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A QUESTÃO INDÍGENA
E A ESCRAVIDÃO NEGRA1
David Treece
RESUMO
O movimento indianista brasileiro do século XIX manteve uma preocupação que, embora
pouco comentada, o percorreu por inteiro: as correspondências políticas e éticas entre as
condições do escravo negro e do indígena. Partindo do pressuposto de que o indianismo é um
fenômeno não apenas de invenção literária, mas também de reflexão política, este artigo busca
traçar a evolução da correspondência temática "índio/negro" nos escritos de José Bonifácio,
João Francisco Lisboa, Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo, culminando na análise
em conjunto dos dramas "abolicionistas" e dos romances indianistas de José de Alencar.
Palavras-chave: indianismo; literatura brasileira do século XIX; escravatura.
SUMMARY
The Brazilian Indianism movement of 19th century kept always present a concern that was
seldom commented: the political and ethical correspondences between black slaves and
Indians conditions. From the assumption that Indianism was not only a phenomenon of literary
invention, but also of political intervention, this article seeks to trace the evolution of thematic
correspondence "Indian/black" in the writings of Jose Bonifacio, João Francisco Lisboa, Gon-
çalves Dias and Joaquim Manuel de Macedo, culminating in the analyses as a whole of Jose de
Alencar's "abolitionist" dramas and Indianist novels.
Keywords: Brazilian Indianism; 19th century Brazilian literature; slavery.
(1) Texto apresentado no Con- Na última década do Segundo Império, o abolicionista baiano Alexan-
gresso da Associação Brasileira
de Literatura Comparada, Sal- dre José de Mello Moraes Filho publicou um ensaio semilírico, semidocu-
vador, julho de 2000.
mental, intitulado Os escravos vermelhos. Contribuição tardia ao indianismo
oitocentista, o texto integrava a coleção Pátria Selvagem, que incluía ainda Os
escravos negros e Ciganos. Retoma-se ali um cenário conhecido do indianis-
mo: a guerra colonial contra os franceses e a chamada Confederação dos
Tamoios, que deu nome ao poema épico de Gonçalves de Magalhães. Nessa
versão, no entanto, o mito de fundação da colônia do Rio de Janeiro sofre
uma revisão radical para que o autor possa acomodar a realidade esquecida
da escravidão indígena e denunciar a herança de opressão social em que se
assentava o Império. Já na dedicatória Mello Moraes vincula explicitamente a
escravidão indígena e a do negro africano:
Oito anos se passaram entre a publicação d' O Guarani, com essa visão
extremamente otimista-idealista da ordem pós-colonial, e o lançamento de
Iracema, com seu desfecho mais trágico. Nesse intervalo Alencar produziu
duas peças dramáticas que enfocavam, já não a família colonial, mítica,
fundadora das raízes históricas da formação brasileira, mas a família burguesa
contemporânea do século XIX. Ambos os dramas — O Demônio Familiar
(1857) e Mãe (1860) — tratam da problemática de como um "membro" não-
branco e não-europeu daquela família (já não o índio, mas o escravo negro)
poderia intervir na sua vida com resultados positivos ou negativos. O mero
fato de que as quatro obras foram produzidas sucessivamente durante o auge
do Segundo Império já levantaria a expectativa de alguma afinidade geral
entre elas no plano ideológico; mais que isso, porém, o que se constata é que
esses textos, examinados em conjunto, assinalam um complexo único de
preocupações, no centro das quais figuram a relação senhor-escravo e a
contribuição do não-europeu de cor ao bem-estar da família brasileira pós-
colonial.
Cada par de textos — O Guarani/O Demônio Familiar e Iracema/Mãe
— confere ao servo indígena ou ao africano da comunidade crioula um pa-
pel mítico quase idêntico. No caso de O Guarani e O Demônio Familiar
(publicados no mesmo ano) há a figura masculina do "anjo da guarda" do lar
nacional, cuja tranqüilidade e sobrevivência dependem da sua intervenção;
trata-se do índio benfazejo, Peri, e do escravo doméstico malicioso e manipu-
lador, Pedro, gênio ou demônio. Em ambos os casos o "prêmio" outorgado ao
escravo pelas suas ações é a liberdade, mas o significado e o efeito dessa
emancipação diferem conforme o contexto histórico. Já o modelo comum de
Iracema e Mãe (textos separados por apenas três anos) é o da mãe não-
européia (Iracema ou Joana) que se sacrifica e morre antes que o filho
mestiço possa conhecê-la pelo que é. O herdeiro mestiço ou mulato da
ordem pós-colonial deve viver na condição de órfão, e ao sobreviver à mãe e
lembrar seu sacrifício tanto reconhece a culpa histórica de suas origens não-
européias como se vê desresponsabilizado por ela, livre já para realizar sua
própria história. Mas se aceitamos o paralelismo entre os dois pares de textos,
qual será a concepção da ordem pós-colonial sugerida pelas figuras-chave
que eles têm em comum — o "anjo-da-guarda" da família brasileira, ambiva-
lente mas emancipado, e a mãe não-européia que tragicamente se sacrifica?
Tem havido amplas divergências sobre a interpretação de O Demônio
Familiar e Mãe como obras abolicionistas. Confiando bastante nas afirma-
ções do próprio Alencar, João Roberto Faria concorda que elas constituem
críticas em chave realista e romântica, respectivamente, da escravidão.
Assim, O Demônio Familiar revelaria os efeitos prejudiciais da servidão,
em termos sociais e morais, para as suas vítimas (tanto o moleque escravo
Joana: Nhonhô não há de obrigar... Não sou forra!... Não quero ser!...
Não quero!... Sou escrava de meu senhor!... E ele não há de padecer
necessidades!... Tinha que ver agora uma mulher em casa sem fazer
nada, sem prestar para coisa alguma16... (16) In: ibidem, p. 325.