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A LINGUAGEM EM “SER E TEMPO” COMO A JUNÇÃO ORIGINÁRIA DA UNIDADE

ONTOLÓGICA DE HOMEM E MUNDO

Flávio Augusto França e Silva, graduando em Filosofia


Glória Maria Ribeiro, Departamento Filosofia e Métodos

RESUMO

O presente artigo almeja indicar uma aparente dicotomia no que Martin Heidegger descreve
em sua obra, “Ser e Tempo”, como Falatório (Gerede) e Silêncio (Verschwiegenheit). Esta
dicotomia se revela na obra de 1927 como dois pontos de inserção do homem no mundo
através da linguagem, que, assume nos textos pós-1930 um papel fundamental no
pensamento do filósofo alemão. Este artigo tem por base a tese de que falatório e silêncio
não caracterizam dois tipos distintos de linguagem, mas nos diz sobre uma unidade
originária dos modos nos quais a linguagem vem ao encontro do Ser-aí (Dasein) desde sua
gênese ontológica. Ao traçar um paralelo com a obra “Grande Sertão: Veredas” de
Guimarães Rosa podemos ver com clareza a relação constitutiva de homem e mundo e
através desse enfoque demonstrar como o falatório e o silêncio se entrelaçam formando a
unidade originária da linguagem que guia o homem pela clareira da existência como um
constitutivo fundamental do Ser-aí.

INTRODUÇÃO

1
“O uno, diz Heráclito, se reencontra consigo mesmo, ainda quando tende para a
diferença”1
A obra de Heidegger é muito extensa e há quem diga que ela se passa em dois
momentos: o “primeiro” e o “segundo” Heidegger – antes e depois da Viragem (Kehre).
Considerando a extensão da obra, será evidenciado o fenômeno da linguagem tal como o
filósofo descreve em sua ontologia fundamental, que encontra expressão em “Ser e
Tempo”, publicada em 1927. Porém, em “Ser e Tempo”, a linguagem ainda não é abordada
da maneira privilegiada como nos textos pós-1930, no segundo Heidegger. Sendo assim,
será necessário recorrer frequentemente ao que se diz sobre a linguagem nessa “segunda
época”.
A tematização da linguagem que se impõe para nós em “Ser e Tempo” se
circunscreve ao parágrafo trinta e quatro. Este parágrafo faz parte do capítulo quinto da
obra que trata especificamente do modo em que o ser do homem – chamado de Dasein por
Heidegger – se mostra no cotidiano e quais são suas estruturas fundamentais, ou seja,
aquilo que o caracteriza como isso que ele é; o modo fundamental em que ele se revela.
Ao fazermos uma leitura atenta do parágrafo trinta e quatro podemos perceber que o
fenômeno da linguagem se mostra como o fundamento da relação de correspondência
entre o ser do homem e o ser do ente2. Contudo, ao observar o fenômeno do cotidiano, que
se revela sempre na dimensão da linguagem nomeada por Heidegger de falatório,
aparentemente essa dimensão da linguagem parece contrapor-se a uma dimensão mais
originária desse mesmo fenômeno, qual seja, o silêncio. O que se pretende aqui é

1PLATÃO, Banquete, 187a.


2Em todo caso o homem é um ente. A diferença entre o ser do homem entendido como ser-aí (Dasein) e o
ser dos demais entes é que o ser do homem possui existência fática. Ou seja: visto como o ser que se
encontra no e desde o mundo, o homem é o único ente capaz de colocar questões e deslanchar sobre elas
uma investigação que influi diretamente no sentido em que esse mundo se mostra. No “aí” do ser-aí os demais
entes se mostram como aquilo que são desde a perspectiva do homem. Ele é intérprete de mundo.

2
experienciar os escritos de Heidegger de forma que eles mesmos nos apontem o caminho
em que se torna possível pensar as diferentes dimensões do fenômeno linguagem em sua
unidade originária, e que assim ela possa se mostrar para nós desde o lugar de onde os
aspectos observados por Heidegger se tornam possíveis.
CONCEITO, EXPERIÊNCIA E SER-NO-MUNDO
Fazer uma colocação sobre a linguagem na tentativa de apreender sua essência em
um conceito determinante, como por exemplo: a linguagem como expressão ou como meio
comunicativo, deturpa o caminho que Heidegger nos aponta. O conceito filosófico quando
usado de maneira a determinar o significado da coisa, acaba por delimitar sua significação
em um sentido único, e com isso se perde, enquanto o conceito se torna usual, os possíveis
sentidos ocultados por essa determinação conceitual. No entanto, o que buscamos exige
que ao invés de procurarmos essa delimitação pelo conceito, tentemos experienciar o dizer
filosófico de Heidegger de tal modo que a linguagem não se entregue a definições, mas
que se abra na plenitude de seu limite3 a partir de si mesma. Assim, talvez possamos entrar
no seu âmbito próprio.
Por experienciar quero dizer: entrar na coisa, se demorar nela de tal maneira que a
coisa mesma nos guie pelo caminho da investigação; experienciar é atravessar um
caminho, e com isso não pretendemos chegar ao “outro lado” ou qualquer lado que seja. A
experiência é travessia: e somente a travessia importa agora.
A linguagem para Heidegger não tem por objetivo delimitar os múltiplos horizontes
revelados através do seu método fenomenológico-hermenêutico, mas sim englobá-los.
Nesse sentido, não podemos dizer que Heidegger utiliza de conceitos, mas antes, ele nos

3Como observa Heidegger na conferência “Construir, habitar, pensar”, “o limite não é onde uma coisa termina,
mas, como os gregos reconheceram, de onde uma coisa dá início à sua essência” (Ensaios e Conferencias,
p. 134).

3
diz sobre estruturas4 que representam o estado da coisa, o estado em que o fenômeno
investigado se mostra e se desenvolve, sempre em uma dinâmica5.
Para discutirmos de maneira suficiente a questão da linguagem em “Ser e Tempo” é
preciso adentrar a dinâmica descrita por Heidegger em todo o quinto capítulo da obra. Este
capítulo é uma análise do ser do homem em duas vias: primeiro, Heidegger busca
descrever as estruturas existenciais do ser do homem; em seguida a análise dessas
estruturas constitutivas é feita sob a ótica do cotidiano, ou seja, a partir do lugar onde já
sempre estamos previamente inseridos. Tais análises dizem respeito ao mesmo fenômeno
que se revela de formas diferentes de acordo com o ponto de partida adotado, são
igualmente originárias6.
O fio condutor para entendermos a relação do homem com a linguagem é a estrutura
denominada por Heidegger ser-no-mundo (In-der-Welt-Sein). Se ouvirmos ser-no-mundo
com os ouvidos da lógica tradicional, ficaríamos com a impressão de se tratar de um ser
que se encontra no mundo, ou seja, teríamos de um lado esse ser, do outro o mundo e
entre eles uma relação. Deve ficar claro que cada um desses termos se encontra, para
Heidegger, em uma unidade originária, são uma e a mesma coisa. Contudo, se nos

4 Fazer a simples troca da palavra “conceito” para “estrutura” ainda não resolve o problema de representar o
pensamento heideggeriano em uma forma estática. Ao lermos “estrutura ser-no-mundo” por exemplo,
entendemos, a uma primeira aproximação, que ser-no-mundo é uma estrutura fechada em si mesma, perde-
se a noção de dinâmica que o original em alemão nos traz. É preciso manter o pensamento de que todos os
existenciais descritos por Heidegger possuem uma estruturação de dinamismo que expressa uma relação ou
um estado de coisa.
5 Assim escreve o professor Ernildo Stein em uma nota de tradução sobre a linguagem heideggeriana: “A

linguagem utilizada não deve ser vista como um jargão sacralizado, como acontece na tradição escolástica,
nem como tentativa de clarificação de uma linguagem obscura e confusa que serviu de instrumento de análise
de determinado objeto, como acontece nas correntes da analítica da linguagem. O filósofo procede
experimentalmente. As palavras não são definitivas, nem pretendem apresentar-se como melhores face a
outras. A linguagem é comandada pela coisa mesma, por um determinado modo de ver – o método
fenomenológico – que clarificou um estado de coisa”.
6 Cf. Ser e Tempo, 2012. P. 192.

4
encontrarmos abertos para uma escuta7 pura e afinada do que se revela com a expressão,
fica evidente o dinamismo desse fenômeno, decisivo em toda a filosofia heideggeriana.
Como dito acima, as estruturas apontadas por Heidegger expressam um estado de
coisa. Disso se segue que ser-no-mundo nos fala sobre o estado, a condição de um ser, a
saber – o homem.
A condição de algo é aquilo a que a coisa precisa condizer para que venha à tona
assim como é. Condizer diz: estar em harmonia, nascer junto e, assim, permanecer na
correspondência de um com o outro. Então, ser-no-mundo se refere a um estado harmônico
e finito entre homem e mundo, que se revela como correspondência na gênese desse
acontecimento único, desta unidade: homem-mundo. Como limite do homem, o mundo é a
dimensão em que ele se torna possível e onde também ele encontra sua impossibilidade,
seus limites; o mesmo é para o homem, que é do mundo limite e dimensão de possibilidade.
Não podemos aqui nos deixar levar pela proeminência do óbvio e pensarmos que a
expressão simplesmente nos diz sobre um ser (o homem) que se encontra em um mundo.
O que nos diz a palavra de Heidegger não nomeia uma articulação entre dois fenômenos e
sim a unidade desses fenômenos na própria articulação8. Ser-no-mundo nos diz tanto sobre
o mundo ser condição e gênese do homem quanto o homem ser condição e gênese do
mundo – se mantermos esse pensamento e a ele nos prendermos com mais atenção, é
possível chegar à conclusão de que nenhum deles pode ser pensado sem que o outro se
interponha no raciocínio. Não há um modo de pensarmos o homem de maneira que o
mundo a seu redor, as coisas que se encontram em sua proximidade, o modo com que ele

7 O termo “escuta” possui aqui um sentido ontológico. Ele marca uma disposição originária do ser-aí de
“interagir” ou “escutar” a voz da linguagem originária – caracterizada em Ser e Tempo como silêncio – por
meio da abertura originária do ser-no-mundo. A “escuta” está mais voltada para uma forma de apropriação
desse silêncio do que nos diz o significado corrente da palavra. Para tentar englobar esse sentido optei por
escrever “escuta pura e afinada” na tentativa de não perder o sentido ontológico do termo.
8 “A expressão composta ‘ser-no-mundo’, já em sua cunhagem, mostra que pretende referir-se a um fenômeno

de unidade. Deve-se considerar este primeiro achado em seu todo.” (Ser e Tempo, 2012. P. 98)

5
vive e interage com tais coisas e com os outros homens seja excluído do pensamento, pois,
é a partir das coisas, dos outros e de suas relações que o homem é feito – o mundo é
gênese do humano à medida que também é a partir do humano que ele se faz em um
sentido e se firma como o que é vigente, sempre desde o seu limite.
Não há mundo que se mostre sem um sentido, sem o traço humano. Todas as coisas
e relações, os fatos da vida cotidiana, sempre acontecem porque através do homem
ganhou-se sentido e se tornou vigente como isto ou como aquilo. Até o que se encontra
distante de nós e não permeia o cotidiano nos é familiar – só é possível se distanciar de
nós, aquilo que de um modo ou de outro já se encontrou uma vez nas proximidades. O
mundo como condição e gênese do homem nos diz que ele já sempre se encontra dentro
de um sentido, de uma significação. A expressão ser-no-mundo nomeia harmonia por que
homem e mundo estão sempre em uma relação de co-pertencimento, concrescimento, de
coexistência em um entrelaçamento – como é dito por Guimarães Rosa na voz de Riobaldo9
ao falar do seu sertão-mundo: “Sertão, é dentro da gente”10
A citação acima foi retirada da obra “Grande Sertão: Veredas. A obra possui uma
narrativa muito peculiar, ela é construída em forma de um diálogo muito comum na região
sertaneja de Minas Gerais. Riobaldo o protagonista e narrador conta, de forma corrida sem
pausas ou capítulos, as “acontecências” de sua vida a um interlocutor. O narrar de Riobaldo
fala da vida em sua totalidade através de uma relação com a linguagem pura, afinada e
simples, e isto justamente por ele falar desde o cotidiano, o âmbito comum a toda existência
humana. É a descrição da totalidade da vida cotidiana através da experiência de um
homem, reflexo de todos os outros. Por Riobaldo falar por e para a totalidade, ele fala de
sua vida em particular e de todas as outras. Ele tece, através da narrativa não linear, a

9 Protagonista do romance “Grande Sertão: Veredas” de João Guimarães Rosa.


10 Grande Sertão: Veredas, 2015. P. 56.

6
representação de todos os acontecimentos de sua existência que, de alguma forma, o
marcaram na memória – a memória resguarda o acontecimento que já não mais vigora na
espera que ele possa novamente nascer como a possibilidade mais próxima de um porvir.
Em “Grande Sertão: Veredas” é possível perceber que o narrar de Riobaldo sobre sua
própria vida encontra seu resguardo na memória, ao passo que a personagem narra seus
acontecimentos o que é narrado é aquilo que se encontra, de certa forma, circunscrito na
existência de Riobaldo. A narrativa parte daquilo que ele resguardou em seu íntimo, os
acontecimentos que não mais vigoram na realidade vigente, acontecimentos do seu
passado, são os condutores do próprio Riobaldo, conduzindo-o ao seu vigor de essência
para aquilo que ele mesmo é e precisa ser. Os acontecimentos da narrativa não mais
vigoram na realidade vigente, o fato de eles se encontrarem no resguardo da memória de
Riobaldo nos mostra como esses acontecimentos são elementos condutores da
personagem à sua essência, elementos constitutivos daquilo que ele é. O vigor de seus
acontecimentos agora está em seu resguardo na memória, e isso como possibilidade de
uma repetição daquilo que já foi, anteriormente, elemento constitutivo de Riobaldo. Ele
conta a vida como no sertão mineiro se contam histórias, sem marcações, sem capítulos
ou pausas; assim é a existência: sem capítulos nem pausas – irrupção!? Dentre todas as
histórias narradas pelo jagunço, algo se faz em comum: ele já sempre é e está nisso que é
narrado, ou seja, ele já sempre se encontra pronto no sertão, seja como jagunço, ou como
menino, ou como chefe do bando, ou como amante... no sertão e como jagunço representa
aqui a gênese da personagem; no sertão quer dizer desde o sertão, aquele mesmo
movimento de homem e mundo, co-pertencimento ou coexistência. Estar sempre nessa
articulação diz que o homem é, em seu íntimo, a própria articulação, mas nem por isso ele
se esgota nela.

7
“Sertão, é dentro da gente”, não pode significar que o sertão se encontra dentro de
Riobaldo como algo subjetivo, o subjetivo implica um sujeito constituído, o Sertão está para
Riobaldo assim como mundo está para o homem: gênese e limite. Riobaldo só pode ser
desde o sertão como jagunço por que o próprio sertão é desde Riobaldo como sertão. O
“dentro” diz sobre um entrelaçamento conjuntivo que perfaz a gênese de Riobaldo-homem
e de Sertão-mundo. Esse entrelaçamento conjuntivo nos diz que há entre Riobaldo e o
Sertão um enlaço, algo que de certo modo sempre os mantém em conjuntura expressa em
várias passagens da obra: “O senhor faça o que queira ou o que não queira – o senhor
toda-a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar sempre em cima do sertão”11. O dentro
não supõe a contraposição de algo fora, pois, sendo homem e mundo o mesmo, nenhum
dos dois é para si, mas, sempre para fora – ou um para o outro, co-relação, limite,
dimensão... O dentro está empregado aqui no sentido que Heidegger utiliza o termo di-
ferença em um de seus textos pós-193012. Segundo Heidegger a diferença é o lugar da
quietude, “a diferença deixa o fazer-se coisa das coisas repousar no fazer-se mundo do
mundo”13. É assim que o dentro deve ser tomado, como aquilo que garante, no
entrelaçamento, que Riobaldo seja Riobaldo e o mundo se diferencie como mundo. Essa
consonância encontrada no dentro ou na di-ferença não é nada humana ou mundana, no
entrelaçamento conjuntivo a conjunção é a linguagem. “A linguagem fala como consonância
do quieto”14 nos diz Heidegger, ou seja, a linguagem diz na quietude do momento do
esfacelamento de homem e mundo. A linguagem está resguardada de forma privilegiada
em “Grande Sertão: Veredas” por que fala a partir da consonância de Riobaldo e Sertão.

11 Grande Sertão: Veredas, 2015. P. 432.


12 HEIDEGGER, Martin. A linguagem. In: A Caminho da Linguagem. Vozes. 2003.
13 Idem. P. 22.
14 Idem, p. 24

8
A PERGUNTA ESSENCIAL PELO ENTE; MUNDO COMO DIMENSÃO DE
RESGUARDO.
Nesta perpétua relação do homem com o mundo, ele se ocupa constantemente com
as coisas que lhe aparecem, e é próprio do humano, em sua vida corrente, a busca pelo
sentido dessas coisas que, de certa forma, o atropelam. A pergunta “o que é isso?” pergunta
pelo sentido, pelo significado da coisa e também coloca uma perspectiva desde a qual
iremos olhar para a coisa pela qual perguntamos. Tal pergunta, com certo aspecto ainda
socrático, geralmente pergunta sobre as causas primeiras, ou seja, o fundamento desde
onde a coisa se torna possível. Em uma clássica definição do que seria sua “Ciência
Primeira”, Aristóteles nos diz que ela pergunta Tí tó ón? (o que é o ente?), na verdade a
citação soa assim: “Assim é, porém, aquilo para onde se está indo (a ciência primeira, a
filosofia!) desde os primórdios (do pensamento filosófico), e, também agora e eternamente
para aquilo a que, sempre de novo não se poderá ter acesso: que é o ente?” 15. Nota-se na
passagem que Aristóteles pretende que sua Ciência Primeira pergunte pelo ente no sentido
daquilo que “de novo não se poderá ter acesso”. O que não se pode ter acesso é justamente
o elemento que silencia diante de todo questionar. Heidegger escreve sobre essa
passagem: “A filosofia procura o que é o ente enquanto é. A filosofia está a caminho do ser
do ente, quer dizer, a caminho do ente sob o ponto de vista do ser”16. Em um texto clássico
intitulado “Carta Sobre o Humanismo” Heidegger nos diz que “a linguagem é a morada do
ser”17, se para Heidegger o que não se pode ter acesso é o ser, aquilo que silencia sempre
de novo é a linguagem. A filosofia se move em direção ao retrair-se da linguagem, e isso
somente porque o homem se move na direção do silêncio. Ficará mais claro no decorrer do
texto como o homem possui ontologicamente uma disposição para a escuta do silêncio.

15
Metafísica, Z 1, 1028 b 2s.
16
HEIDEGGER, Martin. O que é isto – a filosofia?. 2006. P. 23.
17
HEIDEGGER, Martin. Carta Sobre o Humanismo. In: Marcas do Caminho. Vozes. 2008. P. 326.

9
Retomemos a pergunta Aristotélica: Tí tó ón? Ou seja, o que é o ente? Ou podemos
pensá-la na seguinte formulação O que é isso, a coisa? Inicialmente entendemos que a
questão pergunta pela coisa enquanto está sendo coisa, e isso desde um ponto de vista
em que se sabe o sentido do “é”, o sentido do ser. De fato, entendemos o sentido do “é”, o
ser que se retrai e ecoa como silêncio da linguagem? Se perguntarmos qual era o sentido
em que Aristóteles questionava o ente, encontraremos a resposta na própria Metafísica,
livro I, que soa mais ou menos assim18: “A filosofia é a habilidade (epistéme) de formular
um dizer (theoretiké) sobre as causas primeiras (prõtai archai kai aitai)”19. Através dessa
passagem podemos perceber qual o sentido em que Aristóteles pensava o “é”, era
justamente aquilo que possibilita que o ente seja aquilo que é enquanto é, o tí tó ón
aristotélico é a pergunta pela ousia, pela coisidade da coisa – pela prõtai archai kai aitai20;
sua ciência primeira pretende formular um dizer – theoretiké – e um dizer que ainda hoje
nos deparamos frequentemente. Ainda hoje quando fazemos a pergunta “o que é isso, a
coisa?”, fazemos de maneira aristotélica. Melhor, perguntamos pressupondo que existe
uma causa para que a coisa se mostre para nós, apareça, nos atropele. Perguntamos e
pensamos a pergunta sem entender muito bem o que é perguntado, como é perguntado e
desde onde é pensada a própria questão21. Nesse caso, estamos dizendo da coisa
investigada que ela é o que é por que permanece constantemente em uma relação de
identidade com sua ousia, a qual, tem o sentido alterado constantemente na história do
pensamento: ora aparece como ideia, ora como enérgeia, absoluto, sujeito transcendental,

18
Metafísica, A2 982 b 9s.
19
Esta tradução não possui a pretensão de ser fiel às traduções filológicas da passagem, mas sim iluminar através da
apropriação da palavra os possíveis sentidos e conjecturas para as expressões.
20
A pergunta tí tó ón?, segundo Heidegger, é explicada por Aristóteles na continuação do texto como “toutó esti tis
ousia?” (que é a entidade do ente?).
21
“A caracterização do pensar como θεωρία e a determinação do conhecimento como um comportamento ‘teórico’ já
se dão dentro de uma interpretação ‘técnica’ do pensamento” (HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. In:
Marcas do Caminho. 2008. P. 327.

10
não importa. O caso é que sempre estamos dizendo da coisa, que ainda não sabemos o
que é, que ela se conforma com sua coisidade, ou seja, que ela sempre terá o traço da
identidade consigo mesma.
A questão é que na realidade vigente as coisas não permanecem nessa perpétua
identidade consigo mesma, cristalizada em uma definição. As coisas se mostram para nós
desta ou daquela maneira, elas sempre aparecem como algo. O sentido em que a coisa se
mostra para nós é sua ousia, e esse sentido é dado lá naquela gênese mútua de homem e
mundo, pois mundo é o horizonte de sentidos que o homem possui para interpretar a
coisidade, a ousia. Pensando o “é” como o modo em que a coisa nos advém, pensamos o
ente sendo isso que nos aparece como nos aparece, interpretamos a coisa como fenômeno
que se mostra em diferentes modos de possibilidade. Não na contínua identidade com o
que se pressupõe que seja a ousia, mas na multiplicidade das diferentes formas em que a
coisa pode vir ao nosso encontro – uma identidade nas diferentes emergências das coisas
como fenômenos. Assim devemos pensar a dimensão da linguagem que Heidegger nos
propõe, no limite da sua transformação no modo em que se revela para nós. Este modo,
essa perspectiva, se faz como a ousia do fenômeno, linguagem na gênese articuladora do
ser-no-mundo, pois, “o sendo-ser torna-se, de múltiplos modos, fenômeno”22. Pensando
assim, seremos capazes de fazer uma experiência com o ser do ente, e não com suas
causas ou questões do gênero – voltamo-nos para o ser.
Mundo, em sua relação harmônica, é a dimensão e limite que resguarda todas as
significações possíveis das coisas e, assim também, as do próprio homem. A cada
momento nos encontramos dentro de significações, sejam elas de coisas triviais como a
definição formal de um objeto ou significações amplas mais essenciais como, por exemplo,

22
Tradução que Heidegger faz à sentença aristotélica “tó òn légetai pollachós”.

11
o modo com que nos comportamos nas relações com as coisas e os outros, nosso humor
ou por assim dizer, nosso comportamento23.
HOMEM COMO DISPOSIÇÃO PARA A ESCUTA SILENCIOSA DO SER
Como o homem já sempre se encontra dentro de um sentido e, a partir desse sentido,
ele se relaciona desta ou daquela maneira com as coisas e com os outros, podemos dizer
que na relação expressa pela estrutura ser-no-mundo o homem precisa estar disposto24 em
possíveis modos de comportamento, a ponto de ser interpelado por esse sentido. Para que
haja harmonia é necessário que haja afinação. O mundo é a dimensão propiciadora de todo
sentido possível que nos vem ao encontro. Somos sempre lançados no mundo e para ele
nos voltamos como aquilo que nos há de mais íntimo. Ser na e para a totalidade 25 do mundo
nos diz que, somos possibilidade para o que se abre na dimensão em que todos os sentidos
emergem; essa condição nos permite assumir os diversos comportamentos possíveis que
se mostram na abertura de mundo. Tais comportamentos nos vêm ao encontro pelo
fenômeno nomeado por Heidegger de escuta. Por escuta, o filosofo não está se referendo
ao fenômeno auditivo, mas se refere a escuta da fala da linguagem que nos advém como
uma anunciação. Assumindo um comportamento nós somos enviados à totalidade do

23 O termo escolhido, humor, remete-nos diretamente a “Ser e Tempo” e nos diz sobre os modos de existência
que o homem pode ou não assumir; já o termo comportamento aparece na conferência “Sobre a Essência da
Verdade” de 1930, e remete-nos à posição que o homem assume perante o ente. No texto de 1927, Heidegger
escreve sobre estados de humor, como por exemplo “o bom e o mau humor”, no texto de 1930 ele diz “modos
do comportamento”. Neste artigo aparecem os dois termos alternadamente, mas, sempre no mesmo sentido.
Estar afinado em um humor ou aberto em determinado comportamento diz a mesma coisa ou, no mais, se
complementam numa descrição mais apurado do fenômeno: “O humor revela ‘como alguém está e se torna’
[diante do ente].” (Ser e Tempo, 2012. P. 193); “Toda relação patentemente aberta é um comportamento. A
abertura patente que o homem mantém se diferencia conforme a natureza do ente e o modo de
comportamento.” (A Essência da Verdade, in: Marcas do Caminho. P. 196)
24“O que indicamos ontologicamente com o termo disposição é, onticamente, o mais conhecido e o mais
cotidiano, a saber, o humor, o estar afinado num humor.” (Ser e Tempo, p. 193)
25Totalidade do mundo não significa o somatório, a quantificação de tudo o que existe no mundo; mas,
indica a condição de possibilidade desde a qual dá-se mundo.

12
mundo, sem dela nunca dispor inteiramente. Enquanto ser-no-mundo somos o próprio
envio, a travessia entre o comportamento já apropriado e os modos possíveis de
comportamento a se apropriar. Nesse entre-dois não somos completamente o que
apropriamos e não dispomos da totalidade, no entre somos não somos nem um e nem
outro, oscilamos entre comportamentos. Este oscilar é nossa finitude.
Como nos diz Heidegger, a finitude não é uma propriedade que simplesmente
atrelamos ao ser humano, mas antes é o modo fundamental de nosso ser 26. Ela é o modo
fundamental porque nos garante ser isso que somos. A finitude nos lança na solidão de
termos de ser o que somos. Solidão diz aqui a experiência responsável pela sua própria
existência que lhe é imposta no dar-se do mundo, na assunção dessa experiência, o
homem encontra sua singularização27 através dos comportamentos, nos quais ele se
realiza na forma de uma apropriação das possibilidades da sua existência, nessa
apropriação o homem se torna único. Mundo, finitude e solidão compõe em si uma unidade,
mundo e homem em sua gênese unitária perfaz a junção entre finitude e totalidade.
Nos vemos sempre dentro de um sentido diferente e a ele correspondemos ou não,
nos afinamos ou não. Essa disposição é o estar aberto para ver a mudança no sentido,
para se lançar na solidão e se fazer, correspondendo aos modos de comportamento. É o
movimento mais comum e natural da vida humana, o que faz de cada existente um ser
único ao afinar e desafinar, ao se apropriar e perder a “percepção” daquilo que nos faz
humanos, essa é a nossa condição:
O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão

26Cf. HEIDEGGER, Martin. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica. 2011.


27“Singularização não diz, aqui, que o homem se calcifica em seu eu diminuto e ressequido, neste eu que
se espraia junto a isso ou aquilo que ele toma como sendo o mundo.” (HEIDEGGER, Martin. Os Conceitos
Fundamentais da Metafísica. 2011. P. 7.)

13
sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me
ensinou.28

Que essa condição do homem seja expressada como disposição por Heidegger ou
afinação por Riobaldo pouco importa, trata-se do mesmo fenômeno: a capacidade de
corresponder harmonicamente às diversas possibilidades abertas no mundo, se afinar num
humor ou em um modo de comportamento – que se revela na capacidade da escuta
apurada que ouve silenciosamente o prenúncio da linguagem. Ou simplesmente desafinar,
ao se perder no discurso cotidiano, já apropriado e calcificado dessas possibilidades.
Porém, só é possível haver correspondência entre aquilo que já, de certa forma, se
conhece. Então, cabem as perguntas: se mundo e homem são o mesmo acontecimento,
como o homem pode conhecê-lo como se fosse algo já constituído? Em suma, como pode
o homem afinar (ao perceber o mundo como o fenômeno inaugural e prévio29 da sua
existência) e desafinar (ao tomar a existência como algo já constituído e calcificada nos
discursos cotidianos)?
Como o lugar em que o estado de humor se revela é o mundo, e esse tem sua
gênese resguardada no humano, o homem já sempre está dentro de algum estado de
humor – sempre já dentro da vida, nunca fora. Por ser aquele ente que sempre se encontra
na vida, o homem possui uma existência gratuita (sem escolha ou propósito) – em sua
gênese súbita, nasce com ele um horizonte de significações a serem apropriadas. Horizonte
de significações é mundo que se revela como como o puro possível (e nesse sentido, como
a condição de possibilidade do próprio homem) ao qual o homem já sempre “se” enviou e

28Grande Sertão: Veredas, 2015. P. 163.


29É digno de nota que a noção de prévio nos escritos de Heidegger tem um sentido de primado ontológico, e
não o sentido temporal de que algo acontece primeiro e em seguida vêm os demais. Conhecimento Prévio
não se refere a um conhecimento primeiro, e sim a um conhecimento constitutivo, originário.

14
compreendeu30. Homem é moringa que não foi terminada, e, sem fundo recebe do mundo
aquilo que preenche o vazio que ele mesmo sempre é, e isto à medida que para o vazio, o
recebido se esvai.
Sempre estamos cheios e vazios na gratuidade do momento. Compreendemos na
imediatidade de tal momento isso que nos passa, água da totalidade, e compreendendo,
resguardamos o compreendido no ato contínuo de irrupção da própria vida. Recebendo e
doando somos: recebendo do mundo, o já compreendido, e doando o que não nos cabe
mais, pois pela falta de fundo perdemos – não se tem fundo aquilo que não tem fundamento,
a gratuidade. É o próprio ato de existência que nos revela seu sentido no momento da
irrupção da existência. O resguardado, o já compreendido, se descobre sempre como este
ou aquele estado de humor que nos afeta no páthos da irrupção da existência. Isso que nos
afeta já se encontrava pronto lá na gênese de homem e mundo. Afetado, o homem é então
tomado sempre e a cada momento por isto que não é dele, mas que já estava pronto:

O senhor, mire e veja, o senhor: a verdade instantânea dum fato (...) Agora, eu, eu
sei como tudo é: as coisas que acontecem, é porque já estavam ficadas prontas,
noutro ar, no sabugo da unha; e com efeito tudo é grátis quando sucede, no reles
do momento.31

Essa fala de Riobaldo aponta para algo parecido com o que foi descrito acima sobre
o resguardo do compreendido e como ele nos vêm como afeto. A fala nos diz sobre uma
inclinação que o homem possui de sempre ver aquilo que já se encontrava pronto, o
terminado no resguardo da linguagem. Riobaldo nos fala de um fato, não um fato qualquer,
mas um que seja instantaneamente verdadeiro (páthos), a saber: que as coisas, os afetos

30 “Enquanto existenciais, a disposição e o compreender caracterizam a abertura originária de ser-no-mundo.


No modo de ser do humor, o ser do homem ‘vê’ possibilidades a partir de quais ela é.” (Ser e Tempo, 2012.
P. 208)
31
Grande Sertão: Veredas, 2015. P. 367.

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ou humores já estão previamente prontas. A sentença nos diz mais: que o afeto só aparece
e nos toma por que previamente o resguardamos no sabuga da unha. Essa coisa que
Riobaldo diz, também é gratuita no suceder constante do momento, aquele mesmo
momento de irrupção da existência.
Essa é a fala da linguagem, que pelo ser nos diz sobre aquele afeto ao qual o homem
disposto se afina. No afinar, nos apropriamos do estado de humor que o ser nos revela
através do silêncio. Nessa fala, o homem disposto se entrelaça, afinando-se em uma escuta
pura e afinada daquele sentido previamente compreendido e que "já tinha ficado pronto”.
Essa escuta é, em seu ser mais próprio, a escuta do silêncio da totalidade, o retraimento
do ser. A fala da linguagem em nada se assemelha com o significado formal de falar, em
que nos expressamos através de enunciados compostos por uma articulação de
significados; a fala da linguagem é antes o aparecimento gratuito do afeto harmônico no
“suceder do momento”. A fala do ser não é enunciativa. A correspondência só pode
acontecer através do homem disposto a se afinar naquela “verdade instantânea” e se deixar
tomar pelo que já se encontrava pronto no “sabugo da unha”. A fala do ser é a fala da
linguagem, voz silenciosa que na escuta do silêncio ouvimos, o momento, o longo instante
do páthos. A disposição de ser afetado (homem), o horizonte afetivo (mundo) e a escuta,
acontecem na linguagem e nela residem, à espera de que através dela se harmonizem em
uma escuta apurada da fala da linguagem.
O fato é que o homem também fala, e isso independe de estarmos ou não na
disposição para a escuta do silêncio do retraimento do ser. A fala talvez seja o que há de
mais característico no humano, o que nos há de mais próprio. Isto se deve ao fato de o ser
do homem, que é disposição para o afeto, possuir a capacidade de corresponder a fala da
linguagem através da escuta silenciosa. Falamos em nosso cotidiano sobre diversos temas
e coisas, importantes e triviais, daquelas que conhecemos muito bem e daquelas que

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desconhecemos completamente. Poder falar sobre qualquer coisa não nos garante que
delas, de fato, falemos, isto é: ser capaz de ser tomado por um afeto, de corresponder ao
ser. No falar que se encontra em harmonia com o ser, falamos a partir da fala da linguagem
– falamos aquilo que nos é de mais próprio e que de um modo ou de outro nos interpelou
e a ele nos dispomos. Mas frequentemente falamos a partir de outra coisa, a partir do que
já se encontra moldado na tradição cultural em um significado que brota do comum acordo
entre os homens, falamos no âmbito do usual – do comum. O que se torna comum e usual
no cotidiano é aquilo que concordamos que é melhor ser definido dessa ou daquela maneira
específica, possuindo esse ou aquele sentido. Isso, o concordado, se torna algo evidente
cujo significado nos tapa o ouvido para a fala da linguagem se cristalizando em uma única
perspectiva; e dessa forma, falamos sobre o que não podemos apropriar de maneira
suficiente, pois não nos veio como um páthos do ser – falamos de modo impróprio.
Dizer que falamos de modo impróprio não denota um valor negativo a esse modo da
linguagem. No âmbito da cotidianidade sempre será necessário que a linguagem seja
delimitada em significados determinados se quisermos empregar a fala como um meio de
comunica/expressão. É a linguagem da fala imprópria que torna possível a construção de
pontes entre uma coisa e outra, entre nós mesmos e os outros - “pontes ilusórias que ligam
coisas eternamente separadas”32. Através dela adquirimos a capacidade de nos
expressarmos – em um modo delimitado – de forma suficiente para que os outros entendam
do que falamos, delimitar a palavra a um significado único é a conduta inerente ao homem
cotidiano. Se a escolha entre afinar e desafinar na correspondência com o ser não é uma
escolha ativa, uma decisão do raciocínio, então, não pode existir um estado de
permanência na correspondência. O homem é o ente que possui a possibilidade de hora
se encontrar na correspondência e hora não, “no suceder do reles do momento” revela-se

32 Assim Falava Zaratustra, 2012. P. 224.

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nossa pobreza ontológica. Nesse movimento constante, na relação entre o ser do homem
e a linguagem, a própria linguagem se modifica sem nunca se tornar outra. Não estamos
falando de uma linguagem que nos diz o páthos da vida e de outra com a qual fazemos
colocações sobre as coisas, mas apenas uma linguagem que se diferencia em si mesma
numa junção própria ou imprópria – seja no silêncio da irrupção do afeto ou no falatório da
vida cotidiana.
O ser do homem descobre, isto é: torna visível o que antes se dissimulava e nos
escapava à visão. A fala da linguagem lança o homem disposto na claridade de uma
descoberta, é ela a clareira em que o ente aparece e desaparece, se mostrando ao homem
como isto que ele é no seu modo próprio de aparecimento. A coisa, por exemplo, a ponte,
descoberta desde o sentido da rodovia nos dá passagem segura através dos obstáculos e
assim, é caminho. Porém, a mesma ponte que vemos como caminho, e é de fato um
caminho, pode ser revelada dentro de um outro sentido como uma nova coisa: no momento
de uma tempestade olhamos a ponte e vemos abrigo. A diferenciação do mesmo ente se
torna evidente, ao pensarmos nas “sensações” despertas por ele ao se mostrar como isto
ou como aquilo. Um bem-te-vi engaiolado nos traz muitas vezes – e isso de imediato – a
sensação de “sozinhidão”, aprisionamento, desconforto, limitação e dependência. Já o
mesmo pássaro alçando voo por entre as árvores nos diz o contrário: liberdade, o conforto
da naturalidade, o ilimitado bater de asas que garante a independência - “(...) até os
pássaros, consoante os lugares, vão sendo muito diferentes. Ou são os tempos, travessia
da gente?”33.
É o mesmo pássaro é a mesma ponte e não há um sentido mais ou menos real para
eles, independentemente do modo como nos aparecem – entre o que enunciamos sobre o
ente de maneira apropriada pela fala da linguagem e o ente “em si” não existe diferença,

33 Grande Sertão: Veredas, 2015. P. 235.

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não existe uma hierarquia da realidade, a velha ideia moderna da “coisa em si” cai por terra.
Pois “o real não está nem na saída e nem na chegada: ele se dispõe para gente é no meio
da travessia”34, no como ele é revelado para nós, que correspondemos à linguagem.
Ao falar sobre o pássaro não tentamos fazer uma apreensão do páthos desperto
pela fala da linguagem. O que nos é dito por ela não se deixa apreender de maneira
suficiente pelo simples dizer. Isto que nos é dito, o afeto, é dito de maneira silenciosa. O
pássaro em questão recebe o nome de Pitangus sulphuratus, o bem-te-vi, que é a tentativa
explícita de determinar em um conceito o que a coisa é. Nomeamos o pássaro por que
precisamos, e no determinar unívoco da coisa perdemos a fala da linguagem, que se
instrumentaliza através de regras e significados e transforma latente, a linguagem que é
clareira reveladora na expressão determinante da comunicação humana cotidiana. A fala
da linguagem não pode caber em nenhuma certeza, não repousa em razão profunda 35.
No turbilhão de informações geradas pela linguagem instrumentalizada, tudo se
torna imediatamente interessante. No âmbito do comum falamos sobre tudo, sem de fato,
nos apropriarmos de nada. Aquele longo instante, ao se experienciar o ente, exigida pela
correspondência ao ser, é completamente esquecida, e em seu esquecimento, o homem
vaga sobre a luz chamativa do que se mostra como interessante. São vaga-lumes,
dançando por entre as árvores na noite escura, atraindo o olhar com sua luminosidade
momentânea, sem nunca nos mostrar o que de fato brilha e nos chama a atenção. O
imediatamente interessante está na beira do precipício da monotonia, e pelo olhar
despreocupado do homem, é arremessado para baixo, antes que possamos apropriá-lo,
então, todos passam a ter acesso sobre tudo que é dito no falatório do cotidiano – saltamos
de novidade em novidade em uma impermanência na fala da linguagem.

34 Grande Sertão: Veredas, 2015. P. 315.


35 Cf. Grande Sertão: Veredas e o poema “A Palavra” de Stefan George.

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No acesso a tudo que é corrente, o homem não se preocupa em se afinar no páthos
do ser, mas sim em buscar o conhecimento imediato daquilo que se torna interessante, e
isso pela simples tomada de consciência. Ele se encontra desamparado, desenraizado da
compreensão do ser e assim se torna incapaz de se apropriar do afeto liberado por essa
compreensão. No falatório do cotidiano os sentidos já foram compreendidos – não pelo ser,
mas pela fala instrumentalizada – e ao olhar curioso do homem nada passa despercebido.
Paira sobre ele a ilusão de tudo ver e compreender. Mas todo esse movimento, seja ilusório
ou seja fruto da correspondência mais pura com o ser, só é possível através das estruturas
ôntico-ontológicas do homem. O homem como o ente que possui em si a habilidade
ontológica de corresponder ao mundo como envio à totalidade, intérprete, pois só ele existe
na facticidade, descobrindo o mundo e as coisas na escuta do silêncio.
O que “existe é homem humano. Travessia”36
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
FOGEL, Gilvan. Homem, Realidade, Interpretação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2015.
HEIDEGGER, Martin. A essência do fundamento, Carta sobre o humanismo. In: Marcas do
Caminho. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
___________,. A linguagem; A essência da linguagem; A palavra; O caminho para a
linguagem. In: A caminho da linguagem. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2003.
___________. O que é isto – a filosofia?. In: O que é isto – a filosofia?; Identidade e
Diferença. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
___________. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica: mundo, finitude, solidão.. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006.
___________. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 2012.
NUNES, Benedito. Passagem para o poético. Editora: Ática S.A, 1986.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Martin claret, 2012.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 21 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2015. 496 p.

36 Aqui finalizo o escrito como Rosa finalizou sua obra. No início “nonada” – coisa alguma, coisa chula. No
final: Travessia, pois é isto que o homem é e sempre será e também agora como para sempre o que nos
importa é a travessia. O homem é apenas uma ponte.

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