a preocupação com a mão-de-obra local, ressaltamos que esse não foi o único fator por
atravancar o número de recrutas, mais sem dúvida foi um dos principais.
Além da mão-de-obra na lavoura, outra frente de trabalho segurava os braços
paraibanos na Província: as obras públicas. Os anos 1960 são marcados por várias delas, obras
que trouxeram melhorias para a população local mais que precisaram de um empenho muito
grande por parte das autoridades políticas da época, sendo recomendadas em várias
202
documentações:
É notável que dispendendo esta Província annualmente não pequena somma com o
serviço de obras publicas, não se tenha dado uma organisação regular a semelhante
serviço. Sente-se falta de systema, de ordem e escripturação; nem ao menos existe
um archivo onde se guardem e colleccionem os papeis concernentes a esse serviço
publico, como plantas, mappas, orçamentos, etc, etc. Existem elles espalhados pela
Secretaria do Governo, pelo Thesouro Provincial e por mãos dos particulares. O
Engenheiro superintendendo todas as obras não pode ter ao mesmo tempo a seu
cargo a escripturação e o archivo por maior que seja a sua atividade.16

Entre essas obras estava a reforma do próprio prédio do Thesouro Provincial, edifício
que abrigava o tesouro, a câmara municipal, o tribunal do júri e as autoridades judiciárias que
em suas salas faziam as audiências. Além desse prédio podemos enumerar outras obras de
grande porte: a ponte sobre o rio Sanhauá; a ponte da batalha assentada sobre o rio Parahyba;
a ponte de Gramame; uma estrada de rodagem entre a Capital e a povoação da Cruz do
Espírito Santo; a estrada da Gameleira que seguia em linha reta entre o Varadouro até a ponte
do Sanhauá; o calçamento da rua da Ponte situada a margem direita do rio Sanhauá; o
calçamento da rua da Areia tida como uma grande dificuldade de que se resentia a Capital; o
aterro da ladeira do Rosario que deveria melhorar a ligação entre a cidade alta e a cidade

15
Relatório da Assembleia Provincial, Parahyba do Norte, Novembro de 1863.
16
Relatório da Assembleia Provincial, Parahyba do Norte, Novembro de 1863.
baixa; a obra do Teatro com orçamento votado na quantia de 2:000:5000Rs pela Assembléia
Provincial.
Sem dúvidas o aumento das receitas na fazenda da Província favoreceu a construção
de grandes obras como essas, ancoradas boa parte na Capital elas denunciam de certa forma o
abandono do Interior de onde provinha a riquezas. Todavia, elas mostram o grande percentual
de mão de obra que necessitavam para que elas fossem concluídas.
Em suma, a década de 1860 na Parahyba foi marcada pelas fortes relações entre as
elites políticas locais e os representantes do governo imperial. Essas relações desempenharam
um papel primordial nos anos da Guerra do Paraguai, período em que o governo central
precisou como nunca das lealdades das províncias para engrossar as fileiras de combatentes.
Na Parahyba, o mandonismo local em seus embates conseguiu atravancar o quanto pôde o
envio da sua população masculina para o conflito. As razões para esse atravancamento estão
registrados nos documentos oficiais e periódicos da época e, enumeram como pretextos para
manter os braços masculinos na Província a garantia da segurança local e o mantimento da
mão de obra no momento em que convivia-se com um período de efervescência econômica e

203
com construções de grandes obras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BUSINO, Giovanni. Elites e élistime. Paris: Presses Universitaires de France, 1992. p. 4.


CABRAL, Alysson Duarte. Recrutamento e Alistamento Militar em Tempos de Lítigio: a
força do clientelismo político e das relações de poder na província da Parahyba durante
a Guerra do Paraguai (1864-1870). História: Conhecimento e Profissão: XVII Encontro
Estadual de História - ANPUH – PB, Guarabira, julho 2016.
CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de
Sombras: a política imperial. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
COSTA, Wilma Peres. A Espada de Dâmocles: o exército, a guerra do Paraguai e a crise do
império: Campinas, SP. Editora Hucitec, 1996.
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Janeiro. Biblioteca do Exército Editora, 1980.
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consolidação política da Coroa no Rio Grande do Sul (1850-1880). Tese de Doutorado em
História. Niterói, RJ: UFF, 2010.
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do Sul e a Integração Regional. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), 2012,
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DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra: Nova História da Guerra do Paraguai. São Paulo:
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DOURADO, Maria Teresa G. A História Esquecida da Guerra do Paraguai: fome,
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FERTIG, André Atila. Clientelismo político em Tempos Belicosos: A Guarda Nacional da
Província do Rio Grande do Sul na defesa do estado imperial centralizado (1850-1873). Tese
de Doutorado em História. Porto Alegre: UFRGS/IFCH, 2003.
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 14°ed. São Paulo: Companhia Editora
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transgressão na capitania da Paraíba (1750-1800). Tese de Doutorado em História. Recife:
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204
LEAL, Victor Nunes, 1914-1985 Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime
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MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: um estudo sobre política e
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RAMOS, Adauto. A Paraíba na Guerra do Paraguai. João Pessoa, Sal da Terra Editora –
2010 48p.
MAPEAMENTO DO
COMÉRCIO DE
ESCRAVIZADOS NOS
BAIRROS CENTRAIS DO
RECIFE, 1831-1844.

ARTHUR DANILLO
CASTELO BRANCO
DE SOUZA

MESTRANDO (UFPE)
Os anos que vão da afirmação do tratado com a Inglaterra entre 1826-1827, sua
entrada em vigor em 1830 e a promulgação da primeira lei brasileira antitráfico de 1831,
serão anos de grandes entradas de africanos no Império brasileiro. A demanda por mão de
obra escrava aumentou simultaneamente as negociações entre o recente Império do Brasil,
que necessitava de reconhecimento internacional e a maior potência ultramarina do século
XIX, a Grã-Bretanha, que prometeu dar o mesmo reconhecimento caso o tráfico de africanos
fosse cessado.1 Após a promulgação da lei em 1831, segundo Bethell2, podemos observar uma
queda nas importações de africanos, durante mais de dois anos, de meados de 1830 a fim de
206
1832 pouquíssimos escravos foram importados para o Brasil. Certamente devido às incertezas
ocasionadas pela aprovação da nova lei. Possivelmente nestes anos iniciais de incertezas, os
traficantes estavam estudando as alternativas, reatualizando redes e táticas. Planejando novas
formas de manter o abastecimento da mão de obra escrava africana. Ou até mesmo desistindo
dos negócios. No início dos anos de 1830, o tráfico para Pernambuco havia diminuído tanto,
que o cônsul britânico chegou a acreditar numa extinção efetiva do comércio negreiro.3
Se tratando da lei de 1831 há uma variedade de discussões acerca da mesma, que já
foi e continua sendo matéria de vários estudos historiográficos. 4 Existem duas fortes correntes
historiográficas que se destacam neste percurso. A primeira destas diz que a lei foi forjada

* O autor é mestrando em História pela Universidade Federal de Pernambuco.


1
Para este assunto ver: BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: A Grã-Bretanha, o Brasil
e a questão do comércio de escravos 1807-1869 . Tradução de Luís A. P. Souto Maior. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2002. CARVALHO, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850.
Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010, principalmente a parte 2: Tráfico, traficantes, sociedade
pernambucana.
2
BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: A Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do
comércio de escravos 1807-1869 . Tradução de Luís A. P. Souto Maior. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2002. p.96.
3
CARVALHO, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Editora Universitária
da UFPE, 2010. p.115.
4
BETHELL, Leslie. Op. Cit.
graças à pressão inglesa sobre o governo Imperial.5 A segunda, não descarta a pressão inglesa,
mas explica a “abolição” a partir da pressão feita pelos políticos brasileiros.6 A primeira
vertente assinala a busca da Inglaterra por mercados consumidores, necessitando para isso de
trabalhadores livres e assalariados que pudessem consumir produtos manufaturados e também
de mercados que aceitassem a entrada destes mesmos produtos. A Grã-Bretanha só
reconheceria a independência brasileira após as afirmações e execuções dos tratados que
estipulavam o fim do comércio negreiro. Os maiores traficantes do século XVIII (os ingleses)
se tornariam no século XIX os maiores adversários deste “infame comércio”. Os brasileiros
não deram tanto crédito à causa humanitária da Inglaterra. Acreditavam firmemente que seu
objetivo seria primeiro: arruinar a agricultura brasileira em benefício dos interesses das Índias
Ocidentais britânicas e, segundo, romper os laços do Brasil com a África para facilitar a
expansão britânica lá e, subsequentemente, o desenvolvimento do continente africano como
um rival econômico do Brasil.7
Já a segunda vertente assinala a importância das discussões parlamentares acerca da
promulgação da lei de 1831, apontando que a obrigação de criação de uma lei não estava

207
prevista nos acordos feitos pelo Império brasileiro e o britânico. Sendo a proposta uma
criação nacional. Jaime Rodrigues, na sua obra O Infame comércio, se afasta das teorias que
enfatizam o papel da pressão inglesa no combate ao tráfico, e analisa o contexto brasileiro, os
discursos e as decisões parlamentares como fatores internos para o fim do comércio.
Enfatizando também que nos primeiros anos a lei foi aplicada em conformidade com suas
disposições e até mesmo conseguiu considerável efetividade.8 Após a promulgação da lei de
1831, em abril de 1832, foram introduzidos novos regulamentos que previam a inspeção pela
polícia e pelos juízes de paz locais de todos os navios que entrassem ou saíssem de um porto
brasileiro e o exame mais cuidadoso dos escravos postos à venda no Brasil, a fim de verificar
5
CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros — O tráfico escravista para a Brasil. São Paulo, Editora Brasiliense,
198S. Tradução de Elvira Serápicos. p.220. BETHELL, Leslie. Op. Cit.
6
MAMIGONIAN, Beatriz G. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In: Keila
Grinberg; Ricardo Salles. (Org.). Coleção Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009,
v. 1. RODRIGUES, Jaime. 2005. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico
negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo, Companhia das Letras.
RODRIGUES, Jaime. O Infame Comércio: Propostas e experiências no final do tráfico de africanos
para o Brasil (1800 – 1850). São Paulo: Editora da UNICAMP, CECULT.
7
Reclamações eram feitas sobre as atitudes do governo Britânico acusando de investirem contra a soberania
nacional do Império do Brasil e contra os comerciantes que mantinham contato com a África. Ver: “Violências
do governo Britânico contra nós!” HDBN DP 20 de Dezembro de 1845 nº 285. BETHELL, Leslie. Op. Cit.
p.90
8
MAMIGONIAN, Beatriz G. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In: Keila
Grinberg; Ricardo Salles. (Org.). Coleção Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009,
v. 1. p.224.
se eles tinham sido importados antes de 13 de março de 18309. Este regulamento que concedia
aos poderes locais a jurisdição sobre os casos verificados de tráfico ilegal acabou por gerar
um clima de conivência favorável aos traficantes, que ao serem supostamente investigados ou
inquiridos pelos poderes locais se fizeram valer de suas redes e conhecimento locais também.
O julgamento por júri, segundo Beiguelman passou a garantir a impunidade das
infrações sobre a lei de 1831.10 Mesmo com evidências muitas vezes claras, o júri absolvia
muitos infratores. Segundo aponta Mary Karasch, “grandes somas de dinheiro foram gastas
com subornos, que eram distribuídos no Brasil para capitães do porto, agentes alfandegários,
juízes municipais e até mesmo para o Chanceler da legação portuguesa.” Ressalta ainda a
autora que ao lado da cooperação dos oficiais do governo e dos políticos, muitos brasileiros
ajudavam as embarcações negreiras a desembarcar na costa, dando informações a respeito dos
lugares de desembarque, localização dos cruzeiros ingleses e condições do mercado.11 Porém
nem todos eram coniventes, ou se mostravam desta forma. Em julho de 1831 o Juiz de Paz do
Recife fazia uma petição aos moradores da freguesia para que denunciassem os negociantes
nacionais ou estrangeiros que eram envolvidos “com desonra da humanidade o vergonhoso
contrabando de introduzir escravos da Costa´d´África, nos portos desta província.” 12 O que
nos faz acreditar que existiu uma relação de conflito e negociação entre as autoridades,
208
incumbidas de cumprirem a lei, e os negociantes e traficantes de escravos.
Segundo dados fornecidos por Carvalho no período do tráfico ilegal, entre 1836 e
1850 pelo menos 40 mil escravos foram trazidos ilegalmente para Pernambuco. O maior pico
do tráfico ilegal, segundo o autor, começa a se configurar a partir do ano de 1837, não seria
coincidência ser este o ano marcado pelo “Regresso conservador”. Entre os anos de 1837-
1839 podemos identificar para Pernambuco o maior índice de entrada de africanos
ilegalmente escravizados. Durante a década de 1840, as importações aumentam para as praças
do Rio de Janeiro e da Bahia, enquanto os números diminuem para Pernambuco e a partir de
1845 o processo de queda do comércio para a província se acentuou.13 Em 1850, houve uma
tentativa de retomada, com um relativo aumento e a entrada de 2.300 escravos. No geral,
Carvalho diz que essa queda na década de 40 é interessante, já que no período de 1845-1850

9
BETHELL, Leslie. Op. Cit. p.93.
10
BEIGUELMAN, Paula. Formação política do Brasil. São Paulo: Pioneira, 1976. p.8
11
KARASCH, M. A vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808 – 1850). São Paulo: Cia. das Letras, 2000. p.43.
12
ALBUQUERQUE, Aline. E.de B. “De Angello dos retalhos” a Visconde de Loures: a trajetória de um
traficante de escravos (1818-1858). Dissertação de mestrado. 2016. UFPE. p.47.
13
CARVALHO, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Editora
Universitária da UFPE, 2010. p.132-133.
as exportações de açúcar pernambucano aumentaram14. Entre 1837 e 1841, temos a estimativa
mínima da entrada de africanos no Brasil computada numa cifra de 205.500 cativos, destes,
algo em torno de 28 mil foram levados para Pernambuco.15 As denúncias se multiplicavam,
assim como a atividade ilegal neste período. Em 1837, dizia o cônsul lusitano em Pernambuco
que os cativos eram desembarcados à luz do dia e levados para dentro das povoações, sem o
“mínimo embaraço”. O governo era conivente e a população estava envolvida no
negócio.(CARVALHO, 2009:157). Já em Julho de 1841 o cônsul inglês no Recife alertava
seu governo sobre a grande atividade dos traficantes na região, atribuindo-a à falta de
vigilância das autoridades superiores da província, ao abuso de poder das autoridades
menores e a corrupção da justiça pelos traficantes.16 Segundo Fragoso e Florentino a
sociedade brasileira escravista do oitocentos tinha um compromisso com a exclusão, onde até
mesmo a possibilidade de um cativo tornar-se livre e adquirir um ou mais escravos foi real.
Esta pulverização da mão de obra cativa contribuiu para o prolongamento da questão do fim
do tráfico atlântico. Para os autores é exemplar deste comprometimento de grande parte da
população com a exclusão, o registro dos emissários da Anti-Slavery Society em 1840, onde
observaram que “não se poderia contar com os brasileiros livres de cor para engrossar o
movimento abolicionista.”17 Não seria fácil combater o tráfico numa sociedade fundamentada
209
neste negócio, de grande proveito e benefícios para seus agentes em contraposição a situação
dos africanos vitimados pelo comércio negreiro.
O período entre os anos de 1837-1844 coincide também com o governo do Barão e
futuro Conde da Boa Vista. Aliado do Regente Araújo Lima, expressivo representante do
“Regresso”.18 Período marcado também pelo aumento da importação de africanos para as
praças brasileiras, não sendo diferente para Pernambuco como mostrado. As reformas urbanas
promovidas por Rego Barros foram obras patrocinadas por dinheiro de negociantes que entre
outros negócios, estavam amplamente envolvidos com o comércio negreiro. Servindo a
conivência com o tráfico como uma forma de devolver os “favores” prestados ao governo da
província. “Uma mão lavando a outra”, ou melhor, “uma mão sujando a outra”. Segundo

14
CARVALHO, op. Cit. p.135.
15
REIS; João José. GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus O Alufá Rufino: Tráfico,
escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 – c.1853). Companhia das Letras, São Paulo.
p.113.
16
REIS; João José. GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus Op. Cit. p.113.
17
JOSÉ MURILO DE CARVALHO Apud FRAGOSO, João. FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como
projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia, Rio
de janeiro, c.1790- c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p.237.
18
ALBUQUERQUE, Aline. E.de B. Op. Cit. p.50.
Amanda Gomes, numa análise feita das firmas comerciais residentes em Pernambuco no ano
de 1839, foram listadas “22 firmas pernambucanas, 10 portuguesas, 22 inglesas, 8 francesas e
12 de localidades diversas. Sabe-se que das 22 firmas comerciais pernambucanas, 11
pertenciam aos renomados traficantes de escravos daquela Praça.”19 Ainda segundo Amanda
Gomes, Francisco Rego Barros foi acusado da venda de escravos e de cavalos roubados com a
ajuda de seus parentes. Na redação do Diário Novo do dia 21 de janeiro de 1845 sairia uma
acusação sobre a autorização dada por Rego Barros para o desembarque de escravos ilegais
em um engenho seu, que serviria de “alfândega particular” onde o barão poderia escolher, em
troca de sua conivência e ajuda, dois escravos de cada carregamento que chegasse ao dito
engenho20. Os cativos importados ilegalmente ou já eram distribuídos nas praias onde eram
desembarcados, ou eram levados em caravanas para as cidades com certo risco de perda da
“mercadoria” para ladrões ou adversários políticos. Na cidade, postos à venda, passavam
também por “caracterizações” para tentar burlar a fiscalização, afinal de contas muitos cativos
“boçais”, recém chegados, deveriam estar sendo postos a venda como “ladinos”, “da Costa”,
“africanos”, termos que encontramos com frequência e que deixam ares de negócios legais.

210
Passemos a compreender um pouco do comércio de escravos a retalho nos três
principais bairros da urbe pernambucana, o Recife, o bairro portuário por excelência, Santo
Antônio, um bairro mais lojista e comercial e a Boa Vista, um bairro mais residencial. Estes
bairros são considerados pela historiografia como o eixo principal da atividade urbana de
Pernambuco, livre ou escrava.
Colhemos informações de 816 anúncios contidos no Diário de Pernambuco entre os
anos de 1827-1838, referentes à venda de escravos e escravas designados como sendo de
“nação”, “africanos”, “ladinos”, “boçais”, entre outras denominações que nos remetem a
escravos importados do continente africano. Os anúncios analisados dizem respeito aos três
principais bairros da urbe pernambucana como já foi frisado.21 A partir destes anúncios

19
BARLAVENTO, Amanda Gomes. O BARÃO TRAFICANTE E AS REDES SOCIAS DO TRÁFICO:
FRANCISCO ANTONIO DE OLIVEIRA, 1820 – 1855. Disponível
em:http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos7/amanda%20barlavento%20gomes.p
df. pp.7-8.
20
BARLAVENTO, Amanda Gomes. O BARÃO TRAFICANTE E AS REDES SOCIAS DO TRÁFICO:
FRANCISCO ANTONIO DE OLIVEIRA, 1820 – 1855. Disponível
em:http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos7/amanda%20barlavento%20gomes.p
df. p.10.
21
Os anúncios pesquisados e analisados aqui são referentes aos anos de 1827-1838 das publicações do Diário de
Pernambuco. Tendo em visita a grande quantidade de anúncios varejistas e de pouca ou singulares frequências
decidimos por trabalhar endereços a partir de 15 anúncios. Sendo o endereço com o menor número de escravos
anunciados para venda a Praça da União, com 17 anúncios no bairro da Boa Vista e o endereço com maior
quantidade de escravos a venda a rua Direita no Bairro de Santo Antônio com 110 anúncios. Hemeroteca da
chegamos a algumas considerações que não podem nem de longe serem consideradas
absolutas, porém podemos inferir através desta fonte certas frequências, estabilidade e
relações entre alguns endereços e o comércio de escravos a retalho. Nas ruas do bairro de
Santo Antônio, por exemplo, identificamos um forte comércio de escravos a retalho,
levantamos para as principais ruas deste bairro, destacadas no comércio de escravos um total
de 572 escravos e escravas sendo vendidos entre os anos de 1827-1838. Sendo o número de
mulheres 339 (59%) e de homens 233 (41%). Confirmando alguns apontamentos da
historiografia sobre este bairro.
O bairro de Santo Antônio concentrou a maior parte da população dos três bairros
principais do Recife, segundo o censo de 1828, tendo uma menor proporção entre escravos e
livres, sendo o número de seres humanos escravizados de 3.019, distribuídos em 1.657
escravas e 1.362 escravos e de livres computados em 10.403.22 Como bem observa Carvalho,
não só o número de mulheres escravizadas supera o de homens escravizados como os de
mulheres livres (6.215), supera o de homens livres (4.188). Isto faz de Santo Antônio o bairro
“mais feminino do Recife” nas palavras do historiador pernambucano.23 Sendo um bairro

211
extremamente comercial, não é de se espantar que o número de mulheres a venda supere o de
homens a venda nas ruas deste bairro. As ruas Direita, Nova, do Rosário e do Livramento se
destacam no comércio de cativos a retalho. Sendo encontrados respectivamente, 121 (15%)
102 (12%), 65(8%), 63 (8%) escravos a venda nestas ruas. Totalizando 43% de todos os
cativos africanos anunciados para Santo Antônio 572 (70% do total de 816). Estas ruas
concentrando um comércio varejista, de secos e molhados grande, numa área geográfica
muito próxima uma da outra, nos faz pensar num lugar “privilegiado”, com licença da
palavra, para a comercialização da mão de obra escrava africana e crioula também. 24
O bairro do Recife, bairro portuário, local de bastante movimento no oitocentos não
tem uma concentração de venda de escravos comparativa a Santo Antonio. O bairro de Santo
Antônio parece ter assumido na primeira metade do século XIX a posição de lócus
privilegiado do comércio de escravos a retalho. Para o Recife temos a preponderância da rua
da Cruz, com 73 (9%) escravos a venda entre os anos de 1827-1838. 40 (55%) mulheres e 33

Biblioteca nacional (HBN) - www.bndigital.bn.br e Universidade da Flórida (UF) Latin American Colections –
www.ufdc.ufl.edu.
22
CARVALHO, op. Cit. pp.52-53.
23
CARVALHO, op. Cit. p. 63.
24
Hemeroteca da Biblioteca nacional (HBN) - www.bndigital.bn.br e Universidade da Flórida (UF) Latin
American Colections – www.ufdc.ufl.edu. Diário de Pernambuco dia a dia de 01 de janeiro de 1827 a 31 de
dezembro de 1838.
(45%) homens. Para os quatro principais endereços do Recife, rua da Cruz, rua do Vigário,
Forte do Mattos e Senzala Velha que aparecem no Diário de Pernambuco concentrando o
comércio a retalho de escravos obtivemos um total de 193 anúncios (24%), 114 para homens
(59%) e 79 para mulheres a venda (41%), invertendo a tendência do “bairro feminino” de
Santo Antônio, no bairro portuário do Recife eram os homens quem prevaleciam à venda.
Importando também salientar a dificuldade encontrada em analisar estas fontes por seus vícios
de informação. Por exemplo, para a rua da Cadeia encontramos um total de 70 anúncios de
venda de escravos, porém a especificação da rua dificulta a análise no quesito quantitativo da
questão. Havia, no período estudado, duas ruas da Cadeia, uma da Cadeia velha no Recife,
atual Marquês de Olinda e outra da Cadeia nova em Santo Antônio.
A gravura de Zacharias Wagner expressa uma determinada realidade relativa ao
comércio de escravos na rua da Cruz, antiga rua dos Judeus no período do domínio holandês.
Possivelmente no período holandês o comércio de escravos estava firmado mais próximo ao
porto já que desde o tempo da ocupação holandesa, a Rua dos Judeus era a mais importante
do bairro do Recife, provavelmente em decorrência de seu traçado natural de velha estrada,

212
que conduzia viajantes procedentes de Olinda. Passando a se chamar Rua do Bom Jesus, a
partir de 1870. Registrando Zacharias Wagener o seu mercado de escravos no século XVII. 25
Porém para o século XIX podemos dizer que a gravura feita por Augustus Earle, sobre o
mercado de escravos localizado na rua da Cruz, encontrada no Diário de viagem de Maria
Graham não expressava a complexidade do comércio de escravos a retalho nas ruas do Recife.
O senso comum que costumou imputar a rua da Cruz, posteriormente do Bom Jesus a maior
concentração deste comércio de escravos a retalho pode estar correto se delimitarmos o bairro
portuário somente, mas para o Recife caracterizado como uma área urbana maior, o bairro de
Santo Antônio e suas ruas estão mais envolvidos neste comércio.
Já o bairro da Boa Vista não pode ser caracterizado nem como um bairro comercial,
sendo mais um bairro residencial, diferentemente do Recife com seu movimento portuário e
de Santo Antônio com seu movimento lojista. Nos arredores da Boa Vista, ficavam
localizados os antigos engenhos de cana de açúcar, que com o declínio da produção açucareira
em Pernambuco tiveram de mudar um pouco as atividades exercidas por seus escravos. No
censo de 1828 para a Boa Vista, temos um total de 4.070 pessoas “livres”, e uma aproximação

25
SILVA, Maria Carolina Medeiros da. A presença judaica na urbanização do Recife nos séculos XVII e XX. I
Colóquio de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco, 2007.
Disponível.Em:http://www.pgh.ufrpe.br/brasilportugal/anais/8a/Maria%20Carolina%20Medeiros%20d
a%20Silva.pdf. Acesso em 10/03/2016
entre escravos e escravas muito grande, correspondendo os primeiros a 1.144 pessoas e as
segundas a 1.132 pessoas. Para Carvalho, estes dados informam que “naquela época, havia
tempo que a escravidão deixara de ser um sistema econômico apenas, párea se tornar também
um modo de vida na capital pernambucana.”26 Temos para os principais endereços: a Praça
da Boa Vista, Rua do Aragão e Praça da União um total de 79 seres humanos anunciados (7%
do total de 816), 44 homens (56%) e 35 mulheres (44%), entre os anos de 1827-1838. Sendo
que a praça da Boa Vista se destacou com ínfimos 32 anúncios totais (4% do total de 816).
Passada esta digressão estatística que nos serve mais de farol do que de porto seguro,
tendo em vista às impossibilidades de quantificar exatamente o número de africanos a venda
no XIX, podemos continuar caminhando na trilha das fontes jornalísticas com exemplos
específicos de anúncios que tratam de comércio ilegal, da relação com traficantes
“pernambucanos” e radicados em Pernambuco. Afinal de contas estamos tratando do quarto
lugar do comércio atlântico de escravos no pódio geral, e entre os anos finais deste comércio
muita coisa aconteceu.27 Podemos vê-las sutilmente acontecerem nos anúncios de jornais do
século XIX. Principalmente após 1831.

213
Primeiramente uma questão cuidadosa no trato com as fontes jornalísticas, já sabemos
que não estamos tratando com fontes despretensiosas, se é que existem fontes deste tipo. Este
tipo de fonte fala o que o senhor pede que se fale, o que o dominante dito sobre o dominado.
Ao encontrarmos as especificações relativas ao cativos sobre suas supostas nações, povos,
línguas, costumes, não podemos tomá-las como realidade, porém como significantes de uma
certa realidade. Sobre o que se quer que pensem deles.28 Após a proibição do comércio
atlântico de escravos muitas técnicas foram utilizadas pelos traficantes de escravos para
ludibriar as autoridades portuárias, imperiais brasileiras e inglesas. Documentação dúbia,
falsificação de passaportes, bandeiras diversas, entre outras coisas já apontadas pela
historiografia.29 Para os anúncios nos jornais podemos dizer que as coisas não eram
diferentes. A partir de 1831 informações simples como idade e dados de procedência ou nação

26
CARVALHO, Marcus. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Editora
Universitária da UFPE, 2010, p.67.
27
Segundo dados do The Transatlantic Slave Trade (TSTD), os maiores centros negreiros do Brasil eram, por
ordem de importância, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Tratando-se do continente americano, as maiores
eram, na ordem, Rio de Janeiro, Bahia, Jamaica, Pernambuco e Cuba. Disponível em
http://www.slavevoyages.org
28
Sobre metodologia com “documentos da repressão” ver: BRITTO. Aurélio de Moura. Fissuras no
ordenamento: Sociabilidades, fluxos e percalços na Casa de Detenção do Recife (1861-1875). UFPE. 2014. P.11-
16.
29
REIS; João José. GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus O Alufá Rufino: Tráfico, escravidão e
liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 – c.1853). Companhia das Letras, São Paulo, p.181.
são dissimulados. Não seria mais seguro anunciar um cativo novo, recém chegados, “boçal”,
da “Costa da Mina”, se era “nagô”, “jeje”, “tapa”, “haussá”, entre outras referências que
pudessem associar os anunciantes com os traficantes de cativos. Digamos que seriam
terminologias indesejáveis de serem aplicadas devido às conjunturas do período. Aparecendo
como do gentio: “Vende-se ou troca-se um moleque do gentio, de 9 anos por uma negrinha de
12 na Pracinha do Livramento D. 33.”30. Como de nação: “Seis escravas de nação, de bonitas
figuras, duas cozinham e lavam, as quais se acham presas como cabanas no quartel dos
Municipais na Rua Direita, esquina do beco do Sirigado, 2ºandar.” 31 Estas cativas são
anunciadas como cabanas, fazendo referência a revolta que “contribuiu para um declínio de
25% da produção açucareira, por ter acontecido na fronteira da área onde estava a maior parte
dos engenhos da província.”32
Como da Costa, generalizando a costa africana, poderiam muito bem fazer passar num
anúncio um cativo importado da África Ocidental por um cativo da Centro-Ocidental: “Uma
negra da Costa cozinheira e engomadeira, costureira e rendeira, e outra dita (da Costa)
boceteira, na rua Nova casa de Caldereiro D. 13.” 33 Ou até mesmo somente como africano(a):
“Uma escrava africana, cozinha e vende na rua, e também coze, na rua do Rangel no oitão
casa onde tem venda Inácio da Rosa.” 34Estas ‘táticas” serviriam muito bem quanto ao
214
incomodo de supostas fiscalizações. Quando a nação era especificada, a idade, ou a
necessidade da tentativa de fazer com que a transação parece legal obrigava os anunciantes a
darem uma justificativa acerca da “propriedade” posta à venda. O que nos leva a pensar que
nos anos inicias da proibição do tráfico atlântico de escravos, realmente houvesse um certo
medo de que os negócios ilegais pudessem dar errado.
Para os casos computados de escravos e escravas da Costa da Mina chama-nos a
atenção de que em nenhum dos anúncios encontrados se especifica a idade dos mesmos.
Encontramos três casos para a rua Nova no bairro de Santo Antônio. “Vende-se: um negro
35
novo da Costa da Mina, na Fábrica da rua Nova.” “Um preto da Costa da Mina, apto para
todo serviço, na rua Nova por cima da Botica do Pinto.”36 E um “escravo de nação mina,

30
HDBN. DP. 11 de Fevereiro de 1833 nº34
31
HDBN DP. 20 de Novembro de 1834 nº?
32
EISENBERG apud CARVALHO, Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife:
Editora Universitária da UFPE, 2010, p. 98;
33
HDBN. DP. 20 de Julho de 1832 nº 431
34
HDBN. DP. 12 de Janeiro de 1835 nº 578
35
HDBN. DP. 03 de Agosto de 1829
36
HDBN. DP. 03 de Dezembro de 1830 nº 540
com princípio de padaria na Rua nova, número 16. 37 Não eram bobos estes anunciantes,
sabiam os risco que corriam em anunciar cativos ilegais, principalmente se não fossem
homens influentes na sociedade pernambucana.
No Recife, na rua da Cruz (atual Bom Jesus), teremos anúncios referentes a escravos
da Costa da Mina com as mesmas características dos de cima, parece até que existia uma
regra social implícita, não declarar a idade de escravos vindos da Costa da Mina. Como
podemos ver a seguir: “dois escravos, ainda novos da Costa da Mina, sem defeito, um negro
também da Costa que trabalha em caixas de açúcar, e paga 320 réis por dia, na rua da Cruz
sobrado de 2 andares, D 16, ou na praça da União nº 20.”38 E “uma negra mina, das que foram
ultimamente arrematadas em leilão, e dispõe-se dela por não haver outra na casa da mesma
Nação, que a ensine a vender na rua”.39 Todos declarados como “novos” , certamente negros
escravizados ilegalmente depois de 1815-17. Tratados reafirmados em 1826-27.40 O último
anúncio de uma cativa da Costa da Mina não nos deixa dúvida da sua ilegalidade. Devido a
afirmação da sua boçalidade e entrada recente na terra, ao afirmar que não tem uma cativa de
mesma nação para lhe ensinar a língua portuguesa, tudo isso em 1836. 41 Nem tudo poderia ser
“escondido” pelos anunciantes, e sua audácia nos chama atenção para a falta de fiscalização
ou conivência mesmo das autoridades responsáveis.
215
Um costume tão arraigado na sociedade que fez surgir duas propostas de revogação da
lei, projetos de Bernardo Pereira de Vasconcellos e Caldeira Brant, respectivamente em 1835
e 1837. Importante salientar que a proposta de Caldeira Brant (Marquês de Barbacena) de
1837 passou pelo Senado, caindo na Câmara dos Deputados. A proposta de Brant serviria aos
interesses dos senhores de escravos que tivessem adquirido estes pós 1831. Para Brant, em
1837, os verdadeiros culpados do tráfico eram os traficantes, e não os “homens bons”,
“industriosos” e membros da elite agrária do Império brasileiro. Esta relativa aprovação do
Senado da proposta de inocentar os senhores de escravos estabeleceu um cenário favorável ao
42
tráfico, sendo até mesmo espalhadas notícias de que a lei teria sido realmente revogada.
Entre outros tantos anúncios que nos dão indícios de cativeiro ilegal.

37
HDBN. DP. 07/07/1837nº144B
38
HDBN. DP. 01 de Agosto de 1831 nº 163
39
HDBN. DP. 30 de Setembro de 1836 nº 211
40
MAMIGONIAN, Beatriz G. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão. In: Keila
Grinberg; Ricardo Salles. (Org.). Coleção Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, v. 1,
p.216.
41
HDBN. DP. 30/09/1836 nº211
42
CHALHOUB, Sidney. Problema do tráfico africano de escravos na independência e formação do Estado
(Brasil, décadas de 1820 a 1740). Iberoamericana. Nordic Journal of Latin American and Caribbean Studies Vol.
XL: 1-2 2010, pp. 45-71.
Os anos de 1837-1839 são tomados como transitórios no nosso trabalho, referente aos
anúncios de escravos à venda, devido ao tempo resumido da pesquisa, seriam anos de intensa
atividade negreira e reconfigurações de métodos dos traficantes e negociantes de escravos,
tanto dos grandes quanto dos pequenos. Segundo Carvalho, entre 1837 e 1839 o tráfico para
Pernambuco cresceu especialmente por conta do fim da Cabanada (1832-1835) – que havia
contribuído, segundo já informamos, para a queda de 25% da produção açucareira, segundo
Peter Eisenberg, por ter ocorrido numa área de concentração de engenhos – e do governo do
barão da Boa Vista que favorecia os grandes plantadores. 43 Se os homens de “grosso trato”
teriam de lidar com a fiscalização britânica, principalmente após a promulgação do
Equipment act em 183944, os comerciantes de pequeno porte teriam também que adaptar seus
negócios, “pintá-los” de legal, através dos cuidados com os anúncios de venda dos
escravizados. Negros novos eram vendidos nas ruas das principais praças brasileiras todos os
dias, chocando os ingleses.45 Até o ano de 1844, ano final da presidência do Barão da Boa
Vista, teremos consideráveis entradas de escravos nos portos pernambucanos,
consequentemente muitos escravos estariam sendo anunciados nos jornais, e os termos ainda

216
continuaram dando indícios de sua ilegalidade. Em 1843 num anúncio de fuga de escravos é
informada a fuga de diversos escravos de nação, dentre eles, Antonio de 13 anos da Costa da
Mina, sua entrada mesmo se dada em 1830, no ventre da sua mãe ou ainda muito novo, seria
considerada ilegal.46 Vários deste indícios e anúncios explícitos são encontrados se olharmos
os diários. Anos passando, práticas sendo reconfiguradas, porém até 1850-51 e até mesmo
após, muita coisa ilegal pode ser contemplada através dos anúncios nos periódicos.
Vários são os nomes de traficantes que estavam envolvidos com o comércio de gente
para Pernambuco desde pelo menos a primeira década do século XIX. O comércio de
escravos para Pernambuco envolveu homens de negócios e membros da elite pernambucana
que passariam a conviver com uma nova realidade a partir da década de 30 do século XIX,
tendo que se adaptarem as novas conjunturas da política e do comércio de escravos. Iremos
trabalhar os casos mais relacionados que temos a partir das informações constantes na

43
CARVALHO, Marcus. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Editora
Universitária da UFPE, 2010, p. 98 e 137.
44
A chamada lei de Palmerston ficou conhecida como Ato do equipamento, foi uma lei unilateral inglesa que
definiu os equipamentos considerados pela marinha britânica como sendo usados no comércio ilegal de escravos.
Passando a apresar navios que estivessem equipados para o tráfico de escravos, gerando grandes repercussões.
Para mais ver: REIS, J. J; GOMES, F. dos S; CARVALHO, M. J. M. de. 2010. OP. Cit. p.190.
45
ALBUQUERQUE, Aline. E.de B. “De Angello dos retalhos” a Visconde de Loures: a trajetória de um
traficante de escravos (1818-1858). Dissertação de mestrado. 2016. UFPE. P.60.
46
HDBN. DP. 18 de Janeiro de 1843 nº 14
documentação analisada, principalmente o Diário de Pernambuco, e a historiografia acerca do
comércio de gente párea Pernambuco. Observamos uma gama de configurações sociais e
culturais que caracterizam a comunidade de traficantes pernambucanos, como uma
comunidade global, envolvida no nefando comércio de seres humanos.47
Entre os anos de 1830 e 1840 é comum nos periódicos à citação do nome dos Ribeiro
de Brito, e sua relação com o tráfico de escravos fica patente. As páginas dos jornais nos
confirmam as especulações historiográficas e nos fazem visualizar uma grande rede montada
para o tráfico de escravos e outros comércios em torno desta família. Em Abril de 1830 o
Brigue Abismo dá entrada em Pernambuco com uma carga de 208 escravos, dos quais
morreram 12, consignados a Francisco Ribeiro de Brito. Na lista de passageiros consta ainda
uma Dona chamada Josefa Francisca Ferreira de Brito, certamente esposa de Joaquim Ribeiro
de Brito e cunhada de Francisco Ribeiro de Brito.48 Se atentarmos para a data da entrada
destes africanos no porto do Recife, veremos que se deu após os tratados assinados entre o
Império do Brasil e a Inglaterra em 1826-1827. Já que o mesmo tratado estipulava que após
três anos, ou seja em 13 de março de 1830, de sua ratificação o tráfico de escravos seria
considerado pirataria. Mesmo assim, o “pirata”, Francisco Ribeiro de Brito consegue fazer
entrar um número significativo de escravos na província. 49
217
As ligações eram fundamentais, tendo em vista os altos investimentos que eram feitos
por estes homens nos seus negócios negreiros. Na década de 1820, Ângello Francisco
Carneiro, outro conhecido traficante português radicado em Pernambuco se associou a
Joaquim Ribeiro de Brito, brasileiro, irmão de Francisco Ribeiro de Brito, provavelmente
pernambucano. Joaquim Ribeiro de Brito já era o capitão de ordenanças da cidade de Luanda
por volta da década de 1830 e tinha parte de seus negócios radicados em Pernambuco,
50
possivelmente em sociedade com o irmão. Segundo Manolo Florentino, Ribeiro de Brito
era um comerciante de “efeitos próprios”, por possuir capital suficiente para investir na

47
Para melhor aprofundamento sobre o tema ver: REIS; GOMES; CARVALHO, O Alufá Rufino: Tráfico,
escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 – c.1853). Companhia das Letras, São Paulo. CARVALHO,
Marcus J. M. de. Liberdade: Rotinas e Rupturas do Escravismo no Recife, 1822 – 1850. 2ª edição, Editora
Universitária da UFPE, Recife, 2010. ALBUQUERQUE, Aline. E.de B. “De Angello dos retalhos” a Visconde
de Loures: a trajetória de um traficante de escravos (1818-1858). Dissertação de mestrado. 2016. UFPE.
48
HDBN. DP. DP. de 2 de Abril de 1830 nº 351.
49
Para a discussão sobre os tratados ver: MAMIGONIAN In: GRINBERG; SALLES, 2009. Coleção Brasil
Imperial. volume I.1808-1831. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. 2009. BETHELL, Leslie. A abolição do
comércio brasileiro de escravos. Brasília: Senado Federal, 2002.
50
REIS; GOMES; CARVALHO, O Alufá Rufino: Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 –
c.1853). Companhia das Letras, São Paulo, p.109. Na obra também é possível perceber que Ribeiro de Brito,
Ângelo Francisco Carneiro e Elias Batista da Silva, negreiro e cunhado de Ângelo Carneiro, mantinham em
sociedade a propriedade de embarcações antes e depois de 1831.
importação de bens do escambo, sem a total dependência do capitalista residente no Brasil. 51
Porém suas ligações com o Brasil se faziam perceber claramente, tendo até mesmo parte de
sua família radicada na província de Pernambuco. Sua mulher morou em Pernambuco, até
1831 quando retornou a Angola após anunciar no dia 17 de outubro de 1831 no Diário de
Pernambuco um leilão de vários escravos que foram do serviço da mesma. O leilão se daria
na prensa de algodão no Forte do Matos, no dia 19 de Outubro. Anunciava seu cunhado,
Francisco Ribeiro de Brito52Para além de outros traficantes de escravos, Joaquim Ribeiro de
Brito também mantinha ligações com José Francisco de Azevedo Lisboa, o famoso
Azevedinho, que residia no Recife na década de 1840, um traficante ativo e representante de
uma grande empresa de traficantes que certamente envolvia todos os nomes acima citados e
outros ainda por citar. Azevedinho representou Joaquim Ribeiro de Brito nos tribunais
brasileiros em algumas ocasiões, como no caso do brigue Novo Abismo que foi apresado pelo
esquadrão britânico em 1840.53
Em 9 de Fevereiro de 1831 na sessão de noticias marítimas do Diário de Pernambuco
é informada a entrada do que, segundo o jornal, seria mais um navio transportando carga legal

218
de Angola para Pernambuco. Segundo o anúncio, no dia 7 do mesmo mês chegou de Angola,
após 24 dias de viagem, a escuna Feiticeira, cujo mestre José Rodrigues da Ressurreição
trazia na mesma uma carga de cera, feijão e couros para o proprietário e consignatário
Francisco Ribeiro de Brito. 54 Este mesmo navio, nesta mesma viagem, segundo dados do The
Transatlantic Slave Trade Database, a partir de agora somente TSTD, embarcou 307 escravos
em Luanda, e desembarcou 277 escravos em Pernambuco.55 Sem ter sido capturado e
entregando os escravos aos seus donos originais. Não aparecendo nas notícias marítimas o
que com certeza seria a principal carga da escuna, os africanos ilegalmente escravizados.
Sendo que trinta destes africanos não resistiram à viagem. Uma cifra de 9,21% mortos dos
africanos embarcados. Quase seis meses depois, em 5 de Agosto de 1831, novamente nas
notícias marítimas podemos ver o brigue Abismo, também de Francisco Ribeiro de Brito

51
FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: Uma História do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 112.
52
HDBN. DP. 17/10/1831 nº 221
53
Para mais informações sobre a empresa de traficantes da qual Azevedinho fazia parte, Ver: REIS; GOMES;
CARVALHO. 2010. O Alufá Rufino: Tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico Negro (c. 1822 – c.1853).
Companhia das Letras, São Paulo, p. 110.
54
HDBN. DP. 09/02/1831 nº 31.
55
Transatlantic Slave Trade Database (TSTD), viagem # 48690
desembarcar além de esteiras e alguns outros produtos declarados, oito escravos vindo de
Angola, numa viagem que durou 23 dias.56
Esta declaração traria alguns problemas para o 1º tenente, oficial encarregado do
registro do porto de Recife, Felipe José Ferreira. No dia 9 de Agosto de 1831 o mesmo oficial
tenta esclarecer a possível entrada da “mercadoria ilegal”, alegando que o responsável por
buscar as partes sobre entradas e saídas do porto não encontrou as mesmas prontas e
“inventou” tal entrada.57 Pois bem, esta retratação do oficial foi no mínimo reveladora.
Alguns meses atrás eles calaram sobre o desembarque de 277 africanos que não foram
capturados, e agora deixaram passar nas notas de entrada 8 “escravos”. Quem sabe não
haveria até mais que foram desembarcados em alguma praia do litoral pernambucano, pois
segundo dados do TSTD o brigue Abismo saiu do porto de Luanda com um total de 9
“escravos” embarcados, chegando ao seu destino final, Pernambuco, e seu porto oficial, no
Recife, com 8 escravos vivos consignados a Francisco Ribeiro de Brito. Descumprindo os
acordos de 1826-27 que passaram a vigorar a partir de 1830. Um mês depois seria sancionada
a primeira lei antitráfico do Império.58

219
Francisco Ribeiro de Brito mantinha uma prensa de Algodão em Pernambuco no Forte
do Matos.59 Joaquim Ribeiro de Brito mantinha negócios em Recife, na Bahia e no Rio de
Janeiro, enviando escravos para estes portos e adquiria artigos nos mesmos, principalmente
tecidos no Rio de Janeiro, para negociar em Luanda, Cabinda e na foz do Rio Zaire.60 O
envolvimento deste traficante com o comércio de tecidos talvez nos forneça a explicação
sobre a prensa de algodão mantida por seu irmão, Francisco Ribeiro de Brito, no Forte do
Matos, possivelmente com investimentos de Joaquim. Ligando os pontos entre o comércio de
tecidos e outros artigos e o de escravos entre Angola e Recife. Seus negócios com tecidos não
param por ai, Joaquim Ribeiro de Brito seria o recebedor de uma carga da Ermelinda enviada
por Antonio Lopes Pereira de Mello, uma carga de dois fardos de fazendas no valor de
554$110 réis.61
No ano de 1840 na seção de vendas no Diário de Pernambuco Francisco Ribeiro de
Brito anuncia várias casas térreas em endereços diferentes. No beco da Bomba D.3, na
Soledade em frente a Igreja D. 20, no beco do Quiabo na Boa Vista D.6 e no Beco do

56
HDBN. DP. 05/08/1831 nº 167
57
HDBN. DP. 09/08/1831 nº 170
58
TSTD. Viagem # 48704
59
HDBN. DP. 30/06/1827 nº 136
60
REIS, J. J; GOMES, F. dos S; CARVALHO, M. J. M. de. 2010. OP. Cit. p. 110.
61
REIS, J. J; GOMES, F. dos S; CARVALHO, M. J. M. de. 2010. OP. Cit. p. 171.
Francisco D. 10. Todas a serem tratadas na própria prensa de Francisco no Forte do Matos. A
quantidade de casas à venda é de impressionar, mais um significativo patrimônio adquirido
certamente através das atividades comerciais que envolviam também o tráfico ilegal de
escravos.62 Ainda se tratando de propriedades no dia 13 de Dezembro de 1843 é anunciado
para ser alugado um segundo andar de um sobrado na Rua Nova, perto da ponte da Boa Vista,
quem pretendesse alugar o sobrado deveria se dirigir para o sítio do Cajueiro e tratar com
Francisco Ribeiro de Brito, proprietário também do mesmo sítio.63 Além do sítio do Cajueiro,
Francisco era dono do engenho Machado.64
Estes homens se tornaram os maiores proprietários de sítios e prédios urbanos do seu
tempo, amealharam uma riqueza que não podemos estimar. Investiram seu capital, grande
parte dele adquirido em troca de sangue humano, em terras, prédios e mais escravos.
Confirmando ainda mais os “projetos arcaizantes” destas figuras.65 As riquezas acumuladas
ao longo das décadas de tráfico legal e ilegal destes homens são expressivas a luz do que é
descoberto e do que ainda está para ser. É indubitável que o tráfico atlântico de escravos
proporcionou um acúmulo imenso de capital para estes especuladores e que passariam depois
a constituir uma fortuna “legalizada” e seria aplicado em outros investimentos.
Como já advertia Freyre, um dos precursores no trabalho com estas fontes, que “mais
220
do que nos livros de história e nos romances, a história do Brasil do século XIX está nos
anúncios de jornais”.66 Enfim como podemos ver os meandros do tráfico e do comércio de
escravos podem ser vislumbrados através dos periódicos que, mesmo escondendo muitas
informações, não deixavam passar tudo por despercebido. Existe muito ali nos mínimos
detalhes, todo cuidado era pouco, e a ousadia chegava a ser grande. Podemos ver um pouco
das relações entre os traficantes e negociantes de Pernambuco com a política e com a
sociedade pernambucana e também as remodelações e transformações porque passaram esta
sociedade e estes traficantes em anos decisivos para os seus negócios. Também pudemos
observar um pouco da concentração do comércio de escravos no varejo em Pernambuco,
desconstruindo algumas ideias seja de uma determinada época (a dominação holandesa), seja

62
HDBN. DP. 6/11/1840. Nº inelegível
63
HDBN. DP. 13/12/1843. nº 269
64
HDBN. DP. 31/07/1840 nº 165.
65
FRAGOSO, João. e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária
e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c.1790-1840. Rio de Janeiro. Civilização
Brasileira, 2001. Neste livro os autores mostram como grande parte do capital mercantil adquirido por
negociantes de grosso trato, envolvendo ai também traficante, eram revertidos em investimentos com terras,
escravos, prédios urbanos. Seguindo um modelo aristocrático que tinha suas raízes no Antigo Regime português.
66
FREYRE , Gilberto. Os escravos nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX . 4. ed. São Paulo: Global,
2010. p. 88.
de um determinado recorte de visão artística, como é o caso da pintura de Augustus Earle
sobre o mercado de escravos na rua da Cruz. Os anos entre 1831 e 1850 são anos de intensa
atividade traficante em todo o Brasil, como já demonstrou bem uma avultada historiografia.
Pernambuco teve suas especificidades como tentamos apontar neste trabalho, porém a
História do tráfico e das elites políticas pernambucanas está longe de se esgotar, ainda há
muito pano pra manga, quer dizer documentos para trabalhos. Este trabalho buscou contribuir,
sobretudo, para a história social do tráfico e das elites de Pernambuco no século XIX.

Referências Bibliográficas:
ALBUQUERQUE, Aline. E.de B. “De Angello dos retalhos” a Visconde de Loures: a
trajetória de um traficante de escravos (1818-1858). Dissertação de mestrado. 2016. UFPE.

BARLAVENTO, Amanda Gomes. O BARÃO TRAFICANTE E AS REDES SOCIAS DO


TRÁFICO: FRANCISCO ANTONIO DE OLIVEIRA, 1820 – 1855. Disponível
em:http://www.escravidaoeliberdade.com.br/site/images/Textos7/amanda%20barlavento%20
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BETHELL, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: A Grã-Bretanha, o Brasil e


a questão do comércio de escravos 1807-1869. Tradução de Luís A. P. Souto Maior. Brasília:
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221
CARVALHO, Marcus. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850.
Recife: Editora Universitária da UFPE, 2010.

CHALHOUB, Sidney. Problema do tráfico africano de escravos na independência e formação


do Estado (Brasil, décadas de 1820 a 1740). Iberoamericana. Nordic Journal of Latin
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FLORENTINO, Manolo. Em Costas Negras: Uma História do tráfico de escravos entre a


África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

FRAGOSO, João. e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico,


sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c.1790-
1840. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2001.

MAMIGONIAN, Beatriz G. A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão.


In: Keila Grinberg; Ricardo Salles. (Org.). Coleção Brasil Imperial. Rio de Janeiro:
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REIS; João José. GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus. O Alufá Rufino:
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SILVA, Maria Carolina Medeiros da. A presença judaica na urbanização do Recife nos
séculos XVII e XX. I Colóquio de História da Universidade Federal Rural de
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http://www.pgh.ufrpe.br/brasilportugal/anais/8a/Maria%20Carolina%20Medeiros%20d
a%20Silva.pdf.>. Acesso em 10/03/2016

222
A LEI DO VENTRE
LIVRE NA
DOCUMENTAÇÃO
ECLESIÁSTICA –
PERNAMBUCO,
1871 – 1879.

ELIDA NATHALIA
OLIMPIO DA SILVA

GRADUANDA (UFPE)
INTRODUÇÃO

Partindo das correspondências arquivadas no Arquivo da Cúria Metropolitano do


Recife, o Arquivo D. José Lamartine, nas coleções de Correspondências Oficiais e
Correspondências Eclesiásticas, o presente artigo se propõe a analisar de que maneira as
disposições da Lei do Ventre Livre tiveram impacto no cotidiano do clero secular
pernambucano, bem como seus posicionamentos frente a tal lei.
O corpo documental analisado é composto pelas correspondências enviadas para
a sede do bispado de Pernambuco por padres, autoridades da província e do Império, 224
membros das ordens religiosas, membros das irmandades e mesmo leigos de forma geral no
período de 1871 a 1879. Por se tratar das correspondências recebidas e indicadas para
arquivamento, temos acesso a apenas um ponto de vista, uma vez que as respostas a essas
cartas não foram arquivadas com exceção de alguns casos pontuais nos quais há uma
indicação da resposta que se deve ser enviada na própria folha recebida.
É importante destacar que a década de 1870 trata-se do período de debate,
aprovação e aplicação das disposições da Lei 2.040 de 28 de setembro de 1871 e há, portanto,
a presença periódica de questões relativas a ela nos documentos da Igreja Católica,
responsável pela viabilização e aplicação de boa parte das disposições da lei. O decreto de
número 4.835 de 1º de dezembro de 18711, que regulamenta a matrícula geral dos escravos e
filhos nascidos livres de mãe escrava a ser realizada conforme o artigo 8º da Lei do Ventre
Livre, bem como o decreto nº 5.135 de 13 de novembro de 1872 2 que aprova o regulamento

* A autora é Graduanda em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Este artigo escrito a partir da
documentação levantada no projeto “O clero católico e a libertação dos escravos em Pernambuco, 1870-1879”,
financiado através do PIBIC/FACEPE (2016-2017), sob orientação do Prof. Dr. Robson Pedrosa Costa.
1
Coleção de Leis do Império do Brasil - 1871, Página 708 Vol. 1 pt. II.
2
Coleção de Leis do Império do Brasil - 1872, Página 1053 Vol. 2 pt. II
de execução da referida lei modificaram aspectos do cotidiano dos clérigos seculares
conforme a documentação consultada nos revela.

Os padres, a sociedade e a liberdade de ventre

Entender o cotidiano da população brasileira ao logo do século XIX implica,


muitas vezes, na compreensão do papel da Igreja Católica e de seus membros na sociedade
oitocentista. Para isso, algumas questões contribuem para elucidar o contexto, sendo a
principal delas, talvez, o regime do padroado, definido pelo historiador britânico Charles
Boxer como
uma combinação de direitos, privilégios e deveres concedidos pelo papado à
Coroa de Portugal como patrona das missões e instituições eclesiásticas
católicas romanas em vastas regiões da África, da Ásia e do Brasil. 3
Essa conceção de poderes e privilégios foi fruto de um contexto específico, no
qual os papas do período estavam mais preocupados com as questões políticas europeias e na
expansão protestante que mesmo nas terras por conquistar. Nesse sentido, a Igreja Católica
nas Américas sempre esteve sob as ordens e orientações das Coroas Ibéricas, ainda que isto
não implique necessariamente a ausência de conflitos, havendo registros constantes de 225
embates entre as instituições no ultramar, sobretudo após alcançada a relativa estabilidade
entre católicos e protestantes na Europa.
Mesmo com a independência do Brasil em relação a Portugal e a instituição
monárquica imperial no país o padroado ainda manteve a validade, cabendo a partir de então
ao Imperador o comando da Igreja em terras brasileiras.
Outro fator fundamental para se entender essa relação é a compreensão de que a
posição oficial da instituição Igreja Católica não reflete as opiniões e posicionamentos de
seus membros, sobretudo daqueles considerados “baixo clero” ou mesmo do clero secular
que estavam em contato constante com a população e que por vezes ia de encontro com as
determinações oficiais da Igreja e da Coroa.
Até o inicio do período republicano brasileiro, os ofícios cíveis relativos aos
registos de nascimento, casamento e óbito ficavam a cargo dos clérigos, que registravam isso
nos livros de batismo, casamento e óbito, muitos dos quais hoje servem com fontes
riquíssimas para o estudo das relações familiares no oitocentos.

3
BOXER, Charles R. O Padroado da Coroa Portuguesa e as missões católicas. In: O império marítimo
português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Dessa forma, uma lei como a nº 2.048 de 28 de setembro de 1871, que
determinava o registro dos nascimento e óbitos de crianças filhas de mães escravas em livro
especial, separado dos demais, como modo de comprovação da liberdade, gerou uma série de
impactos no cotidiano desses clérigos. O parágrafo 5, atigo 8º determina:
Os parochos serão obrigados a ter livros especiais para o registro dos
nascimentos e óbitos dos filhos de escravas nascidos desde a data desta lei.
Cada omissão sujeitará os parochos a multa de cem mil réis. 4
A ameaça de multas aplicadas a esses sujeitos e a relação tensa com os
funcionários do governo tanto provincial quanto imperial se refletem nas correspondências
trocadas entre os clérigos e diversos sujeitos. Para o presente artigo, utilizaremos as
correspondências enviadas ao Governo do Bispado de Pernambuco pelo Pe. José Couto do
Amaral, coadjutor pró pároco da Freguesia de Nazaré, e pelo então Presidente da Província
de Pernambuco, João José de Oliveira Junqueira.5
Para uma melhor análise desta documentação é importante compreender em
linhas gerais as discussões acerca da libertação dos escravos no Brasil, bem como as tensões
nos mais diversos campos sociais que culminaram na dita lei.
Fruto de um projeto de lei elaborado em 1868 por uma comissão do Senado e
discutido ao longo do ano de 1871, a Lei do Ventre Livre 6, como o nome já indica, 226
estabelecia que todos os filhos de escravas nascidos a partir daquela data estariam livres, mas
que ficaria sob a responsabilidade do senhor de sua mãe até atingir oito anos completos e
então o dito senhor optaria por mantê-lo sob sua tutela utilizando sua mão de obra até os 21
anos ou receber uma indenização.
Outra questão importante para se analisar a relação da Igreja com a escravidão
sob a ótica da Lei do Ventre Livre é compreender a forma como a legislação vai atuar diante
da escravidão. De modo geral, a legislação escravista para o Mundo Atlântico se caracterizou
pela heterogeneidade de campos de atuação e de mecanismos de controle da atividade
escrava, desenvolvendo-se a partir do corpo jurídico das metrópoles.
Quando partimos para o entendimento do processo de libertação dos escravos no
Brasil percebemos que a abolição da escravidão está diretamente relacionado às questões
jurídicas que refletiam os debates ocorridos entre diversos grupos sociais e nos mais variados
espaços de sociabilidade. Sendo o século XIX o mais controverso período da escravidão

4
Coleção de Leis do Império do Brasil - 1871, Página 708 Vol. 1 pt. II.
5
Correspondências Oficiais, livro 08, Arquivo D. José Lamartine. As correspondências arquivadas nos livros
desta coleção são aquelas recebidas pelo governo do bispado e que foram indicadas pelo responsável para que
fossem arquivadas, ou seja, só temos acesso a um ponto de vista das correspondências.
6
Lei nº 2.040 de 28 de setembro de 1871. Disponível
em:http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496715 ; acesso em 26/01/2016.
brasileira, a segunda metade do século foi marcada por diversas tentativas de acabar com o
regime escravista e ao mesmo tempo manter a escravidão pelo maior tempo possível.
Além dessa determinação, a lei atuava em outros aspectos do cotidiano das
relações escravistas como o fato de transferir o ônus da prova de liberdade/propriedade em
ações de liberdade do cativo para o senhor, cabendo a este a responsabilidade de efetuar a
matricula de seus escravos dentro de um prazo estabelecido. Caso isto não ocorresse, todo
cativo não matriculado era considerado livre.
Essas tentativas vão caracterizar-se por seu caráter emancipacionista, defendendo
uma abolição lenta e gradual, visando a diminuição do impacto disto na economia brasileira,
baseada quase que em sua maioria no trabalho cativo. Segundo Ricardo Salles,
tanto a lei de 1871 – quando não mesmo a proibição do tráfico em 1850 –
quanto ao surgimento do movimento abolicionista, no início da década de
1880, têm sido vistos como eventos que se encaixariam em um processo
gradual de abolição da escravidão.7
Se partirmos para uma pequena comparação sobre a atuação das religiões nos
processos abolicionista no Brasil e em outras regiões das Américas é possivel perceber
diferenças significativas conforme o próprio Joaquin Nabuco, já no final do século XIX,
afirma: 227
em outros países, a propaganda da emancipação foi um movimento religioso,
pregado do púlpito, sustentando com fervor pelas diferentes igrejas e
comunhões religiosas. Entre nós, o movimento abolicionista nada deve,
infelizmente, à Igreja do Estado [...]8
Essa opinião sobre a ausência da Igreja do movimento abolicionista conforme
afirmado por Nabuco na década de 1880 foi compartilhada por contemporâneos e
historiadores posteriores. Ainda que a historiografia tenha passado a considerar “tanto a ação
da elite reformista quanto a rebeldia escrava, [...] revelam uma ausência da Igreja Católica
nos trabalhos da historiografia”9.
É possível perceber as vozes silenciadas de clérigos que tiveram suas vidas
influenciadas pelas determinações do Estado quanto à escravidão e são as vozes desses
sujeitos que o presente artigo de propões a resgatar.

A quem se deve obedecer

7
O autor destaca que essa associação é feita posteriormente, não estando presente na mentalidade dos que
viveram no período. SALLES, R. Abolição no Brasil: resistência escrava, intelectuais e política (1870-1888).
Revista de Indias, v. 71, 2011. p. 268
8
Apud PEREIRA, 2011, p. 44.
9
Ibdem, p. 18.
Em carta datada de 16 de março de 1872 e endereçada ao Governo da Diocese de
Pernambuco, o Pe. José Couto do Amaral, coadjutor pró pároco da Freguesia de Nazaré na
zona da mata norte, afirma ter recebido cópia do edital referente à matricula geral dos ecravos
e filhos livres de mãe escrava por intermédio do coletor de rendas do município, que o artigo
11 determina que “ao parochos publiquem a estação da missa parochial o referido Edital”,
como mostrado anteriormente, e não tendo ainda recebido a ordem do Governo do Bispado,
não procedeu a leitura dos referidos artigos.10
Não se menciona quando o referido padre recebeu as cópias dos editais, nem em
suas correspondências nem nas cartas enviada ao bispado pelo presidente da província, mas o
teor dos escritos leva a crer que os conflitos entre o coletor e o padre tenha se estendido já há
algum tempo e que situação semelhante ocorreu na Freguesia de São Pedro Mártir. Não
podemos analisar mais de perto essa ocorrência especificamente pois é somente mencionada
pelo presidente da província João José de Oliveira Junqueira em correspondência datada de
05 de abril de 187211.
A presença de dois casos de conflitos, além do que é citado posteriormente no

228
Cabo de Santo Agostinho, quanto ao cumprimento das determinações legais dos decretos
imperiais por parte dos clérigos nos faz refletir até que ponto a Igreja ou mesmo os seus
membros individualmente estavam sob as ordens do Estado. Há claramente, como podemos
perceber nas palavras do Pe. José Couto do Amaral, uma discordância sobre a situação dos
clérigos frente ao Estado. Ele afirma ter recebido o referido edital das mão do coletor de
rendas e conclui:
[...] e não tendo eu ainda recebido participação alguma de V. Ex. Rma.
Nesse sentido, não procedi a leitura dos taes artigos e Edital, julgando de
meo rigoroso dever ouvir primeiramente a V. Ex., único competente para
me dar determinações em semelhante caso 12.
Assim, percebemos uma relutância em seguir as ordens do Estado, por meio da
legislação, por acreditar que somente seu superior na Igreja é que lhe pode dar ordens do tipo.
Essa questão vai ser retomada em carta datada de 09 de abril de 1872, na qual o Pe. José
Couto escreve novamente ao bispado pedindo orientação, destacando que ele acredita que sua
carta anterior tenha sido extraviada e que notícias sobre o ocorrido já tenha chegado ao
conhecimento do governo do bispado, pois o coletor de rendas já deva ter informado à
tesouraria que a leitura não ocorreu em dia algum13.

10
Correspondências Oficiais, livro 08, 16 de março de 1872. Arquivo D. José Lamartine.
11
Correspondências Oficiais, livro 09, 05 de abril de 1872. Arquivo D. José Lamartine.
12
Correspondências Oficiais, livro 08, 16 de março de 1872. Arquivo D. José Lamartine.
13
Correspondências Oficiais, livro 08, 09 de abril de 1872. Arquivo D. José Lamartine.
O presidente da província de Pernambuco escreve novamente ao governo do
bispado em 24 de abril do mesmo ano, comunicando que, segundo informação recebida dos
coletores de rendas, os párocos do Cabo de Santo Agostinho e Nazaré se recusam a fazer os
anúncios referentes à matrícula dos escravos e filhos livres de mães escravas. Pede ainda que
seja feito um comunicado aos párocos de todas as freguesias para que a ordem seja
cumprida14.
Os temores de Padre José estavam corretos e sua recusa em cumprir a lei já havia
chegado ao conhecimento dos seus superiores e do Estado, na pessoa do presidente da
província. O que fazer então? Continuar esperando uma resposta da Igreja? Manter seu
posicionamento? Voltar na sua decisão e executar a leitura como determinado?
O desfecho desse fragmento do cotidiano do baixo clero pernambucano não nos é
conhecido, ao menos até o momento. A documentação estudada acaba por deixar uma série
de lacunas uma vez que são livros referentes às correspondências recebidas pelo Governador
do Bispado de Pernambuco e que foram orientadas para que fossem arquivadas. Não temos
acesso às respostas encaminhadas ao Padre José Couto, nem sabemos se o edital foi

229
reenviado tal como orientado pelo Sr. João José de Oliveira Junqueira, Presidente da
Província.
A multa prevista para aqueles que não cumpriam com a leitura do edital, tal qual
estabelecida no art. 38 do decreto 4.835 de 1º de dezembro de 1871, era outra questão que
pairava sobre o Pe. José Couto do Amaral. O peso do poder judiciário e do executivo também
foi sentido em outras situações, como nos revela a carta do Pe. Getúlio Vespasiano Augusto
da Costa.
Ele escreve em 17 de junho de 1872 a Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira,
que tinha recém assumido o bispado, informando a falta de livro específico para o registo de
batismo e óbito filhos de escravas nascidos livres. Finalizando sua carta levanta o
questionamento: “Qual o expediente deverei tomar para que não recaia sobre mim a ação do
poder Executivo?”15.

Do registro em livros separados

Segundo as determinações da Lei, especificamente no §5º, do artigo 8 da Lei 2.048 de 28 de


setembro de 1871, os clérigos deveriam efetuar os registros de batismo e óbito dos filhos

14
Correspondências Oficiais, livro 09, 24 de abril de 1872. Arquivo D. José Lamartine.
15
Correspondências Oficiais, livro 08, 17 de junho de 1872. Arquivo D. José Lamartine.
nascidos livres de mães escravas em livros separados. Entretanto, quando nos voltamos para
a documentação é possível visualizar as dificuldades para o cumprimento desse parágrafo
específico, uma vez que em muitas freguesias os padres não tinham os livros necessários para
tal atividade.
Dentre as correspondências enviadas ao governo do bispado no recorte desta pesquisa é
recorrente, sobretudo nos primeiros anos após a promulgação da Lei do Ventre Livre, as
solicitações dos livros específicos para os registros dos ditos batismos e óbitos. Como o caso
citado anteriormente do Pe. Getúlio Costa.
Em 17 de junho de 1872, o Pe. Getúlio Vespasiano Augusto da Costa, escreveu a
Dom Vital Maria Gonçalves de Oliveira informando que não encontrou na Freguesia de São
Lourenço da Mata, a qual estava administrando no momento, os livros aos quais o parágrafo
citado faz referência. Dessa forma, comunica ainda, oficiou ao Vice Presidente da Província
pedindo que lhe fossem fornecidos pela Tesouraria da Fazenda, “visto como tem sido esta a
praxe seguida pelo governo”16. Seu questionamento é se lhe é autorizado fazer os devidos
lançamento nos livros que nos quais se registram todos os batizados e óbitos da freguesia ou

230
o que ele deveria fazer.
O padre João Vasco Cabral de Alganez, vigário encomendado da Freguesia de São José da
Ingazeira, escreveu em 21 de julho de 1872 a D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira exigindo
autorização para a abertura de novos livros para registro de batismos, casamentos e óbitos,
listando os problemas encontrados nos livros anteriores. Tendo em vista os problemas
relativos aos livros de batismos, muitas vezes em falta nas paróquias o que gerava receio nos
párocos que pelas disposições da Lei poderiam ser atuados com multas caso não realizasse o
registro em local correspondente, sobretudo se isso implicasse redução à condição de cativo
de crianças nascidas livres. Os problemas citados pelo Pe. João Vasco, sobretudo o atraso em
enviar a listagem de batizados realizados pelos capelães mais distantes da matriz, poderiam
acarretar nesse tipo de erro, pois a data de nascimento incerta poderia favorecer a
escravização ilegal de crianças nascidas livres. 17
Os conflitos entre os clérigos e o Estado no que se refere ao cumprimento da lei
diminui, mas não acaba. A carta do pároco de Bom Jardim, Pe. Joaquim Graciano de Araújo,
datada de 28 de setembro de 1877, demonstra que havia hesitação em se atender pedidos de
leigos, ainda que ocupassem cargos importantes como o de juiz e reforça que esse tipo de
decisão só poderia ser tomada com o consentimento das autoridades eclesiásticas.

16
Correspondências Oficiais, livro 08, 17 de junho de 1872. Arquivo D. José Lamartine.
17
Correspondências Oficiais, livro 08, 21 de julho de 1872. Arquivo D. José Lamartine.
Informação sobre a data de nascimento

O principal artigo pelo qual a Lei 2.048 de 28 de setembro de 1871 é conhecida é


seu artigo 1º, no qual se estabelece a liberdade a todos os filhos de mães escravas nascidos a
partir daquele dia. Levando em consideração que o único documento comprovatório do
nascimento de alguma criança no período era o registro de batismo, no qual constava a data
de nascimento da criança, o lançamento correto dos batismos nos livro segundo a lei e os
decretos regulatórios era uma das únicas garantias de que as crianças nascidas livres não seria
reduzida à condição de escrava.
Essa questão é fundamental, sobretudo nos primeiros meses após a promulgação
da lei e é possível encontrar referências a ela na documentação. Em 12 de maio de 1872 o
Padre Antonio Graciano de Araújo Guarita, Coadjutor Pró Paroco da Freguesia da Muribeca
escreve para o Cônego João Chisostomo de Paiva Torres solicitando esclarecimentos sobre
como proceder em caso de dúvida sobre a data de nascimento da criança 18. Ele questiona se

231
pode ser feito os lançamentos nos livros somente tendo dito o possuidor da mãe que a criança
nasceu antes de 28 de setembro de 1871, ainda que haja desconfiança da parte do padre sobre
a veracidade da informação, ou que se deve exigir algum tipo de documentação
comprovatória.
Como só temos acesso a um lado das correspondências trocadas, não sabemos
qual a orientação passada ao padre sobre esse tipo de situação, mas algumas questões são
levantadas para reflexão. Encontramos um padre, motivado pelo medo das penalidades
recaírem sobre ele ou por posicionamento próprio em relação à questão servil, demonstrando
preocupação quanto à veracidade de informações que podem levar à redução de uma criança
nascida livre à condição de escrava. E devemos levar em consideração ainda o decreto 5.135
de 13 de novembro de 1872 que vai regulamentar esse tipo de situação.
O referido decreto regulamentava a punição ao pároco que viesse a errar no
registro do nascimento da criança, em seu artigo terceiro, parágrafo único, estabelecia que
os parochos, para isentarem-se de responsabilidade, deverão exigir
declaração escripta, ou simplesmente assignada, do senhor da mãi escrava,
sobre as circumstancias necessarias ao assentamento de baptismo, e, na falta
da referida declaração, bastará a que fôr feita verbalmente, pelo senhor ou
quem o representar, ante duas testemunhas, que attestem ou assignem o
assentamento.19

18
Correspondências Oficiais, livro 08, 12 de maio de 1872. Arquivo D. José Lamartine.
19
Coleção de Leis do Império do Brasil - 1872, Página 1053 Vol. 2 pt. II
Portanto, ainda que os padres pudessem sofrer penas nessas situações, a
informação sobre a data de nascimento da criança era de obrigação do senhor de sua mãe,
abrindo possibilidades de manipulação desses dados, sobretudo nos nascimentos ocorridos
logo após a publicação da Lei do Ventre Livre. O medo de sofrer penas por parte da justiça
por erros nos registros de batismo se vê presente nas correspondências arquivadas, sendo em
alguns casos expresso claramente como na fala do Pe. Getúlio Vespasiano Augusto da Costa.

CONCLUSÃO

Ainda que a historiografia pouco fale sobre a atuação do clero católico brasileiro
no processo de emancipação e abolição da escravidão no Brasil, a ampliação das fontes
documentais e as novas perspectivas metodológicas levam a uma melhor compreensão dos
posicionamentos desses sujeitos frente as determinações do Estado, que muitas vezes
interferiram diretamente no cotidiano deles.
As discussões presentes nesse artigo reforçam a importância e a relevância do

232
estudo da escravidão e do processo de emancipação dos escravos a partir da ótica dos
clérigos, figuras tão importantes e constantes no meio social oitocentista. As
correspondências encaminhadas sobretudo ao Bispado de Pernambuco que fazem referência à
lei dos nascituros revelam os impactos das determinações dessa lei no cotidiano dos clérigos,
principalmente pelo fato de que pesava sobre os párocos a responsabilidade de efetuar os
registros das crianças que nasciam sob o benefício dessa lei.
Uma outra questão que se sobressai no presente artigo é a diferença entre o
posicionamento da Igreja enquanto instituição no que se refere às determinações do Estado e
outra é como os membros da Igreja se colocam diante disso. Nem sempre estão de acordo e
os conflitos envolvendo diferentes sujeitos e situações eram recorrentes.
No decorrer do presente estudo, encontramos as mais diversas situações e
posturas dos clérigos frente a essa realidade, destacando-se os padres que buscavam cumprir
seus deveres e quando confrontados por situações que pudessem vir a impedir isso, seja por
medo das penas, seja por compromisso com seu trabalho, recorriam aos que poderiam
ajudar-lhes.
Entretanto a realização dos registros e da matrícula não correu sem resistências.
Ainda que estivessem sob as ordens do Império e que a Igreja enquanto instituição repassasse
aos seus membros as responsabilidades que cabiam a eles, esses sujeitos se manifestavam
contrários a elas e interferiam na aplicação da lei dentro das suas esferas de influências.
REFERÊNCIAS

Fontes Primárias
Arquivo D. José Lamartine. Correspondências Oficiais, vol. 8, 1872.
Arquivo D. José Lamartine. Correspondências Oficiais, vol. 9, 1872.
Arquivo D. José Lamartine. Correspondências Oficiais, vol. 14, 1877-1878.
Coleção de Leis do Império do Brasil - 1871, Página 708 Vol. 1 pt. II
Coleção de Leis do Império do Brasil - 1871, Página 708 Vol. 1 pt. II.
Coleção de Leis do Império do Brasil - 1872, Página 1053 Vol. 2 pt. II

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O CENÁRIO RECIFENSE
NOS ANOS FINAIS DA
ESCRAVIDÃO
(1880- 1888).

ELISIANE ARAUJO
CORDEIRO

MESTRANDA (UFRPE)
O ano era 1888, o local, a cidade do Recife alguns dias antes da assinatura da Lei Áurea
pela princesa Isabel. O Jornal do Recife amanhecia com mais um dia de notícias fresquinhas,
com acontecimentos recentes, narrando os feitos da cidade (especialmente na coluna
“Gazetilha”), as ocorrência do interior, de outras partes do Brasil e do mundo (nos
importantes assuntos de primeira página da coluna “Tellegrammas”). Nesse dia, um domingo
(6) pra ser mais exata, havia uma carta enviada pelos moradores da travessa de São Pedro, na
freguesia de São José, ao jornal mencionado acima, solicitando-os que encaminhassem a
mesma às autoridades competentes, (que acreditavam ser a Câmara Municipal) para que
235
tomassem providencias em relação ao “fumo e máo cheiro” que exalava de um
estabelecimento das proximidades e que incomodava diariamente os moradores da dita
Travessa.
Essas pessoas criticavam a possibilidade de fatos como estes acontecerem numa
localidade de importante trânsito, onde viviam apenas “brazileiros”, logo, pessoas que “nada
lucram com as falsificações engedradas (no café moído, por exemplo) de qualquer
estrangeiro, que para aqui venha fazer fortuna por meios immoraes e criminosos” 1·. Eles
terminam a carta afirmando que devido às questões apontadas acima não existia higiene
pública onde moravam e claramente demonstram o seu pensamento acerca dos estrangeiros
cafeicultores que se estabeleciam na cidade. Utilizam o argumento de que eram nativos,
brasileiros, as pessoas que estavam sofrendo com a falta de higiene causada pelo fumaceiro
lançado na vizinhança, e, portanto, mereciam uma maior atenção das autoridades.2
A cidade do Recife atingia o número aproximado de 100.000 pessoas nas décadas finais
dos oitocentos. Segundo Clarissa Nunes Maia a população do Recife teria crescido

* A autora é mestranda em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.


1
HEMEROTECA DIGITAL. Jornal do Recife. 06-05-1888. Gazetilha. Travessa de S. Pedro. Nº 105, p. 2.
2
Idem.
significativamente nesta época, e os homens de cor, representavam 55% dos habitantes.3 Em
1879, segundo o chefe de polícia José Joaquim Andrade, 318 pessoas estrangeiras adentraram
a província de Pernambuco e quase 80% eram de portugueses, 35 eram italianos e a
quantidade restante se subdividia entre ingleses, franceses, alemães, espanhóis e
hamburgueses. A grande maioria destas pessoas eram homens e alegavam que vinham a
Pernambuco “para residir”, outros declaravam estar na província para trabalhar na agricultura,
no comércio e/ou em serviços domésticos.4 Mas como se vê acima, a presença desses
indivíduos na cidade, talvez devido as suas ocupações de trabalho, e ainda que fosse uma
população relativamente pequena, chegava a incomodar parte da sociedade brasileira que os
viam como um corpo estranho no país.
Ainda mais se estes tais brasileiros, imbuídos de um discurso higienista, vissem nos
estrangeiros5 um motivo para apontarem os problemas que eles poderiam causar ao não se
comportarem de acordo com os bons costumes da pretensa higienizada civilização brasileira.
Especialmente se os mesmos estivessem causando transtornos na comunidade para moer café,
produto historicamente conhecido como o substituto da cana de açúcar na economia do país. 6
As reclamações feitas pelos moradores da Travessa de São Pedro nos remetem a dois
eventos que se deram na segunda metade dos oitocentos: a tentativa do Brasil, principalmente
236
em suas capitais, de tomar ares europeus e transformar a nação em população civilizada
através da implementação de práticas higienizadoras e repressoras. E a crise açucareira que é
contemporânea tanto do período de ascensão da produção de café na parte Sul do Brasil (e a
migração interprovincial de escravizados do Norte para o Sul) quanto ao crescimento da
entrada de europeus no país. Esses são os temas chave que trato neste primeiro capítulo na
tentativa de visualizar o cenário recifense no período estudado.

3
Ver: MAIA, Clarissa Nunes. O controle social no Recife oitocentista. In. SILVA, Wellington Barbosa da (org.).
Uma Cidade, várias histórias: o Recife no século XIX. Recife: Ed. Bagaço, 2012, p. 184.
4
APEJE, Fundo Chefes de Polícia, Relatório apresentado ao presidente da Província de Pernambuco pelo chefe
de polícia Joaquim José Andrade, Fevereiro de 1880.
5
Estrangeiros que vinham com interesses econômicos ao Brasil, predispostos a fazer fortuna no país,
especialmente na produção de café, como deixam claro os moradores da Travessa de São Pedro.
6
Ver EINSENBERG, Peter L. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840-
1910. Trad. João Maia. Apres. Manuel Correia de Andrade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Universidade
Estadual de Campinas, 1977.
O modelo burguês europeu de civilização e as tentativas de higienizar o Recife.

Polir, assear, adornar, era o novo caminho para um país que queria entrar nos
novos arautos da ordem, razão, prevenção, civilização e moralidade pública.
Era preciso estetizar o cotidiano, impondo uma ordem minuciosa a fim de
regular todas as esferas da vida e forjar um processo civilizatório baseado no
decoro público e na etiqueta social. Em outras palavras era preciso espanar
os brilhos dos pirilampos das matas tropicais pelo luzir das sedas e dos
ouros. O projeto de civilidade fundou uma ideação de poder e um estilo de
dominação, a imposição de uma ordem cortesã para o Império deveria
irradiar para todo o país o ideário da unidade e da civilização. 7

Durante o Século XVIII a Europa criou uma política de ordenamento urbano enquanto
se industrializava porque o operariado e as cidades cresciam juntamente com a violência, e o
Estado precisava instituir uma nova moralidade civilizatória padrão que legitimasse suas
ações de controle social. O Brasil aderiu a este ideário no período oitocentista e empreendeu
alguns mecanismos de controle social. Porém, esbarrou nas peculiaridades de sua realidade da
época, que tinha em seu cenário urbano uma mistura de escravizados, livres e libertos, tendo
entre os livres ainda uma subdivisão de trabalhadores e ociosos (mais comumente chamados 237
de vadios). Teve que lidar ainda com a precariedade sanitária das ruas, das pessoas e
comunidades que não tinham adquirido as noções de higiene e convivência, regras e
costumes, que alguns países da Europa um século antes já experienciavam.
As Posturas municipais podem ser vistas como um amontoado de regras no âmbito local
que procurava regular a massa urbana de acordo com aquilo que a classe dominante
considerava ofensiva à civilidade da cidade, diga-se de passagem, a seus próprios interesses.8.

As províncias, bem como os estados e municípios republicanos, iriam tentar


controlar as classes populares utilizando-se principalmente de três recursos:
leis municipais que regulavam a vida do cidadão no espaço público; forças
militares e paramilitares, que com atribuições ainda não bem definidas, iriam
impor a ordem estabelecida (especialmente a polícia), atuando na
prevenção/repressão de uma forma geral; e instituições carcerárias, que
teriam como missão coadjuvar o trabalho da polícia, isolando e
redisciplinando os indivíduos desviantes.” 9

7
SANTOS, Manuela Arruda dos. RECIFE: Entre a sujeira e a falta de (com) postura 1831-1845. Dissertação de
mestrado. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Departamento de Letras e Ciências Humanas, 2009, p.
37.
8
MAIA, Clarissa Nunes. POLICIADOS: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife, 1865-
1915. Tese de doutoramento. Universidade Federal. 2001.
9
Idem, p. 23.
Dessa forma, foi se criando uma maior preocupação com quem estava nas ruas da
cidade e isto demonstra a intenção das elites com o tal embelezamento do Recife, desde as
suas construções pomposas, até às movimentações pela cidade afora. A segunda metade do
século XIX foi transformadora nesse sentido, afinal, a criação do Teatro Santa Isabel, do
Mercado de São José, da Biblioteca pública e da própria Casa de detenção são exemplos
disso.
No mercado de São José – vivo até hoje na cidade do Recife e conhecido pela agitação
popular que o circunda – foram impostas uma série de regras de comportamento para
comerciantes e clientes com o intuito de afastá-los da informalidade comumente exercida em
feiras. Determinava-se desde o tipo de produtos que poderiam ser ofertados até a forma com
que deveriam ser vendidos – sem gritarias e alaridos. Elas se assemelhavam, inclusive, a
algumas normas impostas a um mercado público parisiense em meados do século dezenove,
que por sua vez, pretendia enquadrar a população trabalhadora e transeunte nos valores
burgueses de moralidade. Todavia,

A insistência em medidas mais rigorosas para normatizar o espaço do


Mercado de São José mostrava, por outro lado, a resistência de seus usuários
em atender as exigências das autoridades. Não apenas dentro do Mercado
como à sua volta, criou-se um grande espaço cultural popular. 10 238

Esse espaço foi sendo construído em meio aos laços de solidariedade que se faziam no
Mercado, um lugar difícil de ordenar. As pessoas que estavam ali também construíram para
além dos seus comércios, relações de amizade, formas de se defender e burlar a fiscalização
das autoridades, de modo que o próprio Administrador do mercado muitas vezes fazia vista
grossa para algumas situações desordeiras com que se deparava. 11
A cidade ganhou também neste processo de melhorias a tecnologia de iluminação a gás,
permitindo-se consequentemente novas circulações e interações sociais na mesma. Ademais,
Emmanuelle Lima12 demonstra como sua implementação se deu de forma elitista ao apontar
que cerca de 65% dos lampiões estavam concentrados no ano de 1864 nas três principais
freguesias (onde funcionavam os principais negócios) do Recife na época: Recife, Santo
Antônio, e Boa Vista – pois mesmo que fossem os locais com o maior número de habitantes,
não eram territórios de grande extensão territorial como outras freguesias do período.

10
Idem, p. 51.
11
Ver MAIA, Clarissa Nunes. POLICIADOS: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife,
1865-1915. Tese de doutoramento. Universidade Federal de Pernambuco. 2001.
12
LIMA, Emmanuelle Valeska Guimarães de. “NÃO TEMOS GOVERNO, NÃO TEMOS POLÍCIA...”: os
jornais e a crítica aos aparatos policiais no recife oitocentista (1850-1874). ). Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal Rural de Pernambuco. Departamento de Letras e Ciências Humanas, 2013.
Para se ter uma ideia, apenas a ponte Santa Isabel tinha 20 lampiões, o que correspondia
ao mesmo número que era utilizado na freguesia da Madalena. A autora aponta como possível
explicação para esta situação o fato de que essa ponte servia de acesso a importantes locais
não apenas da cidade, mas da Província, como o centro político-administrativo (Palácio do
Governo), o famoso teatro, além de residências de pessoas mais abastadas e lojas de artigos
europeus.
Em 1881, por exemplo, para realizar um espetáculo no Teatro de Santa Isabel era
preciso pagar de 3 a 5% do rendimento bruto de cada espetáculo, e quando fosse um
espetáculo avulso, a indenização era de 50$000 réis. O produto dessas contribuições
juntamente com o valor do aluguel do botequim estavam sendo utilizados para alguns reparos
considerados menos dispendiosos 13. Todavia, sabemos que este entretenimento da cidade era
limitado a um grupo especifico, assim como toda a ritualística no uso do teatro que servia
também como método de separação cultural e social. Segundo Lima,

O melhoramento da iluminação pública se deu ao ser parte importante da


estética esperada por uma capital de grande relevância, como já se constituía
o Recife. Ao passo que procurava enfatizar o embelezamento da cidade,
também auxiliava na questão da segurança pública, relacionando o espaço
urbano iluminado a uma inibição mais eficaz das ações de malfeitores. Uma
239
rua iluminada à noite gera – ou pelo menos deveria gerar – um ambiente
coibente para a ação de sujeitos que transgredissem a ordem pública. O
projeto era controlar o Recife de becos e ruas às escuras, seguindo a trilha do
“progresso” urbano. Entretanto, além do número limitado de lampiões,
pesava a má qualidade dos serviços prestados pela empresa concessionária.
Com o passar do tempo, as queixas anteriormente vistas como infundadas
passaram a aparecer nos próprios relatórios dos governantes provinciais. 14

Portanto vemos que estas inovações foram sendo introduzidas de forma hierarquizada e
precária, e acabavam transparecendo a defasagem em seu funcionamento no próprio discurso
do Presidente da Província da época, como nos mostrou a autora. Apesar dos lampiões em
funcionamento terem no ano de 1885 aumentado para o número de 1824, ou seja, 757
lampiões a mais dos que existiam 21 anos antes, alguns problemas atingiram a Companhia
Santa Thereza de iluminação a gás durante a década de 1880. Como afirmou neste mesmo ano
o Dr. Sancho Barros Pimentel em relatório ao terceiro vice-presidente da província, Augusto

13
Falla com que o Sr Dr. Franklin Americo de Menezes Doria abriu a sessão da Assembleia Legislatica
Provincial de Pernambuco em 1 de março de 1881, p 38. Disponível em: http://www-
apps.crl.edu/brazil/provincial/pernambuco. Acesso em: 21/07/2016.
14
LIMA, Emmanuelle Valeska Guimarães de. “NÃO TEMOS GOVERNO, NÃO TEMOS POLÍCIA...”: os
jornais e a crítica aos aparatos policiais no recife oitocentista (1850-1874). ). Dissertação de Mestrado.
Universidade Federal Rural de Pernambuco. Departamento de Letras e Ciências Humanas, 2013, p. 6-7.
de Souza Leão, “[...] foram encontrados 625 lampeões apagados e 28,504 com a luz
amortecida, pelo que foram impostas multas á empresa na importância de 5:355$720.”. 15
O clima não era o dos melhores, uma vez que, quando fora aprovada pela assembleia
provincial a resolução que autorizava o estabelecimento de luz elétrica na cidade, o gerente da
companhia de gás entendeu como uma ação ofensiva ao seu privilégio, e recebeu uma
resposta bastante contundente do senhor vice-presidente da época. Este último afirmava que
não existia em nenhuma cláusula do contrato tal privilégio da companhia na iluminação da
cidade, e que a província tinha apenas a obrigação de pagar o preço do consumo do material
autorizado enquanto durassem, tendo assim livre-arbítrio para contratar outra empresa quando
16
achasse conveniente. O andamento desta relação desembocou na republica e sabemos que
como um dos resultados teve a efetivação da iluminação elétrica.

Tabela 1

QUADRO DA DIVISA JUDICIÁRIA ECCLESIASTICA E POLICIAL DA PROVÍNCIA DE PERNAMBUCO


Comarcas Termos Delegacias Freguesias e Subdelegacias
Recife Recife Recife Recife
240
Santo Antonio
São José 1º Districto
São José 2º Districto
Boa Vista
Santo Amaro
Graça
Belem
Poço da Panela
Macaco
Varzea
Afogados
Magdalena
Peres
Boa Viagem

15
Relatório do presidente de província de Pernambuco, 1885, p.37. Disponível em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u664/000035.html. Acessado em 12/05/2017.
16
Idem, 1885, p. 19. Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u665/000023.html. Acessado em: 13/05/2017.
Fonte: APEJE, Fundo Chefes de Polícia, Relatório apresentado ao presidente da Província de
Pernambuco pelo chefe de polícia Joaquim José Andrade, Fevereiro de 1880.

Como podemos ver, segundo a tabela I estas são as freguesias do Recife no limiar da
década de 1880 e muitas delas resistiram ao tempo e permanecem hoje como bairros do
Recife. A freguesia de São José nesta época, por exemplo, em relação a 1864, foi dividida em
dois distritos, e mais tarde também seria a da Boa Vista. A movimentação pela cidade estava
mais intensa, com o aumento de estradas que cortavam a cidade, e os bondes que adentravam
mais ainda o que antes era chamado de continente, nestas “novas” freguesias que vão se
tornando a periferia da cidade. Muitas vezes elas se tornavam locais procurados por pessoas
que queriam suas casas de lazer para fugir do furdunço do centro, a exemplo das famosas
casas de campo do Poço da Panela. 17
18
Na obra Cidade Febril o autor Sidney Chalhoub mostra dentro do contexto histórico
do período imperial as questões da administração pública, no que tange as ações higienistas
para o controle de epidemias e melhoramento da salubridade na Corte, especialmente a partir
do combate aos cortiços e “classes perigosas”. Ele evidencia como este processo inicia-se
ainda em meados do século XIX, desde quando estas moradias começaram a se proliferar, não 241
sendo bem vistas aos olhos das autoridades e dos higienistas devido à população que em geral
nelas iam morar: o que costumavam chamar de classes perigosas. Eram os negros
(escravizados, fugidos, livres e libertos), imigrantes, ou de uma maneira geral, – e a
generalização era feita exatamente desta maneira na época – os pobres. 19
Para os políticos e higienistas do período apontado, leitores de autores europeus,
principalmente franceses que buscaram conceituar o termo “classes perigosas”, não apenas o
infrator seria membro deste grupo, mas, todo aquele que fosse pobre, que por assim ser, seria
propenso à infração e deveria estar na margem de suspeição das autoridades. Com destaque
para os negros que costumeiramente eram associados ao vício e ao crime, como consequência
natural de sua raça, e este era o motivo social de se reprimir este “ancro” (entenda-se o
cortiço, e aqui no recife muitas vezes o mocambo) de vícios e viciosos. 20.
É o que se lê, por exemplo, numa publicação de jornal em Março de 1880 sob o título
“Mocambo incommodo”, como vemos abaixo:

17
Idem.
18
Ver CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
19
Idem.
20
Idem.
“E’ o que levantou um retirante, em meio da travessa da rua do Principe
encostado ao muro de um sitio.
Repetem-se alli quotidianamente scenas pouco edificantes com
acompanhamentos de côros em que as obscenidades sobrepujam o alarido. A
tal ponto chega o escandalo que não ha quem queira residir nas casas que
defrontam com o aludido mocambo. Ao fiscal da Bôa-Vista cumpre
averiguar a exactidão do que asseveramos e providenciar de modo a
aniquilar aquelle empecilho, foco de immoralidades.”. 21

Podemos perceber que há uma preocupação com a moral e de como a falta dela atinge
aqueles que estão nas proximidades dos mocambos. Aliás, o problema estava aí, não
necessariamente na situação em si em que se encontravam as pessoas do tal mocambo, mas
em como a existência e comportamento delas afetavam os possíveis moradores
circunvizinhos.
Esta narrativa sobre o “mocambo incommodo” na freguesia da Boa vista não surgiu ao
acaso, mas muito pelo contrário, ela representa um ideal de cidade disseminado pelas elites
locais e da administração pública desde as primeiras décadas dos oitocentos, e, que por sua
vez, já devia ter a esta altura do campeonato, alcançado boa parte da população com o mínimo
de acesso aos meios de comunicação, capaz de compreender o que acontecia no cenário sócio-
político do Recife. Como afirmou Grasiela Morais, 242
“A administração da cidade ultrapassa os limites físicos e passa a recair,
sobretudo, sobre o seu aspecto moral. Mas empreender a civilização não era
tarefa fácil, pois se requeriam elementos fulcrais para a sua sistematização
(leia-se normatização), tais como pôr em prática os seguintes conceitos:
beleza, higiene e circulação. Portanto a cidade foi sendo problematizada a
partir da questão urbana, a qual seguiria os ‘preceitos’ e os ‘refinamentos’
europeus com a finalidade de vir a ser o espaço não apenas da beleza e da
limpeza, mas também, o lugar da ordem”. 22

Tanto no Recife como na Corte, essa preocupação em se erradicar os cortiços (inclusive


no Rio de Janeiro através de demolições) com o argumento de que eram focos de doenças
devido à falta de higiene das classes perigosas que neles moravam, foi uma justificativa para
afastar do centro da cidade uma população parda e negra, acusada de ser propulsora de

21
HEMEROTECA DIGITAL. Jornal do Recife. Coluna: Gazetilha. Mocambo incommodo. 10/03/1881, nº57,
p. 01.
22
MORAIS, Grasiela Florêncio de. O “BELO SEXO” SOB VIGILÂNCIA: O controle das práticas cotidianas
e formas de resistência das mulheres pobres livres, libertas e escravas no Recife oitocentista (1830-1850).
Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Departamento de Letras e Ciências
Humanas. 2011, p. 29.
doenças contagiosas, e buscando na verdade preservar a saúde dos brasileiros (brancos e
ricos) e estrangeiros23 que eram justamente à população nobre vivente em seus entornos.
No Recife as ações sanitárias se voltaram diversas vezes contra epidemias. Em 1884 a
varíola estava parcialmente controlada nos portos do bairro do Recife, mas grassava a
população de alguns lugares do interior. Contudo a atenção do momento girava em torno da
“cholera-morbus”, ou mais popularmente conhecida apenas como cólera, que vinha assolando
algumas cidades da Europa. As ações preventivas vinham de uma circular de 28 de Junho do
mesmo ano, expedida diretamente do governo Imperial e baseavam-se na prática de
quarentena por um período de pelo menos 24 horas nos navios atracados e vindos desse
continente. Algumas embarcações nem podiam atracar, pois estavam terminantemente
proibidas de adentrar aos portos, como as vindas de Marselha, Toulon e Spezzia.24.
Os desejos de se limpar da cidade os mendigos, vagabundos, e todo aquele que estivesse
em atividade suspeita ou não se encaixasse no perfil das normas locais, também não foge a
esse ideal civilizatório, pois com esse intuito foi criado o Asilo de Mendicância, sob a
administração da Santa Casa de Misericórdia em 1868, e na tentativa de qualificar a nova

243
massa trabalhadora, a exemplo de países como Estados Unidos, foram criadas instituições
educacionais voltadas para o ensino de ofícios, como a Colônia Orfanológica Isabel. 25
Havia uma cobrança constante da população recifense nos jornais acerca da efetividade
do acolhimento de mendigos ao “Asylo de Mendicância”, pois, questionava-se a permanência
deles nas ruas e a maneira com que a mesma funcionava, já que eram cobrados 3% em
impostos à população. O próprio Jornal do Recife relatava diariamente o movimento de
entrada, saída e acontecimentos no Asylo, da mesma maneira como narrava o cotidiano da
Casa de Detenção. 26
As autoridades também espreitavam os seus funcionamentos, pois anualmente o
presidente da província relatava o movimento não só delas, mas de tantas outras instituições
importantes da cidade. Afinal, a burocracia estatal aumentava cada vez mais, e a prática de
anotar e descrever tudo que se passasse na província, especialmente na capital, era um modo
também de manter a civilidade do lado de quem tinha o poder estabelecido.

23
Que por outras questões apontadas pelo autor, inclusive nada tinham a ver com os tais cortiços, foram os mais
atingidos por estas doenças na época (febre amarela principalmente), e que tiveram a sua entrada no país
incentivada pelo governo imperial para substituir a mão de obra escravizada diante do processo de abolição lenta
e gradual.
24
Relatório do Presidente de Província de Pernambuco, 1884, p.17. Disponível em: http://www-
apps.crl.edu/brazil/provincial/pernambuco. Acesso em: 05/04/2017.
25
MAIA, Clarissa Nunes. POLICIADOS: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife, 1865-
1915. Tese de doutoramento. Universidade Federal de Pernambuco. 2001, p. 70.
A crise açucareira e as mudanças no mundo do trabalho.

No século XIX, Pernambuco contava com uma área total de


aproximadamente 110 mil km2, sendo que, dessa área 15 mil km2 constituíam
uma faixa de terra privilegiada pelo massapé, onde a cana-de-açúcar podia
ser cultivada praticamente em toda a parte. Entretanto, dessa faixa os
fazendeiros utilizavam apenas cerca de um quinto das terras disponíveis. 27

28
Clarissa Maia afirma que essa subutilização da terra se dava basicamente devido à
três fatores: dificuldade de se plantar em áreas muito distantes dos engenhos por conta da
própria peculiaridade da produção, uma vez que existia um prazo máximo para moer a cana; a
especulação de terras no período, que fazia com muitos senhores utilizassem as terras para
conseguir empréstimos com financiadores; e a utilização dessas terras pelos agregados dos
senhores, que seriam pessoas que se beneficiavam com o uso das que pertenciam aos
fazendeiros em troca de favores.
Além disso, não existia documento que legalizasse essa relação entre fazendeiros e
agregados, o que permitia que o primeiro grupo utilizasse o segundo de acordo com suas
244
necessidades (mão de obra barata, milícias, etc.). Esse período se caracterizou por uma
instabilidade constante na vida de muitos livres pobres, pois com a crise açucareira e
algodoeira, as secas, e a proibição do tráfico de escravos, acabaram condicionados à uma vida
de subsistência da qual ficava difícil separá-los das condições de vida dos escravizados. Ainda
que o uso do contrabando tenha sido forte até 1860 – do qual as autoridades muitas vezes não
interferiam – as fugas de escravizados nas décadas finais do século complicou a vida de muito
senhores.

Não obstante, o interesse dos senhores de engenho não significou uma


melhora de vida real entre os trabalhadores livres. Embora os níveis salariais
crescessem entre a década de 1850 até fins da década de 1860, o custo de
vida reduziu pela metade o valor real dos ganhos. 29

Acontece que o aumento de custo vida estava em grande parte associada à falta de
incentivos para uma produção de gêneros alimentícios locais, uma vez que a economia volta-

27
MAIA, Clarissa Nunes. Sambas, batuques vozerias e farsas públicas: o controle social sobre os escravos em
Pernambuco no século XIX (1850 – 1888). São Paulo: Annablume, 2008. p. 24.
28
Idem.
29
Idem, p. 28.
se para a agroexportação, e ainda que nas áreas rurais existisse certa produção de alimentos
ela não alcançava a população urbana.
O criado de servir é resultado do período de transição do trabalho escravo para o
assalariado que desde o Império, ou seja, ainda enquanto a escravidão era legal, vinha
acontecendo devido à diminuição da mão de obra escrava diante das leis proibitivas do trafico
negreiro e da exportação interprovincial latente do período. Existia toda uma burocracia
estatal que buscava regularizar e registrar este trabalhador, juntamente a Câmara Municipal e
a Secretaria de Polícia em cadernetas específicas – especeis de protótipos da atual carteira de
trabalho. 30
Embora a estrutura de distribuição de terras e o monopólio comercial não tivessem
sofrido grandes mudanças durante o século XIX, a escravidão talvez tenha sido a instituição
que mais mudou. Até 1850 essa população se concentrava nas regiões Nordeste e Centro-sul,
que eram seus principais importadores. Na segunda metade do século o cenário já não era o
mesmo. Pernambuco, assim como vários outros produtores mundiais de cana, não suportou a
diminuição nos preços e a forte concorrência, mesmo após os esforços do governo provincial
e imperial de subsidiarem essa economia com investimentos nos engenhos centrais31. Como
afirma o autor,
245
Foi o surto cafeeiro que determinou as principais transformações econômicas
do Brasil do século XIX. Após 1830 o café produziu mais moeda estrangeira
do que qualquer outro produto exportável, e sua liderança acentuou-se
constantemente de lá pra cá. (Quadro 2) Rio de Janeiro, São Paulo, e Minas
Gerais, as principais províncias produtoras de café, drenaram os escravos
nordestinos, após, 1850, quando chegou ao fim o tráfico internacional, e
atraíram imigrantes e capitais da Europa, depois de 1880. Isto contribuiu
para a maior concentração de rendas e de população no Centro-Sul
(relativamente ao Nordeste), criando um mercado de massa e possibilitando
o início do processo de industrialização. 32

No decorrer do processo de abolição estas regiões foram articulando o trabalho escravo


ao livre, inclusive, incentivando a imigração europeia. Já para os escravizados a abolição foi
mais representativa do que prática, pois, continuaram desempenhado, na maioria das vezes, os
mesmos papeis econômicos e sociais do país, só que agora disputando de maneira desigual
com os livres (especialmente os imigrantes europeus).

30
MAIA, Clarissa Nunes. POLICIADOS: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife, 1865-
1915. Tese de doutoramento. Universidade Federal de Pernambuco. 2001, p. 52.
31
Idem, p. 36.
32
Idem, p. 33.
Pernambuco possuiu uma média anual de 72.498 escravizados durante a década de
1880, menos da metade dos 150.000 existentes no ano de 1823 33, e o fluxo de escravizados
para fora da província no ano anterior a 1880 evidencia bem as afirmações feitas acima por
Eisenberg. Como podemos observar no Quadro 1, enquanto entraram cerca de 270 cativos na
mesma, saíram 1825, tendo a década de 1880 iniciado, portanto, com essa população bastante
deficitária se comparada a anos anteriores.

QUADRO 1
QUADRO DEMONSTRATIVO DOS ESCRAVOS ENTRADOS NESTA PROVINCIA DE
PERNAMBUCO E OS QUE DELA SAHIRAM PARA OUTRAS PROVINCIAS,
DURANTE O ANNO PROXIMO FINDO DE 1879.

ENTRADOS Nº SAHIDOS Nº
No semestre de Janeiro á Julho 167 No semestre de Janeiro á Julho 849
No semestre de Julho á Dezembro 103 No semestre de Julho á Dezembro 976
Somma 270 1825

246
Fonte: Fonte: APEJE, Fundo Chefes de Polícia, Relatório apresentado ao presidente da Província de
Pernambuco pelo chefe de polícia Joaquim José Andrade, Fevereiro de 1880.

Se no inicio do século a produção da cana de açúcar estava estritamente ligada ao


tráfico negreiro, nas décadas finais a política governamental que previa a abolição de forma
gradual pressionou os agricultores a abandonarem o navio. Até porque o perfil dos
agricultores pernambucanos era majoritariamente de importadores, pois não investiam na
reprodução natural dos cativos, mesmo no período de crise, principalmente após a proibição
do tráfico em 1850 34.
Ao darem preferência a escravizados africanos homens e fortes, e não cuidarem
devidamente nem das escravizadas grávidas nem das crianças dificultavam a reprodução em
solo brasileiro dessa população para suprir a demanda de trabalhadores nas lavouras de
açúcar. Dessa maneira, com o processo de abolição em andamento e só após eles buscarem de

33
Idem, p. 170.
34
A Lei de nª581 (Eusébio de Queiroz) veio na verdade implantar penas mais rígidas aos infratores da lei de
1831que já previa a libertação dos escravizados chegados ao país, mas que por diversas razões foi sendo
desrespeitada até meados do século. Ver EINSENBERG, Peter L. Modernização sem mudança: a indústria
açucareira em Pernambuco, 1840-1910. Trad. João Maia. Apres. Manuel Correia de Andrade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra; Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1977.
várias formas manterem o sistema escravocrata, ainda deram sua última cartada para lucrar de
algum modo diante desta situação: apostaram na exportação interprovincial. Contudo,

O total de escravos embarcados para o Sul, após 1876, foi tão elevado que as
províncias compradoras – Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais –
impuseram elevados tributos à importação de escravos, em 1880 e 1881.
Tais impostos eram arrecadados com a intenção de impedir a drenagem de
todos os escravos do Nordeste e, assim, visavam a levar tais províncias a
apoiar a abolição e também a estimular a imigração europeia. Os tributos
acabaram com o tráfico interprovincial de escravos. Em consequência deste
tráfico, Pernambuco pode ter perdido de 23 mil a 38 mil escravos,
dependendo de ser considerada a média de embarques legais ou estas
estimativas de embarques. 35

Aliás, durante a década de 1880 notamos que esses incentivos às emancipações vão
aumentando, a ponto de haver até mesmo um fundo disponibilizado pelo governo provincial
para tal fim36. Em 1888, dez dias antes do anúncio da Lei áurea, o Diário de Pernambuco
circulava uma notícia correspondente à situação apontada pelo autor acima. “A Camara
municipal aos seus municipes” era o título da mesma e a intenção era justamente de
convencer o restante dos proprietários de escravizados a se renderam a emancipação, e
247
iniciava a sua campanha dizendo,

A Camara Municipal do Recife, por indicação do Sr. Vereador José Rufino


Climaco da Silva, dirigi-se aos seus municipes, ainda proprietarios de
escravos, para que estes não só pelos sentimentos de humanidade, como
mesmo pelo próprio interesse, libertem os mesmos escravizados.
A Camara Municipal lembra que, estando a questão do elemento servil a ser
terminada, o interesse dos actuaes senhores de escravos consiste na
emancipação espontanea, uma vez que será esse o unico meio pelo qual
poderão manter os actuaes escravisados, como servidores domésticos, livres
e á salario, acostumando-os ao regimen do trabalho livre ; do contrario, serão
forçados, por acto de Poder Publico a reconhecerem e sujeitarem-se a
libertação que fôr brevemente por este mesmo Poder decretada.
Esta Camara pede que, as cartas de liberdade sejam depositadas em sua
secretaria afim de que em dia previamente designado, sejam ellas
distribuídas em acto solemne, e os nomes dos libertadores escriptos no seu
livro de ouro.” 37

35
EINSENBERG, Peter L. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840-1910.
Trad. João Maia. Apres. Manuel Correia de Andrade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Universidade
Estadual de Campinas, 1977, p. 177.
36
Relatório do Presidente da província de Pernambuco, 1880, p. 13. Disponível em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u656/. Acessado em em 24/07/2016.
37
HEMEROTECA DIGITAL. Diário de Pernambuco. Coluna: Declarações. A Camara municipal aos seus
munícipes. 03/05/1888. Nº103. p. 3. Acesso em: 27/02/2016.
Este texto nos revela muito do contexto político do período em tela, a começar pela
argumentação da Câmara quando elucida que a ação emancipatória é também coerente com os
interesses particulares desses proprietários, uma vez que, a abolição era condenada muitas
vezes pelos seus opositores como uma legislação que iria de encontro ao direito constitucional
de propriedade. Então, ao iniciar seu texto já induzindo o leitor a sentir-se contemplado
individualmente com a ação proposta, busca convencê-los das vantagens do negócio. Ela
retoma este argumento quando avisa que a emancipação espontânea era a maneira mais
benéfica a tal interesse, já que era dessa forma que o proprietário poderia manter seu braço
servil sob sua tutela, ainda que seguindo outras regras. Caso não agissem assim, corriam o
risco de perder de vez qualquer vantagem neste processo de mudança. E continuando a
narrativa de convencimento, explica que seriam estes solenes homens, caso depositassem
devidamente as cartas de liberdade na secretaria da Câmara, homenageados em seu “livro de
ouro” de modo que ficaria estampada a “boa” ação dos mesmos para que todos soubessem o
quanto contribuíram para a abolição.
Portanto, como foi dito anteriormente, os senhores de escravos ao verem que não
tinham como fugir da transição do trabalho escravo para o livre, não apenas procuraram
sozinhos cada qual a seu bel prazer saírem ganhando de algum modo com tudo isso, mas
248
foram claramente instruídos pelo poder publico de Recife a seguirem os determinados
procedimentos que lhe garantiriam o alcance de tal façanha. E nesse período, a força policial
da cidade, atuando de acordo com a política do estado, bailou conforme a música das
determinações imperiais e provinciais às quais devia cumprir ordens. Contudo, também
agindo de acordo com seus interesses a depender das situações e dos grupos com que ora
buscavam conter, ora interagiam como qualquer outro civil que compartilhasse de objetivos
incomuns.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822


– 1850. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1998.

CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
EINSENBERG, Peter L. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em
Pernambuco, 1840-1910. Trad. João Maia. Apres. Manuel Correia de Andrade. Rio de
Janeiro: Paz e Terra; Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1977.

LIMA, Emmanuelle Valeska Guimarães de. “NÃO TEMOS GOVERNO, NÃO TEMOS
POLÍCIA...”: os jornais e a crítica aos aparatos policiais no recife oitocentista (1850-1874).
). Dissertação de Mestrado. 2013. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Departamento
de Letras e Ciências Humanas. 115.

MAIA, Clarissa Nunes. O controle social no Recife oitocentista. In. SILVA, Wellington
Barbosa da (org). Uma Cidade, várias histórias: o Recife no século XIX. Recife: Ed.
Bagaço, 2012.

_____. Sambas, batuques vozerias e farsas públicas: o controle social sobre os escravos em
Pernambuco no século XIX (1850 – 1888). São Paulo: Annablume, 2008.

_____. POLICIADOS: controle e disciplina das classes populares na cidade do Recife, 1865-
249
1915. Tese de doutoramento. 2001. Universidade Federal de Pernambuco. 249.

MORAIS, Grasiela Florêncio de. O “BELO SEXO” SOB VIGILÂNCIA: O controle das
práticas cotidianas e formas de resistência das mulheres pobres livres, libertas e escravas no
Recife oitocentista (1830-1850). Dissertação de Mestrado. Universidade Federal Rural de
Pernambuco. Departamento de Letras e Ciências Humanas. 2011.

SANTOS, Manuela Arruda dos. RECIFE: Entre a sujeira e a falta de (com)postura 1831-
1845. Dissertação de mestrado. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Departamento de
Letras e Ciências Humanas, 2009.
CASAMENTO
NAPOLITANO:
REPERCUSSÕES DOS
CASAMENTOS DE S.M.I.
O IMPERADOR
DOM PEDRO II E DA
PRINCESA IMPERIAL
DONA JANUÁRIA NO
RECIFE.

JANINA RITA
SILVA DE SOUZA

GRADUANDA (UNICAP)
Em 1826 falece no Rio de Janeiro a Imperatriz D. Leopoldina, assim começa a saga de
D. Pedro I para conseguir uma nova esposa, mas essa não viria tão facilmente, foram quase 3
anos e muitos “nãos” de princesas europeias, mas houve uma que aceitou, era Dona Amélia
que chegou ao Brasil em 1829, mas não foi só o Primeiro Imperador que teve dificuldades em
casar de novo, anos mais tarde em 1840, quando já se falava no assunto ao jovem Imperador
Dom Pedro II, a diplomacia Brasileira teve vários impasses em conseguir um casamento com
uma grande corte.
251
Na corte austríaca havia o chanceler Klemens Wenzel von Metternich, assim como
foi uma pedra no sapato do Dom Pedro I, travaria qualquer chance dos filhos arrumarem
casamento na corte dos Habsburgos, muito também se deve a má reputação do pai, pois a
memória dos acontecimentos com a Imperatriz Leopoldina ainda estavam vivos na cabeça das
pessoas na corte de Viena, o Império Brasileiro era considerado um lugar distante e exótico e
poucas princesas se disponibilizariam a fazer a travessia do oceano.

Então os ventos sopraram para cortes não Germânicas, mas não foi do dia para noite
ainda ia demorar uns 2 anos, para achar um “sim”, um contato do diplomata Brasileiro em
Portugal com o secretário do rei das Duas Sicilias um pequeno reino Italiano, conseguiu saber
que o rei tinha uma irmã mais nova em idade de casar, depois do pedido oficial da mão e do
casamento por procuração realizado no dia do nome do rei, a Imperatriz D. Teresa Cristina de
Burbon, embarcaria para o brasil no dia 1º de Julho a bordo da fragata Constituição, chegando
em seu destino no dia 3 de setembro de 1843, sendo amplamente divulgado pelos jornais nos
moldes da época.

O Rei Fernando II também possuía um irmão em idade de casar, era Luis Carlos de
Burbon, o conde de Aquila, que veio acompanhar a Imperatriz e no ano seguinte 1844, se
casaria no Rio de Janeiro com a Princesa Imperial Dona Januária, casamento realizado com
pompa na Capela Imperial (antiga sé do Rio), com repercussões na imprensa do Rio, mas
também de Pernambuco, o fato interessante é que no caso do enlace de SS.AA.I. e R. houve
um dia especifico para celebrações com veremos no decorrer do texto.

Uma inquietação paira no ar: como ou o que era a imprensa no século XIX? Se
pensarmos nos meios de comunicação dos dias atuais, a resposta é não, na primeira metade
dos 1800 não haviam muitos recursos tais como: Telégrafo, Telefone, Rádio e outros meios,
Recife era uma localidade muito privilegiada não só pelo porto, mas por sua localização
geográfica, em uma época que a maiorias das notícias do exterior só chegavam de duas
formas: pelo correio terrestre do Rio de Janeiro ou outras províncias do Império, outra fonte
era o porto, os navios levavam e traziam notícias, um exemplo era quando se tinha circulação
de dinheiro falso, os jornais ficavam sabendo porque as pessoas que viviam naquela região
informaram.

Devemos notar que existiam vários tipos de periódicos e jornais como Luiz
Nascimento classifica em seu livro A História da Imprensa Pernambucana, algumas fontes
primárias desta pesquisa são classificados por esse autor como jornais da situação: O Cometa,
além do jornal oficial e um dos principais da província: O Diário de Pernambuco, sendo de 252
oposição ao governo provincial O Guarda Nacional.

Algumas notícias não foram genuinamente publicadas por um repórter do Diário de


Pernambuco que cobriu o evento, mas recortes de jornais que circulavam na corte do Império,
havia cobertura de eventos, só que não era em tempo real como nos dias atuais.

Folheando os jornais da segunda metade do século XIX, percebemos que o próprio


modelo de jornal e periódico se difere do que conhecemos, os tantos cadernos e páginas que
temos, não existiam, não havia imagens, que só entram na imprensa no século XX, o jornal
era muito leve possuindo apenas 4 páginas, dobrando para 8 na década de 60 dos 1800, tendo
mais do dobro disso em 1934, eles simplesmente informam a sua maneira, a questão de
alguns detalhes ficava relacionada muitas vezes a importância do evento.

Em 1843 Dom Pedro II era um jovem de apenas 17 anos, mas com o dever de
perpetuar uma dinastia, a única monarquia em meio a repúblicas, o ato do casamento só
reforçaria o ideal dessa maioridade, como já demonstrou José Murilo de Carvalho no seu livro
Dom Pedro II: Ser ou não ser, a escolhida como vimos acima foi Teresa Cristina de Bourbon,
os pernambucanos que não foram a corte para a festa e ficaram esperando notícias, ou
perderam o evento, ou chegaram bastante atrasados.

O pedido oficial da mão e a cerimônia de casamento por procuração que ocorreram em


27/05 de 1843 e 31/05 de 1843, são noticiados junto com o Programa para o recebimento,
desembarque e acompanhamento de Sua Majestade a Imperatriz que foi publicado na corte
em 07/08 de 1843, só seria publicado em Pernambuco no exemplar de número 194 do Diário
de Pernambuco do dia 09/09 de 1843, 6 dias após a entrada da fragata na Baía de Guanabara,
e 5 dias após o desembarque formal, foi destaque na primeira página do jornal.

Após o dia 09/09, só teremos novas notícias sobre o casamento na edição n° 195 do
dia 11/09, onde se lê:

Uma barca chegada sábado do rio, donde sahira no fim do mez,


encontrou no Cabo-Frio a esquadra que conduz para aquella côrte S.M. a
Imperatriz, e que he provável ter entrado no dia 1º, do corrente.
As informações que se seguiram até a publicação oficial do desembarque eram
desencontradas, alguns dias depois em 14/09 de 1843 sai uma nota em um periódico local
chamado O Cometa sobre uma delegação de pessoas influentes que haviam ido até o rio de 253
janeiro para felicitar o Imperador.

Um bom tempo depois na edição de número 207 do dia 26/09 de 1843 é publicada no
Diário de Pernambuco, página 2, a seguinte nota:

No dia 20 de julho tinha passado pelas 5 horas da tarde em frente do


porto do Funchal a esquadra que conduzia ao Rio de Janeiro S.M. a
Imperatriz do Brasil; mas tão fresco e favorável era o vento, que nenhum dos
navios teve comunicação com a terra, sem dúvida para não retardar a viagem.
Paira no ar a dúvida sobre o desembarque, mas além de um certo atraso nas
informações, percebemos como veremos mais adiante um caso de desencontro da notícia.

No número 208 do dia 27/09 de 1843 é noticiado formalmente pelo Diário de


Pernambuco a cerimônia de entrega e o desembarque da princesa Italiana em terras Brasileira,
nessa notícia há pontos muito interessantes como: a reação de contentamento de Dom Pedro
II, diferentemente do que alguns biógrafos relatam, a descrição não física, mas de caráter de
Dona Teresa Cristina, sempre vista como dócil, bondosa, amável, benevolente, muito
diferente do que o autores dizem em suas obras, nas quais tentam inferiorizá-la ao marido de
todas as formas, segundo Eugenio Rodriguez³ Ele era um oficial da marinha napolitana que
estava presente no primeiro encontro dos monarcas:
Que momento de palpitante emoção! Aquele olharem-se pela primeira
vez e serem tomados por potente simpatia, aqueles suspiros de uma alma paga e
de um coração inebriado. Aquele primeiro e puro amplexo que não se pode
definir, aqueles olhares que falam, se entendem, deixaram uma hora dulcíssima.
Aquela ardente impaciência definia a ânsia do augusto jovem para abraçar
aquela que devia fazer-lhe beata a vida.

A famosa frase “Enganaram-me Dadama”, não saiu no jornal, nesse mesmo dia temos
em primeira página um comunicado oficial do presidente da província noticiado o casamento,
no dia 30/09 de 1843 é noticiado a visita de Dom Pedro II, Dona Teresa Cristina, seu irmão
Dom Luis Carlos e Dona Januária as iluminações públicas em comemoração ao casamento,
vemos que a cidade do Rio de Janeiro celebrou bastante a união entre os augustos esposos.

As informações oficiais cessam no dia 03/10 de 1843 quando no exemplar de número


212, publica-se na segunda página um comunicado da câmara municipal de Olinda, pedindo
aos seus moradores que iluminem as casas por 3 dias em comemoração ao fato, outro
periódico local chamado O Guarda Nacional, traz uma pequena nota na página 4 da edição nº
77 datada do mesmo dia, em que o redator comenta sobre a não elevação do título do então na
época Barão da Boa Vista.

Nesse acontecimento há um fato que sempre está envolto nas sombras sendo relegado 254
a segundo plano, trata-se do casamento da Princesa Imperial Dona Januária, irmã mais velha
de Dom Pedro II a ficar no Brasil, desde o início das negociações sobre o casamento do
irmão, o dela também era negociado, houveram vários pretendentes, quando Dona Teresa
Cristina chega ao Brasil ela vem acompanhada de seu irmão Luis de Burbon, o Conde Aquila,
que veio como oficial da Marinha Napolitana a bordo da fragata Amaila.

” O matrimônio de Teresa Cristina teve um primeiro efeito imediato: as núpcias entre


seu irmão Luigi, Conde d´Aquila e D. Januária, herdeira presumida do trono caso o irmão não
tivesse filhos”.

Ainda no mesmo texto vemos na página seguinte que:

Como escreveu ainda Heitor Lyra, retomando quase textualmente por


muitos outros historiadores, foi suficiente aquela viagem na mesma carruagem
durante as festas que celebravam o matrimônio de D. Pedro e Teresa Cristina
para realizar o que a diplomacia e a razão de Estado não tinham conseguido.
Entre os príncipes o amor desabrochou. Genaro Merolla conduziu as tratativas
com sua habitual habilidade diplomática, o imperador do Brasil e o rei das
Duas Sicílias trocaram cartas oficiais, e o matrimônio foi celebrado em abril
de 1844. (P. 68).
Em 28/04 de 1844 D. Januária e D. Luis Carlos se casam na Capela Imperial, as
notícias chegam com um certo atraso como era comum a época, as notícias da vindo do
Conde para o Brasil, chegam a Recife apenas em 22/04 de 1844 nas vésperas do casamento, o
exemplar do Diário de Pernambuco de número 95 datado do mesmo dia traz na página 2 a
seguinte informação:

“Vimos Jornaes do Commercio até 26 do passado, vindos pelo Philinto, que chegou hontem
(20) do Rio-de-Janeiro. Eis-ahi o que nelles achamos de interessante. Diz o Jornal, que lhe constava
que S.A. Real o Sr. conde de D´Avila, irmão de S.M. a Imperatriz é esperado muito brevemente na
5

côrte á bordo da fragata napolitana Amalia.

O Diário de Pernambuco erra o título do Conde de Aquila que é chamado no texto de


Conde Avila, dias depois o mesmo jornal publica erratas no número 96 onde ler-se: “No
Diario anteior e no artigo Diario de Pernambuco lê-se na linha 6ª = Conde D´Avila = que
deve ler = conde d´Aquila=”.

Depois dessa pequena gafe, temos a notícia do desembarque do Conde de Aquila no


Brasil, datada de 06/05 de 1844, no exemplar de número 105, podemos perceber algumas
informações desencontradas bem características da falta de meios de comunicação eficientes: 255
Vimos Jornaes do Commercio até 19 de abril, dos quaes eis-aqui o que
achamos interessante .<<S.A.R o conde d´Aquila chegou a corte no dia 27
de abril, á bordo da fragata napolitana Amalia.
Consta-nos, que o casamento se verificará terça feira 23 do corrente
(abril); e que serão convidados para assistir a cerimonia toda a côrte , corpo
diplomatico, representantes da nação,desembargadores, membros dos
tribunaes, militares de tenentes coroneis para cima, e outras pessoas de
distinção. A cerimonia será celebrada ao meio dia na capella imperial.
Seguir-se-ha um explendido jantar SS.MM.II. se retirarão para S. Christovão
, ficando SS.AA. residindo no paço da cidade, na parte do palacio que para
esse fim acaba de ser prompitificada.<<Depois do otavario, começaraõ os
festejos: haverá cortejo, baile, theatro, etc.
As ultimas noticias são do dia 09/05 de1844, quando no número 108 do Diário de
Pernambuco traz em primeira página o dia reservado para as comemorações do casamento no
Rio de Janeiro, por aqui não se sabe o impacto que a união da princesa Imperial causou, não
tem registo na imprensa de iluminações, por exemplo, mas sabe-se que Dona Januária era
uma princesa muito querida.

Sempre descrita como afável e boa irmã, a princesa começava a dar os primeiros
passos para uma mulher de sua posição, não somete ela, Teresa Cristina também, o casamento
para elas era só mais estagio para viverem em suas realidades, a maternidade também e foi
algo rápido em ambas as partes, menos de 5 anos de casamento, elas já eram mães.

Diferentemente do primeiro casal os Aquila não ficaram muito tempo em terras


tropicais, intrigas da corte, que alguns autores relacionam a figura do Mordomo Imperial
Paulo Barbosa, levaram a quebra de relações entre Dom Pedro II e seu cunhado Napolitano,
mas analisando bem está citação:

Dos filhos de D. Januária, vale especial menção Felipe de Bourbon


(1847-1922). O príncipe era irrequieto como o avô D. Pedro, e por conta
disso a mãe, esgotadas todas as tentativas de tentar educá-lo, pediu ajuda ao
irmão, D. Pedro II. O rapaz foi mandado ao Brasil, onde, em 1869, assentou
praça como cadete na Escola Militar. Para desespero do tio imperador,
porém, foi no país tão insubmisso quanto na Europa.
Podemos ver acima que não houve uma quebra total nas relações familiares, em outras
situações como nos documentos privados de Dona Teresa Cristina presentes na obre de
Avella, que eles estavam trocando correspondência, pode ser que tenha havido uma
indisposição entre os monarcas e os Aquilas, mas não foi duradora em algum momento deve
ter ocorrido um pedido de desculpas.

Quando falamos em Teresa Cristina e Dom Pedro II tem-se sempre em mente a ideia
256
da frustração entre os esposos, mas pela correspondência da mesma, a situação era outra,
vemos uma esposa sempre apaixonada e carinhosa com seu consorte e depois do falecimento
dela em 28/12 de 1889, vemos no diário de Dom Pedro:

“Ninguém imagina a minha aflição! Somente choro a felicidade perdida de 46 anos. [...]. Não
sei o que farei agora. Só o estudo me consolará de minha dor”.

Havia um profundo respeito entre os monarcas e uma admiração do marido pela


esposa, se casamentos são arranjos dinásticos não se pode dizer totalmente, mas os quatro
buscaram ter cada qual o seu “felizes para sempre”.

Referências Bibliográficas:

AVELLA, Aniello Angelo: Teresa Cristina de Bourbon: uma imperatriz napolitana nos
trópicos 1843-1889. Rio de Janeiro, EdUERJ, 2014.

BARMAN, Roderick: Imperador Cidadão: e a construção do Brasil. São Paulo, Editora


Unesp, 2012.
CARVALHO, José Murilo de: A Construção Nacional: 1830-1889. São Paulo, Objetiva,
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NASCIMENTO, Luiz do: História da Imprensa de Pernambuco (1821/1954) Vol I Diário de


Pernambuco, 2ª ED, Recife, Imprensa Universitária Universidade Federal de Pernambuco,
1968.

____________, Luiz do: História da Imprensa de Pernambuco (1821/1954) Vol IV periódicos


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SCHWARCZ, Lilia Moritz: As Barbas do Imperador, São Paulo, Companhia das Letras,
1998.

Periódicos e Jornais:

BN Digital:
257
Diário de Pernambuco, Recife, Ano 19 ED N° 194, 09/09 de 1843.

Diário de Pernambuco, Recife, Ano 19 ED N°195, 11/09 de 1843.

Diário de Pernambuco, Recife, Ano 19 ED N°207, 26/09 de 1843.

Diário de Pernambuco, Recife, Ano 19 ED N°298, 27/09 de 1843.

Diário de Pernambuco, Recife, Ano 19 ED N°210, 30/09 de 1843.

Diário de Pernambuco, Recife, Ano 19 ED N°212, 03/10 de 1843.

Diário de Pernambuco, Recife, Ano 20 ED N°95, 22/04 de 1844.

Diário de Pernambuco, Recife, Ano 20ED N°96, 25/04 de 1844.

Diário de Pernambuco, Recife, Ano 20 ED N°105, 06/05 de 1844.

Diário de Pernambuco, Recife, Ano 20 ED N°108, 09/05 de 1844

O Cometa: Quem não ser lobo, não lhe vista a pelle, Recife, ED N17°, 14/09 de 1843.
Arquivo Público Jordão Emerenciano:

O Guarda Nacional, Pernambuco, ED N°77, Dia 03/10 de 1843.

258
O TRIBUNAL DA
RELAÇÃO DE
PERNAMBUCO: UMA
INSTITUIÇÃO
JUDICIÁRIA NA
TRANSFORMAÇÃO DO
ORDENAMENTO
JURÍDICO IMPERIAL
(SÉCS. XVIII E XIX).

JEFFREY AISLAN DE
SOUZA SILVA

DOUTORANDO (UFPE)
Nas últimas décadas, houve um acentuado interesse da historiografia brasileira sobre
as relações entre o direito, a administração da justiça e os sujeitos. Instituições como câmaras
municipais e Tribunais da Relação e sujeitos em cargos como ouvidores, juízes de fora,
ordinários, de órfãos, juízes de paz e desembargadores estão inseridos em um quadro de
renovação dos estudos da história do Brasil, preocupados em entender as dinâmicas sociais e
políticas da Colônia e do Império, tendo homens e mulheres como atores desse processo,
ativos no diálogo entre o centro e as periferias. Diante desse contexto, buscaremos analisar os
sucessivos pedidos – como também a negativa deles – feitos pelas câmaras municipais das
260
vilas de Igarassu, Recife, Sirinhaém e Olinda para a instalação de um Tribunal da Relação na
vila do Recife, com o intuito de facilitar o acesso à justiça na localidade. Os argumentos eram
pautados na extrema dificuldade de recorrer à Relação da Bahia, o que causava grande ônus à
nobreza e ao povo da capitania de Pernambuco. Na segunda parte, buscaremos analisar os
motivos realçados tanto pelas autoridades políticas, quanto pelo Rei D. João VI para
finalmente instalar a Relação, tão almejada pelos pernambucanos.
A história dos tribunais em segunda instância no Brasil se iniciou em 1609, com a
instalação do Tribunal da Relação da Bahia. Stuart Schwartz defende que o Tribunal foi
criado com a intenção de aumentar o controle da jurisdição real na colônia. Para este autor, a
justiça era uma das principais justificativas do poder real e a burocratização do Estado
português, em oposição ao modelo patrimonialista, tornou a justiça um dos elementos
fundamentais da atuação do Estado. Schwartz argumenta que a organização judiciária se
transformou no “plano estrutural do Império”, já que a racionalização e sistematização
iniciada desde o século XIV oferecia um modelo burocrático de controle, fazendo com que a
magistratura se estendesse as colônias.1

* O autor é Doutorando em História na Universidade Federal de Pernambuco.


Ainda segundo Schwartz, a Relação foi uma reivindicação dos colonos, devido a
necessidade de um tribunal local para julgar as apelações das causas julgadas na colônia e aos
altos custos de se recorrer aos tribunais metropolitanos, contudo, reitera que a Relação foi
criada para defender os interesses da coroa. O autor ainda itera que as dificuldades
administrativas e a falta de pessoas qualificadas e comprometidas com os interesses reais
submetiam os desembargadores a um enorme volume de trabalho, fazendo com que a
dimensão das tarefas dos magistrados suplantasse a esfera jurídica, alcançando a esfera
administrativa e burocrática, onde exerceram funções de governo e regulação de instituições,
como as Câmaras Municipais e a administração fazendária.2
Em 1752 foi instituído no Rio de Janeiro, que também passou a ser sede do governo da
região do centro-sul da colônia, outro Tribunal da Relação. Segundo Maria José Wehling e
Arno Wehling, a criação do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro está ligada, primeiramente
a “sistemática reafirmação da autoridade régia”, que para os autores – como também para
Schwartz – tinha sua definição a partir da alta burocracia portuguesa, onde a justiça ocupava
um papel estratégico. Em segundo ponto, os autores argumentam que a criação de um
Tribunal para o centro e sul da colônia não era apenas o cumprimento de uma reivindicação
para aperfeiçoar a justiça na região mineradora, mas um ato político e centralizador do Estado
261
português.3
Reafirmando muitas das conclusões tomadas por Schwartz, os Wehling argumentam
que a responsabilidade dos Tribunais da Relação não se restringia a questão judicial,
alcançando também natureza política e administrativa. Os dois historiadores afirmam que a
criação do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro coincidiu com a mudança de orientação do
Estado português a partir do governo do Marques de Pombal, onde a tentativa de nivelar os
grupos sociais perante o rei, produziu pelo menos no campo administrativo, uma
racionalização do Estado e no jurídico, a uma tentativa de revisão legislativa. 4
No Antigo Regime a magistratura assumiu poderes muito amplos na máquina
administrativa dos Estados e no século XVIII foram pensadas mudanças para diminuir o
poder administrativo dos magistrados. Andrea Slemian argumenta que a jurisprudência do
Antigo Regime, principalmente nos Estados Ibéricos, era baseada em uma “justiça de juízes”,

1
SCHWARTZ, Stuart. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus
Desembargadores 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. pp. 27-40.
2
Ibidem., pp. 197-287.
3
Reinvindicação que partiu de vilas da Região mineradora, devido a demora no julgamento e expedição de
sentenças da Relação da Bahia. WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Direitos e Justiça no Brasil
Colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1752-1808). Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004. p. 124.
4
Ibidem., p. 348.
onde a conduta do magistrado era mais importante do que a aplicação correta da lei.5 Algumas
mudanças em relação a esse modelo começaram a ser impostas após a aprovação da Lei da
Boa Razão (1769), aprovada graças a influência do Marques de Pombal. Segundo Maria José
e Arno Wehling essa lei buscava diminuir a influência do direito romano na legislação
portuguesa e limitar o direito canônico aos tribunais eclesiásticos. Instituía que todo o direito
deveria estar subordinado a Boa Razão, que seria baseada no direito natural e nas leis
políticas, econômicas e marítimas das “nações civilizadas da Europa” onde a norma que
passasse pelo “filtro das luzes” da razão moderna, poderia ser utilizada pelos juristas
portugueses – inclusive as de outros Estados.6

1. Um Tribunal da Relação para a capitania de Pernambuco: solicitações e


negativas

Segundo a historiadora Érika Dias, o século XVIII em Portugal foi um período


bastante reformista, com a implementação de medidas políticas, econômicas e administrativas
com a intenção de dinamizar a economia e a sociedade ultramarina, o que pode ser notado
desde as reformas administrativas implementadas pelo governo de D. João V, com a criação
da Secretaria de Estado da Marinha e Ultramar, que retirou funções do Conselho Ultramarino, 262
deixando de ser o principal mediador entre as partes e o centro, principalmente durante o
ministério pombalino. A Secretaria foi, pouco a pouco, assumindo funções que antes eram da
alçada do Conselho, como a nomeação de vice-reis, governadores e capitães generais dos
estados ultramarinos.7 No que se refere à capitania de Pernambuco, a autora afirma que os
temas que chegavam à Secretaria estavam ligados à economia, à produção de gêneros e à
prestação de contas de governadores,8 o que significou uma tomada de posição em face das
antigas atuações políticas do Conselho.
Esse contexto de reformas e dinâmicas das colônias pode ter dado impulso para as
câmaras da capitania de Pernambuco requererem à Coroa, a instalação de um Tribunal da
Relação. A primeira delas foi a vila de Igarassu, que em 29 de dezembro de 1795 envia ofício
à Coroa, indicando que nobreza e povo, solicitam a criação de um Tribunal da Relação na vila
do Recife, alegando dificuldade de se recorrer a Relação da Bahia. Um ponto muito

5
SLEMIAN, Andréa. A primeira das virtudes: justiça e reformismo ilustrado na América portuguesa face à
espanhola. Revista Complutense de Historia de América, v. 40, p. 69-92, 2014.
6
WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José. Op., cit. p. 453; SLEMIAN. Op., cit. 86.
7
DIAS, Érika S. de Almeida. “As pessoas mais distintas em qualidade e negócio”: a companhia de comércio e
as relações políticas entre Pernambuco e a Coroa no último quartel de Setecentos. 2014. Tese (Doutoramento em
História) – Universidade Nova de Lisboa, pp. 47-48.
8
Ibidem, pp. 50-51.
interessante a ser analisado é que, no dia seguinte ao envio do pedido feito pela câmara de
Igarassu, 30 de dezembro de 1795, a câmara do Recife também envia uma solicitação para a
Coroa, requerendo a instalação de uma Relação.
A historiografia vem debatendo há alguns anos a influência corporativa da monarquia
portuguesa, partilhando o governo com outros corpos sociais, como os conselhos e os
tribunais, que, segundo Maria Fernanda Bicalho, gozavam de relativa autonomia e eram
responsáveis por um campo de atuação e jurisdição. Contudo, mesmo com esse alargamento
dos poderes da Coroa, o rei ainda era visto como o “cabeça” do reino, garantidor da justiça e
da ordem, zelando por sua conservação. Nesse ínterim, Bicalho argumenta que o envio de
pedidos e solicitações, que passavam por órgãos colegiados, por intermédio de consultas e
pareceres, reafirmava o caráter corporativo do governo e atualizava a imagem do rei como
árbitro e mantenedor da ordem.9
Ainda segundo Bicalho, as câmaras seguiam o modelo da municipalidade de Lisboa,
juntamente com sua legislação comum. Contudo, diante da grande diversidade sociocultural
dos portugueses no ultramar, foram criadas adaptações em seus sucessivos aparatos
institucionais e legais, tornando-as com diversas faces.10 Tinham espaço de atuação
municipal, caracterizadas por George Cabral de Souza como o último na hierarquia das
263
unidades administrativas da Colônia e inseridas em uma estrutura complexa, caracterizada
pelo autor como uma das instituições mais híbridas das colônias, juntando funções
administrativas, jurídicas, fiscais, militares e eclesiásticas. Era um espaço onde, muitas vezes,
o conflito dominava o cenário das ações entre os poderes locais, regionais e centrais, o que
fazia delas uma instância local onde o poder era muito mais perceptível do que o poder do
governador da capitania ou do governador-geral, e, justamente por dispor de poderes tão
amplos, tornavam-se veículos de interesses e disputas variadas.11
As câmaras possuíam prerrogativas que suplantavam e desenvolviam funções que
muitas vezes ultrapassavam as leis gerais do reino, mas, como a maioria das instituições
portuguesas implantadas no ultramar, seguiam os modelos metropolitanos e buscavam se
adaptar às dinâmicas das colônias. Segundo George Cabral de Souza, o seu funcionamento

9
BICALHO, Maria Fernanda. Entre a Teoria e a Prática: Dinâmicas político-administrativas em Portugal e na
América Portuguesa (séculos XVII e XVIII). Revista de História (USP). São Paulo -SP: v. 167, p. 75-98, 2012,
p. 80.
10
BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Ultramarinas e o Governo do Império. In: BICALHO, Maria
Fernanda; FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica
imperial portuguesa. Séc. XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp. 193-194.
11
SOUZA, George Felix Cabral. Elite e exercício de poder no Brasil colonial: a câmara municipal do Recife
(1710-1822). Recife: Editora Universitária da UFPE, 2015, pp. 99-113.
nas instâncias ultramarinas as obrigava a atuar em espaços que superavam as esferas da
municipalidade e sua competência, como também fazia com que autoridades superiores se
envolvessem em temas dirigidos as câmaras municipais.12 Em trabalho clássico sobre a
história administrativa no Brasil, Arno Wehling afirma que cabia às câmaras, dentro do
âmbito do controle da vida municipal, “a realização de obras públicas, a administração
financeira das comunidades, taxa de gêneros e salário dos trabalhadores, impostos sobre
artesãos para a cobertura de déficits da câmara, como também manutenção da cadeia”. O
autor chega a afirmar que as câmaras, por iniciativa própria ou metropolitana, atuavam na
repressão ao contrabando e na eliminação de quilombos.13 Esses órgãos de poder local
funcionaram como espaço privilegiado para apresentação de suas reivindicações, tentando
negociar a resolução de conflitos e as solicitações no âmbito da justiça, mas, como
percebemos, geravam embates entre os interesses locais e centrais.
Nobreza e povo da vila de Igarassu alegavam que havia uma grande necessidade de
estabelecer uma Relação na vila de Santo Antônio do Recife, visto que em “população e
comércio daquela localidade, se iguala aos mais famosos estabelecimentos das nações”, ainda
afirmando
264
“Por uma parte, que, ficando a cidade da Bahia distante da dita capital de
Pernambuco por mais cem léguas, se aos moradores desta é impraticável em uma, e
arriscado em outra parte do ano levar ali em última instância os seus pleitos civis, e
crimes, também muitas vezes lhe é improfícuo e sempre oneroso”.14

Mais uma vez, a dificuldade devido à distância e os sucessivos gastos são colocados
como primeiro ponto entre os problemas de se recorrer à Relação da Bahia. O senado da
câmara do Recife alegou que, em um território que se estende desde o Rio São Francisco, ao
sul, e até o governo do Maranhão, ao norte, compreendido por oitocentos léguas quadradas e
governado por quatro ouvidores e corregedores, tem somente a Relação da Bahia, “distante
duzentas, quatrocentas ou seiscentas léguas”, para se recorrer em suas apelações e seus
agravos, tendo que enfrentar o mar, “onde se encontram horríveis tempestades e de demandar
portos não destinados com perigos das vidas, se por terras, rios caudalosos, desertos habitados
por feras, gentios bravos e falta de comodidade de vida.”15 Tanto a solicitação da câmara de
Igarassu quanto a do Recife argumentam que aqueles que tentam recorrer deixam seus

12
Ibidem, pp. 373-374.
13
WEHLING, ARNO. História Administrativa do Brasil: administração portuguesa no Brasil, de Pombal a D.
João. Brasília: Fundação Centro de Formação do Servidor Público, 1986, p. 50.
14
29 de dezembro de 1795 - AHU_ACL_CU_15, Cx. 191, D. 13189.
15
30 de dezembro de 1795 - AHU_ACL_CU_15, Cx. 191, D. 13190.
familiares desamparados e com parcos meios de sobrevivência. O senado da câmara do Recife
ainda afirmou que
“Os ricos se não passam pela mesma carreira, não deixam de experimentar grandes
vexames e despesas; eles assistem com dinheiro os seus recursos na cidade da Bahia,
porém, os seus procuradores os demoram com pretextos falsos, para não faltar a
contribuição, no que dependem mais do lícito e necessário e muitas vezes acontecem
proferirem-se sentenças a revelia, sem as partes aproveitarem as despesas, pelas
extorsões e enganos que praticam os mesmos procuradores”. 16

No ano seguinte, foi a vez da câmara da vila Sirinhaém recorrer à Coroa, solicitando
um tribunal que deveria ser instalado na vila do Recife. Em 03 de fevereiro de 1796, o senado
da câmara de Sirinhaém enviou à rainha D. Maria I uma súplica, pedindo
“uma nova Relação na capital do governo de Pernambuco, por evitar a eternizações
dos pleitos que infinitamente se tem aumentado com o grande número de população,
sendo dificultoso recorrer a Superior Instância, colocada na cidade da Bahia, pela
grande longitude em que se acha, experimentando faltas de correios para a condução
dos processos, aumentando-se as despesas com os duplicados translados do mesmos,
e com os transportes dos míseros litigantes que acompanham as suas causas,
prejuízos que estes sentem na falta do giro do seu comércio e tráfego, e sobretudo
pelos irreparáveis danos que experimentam pelas moras nos despachos.” 17

As solicitações enviadas à rainha mostravam a preocupação que, segundo as câmaras,


eram partilhadas por nobreza e povo das municipalidades e afetavam a ambos, e, além de
impedir, na visão dos membros desses municípios, o correto funcionamento da justiça, gerava 265
insatisfação em relação a um serviço que, como já reiteramos, era de extrema importância. A
distância e o tamanho do espaço de jurisdição, por parte da Relação da Bahia, que, como
afirmou a câmara do Recife, atende todas as capitanias do norte, tendo seu limite jurisdicional
no governo do Maranhão, segundo os membros daquela câmara, era muito amplo para uma
única instituição de justiça de caráter apelativo e agravista. A distância a ser percorrida, com
os perigos a serem enfrentados por mar, com portos inadequados e tempestades, e por terra,
como os “gentios bravos”, lodaçais e “rios caudalosos” eram somados a um elemento que
talvez fosse mais importante nas reivindicações – o desamparo perante suas famílias quando
necessitavam recorrer de seus pleitos.
Provavelmente as câmaras exageravam nos citados “perigos” que tinham que passar
ao recorrer à Relação, mas, de toda forma, eram obstáculos a serem vencidos por aqueles que
tivessem interesse de ver suas causas, pessoais ou de grupos, analisados pelos magistrados do
tribunal superior dessa parte da Colônia. Atrelado à dificuldade do espaço físico que teria que
ser transposta, aos rendimentos necessários para arcar com os custos da viagem, do processo,
do estabelecimento na cidade de Salvador, estava o desamparo com que ficavam seus

16
Idem.
17
03 de fevereiro de 1796 - AHU_ACL_CU_15, Cx. 192, D. 13215.
negócios locais e suas famílias, além do fato de os requerentes não terem a certeza de que
seus pleitos seriam julgados conforme seus interesses. A câmara do Recife ainda foi mais
enfática em sua solicitação, apresentando uma crítica à forma como eram tratadas as pessoas,
que, com os devidos recursos, conseguiam se estabelecer em Salvador, tendo que enfrentar
grandes vexames, com pretextos falsos apresentados pelos procuradores, juntamente com
extorsões e enganos.
É interessante perceber que, nas solicitações, as queixas sempre se referiam às
questões locais, nunca à Coroa ou à forma de administração da rainha D. Maria, numa
tentativa de sensibilizá-la, como também aos órgãos de consulta da monarquia, levando em
consideração suas queixas e, assim, dando carta branca para a instalação da instituição
solicitada. Ainda no ano de 1798, novas solicitações foram feitas pelas câmaras do Recife e
Olinda, reforçando os mesmos argumentos apresentados anteriormente.18 Contudo, como
afirma Érika Dias, as instituições centrais da monarquia tinham visões diferentes sobre o que
era considerado relevante para os vassalos,19 não atendendo aos sucessivos pedidos.
Uma questão que nos chama a atenção é a sincronia com que as solicitações foram
feitas pelas câmaras da capitania. As solicitações que partiram de Igarassu e Recife foram
enviadas nos dias 29 e 30 de dezembro de 1795. No ano seguinte, as câmaras de Olinda e
266
Sirinhaém enviaram suas solicitações nos meses de janeiro e fevereiro de 1796, e as câmaras
de Recife e Olinda enviaram mais uma solicitação no dia 12 de maio de 1798. Isso talvez se
explique devido à influência que o ouvidor-geral da capitania, Antônio Luís Pereira da Cunha,
que se tornou desembargador da Relação da Bahia em 1793,20 mas ainda continuou como
ouvidor da capitania, tinha sobre as câmaras. Na maioria das solicitações enviadas na década
de 1790, havia a sugestão de indicação do dito ouvidor para assumir o cargo de Chanceler da
Relação solicitada. No pedido feito pela câmara de Igarassu em 1795, argumentava-se que
“Nesta vila tem feito o referido desembargador, que nela concorrem as qualidades,
que raras vezes se encontram, de muito zeloso pelo real serviço, e bem do povo,
sábio, prudente e ativo em todo o seu expediente, urbano, e acessível para todos,
incorruptível, e muito limpo de mãos, desejam estes moradores que V. Majestade
lhes perpetue este bem para não serem trocada a paz e harmonia. [...] Um bom
ministro, Senhora, é um dos maiores bens que Vossa Majestade envia ao seu povo, e
o conservar-lhe aquele que mais geralmente o satisfaz é um dos grandes meios de o
fazer feliz”. 21

18
Solicitação da Câmara do Recife: 12 de maio de 1798 - AHU_CU_015, Cx. 202, D. 13798. Solicitação da
Câmara de Olinda: 12 de maio de 1798 - AHU_CU_015, Cx. 202, D. 13799.
19
DIAS, Érika S. de Almeida. Comunicação entre os poderes do centro e os locais: uma análise da
correspondência trocada entre o secretário da Marinha e Ultramar e o governo da capitania de Pernambuco. In:
ALMEIDA, Suely Creuza Cordeiro; SOUZA, George Felix Cabral (Org.). Políticas e estratégias
administrativas no mundo Atlântico. Recife: Editora da UFPE, 2012, pp. 214.
20
06 de agosto de 1793 - AHU_ACL_CU_15, Cx. 184, D. 12786.
21
29 de dezembro de 1795 - AHU_ACL_CU_15, Cx. 191, D. 13189.
A solicitação da câmara do Recife de 1795 também citava o dito ouvidor, suplicando
“à mesma Senhora que, para geral satisfação dos povos, conserve este sábio religioso e
prudente Ministro, no lugar que ocupa, remunerando-lhe os seus serviços para com o
procedimento de Chanceler da Relação que pretendem”.22 E, sobre o pedido da vila de
Sirinhaém, “pedimos a conservação do sábio e prudente Ministro desta capitania, Antônio
Luís Pereira da Cunha, com o procedimento de Chanceler da Relação que se pretende”.23
Fica evidente a relação de aliança que o ouvidor-geral Pereira da Cunha construiu com
os homens bons da capitania, caso contrário, as câmaras não se refeririam a ele dessa forma.
Já sabemos, como no estudo de Mariano e Silva,24 das estratégias e relações construídas pelos
ouvidores da capitania para ascender a postos na burocracia e Antônio Filipe Pereira Caetano
mostra que “a experiência nos trópicos poderia significar uma corrida mais rápida a um cargo
mais cobiçado entre os magistrados”.25 Portanto, a relação entre as câmaras e o ouvidor e
também desembargador da Relação da Bahia Antônio Luís Pereira da Cunha exemplifica uma
via de mão dupla, em que as câmaras se utilizariam da experiência e da boa reputação do
funcionário real, que já conseguiu alçar posto de desembargador em terras ultramarinas, um
elemento que poderia realçar, dar uma certa ênfase nos pedidos de instalação de um tribunal 267
superior na capitania, e, por outro lado, o ouvidor encontrou um caminho favorável para
alcançar um posto maior, como Chanceler, que, como já tratamos, era o responsável direto
pelo funcionamento do Tribunal da Relação, e talvez depois galgar postos mais altos na
administração judiciária, como a Casa de Suplicação ou o Desembargo do Paço.
Em 1801, a câmara de Olinda, não satisfeita com os silêncios da administração
metropolitana, solicita mais uma vez o estabelecimento de uma Relação para a capitania,
indicando o mesmo ouvidor e desembargador para assumir o cargo de Chanceler, alegando
que
“Tem esta câmara alegado por duas vezes a urgente necessidade de uma Relação
para esta Capitania, pelos justos motivos, que fizeram saber a Real Presença. [...]
rogamos de novo a V. Alteza Real, com a maior submissão e respeito, nos conceda

22
30 de dezembro de 1795 - AHU_ACL_CU_15, Cx. 191, D. 13190.
23
03 de fevereiro de 1796 - AHU_ACL_CU_15, Cx. 192, D. 13215.
24
SILVA, Priscilla de Souza Mariano. A justiça no período Josefino: atividade judiciária e as práticas
desviantes dos ouvidores em Pernambuco entre 1750 e 1777. 2014. Dissertação (Mestrado em História) – Centro
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco.
25
CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Em busca de um lugar nas conquistas ultramarinas: Trajetória e Luta de
Manuel de Almeida Mattoso pelo ofício de Ouvidor da Comarca das Alagoas (Século XVIII). In: ALMEIDA,
Suely Creuza Cordeiro; SOUZA, George Felix Cabral (Org.). Políticas e estratégias administrativas no
mundo Atlântico. Recife: Editora da UFPE, 2012, pp. 124.
para o bem, e satisfação desses fiéis vassalos o estabelecimento da referida Relação,
nomeando para Chanceler da mesma ao dito benemérito Ministro”.26

Numa nova tentativa, dessa vez um pouco mais enfática, explicitando que outras
solicitações já haviam sido feitas e que nenhuma resposta sobre a referida questão teria sido
dada, fez os homens bons da câmara de Olinda recorrem à benevolência do Príncipe Regente
D. João, buscando atender o pedido, satisfazendo assim os “fiéis vassalos” da capitania. Mas a
resposta só viria no ano seguinte, após o Príncipe colocar a temática do estabelecimento da
Relação sob apreciação do Conselho Ultramarino.
“Parece ao Conselho que estas representações das câmaras de Sirinhaém e Igarassu
para que Vossa Alteza Real se digne criar uma Relação na Capitania de
Pernambuco, não merecem a menor atenção quanto ao seu específico objeto como
ponderam os régios procuradores nas suas respostas. Sendo certo porém que o
aumento da população, a riqueza das vilas e povoações do Brasil tem elevado
algumas ao grau de representação e importância que fazem muito conveniente à
administração da justiça, e decisão de suas contendas, já sobre objetos civis como
sobre os mesmos criminais, que nos distritos se estabeleçam juízes letrados. Entende
o Conselho que será uma providência muito própria dos Paternais Desvelos com que
V.A.R. procura tranquilidade, aumento, e prosperidade dos seus fiéis vassalos,
mandar V.A.R. que, procedendo os necessários exames, se lhe consulte quais e
quantas das vilas de seus domínios ultramarinos estão no caso de lhes ser realmente
conveniente a criação de juízes de fora, que conheçam os pleitos de seus habitantes,
e mantenham entre eles, as leis de V.A.R. na sua devida observância”.27

Segundo Bicalho, era função do Conselho Ultramarino arbitrar sobre solicitações 268
feitas pelas câmaras à Coroa, tendo os conselheiros a função de conferir cartas, provisões,
despachos e patentes, arbitrando sobre concessões de mercês e passando a vista sobre
correspondências de governantes, administradores e súditos do império.28 Colocar o tema de
implementação da Relação sobre a aprovação do Conselho se inseria na estrutura de
organização corporativa da monarquia portuguesa, principalmente no contexto vivido,
estando o Príncipe D. João como regente, devido ao afastamento da rainha D. Maria I,
servindo para assessorar o príncipe nas decisões que se referem à estrutura administrativa do
reino.
Nesse caso, os interesses da Coroa, representados pelo Conselho, divergiram dos
interesses dos homens bons da capitania de Pernambuco, indeferindo as solicitações das
câmaras, alegando que os sucessivos pedidos não eram dignos de tamanha atenção de sua
Alteza Real. Para os Conselheiros, que, mesmo levando em consideração o crescimento
econômico e populacional da capitania nos anos finais dos setecentos e início dos oitocentos,
26
15 de janeiro de 1801 - AHU_ACL_CU_15, Cx. 223, D. 15091.
27
11 de junho de 1802 - AHU_ACL_CU_15, Cx. 234, D. 15834.
28
BICALHO, Maria Fernanda. Dignidade de Ofício, trajetória familiar e estratégia cortesã: os secretários do
Conselho Ultramarino nos séculos XVII e XVIII. In: ALMEIDA, Suely Creuza Cordeiro; SOUZA, George Felix
Cabral (Org.). Políticas e estratégias administrativas no mundo Atlântico. Recife: Editora da UFPE, 2012, p.
196.
a questão se resolveria com a introdução de magistrados letrados, os juízes de fora, que
seriam uma prova da benevolência da Coroa para com os seus súditos, trazendo soluções para
as contendas locais e com certeza seria uma alternativa bem menos onerosa para os cofres da
administração.

2. A implementação do Tribunal da Relação em Pernambuco: um contexto político


e jurídico

Na América espanhola e portuguesa houve a introdução de ideias e concepções


liberais e ilustradas graças a eventos como a Independência dos Estados Unidos (1776), a
Revolução Francesa (1789) e a declaração das Cortes de Cádiz (1812). Uma das principais
concepções introduzidas através desses movimentos de ruptura com o Antigo Regime foi o
Constitucionalismo Moderno, visto como uma cultura que nasceu para fazer frente ao
despotismo. Desenvolveu-se uma perspectiva de que a Constituição, visto como um conceito
normativo, regulamentava a organização do poder do Estado, passando a significar a garantia
de direitos e deveres estabelecidos sob a política moderna.29
Andréa Slemian e Carlos Garriga vão mais longe ao afirmar que a doutrina do
269
constitucionalismo era muito mais do que a descrição de um ordenamento para um território,
a constituição era um “sinônimo de dever ser político, apontando para o futuro”, seria a pedra
que daria legitimidade para os futuros regimes políticos.30 Contudo, pelo menos em se
tratando do Brasil e das ex-colônias espanholas, esse constitucionalismo se construiu atrelado
a instituições e dispositivos legais tradicionais do Antigo Regime Ibérico. Para Slemian e
Garriga a permanência dos ordenamentos jurídicos ibéricos nos regimes constitucionais
inaugurados na América, faz com que as independências sejam vistas como revoluções
políticas, mas não jurídicas.31 José Reinaldo de Lima Lopes ainda argumenta que entre o final
do século XVIII e início do século XIX houve a intensificação de um cosmopolitismo
jurídico, produzindo um saber jurídico, uma ciência do direito, elevando os juristas a uma
esfera conceitual comum, fazendo com que dentro da doutrina do constitucionalismo moderno

29
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira. Constituição: usos antigos e modernos de um conceito no Império do
Brasil (1820-1860). In: CARVALHO, José Murilo e NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira (Org.). Repensando o
Brasil do Oitocentos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
30
GARRIGA, Carlos e SLEMIAN, Andréa. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na América ibérica (c.
1750-1850). Revista de História (USP), v. 169, p. 181-221, 2013.
31
Ibidem, p. 187.
que estava adentrando, os juristas assumiram o papel de peritos, arbitrando o debate nessa
nova ordem constitucional.32
O Tribunal da Relação de Pernambuco se desenvolve nesse ambiente de debates e
experimentação jurídica. Diante da questão política, o Tribunal se inseriu em Pernambuco,
uma região que possuía um conceituado histórico de sedições e onde alguns grupos políticos
ansiavam por um federalismo que foi cerceado com a separação de Portugal e as alianças
construídas com o círculo centralizador de Pedro I, concentrado no Rio de Janeiro.33
No alvará de criação do Tribunal, expedido e assinado pelo rei D. João VI em 06 de
fevereiro de 1821 e enviado a Pernambuco, estabelecia que o Tribunal seria instalado na Vila
do Recife de Pernambuco e teria a mesma alçada da Relação do Maranhão, criada em 1812 e
as Relações da Bahia e do Rio de Janeiro antes de 1808. Nos territórios de Pernambuco, teria
jurisdição sobre as comarcas do Recife, Olinda e Sertão (ficando a comarca do São Francisco
sobre a jurisdição da Relação da Bahia), e as províncias da Paraíba, Alagoas, Rio Grande do
Norte e Ceará e suas respectivas comarcas, sendo as duas últimas desmembradas da Relação
do Maranhão.34
Tendo os povos desta vasta província representado a V. Majestade fidelíssima os
graves incômodos, que sofriam em processar seus recursos a Relação da Bahia.
Houve o mesmo Augusto Senhor por bem mandar criar uma nova Relação nesta
270
província por alvará de 06 de fevereiro de 1821.35

Apesar do Alvará de criação ter sido expedido em 1821, o Tribunal só começou a


atuar no ano seguinte, durante a efervescência dos debates e questões que desencadearam a
Independência Política do Brasil. Em ofício enviado ao Sr. Governador da Província em
dezembro de 1821, pelos desembargadores interinos João Evangelista de Faria Lobato,
Euzébio de Queiroz Coutinho da Silva e Bernardo José da Gama,36 e no alvará enviado pelo
rei são reiteradas as “benevolências do soberano” e os motivos para a instalação da Relação
na província. Os merecimentos “das gentes” de Pernambuco, como também os altos custos
para se recorrer a Relação da Bahia são apontados como os grandes fatores. Contudo,
32
LOPES, José Reinaldo de Lima. A constituição moderna. In: BERBEL, Márcia; OLIVEIRA, Cecília Helena
Salles (Org.). A experiência constitucional de Cádiz: Espanha, Portugal e Brasil. São Paulo: Alameda, 2012.
33
CARVALHO, Marcus Joaquim Maciel. Cavalcantis e Cavalgados: a formação das alianças políticas em
Pernambuco, 1817-1824. Revista Brasileira de História, São Paulo -USP-Anpuh, v. 18, n.36, p. 331-365, 1998;
MELLO, Evaldo Cabral. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São Paulo:
Editora 34, 2004.
34
APEJE, Alvará de Criação do Tribunal da Relação de Pernambuco, Correspondências da Corte, 06 de
fevereiro de 1821.
35
APEJE, Alvará de Criação do Tribunal da Relação de Pernambuco, Correspondências da Corte, dezembro
de 1821.
36
APEJE, Ofícios para o presidente da Província, Correspondência do Tribunal da Relação de Pernambuco,
dezembro de 1821. Infelizmente o documento encontra-se degradado pelo tempo, e a parte onde contem a data
exata do ofício não se encontra mais atrelada ao documento completo.
seguindo a mesma linha de raciocínio desenvolvida por Schwartz, Maria José Wehling e Arno
Wehling, acreditamos que havia interesse da coroa portuguesa em aumentar o controle sobre a
região. Ainda na correspondência enviada para o governador da província em dezembro de
1821, é ressaltado que
[...] se manifestaram movimentos tendentes a mudanças no sistema [...] dessa
província, absteve-se o mesmo Príncipe Regente de expedir as ulteriores ordens para
a instalação, escrupulizando de comprometer-se com uma província cujas relações
políticas com a Regência do Brasil eram duvidosas, se depois dos acontecimentos,
que ali se tinham desenvolvido, lhe prestariam ou não obediência [...].37 (Grifo
Nosso)

Pernambuco foi palco de importantes movimentos sediciosos que preocuparam a


administração real. A Conspiração dos Suassunas em 1801, a Revolução Pernambucana de
1817 e a Revolta do Rodeador de 1820,38 são exemplos que podem ser apontados como
causas para aumentar o controle régio sobre as comarcas da região, como também em todas as
províncias do Norte, o que poderia ser entendido como um dos motivos que justificasse a
criação do novo tribunal. Dentre esses movimentos, a Revolução de 1817 ocorreu com o
envolvimento de grande parte das províncias do Norte, justamente as mesmas que o Tribunal
teria jurisdição.
271
Diante desse contexto, em 20 de outubro de 1823, a Assembleia Geral Constituinte
aprovou uma lei que estabelecia que enquanto não fosse aprovada uma nova legislação para o
Brasil, deveriam ser aplicadas as leis, regimentos e normas vigentes pelos reis de Portugal até
1821,39 ou seja, durante o primeiro reinado, nosso ordenamento foi pautado nos Livros das
Ordenações Filipinas,40 o que caracteriza a permanência das estruturas jurídicas do Antigo
Regime na formação do Estado imperial. Só na década seguinte, nos anos de 1830 e 1832 são
aprovados os primeiros códigos do ordenamento jurídico do Império – códigos criminal e de
processo criminal –, considerados como aparelhos repressivos constituídos sob os moldes da
modernidade.41

37
APEJE, Alvará de Criação do Tribunal da Relação de Pernambuco, Correspondências da Corte, dezembro
de 1821.
38
CADENA, Paulo Henrique Fontes. Ou há de ser Cavalcanti, ou há de ser cavalgado: trajetórias políticas
dos Cavalcanti de Albuquerque (Pernambuco, 1801-1844). Recife: Editora da UFPE, 2013. pp. 46-61;
DANTAS, Monica Duarte (Org.). Revoltas, Motins e Revoluções: homens livres, pobre e libertos no Brasil do
século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.
39
Lei de 20 de outubro de 1823. In: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/anterioresa1824/lei-40951-20-
outubro-1823-574564-publicacaooriginal-97677-pe.html. Acessado em 12 de agosto de 2016.
40
Compilação jurídica que resultou da reforma do Código Manuelino após a união das Coroas Ibéricas, mas que
permaneceu como código jurídico e de conduta português após a restauração do trono por D. João IV e vigente
em Portugal até o século XIX. Ver: SCHWARTZ, op., cit. pp. 56-73.
41
SLEMIAN, Andréa. À nação independente, um novo ordenamento jurídico: a criação dos Códigos Criminal e
do Processo Penal na primeira década do Império do Brasil. In: Gladys Sabina Ribeiro. (Org.). Brasileiros e
Ao analisar a introdução do pensamento jurídico e suas principais ideias no Brasil,
José Reinaldo de Lima Lopes afirma que houve uma ambiguidade no ordenamento jurídico
brasileiro que permeou todo o Império, pois conviveu com normas portuguesas, foi legislado,
apesar da atuação de práticas costumeiras, e liberal, mas que coexistiu com práticas pré-
liberais. A manutenção do Código Filipino e a permanência de instituições como a Casa de
Suplicação, Desembargo do Paço e Mesa de Consciência e Ordem, pelo menos na primeira
década do Império, nos mostram o quanto o novo regime estava atrelado ao ordenamento
português.42
Ao analisar aspectos da construção e legitimidade do Estado Imperial, José Murilo de
Carvalho nos mostrou que o pacto pela sua construção se deu a partir da comunhão entre o
Imperador e uma elite um tanto coesa do ponto de vista socioeconômico, político e
ideológico.43 Lopes nos lembra que essa elite política que fechou o pacto com o Imperador
estudou em Coimbra no momento de introdução da Lei da Boa Razão (1769) e de debates do
constitucionalismo moderno em Portugal, e trouxeram para o Brasil esse ideal de direito
debatido na Europa. Contudo, um dos grandes problemas enfrentados por esse grupo seria
equacionar as mudanças sociais, políticas e jurídicas que eram discutidas na Europa com os
privilégios e direitos patrimonialistas herdados do regime colonial. A partir desse momento, a
272
construção do ordenamento jurídico do Império, apesar da convivência com a tradição
portuguesa num misto de ruptura e continuidade e dos códigos jurídicos permeados por essa
ambiguidade, passou a substituir gradativamente o costume pela lei, situando-se no universo
da modernidade jurídica, onde a lei criaria o direito.44

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para analisar as relações construídas na sociedade do Antigo Regime, é fundamental


entender a dinâmica de negociações entre a Coroa e os súditos, que assinala uma instância de
embates e interesses constantes. Diante desses conflitos, ou se chega a um consenso ou um
dos dois lados precisa ceder. Nesse caso, os pedidos para estabelecimento da Relação

cidadãos: Modernidade política 1822-1930. DANTAS, Monica Duarte (Org.). Revoltas, Motins e Revoluções:
homens livres, pobre e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.
42
LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e jusnaturalismo no ideário dos juristas da primeira metade do
século XIX. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo, Ijuí: Hucitec, Unijuí,
2003, p. 195-218.
43
CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política
imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
44
LOPES. Op., cit. pp. 195-204; WOLKMER, Antonio Carlos. Ideias e instituições na modernidade jurídica.
Sequência (Florianópolis), Florianópolis, v. 30, pp. 27-41, 1995.
cessaram após a recomendação negativa dada pelo Conselho Ultramarino. Contudo, em 1821,
pouco antes da definitiva emancipação política do Brasil, o rei D. João VI autorizou a criação
do Tribunal da Relação de Pernambuco, instalado na vila do Recife. Os motivos que fizeram a
Coroa mudar de ideia vinte anos depois e instalar uma Relação na localidade ainda precisam
ser explicitados de forma aprofundada, como também a dinâmica organizacional da
instituição, que surgiu num Estado caracterizado pelas práticas do Antigo Regime, e, logo de
início, adentra no Império do Brasil, que buscava apresentar uma estrutura de Estado
Moderno. Inicia-se aqui um âmbito de pesquisas e análises que buscaremos explicitar daqui
em diante.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (Org.). O
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libertos no Brasil do século XIX. São Paulo: Alameda, 2011.
DIAS, Érika S. de Almeida. Comunicação entre os poderes do centro e os locais: uma análise
da correspondência trocada entre o secretário da Marinha e Ultramar e o governo da capitania
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(Org.). Políticas e estratégias administrativas no mundo Atlântico. Recife: Editora da
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companhia de comércio e as relações políticas entre Pernambuco e a Coroa no último quartel
de Setecentos. 2014. Tese (Doutoramento em História) – Universidade Nova de Lisboa.

GARRIGA, Carlos e SLEMIAN, Andréa. “Em trajes brasileiros”: justiça e constituição na


América ibérica (c. 1750-1850). Revista de História (USP), v. 169, p. 181-221, 2013.1
Ibidem, p. 187.

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primeira metade do século XIX. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da
nação. São Paulo, Ijuí: Hucitec, Unijuí, 2003, p. 195-218.

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1824. São Paulo: Editora 34, 2004. 274
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no Império do Brasil (1820-1860). In: CARVALHO, José Murilo e NEVES, Lúcia Maria
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WEHLING, ARNO. História Administrativa do Brasil: administração portuguesa no


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Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1752-1808). Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004. p.
124.

275
ENTRE RESISTIR E
NEGOCIAR: A
PARTICIPAÇÃO DOS
HOMENS NEGROS NO
EXÉRCITO DA
PROVÍNCIA DA
PARAÍBA DO NORTE
(1850-1864).

JOSILENE PEREIRA
PACHECO

MESTRANDA (UFPB)
INTRODUÇÃO

A historiografia militar sempre representou um campo de debates para o conhecimento


histórico, compreender as formas pelas quais uma nação resguarda seu espaço público e
fronteiriço e faz a proteção dos seus cidadãos, permite reflexionarmos sobre concepções mais
amplas, relativas à sociedade e organização militar. Essa questão é importante, afinal
determinaria quem e como as atividades militares serão desenvolvidas, requerendo uma série
de requisitos, que podem ser físicos, organizacionais, históricos e sociais. Devemos ressaltar

277
também, que fazer parte de uma instituição militar, pode delegar além de deveres, alguns
privilégios, portanto, a escolha dos soldados, é realmente algo que deveria ser realizada de
forma criteriosa, haja vista, que estamos nos reportando aos agentes da lei, que através da
autoridade fornecida por suas patentes podem controlar e definir o contexto social e a forma
como essas instituições interagem com os habitantes de uma localidade.

Nesse sentido, percebemos que a partir da década de 1960, a preocupação de analisar o


comportamento das corporações militares no Brasil, ganhou contribuições de peso para as
discussões. Os historiadores passaram a avaliar os fenômenos sociais relacionados com os
corpos militares e seus representantes, argumentando sobre a articulação entre o meio social e
os movimentos ocorridos nesse contexto, e suas relações com as corporações militares e as
sociabilidades estabelecidas na caserna. Explicar os motivos pelos quais a questão militar no
Brasil reverberou, por exemplo, para uma ditadura, ou por que a aparente repulsa da
população a servir e manter contatos mais próximos com o Exército poderia ser respondido
por intermédio da análise crítica do histórico dessa e de outras corporações1. Entendemos
também, que a conjuntura de transformação geopolítica apresentada ainda no final do século

* A autora é mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba UFPB-


PPGH. Bolsista Capes, sob orientação da Professora Doutora Solange P. da Rocha UFPB-PPGH.
1
Nesse caso, nos referimos ao Exército como fora colocado, também nesse período existiam a Guarda Nacional
criada em 1831 (colocar decreto) e reformulada em 1850 (idem) e os Corpos de Polícia.
XIX, que caminhou para duas grandes guerras no século XX2, e depois para um movimento
de militarização intensa, proposta pelos Estados Unidos e implementado em quase todas as
nações latino-americanas, enfaticamente as do Sul, levou os historiadores e outros
pesquisadores da área a se debruçar sobre a questão militar e quais as suas consequências para
a nossa organização social.

Sendo assim, como mencionamos, esse movimento fica mais forte durante a segunda
metade do século XX, entretanto as análises tenderam a retroceder para as origens dessa
situação. Uma dessas instituições mais sensíveis é o Exército, sobretudo por causa de sua
trajetória antiga no território nacional. Essa corporação durante muitos anos foi alvo de
opiniões negativas e desacreditadas sobre sua eficácia e estruturação. O Exército, portanto, era
visto como local de degradação, onde os piores indivíduos eram colocados para pagar suas
penas, ou seja, era um local para punições. Dessa forma, conceber o Exército como espaço
para fortalecimento e manutenção de redes clientelares3 e para formação das sociabilidades
tornou-se uma empreitada para alguns pesquisadores da área, enfaticamente, com advento das
discussões da “nova” história militar.

Uma das primeiras questões a ser discuta sobre o Exército, seria justamente essa
278
percepção de desestruturação e descontrole, reavaliar essa situação e perceber como parte de
uma conjuntura maior onde os soldados tinham um papel atuante na formação desse discurso
e na desfraguimentação do mesmo. Consequentemente, as autoridades provinciais, algumas
delas ligadas diretamente ao Exército, reclamavam da falta de soldados, das péssimas
condições da instituição, do degradante estado dos ingressantes, em muitos dos casos estes
eram referenciados como transgressores da lei que não seriam uma contribuição eficaz para
tão importante corporação. Por outro lado, percebemos a partir das formas de ingresso os
benefícios para alguns indivíduos que entravam na corporação, a possibilidade de escapar de
situações piores que as proporcionadas pelo Exército, servem para reafirmar os interesses
mesmo em meio à ideia de extrema penúria e desagrado. Todavia, é importante que essas
discussões sejam minimamente analisadas e criticadas.

Avaliaremos a concepção apresentada por algumas autoridades provinciais para


referir-se ao Exército. Desagradava, principalmente a elite a vinculação de indivíduos

2
Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
3
Para conhecer mais sobre a discussão, ler: GRAHAM, Richard. 1997. Clientelismo e Política no Brasil do
Século XIX. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.
transgressores da lei, e provenientes das camadas mais pobres da população. Nesse sentido,
inferimos que em uma sociedade escravista, a presença das camadas pobres e com indivíduos
retirados dos cárceres, atuava como ponto de preocupação, dentre tantas outras turbulências
imperiais, considerando-se que a falta de acesso e as restrições sociais impostas aos livres
pobres, fazia com que os sentimentos contestatórios se inflamassem e as revoltas se
proliferassem por todo o território imperial. No entanto, esse era um problema muito sério
para superar, pois, se eram essas as camadas que se revoltavam e as mesmas estavam ligadas
ao Exército, uma força não apenas de defesa e proteção mais, sobretudo de coerção, quem
conteria esses movimentos? Sabemos que nesse período haviam outras corporações
militares,a exemplo da Guarda Nacional ,entretanto,a maior força representativa do poderio
defensor ainda era o Exército.Assim como, compreendemos,que a criação da Guarda
Nacional em 1831,teve um papel essencial nessa tentativa de criar uma força substituta e
controlável por parte das autoridades centrais e provinciais,para se contrapor ao Exército.

Todavia, a partir de nossas análises sobre a Guarda Nacional, concluímos que esse
intuito nunca foi alcançado satisfatoriamente, o Exército ainda era uma instituição importante
e estratégica para a defesa imperial, e as reclamações para que essa instituição melhorasse e
279
seus oficiais passassem a agir de forma mais criteriosa no recrutamento de novos soldados
tornou-se uma das pautas mais recorrentes nas discussões. Outros pontos, eram igualmente
destacados, a falta de fardamento, armamento adequado e o não pagamento dos soldos, a
ausência de efetivo suficiente para compor as fileiras e executar as tarefas (mesmo as mais
simples), a origem “suspeita” dos soldados, o descumprimento por parte das autoridades dos
regulamentos internos, referentes a tempo de serviço e as possíveis isenções do trabalho ativo
e por último a obrigatoriedade de prestação dos serviços, que ocasionava desconforto para os
comandantes, que tinham que lidar com as deserções em massa e as redes clientelares que
desobrigavam uns, comprometendo outros.

Ao analisar esse quadro, não é surpresa as manobras e possíveis formas utilizadas


pelos oficiais para manter ou recrutar mais candidatos para os quartéis. A primeira forma de
recrutar era através da obrigatoriedade, que não raramente reverberava para o recrutamento
forçado, afinal a população em geral tendia ao afastamento no tocante as contribuições de
efetivo para as corporações militares, que, entretanto,segundo a constituição de 1824 no seu
art.145 dizia, “Todos os Brazileiros são obrigados a pegar em armas, para sustentar a
Independencia, e integridade do Imperio, e defende-lo dos seus inimigos externos, ou
internos”4.Este por sua vez era feito de forma violenta,por intermédio do cárcere e
remanejamento para os quartéis,como perceberemos nesse trecho do Exposição do Relatório
de Presidente de Província da Paraíba do Norte de 1850, “existem na prizão respectiva com
destino para o Exército doze recrutas ,e para as armadas seis,os quaes não aprezentarão
isenpções conforme a Lei”5.

Destacamos que em alguns casos, essas técnicas não eram necessárias e os indivíduos
eram escolhidos em eleições e/ou indicações organizadas em âmbito local. A segunda maneira
utilizada para angariar soldados era pelo voluntariado, no entanto, este nem sempre surtia o
efeito esperado e o número de ingressantes era mínimo se comparado às necessidades da
instituição. E por último, temos o engajamento, compreendemos essa situação,assim como
colocado por Fábio Farias Mendes (2010)6,como um reflexo as situações ocorridas no
Exército, sendo dessa forma, os engajados geralmente eram indivíduos que não tinham
conseguido baixa, e seus contratos de serviços acabaram por ser renovados, mantendo-os na
corporação por um tempo maior do que aquele estabelecido por lei.

Essas controvérsias apresentadas pela própria instituição contribuíram, no nosso


entendimento, para formular concepções negativas e incompreensões sobre essa instituição,
280
situação esta que não apenas afetou as autoridades da época e seus discursos, como também
repercutiu nas argumentações de alguns estudiosos na área, principalmente aqueles ligados a
historiografia militar dita tradicional. Entrementes, esse movimento de reavaliação o qual
citamos anteriormente denominado de “nova” história militar, refletiu no sentido de rever
essas concepções e trabalhar essas falas de forma crítica. Nesse sentido, percebemos que estes
trabalhos contribuíram para reconsiderar essa característica inclemente do Exército, sendo que
os indivíduos que faziam parte desse corpo militar, também passaram por análises que
evidenciaram suas trajetórias e atitudes, relacionando esses sujeitos com o contexto no qual
estavam inseridos.

4
BRASIL, Poder Legislativo. 06 de setembro de 1850. Coleção de Leis do Império, art.145. (Publicação
Original). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm Acesso em: 10 jul.
2015.
5
Exposição apresentado à Assembleia Legislativa Provincial da Parahyba do Norte pelo excellentíssimo
presidente da província, Dr. João Antonio de Vasconcellos para passar o cargo ao coronel José Vicente de
Amorim Bizerra, em 23 de Janeiro de 1850. Parahyba, Typ. de José Rodrigues da Costa, 1850.Disponível
em:http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u487/000004.html. Acesso em: 21 jan. 2015.
6
MENDES, Fábio Faria. Recrutamento Militar e Construção do Estado no Brasil Imperial. Editora - Fino Traco
- Argvmentvm; 1ª Ed.,2010.
Por conseguinte, constatamos que o Exército não necessariamente era um local apenas
de punições, maus tratos e penúria, este constituía uma forma de conseguir benefícios. Para os
homens livres e libertos, era um espaço para expansão das sociabilidades e de inserção no
meio social, havia também em nossa opinião, um espaço de micro poder, onde esses homens
experimentavam os benefícios do “ser militar” fazendo parte de um contexto clientelístico.

Em nosso entendimento, essa história militar, que tende, em nossa pesquisa, a


relacionar-se com a história social, permitiu-nos conhecer as trajetórias e movimentos, nos
quais, os soldados e autoridades provinciais estavam envolvidos, igualmente, traz
contribuições ainda mais precisas, com a adoção de novas abordagens e consequentemente de
outros tipos de fontes (diários, relatorias, listas de recrutamento e documentos avulsos sobre o
contexto militar). Além disso, aparecem outros sujeitos, diferentemente da historia militar
mencionada como tradicional, que focava suas discussões nos grandes homens e nos feitos
heroicos e individuais, a “nova” história militar, cada vez mais procura os soldados baixos, os
patrulheiros que atuavam cotidianamente nos serviços militares e geralmente eram os que
mais padeciam dentro dessa estruturação.
281
Evidenciamos que ao considerar o censo de 1872 sobre a população brasileira em todo
o império, que demonstraria uma maioria significativa de negros e pardos como habitantes,
depreendemos que a população imperial vinha em uma crescente no tocante a presença de
negros e pardos, sendo assim,não é de se surpreender que no período que estamos
analisando,havia uma parcela considerável dos residentes que era negra e parda, estes por sua
vez ocupavam, mesmo que de forma restrita, cargos em diversas áreas, isso nos leva a
concluir que possivelmente, havia uma porção significativa de homens negros e pardos nos
quadros do Exército, aliás, vamos além nessa afirmação, percebendo que,quando na Província
da Paraíba do Norte, essa disposição provavelmente ocorria também em outras corporações
militares (Guarda Nacional, por exemplo).

Mas por que desenvolvemos essa discussão? Qual a nossa intenção com essas
afirmações? Primeiramente, é comprovar a presença de homens negros na população imperial
de forma geral, para depois trazê-los para os quartéis e batalhões dos corpos militares. Nessa
perspectiva, devemos inicialmente avaliar a situação da população negra no império
brasileiro, como afirmamos anteriormente, a sociedade brasileira do século XIX era marcada
pelas regras estabelecidas pela escravidão, racista e extremamente discriminatória, ou seja, os
negros nesse plano, estariam diretamente ligados aos senhores e as regras do cativeiro
(mesmo que em alguns casos estes não fossem escravos).Como mencionado por Sidney
Chalhoub (2009)7,havia uma aura de suspeição,e a população negra sempre estava a mercê
dessa suspeição.Suas trajetórias e relacionamentos estavam pautados pelo cativeiro,desde o
momento que nasciam e seus assentamentos batismais obrigatoriamente indicavam suas
condições jurídicas e em alguns momentos também suas cores de pele,até quando desejavam
ter acesso a um serviço ou vincular-se a alguma instituição,por conseguinte, reinteramos, que
a permanência desses homens nos quadros do Exército não ocorria de forma mais amena,
(afinal, a instituição padecia com a degradação de sua estrutura),suas vivências internas ao
Exército geralmente refletiam suas trajetórias sociais,marcadas em algumas circunstâncias por
lutas e revoltas, e em outros momentos, por barganhas e construção de sociabilidades.

Por conseguinte, pretendemos no próximo tópico analisar esse ordenamento social


complexo, no qual, o Exército e os homens negros estavam envolvidos, e como essa
participação contribuiu para que os mesmos estabelecessem conexões e conseguissem inserir-
se socialmente dentro do contexto escravista do século XIX. Para tanto, analisaremos a
realidade da Província da Paraíba do Norte durante o período de 1850, ano de modificação de 282
uma das leis regimentais do Exército até 1864, limiar da Guerra do Paraguai, que ocasionou
um cenário diferente, no tocante a questão militar no Brasil oitocentista.

RESISTÊNCIA E NEGOCIAÇÃO DOS HOMENS NEGROS RECRUTADOS A


SERVIR NO EXÉRCITO DA PROVÍNVIA DA PARAÍBA DO NORTE (1850-1864)

A sociedade oitocentista,durante o período em qual estamos analisando,passava por


uma série de transformações, principalmente em termos legais, durante o ano de 1850, duas
das quais destacamos como importantes para a compreensão da corporação militar, a qual,
estamos analisando, ou seja, o Exército,a primeira relativa a própria instituição e a outra a lei
de proibição do tráfico negreiro.Como relatamos,anteriormente,nesse trabalho havia certo
desconforto por parte das autoridades locais e centrais,no tocante, as atividades delegadas aos
militares,estes tinham origem dúbia e eram escolhidos ou forçados a apresentar-se a

7
CHALHOUB, Sidney. Costumes Senhoriais: escravidão ilegal e precarização da liberdade no Brasil Império.
In: AZEVEDO, Elciene.; CANO,Jefferson.; CUNHA,Maria Clementina Pereira.;CHALHOUB,Sidney (Orgs.).
Trabalhos na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, século XIX e XX. Campinas:
Editora da Unicamp, 2009, p.11-62.
instituição.A partir da segunda metade,período que estamos analisando,a situação do Exército
havia ficado ainda mais insustentável,haja vista,que a Guarda Nacional corporação criada para
manter a ordem e tranquilidade pública,nessa altura do oitocentos, demonstrava sinais de
desordem.Reorganizar os corpos militares nesse momento não era apenas uma questão de
manutenção da ordem pública,mormente de vigilância e cumprimento das leis.Considerando-
se a necessidade de mão de obra escrava no século XIX mesmo que em algumas províncias a
demanda estivesse cada vez menor,os corpos militares ainda eram designados para atividades
nesse âmbito,além de distúrbios de outra ordem,dentre eles podemos destacar o Ronco da
Abelha (1851-1852),que ocasionou problemas de ordem nas províncias do norte do império
brasileiro.Assim sendo,a partir desse breve relato sobre a conjuntura
oitocentista,adentraremos no contexto da província da Paraíba do Norte.

A província da Paraíba do Norte,assim como tantas outras no Império brasileiro


possuía as companhias de primeira linha, estas se referiam basicamente ao Exército, e
encontravam-se,segundo os relatos das próprias autoridades provinciais,desestruturadas e em
estado de completa penúria.Suas fileiras igualavam-se a de tantas outras províncias,haja
vista,que faltavam homens para cumprir os serviços militares cotidianos até mesmo os mais
283
simples,relativos à proteção e ao patrulhamento.Por suposto,que o Exército não era a única
força militar existente na província,haviam também a Guarda Nacional e o Corpo de
Polícia.No entanto,a partir das análises dos Relatórios de Presidente de Província entre 1850-
1864 e das avaliações comparativas feitas nos Relatórios do Ministérios da
Guerra,percebemos que essa variedade de corpos militares apenas conseguia suprir os
problemas mais urgentes,e mesmo assim, ainda não eram suficientes.Analisamos pois,a fala
do Presidente de Província Coronel José Vicente de Amorim Bezerra que esteve a frente da
administração da Província no ano de 1850:

É sabido que a força d’esta Companhia é insufficiente para o serviço


ordinário da Praça, pelo que pedi ao Governo Geral o augmento de
força de 1º Linha para não pesar à Polícia nem à Guarda Nacional.Em
quanto uma tal medida não apparecer necessariamente se ha de
empregar parte da força policial no serviço da guarnição,arrendando-a
do fim de sua instituição,em notavel prejuizo do serviço público.
(RELATÓRIO DE PRESIDENTE DE PROVÍNCIA DA PARAÍBA
DO NORTE, Coronel José Vicente de Amorim Bezerra, 1850, p.6)
[Grifos nossos].

Sua fala demonstra o completo desajuste apresentado pelas tropas de Primeira Linha,
que não conseguiam ser suficientes para as necessidades provinciais. Destacamos que esses
inconvenientes arrastaram-se por muitas administrações, e suas consequências eram
repassadas mais adiante. Visualizamos essa prática, como algo comum e essencial para
administração, afinal, cada Presidente de Província que estava se apresentando ao cargo
deveria ressaltar todo o empenho e dedicação para sanar as conturbações provinciais,
entretanto,quando isso não ocorria de forma satisfatória seu posicionamento era culpabilizar
as administrações passadas e repassar os problemas para a seguinte, resguardando sua carreira
e ascensão nessa intricada rede de mando que era a política do século XIX, como expõe José
Murilo de Carvalho. Esse ponto é importante, pois ressalta uma das primeiras articulações
político-administrativas que aconteciam em âmbito provincial e estava diretamente ligada ao
Governo Central. Informação importante sobre esse presidente é que o mesmo também era
um militar, sendo este um coronel, ou seja, detinha uma alta patente, tendendo a conhecer a
fundo a estruturação dos corpos militares, entretanto, não temos como mensurar em sua fala,
até que ponto o cargo de presidente ou o militar aparecem em seu discurso, embora uma das
informações que podemos retirar de sua argumentação é o papel de articulador, construindo
uma posição em torno de interesses vários.

Sendo assim, gerenciar informações, escolher aliados, reclamar e perseguir os 284


desafetos, era algo, como podemos observar, corriqueiro nos relacionamentos intraprovinciais
em todas as instâncias de poder. Por fim, afirmamos que essa corporação militar, o Exército,
utilizava esses artifícios para manter ou retirar alguns homens dos seus quadros, ou pelo
menos do serviço ativo. Visualizamos que essa prática não apenas era comum a muitas
províncias do Império, sobretudo na Paraíba do Norte, foco de nossas análises.

Primeiramente, devemos argumentar sobre a questão do efetivo, pois ao avaliar as


reclamações e solicitações das autoridades, tanto provinciais quando centrais, esse era um dos
grandes problemas a ser superado por essa província. Veremos nesse sentido, outra fala de
Presidente de Província sobre a ausência de braços que poderiam trabalhar na Companhia
Fixa de caçadores de primeira linha: “E’ ella como já disse,insufficiente para a guarnição
desta Cidade,principalmente tendo,como tem,algumas praças destacadas pelo interior” 8.

Essa fala corrobora com o quadro elaborado, em um intervalo de seis anos, a partir dos
dados do Ministério da Guerra da Província da Paraíba do Norte sobre o diminuto interesse
8
Exposição apresentado à Assembleia Legislativa Provincial da Parahyba do Norte pelo excellentíssimo
presidente da província, Dr.Antonio Coêlho de Sá e Albuquerque para passar o cargo ao Dr.Flavio Clementino
da Silva Freire, em 29 de abril de 1853. Parahyba, Typ. de José Rodrigues da Costa, 1850.
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u487/000004.html. Acesso 21 jan. 2015.
dos habitantes de servirem ao Exército, além de ressaltar a complexidade exigida para
conseguir recrutar, entrementes, não necessariamente esses homens estavam capacitados a
assumir seus postos com eficiência.

Efetivo do Exército da Província da Paraíba do Norte: Ano e Modalidade de Ingresso


(1850-1854)

Condição ANO TOTAL


1849-1850 1850 1851 1852 1853 1854
Engajados 6 7 8 14 8 0 43
Voluntários 2 7 2 2 9 9 31
Recrutados 6 55 128 43 55 150 437
Contratados 0 0 0 0 0 5 5
Soma 14 69 138 59 72 164 552
Fonte: Relatórios do Ministério da Guerra Anos: 1828-1940. Disponíveis em: Biblioteca Nacional Digital Brasil:
Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/relatorio-ministerio-da-guerra/720950 Acesso
285
em: 05 nov. 2014.

Percebemos, por intermédio desses dados que os maiores números de soldados


sempre eram conseguidos por meio do recrutamento, geralmente forçado.

Sabemos que esses discursos devem ser relativizados, considerando que haviam
muitos interesses que poderiam estar atrelados a essas discussões,além do repasse ineficiente
de informações precisas sobre essas instituições,todavia,é aparentemente unânime a noção de
desamparado apresentada pelo Exército,até mesmo em contextos distintos do período
imperial.Vejamos a informação contida em Relatório do Ministério da Guerra de 1859,sobre a
falta de preparação do Exército. “Terrível será então à decepção, e caro teremos de pagar a
falta das necessárias medidas sobre o armamento, instrução, disciplina e administração da
parte da força publicam, na qual, em ultimo recurso, descansa a honra da Nação, e a
sustentação de nossas instituições” 9.

9
Relatório da Repartição dos Negócios da Guerra apresentado a Assembleia Geral Legislativa pelo Ministro e
Secretário do Estado Manoel Felisardo de Sousa e Mello. Na Segunda Sessão da Nona Legislatura de 1859. Rio
de Janeiro – Typographia Universal de Laemmert. Disponível em:
http://memoria.bn.br/pdf/720950/per720950_1851_00001.pdf Acesso em: 18 dez.2014.
Corroborando com esses dados, encontramos nas falas relativas especificamente ao
recrutamento para o Exército na Província da Paraíba do Norte, no qual os recrutadores
afirmam quais os métodos que poderiam ser utilizados para arregimentar membros para as
corporações, a força sempre estava entre as primeiras escolhas, estas poderiam ser executadas
pelos recrutadores, pertencentes ao próprio Exército, percebemos também que algumas
autoridades tinham esse papel, e a Guarda Nacional que mantinha uma relação muito próxima
com essa corporação. Sendo que há uma ressalva, pois eles informam que alguns
comandantes da Guarda Nacional retiravam seus comandados das listas de possíveis
recrutáveis, mesmo quando não estavam em conformidade com as leis dessa instituição. Essa
situação, todavia, vai mais além, pois nos mostra como algumas redes clientelares internas às
corporações militares funcionavam para impedir o recrutamento de alguns indivíduos.

Essa circunstância demonstra que, mesmo fazendo parte dos corpos militares e
tendo a mesma condição de militar ativo, havia uma diferença de status envolta em
protecionismos. Mormente a essa situação, apreendemos que essa distinção não terminaria no
questionamento sobre, quem deve ou não ser recrutado? Especialmente a dupla função
apresentada pela outra instituição militar de importância, a Guarda Nacional, sugere que havia 286
um encadeamento vertical dessas relações, que delegava autoridade para os guardas nacionais
de recrutar, e até mesmo de utilizar a força para isso, sendo que para o Exército essa
possibilidade só poderia ser executada caso houvesse alguma irregularidade nesse processo de
admissão para as corporações.

Essa conjuntura serviria como uma das exemplificadoras dessa diminuta influência
do Exército perante o contexto militar oitocentista, no recorte temporal que estamos
analisando. Além disso, outro ponto que nos chama atenção são as intensas reclamações
ressaltadas tanto pelas autoridades da época, quanto pela historiografia. Essa remete, de forma
mais ampla, ao descaso, no tocante, à disponibilidade de suprimentos e atraso dos soldos.

Comparando novamente as fontes, dessa vez com as produções sobre o tema,


visualizamos essa faceta de incompatibilidade entre a prestação dos serviços e a preocupação
com a manutenção da corporação. Discutiremos, portanto, criticando esse posicionamento das
autoridades acerca dessas reclamações de ineficiência e desinteresse no serviço ativo do
Exército. Questionamos essa opinião, pois, como poderia haver um trabalho eficaz se os
atributos mínimos para execução das atividades não eram oferecidos periodicamente e com a
rapidez esperada aos homens do Exército?

Esse aspecto demonstra, que haviam muitas dificuldades em manter as fileiras


completas e equipadas e a julgar pela origem discutível dos soldados “mal feitores”
“criminosos” “vadios” e “perturbadores da ordem pública”10,fonte de inúmeras
reclamações,compreendemos que esses homens em muitos dos casos não tinham condições de
manter sua sobrevivência com os rendimentos do serviço militar e tentavam escapar a essas
atividades o quando podiam,esse panorama recai (assim como o processo de recrutamento)
sobre as sociabilidades e redes clientelares,visto que para aqueles que detinham
conhecimentos e aliados influentes sua trajetória na corporação poderia ser bem curta,por
outro lado,para os outros, a manutenção dessas atividades poderia ser duplicada e
exaustiva,explicando em parte o por que de tantos pedidos de isenção dos serviços ativos.

Portanto, observamos que majoritariamente esses homens eram provenientes das


camadas mais baixas da população, e como mencionamos em tópico anterior, sua origem era
livre e pobre e geralmente formada por negros e pardos retirados dos cárceres e em situação 287
de criminalidade, sendo que autores como Solange Rocha (2007)11 e Solange Mouzinho
Alves (2011)12 (2015)13, evidenciam a presença maciça e crescente da população negra na
Paraíba do Norte, nos anos iniciais e no decurso do século XIX, além de Jessika Sá (2013)14
que menciona especificamente a participação dos homens negros nas corporações militares.
Por conseguinte, a partir desse ponto nos voltaremos para análise da presença desses homens,
tanto evidenciadas pelas fontes primárias que coletamos, quando pela historiografia relativa a
esse debate,sendo que “a população da Paraíba vinha se expandindo desde o Setecentos, com
destaque para os negros (pardos e pretos) que cresciam a cada década”15.

10
Esses são termos encontrados nas fontes e utilizados pelas autoridades provinciais para se referirem aos
soldados do Exército, quando capturados a servir.
11
ROCHA, Solange. Gente Negra na Paraíba Oitocentista: População, Família e Parentesco Espiritual.
2007.425 p. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2007.
12
ALVES, Solange Mousinho. Batismo e Compadrio: o parentesco espiritual estabelecido pelas pessoas negras e
escravizadas na Freguesia Nossa Senhora das Neves, 1851-1860. 2011.
13
ALVES, Solange Mousinho. Parentescos e Sociabilidades: experiências familiares dos escravizados no sertão paraibano
(São João do Cariri), 1752-1816. 2015.
14
SÁ, Jessika Alves de F. A população negra na Guarda Nacional da Paraíba (1831-1840).;ROCHA, Solange.
XXVII Simpósio Nacional de História (ANPUH). Natal, RN, 2013.p.1-13
15
(ROCHA, 2017, P.137).
Retomando a afirmação dos Presidentes de Província da Paraíba do Norte, havia uma
forma de conseguir homens para os quadros do Exército a partir do cárcere. Os presos
poderiam ser remanejados às fileiras dessa instituição justamente para que fossem punidos
pelos seus crimes, afinal, esse corpo militar era visto como uma maneira eficiente de punição,
com também poderia ser uma método para civilizá-los, fazendo-os servir com seu trabalho
para o usufruto da Nação. Como discutido por autores como Hebe Mattos (2002)16 e Luiz
Geraldo Silva (2003)17, as questões raciais no século XIX, eram definidoras dos espaços de
sociabilidade e participação dos homens negros e pardos, mesmo que esses não fossem
escravizados. Havia uma tendência intrínseca no Oitocentos de suspeição, característica essa
que demarcava a trajetória dos indivíduos, desde o nascimento até os anos finais de sua vida.
Esse fato pode ser comprovado com os registros batismais, que indicavam a cor das crianças
(e em alguns casos a cor dos pais), e a condição jurídica, especificamente, se eram
escravizados. Além disso,quando adultos, e se pendessem para a vida militar suas condições
poderiam ser questionadas. Esses autores discutem, acima de tudo, a “precariedade” da
liberdade no século XIX, e as formas pelas quais os negros e pardos almejavam e participação
na construção dessa identidade cidadã ainda em formação, sendo as corporações militares um
desses espaços que poderiam garantir a participação social.
288
Na Província da Paraíba do Norte, essa questão não fugia à regra, sendo que como
mencionamos, a maior parte dos habitantes era negra ou parda, como indicam as fontes,
enfaticamente as paroquiais. Então, inferimos que essa corporação militar estava repleta dessa
população, principalmente aquele que se encontrava retida nos cárceres. Mesmo sem muitas
informações, principalmente sobre o grupo racial desses homens, elaboramos uma lista dos
recrutas, no período de nossa temporalidade.

Quadro de Recrutamento da Província da Paraíba do Norte – 1860

Nomes Idade Profissão Naturalidade Estado Observação

16
MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e Cidadania no Brasil Monárquico. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p.7-
74.
17
SILVA, Luiz Geraldo. Negros Patriotas, Raça e Identidade Social na Formação do Estado Nação
(Pernambuco, 1770-1830). In: JANCSÓ, István. (Org.) Brasil: Formação do Estado e da Nação. São Paulo:
Hucitec; Ed. Unijuf; FAPESP, 2003.p.497-520.
Civil
Galdino Jose 24 Jornaleiro São Miguel Casado Desertor
Virgino
Manoel 21 Ignoro São Miguel Solteiro Não sustenta
Florentino família
Francisco 25 Ignoro São Miguel Solteiro Não tem
Martins de isenção,
Mendonça engajado.
Antonio Carlos 20 Ignoro Campina Solteiro Bastante
dos Santos Grande “vadio,
insultor,
jogador”.
Marcolino 28 Sapateiro Cidade de Areia Casado Foi preso em
Francisco da Silva casa de Jogo
Fonte: Arquivo Historio Waldemar Bispo Duarte (AHWBD)/PB, CX: 039, Ano: 1860. Província da Paraíba. Documentação
do quartel da cidade de Campina Grande: Lista de recrutas apresentados para o serviço no Exército da Província da Paraíba
do Norte.
289
Mesmo com a escassez de detalhes, algumas informações nos chamaram atenção,
dentre elas o estado civil, que poderia interferir no recrutamento do sujeito. Sendo que,
“várias categorias profissionais estavam automaticamente isentas do recrutamento militar:
funcionários públicos, trabalhadores das estradas de ferro, empregados de casas comerciais,
homens legalmente casados e outros [...]” IZECKSOHN(2009)18. Contudo, essa situação é
logo sanada pelos próprios recrutadores, que informam adiante que os indivíduos não tinham
direito a isentar-se. Para além disso, outras informações são ressaltavas, se eles eram aptos ou
inaptos à prestação dos serviços,se tinham algum tipo de formação ou não,qual a forma que
haviam sido recrutados,por qual autoridade e qual dos termos deveria servir, além da
profissão caso esta fosse conhecida,bem como alguns dados pessoais, se tinham filhos ou
parentes que fossem seus dependentes e quais as suas características particulares, no tocante
aos divertimentos e conduta. Esses conhecimentos poderiam ser suficientes para compor um
perfil dos recrutas do Exército, embora não são satisfatórios para sabermos se os mesmos
eram negros ou não. A ausência de dados sobre esses homens pode indicar que eram pobres e

18
IZECKSOHN, Vítor. A Guerra do Paraguai. In: GRINBERG, Keila; Salles, Ricardo (Orgs.). O Brasil
Imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. 3 volumes (V2-1831-1870), p.420.
livres e, portanto, há uma grande chance de serem pertencentes à vasta população negra
existente na província paraibana.

Sendo assim, os relacionamentos estabelecidos pelos mesmos, faziam parte desse


intricado jogo de poder inerente as corporações militares. Vejamos as sociabilidades
existentes entre militares e civis demonstrado nessa nota de 06 de fevereiro referente à cidade
de Sousa19,relatou-se que Luiz,conhecido como Balaio,Pedro conhecido por Pedrão,José
Seraphim vaqueiro do alferes Mariano,um pardo conhecido por
Prata,João,corneta,Conrado,crioulo e João José estavam envolvidos no assassinato de Estevão
Ferreira de Araújo.Ao analisar essas informações não capturamos apenas a dinâmica de um
crime,sobretudo uma rede de relacionamentos entre diferentes indivíduos alguns deles com
algum grau de proximidade com as corporações militares.Esse quadro pode contribuir para
argumentações sobre circunstâncias inerentes as essas corporações militares,mais
especificamente, o Exército.Uma das primeiras impressões que poderiam ser
confirmadas,relaciona-se as classificações, como já demonstramos “apto” e “inapto”,será que
realmente estes homens tinham os pré-requisitos básicos para fazerem parte dessas
categorias? É uma das perguntas que surgem, principalmente por que a seguir, há um adjetivo 290
incluso a um dos recrutados “vadio”, ou seja, este, nada mais era que um indivíduo pobre e
livre que destoava da percepção de cidadania imposta pelas autoridades imperiais e que,
portanto, deveria a partir da Constituição de 1824 prestar serviços a Nação.

Ressaltamos, pois, que esses documentos vão além de mero instrumento oficial do
recrutamento, haja vista, que comprova a existência de homens negros e pardos no Exército,
também que estes poderiam, em algum momento de suas vidas, ter relacionamento com o
cativeiro, o qual nos faz especular que essa integração as fileiras dessas instituições também
estava imbuída de interesses, e que alguns dentre eles realmente conseguiram,considerando as
diversas formas de fazer parte desses corpos militares. A partir disso, a lógica aplicada
poderia ser a de utilizar a própria estrutura da corporação para conseguir benefícios,
proporcionalmente evidenciar a prestação de trabalhos para o Exército, almejando integrar-se
as redes de sociabilidades proporcionadas por essa instituição militar.

19
Província da Paraíba, 06 de fevereiro de 1855. Documentação assinado pelo Juiz Municipal Joaquim da Costa
Ribeiro, informando sobre a Relação dos Presos de Piancó, que se não sabem onde existem. AHWBD/PB, CX:
033, Ano: 1855.
REFERÊNCIAS

FONTES

Província da Paraíba, 06 de fevereiro de 1855. Documentação assinado pelo Juiz Municipal Joaquim
da Costa Ribeiro, informando sobre a Relação dos Presos de Piancó, que se não sabem onde existem.
AHWBD/PB, CX: 033, Ano: 1855.

Província da Paraíba, 12 de setembro de 1865. Documentação informando sobre a prisão de um


recruta de nome João Caetano do nascimento que fora preso na cidade de Areia e estava sendo
remetida a Capital para servir ao Exército. AHWBD/PB, CX: 046, Ano: 1865.

BRASIL, Poder Legislativo. 06 de setembro de 1850. Coleção de Leis do Império. (Publicação


Original). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm
Acesso em: 10 Jul. 2015.

291
BRASIL, Poder Legislativo. 25 de março de 1824. Constituição Política do Império do Brazil. Página
276 Vol. 1 pt. I (Publicação Original). Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-
1899/lei-585-6-setembro-1850-559825-publicacaooriginal-82236-pl.html Acesso em: 20 Jul. 2014.

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Relatórios dos Presidentes de Província Anos: 1837-1860. Disponíveis em: Center for Research
Libraries, Provincial Presidential Reports (1830-1930). http://www.crl.edu/pt-
br/brazil/provincial/para%C3%ADba. Acesso em 10 out. 2012.
Relatórios do Ministério da Guerra Anos: 1850-1855. Disponíveis em:
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AS FAMÍLIAS
INTERGERACIONAIS
DAS LIBERTAS RITA,
MARIA E LUIZA:
FREGUESIA DE ÁGUA
BRANCA/PROVÍNCIA
DAS ALAGOAS,
(SÉCULO XIX).

MARÍLIA LIMA DE ARAÚJO

MESTRANDA (UFAL)
O interesse pela família negra, desde os anos oitenta do século XX, aumentou de
forma considerável com novos enfoques e abordagens na historiografia da escravidão, que
enfatizaram discussões sobre as formações familiares construídas por escravizados e libertos,
assim como as suas estratégias para sobreviver no tempo1. Este artigo incide acerca das
formações familiares negras mantidas por gerações das libertas Rita, Maria e Luiza, na
freguesia de Água Branca, situada no semiárido alagoano. Para tanto, as fontes históricas
utilizadas foram o translado de testamento 2 de Joana Vieira Sandes, seu inventário post
mortem, o qual foi fichado, e as principais informações cruzadas com as fontes de batismos
para os anos de 1864-1871.
296
As avaliações de inventários geralmente descrevem apenas os parentescos de primeiro
grau, que são: entre mãe e filho e casais com uniões sacramentadas. Em razão de esta fonte
histórica mostrar os escravos em um determinado período, o qual é representado pela morte
do senhor, não seria a melhor fonte para trabalhar com famílias intergeracionais, ou, então,
seria adequado o cruzamento com assentos de batismos. Como estes registros para a freguesia
de Água Branca abarcam um pequeno período de 1864 a 18713, a dificuldade de uma
“reconstituição” dessas famílias aumenta.

* A autora é mestranda em História pela Universidade Federal de Alagoas.


1
SILVEIRA, Alessandra da S. Sacopema, capoeiras e Nazareth: Estudos sobre a formação da família escrava
em engenhos do Rio de Janeiro do século XVIII. 1997. Dissertação de mestrado apresentada no curso de Pós-
Graduação em História Social do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas: Campinas, 1997. p.32.
2
A realização de testamento consistia em declarar em tabelionato, na presença de cinco testemunhas, os bens que
possuíam e para quem deixaria após a morte, o translado era a transcrição do testamento no processo de
inventariação. De acordo com uma certidão de testamento e seis translado, tal procedimento em Água Branca foi
realizado majoritariamente por moradores que não tinham filhos, com exceção de um único caso, em que os
herdeiros eram filhos naturais, o que estava relacionado ao reconhecimento desses filhos.
3
É somente na segunda metade do século XIX, em 1864, que Água Branca se constituiu como freguesia, termo e
Comarca de Paulo Afonso, (Mata Grande), devido a isso, os primeiros registros eclesiásticos encontrados na
paróquia de Água Branca foram feitos nesse ano. Haveria ainda a possibilidade de contar com os livros
realizados em Mata Grande, no entanto, o primeiro livro de batismo inicia-se em 1849 e termina em 1857.
Depois desse período só foi encontrado livro para a década de 1870, ou seja, há um intervalo de tempo que não é
mais possível verificar os registros de batismo para a vila de Mata Grande e seus termos.
Porém, a qualidade das informações contidas no translado de testamento transcrito no
inventário de Joana Vieira Sandes, falecida em dezembro de 1851, se destacou, pois constava
a descendência das escravizadas Rita, Maria e Luiza. O translado, com sua inventariação
aberta em 1852, continha a narrativa do herdeiro universal dos bens, que era seu sobrinho e
afilhado Luís Vieira Luna 4, e relações de filiação registradas para a maioria dos escravizados.
O testamento de Joana Vieira Sandes foi realizado dois dias antes de sua morte. Nele afirmou
ser filha de João Vieira Sandes e Leonor Vieira de Sandes5. Bem provável que seu pai tenha
sido um dos primeiros membros da família Vieira Sandes, que se estabeleceu na região para
criar gado. Casou-se com Leonor, moradora na fazenda Boqueirão de Água Branca, e desse
matrimônio tiveram três filhos: Antônio Vieira Sandes, José Vieira Sandes e Joana Vieira
Sandes6.
A formação do povoado de Água Branca (referência a uma fonte de Água) ocorreu
através do desenvolvimento das fazendas de gado, com o estabelecimento de famílias
originárias de Penedo e do Sub Médio do Sertão Pernambuco. A freguesia de Água Branca
estava localizada no semiárido, próxima às divisas das províncias de Pernambuco, Sergipe e
Bahia, com limites ao Norte e Noroeste com os rios Moxotó e Manary; ao Oeste e Sudoeste
com o rio São Francisco; sul e sudeste com o município de Piranhas e ao leste e noroeste com
297
o município de Paulo Affonso (atual Mata Grande) 7. Abaixo o mapa do Estado de Alagoas e
região do alto sertão alagoano:

4
Sem filhos para herdarem, Joana Vieira fez doações de escravos para os seus afilhados e sobrinhos e constituiu
seu sobrinho e afilhado Luís Vieira Luna como herdeiro universal, recebeu de sua tia escravos, terras, casas,
animais, e a fazenda Caiçara onde viveu Joana Vieira. Luís Vieira Luna e Luís vieira Lima, as duas formas
aparecem nos documentos pesquisados. Optamos pela primeira denominação.
5
Acervo de Miguel Archanjo de Siqueira Torres. Translado do testamento de Joana Vieira Sandes. Inventário
post mortem de Joana Vieira Sandes, 1852.
6
Sobre o a genealogia da famílias Vieira Sandes Ver: FEITOSA, Edvaldo A. Água Branca: história e memória.
Maceió: EDUFAL, 2014. p.33.
7
JOBIM, Hugo. Geographia. In: Indicador Geral do Estado de Alagoas. 2ª ed. 2017. Maceió: EDUFAL;
Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2016. p.34.
Figuras I: Mapa do Estado de Alagoas, região do Alto Sertão, 1893.

Fonte: BAPTISTA, Manoel R. Carta Corographica do Estado de Alagoas Organizada pela Commissão de
Propaganda de imigração e colonização, de ordem de seu chefe Ex. mo governador Major Dr. Gabino Besouro.
APA, caixa 4224, ano 1893. 2 fotografia. 7,0 cm x 6,56cm.

No século XIX, na economia de Água Branca havia uma prevalência da agropecuária


e da agricultura para subsistência e abastecimento do comércio na região, atividades laborais
que contemplavam, respectivamente, a criação de animais e plantação de mandioca, milho, 298
feijão e produção de farinha. A região do Sertão alagoano contava também com o cultivo do
algodão8. Em se tratando do trabalho escravo, presente no cotidiano de mulheres e homens
sertanejos, coexistia junto do trabalho livre, este último tinha uma presença significativa na
região. Em períodos como os de seca, essa oferta de mão de obra livre aumentava, propiciada
pela imigração de pessoas que tentavam refúgio no Baixo São Francisco9.
No intervalo de tempo entre 1805, ano em que as escravizadas Rita, Maria e Luiza
eram meninas, e 1851, quando as duas primeiras receberam alforria com a morte de Joana
Vieira, leis foram sancionadas, impactando diretamente na questão da mão de obra servil no
Brasil Império. A proibição do comércio internacional de cativos ocorreu em 1831, a partir
desse momento se organizou um comércio interno, principalmente do Norte para o Sul,
intensificado com a Lei Eusébio de Queirós de 1850, que interrompeu a oferta de mão de obra
africana realizada de forma clandestina nas duas décadas seguintes a 183110. Com a

8
Informações retiradas dos inventários post mortem da povoação de Água Branca.
9
TEIXEIRA, Luana. Comércio interprovincial de escravos em Alagoas no Segundo Reinado. Tese (Doutorado
em História) Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2016. p. 38-39.
10
Ibid. p.29-30.
interrupção do tráfico de cativos, ocorreu uma elevação de preços de escravos 11. Em Água
Branca, isso não foi diferente, na década de 1860 os escravos alcançaram os preços mais
altos, desta forma, a obtenção de cativos requeria mais recursos ou dependia de doações,
herança, e reprodução natural das escravas.

A descendência de Rita, Maria, e Luiza

Aos oito de julho de mil oitocentos e cinquenta e cinco, na capella de Água


Branca, o padre Diogo de Jesus Ferreira, baptizou pós os santos óleos, a
Clara com idade de quatro mezes, filha legitima de Luís Vieira Luna, digo,
de Luís e Elena captivos de Luís Vieira Luna, e forão padrinhos Manoel
Vicente Ferreira e Apolonha Maria do Espirito Santo; dique fiz este assento,
me assigno. O vigário Lino Martyr de São José Ferreira 12

A avaliação dos escravizados de Joana Vieira Sandes quando esta faleceu em 1851, e
seu sobrinho Luís Vieira Luna herdou boa parte dos seus escravizados, não mostrou nenhum
vínculo familiar entre os cativos Luís, cabra, 44 anos e Elena, parda, 30 anos. Seria outro
escravo chamado Luís? Infelizmente não temos conhecimento, mas confirma que os olhares
de avaliadores eram muito limitados para enxergarem a família fora do casamento católico, ou 299
seja, as uniões consensuais dos escravos. Elena no inventário contava com sete filhos,
Ignácia, Josefa, Cândida, José, Severo, Primo e Ana (Figura 04). Em algum momento entre
1852, ao nascimento de Clara, ocorrido em 1855, Elena certamente casou na Igreja. Não
sabemos se o escravo Luís era o pai de todos os filhos, mas é certo que uma companhia
paterna esteve presente.
Declarou Joana Vieira em testamento que foi casada à face da Igreja com João Vieira
Sandes, o nome denuncia ser parente próximo dela, talvez um primo. Para esses senhores
seria importante manter as propriedades, principalmente terras e escravos, pois uma divisão
de herança poderia trazer a dispersão de bens. Uma alternativa diante disso, foi o matrimônio
dentro do mesmo grupo, assim formavam famílias com uma tendência a endogamia. Casar-se
entre os seus pares constituía uma boa opção para resguardar bens e ampliar as propriedades,

11
Um dos estudos que identificou o aumento de preço dos escravos na Província de Alagoas foi o de Luana
Teixeira, a partir dos dados de transações de compra e venda em Maceió, verificou o aumento dos preços dos
escravos ao longo da década de 1850, intensificado na década de 1860, e o decaimento na segunda metade da
década de 1870. Ibid. p.140.
12
Acervo da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Mata Grande. Registro de batismo de Clara. 1855. v.
141.
como afirma Gilberto Freyre, os casamentos endógamos tinham como objetivo “impedir a
dispersão dos bens e conservar a limpeza do sangue de origem nobre ou ilustre”13.
Segundo a descrição do inventariante e herdeiro universal dos bens, o seu sobrinho e
afilhado Luís Vieira, o casamento de sua tia e madrinha com João Vieira de Sandes (falecido
em 1831) durou apenas 5 ou 6 meses “separando-se dela o dito seu marido nessa ocasião, por
ele ter uma manceba teuda e manteuda”. Não faz referência ao nome dessa mulher que vivia
uma união fora das regras e, certamente, essa relação causou a separação do casal que ocorreu
em 1805, juntamente com a divisão dos escravos, casas e animais.
O herdeiro descreveu ainda que “depois de casados como foi dito viveram
completamente apartados como se estranhos fossem, não tendo entre si relação alguma de
qualquer espécie”. As leis eclesiásticas reconheciam “separação perpétua”, em casos de um
dos cônjuges dentro do prazo de dois meses após o casamento decidir professar religião; em
casos de adultério14; e também era possível separação na ocorrência de sevícias graves, “se
algum deles com ódio capital tratar tão mal ao outro, que vivendo junto corra perigo sua vida,
15
ou padeça moléstia grave[..]” . Em São Paulo, Nizza da Silva observou que nos fins do
século XVIII surge outro tipo de divórcio, amigável, em que ambas as partes entram com o
processo de separação. Este tipo de divórcio vinha sempre acompanhado com uma “referência
300
à divisão dos bens entre os cônjuges, que poderia ser feito por escritura no tabelião16.
Em referência aos escravos, a partilha foi feita da seguinte forma: João Vieira Sandes
ficou com os escravos “João preto e sua mulher Joana com as crias Gonçalo, Hilário e
Antonia”, e a Joana Vieira Sandes com o “crioulo Manoel e a Mulata Maria, uma filha
pequena de nome Aguida, as mulatinhas Luiza e Maria, as crioulas Rita e Quitéria, de cinco e
oito anos, e Romana, de seis anos”. Sendo que faleceram “sem produção Quitéria e Maria
pouco depois da separação”.
Com a partilha, permaneceu com João Sandes uma família de escravizados, mas não
sabemos se completa, se algum filho foi separado ou se João e Joana tinham três filhos
13
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 49ª ed. São Paulo: Global, 2004, pp. 224-225.
14
A separação devido ao adultério não seria válida se ambos praticaram o adultério, “se fica compensando para
este efeito um adultério com o outro”, ou se o cônjuge perdoar o adúltero com o conhecimento da causa, “ao
depois coabitar, ou tiver copula com o outro cônjuge”. Ver: VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, feitas e ordenadas pelo Ilustríssimo e reverendíssimo Senhor D. Sebastião
Monteiro da Vide, Arcebispo do dito Arcebispado e do dito Conselho de Sua Majestade, propostas e aceitas em
o Sínodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho de 1707. Brasília: Senado Federal/Conselho
Editorial, 2011, Livro 1, p.126-129.
15
Ibid.
16
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP, 1984. p. 210-
242.
naquele momento. Havia a possibilidade dos escravos que ficaram com Joana Sandes
formarem uma outra família nuclear, o crioulo Manoel e a mulata Maria, e os seus filhos.
Porém, a descrição do herdeiro deixa dúvidas, e somente com a localização dos registros de
batismos das escravas Aguida, Luiza, Maria, Rita, Quitéria e Romana, poderíamos identificar
quem foram os seus pais. Mas pelos pequenos intervalos nas idades das crioulas Rita, Romana
e Quitéria, e pelos termos “crioulas” e “mulatas” utilizados, o primeiro de acordo com o
dicionário de Luiz Maria Pinto refere-se a “o preto escravo que nasce na casa do seu senhor”,
e o segundo termo ao “nascido de preto com branca, ou de branco com preto” 17, indicam que
elas provavelmente eram filhas de Maria ou Joana, ou de outra cativa da propriedade da mãe
de Joana Vieira.
Conforme Cristiany Rocha, o desenvolvimento da posse está “relacionado diretamente
ao ciclo de vida dos escravos e suas famílias. Obviamente, ele também está ligado à trajetória
18
de vida do proprietário e a fatores econômicos” . Também podemos perceber as
modificações na propriedade de Joana Sandes. Ela antes da separação tinha com seu cônjuge
12 escravos, entre eles pelo menos um casal e 8 crianças. Com a separação, Joana teve seu
número de escravos reduzido a 8, em sua maioria crianças. Recebeu escravos de herança da
mãe. Em dezembro de 1851, quando veio a óbito, sua propriedade contava com 30 cativos de
301
idades diferentes e redes familiares provenientes de gerações.
Em seu testamento localizamos a escravizada Rita, que ficou em poder de Joana Vieira
Sandes na separação em 1805, e também uma escrava mulata de nome Maria, que apesar do
herdeiro ter descrito que faleceu “sem produção”, a escravizada tinha 50 anos, o que leva à
conclusão que Joana Vieira Sandes adquiriu outra cativa de nome Maria, ou ocorreu uma
confusão do herdeiro na descrição sobre quais as escravas tinham falecidos. Vale ressaltar que
Quitéria e Aguida foram as únicas que não tiveram filhos descritos no inventário. Os
escravos Manoel e Maria não estavam mais na propriedade, temos a informação que Luiza e
Romana estavam libertas, e a primeira tinha sua filha Elena na posse, e Romana o seu filho
Domingos19: Abaixo as figuras com a descendência de Rita, Maria, e Luiza 20.

17
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da lingua brasileira. Ouro Preto: Typographia de Silva, 1832, n.p.
18
ROCHA, Cristiany Miranda. “Histórias de Famílias escravas em Campinas ao longo do século XIX”.
Dissertação (Mestrado em História) Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 1999. p. 59.
19
Acervo do Fórum Miguel Archanjo de Siqueira Torres. Inventário post mortem de Joana Vieira Sandes, 1852.
20
Utilizamos nas Figuras o translado de testamento e Inventário de Joana Vieira Sandes; registros de batismos do
ano de 1855 da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Mata Grande; e os registros de batismo (1864-1871)
e óbitos (1864-1874) da freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca.
Figura 02: Descendência da Liberta Rita

Rita, escrava na
Partilha de 1805, com 8
anos
Liberta em testamento
de 1851, com 55 anos.

Joaquina, Inventário
de 1852, com 30
anos
Francisca, Inventário Severa, Inventário de
de 1852, com 17 anos 1852, com 15 anos

Manoel, Inventário de
1852, com 8 anos Tiburcio, Inventário Canuta, Inventário
de 1852, com 4 anos de 1852, com 8 meses
Óbito em 1866, com
20 anos

Fonte: Acervo do Fórum Miguel Archanjo de Siqueira Torres. Inventário post mortem de Joana Vieira Sandes,
1852. Acervo da paroquia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca. Registros de óbitos. 302

Figura 03: Descendência da Liberta Maria

Catarina, escrava Maria, escrava na Partilha em 1805


Óbito em 1874, Liberta no testamento em 1851,
com 31 anos com 50 anos
Casada

Julião, Lina, inventário


C. inventário de de 1852, com João, inventário de
1852, 19 anos 1852,
com 23 anos com 15 anos
Rosalina, Batismo em
1865,
com 1 mês
Ursulina, Batismo em
1866,
com 8 dias

Fonte: Acervo do Fórum Miguel Archanjo de Siqueira Torres. Inventário post mortem de Joana Vieira Sandes,
1852. Acervo da paroquia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca. Registros de batismos. C- Casados.
Figura 04: Descendência da Liberta Luiza

Luiza
(Liberta)
escrava
em
partilha
de 1805,
com 5
anos
Luís,
registro
de
batismo Elena, 1852
de Clara,
1855
C.
Antônio Manoel dos
Santos, livre
ou liberto
C.
Josefa, Clara,
Ignácia, Candida, José, Severo, Primo, Ana,
1852 batism
1852 1852 1852 1852 1852 1852 o em
1855

Lúcia, Maria,
Batismo Rita, Luciano, Luís, Vicente,

303
Óbito Batismo Batismo Batismo Batismo
em 1864 em 1865 em 1867 em 1868 em 1869 em 1871

Fonte: Acervo do Fórum Miguel Archanjo de Siqueira Torres. Inventário post mortem de Joana Vieira Sandes,
1852. Acervo da paroquia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca. Registros de batismo e óbitos. C-
Casados.

Rita permaneceu na mesma posse pelo menos por 50 anos e esteve acompanhada das
suas filhas Joaquina, Severa, Francisca, e seus netos Manoel, Tibúrcio e Canuta. Francisca e
Tibúrcio foram doados para sobrinhos e afilhados, mas houve um ajuste e Tibúrcio continuou
junto de sua mãe. Trata-se de uma constituição parcial para um determinado período, mas
podemos entender que a convivência entre elas deve ter sido um importante apoio
psicológico, famílias que contaram com uma sobrevivência por décadas. De acordo com
Robert Slenes, as famílias representavam para os escravos uma instituição importante “para
transmissão e reinterpretação da cultura e da experiência entre gerações”. Ajuda para
enfrentar privações e punições como lembrou o autor deve ter sido o primeiro benefício da
família21.
Maria, em 1852, tinha três filhos adultos na posse, os escravizados Julião, Lina e João,
o primeiro deles foi localizado em 1865-1866, casado com Catarina, escravizada da mesma
posse de Luís Vieira, ao batizarem suas filhas Rosalina e Ursulina, nomes que certamente
faziam referência à sua irmã Lina, doada em testamento com 19 anos, para o sobrinho de
Joana Vieira de nome Francisco Bezerra. João poderia ser o mesmo escravizado que se casou,
em 1872, com a escravizada Renovata, de outra propriedade, por ser um nome comum, não é
possível ter obter certeza.
A Liberta Luiza contava com a filha Elena e mais sete netos em 1852. Elena, casada
com o escravizado Luís, batizou Clara em 1855. A filha de Elena de nome Ignácia casou-se
com o liberto Antônio Manoel dos Santos e batizaram sua filha Lúcia em 1864. Elena teve
quatro dos seus filhos doados em testamento, Cândida com 7 anos, Primo com 4 anos, Severo
com 2 anos e Ana de 8 meses. Não se deve ter a impressão que as formações familiares
escravas duravam até o ciclo de vida dos proprietários, devido à separação de mães e
filhos(as) com as doações. Primeiro, que nestas doações ocorreram ajustes, sendo que Severo
passou a fazer parte da propriedade de Luís Vieira, ou seja, continuava em companhia de sua
304
mãe. E segundo, pela idade deles, por exemplo, Ana que foi deixada para Minervina, a filha
de Joaquim Antônio de Siqueira (futuro Barão de Água Branca), quando tinha 8 meses. Não
dá para afirmar que houve uma separação imediata e definitiva. Uma escrava com meses não
tinha produção, por isso não é difícil de se imaginar que somente quando essa escrava
passasse a ter alguma função que uma mudança de moradia poderia ocorrer, e mesmo assim
as fazendas estavam localizadas na mesma freguesia22.
Apesar da inventariação descrever as escravizadas como solteiras, com a observação
da propriedade, percebemos que o número de homens talvez indique uniões consensuais. O
cativo mais velho era Alexandre, com 60 anos, adquirido por herança, podemos supor que
este fosse o cônjuge de Rita ou Maria, o cativo Anacleto de 50 anos, poderia ter uma
companheira na mesma posse, e o escravo [Maciel] de 38 anos, o único adquirido por compra

21
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. 2ª ed.
corrig. Campinas: UNICAMP. 2011, p. 124.
22
Encontramos o registro de óbito de Ana escravizada de Josefa de Araújo Luna, esposa de Luís Vieira, falecida
em 1878, com 25 anos de idade. Anna teria idade aproximada da filha de Elena, entretanto, não sabemos se
tratava-se da mesma, se assim fosse, confirmaria que os ajustes feitos após as doações eram pensados na
manutenção dos vínculos familiares dos cativos. Acervo da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Água
Branca. Registro de óbito de Ana. Livro nº 1, 1878. p.94.
também, aliás, deve ter existido uma razão para isso, a compra poderia estar relacionada aos
laços familiares mantidos pelos cativos. Sendo assim, a nomeação somente materna, não
significaria a falta de uma presença paterna, mas que a documentação teria seus limites na
percepção da família negra.
Relações familiares foram possíveis de serem mantidas por um longo período de
tempo23, certamente beneficiavam os escravos. De que forma isso poderia ocorrer? A
permanência na mesma propriedade com os familiares resultaria em ajuda mútua, deveria ser
importante para obtenção de recursos materiais. Se entendemos que tais recursos não eram
conquistados de um dia para outro, e que muito dependia de redes de amizades e de acordos
com os senhores, os escravos inseridos em famílias intergeracionais contariam com
negociações iniciadas há décadas. Importante também diante de uma conjuntura de comércio
interprovincial de cativos no Segundo Reinado, conforme a historiadora Luana Teixeira, o
período de intensificação do comércio de escravos na Província Alagoana ocorreu entre 1851-
1858, com a diminuição do volume ao longo da década de 1860, com seu quase estancamento
no início de 1870, e sua retomada a partir de 187324.
Os senhores, por sua vez, podem ter se utilizado de uma política senhorial de respeito
aos laços familiares, tendo em vista a continuidade da propriedade escrava, o que pode ter
305
sido utilizado pelos primeiros colonos da família Vieira Sandes, seja com a família legítima
ou consensual, beneficiando-se com a reprodução natural das cativas. Ao perceber isso, não
temos a intenção de afirmar que as relações familiares foram construídas pelas escolhas
senhoriais.
Doar os escravos em testamento consistiu em afirmar os laços de compadrios que
envolviam Joana Vieira com seus familiares, e a importância da manutenção de escravos para
eles25, Joana Vieira alforriou por “esmola” Rita e Maria, escravizadas com 55 e 50 anos, não

23
Suzana Rosas em estudo sobre o médio São Francisco Pernambucano notou a presença de famílias escravas
com três gerações, segundo a autora apesar da documentação consultada, inventários post mortem, mostrar como
predominante as famílias compostas por mãe e filho, não se deve pensar que famílias de três gerações foram
“inusitadas ou raras na região”. Ver: ROSAS, Suzana, C. Escravos e senhores no Sertão de Pernambuco no
século XIX. In: ROSAS, S. C.; BRANDÃO, T. M. P. (Org.). Os Sertões: espaços, tempos, movimentos: Recife,
Ed. Universitária da UFPE, 2010. pp.127-130.
24
TEIXEIRA, Op. cit., 2016, p. 37-39.
25
A escrava Francisca de 17 anos, filha de Rita, foi doada para a sua sobrinha e afilhada Engraça, mulher de José
Vieira; o escravo Tiburcio (surdo e mudo) com 4 anos, filho de Joaquina, para o seu sobrinho e afilhado
Antônio, filho de Antônio Bezerra Lima. Para seu sobrinho Francisco Bezerra Lima deixou a escrava Lina de 19
anos, filha de Maria; a escravinha Candida 7 anos filha de Elena para a sua sobrinha e afilhada Leocardia (tinha
em torno de 11 anos), filha do falecido João Vieira; Primos e Severo com 4 e 2 anos filhos de Elena, Florência
de 2 anos filha de Luzia, deixou para o seu sobrinho e afilhado Pompeo Cidrão de Cerqueira Torres (tinha em
torno de 5 anos), a escrava Ana, filha de Elena de 8 meses para Minervina, (tinha em torno de 7 anos), filhos do
mais em idade reprodutiva; a escrava Luzia, adquirida por herança, com 38 anos foi alforriada
pela metade. É justo que Rita e Maria tiveram o contato mais longo com Joana, mas o fato de
não alforriar em valores inteiros cativas em idade reprodutiva, indicaria bem como essa
senhora esperava dar continuidade aos status de proprietários de seus parentes. Informa
também o quanto o compadrio ajudava a reafirmar os parentescos.
Outra forma de laços entre os cativos era o parentesco ritual. Acontecia quando se
ganhava parentesco espiritual através dos rituais católicos de batismo e crisma. De acordo
com Stuart Schwartz, o compadrio são laços que se formam na igreja e se estende durante a
vida, laços de afilhado e padrinho ou madrinha, entre esses dois últimos e os pais dos seus
afilhados26. Ainda conforme Schwartz, o compadrio foi usado “para reforçar os laços de
parentescos já existentes, solidificar relações com pessoas de classe social semelhante ou
estabelecer laços verticais entre indivíduos socialmente desiguais”27.
As escolhas horizontais de Cândida ao batizar os seus filhos naturais Rita, Luciano,
Luís e Vicente entre 1867-1871 significariam o fortalecimento dos parentescos. Cândida é a
mesma escrava que estava na posse de Joana Vieira Sandes em 1852, com 7 anos, filha de
Elena e neta de Luiza (Figura 04). Foi doada para Leocádia. Mesmo com a mudança de
senhora, as relações de solidariedade com os escravos dos antigos senhores não se desfizeram,
306
continuaram no tempo, portanto, o ritual do batismo foi importante para reafirmar os vínculos
entre eles. Assim, Cândida escolhe como padrinhos e madrinhas para seus filhos Rita, Luís,
Vicente, os escravos Severo (irmão de Cândida) e Manuela, Manoel e Alexandrina, Siríaco e
Galdina, todos da posse de Luís Vieira Luna 28. O filho Luciano de Cândida foi batizado por
Primo Feliciano e Josefa Maria da Conceição, certamente era o seu irmão, o escravo Primo,
talvez liberto em 186829.

futuro Barão de Água Branca. Ocorreu um ajuste após a partilha, o escravo Tibúrcio permaneceu na mesma
posse, quando faleceu em 1866, o nome do senhor Luís Vieira Luna é registrado, e o escravo Venâncio, que não
foi doado em testamento, em 1856, aparece sendo avaliado no inventário de Gertrudes Senhorinha de Siqueira
Torres, mulher de Antônio Bezerra Lima, sobrinho de Joana Sandes. E o escravo Severo ainda se encontrava
com Luís Vieira Luna em 1867, quando batizou sua sobrinha Rita.
26
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. Tradução:
Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. pp.330-131.
27
Idem. Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Jussara Simões, Bauru/SP: EDUSC, 2001, p. 266.
28
Casos semelhantes da escrava Cândida foi encontrado pela historiadora Cristiany Rocha, em sua pesquisa para
Campinas, o que ela chamou de “superposição de parentesco consanguíneo e ritual”, o que compreende a união
de “parentes consanguíneos pertencentes a diferentes plantéis, que tivessem sido separados por herança ou
venda”. Segundo a autora os escravos poderiam manter e estender suas redes familiares e amizades, mesmo que
estivessem em fazendas diferentes. ROCHA, Op. Cit., 1999, p. 101.
29
Acervo da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca. Registro de batismo de Rita, Luciano,
Luís, e Vicente. Livro nº 2, p.4, v.37, v.93; livro nº 3 v.7, 1866-1871.
A mudança de posse não significou a quebra dos laços que os envolviam, pois podemos
entender pelas escolhas de padrinho e madrinha de Cândida que eles continuaram a manter
contato. Esse exemplo mostra o quanto era valorizada a família, algo que ainda pode ser
observado com a nomeação dos seus filhos. A sua filha, que faleceu com 14 dias, recebeu o
nome de Maria; em 1867 batizou Rita com 15 dias de nascida, apresentando a mesma
nomeação das libertas Rita e Maria. O nome de Luís poderia fazer referência ao seu pai ou
padrasto Luís, ou mesmo a sua bisavó Luiza, e seu filho Luciano à liberta Luciana, que em
1852, tinha um filho de nome Venâncio na posse de Joana Vieira.
Pela reconstituição das famílias de Rita, Maria e Luiza, podemos dizer que a
possibilidade de manutenção dos vínculos familiares de três ou mais gerações foram viáveis
no Sertão de Alagoas, e o contato entre eles permanecia mesmo com a mudança do senhor.
No exemplo de Cândida, buscou-se conservar a memória dos parentes com a nomeação de
filhos e criar novos vínculos com parentes através do ritual do batismo.
Joana Vieira faleceu no início da década que interrompeu o tráfico internacional de
cativos, e mudanças operaram a partir deste momento. Luís Vieira estendeu sua vida até 1873,
falecendo com 66 anos. Dois anos antes a Lei Rio Branco nº 2.040 foi aprovada, e trazia
várias disposições acerca do trabalho escravo, interferindo nas relações senhor escravo, ela
307
legislava sobre formas de tratamento do escravo, reafirmava o decreto de 1869 que proibiu a
separação de famílias cativas30, legitimava direitos conquistados pelos cativos como o
pecúlio31, enfim, as relações sociais baseadas na escravidão vivenciada por esses agentes
históricos já não era mais a mesma, uma questão que deixaremos para um próximo estudo.

30
O decreto Imperial nº 1.695, de 15 de setembro de 1869, foi o primeiro meio legal que impedia a separação das
famílias escravas, por venda ou transmissão, dos cônjuges e os filhos menores de 15 anos de seu pai ou mãe. Em
setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre reafirmou esse decreto, só que diminuiu a idade dos escravos que não
podem ser separados dos pais, de 15 para 12 anos.
31
Ver: MATTOS, Hebe. Raça e cidadania no crepúsculo da modernidade escravista no Brasil. In: O Brasil
Imperial, vol. III-1870-1889. GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2009, p. 23.
REFERÊNCIAS

Acervo da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca. Livros de Registro de


batismos. Livros nº1, 2 e 3 de batismos, 1864-1871.

Livro de Registos de Óbitos. Livro nº 1, 1864-1878.

Acervo da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Mata Grande. Livro de Registros de


Batismo. Nº 1. 1849-1857.

Acervo do Fórum Miguel Archanjo de Siqueira Torres. Inventário post mortem de Joana
Vieira Sandes. 1852.

BAKAJ. B. B. G. Lei do Ventre Livre, Lei do Sexagenário e Lei Áurea: a grande trilogia
abolicionista. Rev. Inf. Legisl. Brasília, v.25, n.98, abr./jun.1988. Disponível em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/181850. Acesso em:10/07/2016.

COSTA, Craveiro; CABRAL, Torquato (orgs.). Indicador Geral do Estado de Alagoas.


Maceió: EDUFAL; Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 2016. 308
FEITOSA, Edvaldo Araújo. Água Branca: História e Memória. EDUFAL, 2014.

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economia patriarcal. 49ª ed. São Paulo: Global, 2004.

GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial, vol. III-1870-1889. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da lingua brasileira. Ouro Preto: Typographia de
Silva, 1832. Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br. Acesso em: 15.12.2016.

ROCHA, Cristiany M. Histórias de Famílias Escravas em Campinas ao Longo do Século


XIX. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Estadual de Campinas Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. São Paulo, Campinas, 1999.

ROSAS, S. C.; BRANDÃO, T. M. P. (Org.). Os Sertões: espaços, tempos, movimentos:


Recife, Ed. Universitária da UFPE, 2010.

SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-


1835. Tradução: Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

______. Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Jussara Simões, Bauru/SP: EDUSC, 2001.
SILVA, M. B. N. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP. Coleção
Coroa Vermelha. Estudos Brasileiros, 1984.

SILVEIRA, Alessandra da S. Sacopema, capoeiras e Nazareth: Estudos sobre a formação da


família escrava em engenhos do Rio de Janeiro do século XVIII. 1997. Dissertação (Mestrado
em História) Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas:
Campinas, 1997.

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TEIXEIRA, Luana. Comércio interprovincial de escravos em Alagoas no Segundo Reinado.


Tese (Doutorado em História) Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2016.

VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, feitas e


ordenadas pelo Ilustríssimo e reverendíssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide,
Arcebispo do dito Arcebispado e do dito Conselho de Sua Majestade, propostas e aceitas em o
Sínodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho de 1707. Brasília: Senado
Federal/Conselho Editorial, 2011.

309
CRIME E CASTIGO:
PENA DE MORTE E A
MANUTENÇÃO DA
ORDEM NO IMPÉRIO
BRASILEIRO (1830-1876).

OSEAS BATISTA
FIGUEIRA JÚNIOR

MESTRANDO (UFAL)
Introdução

É provável que poucos países tenham a história de sua formação tão ligada ao
desenvolvimento de sua justiça criminal como o Brasil. Já desde o próprio período
monárquico, a história do Brasil independente se elaborava em torno da formação
das instituições e órgãos da justiça criminal, tomados como símbolos ou campos de
luta para a constituição da nova nação, local privilegiado da disputa entre as
tradições do absolutismo português e as novas ideias do liberalismo então em
expansão. Marcos da história política, na sua formação mais tradicional, é a criação
dos códigos criminal e de processo penal e sua reforma, que representa o triunfo da
reação conservadora permitindo a consolidação do Império.1

O presente artigo intitulado, Crime e castigo: pena de morte e a manutenção da


311
ordem no império brasileiro (1830-1876), tem como objetivo compreender a aplicação das
leis no Brasil do oitocentos, examinando as formas de controle social criadas neste contexto
especificamente ao modelo punitivo aplicado através dos códigos criminais de 1830 e 1835.
Nosso ponto de partida é investigar o momento instável na política brasileira, conhecido como
crise do primeiro reinado, contexto em que foi elaborado o primeiro código criminal entre
1826 e 1830.
Neste momento há de destacar que além da necessidade das elites imperais controlem
as revoltas e conflitos surgidos no período tornou-se necessário à criação de um código penal
próprio para uma nação recém-proclamada que necessitava entre outras coisas, abandonar a
herança colonial que pairava perante as leis que vigoravam até então. Tendo como ponto de
partida uma discussão no parlamento imperial brasileiro que perdurou por cinco anos,
passaremos para a investigação da elaboração do segundo código criminal do Brasil fato
ocorrido em 1835, processo feito “as pressas” devido ao medo que os senhores de escravos

* O autor é Bacharel em História pela Universidade Federal de Alagoas-UFAL (2015). Mestrando em História
social pela mesma instituição, no momento integra o Núcleo de Estudos Sociedade, Escravidão e Mestiçagens
Séculos: XVI-XIX (NESEM). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas, (FAPEAL).
1
BRETAS, Marcos Luiz. A polícia carioca no Império. IN Revista Estudos Históricos, vol. 1. nº. 22. Rio de
Janeiro, 1998. p. 219.
passaram a sentir diante das temidas insurreições que estouraram no período como o levante
de escravos em no Distrito de Carrancas em Minas Gerais no ano de 1833 o Levante dos
Malês em Salvador ocorrido em 1835. Assim em um terceiro momento desta pesquisa
historiográfica passaremos para a investigação da eficácia de tais leis a partir da análise da
última execução penal no Brasil fato ocorrido na Cidade do Pilar na Província de Alagoas
entre os anos de 1874 e 1876.
Neste sentido, buscaremos uma análise objetiva da sociedade brasileira
oitocentista através das leis, tendo como fonte, anais do congresso brasileiro, os próprios
códigos criminais, e, por conseguinte periódicos de grande circulação na Província de
Alagoas, e na cidade de Pilar tais como: O jornal do Pilar, diário das Alagoas, e o Penedo
das Alagoas, tendo como suporte teórico os estudos históricos sobre o Brasil monarquio,
como também as análises feitas por Michel Foucault2 acerca dos tipos de punição aplicada nas
sociedades modernas através do entendimento dos conceitos tratados em sua obra como, por
exemplo, punição, pena e principalmente suplício, compreendendo como tais formas de
punição foram aplicadas por meio dos códigos criminais. Além dessas fontes, e deste tipo de

312
procedimento metodológico, utilizaremos como base para o nosso trabalho uma historiografia
centrada no Brasil imperial, mais precisamente nas questões jurídicas que envolvem o
período, como também referências que nos deem um leque de compreensão de tais fenômenos
na Província de Alagoas neste contexto.

É preciso manter a ordem: A pena de morte no código criminal de 1830

O debate sobre a criação de um código criminal próprio para o Brasil consistiu em


dois argumentos principais, ambos dirigidos para substituição do conjunto de leis que cumpria
essa função até o momento, as Ordenações Filipinas3 que vigoravam também em Portugal. O
primeiro baseava-se nas criticas ao seu conteúdo, onde tal código penal vigente até 1826 era
obsoleto uma mistura de religião, moral e direito como destaca Mozart Linhares havia uma,

distinção completa entre moral e o direito, fatos que pertencem ao foro da


consciência, que importam relações de deveres sem força coercitiva externa, eram
considerados crimes sujeitos à repressão e punidos. Assim é que o herege era

2
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
3
As Ordenações Filipinas vigoraram em Portugal e no Brasil. No Brasil, vigoraram desde 1603 e foram
revogadas aos poucos. A parte penal e processual penal foi revogada em 1830 e 1831 pelos Códigos Criminais e
de Processo Criminal do Império. As Ordenações Filipinas não previam a prisão como pena. O acusado
permanecia preso até a sentença, quando então era executada a pena (Livro V, tít. CXVII, §§ 12 a 19 e tít.
CXXII). ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Philipino, ou Ordenações e Leis do Reino de Portugal. Rio de
Janeiro, 1870. Edição por reprodução em "fac-símile" da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1985, p. 1315.
criminoso, e criminoso aqueles que mentiam, fosse ou não debaixo de juramento. Se
na Ordenação do L. 5º encontramos essa confusão da moral, da religião e do direito,
não menos notável se torna o sistema de penalidade que as ideias posteriores
condenaram, se é que não amaldiçoaram. Assim é que vemos empregada a morte
afrontosa, as mutilações, a tortura e todo esse catálogo de penas que as ideias antes
de Beccaria faziam vingar. 4

A segunda argumentação criticava a falta de autonomia desta lei em vigor, pois


tais Ordenações possuíam uma forte herança colonial portuguesa sendo de caráter
emergencial a elaboração de um código de leis com origem no parlamento brasileiro. Partindo
dessas argumentações a discussão acerca da elaboração de um código criminal tem início na
câmara dos deputados em 1826, período conhecido como crise do primeiro Reinado e além
dos argumentos baseados no conteúdo da lei vigente, com a aprovação de um código criminal
reestruturado procurava-se conter as agitações políticas e sociais em várias Províncias do
Império que emergiram neste contexto, levantes urbanos contra o governo de Dom Pedro I
como, por exemplo, a Confederação do Equador em 1824 ocorrida em Pernambuco que
contou com a adesão de homens simples fazendeiros e padres.5 Nesse clima de insegurança
guardas estavam sempre atentos à movimentação de escravos, além disso, os chamados
movimentos antilusitanos surgiram em vários lugares do Brasil, como no Rio de Janeiro, 313
Salvador e Recife, que tiveram origem na luta constante pelo comércio, entre portugueses
escravos de ganho e homens livres locais.6
E é nesse período tumultuado da história brasileira que uma elite imperial buscava
soluções imediatas para criminalizar e punir tais atitudes que fugiam a ordem instituída. O
meio de conseguir esse objetivo foi à criação de um código criminal algo já discutido no
período. Assim o projeto começa a ser debatido na câmara por duas legislaturas sendo a
primeira em 1826 e a segunda em 1830 e entre seus legisladores, segundo Zahidé Machado
Neto7 estavam: doutores, bacharéis, médicos e senadores uma verdadeira elite imperial como
podemos observar no quadro abaixo.

4
SILVA, Mozart Linhares da. O Império dos Bacharéis: O pensamento jurídico e a organização do Estado-
Nação no Brasil. Curitiba: Juruá, 2009. p. 231.
5
DEL, Priore Mary. Histórias da Gente Brasileira - Império - Vol. 2, São Paulo Leya, 2016. p.13.
6
RIBEIRO, Gladys Sabina. A liberdade em construção. Identidade nacional e conflitos antilusitanos no
Primeiro Reinado. Rio de Janeiro: FAPERJ / Relume Dumará, 2002.p.361.
7
MACHADO NETO, Zahidé. Direito penal e estruturasocial. Comentário sociológico ao Código Criminal de
1830. São Paulo: EDUSP / Saraiva 1977.p.15.
Ocupação dos deputados nas duas primeiras legislaturas

Primeira Legislatura (1826) Segunda Legislatura (1830)


11 portadores de títulos militares 11 portadores de títulos militares
10 bacharéis 6 bacharéis
25 sacerdotes 15 sacerdotes
16 magistrados 2 médicos
2 médicos 1 advogado
2 doutores (sem indicação da área do 3 doutores
doutorado) 42 sem indicação de ocupação ou
27 sem indicação de ocupação ou profissão profissão

Um amplo debate se formou a partir destes homens que representavam o corpo


político do Brasil e ao longo de cinco anos foi discutido e elaborado o primeiro código
criminal. As duas primeiras propostas discutidas foram respectivamente a dos deputados Silva
Maria, que propunha a organização de um código que unisse o civil e o criminal e em seguida
à do parlamentar Pires Ferreira, que queria uma premiação a quem elaborasse um projeto de
código criminal em menos de dois anos. Em 1827, as discussões acerca da elaboração do

314
projeto não tiveram grandes destaques devido à preocupação com a aprovação da lei que criou
o Supremo Tribunal de Justiça8 (de autoria de Bernardo Pereira de Vasconcelos) e a lei sobre
liberdade de imprensa9. Seguindo as atas da câmara, no dia 14 de setembro a comissão
formada pelos parlamentares Bernardo Pereira de Vasconcelos e Clemente Pereira apresentou
o seguinte parecer:
Para entrar na regular discussão conforme a ordem dos trabalhos se preferia a do
S.R., Vasconcelos por ser aquele que por mais amplo no desenvolvimento dos
máximos jurídicos, razoáveis e equitativos, e por mãos minuto na divisão das penas,
cujo prudente variedade muito concorre para a bem rígida distinção delas poderá

8
Referindo-se a lei de 18 de setembro de 1828 onde através do Art. 1º determinou que O Supremo Tribunal de
Justiça será composto de dezessete Juízes letrados, tirados das Relações por suas antiguidades, e serão
condecorados com o titulo do Conselho; usarão de beca, e capa; terão o tratamento de excelência, e o ordenado
de 4:000$000 sem outro algum emolumento, ou propina. E não poderão exercitar outro algum emprego, salvo de
membro do Poder Legislativo, nem acumular outro algum ordenado. Na primeira organização poderão ser
empregados neste Tribunal os Ministros daqueles, que se houverem de abolir, sem que por isso deixem de
continuar no exercício desses Tribunais, em quanto não forem extintos. Coleção de Leis do Império do Brasil -
1828, p.36 Vol. 1, disponível em: http://www2.camara.leg.br.
9
Tendo eu sancionado a resolução da Assembleia Geral Legislativa, sobre a inteligência da lei, que atualmente
regula a liberdade da imprensa: Hei por bem declarar: 1º que a disposição do art. 8º do projeto de lei, mandado
observar pelo Decreto de 22 de Novembro de 1823, compreende o abuso da liberdade da imprensa, que for
dirigida a infamar, ou a injuriar a cada uma das duas Câmaras, de que se compõe a assembleia Geral Legislativa;
á totalidade, ou á maioria absoluta dos seus respectivos membros; 2º que a infâmia, ou injuria feita a todos, ou a
cada um dos agentes do poder executivo, não se entende direta ou indiretamente feita ao chefe deste poder; 3º
que os que imprimirem, ou de qualquer modo fizerem circular opiniões de suas funções, não são por isso
responsável. Coleção de Leis do Império do Brasil 1823.p.89 Vol. 1, disponível em: http://www2.camara.leg.br.
mais facilmente leva-se a possível perfeição, com o menor número de retoques
acrescentados aqueles que já a comissão lhe deu de acordo com seu ilustre autor.10

Esta proposta pretendia dividir os delitos previstos no código criminal em crimes


policiais (crimes contra a ordem pública no cotidiano das cidades), crimes particulares (contra
as pessoas, crimes públicos e delitos contra a ordem da monarquia). Dentro dessa sugestão as
penas aplicadas aos condenados seriam: morte, galés, prisão simples e com trabalho, e
banimento. No desenrolar dos debates em 9 de maio de 1828 é aceita a ideia de criação de
uma comissão especial para elaboração do projeto. Neste momento entra em debate também a
colaboração de legisladores estrangeiros. Seguindo a ata do dia 14 de maio de 1829 o
deputado Lino Coutinho vê com bons olhos a ideia da participação de estrangeiros na
elaboração da legislação brasileira, pois,

não tendo grande correlação com os hábitos e prejuízos próprios da nação, podem
ver, estando fora dela, mais claramente as coisas (...) por que como esses homens
não são filhos do país, não conhecem os seus hábitos e os seus abusos, podem ver
mais claramente que os próprios nacionais, os quais podem estar imbuídos de seus
11
hábitos e seus prejuízos.

Em setembro de 1830 ocorrem às discussões mais “acaloradas” acerca da elaboração do 315


código criminal, havia mais pressa na aprovação como se vê nas falas do deputado Carneiro
da Cunha,
o que jugo mais acertado é adotemos o código sem mais delongas. Adotemo-lo,
senhores! Ele é de última necessidade, a nação toda o reclama! A história mesma
desse código nos mostra que o devemos adotar sem longas discussões (...) a
experiência nos irá mostrando aqueles artigos que devemos reformar para o futuro.
(...) Admitindo esse código, faremos um benefício à nação e ao mesmo tempo
desligaremos as mãos dos magistrados, atadas pelas penas bárbaras dessa informe
legislação criminal que atualmente nos rege 12.

A partir deste dia 11 do mesmo mês, as discussões continuaram “calorosas” e


entrou em pauta a inclusão ou não da pena capital no código criminal. Assim ao longo dos
debates em um amplo discurso contrário a essa ideia, o deputado André Rebouças defendeu a
grave desobediência às leis divinas que esta proposta cometeria caso fosse aprovada, nas
palavras do parlamentar:
A sociedade reconhece que ninguém se pode suicidar, por que só a Deus, que fez o
homem e lhe deu o ser, pertence o tirar ao homem a vida que lhe deu. Se, pois se

10
Anais do Parlamento Brasileiro. Sessão de 1827. Tomo quarto. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982, p.p.
130-131.
11
Anais do Parlamento Brasileiro. Sessão de 1829, Tomo Segundo. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982, p.
74.
12
Anais do Parlamento Brasileiro. Sessão de 1830, Tomo Segundo. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982, p.
490.
quiser conceder que há alguma sociedade para a qual ou da qual os associados se
comprometessem suas vidas, devemos crer que essa sociedade é composta de loucos
e o efeito da loucura nunca deu nem jamais estabeleceu direito, e muito menos
poderá servir de exemplo. Logo, qualquer pretensão sobre a vida do homem não é
fundada em direito algum. 13

Dentro deste longo discurso Rebouças também defendeu a inutilidade da pena


capital discutida na câmara enfatizando o caráter irracional deste tipo de punição sendo em
sua opinião,
Até é vergonhoso que uma associação qualquer, uma cidade, e pior, uma nação,
julgue que a sua segurança depende da aniquilação de um ou mais indivíduos, que
pode prender meter em cadeias e que se acha hábil para levar aparatosamente ao
14
patíbulo. Não é, pois, necessidade. É ódio.

No entanto quando se tratou da parcela escrava da população o discurso mudava


de rumo defendendo o parlamentar que a pena de morte seria algo inútil e brutal apenas se
tratando da parcela livre da população. Em seu argumento os escravos eram elementos vis da
sociedade e não temiam a morte, pois não gozavam da vida tal quais os homens livres. 15
Assim na sua argumentação,
Os escravos não podem assaz prezar a vida por que assaz a não gozam; se para

316
alguém a morte é menos repressiva, é pra eles, e sem nenhuma boa esperança se
insurgem e morrem brutalmente; os suicídios mais frequentes são os deles, que
creem na transmigração, creem que morrendo passarão desta para sua terra. Faça-se
para os escravos uma ordenança separada; e por eles não façamos tamanho mal aos
cidadãos, aos homens livres. Ninguém pode tirar a vida do homem, que não deu nem
pode reparar; tirá-la é contra o poder divino, está fora do poder humano; nenhum
legislador pode decretar a pena de morte.16

Destacaram-se também neste debate, outros dois argumentos contrários a pena de


morte e a favor da inclusão da pena de prisão no código criminal. O primeiro foi de Ribeiro
de Andrada baseando-se no sistema penitenciário da Pensilvânia17 alegando que a correção do
individuo seria através da reflexão dos seus atos assim; o parlamentar defendeu que,

se a medicina tem remédios para os alienados, a medicina política deve também tê-
los para os criminosos: as prisões por dilatado tempo e parte (...) destas solitárias, o

13
Idem.p.490.
14
Ibidem.p.490.
15
Ibidem.
16
Anais do Parlamento Brasileiro. Sessão de 1830, Tomo Segundo. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982, p.
496.
17
Neste momento as penitenciárias de Cherry Hill (1821), na Pensilvânia, bem como a prisão de Auburn (1821) e
a penitenciária de Sing-Sing (1825), ambas em Nova York inauguraram o sistema penitenciário norte-americano
adotando o princípio do isolamento conhecido respectivamente por modelos pensilvânico e auburniano foram
adotados pelo Brasil império na constituinte de 1824. Previa o isolamento celular absoluto, herdado da
experiência religiosa acrescentado do trabalho individual na cela. Tomaz, Tadeu de. Lopes, Louro, Guarcia.
Orgs. O Panóptico de Jeremy Bentham. 2. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. p.210.
trabalho, a dieta e os socorros da moral religiosa são os meios que se empregam na
18
cura de tais enfermidades, e a Pensilvânia verifica o bom efeito de tais penas .

Em suas argumentações Ribeiro de Andrada fazia referência ao sistema


penitenciário da Pensilvânia ou sistema “Filadelfiano” de forte inspiração religiosa e que tinha
por princípio fundamental a reforma do criminoso através da autorreflexão 19· Outro
argumento a favor da pena de prisão foi apresentado por Chicorio Gama defendendo o
parlamentar que “as penas não são os verdadeiros meios com que se “estrepam” os delitos, e
sim as casas de correção”.20 Do outro lado o argumento a favor da inclusão da pena de morte
no código criminal era defendido principalmente pelo deputado Paula Cavalcanti, afirmando
que na sociedade brasileira se fazia necessário a pena aplicada ao elemento escravo. Neste
sentindo a população escrava carregava o estigma de classe perigosa, nas palavras do
parlamentar,
quem senão o temor da morte fará conter essa gente imoral nos seus limites (...)
exclui-se do código a pena de morte e das galés; resta a prisão simples. Ora o
escravo que viver vergado sobre o peso dos trabalhos, terá por ventura honrar a
horror e encerrado numa prisão poder se entregar a ociosidade e a embriaguez.
Paixão favorita dos escravos (...). A pena de galés é ainda muito doce para essa
qualidade de gente (...). Ademais, não há nas capitais do Brasil império prisões
seguras; aonde, pois recolher esses facinorosos, aonde tê-los seguros? 21. 317
Após o debate e a defesa incisiva de Rebouças e Paula Cavalcanti, a pena de morte
foi inclusa no código criminal para os escravos, tanto para crime de homicídio quanto para
insurreições. Em 16 de dezembro de 1830 o código foi sancionado pelo imperado Dom Pedro
I. A inclusão da pena capital no texto final demonstrava o quanto os escravos ofereciam
perigo ao tipo de sociedade em que estavam inseridos. Assim definido e bem arquitetado o
texto final do projeto determinava:
Que nenhum crime fosse punido com penas que não estivessem estabelecidas nas
leis conforme a gradação de máximo, médio e mínimo, em razão das possíveis
atenuantes ou agravantes. Foram definidos como criminosos aqueles que cometiam,
constrangiam ou mandavam alguém cometer crimes. 22

O projeto vencedor contava no final dos debates com uma divisão por crimes e
delitos, e a pena capital, criando um mecanismo punitivo que visava impedir a eclosão de

18
Anais do Parlamento Brasileiro. Sessão de 1830, Tomo Segundo. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982,
p. 496.
19
CAVALCANTI, de Sá Flávio. A inclusão da pena de morte no Código Criminal do Império (Brasil – 1830)
revista âmbito jurídico. Acesso em 04 de março de 2015.
20
Anais do Parlamento Brasileiro. Sessão de 1830, Tomo Segundo. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982.
p.550.
22
PESSOA, Gláucia Tomaz de Aquino. Código Criminal. In Memória da Administração pública brasileira.
Acesso em 04 de março de 2015.
insurreições e substitui também às “obsoletas” ordenações. Possuía quatro partes dos crimes e
das penas; dos crimes públicos, dos crimes particulares e dos crimes policiais sendo composta
cada uma por títulos, capítulos e seções23. O documento determinava também que nenhum
crime fosse punido com penas que não estivessem estabelecidas nas leis conforme a gradação
de máximo, médio e mínimo, em razão das possíveis atenuantes ou agravantes. 24 Neste
sentido foram definidos como criminosos (autores) aqueles que cometiam, constrangiam ou
mandavam alguém cometer crimes.
Dentro desse cenário os delitos de origem política receberam uma atenção especial
dos legisladores, que trataram da matéria no título IV “Dos crimes contra a segurança interna
do Império, e pública tranquilidade”25 que abordavam os crimes de conspiração, rebelião,
sedição, insurreição e resistência.26 Assim havendo um desses delitos praticado por escravos
foi prevista no grau máximo a pena de morte para os líderes, de galés perpétuas no médio, e
por quinze anos no mínimo e aos insurgentes açoites”27.
Colocado em prática o Código Criminal de 1830 vigorou durante todo o Império e
foi complementado posteriormente pelo Código do Processo Penal de 183228, tendo sido

318
substituído apenas na República, em 1890. Assim a legislação criminal adotada significou
uma ruptura em relação às penalidades supliciantes da codificação portuguesa
(esquartejamento, amputação, açoites etc.), por privilegiar a aplicação da pena de privação da
liberdade (o encarceramento) praticamente inexistente no livro 5º das ordenações cumprindo
seus principais objetivos lançados em 1826, punir possíveis rebeliões e ter origem nas
discussões em solo brasileiro.
Mudanças sociais e adaptações na legislação

A origem da lei 10 de junho de 1835 tem uma grande semelhança com a elaboração do
primeiro código criminal do Brasil aprovado cinco anos antes. Ambos nasceram do medo que
23
Idem.
24
Ibidem.
25
Código criminal de 1830. Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos, Acesso
em: 04 de março de 2015.
26
Idem.
27
Ibidem.
28
O Código de Processo Criminal de Primeira Instância foi promulgado pela lei de 29 de novembro de 1832, que
tratou da organização judiciária e da parte processual complementar ao Código Criminal de 1830, alterando
inteiramente as formas do procedimento penais então vigentes, herdadas da codificação portuguesa. O Código de
Processo Criminal foi considerado um documento extremamente liberal, ampliando os direitos civis e políticos,
com a valorização do cargo de juiz de paz e a participação dos cidadãos no Poder Judiciário por meio da
instituição dos jurados. A sua reforma ocorreu na conjuntura política denominada “reação conservadora”, tendo
por finalidade rever a ordem jurídica extremamente liberal instituída no período da Regência. PESSOA, Gláucia
Tomaz de Aquino. Código Criminal, Código de Processo Criminal de Primeira Instância de 1832. In Memória
da Administração pública brasileira. Acesso em 04 de março de 2015.
uma elite imperial tinha das revoltas e insurreições. Assim se a década de 1820 do Brasil
império foi um tempo de turbulentas revoltas populares e movimentos antilusitanos, em 1830
novos tipos de preocupações rondava a cabeça dos senhores de escravos. Algo assustava as
elites imperiais, pois em 1833 no distrito de Carrancas, na Província de Minas Gerais, mais
especificamente nas fazendas Campo Alegre e Bela Cruz, (que atualmente se localizam no
município de Cruzília) vários escravos insurgiram contra seus senhores. Como destaca
Marcos Ferreira de Andrade: “Um marco das insurreições escravas correu nesta província um
massacre que muitos, se pudessem, apagariam da memória 29”. Tal episódio “horrendo”
descrito pelos senhores, no entanto significou para os escravos, uma tentativa desesperada e
arriscada na busca da liberdade, com consequências também funestas para muitos deles. 30
O saldo final dessa insurreição revelou um cenário pavoroso. O total de pessoas
assassinadas pelos escravos correspondeu a nove integrantes da família Junqueira31,
(proprietários da fazenda Campo Alegre) e pouco tempo depois pós a revolta de Carrancas em
1833, em pouco menos de um mês é pautada a primeira discussão acerca de um novo código
criminal em substituição ao de 1830. Em 10 de junho é apresentada a câmara do governo
regencial, pelo ministro da justiça Aureliano de Souza, o novo projeto para lidar com casos 319
processuais de escravos, pois,
Se a legislação até agora existente era fraca e ineficaz para coibirão grande mal a
hora que existe mais importante é e menos “gartintora” da vida de tantos
proprietários fazendeiros que vivendo muitos distantes uns dos outros não poderão
32
coibir e existência se a punição de tais atentados não for rápida e exemplar.

A legislação apontada pelo ministro fazia referência a de 1830, que mesmo


possuindo a pena capital para escravos parecia que não estava sendo bem aplicada. O cenário
de medo dos senhores apontado por Aureliano de Souza foi usado para justificar a pressa para
que se fizesse uma lei mais rígida. Além da revolta de Carrancas em fins de janeiro de 1835
estourou em Salvador, o levante dos Malês33 uma revolta capitaneada por escravos e libertos

29
ANDRADE, Ferreira Marcos de. Negros rebeldes nas Minas Gerais: a revolta dos escravos de Carrancas
(1833), Minas Gerais, 2015.p.3.
30
Idem.p.13.
31
Ibidem.p.3.
32
SANTOS, André Carlos dos. O Império Contra-Ataca: A Escravidão e a Pena de Morte em Pernambuco
(1822-1860). Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal Rural de Pernambuco. Recife, 2012, p.
56.
33
Como destaca o historiador João José Reis “Na madrugada de 25 de janeiro de 1835, um domingo, aconteceu
em Salvador na revolta de escravos africanos. O movimento de 1835 é conhecido como Revolta dos Malês, por
serem assim chamados os negros muçulmanos que o organizaram. A expressão malê vem de imalê, que na
língua iorubá significa muçulmano. Portanto os Malês eram especificamente os muçulmanos de língua iorubá,
mulçumanos.34 Esse evento perturbou os dirigentes da sociedade escravista imperial e na
tentativa de darem um julgamento exemplar aos escravos, em 15 de maio de 1835 o projeto
voltou à câmara dos deputados, o senado discutiu e deu corpo final e aprovou a lei em 10 de
junho de 1835.35 Mais rigoroso esse instrumento social de controle dava mais atenção a
possíveis crimes de escravos como podemos perceber em seu primeiro artigo:
Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por
qualquer maneira que seja propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra
qualquer grave ofensa fuxica a seu senhor, a sua mulher, as descendentes ou
ascendentes, que em sua companhia mora administrador feitor e ás suas mulheres,
36
que com ele viverem.

Além disso, a Guarda Nacional imperial37 fazia o papel de aniquilar qualquer tipo
de movimentação escrava nas localidades do Império e principalmente nas regiões onde
ocorreram as insurreições. Assim o momento era de apreensão, sendo o objetivo principal
ganhar tempo para a aprovação da nova lei. No segundo artigo do código de 1835 foram
tratados a punição caso houvesse as temidas insurreições,
Art. 2º Acontecendo algum dos delitos mencionados no art. 1º, o de insurreição, e
qualquer outro cometido por pessoas escravas, em que caiba a pena de morte, haverá
reunião extraordinária do Júri do Termo (caso não esteja em exercício) convocada
pelo Juiz de Direito, a quem tais acontecimentos serão imediatamente comunicado.
38
320
Fica claro no segundo parágrafo do código criminal a aplicação da pena de morte
por qualquer meio ou fuga. Com poucas chances de apelação ou de clemência para os
culpados a lei de 10 de junho de 1835 foi feita exclusivamente para aplicar a pena de morte a
todos os escravos que se levantassem contra o sistema econômico e social vigente. Cumpria-
se assim o objetivo principal lançado pelos seus legisladores; aniquilar qualquer tipo de
movimento insurgente escrava no Brasil do oitocentos algo pensado em pouco tempo como
mandava o momento de insegurança.

conhecidos como nagôs na Bahia. Outros grupos, até mais islamizados como os haussás, também participaram,
porém contribuindo com menor número de rebeldes. REIS, José, João. Rebelião Escrava no Brasil: A história do
levante dos Malês em 1835”. São Paulo. Companhia das Letras. 2003. p. 20.
34
Idem.p.20.
35
SANTOS, André Carlos dos. O Império Contra-Ataca: A Escravidão e a Pena de Morte em Pernambuco
(1822-1860). Dissertação (Mestrado em História) 2012, p. 61.
36
Código criminal de 1835. Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos, Acesso
em: 04 de março de 2015.
37
A criação da Guarda Nacional foi uma medida encontrada pelos estadistas como forma do Estado ter a
disposição um poder repressivo que fosse leal ao governo, uma vez que os estadistas tinham medo de que o
exército ficasse ao lado do antigo monarca. Além disso, a função principal que a Guarda Nacional deveria
desempenhar eram atividades de caráter policial, fazendo rondas nas ruas da cidade para manter a ordem, estar
presente nas festas e outras solenidades que eram realizadas. JUNIOR, Costa Ferreira da. A Guarda Nacional e
o Estado Imperial (1831-1850), p.5.
38
Código Criminal do Império Brasileiro. 1830. Acesso em: 04 de março de 2015.
A última execução penal do Brasil: O caso do escravo Francisco Pilar Alagoas 1876

Nossa análise acerca dos instrumentos jurídicos no Brasil Império nos leva a
Província de Alagoas mais especificamente a cidade do Pilar elevada a esta condição em 16
de março de 1872.39 Neste período uma cidade desenvolvida que possuía mais de 20
engenhos de açúcar sendo encontradas também na região as linhas férreas que dinamizavam
esse tipo de produção.40 Pilar também possuía uma localização estratégica, as margens da
lagoa Manguaba cujo ancoradouro servia de conexão com a capital da Província de Alagoas,
Maceió. Neste mesmo cenário, mais precisamente em uma segunda-feira abril de 1874, por
41
volta das oito horas da noite, esta então cidade com até então 9.811 habitantes teria seu
cotidiano alterado por um duplo homicídio. Um acerto de contas dos escravos Prudêncio,
Vicente, e Francisco com o proprietário e capitão da guarda da Província João Evangelista de
Lima. Bem arquitetados os escravos primeiro mataram o capitão a facadas em um Hotel no
interior de sua propriedade logo depois a segunda vitima, sua esposa no sitio Bonga nos
arredores da Cidade de Pilar a golpes de pauladas.42
Após o crime Prudêncio e Francisco fugiram em direção ao Norte e Vicente ao Sul.
Nas buscas feitas pela Guarda Provincial, Prudêncio foi morto. Vicente foi preso no dia 1º de 321
maio no engenho Hortelã e Francisco em Pesqueira Pernambuco. Na Prisão ambos foram
indiciados pelo promotor da comarca Dr.Aureliano Numeriano. A edição do Diário da
Alagoas de 1874 noticiou:
Por telegrama passado da cidade do Pilar sexta-feira à noite, tivemos a notícia de que
já se encontram presos os escravos Vicente e Francisco, e indiciados serão julgados
nas penas previstas no código criminal de 1835 que previa pena de morte por
homicídio a grupos ou indivíduos de condição e escrava que insurgissem contra seus
senhores.43

Após a prisão os escravos ficaram reclusos na Cadeia de Maceió44 tendo como base o
artigo primeiro45 do código criminal do Império aguardando a sentença, neste momento em

39
SORENTINO, Tavares Cleidosn. O último enforcamento no Brasil: a derrocada do escravo, Maceió. 2013.
p.2.
40
Idem.p.3.
41
Ibidem.p.3.
42
Jornal do Pilar, Pilar, p.2, 27 de abr.1874.
43
Diário das Alagoas, Maceió, p.2, mai.1874.
44
Segundo dados de Thomas Espindola a cadeia de Maceió ou casa de Júri teve sua pedra fundamental lançada
em 7 de setembro de 1851, sobre a presidência de Manoel Sobral Pinto. ESPÍNDOLA, Thomas do Bom-Fim.
Geografia Alagoana ou descrição física, política e histórica da Província das Alagoas. 2 ed. Maceió: Edições
Catavento,1871.p.178.
45
Na lei estava previsto que: “Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por
qualquer maneira que seja propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave ofensa
que tramitava o processo Vicente não resistiu à reclusão e faleceu logo depois. Indiciados
pelo código criminal de 1835 os escravos poderiam recorrer da sentença na ação denominada
“graça imperial” emitida pelo imperador Dom Pedro II, no entanto esse tipo de dispositivo foi
negado a Francisco sendo a pena de morte por enforcamento eminente. A pena deveria ser
executada por enforcamento na qual se seguia todo um ritual suplicante.
Com destaca o filosofo francês Michel Foucault tal tipo de condenação deveria
obedecer a três critérios principais: em primeiro lugar, produzir certa quantidade de
sofrimento que se possa, se não medir exatamente, ao menos, apreciar, comparar e
hierarquizar; fazendo parte de um ritual46. Buscava-se ainda um elemento na liturgia punitiva,
e que obedece a duas exigências, em relação à vítima, ele deve ser marcante: destina-se a [...]
tornar infame aquele que é a vítima. [...] e pelo lado da justiça que o impõe, o suplício deve
ser ostentoso, deve ser constatado por todos, um pouco como seu triunfo47.
O “jornal do Penedo” de 20 de Abril de 1876 publicou a seguinte nota acerca da
aplicação da pena; “Execução e pena de morte: Tendo sido confirmada pelo poder moderador,
a sentença que condenou a pena última o escravo que, em dia do ano passado, assassinou seus
senhores na cidade do Pilar.”48 O cenário escolhido para execução foi o Sítio Bonga, onde a
Sra. Josefa Martha de Lima fora morta, em 28 de abril de 1874, e lá aconteceu a montagem da
322
forca, cuja construção ocorreu às vésperas do enforcamento49 sendo instituído ainda o padrão
da que possuía uma escada de 13 degraus, posto rígido e firme, alçapão testado inúmeras
vezes (sempre pelo carrasco), patíbulo de 1,80m.50
Montado então o cenário e seguindo todo o ritual punitivo o escravo Francisco fora
conduzido pela cidade afora, sem o desapego em momento algum da ritualística típica desses
eventos, quando o poder público e o Estado mostravam toda uma arquitetada exibição dos
rigores das leis estatais. Finalizando o ritual o escravo ficou em pé na forca, com a corda no
pescoço com o nó corrediço e a ponta pressa fortemente ao instrumento de suplício. O juiz
deu a ordem ao oficial, ele fez o sinal e rufou o tambor. O condenado corajosamente não

fuxica a seu senhor, a sua mulher, as descendentes ou ascendentes, que em sua companhia mora administrador
feitor e ás suas mulheres, que com ele viverem”. Artigo 1, Código criminal de 1835. Presidência da República
Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos. Acesso em: 04 de março de 2015.
46
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis: Vozes,
1987. pp.32-33
47
Idem.pp.32-33.
48
Jornal do Penedo, Penedo, p.15 20 de Abr. 1876.
49
SORENTINO, Tavares Cleidosn. O último enforcamento no Brasil: a derrocada do escravo, Maceió. 2013.
p.15.
50
Idem.p.3.
esperou ser empurrado pelo carrasco51 e em 1876 às 11h e 30min, exatos 2 anos transcorridos
do crime52 Francisco foi executado. Depois da aplicação da pena foi cavado pelos próprios
escravos presentes, muitos oriundos de cidades circunvizinhas, uma cova onde foram jogados
os restos mortais de Francisco dando assim fim ao suplício do condenado. A clemência foi
negada a Francisco, a pena de morte confirmou a eficácia da lei 10 de junho de 1835 como
caráter punitivo e exemplificar para escravos no contexto do Brasil império.
A pós a data de 1876 não se conhece outro tipo de punição semelhante, ao
enforcamento do escravo Francisco ocorrido na Cidade do Pilar fato que confirma a hipótese
de que este punição suplicante foi à última execução penal do Brasil como punição aos crimes
de escravos. Passados treze anos com a criação da constituição de 188953 a primeira
republicana, aboliu juridicamente este tipo de pena, chegava ao fim dois séculos de
enforcamentos, e outras punições contra escravos insurgentes, sujeitos históricos que lutaram
contra o regime social em que estavam submetidos.
Porem, apesar deste tipo de instrumento de controle ter sido extinto do Brasil no início
da república cabe frisar que apesar de avançar no que se refere aos direitos penais, a lei ainda
não se aplica igualmente a todos, assim sentimos na pele a força da divisão social que ainda 323
há tratando-se da parcela mais pobre da população, e sentimos ainda mais esta divisão
tratando-se da cor da pele de cada indivíduo. O último enforcamento no Brasil traz consigo
toda uma carga simbólica que supera o simples fato em si 54. Sua ocorrência em Alagoas
denota, em analogia ao quadro social da atualidade, que neste Estado as coisas ruins teimam
em se manter e sempre se resolvem em último lugar, já que o modelo econômico, com
prevalência da cana-de açúcar55 os castigos e tormentos infligidos aos escravos não
constituíam atos isolados de puro sadismo dos amos e feitores, mas sim uma necessidade
imposta irrecusavelmente pela ordem escravista local56.

Referências

51
LIMA Júnior, Félix. Última Execução Judicial no Brasil. Maceió: EDUFAL, 1979, p.89.
52
Idem.p.89.
53
Desde a proclamação da República brasileira fato ocorrido em 1889, o Brasil não utiliza a pena de morte para
crimes civis. Assim o nosso país foi o segundo nas Américas a abolir a pena de morte por crimes comuns, sendo
precedido apenas pela Costa Rica, fato ocorrido 1859. HOLANDA, pessoa, Isabele. A pena de morte no Brasil.
Revista âmbito jurídico.
54
SORENTINO, Tavares Cleidosn. O último enforcamento no Brasil: a derrocada do escravo, Maceió. 2013.
p.15.
55
Idemp.15.
56
FREITAS, Décio. Palmares: A guerra dos escravos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 33.
Documentais
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Deputados, 1982.
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Deputados 1982.
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Jornal do Penedo, Penedo, p.15 20 de Abr. 1876.
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ADMINISTRAR E
DEFENDER: PAPÉIS
DAS CÂMARAS
MUNICIPAIS NA
AMÉRICA
PORTUGUESA (SÉC.
XVI E XVII).

SANDRIANO JOSÉ
DA SILVA

MESTRANDO (UFPE)
Tendo chegado à costa litorânea do que hoje é o Brasil, em 1500, os lusitanos
demoraram a dedicar atenção às terras recém-descobertas. Conforme nos informa Boxer,
nessa época os portugueses estavam empenhados no comércio com a Índia, na Ásia, e no ouro
da Guiné (Mina) e nas guerras com o Marrocos, na África.1 Todos esses territórios cabiam a
Portugal de acordo com o Tratado de Tordesilhas, firmado entre Portugal e Castela e
ratificado pelo papa, em 1492. Esse tratado "dividiu o mundo com uma linha demarcatória de
polo a polo localizada a 370 léguas a oeste (entre 48º W e 49º W) do arquipélago de Cabo

327
Verde. O reino de Castela poderia explorar, comercializar e conquistar a oeste dessa linha,
enquanto Portugal a leste dela". 2 No entanto, outras nações europeias, a citar a França e a
Inglaterra, e posteriormente os Países Baixos, rechaçaram o tratado, e logo se tornariam uma
ameaça aos domínios ibéricos, em especial aos lusos, travando uma intensa disputa no
Ocidente e no Oriente com os portugueses. Era necessário assim, organizar um sistema
administrativo e defensivo que permitisse a exploração dos territórios conquistados e evitasse
as invasões estrangeiras.
Se por um lado, "a construção de feitorias fortificadas ao longo do litoral", num
primeiro momento, "aliava o objetivo de exploração mercantil através da extração e do
comércio do pau-brasil, com o de resguardar o território da concorrência estrangeira". 3 Por
outro, conforme nos informa Ab'Saber, "as feitorias estabelecidas na costa pelos portugueses
durante as três primeiras décadas, não conseguiram deixar traços concretos de sua presença na
4
colonização". Para ele, "a verdadeira colonização se iniciou com a fundação de vilas e

* O autor é mestrando em História pela Universidade Federal de Pernambuco.


1
BOXER, C. O Império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 98.
2
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Histórias do Atlântico português. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 91.
3
SALGADO, G. (coord.). Fiscais e meirinhos: A administração no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985, p. 48.
4
AB'SABER, A. N. Fundamentos geográficos da história brasileira. In: AB’SABER, A. N.; [et al.]. A época
colonial, v. 1: do descobrimento à expansão territorial. Direção de Sérgio Buarque de Hollanda. 11ª ed. t.1; v. 1.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000, p. 69.
cidades em pontos privilegiados da costa brasileira, as primeiras ligadas à iniciativa dos
donatários e as últimas erigidas pela ação direta da administração portuguesa". 5
Dessa forma, a partir da terceira década é que a presença portuguesa se dará de forma
mais acentuada, inclusive com a presença permanente de colonos. Uma vez que, para que os
desejos mercantilistas se realizassem, era preciso uma maior ocupação do território. Inclusive,
"a esperança de ouro e prata só se tornaria possível com a posse do território." 6
Nesse sentido, no início da década de 1530, como podemos ver em Boxer e Russell-
Wood, a Coroa portuguesa procurou desenvolver uma colonização mais sistemática,
dividindo a colônia americana em lotes de terras, as capitanias, e as distribuindo entre doze
fidalgos donatários; e em seguida, em 1548, o rei d. João III instituiu o Governo Geral, tendo
no ano seguinte sido enviado ao Brasil seu primeiro governador-geral, o que "desencadeou o
processo de construir uma capital, arregimentar defesas, instaurar um governo civil e
eclesiástico e promover migração, colonização, agricultura, evangelização e 'pacificação' de
ameríndios".7

328
No tocante ao aspecto jurídico-administrativo, o funcionamento das capitanias
hereditárias foi regulamentado através da carta de doação e do foral, passados,
respectivamente, em 10 de março e 24 de setembro de 1534, ao capitão e donatário
da capitania de Pernambuco, Duarte Coelho. Ambos constituem documentos
fundamentais quanto à jurisdição e aos privilégios concedidos aos donatários da
Coroa, além de representar o esboço da organização de alguns aspectos
administrativos na Colônia, quais sejam: a aplicação da lei (Justiça), a cobrança de
tributos e fiscalização do comércio (Fazenda) e a manutenção da ordem interna, bem
como a proteção contra o concorrente externo (Defesa). 8

Vemos aí que o próprio sistema donatarial de capitanias obedecia a lógica de


multiplicidade de funções, a capitania "seria um estabelecimento militar e econômico, voltado
para a defesa externa e para o incremento de atividades capazes de estimular o comércio
9
português". É importante ressaltar que embora a divisão do Brasil em capitanias tenha
caráter de renovação, de acordo com Prado, esse sistema já era praticado em outros domínios

5
Idem, p. 11.
6
FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3.º ed. São Paulo: Globo, 2001, p.
126.
7
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Histórias do Atlântico português, op. cit., p. 102. Ver também BOXER, C. O
Império marítimo português, 1415-1825, op. cit., pp. 100-101.
8
SALGADO, G. (coord.). Fiscais e meirinhos, op. cit., p. 50.
9
FAORO, R. Os donos do poder, op. cit., p. 139.
lusos, dessa forma, prendia-se a um modelo anterior a sua própria decretação em 1534 pelo rei
de Portugal, d. João III. 10
Ainda de acordo com Prado, "a distribuição de dádivas territoriais no Brasil tornava-se
destarte, recompensa a funcionários, assim como suposta frutuosa aplicação de capitais para
11
os que se tinham enriquecido no Oriente." E ainda que, "no mesmo sentido propiciava
aparente generosa mercê a personagens alvos de galardões pelo Paço Real, possuidores de
12
meios para arrotear as glebas que lhes ofereciam." Essa doação consistia em mercê, pois,
"os cargos e as terras promoviam ascensão social, [e] era ainda forma pública do monarca
13
reconhecer os feitos de seus súditos." Inclusive, de acordo com Cunha, uma das mais
importantes tarefas de governo no Antigo Regime era o "direito de nomeação de pessoas para
o exercício de funções da mais variada índole que corria a para com o desenvolvimento de um
aparato administrativo e com a necessária estruturação de hierarquias e relações de
subordinação política." 14
Inclusive, ao donatário, além de exercer o comando militar, fiscalizar o comércio,
aplicar ou delegar o cumprimento da lei nas terras de sua jurisdição, "cabia-lhes, ainda, a

329
nomeação de algumas autoridades administrativas, tais como o ouvidor, para zelar pelo
cumprimento da lei, os tabeliães do público e do judicial, para dar validade legal aos atos, e os
alcaides-mores, para garantir a defesa da capitania".15
Contudo, nem todos poderiam ser nomeados. Havia normas na metrópole e na colônia
que impediam que cristãos e escravos negros assumissem postos oficiais. Mas eles não eram
os únicos. "Os cristãos-novos e os escravos negros não eram os únicos indivíduos em relação

10
Prado também chama a atenção para o uso do termo hereditária. Segundo ele, "contrariando o que por longo
tempo foi admitido, sugerido pelo temo "hereditário", o decreto não instaurava feudos nas ilhas atlânticas e no
continente americano. Este aspecto somente apareceria mais tarde, nos vastos latifúndios de senhores de engenho
e fazendeiros de gado, estabelecidos em autarquias compostas por casa-grande, senzala e edificações atinentes à
faina produtora, onde o dono, erigido em patriarca, dominava o feudo em que lhe coubera por herança ou esforço
próprio, rodeado da família, afins, clientela e servos, distante de outros personagens parecidos, a léguas de
empresas agrícolas e povoados, onde se repetiam os mesmos característicos, com iguais aspectos e
consequências". Cf. PRADO. O regime das capitanias. In: AB’SABER; [et al.]. A época colonial, v. 1, op. cit., p.
96.
11
PRADO. O regime das capitanias. In: AB’SABER; [et al.]. A época colonial, v. 1, op. cit., p. 97.
12
Idem, p. 97.
13
RAMINELLI, R. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distância. São Paulo: Alameda, 2008,
p. 21.
14
CUNHA, M. S. da. Governo e governantes do Império português do Atlântico (século XVII). In: BICALHO,
M. F.; FERLINI, V. L. A. Modos de governar: ideias e práticas políticas no império português, séculos XVI-
XIX. São Paulo: Alameda, 2005, p. 71.
15
SALGADO, G. (coord.). Fiscais e meirinhos, op. cit., p. 50.
aos quais se fazia discriminação e este é um fato histórico facilmente verificável; e nem todos
os católicos apostólicos romanos eram, de modo algum, elegíveis para os postos oficiais." 16
Os principais postos oficiais de que se falam eram os de comando das câmaras
municipais. As câmaras municipais eram órgãos colegiados, que respondiam pela direção da
menor divisão administrativa da Colônia, o município ou termo. De acordo com Graça
Salgado, a principal importância das câmaras vem do fato de que elas eram dispersas pelo
território, ao contrário dos governos das capitanias e do governo geral, que ficavam
concentrados na cabeça da capitania e da colônia, respectivamente. Vindo daí o caráter
autônomo das câmaras municipais, "graças às dificuldades práticas em disseminar aquela
17
ordem administrativa por todo o território". Perceberemos ainda que, elas tinham um
modelo quase que padrão para a organização da administração local de todo o território da
metrópole portuguesa e das colônias. Mas sua composição poderia variar de acordo com a
18
conjuntura do espaço em que estava inserida. De acordo com Bicalho, as câmaras
municipais foram "instituições fundamentais na construção e na manutenção do Império
ultramarino" português. Elas se constituíram ainda "nos pilares da sociedade colonial

330
portuguesa desde o Maranhão até Macau, pois garantiam uma continuidade que governadores,
bispos e magistrados passageiros não podiam assegurar". 19
As câmaras ultramarinas constituíram, assim, umas das bases da sociedade colonial
portuguesa, sendo por isso, instituições fundamentais na construção e manutenção do Império
ultramarino luso. Elas se inserem na tentativa da coroa de prover uma administração mais
efetiva para suas colônias, no caso mais específico do Brasil, juntamente com a implantação
do sistema de capitanias hereditárias, e em seguida com a criação do governo geral, sendo que
elas corresponderiam a municipalidade do poder.
Sua existência nas colônias, por sua vez, era na verdade uma reprodução do que podia
ser visto em Portugal, que além de ser dividido administrativamente em seis províncias ou
comarcas, tinha representantes nos municípios, entre os quais, juízes, vereadores,

16
BOXER. O Império marítimo português, 1415-1825, op. cit., p. 245.
17
SALGADO, G. (coord.). Fiscais e meirinhos, op. cit., p. 66.
18
Cf. SALGADO, G. (coord.). Fiscais e meirinhos, op. cit., p. 69. De acordo com Graça Salgado, "dentre as
várias instituições portuguesas transplantadas para estes lados do ultramar, a municipalidade colonial regia-se
pelas mesmas leis metropolitanas - as Ordenações -, que regulamentaram legalmente os concelhos em seu
funcionamento no Reino".
19
BICALHO, M. F. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO, J.; BICALHO, M. F. B.;
GOUVÊA, M. F. S. (org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 191.
procuradores e homens bons do local, que "reuniam-se em câmara, sempre que necessário
para tratar de assuntos de interesses comuns." 20

As câmaras eram formadas através de processo eleitoral, de que participavam, como


eleitores e candidatos aos cargos, apenas os 'homens bons' da localidade. As eleições
efetuavam-se a cada três anos e nelas eram escolhidos os que, durante um ano,
alternadamente, serviriam nos cargos de juízes ordinários [que até o final do século
XVII era o principal cargo da Câmara, constituídos em número de dois, sendo que
um deles acumulava a função de presidente da Câmara], vereadores, procuradores,
tesoureiros e juízes dos órfãos, este último em apenas alguns municípios. 21

A regulamentação desse sistema de eleições e organização municipal, por sua vez, era
regimentada pela Carta régia de D. João I (1391), seguida pelas Ordenações Alfonsinas
(meados do século XV), pelas Ordenações Manuelinas (1521) e também pelas Ordenações
22
Filipinas (1603), o que acabou dando um caráter quase uniforme a essas instituições. As
ordenações Alfonsinas, determinavam inclusive, as obrigações de cada um dos componentes
das câmaras. Os vereadores, por exemplo, eram obrigados, sob pena de multa, a está presente
nas reuniões da Câmara duas vezes por semana, às quartas e aos sábados. 23

As câmaras compunham-se ainda [além de um juiz, dois vereadores, e um 331


procurador] de alguns oficiais indicados pela vereação, como os almotacés,
responsáveis pela regularidade do abastecimento dos gêneros, pela fixação dos pesos
e medidas e pela vigilância dos preços. Os escrivães do judicial, ou simplesmente
escrivães da câmara, eram, ao contrário dos vereadores e almotacés, oficiais
remunerados, providos quer pela Coroa, quer pelos senhorios e, às vezes, pela
própria câmara. Sua nomeação poderia ser vitalícia e até hereditária. Foram,
juntamente com os juízes dos órfãos - responsáveis pelos inventários, partilhas e
administração dos bens dos órfãos -, os únicos cargos concelhios que a Coroa
vendeu em certas ocasiões. 24

Com relação as câmaras ultramarinas, embora os direitos políticos dos colonos terem
sido resguardados, e equiparados aos dos portugueses residentes no reino, as regalias
municipais eram restringidas pela intervenção da autoridade do donatário da capitania onde a
25
vila estivesse assentada , isso porque a prerrogativa mínima de se ter a existência de uma

20
CAMPOS, P. M. As instituições coloniais: Os antecedentes portugueses. In: AB'SABER; [et al.]. A época
colonial, v. 1, op. cit., p. 23.
21
SALGADO, G. (coord.). Fiscais e meirinhos, op. cit., p 70.
22
Cf. BICALHO. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA. O
Antigo Regime nos trópicos, op. cit., p. 191; e CAMPOS. As instituições coloniais: Os antecedentes portugueses.
In: AB'SABER; [et al.]. A época colonial, v. 1, op. cit., p. 23.
23
CAMPOS. As instituições coloniais: Os antecedentes portugueses. In: AB'SABER; [et al.]. A época colonial,
v. 1, op. cit., p. 23.
24
Apud BICALHO. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. In: FRAGOSO; BICALHO; GOUVÊA.
O Antigo Regime nos trópicos, op. cit., p. 192.
25
PRADO. O regime das capitanias. In: AB’SABER; [et al.]. A época colonial, v. 1, op. cit., p. 99.
câmara era a existência de uma vila, caso fosse fundada pela iniciativa do donatário, ou
cidade, caso fosse fundada pela ação direta da Coroa portuguesa 26. Essas relações estavam
reguladas pelas Cartas de doação e pela foral, as quais advogavam os direitos administrativos,
jurídicos e militares do donatário.
É importante salientar que, de acordo com Prado, no acertado entre o rei e o capitão
donatário, ou seja, pelas cartas mencionadas, que regulavam seus direitos e obrigações do
donatário, o rei dava a terra ao donatário para ele administrá-la como província e não como
propriedade privada. 27
Entretanto, Pagano de Mello, afirma que,

É oportuno lembrar que as Câmaras se configuravam como o espaço privilegiado de


negociação com o poder real. Nesse espaço se viabilizava concretamente o pacto,
isto é, a relação bilateral, naturalmente assimétrica pela diferença de escala, de troca
entre o compromisso de obediência e fidelidade dos súditos à Coroa, e a proteção e
manutenção das propriedades e privilégios da elite local, os agentes políticos da
sociedade colonial. 28

Pensamento compartilhado por Bicalho que afirma que "as câmaras municipais
ultramarinas foram igualmente órgãos fundamentais de representação dos interesses e das
29
332
demandas dos colonos". Essa evidência se dá entre outras coisas pelo "significativo lugar
ocupado pelas Câmaras na sociedade colonial, visto 'que constituíam a verdadeira e quase
única administração da colônia', o que, consequentemente, lhes conferia considerável poder
de influência e prestígio, tanto a nível local, quanto em sua relação com o poder central, a
Coroa." 30
Dentro dessa noção se dava também uma das atribuições mais relevantes das Câmaras
ultramarinas a nível local, que seria o de arrecadação e administração das rendas e impostos
pagos pelos colonos.31 De acordo com Bicalho, "as Câmaras coloniais foram [...] órgãos
fundamentais no gerenciamento de boa parcela das rendas - tributos e donativos - coloniais".32

26
AB'SABER. Fundamentos geográficos da história brasileira. In: AB’SABER; [et. al.]. A época colonial, v. 1,
op. cit., p. 69.
27
PRADO. O regime das capitanias. In: AB’SABER; [et al.]. A época colonial, v. 1, op. cit., p. 99.
28
MELLO, C. F. P. de. A disputa pelos ‘principais e mais distintos moradores’- As Câmaras Municipais e os
Corpos Militares.
29
BICALHO, M. F. As Câmaras Municipais no Império Português: o exemplo do Rio de Janeiro.
30
MELLO, C. F. P. de. A disputa pelos ‘principais e mais distintos moradores’, p. 4.
31
De acordo com Varnhagen, "os rendimentos principais eram os dízimos. Embora estes, segundo o direito
canônico, pertencessem a Igreja, eram administrados pela Coroa, obrigando-se esta a manter oculto, em vitude
de concordatas com a Santa Fé." Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolfo. História das lutas com os holandeses no
Brasil desde 1624 a 1654. 2. ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2002, p.52.
32
Apud MELLO, C. F. P. A disputa pelos ‘principais e mais distintos moradores', p. 2.
De acordo com Graça Salgado, no entanto, "é interessante observar que, das rendas
municipais, apenas dois terços pertenciam à Câmara, sendo o restante destinado,
33
obrigatoriamente, à defesa e segurança das vilas".
Sobre isso, Bicalho afirma que,

[...] Cabia-lhes [no entanto] arcar quase que inteiramente com os custos da defesa,
recaindo sobre suas rendas - ou sobre as rendas por elas arrecadadas - a
obrigatoriedade do pagamento dos soldos das tropas e guarnições, a construção e o
reparo das fortalezas, o apresto de naus guarda-costas contra piratas e corsários, e
manutenção de armadas em situações especiais e momentos de perigo, a
responsabilidade pelas obras públicas e outros melhoramentos urbanos. 34

Essa será uma das principais prerrogativas das câmaras ultramarinas, fazer o
direcionamento dessas verbas, aplicando-as nas obras de defesa e proteção da colônia, bem
como de manter tropas armadas com a mesma função defensiva. Pressupõe-se que a defesa se
relaciona também a disponibilidade de recursos para manter essas estruturas, sendo esta talvez
a maior dificuldade a ser enfrentada. Em carta enviada ao rei de Portugal em 20 de dezembro
de 1546, e em algumas das poucas cartas enviadas ao rei que se chegou até nós, por exemplo,
Duarte Coelho fala da sua falta de recursos para tratar da defesa e questiona ao rei “quem teria
35
333
tanto dinheiro para pólvora e pelouros, artilharia e armas” , além disso, ele trata da falta de
homens poderosos para resistir, amparar e proteger a produção, o que tem de ser feito por ele,
visto que ao contrário de homens habilidosos para a defesa, havia os degredados que de
acordo com o donatário só causavam danos ao que ele já havia construído, inclusive com
relação ao crédito que ele e seus colonos haviam adquirido com os indígenas. 36
Ocorre que, de acordo com Lacroix, a Coroa também não tinha recursos suficientes
para a proteção colonial, a qual "se fazia combinando o poder naval garantido pela Coroa com
a defesa local, de responsabilidade da Colônia, com praças e efetivos oriundos dos seus
próprios recursos". Ainda assim a Coroa sequer disponibilizava as armadas, "além daquelas
para socorros, deixando na terra somente artilharia, munições e o mínimo de contingente". A
defesa local ficava dessa forma sob responsabilidade da colônia, que tinha de se defender com
seus próprios e escassos recursos. 37

33
SALGADO, G. (coord.). Fiscais e meirinhos, op. cit., p. 71.
34
Apud MELLO, C. F. P. A disputa pelos ‘principais e mais distintos moradores', p. 2.
35
MELLO, J. A. G.; ALBUQUERQUE, C. X.. Cartas de Duarte Coelho a El Rei. Recife: Imprensa Universitária
- UFPE, 1967, p. 88.
36
MELLO, J. A. G.; ALBUQUERQUE, C. X.. Cartas de Duarte Coelho a El Rei, op. cit., p. 89.
37
LACROIX, M. L. L. Jerônimo de Albuquerque Maranhão; guerra e fundação no Brasil Colonial. São Luís,
UEMA, 2006, p. 47-48.
Nesse mesmo sentido, Albuquerque e Veleda afirmam que,

As armas individuais, a munição, a própria artilharia, deveriam ser providenciadas


pelo capitão; a ele competia promover os meios de fazê-las chegar na capitania. Mas
os encargos, os custos com as armas, não competia apenas ao donatário; todo colono
era obrigado a dispor de arma e saber usá-la. Os sesmeiros, os donos das fábricas de
açúcar, estavam obrigados a dispor de meios (homens, armas, munições, estruturas
de defesa) para garantir a segurança de seus moradores. 38

Dessa forma os luso-brasileiros buscaram recorrer a “defesa local, a guerra terrestre


39
com soldados da terra e uma minoria de tropas portuguesas” . Contudo, “não havia
experiências e treinamentos militares nos efetivos. Não raro, os recrutas portugueses eram
40
incorporados à força” . Assim, "o sistema implantado não comportava um corpo de tropa
permanente, com treinamento militar. Cada colono, cada sesmeiro, cada povoador, cada
morador, representava parte da tropa de defesa. Todo aquele 'capaz' de pegar em armas,
41
estava obrigado a servir em tempo de guerra, sob o comando do capitão".
Nesse sistema militar “competia ao Capitão-donatário a defesa e o comando militar da
42
capitania” , sendo que o “chefe da milícia e em geral da administração era o Governador

334
43
Geral com assento na Bahia.” Isso porque "com o regimento das Capitanias Hereditárias
organizam-se as bases administrativas da defesa, mas com o Governo Geral, assume-se a
competência militar, de acordo com as determinações legais de 1548". 44

O Governador-Geral - caracterizado como funcionário militar – era a autoridade


máxima na defesa da colônia, tanto em questões internas, quantos aos assuntos
referentes às ameaças externas. [...] Em tese, era de sua competência a ajuda militar
as outras capitanias, tarefa esta que esbarrava na falta de recursos. 45

Quanto ao governo geral, instituído em 1548, temos que entre esses funcionários o
principal seria o governador-geral, tendo sido o primeiro deles, Tomé de Sousa, um "fidalgo
sisudo, de bom tino e entendimento, com experiências nos negócios ultramarinos", que pelo

38
ALBUQUERQUE, M.; LUCENA, V. Arraial Novo do Bom Jesus: consolidando um processo, iniciando um
futuro. Recife: Graftorre, 1997. p.61-62.
39
LACROIX, M. L. L. Jerônimo de Albuquerque Maranhão, op. cit., p. 48.
40
Idem, p. 49-50.
41
ALBUQUERQUE, M.; LUCENA, V. Arraial Novo do Bom Jesus, op. cit., p .61-62.
42
MIRANDA. Fortes, paliçadas e redutos enquanto estratégia de política de defesa portuguesa (o caso da
capitania de Pernambuco – 1654-1701), p.30.
43
ABREU, J. C. Capítulos de História Colonial (1500-1800) & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil.
5ª ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1963, p. 98.
44
MIRANDA. O sistema de defesa da barra do porto do Recife no século XVII. p. 89.
45
MIRANDA. Fortes, paliçadas e redutos enquanto estratégia de política de defesa portuguesa (o caso da
capitania de Pernambuco – 1654-1701), p.31.
Regimento que lhe concedeu esse posto, "torna-se governador da povoação de terras da Bahia
de Todos os Santos, como das 'outras terras da costa'", cabendo a ele também "dar favor e
ajuda às mais povoações, ministrar-lhes justiça e prover nas coisas que cumprissem ao serviço
de Sua Alteza e aos negócios da Real Fazenda e ao bem das partes". 46
Havia também, o ouvidor-mor, que embora encarregado especialmente dos assuntos
judiciais, que inclusive não eram de competência do governador-geral, de acordo com
Hollanda, também exercia "importantes funções de governo". Seu regimento, inclusive, que
hoje se encontra perdido, ainda segundo Hollanda fora dado independente do que trouxe o
governador-geral. Ocorre ainda que, "esses amplos poderes de que dispunha o ouvidor
podiam, eventualmente, dilatar-se ainda mais quando lhe acontecesse substituir o provedor-
mor, por falecimento ou qualquer impedimento deste." 47
O provedor-mor correspondia a outro cargo instituído para a administração do Brasil
nesse mesmo período. Segundo Hollanda, o cargo de provedor-mor era um cargo de
confiança do soberano e escalonado acima do ofício de contador, sendo ainda, mesmo no
48
Reino, um cargo de criação relativamente recente. Em suma sua função competia aos

335
assuntos fazendários (impostos e tributações), daí era responsável pela "fiscalização e revisão
das contas tomadas pelos contadores e escrivães", e ainda pelo "estabelecimento das casas da
Alfândega e dos Contos em cada capitania", onde se prestariam regularmente contas da
receita e despesa e se remeteriam os saldos. 49

Também era de competência do provedor-mor fiscalizar os armamentos e a


artilharia existentes ou necessárias nas capitanias e engenhos para defesa da terra;
despachar, estando em Salvador [a sede do governo-geral], os feitos que lhes fossem
encaminhados por apelação e agravo, e não o faria só, mas juntamente com dois
"letrados"; diligenciar, em geral, sobre a cobrança do dízimo; escolher, ou, mas
capitanias, fazer escolher pelas pessoas competentes e autorizadas, "alealdadores"
para os açúcares, que examinassem cuidadosamente o produto antes de sair este da
casa de purgar, de modo eu fosse sempre "da bondade e perfeição que deve ser";
inventariar o espólio dos defuntos e adotar a respeito uma série de providências
estipuladas previamente nos regimentos; levantar cadastros de todas as cartas de
sesmaria, fiscalizando o aproveitamento delas no prazo de cinco anos que era o da
obrigação (...). 50

46
HOLLANDA, S. B. de. A instituição do governo-geral. In: AB'SABER; [et. Al]. A época colonial, v. 1, op.
cit., 108-109.
47
HOLLANDA, S. B. de. A instituição do governo-geral. In: AB'SABER; [et. Al]. A época colonial, v. 1, op.
cit., 109-110.
48
Idem, p. 110.
49
Idem, p. 110-111.
50
Idem, p. 112.
Observa-se aí que juntamente com os assuntos fazendário, os seja, a arrecadação de
impostos e tributos para a Coroa, o provedor-mor também era encarregado da fiscalização e
provimento da defesa da terra. Essa relação entre essa funções se dão devido basicamente ao
fato de que a defesa da terra se faz necessária para sua contínua posse e exploração, o que leva
mais rendimentos, os quais estavam basicamente relacionados a produção e ao comércio do
açúcar, ficando o provedor-mor também responsável pela fiscalização dessas atividades. De
acordo com Hollanda, "nomeou-se ainda segundo o exemplo já adotado na Índia, um capitão-
mor da costa", que seria responsável pela defesa territorial.
De acordo com Graça Salgado, "a estruturação da defesa no período colonial
compreendia a tropa regular ou de primeira linha, composta de oficiais pagos - em sua
maioria regimentos vindos de Portugal - e de tropas auxiliares, ou seja, milícias e corpos de
51
ordenanças". Ainda de acordo com Graça Salgado, os corpos de ordenanças foram
regulamentados ainda no século XVI pelo Regimento Geral das Ordenanças de 10 de
dezembro de 1570 e pela provisão de 15 de maio de 1574. Eles, os corpos das ordenanças,
"eram formados pela população local e encarregados da manutenção da ordem interna das
capitanias, não recebendo pagamento pelo desempenho de tal função". 52
Ocorre que, embora date de 1570 o Regimento Geral das Ordenanças, que continha a
336
primeira lei que organizava a proteção da colônia, apenas em 1640 foi criado o Conselho de
Guerra, de acordo com Miranda, o primeiro órgão de administração militar, que era
"destinado a definir as estratégias militares, ao mesmo tempo em que procurava reorganizar o
ensino de engenharia militar". 53
Sobre isso, Graça Salgado afirma que

No aspecto militar, por decreto de 11 de dezembro de 1640, criou-se o Conselho de


Guerra, que teve seu regimento baixado em 22 de dezembro de 1643. A sua função
era tratar das questões referentes à defesa nacional, ou seja, a organização das tropas
e das armadas, a nomeação dos oficiais de patente, as fortificações e o orçamento de
guerra. Atuava ainda como tribunal superior das causas militares. Até então não
existira qualquer órgão administrativo encarregado desta área. 54

Além disso, de acordo com Lacroix, “as unidades militares regulares, regimentos de
infantaria e de artilharia somente implantados a partir de 1625, funcionaram de maneira
precária, pela falha na remessa dos reforços enviados de Portugal." Ocorre ainda que "essas

51
SALGADO, G. (coord.). Fiscais e meirinhos, op. cit., p 97.
52
SALGADO, G. (coord.). Fiscais e meirinhos, op. cit., p 97-98.
53
MIRANDA. O sistema de defesa da barra do porto do Recife no século XVII. p. 89.
54
SALGADO, G. (coord.). Fiscais e meirinhos, op. cit., p. 43.
condições obrigavam ao recrutamento compulsório, inclusive de degredados, sem disciplina e
treino militar”. 55 De acordo, com Varnhagen, a "tropa de linha, ou de presídio, como então se
lhe chamava, havia pouquíssimas", e só depois da guerra contra os holandeses é que vai
chegar a maiores proporções.56

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BICALHO, M. F.; FERLINI, V. L. A. Modos de governar: ideias e práticas políticas no
império português, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2005.

55
LACROIX. Jerônimo de Albuquerque Maranhão; guerra e fundação no Brasil Colonial, op. cit., p. 58-59.
56
VARNHAGEN, F. A. História das lutas com os holandeses no Brasil desde 1624 a 1654. 2. ed. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2002, p.52.
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OS DEPUTADOS DA
ASSEMBLEIA
PROVINCIAL DE
PERNAMBUCO NA
DÉCADA DE 1850.

THIAGO SOARES DE
MACEDO SILVA

MESTRANDO (UFPE)
Esse trabalho teve como intuito abordar a Assembleia Provincial de Pernambuco e sua
Elite durante a década de 1850. Ele procura identificar essa Elite, que estando atrelada à
política de Pernambuco, conseguiu defender os interesses provinciais ante o governo da
Província. Tal pesquisa foi possível através de um levantamento de quem eram os deputados
provinciais e seu perfil ocupacional e social, e analisando o cotidiano da Assembleia,
destacando os principais assuntos discutidos e a relação entre seus integrantes e o governo.

340
Para fazer o levantamento dos Deputados, consultamos as folhas de Algibeira e de
almanaques administrativos, que se encontram no Arquivo Publico Estadual Jordão
Emerenciano (APEJE). Para o cotidiano da Assembleia foram consultados os periódicos, O
Liberal e O Diário Pernambucano, encontrados no Laboratório de Pesquisa e Ensino
Histórico da UFPE (LAPEH). Infelizmente não contamos com os Anais da própria
Assembleia na nossa pesquisa, restando apenas as noticias da imprensa para resgatar a história
das sessões dessa instituição.
Em 1834, foi lançado um conjunto de Reformas Políticas pelo governo liberal, que
representava maioria no Parlamento, com o intuito de descentralizar a figura do Estado na
Perspectiva nacional. Uma das instituições criadas por esse Ato Adicional foi a Assembleia
Provincial, que visava delegar certo poder e decisão de escolha à localidade, permitindo que
os interesses locais sejam abordados em âmbito provincial antes de serem submetidos à
decisão do Governo, representado pelo Presidente da Província. Ficava a cargo dessa
assembleia, controlar os gastos da província e das cidades, fiscalizar as rendas, nomear cargos
públicos entre outras atribuições, sendo suas decisões sujeitas ao Presidente da província, que
as podia vetar ou não. Após o Ato Adicional, os liberais perdem sua maioria no Parlamento e
começa a surgir um grupo de deputados que começou a fazer ampla oposição ao projeto do
Ato Adicional e suas instituições, tendo como objetivo desfazer as reformas realizadas pelos
liberais, restringindo as medidas descentralizadoras do Estado. Esse grupo cria um
movimento conhecido como Regresso, que conseguindo uma maioria na câmara dos
deputados, após muitas discussões e votações, acaba por derrotar os remanescentes liberais,
finalizando com muitas das reformas que desembocaram no Ato Adicional. Contudo, mesmo
com centralização, as assembleias provinciais foram mantidas, o que possibilitou a
preservação da descentralização na administração provincial. De acordo com o Ato Adicional,
a Assembleia teria muitos poderes ante a Província, sendo uma instituição que pudesse de fato
diminuir a ação do governo imperial nas questões provinciais. Contudo, essa instituição não
exerceria o governo da província, função esta reservada ao Poder Executivo na figura do
Presidente da Província, transformando a tão almejada autonomia provincial dos Moderados
em uma autonomia parcial, que colocaria em contraste a força do executivo e do Legislativo
dentro da província.
No momento em que a Assembleia ganhou autonomia para coletar uma serie de
impostos para usar sua renda para assuntos regionais, o nível de ação desta instituição
aumentou, podendo se utilizar das verbas provinciais para melhorar a infraestrutura da
província e aumentar suas possibilidades de negócios e de ganhos. Contudo, isso limitava a
província a poder investir em seu território os recursos coletados na província, ou seja, o
dinheiro que a província disporia para realizar seus projetos estaria atrelado à riqueza
341
produzida dentro da província. O que pode ter sido algo de grande vantagem para uma
Província como São Paulo, como cita Miriam Dolhnikoff, que através das rendas do café e do
açúcar pode criar uma rede de estradas para melhorar o escoamento da produção, em
Pernambuco, a Assembleia não conseguiu os fundos necessários para modernizar a produção
açucareira que necessitava de investimento para continuar competitivamente no mercado.

A Assembleia Provincial de Pernambuco possuía em 36 deputados eleitos a cada dois


anos (A partir de 1858, eram eleitos 39 deputados), ao contrário da Câmara dos Deputados,
cujas eleições se davam de quatro em quatro anos. Quem ocupava essas cadeiras eram
integrantes das elites locais, que conseguiam ter apoio suficiente para se eleger dentro da
Província. Tais elites iriam levar as necessidades locais e regionais a um âmbito provincial,
onde seria discutida com o Presidente da província, que representavam o poder central nas
províncias, sendo esse chefe do executivo indicados para o cargo pelo ministério. Uma
minoria dos deputados provinciais acumulava também mandato na Câmara dos Deputados, o
que a tornava também articuladores dos interesses locais na Corte, no Parlamento Imperial.
Abaixo segue levantamento dos deputados da Assembleia Provincial de Pernambuco durante
a década de 1850, juntamente com o numero de legislaturas que estes deputados registraram
em vida.

TABELA 1

Deputados Provinciais Legislaturas na década Numero de


de 1850 legislaturas que
participou
Abílio José Tavares da Silva (Dr.) 1856 1

Álvaro Barbalho Uchôa Cavalcanti 1852 9

Antonio Alves de Souza Carvalho (Dr.) 1854, 1856 2

Antonio Baptista Gitirana 1850 4

Antonio Carneiro Machado Rios 1850 4

Antonio dos Santos de Siqueira Cavalcanti 1854, 1856 7


(Dr.)
Antonio Epaminondas de Mello (Dr.) 1854, 1856, 1858 4

Antonio Francisco Gonçalves Guimarães 1856, 1858 3


342
(Vigario)
Antonio Francisco Pereira de Carvalho 1852 1

Antonio José de Oliveira (Major) 1850, 1852, 1854, 1856, 8


1858
Antonio Luiz Cavalcanti de Albuquerque 1856, 1858 2
(Dr.)
Antonio Marques de Amorim (Negociante) 1856 2

Antonio Peregrino Maciel Monteiro 1852 3

Aprigio Justiniano da Silva Guimarães 1854 2

Augusto de Souza Leão (Dr.) 1856, 1858 13

Augusto Frederico de Oliveira (Dr.) 1852, 1854, 1856, 1858 5

Barão de Camaragibe (Pedro Francisco de 1850, 1852, 1854, 1856, 12


Paula Cavalcanti de Albuquerque) 1858
Barão de Capibaribe (Manoel de Souza 1850, 1852 5
Teixeira)
Barão de Suassuna (Francisco de Paula 1850 6
Cavalcanti de Albuquerque)
Bento José da Costa (Dr.) 1856 1

Caetano Estelita Cavalcanti Pessoa (Dr.) 1852, 1856 2

Caetano José da Silva Santiago 1854 1

Caetano Xavier Pereira de Britto (Dr.) 1854, 1856, 1858 8

Cosme de Sá Pereira (Dr.) 1852, 1854, 1856, 1858 6

Cristovão dos Santos Cavalcanti (Dr.) 1858 1

Delfino Augusto Cavalcanti de Albuquerque 1858 2


(Dr.)
Domingos de Souza Leão 1852 2

Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira 1850 2

Fabio Vellozo da Silveira 1850 1

Florencio José Carneiro Monteiro 1852 1

Floriano Correa de Brito 1850 3

Francisco Alves da Silva 1852 1 343


Francisco Carlos Brandão (Dr.) 1854, 1856, 1858 4

Francisco de Assis Oliveira Maciel 1852, 1854 2

Francisco de Barros Barreto (Dr.) 1858 1

1858 1
Francisco de Caldas Lins (Dr.) (9º distrito)
Francisco de Paula Baptista (Dr.) (10º 1850, 1852, 1854, 1856, 6
distrito) 1858
Francisco de Paula Rodrigues de Almeida 1850 1

Francisco do Rego Barros Barreto 1850, 1852, 1854 4

Francisco João Carneiro da Cunha 1850, 1852 8

Francisco Peixoto Duarte (Padre) (11º 1858 1


distrito)
Francisco Raphael de Mello Rego (Dr.) (11º 1850, 1852, 1854, 1858 7
distrito)
Francisco Rodrigues Sette 1850 1
1852, 1854 4
Francisco Xavier Paes Barreto
1856 2
Ignacio de Barros Barreto (Dr.)
Ignacio Joaquim de Souza Leão (Dr.) (8º 1850, 1852, 1856, 1858 7
distrito)
Jeronymo Martiniano Figueira de Mello 1852, 1854, 1856 5
(Desembargador)
João Alfredo Correa de O. Andrade (Dr.) (5º 1858 3
distrito)
João de Caldas Ribeiro Campos 1850 1

1850, 1856 4
João de Souza Reis (Dr.)
João do Rego Barros Falcão 1850, 1852 2

João Floripes Dias Barreto 1850 2

1854 3
João Francisco da Silva Braga
João José Ferreira de Aguiar 1850, 1852, 1854 6

1852 1
João Valentim Villela 344
1852 2
Joaquim de Aquino Fonseca
1858 2
Joaquim de Souza Reis (Dr.) (13º distrito)
Joaquim F. de Mello Cavalcanti (Dr.) (5º 1858 1
distrito)
Joaquim Manoel Vieira de Mello 1850, 1852 4

Joaquim Pedro Barreto de Mello Rego (Dr.) 1858 6


(6º distrito)
1852, 1854, 1856, 1858 8
Joaquim Pinto de Campos (Padre)
Joaquim Pires Machado Portella (Dr.) (5º 1852, 1854, 1856, 1858 6
distrito)
1850, 1858 5
José Antonio Lopes (9º distrito)
José Cardozo de Queiroz Fonseca (Dr.) (3º 1850, 1858 2
distrito)
José Filippe de Souza Leão 1850, 1852 4

1854, 1858 2
José Francisco da Costa Gomes
José Ignacio Soares de Macedo 1850 1
1858 5
José Joaquim do Rego Barros (8º distrito)
1856 2
José Maria Freire Gameiro (Dr.)
1854 2
José Maria Moscovo da Veiga Pessoa
José Nicoláo Regueira Costa 1850 1

1850, 1852, 1854, 1856 9


José Pedro da Silva (Tenente)
1852 1
José Pedro Velloso da Silveira
José Quintino de Castro Leão 1850, 1852, 1856 6

1858 1
José Teixeira de Mello (Padre) (11º distrito)
1854, 1856 4
Leonardo Antunes Meira Henrique (Padre)
Leonardo Bezerra de Siqueira Cavalcanti 1850 3

Lourenço Francisco de Almeida Catanho 1850, 1854 4

Luiz de Albuquerque Martins Pereira. (Dr.) 1858 1


(10º distrito)
Luiz de Carvalho Soares Brandão (13º 1858 1 345
distrito)
1854, 1856, 1858 5
Luiz Filippe de Souza Leão (Dr.) (7º distrito)
Luiz Paulino Cavalcanti Vellez de Guevara 1850 1

1852 1
Manoel Antonio Martins Pereira
1854, 1856 2
Manoel Clementino Carneiro da Cunha (Dr.)
Manoel do Nascimento Machado Portella 1856, 1858 6
(Dr.)
1852 1
Manoel Firmino de Mello
Manoel Francisco de Paula Cavalcanti de 1850, 1858 11
Albuquerque
Manoel Joaquim Carneiro da Cunha (Dr.) (3º 1850, 1852, 1854, 1858 8
distrito)
1854, 1856 2
Manoel José da Silva Neiva (Dr.)
Marçal Lopes de Siqueira (Padre) (12º 1854, 1856, 1858 5
distrito)
1858 1
Paulo de Amorim Salgado (9º distrito)
Pedro Gaudiano de Ratis e Silva 1850 5

1850, 1854 3
Rodrigo Castor Albuquerque Maranhão
1856 3
Sabino Olegario Ludgero Pinho (Dr.)
1854, 1856, 1858 6
Sebastião do Rego Barros Lacerda (Dr.)
1854, 1856 2
Silvino Cavalcanti de Albuquerque (Dr.)
Theodoro Machado Freire Pereira da Silva 1854, 1856, 1858 4
Junior
1852 2
Umbelino Guedes de Mello
1852, 1854 2
Vicente Ferreira de Siqueira Varejão (Padre)
FONTE: Folhinhas de Algibeira dos anos de 1850, 1851, 1852, 1853, 1854, 1855 e 1856;
Folhinhas do Almanak Administrativo da Província dos anos de 1857, 1858 e 1859/
CAMPELLO, Netto. “História Parlamentar de Pernambuco”, Livraria Universal,
Recife, 1923

Note-se, como já informamos, que a Assembleia Geral ou Câmara dos Deputados


tinha entre seus membros, regularmente, alguns deputados províncias (uma minoria deles). A
Província de Pernambuco contava com treze assentos na Câmara temporária do Parlamento
346
Imperial. Através de pesquisa e levantamento de dados, foi possível perceber certo numero de
pessoas que conseguia acumular cadeiras tanto na Assembleia Provincial, quanto na Geral, o
que mostra que a elite provincial poderia chegar, e chegou, a ter expressão no âmbito
nacional, fazendo parte de instituição legislativa central de poder. Esse fato demonstra que as
elites provinciais e as elites imperiais não estavam tão separadas e distantes da de expressão
nacional, como por vezes se costuma afirmar na historiografia tradicional. Esses deputados
conseguiam conciliares os dois mandatos, dando atenção tanto aos negócios da Província
quanto aos da Corte, isso porque o período de sessões da Câmara era diferente do da
Assembleia provincial. Abaixo segue levantamento dos deputados representantes da Câmara
dos Deputados por Pernambuco que também acumulavam cadeiras na Assembleia Provincial,
referentes à década de 1850.

TABELA 2

Ano Representantes da Câmara dos Deputados por Pernambuco também deputados


provinciais
1850 Francisco de Paula Baptista
João José Ferreira de Aguiar

1852 Álvaro Barbalho Uchoa Cavalcanti


Antonio Peregrino Maciel Pinheiro
Augusto Frederico de Oliveira
Francisco de Paula Baptista
Jeronymo Martiniano Figueira de Mello
João José Ferreira de Aguiar

1854 Augusto Frederico de Oliveira


Francisco Carlos Brandão
Francisco de Paula Baptista
Francisco Xavier Paes Barreto
Jeronymo Martiniano Figueira de Mello
João José Ferreira de Aguiar
Joaquim Pinto de Campos

1856 Augusto Frederico de oliveira


Francisco Carlos Brandão
Francisco de Paula Baptista
Jeronymo Martiniano Figueira de Mello
Joaquim Pinto de Campos

1858 Barão de Camaragibe


Francisco Carlos Brandão
347
Joaquim Pinto de Campos

Fonte: Folhinhas de Algibeira dos anos de 1850, 1851, 1852, 1853, 1854, 1855 e 1856;
Folhinhas do Almanak Administrativo da Província dos anos de 1857, 1858 e 1859.

Cerca de 15% dos deputados gerais em 1850 eram também provinciais; 46% em 1852;
53% em 1854; 38% em 1856; e 23% em 1858. Fazendo um contraste com o estudo realizado
sobre a Assembleia Provincial da Bahia, realizado por Katia Mattoso1, mostra que apenas 32
de 135 deputados gerais não ocuparam uma vaga na assembleia provincial da referida
província.
A conciliação desses cargos era possível porque a Assembleia Provincial se reunia
apenas por alguns meses do ano, tendo as atividades da Câmara dos Deputados iniciadas com
o fim das atividades das Assembleias Provinciais. Mesmo com essa pequena duração, as
Assembleias provinciais ainda eram vistas como um órgão representativo dos interesses da
sociedade e muito ativo, havendo muito confronto entre os deputados e o Presidente da

1
MATOSSO, Kátia M. de Queirós. Bahia. Século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2ª edição, 1992, p. 271
Província, mostrando o contraste entre as posições dos delegados do poder local (provincial) e
o do Governo Central na província, os presidentes. Mesmo na década de 1850, quando as
bancas na Assembleia eram totalmente do partido da situação ocorreram conflitos entre os
deputados da província e a Assembleia, conforme aponta a pesquisa de nossa orientadora
Suzana Cavani Rosas, que observou que de 1851 a 1853 três presidentes foram duramente
combatidos na Assembleia pelos seus pares de partido. De um deles, Antonio Ribeiro, ela
considera:

“A briga interminável entre o presidente e seu partido prosseguiu na província sem que
Antônio Ribeiro alcançasse sequer uma vitória significativa sobre seus adversários. Pouco
antes de regressar à Corte, ele sofreria um último revés, agora na Assembleia Legislativa, ao
ver o seu pedido de aumento do contingente militar ser vetado. Ao término da votação, 17
deputados votaram contra e 11 favoráveis ao presidente31. Entre os que votaram contra
achavam-se parte dos deputados recém-eleitos para a nova legislatura da Câmara. Alguns
deles, inclusive, eram candidatos à reeleição. Na nova legislatura, longe estaria, a maioria da
bancada guabiru, de manter-se e de apoiar o ministério”.2

As relações entre a Assembleia e o Presidente da Província colocavam em contraste os


348
interesses regionais e da província, defendidos pelos deputados da Assembleia e os interesses
da Corte no Rio de Janeiro, defendido pelo Presidente. Esse contraste por vezes resultava em
amplos debates e atritos entre esses dois órgãos, atritos esses que davam equilíbrio a balança
de poder provincial. Como o Presidente era designado pelo Imperador e pelo Gabinete
vigente, por vezes ocorria de um Presidente Conservador ser enviado a uma província liberal,
o que acalentava ainda mais os atritos. No Pernambuco da década de 1850, ocorreria um fato
que pode ser chamado de curioso, pois, o envio de presidentes conservadores não significava
um período de “paz” com Assembleia por esta ser composta de maioria conservadora. Em
varias ocasiões as duas instituições, que, pela lógica partidária, deveriam ter ideias
semelhantes, entravam em conflito, pois os interesses regionais eram mais defendidos pelos
deputados que os interesses partidários, criando um exemplo de que a questão partidária no
Brasil Imperial não restringia o pensamento dos políticos e na busca de seus próprios
interesses.

2
ROSAS, Suzana Cavani. “Quando brigam as comadres sabem-se as verdades. Elite provincial e as origens do
partido parlamentar de 1853”. IN:.CLIO – REVISTA DE PESQUISA HISTÓRICA n. 30.1 (2012). Programa de
Pós Graduação em História. Recife: Editora Universitária, 2012 .p. 14-15.
Na nossa pesquisa localizamos uma discussão entre o Poder Provincial e o Central,
após a Rebelião Praieira em mãos do partido conservador. Nas discussões entre a Assembleia
e o Presidente da Província, relatada no numero 267 do Jornal “A União”, onde os deputados
lutavam com garra pela revogação da lei que impunha imposto sobre o tabaco, o charuto, o
cigarro, o sabão e bebidas espirituosas, de produção estrangeira ou de outras províncias
imperiais, impostos, diminuindo a competitividade que esses tinham dentro do Império, onde
de um lado aparece o Presidente da Província, defendendo os interesses do Governo, e do
outro, os deputados provinciais, que defendiam os interesses locais e regionais (que muitas
vezes se mesclavam à seus próprios interesses.). Nesse caso, o Presidente tinha como intuito
engordar os cofres públicos e a Assembleia, na figura dos deputados, tinha o interesse de
representar os interesses das classes produtoras e dos consumidores de não serem
sobrecarregados por esse novo tributo.
Outro ponto a ser indicado é o da renovação da Assembleia Provincial. Havia certo
numero de deputados que se perpetuavam na Assembleia Provincial, tendo inclusive três
deputados (Antonio José de Oliveira, O Barão de Camaragibe, e Francisco de Paula Baptista)
que ocupam uma vaga nessa Assembleia durante todos os anos pesquisados. Usando como
parâmetro aqueles a permanência na Assembleia por no mínimo três dos cinco mandatos
349
pesquisados, cerca de 21% dos deputados se perpetuava no cargo. Comparando mais uma vez
com o trabalho de Katia Mattoso3, guardando as devidas proporções, durante o período
imperial, cerca de 20% dos deputados permaneceram na Assembleia Provincial da Bahia por
um longo período de tempo, “enraizando-se” e comandando a instituição.
Com o surgimento e implantação da Assembleia Provincial no Império ocorreu uma
descentralização do poder central. Essa descentralização levou ao aumento do poder das elites
locais, que participariam dessa Assembleia Provincial. O perfil encontrado dessa elite nos
permite observar que mesmo na Elite, existe um grupo que consegue se sobre sair dos
comuns, e seriam esses, encabeçados por membros de grandes famílias provinciais, que iriam
disputar por maiores poderes dentro e fora da Assembleia. Através do Perfil dessa elite e das
noticias ocorridas em relação à Assembleia, pode-se notar um cotidiano, observando os atritos
entre a Assembleia e o representante do governo central, o Presidente da Província, e seus
principais motivos, a votação do orçamento, por exemplo. Tais elites tomavam decisões que
condiziam com as necessidades da Província, tendo inclusive como defender esses interesses
junto a Corte, tendo em vista que parte desses deputados eram também deputados da Câmara

3
MATOSSO, Kátia M. de Queirós. Bahia. Século XIX. Uma província no Império. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2ª edição, 1992, p. 271
dos Deputados, no Rio de Janeiro. Esse trabalho teve como intuito mostrar que, mesmo em
âmbitos muito distantes de si, uma parte das elites provinciais galgava postos junto ao
governo geral, constituindo-se por vezes também como elite imperial, ocupando cargos na
Câmara dos Deputados ou cargos na administração geral, desmitificando as informações da
historiografia tradicional que afirmavam que as elites provinciais e imperiais eram distintas
entre si, tornando dois núcleos de poder, que podiam estar mais próximos do que se
imaginava.

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351
PARTE V

RELIGIÃO, FAMÍLIA
E JUSTIÇA NO
MUNDO ATLÂNTICO,
SÉCULOS
XVII E XVIII.
OS NÍVEIS DE TENSÕES
NA COLÔNIA
HOLANDESA: OS
OFICIAIS DE JUSTIÇA
TRANSGREDINDO AS
NORMAS DA COLÔNIA
AO UTILIZAREM DE
VIOLÊNCIA CONTRA A
POPULAÇÃO CIVIL
(1637-1644).

FILOMENA CRISTINA DA
SILVA MARQUES

MESTRANDA (UFPE)
O presente artigo centra-se na análise dos cargos judiciais da colônia holandesa na
América do Sul, mais precisamente no Brasil holandês, abordando os conselheiros políticos -
os escabinos e os escoltetos. Cada um deles tinha suas funções voltadas para a aplicabilidade
das normas judiciais emanadas das autoridades legitimadas, o governador Maurício de Nassau
e o Alto e Secreto Conselho, além dos Diretores dos XIX (órgão diretor da Companhia das
Índias Ocidentais). Esses conselheiros eram responsáveis por punir os transgressores das
normas e ordens e proteger a população contra as ameaças dos guerrilheiros portugueses e dos
militares do exército neerlandês.1 Porém, o que acontecia se os oficiais judiciais não
cumprissem suas funções e se tornassem uma ameaça para a população? Esse é o viés deste
354
artigo. Analisaremos as transgressões das normas por parte dos conselheiros políticos, dos
escoltetos e dos escabinos, no período do governo nassoviano de 1637 a 1644, mostrando
como os luso-brasileiros prestavam as suas queixas, quem investigava as denúncias e como
eram as sentenças, caso fossem proferidas.
2
De acordo com Luciani Trindade, “a justiça era a intervenção nos conflitos sociais,
manter o status quo, e dar a cada grupo ou indivíduo o que lhe era devido.” Na colônia
holandesa, os cargos judiciais eram de responsabilidades do Conselho Político e da Câmara
dos Escabinos.3 Este era um tribunal de primeira instância, responsável pela justiça criminal e

* A autora é mestranda em História pela Universidade Federal de Pernambuco.


1
No decorrer deste artigo o termo neerlandês será utilizado para se referir a todos os habitantes das Repúblicas
das Províncias Unidas dos Países-Baixos que se deslocaram para a colônia, ao invés de utilizar apenas o termo
holandês que se refere apenas as pessoas vindas da Holanda.
2
LUCIANI, Fernanda Trindade. Munícipes e Escabinos – Poder Local e Restauração no Brasil Holandês (1630-
1654). Dissertação de Mestrado em História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Programa de
Pós-graduação em História Social. São Paulo: Ed. USP, 2007, p. 20.
3
A Câmara dos Escabinos eram formadas por luso-brasileiros e holandeses, escolhidos anualmente através de
uma lista elaborada por eleitores escolhidos pelo Conselho Político. Essa lista era entregue ao governador
Maurício de Nassau e o Alto e Secreto Conselho e ambos escolhiam os Escabinos, num total de 3 a 5 pessoas,
dependendo da importância da Câmara e da quantidade de pessoas vivendo em suas jurisdições.
civil.4 Instituição que substituiu as Câmaras Municipais portuguesas, mantendo as mesmas
jurisdições do tempo português,5 criando apenas, em 1639, a Câmara Maurícia em
substituição da Câmara de Olinda e a Câmara do Cabo de Santo Agostinho. 6 Na realidade, os
neerlandeses se aproveitariam das estruturas administrativas já implantadas na colônia pelos
portugueses7 para, segundo Luciani, “povoar e colonizar”. A autora diz ainda que os
neerlandeses adequaram a sua administração às realidades locais de cada região colonizada,
tanto no Ocidente quanto no Oriente.8 Desta forma, mesclaram o modelo de organização
administrativa das Províncias Unidas com a estrutura que já existia na colônia. Seguindo o
modelo português que, por sua vez, também possuía variações da sua Metrópole (Portugal),
como nos aponta Fernanda Bicalho. 9
Em relação ao Conselho Político, este funcionava como tribunal de segunda instância
e de apelação das sentenças dos escabinos. Era também o Tribunal Supremo da colônia, sendo
o responsável por fiscalizar a execução das atividades dos oficiais de justiça e, como tal,
também deveriam chamar-lhes a atenção caso não cumprissem as suas atribuições, fazendo-
lhes responder judicialmente se transgredissem as normas ou quando estivessem se excedendo
em suas funções. 355
Abaixo hierarquicamente ao Conselho Político estavam os Escoltetos, responsáveis
por efetuar as prisões dos criminosos levando-os para a Câmara dos Escabinos ou para o
Conselho Político, dependendo da instância responsável em julgar o crime. Após o
julgamento, entregavam os prisioneiros novamente aos Escoltetos para que pudessem
executar as sentenças e assistir o seu cumprimento. Além disso, deveriam também velar para
que as ordens fossem cumpridas e punir os infratores.10 De acordo com Watjen, eram como

4
WATJEN, Hermann. Domínio colonial holandês no Brasil: um capítulo da história colonial do século XVII.
Traduzido por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti. Recife: CEPE, 2004, pp. 201-202.
5
LUCIANI. Op. Cit., p. 87.
6
Idem p. 90.
7
NAVARRO, Luize Stoeterau. Entre dois mundos: câmaras e escabinos na circularidade da cultura jurídica no
brasil holandês (1630-1654). Dissertação (Mestrado em Direito), Curitiba: Universidade Federal do Paraná,
2015, p. 18.
8
LUCIANI. Op. Cit., p. 115.
9
“As diferentes câmaras espalhadas pelo Império português tinham muitos pontos em comum com suas
congêneres metropolitanas. No entanto, a diversidade sociocultural que os portugueses encontraram em sua faina
colonizadora criou matizes e adaptações no aparato institucional e legal translado do reino, colorindo de tons
específicos as mesmas instituições quando adaptadas à realidade das diferentes colônias, quer a ocidente, quer a
oriente. BICALHO, Maria Fernanda Baptista. As câmaras ultramarinas e o governo do Império. IN: BICALHO,
Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima; FRAGOSO, João (org.) O Antigo Regime nos trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa 9séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, pp. 193-194.
10
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil holandês: a administração da conquista.
2. ed. v. 2. Recife: CEPE, 2004, p. 31.
“Promotor público, Exator da Fazenda e Chefe de Polícia em sua respectiva circunscrição.”11
Dentre os oficiais judiciais, eles estavam mais próximos da população, entretanto, eram de
quem os luso-brasileiros mais se queixavam aos dirigentes da colônia. Manuel Calado nos
informa que os Escoltetos roubavam as casas dos moradores e prendiam os luso-brasileiros
que viviam no campo, além de extorqui-lhes dinheiro.12 A partir dessa explanação,
analisaremos cada um desses funcionários judiciais para entendermos como a aplicabilidade
da justiça se dava entre os oficiais da colônia neerlandesa ao descumprirem as normas,
transformando-se numa ameaça para a população.

1.1 Os escoltetos transgredindo as normas da colônia e os escabinos se


excedendo em suas funções

Ser um oficial de justiça significava para algumas pessoas poder e prestígio na


sociedade colonial. O Escolteto, dentre os oficiais de justiça, era o mais temido pela
população civil, pois segundo Gonsalves de Mello “(...) vários deles não tinham escrúpulos de
13
356
prender e extorquir os moradores luso-brasileiros, sob falsos pretextos.” Principalmente
entre as pessoas que viviam no meio rural, uma vez que fiscalização da atividade judicial na
colônia era bastante precária no campo, deixando as pessoas à mercê das ações de alguns
oficiais corruptos. Segundo relata Diogo Lopes Santiago, os escoltetos também utilizavam-se
de difamações para extrair dinheiro das pessoas. As difamações atingiam homens e clérigos, 14
mas tinham as mulheres com os maridos ausentes como os principais alvos, acusando-as de
cometerem adultério. Essas acusações, segundo os escoltetos, chegavam ao seu conhecimento
através das denúncias dos vizinhos. Portanto, para evitar constrangimento, eles
aconselhavam-nas a resolverem a questão com eles, sob o pretexto de evitar que o caso fosse
levado aos tribunais no Recife.15 Segundo Santiago, as mulheres, muitas vezes, utilizavam as
joias para pagarem pela extorsão do escolteto.

11
WATJEN. Op. Cit., p. 305.
12
CALADO, Manuel. O valeroso lucideno e triunfo da liberdade. Recife: FUNDARPE, 1985, p. 127.
13
MELLO. Fontes para a história do Brasil holandês: a administração da conquista. Op. Cit., p. 31.
14
SANTIAGO. Op. Cit., p. 157
15
SANTIAGO, Diogo Lopes. História da guerra de Pernambuco e feitos memoráveis do mestre de campo João
Fernandes Vieira herói digno de eterna memória primeiro aclamador da guerra. Recife; FUNDARPE, 1984, p.
157.
Apesar da escarça fiscalização, vários casos chegavam ao conhecimento do
governador Nassau, do Alto e S. Conselho e do Conselho Político, fazendo com que várias
medidas fossem tomadas para solucionar tais questões. Algumas dessas medidas podem ser
vistas nas Atas da Assembleia Geral de 1640. Nela, a população fazia exigências como “que
cada Escolteto que prender alguma pessoa, sem dar parte disso, dentro de 24 horas, à Câmara
dos Escabinos e não cumprir o que por esta lhe for ordenado, fique privado de seu ofício sem
remissão.”16 Esse pedido foi concedido por Nassau e pelo Alto e Secreto Conselho, assim
como o pedido para que os Escoltetos que cometessem delito fossem demitidos, uma vez que
acreditavam que não podiam “ser contidos senão pelo temor de perder o seu emprego.” 17
Era responsabilidade do Conselho Político julgar a conduta dos escoltetos e dos
escabinos. Porém, curiosamente, a maioria dos julgamentos iniciavam-se no gabinete do
governador Maurício de Nassau e do Alto e Secreto Conselho, quando, na realidade, as
pessoas deveriam se dirigir diretamente para o Conselho Político, legando aos dirigentes da
colônia o encaminhamento das denúncias para que os conselheiros políticos pudessem
investigá-las.
No dia 14 de outubro de 1639, os altos e secretos conselheiros e o governador Nassau 357
receberam uma denúncia de extorsão cometida pelo Escolteto Craaijnstein em Porto Calvo,
jurisdição de Pernambuco situada ao sul do Recife. Um cidadão português, cuja
documentação não informa o nome, foi encontrado morto pelo seu escravo, este relatou o
ocorrido para três outros português que foram juntos ao local e retiraram o homem das cordas
com o qual havia se enforcado. Por ter tirado o homem da corda, o Escolteto Craaijnstein
prendeu os três português pedindo-lhes dinheiro a mais do que poderiam pagar. Os três
portugueses se dirigiram ao Alto e Secreto Conselho e ao governador Nassau relatando sobre
o ocorrido. Ambos decidiram que o Escolteto deveria deixá-los em paz até que fosse apurado
mais informações sobre o caso.
Por sua vez, o Escolteto Craaijnsteijn mesmo consciente da ordem emanada dos
centros administrativos, prendeu os três portugueses contrariando as ordens de Nassau e do
Alto e S. Conselho. Além de prendê-los, exigiu que os três lhe entregasse mais dinheiro. Dois

16
Atas da Assembleia Geral 1640. IN: MELLO. Fontes para a história do Brasil holandês: a administração da
conquista. Op. Cit., p. 353. Os escoltetos tinham de fazer a denúncia do delito no tribunal de primeira ou de
segunda instância para dar início ao processo judicial. Regimento do governo das praças conquistadas ou que
forem conquistadas nas Índias Ocidentais. PEREIRA, José Higyno Duarte. IN: RIHGB, n. 31, Recife, 1886
17
Atas da Assembleia Geral 1640. IN: MELLO. Fontes para a história do Brasil holandês: a administração da
conquista. Op. Cit., p. 354.
dos prisioneiros conseguiram pagar a quantia exigida, mas o terceiro não poderia pagar a
soma de 40.000 florins, portanto fugiu para o interior e já completado seis meses da sua fuga,
ainda não tinha voltado. Nassau e os conselheiros secretos decidiram entregar o caso ao
Conselho Político que, junto com o fiscal, deveria prender o Escolteto Craaijnsteijn e julgar o
caso da maneira que acharem mais acertada para se manter a ordem e o cumprimento desta.
Levaram em consideração também que várias desordens de igual natureza estavam
acontecendo na colônia, sem que o Conselho Político tivesse total conhecimento deles e
tomasse as devidas providências, uma vez que fiscalizar a atuação dos oficiais de justiça era
sua responsabilidade. 18
Infelizmente não conseguimos obter o resultado desse julgamento. Mas, sabemos que,
em alguns casos, absolviam o Escolteto acusado por considerarem que as queixas existentes
não seriam suficientes para se abrir um processo contra o funcionário. Esse é o caso do
Escolteto de Alagoas Arnoult van Liebergen que foi convocado a comparecer perante o
Conselho Político para dar explicações sobre as queixas feitas em seu nome. Os conselheiros
políticos, decidem pela sua absolvição sem nenhuma penalização, apenas com a advertência
de que se houver outras queixas contra ele não seria libertado tão facilmente. 19 A penalização
branda de alguns funcionários da colônia não solucionava o problema da violência destes com
358
a população, pelo contrário, poderia inclusive aumentá-la. Por causa disso, foi necessário a
intervenção do Alto e Secreto Conselho e de Nassau para tentar frear a ação dos escoltetos.
Fato este visto anteriormente, na reunião da Assembleia Geral de 1640, em que ambos
ouviram várias queixas da população e tomaram várias resoluções, entre elas, relacionadas
aos escoltetos, cuja solução deveria ter partido do Conselho Político.
Além de descumprir as normas da colônia, os escoltetos estavam excedendo as suas
funções ao libertar os prisioneiros, sendo que esta competência pertencia ao Conselho
Político. Sobre esta questão ver o exemplo a seguir:

Para se remediar as desordens que estão acontecendo nas prisões públicas por que se
descobriu que pessoas estão sendo presas e soltas sem que elas tenham sido
julgadas, foi decidido que os carcereiros sejam encarregados de não mais deixar
soltar presos ou que eles possam sair de suas celas sem que eles tenham recebido
uma permissão por escrito do presidente do Conselho Político, ou do Conselho de
Guerra de maneira que nem o advogado-fiscal, nem seus auditores, nem o Escolteto
ou seus substitutos tenham autoridade para soltarem uma pessoa que uma vez tenha
sido presa, tomando esta decisão a partir de sua própria autoridade. 20

18
IAHGP. Coleção José Higyno. Dagelijckse notulen 14/10/1639.
19
IAHGP. Coleção José Higyno. Dagelijckse notulen 14/06/1639
20
Idem 05/11/1639.
Pelo que podemos ver no trecho acima, os escoltetos não eram os únicos que se
excediam nas suas funções e não eram os únicos a entrar em atrito direto com outra instituição
que lhe era superior hierarquicamente. Dessa maneira, podemos perceber que as disputas
também estavam presentes entre as instituições neerlandesas. Na maioria das vezes,
precisava-se da intervenção dos Diretores dos XIX para reafirmar as competências e as
autoridades de cada instituição. Os escabinos, além dos escoltetos, estavam exercendo
competências que não faziam parte de suas funções, pois estavam prendendo pessoas por
dívidas, quando era do Conselho Político essa responsabilidade, assim como o julgamento de
casos de blasfêmia.
No ano de 1642, as pessoas, incentivadas pelo discurso dos padres católicos e dos
praticantes protestantes contra os judeus residentes na colônia, perseguiram e apedrejaram um
judeu acusado de blasfêmia. Os judeus da comunidade Israelita da Holanda culpou o governo
da colônia de ter favorecido essas práticas e perseguições. Esta comunidade queixava-se
também que os Escabinos de Maurícia estavam julgando ilegalmente os crimes de blasfêmia.
Os Diretores dos XIX, insatisfeitos com os problemas advindo da colônia envolvendo os 359
Escabinos e o seu desrespeito as autoridades coloniais, enviaram uma carta para o Alto e
Secreto Conselho e o governador Nassau dizendo que as punições do crime de blasfêmia
deveriam ser feitas de acordo com os métodos utilizados na Holanda e o julgamento deste
caso pertencia a jurisdição do Conselho Político e não a um órgão subalterno, pois este não
tinha autoridade para solucionar tais questões. 21
Em 1644, os conselheiros políticos, enviaram aos Diretores dos XIX uma
representação onde se queixavam da interferência dos escabinos de Maurícia nas suas
funções, dizendo que: “essa corporação procedia, como se não estivesse sujeita a ninguém.” 22
Nesse mesmo ano, o Alto e Secreto Conselho enviou uma carta para os Diretores da
Companhia, relatando que os camarários de Maurícia estavam desrespeitando a sua
autoridade e a do Conselho Político. Os senhores dos XIX, enviaram uma carta reforçando a
autoridade de ambos os conselhos dizendo que os Escabinos estavam-lhes subordinados e que

21
WATJEN. Op. Cit., pp. 369-370.
22
Idem p. 307.
não poderiam agir livremente na colônia, e que antes de executar as suas ações deveriam
consultar um dos dois Conselhos.23

1.2. Os conselheiros políticos versus os luso-brasileiros

Apesar de alguns historiadores e cronistas afirmarem que os escoltetos eram os


funcionários mais temidos da colônia, eles não foram os únicos oficiais de justiça que
ameaçaram a população. Vários atos de violência praticados contra os moradores também
eram cometidos por alguns conselheiros políticos. Dentre os conselheiros políticos que
transgrediram as normas da colônia com acusações de assassinatos, corrupção, saques e
extorsões à população, Hendrick Schilt é o único conselheiro que conseguiu obter
informações detalhadas sobre o seu delito e a sua sentença, caso este relatado pelo cronista
Diogo Lopes Santiago.
De acordo com Santiago, Hendrick Schilt chegou na colônia em 1636 e em 1637 foi
nomeado diretor da capitania de Itamaracá. Neste mesmo ano, foi acusado de assassinar um
clérigo em Goiana sendo julgado e sentenciado por este ato. O padre se chamava Álvaro
360
Mendes de Elvas e era o capelão do Engenho Obu, que pertencia a Francisco de Lugo.
Segundo o cronista, o capelão era uma pessoa rica, de posse dessa informação, Hendrick
Schilt foi a até a casa do clérigo exigindo que lhe entregasse uma grande quantia em dinheiro,
utilizando de tortura para conseguir esse objetivo. O clérigo entregou o dinheiro exigido, mas
isso não impediu que outras visitas de igual natureza por parte de Schilt fossem feitas para o
capelão, tornando-se uma fonte segura de dinheiro para o conselheiro. Por isso, Schilt pela
segunda vez torturou o capelão acusando-o de velhaco e de que, por fonte segura, sabia que
ele tinha bastante dinheiro escondido. Álvaro Mendes de Elvas, sob tortura, entregou nova
soma de dinheiro a Schilt que voltou uma terceira vez, dessa vez, além do dinheiro, o
conselheiro político também levou a baixela de prata junto com alguns objetos de ouro. Na
quarta vez, segundo o relato, não conseguindo obter nenhum dinheiro e objeto de valor,
Hendrick Schilt ordenou que o clérigo fosse assassinado. 24

23
XAVIER, Lúcia Werneck. Companhia das Índias Ocidentais Velha, número de chamada 1. 05. 01. 01. IN:
WIESEBRON, Marianne L. O Brasil em arquivos neerlandeses (1624-1654): Introdução aos Países Baixos do
século dezessete e às coleções em arquivos e bibliotecas neerlandesas. v. 4. Leiden University Press, 2011, p.
207.
24
SANTIAGO. Op. Cit., p. 113.
O conselheiro foi acusado formalmente em 1637 e o seu processo foi julgado no dia
30 de outubro do mesmo ano. A sua punição foi a perda do cargo, a perda do salário e a
entrega dos bens que havia roubado.25 Esse foi o único conselheiro que receberia uma
sentença por seus delitos. As acusações a outros foram provadas apenas após a morte ou após
a sua saída da colônia. Apesar de todas as acusações, Hendrick Schilt foi considerado por
Diogo L. Santiago como sendo uma boa pessoa. Diferentemente do conselheiro político Ippo
26
Eissens, este, segundo o cronista, tinha uma “natureza cruel”. Eissens foi um dos
conselheiros que mais se utilizou de meios arbitrários para adquirir informações e dinheiro,
agindo principalmente nas regiões afastadas do Recife, ou seja, longe da observância do
Conselho Político.27 Para falar neste conselheiro, precisamos sair do corte temporal estipulado
para este artigo (governo nassoviano de 1637 a 1644), voltando para o ano de 1635 a 1636,
período de seu governo na direção da capitania de Itamaracá e logo depois na direção da
Paraíba, onde era dono do Engenho Espírito Santo.
A partir das informações extraídas dos relatos de Diogo L. Santiago, nota-se que
Eissens praticou várias atrocidades contra a população de Itamaracá e da Paraíba. Contra ele
havia denúncias de roubo, extorsão, tortura e assassinato, José A. Gonsalves de Mello, ainda 361
28
acrescenta que Eissens foi acusado de praticar sodomia. Uns desses delitos podem ser
vistos no relato de Santiago, ele diz que Eissens ordenou a prisão de alguns homens que,
segundo as informações obtidas de terceiros eram homens ricos e que tinham escondido o
dinheiro, portanto, utilizando-se de torturas, obrigo-os a confessarem onde o haviam
29
escondido. O conselheiro de posse do dinheiro dos prisioneiros, ordenou que alguns deles

25
MELLO. Fontes para a história do Brasil holandês: a administração da conquista. Op. Cit., p. 480.
26
SANTIAGO. Op. Cit., p. 113.
27
O Conselho Político governou a colônia de 1630 a 1636, sendo responsável pela administração, pela
economia, pelas questões militares e pela justiça da colônia. Em 1637, entrega a administração da colônia para o
governador Maurício de Nassau e o Alto e Secreto Conselho, mantendo em suas mãos as funções judiciais. Na
prática, continuou possuindo encargos administrativos, econômicos e militares. Ocupando o cargo de diretor nas
capitanias de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande do Norte e nas regiões no sul de Pernambuco como Porto Calvo,
Cabo de S. Agostino, Serinhaem, Ipojuca, Rio São Francisco e Alagoas. Também fazia a venda e o aluguel das
propriedades da Companhia no Recife, o transporte, a fiscalização e o embarque do açúcar e a direção dos
armazéns, entre outras atividades.
28
MELLO. Fontes para a história do Brasil holandês: a administração da conquista. Op. Cit., p. 472.
29
Após a invasão holandesa várias pessoas ao fugirem levaram os bens de valor e o dinheiro, escondendo-os dos
neerlandeses, neste caso os homens que foram presos haviam enterrado o dinheiro. Junto com os bens de valor,
levavam o açúcar para outras regiões, por exemplo. Segundo Johannes de Laet, o açúcar dos engenhos da Várzea
foram levados para Muribeca e quando os neerlandeses atacaram-na em 1633 encontraram o armazém com 500
caixas de açúcar da Várzea. Por ser um local situado no interior os luso-brasileiros pensaram que o seu açúcar
estaria protegido da ameaça holandesa que se concentrava no litoral, mas os neerlandeses visavam as vilas e
povoados mais importantes. LAET, Joannes de História ou Anais dos Feitos da Companhia das Índias
fossem assassinados para que não relatassem o ocorrido as autoridades neerlandesas no
Recife, neste caso, para o Conselho Político. Por isso, seria oportuno reproduzir aqui um
pequeno trecho do relato de Santiago sobre o caso mencionado, enfatizando sobre um dos
prisioneiros Bartolomeu de Oliveiraque também havia sido acusado por Eissens de traição
cuja sentença era a pena de morte.
(...) que sabendo tinha algum dinheiro, o mandou prender e meter em uns grilhões, e
a pancadas lhe confessar que tinha dado a guardar a Paulo Teixeira quinhentos mil
réis, ao qual mandou chamar por não entregar o dinheiro por um escrito do dito
Bartolomeu de Oliveira, depois de mandar pendurar por uma corda a Paulo Teixeira
lhe mandou moer as entranhas até que o entregou, e fugindo o dono do dinheiro
publicou o Ippo Eissens por editais que era um traidor, dando ordem que o
matassem donde o encontrassem só por fugir para Porto Calvo. 30

Outros atos ilegais cometidos contra a população chegaram ao conhecimento dos


dirigentes da colônia, através de pedidos para reaver o que tinha sido roubado pelos
conselheiros. Neste caso, Gonsalves de Mello nos informa que alguns jesuítas enviaram um
requerimento, em 1636, aos Estados Gerais pedindo que fossem devolvidos os bens que o
conselheiro Eissens havia roubado deles na Paraíba.31 É possível averiguar que as queixas
contra ele também foram feitas no governo nassoviano, vários anos após a sua morte,
principalmente das pessoas que foram perseguidas por ele como Duarte Gomes da Silveira. 362
Este escreveu uma carta para Nassau, datada de 8 de novembro de 1643, dizendo que não
fosse pela vinda do governador Maurício de Nassau, não restaria na colônia luso-brasileiros
que estivessem com as suas propriedades ou mesmo com suas vidas, devido à ação violenta
32
de Ippo Eissens. No ano de 1636, ele foi assassinado no seu engenho por um ataque
comandado por Francisco Rebelo, o Rebelinho.33
Segundo relatos obtidos de Diogo L. Santiago, em alguns momentos Ippo Eissens agiu
com o auxílio do conselheiro político Willen Schott e, de acordo Mello, “também contra ele
parecem pesar algumas culpas”.34 Santiago afirma que a culpa de Willem Schott estava
bastante clara, mostrando dados que mostram que no ano de 1636 os conselheiros Ippo

Ocidentais desde o seu começo até o fim do ano de 1636. Traduzido por José Higyno Duarte Pereira e Pedro
Souto Maior. Vol. 3. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1920, p. 303.
30
SANTIAGO. Op. Cit., pp. 113-114.
31
MELLO. Fontes para a história do Brasil holandês: a administração da conquista. Op. Cit., p. 472.
32
Relatório sobre as pesquisas realizadas na Holanda, lido na sessão especial de 9 de maio de 1885. PEREIRA,
José Higyno Duarte. IN: RIAHGB, V. 5, n. 30, p. 7-110, jun. 1886, p. 22.
33
Idem p. 472. Francisco Rabelo foi um guerrilheiro português que ofereceu resistência aos neerlandeses nas
regiões de Goiana e na Paraíba. No dia 16 de outubro de 1636, as tropas de Rebelinho invadiram o Engenho
Espírito de Santo de Eissens, este ao defendê-lo faleceu na casa-grande.
34
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil holandês: a economia açucareira. 2. ed.
v. 1. Recife: CEPE, 2004, p. 49.
Eissens e Willen Schott mataram “(...) de Sirinhaém até a freguesia de São Lourenço e em
35
Goiana, entre homens, mulheres e meninos, debaixo de passaporte, mil oitocentos e tantos”
Deixando claro que este número se refere as vítimas dos conflitos resultantes de escaramuças
militares, principalmente da perseguição das tropas do guerrilheiro Camarão. Este se
deslocava constantemente de uma região para outra no sul de Pernambuco e várias pessoas,
fugindo das invasões dos neerlandeses, juntaram-se as tropas de Camarão. Mas, esta citação
também nos mostra o quantitativo das pessoas que foram vítimas de ambos os conselheiros,
sendo um número bastante elevado de civis, tendo em vista que essas pessoas deveriam ser
protegidas e não assassinadas. Infelizmente não se obteve outras informações sobre Willen
Schott, apenas que ele pediu demissão do cargo de conselheiro político em 1638, cujo pedido
foi negado, mas neste mesmo ano regressou para as Províncias Unidas, devido ao fim do seu
tempo de serviço para a Companhia. 36
Contra o conselheiro político Johan Robbertzs Alma haviam várias queixas e
acusações de corrupção. Apesar de ter negado, tais acusações foram comprovadas com o
exame do seus papéis averiguados após a sua morte, em 1637, no Cabo de Santo Agostinho.37
Além de Ippo Eissens e de Schott, haviam também algumas acusações contra o conselheiro 363
político Balthasar Wijntjis. Estas ainda estavam sendo averiguadas quando, em 1637, ele
pediu demissão para cuidar do seu engenho Cunhaú no Rio Grande do Norte. Devido às
queixas, Nassau autorizou a sua demissão, 38 encerrando assim as acusações. Pode-se perceber
que em alguns casos, as queixas judiciais contra os conselheiros políticos não eram levadas
adiante, sem, entretanto, ser possível averiguar o porquê este tipo de pratica acontecia. Mas,
pode-se inferir que os dirigentes da colônia protegiam os seus pares e que o caso de Hendrick
Schilt, ao que parece, foi uma exceção. Visto que, como afirma Rômulo Nascimento em sua
39
tese, “não se podia punir com a morte um funcionário da Companhia por qualquer motivo.”
Todavia, temos que levar em consideração, também, que Schilt cometeu o crime em 1636,
mas só foi julgado em 1637, ou seja, num outro regime de governo, saindo do Conselho
Político para o governo de Nassau e dos conselheiros secretos. Portanto, se avaliado com

35
SANTIAGO. Op. Cit., p. 114.
36
MELLO. Fontes para a história do Brasil holandês: a economia açucareira. Op. Cit., p. 49.
37
Idem p. 49.
38
MELLO. Fontes para a história do Brasil holandês: a administração da conquista. Op. Cit., p. 485.
39
NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. O desconforto da governabilidade: aspectos da administração no
Brasil holandês (1630-1644). Tese de Doutorado em História, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Departamento de História. Rio de Janeiro, UFF, 2008. p. 96.
atenção tudo que foi exposto, conclui-se que esses conselheiros políticos só foram
investigados a partir do governo nassoviano e não antes disso.
Portanto, tal fato contribui para a visão negativa que Hermann Watjen tem dos
conselheiros políticos anteriores ao governo de Maurício de Nassau, ao dizer que os
conselheiros eram corruptos e de péssima índole, estes colocavam os seus interesses acima
dos da Companhia. Afirmava, também, que eles desviavam grandes quantias em dinheiro para
si.40 O predicante espanhol Vicent Joaquim Soler, é dessa mesma opinião ao dizer que os
conselheiros políticos eram ratazanas que consumia todos os recursos da Companhia. 41 Mas,
ambos desconsideram que, neste mesmo período, haviam também conselheiros, que pelo que
podemos perceber das informações coletadas, não tinham processos judiciais abertos contra
eles e nem acusações de corrupções, pode-se citar: Servaes Carpentier, Elias Herckmans e
Paulus Serooskercke. Portanto, nem todos podem ser chamados de corruptos como a
afirmação de Watjen faz entender. Outro ponto que merece ser mencionado, era o fato de que
não eram todos os atos criminosos passíveis de punição. A título exemplo, pode-se citar o
conselheiro político Jacob Stachouwer que cometeu algumas ações violentas contra a
população, mas estas foram em períodos e em locais de conflito, e como tal, eram
consideradas válidas. Posto que, em alguns momentos, torturas e assassinatos nos conflitos
364
militares eram atos não puníveis pelos tribunais neerlandeses, considerados aceitáveis, Assim
como a pilhagem dos moradores e dos soldados feridos, como afirma em sua tese Bruno
Miranda “não haviam impedimentos legais para que soldados e feridos fossem pilhados nos
confrontos.”42 Apenas havia proibição de se assassinar os prisioneiros, pois com eles
poderiam se extrair informações e conseguir resgates.43
Apesar de alguns historiadores não mencionarem processos judiciais contra
Stachouwer, ele também enriqueceu às custas da população, ao menos é o que pode-se
subentender da afirmação de Charles Boxer. De acordo com o autor, no ano de 1635, o
coronel polonês Arciszewski do exército neerlandês, acusou Jacob Stachouwer de ter
extraviado para si toda a fortuna do português Pantaleão Monteiro que estava enterrada em
local entregue por seu secretário João Fernandes Vieira. Arciszewski também se queixava que

40
WATJEN. Op. Cit., p. 333.
41
SOLER, Vicente Joaquim. Brasil holandês: dezessete cartas de Vicente Joaquim Soler, 1636-1643. Traduzido
por B. N. Teensma. Rio de Janeiro: Ed. Index, 1999, p. 17.
42
MIRANDA, Bruno Romero Ferreira. Gente de guerra: origem, cotidiano e resistência dos soldados do
exército da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630-1654) Tese de Doutorado. Universidade de
Leiden, 2011, p. 301.
43
MIRANDA Apud Lawes and Ordinances XIV, XV, XLI. Op. Cit., p. 296.
o conselheiro político citado não dividiu os espólios de guerra com os militares, pegando para
si e distribuindo apenas com os seus aliados o dinheiro do resgate cobrado pelos moradores
do Arraial presos após a conquista do local de resistência luso-brasileira, consolidando a
44
dominação neerlandesa na América Portuguesa. Portanto, era um ato válido para os
tribunais holandeses, mas ao mesmo tempo, neste caso específico, não era bem visto pelos
militares que não receberam as suas partes dos espólios, como se queixa Arciszewski.

1.3. Considerações finais

Os neerlandeses tinham um aparato de instituições e cargos judiciais que foram


transferidos das Províncias Unidas para as colônias, neste caso específico, para o seu território
na América Portuguesa. Os oficiais judiciais para aplicar as normas emanadas das Províncias
Unidas tiveram que se adaptar e se preocupar com as realidades coloniais, respeitando os
poderes locais de cada capitania e suas jurisdições. Os funcionários judiciais da colônia eram
os conselheiros políticos, os escoltetos e os escabinos. Entretanto, contra eles haviam várias 365
queixas de violência contra a população, onde abusavam de sua autoridade para extorquir e
maltratá-las, principalmente as que viviam nas capitanias e nas regiões afastadas do Recife.
Charles Boxer é de opinião que a “corrupção e o suborno eram não somente
inevitáveis, mas largamente praticados; o que todavia não é nenhuma novidade no mundo das
45
colônias.” Desse modo, podemos chegar à conclusão de que os atos ilegais eram tão
comuns nas colônias holandesas quanto nas colônias das monarquias ibéricas. Ficando, na
maioria das vezes, as pessoas do campo à mercê dos ricos proprietários e dos oficiais judiciais
como os juízes e os ouvidores.
Um grande problema era o fato de que a maioria dos conselheiros acusados de alguma
prática ilícita não estavam no cargo de suas funções ou não estavam na colônia para receber a
penalização quando julgado seus delitos. Frisando ainda que eram funcionários da Companhia
sendo julgados por seus próprios funcionários em uma época em que dependendo do
momento, das pessoas e dos locais em que os delitos aconteciam, poderiam ser considerados
atos legais, ou até, aceitos pelos dirigentes da colônia. Em atos ilegais passíveis de punições,

44
BOXER. Op. Cit., p. 83.
45
BOXER, Charles. Os holandeses no Brasil 1624-1654. Traduzido por Olivério M. de Oliveira Pinto. Recife:
CEPE, 2004, p. 102.
como o caso envolvendo o conselheiro político Hendrick Schilt, as penas eram abrandadas,
funcionando mais como um aviso que como uma punição. A adaptação da estrutura judicial
neerlandesa se deparou com o entrave de uma sociedade que já possuía o seu próprio código
de normas e condutas. Chocando-se com os interesses dos próprios funcionários judiciais da
colônia que buscavam obter o seu próprio enriquecimento desvinculado das atividades ligadas
a Companhia das Índias Ocidentais.

REFERÊNCIAS

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administração da conquista. 2. ed. v. 2. Recife: CEPE, 2004.

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BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima; FRAGOSO, João (org.) O
Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa 9séculos XVI-XVIII). Rio de 366
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

BOXER, Charles. Os holandeses no Brasil 1624-1654. Traduzido por Olivério M de Oliveira


Pinto. Recife: CEPE, 2004.

CALADO, Manuel. O valeroso lucideno e triunfo da liberdade. Recife: FUNDARPE, 1985.

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seu começo até o fim do ano de 1636. Traduzido por José Higyno Duarte Pereira e Pedro
Souto Maior. Vol. 3. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1920.

LUCIANI, Fernanda Trindade. Munícipes e Escabinos – Poder Local e Restauração no Brasil


Holandês (1630-1654). Dissertação de Mestrado em História, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Programa de Pós-graduação em História Social. São Paulo: Ed. USP,
2007.

MELLO, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil holandês: a economia
açucareira. 2. ed. v. 1. Recife: CEPE, 2004.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil holandês: a
administração da conquista. 2. ed. v. 2. Recife: CEPE, 2004.

MIRANDA, Bruno Romero Ferreira. Gente de guerra: origem, cotidiano e resistência dos
soldados do exército da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil (1630-1654) Tese de
Doutorado. Universidade de Leiden, 2011.

NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. O desconforto da governabilidade: aspectos da


administração no Brasil holandês (1630-1644). Tese de Doutorado em História, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História. Rio de Janeiro, UFF, 2008.

NAVARRO, Luize Stoeterau. Entre dois mundos: câmaras e escabinos na circularidade da


cultura jurídica no brasil holandês (1630-1654). Dissertação (Mestrado em Direito), Curitiba:
Universidade Federal do Paraná, 2015.

Regimento do governo das praças conquistadas ou que forem conquistadas nas Índias
Ocidentais. PEREIRA, José Higyno Duarte. IN: RIAHGB, n. 31, Recife, 1886.

Relatório sobre as pesquisas realizadas na Holanda, lido na sessão especial de 9 de maio de


1885. PEREIRA, José Higyno Duarte. IN: RIAHGB, V. 5, n. 30, p. 7-110, jun. 1886. 367
SANTIAGO, Diogo Lopes. História da guerra de Pernambuco e feitos memoráveis do mestre
de campo João Fernandes Vieira herói digno de eterna memória primeiro aclamador da
guerra. Recife; FUNDARPE, 1984.

SOLER, Vicente Joaquim. Brasil holandês: dezessete cartas de Vicente Joaquim Soler, 1636-
1643. Traduzido por B. N. Teensma. Rio de Janeiro: Ed. Index, 1999.

XAVIER, Lúcia Werneck. Companhia das Índias Ocidentais Velha, número de chamada 1.
05. 01. 01. IN: WIESEBRON, Marianne L. O Brasil em arquivos neerlandeses (1624-1654):
Introdução aos Países Baixos do século dezessete e às coleções em arquivos e bibliotecas
neerlandesas. v. 4. Leiden University Press, 2011

WATJEN, Hermann. Domínio colonial holandês no Brasil: um capítulo da história colonial


do século XVII. Traduzido por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti. Recife: CEPE, 2004.
OS EMBATES
JUDICIAIS NA
RELAÇÃO DE
PERNAMBUCO COM AS
CAPITANIAS VIZINHAS
ENTRE 1655 E 1760.

IVIANA IZABEL
BEZERRA DE LIRA

GRADUANDA (UFRPE)
A demonstração da força dos grupos sociais na América portuguesa nos ampara na
compreensão dos embates de jurisdições surgidos entre os agentes régios. Sobretudo os
embates com a participação dos representantes da justiça de Pernambuco nas suas atuações e
circulações nos territórios circunvizinhos. Os embates de jurisdições entre as capitanias
vizinhas não foram uma particularidade da esfera judicial. Em jurisdição e conflitos... (1997)
Vera Acioli analisa como governadores e capitães mores provocaram muitos conflitos quando
assumiram determinados cargos e buscaram expandir suas jurisdições, especialmente quando
se estendiam às outras capitanias.
369
Investigamos a partir da documentação manuscrita de cunho administrativo
disponíveis no Arquivo Histórico Ultramarino, a circulação, as demandas e as atuações dos
agentes da capitania de Pernambuco em cada uma dos espaços vizinhos denominados
capitanias do Norte, registrando as interferências e os embates oriundos desta relação e quais
os desdobramentos e possíveis resoluções desses conflitos.
As capitanias do Norte abrangiam além da capitania de Pernambuco, as capitanias de
Itamaracá, Rio Grande (a partir de 1730, Rio grande do Norte), Paraíba e Siará (atual Ceará).
Inserirmos nesta organização o território da Alagoas do Sul (atual Estado de Alagoas), que
mesmo não sendo capitania, era parte do território do Sul de Pernambuco e em determinado
momento conquistará algumas práticas da administração colonial separadas da capitania de
Pernambuco.
Nosso trabalho tem nos permitido perceber as motivações e em quais esferas partiam o
interesse da participação da capitania de Pernambuco dentro dos espaços das capitanias do
Norte. Podemos destacar como motivação ou justificativa a solicitação de instituições locais,
como aponta a carta dos oficiais da Câmara de Olinda ao príncipe regente D. Pedro sobre a
dificuldade enfrentada pelos moradores das outras capitanias como a de Itamaracá, Paraíba e
Rio Grande do Norte, ao terem que se deslocarem ao tribunal da Bahia para recorrer com seus
processos referentes à justiça. Os oficiais sugeriram que pela proximidade geográfica, a
capitania de Pernambuco passasse a atendê-las. Obtendo a resposta real “(...) considerada a
distância das três capitanias e os inconvenientes (...) o ouvidor de Pernambuco (...) conheça
das causas das três capitanias, de sua alçada”.1
Outra solicitação foi registrada na carta do Governador da capitania de Pernambuco,
Conde dos Arcos, D. Marcos José Noronha e Brito ao Rei D. João V com solicitação para
criação de uma junta de Justiça pertencente à capitania de Pernambuco. A fim de que fosse
determinada a jurisdição para esta capitania julgar os crimes atrozes das comarcas de Ceará,
Paraíba, Alagoas e Itamaracá. Um dos motivos seria também à distância, fato que ocasionava
problemas nas resoluções dos crimes.2
Procuramos destacar pontualmente a relação de interferência e a circulação dos
representantes da capitania de Pernambuco nas capitanias e/ou territórios do Norte do Estado
do Brasil.

Capitania de Itamaracá

370
A Ilha de Itamaracá dentro do ordenamento das capitanias hereditárias foi doada a
Pero Lopes de Souza. Situada a uma distância de oito léguas ao norte do Recife, é
inteiramente separada da terra firme por um canal (KOSTER,1942, p. 339). Esta separação
física do território da capitania de Pernambuco não ausentou a capitania de Itamaracá da
mediação e da jurisdição da capitania de Pernambuco. Vera Acioli (1997) ao tratar sobre a
capitania de Itamaracá aponta que no período da Restauração em Pernambuco, a capitania de
Itamaracá voltou pertencer à Coroa, o que lhe transformava em uma capitania subordinada ao
mestre de campo general do Estado do Brasil, cargo que era conferido ao Francisco Barreto
que na mesma época ocupava o cargo de governador de Pernambuco. Não era incomum a
concomitância de cargos no nosso período de estudo. Questão que nos faz perceber que esses
agentes apropriavam-se das prerrogativas de outros ofícios que acumulavam para ampliarem
as jurisdições oficialmente pré-determinadas
Assim, a história da capitania de Itamaracá se moldou com a presença constante de
agentes de Pernambuco atuando em seu espaço, tanto dos governadores, como dos

* A autora é bolsista PIBIC- FACEPE – Trabalho orientado pela Profª. Drª. Jeannie da Silva Menezes, UFRPE

1
Arquivo Histórico Ultramarino. CU 015, Avulsos de Pernambuco, Cx. 10, doc. 960, 22/08/1672
2
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 015. Avulsos de Pernambuco Cx .64, doc5445, 30/07/1746
magistrados que constituíam o corpo da administração colonial. Torna-se importante entender
que a atuação externa de um oficial de outra capitania mesmo que autorizada pela Coroa nem
sempre possuía uma aceitação passível. É a partir dessa observação que podemos assinalar os
embates de jurisdição surgidos entre as capitanias. Um exemplo dessa não condição de
aceitação de forma tão natural é vista na carta dos oficiais da câmara de Itamaracá que
informavam ao Rei que o governador de Pernambuco Francisco de Brito Freire alegava ter
direito em administrar a capitania, portanto não deveria lhe tirar a jurisdição sobre ela.
Situação semelhante se estendia às outras capitanias do Norte:
Os vassalos e oficiais desta capitania da Ilha de Itamaracá __ representamos a
Vossa Majestade com a fidelidade e zelo com a qual sempre fazemos na mercê de
Vossa Majestade a força e valentia que nos quer fazer o governador de Pernambuco
dizendo que também se pertence esta capitania, por Vossa Majestade lhe conceder
afim na sua patente as mais capitanias anexas àquela capitania de Pernambuco
(...). Que anexa esta capitania a de Pernambuco como também o queria na da
Paraíba e Rio Grande.3

Alguns autores apontam o interesse do governador de Pernambuco Francisco de Brito


Freyre em subordinar as capitanias que dependiam militarmente de Pernambuco. Intenção que
lhe rendeu alguns opositores. Entretanto, não foi uma especificidade deste oficial. Alguns 371
governadores buscavam abranger a jurisdição do governo também para as questões judiciais.

Em representação do governador de Pernambuco encontramos a manifestação da


capitania de Itamaracá subordinada politicamente à Pernambuco para que o ouvidor tivesse a
mesma jurisdição da que possuía nesta capitania. Isto motivou uma diminuição da atuação da
capitania da Paraíba em Itamaracá. No parecer do Conselho Ultramarino à representação do
governador de Pernambuco encontramos: “e assim entende este Conselho que Vossa
Majestade mandar unir em toda a capitania de Itamaracá ao governo de Pernambuco e que o
ouvidor daquela ouvidoria vá fazer correição a Itamaracá e não o da Paraíba”.4

Um dos olhares sobre a jurisdição exercida na capitania de Itamaracá é encontrado na


dissertação e também na tese de Luciana de Carvalho Velez. Para a autora, houve uma divisão
de atribuições entre as capitanias de Pernambuco e Paraíba sobre a capitania de Itamaracá.
Onde para Pernambuco caberia o exercício judicial, mas as correições estariam ao cargo da
ouvidoria da Paraíba. Em sua tese Velez ainda defenderá a criação de uma ouvidoria da
3
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 015. Avulsos de Pernambuco Cx .07, doc704, 29/03/1663
4
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 015.Avulsos de Pernambuco 015. Cx .25, doc2274 ,1712
capitania de Itamaracá, “ao que tudo indica era uma ouvidoria composta por funcionários não
letrados, de nomeação donatarial, cujo ofício não era acumulado pelo Loco-tenente”5
(VELEZ, 2016, p.183).

Quanto às atuações judiciais, temos a impressão de ter ocorrido uma assimilação mais
espontânea por parte da capitania de Itamaracá em aceitar a interferência de um agente
externo, uma vez que os oficiais da câmara solicitaram a permissão para execução de
procedimentos judiciais na capitania de Itamaracá pelo ouvidor de Pernambuco. Dentro dos
procedimentos judiciais solicitados consistia a permissão para que os ouvidores de
Pernambuco pudessem expedir os alvarás de fianças e as cartas de seguro que constituíam
modelos de graça régia (TEXEIRA, 2011) concedidas aos julgados da justiça, pois havia
restrições aos ouvidores da capitania de Pernambuco para que pudessem atribuir estas mercês.
Ao que se refere à capitania de Itamaracá este ato era atribuído à Bahia, mas em consulta do
Conselho ultramarino os oficiais da câmara da capitania de Itamaracá indicavam que por
solicitação dos moradores desta capitania pudesse o ouvidor de Pernambuco Manoel da Costa
Ribeiro, expedi-las: “na forma de seu regimento poder conceder cartas de seguro a estes
moradores sem embargo de não serem de sua jurisdição por fornecer esta dispensa a
372
utilidade pública”6.
A narrativa desse acontecimento nos permite analisar e ainda questionar a presença
dos agentes de nomeação régia como sendo um elemento apenas de interesse da Coroa, mas
também de um interesse interno, como de moradores ou oficiais da câmara, talvez pela
intenção em adquirir mais independência do governo geral da Bahia.
Identificamos a atuação dos agentes de Pernambuco como juízes de causas
particulares de moradores. Conforme ocorreu com a Dona Joana Ramires de Hurrea, viúva do
capitão Dom Martinho Sotto Maior que em 04 de novembro de 1683 fez petição à Vossa
Majestade através do Conselho ultramarino para que por morte de seu pai João Ramires, que
morreu na cidade de Sevilha, na qual ela era a única herdeira, lhe fosse permitido cobrar as
dívidas dos moradores da capitania de Itamaracá que deviam ao seu Pai, em consulta do
Conselho ultramarino ao Rei: “Pede a Vossa Majestade que lhe faça passar provisão para

5
Procurador que governava a capitania de Itamaracá
6
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 015.Avulsos de Pernambuco ,Cx 19,doc 1849 , 19/10/1700
que o ouvidor da capitania de Pernambuco ao que o seu juízo a dita causa ele seja juiz
competente.”7A resposta à solicitação ocorre dentro do mesmo ano:
Por carta de 23 de novembro do ano sagrado assinada pela real mão de Vossa
Majestade se ordenou ao ouvidor de Pernambuco informar se o seu parecer neste
requerimento como corregedor da comarca e respondeu em outra em 20 de agosto
do presente que pela informação que tomara (...) da grande falta de administração
da justiça que sempre se experimentou em Itamaracá, sendo que os pleitos eram ali
muitos (...). Ao Conselho parece que Vossa Majestade seja serviço mandar passar
provisão__ para que o ouvidor de Pernambuco que ao serviço da causa seja o juiz
competente nela sem embargo de serem os réus moradores em capitanias diversas” 8

Em termos gerais, a capitania de Itamaracá a princípio deveria possuir sua


administração compartilhada em entre a Bahia, Paraíba e Pernambuco, mas como podemos
perceber a influência e circulação dos agentes da capitania de Pernambuco dentro de espaço
da Ilha era superior ao que teoricamente era sugerido.

Território das Alagoas do Sul


O território das Alagoas nos séculos XVII e XVIII era compreendido pelas vilas de
Porto Calvo, Penedo e Santa Maria Madalena. Estas vilas estavam situadas ao sul da capitania
373
de Pernambuco e estavam sob a jurisdição do governo desta capitania. Desta forma, o
território das Alagoas do Sul era espaço também de atuação dos ouvidores nomeados para
Pernambuco na administração da justiça. Como parte das atribuições dos ouvidores de
Pernambuco constava a realização da correição nas vilas de sua jurisdição. Assim, nos
últimos anos do século XVII em uma dessas ações de correições o ouvidor desta capitania de
Pernambuco José de Sá Mendonça contrariou os oficiais da câmara das Alagoas que
declaravam que o dito ouvidor negou conceder os salários que estariam devidos aos agentes
que atuavam na câmara, como o escrivão, alcaide e carcereiro 9. Um ano após o ocorrido em
consulta do Conselho ultramarino houve uma resolução favorável aos oficiais da câmara.
Mafalda Soares10 aponta que por meados do século XVII ocorre a criação das novas
comarcas e ouvidorias no espaço da América Portuguesa, fenômeno que partiu do
desmembramentos de outras instâncias judiciais. Observamos ainda que as novas instituições

7
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 015. Avulsos de Pernambuco Cx. 13, doc 1267 ,04/11/1683
8
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 015. Avulsos de Pernambuco Cx . 13, doc 1267 ,04/11/1683
9
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 004. Avulsos de Alagoas. Cx. 1, doc. 4, 25/04/1695
10
Ver CUNHA, Mafalda Soares da. & NUNES, Antônio Castro. Territorialização e Poder na América
Portuguesa. A criação de comarcas. Séculos XVI-XVIII. 2016
de justiça criadas para o Norte do Brasil estavam incorporadas na jurisdição da capitania de
Pernambuco, gerando um mecanismo de jurisdições sobrepostas, ação que propiciava o
surgimento de embates entre os agentes de Pernambuco e os agentes das regiões vizinhas. A
autora ainda aponta que alguns indicadores se tornavam motivadores para a criação das novas
instituições. Um desses indicadores seria o crescimento populacional dos territórios que antes
não possuíam as instituições responsáveis por administrar a justiça. Particularidade que se
confirmou como fomento para a criação da comarca nas vilas do Sul de Pernambuco.
O crescimento da população e o desenvolvimento econômico nas Alagoas propiciaram
a criação de uma nova comarca na capitania de Pernambuco, a fim de atender esta localidade,
pois a distância da ouvidoria de Olinda de onde partiria o ouvidor para atuar neste espaço era
prejudicial ao cumprimento do serviço real. Em 1709 a solicitação ao rei para criação de uma
nova comarca parte tanto do governo de Pernambuco como dos moradores e também dos
oficiais da câmara da vila de Porto Calvo11. Solicitação que foi atendida e agradecida pela
câmara de Porto Calvo ao Rei em 1712 “sem demora na resolução por Vossa Majestade de
logo servido responder esta câmara que mandaria um ministro de toda suposição para
administração da justiça”12. 374
O professor Antonio Filipe Caetano em Ouvidores da discórdia...(2011)13, expõe que
a criação desta comarca não trouxe necessariamente uma autonomia no relacionamento com a
capitania de Pernambuco, sobretudo pelo envolvimento dos moradores das Alagoas que
mesmo almejando um território mais autônomo, não aceitavam as atuações dos primeiros
nomeados para a comarca de Alagoas que agiam comumente em busca de interesses pessoais.
Não era peculiar à administração colonial que a demanda de interesses pessoais de
funcionários do Rei se tornassem motivadores para conflitos entre estes homens que estavam
ao serviço do Rei.
O início da criação da comarca nas Alagoas do Sul apresentou um grande conflito
entre os ouvidores João Vilela do Amaral e Manuel de Almeida Matoso nomeados para esta
comarca. Encontramos como mediador deste conflito o representante da justiça de
Pernambuco no cargo de juiz do tombo e desembargador, José de Lima Castro. O magistrado
solicitou à Coroa seu envio ao território das Alagoas para ouvir as queixas contra o sucessor

11
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 004. Avulsos de Alagoas. Cx. 1, doc. 8, 15/06/1709
12
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 004. Avulsos de Alagoas. Cx. 1, doc. 10, 26/05/1712
13
Ver CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Ouvidores da discórdia: contestações políticas e conflitos sociais na
formação da comarca das alagoas (1711-1722). 2011
de João Vilela do Amaral. As acusações eram mútuas entre os dois ouvidores e também
partiam dos moradores das vilas da Alagoas do Sul e faziam referências diversas às falhas
contra uma posição idônea dos administradores da Justiça14.
José de Lima Castro foi autorizado pela coroa para mediar o conflito. Porém, nos
parece que sua presença nas Alagoas não foi satisfatória para algumas partes, visto que,
Manuel de Almeida Matoso que estava nomeado para assumir o cargo de ouvidor requer ao
Rei suspender o seu antecessor João Vilela do Amaral, pois o magistrado de Pernambuco não
havia realizado a residência como havia sido ordenado:
Pareceu ao conselho representar a Vossa Majestade que Manuel de Almeida
Matoso está nomeado __ tempos no lugar de ouvidor geral das Alagoas e que ele o
ia servir em março do ano passado __passou ordem para tirar residência ao seu
antecessor João Vilela do Amaral, porém como ele não foi no tempo que se
esperava e depois sobra as queixas de que tinha na conduta __ contra o dito
ministro(...) o serviço de Vossa Majestade a que nesta ocasião ia servir o juiz do
tombo José de Lima Castro (...) que Vossa Majestade o encarregou de tirar essa
residência(...) estando vinte dias naquela comarca sem quem o sindicante a quem se
tem cometido a sua residência dentro deles a vá tirar”15

O Conselho informou o pedido para que ficasse suspenso o antecessor João Vilela do
Amaral. E mostrou a insatisfação com a atuação do ministro de Pernambuco José de Lima 375
Castro em 16 de março do ano seguinte com a representação do senado e do povo:
Foi vossa Real Majestade de servido mandar sindicar do procedimento do ouvidor
desta comarca da vila das Alagoas João Vilela do Amaral pelo desembargador José
de Lima Castro que a dando princípio desta residência, quando chegou a notícia
neste senado, da sentença acabado, a devassa __ se retirou para Pernambuco, qual
forma ficarão o senado e povo sem serem ouvidos das suas queixas do mau
procedimento com que se houve o dito ouvidor.16

A conclusão deste embate ainda contou com a participação do governador de


Pernambuco à época, Manuel de Souza Tavares que tomou partido por Manuel de Almeida
Matoso, não apenas sugeriu a suspensão do cargo como prendeu o João Vilela do Amaral17. O
desfecho indicado pelo Rei foi de não favorecimento a nenhum dos dois ouvidores, pois
ambos eram inaptos para ocuparem o cargo da comarca das Alagoas:

14
Arquivo Histórico Ultramarino. CU.004. Avulsos de Alagoas. Cx. 1, doc. 20, 03/07/1721
15
Arquivo Histórico Ultramarino. CU.004. Avulsos de Alagoas. Cx. 1, doc. 21, 17/10/1721
16
Arquivo Histórico Ultramarino. CU.004. Avulsos de Alagoas. Cx. 1, doc. 22, 16/03/1722
17
Arquivo Histórico Ultramarino. CU.004. Avulsos de Alagoas. Cx. 1, doc. 27, 04/04/1724
“Pareceu ao Conselho fazer presente a Vossa Majestade que todos os ministros que foram
nomeados até o presente para este lugar de ouvidor geral da Alagoas, não tiveram os
requisitos necessários para a boa administração da justiça” 18
A documentação não deixa claro o motivo pelo qual o ministro de Pernambuco não
concluiu de forma satisfatória a devassa que lhe foi atribuída. Contudo, não é estranho ao
nosso estudo perceber que estes ministros estavam sempre ligados por uma rede de
conveniência e que interferir ou se omitir sobre determinada situação não tendia a ser
casualidade e sim uma atitude repleta de diversos interesses.
Outro magistrado de Pernambuco que nos chamou atenção foi Antônio Rabelo Leite.
Esse ministro atuou como ouvidor na capitania de Pernambuco entre o período de 1737 a
1742, mas antes de assumir o cargo nesta capitania foi ouvidor na comarca das Alagoas. Os
documentos apontam que sua atuação provocou algumas queixas no território do Sul de
Pernambuco19,mas ao que parece ele detinha certo prestígio perante a coroa ao se negar do
cumprimento de determinada atribuição. Exemplo que ocorreu no ano de 1741 quando se
opôs à indicação para realizar a residência do ouvidor da comarca das Alagoas:

“Majestade foi servido ordenar-me para a vila das Alagoas e tirasse a residência
376
do Bacharel João Gomes da Silva e Ayala de todo o tempo que serviu o cargo de
ouvidor daquela comarca: é que preciso dizer a Vossa Majestade que não me é
possível (...) minha ausência por deixar este lugar.”20

O Ouvidor procurou esclarecer que não seria indicada sua saída da capitania de
Pernambuco e ainda sugeriu ao Rei que o procedimento pudesse ser realizado pelo ouvidor
atual do cargo, o bacharel José Gregório Ribeiro, sendo ele posteriormente o responsável por
realizar a residência21.
Casualmente ou não, João Gomes da Silva e Ayala foi o ouvidor que antecedeu ao
Antônio Rabelo Leite na comarca de Alagoas e havia solicitado à suspensão do Antônio
Rabelo quando o mesmo era o ouvidor daquela capitania22. Coube ainda ao mesmo sujeito,
Antônio Rabelo, não aceitar um determinado agente indicado para realizar a investigação do

18
Arquivo Histórico Ultramarino. CU.004. Avulsos de Alagoas. Cx. 1, doc. 27, 04/04/1724
19
Arquivo Histórico Ultramarino. CU.004. Avulsos de Alagoas. Cx. 2, doc. 89, 23/03/1734
20
Arquivo Histórico Ultramarino. CU.004. Avulsos de Alagoas. Cx. 2, doc. 106, 14/08/1741
21
Arquivo Histórico Ultramarino. CU.004. Avulsos de Alagoas. Cx. 2, doc. 126, 02/05/1743
22
Arquivo Histórico Ultramarino. CU.004. Avulsos de Alagoas. Cx. 2, doc. 88, 22/03/1734
seu período de atuação. Antônio ainda sugeriu um novo responsável para o exercício.
Acontecimento que trataremos mais adiante quando nos referirmos à capitania da Paraíba.
Podemos apresentar como uma possível conclusão deste episódio que a própria
indicação dos ouvidores de Pernambuco para realização das devassas mesmo quando poderia
ser realizada por outro oficial dentro da capitania, nos sugeri que esse direcionamento era um
interesse que necessariamente não parte da capitania de Pernambuco, mas da própria Coroa.

Capitania da Paraíba
A capitania da Paraíba foi dentro das capitanias do Norte a segunda capitania a possuir
uma Ouvidoria. È possível que esta condição tenha lhe conferido a motivação para buscar a
não subordinação à jurisdição da capitania de Pernambuco. A documentação acessada nos
permite dizer que era interesse dos representantes desta capitania a busca para ter a jurisdição
dos seus representantes comparada à jurisdição aos representantes de Pernambuco.
A aproximação geográfica das duas capitanias proporcionava na circulação dos
oficiais da justiça das duas capitanias certa alternância nas atribuições sobre determinados
territórios. Uma atribuição que estaria determinada para uma das capitanias, terminava por 377
determinada situação, tendo a atividade exercida pelo representante da outra capitania.
Exemplo que encontramos na ordem que deveria ser dada aos moradores da vila de Igarassu
pelo ouvidor da Paraíba, mas que pela presença na localidade do ouvidor de Pernambuco que
estava realizando correição, recai a determinação para que o mesmo a cumpra, por solicitação
do próprio ouvidor da Paraíba.
Vossa majestade me manda na forma da provisão da real junta observação do que
dispõe a lei pena de responder na evidência pela inobservância dela sobre os
pelouros na Vila de Igarassu (...) e pertence ao destrito da cidade de Pernambuco
em que o ouvidor da mesma comarca entra por correição e faz os pelouros me
parece que o dito ouvidor e corregedor de Pernambuco se deve mandar cumprir o
que Vossa Majestade em ordem mandou de determinação o por servido da Paraíba.
O ouvidor geral da Paraíba do Norte Antonio Ferreira Gil. 23

Podemos destacar o ocorrido no ano de 1742, com o ouvidor da Capitania de


Pernambuco, Antônio Rebelo Leite, ouvidor que citamos anteriormente quando circulou pelas
Alagoas do Sul. Contrariando uma indicação real em que foi designado ao ouvidor da Paraíba
Inácio de Souza Jacomé ser o responsável por investigar seu período de atuação. A escolha

23
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 014. Avulsos da Paraíba. Cx . 12, doc 1041, 30/08/1744
real não agrada ao ouvidor de Pernambuco que solicita outro agente para este serviço, pedido
atendido pelo Rei.

Diz Antônio Rebelo Leite, ouvidor geral da Capitania de Pernambuco, que tendo
acabado o dito lugar, e desejando retirar-se a este reino, pediu se lhe nomeasse
sindicante para lhe tirar residência porque tem notícia pede nomeação de qualquer
outro ministro para tirada de sua residência, por suspeitar do ouvidor da Paraíba,
Inácio de Souza Jacomé Coutinho, devido às diferenças existentes entre ambos. 24

Os limites da jurisdição da capitania de Pernambuco sobre a capitania da Paraíba não


estavam claros, sobretudo no período da sua anexação à Pernambuco em 1756. O tema foi
uma preocupação do ouvidor da Paraíba Domingos Monteiro da Rocha sobre as mudanças
que essa anexação traria ao funcionamento da ouvidoria. 25 Essas dúvidas também motivaram
outros representantes, tal qual o governador da Paraíba Jerônimo José de Melo e Castro que
solicitou esclarecimentos de quais seriam os limites da subordinação da capitania da Paraíba à
capitania de Pernambuco, pois esta indefinição dificultava na resolução dos conflitos, pois
alguns sujeitos se aproveitavam dessa ambigüidade da jurisdição.26
Quando a capitania da Paraíba foi anexada à capitania de Pernambuco, os 378
representantes da Paraíba sabendo que determinada ação acarretaria sujeições à Pernambuco,
solicitaram intercessão ao secretário do Ultramar para que junto ao Rei se evitasse a perda de
autonomia27. Em outra carta os representantes da capitania da Paraíba suplicam:

Com que se empregam no que entendem ser do serviço de Vossa Majestade, que
tudo deve comover a real piedade de Vossa Majestade para o deferimento desta
nossa suplica, mandando que se conserve o governo desta capitania independente
da de Pernambuco como sempre foi desde o princípio.28

Podemos observar que dentro das capitanias do Norte, a relação dessas duas capitanias
talvez tenha sido a que mais provocou tensões, não sendo atípico encontrarmos na
documentação solicitações por parte dos ouvidores da capitania da Paraíba para que houvesse
a igualdade de ordenamentos e da jurisdição. Bem como, muitas queixas das sobreposições
das jurisdições e consequentemente reclamações de subordinação e solicitação para não
perder autonomia em relação à capitania de Pernambuco.

24
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 015. Avulsos de Pernambuco. Cx . 57, doc4930 , 14/04/1742
25
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 014. Avulsos da Paraíba. Cx. 20, doc1535, 16/04/1757
26
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 014. Avulsos da Paraíba. Cx. 24, doc1857, 29/07/1769
27
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 014. Avulsos da Paraíba. Cx. 19, doc1494, 19/05/1756
28
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 014. Avulsos da Paraíba. Cx .19, doc1495 ,19/05/1756
Capitania do Rio Grande do Norte
A capitania do Rio Grande do Norte teve essa denominação a partir do ano de 1730,
antes era nomeada como Rio Grande conforme carta de doação citada por Capistrano de
Abreu "Neste lugar começava, para se estender sobre um litoral de cem léguas até angra dos
Negros, a capitania do Rio Grande, dada em comum ao grande historiador João de Barros e a
seu associado Aires da Cunha”. (ABREU,1998, p. 51).
Foi de Pernambuco que saíram os homens para colonizar a capitania do Rio Grande do
Norte:

Em dezembro atingem a Pernambuco onde os recebe Duarte Coelho (...) De


Pernambuco (não se sabe o ponto de partida, Olinda ou Igaraçu), Aires da Cunha,
com 900 homens em dez navios, veio bordejando pelo litoral, desprezando o Rio
Potengi (Rio Grande) e fundeando na foz do Rio Baquipe, Rio Pequeno ou do
Ceará-Mirim, menos de doze quilômetros ao norte da futura cidade de Natal.
(CASCUDO, 1955)

Como também foi de Pernambuco que partiram os homens que realizavam a


administração colonial desta capitania. A capitania do Rio Grande do Norte foi um território 379
marcado pela presença de militares. A constante ameaça da presença da invasão francesa, da
holandesa e própria resistência indígena motivou a preocupação com o espaço físico desta
capitania. Talvez por isso os documentos oriundos da administração da justiça neste território
nos apresentam frenquentemente os ouvidores da capitania de Pernambuco com atribuições
de nomeação de patentes e cargos militares. Bem como, cabiam também aos ouvidores
atestarem os antecedentes e a carreira dos militares. Assim, é escrito de Lisboa ao Conselho
Ultramarino que seja servido com maior brevidade ao ouvidor de Pernambuco Antônio
Rodrigues da Silva averiguar os rendimentos e emolumentos dos capitães-mores da capitania
do Rio Grande do Norte29.
Como citamos anteriormente a relação da capitania de Pernambuco com a capitania da
Paraíba era permeada por tensões e uma situação nos chamou a atenção. A capitania de
Pernambuco era responsável por receber os presos da capitania do Rio Grande, situação que
talvez não agradasse à Paraíba, uma vez que, o ouvidor Tomás da Silva Pereira procurou

29
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 018. Avulsos do Rio Grande do Norte. Cx .3, doc174 ,03/12/1732
impedir os presos acusados de crimes graves fossem enviados para serem julgados na
capitania de Pernambuco como era de costume.30
Assim como ocorreu com a capitania da Paraíba, a sujeição à capitania de Pernambuco
não era absoluta por parte dos agentes do Rio Grande do Norte. No ano de1747 em carta dos
oficiais da câmara, eles solicitaram que a capitania do Rio Grande do Norte voltasse a
pertencer ao governo geral da Bahia. Eles alegavam para justificar o pedido, o fato que,
estando a capitania do Rio Grande do Norte sujeita à capitania de Pernambuco, poderia
ocasionar um prejuízo nas rendas da Fazenda Real. Em carta eles solicitaram:
Pela obrigação dos cargos que ocupamos, estamos obrigados a apresentar a Vossa
Majestade o que é mais conveniente na sua observância das leis divinas como
também as tais determinações de Vossa Majestade. Como esta capitania esteve
subordinada ao Estado Geral da Bahia a nossa __em que devíamos (...). Como em
conveniências que nos tirando o que agora não poderemos conseguir depois que foi
servido mandar subordinar a Pernambuco porque depois dessa sujeição terá a
Vossa Majestade no escrito pelas contas que tem dos capitães-mores, câmaras e
provedoria (...) E como estar esta capitania subordinada a Bahia, não eximimo-nos
de fies vassalos de Vossa Majestade; Antes queremos mostrar na observância de
suas leis a nossa fidelidade (...) em nome de todo o povo pedimos seja servido
mandar se torne outra vez anexada aquele Estado, pois nesta suplica que fazemos
não buscamos mais privilégios. 31 380
Os serviços prestados à Coroa pelos indivíduos da Capitania de Pernambuco deixaram
brechas para que estes homens buscassem espaços de atuação nesses lugares, permitindo que
de alguma forma a capitania de Pernambuco possuísse influência sobre estas localidades.
Assim como solicitou Antão Gomes os ofícios de alferes e tenente da fortaleza do Rio Grande
do Norte e também de tabelião do judicial para seus parentes, como forma de reconhecimento
pelos serviços prestados na guerra de restauração da capitania de Pernambuco.32

Capitania do Ceará
A capitania do Ceará foi um território que pertenceu ao Estado do Maranhão e estava
sob a sua subordinação até o ano de 1656 quando a capitania do Ceará passou a ser
subordinada à capitania de Pernambuco. Assim como a Paraíba, a capitania do Ceará possuiu
uma ouvidoria, criada em 1723. A criação de uma instituição própria como a ouvidoria
deveria caracterizar uma autonomia dos seus ouvidores, mas o que apresentaremos no

30
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 018. Avulsos do Rio Grande do Norte. Cx .2, doc167 ,25/03/1732
31
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 018. Avulsos do Rio Grande do Norte. Cx .5, doc326 ,30/05/1747
32
Arquivo Histórico Ultramarino. CU. 015. Avulsos do Pernambuco. Cx .7, doc596 ,29/10/1657
exemplo abaixo é que esses ministros estavam passiveis à fiscalização da coroa e também dos
magistrados da capitania de Pernambuco.
Alguns autores entendem que a responsabilidade em matérias econômicas da capitania
de Pernambuco sobre alguns territórios vizinhos convergia em uma dependência em outras
matérias inclusive a judicial. Na observação da professora Valdelice Leão uma carta régia
datada de 03 de dezembro 1663, em que o Rei reconhece o socorro da Capitania de
Pernambuco para com a Capitania do Ceará foi um ato de indiscutível subordinação. De
acordo com carta transcrita pela autora:

Porque convémameu serviço terse aqui notíciadogasto que sefaz de minhafazenda


dessa Capitania de Pernambuco comado Ceará, e seu presídio que por hora é
socorridodesta economia tudo o mais quesedespende com amesma Capitania, Vos
encomendo muitoque façais fazer de tudo uma relação pormenor, que me enviareis
com toda a brevidade, dirigida ao meu Conselho Ultramarino, avisando-me
juntamente que resulta a meu serviço dita Capitania do Ceará estar sujeita a esse
Governo (...)33

Ainda neste sentido a autora afirma que “parte daí a irresistível influência de
Pernambuco sobre o Ceará e a dependência deste, quer na esfera econômica, administrativa e
381
judiciária, quer na religiosa e na intelectual. Tudo era feito com Olinda e Recife ou através
delas” (GIRÃO, 1982, p. 150).
Um exemplo de clara influência do magistrado da capitania de Pernambuco na
capitania do Ceará ocorreu no embate entre o ouvidor de Pernambuco José Inácio de Arouche
e os juízes ordinários, juízes de instância inferior que atuavam nas câmaras das capitanias. No
caso citado, os juízes ordinários eram os responsáveis por administrarem os bens do ausentes
da capitania vizinha, e o ouvidor de Pernambuco por ordem real foi enviado para evitar os
descaminhos que estes juízes estavam praticando na capitania vizinha:
Pela ordem junta de Vossa Majestade servido ordenar-me procurar evitar os
descaminhos dos juízes ordinários da capitania do Ceará fazem nos bens dos
ausentes. Tanto que tomei posse deste lugar informando-me achei que na capitania
a entrada mais ___ não havia arrecadação que o regimento manda e repetidas
vezes tenho recomendado aos juízes da capitania. Maior esta matéria e o ano
passado de 1708 dando a ___ na capitania um Marcio do___pelo juiz Jorge de
Lemos por interposta pessoa rematar os bens por preços diminutos, fiz contra ele
auto e foi condenado. Com este exemplo (...) dar conta neste juízo alguns
descaminhos sendo evitado e será conveniente que Vossa Majestade
particularmente recomenda _ ajude os juízes nesta matéria e dê conta neste juízo

33
Livro de Contas. A.H.U. Códice 275-1663. Divisão de Pesquisa Histórica do Departamento de História do
Centro de Ciências Humanas da U.F.PE.
dos descaminhos que eles fizeram pena de se lhe dar em culpa sobre tudo Vossa
Majestade mandara o que for mais ao real serviço.34

A narrativa deste episódio nos permite perceber a atitude segura e decisiva do ouvidor
da capitania de Pernambuco em prender um juiz vizinho, pela maneira como ele relata sua
atitude ao Rei, com certeza possuía respaldo real que o enviara para evitar as práticas que
distorciam a boa administração da justiça.
Em nosso estudo buscamos questionar as motivações para o surgimento dessas
interferências e embates. Um dos métodos que privilegiamos foi analisar a abrangência da
jurisdição da capitania de Pernambuco, seja através dos seus agentes ou de suas instituições,
como as ouvidorias e comarcas. Nesta perspectiva, as nossas consultas à documentação
apresentaram o texto contido na Informação Geral da Capitania de Pernambuco, ao tratar da
abrangência de sua comarca:
A comarca de Pernambuco tem por Capital Olinda, e por termo as Vilas de
Igarassu, Serinhaém e Recife: a sua extensão pela costa do mar é desde o Rio de
Santa Cruz[...]. Pelo Sertão se estende esta comarca, a quase quatrocentas léguas
até o Rio Carunhanha, que faz Barra no São Francisco, e serve de baliza, que
separa este Governo do das Minas [...].35

Ao final do regimento designado aos ouvidores da capitania de Pernambuco


382
encontramos em registro real a condição da jurisdição desta capitania para além de seu
território “além da jurisdição, que é concedida aos ditos ouvidores por este regimento, lhes é
concedido serem juízes da coroa como se vê da ordem, que segue.”36
Governador da Capitania de Pernambuco. Eu o Rei vos envio muito saudar.
Havendo visto a representação, que me fizestes sobre o prejuízo, que experimentam
os meus Vassalos nesta Capitania de não haver nela Juiz da Coroa para as
contendas [...].Fui servido resolver que o Ouvidor Geral dessa Capitania seja nela
Juiz da minha coroa, ficando-lhe compreendidas a da Paraíba e Itamaracá para
se evitarem as vexações e opressão, que estando dada a providencia necessária
para as mais Conquistas, como é a de Angola e Rio de Janeiro deixe de se observar
o mesmo nessa de Pernambuco, de que vos aviso para teres entendido a resolução,
que fui servido tomar nesta matéria; e ao Ouvidor Geral o mando assim declarar.
Escrita em Lisboa a 24 de Março de 1708 = Rey.37

34
Arquivo Histórico Ultramarino. A.H.U. CU. 015. Cx . 23, doc 2126 ,18/04/1710.
35
Informação geral da capitania de Pernambuco, 1749. Anais Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol XXVIII,
1906 p. 460.
36
Informação Geral da Capitania de Pernambuco, 1749. Anais Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol
XXVIII, 1906. p. 454.
37
Informação Geral da Capitania de Pernambuco, 1749. Anais Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol
XXVIII, 1906. p. 454.
Conclusões
Nossa investigação aponta que as motivações e as resoluções dessas tensões judiciais
ocorriam de formas variadas de acordo com cada capitania, mais ainda, de acordo com
aceitação da circulação dos agentes representantes de Pernambuco nestes espaços das
capitanias vizinhas.
Para além do que historiografia apresenta como reconhecimento da participação da
capitania de Pernambuco no que diz respeito aos aspectos políticos, econômicos e militares
das outras capitanias. Essa participação e os embates oriundos dessa relação se estenderam
também à esfera judicial.

Referências

ABREU, J. Capristano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800. Brasília: Conselho


Editorial do Senado Federal, 1998.

ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e conflitos – aspectos da administração colonial.


Recife: EDUFPE/EDUFAL, 1997.
383
CASCUDO, Luís Câmara. História do Rio Grande do Norte. Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e cultura, 1955.

KOSTER. Henry. Viagens ao nordeste do Brasil – Travels in Brazil. São Paulo, Rio de
Janeiro, Recife, Porto Alegre. Companhia Editora Nacional, 1942.

Teses e Dissertações

VELEZ, Luciana de Carvalho Barbalho. Capitania de Itamaracá – Poder local e conflito:


Goiana e Nossa Senhora da Conceição (1685-1742).Dissertação - Mestrado em História .
João Pessoa. UFPB, 2009.

_____________. Donatários e administração colonial: A Capitania de Itamaracá e a casa de


Cascais (1692-1763). Tese - Doutorado em História. Rio de Janeiro. UFF, 2016.

TEXEIRA, Maria Lúcia Resende Chaves. As cartas de seguro: de Portugal para o Brasil
Colônia. O perdão e a punição nos processos-crimes das Minas do ouro (1769-1831). Tese –
Doutorado em História. São Paulo. USP – Faculdade de filosofia, letras e ciências humanas
da Universidade de São Paulo, 2011.
Artigos

CAETANO, Antonio Filipe Pereira. Ouvidores da discórdia: contestações políticas e


conflitos sociais na formação da comarca das alagoas (1711-1722). In. Anpuh, São Paulo,
julho 2011.

CUNHA, Mafalda Soares da. & NUNES, Antônio Castro. Territorialização e Poder na
América Portuguesa. A criação de comarcas. Séculos XVI-XVIII. In.:Tempo. Niterói, online,
vol. 22, n. 39, p. 01-30, jan-abr, 2016.

GIRÃO, Valdelice Carneiro. Dependência da Capitania do Ceará do Governo de


Pernambuco (1656-1799). Revista do Instituto do Ceará, vol. 96, Ceará, 1982, p. 150.

384
PROBABILISMO
JURÍDICO E O
PENSAMENTO
SALMANTINO NA
AMÉRICA
PORTUGUESA: UMA
ANÁLISE A PARTIR DO
CONFLITO ENTRE O
JUIZ TEIXEIRA DA
MATTA E O BISPO
SANTA TERESA.

MARIA ALICE
MENDES ROCHA

MESTRANDA (UFRPE)
Introdução

O Dr. Antonio Teixeira da Mata, juiz de fora da capitania de Pernambuco durante os


anos de 1748 a 1752, proferiu sua fala sobre a nulidade da decisão tomada pelo então Bispo
de Olinda, Dom Frei Luís de Santa Teresa em excomungá-lo após desentendimentos
jurisdicionais durante a atuação de ambos em Pernambuco. A querela que se sucedeu entre
eles se deu por conta da decisão tomada por Teixeira da Mata ao interferir em questões que o
Bispo entendia serem estritamente do foro eclesial.
Nesse caso especifico, o desentendimento entre o juiz de fora e o bispo envolvia uma
386
criança que estava no Recolhimento de Nossa Senhora do Paraíso a pedido do pai, José
Fernandes da Silva, que ao se separar da esposa, Clara Cardosa, acusando-a de adultério,
resolve pedir junto ao Bispo de Olinda a aceitação da filha Luiza no Recolhimento do
Paraíso1. O Recolhimento do Paraíso também era conhecido como beatério do Paraíso, sendo
uma casa surgida das necessidades de mulheres pobres e desamparadas que, sem condições
econômicas para tomar um estado, resolvem fazer votos particulares, mantendo a virgindade e
enclausurando-se voluntariamente em suas casas2. José Fernandes da Silva obteve do Bispo
Frei Luís de Santa Tereza a resposta para que a menina ficasse recolhida, já que antes estava
sob os cuidados da mãe, que agora nutria má fama3.

* A autora é mestranda em História pela Universidade Federal Rural de Pernambuco.


1
Papéis do Brasil, maço 1, num. 2 PT/TT/PBR/M1/000003
2
ALMEIDA, Suely Creusa Cordeiro de. O Sexo Devoto: normatização e resistência feminina no Império
Português XVI-XVIII. Recife: Editora Universitária/UFPE, 2005. P. 261.
3
Minuta – Querela de Antônio Teixeira da Mata contra o Bispo. Papéis do Brasil, maço 1, num. 2. Processo - PT-
TT-PBR-16-3.
A decisão de Frei Luís de Santa Tereza não apenas aponta para a ideia de pátrio
poder4, ou seja, que estava delegado ao pai o direito de inferir nas decisões sobre o futuro da
filha5, mas também o que disse São Tomás de Aquino acerca da organicidade da família,
quando escreveu que o pai é o princípio nobre, ministrando a mãe na geração do homem a
matéria informe do corpo, que por virtude do sémen do pai é formada e disposta de forma
racional6.
Por sua vez, Clara Cardosa tentou recorrer ao então governador Marcos de Noronha
para reaver a filha que já se encontrava no Recolhimento do Paraíso. O governador,
provavelmente para não entrar em conflito com o Bispo Santa Teresa, não atende às suplicas
de Cardosa.
Dentro da concepção dos ordenamentos, o peso do adultério incide em diferente
medida para homens e mulheres durante o Antigo Regime. Antonio Hespanha cita o jurista
medieval Baldo quando diz que:

Embora seja, em qualquer caso, igualmente censurável do ponto de vista da


moral abstrata (pois ambos os adúlteros violam a mútua obrigação de
fidelidade), a moral positiva julga-o diferentemente, já que o adultério da 387
mulher não apenas faz cair o opróbio sobre os filhos e obscurece a
paternidade dos filhos (turbatio sanguinis), como segundo o célebre jurista
Baldo (século XIV) – causa aos maridos uma dor maior do que a da morte
dos filhos7.

A chegada de um novo governador e um novo juiz de fora para a Capitania de


Pernambuco em 1748 alterou o curso das decisões e fez despontar uma forte desavença entre
os homens de governança da capitania. Quando se estabeleceu na câmara, Antonio Teixeira

4
Esta ideia de que o pátrio poder anda ligado à geração (e não à impossibilidade de os filhos se governarem a si
mesmos) faz com que, no direito português, ele seja tendencialmente perpétuo, não se extinguindo pela
maioridade do filho, que pode continuar in potestate até à velhice.
5
HESPANHA, António Manoel Botelho. Direito luso-brasileiro no Antigo Regime. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2005.
6
S. Tomás, Summa theologica, IIa.IIae, q. 16, art. 10, ad prim.
7
HESPANHA, Op. cit., p. 169.
da Matta toma por assessor um rábula8 chamado José Correa. Esse por sua vez, era morador
da Vila de Goiana e recebeu fortes acusações por ter um suposto costado judaico9.
O que sucedeu a esses fatos foi a decisão de Teixeira da Matta de intervir em favor da
mãe, Clara Cardosa, para reaver a menina Luiza que se encontrava no Recolhimento de Nossa
Senhora do Paraíso. Instala-se na capitania de Pernambuco um “pé de guerra” entre o juiz
Teixeira da Matta e o Bispo Frei Luís de Santa Tereza. Em meio às trocas de acusações entre
tais figuras de poder, caiu sobre João Correia, o então assessor do juiz, as arguições de manter
com Clara Cardosa uma relação de concubinato, o que seria a motivação para favorecê-la
junto ao juiz de fora.
Em meio à querela, tomando como afronta ao braço eclesiástico as tomadas de decisão
do juiz de fora, Frei Luís o excomungou. Na câmara, o juiz declara como sendo nula a ação de
excomunhão contra ele proferida pelo Bispo, trazendo em sua fala, citada no começo do
presente artigo, as reflexões de Azpilcueta Navarro, quando diz que não havia apenas
sentenças nulas em tribunais forenses, mas também sentenças de excomunhões nulas. A
declaração de Antonio Teixeira da Mata evidencia duas questões que trataremos adiante: a
presença do direito canônico e da teologia na argumentação do foro civil e a circulação das
ideias dos tratadistas dos séculos XVI, XVII e XVIII dentro do Mundo Ibérico.
388
O Direito Canônico e os tratados nos estudos da justiça

Na segunda metade do século XVI e durante o século XVII, boa parte do a literatura
jurídica – tratados – foi desenvolvida por teólogos pertencentes a diversas ordens religiosas 10.
Levando em consideração essa incerteza do direito, a argumentação era de suma importância
para as decisões dos juízes. Citar os tratados e as falas de juristas era uma forma de
encaminhar novas considerações em causas onde estivesse presente as controvérsias. Ainda
sobre a incerteza do direito Hespanha diz que:

A incerteza do direito não é igualmente boa ou má para todos. Normalmente,


serve os mais poderosos, os que têm capacidade de influenciar, de
subordinar, de sustentar com um litígio durante anos em tribunal ou, pura e

8
Um advogado prático. O rábula era alguém que advogava por Provisão Real, não tendo sido formado nas
cadeiras de Coimbra, mas era conhecedor das Ordenações e recebeu algum tipo de formação intermediaria
(podendo ter estudado nos colégios jesuítas e ter tido contato com os clássicos das Humanidades). A origem da
palavra pode ser consultada em: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico,
architectonico ... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v.
9
Minuta – Querela de Antônio Teixeira da Mata contra o Bispo. Papéis do Brasil, maço 1, num. 2. Processo -
PT-TT-PBR-16-3.
10
RUIZ, Op. cit., p. 40.
simplesmente, de se estribarem no parecer de um letrado por sua conta para
desobedecerem ao direito estabelecido 11.

Martín de Azpilcueta Navarro, citado na fala de Antonio Teixeira da Matta como


Padre Navarro para embasar sua argumentação diante da sentença de excomunhão proferida
por Frei Luís de Santa Teresa, foi ligado à ordem dos agostinianos. Doutor Navarro, como era
notavelmente conhecido no meio acadêmico da época, foi professor das universidades de
Coimbra e Salamanca e autor do Manual dos Confessores e Penitentes, publicado em 1560 12.

Martín nasceu em Azpilcueta no reino de Navarra em 1492 e descende de


família nobre. Aos nove anos recebeu a primeira tonsura, a partir de então
dedicou-se a construir uma vida eclesiástica, pois percebia forte vocação
para a atividades religiosas. Estudou teologia na Universidade de Alcalá e
pouco depois continuou sua formação na França, onde tornou-se doutor em
Cânone, deu início ao ensino nas universidades de Toulouse e Cahors. Em
1524, retorna à Espanha onde trabalha como professor na Universidade de
Salamanca. Mais tarde, em 1538 se transferiu para Coimbra convidado pelo
rei D. João III para lecionar na Universidade portuguesa, lá exerceu o ofício
até 155413.

Durante seu período lecionando na Universidade de Coimbra, Azpilcueta Navarro foi


389
responsável não apenas por notáveis lições de direito canônico, mas também por promover
mudanças significativas dentro da estrutura de escolha de professores para o corpo docente da
universidade14. A importância de seu manual se deu em um momento em que a Igreja tornou
a prática da confissão uma obrigação pelo menos anual, durante o Concilio de Trento 15. Os
manuais confessionais eram tratados e eram uma forma da igreja estender seu controle não
apenas no público, mas também na vida privada dos fiéis. Sendo as questões do público e
privado muito intrínsecas nesse período, Lira ressalta que não havia ainda uma separação
nítida entre o crime e o pecado, e eram colocados sobre o mesmo peso o adultério, a sodomia,

11
HESPANHA, Op. cit., p. 99.
12
LIRA, Rafaela Franklin da Silva . Um estudo biográfico sobre o Doutor Matín de Azpilcueta Navarro. In:
VI Simpósio Nacional de História Cultural, 2012, Teresina. Anais do VI Simpósio Nacional de História Cultural
Escritas da História: Ver - Sentir - Narrar. Uberlândia: GT Nacional de História Cultural, 2012.
13
LIRA, Op. cit., p. 4.
14
FERNANDEZ apud LIRA, op. cit., p. 5.
15
O Concílio de Trento foi o concílio ecumênico mais longo da História da Igreja Católica. Foi também o
concílio que emitiu o maior número de decretos dogmáticos e reformas, e produziu os resultados mais benéficos,
duradouros e profundos sobre a fé e a disciplina da Igreja. In Enciclopédia Católica (em inglês). New advent.
1913. Link: http://www.newadvent.org/ . Consultado em 15 de Abril de 2017.
o estupro, entre outros. Também pouco se diferenciava o pecado praticado da intenção ou
pensamento16.
Essas ideias circulavam entre os tratadistas, pois o próprio Navarro cita a influência de
um religioso franciscano na escrita de seu manual quando diz,

em ho qual breue & particular & muy verdadeyramente se decidem &


declarã quasi todas as duuidas & casos que nas confissões soe[m] occorrer
acerca dos peccados, absoluições, restituyções & censuras / compostoi por
hu[m] religioso da ordem de Sam Francisco da prouincia da piedade...
Coimbra17.

Mesmo sendo um agostiniano, Navarro teve ligações estreitas também com a


Companhia de Jesus, que naquele momento era uma ordem recém-criada por Ignácio de
Loyola e reconhecida por bula papal em 1540 18. Além de seu sobrinho, João de Azpilcueta,
que fez parte do primeiro grupo de jesuítas que desembarcaram no Brasil para iniciar a
catequese dos indígenas e foi também um exímio linguista19, Martín Azpilcueta foi também
professor do jesuíta Padre Manoel da Nobrega e teria intercedido junto a Catarina I por
professores humanistas que lecionavam no Colégio de Artes de Coimbra quando esses
sofreram acusações por parte do Santo Oficio, que após o ocorrido passaria a ser administrado
390
pela Companhia de Jesus20.
De franciscanos a jesuítas, passando pela ordem dominicana e agostinianos, todas
tinham filósofos e teólogos que se debruçavam sobre as questões jurídicas. Dentro desses
trabalhos tratadistas, fazia-se a alusão à prudência aristotélica para que o juiz pudesse de fato
ser justo, ou seja, a prudência guardava uma estreita relação com a contingência e com as
circunstâncias das coisas, entendendo que as circunstâncias e os fatos poderiam ser
manifestos de formas específicas em cada caso21. Rafael Ruiz ressalta que os tratadistas
insistiam para que os administradores da justiça fossem prudentes, atendendo à qualidade das

16
LIRA, Op. cit., p. 6.
17
NAVARRO apud LIRA, op. cit., p. 6
18
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. 10 vols. Lisboa: Livraria Portugália; Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1938-1950.
19
LEITE, Serafim. Breve História da Companhia de Jesus no Brasil (1549-1760). Braga – Portugal: Livraria
A.I.,1965.
20
RAMALHO apud LIRA. Um estudo sobre as relações entre Martín de Azpilcueta Navarro e a
Companhia de Jesus. In: XXVII Simpósio Nacional de História, 2013, Natal. Anais do XXVII Simpósio
Nacional de História, 2013.
21
AUBENQUE apud RUIZ, Op. cit. p. 38
pessoas (com quem fosse necessário), dos tempos (quando fosse necessário) e das
circunstâncias (onde fosse necessária)22.
O direito canônico, por sua vez, era um instrumento de poder da Igreja não apenas
preocupada com a disciplina da cristandade, mas uma forma contundente de atuação do poder
eclesiástico nas demais esferas de uma sociedade ainda muito ligada aos valores do medievo.
Esse é o período denominado Primeira Modernidade23, ou seja, final do século XVI até
metade do XVIII24. Dessa maneira a Igreja tutelava o poder temporal e tinha participação
direta nas decisões ligadas à Coroa. Hespanha caracteriza essa ação como se o direito
canônico se constituísse não apenas como uma fonte importantíssima de regulação autônoma
da comunidade dos fiéis no domínio espiritual, mas também como um instrumento da Igreja
militante para a tutela do governo temporal do mundo25.
No século XVII, foi comum entre alguns tratadistas na Península Ibérica –
principalmente na Espanha – lançar mão das ideias do Probabilismo. Ruiz cita o teólogo
Daniel Cocina26, ao dizer que essa ideia trata de dar prioridade à liberdade da consciência nos
casos duvidosos de aplicação da lei; uma sentença que não tivesse sido condenada
explicitamente pela Igreja e fosse defendida por diversos doutores considerava-se sempre 391
como provável27. Ainda segundo Cocina, foram os teólogos os responsáveis pela difusão das
ideias do Probabilismo na Espanha, mesmo que não transpareça a intencionalidade de fazê-lo.

22
RUIZ, Op. cit., p. 38-39
23
Para Koselleck “o tempo passa a ser não apenas a forma em que todas as histórias se desenrolam; ele próprio
adquire uma qualidade histórica. O tempo histórico não é único e abstrato, como no tempo do calendário; ao
contrário, é uma realidade plural, diversificada, variável como a diversidade da experiência humana. Há vários
“estratos de tempo” superpostos e simultâneos, “estruturas de repetição que não se esgotam na unicidade”, o que
cabe ao historiador interpretar e conceitua a história, então, passa a realizar-se não apenas no tempo, mas através
do tempo. O tempo se dinamiza como uma força da própria história [...] no âmbito dessa experiência de surpresa
permanente, que começava então a impor-se, o tempo foi modificando em etapas o sentido quotidiano do seu
fluxo, ou do ciclo natural dentro do qual as histórias acontecem. Agora, o próprio tempo podia ser interpretado
como novo, pois o futuro trazia outro futuro, e isto mais depressa do que parecia possível. Então, nesse contexto,
a Primeira Modernidade (frühe Neuzeit) é o que Koselleck e outros estudiosos alemães vão tratar como um
período onde as mudanças começavam a se estruturar, muitas vezes através de tensões que davam espaço para
rupturas maiores que ainda viriam no final do século XVIII e durante o XIX. Ver KOSELLECK, R. Futuro
passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida
Pereira. Revisão da tradução de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUCRio,2006. pp. 200-
289
24
RUIZ, Op. cit., p. 33
25
HESPANHA, op. cit., p. 206
26
Daniello Concina foi um teólogo dominicano nascido na atual região de Friuli. Estudou em um colégio jesuíta
em Gotz e depois ingressou na Ordem dos Dominicanos. Estudou filosofia e teologia. Foi professor de Filosofia
em Forli. Publicou em 1743 a obra Storia del probabilismo e rigorismo e com apoio de do Papa Bento XIV,
também publicou os 12 volumes de Theologia christiana dogmatico-moralis, entre os anos de 1749 e 1751. In:
http://www.newadvent.org/cathen/04191a.htm acessado em 11 de julho de 2017
27
COCINA apud RUIZ, op. cit., 46
Sendo assim, a consciência dos juízes atuava no campo da jurisprudência, sendo que cada
caso poderia gerar campo de interpretação para outros semelhantes, ou seja,

Exigia-se que o juiz escutasse as partes, visse as provas e os documentos,


tivesse em conta a doutrina dos doutores, a opinião comum, os foros,
costumes e as leis reais, e deliberasse em consciência a sentença mais justa,
mas não que fundamentasse ou explicasse publicamente os motivos da sua
sentença. Esse “deliberar em consciência” significava que a sua decisão
formava-se no seu foro interno e, portanto, estava delimitada dentro do
âmbito da Teologia moral.28

No século XVII, uma das questões mais relevantes no âmbito da Teologia moral
católica era a discussão e o debate em torno ao probabilismo29. Quando em sua decisão pela
nulidade da sentença proferida pelo Bispo Santa Teresa, Teixeira da Matta fez uso do
Probabilismo, encontrando nas reflexões de Martín Azpilcueta Navarro o amparo tratadista
para mostrar uma falibilidade do poder eclesiástico. Para Ruiz, o Probabilismo funciona da
seguinte forma:

Na hipótese de um indivíduo encontrar-se na dúvida com relação a duas ou


mais possibilidades de como agir de forma certa, a teologia moral oferecia 392
várias soluções, uma delas era a solução probabilista. Para o caso dos juízes,
essa solução apresentava-se mais ou menos da seguinte forma: as decisões e
sentenças dos juízes poderiam seguir a opinião provável, e não
necessariamente a opinião certa. Ou seja, estando em dúvida sobre o que
seria mais justo num caso concreto, o juiz podia apoiar-se ou bem nas
doutrinas e opiniões dos juristas de renome, ou bem nos diferentes costumes
locais, seguindo não propriamente a lei, mas principalmente a sua própria
consciência e, nesse sentido, tornava-se necessário que os juízes levassem
em conta as circunstâncias e as peculiaridades locais dos casos concretos 30.

Os casos explicitamente condenados pela Igreja, como citou Cocina, tinham lugar nos
tribunais eclesiástico. Cabia a esses tribunais a aplicação das leis ao próprio corpo eclesiástico
e aos leigos. Os clérigos gozavam de foro privilegiado na maioria dos casos 31, então sua

28
RUIZ, Rafael. Hermenêutica e Justiça na América do século XVII. Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História, 281-294. 2011. p.6.
29
RUIZ, Rafael. Os espaços da ambiguidade: os poderes locais e a justiça na América espanhola do século
XVII, em Revista de História, São Paulo, n. 163, p. 81-101, ago/dez 2010.
30
RUIZ, Rafael. Hermenêutica e Justiça na América do século XVII. Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História, 281-294. 2011. p. 6.
31
No Livro 2 das Ordenações, no título 5, trata-se da Imunidade da Igreja, dizendo “porque sempre foi nossa
tenção, e he com graça de Deus, honra muito a Santa Madre Igreja, e obedecer a seus mandamentos, mandamos
que a imunidade da Igreja haja lugar em qualquer Igreja, ainda que não sendo sagrada: com tanto que a Igreja
seja edificada por autoridade do Papa, ou Prelado, para nela se celebrar o Oficio Divino. ”
jurisdição era exercida por tribunais próprios32. Em âmbito diocesano, os próprios bispos
tinham alçada para reger o cotidiano moral e espiritual do clero e dos civis. Segundo o
historiador português José Pedro Paiva, “competia aos bispos a promulgação de diretivas
regulamentadoras da atividade dos pregadores nas dioceses. Neste domínio, encontram-se
disposições tanto nas Constituições diocesanas como em provisões e cartas pastorais” 33. A
partir do século XVII, essas Constituições diocesanas passaram a ser mais contundentes com
relação a importância de uma maior vigilância por parte do clero para com o zelo da doutrina.
Sobre essas Constituições, Paiva ressalta que “estas passaram a conter detalhadas normas, não
só a propósito das licenças e necessidade de os párocos vigiarem localmente a atividade dos
pregadores, mas também sobre as competências e códigos de conduta dos difusores do verbo
divino no ato do sermão”34.
Na América Portuguesa, foi no século XVIII que essas mudanças tomaram corpo.
Segundo o historiador Gustavo Mendonça, a criação das Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia foram de suma importância dentro dessa dinâmica. Sobre isso, ele diz
que,
393
As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia constituem a obra de
maior fôlego e o grande legado do arcebispo da Bahia D. Sebastião Monteiro
da Vide. Os trabalhos para sua elaboração começaram entre 1703 e 1704. As
Constituições foram aprovadas em um sínodo diocesano realizado na Bahia
no ano de 1707, mas só vieram ao prelo 12 anos depois, sendo sua primeira
edição feita em Lisboa por Pascoal da Silva em 1719 e ocorrendo uma
reimpressão imediata realizada em Coimbra no Real Colégio de Artes em
172035.

O foro eclesiástico, por sua vez, permitia à Igreja uma prerrogativa de não intromissão
do braço secular em assuntos velados à sua jurisdição, aos quais só entendia ser capaz de
julgamento os próprios tribunais eclesiásticos. António Hespanha explica que esses tribunais
trabalhavam em cima de duas vertentes, mas ambas puramente eclesiásticas que eram a

32
HESPANHA, Op. cit., p. 208
33
PAIVA, José Pedro. Episcopado e pregação no Portugal Moderno: formas de actuação e de vigilância.
Revista Via Spiritus n. 16. 2009. p. 10.
34
PAIVA, Op. cit., p. 11.
35
SANTOS, Gustavo Augusto Mendonça dos, Transgressão e cotidiano: a vida dos clérigos do hábito de São
Pedro nas freguesias do açúcar em Pernambuco na segunda metade do século XVIII (1750 – 1800) / Gustavo
Augusto Mendonça dos Santos. – Recife, 2013. Orientadora: Suely Creusa Cordeiro de Almeida. Dissertação
(Mestrado em História Social da Cultura Regional) – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento
de História, Recife, 2013. p. 74
ratione personae e a ratione materiae36. A ratione personae era quando um dos envolvidos na
querela fazia parte do corpo eclesiástico, enquanto a ratione materiae estava voltada para
questões internas da Igreja. No caso da ratione personae, havia casos que não ficariam sob a
tutela dos tribunais eclesiásticos e que eram passíveis de julgamento por parte de tribunais
seculares37. As causas relativas a fé e a manutenção da doutrina dentro do próprio oficialato
eclesiástico ficariam inclusas na ratione materiae, como por exemplo o depósito da mulher
por sevícias38, separação de pessoas39.
É importante atentar para o fato de que muitos religiosos também tinham formação
jurídica. A tendência pós-tridentino era por uma Igreja mais coesa, austera e intelectualizada.
O Bispo Frei Luís de Santa Teresa, por exemplo, era formado em Cânones e parte do
Movimento da Jacobeia40. Para Mendonça,

Com as Constituições atreladas ao movimento de reforma da Igreja Católica


e ao Concílio de Trento, algumas de suas orientações tiveram como
finalidade promover a formação de um clero mais austero nos costumes,
preparado intelectualmente, coerente e o obediente a Roma, orientações que
só chegariam de forma sistemática ao Brasil no século XVIII, apesar de
esses princípios estarem postos desde o início da colonização.
394
Cada tribunal eclesiástico tinha sua jurisdição, sendo que algumas especialidades
recebiam tratamento diferenciado. Os membros do clero que residissem na corte41 ou que
fossem membros da capela real ficariam sob tutela da Casa da Suplicação e eram julgados por
um Juiz dos Feitos da Coroa, após serem apresentados a esse pelo capelão-mor42. Os
membros das ordens militares também gozavam de foro privilegiado, sendo que na corte o
responsável pelo julgamento em primeira instância era o Juiz dos cavaleiros das Três Ordens

36
HEPANHA, Op. cit., p. 209
37
Também no Livro 2 das Ordenações, mas especificamente no título 1, nomeado “Em que casos os Clérigos e
Religiosos hão-de responder perante as Justiças seculares” constam todas as circunstâncias em que os
oficiais eclesiásticos e os leigos podem ser passiveis do julgo secular. Um exemplo de uma dessas exceções é
que causas ligadas a bens de raiz, como propriedades que os clérigos reclamassem como seus deveriam o
requerer em juízo civil.
38
O depósito por sevícias ocorria quando uma mulher sofria maus tratos por parte de seu marido ou tutor.
39
(Ord.fil., v.19, pr.)
40
Movimento religioso setecentista que ganhou força entre alunos da Universidade de Coimbra em 1707 e que
buscava restaurar a disciplina, modificar costumes e reestruturar a vida religiosa em Portugal. Ver COSTA, Elisa
Maria Lopes da. A Jacobeia: achegas para a História de um movimento de reforma espiritual no Portugal
setecentista.
41
Nas terras das conquistas portuguesas no Além-mar, a primeira instância era julgada pelo Ouvidor juntamente
com o conselho da ordem militar.
42
HESPANHA, Op. cit., p. 210-211
militares, segunda instância a Mesa da Consciência e Ordens e na terceira instância o rei, já
que esse era o grão-mestre das ordens militares43.
O Tribunal do Santo Oficio era responsável pelo julgamento de questões ligadas ao
ferimento da doutrina, como sodomia, apostasia e heresia. Coimbra, Lisboa, Évora e Goa
detinham tribunais de primeira instância44. Nas terras das conquistas portuguesas, o tribunal
fazia sua visitação, onde recebia denúncias que eram levadas a julgamento em Lisboa.
Para o historiador José Pedro Paiva, os ensinamentos catequéticos eram uma forma
mais eficaz e continua desse controle que a Igreja exercia perante a sociedade. Paiva diz:

Tanto mais que existiam formas alternativas de disciplinamento, para além das
visitas, da justiça aplicada em tribunais e da intervenção de diversos agentes
inspectores que os prelados tinham disseminados pelo território. Eram vias
pensadas para actuar não tanto pela pedagogia do castigo, mas antes pela
gramática da instrução e dos afectos. E essa gramá- tica das doces palavras,
difundidas durante a confissão, a catequese, a pastoral episcopal ou as
missões, poderia tocar mais os corações que o castigo dos corpos, não
deixando de ter impactos menores sobre a conduta das gentes. Porventura,
moveria ela com mais intensidade as vontades, do que o jugo imposto pelo
interdito sob a ameaça do vexame de penitências públicas e punições45.
395
Os tribunais eclesiásticos atuavam de forma a complementar essas ações de ensinar
através da persuasão, sendo que os próprios ritos públicos da Inquisição também eram
considerados dentro de um aspecto educacional, mesmo tendo um conteúdo muito mais
agressivo46. Dentro dessa lógica, a atuação dos clérigos no cotidiano dessa sociedade era
fundamental não apenas para o ensino, mas para a manutenção do que já foi ensinado. Para
Paiva,

Foram sobretudo os bispos, auxiliados por párocos, confessores, missionários


e pregadores os propulsores de estratégias mais pedagógicas, educativas e
doces. Fizeram-no por diversas vias, com destaque para a confissão, a
catequese, as missões e a própria pastoral. Se bem que ambas as dinâmicas, a
punitiva e a instrutiva, tivessem igualmente intenções disciplinadoras,
podendo “surgir nos mesmos contextos”. 47

43
HESPANHA, Op. cit., p. 211
44
HESPANHA, Op. cit., p. 211-212
45
Paiva, José Pedro, Baluartes da Fé e da Disciplina: O enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal
(1536-1759), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. p. 291.
46
Ibidem
47
PAIVA, Op. cit., p. 292.
Nesse sentido, Paiva reforça que “tanto a visita pastoral, como a confissão, a
catequização ou as missões estavam intrinsecamente impregnadas, como se de uma carga
genética inscrita no sangue se tratasse, de dinâmicas simultaneamente pedagógicas e de
vigilância castigadora”48.
Por sua vez, os tribunais eclesiásticos acabavam por abarcar questões tão amplas que,
em muitos casos, mesmo que não fossem restritos a clérigos, também eram passiveis de irem
parar sob o seu juízo. Segundo Hespanha,

Mesmo prescindindo destes casos especiais, vale a pena refletir sobre a


enorme extensão da jurisdição dos tribunais da Igreja. De facto, a eles
podiam ser trazidas não apenas as questões em que uma das partes fosse a
Igreja, uma comunidade religiosa ou um eclesiástico (ainda que a outra parte
o não fosse), como uma vastíssima série de questões entre seculares que
caíam na competência material do foro eclesiástico 49.

Já que essa sociedade era permeada pelo corporativismo, onde a ordem era orgânica e
remontava à ideia de que a manutenção desse equilíbrio passava pela obediência aos preceitos
religiosos da criação, mesmo os não cristãos que viviam dentro da jurisdição eclesiástica eram
puníveis. Hespanha ressalta que alguns teólogos afirmam que, embora fora da Igreja, os 396
hereges estão sujeitos à sua tutela; porque, tal como o membro cortado do corpo, continuam a
“pertencer” ao corpo de que foram membros50.
Sendo o julgar a prática da justiça, se faz necessário entender o que os tratadistas da
Primeira Modernidade entendiam como “justiça” e como “direito”. A definição mais
celebrada durante a Idade Média e Moderna foi a lavrada por Ulpiano51 que dizia que “a
justiça era uma perpétua e constante vontade de dar a cada um o seu direito”. Sendo então a
justiça a busca por uma constância, podemos entender que ela é um hábito. Os juízes tornam-
se justos pela repetição de atos justos que se configuram em um hábito: a justiça 52. Ruiz
destaca que no pensamento aristotélico, o uso da análise semântica das palavras justiça
(dikaiosunê), homem justo (dikaios), juiz (dikastês) e direito (to dikaion) aproxima a ideia de
que o pessoal e particular – ser justo – era diretamente ligado ao público – o direito – e que a

48
PAIVA, Op. cit., p. 293.
49
HESPANHA, Op. cit., p. 211-212
50
HESPANHA, Op. cit., p. 194
51
Eneo Domitius Ulpianus, (Tiro, 150 — Roma, 223) foi um jurista romano.
52
RUIZ, Op. cit., p. 49
decisão entre eles era tomada por uma pessoa justa, o juiz 53. O direito, por sua vez, aparece
como sendo a finalidade pela qual a justiça é buscada. António Hespanha diz que

O direito é considerado como muito mais do que o produto da vontade,


momentânea e aleatória, dos detentores do poder político; que é considerado
como uma “razão escrita” (ratio scripta), objetiva, ligada à natureza das
coisas, não instrumentalizável pelo poder, que se manifestava numa longa
tradição intelectual e textual54

É de suma relevância também entender os pontos de encontro e dispersão entre a


teologia e o direito canônico, pois desde o século XIII se estabeleceu a separação entre essas
matérias dentro dos centros de ensino da Europa55. Para Prodi, o ponto de maior interesse na
fronteira entre a teologia e o direito é entender a natureza da Igreja, o problema da lei, o
problema da graça e do pecado56. A finalidade de analisar cada uma dessas questões é
entender de que maneira os indivíduos dessa sociedade eram alcançados por essa
problemática jurídica57. Para Hespanha, a Igreja seria a resposta de como a justiça se
“vulgarizava” nas demais esferas da sociedade do Antigo Regime.
397
Neste processo de vulgarização da tradição jurídica letrada também não se
pode desconhecer a importância do papel da Igreja, cuja disciplina era
largamente baseada num direito que pertencia a essa tradição. E, como
acontecia com a própria tradição teológica, quer a liturgia, quer a parenética,
divulgavam o conteúdo do direito, modelando o nível da transmissão às
características do auditório 58.

Fazer parte da Igreja é tomar parte do corpo de Cristo. Essa comunhão não é
meramente simbólica, já que a Eucaristia é o ápice desse rito na tradição Católica Romana e
significa a transubstanciação da matéria, onde o pão torna-se corpo e o vinho o sangue de
Cristo. A Igreja é então o conjunto dos fiéis que estão unidos misticamente a Cristo, por via
de uma união formal ao seu vigário na Terra, o Papa59. Mas todo o escopo sagrado do corpo
eclesiástico também detém uma organização institucional regimentada e hierárquica. Se a

53
RUIZ, Op. cit., p. 50
54
HESPANHA, Op. cit., p. 111-112
55
PRODI, Op. cit., p. 150
56
Ibidem.
57
PRODI, Op. cit., p. 151
58
HESPANHA, Op. cit., p. 126-127
59
HESPANHA, Op. cit., p. 190
Igreja, como polo de poder, tinha como um de seus fins a manutenção da obediência, também
deveria ser espelho.

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ALIANÇAS
ESTRATÉGICAS: OS
MAGISTRADOS E AS
MONARQUIAS
IBÉRICAS
NO SÉCULO XVIII.

PAULO FILLIPY
DE SOUZA CONTI

DOUTORANDO (UFPE)
Não é absolutamente uma novidade historiográfica tratarmos do
compartilhamento entre os reinos ibéricos de uma tradição jurídica comum. No livro Como os
juristas viam o mundo, o historiador e jurista português António Manuel Hespanha faz uma
provocação historiográfica ao tratar a visão jurídica do Antigo Regime como típica da Europa
“latina”. Para evitar problemas interpretativos o autor imediatamente na sequência explicita as
razões que conduziram o seu pensamento nesse sentido. Diz ele não acreditar em um “espírito
latino” ou em uma “cultura latina”. Tampouco considera que esse fenômeno pode ser
atribuído aos diferentes panoramas religiosos entre “Sul” e “Norte” da Europa após a reforma
protestante. Para Hespanha, o cerne da questão estava de fato no uso e comunicação do 403
corpus literário. Mesmo antes da cisão religiosa, os juristas do “Sul” discutiam entre si,
enquanto os do “Norte” (leia-se alemães, holandeses e ingleses) não tinham uma literatura
jurídica muito expressiva. Logo, havia um corpus literário comum entre os juristas ibéricos,
italianos e até mesmo franceses, na primeira época moderna. “A identidade ‘do Sul’ é antes
uma identidade induzida por um círculo de comunicação”.1

O que por vezes nos escapa é perceber que esse compartilhamento foi um
fenômeno para além dos limites de Espanha e Portugal. Esse conjunto de textos tem no
chamado ius commune o maior peso para as diretrizes da justiça no que se refere à formação
de um código de convivência que independe das leis dos reinos. Tal fato torna os italianos
aqueles que mais partilharam a sua tradição jurídica com o resto da Europa. O que não tem
relação com a preservação “imaculada” dos textos do Direito Romano, senão com a
localização do fenômeno. O ius commune adquiriu forma e conteúdo na região italiana com o

* O autor é Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de


Pernambuco (PPGH – UFPE), linha de pesquisa Mundo Atlântico e membro do Núcleo de Estudos do Mundo
Atlântico (NEMAt).
1
HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo (1550-1750): Direitos, estados, pessoas,
coisas, contratos, ações e crimes. Lisboa: CreateSpace Independent Publishing Plataforme (Edição Kindle),
2015. Posição 19801.
florescimento das universidades do século XII. Isso significa dizer que o chamado direito
comum não é, absolutamente, uma experiência jurídica da Antiguidade ou do Império
Romano. É, na realidade, reflexo de uma forma social de ver o mundo de algumas sociedades
do medievo. Localizar no tempo e no espaço esse acontecimento nos permite não tentar
avaliar o período como herdeiro romano continuado e tampouco o transplantar para os valores
modernos.2

Nesse sentido, pode nos parecer estranho quando a historiadora e jurista israelense
Tamar Herzog afirma que a identificação da cultura jurídica com o ius commune deixa de lado
o papel dos textos sacros e do dogma cristão na prática judicial. 3 Informação que quando lida
isoladamente sugere um grande equivoco, ainda que reconheçamos o ius ecclesiae como
autônomo. O direito comum e o direito canônico são frutos da sociedade medieval, nela se
manifestam e nela se relacionam. Como, por exemplo, a ideia do canonista Guido de Baisio
sobre a simplicidade canônica (simplicitas canonica). Ainda no século XIV, Guido dizia que
“não existe nenhuma diferença entre a mera palavra informal, que reflete um compromisso
moral e jurídico assumido pelos contraentes, e um juramento solene”. 4 Conforme entende já
no século XVIII o filosofo e jurista suíço Emer de Vattel: 404
O respeito que outros têm por nossos direitos de domínio e de propriedade
constitui a segurança de nossas posses atuais; a confiança nas promessas é
nossa garantia para as cousas que não podem ser entregues ou executadas
imediatamente. Mas nenhuma segurança ou comércio entre os homens
existirá, se eles não se considerarem obrigados a manter a fé e a respeitar a
palavra dada [grifo nosso]. Assim, para manter a ordem e a paz entre
Nações, que vivem juntas num estado de natureza e sem reconhecer nenhum
poder superior na terra, a obrigação de respeitar os compromissos é tão
5
necessária quanto natural e inquestionável.

Ou seja, um preceito que tem raízes no direito eclesiástico se ramificou por áreas
e relações contratuais laicas. E não apenas isso. Conseguiu sobreviver ao período de mudança
entre uma ordem jurídica pensada para funcionar sem Estado e a fase do direito mais
vinculada ao poder. Em Portugal a lei do príncipe aparece esporadicamente na primeira
metade do século XIII. Na segunda metade, com Afonso III, ela se intensifica. Na Espanha,
até mais ou menos a mesma época vigorou o “localismo jurídico”. A consolidação de um
código mais vinculado ao rei parece ter sido obra de Afonso X, através da celebrada obra Las
2
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. p. 9-12.
3
HERZOG, Tamar. Sobre la cultura jurídica de la América colonial (siglos XVI-XVIII). In: Anuario de historia
del derecho español, ISSN 0304-4319, Nº 65, 1995. p. 905.
4
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. p. 136, 268-269.
5
VATTEL, Emer de. O Direito das Gentes. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004. p. 279.
Siete Partidas, que tentou dar uniformidade às leis do Reino de Castela. Ainda assim, pelo seu
caráter doutrinário, ela não foi imediatamente aceita pela práxis castelhana. Afinal de contas,
a vinculação direta do poder político ao jurídico só pode ser vista de maneira crescente no
século XIV. É quando o direito passa não apenas a reafirmar a posição dos grupos reinantes,
mas, na mesma medida, passa a ser “absolutizado” nas linhas dos códigos dos reinos.6

Ainda assim, nas Cortes de Alcalá, em 1348, onde e quando foi proibido o uso do
direito comum, a ressalva do rei Afonso XI, para que em caso de dúvidas sobre a
possibilidade de mudança nas leis fossem consultados os livros dos sábios antigos, deixou a
proibição praticamente como letra morta. Até mesmo porque leis que vieram após a
proscrição legal do direito comum nos tribunais acabaram reforçando o seu uso até o século
XIX. A prática dos tribunais continuava sendo casuística e as permanências interpretativas
comprometiam caminhar em direção ao chamado Direito Pátrio.7

É exatamente no contexto não medieval que a afirmação de Tamar Herzog vista


anteriormente ganha sentido. A sua crítica está centrada no conceito de direito adotado pelas

405
universidades responsáveis pela formação dos letrados, a partir do século XVI, e no uso da
teologia nos tribunais do mundo hispânico. Ela informa que a maior parte dos letrados
americanos tinha formação em Direito Civil e Canônico. Os que não tinham,
costumeiramente, davam prioridade ao Direito Canônico, por acreditarem que era esse um
conhecimento capaz de dar conta das obrigações espirituais e temporais. Por isso, não é
surpresa que a tentativa por parte da monarquia castelhana de laicizar os tribunais tenha
fracassado. Ora, a laicização ia de encontro às práticas discursivas dos tribunais da América
hispânica e ao ideário que considerava, ainda no século XVIII, a possibilidade de um teólogo
fazer o papel de jurista em um tribunal superior. Em Quito, por exemplo, um estudo sobre os
argumentos utilizados nas petições entre 1650 e 1750 revelou que a fonte mais utilizada por
advogados e procuradores, tanto em instâncias letradas como leigas, era a Bíblia, enquanto as
leis do Reino eram pouco citadas. O direito e a teologia aparecem assim como duas facetas do
mesmo saber.8

6
Paolo Grossi utiliza a expressão “absolutizar” sem as aspas e no mesmo sentido que utilizamos no presente
artigo, ou seja, o de estabelecer relações com o absolutismo. Os dicionários brasileiros, ao contrário, apenas
constatam a palavra como uma variável do verbo “absolutizar”, significando tornar algo absoluto. GROSSI,
Paolo. A ordem jurídica medieval. p. 164-165, 190.
7
ALONSO ROMERO, María Paz. Salamanca, escuela de juristas: Estudios sobre la enseñanza del derecho en
el Antiguo Régimen. Universidad Carlos III de Madrid. Editorial Dykinson, 2012. p. 327-330.
8
HERZOG, Tamar. Sobre la cultura jurídica de la América colonial (siglos XVI-XVIII). p. 905-911.
Para além do uso das leis da Igreja no cotidiano e nos tribunais, a visão de haver
certa sacralidade no trabalho dos juristas não era uma raridade. Esperava-se que os
magistrados fossem capazes de adequar as normas às situações e, para que isso fosse feito de
maneira positiva, deveria ele ser um exemplo de virtude e moral. Na obra Arte legal para
estudiar la Iurisprudencia, escrita no início do século XVII, o historiador, eclesiástico e
jurisconsulto Francisco Bermúdez de Pedraza trata os juristas como verdadeiros religiosos,
não pelo hábito, mas pelo espírito, já que deveriam no seu trabalho zelar pela equidade e pela
justiça.9 Absolutamente os termos utilizados não são inocentes. Equidade (aequitas) é um
conjunto harmônico de regras e institutos que pode ser vista nas próprias coisas, é parte da
natureza delas. Deus, inclusive, pode ser classificado como equidade. E, quando os humanos
se apropriam dessa equidade ela se transforma em justiça, gerando unidade entre o mundo dos
fatos e o mundo das criações humanas.10

Acreditamos que tal aproximação não incomodava os letrados. A manutenção dos


textos jurídicos em latim ou com expressões latinas, ainda que a maior parte estivesse em
vernáculo, aparece como “projeto de poder”. Não apenas por afastar das pessoas o
entendimento fino do texto, mas, ajudava igualmente a associar as peças jurídicas ao mundo 406
sacro (e dos saberes religiosos). Servia ainda para a manutenção das hierarquias profissionais
no campo do Direito. Os juízes não letrados seguiam mais o direito natural e comum do que
os compêndios universitários. E por isso, eram tratados pelos juízes letrados como executores
do “direito dos rústicos” ou dos “direitos próprios” (consuetudinário).11

Portugal, da mesma maneira, conviveu por muito tempo com um processo de


formação dos seus profissionais das leis que os deixava entre o mundo laico e religioso. Stuart
Schwartz, no seu livro Burocracia e Sociedade no Brasil colonial, diz que no século XVI a
Universidade de Coimbra já havia se tornado o “campo de treinamento do clero e da
magistratura portuguesa”. Tanto que ter habilitação em apenas uma das modalidades do
Direito já era suficiente para a candidatura ao serviço régio. 12 A sinalização da necessidade
das mudanças na educação foi exposta pelo Marquês de Pombal quando ele fez referências ao
que chamou de “máximas depravadas”. Então, as máximas que poderiam ser consideradas
9
ANZOÁTEGUI, Víctor Tau. El Jurista en el Nuevo Mundo. Pensamiento. Doctrina. Mentalidad. Global
Perspectives on Legal History, Max Planck Institute for European Legal History Open Access Publication,
Frankfurt am Main, 2016. p. 21.
10
GROSSI, Paolo. A ordem jurídica medieval. p. 171, 217-220.
11
HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo (1550-1750). Posição 376, 385.
12
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial: o Tribunal Superior da Bahia e seus
desembargadores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 79-80.
boas pelo ministro passavam longe do costumeiro domínio formativo que tinham os inacianos
em Coimbra. As reformas na Universidade podem ser colocadas em função de dois objetivos:
fortalecer o caráter profissional dos magistrados e diplomatas e laicizar o processo de
formação.13 Estratégia que aparentemente deu resultado, visto o decréscimo, mesmo que leve,
do número de formações em Direito Canônico a partir da segunda metade do século XVIII em
Portugal.14

Interessante notar que apesar da promoção de reformas para laicizar o ensino e a


prática jurídica, o universo legal da Igreja de Roma teve papel fundamental para o
desenvolvimento dos Estados modernos. O historiador norte-americano William J. Bouwsma
no seu artigo Lawyers and Early Modern Culture, afirma que os formados em Direito
Canônico, que nem sempre eram clérigos, foram importantes não apenas para a transformação
do mundo medieval, senão igualmente importantes para o crescimento da complexidade
social e institucional do mundo moderno.15 Na verdade, o Direito e os juristas foram, de
maneira geral, importantíssimos não apenas em território europeu. Rapidamente, o continente
americano pode sentir os reflexos da burocratização dos reinos ibéricos. Para a América
espanhola, por exemplo, os conquistadores buscaram impor uma ordem jurídica, no entanto, o 407
código desenvolvido por juristas especialistas em direito colonial (indianistas) passou a fazer
mais sentido para aquela população e a ser mais utilizado.16

Havia, para os reinos ibéricos, grande proximidade entre as suas leis e agentes
com funções semelhantes. No entanto, nos chama especial atenção no século XVIII o
movimento de vinculação entre as principais ações em cada um dos reinos e o maior ou
menor relevo dado aos altos oficiais da Justiça nesse processo. “Os magistrados portugueses,
diferentemente de seus equivalentes espanhóis, preferiam o título funcional (como o de
desembargador) ao título universitário, como forma de classificação social”, diz Schwartz.17
O que, talvez, tenha sido reflexo da forma pensada pela Coroa castelhana como ideal para o

13
SILVA, Ana Rosa Cloclet da. O Marquês de Pombal e a formação do homem-público no Portugal setecentista.
In: A “Época Pombalina” no mundo luso-brasileiro / Francisco Falcon, Claudia Rodrigues (Org). Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2015. p. 424-426.
14
CAMARINHAS, Nuno. Administração da Justiça em espaços coloniais. A experiência imperial portuguesa e
os seus juízes, na época moderna. In: Jahrbuch für Geschichte Lateinamerikas – Anuario de Historia de America
Latina. Volume 52, Issue 1, Pages 109–124, ISSN (Online) 2194-3680, May 2016. p. 118-119.
15
BOUWSMA, William J. Lawyers and Early Modern Culture. In: The American Historical Review, vol. 78, no.
2, pp. 303-327, 1973. p. 309-310.
16
PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Los abogados americanos de la monarquía española. Anuario Mexicano de
Historia del Derecho, ISSN-e 0188-0837, págs. 545-600, Nº. 15, 2003. p. 548-549.
17
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. p. 79.
processo de formação dos seus magistrados ou de como o título refletia na vida social
daqueles que o ostentava. Ainda assim,

Eran pocos los que conseguían los títulos de doctor o licenciado por
Salamanca, no solo por los conocimientos y la dedicación requeridos para la
concesión de este último sino también por los cuantiosos gastos en propinas
y agasajos que traían consigo ambos, aumentados, además, en el caso del
doctorado, por la obligación de sufragar todo el ceremonial que lo
acompañaba, en el cual, además de una solemne procesión pública por las
calles salmantinas, se incluía una fiesta de toros en la plaza principal de la
18
ciudad.

Pelo citado acima, podemos entender que havia não só maior valorização da
titulação universitária no mundo hispânico havia, ainda, uma associação direta entre o lugar
social (e econômico) daquele que recebia e celebrava de forma pomposa os títulos e o posto
ocupado ou que viria a ser ocupado por ele. Isso também pode nos dizer bastante sobre o
perfil dos magistrados em cada reino. Nuno Camarinhas diz que aparentemente não há relação
entre as nomeações e as ligações familiares na carreira da justiça, mas quando vistos com
cuidado os altos cargos, a relação aparece.19

Antes de Camarinhas, Stuart Schwartz já havia percebido tal tendência, fazendo, 408
inclusive, aproximações temporais quanto ao início do fenômeno. Os magistrados ganharam
maior destaque no Reino de Portugal após as Cortes de Coimbra, em 1385. Daí para frente
eles passaram a gozar de posição social equivalente a dos cavaleiros das ordens militares.
Com isso, os filhos dos letrados buscaram a mesma carreira e criaram certa dependência entre
os serviços prestados pelos pais e o futuro sucesso profissional dos filhos. Fato é que famílias
que buscavam afirmação social encontraram na magistratura a via mais segura e direta para a
inserção dos seus parentes nas malhas da burocracia metropolitana e/ou colonial. Até mesmo
porque fidalgos e a pequena nobreza militar eram obrigados a servir nas guerras e firmar
posição pela manutenção dos seus privilégios, em oposição à expansão do poder real. Os
magistrados, ao contrário, eram filhos diretos e escolhidos por esse crescimento. 20 A mesma
máxima é válida para a Espanha, entretanto, com algumas características distintas que serão
vistas mais adiante.

A introdução da questão familiar ampliou a procura pelos cargos no campo da


justiça. Mesmo sendo pública a baixa taxa de permanência desses profissionais. O que pode,

18
ALONSO ROMERO, María Paz. Salamanca, escuela de juristas. p. 439.
19
CAMARINHAS, Nuno. Administração da Justiça em espaços coloniais. p. 19-20.
20
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. p. 34-35.
em parte, explicar o número crescente de nomeações em finais do século XVIII e início do
XIX. Dados que levaram José Subtil a afirmar que a carreira na magistratura não era estável
nem tampouco apetecível, apesar do número de candidaturas para o serviço. A Coroa
portuguesa com frequência interrompia o tempo de serviço dos nomeados, mas tinha
prontidão em tentar preencher novamente os cargos vagos, afinal, os magistrados eram os
“delegados” da Coroa.21 Explicação que em nós reforça a ideia da importância dos
magistrados como categoria profissional no serviço régio.

Para José Antônio Maravall, os letrados desenvolveram muito cedo o que ele
chama de “conciencia estamental”, apesar de não haver no período um estamento (extrato
social) como entendemos hoje. Ainda assim, eles potencializaram as alternativas de
crescimento pessoal e para outras categorias.

En la primera mitad del siglo XVI no sólo se da vigorosamente en los


letrados la conciencia de formar un estamento muy caracterizado, sino que
sirviéndose del gran instrumentó de difusión que tienen en sus manos, las
letras, la han propagado a los que por pertener a otros grupos no estaban
22
implicados en su peculiar destino.

Enquanto os lusos passam cada vez mais a investir na presença dos magistrados 409
com grau elevado na hierarquia da administração da justiça, ainda que em lugares muito
afastados da metrópole, os espanhóis fazem o movimento contrário. Havia no Reino Espanhol
uma tendência de diminuição das nomeações dos colegiales mayores. A redução do número
de colegiales mayores entre os letrados espanhóis foi notada pelo historiador francês Jean-
Pierre Dedieu e tratada por ele como a “morte do letrado”. Por excelência, os letrados são
para o autor os ministros do rei, vista a semelhança que havia entre as funções de ouvir e
praticar a justiça. Mais especificamente, letrados eram os licenciados e doutores. Os
advogados, bacharéis em cânones ou leis, tinham formação mais técnica e, por isso, eram
vistos como “quase letrados”. A História da administração real castelhana no século XVIII
pode ser resumida, dentro dessa linha interpretativa, pela substituição do ministro (letrado)
pelo oficial (secretário), o que fica bastante claro pela marginalização dos Conselhos.23

21
SUBTIL, José. Os ministros do rei no poder local, ilhas e ultramar (1772-1826). p. 37-58. Penélope, nº27,
2002. p. 41, 54.
22
MARAVALL, José Antônio. La formación de la conciencia estamental de los letrados. In: Revista de Estudios
Políticos, págs. 53-82, Nº 70, 1953. p. 81.
23
DEDIEU, Jean-Pierre. La muerte del letrado. Aranda Pérez (Francisco José). Letrados, juristas y burócratas
en la España moderna, Universidad de Castilla y León, pp.479-512, 2005. p. 1-2, 11-13.
A historiadora Ana María Carabias Torres, no filão aberto por Dedieu, observa
possibilidades desconsideradas ou pouco exploradas pelo francês. Para a autora, Dedieu foi
conduzido ao erro quando considerou como letrados verdadeiros os colegiales mayores. No
século XIII se chamava de letrado qualquer pessoa que fosse conhecedora de matérias
científicas. Na centúria seguinte, aponta Maravall, a palavra já era utilizada como sinônimo de
“advogado”. Na legislação castelhana, o advogado aparece como alguém com formação
universitária em Direito Civil ou Canônico. Alguns ordenamentos confirmam a equivalência
entre os termos ao revelar que também eram chamados “letrados” aqueles que poderiam
participar de pleitos nos tribunais. Onde Dedieu enxerga mais diferenças (grupos em conflito),
Carabias Torres enxerga mais semelhanças (palavras diferentes para tratar a mesma
ocupação).24

Não há como negar que em determinados momentos a diferenciação entre os


cargos da justiça teve reflexos fortes na vida pessoal e profissional dos homens envolvidos
nesse campo no Antigo Regime. Os advogados deveriam passar no seu processo formativo
por universidades, ou seminários ou, no século XVIII, pelas Academias de Direito Real e
Prático – que também ofereciam formação jurídica. Apesar da formação e da honra fruto dela, 410
os advogados recebiam baixa remuneração e alguns tribunais ainda os impedia de entrar como
participantes dos pleitos. Os juízes, por vezes, apenas poderiam utilizar os serviços de um
advogado como assessoria jurídica.25

Por outro lado, os desembargadores, por ocuparem diversas funções em paralelo à


justiça, conseguiam ter um tipo de penetração social que lhes garantia muitos privilégios. O
impacto social que o desembargador tinha como indivíduo, entra aí no julgamento o
imaginário do Antigo Regime, era grande. Os ganhos pessoais decorrentes da função eram
consideráveis. Mas, o prestígio do sujeito não era comparável ao valor da assembleia reunida.
Quando reunidos como “corpo”, havia uma espécie de transfiguração dos indivíduos na
própria lei. E, quando um desembargador deixava de ocupar o posto no tribunal, ainda assim,

24
CARABIAS TORRES, Ana María. “¿La muerte del letrado? Consideraciones sobre la tipología del oficial
español en el siglo XVIII”, en Salustiano de Dios Y Eugenia Torijano (coords.), Cultura política y práctica del
derecho. Juristas de Salamanca siglos XV-XX. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2012. p. 149-
154.
25
PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Los abogados americanos de la monarquía española. p. 557-558.
preservava o prestígio e a forma de tratamento que tinha ainda no exercício do cargo. 26
Realidade muito distinta daquela apresentada para os advogados.

A resposta social aos advogados reforçava uma posição que tinha relação direta
com as hierarquias internas da Justiça. Porém, uma coisa é diferença na preparação técnica e
outra completamente diferente é a qualidade ou o estatuto. Pois, para as sociedades europeias
de Antigo Regime o indivíduo era, de certa forma, apagado pelas suas relações sociais. Isso
significa dizer que as pessoas dependiam dos grupos sociais a que pertenciam e, cada grupo
desempenhava funções específicas. Os direitos e deveres das pessoas, nesse cenário, estavam
amarrados às funções (officium). Afinal, qualidade no Antigo Regime era uma “realidade
jurídica decisiva, a verdadeira pessoa jurídica, era esse estado, que era permanente; e não os
indivíduos, transitórios”.27

Logo, qualquer associação de conceitos deve ser feita com bastante cuidado. Para
entendermos melhor esta relação entre grupos que ora aparecem na historiografia como
profissionalmente distintos, ora como equivalentes no trabalho, mas diferentes na posição

411
social, consultamos o Diccionario de Autoridades. Pelos verbetes do dicionário se nota que
havia no ideário castelhano a conservação da separação entre os níveis de preparo. O colegio
menor é visto como uma comunidade de varões destinada ao estudo das ciências e governada
por regras específicas. Os jovens que lá estudavam vestiam “el mismo manto, beca y bonete
que los Colegiales mayores, aunque de distintos colores. Llámase menor, a diferencia del
mayor, por no obligar a los que entran en él a hacer pruebas tan calificadas y rigurosas”
[grifo nosso].28

No entanto, quando o termo consultado é colegio mayor as provas qualificadas e


rigorosas são reveladas: “llámase mayor, porque los sugetos que le componen, hacen pruebas
rigurosas y mayores de limpieza de sangre y oficios para entrar en el: las quales se repútan
por acto positivo, que los distingue y diferencia de los demás Colegios” [grifo nosso].29 Ou
seja, antes de ser visto como grupo profissional, os colegiales mayores era um grupo
socialmente bem articulado. O que não significa que a relação das grandes Casas do reino
com a monarquia tenha sempre sido fácil, muito pelo contrário. As tensões existentes entre os

26
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. p. 247.
27
HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo (1550-1750). Posição 6226, 6246.
28
DICCIONARIO DE AUTORIDADES (1726-1739). Tomo II (1729). Verbete: colegio menor. Disponível em:
<http://web.frl.es/DA.html>.
29
DICCIONARIO DE AUTORIDADES (1726-1739). Tomo II (1729). Verbete: colegio mayor. Disponível em:
<http://web.frl.es/DA.html>.
colegiales mayores e a monarquia refletiu na distribuição dos cargos. Enquanto em 1766 eles
eram os responsáveis por 86% das praças da justiça, 13 anos depois, a influência que gozaram
no passado estava praticamente extinta. O que não constitui, de forma alguma, o
desaparecimento dessas famílias nobres. Diversos deles conseguiram se adaptar ao novo
momento e reinventar a relação que mantinham com a monarquia, a administração e o
exército.30

Vista a dificuldade nessa relação não é de se estranhar que o número de pessoas


que se autodenominavam como “advogados” fosse crescente. E, apesar da temporalidade dos
parágrafos acima estar vinculada a segunda metade do século XVIII, a parceria estabelecida
entre a monarquia castelhana e os advogados é um fenômeno que remete ao início do século.
Nesse período, os advogados tiveram mais acesso aos postos no Conselho de Castela e foi
crescente a tendência de nomear para a justiça senhorial pessoas vindas da advocacia. Com os
Bourbons na casa reinante a luta contra o ius commune se intensificou e a monarquia
encontrou nos advogados os parceiros ideais para essa empresa. Francisco de Castro, por
exemplo, criticava no século XVIII o ensino de “leis mortas” e a falta de cuidado com as “leis
vivas”. Para ele, a felicidade do governo (bem estar social) passava pelo ensino das leis do 412
Reino e, os que ainda assim, agiam de acordo com as normas do direito comum, mostravam o
seu desprezo pela majestade.31

Caso semelhante ao que acontecia em Portugal com os oficiais da justiça letrada.


Semelhança que não está centrada no nível do discurso legal. Nos domínios lusos a estratégia
de manter os corregedores e ouvidores no controle “transversal das jurisdições”, letrada ou
ordinária, deu resultado na medida em que eles realizavam esse trabalho utilizando métodos
eruditos, ibéricos e europeus. Ou seja, mesmo havendo a sobrevivência e o uso do ius
commune nos textos legais e nos tribunais portugueses, também havia espaço para o uso e
execução das Leis do Reino. Nesse sentido, talvez tenha sido a vantagem dos monarcas
portugueses conseguirem muito cedo, pela impossibilidade de venalidade dos cargos da
justiça, formar e manter ao seu serviço grupos mais homogêneos culturalmente. E, a

30
CARABIAS TORRES, Ana María. “¿La muerte del letrado? Consideraciones sobre la tipología del oficial
español en el siglo XVIII”. p. 171-177.
31
ALONSO ROMERO, María Paz. Salamanca, escuela de juristas. p. 332-335, 457, 463.
nomeação com intervalo trienal forçava a circulação desses profissionais e dificultava a
patrimonialização dos ofícios.32

O impedimento ou a liberação da venalidade dos ofícios muito pode nos dizer


sobre a ocupação dos cargos e o perfil das pessoas que os ocupavam. Conforme posto no
parágrafo anterior, os portugueses conseguiram manter a Justiça mais afastada dessa prática.
O jurista Rogelio Pérez-Perdomo diz que desde o século XVII até 1750, alguns ofícios da
justiça, como o cargo de ouvidor, eram passíveis de venda na América espanhola. A venda,
no entanto, não significava desrespeito aos quesitos intelectuais mínimos para a ocupação do
cargo, pode sim ter significado menor atenção aos detalhes. Sendo os criollos os únicos que
chegaram a comprar o cargo de ouvidor. Pela proibição, a Coroa buscava ter mais controle
político sobre os territórios coloniais e cortar os vínculos que os juízes pudessem ter com a
sociedade local.33

Tais mudanças, para Dedieu, eram consequências da incapacidade da Coroa de


controlar a sua própria administração. E, como forma de recuperar o seu domínio sobre os

413
ofícios, criou novas instituições e para nelas servir colocou gente com características pessoais
específicas. A ideia era que os postos fossem ocupados por sujeitos maleáveis a vontade do
rei. Tendo esta característica, pode a Coroa transferir funções sem romper as bases do pacto
político vigente.34 A relação dos governos centrais ou metropolitanos com os habitantes das
colônias precisava ser cuidada, para evitar indisposições que pudessem vir a ser inegociáveis.
Os entraves impostos aos criollos, por exemplo, que os impedia de ocupar determinados
cargos da administração pública, aumentaram as suas frustrações como extrato social e pode
estar entre as razões que alimentaram as independências no século XIX. 35

É evidente, de qualquer forma, que os profissionais da justiça foram essenciais


para no desenvolvimento das instituições e das convenções da Europa Moderna. No período
de transição entre momentos históricos, a exemplo do final da Idade Média ou a formação dos
Estados modernos, magistrados precisaram lidar com os problemas mais urgentes da
sociedade ao procurar redigir um código de convivência adequado para cada localidade. E, do
século XIV em diante, um código que também fosse reflexo da monarquia. O abandono de
velhos caminhos e valores jurídicos poderia ter consequências pessoais para esses homens.

32
CAMARINHAS, Nuno. Administração da Justiça em espaços coloniais. p. 116.
33
PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Los abogados americanos de la monarquía española. p. 555-556.
34
DEDIEU, Jean-Pierre. La muerte del letrado. p. 22.
35
PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Los abogados americanos de la monarquía española. p. 584.
William J. Bouwsma afirma que, inclusive, em determinados momentos eles foram utilizados
como “bodes expiatórios” para justificar situações que deixaram a população descontente. 36

Conforme vimos até aqui, as carreiras na seara da Justiça poderiam ser frustrantes
ou frutíferas e, para ambas as situações, desafiadora. Talvez por isso, a recomendações de
haver apartamento dos juízes da vida comunitária fosse costumeiramente desrespeitada. Em
contrapartida, ao menos para a realidade portuguesa, por diversas vezes a Coroa teve que
fazer vista grossa para determinados comportamentos em nome da manutenção do
funcionamento da máquina burocrática. Os abusos mais corriqueiros eram os de ganho
pessoal pelo uso da posição (estamos falando de servidores com grau hierárquico elevado),
mas poderiam chegar até ao crime de venalidade de sentenças.37 Logo, fosse para agir com
absoluta correção, fosse para buscar brechas que permitiam condutas reprováveis, o
conhecimento das leis que regulavam a relação entre os servidores reais e a monarquia
precisava ser muito bem desenvolvido. Assim como também – ao menos era o que se
esperava –, a extensão desse domínio para as leis impostas ao resto da população.
Voltemos então a falar sobre o compartilhamento do corpus literário entre os
Reinos latinos, tema abordado no início do presente artigo. O ius commune, nessa seara foi, 414
sem sombra de dúvida, o mais partilhado. Mas, baseado em leitura de Malagón Barceló,
Víctor Tau Anzoátegui diz que as obras de jurisprudência espanholas alcançaram nos séculos
XVI e XVII a “Italia, Francia, Inglaterra y Polonia, junto con la presencia de profesores
españoles en universidades de esos países y con la recepción en España de algunas doctrinas
extranjeras”.38 A ideia então corrente era de que nessas outras localidades era mais simples
conseguir boas posições.39 Não temos informação semelhante para os professores
portugueses, outrossim, não é improvável que alguns deles também tenham seguido caminho
parecido. O que nos chama especial atenção na informação dada por Anzoátegui é que o
conteúdo presente nessa troca era o direito dos reinos.

Os livros de direito escritos por juristas tinham boa circulação. Eram encontrados
nas periferias do Reino e do Império, garantindo assim, “o conhecimento da tradição jurídica
letrada nos confins mais afastados, mesmo independentemente de aí existirem juristas”. Nos
centros urbanos eram ainda mais comuns. O que não significa que todos os profissionais da

36
BOUWSMA, William J. Lawyers and Early Modern Culture. p. 311-316.
37
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. p. 265-268.
38
ANZOÁTEGUI, Víctor Tau. El Jurista en el Nuevo Mundo. p. 16
39
ALONSO ROMERO, María Paz. Salamanca, escuela de juristas. p. 464.
justiça puderam contar com grandes bibliotecas pessoais. Hespanha diz que a lista de livros
referência para o trabalho dos juristas e juízes era curta e, ainda menor era o número de obras
de fato utilizadas. Na maioria das vezes, o acesso a essas obras só era possível em instituições
com boas bibliotecas. A posse pessoal passava pelas dificuldades do valor, transporte e
fragilidade das obras.40

Informação que vai de encontro ao que Víctor Tau Anzoátegui apresenta para o
mundo hispânico:

La imagen literaria o pictórica del buen jurista estaba asociada a un conjunto


numeroso y selecto de libros. Se solía presentar a los letrados civiles y
canónicos hispanos rodeados de libros, en una clara alusión a que éstos
constituían la más necesaria y decorosa compañía para enaltecer su figura.
No existiendo por entonces bibliotecas públicas accesibles, era preciso que
los letrados, y sobre todos los jueces superiores, poseyeran buenas
41
bibliotecas de donde pudieran servirse para el desempeño de sus tareas .

Essas questões nos ajudam a pensar sobre o caráter formativo das universidades
ibéricas e também sobre a continuidade dos estudos após a formação. Na Universidade de

415
Coimbra, o curso era muito mais do que um processo de formação intelectual, na verdade,
essa era a parte menos relevante – o que até poderia gerar profissionais pouco habilitados. A
Universidade de Coimbra tinha a responsabilidade de proporcionar, principalmente, uma
experiência de socialização que levasse ao senso comum entre os alunos de lealdade e
obediência ao monarca. Pois, quando inseridos no sistema, não eram funcionários civis, senão
servidores do rei. Esta estreita ligação não impedia que decisões fossem tomadas em
contrariedade aos desejos da Casa reinante e a favor dos interesses dos próprios
magistrados.42 A Universidade ocupava ainda posição estratégica por ser a única de todo
império. Se por um lado Portugal distribuía seus magistrados para praças distantes e distintas,
por outro, centralizou a formação da maioria deles.

Ao contrário do que acontecia em Portugal, não houve centralização da formação


universitária no mundo espanhol. Havia sim padrões ou costumes semelhantes nas
universidades, por ter a Universidade de Salamanca servido como exemplo, antes e depois do
seu Plano de Estudos de 1771. A crítica do século XVIII asseverava uma situação bastante
diversa. O privilégio dado em Salamanca era aos exercícios práticos, mas não excluía

40
HESPANHA, António Manuel. Como os juristas viam o mundo (1550-1750). Posição 365-366.
41
ANZOÁTEGUI, Víctor Tau. El Jurista en el Nuevo Mundo. p. 15.
42
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e sociedade no Brasil colonial. p. 79-82.
nenhuma outra forma de pensar às leis, diz María Paz Alonso Romero. Para ela, a
competência formativa desejada pela Coroa estava relacionada ao conhecimento das leis do
Reino, matéria garantida pelo cumprimento total do tempo de formação.43

Sin embargo, hacia la segunda mitad del siglo XVIII el antiguo modelo [de
formação] tenía todavía una notoria presencia, en coexistencia con las
nuevas ideas, como ocurrió en Salamanca con ciertas prácticas universitarias
y con la adopción del nuevo Plan de Estudios de 1771. En Nueva España,
por ejemplo, se mantenía como requisito para acreditar las dotes de un
catedrático su modo de disertar en el aula a la antigua usanza sobre la base
44
de los textos canónicos y civiles.

O que mostra a força das permanências dos costumes do Antigo Regime ainda em
finais do século XVIII. O desejo de mudar os planos de ensino, tanto em Salamanca como em
Coimbra, além de passar pela resistência de alguns professores e juristas, passava ainda pelo
desafio de alterar a tradição jurídica.

O ponto fundamental para entender a relação das coroas ibéricas com os


magistrados é a historicidade de cada período estudado. Aqui, comentamos desde momentos

416
de transição, como o fim da Idade Média e a formação dos Estados modernos até sobre
permanências no campo ideológico. Contudo, esperamos que tenha ficado clara a nossa
vontade de abordar com mais calma e cuidado a inserção dos oficiais da justiça em uma forma
de governo através da qual o Estado tenta tomar para si as rédeas do corpus literário. Não há
absolutamente no nosso texto juízo de valor entre as alianças feitas por Portugal ou pela
Espanha. Tais alianças respondem, em concordância com o dito acima, ao momento dos dois
reinos. Os processos históricos não se repetem.

Se Portugal, logo quando os juristas ganharam mais espaço junto ao poder


positivo (político), não dependeu das grandes Casas portuguesas para colocar em vigor um
conjunto de leis então considerado mais adequado para a nova realidade, essa é uma
característica fiel ao seu processo histórico. Estando os nobres portugueses dedicados a outras
matérias e havendo interesse de ascensão social por parte de diferentes grupos, acreditamos
que o ponto chave para Portugal foi tornar uniforme a formação dos profissionais na
Universidade de Coimbra. Logo, se Coimbra conseguisse atender às expectativas da Coroa, o
grupo, que ao menos desde o século XIV via na Justiça uma maneira de ascender na
hierarquia do Antigo Regime, não precisava ser alijado desses postos. E foi exatamente o que

43
ALONSO ROMERO, María Paz. Salamanca, escuela de juristas. p. 342-343.
44
ANZOÁTEGUI, Víctor Tau. El Jurista en el Nuevo Mundo. p. 14.
aconteceu. O que não significa que as reformas no currículo estivessem fora de questão. Tanto
que o plano de reformar o ensino universitário esteve entre as prioridades do Marquês de
Pombal. A Universidade de Coimbra “criava” os homens necessários para a nação.

Já no que diz respeito ao processo espanhol, não acreditamos que a necessidade de


reconfiguração do pacto entre monarquia e profissionais da justiça tenha surgido como
consequência de déficits formativos. Os especialistas mencionados anteriormente conseguem
mostram uma Universidade de Salamanca muito bem articulada com as necessidades e a
tradição jurídica do mundo hispânico. A mudança então não foi provocada por questões
técnicas, senão pelo choque existente entre a Casa de Bourbon e o núcleo da nobreza
espanhola que ocupava os postos na administração da justiça. Não sendo interesse da Casa
reinante a manutenção de uma relação conflituosa, ela pode se valer daqueles que por muito
tempo estiveram à margem da hierarquia interna do campo do direito e, que ainda viam na
carreira da justiça, uma oportunidade para ascender socialmente, especialmente nas áreas
coloniais, mas também em território europeu.

O que nós pretendíamos oferecer como contribuição para essa discussão


historiográfica é essa tentativa de observar os dois fenômenos de vinculação das coroas
417
ibéricas e dos profissionais da justiça em paralelo. Ao fazer apontamentos que vão desde o
compartilhamento de uma tradição jurídica comum, passando por uma reflexão sobre o que
aproximou e o que afastou as coroas de determinadas categorias profissionais, o papel das
universidades nesse jogo e o respeito à singularidade do fato histórico. Trajetória que nos
permite perceber que apesar de levar uma venda nos olhos, a balança que a Deusa carrega na
mão, por vezes, pendeu deliberadamente por razões que escapam à teórica isenção que
deveria ter o direcionamento da Justiça em relação às paixões humanas.45

Referências bibliográficas:

45
A Deusa grega da Justiça, Thêmis, é comumente representada com os olhos vendados e carregando em uma
das mãos uma balança e na outra uma espada.
ALONSO ROMERO, María Paz. Salamanca, escuela de juristas: Estudios sobre la
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Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004. Disponível em:
<http://funag.gov.br/loja/download/0261-direito_das_gentes.pdf>.
ROMPENDO AS
MOLDURAS: O DECORO
E A TEATRALIDADE
NOS PAINÉIS DA
IGREJA DA ORDEM
TERCEIRA DO CARMO
DO RECIFE.

RAFAEL LIMA MEIRELES


DE QUEIROZ

GRADUANDO (UnB)
No dia 27 de setembro de 1695, o Convento do Carmo em Recife recebia a reunião
que definiu a instauração de uma Ordem Terceira Carmelita na região. Uma vez aprovada a
criação da Ordem em 20 de outubro do mesmo ano pelo Arcebispo de Rhodes, os irmãos
terceiros do Carmo se dedicaram à busca de um local que abrigasse sua devoção. Um ano
depois os frades lhe ofereceram a estrutura de um oratório no Convento Carmelita da Ordem
Primeira, com a condição de que dessem continuidade às obras. Após o término da construção
da capela cedida pelos irmãos da Ordem Primeira, em meio à disputa entre Olinda e Recife
conhecida por Guerra dos Mascates1, consagrou-se a Igreja da Ordem Terceira do Carmo do
Recife no ano de 1710, a qual foi dedicada à grande reformadora dos carmelitas, Santa Teresa 421
D’Ávila2.

Em 1937, o templo foi descrito por Fernando Pio como sendo magnífico “no seu
aspecto, embellezada por seis altares, ornada de ricos painéis representando os diversos
passos da vida de Santa Thereza”3. Certamente, ainda hoje os painéis pictóricos produzidos
pelo artista pernambucano João de Deus e Sepúlveda, despertam, com a beleza de sua
narrativa alegórica, a atenção dos que visitam a igreja.

Considerado um dos maiores expoentes das artes visuais de seu período, João de Deus

1
Para saber mais sobre a relação entre os carmelitas e a guerra dos mascates ver: HONOR, André. O verbo mais
que perfeito: uma análise alegórica da cultura histórica carmelita na Paraíba colonial. Belo Horizonte: Fino
Traço, 2013, p. 83-93.
2
Em Ávila, no dia 28 de Março de 1515, nasceu Teresa de Ahumada e Cepeda, que a partir de orações mentais e
de sua íntima relação com Cristo, veio a ser um dos mais importantes ícones da religiosidade de seu tempo. Aos
20 anos entrou para o Convento Carmelita da Encarnação, onde as liberdades concedidas pela não observância à
Regra Primitiva do Carmelo, fizeram com que sofresse ao longo de muitos anos pensando não se esforçar o
bastante na servidão a Cristo, até o momento em que, imbuída da inspiração divina, decidiu reformar a ordem da
qual fazia parte a partir de seus descontentamentos. Suas ações influenciaram não só os carmelitas, mas toda a fé
cristã, atingindo inclusive o Novo Mundo. A consagração do templo a esta santa vai além de uma simples
homenagem a uma personagem cristã distante da realidade pernambucana. A grande quantidade de imagens
referentes à vida de Teresa não só demonstra o enorme prestígio do qual gozava, mesmo em um espaço físico e
temporal completamente alheio ao seu, mas também assinala-a como sendo um modelo de vida religiosa no qual
se inspirar.
3
PIO, Fernando. Historico da Igreja de Santa Thereza ou Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte
do Carmo da Cidade do Recife, Recife: Jornal do Comércio, 1937, p. 18.
e Sepúlveda destacou-se pelas suas pinturas representando a batalha dos Guararapes, sob o
coro da Igreja da Conceição dos Militares, e ornamentação do forro da nave da Igreja de São
Pedro dos Clérigos4. Foi ele também, o artista responsável pela confecção dos 58 painéis
presentes na Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Recife. Os quadros estão distribuídos no
teto da nave principal (40 painéis) e ao longo da nave principal, ao lado das janelas laterais e
do arco cruzeiro (18 painéis), dos quais 53 fazem referência direta à vida de Santa Teresa,
apresentando diversos momentos de sua hagiografia.

Em 20 de abril de 1760 foi ajustado com o mestre pintor Tenente João de


Deus Sepúlveda a pintura e douração dos cinco paineis fronteiros a cobertura
do pulpito pela quantia 345$000. Em 30 de Novembro de 1760 contracta a
mesa com o mesmo pintor a “continuação dos paineis do forro e lados da
igreja, num total de 20, inclusive dois grandes por cima das portas travessas
que encontram para o cruzeiro”. Um anno depois, em 15 de Novembro de
1761, é ajustado com o mesmo pintor o restante dos paineis 5.

As obras deste artista na Ordem Terceira do Carmo do Recife constituem hoje em dia
o maior acervo imagético dentro de uma igreja sobre a vida de Santa Teresa, e foram de
extrema importância para a consolidação da cultura histórica 6 carmelita na região de Recife.
Para conseguir alcançar o decoro7 necessário aos painéis da igreja, João de Deus utilizou dos
atributos iconográficos estabelecidos por gravuras que representavam Santa Teresa d’Ávila. 422
A presença de cópias de gravuras religiosas europeias nas mãos de um pintor
brasileiro é uma das consequências das questões religiosas que surgiram na Europa do século
XVI. A Reforma Protestante acusava a arte sacra de ser uma sobrevivência do paganismo
inserida no âmago da doutrina cristã, e pronunciava que esta deveria ser combatida por tratar-

4
MOURA FILHA, Maria. Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos séculos XVIII e
XIX. In: FERREIRA-ALVES, Natália (coord.). A Encomenda, o Artista, a Obra; org. Centro de Estudos da
População, Economia e Sociedade. - Porto: CEPESE - Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade,
2010, p. 359-378.
5
PIO, Historico da Igreja de Santa Thereza ou Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo
da Cidade do Recife, Recife, p. 21
6
Rosa Maria Godoy Silveira trata a cultura histórica como: “(...) o conjunto das experiências vividas pela
Humanidade e os sentidos que os seres humanos dão ao mundo. Assim, a Cultura Histórica guarda duplo
sentido: um, genérico, enquanto produção pela História-processo; outro, mais específico, como História-
conhecimento, melhor nomeada, talvez, de Cultura Historiográfica. Portanto, toda Cultura Histórica contém uma
Cultura Historiográfica, esta última entendida como o conjunto das representações formuladas sobre as
experiências vividas pelas sociedades, os grupos sociais, as pessoas, em uma perspectiva de temporalidade.”
SILVEIRA, Rosa. A cultura histórica em representações sobre territorialidades. Sæculum–Revista de História,
Pernambuco, n. 16, p. 33-46, 2007.
7
De acordo com o dicionário de Raphael Bluteau, decoro é “o que é digno de qualquer pessoa, e do lugar que
tem, e tão proporcionado com o seu estado, que nem exceda as suas forças, nem seja inferior à sua qualidade.”.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra, Collegio
das Artes da Companhia de Jesu, v. 3, 1712 - 1728.
Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/002994-03#page/7/mode/1up.
Acesso em: 12/05/2017.
se de uma pretensa mediadora da relação do homem com Deus. Para desconstruir este
argumento, contrarreformistas defenderam o uso de imagens como sendo a melhor forma de
persuadir e evangelizar. A partir de representações dos fatos da história eclesiástica, a Igreja
Católica pretendia educar por meio de modelos canônicos.

Para os fins da existência prática ou da utilidade, a comunicação no nível das


imagens parece mais eficaz do que aquela no nível intelectual da forma ou
do conceito, já que implica um simples “apropriar-se”, e não um esforço
especulativo, o qual teria desviado da operosa praticidade da vida 8.

Em 3 de dezembro de 1563, complementando sua decisão em espalhar a doutrina


cristã pelo mundo, o Concílio Tridentino decretou diversas regulações acerca da arte e
arquitetura dos templos, a fim de legitimar o uso de imagens pela Igreja Católica e seus fiéis.

Além disso declara este santo concílio, que as imagens devem existir,
principalmente nos templos, principalmente as imagens de Cristo, da Virgem
Mãe de Deus, e de todos os outros santos, e que a essas imagens deve ser
dada a correspondente honra e veneração.9

Após o Concílio de Trento, o ímpeto em conter os avanços da Reforma Protestante


estabeleceu um caráter difusor em relação aos ritos da Igreja Católica e à Liturgia. Com esta
finalidade, incentivou-se a publicação e disseminação de livros, missais, crônicas, 423
hagiografias e tudo mais que pudesse difundir o ideal contrarreformista, com a pretensão de
educar melhor os fiéis na dita verdadeira moral cristã. Como ressalta Bohrer10, “De perfeito
espírito, a ideia central de Pio V e de seus cardeais era padronizar o rito romano e espalhá-lo
por todas as partes, homogeneizando comportamentos litúrgicos díspares e evitando a marcha
protestante.”
Estas obras difundidas continham diversas ilustrações, principalmente gravuras, que,
além de complementarem o conteúdo litúrgico, contribuíram significativamente para a
expansão do catolicismo no território luso-americano. No século XVIII, mesmo com certa
abertura das bibliotecas para a ciência e assuntos não ortodoxos, se manteve a predominância
de obras doutrinárias, sendo comum encontrar livros referentes ao catecismo, exercícios

8
ARGAN, Giulio. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004, p. 58.
9
Concílio Ecumênico de Trento (1545-1563), Sessão XXV. Disponível em:
http://agnusdei.50webs.com/trento30.htm. Acesso em 30/07/2017.
10
BOHRER, Alex. Os Missais de Platin e Outras Reminiscências Flamengas no Barroco Mineiro. In: STOLS,
Eddy; THOMAS, Werner (Org.), Um Mundo Sobre Papel – Libros y Grabados Flamengos em el Imperio
Hispanoportugues (Siglos XVI-XVIII), Louvain, 2009, p. 483.
espirituais e até mesmo resumos da vida de santos.11
No entanto, com esta ampla disseminação da liturgia e das hagiografias, entre outras
produções cristãs, cresceu nos eclesiásticos o medo da propagação de heresias, ocasionada
pelo não controle absoluto da Igreja sobre o que estava sendo difundido. A saída encontrada
pelos clérigos foi uma espécie de padronização do conteúdo de sua doutrina por meio de um
processo semelhante à mimesis aristotélica.

Uma representação mimética consiste basicamente em, por meio da semelhança,


manter a verossimilhança do momento retratado, o que é de extrema importância no aparato
persuasivo barroco utilizado no templo da Ordem Terceira do Carmo do Recife. É esta
mimética que explica a similitude encontrada entre uma gravura belga de 1613 sobre Teresa
D’Ávila, e uma pintura pernambucana do século XVIII retratando a já consagrada Santa
Teresa. Por ser um local de extrema importância, influência e foco da atenção de boa parte da
população católica pernambucana, o monumento carmelita de Recife devia ser extremamente
decoroso, se protegendo de desvios heréticos.
Herdada do latim, decorum, a ideia de decoro faz referência ao que convém, ao que é
adequado. É um conceito que remete ao devir a ser, à ideia de tornar-se algo em concordância
com sua essência. Aplicado ao campo das artes, o decoro é a bússola que guiará o artista pelo
424
caminho da decência.

O decoro conservou sempre a responsabilidade por orientar o artista na


procura do que é adequado e conveniente, tanto em relação aos aspectos
internos e implícitos à obra (matéria, gênero, estilos, proporções, ordem e
disposição apropriada de elementos e partes, ornamentos e elocução
característica, ética e patética, proporção de comodidades e efeitos
adequados) quanto também em relação aos aspectos externos e circunstantes
a ela, a recepção que a obra deveria ter pelos destinatários 12.

Unindo “esplendor conveniente, a formosura útil,” à “beleza adequada”13, a ideia de


decoro não se resume como apenas um molde para o belo, sendo antes disso um retrato da
tradição. Se vamos a uma biblioteca, por exemplo, esperamos encontrar estantes repletas de
livros, mesas de estudo, bibliotecários, alguns transeuntes e o silêncio típico de um ambiente
de estudo. Quando apenas um dos pilares desta “construção” é retirado, como por exemplo o
silêncio, toda estrutura rui e não se apresenta mais em conformidade com a tradição, deixando

11
Para saber mais sobre as bibliotecas privadas na colônia, ver: VILLALTA, Luiz. O que se fala e o que se lê:
língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura (org.) História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada
na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 331-387.
12
BASTOS. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais
(1711-1822), p. 32.
13
__________.. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais
(1711-1822), p. 35.
de ser decorosa.
Nas igrejas, o decoro tem sua responsabilidade aumentada após a reforma protestante,
pois era necessário, como diz Rodrigo Bastos em A Maravilhosa Fábrica de Virtudes,
“defender especialmente dois aspectos: I) a legitimidade do uso e veneração das imagens, e 2)
a magnificência e o aparato exterior dos templos.”.14 Entendendo o templo como um local em
que as obras de artes possuem um papel fundamental na catequese cristã, as imagens ganham
papel determinante na “nova cruzada” cristã, pois a utilização de imagens na disseminação
dos ensinamentos da Igreja Católica, além de orientar o fiel, desafiava os ideais da corrente
protestante. Esta estruturação da transmissão das instruções da Igreja Católica, fundamentada
no decoro, perdurou por vários anos, sendo um excelente exemplo desta longevidade o caso
da Ordem Terceira do Carmo do Recife, construída dois séculos após o Decreto XXV.
Formada por clérigos e leigos, para que houvesse a sustentação ou, basicamente, para
que existisse uma Ordem Terceira, era necessário, além da participação efetiva das pessoas da
comunidade na qual o templo está inserido, um contexto favorável à sua instalação. No
período colonial brasileiro havia um jogo de interesses onde, além da religiosidade, fazia-se
presente a preocupação com os campos político e econômico das ordens terceiras. Ao ser

425
utilizada como meio de colonização, a Igreja vinculou-se fortemente à vontade da coroa,
“transformou-se pois, a carreira eclesiástica numa carreira de funcionalismo público.
Consciente desse seu papel, o clero colonial soube tirar proveito da ‘mercantilização das
funções sarcedotais’”15. Portanto, no Recife do século XVIII, muitos viam a oportunidade de
ascensão social por meio do ingresso na ordem carmelita. Demonstrar-se qualificado perante
o rigoroso sistema de seleção desta instituição, além de aumentar o prestígio do indivíduo,
abria portas para o alcance de postos mais elevados na hierarquia daquele contexto.

O compromisso dos terceiros em Recife, de 1788, em seu capítulo 14 intitulado: “Das


condições que há de indagar os informantes, sobre os pertendentes da entrada na nossa
Ordem, e como se hão de comportar”, elenca algumas características indispensáveis para o
ingresso na irmandade. Os homens, por exemplo, deviam ser batizados, honrados, sem vícios,
sem pendências judiciais e deviam ter “bens, que bastem, para que sem detrimento da sua
família, possa satisfazer as obrigaçoes da ordem”16. Portanto, um participante da ordem
terceira carmelita era um homem que, além de bens, possuía estimada virtuosidade.

14
__________.. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais
(1711-1822), p. 41.
15
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades e políticas colonizadoras em Minas Gerais. São Paulo:
Ática, 1986, p. 63.
16
AHU_ACL_CU_COMPROMISSOS, Cod. 1941. As siglas desta citação são: AHU – Arquivo Histórico
Ultramarino; ACL – Arquivo da administração geral; CU – Conselho Ultramarino.
No entanto, mesmo com esse desejo da população em fazer parte da irmandade, foi
necessária a implementação de estratégias, por meio dos carmelitas, para a cooptação da elite
pernambucana, pois com a concorrente presença de diversas irmandades na mesma região, os
fiéis podiam escolher qual irmandade gostariam de tentar se juntar. Com isso os irmãos
terceiros do carmo decidiram utilizar da arte barroca como meio propagandístico e persuasivo
para trazer a elite pernambucana para si, valendo-se da cultura histórica carmelita como
elemento diferenciador em relação à arte dos demais templos.
A amálgama destes fatores - o desejo de trazer a elite leiga para o interior da ordem e a
evangelização por meio de imagens - deu à Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Recife
uma de suas características mais expressivas, a teatralidade.
Sendo um campo teórico do barroco, é impossível desconectar o aparato teatral das
igrejas dos demais conceitos desta corrente. A arte barroca religiosa fundamenta-se
principalmente na persuasão, que funciona através de dois conceitos aristotélicos, a poética e
a retórica. A poética nos traz os ideais de mimeses e verossimilhança, ela é o “apropriar-se”
dito por Argan17.

El recurrir a las categorias estéticas de Aristoteles nos ha mostrado que no


nos encontramos ante un arte de lo real, sino de lo verosímil; la pretensión de
uma imagen persuasiva hace elaborar una imagen sintética, más simbólica 426
que realista, que toma sus ideas de unos presupuestos esenciamente teóricos
e intelectuales. 18

Já a retórica, nada mais é do que a capacidade de encontrar a melhor forma para se


passar uma mensagem, convencendo o receptor de que a ideia ali apresentada deve ser
adotada. Ela “não trata de nenhuma matéria específica, é apenas o meio de encontrar, ordenar
e expor ‘as coisas que são propícias para persuadir em qualquer assunto, numa civilização em
que ‘o falar é próprio do homem’”19. Portanto, pode-se dizer que a retórica é o aparato
utilizado para instaurar o caráter persuasivo por meio da teatralidade barroca.
Na Ordem Terceira do Carmo do Recife, encontrava-se a poética nos painéis
teresianos espalhados pelo corpo da Igreja. Apropriando-se da vida de Santa Teresa, com
representações verossímeis de sua jornada, buscava-se em sua especificidade, um molde de
conduta cristã. O mecanismo retórico de transmissão deste modelo foi a teatralização da igreja
terceira carmelita.
Neste caso, o próprio templo era um palco, onde as cenas, retratadas nas imagens,

17
ARGAN. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco, p. 58.
18
CHECA, Fernando; TURINA, José. El barroco, Madrid, 1989, p. 221.
19
ARGAN. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco, p. 69
encontravam na celebração da missa o enredo de sua peça. O fiel que adentrava aquela igreja
para assistir a uma celebração estava submetido a um turbilhão de sensações que
proporcionavam uma vivência única e transcendental.
As sensações eram transmitidas pelo cheiro dos incensos, pelos painéis com imagens
alegóricas e seus conceitos intrínsecos, pelas luzes das velas ou as que adentravam os vitrais,
e pelos cânticos que constituíam a trilha sonora daquela peça teatral. Tudo com o objetivo de
“fazer com que o Cristão se envolvesse por completo no culto católico, introjetando-o no
plano espiritual”20, internalizando no fiel o modelo de conduta cristão, que, como já foi dito,
no caso da ordem estudada, remete à vida de Santa Teresa D’Ávila. “O ambiente barroco
desenvolvia-se, dessa forma, como uma grande encenação dramática, onde todos eram
espectadores de uma experiência inebriante, inusitada, monumental.”21.
Esta teatralização do templo lhe conferia o caráter de uma “construção expressiva de
valores ideológicos” que se apresentava como o “núcleo de máximo prestígio no tecido
urbano”22, proporcionando-lhe o status de monumento.
Portanto, para construir um monumento decoroso, que estivesse em conformação com
a exuberância e a retidão da Igreja Católica e que ao mesmo tempo cooptasse a classe

427
ocupante dos níveis mais altos na hierarquia pernambucana, foi se consolidando aos poucos,
através das imagens hagiográficas de Santa Teresa, uma cultura histórica carmelita.
Ponto central do “teatro” carmelita – e desta cultura histórica construída em Recife - as
obras de João de Deus e Sepúlveda ditam o arranjo decoroso do templo. Para manter a
decência em suas pinturas, o artista utilizou dos “guias religiosos” disseminados, nos quais os
atributos iconográficos de Santa Teresa foram fixados, a exemplo de sua característica
vestimenta. No intuito de verificar a copiosidade empregada pelo artífice pernambucano,
partindo das particularidades iconográficas referentes a Santa Teresa D´Àvila, foi possível
comparar os painéis confeccionados por Sepúlveda para a igreja da Ordem Terceira do Carmo
do Recife com as imagens de obras que continham suas ilustrações.
No texto Espiritualidade e Misticismo de Santa Teresa de Jesus, da gravura à
azulejaria, Lúcia Marinho traz-nos os nomes de algumas destas obras – que poderiam ter sido
usadas pelo pintor – das quais põe em evidência Vita S. Virginis Teresiæ a Iesv ordinis
carmelitarvm excalceatorvm piae restavratricis, de Adriaen Collaert e Cornelis Galle,
publicado pela primeira vez no ano de 1613 em Amberes, na Bélgica.

20
HONOR. O verbo mais que perfeito: uma análise alegórica da cultura histórica carmelita na Paraíba colonial,
p. 132.
21
BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do Barroco. Salvador: EDUFBA; PPGAU, 2012, p. 196.
22
ARGAN. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco, p. 78.
Amplamente divulgado e, na generalidade, entendido como a principal fonte
em gravura dedicada a Santa Teresa de Jesus, o álbum da autoria de Adriaen
Collaert e Cornelis Galle intitulado Vita S. Virginis Teresiae a lesu Ordinis
Carmelitarum Excakeatorum Piae Restauratricis e editado em Amberes pela
primeira vez em 1613, é composto por vinte e cinco gravuras, seriadas e
legendadas em latim. 23

Além do álbum de Collaert e Galle, foram utilizadas na pesquisa as seguintes obras


que também apresentam ilustrações refrentes à reformadora carmelirta: Sanctissime Matris
Dei Marie de Monte Carmelo Beatae. Teresiae hvmilis filiae ac devota famvla effigies,
publicado em 162224 por Giovanni Giacomo Rossi; La Vie de Ia séraphique Mère sainte
Thérèse de Jesus, fondatrice dês Carmes Déchaussez & dês Carmelites Déchaussées, en
figures & en vers François & Latins, de Claudine Brunand em 1670; Konste der konsten
ghebedt: oft maniere om welIf bidden besonderlijck ghetrocken uijt de schriften van de h.
moeder Teresa de lesu, também publicado em Amberes no ano de 1646; Vita effigiata et
essercizi affettiui di S. Teresa di giesu maestra di celeste dottrina per il giorno delia sacra
comunione, publicado originalmente em 1655 e editado em Roma em 1670; em meados do
século XVIII, a Vita S. V. Et M. Theresiae A Jesu Solis Zodiaco Parallela foi editada em
Augsburgo com gravuras de Johann Baptist Klauber e Joseph Sebastian Klauber; por fim,
Vita effigiata delia seráfica vergine S Teresa di Gesú fondatrice deH'Ordine Carmelitano 428
Scalxo. de 1716, por Arnold van Westerhout, em Roma. Pelo fato de as gravuras de Giovanni
Giacomo Rossi serem cópias idênticas às produções de Adriaen Collaert e Cornelis Galle, e
de as gravuras dos irmãos Klauber não serem correspondentes ao modelo iconográfico
escolhido para a pesquisa, optei por deixá-las fora da análise proposta neste artigo.
Para realizar esta análise, decidimos trabalhar com uma das imagens mais famosas da
hagiografia teresiana e que se encontra representada na Ordem Terceira. Ela retrata o
momento em que São José e Nossa Senhora, reconhecendo a íntima relação de Santa Teresa
para com Cristo, impõem-lhe um colar e um manto como símbolo de proteção.

Pareceu-me, estando assim, que via vestirem-me uma roupa de muita


brancura e claridade. No começo não via quem me vestia, depois vi Nossa
Senhora do meu lado direito e meu pai são José do esquerdo que me vestiam
23
MARINHO, Lúcia. Espiritualidade e Misticismo de Santa Teresa de Jesus, da gravura à azulejaria. In:
CICLOS DE ICONOGRAFIA CRISTÃ NA AZULEJARIA, I, 2013, Portugal. Moscavide: Secretariado Nacional
para os Bens Culturais da Igreja, 2013, p. 227.
24
Apesar de ter sido publicado como original, já foi tratado por alguns autores como Sandra Costa Saldanha e
María José Pinilla Martín, como sendo uma cópia. Na comparação feita por Martín, entre as gravuras de Rossi e
de Collaert e Galle, fica clara a não originalidade do trabalho de Giovanni.
SALDANHA, Sandra Costa. Fontes para a Iconografia Teresiana no Convento do Santíssimo Coração de Jesus à
Estrela. In: Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, Lisboa, n. 21, 2005, p. 109-110. PINILLA
MARTÍN, María José et al. Iconografía de santa Teresa de Jesús. 2013, p. 285
aquela roupa. Fez-me entender que já estava limpa dos meus pecados.
Terminada de vestir, e eu com enorme prazer e glória, logo me pareceu
tomar-me pelas mãos Nossa Senhora. Disse-me que eu lhe dava grande
alegria em servir ao glorioso são José, que acreditasse que o que eu pretendia
do mosteiro se faria e nele se serviria muito ao Senhor e a eles dois. Disse
que não tivesse medo porque não haveria quebra disso jamais, ainda que a
regra que aprovavam não fosse do meu agrado, porque eles nos protegeriam.
E que seu Filho já tinha prometido ficar conosco e que para sinal disso me
dava aquela jóia. Pareceu ter jogado no meu colo colar de ouro muito bonito,
presa a ele uma cruz de muito valor. Esse ouro e essas pedras são tão
diferentes dos daqui que não têm comparação.”25

Unindo todos os dados acima apresentados às pinturas presentes na Igreja carmelita,


foram criadas tabelas de dados, referentes a todas as imagens pesquisadas, pelas quais se
constatou que a Vita effigiata et essercizi affettiui di S. Teresa di giesu maestra di celeste
dottrina per il giorno delia sacra comunion e as obras de Brunand apresentam, cada uma, 11
gravuras compatíveis aos momentos retratados por João de Deus. Já o álbum de Collaert e
Galle e a obra Konste der konsten ghebedt apresentam somente 4 e 3 destas gravuras,
respectivamente. A única que apresenta todas as 12 imagens trabalhadas no projeto é a obra
de Arnold van Westerhout.

429

25
ÁVILA, Santa Teresa. Livro da Vida, Trad. Marcelo Musa Cavallari; prefácio de Frei Betto; introdução de
J.M. Cohen. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010, p. 313.
Figura 1 – Tabela montada a partir do projeto de PIBIC “Um barroco narrativo”
430

Logo abaixo está um exemplo de como foi organizada a dita tabela de dados, a qual
apresenta: fotografias das pinturas presentes na Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Recife;
a passagem da autobiografia de Santa Teresa referente ao momento retratado na pintura; as
obras onde podem ser encontradas gravuras que esboçam o mesmo momento; seus
respectivos autores e a numeração da página que contém a ilustração.
Baseando-se na metodologia iconológica proposta por Panofsky 26 é interessante notar
as mudanças sofridas pela iconografia nas seis figuras aqui apresentadas. Na Figura 2 vemos,
em um ambiente fechado, Santa Teresa ajoelhada perante Maria e José, que estão suspensos
em uma nuvem. Enquanto Nossa Senhora está agachada a colocar o colar na santa, São José
está em pé, por detrás de Teresa, a impor-lhe o manto. O momento é assistido por diversos
anjos que circundam o nimbo presente no local.

26
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
Figura 2 – Gravura de Adriaen Collaert e Cornelis Galle, 1613.

Já a Figura 3, gravada trinta e três anos


após a gravura de Collaert e Galle, apresenta
características totalmente diferentes. Na
segunda os anjos estão ausentes, mas, em seu
lugar encontramos a pomba como
representação do Espírito Santo. O ambiente
ao redor, tão detalhado na Figura 2, é
deixado de lado. Santa Teresa continua
ajoelhada, mas dessa vez tanto Maria, quanto 431
José, não se apresentam mais por de cima da
nuvem, pois esta agora paira sobre suas
cabeças. Eles estão em pé, na retaguarda da
Santa, a entregar-lhe seus presentes. Figura 3 – Gravura da obra Konste der konsten
(...), 1646.

As mudanças iconográficas apresentadas nesta gravura podem ser explicadas pela data
da canonização de Teresa de Ahumada e Cepeda, em 12 de março de 1622. Segundo Jean
Chevalier, em seu Dicionário dos Símbolos, além de representar o Espírito Santo, a pomba
representa também o sacramento da confirmação, após o qual o cristão deve professar sua fé
publicamente27. Neste sentido, a introdução da pomba nessa imagem, pairando no alto da
cena, demonstra a ligação da agora Santa Teresa com o Espírito Santo, que desce do céu para
confirmar a santificidade da reformadora carmelita. Outra explicação possível é de que o
autor desta imagem inspirou-se no primeiro retrato de Santa Teresa, feita pelo frei João da
Miséria, em 2 de junho de 1576. À época a Santa comentou: “Deus te perdoe irmão, pois me

27
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998, p.
728.
desenhaste feia”.28 A semelhança entre a representação de Teresa na Figura 3 e na obra de
Frei João da Miséria (Figura 4) é indiscutível.

Figura 4 - Retrato de Teresa de Jesus. Frei João da Miséria. 1576

As duas gravuras seguintes são mais intrigantes. Se pegarmos as figuras 5 e 6 notamos


que as imagens são exatamente iguais. Maria, José e Santa Teresa estão suspensos sobre
nuvens. A avilense está ajoelhada a receber o manto de São José enquanto um anjo paira ao 432
seu lado e Nossa Senhora está sentada a observar a cena. Nota-se também que em ambas o
colar desaparece. María Martín, em sua tese de doutoramento, defende que Claudine Brunand
copiou e adaptou as imagens presentes na Vita effigiata et essercizi (...).29

Figura 5 – Gravura da obra Vita effigiata et Figura 6 – Gravura de Claudine Brunard, 1670.
essercizi (...), 1670.

28
PINILLA MARTÍN. Iconografía de santa Teresa de Jesús, p. 34.
29
Para maiores informações sobre métodos utilizados nas cópias de gravuras ver: ALMADA, Márcia. Das artes
da pena e do pincel: caligrafia em pintura em manuscritos no século XVIII. BH: Fino traço, 2012, p. 186 – 193.
Por fim, a Figura 7 é a que mais se assemelha à produção de João de Deus e
Sepúlveda, retratada na Figura 1, e apresenta uma junção das características de todas as
figuras anteriores. Assim como nas figuras 5 e 6, todos os personagens da narrativa pictórica
estão sobre nuvens. Como na Figura 2, Teresa está ajoelhada a receber o colar de Nossa
Senhora à sua frente, e o manto de São José por detrás de suas costas. Presentes em todas as
imagens, com exceção da segunda, os anjos pairam pela cena, como que ansiosos por ver
momento tão sagrado.

433

Figura 7 – Arnold van Westerhout, 1716

Mas são as características únicas, tanto da sexta figura, quanto do quadro presente na
Igreja da Ordem Terceira do Carmo do Recife, que fazem com que elas destoem das demais e
aproximem-se entre si. Em ambas as obras, o colar investido por Maria tem tamanho
semelhante; os anjos estão nas mesmas posições; parece que até a vestimenta do São José
pintado por João de Deus, se debate contra o mesmo vento que bate contra o José de Arnold
van Westerhout; mas a mudança mais significativa no momento retratado provém da inserção
do livro aberto ao chão, em frente à Santa.
Se analisarmos na autobiografia da santa a descrição deste momento, no verso catorze
do capítulo trinta e três, não encontramos a menor menção a qualquer tipo de livro que seja.
Consultando Chevalier novamente descobrimos o livro aberto como símbolo de um
ensinamento concreto e que atinge os seus objetivos. Além disso, em uma comparação entre o
livro e o coração, tem-se a ideia de oferecer os sentimentos e os pensamentos a algum
propósito30. Pensando em Santa Teresa e em suas obras de ensinamentos, como Caminho da
Perfeição e O castelo interior, temos a representação do livro aberto como símbolo do
comprometimento da avilense para com a difusão da doutrina cristã, ele pode estar presente
na imagem para retomar a ideia de que as visões de Teresa são frutos de sua meditação
espiritual. É fundamental, ao pensarmos em Santa Teresa como modelo de conduta cristão
estabelecido pela Ordem Terceira do Carmo do Recife, percebermos a defesa de seus
ensinamentos e suas virtudes, a partir de sua representação alegórica.
Fica evidente, portanto, a semelhança entre todas as imagens com alguns atributos
iconográficos que perpassam os séculos, e também a inclusão de outros que refletem os
interesses e a forma de pensar de quem lhes produziu, sendo estas mudanças e continuidades
matéria que foge da “simples” análise artística, exigindo uma interpretação histórica
contundente.

A partir da extensa pesquisa realizada no projeto de Iniciação Científica “Um Barroco


narrativo: uma análise iconológica da hagiografia de Santa Teresa d’Ávila nos 13 painéis da
nave da Igreja da Ordem Terceira do Carmo do Recife, Capitania de Pernambuco”31, percebe-
se que, no monumento carmelita do Recife, o decoro foi a ferramenta pela qual se pôs o
templo em conformação com a exuberância e a retidão da Igreja Católica. Rompendo as
434
molduras dos painéis de Sepúlveda, encontramos na história os componentes de sua obra,
tanto em gravuras europeias do século XVII, como em conceitos da antiga filosofia grega. No
século XVIII, em um contexto de disputa tanto religiosa, quanto político-econômica, a Ordem
Terceira do Carmo do Recife estampa em sua nave um roteiro, onde nas páginas “escritas”
por João de Deus o fiel encontra um modelo de conduta que dá forma à cultura desta ordem
na região. Unindo os painéis; à arquitetura barroca; ao rito litúrgico; aos odores dos incensos;
à música religiosa e à iluminação do templo, cria-se um ambiente persuasivo, que por meio do
fascínio, intenta convencer os fiéis a se juntarem aos irmãos terceiros carmelitas. Todos estes
fatores conceberam o estranho “teatro” que, com um único espetáculo, se perpetua no tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMADA, Márcia. Das artes da pena e do pincel: caligrafia em pintura em manuscritos no


século XVIII. BH: Fino traço, 2012.

30
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1998, p.
555.
31
Como produto de um projeto maior, no qual esta pesquisa se insere, está sendo confeccionado um site que
congrega todas as pinturas e gravuras por nós estudadas, possibilitando o acesso rápido e simples às fontes. O
endereço do site é: https://pinturasantateresa.wordpress.com/
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. Trad. Maurício Santana
Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
ÁVILA, Santa Teresa. Livro da Vida. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras,
2010.
BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do Barroco. Salvador: EDUFBA; PPGAU, 2012.
BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura
religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). 2009.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ...
Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, v. 3, 1712 - 1728.
Disponível em: http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/002994-03#page/7/mode/1up.
Acesso em: 12/05/2017.
BOHRER, Alex. Os Missais de Platin e Outras Reminiscências Flamengas no Barroco
Mineiro. In: STOLS, Eddy; THOMAS, Werner (Org.), Um Mundo Sobre Papel – Libros y
Grabados Flamengos em el Imperio Hispanoportugues (Siglos XVI-XVIII), Louvain, 2009.
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades e políticas colonizadoras em Minas
Gerais. São Paulo. Ática. 1986

435
CHECA, Fernando; TURINA, José. El barroco, Madrid, 1989.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro, José
Olympio, 1998.
Concílio Ecumênico de Trento (1545-1563), Sessão XXV. Disponível em:
http://agnusdei.50webs.com/trento30.htm. Acesso em 30/07/2017.
HONOR, André Cabral. O verbo mais que perfeito: uma análise alegórica da cultura histórica
carmelita na Paraíba colonial. Belo Horizonte, Fino Traço, 2013
MARINHO, Lúcia. Espiritualidade e Misticismo de Santa Teresa de Jesus, da gravura à
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MOURA FILHA, Maria. Artistas e artífices a serviço das irmandades religiosas do Recife nos
séculos XVIII e XIX. In: FERREIRA-ALVES, Natália (coord.). A Encomenda, o Artista, a
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Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade, 2010
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SILVEIRA, Rosa. A cultura histórica em representações sobre territorialidades. Sæculum–
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(org.) História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997.

436
SANTO OFÍCIO E SEUS
HORIZONTES NA
PRIMEIRA VISITAÇÃO
EM PERNAMBUCO.

RAÍSSA TOLEDO
DE OLIVEIRA

GRADUANDA (UFPE)
No período que antecedeu a vinda da Visitação do Santo Ofício à Pernambuco,
Portugal viveu um momento de intensas transformações religiosas e sociais que visavam
motivos variados: a expansão de seus domínios territoriais, assim como o controle das
colônias dominadas, um destaque na conjuntura moderna que demandava uma ânsia pela
ascensão hierárquica, e além de tudo isso, a Inquisição portuguesa incorporava seus tribunais
pelos territórios, integrando-os estrategicamente ao tribunal de Lisboa e buscava aproximar as
relações com as autoridades eclesiásticas romanas na tentativa de ascender o poder do rei no 438
ambiente inquisitorial.

A atuação religiosa adquiriu maiores proporções institucionais, visando regular a


ordem moral e religiosa, harmonizando-as com a sociedade e os seus costumes na tentativa de
constituir uma unidade cristã sustentada pela autoridade doutrinária e dogmática da Igreja. A
reformulação do catolicismo encontrou suas limiares no século XVI, época de grandes
acontecimentos sustentados pelas transformações, estas, oriundas do período designado Alta
Idade Média, onde as discussões periféricas sobre o centro do poder requisitavam valores
cristãos primitivos, mas acabaram sendo incorporadas ao seio católico. Embora a tendência
conciliarista na primeira metade do século XV1 tenha discutido a implementação de reformas,
devido a centralização do poder do pontífice, foi em 1545, três anos após a instituição do
Supremo Tribunal do Santo Ofício romano, que teve início o Concílio de Trento, tido como
mais decisivo devido a grande resistência as reformas ocorridas, sobretudo a Reforma
Luterana. Além de tentar fixar as doutrinas católicas, seus dogmas e práticas religiosas, o

* A autora é graduanda em História pela Universidade Federal de Pernambuco.


1
Concílio de Constança (1414-1418), Concílio de Basiléia (1431) e ainda o Concílio de Latrão (1512-1517) que
houve uma intensa afirmação do papado como governante supremo da Igreja.
Concílio realizado até o ano de 1563 buscou unificar a cristandade por meio da Igreja Católica
combatendo as heresias dos fiéis assim como a da própria estrutura eclesiástica.

Entre as decisões conciliares, estava a legitimação do controle eclesiástico sobre a vida


civil, moral e a sua maior faceta, o controle sobre a consciência da sociedade cristã. Foi essa a
ferramenta utilizada na tentativa de refrear a reforma das ideias que se emancipavam cada vez
mais na sociedade. Através desse domínio, podemos perceber a notoriedade que adquiriu a
estruturação e atuação inquisitorial portuguesa metropolitana e colonial, que através do
estabelecimento de condutas, buscava certificar a efetividade da regulamentação
administrativa, da estrutura processual, e das relações entre os réus e os membros
inquisitoriais a cargo do Santo Ofício.

Na tentativa de centralização institucional as visitas de inspeção, feitas a rogo do


Conselho da Inquisição, buscaram disciplinar a organização inquisitorial, conflitos entre
funcionários e a observação a pequenos grupos hierarquizados, tais visitas resultavam em
inquéritos, sumários e questionários que tentavam organizar as relações internas e opiniões
dos funcionários mas, sobretudo, o controle da rede de familiares do Santo Ofício. Toda a
organização era amparada tanto nos regimentos inquisitoriais, quanto no Manual dos
439
Inquisidores, fornecedor da jurisprudência e teologia orientadora do discurso dos juízes. Essa
inspeção se estendeu ao controle dos livros, não somente da jurisdição eclesiástica como
também da jurisdição civil, através do Index librorum prohibitirum, que originou uma série de
publicações acerca dos livros proibidos. A busca a essas obras tinha como objetivo sobretudo
as livrarias, bibliotecas e os navios, embora no Brasil esta última inspeção não tivesse
prosperado.

No contexto temporal da presença do Santo Oficio da Inquisição em Pernambuco, de


1593 a 1595, a atmosfera de denúncias e confissões feitas pelos moradores da capitania
proporcionou à organização inquisitorial e sua investigação contra as heresias um vasto
conjunto documental de processos jurídicos que, sumariamente, conectavam o sagrado e o
pecado e vinculavam a concessão do perdão a uma sentença, onde confessadas suas culpas
como ato necessário para descargo de sua consciência e saúde de sua alma o cristão
legitimava a jurisdição da Igreja e de seus poderes. Criava-se uma conjuntura jurídica onde o
perdão como questão principal demandava, além da confissão e do arrependimento dos
cristãos, o reconhecimento da Igreja Católica como instituição delegada a instruir o homem
no caminho da salvação. Em sua iniciativa frente a harmonização religiosa e social em seus
domínios, o Santo Ofício constrói um arranjo onde acusado é pecador e réu do processo, no
entanto, o fundamental: busca-se através da confissão, não a condenação, mas a oferta do
perdão e da reconciliação do réu, de modo que este seja reconduzido ao seio da cristandade.
Tal ato, afirmava além da sujeição à autoridade institucional, também a sujeição ao juiz
inquisitorial.

Em Pernambuco, a visitação ficou a cargo de Heitor Furtado de Mendonça e seus


assessores. Quanto às causas que resultaram a essa visitação encontramos discussões
historiográficas que apontam para um contexto de expansão do Santo Ofício para além dos
domínios portugueses no atlântico, ou como uma tentativa de se equiparar a Monarquia
espanhola dentro conjuntura moderna. Ficou encarregado Heitor Furtado de Mendonça de
deliberar os casos de bigamia, blasfêmia e outras culpas menores2, encaminhando na sentença
a abjuração de levi ou “por leve suspeita”3, já os culpados de judaísmo e luteranismo seriam
mandados presos ao reino. Outro debate justifica a perseguição aos cristãos-novos dentro do
contexto econômico do cerne açucareiro em crescimento na capitania, através da busca aos
seus bens a serem confiscados pelo tribunal que agia, segundo esse argumento, “sob a capa da
heresia” 4 . A questão é que, judeus, luteranos, bígamos, feiticeiros, sodomitas, de fato a 440
inquisição em Pernambuco teve de operar com suas ferramentas, com um “funcionamento
ordinário”5 aliada a ajuda das autoridades locais, eclesiásticas ou administrativas.

Ainda, para além de tal discussão, podemos perceber brevemente através de estudos
quantitativos que apesar da obsessão pelo crime de judaísmo, tido pela alçada inquisitorial
como crime mais grave, não foi o crime de maior quantidade de processos contra os réus na
Primeira Visitação. Como indício, dispomos dos dados do crime de sodomia, por exemplo,
que somou 24 processos, contra 17 de judaísmo na Primeira Visitação no Brasil. Embora o
crime de judaísmo tenha figurado como crime pungente e esse quadro não seja refletido

2
Segundo o entendimento do historiador José Gonsalves “o procedimento jurídico neles usado ao do Tribunal de
Lisboa, com processos, inquirições, libelos, contrariedades, com participação de promotores, advogados, etc.,
como na metrópole”. (MELLO, 1991, p. 374).
3
Tal abjuração pode ser feita em privado, perante o inquisidor, ou publicamente, na catedral no auto-de-fé.
“Deverá ser feita em língua vulgar para que todos compreendam”. (EYMERICH, 1993, p. 159-160).
4
O caráter econômico que a pesquisadora Anita Novinsky esta exemplificado “Na ordem de prisão de um
cristão-novo, por exemplo, já havia o sequestro de seus bens [...] No Brasil, entre os séculos XVI e XVIII, a
atenção dos inquisidores sempre foi dirigida às regiões mais desenvolvidas e onde se concentrava o maior
número de pessoas abastadas.” (NOVINSKY, 2017, p. 53).
5
Segundo Bruno Feitler, o que se caracteriza como “funcionamento ordinário” é a ação por meio das denuncias
espontâneas ou na “reação à leitura de editais de fé [...] nessas denúncias, e também naquelas feitas por pessoas
já presas nos cárceres inquisitoriais, que o Santo Ofício conseguia os testemunhos necessários para se lavrar um
mandado de prisão.” (FEITLER, 2013, p. 34).
completamente nos números, é nítido que não se pode basear o reflexo da ação inquisitorial
em dados quantitativos, “pois sua influência sobre as sociedades em que atuava ultrapassava
em muito sua ação penal” 6 . A problematização é analisar a proposição de denúncias e
confissões com os dados que realmente chegaram finalmente ao litígio.

Em um contexto de colonização, foi inevitável a relação entre cristãos-novos e


cristãos-velhos em Pernambuco, esta se deu relativamente em boa convivência social e
econômica se compararmos ao convívio em Portugal, embora não possamos negligenciar que
sobretudo durante o clima da Primeira Visitação o recém convertido de sangue maculado era
visto com desconfiança. Nessa sociedade amalgamada, a dificuldade em esconder o vínculo
familiar ou comercial, levou muitas vezes cristãos-novos a serem denunciados por membros
da própria família ou vizinhos de relações amistosas. Um caso como esse se manifesta no
processo de Inês de Brito7, cristã-velha, ré no crime de proposições heréticas, onde na casa da
morada do senhor Visitador Heitor Furtado, apareceu sem ser chamado, Ignacio do Rego
Cogominho, relatando ter presenciado a cristã Inês de Brito dizer a outros presentes ser “a
ordem dos casados melhor do que a ordem dos religiosos”. Por estar em seu siso foi chamada
a confessar, alegando então ter dito sem malícia e estar arrependida, pediu perdão e 441
misericórdia. Em seguida a duas audiências, a ré foi repreendida, submetida a penitencias
espirituais, pagamento das custas e obrigada a se desdizer perante as pessoas que havia
pronunciado a proposição.

Embora os crimes de proposições heréticas, que se resumem a concepções


equivocadas ou falsas acerca da instrução na fé católica, resultem em sentenças consideradas
brandas para o historiador contemporâneo, como repreensão e penitencias espirituais, outros
crimes, os mais graves, como o horrendo e abominável pecado de sodomia, possuem
sentenças mais duras. Dos 13 processos acessados nessa pesquisa, referentes ao crime de
sodomia no século XVI em Pernambuco, a pena mais dura foi o processo de André de Freitas
Leça8, por ter recebido em sua sentença o degredo para as galés por dez anos, juntamente com
a proibição de regressar a Pernambuco. Ainda dentre os 13 processos, 7 deles possuem em
seu primeiro fólio apontamentos feitos pelo Conselho Geral demonstrando insatisfação a
sentença dada por Mendonça, considerada brandas, entre as críticas a seguinte “o edicto da
graça no há luguar neste delicto do peccado nefando senão somente nos da fe / e o direito

6
(FEITLER, 2013, p. 34).
7
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo nº 1.332.
8
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo nº 8.473.
poe pena de morte”. É importante apenas pontuar que o Visitador recebeu críticas intensas do
Conselho Geral do Santo Ofício, por ser em alguns processos descomedido ou indulgente
demais em outros9.

No conjunto de documentações inquisitoriais sobre livros proibidos encontramos o


caso do mestre Bento Teixeira10, mestre de gramática residente na vila de Olinda. Nos trinta
dias de graça concedidos a vila de “Igarasu” e as mais freguesias de Pernambuco, em janeiro
de 1594, Gaspar Rodrigues:

disse ser cristão novo natural da cidade do Porto [...], e denunciando


disse [...], o achou lendo per hum livro e lhe perguntou que livro era e
elle lhe respondeo que era Diana, e elle denunciante o reprehendeo
logo que pois sabia que era defeso pera que ho lia, e o ditto Bento
Teixeira lhe respondeo que era verdade mas que elle o queimaria.11

O réu Bento Teixeira foi mandado para o cárcere do Santo Ofício em Olinda pelo
visitador Heitor Furtado em agosto de 1595 “por culpas q delle ha cõtra nossa sãcta fee
cathollica obligatorias a prisão”. Chegou aos ouvidos do inquisidor doze testemunhas que
442
haviam “ouvido dizer” sobre a posse do livro defeso pelo réu, que ainda detinha uma Bíblia
que a traduzia para o conhecimento de outras pessoas. Confere-se o acesso de Bento Teixeira
a essas obras devido a sua educação no Colégio da Companhia de Jesus, pois tinha em sua
reputação boa erudição, chegando até mesmo a ser considerado “em seu meio um rabino que
preservou a herança da cultura judaica no Brasil”12. O caso do romance Los Siete Libros de
Diana, escrito pelo português Jorge de Montemor e impresso em 1559 foi encontrado não
somente nas acusações de Pernambuco mas como também nos processos da capitania da
Bahia.

No estudo dos procedimentos do Santo Ofício é necessário uma análise de cautela


tantos as práticas comuns quanto aos casos excepcionais, para que não se deixe levar por
anacronismos. A história da Inquisição é estruturada numa malha de linguagens que se
modificaram para se adaptar ao tempo – ou aos tempos – e aos poderes que se materializavam
na estrutura política e religiosa. Além da sua obsessão inquisitorial com a atuação religiosa
dos recém convertidos à força, o combate a heresia que ameaçava a sociedade cristã abarcou
9
(PIMENTEL, 2006, p. 45-46)
10
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Inquisição de Lisboa, processo nº 5.206.
11
(MELLO, 1984, p.170).
12
(NOVINSKY, 2017, p. 218).
réus culpados de práticas islâmicas, práticas luteranas, práticas calvinistas, crimes de bruxaria
e feitiçaria, bígamos e sodomitas, blasfemadores, polígamos, apostatas, para não falarmos da
disciplina interna que a inquisição buscava manter com as visitações e inquirições entre os
eclesiásticos. Além disso, a concordância com os poderes locais era essencial para a
ampliação da rede inquisitorial, expressam um poder simbólico adquirido localmente e a
criação de uma cultura característica de cada visitação, onde a sua instalação e prosperidade
dependerá do auxilio local para enraizar as visitações e a imagem inquisitorial.

O estudo do processo jurídico inquisitorial possui um enredo de formalidades, que


assegure na sua organização uma verdade a ser fornecida aos cristãos que examinem as suas
culpas. Para aquele que se entregar espontaneamente no tempo da graça e se confessar, terá
seu rigor atenuado, foi esse o caso de André de Freitas Leça, que mesmo tendo recebido uma
pena dura de acordo com os parâmetros do tempo, não foi ainda uma pena máxima para o seu
crime. Diversos fatores tiveram influencia na sentença de André, seja para atenua-la ou para
agrava-la, talvez por ter “efetuado o pecado de sodomia ora paciente, ora agente” ou “por
nunca ter havido penetração perfeita ou consumação” ou “por ele confessante sempre ter sido
o provocador de tais pecados”. O fato é que após a promessa do Visitador de que “pretendia 443
remediar ao réo para que a sua alma não se perca e nem a dos seus cúmplices” e ainda lhe foi
dito que se ele “confessasse suas culpas inteira e verdadeiramente, declarando todos seus
cúmplisses, não seria levado ao cadafalso público”. Entre os cúmplices, que se figuraram
também como testemunhas de acusação estão Jorge de Sousa e Salvador Barbosa, ambos
resultaram na instauração de novos processos.

No caso de André Leça e os demais réus julgados na Primeira Visitação em


Pernambuco, é sempre apresentado em suas sentenças que

... no caso as leis do reino mandam que qualquer pessoa de qualquer


qualidade que seja, no pecado de sodomia, seja queimado e feito por
fogo em pó, para que de seu corpo e sepultura nunca mais aja
memoria, por ser crime de lesa majestade...

no entanto, se agregam diversos fatores que se apresentam significativo ao Visitador e


deputados presentes, ser o réu confesso e ter pedido perdão e misericórdia - esta última não se
nega ao réu, segundo o Manual dos Inquisidores, nem ao réu impenitente. O comportamento
do Visitador e dos seus assessores em Pernambuco suscitou críticas do Conselho Geral e
desencadeia interesse de pesquisadores em meio ao estudo dos processos jurídicos.

Vemos frequentemente gerações de historiadores que inscrevem seus reflexos no


passado os transmitindo para o julgamento contemporâneo. Considerei o levantamento de
alguns pontos, soltos de preferencia, que apontam percursos distintos do que buscar a verdade
incontestável dos processos ou a justiça dos padecentes ou dos criminoso. Por vezes os atores
sociais e as instituições trilharam caminhos obscuros e árduos, mas é necessário discutir a
importância dos tribunais, dos regimentos, dos inquisidores e dos manuais. Não sem deixar
de lado os que padeceram na repressão de uma ferramenta que foi articulada para ser usada,
que fez jus a menção terrível que se criou a sua representação, sobretudo no estudo dessas
vítimas, mas, como fruto de seu tempo precisa ser estudada para compreensão de seus rumos
e suas articulações, como nas seguintes palavras,

O contexto, visto como espaço de possibilidades históricas, dá ao


historiador o ensejo de integrar a evidência, muitas vezes feita de
fragmentos e dispersos, sobre a vida de um indivíduo. Nós obviamente
estamos muito distantes da perspectiva de um juiz. O uso de registros 444
de tribunais, portanto, não implica que historiadores, disfarçados de
juízes, devam tentar reconstruir julgamentos do passado.13

Partindo do fundamento de que construção histórica como um campo que fornece


conceitos, formadora de juízos tanto quanto de fantasias, visualizo entre os processos, e outros
acervos do ponto de vista institucional, uma importante análise historiográfica de sociedades e
instituições que precisam ser apresentadas em seus períodos e localidades e dentro de suas
respectivas identidades como portadoras de uma cultura especifica de seu tempo.

Processos analisados

ANTT/IL, processo nº 5.206, contra o Mestre Bento Teixeira. Disponível em


<http://digitarq.arquivos.pt/details?id=2305219>, acessado em 03 dez 2017.

13
(GINZBURG, p. 356).
ANTT/IL, processo nº 1.332, contra Inês de Brito. Disponível em
<http://digitarq.arquivos.pt/details?id=2301221>, acessado em 03 dez 2017.

ANTT/IL, processo nº 8.473, contra André de Freitas Leça. Disponível em


<http://digitarq.arquivos.pt/details?id=2308593>, acessado em 03 dez 2017.

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TECENDO REDES:
FORMAÇÃO FAMILIAR
E RELAÇÕES DE PODER
NA VILLA DAS
ALAGOAS (1801-1810).

VANIEIRE DOS SANTOS


OLIVEIRA

GRADUANDA (UFAL)
A partir das primeiras décadas do século XX tiveram início os primeiros estudos
acerca da família. No Brasil, se destaca como pioneira a obra de Gilberto Freyre “Casa-grande
& Senzala”, de 1933. Em sua obra, Freyre analisa a formação da família colonial brasileira
com base em uma estrutura econômica agrária, latifundiária e escravocrata. A colonização
aliada às condições locais teria estabelecido uma sociedade dependente da autoridade paterna
e dos laços de solidariedade entre os parentes, caracterizando assim o modelo conhecido
como família patriarcal1 extensa. De acordo com esse modelo, a família brasileira comportaria
o seu núcleo central composto pelo pai, mãe e os filhos legítimos, seguido, portanto, de um
448
grupo secundário, aqueles que fariam parte da periferia patriarcal, ou seja, os diversos
indivíduos ligados ao proprietário através dos laços de parentesco, trabalho e amizade 2.
Desse modo estariam anexados a família, os filhos ilegítimos, expostos, afilhados, serviçais,
agregados e escravos.

A obra de Freyre é um marco na historiografia brasileira por sua inovação


metodológica e proposta de análise documental. Seu trabalho “toca no cerne da função
familiar na sociedade das casas grandes, funcionalidade exercida para ditar os padrões e os
moldes da colonização3”, nos levando a compreensão do cotidiano familiar e da esfera

* A autora éGraduanda em Licenciatura em História pela UFAL e membro do Núcleo de


Estudos Sociedade, Escravidão e Mestiçagens – NESEM.
1
O modelo patriarcal descrito por Freire foi considerado por várias gerações de estudiosos (historiadores,
antropólogos e sociólogos brasileiros) como parâmetro para a compreensão da vida familiar brasileira (Samara,
1986). Intelectuais como Sérgio Buarque de Holanda (1982) e Antônio Candido (1951) descreveram o conceito
de família patriarcal segundo as características da grande parentela, sistema hierárquico e a autoridade paterna
prevalecente.
2
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. 3º ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.p.11.
3
SILVA, G.C.M. Um só corpo, uma só carne: Casamento, cotidiano, e mestiçagem no Recife Colonial
(1790 – 1800). 2º ed. Maceió. EDUFAL, 2014. p. 24
doméstica. Entretanto, não devemos desprezar as generalizações decorrentes de sua análise,
que desconsidera as especificidades locais da formação social brasileira.

Durante muito tempo o modelo genérico de família patriarcal freyriano permaneceu


aceito pela historiografia tradicional como um modelo estático para toda a sociedade
brasileira, desconsiderando assim as variações dos diversos grupos sociais no tempo e no
espaço. Entender a complexidade dos laços familiares no contexto social do período colonial
implica levantar os tipos de família existentes que não estavam estatizadas em um único
modelo, como explica Mariza Corrêa “a família patriarcal pode ter existido, e seu papel ter
sido extremamente importante, apenas não existiu sozinha, nem comandou do alto da varanda
da casa-grande o processo total de formação da sociedade brasileira 4”. Assim, compreender a
montagem dos laços familiares no contexto social no início do Oitocentos, levanta
questionamentos quanto a pluralidade familiar, seja formada a partir do casamento católico, a
família nuclear, o casamento consensual, ou parcial e poligâmico. Logo, é de suma
importância pensar que outros arranjos, estruturas e relações familiares estabeleceram-se,
variando conforme a região, os grupos sociais e a condição social e econômica de seus
indivíduos. 449
Nos últimos anos os estudos sobre a História da Família têm avançado e apresentado
resultados e discussões reveladores da multiplicidade de aspectos que envolvem a formação
da sociedade brasileira. A família tornou-se objeto de estudo e os questionamentos acerca de
sua estrutura e funcionamento tem despertado cada vez mais o interesse de estudiosos em
compreender a montagem dos laços familiares5 no contexto social do período colonial.
Portanto, é dada a importância de entender os vínculos familiares e sociais construídas entre
livres, escravos e libertos, ricos e pobres nesse cotidiano por meio das estratégias
estabelecidas por esses indivíduos através das redes de compadrio e de matrimônio.

Os estudos atuais tem demonstrado a importância exercida pela família no


funcionamento das atividades econômicas, e nas relações sociais e políticas no período

4 CORRÊA, Mariza. Repensando a Família Patriarcal Brasileira. IN: ALMEIDA, Maria; ARANTES,
Antônio; BRANDÃO, Carlos, et. al; Colcha de Retalhos – estudos sobre a família no Brasil. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1982. p.25.
5 FARIA, Sheila de Castro. História da Família e Demografia Histórica. In: FLAMARION, Ciro Cardoso,
VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro. Campus,
1997, p. 241.
estudado. É pela família que se convergem todos os aspectos da vida cotidiana6, seja na esfera
pública ou privada, considerada então, instituição vital para a vida social na colônia. Estar
vinculado a um grupo familiar estava associado à ideia de bem-estar e prestígio social7.
Entretanto, nem todos tinham na família mais ampla a sua base de sustentação e organização
social. A sociedade colonial brasileira foi formada por indivíduos das mais variadas origens
étnicas, inseridos em contextos diversos, o que dificulta elaborar conclusões abrangentes
sobre os aspectos familiares.

Para analisar a Vila das Alagoas, buscamos considerar que esta região estava inserida
no atual Nordeste açucareiro, onde a elite agrária local soube utilizar meios de manutenção e
ampliação do poder político, econômico e social através de alianças de parentesco via
compadrio e matrimônio. Contudo não desconsideramos os outros sujeitos inseridos na
sociedade local que pertenciam aos grupos de parentesco espiritual, sobretudo a significativa
presença da família escrava8 percebida nos corpus documental. Neste sentido consideramos a
explicação de Eni de Mesquita Samara aonde revela que “os estudos e pesquisas mais
recentes têm tornado evidente que as famílias “extensas do tipo patriarcal” não foram únicas
predominantes, sendo mais comuns aquelas com estruturas mais simplificadas e menor
9
450
número de integrantes ”.

No caso de Alagoas, apesar de a região apresentar a descrição familiar característica


das lavouras canavieiras, a documentação nos permite inferir que na região havia famílias de
estruturas mais simples e com o menor número de integrantes: famílias pequenas, de solteiros
e viúvos, famílias de mães e filhos sem pais, famílias de escravos. Portanto, a forma como se
constituía as famílias na região era bastante diversa, variando conforme a situação social e
econômica dos indivíduos que compunham o grupo familiar.

A DEMOGRAFIA HISTÓRICA E A RECONSTITUIÇÃO DE LAÇOS FAMILIARES.

6 FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. RJ: Nova
Fronteira, 1998.p 21.
7 ALVES, Rodrigo Roosenberg. Família Patriarcal e Nuclear: Conceito, características e transformações.
IN: II Seminário de Pesquisa da Pós-Graduação em História UFG/UCG. Goiás, 2009.
8 A historiografia clássica sobre a escravidão no Brasil argumentava que as condições do trabalho forçado no
cativeiro teriam impedido a formação da família escrava. A historiadora Emília Viotti da Costa em sua obra “Da
senzala à colônia” corroborou com essa explicação ao afirmar que o trabalho escravo degradou e corrompeu as
relações entre os brancos e ao mesmo tempo desorganizou a vida familiar. Para Viotti “a situação do escravo
também não contribuía para estreitar laços familiares: a desorganização das tradições africanas, o interesse dos
senhores que preferiram, para os escravos, as ligações passageiras a relações consolidadas pelo casamento – que
poderiam criar obstáculos à venda -, o número relativamente pequeno de mulheres em relação a homens, tudo
contribuiu para conferir precariedade e instabilidade àqueles laços.” (VIOTTI,;1998.p. 16)
9
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. 3º ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 8.
A História Nova ampliou o território das análises historiográficas, permitindo assim, a
criticidade em torno dos modelos tradicionais e reducionistas sobre os quais as famílias
estariam estruturadas. Nesse sentido, destaca-se a importância da demografia histórica como
metodologia de análise que ultrapassa o caráter quantitativo das fontes historiográficas através
na análise dos registros de eventos vitais – batismo, casamento óbito – que têm sido as fontes
mais utilizadas nos estudos que abordam a História da Família. As fontes documentais
eclesiásticas10 trazem em si uma vasta quantidade de informações que têm contribuído para
um intenso debate sobre as relações sociais formadas a partir de redes familiares, sobretudo
no que tange aos arranjos matrimoniais, batismo, ou seja, os laços familiares espirituais,
caracterizando assim solidariedades significativas para além dos laços de parentesco
biológico. Ao mesmo tempo essas fontes tem proporcionado documentar a presença da
família escrava conjugal na região estudada.

Por se tratar de fontes nominativas, o cruzamento dos registros vitais tem possibilitado
ao historiador à reconstituição de famílias, identificação de redes sociais e dos diversos
aspectos que marcaram a vida social na colônia, sobretudo, as práticas religiosas e a
manutenção de hierarquias sociais, ligadas ao sistema de compadrio. Por serem consideradas
11
451
fontes demográficas , as fontes vitais também ajudam a entender os processos
sociodemográficos no decorrer do tempo, ou seja, perceber as taxas de nupcialidade,
natalidade e mortalidade. Portanto, concordamos com Marcílio, que explica como o contato
entre a Demografia e a História resultou em uma união bem sucedida para a produção
historiográfica.

“Cada uma trouxe como contribuição seu dote específico: da Demografia


vieram técnicas e métodos exigentes, rigorosos, quantitativos, e um
tratamento especial para as fontes de informação, a fim de se chegar ao
conhecimento dos fenômenos vitais e sistemas humanos das coletividades
pretéritas. Da História vieram as formas de analisar estruturas e conjunturas

10
A análise desta documentação tem possibilitado colocar em evidência sujeitos – esquecidos da historiografia
tradicional - que forjavam estratégias de sobrevivência e importantes enfrentamentos na sociedade ao qual
estavam inseridos. O compus documental composto por livros paroquiais de registro de casamento, de batismo,
de matrimônio e de óbitos; inventários e testamentos post-mortem levantam questões acerca da composição das
famílias cativas e de relações de compadrios, a formação de famílias espirituais, a relação entre cativos e
senhores, paternalismo e as dimensões da possibilidade de adquirir a liberdade.

11
Segundo Bassanezi, os eventos vitais registrados, além das vastas e variadas informações que trazem, se
prestam tanto a análises de caráter quantitativo como qualitativo. Essas fontes permitem compreender o passado
não apenas sob uma perspectiva demográfica ( estrutura e dinâmica da população), como também sociocultural (
relações sociais e de poder, práticas e mentalidades).
sociais, fundadas na quantificação e na metodologia qualitativa, preocupadas
em descobrir a complexidade e a relatividade do homem global.”
(MARCÍLIO, 1984, p.11)

Logo é perceptível a importância da demografia histórica ao analisar as estruturas e


conjunturas sociais a fim de compreender as vivências particulares e observar, nas relações
familiares afetivas determinadas manifestações de solidariedade que envolve homens,
mulheres e crianças. Observar a formação de laços que mantinham e ampliavam a hierarquia
social, mas ao mesmo proporcionava aos escravizados a obtenção de liberdade, e ainda a
preservação da honra feminina e a proteção à infância. Ou seja, as novas análises tem
possibilitado o entendimento da organização familiar, o estabelecimento de alianças rituais,
estabilidade e a mobilidade tanto social como espacial dos diversos sujeitos que compunham
a vida cotidiana na Colônia.

Considerando a demografia histórica como método de análise, na realização deste


trabalho foram analisados 2.267 registros de batismos, produzidos na Igreja Matriz de Nossa
Senhora da Conceição, disponíveis no Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió. Essas
fontes se configuram como elemento de extrema importância, pois nos permitiu avaliar que o
batismo ultrapassava o limite religioso, o qual inserir o indivíduo na vida cristã, mas também 452
se firmando como um instrumento de solidariedade e reciprocidade entre os envolvidos.

Inserida no contexto colonial da América Portuguesa, a Igreja logo se preocupou em


estender o seu controle a população do Novo Mundo. Portanto, as populações tanto no Reino
quanto no ultramar, tiveram a vida cotidiana enquadrada por preceitos religiosos, desde o
nascimento até a morte. No Brasil, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia
(1707) representam a mais significativa tentativa de organização da vida religiosa, adaptando
as resoluções do Concílio de Trento para o contexto local da vivência religiosa no Brasil
Colônia.

As disposições tridentinas12 já reforçavam a importância do batismo. O sacramento


passou a ser sistematicamente obrigatório a todo indivíduo, tratando-se do rito inicial para se
tornar católico. Simbolicamente, o pecador, que se submete ao contato com as águas

12
Na América Portuguesa a produção dos assentos eclesiásticos de batismos, matrimônio e óbitos propagaram-
se a partir das ordenações do Concílio de Trento (1545 – 1563) como tentativa de expandir o poder e a estrutura
eclesiástica da Igreja, além de atuar como forma de controle sobre todos os segmentos sociais dos domínios do
Império Católico Português.
batismais, lava suas culpas e morre para o pecado13. O neófito inicia uma vida sacralizada,
deixando para trás o passado de pecado. O batismo era essencialmente o meio para alcançar a
salvação. Por isso, os recém-nascidos deveriam ser encaminhados ao batismo em até oito dias
14
. O sacramento era tão importante que no caso da falta do pároco, qualquer pessoa “ainda
que seja mulher ou infiel15”, podia administrá-lo validamente.

Todos os batismos deviam ser registrados em livros específicos e guardados na Matriz.


Havia preocupação no estabelecimento sobre as orientações na forma como ele deveria ser
realizado e nas informações que deveria conter no preenchimento do registro, que nos permite
ter acesso a informações básicas como: data da celebração do sacramento, local, o padre que
realizou a cerimônia, o prenome da pessoa batizada, nome dos pais, nome e sobrenome dos
padrinhos com seus respectivos estados conjugais; nome do proprietário dos pais e do cativo
batizado, nome dos proprietários dos padrinhos, quando estes eram escravos, e freguesia a que
pertenciam pais e padrinhos do batizado16. De acordo com as indicações das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia os registros deveriam ser escritos da seguinte forma:

Aos tantos de tal mês e de tal ano batizei, ou batizou de minha licença o Padre N. nesta, ou em tal
Igreja a N. filho de N. ede sua mulher N. e lhe pus os santos óleos: foram padrinhos N. e N.
casados, viúvos ou solteiros, fregueses de tal Igreja e moradores de tal parte. (Constituições
453
Primeiras do Arcebispado da Bahia, 2007, Livro Primeiro, Titulo XX).

No registro de batismo abaixo, observamos como estavam dispostas as informações


acerca do batizando.

“Ao sete de Fevereiro de mil oitocentos e dois nesta Matriz da Villa das
Alagoas batizei e dei Santos óleos ao párvulo José filho de Manuel Luiz e
sua mulher Florência Maria Roza: foram padrinhos o Capitão Agostinho da
Assunção e sua mulher Dona Francisca Maria todos desta Freguesia.”
(Fonte: Livro de Batismo 1, Vila de Santa Maria Magdalena da Alagoas do
Sul 1801-1810).

13
HAMEISTER, Martha Daisson. O uso dos registros batismais para o estudo de hierarquias sociais no
período de vigência da escravidão. In: 5º Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional. Porto Alegre,
2011. p. 4.
14
VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial, 2007. Livro Primeiro, Título XI: 36
15
idem. Título XIII:44-44.
16
QUIRINO, Gisele Dias. Família e Compadrio: um estudo das relações sociais na Vila de Porto Feliz (São
Paulo, Século XIX). IN: XIV Encontro Regional da ANPUH – Rio: Memória e Patrimônio. Rio de Janeiro,
2010. p. 2.
Como podemos notar através da fonte citada nem todos os registros seguiam o mesmo
padrão. São muitas as informações omitidas pelos vigários responsáveis pelos assentos nos
livros de batismo. Ao analisar a documentação, percebemos que os registros com informações
mais completas geralmente pertenciam a uma classe privilegiada. Geralmente nesses registros
estavam inclusas informações, como por exemplo, os nomes dos pais e dos avós do batizando.
É nítida a distinção feita pelo vigário na forma como escrevia o registro.

O COMPADRIO E AS RELAÇÕES DE PODER NA VILA DE SANTA MARIA


MAGDALENA DA ALAGOAS DO SUL.

A Vila de Santa Maria Magdalena da Alagoas do Sul, também conhecida no período


colonial como Villa das Alagoas, está situada no centro do litoral, entre as lagoas Mundaú e
Manguaba, compreendendo o núcleo colonial da atual cidade de Marechal Deodoro. De
acordo com Manoel Diegues Junior, a vila teria se originado de uma sesmaria, sido doada em
5 de agosto de 1591, tendo como sesmeiro Diogo Soares da Cunha.

...Essa doação abrangia uma data de cinco léguas de terras ao longo da costa

454
e sete para o sertão. O ponto de referência era a boca da lagoa Manguaba, daí
três léguas da costa para o sul, e duas léguas para o norte. Diogo Soares
pedira estas terras para nelas criar vila, adiantando logo que seu nome seria
Madalena. (DIÉGUES JÚNIOR, 2012, pp. 65-66)

Segundo Cícero Péricles de Carvalho, em 1706, diante do reflexo do crescimento


populacional e econômico da região17, Alagoas deixa de ser considerada apenas a parte Sul de
Pernambuco, e passar a ter estrutura político-administrativa própria. Contudo, a inauguração
da Comarca na Vila de Santa Maria Magdalena da Alagoas do Sul, ocorreu em 1711, tendo
como o primeiro Ouvidor- Geral José da Cunha Soares, devido a sua posição estratégica
central.

Analisando a historiografia alagoana é perceptível em seus autores a importância


destinada a economia canavieira, tida como base de sustentação da região desde o período
colonial. Ao mesmo tempo é possível perceber a importância da figura do senhor de engenho
no ajustamento dessa sociedade. Em “Banguê nas Alagoas”, de Manuel Diegues Júnior o
autor analisa a influência da economia açucareira na vida cotidiana e na cultura regional.
Vislumbramos em sua obra traços da influência freiryana, quando Diegues aborda que:

17
CARVALHO, Cicero Péricles de. Formação Histórica de Alagoas.3.ed.rev e ampl. – Maceió. EDUFAL,
2015. p. 184.
“É no banguê que se assenta a formação da família alagoana. Esta nasce do
engenho e no engenho; no engenho se desenvolve, amplia-se a engenhos
vizinhos, dilata sua influência nos meios rurais.” [...] “O senhor de engenho
é a grande figura da paisagem humana das Alagoas. Não só o homem que
preside às lautas mesas de almoço ou de janta na casa-grande; nem que
fomenta o crescimento da população servindo-se das mucamas, das servas da
casa. Também nele se centraliza a organização da família.” (DIÉGUES
JÚNIOR, 2006, p.196)

“Gira em decorrer do engenho, da casa-grande do engenho, a constituição da


família alagoana, que evolui através dos engenhos. [...]” É no senhor de
engenho que centraliza a atividade do banguê. Atividade social e política; as
vezes também demográfica. Preside aos atos e festas profanas. É chefe de
família e de toda a gente que vive no banguê.” (DIEGUES JUNIOR; 2006.
p.197)

Percebemos na obra de Diegues Junior a influência do senhor de engenho na formação


da vida social alagoana. A identificação com a terra, a importância da lavoura da cana-de-
açúcar exerceu papel fundamental no processo de formação das tradicionais famílias
alagoanas18. O bem-estar social dessa sociedade significava o pertencimento a um grupo
familiar, o que estimulava entre os membros da família a dependência da autoridade paterna
na figura do proprietário de terras. Assim, buscamos compreender a importância de se
construir os laços de solidariedade e ampliação do parentesco espiritual através das relações 455
sociais estabelecidas pela prática de compadrio na região da Vila de Santa Maria Magdalena
da Alagoas do Sul. Portanto, para a análise em questão utilizamos como fonte primária os
dados documentais registrados no Livro de Batismo I que compreende os anos de 1801 a
1810 da Villa das Alagoas, disponíveis no Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió.

Sendo o primeiro sacramento da Igreja Católica, o batismo é a porta de entrada que


insere o párvulo no mundo cristão, ampliando seus laços parentais através do compadrio.
Conforme mostra a historiografia sobre o assunto, o neófito recebe a tutela de pais espirituais
no momento de sua agregação a comunidade através do batismo. Nesse momento é criado um
vínculo “não do corpo, ou da carne, ou da vontade humana enquanto expressa na lei civil”;
mas trata-se de “associação ou solidariedade, através da comunhão de ‘substância
espiritual19’”.

18
JÚNIOR, Manuel Diégues. O Baguê nas Alagoas: traços da influência do sistema econômico do engenho
de açúcar na vida e na cultura regional. – 3. ed. Maceió. EDUFAL, 2012. p. 49.
19
GUDEMAN, Stephen & SCHWARTZ, Stuart. "Purgando o Pecado Original: compadrio e batismo de
escravos na Bahia no século XVIII". In: REIS, João José. Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos
Sobre o Negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 41
Ao mesmo tempo, o batismo constituiu um mecanismo de poder, tendo em vista que
incluía os envolvidos nesse processo em redes de proteção, solidariedade e clientelares. Como
não determina necessariamente uma relação entre iguais o compadrio expressa a hierarquia
social sustentando pela pia batismal, mas também foi uma estratégia engendrada a fim de
diminuir a distâncias daqueles que nele se encontravam ligados. Dessa forma é preciso
compreender as possíveis motivações na escolha dos padrinhos e como essas práticas
formaram redes de poder na região estudada.

Para pensarmos a formação dos vínculos parentais espirituais buscamos entender


como estariam estruturados os laços familiares em fins do século XVIII e início do XIX a
partir da definição designada para família em dois dicionários clássicos de época nos quais
encontramos o termo definido como: “[...] As pessoas que de que se compõem uma casa, pais
filhos e domésticos20” e “[...] as pessoas de que se compõem a casa, e mais propriamente as
subordinadas aos chefes, ou pais de família. Os parentes e aliados21.”. Como podemos
observar, as definições atestam para ramos familiares que se constituíam para além dos laços
biológicos.

Cabe perceber, dentro dessa perspectiva que as famílias estariam estruturadas em laços 456
que extrapolam a coabitação e a consanguinidade, tendo em vista que o acolhimento solidário
ou as alianças formadas através de rituais se configuravam como relações de parentesco,
apesar de envolver ramos ilegítimos. Segundo afirma a historiadora Sheila de Castro Faria, é
preciso “rever o significado de “parentesco”, que adequadamente inclui relações não
consanguíneas como segunda indicação: “relações que há entre os que descem dos mesmos
pais; a que se contrai por casamentos; compradresco22.”.

Paralelo a sua função sagrada estabelecida dentro da Igreja, o compadrio era projetado
para o ambiente social, prestando-se a uma relação de reciprocidade entre os padrinhos que se
expressava por meio de cooperação econômica e lealdade política, criando-se assim vínculos
clientelares.

Logo, procuramos observar na documentação analisada a existência de relação entre o


título/condição social na escolha dos compadres, conforme mostra a tabela abaixo. Deixamos

20
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico. Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712 - 1728. 8 v
21
SILVA, Antônio Moraes de. Dicionário da Língua Portuguesa. 1813.
22
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. RJ: Nova
Fronteira, 1998. p. 41.
claro, a necessidade de cruzar os documentos analisados com outras fontes para entendermos
as motivações ou atributos que atestam a preferência por certos padrinhos. Tendo em vista
que como os registros de batismo não revelam muitas formas de prestígio social, tentamos
estabelecer o prestígio de padrinhos e madrinhas através da frequência notória de
apadrinhamentos e da menção de títulos ostentatórios como o apelativo dona para as mulheres
e a referência a títulos de patentes militares referentes aos padrinhos.
No estudo percebemos que o título de Capitão foi o que mais apareceu nos registros.
Um bom exemplo disso é o caso do Capitão Mor e dono de escravos Manoel Joaquim do
Rego que aparece como padrinho em 28 registros de batismo, seguido do capitão José do
Rego Macedo que apadrinhou 12 parvúlos. A escolha de padrinhos que possuíam patentes
militares pode estar ligada ao prestígio social que esses sujeitos possuíam na sociedade
colonial, tento em vista que umas das formas de ascensão social e mesmo de manutenção do
poder e do status político de uma família se dava através dos ofícios administrativos23.
Tabela 1
Condição/ Título Padrinhos Nº afilhados
Alferes 22 44

457
Capitão 28 63
Capitão Mor 9 14
Escravo 12 12
Forro 5 5
Ouvidor 1 1
Ouvidor-Geral 1 1
Reverendo/ Vigário 7 56
Sargento Mor 4 7
Tenente 5 9
Tenente Coronel 3 7
Fonte: Livro 1 de Batismo da Vila de Santa Maria Magdalena da Alagoas do Sul, 1801-1810.

Em relação às madrinhas notamos o indicativo dona24 nas mulheres que batizaram um


número expressivo de afilhados. Pela documentação, pudemos constatar que essas mulheres
em geral eram cônjuges dos padrinhos, ou ainda filhas de homens que tinham alguma
titulação militar de Oficiais de Ordenanças. Em outros casos, algumas madrinhas com o título

23
MARQUES, Dimas Bezerra. Cargos, prestígios e heranças: A hereditariedade de ofícios e seu papel na
manutenção do poder político das elites locais (Capitania de Pernambuco 1689 – 1761). IN: CAETANO,
Antônio Filipe Pereira. Das partes sul à Comarca das Alagoas, capitania de Pernambuco: ensaios sobre
justiça, economia, poder e defesa ( século XVII – XVIII). Maceió: Viva Editora, 2015. p 109.
24
Nos estudos sobre o compadrio no período colonial e a primeira metade do século XIX, o apelativo Dona tem
indicado o reconhecimento de uma posição social privilegiada das mulheres na sociedade em que viviam.
dona, também aparecem como sendo mulheres proprietárias de escravos. Portanto, denota-se
o prestígio social desses sujeitos.

Chama atenção o número de mães solteiras batizando seus filhos, que ultrapassa 20%
do total de registros. Na maioria dos casos não consta o nome do pai dessas crianças. Isso
corrobora a explicação de Sheila de Castro Faria de que “diferente do comportamento familiar
europeu, o Brasil teria se caracterizado pela bastardia25”. Numa sociedade marcada pela
influência da Igreja, que tinha no sagrado matrimônio uma base social de normas e regras
bem definidas, a grande quantidade de filhos ilegítimos pode estar ligada ao fato das despesas
do casamento legitimado pela Igreja serem altas, ou ainda, devido a burocracia eclesiástica,
levando a população de camadas sociais mais baixas a assumirem uniões não oficiais,
conforme atesta Vainfas:

“O processo matrimonial era caro, lento e complicado, exigindo dos


nubentes variados documentos e grandes despesas, incluindo certidões de
batismo necessárias para a comprovação de idade núbil, atestados de
residência importantes para o exame dos contratantes que tivessem residido
em outras paróquias, e certidões de óbito do primeiro cônjuge no caso de
viúvos, essenciais para evitar as frequentes bigamias daquela época.”
(VAINFAS, 1989, p. 42) 458
O número de mães solteiras é ainda mais expressivo entre a população escrava,
chegando ao contingente de 76%. Apesar da presença da família escrava, em que 283
batismos das crianças escravas, 52 dos pais( pai e mãe) aparecem como casados, é marcante
registros de escravos como filho ilegítimos.

No que diz respeito aos laços de compadrio entre escravos, a maioria nos padrinhos
eram livres. Em poucos casos, o escolhido para apadrinhar era outro escravo. Também chama
atenção o fato de nenhum dos padrinhos dos escravos serem seus proprietários. O que leva a
questionar o quanto de liberdade os escravos tinham para escolher quem seriam os padrinhos
de seu filho, ou ainda, quais seriam as motivações dos mesmos ao escolher pessoas para
formar os laços de compadrio. Nos casos analisados não constatamos nenhum caso de alforria
na pia batismal, o que soa estranho, tendo em vista que nesse artifício muitas vezes se
expressava a solidariedade dos padrinhos.

25
FARIA, Sheila de Castro. História da Família e Demografia Histórica. In: CARDOSO, Ciro Flamarion.
VAINFAS, Ronaldo. (Organizadores). Domínios da História – Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2011. p 242.
Os dois casos abaixo nos permite inferir que nem todas as famílias estavam estruturas
segundo o modelo patriarcal:

“Aos seis de Agosto de mil oitocentos e dois nesta Matriz batizou e deu
Santos Óleos de minha licença o Padre Pedro Antônio de Souza a párvula
Anna filha de Manuel José de Oliveira viúvo e de Isidoria Maria solteira
desta Freguesia sendo padrinho o Capitão Mor José do Rego Macedo”

“Em primeiro de Maio de mil oito centos e três na Capela da Massagueira


batizou e deu Santos Óleos de minha licença o Padre Bento Ferreira da Costa
ao párvulo Gabriel nascido de sete semanas filho de Rita parda escrava de
Dona Antônia da Silva solteira: sendo padrinho Capitão João de Ponciano de
Moraes e Dona Veronica Francisca casados todos desta Freguesia”.( Fonte:
Livro de Batismo 1, Villa das Alagoas 1801-1810).

Exemplos como dois casos citados acima são encontramos muitas vezes nas fontes
documentais analisadas. Mães solteiras batizando seus filhos sozinha, sem o nome do pai no
registro, ou ainda com homens casados, viúvos. Esses dados atentam para as especificidades
no qual se formaram os arranjos familiares em cada localidade. Dessa forma, é preciso 459
considerar que o “caráter de uma sociedade estratificada, na qual a condição legal e racial
dividia os indivíduos entre brancos e negros, livres e escravos, dificulta tentativa de
buscarmos de norte a sul do país, no mundo urbano e rural ao longo de quase quatro séculos,
padrões semelhantes de vida e organização familiar, até mesmo no interior de uma
determinada camada da população26”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Parece certo que os laços criados através do compadrio estabelecidos no âmbito do
Antigo Regime eram algo desejado e, portanto, a formação do vínculo social consolidado pelo
compadrio passava por uma criteriosa escolha pela parte dos progenitores das crianças.
Através do qual eram formalizados as relações de parentesco espiritual. Nessas relações de
solidariedade operavam-se complexos sistemas de cooperação econômica, bem como de
lealdade política27. Logo relações de reciprocidade assumiam caráter estratégico,

26
ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. IN. NOVAIS, Fernando A.; SOUZA, Laura de Mello e.
História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo.
Companhia das Letras, 1997. p. 85
27
NACIF, Paulo Cezar Miranda. Padrinhos, afilhados e compadres: apontamentos sobre o parentesco
espiritual contraído pelo ritual católico do batismo no âmbito do Antigo Regime. IN: XXVII Simpósio
Nacional de História – ANPUN: Conhecimento histórico e diálogo social. Rio Grande do Norte, 2013.
proporcionando ampliar uma gama de possibilidades e oportunidades aos sujeitos melhor
posicionados na hierarquia social, engendrando redes de clientela. Além disso, poderia render
vantagens àqueles que tinham suas vidas determinadas pela desigualdade diante das
condições de nascimento.
O trabalho aqui desenvolvido e em andamento se caracteriza por sua importância em
relativizar amplamente os debates acadêmicos e historiográficos acerca História da Família. É
pertinente ressaltar que o referente estudo não apenas nos leva ao aprofundamento teórico,
como também a um despertar para novas questões, possibilidades e respostas. Deste modo,
devido ao objeto privilegiado, podemos compreender tessituras complexas na qual se montava
e funcionava a família, a produção do poder e os espaços de atuação e de influência das elites
locais e regionais no período Oitocentista.
Dentro deste enfoque podemos considerar que havia uma grande diversidade regional,
comprovando diferenças expressivas entre os grupos sociais, que no caso do estudo em
questão nos leva à necessidade do reconhecimento de pluralização do conceito de família. No
contexto da realidade brasileira, isso permite a representação de um enfoque não excludentes

460
dos diversos modelos de famílias, mostrando um universo complexo de organização familiar,
que extrapola os padrões burgueses ocidentais introduzidos em nossa história.

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VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Brasília:


Senado Federal, Conselho Editorial, 2007.

463
A RACIONALIDADE
DOS ARRANJOS
MATRIMONIAIS DA
ELITE MERCANTIL
DE PERNAMBUCO
NO SÉCULO XVIII.

POLIANA PRISCILA DA SILVA

DOUTORANDA (UFPE)
Numa época em que o Oriente perdera progressivamente seu poder de atração, a
América portuguesa, mais precisamente a capitania de Pernambuco, emerge entre os principais
itinerários de exploração de oportunidades para os portugueses. Segundo Antonil, nas frotas,
vinham a cada ano uma grande quantidade de portugueses e estrangeiros para as cidades, vilas,
recôncavos e sertões do Brasil. 1
O processo de emigração que em meados de 1500 era de
forasteiros e degredados2, foi progressivamente mudando com a emigração patrocinada pela 465
coroa3, que já nos finais do século XVI apresenta outros tons, atraindo para as capitanias
famílias inteiras de cristãos-novos4. Concentrada no litoral, esta população que vinha em busca
de riqueza gerava novas possibilidades e oportunidades de negócios: como o abastecimento de
alimentos, vestuário, ferramentas, fornecimento de escravos, oferta de ofícios e serviços. Tais
oportunidades possibilitavam que o Brasil funciona-se como fronteira de Portugal, oferecendo
esteio para que letrados, oficiais régios, governadores e homens de negócio, fossem bem
sucedidos no desenvolvimento das suas carreiras e na acumulação de recursos simbólicos e
materiais no exercício dos postos da administração. 5

A formação do grupo mercantil recifense data dos finais do XVII, no período de


restauração pernambucana, com elementos emigrados do reino. A existência de recursos

1
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. (Coleção Reconquista do Brasil), 3ª ed. Belo Horizonte:
Itatiaia/Edusp, 1982, Capítulo 5.
2
MELLO, José Antônio Gonsalves de., ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier de. Cartas de Duarte Coelho a El-
Rei. Recife: Massangana, 1997. p.102.
3
Distribuição de sesmarias.
4
SILVA, Janaína Guimarães. Modos de Pensar, maneiras de viVer: Cristãos-novos em Pernambuco no século
XVI. Dissertação de mestrado: Universidade Federal de Pernambuco, 2007, p. 46.
5
PEDREIRA, Jorge M. “Brasil, Fronteira de Portugal. Negócio, Emigração e Mobilidade Social (séculos XVII e
XVIII)”. In: CUNHA, Mafalda (Coord.). Do Brasil à Metrópole. Efeitos sociais (séculos XVII-XVIII). Anais da
Universidade de Évora, n. 8 e 9, (73-97), 1998/1999, pp. 51, 52.

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


disponíveis nas regiões litorâneas se tornou atrativa para a fixação dos portugueses, ajudando a
configurar a sociedade colonial a partir de “arquipélagos de colonização, isolados uns dos
outros por enormes extensões territoriais” como Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, tornando-
as propícias para o comércio, e foco de emigração e fixação de comerciantes reinóis. 6

O comércio realizado a partir do porto do Recife concentrava amplas conexões


comerciais com os mais variados territórios, indo desde a própria América Portuguesa (Rio de
Janeiro, Bahia, Minas Gerais), passando pelo extremo sul da colônia (Sacramento); ao outro
lado do Atlântico (África e Portugal). Esta heterogeneidade comercial apresentada por
Pernambuco demonstra que o perfil de suas relações comerciais rompe com o tradicional
esquema binário entre a colônia e a metrópole. 7
Tais redes de comércio funcionaram como
chamariz para os que buscavam na América Portuguesa o enriquecimento rápido. Na tabela
abaixo, podemos ver que dentre os agentes mercantis identificados por George Cabral, atuantes
em Recife entre meados dos séculos XVII e XVIII, 71 % são reinóis.

Tabela 2 - Origem dos agentes mercantis identificados atuando no Recife (c. 1654 – c.
1759).
466
Origem Número Identificados - % Total geral - %
Reino/ Ilhas 305 91,9 71
América 24 7,2 5,6
Outras 03 0,9 0,7
Desconhecida 97 22,7
Total 429 100
Fonte: SOUZA, George F. Cabral de. Tratos e mofatras: o grupo mercantil do Recife colonial (c. 1645 – c. 1759).
Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012, p. 98.

Deste modo, quase 92% dos negociantes identificados eram portugueses, 7,2% eram
americanos, e cerca de 1% tinha sua origem desconhecida. A maioria dos grandes negociantes
que compunham o grupo mercantil radicado no Recife, quase todos eram reinóis emigrados em
sua maioria da região Norte.

6
RUSSEL WOOD, A. J. R. “Políticas de fixação e integração”. In: Bethencourt, Francisco., Chaudhuri, Kirti
(Eds.). História da Expansão Portuguesa. V. 2, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, p. 136.
7
SOUZA, George F. Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonia. La cámara municipal de Recife
(1710- 1722). Tese de Doutorado: Programa de doutorado fundamentos da investigação histórica da Universidade
de Salamanca, 2007, p. 141.

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


Este padrão preponderante de origem reinol nos meios comerciais, também se fazia
presente na Bahia, onde entre os anos de 1680 e 1740 cerca de 80 % dos negociantes eram
emigrados de Portugal, 9,8% das Ilhas, 3,8 % do Brasil, e 6,8 % eram estrangeiros. 8

A migração reinol também expõe outro padrão de emigração, a predominância minhota


dos portugueses. Em relação à Bahia, numa amostra de 1684 portugueses residentes nos finais
do século XVI, quase a metade haviam migrado da região do Minho, 25% da Estremadura, 15%
das Ilhas e 8% da Beira. 9 De acordo com os escritos de Antônio Henriques da Silveira em 1789,
este padrão se manteve para o resto do Brasil ao longo dos setecentos, ao afirmar que:

Milhares de minhotos passam anualmente para o Brasil e outras províncias do


reino, sem levarem bens alguns, que lhes possam segurar boa fortuna. Aqueles
que são bem mais amantes do ninho em que nasceram, permanecendo nele,
passam uma vida pobre e miserável; porque a estreiteza do país em que
nasceram (apesar da laboriosa fadiga daquele povo) não pode sustentar quase
um milhão de pessoas que o habitam, e que anualmente vai crescendo. 10

Este mesmo documento nos dá uma das possíveis respostas para a larga emigração
minhota, apontando estruturas econômico-sociais que impulsionaram este movimento de uma
forma tão proeminente. A configuração social aponta que “o povo é tão crescido, que não 467
cabendo os homens no país em que nasceram, são obrigados a procurarem em outras províncias
as comodidades que na sua pátria não podem descobrir”. 11 Nesta perspectiva, Pedreira também
nos remete a análise de outro fator, os “regimes sucessórios não igualitários, que privavam da
posse da terra a maioria dos descendentes, obrigando-os a encontrar meios próprios de
subsistência e a abandonar a exploração agrícola familiar”. 12

O grupo mercantil reinol radicado no Recife era proveniente de aldeias rurais, cujos pais
e avós ocupavam as profissões ligadas a terra ou ao comércio, sendo cristãos velhos. Sobre a
faixa etária que chegaram à capitania, a maioria passara para o Recife entre a adolescência e a
vida adulta, sendo um dos mais novos o negociante Luís Pereira Viana com 14 anos, e o mais
velho, João de Oliveira Gouvim, com 32 anos. Depois que aqui chegavam e ingressavam no

8
PEDREIRA, Jorge M. Op. cit., p. 57.
9
RUSSEL WOOD, A. J. R. “Ritmos e destinos da emigração”. In: Bethencourt, Francisco., Chaudhuri, Kirti
(Eds.). História da Expansão Portuguesa. V. 2, Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, p. 117.
10
SILVEIRA, Antônio Henriques Silveira. “Racional discurso sobre a agricultura, e população da província de
Alentejo”. In: Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa (1789-1815), Coleção de
Obras clássicas do pensamento econômico português, V. I, 2ª. Ed. Lisboa: Banco de Portugal, 1990, p. 54.
Disponível em: http://www.bdalentejo.net/BDAObra/BDADigital/Obra.aspx?ID=555#. Acessado em: 28 de julho
de 2014, às 21:36.
11
Idem, Ibidem.
12
PEDREIRA, Jorge M. Op. cit., p. 58.

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


mundo dos negócios, logo constituíam famílias, construindo laços que mais tarde iriam os
auxiliar na obtenção de poder.

O itinerário se completaria com a construção das redes pessoais e de parentesco que


teciam as relações mercantis reinóis. O jovem normalmente deixava sua terra natal durante a
adolescência, rumando para a cidade onde seria acolhido por um tio ou irmão, que já teria
percorrido o mesmo roteiro anos antes. O parente colocaria em prática os dispositivos de
recepção e integração do novo elemento a esfera existente tanto na praça de Lisboa, como na
América Portuguesa. No rol dos homens de negócio mais proeminentes da capitania,
encontramos a figura de Antônio José Souto, um exemplo perfeito de como este itinerário era
realizado. Assim como seu pai o homem de negócio Manuel Fernandes Souto, teve seus
caminhos aplainados por um parente. Manuel Fernandes nascido em 1668 passou ainda muito
rapaz a Lisboa para casa de uns tios que eram homens de negócio, partindo de lá para “os
estados do Brasil” onde morou por alguns anos, regressando depois para Lisboa. Enquanto
viveu na aldeia natal, ia à escola e ajudou aos pais que eram lavradores. No verão ia para Castela
trabalhar como pedreiro. 13
468
Com percurso semelhante, Antônio José Souto passou para Pernambuco em 1726 na 14

companhia do seu tio Manuel Afonso Regueira, outro negociante da praça. Quando jovem
estudou, foi comissário de fazenda, e depois homem de negócio.15 Em 1792 repete o processo
iniciado pelo tio paterno, recebendo para residir em sua casa na cidade de Olinda, seu sobrinho
Luís Bernardes da Costa Corte Real. 16
O acolhimento do tio Manuel Afonso Regueira
representou mais do que uma pura e simples receptividade parental: abriu as portas para as
futuras aspirações comerciais e administrativas do sobrinho, destacando o fator da confiança
que era indispensável nas relações mercantis. Esse aspecto é esmiuçado em diversos estudos
acerca das redes familiares no mundo colonial. 17 Os laços de parentesco eram imprescindíveis

13
HSO Manuel Fernandes Souto, m. 83, d. 1591. ANTT.
14
HSO Francisco Xavier Fetal, m. 65, d.1238. ANTT.
15
HOC Antônio José Souto, letra A, m. 26, n.4. ANTT.
16
REQUERIMENTO do cadete Luís Bernardes da Costa Corte Real à rainha [D. Maria I], pedindo para ser
nomeado para um dos Regimentos da capitania de Pernambuco, por passar a residir em Olinda, na companhia do
seu tio, o capitão-mor Antônio José Souto. AHU_ACL_CU_015, Cx. 180, D. 12573.
17
Ver COSTA, Leonor Freire. Império e Grupos Mercantis: Entre o Oriente e o Atlântico. Lisboa: Livros
Horizonte, 2002.; COSTA, L. F. “Redes interportuárias nos circuitos do açúcar brasileiro. O trajeto de Gaspar
Pacheco, um banqueiro de D. João IV”. In: CUNHA, Mafalda Soares. (Org.) OLIVAL, Fernanda. “O Brasil, as
Companhias Pombalinas e a nobilitação no terceiro quartel de setecentos”. In: CUNHA, Mafalda (coord.). Do
Brasil à Metrópole. Efeitos sociais (séculos XVII-XVIII). Anais da Universidade de Évora, n. 8 e 9, (73-97),
1998/1999.; SOUZA, George F. Cabral de. Elite y ejercicio de poder em el Brasil colonia. La cámara municipal

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


para o processo de inclusão, ascensão e consolidação social na América Portuguesa. No caso
de Pernambuco, essa regra também se verificava: a então povoação do Recife possuía uma
comunidade mercantil bastante coesa, e neste sentido, ter um parente incluído neste grupo
representava a possibilidade de inserção na esfera local. Manuel Afonso Regueira, por ser um
dos principais homens de negócio da praça do Recife, foi o elemento de inserção de Antônio
nesta rede de interesses mercantis.

Instaladas as redes de parentesco, chegava a hora de mobilizar as redes de amizade. O


apoio dos partícipes, compadres e suporte dos conhecidos, servia para aplainar o caminho dos
recém-chegados, possibilitando a coesão do grupo. Redes que segundo o marquês do Lavradio,
mantinham a perpetuação do controle português sobre o comércio. Afirmava ele que os reinóis:
“logo que aqui chegam, não cuidam em nenhuma outra coisa que em se fazerem senhores do
comércio que aqui há, não admitem filho nenhum da terra a caixeiros, por donde possam algum
dia serem negociantes”. 18

O perfil de recrutamento vivenciado em Lisboa, também foi transportado para a colônia.


O peso dos reinóis no mundo mercantil das principais praças da América Portuguesa era
impressionante. De acordo com Helen Osório, acontece o mesmo na comunidade mercantil do
469
Rio Grande. Em sua análise sobre os negociantes da região, verifica em diversos períodos, que
o percentual de comerciantes portugueses varia de 60 a 73%, sendo em sua maioria
provenientes do Minho, em contraponto ao percentual de 26,9 a 40%, que eram nascidos na
América. 19 Esta realidade também é vislumbrada no grupo mercantil em São Paulo20, Bahia21
e outras praças; mas em nenhuma outra, o predomínio reinol era tão grande, nem causou tanto
burburinho, quanto em Pernambuco.

As disputas entre os mascates reinóis (comerciantes portugueses estabelecidos no


Recife) e os mazombos (senhores de engenho de Olinda), atingiu seu auge em um dos

de Recife (1710- 1722). Tese de Doutorado: Programa de doutorado fundamentos da investigação histórica da
Universidade de Salamanca, 2007.
18
Relatório do Marquês de Lavradio, Vice-Rei do Brasil de 1769 a 1779, apresentado ao Vice-Rei Luís de
Vasconcelos e Sousa, seu sucessor. In: CARNAXIDE, Visconde de. O Brasil na administração pombalina
(economia e política externa). Coleção Brasiliana, São Paulo: Editora Nacional, 1940, p. 305.
19
OSÓRIO, Helen. Comerciantes do Rio Grande São Pedro: formação, recrutamento e negócios de um grupo
mercantil da América Portuguesa. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 20, n. 39, 2000, pp. 103, 104.
20
BORREGO, Maria Aparecida. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo colonial (1711-1765). Tese
de Doutorado: Programa de Pós-graduação em História da Universidade de São Paulo, 2006, p.36.
21
RIBEIRO, Alexandre Vieira. A cidade de Salvador: estrutura econômica, comércio de escravos, grupo
mercantil (c.1750 – c.1800). Tese de Doutorado: Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2009, p.364.

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


enfrentamentos que deram origem às altercações de Pernambuco de 1710-11: a “Guerra dos
Mascates”22, contenda que reflete o agravamento progressivo das relações sociais e econômicas
na capitania entre os dois setores (produtores e mercadores), que de certa forma, permaneceram
até o século XIX23.

Como podemos observar, a comunidade mercantil residente na América Portuguesa,


apresenta uma dependência à chegada de novos membros emigrantes da sede do Império
Ultramarino. Na capitania, a recomposição do setor se fazia pelas mãos de elementos que já
estavam integrados ao negócio, entregando-lhes as rédeas de suas conexões locais e do reino.

As conexões apresentadas aos novos elementos que conduziriam os negócios consistiam


em lidar tanto com os negociantes residentes nas capitanias, quanto com elite mercantil do outro
lado do Atlântico. Manter uma boa convivência com os grandes potentados de Lisboa e do
Porto, conferia a eles o sucesso no mundo dos negócios. O marquês do Lavradio, mais uma vez
faz considerações ainda mais ilustrativas a esse respeito, sustentando a dependência dos
elementos aqui residentes com os comerciantes de lá. Relata que até os negociantes mais
eminentes, necessitavam da cooperação dos agentes metropolitanos para conduzir os negócios,
470
muitas vezes transformando-se em agentes ou comissários da elite mercantil lisboeta. Afirma
que “aqueles negociantes que aqui passam por mais ricos [...] tem constituído a sua riqueza e o
seu fundo no maior comércio de comissões, que tem todo, isto é, de fazendas e navios que lhes
tem sido consignados”.24 Tal análise vai de encontro à opinião de Raymundo Faoro, ao relatar
que o comércio introduzido nos portos coloniais fazia-se a crédito aos estrangeiros, acumulando
os débitos em grandes áreas receptoras de fazendas. Utilizando a região das minas como
exemplo do mercado de crédito que alimenta as transações, relatou que nesta, os comerciantes
locais estavam gravados por uma imensa cadeia de endividamento “aos negociantes

22
Nome dado ao conflito ocorrido em Pernambuco nos anos de 1700-11. Uma guerra travada entre os membros
da nobreza açucareira de Olinda e os mercadores portugueses do Recife, que com a crescente importância do
Recife no contexto pós Restauração em 1654, queriam a elevação de povoação para vila separando-se do termo de
Olinda, o que desagradou a açucarocracia olindense, dando início a uma guerra civil. Tais altercações ficaram
conhecidas como Guerra dos Mascates graças à publicação do romance homônimo de José de Alencar, no século
XIX.
23
Mata-marinheiros, manifestações de antilusitanismo que eclodiram pelas ruas do Recife poucos anos antes da
Insurreição Praieira, cujo alvo era a comunidade portuguesa residente na cidade. As disputas entre os nacionais
(população livre) e estrangeiros (pequenos comerciantes e caixeiros), pelo comércio de retalhos e oportunidades
de empregos que afloravam rivalidade antigas, recebendo tons de disputa racial. Sobre estes conflitos ver:
CÂMARA, Bruno A. Dornelas. Trabalho livre no Brasil Imperial: o caso dos caixeiros de comércio na época
da Insurreição Praieira. Dissertação de mestrado: Universidade Federal de Pernambuco, 2005.
24
Relatório do Marquês de Lavradio, Vice-Rei do Brasil de 1769 a 1779, apresentado ao Vice-Rei Luís de
Vasconcelos e Sousa, seu sucessor. Op. cit., p. 306.

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


comissários do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco por fazendas compradas a crédito aos
estrangeiros, ou remetidas por eles debaixo dos nomes de portugueses para os brasileiros”. 25

Não podemos negar que os homens de negócio das principais praças mercantes de
Pernambuco, Rio de Janeiro e Bahia mantinham sim, estritas ligações com o grêmio do Reino,
porém, é errôneo afirmar que os negociantes locais atuavam como simples comissários. Nas
diversas capitanias vemos exemplos de que o vínculo existente entre eles grande, mas era
inegável a sua capacidade mercantil, já que muitos dos homens de negócio que atuavam no
Reino eram parentes dos negociantes residentes nas capitanias. A esse respeito, lembremos a
fluidez vivenciada no tráfico de escravos, conduzidos por agentes “baianos” e
“pernambucanos”, atividade onde tais negociantes atuavam em posição dominante, causando a
cobiça dos elementos estrangeiros, sejam eles do Reino, da Inglaterra, ou da Holanda.

Antônio Francisco Monteiro, homem de negócio nascido em 1726 na freguesia de São


Miguel Entre Ambas Aves, Lisboa; passou do Porto para o Recife como caixeiro. Antes de se
instalar na capitania desenvolveu a função na casa de negócio de seu irmão, o homem de
negócio da cidade do Porto Manuel Francisco Monteiro, atuando também como comissário de
fazendas na Carreira do Porto. 26
Na capitania, foi caixeiro de Francisco Rodrigues Praça, até
471
constituir cabedal para abrir uma loja onde empregava caixeiros. Logo se tornou um homem de
negócio que vivia “limpa e abastadamente de 600.000 réis” que tinha de renda, e com um
patrimônio que girava em torno de 30.000 cruzados. 27 A trajetória de Monteiro foi semelhante
à de muitos negociantes que igualmente constituíam fortuna sendo comissários de fazendas
para a América. De caixeiro a homem rico no Recife, arregimentou grande cabedal. Segundo
relatos do filho homônimo que se habilitando em 1785, afirmava viver limpa e abastadamente
de seu negócio, além de esperar receber do pai uma boa herança. 28

Na análise da elite mercantil recifense de origem reinol, podemos vislumbrar que


integravam um ciclo de fluidez de novos elementos e sua cadeia de lanços de parentesco e
amizade. Elementos que chegados à capitania na primeira metade dos setecentos ainda na
adolescência, constituíam negócios e casamentos, enriquecendo e fixando-se na terra, e por
vezes voltado a seu lugar de origem. Eram provenientes de aldeias rurais, cujos pais e avós

25
FAORO, Raimundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Editora Globo,
2008, p. 275.
26
HOC Antônio Francisco Monteiro, letra A, m. 25, n. 3. ANTT.
27
FSO Antônio Francisco Monteiro, m. 150, d. 2405 f.1. ANTT.
28
FSO Antônio Francisco Monteiro (filho), m. 194, d. 2883. ANTT.

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


ocupavam as profissões ligadas a terra ou ao comércio, sendo cristãos velhos. Como já foi dito
anteriormente, depois que se instalavam neste lado do Atlântico e ingressavam no mundo dos
negócios, logo construíram suas famílias tecendo laços que mais tarde iriam os auxiliar na
obtenção de poder.

Após atingir o sucesso no mundo dos negócios, era chegada a hora de contrair
matrimônio e gerar sua prole. A família, como demonstramos até então, era o principal
instrumento de reprodução e inserção social do indivíduo no mundo mercantil: as estratégias
que visavam à ascensão e manutenção do status econômico, social, e de reprodução de riqueza,
passava por ela. O cotidiano social da América como num todo tinha sob os laços familiares as
rédeas da sociedade. Ela produzia a principal base de sustentação e mobilidade hierárquica em
diversos períodos históricos. Segundo Sheila de Castro, “foi da ou para a família, não
necessariamente a consanguínea, que todos os aspectos da vida cotidiana, pública ou privada,
originam-se ou convergem”. 29
Assim, qualquer projeto social ou econômico que o indivíduo
almejasse, suas aspirações eram postas em prática e concretizadas com a participação e
articulação das teias tecidas pelo elemento familiar, onde seu sucesso ou insucesso estavam a
ela ligados. 472
A família conferia aos homens estabilidade ou movimento, além de influir no
status e na classificação social. Pouco se referia ao indivíduo enquanto figura
isolada – sua identificação era sempre com um grupo mais amplo. O termo
‘família’ apareceu sempre ligado a elementos que extrapolavam os limites da
consanguinidade – entremeava-se à parentela e à coabitação, incluindo
relações rituais. 30

Nesta perspectiva, a política dos laços matrimoniais fazia partes destas articulações. O
casamento era um importante instrumento de inserção social, onde a escolha dos cônjuges
demandava certo cuidado, pois um parceiro inadequado poderia por em risco toda uma trajetória
social e econômica. Este aspecto era primordial para a reprodução dos grupos mercantis. A
racionalidade no arranjo orientava a escolha. O modo de vida, a solidez familiar, e as distinções
políticas e econômicas, pautavam a prática de alianças sociais e clientela que este negócio iria
conferir aos envolvidos. “Era quase uma contingência para os indivíduos se incorporarem às
famílias e grupos de parentesco, que funcionavam, ao mesmo tempo, como organizações

29
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova fronteira, 1998, p. 21.
30
Idem.

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


defensivas e unidades econômicas”. 31 Nossos personagens entendiam tais estratégias, pautando
os caminhos para a ascensão social e concentração de riquezas em suas escolhas matrimoniais.

Antônio Pinheiro Salgado, natural de Braga saiu da freguesia de São Martinho da Tarija
para Lisboa, e de lá para o Porto. Em 1737 rumou para o Pernambuco em um navio do tio, José
Vaz Salgado, um potentado local que lhe abriu as portas do comércio de grosso. No Recife,
tornou-se homem de negócio, constituindo fortuna e ensinando a carreira mercantil ao filho.
Passou a vida a realizar viagens entre Recife-Porto-Lisboa. Trânsito que começou a fazer em
1747 com largos negócios, levando e trazendo fazendas suas e de seu tio, intermediando
transações de açúcar, couro e solas.32 Casou-se em 1754 com a prima, Ana Maria Salgado, filha
de José Vaz Salgado, na presença de Luís Ferreira de Moura e Manuel Gomes dos Santos, dois
ricos negociantes da praça, o último seu companheiro na administração da Companhia. 33

O casamento com a prima proporcionou a Antônio constituir seu cabedal, além de


participar do negócio de importação e exportação do tio, que na época possuía uma das maiores
fortunas de Pernambuco, senão a maior. Em 1758, ano da morte do sogro e tio, foi chamado
para ser testamenteiro em seu inventário, cujo valor variava entre 316.551.102 réis a
323.109.800 réis. Ao fim da partilha, sua esposa herdou uma quantia em torno de 20 contos,
473
sendo 16.464.562 réis em bens e 4.800.000 réis de dote. A historiadora Tereza Cristina Marques
chama atenção para o fato de que “esta filha, melhor dizer, seu marido, Antônio Pinheiro
Salgado, recebeu a maior proporção de bens em dinheiro, incluindo o meio dote e seu provável
complemento”. 34 Presumimos que as vantagens conferidas à filha Ana Maria Salgado, se deu
pela estrita ligação do marido com seu pai. Ao deixar a maior proporção em dinheiro para uma
filha, ao invés de legar para seu filho homônimo e varão José Vaz Salgado, provava que
confiava na perspicácia administrativa do sobrinho, que com certeza iria aumentar ainda mais
o montante herdado pela esposa.

Contrair matrimônio com a filha de um comerciante radicado no Recife representava


um importante lance na estratégia dos reinóis. Observamos aqui, mais uma vez, o elemento
familiar como um importante mecanismo facilitador de ascensão econômica e social. No caso

31
SAMARA, Eni de Mesquita. Patriarcalismo, família e poder na sociedade brasileira: séculos XVI-XIX. In:
Revista Brasileira de História. v. 11, n. 22, São Paulo, 1991, p. 10
32
HOC Antônio Pinheiro Salgado, letra A, m. 2, n. 4. ANTT.
33
HSO Antônio Pinheiro Salgado, m.146, d. 2367. ANTT.
34
MARQUES, Teresa Cristina. José Vaz Salgado: a herança de um militar-mercador no Recife de meados do
século XVIII. Textos de História, v. 15, n. 1/2, Brasília, 2007, pp. 20, 21.

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


dos comerciantes portugueses os laços de parentesco agiam de duas maneiras: pelo
apadrinhamento e pelo casamento. Na primeira, o esquema funcionava de forma já bem
conhecida e descrita anteriormente neste trabalho: o homem de negócio apadrinhava um parente
para assumir seus negócios, já que muitas vezes sua prole se desvencilhava da administração
mercantil. O tal parente, normalmente um sobrinho, era levado de sua cidade natal para receber
em Lisboa ou no Porto as primeiras lições sobre o trato com o comércio, posteriormente, era
levado pelo tio para assumir os negócios na colônia. O caso de Antônio Pinheiro Salgado não
foi diferente: ele saiu de Braga, foi para Lisboa-Porto e depois para Pernambuco, um clássico
caso do percurso geográfico realizado por inúmeros comerciantes do Recife. O passo seguinte
era o casamento com a filha de outro comerciante. Deste modo, os arranjos matrimoniais
estavam diretamente interligados com as estratégias de migração.

A dinâmica dos casamentos endogâmicos praticada no seio da comunidade de


mercadores que atuavam no Recife, primava pela exclusão de casamentos “mistos”. Esta
preferência poderia ocorrer por aspectos relacionados ao mundo dos negócios, como também
pela constituição de grandes redes de capitais e questões genealógicas. Sobre a segunda, a
preocupação recairia sobre a presença de uma mácula de sangue, quando na investigação para 474
a aquisição de insígnias da Ordem de Cristo e do Santo Ofício. Uma nota de judaísmos ou de
mulatismo na família da noiva, poderia colocar em risco toda uma ascensão social duramente
conquistada. Assim, grande parte dos negociantes do Recife preferia contrair laços matrimonias
com membros do mesmo grêmio, que oriundos de famílias rurais de cristãos velhos do Norte
de Portugal, atestavam sua limpeza de sangue.

O receio de misturar seu sangue com o de uma família “impura” da capitania tinha todo
sentido. Existiam rumores de que membros da acucarocracia pernambucana guardavam as
máculas de sangue de antepassados sefarditas e negros. A este respeito, Evaldo Cabral através
de um estudo de caso, apresenta a manipulação genealógica realizada pelo conhecido senhor de
engenho, Felipe Paes Barreto, para esconder sua origem judaica durante o processo de
habilitação para se tornar cavaleiro da Ordem de Cristo. Redesenhando esse emaranhado na
linhagem familiar dos Paes Barreto, o autor demonstra que muitas famílias reconhecidas em
Pernambuco como “limpas de Sangue” não eram tão nobres assim, pelo contrário,
apresentavam as máculas de sangue. 35
George Cabral nos dá outro exemplo de como muitos

35
MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


representantes das velhas famílias senhoriais da capitania apresentavam tais “defeitos de
sangue”, citando como exemplo a família Rego Barros. Na ocasião da habilitação para familiar
do Santo Ofício de Francisco do Rego Barros, testemunhas afirmaram que seu avô João do
Rego Barros possuía “nota pública de mulato” e uma parente era cristã-nova. 36 De acordo com
Lilia Schwarcz, a nobiliarquia de diversas famílias foi construída a partir da genealogia como
o principal artifício utilizado pelas elites coloniais para esconder sua origem nada nobre. Nas
suas palavras:

A aristocracia colonial, insegura e defensiva a respeito de suas origens,


impedida pela Coroa de ter acesso aos privilégios concedidos à fidalguia, tais
como os morgados ou o pertencimento (geralmente porque sua isenção
significava uma perda de receita para a Coroa), necessitava de uma patente de
nobreza. Os genealogistas coloniais dedicaram-se a criá-la. Eles atribuíam
nobreza a qualidades como “antiguidade”, e longevidade, e “perdoavam” as
diversas “alianças da terra” e as misturas raciais que estas implicavam [...]. 37

Deste modo, o aspecto endogâmico nas escolhas matrimoniais era primordial para a
perpetuação de uma boa linhagem. A este respeito, citamos o arranjo na família Correia de
Araújo. Manuel Correia de Araújo, outro homem de negócio da praça, construiu uma das “casas
mais grossas da América” através do comércio negreiro da Angola e da Mina.38 Casou-se em 475
1725 com a recifense Teresa de Jesus, filha do comerciante português de lojas de fazendas
Manuel Pereira Dutra. Do matrimônio teve vários filhos, dos quais apenas três não se dedicaram
à vida religiosa: Tomé, Ana e Teresa. O herdeiro do morgado Tomé Correia de Araújo casou-se
com Ana Teresa Pessoa, filha de Pantaleão da Costa de Araújo, cavaleiro da Ordem de Cristo,
capitão-mor e senhor do engenho Rosário na freguesia de Santo Antônio de Tracunhaém. 39 Ana
Correia de Araújo contraiu matrimônio com Luís Pereira Viana, outro homem de negócio40
Teresa casou na Igreja da Sé de Olinda em 1763 com José Vaz Salgado Júnior 41
, filho
homônimo do já citado José Vaz Salgado, que assim como seu pai, foi comerciante e senhor de

36
SOUZA, George, F. Cabral de. Os filhos e os netos dos que anda na governança: família e poder na Câmara
Municipal do Recife colonial. In: Clio Revista de Pesquisa Histórica, 2007, p. 42.
37
SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). Leituras críticas sobre Evaldo Cabral de Mello. Belo Horizonte: Editora
UFMG; São Paulo: Editora Fundação Perseu Abrano, 2008, p. 27.
38
HOC Tomé Correia de Araujo, letra T, m. 28, n. 26. ANTT.
39
FONSECA, Antônio J. V. Borges da. Nobiliarchia Pernambucana. v. I. In: Anais da Biblioteca Nacional, v.
XLVIII, Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1926, p. 176.
40
HSO Luís Pereira Viana, m. 20, d. 424, mf.1953. ANTT.
41
Queluz, 10 de julho de 1802. AVISO do [secretário de estado da Marinha e Ultramar], visconde de Anadia,
[João Rodrigues de Sá e Melo Meneses e Souto Maior], ao [conselheiro do Conselho Ultramarino], barão de
Moçamedes, [Manuel de Almeida e Vasconcelos Soveral de Carvalho Maia Soares de Albergaria], ordenando que
dê o seu parecer a respeito do requerimento de Joaquim José Vaz Salgado, em que pede a propriedade do ofício
de Selador e Feitor da Alfândega da capitania de Pernambuco. AHU_ACL_CU_ 015, Cx. 235, D. 15872.

Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


engenho, chegando a ocupar o posto de vereador em 177742. Logo, a racionalidade no arranjo
nupcial desta elite orientava as escolhas. O modo de vida, a solidez familiar, e as distinções,
pautavam a prática das alianças nos negócios e enlaces matrimoniais. Assim, a família para os
membros do corpo mercantil reinol era primordial tanto para movimentar o ciclo de fluidez de
novos elementos, como para a perpetuação destes homens no topo da cadeia mercantil da
capitania.

Referências

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42
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477
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Anais Eletrônicos: II Encontro do NEMAt.


Título II Encontro do Núcleo de Estudos do Mundo Atlântico (NEMAt):
Novos caminhos para a História [2017]. Anais Eletrônicos.

Projeto gráfico Paulo Fillipy de Souza Conti

Créditos da Capa Emil Bauch (1823-1890?). Entrada do Porto de Pernambuco, 1852.


Do álbum Souvenir de Pernambuco, litografado na Alemanha por
F. Krauss (1852). Cromolitografia. 293 x 544 mm.

Revisão dos Dos Autores


Textos

Formato Digital

Fontes Bodoni FLF, Montserrat, Parisienne, Times New Roman e Trocchi.

Recife, Brasil, Dezembro de 2017.

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