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DIREITOS

FUNDAMENTAIS E
POLÍTICAS PÚBLICAS:
REFLEXÕES
CONTEMPORÂNEAS
Janaína Machado Sturza
Claudine Rodembusch Rocha
ORGANIZADORAS

1
Essere nel Mondo
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Prefixo Editorial: 67722


Número ISBN: 978-85-67722-18-4

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406


Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates
Correção ortográfica: Carmen Rohr
Capa: Daiana Stockey Carpes
Diagramação: Daiana Stockey Carpes

2
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil
Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha
Profª. Drª. Angela Condello – Direito - Roma Tre/Itália
Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina
Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile
Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália
Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália
Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil
Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil
Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil
Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil
Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil
Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália
Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil
Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal
Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil
Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha
Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil
Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México
Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia
Profª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil

COMITÊ EDITORIAL
Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/Brasil
Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil

3
DIREITOS
FUNDAMENTAIS E
POLÍTICAS PÚBLICAS:
REFLEXÕES
CONTEMPORÂNEAS

Janaína Machado Sturza


Claudine Rodembusch Rocha
ORGANIZADORAS

1ª edição

Santa Cruz do Sul

2014
4
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Jorge Renato dos Reis
7

PREFÁCIO
Marcos Rolim
9

CAPÍTULOS

1. A SAÚDE ENQUANTO DIREITO HUMANO, 12


FUNDAMENTAL E SOCIAL: PROTEÇÃO E
AFIRMAÇÃO ATRAVÉS DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Janaína Machado Sturza e Maria Cristina
Schneider Lucion

2. DESENVOLVIMENTO URBANO: POLÍTICAS 28


PÚBLICAS E INCLUSÃO SOCIAL E O DIREITO À
MORADIA
Romi Margô Regert e Claudine Rodembusch
Rocha

3. A NECESSIDADE DE AÇÕES AFIRMATIVAS NO 44


CAMPO DAS CIDADES, COMO EFETIVAÇÃO DAS
GARANTIAS E DIREITOS FUNDAMENTAIS
Rafael Minussi

4. DIREITOS FUNDAMENTAIS, DIREITO DOS


CONFLITOS ARMADOS E A REGIONALIZAÇÃO DA 58
POLÍTICA DE DEFESA BRASILEIRA
Márcio Azevedo Guimarães

5. DUMPING SOCIAL: UM BREVE RELATO SOBRE A


SITUAÇÃO DO BRASIL E DO MERCOSUL
74
Letícia Petry de Faria e Claudia Maria Petry
de Faria

6. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O ACESSO DA


MULHER AO MUNDO LABORAL NO BRASIL E NA
84
ARGENTINA À LUZ DO PRINCÍPIO DA

5
PARTICIPAÇÃO SOCIAL
Josirene Candido Londero

7. VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR E A VIOLAÇÃO DOS


DIREITOS DA MULHER
98
Jeferson Jeldoci Pol e Lisiana Carraro

8. JUSTIÇA RESTAURATIVA E SINASE


Marli Marlene Moraes da Costa e Josiane
110
Borghetti Antonelo Nunes

6
APRESENTAÇÃO

Muito me honrou o convite das professoras Janaina Machado Sturza e


Claudine Rodembusch Rocha, para apresentar esta obra coletiva, sob sua or-
ganização, cujo título “Direitos Fundamentais e Políticas Públicas: Reflexões
Contemporâneas”, reflete o objeto de pesquisas realizadas por seus autores,
as quais são materializadas nos oito artigos que compõem a obra.
Os estudos desenvolvidos pelos autores e que ora são trazidos a pú-
blico buscam enfrentar diversas questões oriundas da necessária efetiva-
ção dos direitos fundamentais através de políticas públicas, a fim de verda-
deiramente poder-se caracterizar um constitucionalismo contemporâneo.
Nesse sentido a obra vem consolidar um espaço importante à me-
dida que permite a socialização dos resultados dos estudos realizados
pelos autores, nos seus ambientes acadêmicos, integrados aos seus res-
pectivos grupos de pesquisa. Isto permite uma troca de informações fun-
damentais no sentido de alcançar um crescimento intelectual de todos,
professores e alunos, que terão acesso aos diversos artigos da obra.
A efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana, alçado à
condição de princípio matriz de todo o sistema jurídico pátrio pela Consti-
tuição Federal Brasileira, determina uma obrigação a todos os brasileiros,
muito especialmente a todos os operadores do Direito, da necessidade
de realização dos Direitos Humanos, transmudados em Direitos Funda-
mentais, porque albergados pela Carta Magna, para que não se tornem
letra morta e possam estar vivos na realidade dos brasileiros, nas mais
diversas áreas desta realidade.
Dessa forma, o Direito Social à Saúde, o Direito à Moradia, as ações
afirmativas no ambiente urbano, o Direito à Soberania e à Cidadania para
a política de defesa brasileira, o dumping social na área trabalhista, a pro-
teção da mulher, na conquista da igualdade de gênero especialmente no
mundo laboral e na família e a concretização do direito à paz, através da
justiça restaurativa, são, sem dúvida alguma, temas candentes da atuali-
dade que exigem políticas públicas eficazes a fim de permitir a realização
dessa dignidade da pessoa humana.
Como já referia Bobbio, não é mais suficiente somente discutir-se
sobre direitos fundamentais. É necessário que sejam implementados, de
forma efetiva, na realidade das pessoas. Neste sentido, textos como os
dos oito artigos que compõem a presente obra são de fundamental im-
portância para esta implementação, porque analisam os diversos direi-
tos fundamentais na sua concretização na vida das pessoas. Além disto,
foram escritos com o uso de linguagem clara e simples, o que os torna
acessíveis não somente a professores, alunos e operadores da área do
Direito, mas a todas às pessoas e às diferentes áreas do conhecimento,
até porque há co-autores de outras áreas. Isto torna a presente obra, uma

Apresentação 7
obra multidisciplinar.
Parabéns aos autores, parabéns especialmente às organizadoras,
pela iniciativa de reunir textos de qualidade e sobre temas atuais.

Boa leitura a todos.

Jorge Renato dos Reis1

1 Pós-Doutor pela Università Degli Studi di Salerno-Itália. Doutor pela Universidade do


Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS. Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universida-
de de Santa Cruz do Sul-UNISC. Especialista em Direito Privado pela Universidade de San-
ta Cruz do Sul-UNISC. Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas de Santa Cruz
do Sul-FISC. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu Mes-
trado e Doutorado em Direito da UNISC. Coordenador do projeto de pesquisa “O direito
de autor no constitucionalismo contemporâneo” e do projeto de pesquisa “Intersecções
jurídicas entre o público e o privado”, vinculados ao CNPq.

8 Apresentação
PREFÁCIO

A política para além do discurso

Uma intervenção política eficaz e eficiente2 é o que de mais impor-


tante o agente público pode produzir. Agentes públicos capazes de reali-
zar intervenções políticas eficazes e eficientes não são comuns no Brasil.
Em algumas áreas, especialmente, eles são muito raros.
O que se pode verificar com relativa facilidade é que o Poder Pú-
blico em nosso País tem sido historicamente pouco comprometido com
a elaboração de políticas públicas fundadas por diagnósticos com base
científica. Por isso, não conferimos às evidências o papel preponderante
que elas devem ter em qualquer debate sobre o tema. Como regra, as
ações do Estado seguem sendo fortemente influenciadas pela improvisa-
ção e pela reatividade. Muitas vezes - inclusive em áreas centrais como a
educação, a saúde e a segurança pública -, as respostas do Poder Público
são definidas por conta do poder de interesses particulares (de natureza
corporativa ou empresarial), quando não em flagrante submissão a visões
preconceituosas, violentas ou legitimadoras de privilégios.
Para piorar o quadro, o Estado que temos é herdeiro de uma tradição
muito antiga de exclusão e marginalização com a qual os privilegiados
se acostumaram. Democracia, não casualmente, sempre foi uma expres-
são retórica no discurso dos “donos do poder”, para lembrar a oportuna
síntese consagrada pela obra de Raymundo Faoro, ainda hoje tão atual.
A experiência democrática brasileira só é incipiente, porque sempre se
preferiu contorná-la, promovendo “pelo alto” a conciliação entre os inte-
resses dos poderosos. Nesta história, marcada pela ausência de rupturas,
a conta foi encaminhada com toda a naturalidade aos despossuídos, a
quem sempre coube obedecer. Nas vezes em que esta determinação foi
arguida, como se sabe, os brasileiros mais humildes conheceram a espa-
da do Leviatã moderno. Assim tem sido até hoje, a par dos avanços já
obtidos e do fato histórico de estarmos vivendo no mais longo período de
democracia contínua de nossa história republicana.
Não lidamos com diagnósticos concretos e não permitimos, como
2 Os conceitos de eficácia e de eficiência qualificam a ação de forma distinta. Simplifica-
damente, eficaz é a ação que alcançou seu objetivo. Já a eficiência mede a forma como
se alcançou o objetivo, procurando medir as relações de custo-benefício, por exemplo.
No texto constitucional, as duas expressões aparecem vinculadas às políticas públicas,
como no inciso II do artigo 74 que trata da obrigação dos Poderes Públicos manterem
sistemas de controle interno. Lá se pode ler: “comprovar a legalidade e avaliar os resul-
tados, quanto à eficácia e eficiência, da gestão orçamentária, financeira e patrimonial
nos órgãos e entidades da administração federal, bem como da aplicação de recursos
públicos por entidades de direito privado”.

Prefácio 9
regra, que as políticas públicas sejam irrigadas pela participação dos que
serão por elas concernidos. Por fim, para que a receita de ineficiência e
desperdício de recursos se complete, resistimos ao máximo ao monitora-
mento e à avaliação das políticas públicas. Os gestores públicos no Brasil
são criativos o suficiente para implementar todos os tipos de programas e
intervenções que lhes pareçam capazes de produzir bons resultados (elei-
torais, sobretudo), o que pode ser traduzido pela lamentável disposição
de gastar o dinheiro público em ações que não serão avaliadas e que, por
isso, irão drenar quantias impressionantes de recursos públicos sem que
nunca se saiba a verdadeira natureza dos resultados por elas produzidos.
O processo sumariamente descrito pode ser apresentado como uma
das molduras mais significativas da gestão pública no Brasil. Os limites
apontados não dizem respeito apenas aos gestores, governantes e agen-
tes políticos. Eles são compartilhados como traços da cultura nacional;
estão presentes no formalismo dos raciocínios e na ausência deles; se
esparramam pelas páginas dos jornais e enchem quadros com conteúdos
em nossas universidades.
Somos apaixonados pela palavra e nos encantamos com ideologias
e doutrinas. Para construir uma realidade apartada do mundo e nos orien-
tar por ela, somos especialmente bons. Para conhecer o mundo por onde
transitam as pessoas reais, com seus dramas mais sentidos e urgentes,
temos mais do que dificuldades epistemológicas. Para todos os efeitos, é
como se a matéria não fosse mesmo digna de atenção.
É claro que, desde as contribuições de Austin e Searle, pelo menos,
não podemos mais desconsiderar a realidade de que falar é fazer. A
teoria dos atos de fala e a pragmática da comunicação destacam que os
enunciados envolvem, além das proposições, uma dimensão performática
pela qual, ao falar, assumimos determinados compromissos, prometemos,
elogiamos, condenamos, ameaçamos etc. Os que se iniciaram em
Habermas foram suficientemente alertados a respeito e lembram que, no
âmbito da Teoria da Ação Comunicativa, a expressão “discurso” possui
um sentido muito preciso, indicando o espaço decisivo onde os sujeitos
desempenham suas capacidades argumentativas. Assinalo isto apenas
para sublinhar que emprego o termo “discurso” aqui no sentido usual e
que trato do “fazer” nesta dimensão política específica e muito menospre-
zada no Brasil de definição de programas e de ações concretas por parte
do Poder Público para a solução de problemas relevantes das sociedades
contemporâneas.
A tradição formalista e alienada do mundo concreto esteve muito
presente em toda a tradição bacharelesca no Brasil. Ainda hoje, muitos
dos operadores do direito se contentam em transitar pela dogmática ju-
rídica, preenchendo o mundo que habitam com jargões e axiomas em la-
tim. Este contexto destaca a importância dos textos aqui reunidos. Quase
todos eles foram elaborados por profissionais e/ou estudantes das ciên-
cias jurídicas interessados no mundo habitado pelas pessoas. Por isso a

10 Prefácio
opção pela discussão de políticas públicas em diferentes áreas.
O que o leitor verá nos oito textos selecionados pelas professoras
organizadoras Janaína Machado Sturza e Claudine Rodembusch Rocha
é um esforço genuíno em favor do mundo e de suas urgências. Nesta
perspectiva, não casualmente, o direito aparece como uma ferramenta de
transformação, não como um trajeto tortuoso destinado a legitimar o que
sempre foi.
Independentemente do quanto se conseguiu avançar em cada um
dos temas propostos, deve-se elogiar o que há de distintivo neste projeto
de olhar para os Direitos Humanos e sua complexidade como um desa-
fio prático e como uma ética que nos permite selecionar alternativas ou,
pelo menos, descartar alternativas muito além das referências legais. São
compromissos do tipo, afinal, que poderão reformar a política que temos
e tudo o mais.

Marcos Rolim3

3 Doutor e mestre em Sociologia (UFRGS), especialista em Segurança Pública (Universi-


dade de Oxford - UK), graduado em Jornalismo (UFSM). É professor do Centro Universitá-
rio Metodista (IPA) e membro convidado da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RS.

Prefácio 11
A SAÚDE ENQUANTO DIREITO
HUMANO, FUNDAMENTAL E SOCIAL:
PROTEÇÃO E AFIRMAÇÃO ATRAVÉS
DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Janaína Machado Sturza4


Maria Cristina Schneider Lucion5

4 Doutora em Direito pela Escola Internacional de Doutorado em Direito e Economia Tul-


lio Ascarelli, da Universidade de Roma Tre - Itália. Mestre em Direito pela Universidade
de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas.
Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Professora no Pro-
grama de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Direitos Humanos – UNIJUI e nos
cursos de graduação em Direito da UNIJUÍ e da Faculdade Dom Alberto. E-mail: janaina.
sturza@unijui.edu.br
5 Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noroeste do Estado
do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ. Bolsista da UNIJUÍ. Especialista em Direito Empresarial e
Advocacia Empresarial pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Bacharel em Direito pela
UNIJUÍ. E-mail: mariacris.lucion@hotmail.com.

12 A saúde enquanto direito humano, fundamental e social


Considerações iniciais

Após um período mundial de reconhecimento dos direitos huma-


nos, notadamente após a Segunda Guerra Mundial e com a Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948, o direito à saúde é tido como
um direito humano fundamental e social. A sua elevação a esse status se
deve a um processo histórico de reconhecimento, razão pela qual deve
ser assegurado de maneira universal por meio de políticas públicas de
responsabilidade do Estado.
A fim de fomentar o debate acerca do panorama atual do direito
à saúde no Brasil, em um primeiro momento aborda-se o seu conceito e
valoração enquanto direito humano fundamental e social, de modo que,
para tanto, faz-se uma retrospectiva histórica da afirmação e importância
dos direitos humanos a nível mundial e nacional. Assim, o direito à saúde
apresenta-se como um dever universal imposto ao Estado, de modo que
todas as pessoas devem ter acesso a ele e tê-lo garantido.
Em um segundo momento, trata-se de conceituar e demonstrar a
importância das políticas públicas no processo de transformação social,
como instrumento de efetivação dos direitos sociais, notadamente o di-
reito à saúde. Dessa forma, abordam-se conceitos e demonstra-se a im-
portância deste instrumento, de modo que as políticas públicas se tornam
fundamentais no processo de efetivação do direito à saúde.
Por fim, procura-se fazer uma análise crítica do atual panorama das
políticas públicas voltadas à saúde do Brasil, baseando-se na bibliografia
atinente ao tema e em dados do Ministério da Saúde. Dessa forma, procu-
ra-se demonstrar alguns equívocos do atual modelo de políticas públicas
de saúde no Brasil, procurando-se, acima de tudo, contribuir para o deba-
te e melhoramento do sistema.

A afirmação da saúde enquanto direito humano,


fundamental e social

Imaginar que a humanidade foi capaz, um dia, de determinar que


todos os seres humanos mereciam igual respeito e consideração, inde-
pendentemente de qualquer condição social ou econômica, é reconhecer
um importante passo na afirmação dos direitos humanos. A valoração
dos direitos do homem, pelo simples fato de ser humano e digno de
reconhecimento, é resultado de um longo processo histórico mundial,
independe de diferenças biológicas ou culturais, mas leva em conta uni-
camente a condição existencial do próprio ser.
Notadamente, os direitos humanos conduzem ao entendimento de

Janaína Sturza e Maria Cristina Schneider Lucion 13


que nenhuma etnia, gênero, classe social ou grupo religioso pode ser
considerado superior aos demais, mas que todos são dignos de igual
respeito e consideração. Foi nessa linha que a Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948, o marco histórico dos direitos humanos, de-
terminou em seu art. I que “todas as pessoas nascem livres e iguais em
dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em
relação umas às outras com espírito de fraternidade”.
Não se pode olvidar que os direitos humanos não podem ser vistos
simplesmente como um tema epistemológico, mas assumem também um
caráter ontológico, ético e político. Desse modo, não é possível discutir
os direitos humanos sem voltar-se para a realidade local e aprofundar-se
na constituição própria do ser, além de compreender que nenhuma pes-
soa é completamente ruim, mas todas são merecedoras de igual preser-
vação de sua dignidade e, como se verá a seguir, da saúde.
Adentrando na temática proposta, no Brasil, o direito à saúde é tido
como um direito humano, fundamental e social. Sua essência está intima-
mente ligada ao direito à vida e à dignidade da pessoa humana, valores
advindos do reconhecimento mundial dos direitos humanos, e que atual-
mente estão garantidos pela Constituição Federal de 1988. Neste interim,
salienta-se o fato de que a República Federativa do Brasil tem como um
de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, nos termos do art.
1º, inciso terceiro.
Sendo o direito à saúde um reflexo da valorização da vida e da
dignidade humana, este direito também é considerado como um bem
comum a todos, um direito fundamental social necessário à manutenção
dos direitos humanos. Entretanto, o reconhecimento da eficácia do direi-
to à saúde é um forte argumento colocado em discussão nos dias atuais,
principalmente em relação aos “direitos sociais e as externalidades que
não podem ser internalizadas na avaliação da saúde enquanto bem eco-
nômico” (DALLARI, 1987, p. 15). Assim, acerca dos direitos fundamentais
e sociais, pode-se afirmar que

[...] todos os direitos sociais são fundamentais, tenham sido eles


expressa ou implicitamente positivados, estejam eles sediados
no Título II da CF (dos direitos e garantias fundamentais) ou dis-
persos pelo restante do texto constitucional ou mesmo que es-
tejam (também expressa e/ou implicitamente) localizados nos
tratados internacionais regularmente firmados e incorporados
pelo Brasil” (SARLET, 2007, p. 560).

Tem-se, portanto, que os direitos fundamentais e sociais expres-


sam uma ordem de valor objetivada na e pela Constituição, pois “[...]
como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações po-
sitivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas

14 A saúde enquanto direito humano, fundamental e social


em normas constitucionais, que possibilitem melhores condições de vida
[...]” (SILVA, 2002, p. 276-277).
Por conseguinte, o direito à saúde apresenta-se como prestação
positiva proporcionada pelo Estado, enunciada em normas constitucionais
que possibilitam a proteção deste direito. Logo, os direitos fundamentais,
como fundamento da própria dignidade humana, caracterizam-se como
o ponto culminante de toda a ordem jurídica, embasando a própria
existência do Estado, enquanto ordem em contraposição ao caos de uma
sociedade complexa e contingente. Assim, os

[...] preceitos relativos aos direitos fundamentais não podem ser


pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto
posições jurídicas de que estes são titulares perante o Estado,
designadamente para dele se defenderem, antes valem juridi-
camente também do ponto de vista da comunidade, como va-
lores ou fins que esta se propõe prosseguir, em grande medida
através da ação estadual. Por outro lado, no âmbito de cada um
dos direitos fundamentais, em volta deles ou nas relações entre
eles, os preceitos constitucionais determinam espaços normati-
vos, preenchidos por valores ou interesses humanos afirmados
como bases objetivas de ordenação da vida social (ANDRADE,
2001, p. 111).

Todavia, sob uma fundamentação filosófica dos direitos sociais e


mais ainda sob uma perspectiva dogmático-jurídica de abordagem, os di-
reitos fundamentais sociais, notadamente a saúde, podem ser classifica-
dos tanto em direitos prestacionais (positivos), quanto em direitos defen-
sivos (negativos) (SARLET, 2006). Assim, os direitos fundamentais sociais
são direitos que se consolidam por meio da ação estatal e exigem, do
poder público, prestações materiais, uma vez que “caracterizam-se, ainda
hoje, por outorgarem ao indivíduo direitos a prestações sociais estatais,
como assistência social, saúde, educação, trabalho, etc., revelando uma
transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais
concretas [...]” (SARLET, 2001, p. 51).
Neste sentido, insta mencionar que a elevação do direito à saúde
ao patamar de direito humano, fundamental e social pela Constituição
Federal de 1988 confortou uma inclinação mundial de reconhecimento e
afirmação deste direito. Especialmente após o término da Segunda Guerra
Mundial, com a criação e organização do mundo em organismos inter-
nacionais, a saúde passou a ganhar espaço nas cartas constitucionais
da grande maioria dos países, seja de maneira expressa ou implícita na
positivação de outros direitos fundamentais correlatos.
Neste sentido de reconhecimento internacional do direito à saúde,
deve-se considerar que

Janaína Sturza e Maria Cristina Schneider Lucion 15


A criação da Organização das Nações Unidas – ONU – e a promul-
gação da Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH –
incentivaram a criação de órgãos especiais dedicados à garantia
de alguns direitos humanos essenciais. Entre outras entidades,
criou-se a Organização Mundial de Saúde – OMS -, no preambulo
de cuja Constituição consta que saúde é o “completo bem-estar
físico, mental e social” (FIGUEIREDO, 2007, p. 80).

Ainda que a constitucionalização do direito à saúde seja recente, se


considerada a sua grande relevância social, desde os tempos mais remotos
até os dias atuais, perpassando por sociedades primitivas e mais desenvol-
vidas e tradicionais, destaca-se um grandioso interesse nas discussões e
tratamento da saúde enquanto direito, posto que “[...] la salute costituisce
ormai da tempo uno dei temi più ampiamente discussi dagli studiosi del-
le scienze giuridiche e sociali, trovandosi contemporaneamente sempre al
centro del dibattito istituzionale tra i mutevoli orientamenti politico-ideolo-
gici nei confronti dello stato sociale” (BOMPIANI , 1996, p. 04).
Para conceituar o termo saúde, não se pode furtar, obrigatoriamen-
te, de usar como ponto de partida o Preâmbulo da Constituição da Orga-
nização Mundial da Saúde (OMS), erigido em 26 de julho de 1946, no qual
fica instituído que a “Saúde é o completo bem-estar físico, mental e social
e não apenas a ausência de doenças ou outros agravos”, determinando
que “gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um
dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça,
de religião, de credo político, de condição econômica ou social”, além de
estabelecer que “a saúde de todos os povos é essencial para conseguir a
paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos
e dos Estados”, uma vez que “os resultados conseguidos por cada Estado
na promoção e proteção da saúde são de valor para todos”.
Em uma visão bastante avançada para a sua época de construção, a
OMS expandiu o conceito de saúde historicamente atrelado à prevenção e
principalmente à cura, abarcando, essencialmente, a promoção da saúde.
Todavia, esse conceito usado pela OMS é amplo e, praticamente, inexe-
quível, já que tem um forte componente de idealização e a importância de
associar a saúde à própria defesa da vida em sua plenitude.
No sentido de reconhecimento da fundamentalidade do direito à
saúde, aduz-se que
O direito à saúde é considerado ainda um direito fundamental
do homem. O art. 25 da Declaração Universal dos Direitos do
Homem assim estabelece. E mais, assim considerado, passa a
ser um direito autoaplicável, forte no art. 5º, §1º da Constituição
Federal de 1988. É ainda, o direito à saúde, um direito huma-
no com fulcro na mesma Declaração retrorreferida (SCHWARTZ ,
2003, p. 86-87).

Assim, a saúde pode ser entendida como um valor universal com-


partilhado por todos que defendem a vida e o caráter dual da saúde e se

16 A saúde enquanto direito humano, fundamental e social


manifesta no paradoxo de que tanto ela pode ser vista como um valor
universal, quanto sua realização concreta implica na necessidade de sua
politização, para que, além de uma orientação ético-normativa, ela se
transforme em uma política pública que amplie a democracia e assegure
a universalização do direito à saúde a toda a população.
Com efeito, foi a partir de um processo de reconhecimento, que
perpassou por momentos como a Idade Média e a Revolução Industrial
que, no Brasil, o direito à saúde foi finalmente expresso como direito hu-
mano, fundamental e social prescrito em diversos dispositivos da Consti-
tuição Federal de 1988, dentre os quais o art. 6º, que o eleva a condição
de direito social; o art. 196, que prevê a saúde como um dever do Estado
e direito universal e igualitário na sua promoção, proteção e recuperação;
e no art. 197, que reconhece a relevância pública do direito à saúde e
prevê a obrigação do Estado em regulamentar, fiscalizar e controlar esse
direito. Ademais, uma série de outros artigos constitucionais assegura in-
diretamente o direito à saúde e determinam meios de sua efetivação, em
uma nítida valoração de sua fundamentalidade.
Neste contexto, salienta-se que foi por meio da Constituição Fe-
deral de 1988 que o direito à saúde encontrou sua maior con-
cretização ao nível normativo-constitucional, sendo reconhecido
como um direito social e um direito fundamental de todos. Neste
sentido, quando se fala em direitos fundamentais, oportuno se
faz lembrar que quando diz que não se trata de saber quais e
quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamen-
to, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos,
mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los e para im-
pedir que sejam continuamente violados (BOBBIO, 1992).

Considerando os aspectos já expostos, notoriamente a garantia e


efetividade universal do direito à saúde, nos termos em que estabelece a
carta constitucional brasileira, são objetivos complexos de serem alcança-
dos, conduzindo à lógica conclusão de que, sem dúvidas, o direito à saúde
não pode ser efetivado amplamente sem a intervenção estatal. Isto porque
o direito à saúde está interligado a uma enorme gama de outros direitos
humanos e fundamentais, que dele dependem e sem o qual perdem a sua
efetividade e significado, tais como a dignidade e a vida.
Reconhecendo a complexidade da efetivação do direito à saúde e a
sua posição basilar com relação a um grande número de outros direitos,
afirma-se que

O direito à saúde requer uma máxima otimização, condizente com


o grau de direitos a ele vinculado. Como já referido, se o direito à
saúde é um dos mais completos, sua não efetividade implica for-
çosamente, no esmorecimento de todos os direitos intercambia-
riamente enfeixados em sua imbricação axiológica e dogmática.
Vale dizer, se o direito à saúde restar absorto, inanes estarão o di-
reito à vida, à cidadania, autonomia [...] (SCHWARTZ , 2001, p. 91).

Janaína Sturza e Maria Cristina Schneider Lucion 17


Neste sentido, denota-se que “o conceito jurídico de saúde somen-
te pode ser compreendido numa análise sistemática, extraindo a noção
de saúde como completo bem-estar” (ROCHA, 1999, p.45), o que torna
desafiadora a sua efetivação integral e universal por parte do Estado. Isto
porque, ao se elevar o direito à saúde ao patamar de direito fundamental,
todos os cidadãos brasileiros, indistintamente, têm direito ao amplo aces-
so à saúde, que deve ser garantido pelo Estado.
Por todo o exposto, é possível vislumbrar a trajetória histórica con-
ceituação e reconhecimento do direito à saúde como um direito humano,
fundamental e social, o qual é constitucionalmente assegurado no Brasil
e mundialmente reconhecido, devendo ser assegurado e promovido pelo
Estado. Desta forma, devem ser disponibilizados de maneira universal
meios básicos de sobrevivência, qualidade e manutenção da saúde que
garantam a efetivação de uma vida com dignidade, o que condiciona a
criação de políticas públicas para sua efetivação.

As políticas públicas como instrumento


de efetividade do direito à saúde

A saúde comunga como um predicado essencial à qualidade de vida


do homem e o Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito, fundado
na dignidade da pessoa humana e cujos objetivos incluem a redução das
desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, amparado através
de sua Constituição de 1988, deve também oferecer e garantir o direito
à saúde de forma igualitária para todos os cidadãos e protegendo, por
consequência, o bem maior que é a vida.
No Brasil, portanto, o direito à saúde passou por grandes transfor-
mações e, a despeito de muitos obstáculos, postos por setores sociais
privilegiados e retrógrados, tem havido muitos avanços na luta pelo es-
tabelecimento de melhores condições de vida para todos os brasileiros,
dentre elas a saúde. Nesta área é possível perceber-se o evidente pro-
gresso, podendo-se considerar superada a concepção estreita e indivi-
dualista que limitava a saúde exclusivamente ao oferecimento de servi-
ços médico-hospitalares, dos quais somente os mais ricos teriam acesso,
sendo que aos pobres restaria a precariedade e ainda como um favor do
Estado (CARVALHO; SANTOS, 1995).
Assim, o direito à saúde é o segundo na escala dos direitos sociais,
conforme o art. 6º da Constituição Federal, logo após a educação. Surge
como um direito subjetivo público que não pode ser negado a nenhuma
pessoa, sob pretexto algum, apesar de, na maioria das situações da vida
diária, ele estar sendo constantemente negado. Todavia, este direito se
rege pelos princípios da universalidade e da igualdade de acesso às ações
e serviços respectivos, onde estes são de relevância pública e por isso

18 A saúde enquanto direito humano, fundamental e social


devem ficar inteiramente sujeitos à regulamentação, à fiscalização e ao
controle do Poder Público.
Em razão do caráter de direito humano que tem o direito à saúde,
insta mencionar que o Estado deve garanti-lo de maneira universal a to-
das as pessoas, indistintamente, e que esta garantia ocorra por meio de
políticas públicas. O dever do Estado de promover políticas públicas para
a garantia de direitos humanos, dentre os quais a saúde, está expresso no
art. XXI da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o qual preceitua
que “[...] toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do
seu país”.
Acerca das políticas públicas, vale ressaltar que o Estado Brasileiro,
enquanto seu promotor6, caracterizava-se, até o início dos anos 80, pela
centralização decisória e financeira na esfera federal, cabendo aos Esta-
dos e municípios o papel de executores das políticas formuladas central-
mente. Outra característica importante era a fragmentação institucional,
além do caráter setorial, marcados pela exclusão da sociedade civil no
processo de formulação das políticas, da implementação dos programas
e do controle da ação governamental (FARAH, 2001, p. 6-7).
Nesta relação, cabe destacar um aspecto importante do sistema de
proteção social vigente no país neste mesmo período, que é o modelo
de provisão estatal. Ainda que contingentes expressivos da população
tenham ficado à margem dos programas sociais estatais no Brasil, bus-
cando soluções “autônomas” para seus problemas na área social, ou sim-
plesmente ficando excluídos do acesso a serviços públicos, o paradigma
que inspirou a construção do sistema de proteção social no país foi o
do Estado do Bem-Estar, em que cabe ao Estado a responsabilidade pela
provisão de bens e serviços públicos, frente à insuficiência das respostas
oferecidas pelo mercado e diante da fragilidade da sociedade civil peran-
te os enormes desafios da área da reprodução social (FARAH, 2001, p 09).
No Brasil, o debate sobre a reforma da ação do Estado na área social
ganhou impulso nos anos 80, no âmbito do processo de democratização
do país. A agenda de reforma que então se definiu, inspirando iniciativas
inovadoras por parte de governos estaduais de oposição e se consoli-
dando na Constituição de 1988, teve como eixos a democratização dos
processos decisórios e a equidade dos resultados das políticas públicas,
sendo a democratização vista como condição da equidade dos resultados
(FARAH, 2001, p 10).
Assim, a partir da Constituição Cidadã, as políticas públicas passa-

6 “[...] as políticas públicas atuam de forma complementar, preenchendo os espaços


normativos e concretizando os princípios e regras, com vista a objetivos determinados.
As políticas, diferentemente das leis, não são gerais e abstratas, mas, ao contrário, são
forjadas para a realização de objetivos determinados [...]” BUCCI, Maria Paula Dallari.
Buscando um conceito de políticas públicas para a concretização dos direitos humanos.
Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/textos/politicapublica/mariadallari.
htm. Acesso em: 26 abr. 2014.

Janaína Sturza e Maria Cristina Schneider Lucion 19


ram a ter outra conotação, uma vez que, finalmente, intensificou-se um
movimento mais abrangente de reforma que envolvia iniciativas de todas
as esferas de governo. Intensificaram-se, sobretudo, as iniciativas de go-
vernos municipais, que ampliaram significativamente suas ações no cam-
po das políticas públicas sociais, promovendo ainda programas voltados
ao desenvolvimento local (FARAH, 2001).
Ainda nesta esfera, cabe salientar que a análise das políticas públi-
cas não pode ser feita de forma fragmentada ou isolada da análise mais
geral sobre os rumos do Estado e da sociedade. Por conseguinte, é impor-
tante destacar que:

O Estado revitalizado pressupõe alta capacidade de planejamen-


to por parte dos governantes, planejamento apoiado numa só-
lida compreensão das relações entre a política e as diferentes
dimensões da vida social. A política pode ser entendida dentro
do contexto das regras de um jogo social, com múltiplos atores,
com distintos interesses e múltiplos jogos (político, econômi-
co, da vida cotidiana, pessoal, da comunicação, macro-organi-
zacional, dos valores, das ciências, da natureza). O jogo social
é complexo, conflituoso, indeterminado e sujeito a flutuações e
surpresas. O governo, apoiado nas ferramentas do planejamento
estratégico, está desafiado constantemente a equilibrar os pro-
blemas políticos, os problemas econômicos e os da vida cotidia-
na (SCHMIDT, 2007, p. 35).

Nesta perspectiva, as políticas públicas, por assim dizer, podem ser


vistas também como processo ou conjunto de processos que culmina na
escolha racional e coletiva de prioridades, para a definição dos interesses
públicos reconhecidos pelo direito, no qual a noção de política pública é
válida no esquema conceitual do Estado Social de Direito, que absorve
algumas das figuras criadas com o Estado de Bem-Estar, dando a elas um
novo sentido, agora não mais de intervenção sobre a atividade privada,
mas de diretriz geral, tanto para a ação de indivíduos e organizações,
como do próprio Estado (BUCCI, 2002).
Neste contexto, pode-se ainda considerar as políticas públicas como
programas de ação governamental voltados à concretização de direitos,
notadamente o direito à saúde. Considerando-se hoje a abrangência dos
direitos fundamentais, que em sucessivos pactos internacionais, depois
ratificados e internados nas ordens jurídicas nacionais, vêm sendo am-
pliados a ponto de abranger hoje o direito síntese do desenvolvimento, é
possível deixar de lado a separação dicotômica entre as políticas públicas
das políticas sociais. Para essa definição, mesmo as políticas públicas rela-
cionadas apenas medianamente com a concretização de direitos, também
carregam um componente finalístico que é o de assegurar a plenitude do
gozo na esfera de liberdade a todos e a cada um dos integrantes do povo.
Assim, toda política pública pode ser considerada, nesta perspectiva, ao
mesmo tempo política social (BUCCI, 2006).

20 A saúde enquanto direito humano, fundamental e social


Portanto, neste sentido, as políticas públicas devem ter como obje-
tivo a justiça social de fato, uma vez que derivam de ações governamen-
tais voltadas à concretização de direitos que realmente incluam e que
sejam baseados na fraternidade e no pacto entre iguais.7Assim, inegavel-
mente, as políticas públicas são instrumentos valiosos para a efetividade
do direito à saúde, em especial pelo modo como são capazes de influir no
processo de modificação social e garantia dos direitos humanos.

As políticas públicas de saúde no Brasil:


reflexões sobre o modelo atual

Como visto, as implicações e responsabilidades que o direito à saú-


de impõe ao Poder Público não apresentam uma solução simples. A com-
plexidade do tema requer planejamento da gestão dos recursos estatais,
e as políticas públicas, enquanto instrumento de intervenção estatal, são
essenciais para a efetividade dos direitos humanos e fundamentais, den-
tre os quais o direito à saúde.
Notadamente, políticas públicas de combate a doenças e epidemias
que tenham abrangência universal são essenciais para a garantia do direito
à saúde. Da mesma forma, políticas públicas de promoção do direito à saú-
de também ocupam um lugar de destaque neste contexto, na medida em
que evitam a proliferação de doenças e contribuem para assegurar a qua-
lidade de vida das pessoas. Nesta linha, Sarlet (2007, p. 08) assevera que

o direito à saúde pode ser considerado como constituindo simul-


taneamente direito de defesa, no sentido de impedir ingerências
indevidas por parte do Estado e terceiros na saúde do titular,
bem como - e esta a dimensão mais problemática - impondo ao
Estado a realização de políticas públicas que busquem a efetiva-
ção deste direito para a população, tornando, para, além disso, o
particular credor de prestações materiais que dizem com a saú-
de, tais como atendimento médico e hospitalar, fornecimento de
medicamentos, realização de exames da mais variada natureza,
enfim, toda e qualquer prestação indispensável para a realização
concreta deste direito à saúde.

A transformação do Estado em um fomentador da efetividade dos


direitos humanos e sociais é uma grande evolução social que impõe o
planejamento e execução de políticas públicas que deem eficácia a estes
direitos; no que tange ao direito à saúde, políticas públicas de promoção
são essenciais para o pleno exercício deste direito universal, nos termos
da constituição vigente. Significa dizer que, além do dever de abstenção
– impossibilidade de ingerências indevidas na saúde das pessoas –, o Es-

7 Neste sentido, ver a obra: RESTA, Eligio. Il Diritto fraterno. 3. ed. Bari: Laterza, 2005.

Janaína Sturza e Maria Cristina Schneider Lucion 21


tado também assumiu o papel de promotor deste direito.
A partir desta ótica, a implementação de políticas públicas promo-
cionais para dar efetividade ao direito à saúde é medida que se impõe.
Aliada aos fundamentos já expostos, esta conclusão se depreende da pró-
pria Constituição Federal, que em seu “art. 196 estabelece a saúde preven-
tiva quanto ao que compete à redução do risco de doenças” (SCHWARTZ,
2003, p. 55).
Ocorre que o que se identifica no Brasil são políticas públicas enfra-
quecidas e insuficientes para garantir universalmente o direito à saúde, e
que muitas vezes não correspondem às necessidades de todas as pessoas
e regiões atingidas. Somada a essa realidade, notadamente a medicaliza-
ção da saúde e a valorização das doenças em detrimento do paciente
conduzem à desorganização estatal na gestão dos recursos públicos da
área, fazendo com que se priorize o fornecimento de medicamentos aos
indivíduos, deixando-se lado, para tanto, as políticas públicas promocio-
nais e preventivas.
Com efeito, denota-se, que na realidade brasileira, a valorização de
políticas públicas de acesso a medicamentos e tratamentos médicos é no-
tória, colocando a promoção da saúde e da qualidade de vida nitidamente
em segundo plano, o que acaba por não solucionar o problema de ma-
neira efetiva. Aliás, sob esta ótica, o problema da falta de efetividade do
direito à saúde corre o risco de jamais ser solucionado, eis que o simples
combate a doenças, sem evitar a sua incidência, ocasiona um crescente
mal-estar nos pacientes e um rombo no orçamento público, tornando-se
impossível cobrir todos os gastos de curar sem prevenir.
Criticando a realidade brasileira, Dupas (2006, p. 184) assevera que

O Ministério da Saúde do Brasil, por exemplo, anunciou que vai


mudar a política nacional de atendimento ao câncer para aumen-
tar a capacidade de diagnóstico precoce da doença. Argumenta-
se corretamente que, diagnosticados em fase inicial e tratados
adequadamente, os tumores têm chance maior de cura, em cer-
tos casos podendo superar 90%. Alerta-se que o crescimento da
doença é mundial e que, em 2006, no Brasil deverão surgir 472
mil novos casos. Nenhuma palavra – no entanto – sobre preven-
ção, causas, atitudes para evita-los. A estratégia é localizar o
mais cedo possível e extirpar.

Ainda que comprovadas as vantagens da prevenção e promoção da


saúde, o que remete à veracidade do ditado popular de que “prevenir é
melhor do que remediar”, o que se vislumbra é o investimento insuficien-
te em políticas públicas neste sentido, com nítida preferência estatal à
prestação material de medicamentos e ao atendimento médico. Os moti-
vos pela opção do Estado em “medicalizar” a saúde são inúmeros, e, sem
dúvidas, injustificáveis frente à gravidade do problema.
Certamente que, em um país de dimensões continentais como o
Brasil, dar efetividade ao direito à saúde é uma atitude desafiadora e

22 A saúde enquanto direito humano, fundamental e social


complexa, contudo, o planejamento e a gestão de políticas públicas pro-
mocionais se faz imprescindível para amenizar a triste realidade de gran-
de parte da população que depende deste serviço. Reconhecendo estes
paradigmas, Rios (2012, p. 84) assevera que

Numa sociedade plural e diversa, cumprir a obrigação de propi-


ciar acesso universal igualitário significa, na medida do possível,
considerar a diversidade cultural, social, econômica, geográfica
presente nos indivíduos e grupos destinatários das políticas pú-
blicas de saúde, tornando o sistema de fornecimento de bens e
serviços pertinentes à saúde, capaz de atendê-los. Nessa linha
de pensamento, pode-se falar num direito difuso a um sistema
de saúde que conjugue medidas genéricas e medidas específicas
(que considerem a especificidade de cada grupo) de prevenção
e promoção da saúde, como aponta, por exemplo, a ideia de
redução de danos entre usuários de drogas (BASTOS; MESQUI-
TA; MARQUES, 1998). Outras situações também podem ilustrar
essa realidade, como também demonstram campanhas dirigidas
a profissionais do sexo e homossexuais.

Neste sentido, reconhecer a diversidade cultural do Brasil e investir


na promoção da saúde como forma de reduzir a complexidade do direito
à saúde é fundamental e imprescindível. Contudo, embora a adoção de
uma conduta preventiva eficaz por parte do Estado seja mais eficiente e
menos custosa, o que se vislumbra é o maior investimento e atenção na
cura e atendimento de doenças já instaladas como forma paliativa de as-
segurar o direito à saúde.
A título exemplificativo da problemática ora discutida, em consulta
ao sítio do Ministério da Saúde, na área relativa a “ações e programas”,
encontram-se como ativos vinte e um programas governamentais direcio-
nados à saúde, promovidos pelo Governo Federal e sujeitos à adesão dos
municípios. A efetividade de tais programas, contudo, é duvidosa, ante
a triste realidade do atendimento público e, especialmente, em razão da
necessidade de adesão dos municípios.
Dentre os vinte e um programas do Governo Federal encontrados,
apenas cinco são direcionados à prevenção e promoção da saúde, fato que
retrata a valorização da doença e a desatenção ao paciente e a sua qualida-
de de vida. Atualmente, dentre os programas publicizados pelo Ministério
da Saúde (2012) com maior destaque estão o SAMU, que trata do socorro à
população em casos de urgência – Serviço de Atendimento Móvel de Urgên-
cia e Emergência –, e o Programa Farmácia Popular, criado pelo Ministério
da Saúde para ampliar o acesso da população a medicamentos essenciais,
vendidos a preços mais baixos que os praticados no mercado.
Com efeito, a dinâmica atual do tratamento da saúde no Brasil é de-
safiadora, pois as políticas públicas de medicamentos que prometem saú-
de são muito mais atraentes e sofisticadas do que atitudes preventivas, le-
vando à falsa crença de que consumir medicamentos é condição essencial

Janaína Sturza e Maria Cristina Schneider Lucion 23


da saúde. Ou seja, há uma lógica invertida de valores: significa dizer que é
necessário o abalo da saúde para conduzir ao consumo de medicamentos e
restabelecer a saúde para enfim se chegar à efetividade do direito à saúde,
quando o mais lógico (e correto) seria manter a qualidade de vida e saúde,
impedindo, na medida do possível, qualquer abalo a este direito.
Por todo o exposto, é evidente que as violações ao direito à saúde
e as políticas públicas insuficientes têm impacto direto sobre os direitos
humanos, pois, em sendo negadas condições sanitárias mínimas para a
manutenção da saúde e qualidade de vida, todos os direitos ligados à
saúde estão expostos ao risco. Assim,

A proposta de que a promoção e a proteção dos direitos huma-


nos estão intimamente interconectadas com os desafios de pro-
mover e de proteger a saúde deriva do reconhecimento de que
a perspectiva da saúde e dos direitos humanos é complementar
e convergente para a definição e o crescimento da qualidade de
vida ou do bem-estar humano das populações (JUNGES, 2009, p.
291).

Diante do tema tratado, torna-se latente a necessidade do Poder


Público de rever a sua conduta, notadamente no que diz respeito às polí-
ticas púbicas, ampliar e adotar uma postura mais eficiente de promoção
do direito à saúde, a fim de fortalecer as políticas públicas de saúde, re-
verter o quadro de afirmação da doença e valorizar o indivíduo. Assim,
os direitos humanos e, em especial o direito à saúde, seriam preservados
e valorizados, por meio da manutenção da qualidade de vida e da saúde
de todos os tutelados.

Considerações finais

Em que pese o reconhecimento e a positivação do direito à saúde,


bem como a sua elevação a um direito humano, fundamental e social, o
que se vislumbra é uma grande dificuldade de sua universalização. Muito
se deve a políticas públicas enfraquecidas ou maldirecionadas, o que aca-
ba por, muitas vezes, ferir o direito à saúde.
Com efeito, as políticas públicas são instrumentos estatais impor-
tantes para a afirmação dos direitos humanos e mudança social. No que
diz respeito ao direito à saúde, as políticas públicas são fundamentais
para assegurar o amplo acesso dos tutelados à saúde, seja de maneira
preventiva ou prestativa.
Denota-se, neste sentido, uma fragilidade perigosa no atual modelo
de políticas públicas adotado no Brasil, que prefere, nitidamente, medica-
lizar a promover o direito à saúde, colocando em risco a sua efetividade.

24 A saúde enquanto direito humano, fundamental e social


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Janaína Sturza e Maria Cristina Schneider Lucion 27


DESENVOLVIMENTO URBANO:
POLÍTICAS PÚBLICAS E INCLUSÃO
SOCIAL E O DIREITO À MORADIA

Romi Margô Regert8


Claudine Rodembusch Rocha9

8 Psicóloga, Psicopedagoga, Pedagoga, Pós-Graduada em Pedagogia Empresarial, Es-


pecialista em Deficiência Mental - FADERGS, Mestre em Desenvolvimento Regional e
Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Membro Integrante
dos Conselhos Municipais e Assessora aos grupos de Idosos. margoregert@gmail.com.
9 Advogada, Especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas, Mestre em Direito
pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, área de concentração em Demandas
Sociais e Políticas Públicas de Inclusão Social e Doutoranda em Direito Público pela Uni-
versidade Federal de Burgos/Espanha. Professora no curso de Direito da Universidade
FEEVALE e da Faculdade Dom Alberto. E-mail: claudinerodembusch@yahoo.com.br.

28 Desenvolvimento urbano
Considerações iniciais

O estudo sobre o processo de desenvolvimento urbano convoca a


refletir sobre a trajetória de como o espaço a ser pesquisado foi consti-
tuído, assim, possibilita a compreensão histórica e atual da cidade e do
urbano. O objetivo deste artigo é analisar os loteamentos regularizados
e irregulares e a relação com a exclusão/inclusão social no processo de
desenvolvimento urbano e o direito à moradia. Morar, habitar em um de-
terminado local permite vivenciar, cuidar da família, interagir socialmente
e, o mais importante, a proteção que um abrigo oportuniza ao ser huma-
no para o seu desenvolvimento. O presente artigo expõe os conceitos de
desenvolvimento urbano, exclusão/inclusão social e políticas públicas,
aborda o desenvolvimento urbano e os aspectos econômicos, políticos
e sociais. Oportuno neste trabalho destacar a relação existente entre lo-
teamentos regularizados e irregulares e a exclusão/inclusão social, anali-
sando as matrizes dessa questão imposta pelo desenvolvimento urbano.
Finalizando não se pode furtar-se de ressaltar a tutela jurídica para
garantia da moradia, uma previsão legal que convoca a Administração
Pública e sociedade a repensar ações afirmativas de políticas públicas
habitacionais. Estas devem primar pela inclusão das pessoas com baixa
renda aos bens e serviços que a cidade oferece.
A questão habitacional no Brasil é uma problemática herdada des-
de meados do século XX, quando a atividade industrial representou pa-
pel significativo na economia nacional, bem como fomentou um intenso
processo de urbanização. A década de 30, do século XX, registra o cres-
cimento das indústrias, resultado do incentivo à exportação, principal-
mente da expansão da produção de café, pois a infraestrutura necessária
(ferrovias, portos, energia elétrica) para transportar o produto gerou con-
dições favoráveis para a industrialização. A exportação de café possibili-
tou o acúmulo de capital e esse oportunizou a importação de máquinas,
instalação de indústrias e, consequentemente, expansão da urbanização.
(MENDONÇA, 2004)
A partir da década de 60, o fluxo migratório se intensificou nas
cidades brasileiras em função da expansão das indústrias, que criaram
novos postos de serviços, implicando em melhores empregos e salários,
sendo que a economia de mercado gradativamente deixava de estar cen-
trada exclusivamente na agroexportação. Paralelamente ao crescimento
das indústrias, as cidades se expandiam, tornando-se polos de comér-
cio e serviços, atendendo à demanda da industrialização e fomentando
a economia local. Diante desse vertiginoso processo de urbanização,
não é difícil inferir que a infraestrutura urbana necessária para acolher
essa população nem sempre foi adequada, resultando em loteamentos e
ocupações irregulares. Neste contexto, os inúmeros problemas causados
pela urbanização desordenada resultam em aglomerados habitacionais
sem saneamento básico, com famílias vivendo em habitações precárias

Romi Margô Regert e Claudine Rodembusch Rocha 29


sem acesso aos serviços básicos sociais. Percebe-se diante desse quadro
a necessidade de formulação de políticas públicas capazes de minimizar
os problemas referentes à questão da moradia e do desenvolvimento so-
cial. (MARICATO, 2008)
O quadro de exclusão social delimitando a cidade ilegal (loteamen-
tos irregulares, habitações precárias) e a cidade legal (bairro urbaniza-
dos, regularizados) é resultado de um sistema habitacional obsoleto, sem
previsão de políticas públicas adequadas ao período do desenvolvimento
econômico e social. Portanto, é previsível que a população de baixa renda
busque soluções para moradia no contexto da irregularidade.
Centrando, portanto, o olhar para a questão habitacional, esse
trabalho objetiva uma releitura do desenvolvimento urbano focado nos
loteamentos regularizados e irregulares e a relação com o binômio ex-
clusão-inclusão social num perspectiva econômica, política, social e do
direito a moradia.

Considerações gerais a respeito


do desenvolvimento urbano

Conceituar o desenvolvimento urbano pressupõe anteriormente


compreender o significado do vocábulo desenvolvimento, que no dicio-
nário de língua portuguesa é expresso pelos conceitos de ampliação, pro-
gresso e crescimento.
Essa conceituação tem embasamento na economia, levando a per-
ceber o desenvolvimento pelo viés do capitalismo, do aumento da pro-
dutividade industrial, pela modernização, gerando uma capacidade de
produção, lucros e, consequentemente, crescimento e progresso.

O urbano constitui-se uma categoria da sociedade capitalista, na


medida em que ele é determinado pela dinâmica das forças pro-
dutivas, articuladas com a força de trabalho, consequentemente
com a população e com as questões políticas dentro de uma so-
ciedade historicamente determinada. (SILVA, 1989. p.7).

Desenvolvimento urbano no senso comum é reconhecido pela popu-


lação através da capacidade que as cidades apresentam em absorver a insta-
lação de novas indústrias, incrementando uma cadeia geradora de serviços,
bem como mobilizando o comércio local. Essa visão primária de desen-
volvimento baseada no progresso, na modernidade, não consolida uma
visão mais ampla que inclui uma cidade para todos, em que os indivíduos
participem do desenvolvimento da cidade e se beneficiem com as mudan-
ças. A ideia de desenvolvimento urbano está atrelada à modernidade e a
modernidade a um sistema capitalista, que ultrapassa todas as fronteiras em
busca de inovações, investimentos e lucros. (MORAES, 2006).

30 Desenvolvimento urbano
Os empreendedores representantes deste sistema visam às cidades
capazes de engendrar pela capacidade demonstrada nos atores que mo-
vimentam o urbano, nos bens de produção e na força de trabalho. Esta,
representada pela maioria da população que não tem outra opção a não
ser continuar a vender sua força de trabalho em nome da subsistência,
sem perceber que seu trabalho contribui para o suposto progresso da
cidade. (SILVA, 1989)
O desenvolvimento norteado pelo progresso, globalização, moder-
nidade com tecnologias de ponta e automação mobilizam o urbano, este
alicerçado no poder dos que acessam a cidade e daqueles indivíduos que
ficam à margem da modernidade e dos benefícios que a globalização
insere na cidade. Assim, a modernidade pode ser traduzida pela segrega-
ção que a cada dia exclui o cidadão dos bens comuns.

O desenvolvimento urbano é objetivo fundamental do planeja-


mento e da gestão urbana, deixa-se definir com a ajuda de dois
objetivos derivados: a melhoria da qualidade de vida e o au-
mento da justiça social. O urbano é representado pela cidade
capitalista, constitui o espaço onde se dá a dinâmica produzida
pelo confronto dos sujeitos sociais considerados, sendo a cida-
de percebida como um processo de lutas e conquistas. (SOUZA,
2003, p.61).

A assertiva de Souza (2003) remete aos segmentos econômicos,


políticos e sociais, implicados nas transformações e interações adjacen-
tes ao desenvolvimento socioespacial na cidade, assim desempenham
papéis fundamentais na fomentação, planejamento e controle da dinâmi-
ca exercida pelas forças de produção e divisão do trabalho expressas no
urbano.
À política, por sua vez, representada pela governabilidade, a nível
nacional, estadual e federal, compete formular políticas públicas em par-
ceria com a sociedade civil organizada, assim, gestores públicos, ONGs
(organizações não governamentais), associações comunitárias e institui-
ções privadas são responsáveis por estratégias que vislumbrem melho-
rias na qualidade de vida das pessoas. (REIS, 2008). Para tanto, uma
política habitacional promotora da qualidade de vida deve estar voltada
para a garantia dos direitos como: a cidade para todos, a moradia digna
e a terra para todos, o saneamento ambiental, a mobilidade e transporte
público e o trânsito seguro, a função social da cidade e da propriedade,
gestão democrática e controle social e redução das desigualdades.
O avanço da participação popular, através do exercício da cidada-
nia, é caminho na busca de melhores condições de vida, é competên-
cia governamental formular políticas públicas capazes de promoverem
o desenvolvimento econômico, político e social da população, visando à
inclusão de grande parte desta população aos benefícios que uma cidade
planejada oferece.

Romi Margô Regert e Claudine Rodembusch Rocha 31


A política pública é uma ação de governo que envolve planejamen-
to, objetivos, metas, decisões e avaliação das políticas públicas efetivadas
em parceria com a sociedade civil organizada. O planejamento das políticas
públicas traz em seu bojo algumas diretrizes como, por exemplo: por que
fazer, a quem vai beneficiar, que diferença faz, com a efetivação das ações
implantadas, implica a participação dos atores envolvidos na dinâmica da
cidade, do mercado econômico, da população e do governo. (PEREIRA, 2008)
Destaca-se que a atuação e conquista dos movimentos sociais em
prol da regulação do uso do solo urbano foram demandadas pelas Con-
ferências das Cidades, espaço de participação popular para sugestões
de políticas públicas que contemplem o urbano pela diversidade que ele
imprime na cidade. A cidade revela-se pela multiplicidade dos fatores
que traduz as diferenças sociais no espaço urbano, observa-se uma mi-
noria que reside em bairros com infraestrutura completa, em condomí-
nios fechados com segurança, grades e alta tecnologia de proteção nas
residências. Enquanto os menos favorecidos, a população de baixa renda,
necessita participar de Conferências e movimentos sociais para resgatar
a dignidade através do direito à moradia. (RAMOS, 2002)
Conforme a Constituição Federal 1988, os arts. 5º e 6º preconizam
os direitos à propriedade e à moradia, entretanto, a grande maioria da
população está alijada deste direito. Estado e gestores públicos têm um
árduo caminho para solucionar esta demanda social, visto o aumento de
ocupações irregulares e precariedades habitacionais.
No recorte do segmento social estão assentados os atravessamen-
tos políticos e econômicos, estes inseridos nas funções urbanas que estão
representadas pela indústria, comércio ou cultura da cidade constituída,
de maneira que impulsionam as interações e mudanças sociais, intera-
gem com poder da sociedade refletindo nas construções do cotidiano das
pessoas na sociedade, da qualidade de vida e da justiça social.
Contemplar no planejamento do desenvolvimento urbano linhas
norteadoras para qualidade de vida e a justiça social requer integração
dos segmentos político, econômico e social, diretrizes essas já incluí-
das na Constituição Federal de 1988. Neste sentido é inviável dissociar
as consequências das articulações econômicas e políticas em relação ao
segmento social, pois é através dele que se percebem as fragilidades do
desenvolvimento urbano não planejado.

O desenvolvimento urbano deve compor mais preocupações


com o todo, com o meio ambiente, com as pessoas, com o bem
estar social, mais ações educativas e culturais, direcionar pro-
postas as diversidades que as regiões e os locais apresentam.
Não pode haver desenvolvimento sustentável enquanto o objeto
deste se reportar apenas para as questões econômicas ligadas
ao setor industrial e a obtenção da lucratividade que permanece
centrada nas mãos de uma parcela mínima que usufrui das be-
nesses. (BERNARD, 2003. p. 31)

32 Desenvolvimento urbano
Das consequências mais graves da falta do planejamento estratégi-
co para o espaço social, ressalta-se o uso indevido dos recursos naturais,
do crescimento populacional desordenado, da carência dos serviços bási-
cos, da população excluída marginalizada pela falta de justiça social. O
planejamento estratégico de uma cidade ou região pressupõe que todos
os atores participem da construção da cidade melhor, da avaliação, clare-
za e rigor na implantação de novos projetos, definições concretas sobre
as consequências advindas das transformações em relação à qualidade
de vida da população local. (OLIVEIRA, 2006).
Planejar uma cidade melhor para todos é debruçar-se sobre as difi-
culdades e possibilidades que o local apresenta e quais recursos disponí-
veis, as potencialidades que trarão desenvolvimento para o local e seus
moradores, desta forma promover o desenvolvimento da cidade signifi-
ca avaliar em que proporções o planejamento das ações vai impactar a
qualidade de vida das pessoas e o ambiente como um todo. As altera-
ções no urbano oriundas de inovações, modernizações para fomento na
economia local causam impactos na maioria imprevistos anteriormente
no planejamento para o desenvolvimento local. Portanto, é primordial a
interlocução com a dinâmica da cidade, tendo em vista o consenso entre
as partes e garantindo uma cidade melhor para todos.

Exclusão/inclusão social

Uma cidade para todos implica que a população tenha acesso, no


mínimo, aos serviços básicos proporcionados pelo governo. A infraes-
trutura básica: água, energia elétrica, recolhimento de lixo, transporte,
segurança, saúde e educação são pré-requisitos no combate à exclusão
social. Reportando-se ao passado, o termo exclusão não constava no co-
tidiano dos pensadores, as diferenças sociais apareciam na desigualdade,
que é classificada por Rousseau (2007) em: desigualdade natural, política
e econômica.
A desigualdade natural era representada pela raça, sexo, idade e
saúde, já a desigualdade política e econômica revelava-se pela participa-
ção ou não da população na vida política e pela posse ou não de bens,
reforçando o poder do indivíduo. (ROUSSEAU, 2007)
Para Karl Marx, a desigualdade estava relacionada à forma de par-
ticipação do sujeito no processo produtivo, na divisão social do trabalho,
representado pelos proprietários dos bens de produção e por trabalhado-
res detentores da força de trabalho. Max Weber atribui a desigualdade
social ao resultado das interações das estruturas de poder existente em
cada sociedade, representadas pela sociedade civil organizada, governo e
ao mercado. (MARTINS, 1991). O mercado representado pela produção
de bens e divisão social do trabalho produz mais desigualdades sociais,
o proprietário concentra mais renda e o trabalhador continua vendendo

Romi Margô Regert e Claudine Rodembusch Rocha 33


sua força de trabalho a baixos salários.
No histórico da exclusão percebe-se que a desigualdade natural
entre os indivíduos incorpora mais uma forma de desigualdade, essa re-
presentada pelo novo mercado, um mercado capitalista que concentra
rendas e cria classes sociais diferenciadas pela distribuição de renda.
A segregação dos indivíduos da sociedade ocorre na medida em
que estes não possuem alternativas de escolhas, nem lhes é permitido
participar da sociedade em que vivem. A exclusão advinda das dimen-
sões da economia de mercado, da política, da cultura, do social se mani-
festa nas representações da modernidade contextualizada pelos padrões
de consumo, de comportamento, dos avanços ocorridos sem a preocupa-
ção com a estrutura econômica e social. A contemporaneidade apresen-
ta um redimensionamento dos excluídos, neste diapasão encontram-se
os sem-terra, os sem-moradia, os sem-educação, os sem-emprego, entre
outras faltas que marginalizam o sujeito do seu status quo de direitos
constitucionais. (SEN, 2000).
A Constituição Federal de 1988, capítulo II dispõe no art. 6º os
direitos sociais ao cidadão, é previsto: direito à educação, à saúde, ao tra-
balho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção
à maternidade e à infância, e à assistência aos desamparados. Contudo,
a elaboração de leis para manter a ordem e o bem social, para proteção
ao indivíduo e à coletividade, ainda não constitui força suficiente para
romper com o fenômeno da exclusão social.
Vive-se em tempos modernos, com tecnologia e acesso à internet,
que permitem a união de fronteiras em tempo real, o mundo se globali-
zou, as distâncias diminuíram entre os homens através dos avanços cien-
tíficos, mas as desigualdades sociais aumentaram.

Políticas públicas -
loteamentos regularizados e irregulares

A palavra política é derivada de polis de origem grega, que signi-


fica cidade ou estado. A política tem seu desdobramento nas decisões
voltadas a um grupo, a uma sociedade, onde a relação de poder é exer-
cida por um grupo sobre outro grupo, o que remete à esfera do público
e seus problemas. Ou seja, diz respeito ao plano das questões coletivas,
da polis. A política pública expressa as decisões a serem tomadas para
problemas específicos detectados no desenvolvimento econômico e so-
cial de um país para o qual o governo e seus atores buscam soluções. É
uma proposta de governo que envolve planejamento, objetivos, metas,
decisões e avaliação das ações públicas efetivadas em parceria com a so-
ciedade civil organizada.

34 Desenvolvimento urbano
O planejamento das políticas públicas tem em seu bojo diretrizes
como: por que fazer, a quem vai beneficiar que diferença faz. Ou seja,
implica a participação dos atores envolvidos na dinâmica da sociedade,
as políticas públicas e seus atores buscam soluções para a gravidade das
disparidades regionais demonstradas pelos baixos indicadores sociais
nas áreas da saúde, da educação, do saneamento básico e da habitação,
os quais aprofundam a exclusão social vivenciada por significativa par-
cela da sociedade. Hochmann (2007) define política pública como um
campo do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes ques-
tões públicas, como um conjunto de ações do governo que irão produzir
efeitos específicos.

Políticas públicas significam, portanto, ação coletiva que tem


por função concretizar direitos sociais demandados pela socie-
dade e previstos nas leis. Ou em outros termos, os direitos
declarados e garantidos nas leis só têm aplicabilidade por meio
de políticas públicas correspondentes, as quais por sua vez se
operacionalizam mediante os programas, projetos e serviços.
Por conseguinte não tem sentido falar em desarticulação entre
direito e política se nos guiamos por esta perspectiva (PEREIRA,
2008, p. 223).

Com a verdadeira participação da maioria da população, as decisões


compartilhadas entre a Administração Pública e a sociedade se tornarão
mais efetivas, transparentes e justas, em um espaço onde se construirá
a cidadania, logo, isso resultará em políticas públicas mais eficientes,
concretizando desta forma a inclusão social, que surge a partir dessa
“capacidade de articulação entre os interesses públicos e privados, cujas
bases filosóficas e operacionais precisam ser pensadas e executadas (...)”
(LEAL, 2006, p. 56).
Neste sentido, por exemplo, pode-se dizer que todo brasileiro, no
exercício de sua cidadania, tem o direito de influir sobre as decisões do
governo. Mas também se pode aplicar isso ao conjunto dos brasileiros,
dizendo-se que a cidadania brasileira exige que seja respeitado seu di-
reito de influir nas decisões do governo e nesse caso se entende que a
exigência não é de um cidadão, mas do conjunto de cidadãos (DALLARI,
2009). Os processos políticos, que envolvem disputas políticas, toma-
das de decisões, força das coalizões políticas e interesses de grupos,
formatam as ações das políticas públicas. Estas são orquestradas pelas
diretrizes da política econômica (nos ajustes fiscais, impostos), política
monetária (taxas, juros, taxa de câmbio, inflação) e políticas sociais, que
abrangem as áreas da saúde, educação, assistência social e habitação.
(HOCHMANN, 2007)
Segundo a Constituição Federal de 1988:

Romi Margô Regert e Claudine Rodembusch Rocha 35


Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo
poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em
lei tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das fun-
ções sociais das cidades e garantir o bem estar dos seus habi-
tantes.

Com a Constituição de 1988, implantaram-se processos importan-


tes no país. Entre esses processos destacam-se a reforma do Estado e a
descentralização administrativa, fator decisivo que possibilitou aos Es-
tados e municípios elaborarem suas políticas públicas, planejando com
iniciativa própria, definindo entre outros, seus projetos habitacionais, em
parceria com diferentes níveis de governo.
A história do urbano, da cidade se faz pelas transformações sociais
exercidas pelas dinâmicas que os segmentos da sociedade registram nas
suas relações, sendo o meio ambiente fonte para extração dos bens mate-
riais. Pode-se elaborar uma lista interminável de bens materiais ao prazer
de qualquer pessoa, mas certamente um bem não vai faltar nesta lista: ou
seja, a moradia, um bem material sonhado por qualquer cidadão.
Na busca de direito à moradia, parte significativa da população en-
contra na informalidade um espaço para morar, consequentemente, pre-
cisa submeter-se a um mercado imobiliário irregular, em que a segurança
da posse não é garantida. Contextualizando a ilegalidade habitacional, a
moradia assume tipologias como: favelas, cortiços, loteamentos irregu-
lares, ocupações em áreas de risco, ocupações em áreas institucionais,
sendo essas improvisadas como condições de moradia para as famílias
de baixa renda.
A cidade, por sua vez, é caracterizada por uma expansão desorde-
nada, por ocupação em áreas de preservação, causando danos aos recur-
sos naturais e ao meio ambiente. Os loteamentos regularizados consti-
tuem a cidade legal, com as licenças de liberação dos lotes regularizados,
atendem às leis de urbanização e de preservação do meio ambiente. Em
contraposição, os loteamentos irregulares constituem a cidade ilegal,
sem a infraestrutura necessária, negando às famílias participarem da ur-
banização.
Neste contexto, o poder público é agente indispensável na regula-
ção urbana, no ordenamento e controle do uso do solo, na perspectiva
da ação para o direito à cidade legal, ao acesso aos serviços públicos
que atenuem a exclusão social. Neste sentido, reorganizar os espaços
precários através dos loteamentos urbanizados é uma forma de inclusão
social, garantindo à população um espaço para morar. Está-se longe de
vencer a problemática da habitação, pois as disparidades da distribuição
de renda entre os indivíduos são enormes. Resta aos excluídos dessa es-
trutura habitacional, imposta há muito tempo, resolver a situação de mo-
radia através das ocupações ilegais, em áreas de preservação ambiental,
praças institucionais ou áreas privadas. Urge que as formulações de polí-

36 Desenvolvimento urbano
ticas públicas repensem suas propostas voltadas à cidade, ao município,
à preservação do meio ambiente, à solução para o deficit habitacional, à
saúde, à educação, ao emprego e renda, na perspectiva de uma cidade
inclusivista.
As cidades cresceram desordenadamente pela quantidade de pes-
soas motivadas pela expansão da industrialização; a grande maioria da
população buscava beneficiar-se da infraestrutura da urbanidade. As
transformações do urbano foram motivadas pela concorrência imposta
às cidades pelo livre-mercado que exigiu um caráter de empreendedoris-
mo no modo de produção. As empresas geraram postos de trabalho que
atraíram um número expressivo de pessoas para a cidade; o excedente
desta mão de obra teve consequências drásticas para a sociedade: - a
oferta de mão de obra em abundância permitiu ao empresário o livre-ar-
bítrio sobre o valor do salário a ser pago, contratações de trabalhadores
sem a observação das leis trabalhistas. Sem perspectivas de adquirir a
casa própria, os alijados pelo sistema econômico encontram nas ocupa-
ções ilegais, em áreas institucionais, de preservação e áreas privadas, as
alternativas para moradia. Essas ocupações se consolidaram em vilas,
em loteamentos irregulares, formando a cidade ilegal. Essa configura-
ção de cidade que se mostra sem saneamento básico e longe dos bens
e serviços: escolas, postos de saúde, transporte entre outros. Logo, “as
relações capitalistas de produção são como é conhecido, de exploração:
o trabalhador não se apropria do produto do seu trabalho e o salário que
recebe é de valor menor que o produzido pelo seu trabalho” (SINGER,
1980, p. 42).
Os segmentos político e econômico têm papéis fundamentais na
fomentação, planejamento e controle da dinâmica exercida pelas forças
de produção e divisão do trabalho expressas no urbano. Debruçar-se so-
bre uma formulação de políticas públicas voltadas para questões urbanas
pressupõe um conjunto de estratégias que perpassem pela qualificação
da equipe de especialistas da área, bem como de outras áreas sociais
implicadas no processo urbano da cidade. Os recursos alocados, o diag-
nóstico, a avaliação e a manutenção da proposta são importantes para
implantação do planejamento para melhoria da cidade.

Das consequências mais graves da falta do planejamento es-


tratégico para o espaço social, ressaltamos o uso indevido dos
recursos naturais, o crescimento populacional desordenado, a
carência dos serviços básicos e a população que se torna excluí-
da, marginalizada pela falta de justiça social. No viés político e
econômico o “O urbano é representado pela cidade capitalista,
constitui o espaço onde se dá a dinâmica produzida pelo con-
fronto dos sujeitos sociais considerados, sendo a cidade percebi-
da como um processo de lutas e conquistas” (SILVA, 1989, p. 10).

Promover o desenvolvimento urbano significa avaliar em que pro-

Romi Margô Regert e Claudine Rodembusch Rocha 37


porções o planejamento das ações vai impactar a qualidade de vida das
pessoas e o ambiente como um todo. As alterações no urbano, advindas
de inovações, modernizações para fomento na economia local, causam
impactos, estes muitas vezes negativos e imprevistos anteriormente no
planejamento para o desenvolvimento local. É necessário realizar os estu-
dos: Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Estudo de Impacto de Vizinhan-
ça (EIV), pois são medidas que condicionam para obtenção de licenças e
autorizações de construção, ampliação ou funcionamento de empreen-
dimentos e atividades privadas ou públicas em área urbana. Pensar a
cidade para todos é pensar no desenvolvimento econômico que auxilie
no combate à exclusão social, oportunize qualidade de vida. Ou seja, é
através de moradia digna, saúde, saneamento, educação, transporte, mo-
bilidade, segurança, entre outras necessidades, que o sujeito pertence à
cidade. É na redução das desigualdades sociais que se alcançará menos
segregação social.
A inclusão social, numa dimensão ampliada, pode ser conceituada
como possibilidades de acesso aos bens públicos pelas pessoas que não
possuem renda suficiente que lhes permita outras escolhas, assim, permi-
te a integração dos indivíduos no exercício da cidadania, na participação
coletiva, na mobilização para construção de espaços sociais saudáveis.

Moradia legal – um direito de poucos


A casa própria mesmo quando se trata de um simples embrião
de alvenaria sem revestimento, é motivo de segurança e sensa-
ção de progresso pessoal para o trabalhador (MARICATO, 1987,
p. 26).

No Brasil, convive-se com um deficit habitacional de aproximada-


mente oito milhões de domicílios, com habitações subnormais e aglome-
rações habitacionais precárias se expandindo pelas periferias das cidades
brasileiras. (IBGE, 2010). O acúmulo deste deficit é consequência da for-
ma como a política habitacional dos governos tem sido conduzida, com
ações paliativas e sempre relegada nas agendas políticas. Toda a pessoa
tem o direito a uma habitação que lhe ofereça segurança, ventilação, ilu-
minação adequada, infraestrutura satisfatória e acesso aos serviços ur-
banos, como: transporte, esgotamento sanitário, energia elétrica, entre
outros. Leis para garantir o acesso à moradia digna não faltam.
A Constituição Federal de 1988 inova nas questões de direito à mo-
radia, prevê normativa quanto ao reordenamento da questão urbana e em
seus arts. 182 a 192 estabelece diretrizes gerais da política urbana, da
função social da terra e dá outras providências. Assim, dispõe sobre os
objetivos para o desenvolvimento urbano das funções sociais da cidade
e garantias do bem-estar dos habitantes. Entretanto, colocar a legislação

38 Desenvolvimento urbano
em prática tem sido um constante desafio ao bem comum.

Do ponto de vista do Estado Democrático de Direito, a promoção


da dignidade humana esta estritamente ao problema do desen-
volvimento de condições para um ambiente urbano sustentado,
diversos, pluralista, que consinta, por presença inteligente do
Poder Público na vida comum, a gestão democrática da coisa
comum. (BITTAR, 2011 p. 266)

As Leis são importantes para consolidar os direitos sociais e instru-


mentalizar o poder público e a população nas suas reivindicações. Neste
sentido, o Estatuto da Cidade potencializa com força jurídica o Estado,
municípios e sociedade, desta forma, garantindo o reordenamento nas
questões de democratização do uso do solo e moradia, principalmente
à luz dos princípios de direitos humanos previstos na Carta Magna, para
equacionarem o fenômeno da exclusão social.
O Estatuto da Cidade – Lei 10.257 de 2001 é uma conquista de
mais de dez anos junto às lideranças políticas e preconiza o direito à
coletividade, à gestão democrática da cidade, aos planejamentos para
cidade, ao plano diretor da cidade, aos instrumentos da política urbana
no combate à especulação das terras, aos instrumentos para melhorar a
distribuição dos benefícios e dos processos de urbanização, aos instru-
mentos de regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por
população de baixa renda.
Os Municípios através dos seus planos diretores reorganizam no-
vos espaços da cidade amparados no Estatuto da Cidade – Lei 10.257,
que objetiva o acompanhamento e controle da função social da cidade, da
propriedade. Desta forma o Estatuto da Cidade objetiva regular a questão
do uso do solo, reconhece que a cidade é um espaço para benefício de
todos e não direcionada a uma minoria que se utiliza da valorização das
terras para concentração de renda, em detrimento do bem-estar da popu-
lação de baixa renda.

Considerações Finais

O desenvolvimento urbano e as implicações deste na cidade devem


ser balizados por uma Administração Pública com diretrizes voltadas aos
interesses de seus habitantes. Neste sentido, urge o planejamento de
políticas públicas habitacionais para atenuar as desigualdades sociais,
permitindo que mais pessoas acessem a moradia digna, regularizada. A
habitação legalizada traz benefícios à saúde física e psíquica, pois além
do saneamento básico e da infraestrutura, oportuniza ao indivíduo um
sentimento de pertencimento ao local, da garantia de um endereço resi-
dencial, de sentir-se incluso na comunidade.
O Estatuto da Cidade – Lei 10.257 de 2001 é um instrumento jurídico

Romi Margô Regert e Claudine Rodembusch Rocha 39


que traz avanços para tratar das questões pertinentes ao desenvolvimento
urbano, aliado às políticas públicas, possibilita programas e ações inibido-
ras da exclusão social. Cabe à gestão pública, em parceria com a socieda-
de, a elaboração de políticas públicas habitacionais capazes de avaliar o
desenvolvimento urbano alinhavado com o bem-estar dos cidadãos.
Reduzir as disparidades sociais no tocante às questões habitacio-
nais é tarefa árdua para Administração Pública, no entanto, só com auxí-
lio desta, grande parte da população poderá adquirir ou regularizar sua
moradia. Para tanto, é preciso uma releitura do significado do desenvol-
vimento urbano e econômico de um país, de uma região ou cidade. En-
tende-se que uma cidade economicamente desenvolvida deva acolher a
todos seus cidadãos, permitir o acesso à moradia, à educação, à saúde,
à segurança, entre outros direitos. Não basta uma cidade onde poucos
usufruem deste espaço dinâmico, onde as relações acontecem, a vida se
manifesta.
Neste diapasão, a Constituição Cidadã e o Estatuto da Cidade, são
linhas norteadoras e anteparo jurídico para que Estado, municípios e so-
ciedade planejem políticas afirmativas de inclusão social em todas as
áreas, possibilitando uma cidade para todos.

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Romi Margô Regert e Claudine Rodembusch Rocha 43


A NECESSIDADE DE AÇÕES
AFIRMATIVAS NO CAMPO DAS
CIDADES COMO EFETIVAÇÃO DAS
GARANTIAS E DIREITOS
FUNDAMENTAIS

Rafael Minussi10

10 Doutorando em Qualidade Ambiental na Universidade FEEVALE; Mestre em Qualidade


Ambiental na Universidade FEEVALE. Professor na Universidade FEEVALE. Advogado.
Consultor.

A necessidade de ações afirmativas no campo das cidades como efetivação


44 das garantias e direitos fundamentais
Considerações iniciais

As cidades brasileiras e no mundo vêm crescendo a cada dia. Re-


centemente, o planeta contabilizou sete bilhões de habitantes e se verifi-
ca a preocupação com os riscos oriundos da superpopulação e da possí-
vel necessidade de água e alimento a toda população mundial. É inerente
à sociedade pós-moderna em que se vive a preocupação com o risco e o
aglomerado das pessoas em grandes cidades.
O cerne da presente discussão é que, mesmo com uma superpopu-
lação e o seu aglomerado em grandes cidades ou regiões metropolitanas,
os seres humanos como um todo e, em especial nos países democráticos,
prevalecem buscando ações afirmativas para a efetivação dos direitos da
primeira a quarta gerações, desde as liberdades ao meio ambiente equili-
brado e à tecnologia acessível a todos.
Contextos e paradoxos criados por esta nova sociedade onde se
vive, tornam impossível não se considerar a análise dos espaços deno-
minados de cidades, cada vez mais expandidos e muitas das vezes sem
organização ou recursos mínimos de sobrevivência. Não se pode descon-
siderar as catástrofes e tragédias decorrentes desse crescimento que, há
algumas décadas, sequer eram imagináveis.
Diante de uma análise histórica e filosófica sobre as cidades, acredi-
ta-se que as mesmas tiveram suas noções criadas na antiga Grécia, como
um espaço para debates e discussões sociais e políticas. O paradoxo des-
ta análise é que parece o esquecimento completo das discussões sobre
o crescimento e evolução das próprias cidades. Parece que nas cidades
passou-se a discutir a política e a economia, a busca pelos direitos míni-
mos, mas não se discutiu a própria cidade.
É com base nesse paradoxo que o presente artigo apresenta
como hipótese primária a total ausência de discussão histórica e pla-
nejamento sobre as cidades. Estende-se como hipóteses secundárias
que as cidades perderam a sua essência deixando de ser um lugar para
discussões e debates, mas tornando-se um aglomerado de pessoas
com a total ausência das verdadeiras raízes sociais para o espaço de-
nominado de cidade.
O objetivo central do presente trabalho é verificar se nas cidades
brasileiras existem ações afirmativas dos direitos fundamentais exaradas
em sua própria Constituição Federal. Em se constatando a existências
destas ações afirmativas o trabalho busca analisar se elas estão de acordo
com as reais necessidades da sociedade de risco e, se de alguma forma
são capazes de efetivar os direitos inerentes ao ser humano.
É nesse aspecto que o primeiro ponto do trabalho, que se vê a seguir,
vislumbra uma análise sobre a sociedade de risco na pós-modernidade,
atribuindo uma discussão sobre a sociedade atual e a necessidade de efe-
tivação dos direitos inerentes à pessoa.

Rafael Minussi 45
A sociedade de risco na pós-modernidade

O liberalismo político ou do Estado de direito tem seu ponto de


partida no fato de que o indivíduo e a condição individual da sua própria
vida devem ser defendidos das intervenções feitas pelo poder estatal. A
diferenciação entre esfera privada e esfera pública determina o “itinerá-
rio para a interpretação decisiva da liberdade”: “a liberdade de arbítrio
das pessoas jurídicas privadas garantida por via legal circunscreve o
espaço de preservação para uma condição consciente da vida, orientada
por cada uma das concepções próprias do que seja bem” (HABERMAS,
2002, p.118). Assim, em Habermas, direitos são liberties, algo como
capas protetoras para a autonomia privada. Tal entendimento conduz
o autor a inferir que “cabe à autonomia pública dos cidadãos do Esta-
do que participam da práxis autolegislativa da coletividade possibili-
tar a autodeterminação pessoal das pessoas em particular” (HABERMAS,
2002, p. 119). Para Habermas, a relação complementar entre o público
e o privado não reflete dado algum, ela apenas é criada conceitualmente
pela estrutura do ambiente jurídico. Razão pela qual é tarefa do pro-
cesso democrático definir sempre de novo e, desde o início, os limites
precários entre o público e o privado.
O cerne da questão está no fato de que o liberalismo, atrelado ao
desenvolvimento científico e tecnológico têm gerado um quadro de au-
mento exponencial aos riscos sociais vividos pela sociedade atual. A
modernidade incorporou a noção de emancipação e tecnologia. O que
se verifica como primeiro paradigma da modernidade foi o avanço do
Estado, sua saída e retirada da pré-modernidade e do Estado sacro, que
buscava a salvação em Deus e em rituais religiosos. A criação da noção de
individualidade aparece nos ideários da Revolução Francesa, bem como
a proteção dos direitos fundamentais básicos e essenciais a todo ser hu-
mano. O segundo paradigma, denominado modernidade, surge com o
avanço e a revolução tecnológica e se apresenta com grande impacto na
Segunda Revolução Industrial, ganhando força por volta de 1900, com as
escolas técnicas alemãs e o desenvolvimento desenfreado da emancipa-
ção. (SHINN, 2008).
Uma das características da modernidade foi o desenvolvimento
a qualquer custo, ou melhor, sem uma reflexão sobre as consequên-
cias do desenvolvimento ao meio ambiente e à coletividade. A pós-
modernidade, pela necessidade de dar respostas ao desenvolvimento
desenfreado e a degradação ambiental, recebeu o fardo de estudar os
custos que a modernidade trouxe, dentre eles destacam-se as doenças,
os problemas ambientais, os contextos sociais, entre outros. O preço
mostrou-se alto demais e tomou-se consciência do excesso de riscos
que a sociedade passara a correr em nome da modernidade (FRIDMAN,
1999).

A necessidade de ações afirmativas no campo das cidades como efetivação


46 das garantias e direitos fundamentais
A sociedade pós-moderna se depara com o império do risco. Tudo
se apresenta como uma forma de risco, o que leva a sociedade a ter uma
sensação de quase total ausência de segurança. Antes só a pequena in-
dústria produzia, o operário manuseava individualmente seus utensílios
e realizava integralmente o serviço de produção. Seus utensílios eram
inofensivos. Até mesmo as viagens mais longas e consideráveis eram se-
guras porque feitas a pé ou em carros que não representavam risco. Dito
de outro modo, o homem se sentia seguro.
A humanidade não imaginou ser herdeira de uma gama de riscos
tão grande como a despertada pela modernidade. O homem emancipou-
se tanto que parece não possuir mais Estado, ou melhor, o Estado parece
não possuir meios de garantir-lhe a segurança. O avanço da tecno-
logia da informação, biotecnologia, engenharia genética são exemplos
que caracterizam esse momento da humanidade. Na pós-modernidade
o ser humano tem ferramentas disponíveis e sem fronteiras para, como
exemplo, planejar atos criminosos pela internet. Outro exemplo a citar
refere-se à própria busca pelo desenvolvimento patrimonial que acaba
acarretando sérias divergências no modo organizacional da sociedade
(ZULIANI, 2006).
Ulrich Beck (2007) constrói sua Teoria da Sociedade de Risco, res-
saltando que a sociedade pós-industrial está intimamente vinculada à so-
ciedade de risco mundial. Para ele, a sociedade de risco mundial deve
“antecipar las catástrofes autoprovocadas y evitar tener que tratar con
inseguridades fabricadas”. Os novos tipos de riscos, “que provocan la
anticipación global de catástrofes globales, suceden los cimientos de las
sociedades modernas” (BECK, 2007, p. 80-86). O propósito de Beck é
romper com o “nacionalismo metodológico” e substituí-lo por “un marco
normativo obtenido de la dinámica de la sociedad del riesgo mundial”.
O que Ulrich Beck destaca é que a sociedade moderna, a partir do
efeito que ele denomina de modernidade, conseguiu realizar a ampliação
desordenada dos riscos oriundos da produção de riquezas, tecnologia e
desenvolvimento econômico. Isso, entretanto, para o autor não ficou res-
trito apenas nessa esfera, mas passou a retornar aos seus próprios gera-
dores. Os riscos e perigos das atividades desenvolvidas na modernidade
afetam todas as pessoas, plantas e animais indistintamente, e apresenta
como principal causa a modernização resultante do progresso industrial
e o desenvolvimento tecnológico.
De fato, a sociedade atual vive um estado de gerenciamento de ris-
cos, restando instaurado um quadro de severa paralisação diante dos no-
vos paradigmas sociais. De outra banda, a Constituição Federal de 1988
pelo seu art. 225 buscou assegurar um meio ambiente ecologicamente
equilibrado às presentes e futuras gerações.
Em tal sentido, Carvalho pontua que:

Rafael Minussi 47
O surgimento da Sociedade de Risco emana, face à invisibi-
lidade, à globalidade e à irreversibilidade de seus riscos, a
atribuição de profunda relevância aos interesses das futuras
gerações e sua tutela. Assim, os direitos à vida, ao usufruto
da propriedade e à saúde, em suas condições pessoais e am-
bientais, devem ser assegurados não apenas às gerações pre-
sentes (como direitos personalíssimos intergeracionais), mas
também às futuras gerações de pessoas humanas (direitos
personalíssimos intergeracionais). Esta equação exige que os
direitos personalíssimos das gerações atuais sejam usufruídos
de forma compatível com as necessidades das futuras gera-
ções (CARVALHO, 2008. P. 13).

O fato é que reconhecidamente a sociedade tornou-se uma socie-


dade de riscos. Os atos praticados pelos seres humanos envolvem riscos,
cada vez maiores, em sua grande maioria desconhecidos por aqueles que
os praticam e, em sede ambiental, a sua recuperação é em muitos casos
improvável.
Vê-se instaurada a sociedade de risco, onde os seres humanos não
dispõem de condições para definir com exatidão os riscos enfrentados,
nem mesmo as suas consequências. Resta caracterizado que o Estado
não possui recursos para excluir ou até mesmo minimizar os riscos
enfrentados pela sociedade atual.
A preocupação vai ao nível das cidades, principalmente dos gran-
des centros urbanos onde a maior parcela da população está localizada
e problemas são vistos sem soluções aparentes. É neste aspecto que as
cidades e a forma de vida dos seres humanos passa a ser repensado,
exigindo uma leitura acerca do surgimento das cidades e de sua análise
filosófica, o que se faz no item seguinte.

O surgimento das cidades e uma análise filosófica

Sócrates é reconhecido como sendo o fundador da filosofia moral11.


Apesar de não ter deixado nenhuma obra escrita, o que se conservou ao
longo dos anos foram as lembranças das conversações com seus com-
panheiros, mas, principalmente a impressão profunda que deixou pelo
seu exemplo de vida. Platão12 foi um dos companheiros de Sócrates que

11 Importante registrar as palavras de John Rawls à filosofia moral: “A filosofia moral


sempre foi o exercício exclusivo da razão livre e disciplinada. Ela não se baseou na re-
ligião, e muito menos na revelação; a religião cívica não a guiava, nem rivalizava com
ela. O foco dessa filosofia moral era a ideia do bem supremo enquanto ideal atraente,
enquanto busca razoável da verdadeira felicidade, e ela tratou de uma questão que a
religião cívica deixou, em grande parte sem resposta”. In RAWLS, John. O Liberalismo
Político. Trad. Dinah de Abreu Azevedo. 2ª e. São Paulo: Ática, 2000. p. 3.
12 Platão em várias obras relatou a tese socrática, como forma de preservar a memória
de seu companheiro Sócrates. Entre estas obras, estão: Criton, Apologia de Sócrates;
República, Protágoras, Hípias Menor, Górgias e outros.

A necessidade de ações afirmativas no campo das cidades como efetivação


48 das garantias e direitos fundamentais
trouxe a público seus ensinamentos sobre o viver socrático que pode ser
resumido numa observação minuciosa e atenta sobre a vida que se vive,
que deve estar em harmonia consigo mesmo e, que os atos estejam de
acordo com as afirmações e sob a autoridade do pensamento uno (WOLFF,
Volume 2. p. 617). Sócrates colocou o sujeito como o responsável pelos
seus atos morais, não através de discursos, mas necessariamente através
de seus atos.
Sócrates influenciou a concepção do conceito de cidade apoiado na
ideia do ser humano como um sujeito universal. Uma cidade, para Sócra-
tes, nasce quando o ser humano se dá conta de que não é autossuficiente
e que precisa de outros seres humanos e de outras coisas para ter uma
vida plena. Na análise de Veloso (2003), Sócrates deu o nome de cidade “a
essa convivência (sunoikía) de muitos carentes. Daí resulta que na cidade
haja diversas ocupações e que cada um, por assim dizer, se especialize
em uma delas” (VELOSO, 2003). A constituição de uma cidade nasce da
necessidade de convivência e de que é impossível um ser humano bastar-
se por si só. Uma outra imagem, ainda para permanecer na forma como
Sócrates pensa a cidade, é tecida por Veloso. O autor resume que para
Sócrates:

Inicialmente, a cidade parece constituída por poucos ofícios,


mas logo se entende que devem ser muitos. O agricultor, por
exemplo, não pode produzir os instrumentos de que necessita
para cultivar a terra. E sendo quase impossível que a cidade não
precise importar coisa alguma, fazem-se necessários mercado-
res também (tanto os varejistas quanto os viajantes), bem como
marinheiros, assalariados etc. Chega-se, assim, a uma cidade
acabada ou perfeita. (VELOSO, 2003).

O conteúdo das conversações de Sócrates é transcrito em forma de


diálogos por um de seus mais fervorosos discípulos: Platão. Platão nas-
ceu em Atenas em 428 a.C. Com a morte de Sócrates, escreve os diálogos
platônicos habitados pela personalidade de Sócrates. Na obra Apologia de
Sócrates, no diálogo 39 a-b, encontra-se uma frase que mostra como Pla-
tão absorve o dizer de Sócrates: “Prestem atenção nisso, juízes. O difícil
não é evitar a morte, mas evitar fazer o mal. O mal, vejam os senhores,
chega até nós mais depressa que a morte”.
O vivenciar da vida cultural na Grécia refletia nas suas obras, que
permeavam entre filosofia e política. Platão assume como compromisso
de vida transmitir os ensinamentos de Sócrates e esse compromisso de
vida vai influenciar Platão a desenvolver uma teoria do que é uma cida-
de ideal. A dimensão que o autor dá para a Cidade-Estado reflete sua
vinculação política e impunha como condição a solidariedade entre seus
habitantes, o que no entender de Platão, facilitaria à “polis o desenvol-
vimento de uma fisionomia particular, inconfundível, que era o orgulho
e patrimônio comum dos cidadãos”. Polis além de ser a expressão geo-

Rafael Minussi 49
gráfica comum de determinados cidadãos, representava, antes de tudo,
“uma expressão política, que designava tanto o lugar da cidade quanto a
população submetida à mesma soberania”. Talvez, neste entendimento
de Platão, seja possível encontrar a razão do mesmo pensar a “si mesmo
antes de tudo como um cidadão ou como um animal político” (PESSA-
NHA, 1983, p. VII).
François Ost (2005) questiona: Como Platão imagina a sua Cida-
de ideal? Ost diz que, para Platão, a expressão de cidade ideal é Mag-
netes que cultiva o “encantamento do direito”. E este direito encantado
“alterna Prelúdios e leis propriamente ditas – os Prelúdios combinando,
eles próprios o gênero lírico e o gênero dialético”. Essa versão ofereci-
da por Ost baseia-se no fato de que os gregos ao fazerem um amplo
uso da música, “os Prelúdios ‘dão o tom’ à vida social: são uma inicia-
ção aos ‘princípios’ da vida comum, recordando os divinos preceitos
que inspiram as leis”. Ost, ao trazer a beleza da música para mostrar
como Platão entende a cidade, também faz um alerta ao instigar que
“não vejamos nisso apenas uma ornamentação retórica; esses Prelú-
dios são direito quintessenciado – um direito que fala diretamente ao
coração ao fazer derivar o nomus humano do espírito (nous) divino”
(OST, 2005, p. 11-12).
Essa cidade utópica já não habitava mais no coração de Platão.
Com a morte de seu grande mestre Sócrates, aprofunda-se o desen-
canto de Platão com a cidade ideal. Afasta-se dos ideais de Sócrates
ao frequentar centros pitagóricos de pesquisa científica. Caminha em
outra direção e passa a buscar a certeza científica que só a matemática
lhe oferece.
Já nos seus escritos mais tardios, se percebe uma ruptura de Platão
com o pensamento socrático, principalmente após ele frequentar cen-
tros pitagóricos de pesquisa científica. Pessanha (1983), ao introduzir as
obras de Platão, percebe que este momento foi decisivo e significou a
ruptura com “ser” socrático, pois “Platão via na matemática a promessa
de um caminho que ultrapassaria as aporias socráticas – as perguntas
que Sócrates fazia, mas afinal deixava sem resposta – e conduziria à cer-
teza. A educação deveria em última instância, basear-se em uma episte-
me (ciência) e ultrapassar o plano instável da opinião (doxa)” (PESSANHA,
1983, p. XII).
Como Platão, a humanidade também se afasta da beleza do di-
reito e ao longo dos séculos constrói novos paradigmas assentados na
certeza científica e na verdade da norma. O ser humano esqueceu do
seu “ser” em favor do “ente” e o mesmo se dá com o conceito de cida-
de. O Direito passa a codificar a convivência na cidade e apodera-se
do espaço da coparticipação em nome da segurança jurídica. E, ao se
esquecer do significado de cidade, o ser humano, também esquece o
real significado de sua relação com a natureza, passando a dominá-la
e a ter atitudes de extremo egocentrismo em relação à natureza. Para

A necessidade de ações afirmativas no campo das cidades como efetivação


50 das garantias e direitos fundamentais
o espaço considerado “cidade” esse afastamento é uma tragédia. Os
resultados estão aí, não é mais possível mascará-los, a degradação do
meio ambiente e das cidades são a grande angústia do ser humano
neste início de século.
Como consequência, o início do Século XXI traz um grande
desafio ao ser humano: o desafio da urbanização e do viver em grandes
metrópoles. O poder público municipal e os urbanistas propuseram
e organizaram a compartimentação das funções de morar. Toda uma
cadeia de interesses econômicos, políticos e sociais desvirtuava o
sentido de cidade. A problemática dos Direitos Fundamentais do Homem
afloraram nessa nova estrutura territorial que inflama as cidades. O
cidadão é desapossado de sua própria representação. O mercado e a
política ignoraram nos últimos séculos que o crescimento urbano a
qualquer custo chegaria a um colapso e, que as questões ambientais
seriam impiedosas no momento em que aflorassem. O espaço público
de lazer, reserva ambiental, ruas e parques foram privatizados. De-
turpada e modificada, a essência da “cidade” se perdeu de um lado na
construção de arranha-céus, prédios elitizados e inteligentes, condo-
mínios fechados e, por outro lado, prédios insalubres, guetos urbanos
de extrema pobreza, invasão de áreas de risco, espaços esquecidos,
pavilhões sem alma, depósitos tristes de seres humanos.
A discussão da cidade como produtora de risco ambiental é re-
cente. Entre os macroprocessos e microprocessos econômicos e os in-
teresses e direitos individuais, os problemas ambientais da sociedade
urbana pós-industrial impõem, efetivamente, um debate global. Quais
são os custos frente à degradação do meio ambiente produzidos pelas
cidades? Quais são os efeitos perversos do crescimento desordenado
e de alto risco? Quais são as prioridades dos órgãos públicos munici-
pais? Quais os espaços de participação do cidadão para cuidar de sua
cidade? Como limitar o poder discricionário do Poder Executivo em
atos que colocam em risco ambiental o espaço da cidade? Como se
dá a participação do cidadão na construção do Plano Diretor? Não é
demais referenciar que essas questões estão longe de integrarem as
agendas prioritárias dos municípios.
Body-Gendrot (2003) dirá que essas questões são significativas,
conforme a maneira pela qual a cidade se pensa e segundo seu projeto.
Salienta ainda, que a estagnação do pensamento sobre a cidade é o mo-
tivo principal da crise urbana. Cada vez é mais árdua a solidariedade dos
membros da cidade. A intenção de agir não ultrapassa os níveis de de-
sejo. Em outro momento, Body-Gendrot alerta que há uma grande tensão
presente na cidade, entre diligências singulares, concorrentes, desejosas
de proteger interesses historicamente adquiridos, espaços de negociação
privilegiados, acessos fáceis ao poder e entre o “ideal de cidadãos solidá-
rios, respeitosos e iguais em seus direitos, que inscreve-se sobre o solo
da cidade” (BODY-GENDROT, 2003, p. 225).

Rafael Minussi 51
A cidade configura-se no espaço por excelência para a realização
dos Direitos. Todo cidadão que vive nas cidades tem direito de ter condi-
ções dignas de vida, “de exercitar plenamente a cidadania, de ampliar os
direitos fundamentais (individuais, econômicos, sociais, políticos e am-
bientais), de participar da gestão da cidade, de viver num meio ambiente
ecologicamente equilibrado e sustentável” (SAULE JUNIOR, 2001, p.23).
A cidade possui funções sociais, dentre as quais, a função de uma
moradia digna, trabalho, lazer, prática de cidadania, convivência, cultura,
circulação, entre outros. Além da função social, a cidade tem uma impor-
tante função ambiental, visto que seus administradores e cidadãos têm
o dever de garantir às presentes e futuras gerações um meio ambiente
equilibrado, sadia qualidade de vida, responsável utilização e racionali-
dade no uso e ocupação do solo, ações preventivas em relação à poluição
do ar, água e solo.
Por fim, não é demais dizer que o direito à cidade sustentável tem
despertado inúmeros debates e a exigência de uma postura mais pró-a-
tiva dos administradores públicos na elaboração de políticas públicas.
Na sequência, a intenção é apontar a preocupação dos constituintes
e legisladores na propositura de leis que de alguma forma refletem a
discussão sobre as cidades.

Os dados estatísticos do Brasil sobre


os investimentos realizados nas cidades

É fato que as cidades vêm se desenvolvendo diariamente, de uma


forma ou de outra. Não há garantias nem mesmo certeza de que as cidades
vêm se desenvolvendo de forma sustentável. O fato é que durante anos o
crescimento das cidades se voltou para o crescimento econômico.
Buscou-se por muitos anos desenvolver a economia, partindo de
uma falsa premissa de que o mais importante é a geração da renda. É
inegável que o assentamento habitacional das populações de baixa renda
representam grande parte dos problemas ambientais das cidades, como
descreve Marta Dora Grostein (2001):

No Município de São Paulo, 19,80% da população mora em fave-


las, na beira de córregos, encostas íngremes, margens de ave-
nidas e sob viadutos. No início dos anos 70, esse índice era de
apenas 1%, comparação expressiva que confirma a redução de
alternativas de acesso à moradia para as populações de baixa
renda. O agravamento da informalidade nas décadas recentes
pode ser avaliado tanto pela diminuição da oferta de loteamen-
tos legais quanto pelo seu contraponto: a oferta crescente de
loteamentos irregulares e clandestinos na área de proteção aos
mananciais. Entre 1988 e 1994, foram implantados 19,64 mi-
lhões de m2 e 100 mil lotes nessa região, sendo que em 1987

A necessidade de ações afirmativas no campo das cidades como efetivação


52 das garantias e direitos fundamentais
a população favelada já ultrapassava 120 mil pessoas, que ocu-
pavam principalmente as áreas livres de loteamentos populares
(Ipea/Infurb, 1998:89-91). Entre 1980 e 1995, a população na
área protegida da Bacia do Guarapiranga praticamente dobrou,
passando de 336.935 habitantes ¾ inicialmente concentrados
na região sul do Município de São Paulo (69,9%) ¾ para 622.489
habitantes, com redução do índice mencionado (67,4%), o que
confirma o espraiamento da ocupação ilegal para outros municí-
pios da bacia, como Itapecerica da Serra, Embu e Embu-Guaçu,
que também dobraram de população no período mencionado
(CNEC, 1997) (GROSTEIN, 2001).

O que evidencia por hora é um crescimento desordenado causado


pela falta de observância no aspecto habitação. A história ensina, por
outro lado, a não focar a cidade sob um único aspecto, pois se agora se
exagerar nos investimentos em habitação, pode-se caminhar no mesmo
equívoco e desconsiderar-se outros fatores essenciais às cidades.
O IBGE tem anualmente organizado a pesquisa Munic, com o ob-
jetivo de verificar a estrutura dos municípios brasileiros e o seu desen-
volvimento. A pesquisa Munic 2009 (BRASIL, 2009), mais recente até a
elaboração deste trabalho, abordou em especial um item relacionado à
existência de um Plano Municipal de Habitação, constatando que no Brasil
apenas 18,8% dos municípios possuem um plano municipal de habita-
ção e 30,4% estão elaborando este plano. O restante, supostamente, não
tem e não está elaborando. Para a Região Sul 20,4% dos municípios já
possuem um plano municipal de habitação e 35,5% estão elaborando este
plano. Visualizam-se estes dados no gráfico a seguir:

Gráfico 1: Percentual de Municípios com Plano Municipal de Habitação

Rafael Minussi 53
A pesquisa demonstra que apenas 10,41% dos municípios brasilei-
ros possuem legislação e plano para a regularização fundiária no intuito
de reorganizar a política e o uso do solo urbano, a fim de atender a sua
função social. Os dados estatísticos divulgados pelo IBGE revelam a quase
total inexistência de políticas públicas para o uso do solo e para a regu-
larização fundiária.
Há que se retomar, assim, a crítica de Marta Dora Grostein. A
autora descreve que a “cidade informal” é apresentada como a solução
para o assentamento de pessoas de baixa renda, apresentando como
consequência basilar os problemas socioambientais que causam im-
pactos ao ambiente com riscos significativos. A origem dos problemas
ambientais urbanos deve ser diferenciada para se evitar o escamotea-
mento de problemas e responsabilidades e mesmo a generalização de
soluções.
Duas situações se destacam: os problemas resultantes de opções
de obras e projetos realizados pelo poder público para estruturar o
funcionamento das cidades; e as questões associadas às estratégias
de sobrevivência das populações com menos recursos nas cidades.
No primeiro caso, a falta de uma política de desenvolvimento urbano
-ambiental é evidente e acarreta disfunções no crescimento urbano:
permite expansões desnecessárias da malha urbana de acordo com o
interesse dos diferentes mercados imobiliários (o formal e o informal);
dissocia expansão urbana da oferta de transporte público; e possibilita
construção aleatória e por vezes inadequada de sistema viário, ocu-
pando fundos de vale e impermeabilizando áreas de várzea. A expan-
são urbana sem transporte público metropolitano de massa eficiente
é um caminho explosivo do ponto de vista da qualidade de vida nas
metrópoles e aglomerações urbanas, assim como a impermeabilização
descontrolada do solo com pavimentação, sem projetos de macrodre-
nagem. Por outro lado, a degradação ambiental associada às estraté-
gias de sobrevivência das populações de menores recursos nas cida-
des tem origem nas condições socioeconômicas e na falta de opções
de moradias acessíveis no mercado formal, conforme mencionado an-
teriormente, implicando a formulação de políticas sociais de inclusão
urbana (GROSTEIN, 2001).
No que se refere à participação da sociedade, a pesquisa embasa
que o Brasil possui 5.565 municípios com conselhos municipais de polí-
tica urbana. Destes municípios, 776 são consultivos, 683 deliberativos,
297 normativos e 425 fiscalizadores13. Destes conselhos, apenas 701 ha-
viam realizado reuniões nos últimos doze meses (BRASIL, 2009).
Verifica-se, portanto, que estatisticamente os municípios não pos-
suem uma política efetiva para consolidar os direitos básicos aos cida-
dãos. Como já se depreende da leitura deste artigo, a maior dificuldade

13 Outras categorias não foram incluídas.

A necessidade de ações afirmativas no campo das cidades como efetivação


54 das garantias e direitos fundamentais
não está na consolidação dos direitos elementares aos seres humanos,
mas no Estado encontrar meios de efetivar tais direitos.

Considerações finais

O presente trabalho visa apenas conceituar aspectos práticos da


sociedade de risco e vislumbrar se de fato há ou não políticas públicas
a fim de assegurarem direitos elementares aos seres humanos. A hipóte-
se primária deste trabalho se confirma, as cidades, inicialmente criadas
como campo de debates e discussões políticas e filosóficas caiu num
grande paradoxo, não discutiu e nem projetou o seu próprio crescimento
e desenvolvimento.
A hipótese secundária do presente trabalho também se confirma,
uma vez que a participação da sociedade está cada vez menor na admi-
nistração pública dos municípios. A pesquisa realizada pelo IBGE demons-
tra que poucos municípios brasileiros possuem conselho participativo, e
a maioria destes conselhos se limita apenas à função de conselho consul-
tivo e uma grande parte não se reúne há mais de doze meses.
São necessárias medidas afirmativas nas esferas municipais com
o intuito de retomar a participação pública, um marco social oriundo da
própria criação e natureza das sociedades. Em seguida, é preciso retomar
as noções estratégicas para a organização e crescimento das cidades, a
partir de políticas públicas que definam espaços territoriais específicos,
voltados para todas as áreas essenciais e inerentes à vida em sociedade,
independente das classes sociais interessadas.
Resta, portanto, cumprido o objetivo principal do presente traba-
lho, uma vez que se verificou a existência de ações afirmativas por parte
do Estado, verificando-se também que estas ações se voltam mais para
os fatores econômicos das cidades e menos para os fatores sociais, como
habitação, o que se coaduna com a falta de um programa municipal de
habitação nos municípios brasileiros.

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A necessidade de ações afirmativas no campo das cidades como efetivação


56 das garantias e direitos fundamentais
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Rafael Minussi 57
DIREITOS FUNDAMENTAIS,
DIREITO DOS CONFLITOS ARMADOS
E A REGIONALIZAÇÃO DA POLÍTICA
DE DEFESA BRASILEIRA

Márcio Azevedo Guimarães14

14 O autor é advogado, doutor em Política Internacional e mestre em Relações Interna-


cionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi coordenador do curso de
bacharelado em Relações Internacionais da Faculdade Anglo-Americano de Caxias do Sul
e é pesquisador associado do ISAPE- Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia e
exerce docência em ensino superior na Faculdade de Direito do Centro de Ensino Supe-
rior Dom Alberto, em Santa Cruz do Sul.

Direitos fundamentais, direito dos conflitos armados e a


58 regionalização da política de defesa brasileira
Considerações iniciais

O presente artigo propõe uma reflexão que contemple dois grandes
campos de estudo das ciências humanas – as políticas públicas relativas
aos direitos fundamentais e o direito internacional dos conflitos armados
- a partir da junção das duas temáticas na análise que o presente texto faz
a respeito do papel que os direitos humanos desempenham a partir dos
princípios da soberania e da cidadania para a política de defesa brasileira.
Políticas públicas, em um sentido original, são todas aquelas que
correspondem a um dever do Estado-Administração (Poder Executivo) em
atender às demandas do conjunto da sua população em um Estado de
Direito, bem como são tidas como compreendidas dentre as funções es-
senciais de um poder público.
Assim, as políticas públicas clássicas ou tradicionais buscam pro-
ver saúde, educação, segurança e infraestrutura (estradas, comunicações
e transportes) a fim de atender às necessidades essenciais do cidadão.
Estas são demandas de um povo em relação aos seus respectivos
governos e que correspondem aos direitos individuais garantidos em
todo o ordenamento jurídico dos Estados contemporâneos. Isto significa
afirmar que os direitos fundamentais da pessoa humana devem ser con-
templados pelos regimes jurídico-constitucionais dos países membros
das Nações Unidas15.
Dessa forma, direitos fundamentais como o direito à vida, à liber-
dade, à igualdade, ao acesso ao Poder Judiciário, dentre outros, que es-
tão previstos no art. 5º da Constituição Federal Brasileira correspondem
às obrigações do Estado brasileiro para com os seus cidadãos, tanto em
suas atribuições constitucionalmente dos poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário, quanto em termos das competências constitucionais do Esta-
do-Administração em suas esferas federal, estadual e municipal.
Neste contexto jurídico acima apresentado, levando-se em conta
que um Estado legítimo perante a ordem constitucional deve ter por regi-
me político a democracia, todo Estado-nação deve cumprir suas obriga-
ções constitucionais perante o cidadão mediante a prestação de políticas
públicas que garantam o pleno exercício de seus direitos fundamentais,
os quais são os mais relevantes da Carta Magna.
Não se pense, todavia, que a exigência constitucional de que o Es-
tado deve observar o estrito cumprimento dos direitos fundamentais se
exaure na ordem jurídica interna das nações. Desde o término da Segunda
Guerra Mundial, em 1945, emergiu na ordem internacional um conjunto
de tratados internacionais tornando os direitos e garantias fundamentais
um objeto de proteção do direito internacional com o objetivo de garantir

15 Nações Unidas: Mais conhecida por ONU – Organização das Nações Unidas – criada
por tratado internacional na cidade norte-americana de São Francisco, em 1945 e que
atualmente congrega duas centenas de Estados-membros.

Márcio Azevedo Guimarães 59


um tratamento digno a toda pessoa humana, independentemente de sua
nacionalidade.
Neste contexto, cabe uma importante indagação: os mecanismos
políticos e jurídicos existentes no direito internacional são plenamente
capazes de, por si sós, garantir a efetividade do sistema protetivo inter-
nacional dos direitos humanos de populações e cidadãos em face da or-
dem anárquica e da brutal disparidade de poder entre as nações?
Uma análise multicausal, que congregue as perspectivas jurídica e
política das relações entre os Estados no sistema internacional pode ser
a chave para a busca de respostas críveis, para compreender a razão da
insuficiência dos atuais mecanismos jurídicos internacionais de garantia
da ordem e estabilidade internacionais.

Direito internacional e conflitos armados:


origens e desenvolvimento

As origens e o desenvolvimento do direito internacional estão indis-
soluvelmente ligados ao surgimento do estado territorial contemporâneo,
tal qual se consagrou a partir do século XVI e não pode ser compreendido
separadamente do desenvolvimento, por um lado, da força militar e, por
outro, da formação do modo capitalista de produção na economia.
Assim, o advento do Estado moderno irá desenvolver exércitos
profissionais, nos séculos XVII e XVIII, a fim de garantir a segurança e a
unidade territorial estatal. Neste contexto, emergem tanto as relações
internacionais quanto o direito internacional, pautados pelos conflitos en-
tre potências europeias nos marcos do nascimento do sistema mundial
capitalista, em sua fase mercantilista, ao longo dos séculos XVI e XVII e,
mais tarde, a partir do século XIX, consolida-se com a sua fase industrial
capitalista.
Neste cenário histórico, a primeira tentativa de se regular as con-
dições dos Estados recorrerem ao conflito armado, uma vez cessadas as
possibilidades de negociação entre os governos, foi feita após a Guerra
dos Trinta Anos (1618-1648), na Europa, com a elaboração de um con-
junto de tratados internacionais de paz entre as nações beligerantes eu-
ropeias, consagradas na Paz de Vestfália, de 1648, a qual assinala o nas-
cimento do direito internacional e, de igual modo, o sistema estatal de
relações internacionais baseado no equilíbrio de poder que a partir de
então passaria a caracterizar o sistema internacional até os dias atuais.
Mais tarde, no contexto das rivalidades imperialistas europeias e
do desenvolvimento da indústria bélica nos marcos da Segunda Revo-
lução Industrial, emergem as bases do que mais tarde seria conhecido
como direitos humanos dos conflitos armados.
Como resultado da tentativa de regrar de forma mais estável o ba-

Direitos fundamentais, direito dos conflitos armados e a


60 regionalização da política de defesa brasileira
lanço de poder entre as nações mais importantes do sistema internacio-
nal16, um conjunto de regras atinentes à sorte dos combatentes militares
passa a ser positivado, num contexto maior de codificação do direito na
Europa, Estados Unidos e América Latina.
Dentro deste marco jurídico, as convenções de Haia, ocorridas nos
anos de 1899 e 1907, consubstanciaram-se na positivação dos princípios
e garantias debatidos nas duas conferências políticas sobre o desarma-
mento entre as nações europeias, em especial, a França e a Alemanha,
como resultado do conflito militar entre as duas nações, ocorrido no ano
de 187017, podem ser consideradas como um antecessor histórico do
regime jurídico de proteção dos direitos humanos inaugurados com as
convenções de Genebra, de 1949 e, mais tarde, com a criação do Tribunal
Penal Internacional, em 2002.
Ao tempo da codificação do direito dos conflitos armados, tal qual
definido em Haia, foi regulamentada a necessidade de criação de mecanis-
mos de prevenção de conflitos, almejando, com isso, a criação de regras
jurídicas internacionais com o objetivo de regulamentar o comportamen-
to das potências europeias rivais dentro da lógica do avanço do capitalis-
mo financeiro-industrial que produzira o fenômeno do imperialismo.
Assim, emergia nas relações internacionais uma competição in-
terimperialista significando que as nações da Europa buscavam obter a
hegemonia no continente, além da obtenção de expansão de suas ativi-
dades comerciais e políticas internacionais, ocasionando as disputas por
mercados consumidores e controles territoriais nos continentes africano
e asiático.
Como resultado dessa competição interimperialista, a resolução de
disputas não excluía o recurso à força. Pelo contrário, o uso do poder
militar era necessário a fim de garantir a sobrevivência e a maximização
de poder entre as unidades. A razão disso esteve na erosão do sistema
da Santa Aliança, criado após as guerras napoleônicas a partir de 1815,
e que manteve, sob a hegemonia britânica, a estabilidade e o equilíbrio
de poder entre as potências como Rússia, Áustria, Prússia e França, no
continente europeu.
Entretanto, a partir de 1870, o surgimento da chamada Segunda
Revolução Industrial18, caracterizada pela tecnologia da eletricidade, do

16 Eram as chamadas grandes potências, com enorme diferencial econômico, tecnológi-


co, militar e populacional e que se mantêm até os dias atuais: na época em questão,
entre 1870 e 1914 (às vésperas do primeiro conflito mundial) eram o Reino Unido, a
Alemanha, a França, os Estados Unidos, o Império Russo, o Japão e o Império Austro-
Húngaro.
17 Trata-se da Guerra Franco-Prussiana que levou à vitória do exército germânico sobre
o francês e conduziu ao processo final da criação do Império Alemão ou II Reich.
18 A Primeira Revolução Industrial iniciou-se com a industrialização britânica a partir de
1780 e se baseou nas tecnologias da navegação a vapor, bem como e no surgimento das
primeiras fábricas, que inovaram com o surgimento de máquinas que operavam sem o
uso de força humana ou animal.

Márcio Azevedo Guimarães 61


aço, da linha de montagem fordista e da oligopolização entre capital fi-
nanceiro e industrial, dando origem às empresas transnacionais e à mo-
derna indústria armamentista, com sérios reflexos sobre o crescimento
das mortes de civis em conflitos militares e na disseminação das novas
tecnologias militares, com o surgimento da chamada guerra industrial.
Neste contexto, com o advento do século XX e a desestabilização
internacional provocada pela Primeira Guerra Mundial (1914-18) na Euro-
pa, o direito internacional sofreu um grande descrédito no campo das re-
lações diplomático-militares até que um novo conflito, de maior impacto,
a Segunda Guerra (1939-1945), provocasse uma mudança drástica nas
relações internacionais e, com isso, colocasse a questão dos direitos fun-
damentais como um tema do direito internacional, a partir da criação das
Nações Unidas em 1945 e da Declaração Universal dos Direitos Humanos
em 1948, sob os auspícios da Assembleia Geral da ONU.
O direito internacional, assim, relaciona-se com o fenômeno da
guerra em sua busca pela limitação do recurso à ação armada e de suas
condições de legitimidade e encontra-se hoje inserida no sistema jurídico
internacional representado por tratados e convenções. Dentre estas, des-
tacam-se as convenções de Genebra, em face da realidade da insegurança
internacional e a utilização dos direitos humanos como um tema relevan-
te da agenda internacional.
Desta forma, em razão dos conflitos europeus como a guerra fran-
co-prussiana, a Primeira Guerra Mundial (1914-18) e a Segunda Guerra
Mundial (39-45), o direito internacional contemporâneo passou a desen-
volver um regime jurídico que se convencionou chamar de direito hu-
manitário ou direito internacional dos conflitos armados.
Com efeito, a decisão política para a criação de tratados regrando
as condições de combate pelas nações com maior poder econômico e
militar buscou normatizar o comportamento de suas forças militares em
cenários de batalhas, com o fito de garantir que os exércitos não ficariam
exauridos de um novo tipo de conflito de caráter industrial que surgia. A
razão para isso residia (e reside ainda) em que a garantia de manutenção
de poder entre as principais potências do sistema internacional repousa
na força das armas e em sua relação sistêmica com a economia propor-
cionada pela indústria armamentista.
Em razão disso, a busca por convenções que assegurassem uma
forma humanitária de tratamento de civis e prisioneiros de guerra, que
deveriam ter seus direitos humanos protegidos contra a prática de cri-
mes de guerra deveu-se muito à relação entre a grande mortandade de
populações civis e a consagração do recrutamento do soldado-cidadão,
fatores importantes de legitimidade dos governantes chefes de Estado
que necessitavam contar com o apoio das massas eleitorais em um Esta-
do Democrático de Direito.
Assim, a partir do término da Segunda Guerra emerge um regime
internacional de segurança, tendo como eixo central a ONU, mediante a

Direitos fundamentais, direito dos conflitos armados e a


62 regionalização da política de defesa brasileira
atuação política de seu Conselho de Segurança, da atuação jurisdicional
da Corte Internacional de Justiça e de seu Tribunal Penal Internacional e
o regime jurídico instituído pela Declaração Universal dos Direitos Huma-
nos de 1948, respaldada em termos de capacidade de vincular em termos
obrigacionais os Estados-membros mediante a celebração das Conven-
ções de Genebra de 1949 e de seus Protocolos adicionais de 1977.
Portanto, possuindo um claro caráter cogente, ou seja, resultando
em responsabilização internacional dos países signatários pelo seu des-
cumprimento, estes são obrigados a cumprir o disposto nesses tratados
e dar uma uniformidade interna a sua legislação constitucional e infra-
constitucional de modo que não viole os dispositivos internacionais, até
porque, pela emenda 45, de 2002, esses tratados, quando internalizados
na ordem jurídica interna, têm a hierarquia de normas constitucionais por
resultarem a temática de direitos humanos em seu conteúdo normativo.


A segurança humana e a instrumentalização
dos direitos humanos pela agenda de segurança
das potências: securitização

O direito internacional, assim, busca proteger combatentes e não


combatentes (civis do território onde se desenrola o conflito) de todas as
arbitrariedades e violações aos direitos humanos dos indivíduos quando
suas sociedades vivem o estado de guerra, o que acarretou todo um de-
senvolvimento do chamado direito humanitário, bem como da conceitua-
ção do que se denomina de segurança humana.
O conceito de “segurança humana” não é uniforme na ciência políti-
ca, mas lida com “[...] demandas de segurança dos indivíduos, dos grupos
sociais destituídos (minorias étnicas, pobres, outros segmentos excluídos
na população), da humanidade como um todo [...]” (CEPIK, 2001).
Os defensores deste conceito partem do pressuposto de que os Es-
tados são a ameaça para suas populações, em função do histórico de au-
toritarismo e desrespeito aos direitos humanos de seus cidadãos, opondo
o conceito de segurança nacional – que deveria ser a própria segurança
dos cidadãos a ser prestada pelos agentes públicos, do Estado (desde
polícias até forças armadas, aparelho judiciário, etc.) – ao de segurança
humana, que independe dos valores políticos e constitucionais como a
soberania relativa do Estado-nação.
O conceito de segurança humana foi formulado pelo Relatório so-
bre o Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (UNDP) publicado em 1994, no contexto do final da
Guerra Fria, como uma tentativa de articular, em um só conceito, aborda-
gens sobre segurança que superavam a noção de segurança nacional des-
de os anos 70 e 80, tais como segurança social, alimentar e ambiental, to-

Márcio Azevedo Guimarães 63


das de alguma forma presentes na noção normativa de direitos humanos.
Sua instrumentalização como tema da agenda internacional de se-
gurança, ou melhor, sua securitização, visava, no plano ético, priorizar
os temas ligados às violações dos direitos humanos e às carências so-
ciais, alimentares e educacionais de povos submetidos a estados débeis,
muitos dos quais ditaduras ou democracias formais nas quais a exclusão
social é estrutural, em especial em países do Terceiro Mundo.
Uma consequência da enorme abrangência de temas que
fazem parte da noção de segurança humana, oriunda da ciência política
voltada para os estudos estratégicos, mas que encontra eco na noção
de direitos humanos no plano do direito internacional público, é que as
crises e violações de soberania por estruturas que vão da OTAN ao TPI,
utilizam tais conceituações como políticas de poder.
Em nome dos direitos humanos das vítimas de guerras
civis e de violação dos direitos das minorias étnicas em estados como a
antiga Iugoslávia, ou da arbitrariedade de governos autoritários como o
de Saddam Hussein, no Iraque, interesses econômicos e estratégicos de
projeção de poder político das grandes potências foram ocultados com o
pretexto de que a democracia e a proteção dos direitos humanos empres-
tam para caracterizar intervenções militares agressivas como ações em
conformidade com o direito internacional.
Na realidade, porém, o direito internacional vem sendo violado pela
ação bélica ofensiva das intervenções unilaterais de organismos como a
OTAN ou de países como os EUA, uma vez que estão em desacordo com
a carta da ONU, pois suas operações militares não encontrariam abrigo
na noção de operações de emprego do uso de meios militares para a le-
gítima defesa.
Além disso, a natureza difusa e não estatal dos novos atores e das
novas ameaças geram novas situações que contornam os princípios jurí-
dicos do direito internacional, buscando criar novas regras costumeiras
e regras internacionais pontuais para os conflitos: organizações crimino-
sas e terroristas, bem como a presença de combatentes guerrilheiros no
meio de populações civis, tem tornado mais complexa a forma de fazer
a guerra.
Isto vem dando ensejo às teses de grupos de estrategistas que ale-
gam a necessidade do uso preventivo da força contra a ameaça potencial
num quase procedimento cautelar, aplicado ao direito internacional dos
conflitos, o que tende a gerar maior número de vítimas colaterais dos
efeitos das operações militares, criando uma preocupação que conecta o
problema do direito humanitário com a natureza dos conflitos militares
do século XXI.
Desde o surgimento das convenções de Haia de 1898 e 1907 até
os dias de hoje, a força ocupante tem o dever de proteger os habitantes
civis na sua vida, honra (certamente aqui se insere a proteção às mulhe-
res contra abusos sexuais e estupro) e bens, enquanto que a população

Direitos fundamentais, direito dos conflitos armados e a


64 regionalização da política de defesa brasileira
deve obediência às autoridades ocupantes.
Ou seja, pelas normas internacionais, as forças beligerantes têm o
dever de proteger os direitos humanos das populações civis submetidas
à ocupação do seu território em razão do estado de guerra. Não obstante,
o cenário internacional se caracteriza pela ausência de autoridade execu-
tiva mundial com poder cogente, com capacidade de obrigar os Estados
com maior capacidade econômica, política e militar ao cumprimento dos
pactos e convenções internacionais.
Em uma só palavra, a natureza anárquica do sistema internacional
faz com que o direito internacional por si só, seja insuficiente para a ga-
rantia dos direitos humanos de cidadãos de Estados com menor capaci-
dade dentro da distribuição de poder e sua assimetria característica das
estruturas econômica e politica sistêmicas.

Princípios constitucionais das relações exteriores


do Brasil e o direito internacional da segurança
coletiva e sua regionalização

O marco jurídico constitucional normativo interno atinente às prio-


ridades estratégicas no campo da defesa dispostos em relação à finalida-
de e aos princípios previstos nos arts. 1º e 4º, da Constituição Federal.
Sob o prisma constitucional, nos arts. 1º e 4º têm-se as finalidades do
Estado e o princípio da soberania, bem como os princípios norteadores
das suas relações internacionais.
Começando pelo art. 1º, que trata das finalidades do Estado
brasileiro, dentre as quais, importam para o presente estudo, o inciso I
que trata da soberania.19 A soberania de uma unidade estatal confunde-se
com a ideia de liberdade e independência. São inseparáveis. Manifesta-se
na afirmação da liberdade do Estado em relação aos demais. Enquanto
projeção externa, a soberania é a própria afirmação da independência.
Este último direito vincula-se de forma essencial à principal finali-
dade do Estado: a garantia de sua existência (vale dizer: soberania), me-
diante celebração de tratados que criam alianças defensivas e mediante a
organização da defesa nacional. Este princípio vem tipificado no art.
51 da Carta da ONU, quando trata da legítima defesa e dos casos que a
justificam: agressão injusta e atual contra a qual o emprego da força en-
quanto violência legítima prevista pelo direito internacional é o único re-
curso possível. Sob este aspecto, compete, precipuamente, a todo Estado

19 Uma interessante análise histórica do surgimento destes dois princípios constitu-


cionais e da importância que a Revolução Americana teve para o desdobramento das
noções de direitos do indivíduo e do Estado-nação se encontra em MANTOVANI, Ma-
ria da Graça Hahn. Tribunal Sul-Americano: uma concepção cibernética de integração.
UFRGS. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Rela-
ções Internacionais. Porto Alegre, 2006, pp.62.

Márcio Azevedo Guimarães 65


de Direito a sobrevivência para garantir o pleno exercício da cidadania de
sua população, razão de ser de uma comunidade política.
Nesse sentido, a defesa dos interesses nacionais e das pessoas, dos
bens e dos recursos brasileiros no exterior são os objetivos expressos
do que o Decreto 5.484/2005, que cria o documento Política de Defesa
Nacional20 entende como fundamento de uma política de defesa. Esta
é a mais clara relação entre direitos fundamentais a serem observados
constitucionalmente pelo Estado de Direito e a existência de uma política
de defesa.
O princípio da legítima defesa, dessa forma, visa assegurar a garan-
tia do princípio da soberania de uma unidade estatal. Sob este aspecto,
soberania e legítima defesa não podem ser compreendidas separadamente
quando se tem em conta o papel legítimo que o Direito confere a um ator
estatal de recorrer individualmente ao recurso do uso da força para a de-
fesa da independência de sua sociedade. Vale dizer, a defesa da soberania.
Por outro lado, a soberania também pode ser objeto de recurso
da legítima defesa coletiva, quando mais de um Estado se unem para a
proteção de um direito violado de qualquer um deles no sistema interna-
cional. Nesse contexto, no plano da segurança coletiva, o capítulo VIII das
Nações Unidas trata dos acordos regionais, que são de grande relevância
para se pensar categorias como segurança hemisférica ou segurança re-
gional, que são espécies de segurança coletiva, de acordo com a defini-
ção da Carta da ONU.
O princípio da legítima defesa coletiva contra agressões de natureza
extra-hemisférica encontra-se consagrado no sistema do art. 51, do capí-
tulo VII, combinado com o art. 52, do capítulo VIII. Esta é a base normativa
internacional do mecanismo jurídico de segurança coletiva. De igual modo,
o referido dispositivo do art. 52 é a base legal da existência da OEA e da
OTAN e demais pactos ou acordos regionais de aliança no mundo.
Dessa forma, o sistema de segurança e defesa do Conselho de De-
fesa Sul-Americano encontra a mesma fundamentação jurídica nestes dis-
positivos da Carta da ONU, por tratar-se o CDS de um organismo de segu-
rança coletiva regional sul-americana, ao abrigo, portanto do disposto no
art. 52, capítulo VIII, da Carta. Nesse sentido,

“Capítulo VIII – Acordos regionais


Artigo 52. 1. Nada na presente Carta impede a existência de
acordos ou de entidades regionais, destinadas a tratar dos as-
suntos relativos à manutenção da paz e da segurança internacio-
nais que forem suscetíveis de uma ação regional, desde que tais
acordos ou entidades regionais e suas atividades sejam compa-
tíveis com os Propósitos e Princípios das Nações Unidas. (CARTA
DA ONU, Capítulo VIII, artigo 52).

O dispositivo do art. 52 afirma o princípio da formação de trata-

20 Criada no primeiro mandato de Lula da Silva, também é conhecida como II PDN.

Direitos fundamentais, direito dos conflitos armados e a


66 regionalização da política de defesa brasileira
dos bilaterais e multilaterais de alianças militares, quer sejam de abran-
gência hemisférica, regional ou local. Em seu item terceiro (3), o docu-
mento Política de Defesa Nacional, editado em 2005, enquanto Decreto
executivo n. 5.484, de 30 de julho, que trata a América do Sul enquanto
ambiente estratégico para a segurança do Brasil, em termos de criar
uma zona de paz e segurança para evitar o transbordamento de confli-
tos, mediante a cooperação política e militar entre o país e os estados
da região.
Dentre os objetivos previstos no item quinto (5) do documento,
destaca-se a defesa da soberania, do patrimônio nacional, da integridade
territorial e, importante para a configuração do decreto do SINAMOB – Sis-
tema Nacional de Mobilização - da EDN e do próprio CDS, a “defesa dos
interesses nacionais e das pessoas, dos bens e dos recursos brasileiros
no exterior e a promoção da estabilidade regional”21.
Completam o quadro de objetivos, a valorização dos fóruns multi-
laterais, a importância da mobilização nacional e, em caso de conflito o
recurso “a arranjo de defesa coletiva autorizado pelo Conselho de Segu-
rança da ONU” (Decreto 5.484/2005).
A PDN dispõe ainda, no item sexto (6), uma série de elementos,
destacando-se a necessidade de criar uma base industrial e tecnológica
para criação de produtos de defesa que sejam compatíveis com a estra-
tégia brasileira de dissuasão, a regionalização da indústria de defesa, o
fomento de parcerias estratégicas bilaterais e a importância da Amazônia
e do Atlântico Sul como áreas estratégicas para a defesa nacional.
Nesse sentido, os elos entre a política de defesa e a integração re-
gional são a criação da base industrial (examinada no capítulo terceiro)
e o sistema de mobilização nacional em caso de ameaça de agressão ao
Estado brasileiro.
Sob este aspecto, o órgão da Presidência da República, na pessoa
de seu supremo mandatário e na condição de Chefe de Estado, detém a
prerrogativa e a competência privativa para pôr em prática os atos defi-
nidos no art. 21 e seus incisos, por força do art. 84 e incisos VII, VIII, IX,
XIII, XVIII e XX. Contudo, destaque deve ser dado ao inciso XIX, pela sua
importância em caso de declaração de guerra e a necessidade de acionar
o sistema de mobilização nacional:

XIX – “declarar guerra, no caso de agressão estrangeira, autori-


zado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando
ocorrida no intervalo das sessões legislativas, e, nas mesmas
condições, decretar, total ou parcialmente, a mobilização
nacional” (Constituição Federal de 1988)

Dentro deste contexto, a edição da Lei Federal no 11.631, de 27 de

21 O decreto se encontra na íntegra no site: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_


Ato2004-2006/2005/Decreto/D5484.htm. Acesso: 12/06/2012.

Márcio Azevedo Guimarães 67


dezembro de 2007, de natureza ordinária, trata da mobilização nacional,
sendo regulamentada pelo Decreto Executivo nº 6.592, de 02 de outu-
bro de 2008. A própria Lei 11.631 decorre da previsão constitucional do
estado de sítio, normatizado no art. 137, da Constituição Federal, que,
combinado com os incisos IX, XVIII e XIX do art. 84, se constitui no marco
constitucional de como deve o Estado brasileiro proceder em status belli
(em caso de estado de guerra) nos casos relacionados com a defesa e
segurança nacional22.
Assim, com base na decretação do estado de sítio, a legislação do
SINAMOB deve ser aplicada também em razão de ameaças de caráter não
estatal à soberania do Estado, como parte do arcabouço jurídico e institu-
cional que deve embasar o direito de autodefesa, como previsto na Carta
da ONU, em seu art. 51 e que subsidia a aplicação da política de defesa
do país.
A partir deste documento de caráter normativo, a política de de-
fesa passa a ser vista como importante meio de respaldar negocia-
ções internacionais, baseada nas suas premissas internas de dissua-
são como eixo da sua estratégia de defesa e que se expande para as
relações com a região, mediante a busca pela coordenação de políticas
públicas de defesa.
Do ponto de vista normativo, a ligação entre mobilização e agres-
são que vem definida no decreto regulamentador quanto às hipóteses
em que esta agressão pode ocorrer, é feita pela Lei que institui o sistema
nacional de mobilização. A Lei federal ordinária n. 11.631, esta inicia de-
finindo o que é a mobilização nacional.
Em seu art. 2º está disposto que

“Art. 2o Para os fins desta Lei, consideram-se:

I - Mobilização Nacional o conjunto de atividades planejadas,


orientadas e empreendidas pelo Estado, complementando a Lo-
gística Nacional, destinadas a capacitar o País a realizar ações es-
tratégicas, no campo da Defesa Nacional, diante de agressão
estrangeira” (Lei 11.631)

Esta situação é de caráter excepcional do ponto de vista político-ins-


titucional, caracterizando uma “excepcionalidade constitucional” é oriun-
da do estado de sítio previsto no dispositivo do art. 137 da Constituição
da República (SILVA, 2001). A referida excepcionalidade jurídica justifica

22 A declaração de estado de guerra ou resposta à agressão armada e que envolve a


interpretação sistemática com outros dois dispositivos constitucionais – os arts. 84, in-
ciso XIX (competência privativa do Presidente da República) e o 49, inciso II (autorização
do Congresso Nacional) combinados com o art. 4º da Lei 11.631, que expressamente
dispõe que “A execução da Mobilização Nacional (...) será decretada por ato do Poder
Executivo autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando no inter-
valo das sessões legislativas”.

Direitos fundamentais, direito dos conflitos armados e a


68 regionalização da política de defesa brasileira
a ação do governo central sobre todos os campos da atividade política
sem que o princípio da federação seja afetado. Em situação normal, com-
pete constitucionalmente às unidades da Federação a condução de suas
políticas públicas em face da divisão de competências constitucionais. No
entanto, em caso de estado de sítio, a situação é de caráter emergencial e
justifica o papel da União Federal na coordenação de esforços, tendo em
vista a defesa nacional.
Nesse sentido, a mobilização nacional é um conjunto de medidas
de teor estratégico voltados para a preparação dos recursos humanos e
materiais de toda a sociedade para fazer frente a situações extraordiná-
rias como as que se caracterizam a ameaça aos interesses da sociedade e
do Estado. Tais ameaças compreendem a hipótese de conflitos armados,
sejam com relação aos atores estatais, sejam com os não estatais.
A Estratégia Nacional de Defesa (EDN) - Decreto Executivo nº 6.703,
de 18 de dezembro de 2008 - juntamente com o a legislação federal or-
dinária (que regulamenta a mobilização nacional vista acima), consubs-
tancia-se no documento de maior envergadura jurídica e doutrinária bra-
sileira a tratar de um tema sensível no plano das políticas públicas como
é o da defesa.
Destarte, o Decreto nº. 6.703, de 18 de dezembro de 2008, que
aprova a Estratégia Nacional de Defesa (EDN), em suas diretrizes e em
suas ações estratégicas a importância da mobilização nacional.
Em sua diretriz nº. 18, resta claro que a integração sul-americana
em termos de cooperação militar regional tem como sustentáculo a in-
dústria regional de defesa e o papel institucional do Conselho de Defesa
Sul-Americano23.
A estas diretrizes, não devem ser esquecidas à menção que o do-
cumento da EDN faz às ações estratégicas voltadas para a estabilidade e
segurança regionais, no qual o entorno estratégico deve ser entendido
como a América do Sul e conecta a ideia de indústria de defesa com inte-
gração regional de segurança, em seu item terceiro.
Nesse sentido, quanto ao item da estabilidade regional, a EDN pro-
pugna pela necessidade de articulação entre os Ministérios de defesa e de
relações exteriores do Brasil, a fim de manter a estabilidade regional por
meio da cooperação com os estados da vizinhança.

Considerações finais
23 “Diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa. Pauta-se a Estratégia Nacional de
Defesa pelas seguintes diretrizes: Estimular a integração da América do Sul”.
Disponível em: http://www.sae.gov.br/site/wp-content/uploads/Estratégia-Nacio-
nal-de-Defesa.pdf (Decreto executivo nº. 6.703/2008. Grifos do autor. Acesso: em
09/09/2011).

Márcio Azevedo Guimarães 69


O art. 52 da Carta da ONU define a base de legitimidade para a cria-
ção de organismos políticos e de defesa intergovernamentais de caráter
supranacional com atribuições regionais como a OEA a OTAN, a UNASUL
e ao seu Conselho de Defesa regional de atuarem na promoção da se-
gurança regional, desde que pautados por princípios universais como a
defesa da paz, da segurança, da democracia (cidadania), da proteção dos
princípios da soberania e da autodeterminação dos povos, todos eles ins-
critos nos sistemas constitucionais dos Estados de direito, assim como do
tratado internacional da ONU.
Dessa forma, a Carta da ONU encontra respaldo no inciso II da CF
brasileira, que trata da cidadania, um princípio fundamental de todo Es-
tado democrático de Direito. É neste sentido que deve ser compreendida
toda a relação entre democracia e defesa, direito e poder militar, diploma-
cia e dissuasão.
Por fim, o art. 4º, que trata dos princípios norteadores das relações
internacionais do Brasil, dispõe em seu parágrafo único que:

“A República Federativa do Brasil buscará a integração econômi-


ca, política, social e cultural dos povos da América Latina, visan-
do à formação de uma comunidade latino-americana de nações.”
(CF, art. 4º, parágrafo. único, 1988)

Assim, a ideia de comunidade latino-americana de nações, tendo


em vista a evolução do cenário de segurança internacional e a importân-
cia política e econômica da América do Sul para a equação de segurança
regional do Brasil, deve ser entendida como uma comunidade sul-ame-
ricana de nações. A região sul-americana torna-se objeto de política de
estado a partir da edição da denominada II PDN24.
Por outro lado, o art. 51 do mesmo tratado internacional dispõe
sobre o direito à legítima defesa de uma unidade política toda vez que a
sua integridade territorial e sua capacidade de garantir a proteção de sua
população estiver ameaçada gravemente por outra(s) unidade(s) políti-
ca(s), que são os Estados-nações.
Isto significa afirmar que, na possibilidade de que um agente agres-
sor ameaçar a prestação de políticas públicas que venham a gerar a con-
cretização de direitos fundamentais, o Estado que eventualmente seja
vítima da agressão ou ameaça de agressão por outro Estado possui o
direito à autodefesa, motivado pela necessidade de manutenção de sua
independência e de sua existência, que são condições de viabilidade de
garantir a ordem jurídica interna pela defesa externa.
Este raciocínio permite inferir que, em última instância, mediante
uma política de defesa eficaz, é na atuação derradeira de suas forças ar-
madas que reside a proteção e a garantia de que os serviços públicos e

24 A I PDN foi editada em 1996, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.

Direitos fundamentais, direito dos conflitos armados e a


70 regionalização da política de defesa brasileira
a prestação de políticas públicas garantirão os direitos fundamentais em
casos de estado de guerra. 
Assim, direitos que vão da própria vida à liberdade, da propriedade
à segurança e à justiça e da garantia de um sistema político democrático -
ele próprio garantidor de direitos sociais como emprego e vida digna para
os cidadãos - só podem ser garantidos, em última ratio, em situações de
insegurança internacional que afetam a soberania de um país pela exis-
tência de uma capacidade militar de prover segurança e defesa para o
Estado em face da característica anárquica do sistema internacional.
A anarquia do sistema mundial, com isso, que pode apresentar um
ambiente de insegurança para a realização da segurança e defesa cidadã
da sociedade brasileira, nos marcos do estado de direito, cuja razão de
ser reside justamente na capacidade da sociedade política chamada Es-
tado de prover políticas públicas garantidoras de direitos fundamentais
para o conjunto da população brasileira.
Este traço anárquico do sistema internacional significa que um Es-
tado não pode contar apenas com o regime jurídico internacional prote-
tivo de direitos humanos para a garantia do cumprimento de tratados e
convenções, uma vez que pelo princípio da soberania dos Estados existe
uma ausência de governo mundial. Além disso, embora os avanços meri-
tórios do regime jurídico internacional de proteção de direitos humanos,
as estruturas das Nações Unidas, apesar de fundamentalmente necessá-
rias para o avanço da cooperação internacional com vistas à proteção dos
indivíduos, são ainda insuficientes para, em última instância, garantir o
fiel cumprimento dos tratados e convenções internacionais em prol dos
direitos humanos.
Com isto, afirma-se que os Estados-membros da comunidade inter-
nacional, com base em políticas voltadas para os direitos fundamentais
voltados para a segurança cidadã, conforme os preceitos constitucionais,
são os agentes principais da realização de políticas públicas garantidoras
do pleno exercício dos direitos fundamentais de seus cidadãos, na mesma
medida em que ainda são os eixos fundamentais do sistema mundial
interestatal como um todo. Além disso, à característica anárquica do
sistema de relações internacionais deve-se acrescentar a existência de
uma brutal assimetria de poder entre as grandes potências e os demais
estados, o que pode gerar ameaça aos direitos fundamentais de suas
populações. Daí porque o princípio da soberania destas unidades polí-
ticas está indissoluvelmente ligado ao exercício da cidadania, razão de
ser da comunidade política contemporânea organizada sob o nome de
Estado-nação.
Nesse contexto, a efetividade da política de defesa brasileira, a fim
de que contemple seu objetivo estratégico fundamental, que é o de ga-
rantir que exista um Estado capaz de prover políticas públicas que aten-
dam ao exercício dos direitos fundamentais de seus cidadãos, necessita
de uma base de defesa e segurança regionalizada para sua concretização.

Márcio Azevedo Guimarães 71


Em uma só palavra, essa realização pode ser mais eficaz mediante a coo-
peração e integração regional de segurança e defesa sul-americano.

Referências

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Direitos fundamentais, direito dos conflitos armados e a


72 regionalização da política de defesa brasileira
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Acessos: 28/10/2011.

Márcio Azevedo Guimarães 73


DUMPING SOCIAL: UM BREVE
RELATO SOBRE A SITUAÇÃO DO
BRASIL E DO MERCOSUL

Letícia Petry de Faria25


Claudia Maria Petry de Faria26

25 Advogada. Graduada em Direito (FEEVALE). Especialista em Direito do Trabalho e


Processo do Trabalho (Universidade Anhanguera). Mestranda em Direito das Relações
Internacionais (UDE/UY). Licenciada Plena em Educação Física. Servidora Pública do Mu-
nicípio de Sapiranga. Sócia do Petry de Faria Advogados. E-mail: leticiapetrydefaria@
yahoo.com.br
26 Advogada. Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais (UNISINOS). Mestre em Letras,
Cultura e Regionalidade (UCS). Doutoranda em Qualidade Ambiental (FEEVALE). Professora
nos Cursos de Direito e Tecnólogo em Gestão de Recursos Humanos (FEEVALE). Professora
nos Cursos de Pós-Graduação em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho (FEEVALE e
UNIRITTER). Sócia do Petry de Faria Advogados. E-mail: cpetryfaria@ig.com.br

74 Dumping social: um breve relato sobre a situação do Brasil e do Mercosul


Considerações iniciais

O Dumping Social é uma nova temática a ser abordada pelos estu-


diosos do Direito Laboral. A situação abordada, entretanto, é tão antiga
quanto o próprio trabalho, eis que atinge os trabalhadores lesionados
em direitos mínimos e fundamentais, suprimindo-os. A atitude nociva
dos empregadores tem como objetivo o barateamento da mão de obra e,
consequentemente, a diminuição do custo, propiciando maior lucrativi-
dade e maior volume de vendas em relação ao empregador que cumpre
fielmente com as obrigações trabalhistas. Situação similar ocorre com os
trabalhadores dos países do Mercosul diante da diversidade de direitos
trabalhistas, eis que não há uma regra única para os trabalhadores do
Bloco Mercosulino.

Conceito e classificação

Dumping é um termo usual na área comercial e está sendo utilizado
na área trabalhista com um conceito similar sendo tratado por dumping
social. O Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio brasilei-
ro tem por conceito de dumping, a ocorrência da venda de bens para
exportação em valor inferior àquele que é vendido por preço análogo
em seu próprio mercado. Em entendimento similar, Andréa Wolffenbüttel
(2012) discorre que a negociação de produtos com baixo custo em rela-
ção ao valor de sua produção é considerado dumping e tem por objetivo
a supressão dos adversários. Este tipo de atitude é compreendida como
ato desonesto no âmbito comercial. A autora ainda pondera que o termo
volta-se para questões de exportação, contudo, pode ser visto dentro da
situação nacional, por via da diferença causada por incentivos advindos
do governo, que podem levar ao desequilíbrio entre os produtos ou por
escolha privada, objetivando a eliminação de adversário(s).
Conforme o Tribunal Superior do Trabalho, o dumping praticado na
área comercial trata-se do ato de venda de produtos por valores infima-
mente inferiores aos de mercado e relaciona esta situação com o âmbito
trabalhista ao informar que, na prática, ocorre de forma similar com traba-
lhadores. Isto ocorre, porque seus empregadores excluem da relação tra-
balhista direitos inerentes à relação de trabalho, com a finalidade de ganho
no mercado. Ao diminuir os direitos dos empregados, os empregadores
abrandam o valor de seus artigos tornando assim o embate comercial dos
produtos desleal em relação a outras produtoras que mantêm seus empre-
gados com os direitos previstos na legislação (BRASIL, TST, 2014).
Paulo de Lacerda Werneck (2003) também menciona que o Direito
prevê outras classificações de dumping, entre elas, o social. Relaciona a
inexistência de direitos sociais, bem como a força de trabalho de custo
banal com o dumping social, considerando este, como a venda para ou-

Letícia Petry de Faria e Claudia Maria Petry de Faria 75


tros países, de elementos, por valores menores ao comercializados em
seu país, face ao desrespeito de questões trabalhistas estipuladas pelo
Direito Internacional como ínfimas.
Na I Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, ocorrida
em 2007, a ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados do Traba-
lho) aprovou o Enunciado 4, estabelecendo:

4. “DUMPING SOCIAL”. DANO À SOCIEDADE. INDENIZAÇÃO SU-


PLEMENTAR. As agressões reincidentes e inescusáveis aos direi-
tos trabalhistas geram um dano à sociedade, pois com tal prática
desconsidera-se, propositalmente, a estrutura do Estado social e
do próprio modelo capitalista com a obtenção de vantagem inde-
vida perante a concorrência. A prática, portanto, reflete o conhe-
cido “dumping social”, motivando a necessária reação do Judiciá-
rio trabalhista para corrigi-la. O dano à sociedade configura ato
ilícito, por exercício abusivo do direito, já que extrapola limites
econômicos e sociais, nos exatos termos dos arts. 186, 187 e
927 do Código Civil. Encontra-se no art. 404, parágrafo único do
Código Civil, o fundamento de ordem positiva para impingir ao
agressor contumaz uma indenização suplementar, como, aliás,
já previam os artigos 652, “d”, e 832, § 1º, da C

Os casos de dumping social estão começando a ser registrados pelo


Judiciário Brasileiro. Já existem decisões condenando as empresas pela
prática. Exemplifica-se a situação com o ocorrido com a empresa Magazi-
ne Luiza que sofreu condenação de R$ 1,5 milhão pelo uso desta prática
abusiva. Tal ação foi promovida pelo Ministério Público de Ribeirão Pre-
to, em São Paulo, devido a autuações que verificaram o descumprimento
de diversas normas trabalhistas, entre elas as jornadas de trabalho que
ocorriam de forma demasiada. O TST já decidiu que para que exista con-
denação por dumping social é necessário que haja iniciativa da parte em
requerê-lo e não poderia ser diferente face aos princípios do processo do
trabalho. O magistrado não poderá decidir além do perímetros da ação. Tal
situação mereceu reforma na decisão nos casos dos processos RR – 78200-
58.2009.5.04.0005 e RR – 11900-32.2009.5.04.0291. (CONJUR, 2013).

O Dumping no Mercosul:
o enfrentamento político-judiciário

No âmbito internacional, o dumping também deve ser combatido


nas nações e este conceito aplica-se aos processos de integração, entre
eles o Mercosul. Ocorre que, neste caso, as legislações dos países partici-
pantes do bloco são distintas e as normas trabalhistas existentes em um
e não em outro Estado podem gerar o problema em questão.
Conforme Hélcio Kronberg (2003), a harmonia legislativa entre os
Estados é recomendada como principal ponto para o convívio das normas

76 Dumping social: um breve relato sobre a situação do Brasil e do Mercosul


legislativas. Para que isto ocorra, torna-se necessária a transposição de
certas barreiras, entre elas, a possibilidade dos indivíduos de buscarem
ofertas de emprego de forma menos burocrática (JAEGER JUNIOR, 2000).
Desta forma, deve ser garantido aos cidadãos do Mercosul a igual-
dade de tratamento e de mobilidade. Além disso, precisa ser asseverado
que estes poderão ir em busca de ofertas de emprego, sendo necessá-
rio apenas tal documentação, não obstante é claro, graduação específica
quando o cargo assim o solicitar (JAEGER JUNIOR, 2000). Amauri Mascaro
Nascimento coaduna com esta ideia afirmando que tal documento deve-
ria substituir os atuais existentes (NASCIMENTO, 2009).
Para tanto, deve existir equilíbrio entre as garantias dos trabalhado-
res e a legislação dos países. Com a implantação de tais normatizações,
seria coibida a imigração que ocorre na fronteira dos Estados-membros
com terceiros Estados, em sua maioria de forma ilegal (JAEGER JUNIOR,
2000). Posiciona-se da mesma forma Jorge de Souza Lima, quando ex-
pressa sua opinião quanto à necessidade de uma legislação que vise à
harmonia, buscando os direitos sociais (LIMA, 2003). Ainda, deve haver
um critério no tocante a encargos sociais e, até o presente momento, ca-
rece-se também de uniformidade quanto à força das decisões advindas
de acordos coletivos e dissídios, situação que necessita de alteração e
padronização (NASCIMENTO, 2009).
Sem este equilíbrio de garantias, a liberação da mão de obra traria
à tona uma alteração grave no contingente laboral de certo local, uma vez
que toda a população, como é natural do ser humano, busca as melhores
condições de vida, inclusive, por meio da migração para locais onde exis-
ta situação de trabalho superior a sua:
[...] a livre circulação de pessoas não é um fenômeno geral como
acontece com os bens, serviços e capitais. A mão de obra es-
pecializada circula com menos restrições, enquanto que a não
qualificada enfrenta barreiras burocráticas e restrições legais,
ficando ainda, vulnerável à exploração de uma verdadeira rede
de aliciamento e exploração de mão de obra (BARRETO, 2009).

Ainda, são apontados como desafios à livre circulação dos labutado-


res: a falta de um Estatuto do Trabalhador Migrante de acordo entre os países
quanto à reserva do mercado de trabalho e suas especificações (relacionadas
às profissões que seriam alvo deste), e por fim, uma legislação que proteja o
trabalhador liberal. Jorge de Souza Lima (2003) ainda considera que
Uma das exigências para as autoridades dos países-membros
permitirem a livre circulação de trabalhadores é o conhecimento
prévio do destino da mão de obra e, desta forma, o trabalhador
receberia uma licença do governo do país onde riria desempe-
nhar suas atividades. Se o cidadão for um trabalhador autôno-
mo, com uma profissão especifica, um artesão, mas não tiver
emprego previamente contratado, ele também poderia receber
um visto de permanência no país vizinho, pois tendo uma espe-
cialidade, não iria aumentar a massa de desempregados.

Letícia Petry de Faria e Claudia Maria Petry de Faria 77


Nas linhas de Silvio Javier Battello e Júlio Córdoba (2010)
Las exigências enunciadas y estabelecidas por Ley funcionan para
um número reducido de trabajadores extranjeros, trabajadores
de cuello blanco, científicos o personas altamente calificadas.
Sim embargo la realidade social, principalmente de las regiones
urbanas, demuestra que existe un número mucho mayor de tra-
bajadores, de cuello azul, que ingressan al país desde estados
limítrofes para realizar tareas menos calificadas.

Quando se trata de relação trabalhista é necessário verificar a ques-


tão da seguridade social, pois esta é um dos fatores determinantes para
o trabalhador. Paulo Luiz de Toledo Piza (2000) afirma:
A atividade securitária é de fundamental importância para o de-
senvolvimento socioeconômico dos Estados - e se a aceleração
do desenvolvimento econômico com justiça é a principal meta
do Tratado de Assunção, sua implantação em nível regional não
pode constituir-se em mora, sob pena de pagar juros altos, não
só financeiros, mas também humanos.

Com relação às garantias retromencionadas foi criado o Acor-


do Multilateral de Seguridade Social (MERCOSUL/CMC/DEC. N. 19/97).
Esta normatização não traz um regramento para os Estados-partes no
sentido de tornar iguais os direitos quanto à seguridade social. Prevê,
entretanto, que o período laborado em um país será utilizado para
contagem de tempo em qualquer Estado dentre os que constituem o
Mercosul, mantendo-se as regras de cada um, conforme sua legislação
própria. Desta forma, os labutadores não precisam temer que seu tem-
po de trabalho não seja aproveitado, caso laborem em país que não
o seu de origem. Além disso, é garantida a não discriminação entre
nacionais e estrangeiros neste âmbito e as nações distribuem entre si
os gastos.
Para contemplar a matéria, existe também a previsão da formação
de uma Comissão Multilateral Permanente visando ao bom emprego e a
melhor compreensão do documento (KUMMEL, 2001). Ocorre que este
acordo foi implementado apenas em 2005. O Sindicato Mercosul traz o
exemplo de como funciona o sistema:
Um trabalhador brasileiro que contar com 20 anos de trabalho
no Brasil e 15 anos na Argentina, por exemplo, receberá 20/35
avos de aposentadoria do Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS). O restante será pago pela Argentina.

A Cartilha do Cidadão do Mercosul ainda complementa que, em


face deste diploma legal, todos que trabalharem no país terão as mesmas
obrigações. Tal norma estende-se a suas famílias, bem como a seus de-
pendentes, no que tange às questões relativas à saúde. Da mesma forma
ocorre com o labutador que estiver transferido de forma temporária com
a condição de que “[...] a entidade gestora de origem autorize sua outor-

78 Dumping social: um breve relato sobre a situação do Brasil e do Mercosul


ga.” Além disso, esclarece que: “[...] os períodos de seguro ou contribui-
ção cumpridos nos territórios dos Estados-partes serão considerados em
outro Estado para a concessão das prestações por velhice, idade avança-
da, invalidez ou morte.” (MERCOSUL, 2010).
Em relação à Declaração Sociolaboral do Mercosul, esta surge como
fator positivo, na medida em que busca ser um instrumento garantidor
dos direitos mínimos dos labutadores. Rosana Martinelli Freitas (2007)
argumenta quanto ao tema:
[...] foi criada, em dezembro de 1998, a Declaração Sociolaboral
do Mercosul, uma espécie de carta dos direitos fundamentais dos
trabalhadores comuns a todo Mercosul. Seu objetivo claro é ser
um seguro aos trabalhadores mercosulinos, para que eles pos-
sam deslocar-se de seu país para aproveitar os frutos da integra-
ção em sua totalidade. Desse modo, se não encontram emprego
na economia de seu país de origem ou se as oportunidades de
trabalho não são atraentes (não só por motivos de remuneração,
mas também por razões de condição de vida), que sejam livres
para buscá-lo nas economias dos demais Estados-membros do
Mercosul, sendo assegurado e protegido pelas leis trabalhistas
que vem sendo discutidas no âmbito da integração. Por fim, tem-
se a fase de “união política, econômica e monetária”, estabele-
cendo-se uma política externa comum. Como exemplo tem-se
justamente a União Europeia.

A Declaração Sociolaboral do Mercosul prevê a não discriminação;


promoção da igualdade relativa a gênero, quanto a pessoas portadoras
de necessidades especiais, de emprego, amparo aos desempregados,
desenvolvimento e segurança relativos à profissão, a seguridade social,
o diálogo entre representantes dos governos, dos empregadores e dos
labutadores e, o banimento do labor coagido, infantil e de menores de
18 anos. Ainda, assegura a liberdade de associação, sindical, negocia-
ção coletiva e greve conforme as normas nacionais, entre outros (BRA-
SIL, STF, 2014). Além disso, sua importância resta devido ao fato de que
trata de direitos fundamentais, mesmo tendo esta força de declaração
e não de lei nos países integrantes, conforme Amauri Mascaro Nasci-
mento (2009): “[...] como toda declaração internacional, é um conjunto
de princípios sem força normativa que poderia ter caso o seu texto o
determinasse”.
Ainda, há a questão do labor de forma ilegal do fronteiriço que é o
indivíduo que reside em cidade que tem por limite territorial comarca de
país vizinho ao seu. Esta pessoa, para fins de labor, movimenta-se entre
ambas. Destaca-se que se distingue do imigrante face ao objetivo que
possui, uma vez que não altera sua residência, apenas move-se entre os
municípios, retornando por fim a sua habitação, enquanto o outro tem
por finalidade a moradia (SANTOS, 2011). O Estatuto do Estrangeiro dis-
põe a respeito:

Letícia Petry de Faria e Claudia Maria Petry de Faria 79


Art. 21. Ao natural de país limítrofe, domiciliado em cidade contí-
gua ao território nacional, respeitados os interesses da segurança
nacional, poder-se-á permitir a entrada nos municípios fronteiriços
a seu respectivo país, desde que apresente prova de identidade.
§ 1º Ao estrangeiro, referido neste artigo, que pretenda exercer
atividade remunerada ou frequentar estabelecimento de ensino
naqueles municípios, será fornecido documento especial que o
identifique e caracterize a sua condição, e, ainda, Carteira de
Trabalho e Previdência Social, quando for o caso.
§ 2º Os documentos referidos no parágrafo anterior não conferem
o direito de residência no Brasil, nem autorizam o afastamento
dos limites territoriais daqueles municípios (BRASIL, ESTATUTO
DO ESTRANGEIRO, 2014).

O sentido do texto acima foi mantido pelo Novo Estatuto do Estran-


geiro (BRASIL. Projeto de Lei n° 5655/2009). Estes cidadãos possuem leis
em cada Estado-parte conforme a Cartilha do Trabalhador (MERCOSUL,
2010). A Portaria n° 1, de 28 de janeiro de 1997, da Secretaria de Políticas
de Emprego e Salário, Ministério do Trabalho e Emprego, dispõe que há
diferenciação quanto à Carteira de Trabalho e Previdência Social do nacio-
nal, estrangeiro e do jogador de futebol profissional, remetendo à Porta-
ria MTb n° 044/97. Tal norma aponta para as Superintendências Regionais
do Trabalho e Emprego como as responsáveis pela emissão do documen-
to, da necessidade da assinatura do Superintendente e os documentos
que devem ser apresentados, do prazo de validade. Tal regulamento faz
diferença expressa ao fronteiriço, em seu art. 10 e parágrafos, devendo
conter na CTPS esta identificação e a informação:

Permitindo o exercício de atividade remunerada no município fron-


teiriço ao país de que é natural o titular. Vedado ao titular afastar-
se dos limites territoriais do município fronteiriço ou de qualquer
modo internar-se no território brasileiro (BRASIL, MTE, 2014).

Logo, a autorização serve apenas para labor na cidade limítrofe com


a de sua moradia e não em todo território. São exigidos deste indivíduo
para a concessão: documento de identidade especial para fronteiriço, Car-
teira de Identidade, comprovante de que reside em cidade que faz fronteira
com o estrangeiro, comprovante de não existência de antecedentes crimi-
nais em seu país de origem, contrato ou outro comprovante de trabalho.
Ainda, a Superintendência responsável deve ser a da cidade contígua ou a
mais próxima, a que for devidamente permitida esta condição.
O labor ilegal traz as mesmas consequências do caso dos demais
imigrantes. Segundo Luana Goveia (2008):
[...] os trabalhadores dos países-membros, não possuindo regu-
lamentação que legitime seus deslocamentos, sofrem exclusão
social, causada pelo não reconhecimento e pela falta de prote-
ção na sociedade receptora, levando a uma precária inserção no

80 Dumping social: um breve relato sobre a situação do Brasil e do Mercosul


mercado laboral, fazendo com que os trabalhadores imigrantes
ocupem posições inferiores na escala socioprofissional.

[...] o mesmo não paga impostos ao respectivo governo, e mui-


tas vezes, pela sua situação irregular e consequente salário mui-
to abaixo da média, apropria-se de postos de trabalho dos habi-
tantes nativos.

Logo, se as legislações dos países-partes do Mercosul forem harmoni-


zadas, a livre circulação dos trabalhadores tornar-se-á mais viável, já que os
labutadores terão condições mínimas independentemente de qual país este-
jam. Esta situação diminuirá as possibilidades de dumping social, pois os paí-
ses coadunarão quanto às legislações a que devem balizar-se pelos princípios
mínimos de proteção trabalhista, em acordo com as normas internacionais
advindas das recomendações da Organização Internacional do Trabalho. Com
isto, poderia ser visto uma diminuição das situações de dumping na área tra-
balhista, pois as condições de trabalho de todo o território do Mercosul esta-
riam em harmonia, permitindo que o trabalhador possua mais opções de tra-
balho e labore apenas onde as condições legais forem mantidas, diminuindo
o trabalho ilegal nos Estados-partes do processo de integração.

Considerações finais

O cumprimento da legislação trabalhista, pelas partes contratantes, é


condição essencial para o contrato de trabalho atingir seus objetivos. Tendo
por princípios basilares a boa-fé e a dignidade do indivíduo, a relação laboral é
instrumento de realização e dignificação do ser humano. A prática de dumping
social afronta a integridade física e moral do trabalhador e o próprio ordena-
mento jurídico nacional. O combate a esta prática é essencial para o trabalha-
dor e para a sociedade, eis que atinge também o pilar econômico-financeiro.
Da mesma forma, é imperioso que a legislação trabalhista do Bloco Mercosuli-
no avance em uma única direção, propiciando melhores condições de trabalho
aos imigrantes e aos nacionais face à globalização que ora se impõe.

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Letícia Petry de Faria e Claudia Maria Petry de Faria 83


POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O
ACESSO DA MULHER AO MUNDO
LABORAL NO BRASIL E NA ARGENTINA
À LUZ DO PRINCÍPIO DA
PARTICIPAÇÃO SOCIAL27

Josirene Candido Londero28

27 Artigo inspirado na tese de doutoramento da autora.


28 Doutora em Desenvolvimento (UNISC/RS); Mestre em Direito (PUC/RS); Graduada em
Direito (UNIJUÍ/RS). Advogada militante no Vale do Rio Pardo/RS. Docente do Curso Su-
perior Jurídico.

84 Políticas públicas para o acesso da mulher ao mundo laboral no Brasil e na Argentina à luz do
princípio da participação social
Considerações iniciais

A questão de gênero, o movimento de mulheres, as políticas pú-


blicas de gênero no trabalho, a dominação masculina sobre a mulher, os
êxitos alcançados pela mulher no trabalho no Brasil e na Argentina são
temáticas inquietantes. Impõe-se, por isso, o questionamento sobre as
razões pelas quais a mulher e a sociedade teriam aceito a referida domi-
nação, de forma a manter a mulher afastada das decisões que se opera-
ram/operam nos espaços públicos que, se são masculinos, são também
femininos. Esse contexto obriga a concordar sobre a grande complexida-
de que existe nas relações de poder entre os sexos, em todas as épocas.

De facto, sem esses acontecimentos turbulentos, inquietantes,


e, por vezes, provocadores, não seria possível fazer um novo
caminho de entendimento do nosso modo de ser e de estar e,
sobretudo nós, as mulheres, estaríamos desmunidas de modelos
ou figuras femininas que nos apontassem a possibilidade de nos
olharmos como seres humanos integrais, indivíduos com múlti-
plos caminhos de realização que não apenas aqueles ligados ao
parir e ao espaço privado do gineceu (HENRIQUES, 2005, p. 2).
.
Se, de um lado a História demonstra a absorção do modo de pensar
negativo e subalterno acerca da participação da mulher nos espaços pú-
blicos, de outro, permite a evidência de correntes de pensamento contrá-
rias ao pensar dominante e que garantem a nem sempre pacífica aceita-
ção do referido domínio por parte das mulheres, embora a interpretação
dominante objetive escamotear essa teoria.

Lamentavelmente, o fervilhar das ideias que então se concreti-


zou não contribuiu para apagar a ideia antropológica mais enrai-
zada na nossa cultura, a de fazer do macho a verdadeira forma
da humanidade, e, pelo contrário, fazendo calar todas as novas
possibilidades de conceptualização do feminino que então emer-
giram, conseguiu vestir a mesma ideia com novas roupagens
(HENRIQUES, 2005, p. 2).

O feminismo está diretamente ligado à ideia de educação. Tanto


que a mulher foi educada para a fragilidade, a sensualidade e a sujeição,
divorciada da razão, enquanto que ao homem foi sempre atribuída a ra-
cionalidade. É o que se depreende da lição rousseauneana:

O Ser Supremo quis em tudo fazer honra à espécie humana: ao


dar ao homem inclinações desmedidas, deu-lhe, ao mesmo tem-
po, a lei que as regula, para que ele seja livre e se comande a
si mesmo; ao atribuir-lhe paixões imoderadas, juntou a essas
paixões a razão para as governar; ao atribuir à mulher desejos
ilimitados, juntou a esses desejos o pudor para os conter (ROU-
SSEAU, 1969, p. 37).

Josirene Candido Londero 85


Contrariamente a esse discurso, o projeto feminino, embora pre-
sente nas mentes de algumas mulheres atuantes nas diferentes épocas
da História, não obtinha o êxito necessário e esperado. Era, sim, abafado
pelo pensar dominante na nova realidade que brotava nas sociedades
e pelas lutas revolucionárias, nas quais a mulher deveria estar inseri-
da. Nesse contexto, historicamente, a mulher vem se mantendo fora da
“grande transmutação” (HENRIQUES, 2005, p. 7) verificada em todos os
níveis da vida humana. Ou seja, sempre que há uma manifestação fe-
minina, uma força maior a mover as mulheres, uma intenção maior de
representatividade e o retorno aos ideais de igualdade e de liberdade, há
também, uma força silente capaz de “excluir as mulheres dessa mundivi-
dência enriquecedora, postulando e definindo a sua diferença como um
estigma de desigualdade” (HENRIQUES, 2005, p. 8). Desse modo, o que
ainda persiste, embora as diversas tentativas de inclusão social e alguma
representatividade política e de poder, é a vontade política de recusa a
conferir às mulheres a igualdade e a participação com paridade relativa-
mente aos homens.
Assim, acredita-se que o modelo participativo seja, sim, a forma
mais adequada e democrática para reger as atividades nas arenas pú-
blicas para políticas de cunho laboral mais direcionado às necessidades
femininas, para que a paridade seja, realmente, efetiva. Partindo-se do
princípio de que o trabalho extralar é a forma mais rápida e eficaz de
autoafirmação e participação da mulher na gestão de seu próprio espaço,
é providencial um olhar acurado sobre a efetividade, a eficácia e a efi-
ciência no que concerne às políticas para a mulher nas relações laborais,
constituindo-se na pretensão deste estudo.

Participação social como caminho para a eficácia


das políticas públicas para a mulher

Mary Wollstonecraft talvez tenha preconizado a participação da


mulher nas arenas públicas, ao afirmar que “quero provar que tudo estará
bem depois” (WOLLSTONECRAFT, 1994, p. 120). Talvez, com isso, tenha
tentado, em lampejos visionários, atribuir maior força à mulher. Talvez
tenha tentado referir-se à modalidade de gestão do espaço público pela
participação social, como forma de gerar um pálio de luz, no qual a mu-
lher pudesse ascender a posições desde sempre desejadas, mas quase
sempre impedida.
A pesquisa realizada evidenciou que, desde meados dos anos 80,
a mobilização feminina por políticas públicas voltadas à inserção no tra-
balho, assim como na política, vem sendo acompanhada, de perto, pela
mídia e, nela, consubstanciado o embate entre as próprias políticas públi-
cas e a garantia de controles democráticos. Os modelos construídos para

Políticas públicas para o acesso da mulher ao mundo laboral no Brasil e na Argentina à luz do
86 princípio da participação social
esse enfrentamento caminham na direção da gestão pública participativa,
adotando-se responsabilização dos gestores, o incremento do controle e
a participação social, conclamando os cidadãos e as mais diversas organi-
zações (midiáticas, de comunicação, inclusive) a atuarem na gestão públi-
ca, enquanto atores políticos. Porém, a crise do Estado revela sua própria
impotência, no sentido da propositura, da implementação e da avaliação
das políticas públicas, carregando a impotência reforçada no despreparo
de seus próprios agentes, ou seja, da própria burocracia que constitui a
Administração Pública.

A crise do modelo burocrático de Administração Pública eviden-


cia com maior centralidade a crise do Estado (como corolário
de uma crise econômica) que não logra atender às demandas
geradas pela população de forma satisfatória; diante da crise,
afirmam que o aparato do Estado deveria primar pela eficiên-
cia, eficácia e efetividade das ações, avaliando os processos e
resultados de modo a possibilitar a reorientação estratégica da
Administração Pública de forma tempestiva (BRESSER-PEREIRA,
1998, p. 553).

É verdade que as sociedades latino-americanas, incluindo a brasileira,


revelam a pouca credibilidade nas instituições do Estado, o que inibe o
exercício da cidadania por parte dos grupos minoritários, especialmente,
o grupo de mulheres, reproduzindo a carência na construção da cidadania.
Esse processo indica a crise da governança e da governabilidade: de um
lado deficiências na capacidade de formulação, gestão, implementação,
avaliação e articulação das políticas públicas e, de outro, falhas no pró-
prio Estado, enquanto ator na arena política dos processos decisórios.
Assim, a participação dos cidadãos é necessária, para que políticas
de gênero no trabalho sejam formuladas por grupos minoritários (que
poderiam, inclusive, ser grupos locais), e (sejam) sugeridas as formas
de implementação dessas políticas, bem como, avaliadas por quem as
formulou, sanando-se prováveis deficiências, no sentido da correção dos
objetivos que não foram atingidos. Essa seria uma das formas de partici-
pação social a consubstanciar a prática de inclusão das mulheres nos pro-
cessos decisórios de políticas públicas que lhes sejam favoráveis, já que a
participação social foi erigida a princípio político-administrativo (BRESSER
-PEREIRA, 1998, p 553), tornando-se paradigma de inúmeros projetos de
desenvolvimento local, mas que faz a regência da Administração Pública
em todas as esferas. A participação social fomenta a participação dos se-
tores sociais e cria redes de cooperação, capazes de gerar e avaliar políti-
cas de sua elaboração, que possam converter-se em políticas inovadoras
e progressistas.
Existem alguns princípios que regem a participação social, como
forma de democratização das instituições sociais e a reafirmação de di-
reitos sociais, tais como:

Josirene Candido Londero 87


a) a participação social promove transparência na deliberação e
visibilidade das ações, democratizando o sistema decisório;
b) a participação social permite maior expressão e visibilidade
das demandas sociais, provocando um avanço na promoção da
igualdade e da equidade nas políticas públicas; e
c) a sociedade, por meio de inúmeros movimentos e formas de
associativismo, permeia as ações estatais na defesa e alarga-
mento de direitos, demanda ações e é capaz de executá-las no
interesse público (SILVA, 2011, p. 374).

Desse modo, a participação social passou a representar “um elemen-


to estruturante do Sistema Brasileiro de Proteção Social”, desempenhando
relevante papel no debate sobre a institucionalização e a execução de
políticas públicas (SILVA, 2011, p. 373), reunindo gestores públicos e en-
tidades privadas (de fins não lucrativos), para a organização de parcerias.
Nesse sentido, a institucionalização da Secretaria Especial de Políticas
para a Mulher, no Brasil, durante o Governo Lula, em sua primeira gestão,
pode ser considerada o marco inicial para as políticas de gênero no Brasil,
já que representou e representa, ainda, importante forma de atendimen-
to à mulher. Desde as primeiras ações governamentais por intermédio
desta Secretaria, o país vem vivenciando a criação de inúmeros centros,
núcleos, delegacias, unidades de cunho municipal, para o atendimento
da mulher.
Se analisado o caso da Argentina, assim como no Brasil, também
se espraiaram por todo o território daquele país inúmeras unidades de
atendimento à mulher no trabalho, constituindo-se em parcerias forma-
doras de conselhos, núcleos, centros, etc. No caso argentino, é possível
verificar que a maioria das parcerias foram realizadas entre o governo,
por intermédio do Consejo Nacional de la Mujer e grandes universidades
e faculdades daquele país nas diversas províncias. Isso demonstra quão
importante é a educação para a participação da mulher nas atividades
laborais.
Então, se a participação social das mulheres, enquanto cidadãs em
igualdade de condições em relação aos homens é lícita, permitida e, em
muitas vezes, acontece realmente, por que a luta da mulher não encontra
respostas mais efetivas e eficazes à atuação em paridade com o homem?
Se a mulher já galgou degraus importantes na direção de sua autonomia
social, política, econômica, laboral, etc., por que os dados estatísticos
demonstram que ainda percebem salários inferiores aos dos homens em
determinadas atividades? Que mecanismos estatais tentam restringir a
presença feminina no campo político (e também as formas que tal presen-
ça assume), se existem políticas de atendimento à mulher nas relações de
trabalho?
Para que essas questões sejam efetivamente respondidas, há que se
entender a atuação política feminina como uma das formas de trabalho da

Políticas públicas para o acesso da mulher ao mundo laboral no Brasil e na Argentina à luz do
88 princípio da participação social
mulher, já que ela vem participando ativamente de movimentos políticos,
nas mobilizações para a libertação feminina e no trabalho, obtendo-se,
com isso, o que propugna o Objetivo Nº 8 do Milênio, conforme Tabela 1.

Tabela 1 – Objetivos do milênio na Argentina e no Brasil


Objetivos do Milênio: 3 - Promover a igualdade entre os sexos e a auto-
nomia das mulheres:

Proporção de mulheres exercendo mandatos no parlamento nacional (%)

Fonte: IBGE. Disponível em: <www.ibge.gov.br>, 2009.

A Tabela 1 demonstra que de 1990 até o ano de 2006, na Argenti-


na, o número de mulheres no Parlamento cresceu de 6,3 (1990) para 35,0%
(2006). Dentre as brasileiras, cresceu apenas de 5,3 % (1990) a 8,6 % (2006).
Dados como estes conduzem ao raciocínio de que podem existir mecanismos
repressores a agirem sobre a ação feminina, especialmente no Brasil. Esses
instrumentos negam à mulher um acesso mais efetivo, deduzindo-se daí sua
existência camuflada e silente no seio social e político. Desta forma, é possí-
vel aferir a relação íntima entre o campo político e os mecanismos de hierar-
quização da política, “vinculados ao prestígio diferenciado que se concede a
trajetórias, cargos e temáticas e que guardam correlação com os padrões de
visibilidade nos meios de comunicação” (MIGUEL; BIROLI 2011, 18 p.).
Assim sendo, pode-se afirmar que existe influência direta da mídia
na atuação política (e também nas políticas laborais) das mulheres, assim
como, sobre o movimento de mulheres e sobre as relações de gênero. A
mídia adotaria as posições, o discurso e até os estereótipos que se apre-
sentam no seio social. É absolutamente correto afirmar que contribui para
que a mulher continue a ser discriminada, corroborando a “sub-represen-
tação e a marginalização das mulheres” (MIGUEL; BIROLI, 2011, 18 p.).
Certo também é que o poder decisório está associado à representa-
tividade política e à tomada de decisões, que “não esgota a atividade de
representação política”, já que esta é a última etapa de “um processo que
inclui, notadamente, a discussão pública sobre as questões de interesse
coletivo”(MIGUEL; BIROLI, 2011, 18 p.).
Esse processo é responsável pela formação da agenda e das prefe-
rências femininas, o que acontece, em verdade, nos vários espaços so-
ciais. Estes espaços estariam a influenciar, de modos diferentes e também

Josirene Candido Londero 89


em graus especiais, as decisões políticas de benefícios para as mulheres.
As decisões políticas, por sua vez, teriam como nascedouro as institui-
ções sociais, formadas pela burocracia, nem sempre detentora das condi-
ções necessárias à eficácia desse processo (MIGUEL; BIROLI, 2011).
Nos anos 90, as sociedades presenciaram “a institucionalização da
consulta da população em geral, de associações, dos sindicatos, dos ex-
perts e de segmentos empresariais no processo de formulação de políti-
cas públicas”. Vivenciou-se a “descentralização do poder decisório e tam-
bém a ampliação e a institucionalização da participação” (MILANI, 2008,
p. 555). Essa participação vem sendo entendida como sendo a forma de
intervenção individual e/ou coletiva que supõe ações variadas e com-
plexas, determinadas por relações entre pessoas, que formam redes de
cooperação entre pessoas, grupos e instituições com o Estado.
A participação social, também denominada de participação cidadã,
supõe cidadania ativa. Esta, no entanto, define quem é incluído e quem
não integra a comunidade política, excluindo-os, restando definidas “as
esferas marcadas por relações de conflitos e pode comportar manipula-
ção”, por detrás “da implementação de regras democráticas, controle do
poder burocrático, a negociação ou, inclusive, a mudança progressiva de
cultura política” (MILANI, 2008, p. 560).
No caso brasileiro, por exemplo, “a participação é um elemento
central nos processos de reforma democrática do Estado desde a Cons-
tituição de 1988”, porém, “as desigualdades na representação política e
social dentro dos processos de formação da vontade política influenciam
a composição da agenda social” (MILANI, 2008, p. 555). O que se verifica
nos processos participativos é “a intensidade desigualmente distribuída;
outra seria a falta de representatividade social do universo de pessoas
e organizações que participam”, o que leva a afirmar que não se trata
somente de estimular as pessoas a participarem mais do processo de for-
mulação de políticas públicas, “mas de assegurar a qualidade dessa parti-
cipação” (MILANI, 2008, p. 564) Ocorre que no Brasil e na Argentina, nem
sempre esses processos acontecem de forma sadia, já que as chamadas
‘parcerias’, no mais das vezes, restam sem efeito, se analisadas as práti-
cas empregadas em sua gestão. Isso porque “a participação de atores di-
versificados é estimulada, mas nem sempre é vivida de forma equitativa”
e a prática efetiva das parcerias “parece ter dificuldades em influenciar os
processos de deliberação democrática local”(MILANI, 2008, p. 564).
De outro lado,

os atores não governamentais (e somente alguns deles) são con-


sultados e solicitados durante o processo de tomada de deci-
sões, participando, assim e no melhor dos casos, somente antes
e depois da negociação. A participação praticada dessa forma
pode aumentar a qualidade da transparência dos dispositivos
institucionais; contudo, ela não garante, de modo necessário e
automático, a legitimidade do processo institucional participati-
vo na construção do interesse coletivo (MILANI, 2008, p. 556-7).

Políticas públicas para o acesso da mulher ao mundo laboral no Brasil e na Argentina à luz do
90 princípio da participação social
Na América Latina e com reflexos no Brasil e na Argentina, os ajus-
tes do FMI - Fundo Monetário Internacional marcaram o processo de mu-
danças nos processos de políticas públicas, aproximadamente entre o
final dos anos 80 e início dos anos 90. Nesse período, o discurso era
de que a participação social teria fundamental papel na gestão eficiente
dos bens públicos, já que os cidadãos teriam direito à opinião desde a
formulação até a avaliação de políticas que lhes fossem favoráveis, o que
representou “resposta possível à crise do bem-estar e à necessidade de
rever as relações entre o governo e a sociedade na definição de estraté-
gias de desenvolvimento local”. No mesmo norte, encontrar soluções no
âmbito local da gestão pública representou o caminho ideal na busca de
soluções para a crise no desenvolvimento nacional dos dois países. No
entanto, se observados os limites socioeconômicos, simbólicos e políti-
cos, denotar-se-á que eles funcionam como obstáculos à participação. No
dizer de Fuks e Perissinotto, esses limites podem, inclusive, aprofundar a
desigualdade política no âmbito dos próprios dispositivos participativos.
(FUCKS, 2006).

Políticas públicas para a mulher no Brasil


e na Argentina

A participação social dos cidadãos em processos de gestão de or-


dem administrativa e política (reforma democrática do Estado), especifi-
camente no caso brasileiro, é elemento central desde o advento da Cons-
tituição de 1988 que, em seu art. 29, evidencia o princípio da cooperação
entre associações, governos, movimentos sociais e, até mesmo, a parti-
cipação direta do cidadão na gestão da assistência social, nas questões
que envolvem crianças, adolescentes e educação (arts. 194, 198, 204,
206 e 227, da CRFB/1988). Esse discurso constitucional é extensivo às
mulheres, já que da Carta Maior decorrem as leis especiais de atendimen-
to à causa da mulher, como os Conselhos de Mulheres, enquanto políticas
decorrentes do Consejo Nacional de La Mujer (no caso argentino) e da
Secretaria Especial de Políticas para a Mulher (no caso brasileiro).

Esse contexto é determinado por uma série de aspectos, tais


como a existência de arenas alternativas, o desenho institucional
dos conselhos, a interferência do governo na eleição dos repre-
sentantes não governamentais, a existência de valores e ethos
específicos de cada policy domain, bem como a natureza da re-
lação entre governo e sociedade civil (diretamente influenciada
pelo grau de associativismo e a orientação ideológica do Poder
Executivo) (MILANI, 2008, p. 555).

No exemplo argentino, em fevereiro de 2009, mulheres e homens


integrantes da CTIO (Comisión para El Trabajo com Igualdad de Opor-

Josirene Candido Londero 91


tunidades) renovaram seu compromisso de trabalho, mediante a elabo-
ração de um novo acordo, marco que constituiu o que se convencionou
chamar de ‘Diálogo Social para a Igualdad de Trato y Oportunidades
de Mujeres y Varones en el âmbito laboral’. Esse compromisso firmou
alguns objetivos, quais sejam: a) aprofundar a democracia com as polí-
ticas de igualdade de oportunidades para todas e todos, considerando
que sem justiça social e sem equidade de gênero, a democracia não é
possível; b) garantir, através de direitos coletivos no âmbito laboral os
direitos individuais de trabalhadoras e trabalhadores; c) oportunizar ao
Estado a garantia da paridade na distribuição das riquezas nacionais,
amparando a todas as cidadãs e cidadãos em seu direito de acesso aos
recursos naturais, sociais, culturais, econômicos e técnicos; d) colaborar
com a capacitação sindical de trabalhadoras e trabalhadores, fortalecen-
do as organizações, respeitando sua autonomia e democracia interna e
incluindo a perspectiva de gênero em seus programas, para conseguir
alcançar a participação social igualitária das trabalhadoras no processo
de negociação coletiva e o cumprimento da Ley de Cupo Sindical (FAI-
LLACE, 2009, p. 37-8).
Também é de se destacar as políticas da CTIO na eliminação das
desigualdades de gênero no trabalho, efetivando a transversalidade de
gênero em todos os órgãos públicos, como forma de cumprimento com
os compromissos assumidos junto a organismos internacionais. As políti-
cas de buenas prácticas laborais para o trabalho digno e o fortalecimento
institucional e político das mulheres também são atendidos pela CTIO
(FAILLACE, 2009, p. 37-8).
É certo afirmar que, se de um lado a participação social é efetivada
e as mulheres afirmam-se enquanto cidadãs, reunindo-se em grupos de
ação, buscando força política para suas ações e constituindo organiza-
ções, de outro, tem-se limitações a essas ações. Essas limitações estariam
fulcradas em riscos que a própria política participativa traz, dentre eles,
“o caráter dispersivo das iniciativas dos governos, o que pode debilitar o
conjunto da política social” (MILANI, 2008, p. 556). Assim,

La existência y permanência de los actores que participan en


la CTIO parte de la profunda convicción de que la democracia
más equitativa y inclusiva requiere de la capacidad de elaborar
estrategias para enfrentar las desigualdades y discriminaciones
que también se observan en el mundo laboral (ANGRIMAN, 2009,
p. 39).

Também pode ser verificado o princípio da cooperação e da par-


ticipação entre as argentinas nos projetos de recuperação da memória,
nos quais há a revalorização da cultura do trabalho dentre as mulhe-
res. Isso pode ser evidenciado quando da organização de atos de reco-
nhecimento a mulheres destacadas por suas respectivas práticas, des-
de o convencimento de que é preciso visibilizar as lutas das mulheres

Políticas públicas para o acesso da mulher ao mundo laboral no Brasil e na Argentina à luz do
92 princípio da participação social
argentinas, como forma de redefinir a sua participação na construção
política e social, incorporando novas propostas à agenda de políti-
cas, que considerem as mulheres como cidadãs e cidadãs com direitos
(HAMMAR, 2011).
Portanto, é necessário que os governos estabeleçam suas neces-
sidades e construam redes de cooperação e coordenação efetiva entre
todas as instâncias de poder. Estas Redes de Cidadania são ações pro-
postas pelo governo brasileiro, por exemplo, por intermédio da Secreta-
ria Especial de Políticas para Mulheres (SEPM). Na constituição das redes
para a ação coletiva em prol da mulher, alguns serviços funcionam como
“portas de entrada”, tais como centros de referência, centros de apoio
jurídico, centros e núcleos de apoio à mulher trabalhadora. No entanto,
embora o organograma evidencie aparente efetividade, várias falhas fo-
ram encontradas na implementação desta política pública, o que condu-
ziu o governo brasileiro à constituição do que foi chamado de Centros
de Referência e Rede de Cidadania, conforme bem demonstra a Figura
1, que segue:

Figura 1 - Redes de Cidadania


Fonte: Secretaria Especial de Políticas para a Mulher, 2007.

Para que haja eficácia e efetividade na implementação das políticas


públicas de atenção à mulher no trabalho, a ação estatal é incisiva, ado-
tando-se uma forma diferenciada de enfrentamento aos casos de discri-

Josirene Candido Londero 93


minação e desigualdade, hoje compreendidos como problema de todos,
“complexo em suas repercussões e prejuízos, sobretudo, que exige uma
ação global envolvendo a sociedade e o Estado, que põem em marcha as
novas políticas públicas sugeridas” (BRASIL, 2003, p. 44).
Porém, isso, por si só, não basta. É necessário, ainda, que existam
mecanismos institucionais que garantam regras contínuas e eficazes para
a elaboração das políticas equitativa de atendimento e proteção à mulher,
para que o empoderamento desta seja efetivo, eficaz e eficiente para a
solução dos problemas ainda por ela enfrentados em sua inserção no
mercado de trabalho.

Considerações finais

As políticas públicas de gênero à época da análise existiram, tanto


que o Consejo Nacional de la Mujer, na Argentina, e o Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher, no Brasil, deram conta das primeiras mobilizações
nestes países, capitaneados por mulheres de renome e comprometidas
com a causa. Lamentavelmente, as duas tentativas que tiveram nasce-
douro brilhante, restaram enfraquecidas por questões políticas. No en-
tanto, denota-se da atuação feminina nos diversos setores sociais, em
ambos os países, a luta pela igualdade laboral.
É certo afirmar que, mesmo diante dos importantes avanços que
ocorrem no status da mulher, ainda são verificadas desvantagens femi-
ninas. Isso exige da mulher a percepção de seu papel social ao longo do
tempo. Certo também é que as desvantagens percebidas no âmbito la-
boral obstaculizam a dedicação da mulher no trabalho formal, o que, em
muito, contribuiu e contribui para o aprofundamento das desigualdades
em relação aos homens e, exatamente esse fator, colabora para a constru-
ção da representação social negativa da mulher.
Note-se que, quando as mulheres se organizam em instituições
diferenciadas, quer públicas ou privadas, compartilhando atitudes e
simbologias, é possível perceber-se a construção da realidade feminina.
Esta situação permite a orientação de atitudes e de simbologias em prol
da execução efetiva de políticas voltadas para a mulher. Foi exatamen-
te essa construção a responsável por políticas como as criações dos
Conselhos de Mulheres nos dois países em foco neste estudo. Essas
políticas garantiram à mulher o acesso ao mercado de trabalho, o que
representou, também, importante transformação que consistiu em um
processo modelador de ações futuras. Isso fez com que as mulheres fos-
sem vistas como “agentes ativos de mudanças: promotoras dinâmicas
das transformações sociais que podem alterar a vida dos indivíduos em
geral” (SEN, 2000, p. 221).
Mesmo assim, políticas implementadas nos postos laborais podem,
por vezes, discriminar as mulheres pelo fato de estabelecerem hierar-

Políticas públicas para o acesso da mulher ao mundo laboral no Brasil e na Argentina à luz do
94 princípio da participação social
quização em situação de desigualdades, geradoras de dominação rela-
cionadas com o poder. Fatores externos ao próprio mercado de trabalho
podem influenciar na empregabilidade das mulheres, em especial as mu-
lheres de baixa renda, geralmente operárias. Denota-se a necessidade
de uma política de mão de obra aliada às mudanças na chamada insti-
tucionalidade trabalhista. Significa afirmar que são necessárias políticas
públicas que incorporem a especificidade da empregabilidade da mulher
para uma maior participação da mulher brasileira e argentina no mercado
de trabalho.
A mudança institucional e o advento de novos modelos legais
em prol da igualdade de gênero no mercado de trabalho são necessá-
rios, mas nem sempre efetivos e eficazes, ou seja, nem sempre são
suficientes para ofertar maior empregabilidade feminina nos merca-
dos de trabalho da Argentina e do Brasil. Isso porque o preconceito
patriarcal que se arrasta por séculos é o principal óbice, praticamen-
te intransponível, para o êxito feminino no trabalho, com um maior
acesso a postos de direção, postos técnicos e políticos. O que se
verifica é a manutenção das estruturas arcaicas nas estruturas legais
que se apresentam.
Nesse contexto, a participação social de forma aberta, oportuni-
zando à mulher acesso a cargos políticos, à representatividade pública e
à participação em todas as searas com igualdade de condições e clareza,
será o caminho otimizador. Do mesmo modo, as ações afirmativas po-
derão representar o caminho a ser percorrido no sentido da existência
de políticas ativas de mão de obra, incorporando a dimensão de gênero,
como condição necessária para acrescentar a empregabilidade feminina,
permitindo competitividade sadia entre homens e mulheres no mercado
de trabalho.
Vislumbra-se o terceiro milênio merecedor de maior atuação femi-
nina em funções antes ocupadas somente por homens, o que vem deli-
neado nas agendas futuras que traduzem diversas atividades e propostas
otimizadoras da atuação feminina. Dentre essas agendas, pode-se enu-
merar aquela que permite a geração de maior investigação interdiscipli-
nar do impacto da globalização sobre a atuação feminina nos mercados
de trabalho mundializados.
A agenda de políticas públicas para a mulher deve consubstanciar
modelo de equilíbrio dinâmico, que incorpore a variável de gênero, bem
como as particularidades das economias em desenvolvimento. Aliados a
estas políticas, estão os estudos sobre os efeitos da abertura comercial
externa e a privatização da atividade produtiva em grupos diferenciados
de mulheres, setores econômicos e países, bem como estudos sobre os
processos de reestruturação produtiva (MUNSTER, 2001).

Josirene Candido Londero 95


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Josirene Candido Londero 97


VIOLÊNCIA INTRAFAMILIAR E A
VIOLAÇÃO DOS DIREITOS
DA MULHER

Jeferson Jeldoci Pol29


Lisiana Carraro30

29 Acadêmico do Curso de Direito da Universidade FEEVALE. Acadêmico voluntário de


Extensão do Projeto NADIM – Núcleo de Apoio aos Direitos da Mulher e AJCG - Assistên-
cia Jurídica e Contábil Gratuita da Universidade FEEVALE, Pesquisador Bolsista CNPq.
E-mail: 0035371@feevale.br.
30 Advogada, graduada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, Mestre
em Direitos Fundamentais pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA, docente das
instituições ULBRA, Universidade FEEVALE e Faculdades Integradas São Judas Tadeu, Ori-
entadora do Projeto de Extensão NADIM – Núcleo de Atendimento aos Direitos da Mulher
e Projeto de extensão AJCG – Assistência Jurídica Contábil e Gratuita da Universidade
FEEVALE. E-mail: lisianacarraro@feevale.br

98 Violência intrafamiliar e a violação dos direitos da mulher


Considerações iniciais

A violência doméstica é um fenômeno que assola o mundo, tendo


proporções bastante elevadas e vem sendo denunciada desde os anos
60/70 pelos movimentos feministas. Abrange a família, não atingindo
apenas as mulheres, mas também crianças, pessoas idosas, deficientes
e dependentes. Trata-se de um fenômeno complexo, composto por di-
versos fatores, sejam eles, sociais, culturais, psicológicos, ideológicos, e
econômicos. A violência contra as mulheres e crianças foi considerado o
maior crime contra a Humanidade, na Conferência Mundial dos Direitos
Humanos realizada em Viena em 1993, tendo mais vítimas do que qual-
quer guerra mundial.
No Brasil, no ano de 2006, o Congresso aprovou a Lei 11.340, po-
pularmente denominada Lei Maria da Penha em homenagem à Maria da
Penha Maia Fernandes, que por vinte anos lutou para ver seu marido-a-
gressor preso, após muita luta e pressões internacionais, inclusive da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), que, pela primeira
vez, acatou uma denúncia de violência doméstica.
A violência doméstica é tratada por alguns autores como um fe-
nômeno que assume proporções bastante elevadas, por todo o mundo.
Parece claro que não é um fenômeno moderno e sim algo que sempre
existiu através dos costumes. O fenômeno de fato, foi passar a discutir
estas relações e atitudes sob uma ótica diferente do machismo dominan-
te. Segundo Morgado (2001), trata-se de um fenômeno antigo, presente
em todas as classes sociais e em todas as sociedades, das mais desen-
volvidas às mais vulneráveis economicamente, compreendendo um con-
junto de relações sociais que complexificam sua natureza. Trata-se de um
problema que atinge ambos os sexos, com maior incidência no gênero
feminino, e não costuma obedecer a nenhum nível social, econômico, re-
ligioso ou cultural específico.

Histórico da violência doméstica e de sua legislação


A transformação da sociedade vem produzindo modificações em
leis, costumes e princípios protetivos à mulher em uma velocidade ainda
não adequada. Essas diferenças são reflexos da herança de uma socieda-
de patriarcal, que colocam o homem à frente, como provedor.
Historicamente, pode se ver na própria construção do direito pá-
trio, no qual a influência das Ordenações Filipinas refletia no Brasil do
século XIX, através de uma série de disposições vigentes do Código Ci-
vil de 1916, com muitos “princípios conservadores” que mantinham as
desigualdades de direitos da mulher que era considerada relativamente
incapaz e seu domicilio era o do marido, assumindo a condição de com-

Jeferson Jeldoci Pol e Lisiana Carraro 99


panheira, consorte e colaboradora nos encargos da família.
Segundo Veyne:

[...] esta legislação, inspirada na de Portugal, que se baseava no


poder patriarcal da idade média, estabelecendo vinculação de
propriedade e jugo da mulher ao homem, fortalecendo a condi-
ção de disparidade entre os gêneros. Havia permissão para que
marido aplicasse castigos físicos na mulher e a matasse, se sur-
preendida em adultério. Ainda, exercia o pátrio poder com exclu-
sividade sobre a mulher que dependia de sua autorização para a
prática de todos os atos da vida civil. Neste período o casamento
poderia ser anulado pelo marido se o defloramento da mulher
fosse ignorado. O modelo importado “das sociedades europeias,
no que se refere ao papel social da mulher, perpetuaram o mode-
lo já observado na Roma antiga, com o confinamento da mulher
às atividades do lar e da família, que se aprofundou no período
da Inquisição e dos Tribunais do Santo Ofício (1987, p. 19-20).

Em 1922 foi fundada a Federação Brasileira para o Progresso Femi-


nino tendo à frente Bertha Lutz, líder feminista de destaque no país. Desta
iniciativa nasce a luta em prol dos direitos políticos da mulher discutindo
a igualdade de gênero na família, no acesso à educação e na ocupação
de espaços públicos, já propondo, em dezembro de 1927, no Senado
Federal, o Requerimento nº 47, com duas mil assinaturas, pleiteando a
aprovação do projeto que possibilitava direito ao voto feminino que veio
a ocorrer através do Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro do ao de 1932,
que dizia: “Art. 2º É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de
sexo, alistado na forma deste Código”.
As Leis especiais, no Brasil, passaram a dar um diferencial a este
olhar “importado” de desigualdade. O Decreto nº 21.417-A de 1932 que
regulamentou a atividade da mulher na área industrial e comercial em seu
art. 1º estabeleceu: “Art. 1º. Sem distincção de sexo, a todo trabalho de
egual valor corresponde salario egual”.
Na constituição de 1946, para alguns houve um retrocesso, pois
suprimiu do texto legal a distinção de sexo. Por outro lado, segundo o
Professor Walter Costa menciona:

Há 80 anos mulheres conquistaram o direito de votar e ser vota-


das. Já a Constituição de 1946, finalmente, nem se preocupou em
especificar os brasileiros de um e outro sexo. Tão claro estava,
agora, que não se poderia afastar o sufrágio feminino, que afir-
mou, simplesmente: Art. 131. São eleitores os brasileiros maiores
de 18 anos que se alistarem na forma da lei. (2000, p. 70).

No cenário internacional, em 26 de Junho de 1945 foi assinada em


San Francisco, a Carta das Nações Unidas, na conclusão da Conferência
das Nações Unidas sobre Organização Internacional, entrando em vigor
em 24 de outubro de 1945. Em seu capítulo I, de propósitos e princípios
estabelece:

100 Violência intrafamiliar e a violação dos direitos da mulher


Artigo 1 º: Os objetivos das Nações Unidas são:
[..]
3. [..]resolver os problemas internacionais de caráter econômico,
social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o
respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para
todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião;

A partir daí, há uma preocupação internacionalizada de direitos hu-


manos das mulheres, onde o Brasil é signatário e, portanto, engajado e
comprometido na delineação de tais direitos. Piovesan explica que:

O Direito dos Direitos Humanos não rege as relações entre iguais;


opera precisamente em defesa dos ostensivamente mais fracos.
Nas relações entre desiguais, posiciona-se em favor dos mais
necessitados de proteção. Não busca obter um equilíbrio abs-
trato entre as partes, mas remediar os efeitos do desequilíbrio
e das disparidades. Não se nutre das barganhas da reciprocida-
de, mas se inspira nas considerações de ordre public em defesa
de interesses superiores, da realização da justiça. É o direito de
proteção dos mais fracos e vulneráveis, cujos avanços em sua
evolução histórica se tem devido em grande parte à mobilização
da sociedade civil contra todos os tipos de dominação, exclusão
e repressão. Neste domínio de proteção, as normas jurídicas são
interpretadas e aplicadas tendo sempre presentes as necessida-
des prementes de proteção das supostas vítimas (1996, p. 45).

Ainda sobre violência, a Declaração Universal surge como uma res-


posta a essas truculências. Nesse sentido, destaca Piovesan que:

[...] a Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma or-


dem pública mundial fundada no respeito à dignidade humana,
ao consagrar valores básicos universais. Desde seu preâmbulo,
é afirmada a dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de
direitos iguais e inalienáveis. Vale dizer, para a Declaração Uni-
versal a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para
a titularidade de direitos. A universalidade dos direitos humanos
traduz a absoluta ruptura com o legado nazista, que condicionava
a titularidade de direitos à pertinência à determinada raça (a raça
pura ariana). A dignidade humana como fundamento dos direitos
humanos é concepção que, posteriormente, vem a ser incorpora-
da por todos os tratados e declarações de direitos humanos, que
passam a integrar o chamado Direito Internacional dos Direitos
humanos. (1996, p. 87).

Nesta esteira, a Constituição de 1988 reconheceu a importância


da igualdade de gêneros, pois esta discriminação histórica traz impactos
negativos tanto econômicos como sociais no país e no mundo. Dispõe
em seu art. 5º, caput e incisos I e XLI, sobre o princípio constitucional da
igualdade, perante a lei, nos seguintes termos:

Jeferson Jeldoci Pol e Lisiana Carraro 101


Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos
termos desta Constituição;
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos
e liberdades fundamentais;

Vai além trazendo dois diferenciais específicos no art. 7º:

Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de


outros que visem à melhoria de sua condição social:
XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário,
com a duração de cento e vinte dias;
XXX - proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de
critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil;

O princípio da igualdade consagrado pela Constituição opera em


dois planos distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio Po-
der Executivo, na edição, respectivamente, de leis, atos normativos e me-
didas provisórias, impedindo que possam criar tratamentos abusivamen-
te diferenciados a pessoas que se encontram em situação idêntica. Em
outro plano, na obrigatoriedade ao intérprete, basicamente, a autoridade
pública, de aplicar a lei e atos normativos de maneira igualitária, sem es-
tabelecimento de diferenciações em razão de sexo, religião, convicções
filosóficas ou políticas, raça e classe social. (MORAES, 2002, p. 65).
Por outro lado, Habermas fala da importância do Estado para que se
estabeleça e se concretize os princípios que visam organizar a sociedade
de forma justa, in verbis:
O Estado é necessário corno poder de organização, de sanção e
de execução, porque os direitos têm que ser implantados, porque
a comunidade de direito necessita de urna jurisdição organizada
e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a formação
da vontade política cria programas que têm que ser implementa-
dos. Tais aspectos não constituem meros complementos, funcio-
nalmente necessários para o sistema de direitos, e sim implica-
ções jurídicas objetivas, contidas in nuce nos direitos subjetivos.
Pois o poder organizado politicamente não se chega ao direito
como que a partir de fora, uma vez que é pressuposto por ele: ele
mesmo se estabelece em formas do direito. O poder político só
pode desenvolver-se através de um código jurídico institucionali-
zado na forma de direitos fundamentais. (1997, pg.171).

Mais ainda,

A pretensão a iguais direitos, numa associação espontânea de


membros do direito, pressupõe uma coletividade limitada no
espaço e no tempo, com a qual os membros se identificam e
à qual eles podem imputar suas ações como partes do mesmo
contexto de interação. A fim de constituir-se com a comunidade

102 Violência intrafamiliar e a violação dos direitos da mulher


de direito, tal coletividade precisa dispor de uma instância cen-
tral autorizada a agir em nome do todo. Isso atinge o aspecto da
autoafirmação sob o qual o Estado instaura sua capacidade para
a organização e auto-organização destinada a manter, tanto para
fora como para dentro, a identidade da convivência jurídica emi-
nentemente organizada. (HABERMAS, 1997, pag.170).

Habermas, também fala da importância do sistema jurídico na coorde-


nação das ações para se concretizar o princípio da igualdade mencionando
que o Estado de Direito forma-se, tanto empírica como normativamente, me-
diante uma conexão interna entre direito e política. (HABERMAS, 1997, p. 179).

Violência Doméstica e Intrafamiliar e a


Realidade Brasileira

A violência doméstica se manifesta por meio de relações entre o


homem, sua companheira e sua família envolvendo fatores culturais mui-
to enraizados na sociedade. Refere a uma relação de poder: trata-se de
um processo de intimidação e medo constantes, embora subliminar, e às
vezes nem tanto, assumindo diversas formas, e não apenas a agressão
física que é a forma mais visível e punível no meio. É bem verdade que
a violência praticada e respaldada pela lei é muito mais ampla, assume
muitas formas – física, sexual, psicológica e econômica.
A Lei 11.340/06 trata especificamente do problema da violência
contra a mulher e busca proporcionar aos desiguais, medidas desiguais
para que se alcance a igualdade entre os gêneros. Pode-se visualizar em
seu preâmbulo e disposições gerais a seguinte redação:

Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar


contra a mulher, nos termos do § 8 do art. 226 da Constituição
Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interameri-
cana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Fa-
miliar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Có-
digo Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.

DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

Art. 1º Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência


doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8 do art.
226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação
de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra
a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela Re-
pública Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece
medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de
violência doméstica e familiar.

Jeferson Jeldoci Pol e Lisiana Carraro 103


Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,
orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e reli-
gião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa huma-
na, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para
viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu
aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Art. 3º Serão asseguradas às mulheres as condições para o exer-


cício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimen-
tação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao
esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignida-
de, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
§ 1º O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os
direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e
familiares no sentido de resguardá-las de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
§ 2º Cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições
necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput.
Art. 4º Na interpretação desta Lei, serão considerados os fins so-
ciais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculia-
res das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Para Habermas, o estado liberal e o do bem-estar social não conse-


guiram fazer o suprimento das questões do direito feminino. A política
liberal procurou dar garantias às mulheres de igualdade no plano do traba-
lho, importância social, qualidade de educação formal, acesso político, etc.

Inicialmente, a política liberal tencionou desacoplar conquista de


status e identidade de gênero, bem como garantir às mulheres uma
igualdade de chances na concorrência por postos de trabalho, pres-
tígio social, nível de educação formal, poder político etc. A igual-
dade formal parcialmente alcançada, no entanto, só fez evidenciar
a desigualdade de tratamento factual a que as mulheres estavam
submetidas. A política sócio estatal sobretudo no âmbito do direito
social, trabalhista e de família, reagiu a isso com regulamentações
especiais, relativas a gravidez ou maternidade, ou então a encar-
gos sociais em casos de divórcio. Nesse ínterim, não apenas as
exigências liberais irresolvidas, mas também as consequências am-
bivalentes de programas socioestatais implementados com êxito
tornaram-se objeto da crítica feminista — por exemplo, os riscos
decorrentes do trabalho, que cresceram por causa das compensa-
ções sociais acima mencionadas, a presença excessiva de mulheres
nas camadas de remuneração mais baixas, o problemático “bem
-estar da criança”, a crescente “feminização” da pobreza de modo
geral etc. De um ponto de vista jurídico, urna razão estrutural para
essa discriminação criada por via reflexiva consiste nas classifica-
ções sobre generalizantes que se aplicam a situações lesantes e
pessoas lesadas. Pois as classificações “erradas” levam a interven-
ções no modo de vida em questão, que o “normalizam” e que per-
mitem converter as almeja das compensações de perdas em novas
discriminações, ou seja, permitem converter garantia de liberdade
em privação de liberdade. Em áreas do direito feminista, o paterna-
lismo socioestatal assume um sentido literal, já que o poder legis-
lativo e a jurisdição se orientam conforme modelos tradicionais de
interpretação, o que só corrobora estereótipos sobre a identidade
de gênero ora vigentes. (HABERMAS1, 2002, pag. 236)

104 Violência intrafamiliar e a violação dos direitos da mulher


A partir da criação de mecanismos criados pela Secretaria de Políti-
cas para Mulheres, a sociedade passou a visualizar os problemas ligados
a esta chaga social. Os números abaixo são ligações recebidas pela Cen-
tral de Atendimento à Mulher:

Gráfico 1 – Número de atendimentos -


Central de atendimentos à Mulher

No Gráfico 2, percebe-se a distribuição dos registros, com relatos


de violência, atendidos pela Central de Atendimento à Mulher dos anos
de 2011 e 2012. Os tipos de violência estão contidos na Lei 11.340/2006
em seu art.7º, in verbis:

Art. 7º - São formas de violência doméstica e familiar contra a


mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que
ofenda sua integridade ou saúde corporal;
II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta
que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou
que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, cren-
ças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição con-
tumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limita-
ção do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause
prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que
a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação
sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou
uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qual-
quer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravi-
dez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de

Jeferson Jeldoci Pol e Lisiana Carraro 105


seus direitos sexuais e reprodutivos;
IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta
que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de
seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais,
bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os
destinados a satisfazer suas necessidades;
V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que con-
figure calúnia, difamação ou injúria.

A agressão física vem em destaque no primeiro lugar, com mais da


metade das denúncias e logo a seguir a psicológica e a moral.

Gráfico 2 – Tipos de violências sofridas.

Por tratar-se de violência doméstica, há um claro destaque para a


figura do companheiro e cônjuge que ocupam acima de 63%. Mais ainda,
percebe-se que a violência não finda com o fim da relação e, mais grave,
já há violência durante o início da relação.

Gráfico 3 – Relação com o agressor

106 Violência intrafamiliar e a violação dos direitos da mulher


A Síntese de Indicadores Sociais revela que a violência doméstica dei-
xa marcas, e não apenas nas vítimas diretas que são as mulheres agredidas,
mas nos filhos, que testemunham as brigas. Para especialistas, presenciar
agressões no âmbito do lar, tem presença nociva no desenvolvimento de
adolescentes e crianças, que reagem de diversas maneiras a estas experiên-
cias, muitos reproduzindo as condutas com comportamentos violentos.

No Gráfico 4 pode-se perceber o alto índice de filhos que presen-


ciam as agressões, o que certamente leva à manutenção e fortalecimento
da cultura da violência doméstica.

Gráfico 4 – Relação de filhos e filhas com a violência

Como a violência doméstica e familiar contra a mulher acontece no


seio do lar no qual residem a vítima, o autor e os demais componentes
familiares, filhos principalmente, torna-se comum, o agressor aprovei-
tar-se do contexto de convivência e de laços familiares, intimidando a
mulher coibindo-a de informar e relatar a violência sofrida às autoridades
competentes. Dentro desta lógica há a reiteração e a naturalização da vio-
lência, percebendo-se a mulher sem meios para cessar esta convivência,
aguentando o comportamento de vítima de violência doméstica fazendo
a manutenção do lar e de seus filhos.
Todavia, este comportamento gera outro fator extremamente nega-
tivo. Os filhos e filhas vivenciando a violência, no futuro, podem repetir
as condutas perpetuando um modo de vida nefasto a todos.
No Gráfico 5 pode-se a ver a grande proporção de vítimas de violên-
cia com mais de 10 anos de relação de convivência. Muitos destes casos
podem ter origem no momento em que os atores estão namorando.

Jeferson Jeldoci Pol e Lisiana Carraro 107


Gráfico 5 - Tempo de relação com o agressor

Considerações Finais
Ao longo da história da humanidade, os mais diversos acontecimen-
tos foram alterando gradativamente o entendimento da violência entre os
seres humanos. Contemporaneamente, prevalece a perspectiva afirmada
logo no 1º art. da Declaração Universal dos Direitos Humanos que afirma
que “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras
com espírito de fraternidade”, a qual exclui qualquer tipo de violência.
Combater a violência doméstica é um dos maiores desafios impos-
tos ao Estado brasileiro. São diversas as formas de violência praticadas no
âmbito doméstico por parceiros íntimos ou familiares, alguns culminando
com o feminicídio. São violações que atentam contra os direitos humanos,
incompatíveis com o Estado Democrático de Direito e com os avanços con-
quistados a duras penas pelo gênero feminino nos últimos séculos.
É necessário dar um fim às diversas manifestações de violência con-
tra as mulheres, sobretudo em sua forma mais extrema: o assassinato. Im-
portante lembrar que os assassinatos de mulheres são, majoritariamente
praticados, por parceiros íntimos. Embora haja um destaque especial com
a chamada Lei Maria da Penha, diploma legal para enfrentamento da violên-
cia doméstica e familiar, muito a de se fazer, pois determinadas condutas
de empoderamento dos homens está enraizado na cultura e só serão ven-
cidas com investimentos pesados na educação das novas gerações.

Referências

BRASIL, Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Ju-


rídicos, Decreto nº 21.417 – A, de 17 de maio de 1932.

108 Violência intrafamiliar e a violação dos direitos da mulher


BRASIL, Secretaria de Políticas para as Mulheres. Disponível: http://www.
spm.gov.br/ Acesso em: 25/05/2014.

BRASIL, Senado Federal.Disponível: http://www2.senado.gov.br/bdsf/


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CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A Incorporação das NormasInter-


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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002.

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versidade Federal do RJ, 2001.

VEYNE Paul. Acreditaram os Gregos nos Seus Mitos? Ed. Edições 70, 1987.

Jeferson Jeldoci Pol e Lisiana Carraro 109


JUSTIÇA RESTAURATIVA E SINASE

Marli Marlene Moraes da Costa31


Josiane Borghetti Antonelo Nunes32

31 Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Burgos/Espanha, com Bolsa Capes.


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Professora de
graduação e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e
Doutorado na Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC, Professora da Graduação em
Direito na FEMA – Fundação Educacional Machado de Assis de Santa Rosa, Coordenadora
do Grupo de Estudos “Direito, Cidadania e Políticas Públicas” da UNISC. Psicóloga com
Especialização em Terapia Familiar - CRP nº 07/08955, autora de livros e artigos em
revistas especializadas. Coordenadora do Projeto de Pesquisa “O (re)estabelecimento
da comunicação entre os atores sociais da comunidade local a partir do capital social:
transpondo a alienação social para a implementação da justiça restaurativa” e do Projeto
de Extensão financiado pelo PAPEDS, “O brincar e a construção da cidadania de crianças
e adolescentes”.
32 Advogada, Mestre em Direito pela UNISC, professora no curso de Direito da Universi-
dade de Santa Cruz do Sul – UNISC, integrante do Grupo de Estudos “Direito, Cidadania
e Políticas Públicas”, da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. E-mail: jbantonelo@
gmail.com.

110 Justiça restaurativa e sinase


Considerações iniciais

A rearticulação de uma política socioeducativa no Brasil, por meio


da Lei n. 12.594/2012 - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
(SINASE) é um tema recorrente e de interesse voltado à área infantoju-
venil, principalmente no que tange à efetividade por meio da execução
das medidas socioeducativas por adolescentes autores de ato infracional.
Nessa mesma linha de pensamento, observou-se no seu art. 35, o re-
cepcionamento das práticas restaurativas enquanto uma metodologia de
gestão de conflitos, por meio do diálogo com os atores sociais. No entan-
to, o maior desafio para a concretização dos princípios restaurativos pos-
tos na legislação, está na formação ou capacitação de profissionais, bem
como de recursos públicos direcionados à área com tal finalidade. Neste
artigo propõe-se discutir sobre o recepcionamento da justiça restaurativa
pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo.
Nos últimos anos também se tem discutido sobre a política de
Justiça Restaurativa; os seus mais diversos enfoques, por isso multidi-
mensional e, a partir das experiências e modelos internacionais, tem se
desenhado e implementado em alguns casos concretos, dentre eles na
área da infância e da juventude. Sendo assim, traz-se os postulados e
fundamentos teóricos da Justiça Restaurativa, a partir de um marco de
desnecessidade de esferas burocratizadas e estatais para a consecução
da principal finalidade, a reconstrução dos laços que se viram desfeitos
pelo rompimento produzido pela relação conflituosa.
Sabe-se que a linguagem é uma ferramenta de socialização e que os
seres humanos dependem necessariamente dela para se comunicar, po-
rém, em decorrência de um processo de aprendizagem precário, no senti-
do de lidar de uma forma mais adequada com as emoções, as pessoas não
conseguem externar com clareza o que realmente desejam e muito menos,
compreendem a posição do outro no momento da comunicação. Nessas
relações de comunicação, verifica-se que as pessoas se valem de inúmeras
estratégias, de maneira que não se sintam freadas, intimidadas ou impe-
didas no que tange a alcançar determinado objetivo. E isto, dificulta a cla-
reza na compreensão do pedido, gerando diversos conflitos, conforme o
contexto no qual os sujeitos estão envolvidos, interessados e interligados.
Não se pretende aqui reavivar atavismos culturais e desconside-
rar as importantes mudanças e avanços na forma como o sistema de
atendimento socioeducativo tem sido debatido no país, bem como as
transformações ocorridas tanto na formulação de novas estratégias insti-
tucionais, quanto nas próprias percepções sociais sobre a justiça restau-
rativa e o SINASE. Entretanto, como todo fenômeno que tem elementos
de mudança e de continuidade, a ênfase será dada na mudança. Por conta
disso, o questionamento: É possível desenvolver as práticas restaurativas
por meio do SINASE dentro das entidades de atendimento socioeducativa
para adolescentes autores de ato infracional?

Marli Marlene Moraes da Costa e Josiane Borghetti Antonelo Nunes 111


O texto se estrutura em três momentos, além desta introdução.
O primeiro considera a linguagem da comunicação não violenta no tra-
tamento de conflitos. O segundo dispõe sobre as políticas públicas de
justiça para o sistema de atendimento socioeducativo a adolescentes e
o terceiro momento avalia a Lei 12.594/12 – SINASE enquanto política
socioeducativa.

A linguagem da comunicação não violenta


no tratamento de conflitos

Há cerca de 40 anos, Rosenberg desenvolve seus estudos motivado pela


questão do que faz as pessoas se desconectarem da sua natureza compassi-
va, levando-as a se comportarem de maneira violenta, Capellari (2009) elucida
que a capacidade de contribuir com o bem-estar do outro e recebê-lo com
compaixão está na essência da natureza humana, assim como a solidariedade
é a essência do comportamento compassivo, sendo, portanto, competências
a serem exploradas na busca pela harmonia nas relações interpessoais.
Dentro dessa perspectiva, interessa que :

Enquanto estudava os fatores que afetam nossa capacidade de


nos mantermos compassivos, fiquei impressionado com o pa-
pel crucial da linguagem e do uso das palavras. Desde então,
identifiquei uma abordagem específica da comunicação – falar e
ouvir - que nos leva a nos entregarmos de coração, ligando-nos a
nós mesmos e aos outros de maneira tal que permite que nossa
compaixão natural floresça. Denomino essa abordagem Comu-
nicação Não Violenta, usando o termo “não violência” na mesma
acepção que lhe atribuía Gandhi - referindo-se a nosso estado
compassivo natural quando a violência houver se afastado do
coração. Embora possamos não considerar “violenta” a maneira
de falarmos, nossas palavras não raro induzem à mágoa e à dor,
seja para os outros, seja para nós mesmos. Em algumas comu-
nidades, o processo que estou descrevendo é conhecido como
comunicação compassiva (ROSENBERG, 2006, p.21).

Ao se utilizar a linguagem adequada nas interações sociais, os pro-


tagonistas da fala se colocam em estado compassivo natural, sendo que a
habilidade de manter tal estado depende primordialmente do uso que se
faz das palavras, considerando que a violência nas interações humanas
deriva, essencialmente, do uso inadequado da linguagem, assim como a
conexão emocional aparece com o uso eficaz das expressões da lingua-
gem, que leva à entrega de coração, ligando-se a si mesmo e aos outros,
permitindo que floresça a compaixão natural. Trata-se, portanto, de uma
abordagem que se aplica de maneira eficaz a todos os níveis de comuni-
cação e a diversas situações. (ROSENBERG, 2006, p.19)
Sob esse prisma, importante o destaque que Pelizzoli (2013) faz ao

112 Justiça restaurativa e sinase


grande ensinamento da Comunicação Não Violenta: é preciso aprender a
ouvir e a dar de si, tendo em mente que, para ouvir não basta estar com os
ouvidos abertos, é preciso mobilizar a obediência e a disposição do coração.
A incapacidade para o diálogo, diz muito da incapacidade para ouvir. Por
vezes, ouvir o outro e acolher é quase toda solução. É-se carente de alguém
que ouça. Ouvir verdadeiramente é raro, sem julgar previamente, compreen-
dendo a fragilidade humana, que é sempre a de cada um também.
Tratando da Comunicação Não Violenta como uma das técnicas do pro-
ceder pela restauratividade, Konzen parafraseia Rosenberg, ao explicar que
é uma virada linguística que pretende levar em consideração a forma como
as pessoas observam umas as outras, como expressam seus sentimentos e
necessidades. Destaca ainda que a experiência de ouvir e ser ouvido permite
que soluções sejam debatidas com flexibilidade. (KONZEN, 2007, p.86/87)
À guisa dos ensinamentos de Barter, Cappellari traduz que o uso Co-
municação Não Violenta implica na troca informacional que ocorre entre
pessoas, produzindo como resultado o aparecimento da harmonia, o enten-
dimento, a solidariedade, a parceria e a compaixão. Com o aflorar de tais
qualidades, os seres humanos são capazes de solucionar os seus conflitos,
com base numa linguagem que não sentencia, nem pune, mas possibilita a
união e, consequentemente, a conexão entre eles. Prossegue o autor expla-
nando que o uso inadequado das palavras pode incitar o conflito. Em contra-
ponto, a proposta da linguagem não violenta evidencia que os interlocutores
ficam mais propensos a ouvir quando a pessoa fala dos sentimentos negati-
vos que lhe perturbam, como a raiva e a irritação, ao invés de simplesmente
expressá-la fazendo uso de palavras iradas ou ações físicas violentas. Elas
também se mostrarão ainda mais inclinadas a ouvir se forem relatados com
sinceridade e clareza os sentimentos de mágoa, tristeza ou decepção, do
que se estes forem expressos mediante julgamentos e censuras a respeito
de um comportamento reprovado. (CAPPELLARI; MAIERON, 2009, p.64)
Nesse contexto, evidencia-se que a comunicação é o alicerce das
relações interpessoais. Quando ocorre de forma violenta ou unilateral,
denota que não teve espaço para o diálogo, ou seja, foi relegado ao se-
gundo plano. Em não havendo espaço dialógico, a linguagem pode ser
lesiva aos relacionamentos. (BOHN, 2005)
Uma compreensão mais apurada acerca do sentido da Comunicação
Não Violenta traz benefício a todos os envolvidos, consoante demonstra
Rosenberg:

À medida que a CNV substitui nossos velhos padrões de defesa,


recuo ou ataque diante de julgamentos e críticas, vamos
percebendo a nós e aos outros, assim como nossas intenções e
relacionamentos, por um enfoque novo. A resistência, a postura
defensiva e as reações violentas são minimizadas. Quando
nos concentramos em tornar mais claro o que o outro está
observando, sentindo e necessitando em vez de diagnosticar e
julgar, descobrimos a profundidade de nossa própria compai-

Marli Marlene Moraes da Costa e Josiane Borghetti Antonelo Nunes 113


xão. Pela ênfase em escutar profundamente - a nós e aos outros
-, a CNV promove o respeito, a atenção e a empatia e gera o
mútuo desejo de nos entregarmos de coração. Embora eu me
refira à CNV como “processo de comunicação” ou “linguagem da
compaixão”, ela é mais que processo ou linguagem. Num nível
mais profundo, ela é um lembrete permanente para mantermos
nossa atenção concentrada lá onde é mais provável acharmos o
que procuramos. (ROSENBERG, 2006, p.23)

Desta forma, quando se prioriza o esclarecimento daquilo que se


observa, sente-se e o que realmente se necessita, ao invés de emitir me-
ras críticas, mitigam-se as reações de oposição e violência. Diante desta
atitude, o conflito se obscurece. Logo, o caminho do entendimento e da
colaboração recíproca, perpassa os quatro componentes do modelo de
Comunicação Não Violenta: Observação, Sentimento, Necessidade e Pedi-
do. (ROSENBERG, 2006, p.25)
Nessa ampla moldura, restam definidos os elementos básicos desta
proposição de linguagem, trazendo como pano de fundo o domínio da
observação das ações e reações - pessoais e do outro. Tal atitude faz com
que o indivíduo comece a ouvir e a se expressar de forma mais conscien-
te e cuidadosa, o que, indubitavelmente promove relações saudáveis, na
medida em que se avança para o estágio da identificação dos sentimentos
e necessidades subjacentes às expressões. Por fim, consciente das neces-
sidades que permeiam uma ação ou reação, a etapa do pedido reflete a
importância da clareza na linguagem, uma vez que a linguagem truncada
ou agressiva prejudica as interações.
Verifica-se, dessa forma, que na ideia da Comunicação Não Vio-
lenta está a dinâmica que dá fundamento à cooperação – os seres hu-
manos agem para atender às necessidades, aos princípios e aos valo-
res básicos e universais. Ciente desta constatação passa a enxergar a
mensagem implícita nas palavras e ações dos outros, e de si próprio,
independentemente de como são comunicadas. Assim, as críticas pes-
soais, rótulos e julgamentos, atos de violência física, verbal ou social,
são revelados como expressões trágicas de necessidades não atendidas.
(ROSENBERG,2006)
Compreende-se, pois, que as necessidades não acolhidas ten-
dem a se transformar em potenciais gatilhos que precipitam conflitos,
tendo em vista que o acúmulo de sentimentos negativos engendra jul-
gamentos a respeito de si e do próximo que se manifestam de forma
agressiva.
De acordo com Rosenberg, quando tomados por tais emoções, a
atenção se concentra em classificar, analisar e determinar níveis de erro,
em vez de identificar o que cada um e os outros necessitam e não está
sendo obtido. (ROSENBERG, 2006, p.38)
Filiando-se a esse entendimento, Barter (2013) declara que a dinâ-
mica da CNV objetiva a tradução da linguagem violenta e opressora como
a expressão trágica de uma necessidade não atendida, que se frustra. Trá-

114 Justiça restaurativa e sinase


gica tanto por causa dos danos que causa, mas também pela pessoa que
age desta forma, porque a violência é uma forma extremamente ineficaz
de conseguir o que se quer. 
Há de se considerar que as bases do desenvolvimento da Comuni-
cação Não Violenta advêm da observação de que a crescente violência é
a nítida representação de uma lógica de ações e relações divorciadas dos
verdadeiros valores que deveriam nortear as relações humanas, suscitan-
do ciclos de emoções dolorosas. Nesse espectro, Schuch (2013) sinaliza
que o método da CNV é apresentado como facilitador de mudanças estru-
turais no modo de encarar e organizar as relações humanas33.
Por derradeiro, diante da pertinência do tema em tela, reprisam-se
os ensinamentos de Rosenberg:

Para usarmos a CNV, as pessoas com quem estamos nos comu-


nicando não precisam conhecê-la, ou mesmo estar motivadas a
se comunicar compassivamente conosco. Se nos ativermos aos
princípios da CNV, motivados somente a dar e a receber com
compaixão, e fizermos tudo que pudermos para que os outros
saibam que esse é nosso único interesse, eles se unirão a nós no
processo, e acabaremos conseguindo nos relacionar com com-
paixão uns com os outros. Não estou dizendo que isso sempre
aconteça rapidamente. Afirmo, entretanto, que a compaixão ine-
vitavelmente floresce quando nos mantemos fiéis aos princípios
e ao processo da CNV. (ROSENBERG, 2006, p. 24)

Como visto, é fecunda a perspectiva transformadora do uso da lin-


guagem não violenta, haja vista que promove o diálogo, sensibilizando
os sujeitos para o aprendizado da escuta empática e da alteridade. Neste
viés, especulam-se as potencialidades da Comunicação Não Violenta en-
quanto mecanismo de desjudicialização dos conflitos, viabilizando alter-
nativas para solver a lide de maneira pacífica e satisfatória.
Não se pode olvidar que todas as multifacetadas e fragmentadas rela-
ções sociais experimentam conflitos em determinado momento, sendo esta
conflitualidade um traço contemporâneo que se expande nas esferas local e
mundial, do mesmo modo que falar em conflito social se tornou um inevitá-
vel lugar-comum, especialmente quando se verifica que a “sólida” resposta
que se espera por parte do Judiciário, esmaeceu corroída pela incapacidade
de dar conta de tamanha complexidade que perpassa as relações sociais e
estratégias hegemônicas atuais. (LUCAS; SPENGLER, 2011, p.15)
Em seu discurso, Barter (2013) defende que a solução de conflitos
começa quando são eliminados da linguagem julgamentos e acusações,
trazendo à baila a metodologia da Comunicação Não Violenta como forma

33 SCHUCH, Patrice. Tecnologias da não violência e modernização da justiça no Brasil. O


caso da justiça restaurativa. Technologies of non-violence and modernization of justice
in Brazil. The case of restorative justice. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.
br/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/4872/3830. Acesso em: 02 mai. 2013.

Marli Marlene Moraes da Costa e Josiane Borghetti Antonelo Nunes 115


de restaurar as marcas de uma linguagem que sugere inculpação, rotu-
lação e desumanização. Assim, redescobriram-se dinâmicas que os gran-
des sábios falam há milênios: o ser humano foi feito para viver em paz e
as necessidades são comuns a todos. Essas são as ferramentas principais
que a CNV oferece: capacidade de se expressar claramente ao outro e de
enxergá-lo, apesar das palavras e das ações que ele possa usar. Muitas
vezes, a violência é sutil, é um gesto, uma frase, a dominação que existe
em todas as esferas de relacionamento, entretanto, quando as pessoas
têm oportunidade de perceber a humanidade do outro, elas procuram
soluções que atendam a todos, pois sabem que as decisões sustentáveis
são aquelas que ambas as partes assumem voluntariamente.
Assim, percebe-se que a CNV - enquanto procedimento da Justiça
Restaurativa, ancorada nos princípios e valores advindos deste para-
digma - é um processo essencialmente vivencial, eis que promove o
entendimento e trato das causas do conflito, levando em conta que o
ser humano, enquanto reflexo do mundo em que vive, manifesta com-
portamentos mais agressivos ou pacificadores segundo suas aprendi-
zagens de vida.
Igualmente, ajusta-se o foco sobre promoção de uma cultura de
paz nas relações interpessoais, que devem ser balizadas por comporta-
mentos éticos que implicam, necessariamente, numa comunicação ade-
quada, o que por si só já evita a propagação da violência. Logo, a ênfase
das intervenções restaurativas está centrada sobre o resgate das relações
afetadas pelo conflito. Desloca-se o foco da culpa para a responsabilida-
de, priorizando a reflexão das controvérsias em busca de uma solução
recompensadora e apaziguadora para o caso específico, tomando como
ponto de partida o conhecimento e reconhecimento da situação de ori-
gem, oportunizando que cada um possa falar e ser ouvido, com o obje-
tivo de promover a compreensão mútua entre os sujeitos, num processo
centrado essencialmente na comunicação.
Seguindo essa vertente, a Comunicação Não Violenta oferece valio-
sos instrumentos de ação no sentido de buscar o entendimento através
da cooperação e do diálogo. O uso desta metodologia no processo de
resolução dos conflitos passa a ser feito através da expressão dos senti-
mentos e das necessidades, nos quais se declaram e se ouvem os valores
que são importantes para todos os envolvidos no processo conflituoso.
(CAPPELLARI; MAIERON, 2009, p.73)
A partir de tais contextualizações, no que diz respeito ao encon-
tro de dirimir os conflitos pela linguagem da comunicação compassiva,
buscar-se-á refletir sobre as políticas públicas de justiça para o sistema
de atendimento socioeducativo aos adolescentes autores de ato infra-
cional.

116 Justiça restaurativa e sinase


Políticas públicas de justiça para o sistema
de atendimento socioeducativo a adolescentes

Na atualidade é notória a crise que o sistema de justiça tem apre-


sentado nas suas mais diversas áreas, em destaque na Infância e na Ju-
ventude, no que tange ao acúmulo de processos e a morosidade para a
resolução das demandas materializadas nele. Associado a isso, tem-se
a descredibilidade em alguns aspectos com o trabalho realizado dentro
do Judiciário. Por isso, o Conselho Nacional de Justiça no Brasil por meio
da Resolução n.125 buscou alternativas de políticas que auxiliassem a
melhorar no atendimento ao cidadão com a qualidade de prestação de
serviço jurisdicional.
A Resolução n.125, de 2010, do Conselho Nacional de Justiça suge-
re aos Tribunais de justiça dos respectivos estados que implementem nú-
cleos de tratamento de conflitos e cidadania, de maneira a se aproximar
mais do cidadão e diminuir os imensos números de processos que circu-
lam durante anos. Seguem ainda, propondo que se apliquem nesses nú-
cleos as metodologias autocompositivas de tratamento de conflitos que
são: a conciliação, a mediação, bem como a justiça restaurativa citada
pela doutrina como uma metodologia autocompositiva inominada, sendo
esta a que se trabalhou no capítulo anterior e que, propositadamente,
neste capítulo e por ser uma política pública em especial socioeducati-
va tratar-se-á de fazer alguns entrelaçamentos com a própria Resolução
n.125, a Lei 12.594 de 18 de janeiro de 2012 - SINASE (Sistema Nacional
de Atendimento Socioeducativo) em combinação com a Lei 8.069/90, o
Estatuto da Criança e do Adolescente.
De igual modo se reconhece que esses arcabouços jurídicos são
políticas públicas transversais e intergeracionais (dada a dimensão histó-
rica, etária e a identidade do sujeito), que direcionadas ao tratamento de
conflitos podem prevenir e romper com o ciclo do conflito materializado
na violência. De imediato abordar-se-á a aproximação conceitual e doutri-
nária de política pública
Com o advento da Constituição da República de 1988 iniciou-se
uma verdadeira reforma estatal, para colocar em prática a democratiza-
ção do acesso a serviços e à participação cidadã. Assim, ocorreu nesse
período, um deslocamento para o foco das políticas públicas no Brasil,
partindo-se para a produção de políticas que se destinassem a examinar
as verdadeiras necessidades sociais. E, nesse sentido, a capacidade delas
acabarem afetando as estratégias dos gestores públicos na tomada de
decisões. (HOCHMAN; ARRETCHE; MARQUES, 2007)
Em razão dessa nova conjuntura, a compreensão de alguns con-
ceitos que perfazem o universo das políticas públicas revela-se a cha-
ve-mestra para a promoção e efetivação de direitos e garantias sociais,
especialmente no que se refere ao acesso à justiça, como ocorre com as

Marli Marlene Moraes da Costa e Josiane Borghetti Antonelo Nunes 117


práticas restaurativas. Ademais, o estudo sobre as políticas públicas deve
ser feito de forma integrada com a compreensão do papel do Estado e da
própria sociedade, nos dias atuais.
No cenário moderno, conforme ensina Schmidt (2008, p.2309), as
políticas são o resultado da própria política, e devem ser compreendidas
“à luz das instituições e dos processos políticos, os quais estão intima-
mente ligados às questões mais gerais da sociedade”.
Assim, de forma geral, conceituar política pública é analisar o siste-
ma jurídico, uma vez que, é o direito sua maneira de instrumentalização.
Deste modo, se caracteriza como uma comunicação, ou seja, é a coorde-
nação dos meios que se encontram a disposição do Estado, para que esse
harmonize as atividades estatais e ou privadas com o principal objetivo
de estabelecer uma sociedade mais justa. Sendo assim, uma caracteriza-
ção ampla, pois envolve a seara normativa, reguladora e a de fomento,
nas inúmeras áreas. E a plenitude desses instrumentos adicionados a uma
concreta atuação estatal é que se alcançará o que se deseja, tanto pela
própria Constituição quanto pela sociedade. (BITENCOURT, 2013, p.46)
Diante disso, de maneira objetiva, Schmidt (2008, p.2311) destaca
que o termo “políticas públicas” é utilizado com diferentes significados,
ora indicando uma determinada atividade, ora um “propósito político”, e
em outras vezes “um programa de ação ou os resultados obtidos por um
programa”. Assim, para entender as políticas públicas, o autor, utilizando-
se de conceitos de estudiosos da área, ensina que as políticas públicas
são um conjunto de ações adotadas pelo governo, a fim de produzir efei-
tos específicos, ou de modo mais claro, a soma de atividades do governo
que acabam influenciando a vida dos cidadãos.
Ao encontro de tais assertivas, de maneira mais abrangente, Caval-
canti conceitua políticas públicas, como:

Entende-se por políticas públicas o conjunto de ações coletivas


que garantem direitos sociais, por meio das quais são distribuí-
dos ou redistribuídos bens e recursos públicos, em resposta às
diversas demandas da sociedade. As políticas públicas são fun-
damentadas pelo direito coletivo, são de competência do Estado
e envolvem relações de reciprocidade e antagonismo entre o Es-
tado e a sociedade civil. (CAVALCANTI, 2009, p.7)

Porém, mais do que compreender o que é uma política pública,


Schmidt assevera que:

É muito importante nessa concepção a ideia que as políticas


orientem a ação estatal, diminuindo os efeitos dos problemas
constitutivos do regime democrático: a descontinuidade
administrativa, decorrente da renovação periódica dos
governantes. No Brasil, tem havido um esforço importante para
reduzir a descontinuidade das políticas, através da legislação
específica, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, de um
tratamento mais técnico das políticas e da participação de

118 Justiça restaurativa e sinase


setores sociais na sua formulação, reduzindo a possibilidade dos
administradores públicos de reinventar os rumos das mesmas a
cada mandato. (SCHMITD, 2008, p.2312)

Complementando esse rol de conceituações, é oportuna a com-


preensão de que as políticas públicas, comumente, são distinguidas por
políticas sociais ou políticas econômicas ou macroeconômicas, todas com
o objetivo de proporcionar o desenvolvimento econômico e social de de-
terminada sociedade. As primeiras são tidas como aquelas responsáveis
por garantir os direitos sociais consagrados pela Carta Magna, tais como
saúde, educação, segurança, assistência social, habitação. Enquanto que
as últimas referem-se especificamente às políticas monetárias.
Torna-se evidente que as políticas são o meio de ação do Estado,
através delas, a União, os Estados e os Municípios conseguem concretizar
direitos e garantias fundamentais, por isso saber diferenciar esses aspec-
tos metodológicos é imprescindível para a compreensão da dimensão e
importância das fases que definem uma política, desde a sua criação até
a avaliação de seus resultados.
Nessa conjuntura, o processo de elaboração de uma política inicia-
se com a “percepção e definição de problemas”, sem essa avaliação inicial,
a política não adquire nenhuma razão de existir, conforme destaca Sch-
midt (2008, p.2314), não basta apenas o reconhecimento de uma dificul-
dade ou situação problemática é preciso transformá-la em um problema
político. É preciso também que tal questão desperte o interesse não só do
governo, mas principalmente da sociedade, e como geralmente a comoção
dessa acontece primeiro, ela acaba se tornando o órgão propulsor para
que determinada situação ocupe o rol de prioridades do governo. O modo
como ocorre o processo de reconhecimento de um problema, em que
se vislumbra necessária a formulação de uma política, segundo Bryner
(2010, p.317), pode ter inúmeras consequências para a gestão das políti-
cas públicas. Ou seja, a percepção equivocada de determinada demanda,
pode levar a um resultado inadequado para a questão. Por conta disso, o
autor garante que “o apoio político gerado (ou a falta dele) durante esse
estágio inicial do processo pode ter um efeito importante sobre o desen-
volvimento, a implementação e a avaliação das políticas públicas”.
Após a identificação do problema, faz-se necessária a inserção de
sua demanda na agenda política. Isso significa que determinado assunto
chama a atenção não só dos cidadãos como, especialmente, do gover-
no. Nas palavras de Schmidt, trata-se de um “rol das questões relevan-
tes debatidas pelos agentes públicos e sociais, com forte repercussão na
opinião pública”. A construção de uma agenda envolve discussão perma-
nente e uma forte disputa política, vez que a “influência política” também
adquire a capacidade de “controlar a agenda” de acordo com os interesses
daqueles que a manipulam. (SCHMIDT, 2008, p.2316)

Marli Marlene Moraes da Costa e Josiane Borghetti Antonelo Nunes 119


Entre os agentes que influenciam a construção da agenda gover-
namental destacam-se os atores governamentais e não governa-
mentais. Esses atores podem ser visíveis (políticos, mídia, parti-
dos) ou invisíveis (pesquisadores, consultores, funcionários). São
os guardiões da agenda pública (agenda setters), e outros não o
sejam, bem como para que nela se mantenham ou não. (SCHMI-
DT, 2008, p.2318)

Em seguida, deve iniciar o processo de formulação da política pú-


blica, nesse momento define-se a maneira como o problema será solu-
cionado, quais os elementos e alternativas que serão adotadas. Trata-se
de uma fase de negociações e conflitos entre os agentes públicos e os
grupos sociais interessados. Segundo Schmidt (2008, p.2318), “a formu-
lação de uma política nunca é puramente técnica. É sempre política, ou
seja, orientada por interesses, valores e preferências, apenas parcialmen-
te orientada por critérios técnicos. Cada um dos atores exibe sua pre-
ferência e recursos de poder”. De modo sucinto, Bryner (2010, p.318)
explica esse processo, que “inclui a formulação de um programa para
responder à demanda por ação, [...] a aprovação da legislação para auto-
rizar a implementação do programa e a atribuição de fundos suficientes
para implementação”. Nesse momento, é importante definir as diretrizes,
os objetivos e principalmente a atribuição de responsabilidades, a fim de
deixar claro quem são os responsáveis pela execução das políticas. As-
sim, elas tomam forma através dos planos ou programas, os quais, por
sua vez, originam projetos e ações.
A implementação compreende a quarta fase de uma política, trata-
se da concretização da formulação, é o momento de executar aquilo que
foi planejado. Nesse instante, geralmente acabam acontecendo adapta-
ções e adequações, por isso um elemento imprescindível é a articula-
ção entre o momento de formulação e de implantação de uma política,
os agentes responsáveis por essas duas fases devem estar entrosados,
compartilhar informações e participar ativamente desses processos. Nas
palavras de Schmidt:

Um dos fatores de êxito ou fracasso das políticas públicas é a ar-
ticulação entre o momento da formulação e o da implementação.
O entendimento compartilhado dos objetos e das metas das po-
líticas depende em boa parte do entrosamento e de conhecimen-
to comuns entre formuladores e implementadores, bem como da
participação dos implementadores no momento da formulação.
(SCHMIDT, 2008, 2318)

De acordo com os estudiosos, a implementação é um processo di-


fícil, pois muitas vezes essa fase não chega a alcançar seus objetivos
em função da falta de vontade ou de acordo político. Do mesmo modo,
Bryner (2010, p.319) enfatiza que “a implementação é a continuação da
formulação de políticas, mas com novos atores, procedimentos e ambien-
tes institucionais”.

120 Justiça restaurativa e sinase


Por último, e quem sabe a fase mais importante, tem-se a avaliação
de uma política, não basta apenas criá-la, implementá-la, sem se estar
disposto a fazer uma análise minuciosa dos seus resultados obtidos, dos
êxitos e das dificuldades apresentadas, do estudo de sua efetividade e
eficiência. O ideal, nesse processo de avaliação, é justamente delinear se
a política atingiu os objetivos aos quais se propôs, assim como definir se
é conveniente que determinada política se mantenha ou se modifique.
No Brasil, ainda é muito frágil o processo de avaliação de uma
política, geralmente esse momento se resume em massa de manobra
para políticos utilizarem-se de pseudorresultados com o propósito
de campanha para novas eleições, a fim de se manterem no poder.
Por isso, muitas vezes, os processos avaliativos atuais acabam tendo
pouca credibilidade junto à sociedade. É necessária, portanto, a cons-
cientização da real importância que essa fase assume no processo de
estudo e análise de uma política pública. Importante trazer à baila o
posicionamento de Schmidt:

Um governante que não tem mecanismos apropriados de acom-


panhamento das ações do seu governo, capazes de detectar até
que ponto o governo está conectado com as expectativas dos
cidadãos e até que ponto sua energia política está sendo canali-
zada para a resolução de problemas importantes da sociedade,
está fechada ao fracasso. Na eleição seguinte, os eleitores entu-
siasmados de ontem levarão apoio a outro candidato, que apon-
te perspectivas de mudanças. (SCHMIDT, 2008, p.2320)

Ainda nas palavras do estudioso, “a avaliação é um instrumento de-


mocrático, que capacita o eleitorado a exercer o principio do controle so-
bre a ação dos governantes”. Por conta disso, é fundamental a conscien-
tização da real importância que essa fase assume no processo de estudo
e análise de uma política pública, já que pode ocorrer, por ser avaliada
de maneira equívoca, de determinadas políticas caírem em desuso ou no
esquecimento. (SCHMIDT, 2008, p.2320)
Nessa perspectiva, as políticas públicas não devem ser entendi-
das como programas que se dividem por setores de acordo com as ne-
cessidades do Estado, ao contrário, elas devem estar constantemente
interligadas e serem compreendidas a partir da própria construção de
instituição e processo políticos, aos quais estão intimamente interli-
gados com todas as questões que regem uma sociedade. Por conta
disso, e pelo fato de as políticas públicas constituírem temática oriun-
da da ciência políticas e da ciência da administração pública, significa
também, defini-las como campo de estudo jurídico, pelo movimento
que faz parte de uma abertura do direito para a interdisciplinaridade.
(BUCCI, 2006, p.23)
Como é sabido:

Marli Marlene Moraes da Costa e Josiane Borghetti Antonelo Nunes 121


La expressión “política pública” es bastante reciente. Se introdu-
jo en el lenguaje de las ciencias políticas y administrativas euro-
peas en la década de 1970 como traducción literal del término
“public policy”. Este último debe diferenciarse del término “polí-
tica” (“politics”), con el que se acostumbra a designar las interac-
ciones y conflictos entre los actores políticos más tradicionales
(especialmente los partidos políticos, los grupos de interes, los
sindicatos o los nuevos movimientos sociales), que pretenden
acceder al poder legislativo o gubernamental respetando las re-
glas constitucionales e institucionales (designadas en inglés por
el término “polity”). (SUBIRATS, 2012, p.37)

Nesse sentido, considera-se que a política pública é um fluxo de


decisões públicas, de estratégias desejadas pelo grupo que participa do
processo decisório, constituindo orientação para as diversas ações que
compõem determinada política. (SARAVIA, 2006)
Em outras palavras, “A formulação de políticas públicas constitui-se
no estágio em que os governos democráticos traduzem seus propósitos
e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados
ou mudanças no mundo real.” (SOUZA, 2006, p.26). Por isso,

O formulador de políticas é um estrategista jogando um jogo.


Assim, ele deve avaliar as possíveis reações dos “adversários”
ou, de maneira mais geral, dos indivíduos e dos grupos afetados
por suas decisões. Uma vez que não dispõe de toda a informa-
ção, ele estará frequentemente diante do dilema do prisionei-
ro, i. e., racionalmente constrangido a escolher uma alternativa
subótima. Nesse caso, ele será competente se conseguir ser ca-
paz de aumentar o nível de informação; ou, quando a informa-
ção permanece insuficiente, se ele, não obstante, for capaz de
combinar prudência com coragem e decidir com base em seu
conhecimento e sua experiência adquiridos em situações simila-
res. (BRESSER-PEREIRA, 2003, p.213)

Por sua vez, a “análise de políticas é a área de estudos que dire-


ciona suas pesquisas nos resultados das políticas”, buscando resolver
ou analisar os problemas apresentados, e “não pode ser feita de forma
fragmentada nem isolada da análise mais geral sobre os rumos do Estado
e da sociedade”. “O pressuposto analítico que regeu a constituição e a
consolidação dos estudos sobre políticas públicas é o de que, em demo-
cracias estáveis, aquilo que o governo faz ou deixa de fazer é passível
de ser (a) formulado cientificamente e (b) analisado por pesquisadores
independentes.” (SCHMIDT, 2008, p.2312). Nesse ínterim, tratar-se-á em
seguida da Lei 12.594/12 - SINASE que, em combinação e ainda alterando
a legislação estatutária da criança e do adolescente, é uma promessa a
ser cumprida de política socioeducativa, pois até a sua materialização en-
contram-se muitos desafios e entraves que delineiam o cofinancimanento
de qualquer política pública no Brasil.

122 Justiça restaurativa e sinase


A Lei 12.594/12 – SINASE
(Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo):
uma política pública socioeducativa

A Lei 12.594, de 18 de janeiro de 2012 - o SINASE é uma política


pública socioeducativa transversal, pois em sua formatação dispõe de
objetivo e diretrizes para trabalhar com adolescentes autores de ato
infracional, prevendo de maneira peculiar competências para o cum-
primento de medidas socioeducativas, aos Estados e Municípios. O
legislador objetivou que, ao ser aplicadas as medidas socioeducativas
aos adolescentes, a sua execução se desse em corresponsabilização e
com o espírito da materialização da teoria da proteção integral.
Com isso, deseja-se que os locais de execução dessas medidas
não sejam “pequenos presídios”, depósitos de adolescentes renegados
e transformados em lixos humanos. Espera-se o restabelecimento do
possível, o respeito pelo outro, e que a aplicação da medida socioedu-
cativa atinja sua finalidade: que está na política de uma socioeducação
do sujeito de direitos.
Na legislação estatutária, observaram-se algumas alterações tra-
zidas pelo SINASE: a respeito das entidades de atendimento, no art.
90 (art.1º, §5º, da Lei n. 12.594/2012) reforçou a orientação e apoio
familiar, as famílias, uma vez observada suas vulnerabilidades, neces-
sitam de acompanhamento personalizado, pois precisam ser fortaleci-
das para ter condições de desenvolvimento adequado as suas crianças
e aos adolescentes. (LAMENZA; MACHADO, 2012, p.134)
Também houve a fixação de parâmetros para que entidades de
atendimento (pessoas jurídicas de direito público ou privado) possam
executar igualmente a medida socioeducativa de prestação de serviços
à comunidade, escolhendo orientadores para acompanhar de forma in-
dividual o cumprimento dessa medida (art. 13 e incisos). Por sua vez, a
própria direção da entidade providenciará a seleção e o cadastramento
de organizações assistenciais, escolas, hospitais e congêneres mais
adequados ao perfil do adolescente, proporcionando-lhe o ambiente
mais favorável possível para que preste os serviços comunitários, res-
peitando o cunho socioeducativo da medida. (LAMENZA; MACHADO,
2012, p.136)
É importante articular um trabalho em rede com as entidades da
comunidade, nas quais o adolescente cumprirá a medida socioeduca-
tiva, de tal modo, que a finalidade da medida não destoe da proposta
pedagógica, no sentido de levar em consideração as habilidades do
adolescente ou de sinalizar um caminho de oportunidades, que, de
repente, podem ressignificar a sua vida ou suprir uma ausência axioló-
gica de valores deixada de ser ocupada pelo papel da sua família.
Não se quer com isso, afirmar na sua totalidade, que a execução da

Marli Marlene Moraes da Costa e Josiane Borghetti Antonelo Nunes 123


medida, dentro dessa lógica, seja a única vertente restabelecedora dos
sujeitos que tiverem comprometida, em algum momento, sua estrutura
de valores; mas é a última tentativa, enquanto política socioeducativa
por parte do Poder Público, de chamar o sujeito à razão e ao reconhe-
cimento do desrespeito ao outro pelo desvio da lei.
Ainda sobre o cumprimento das medidas socioeducativas de
liberdade assistida, semiliberdade e de internação, as entidades de
atendimento são responsáveis pelo cumprimento regular dessas medi-
das, pela avaliação técnica do grau de evolução do adolescente, pelo
controle de frequência, pelas saídas externas do adolescente relativas
à profissionalização e à escolarização, independente de autorização
judicial. (LAMENZA; MACHADO, 2012, p.136)
É necessário publicizar os limites de atuação, concedendo ao
Conselho oportunidade de análise e verificação de adequação às pre-
missas estabelecidas em lei para o atendimento das crianças e dos
adolescentes. Essas entidades, que poderão ser governamentais ou
não, deverão manter igualmente, junto ao Conselho, registro das al-
terações feitas no tocante às inscrições, que também realizará comu-
nicação aos respectivos Conselho Tutelar e autoridade judiciária. No
tocante aos programas de atendimento socioeducativo, caso envolvam
medidas em meio aberto, deverão ser inscritos pelos municípios jun-
to aos respectivos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do
Adolescente, de acordo com o art. 10 da Lei n. 12. 594/2012 (LAMEN-
ZA; MACHADO, 2012, p.137).
Embora a internação represente restrição à liberdade do adoles-
cente, tal não significa que esteja ele obrigatoriamente privado de rea-
lizar atividades externas. Se não houver ordem escrita e fundamenta-
da da autoridade judiciária em contrário, e existir recomendação por
parte da equipe interprofissional do internato, o jovem poderá, por
exemplo, trabalhar fora da entidade, dedicando-se a sua profissionali-
zação, assegurando o direito à convivência comunitária. Contudo, se o
adolescente representar risco para o meio circundante ou se suas atitu-
des indicarem clara intenção de fuga do internato, tal autorização não
poderá ser concedida. É certo que, caso haja mudança do quadro com
o comportamento positivo do adolescente, a decisão judicial proibitiva
poderá ser revista. Também será possível a saída monitorada do ado-
lescente em caso de tratamento médico, doença grave ou falecimento
(com comprovação cabal) de pai, mãe, filho, cônjuge, companheiro ou
irmão, conforme art.50 da Lei n. 12.594/2012, saída essa permitida
pela direção do programa de execução da medida privativa de liberda-
de, comunicando-se imediatamente à autoridade judiciária competente
no caso, o magistrado da Vara da Infância e da Juventude. (LAMENZA;
MACHADO, 2012, p.137/138)
O texto legal é bastante claro a respeito da duração máxima da
medida socioeducativa de internação: três anos. Não será possível a

124 Justiça restaurativa e sinase


prorrogação desse prazo, a não ser que haja o cometimento de outro
ato infracional de natureza grave posteriormente à aplicação da me-
dida (como na hipótese de o adolescente que internado por outro ato,
cometa homicídio nas dependências do internato, por exemplo). Nes-
se caso, ao final da instrução processual, o juiz poderá aplicar outra
medida de internação. Se o adolescente recebe a medida de internação
e uma nova é aplicada por ato(s) praticado(s) no passado, deverá ser
realizada a unificação das medidas, conforme estabelecido no art. 45
e parágrafos da Lei n. 12.594/2012. Note-se que, para o cômputo do
tempo máximo de internação, deverá ser levado em conta o período
de internação provisória (arts. 108, caput, e 183, ambos do ECA). (LA-
MENZA; MACHADO, 2012, p.207/208)
Nesta modalidade de internação, o prazo é determinável, não
podendo ser superior a três meses. Não se admite sua prorrogação em
hipótese alguma. Findo o prazo para a internação-sanção, o adolescen-
te será liberado para retornar o cumprimento da medida anteriormente
aplicada. Se houver novo desrespeito, de forma injustificada, outra
vez a internação-sanção será imposta, como novo prazo, que também
terá duração máxima de três meses, não se admitindo prorrogação
sob qualquer justificativa. Observe-se que, pela redação dada pelo art.
86 da Lei n. 12.594/2012, a decretação da internação-sanção deve
obedecer ao due processo of law, devendo ser dada ao adolescente a
oportunidade de se explicar em juízo a respeito de possível descum-
primento da medida socioeducativa anteriormente aplicada. Somente
após a oitiva do jovem em juízo (caso esteja em paradeiro conhecido)
e apresentada sua defesa, com produção de provas eventualmente ca-
bíveis e respeito à justificativa alegada pela vislumbrada falha no cum-
primento da medida, é que a internação-sanção poderá ser decretada.
(LAMENZA; MACHADO, 2012, p.207/208)
Segundo reza o art. 123 do Estatuto da Criança e do Adolescen-
te, também serão os jovens separados por idade, sexo, compleição
física e gravidade da infração, evitando-se um ambiente com risco de
promiscuidade e de eventuais conflitos entre os mais velhos e os mais
novos, bem como os mais fortes e os mais fracos etc. Também, se
evita o contato entre os adolescentes que praticaram atos mais gra-
ves com aqueles que não fizeram. Tal se faz necessário para que os
que cometeram infrações mais brandas não sejam influenciados ne-
gativamente pelos que praticaram atos de gravidade. Outro detalhe
importante é trazido pelo art. 16, § 1º, da Lei n. 12.549/2012, que
exige estrutura física da unidade de internação (ou semiliberdade) ade-
quada aos padrões do SINASE, bem como veda a construção de unida-
des em espaços contíguos, anexos ou de qualquer forma integrados
a estabelecimentos penais. Dessa forma, busca o legislador evitar o
contato indesejado entre os adolescentes e os maiores imputáveis, os
quais podem influenciar negativamente os jovens, perturbando ou até

Marli Marlene Moraes da Costa e Josiane Borghetti Antonelo Nunes 125


mesmo impedindo o processo de reeducação. (LAMENZA; MACHADO,
2012, p.213)
Por sua vez, o art.124 da mesma legislação estatutária é mera-
mente enumerativo do rol de direitos que o adolescente privado de
liberdade é titular. Pode ele ter outros que não os especificados na
legislação, em atendimento ao princípio da proteção integral. É im-
portante que o jovem seja tratado de forma condigna, respeitando-o
como ser humano em condição peculiar de desenvolvimento. Afinal
de contas, o internato deve ser ambiente adequado para a reeduca-
ção com a observância dos direitos fundamentais do adolescente, sem
abusos ou omissões, qualquer que seja sua natureza, Igualmente, há a
previsão de direitos individuais do jovem submetido ao cumprimento
de medida socioeducativa como preceitua o art. 49 e incisos da Lei n.
12.594/2012. Desses direitos destaca-se o direito do jovem internado
a receber e enviar correspondências para familiares e amigos, abran-
ge não apenas as cartas, telegramas e afins, como também os meios
eletrônicos (e-mail), inclusive os propiciados pelas redes sociais da in-
ternet (Facebook e afins). Assegurando-se esse direito ao adolescente,
o legislador buscou mantê-lo conectado ao mundo circundante, evitan-
do-se o isolamento do jovem. Essa correspondência é protegida pelo
sigilo (art. 5º, XII, da Constituição da República) constituindo crime sua
violação (art. 151, caput, do Código Penal).
Cabe ressaltar que a incomunicabilidade do interno é vedada
pelo ordenamento jurídico, sendo inclusive constitucionalmente proi-
bida (v. art. 136, § 3º, IV, da Constituição da República). Não é aceitável
pelo argumento de penalização, mesmo porque a medida socioeduca-
tiva de internação é reeducativa, e não punitiva. Assim, são banidas a
cela-forte, a solitária, o quarto escuro e figuras afins, que traumatizam
o indivíduo e em nada ajudam a sua autoestima. Devem ser realizados
todos os esforços para que o jovem mantenha contato com sua família
e outras pessoas de seu relacionamento (v. arts. 67e segs. da Lei n.
12.594/2012), garantindo-se adequadamente o direito à convivência
familiar e comunitária. (LAMENZA; MACHADO, 2012, p.218)
A Lei n. 12.594/2012, no seu art. 48 prevê exceção a essa regra,
a sanção disciplinar de isolamento será possível quando imprescin-
dível para a garantia da segurança dos outros internos ou do próprio
adolescente a quem seja imposta essa sanção. Nesses termos, a me-
dida será adotada, com a obrigação de comunicação imediata do fato
à defesa do adolescente e ao representante do Ministério Público para
análise e, se for o caso, requerimento destinado a fazer cessar even-
tual ilegalidade da sanção. (LAMENZA; MACHADO, 2012, p.218)

126 Justiça restaurativa e sinase


Considerações finais

Como pode ser observar durante o desenvolvimento desse texto,


repensar as políticas públicas de justiça, a partir dos princípios restaurati-
vos é o grande desafio para os operadores jurídicos e os articuladores da
rede da infância e da juventude. A previsibilidade das práticas restaura-
tivas no sistema de atendimento socioeducativo direcionado aos adoles-
centes autores de ato infracional representa um olhar mais humanizador
por parte do legislador, bem como o seu reconhecimento da multidimen-
sionalidade da justiça para com os seus sujeitos de direitos. Ocorre que
a sua previsão no ordenamento jurídico precisa ser vista com ser cautela,
pois ao positivar um princípio de liame pacificador e de justiça, corre-se
o risco de um aprisionamento de sentido ou interpretação, diluindo-se no
esvaziamento do sentido, restringindo-se à prática que pode continuar
reproduzindo a violência, a segregação e o não respeito pela condição
humana dos sujeitos envolvidos pelo fio condutor do ato infracional. Nes-
sa mesma órbita, dada a criação da lei do SINASE prima-se por um cená-
rio adequado de cumprimento das medidas socioeducativas, podendo,
conforme a medida, ser nos municípios, ou nos Estados, no entanto, a
legislação carece de instrumentos para sua efetividade, em especial de
recursos públicos e melhores esclarecimentos, bem como engajamento
das comunidades.

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JANAÍNA MACHADO STURZA

Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz


do Sul. Especialista em Demandas Sociais e Políticas Pú-
blicas e Mestre em Direito pela Universidade de Santa
Cruz do Sul - UNISC, Doutora em Direito pela Escola In-
ternacional de Doutorado em Direito e Economia Tullio
Ascarelli, da Universidade de Roma Tre/Itália. Professora
da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul - UNIJUÍ, lecionando na graduação em Di-
reito e no Programa de Pós Graduação em Direitos Hu-
manos - Mestrado. Professora na graduação em Direito
da Faculdade Dom Alberto/Santa Cruz do Sul. Advogada.

CLAUDINE RODEMBUSCH ROCHA

Doutoranda em Direito Público na Universidade Pública


de Burgos/Espanha. Mestre em Direito pela Universidade
de Santa Cruz do Sul – UNISC e em Direito Público pela
Universidade Pública de Burgos/Espanha. Pós-Graduada
em Demandas Sociais e Políticas Públicas de Inclusão So-
cial pela UNISC. Possui graduação em Direito pela UNISC.
Advogada e Professora na Universidade FEEVALE/Novo
Hamburgo. Integrante do Projeto de Extensão desenvol-
vido pela Universidade FEEVALE, denominado de NADIM
– Núcleo de Apoio aos Direitos das Mulheres, que se ca-
racteriza por ser uma política pública que atende casos
de mulheres da comunidade de Novo Hamburgo/RS, víti-
mas de violência, promovendo a divulgação da Lei Maria
da Penha, dando assistência jurídica às vítimas através
de atendimentos realizados por acadêmicos.

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