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Vol. 37
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2014
2014 Curitiba
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
S964
Teoria do Estado e a Constituição
Nossos Contatos Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
São Paulo Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
Rua José Bonifácio, n. 209, / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Rogério Dultra dos Santos
cj. 603, Centro, São Paulo – SP /Emerson Gabardo/ Janaina Rigo Santin.
CEP: 01.003-001 Título independente - Curitiba - PR . : vol.37 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
622p. :
Acesse: www. editoraclassica.com.br
ISBN 978-85-8433-025-6
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EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira Luiz Eduardo Gunther
Alexandre Walmott Borges Luisa Moura
Daniel Ferreira Mara Darcanchy
Elizabeth Accioly Massako Shirai
Everton Gonçalves Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Fernando Knoerr Nilson Araújo de Souza
Francisco Cardozo de Oliveira Norma Padilha
Francisval Mendes Paulo Ricardo Opuszka
Ilton Garcia da Costa Roberto Genofre
Ivan Motta Salim Reis
Ivo Dantas Valesca Raizer Borges Moschen
Jonathan Barros Vita Vanessa Caporlingua
José Edmilson Lima Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Juliana Cristina Busnardo de Araujo Vladmir Silveira
Lafayete Pozzoli Wagner Ginotti
Leonardo Rabelo Wagner Menezes
Lívia Gaigher Bósio Campello Willians Franklin Lira dos Santos
Lucimeiry Galvão
Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Capa: Editora Clássica
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR
MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto
Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)
Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)
Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC
Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário
APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 11
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 21
CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 35
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 36
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 41
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 66
REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 85
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 89
BREVES NOTAS POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO DA TEORIA GERAL DO ESTADO A PARTIR DOS
DIREITOS HUMANOS E DO HUMANISMO JURÍDICO: HERMENÊUTICA E RACIONALIDADE NO
ESTADO HUMANISTA (Gisela Maria Bester e Eliseu Raphael Venturi) ...................................................... 107
DEVER DE ATUAÇÃO DO ESTADO COMO DESDOBRAMENTO DA DIGNIDADE PESSOA HUMANA ...... 270
.
CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 276
Caríssimo(a) Associado(a),
O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.
Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-
nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores
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selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.
Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.
O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.
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Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.
Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.
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Apresentação
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democrática é um vir a ser contínuo de luta por reconhecimento de direitos. Para o autor,
alicerçado no pensamento habermasiano, em uma democracia constitucional é necessário que
os cidadãos se reconheçam como coautores das decisões do Estado. É uma via de mão dupla,
pois o Estado só possui o monopólio da coerção em virtude da liberdade dos indivíduos de
constituí- lo.
Por sua vez, Julia Lafayette Pereira discute, no artigo “Neoliberalismo e Crise do
Welfare State: a reconfiguração do papel do Estado na economia globalizada”, a mudança do
papel do Estado em face ao modelo econômico neoliberal, sobretudo no que concerne ao
Direito e à prestação jurisdicional. Se antes cabia ao Estado elaborar planos econômicos
guiados pelos seus próprios objetivos, direcionados à concretização dos direitos dos cidadãos,
no cenário contemporâneo a autora entende que o Estado governa para e em função da
economia.
Já o artigo “Reflexões sobre a Crise Financeira Internacional e o Estado de Bem
Estar”, de Paulo Márcio Cruz, traz a discussão sobre os reflexos da atual crise financeira global
nas estruturas do Estado de Bem Estar europeu. Para o autor, a crise abre possibilidade para
questionamentos dos modelos existentes de Estado de Bem Estar sob diversos ângulos,
colocando dúvidas sobre a atual oportunidade e viabilidade do mesmo. O objetivo do artigo é
incitar a discussão acerca dos limites e do destino próximo do Estado de Bem Estar frente à
crise financeira internacional.
No artigo “O Estado de Exceção e a Garantia da Democracia”, Francisco de
Albuquerque Nogueira Júnior aborda a reflexão filosófica doutrinária que compreende a
natureza e as características da excepcionalidade, suas relações com a soberania estatal, as
consequências advindas de sua institucionalização na Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 e o complexo relacional de sua existência como garantia da própria democracia.
Por sua vez, os autores Eliseu Raphael Venturini e Gisela Maria Bester, no artigo
“Breves Notas por uma Ressignificação da Teoria Geral do Estado a partir dos Direitos
Humanos e do Humanismo Jurídico: hermenêutica e racionalidade no Estado humanista”
refletem sobre a ressignificação da Teoria Geral do Estado, em especial os aportes da Filosofia
Política, a partir da prevalência dos direitos humanos, verificável na teoria jurídica
contemporânea e no modelo de Estado Humanista. A hipótese central a ser discutida, portanto,
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Insere-se na discussão o papel de uma Constituição e a forma como assegurar sua força
normativa em meio a constantes transformações econômicas e sociais.
O terceiro e último núcleo estruturante das apresentações do Grupo de Trabalho tratou
da temática “Controle de Constitucionalidade e Judicialização da Política ”. Os textos
reunidos sob esta temática geral tratam especificamente dos desdobramentos políticos e
institucionais da efetivação da Constituição de 1988 no Brasil, tendo como um elemento de
destaque o papel do Poder Judiciário nas suas mais variadas funções.
No texto “Governabilidade e capacidade para emendar: o Poder Executivo e as
Emendas Constitucionais”, o acadêmico Henrique Rangel e o professor Carlos Bolonha
analisam, a partir de um marco teórico institucionalista, que une Direito e Ciência Política, a
questão das Emendas Constitucionais. Abordam este objeto a partir do problema político do
presidencialismo de coalizão, relacionando governabilidade e capacidade de emenda do
Executivo. Avaliam que, mesmo com a possibilidade da redução da influência do Executivo no
Congresso Nacional, não diminui a sua governabilidade, o que aponta para o caráter sistêmico
das coalizões nas democracias contemporâneas. Realizam a pesquisa levando em conta a
análise das Emendas à Constituição de 1988, avaliando a participação do Executivo na sua
elaboração e no seu encaminhamento, bem como os desdobramentos de sua relação com o
Poder Legislativo e com o Poder Judiciário.
No artigo “O direito fundamental a limitação da jornada de trabalho: uma análise do
projeto de Emenda Constitucional do empregado doméstico”, o mestrando Murilo Kerche de
Oliveira e a professora Mirta Lerena Misailidis examinam um tema bastante discutido durante
o ano de 2013, o limite da jornada de trabalho do empregado doméstico. Analisam não
somente a PEC nº66/2012 em votação no Congresso Nacional e os benefícios que traz para o
empregado doméstico, mas o impacto político e social da incorporação desta medida no
ordenamento jurídico brasileiro.
“A natureza jurídica do Tribunal de Contas da União: uma análise sob a ótica da Teoria
Geral do Estado, do Direito Administrativo e do Direito Constitucional”, da professora
Fernanda de Carvalho Lage, é um artigo que tem a pretensão de avaliar a questão da separação
de poderes no Brasil a partir do funcionamento de órgãos de controle como é o caso do
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eminentemente político das decisões do STF, ora avalizando, ora combatendo o caráter
claramente ilegal de inúmeros atos do Poder Executivo.
Finalmente, encerrando as contribuições relativas ao estudo do processo de
judicialização, temos o texto “O constitucionalismo e a nova moral tributária: o estado
constitucional brasileiro e seus reflexos no Direito Tributário”, do mestrando Antonio Alves
Pereira Netto. Neste trabalho, o autor examina como o forte ativismo judicial altera
substantivamente o escopo e o alcance de princípios constitucionais tributários, com uma
modificação clara na justificação do poder de tributar. O texto analisa a relação desta mutação
do sentido dos princípios tributários à luz do processo de globalização e de judicialização da
política, avaliando de forma contundentemente crítica o surgimento de um “novo conjunto de
preceitos morais” que objetivaria legitimar e controlar a execução de normas de direito
tributário no Brasil.
Assim, é com grande satisfação que apresentamos a comunidade jurídica a presente
obra. Que todos possam se valer dos inúmeros ensinamentos aqui presentes.
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RESUMO
O presente artigo tem por finalidade a análise da Teoria da Constituição sob o olhar da tese do
patriotismo constitucional trabalhado por Jürgen Habermas. Elaborou-se primeiramente uma
visão da cidadania moderna na dinâmica de busca por efetividade da democracia
constitucional. O artigo analisa criticamente a função da cidadania na efetividade da
Constituição uma vez que o processo de construção democrática é um vir a ser contínuo de
luta por reconhecimento de direitos. Demonstra-se que os sujeitos constitucionais, a partir do
uso dos direitos fundamentais, fazem a interpretação da Constituição de maneira que ela se
torne um constante interpretar das múltiplas identidades coletivas. Para que ocorra a
construção permanente da Constituição, aberta para uma comunidade de interpretes, antes se
deve ter uma devida compreensão da cidadania, da democracia e da Constituição.
Palavras-chave: Democracia, Cidadania, Constituição, Efetividade, Patriotismo
Constitucional.
ABSTRACT
This article aims to analyze the theory of the Constitution from the perspective of theory of
constitutional patriotism worked by Jürgen Habermas. It was first elaborated a vision of
modern citizenship in the dynamics of search effectiveness of constitutional democracy. The
article critically examines the role of citizenship in the Constitution effectiveness once the
construction process is a democratic become continuous struggle for recognition of rights.
Demonstrates that the constitutional subject, from the use of fundamental rights, make the
interpretation of the Constitution so that it becomes a constant interpretation of multiple
collective identities. For the occurrence of permanent construction of the Constitution, to open
a community of interpreters, first one must have a proper understanding of citizenship,
democracy and the Constitution.
Keywords: Democracy, Citizenship, Constitution, Effectiveness, Constitutional Patriotism.
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Mestre e Doutorando em Teoria do Direito pela Puc/Minas, Professor no I.E.S. J. Andrade e Professor na
Faculdade Arquidiocesana de Curvelo.
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1 - Introdução
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Para Rosenfeld, tal como para Friedrich Müller, Chantal Mouffe e a maior parte da
filosofia política e da doutrina constitucional atuais, sabemos hoje, por experiência
própria, que a tutela paternalista elimina precisamente o que ela afirma preservar.
Ela subtrai dos cidadãos exatamente a cidadania, o respeito à sua capacidade de
autonomia, à sua capacidade de aprender com os próprios erros, preservando
eternamente a minoridade de um povo reduzido à condição de massa (de uma não-
cidadania), manipulável e instrumental por parte daqueles que se apresentam como
seus tutores, como os seus defensores, mas que, ainda de modo inconsciente, crêem
a priori e autoritariamente na sua superioridade em relação aos demais e assim, os
desqualificam como possíveis interlocutores. O debate público e os processos
constitucionais de formação de uma ampla vontade e opinião pública são assim
privatizados (CARVALHO NETTO, 2003, p. 11).
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unicamente à maioria o papel das decisões. Muito pelo contrário, o que o artigo fundamenta é
que há a necessidade de uma revisão permanente de quais são os princípios de justiça que essa
sociedade plural e democrática pretende compartilhar. Muitas vezes pode-se observar que é a
própria maioria que exclui e segrega os indivíduos, mas sempre sob um fundamento
equivocado que pode aparecer no discurso de aplicação quanto no de justificação.
O exercício da cidadania condiciona-se, então, para questões de consolidação de
mecanismos que possibilitem aberturas procedimentais cívicas na reconstrução permanente do
Estado Constitucional. Assim sendo, se a educação é um possibilitador do esclarecimento
cívico necessário para que os cidadãos possam assumir a responsabilidade de interpretar
(construir) a realidade constitucional existente, provavelmente, maior elucidação de seus
direitos e melhores interferências da sociedade civil na esfera pública será feita.
Na democracia Constitucional o respeito mútuo dos cidadãos na construção da
decisão estatal é uma exigência para que se possa declarar iguais direitos e liberdades. A
construção da democracia necessita de permanente atenção às ações públicas que dizem
respeito a todos os agentes públicos, sejam eles juízes, prefeitos, deputados ou senadores,
nenhum deles possui a prerrogativa para decidir discricionariamente. O agente público está
vinculado aos fundamentos constitucionais adequados em cada caso específico no ato de
proferir suas decisões. Em outras palavras, deve haver uma comunicação constante entre
sociedade civil e esfera pública que possibilite a atualização daquilo que se chama de
identidade constitucional.
Por um lado deve haver uma insatisfação com a realidade política e jurídica, por
outro, uma vontade de atualização da identidade pela ausência de consensos sobre quais são
os princípios fundamentais de justiça que devem ser aplicados aos casos práticos ou ainda
quais são as políticas públicas que devem ser efetivadas. Essa problemática somente se solve
com a transformação dos momentos, o que em grande parte o direito é o responsável. Seja
para possibilitar a manifestação das diversas identidades ou, seja para constatar uma alteração
da realidade por alteração normativa.
A democracia constitucional emerge do encontro do eu com o outro fundado na
ausência e na alienação, encontra-se em uma posição que requer que ele esqueça a sua
identidade, se utilizado de um discurso enraizado em uma linguagem comum que vincula e
une os múltiplos outros.
Uma teoria que ser entenda como democrática não pode acolher o cidadão de
maneira a caracterizá-lo como hipossuficiente e incapaz de assumir a responsabilidade de
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interpretar seu passado, construir o seu presente e projetar o seu futuro. A democracia
constitucional não deve privilegiar qualquer modelo específico de “vida boa”, qualquer
projeto específico. Ela visa que iguais oportunidades sejam presentes independentemente de
quais decisões os indivíduos tomem no decorrer da vida.
A abertura à discussão dos conflitos de interesse dentro dos meios inerentes para a
resolução dos mesmos é característica de um povo que se reconhece como igual e compartilha
de princípios de justiça que possam ser defesos por qualquer um deles. Através do diálogo
intersubjetivo é que os cidadãos poderão manifestar suas identidades e defender seus
interesses amparados pelos direitos fundamentais. A problemática não é de universalizar
nenhum modo de vida, pelo contrário, é garantir a manifestação da pluralidade de concepções
de bem por meio de mecanismos procedimentais em que os cidadãos sejam tratados como
iguais e livres. Como já demonstrou GALUPPO: “enquanto o antônimo para igualdade é
desigualdade, o antônimo para identidade é diferença” (GALUPPO, 2002, p. 214). A
homogeneidade impossibilita o reconhecimento dos indivíduos como cidadãos livres e iguais
em busca de efetividade dos direitos fundamentais. Veja Menelick de Carvalho:
Não há espaço público sem respeito aos direitos privados à diferença, nem direitos
privados que não sejam em si mesmos destinados a preservar o respeito público às
diferenças individuais e coletivas na vida social. Não há democracia, soberania
popular, sem a observância dos limites constitucionais à vontade da maioria, pois aí
há, na verdade, uma ditadura; nem constitucionalismo sem legitimidade popular,
pois aí há autoritarismo. A igualdade reciprocamente reconhecida de modo
constitucional a todos e por todos os cidadãos, uma vez que, ao mesmo tempo, a
todos e por todos é também reconhecida reciprocamente a liberdade, só pode
significar a igualdade do respeito às diferenças, pois embora tenhamos diferentes
condições sociais e materiais, distintas cores de pele, diferentes credos religiosos,
pertençamos a gêneros distintos ou não tenhamos as mesmas opções sexuais, nos
respeitamos ainda assim como se iguais fossemos, não importando todas essas
diferenças (CARVALHO NETTO, 2003, p. 13).
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permanente, pois como se viu acima, caracteriza-se a democracia pelo princípio da diferença e
pelo respeito às minorias. Inclusive essa é a contribuição de Kant ao possibilitar pensar o
conceito dignidade como um fim em si mesmo. Hegel também contribui para esse movimento
moderno na análise intersubjetiva do processo de reconhecimento mútuo.3 São essas
contribuições que possibilitam a construção de uma visão pluralista e de pressupostos
universalistas e de reciprocidade na democracia constitucional. Esse processo dinâmico,
aberto e que tem por objetivo o movimento de negação e de posterior aceitação é o que Hegel
denomina de dialética. Hegel utiliza deste conceito para demonstrar como os indivíduos nas
relações sociais buscam a identidade através das diferenças. Diferenças que são apropriadas
pelas identidades que se entendem. Ou seja, o sujeito é famélico e busca a todo o momento
satisfazer seus desejos com o outro. É na negação do outro que tem a afirmativa de sua
própria identidade. Mas ao mesmo tempo em que nega, o sujeito constitucional se abre para a
possibilidade de se reconhecer em determinada identidade alheia.
A problemática contemporânea encontra-se na colonização dos mecanismos
linguísticos que servem de abertura à sociedade civil, como os meios midiáticos que são
privados e muitas vezes defendem interesses egoísticos, privados e/ou burocráticos. A
linguagem muitas vezes é colonizada pelo mercado e pela burocracia, e é o que ocorre com a
esfera pública no Brasil.
Grande parte dos problemas diz respeito ao uso que se dá à linguagem no direito. O
uso tecnicista da linguagem, a interpretação instrumentalizada, traz consigo uma tradição que
impossibilita a compreensão dos diversos mundos da vida e sempre realiza análise
tendenciosa do direito e da democracia. O problema do direito é também um problema de
linguagem, de interpretação que se faz da Constituição e da democracia.
A necessidade de reconstrução de uma teoria democrática constitucional é pelo fato
do próprio direito não ser contínuo. Ele desconstitui o que está constituído. Ele oxigena as
relações sociais através de intepretações sociais que, grande parte das vezes, se manifestam
através de revoluções e reivindicações populares. O que se pode afirmar, de certa forma, é que
o direito mantem a estabilidade social, ele muda, desconstitui para manter a continuidade.
Quer-se dizer com isso que ele possui uma característica holística que marca seu tempo e
determina seu espaço de acordo com a dinâmica social de interpretação, intervenção e
reivindicação de direitos.
3
Kant e Hegel são dois autores que fazem parte de um movimento intelectual que visava descobrir as formas de
constituição do espírito (conhecimento). Este movimento foi primeiramente denominado de Idealismo
Transcendental, pois a época , tinha-se era a Prússia, e não a Alemanha.
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4
O pensamento de Habermas que se explica em Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade contorna
algumas das aporias decorrentes da sobrecarga idealizante na atividade decisória do Estado de Direito. Habermas
disciplina que o encontro de fundamentos é no âmbito da linguagem, no âmbito do discurso. Antes de qualquer
outro fator, de qualquer outra coisa, antes de ser ideologia, antes de ser política, antes de ser instrumento de
domínio, a linguagem apela para a cognição. Habermas entende que, se elaborarmos um local onde as disputas
linguísticas não tenham ruídos ideológicos, onde elas possam se dar de maneira livre, esse local ideal faria com
que a linguagem se desse exclusivamente como cognição. Esse elemento cognitivo da linguagem que faz com
que Habermas diga que, nesse discurso em condição livre, nesse discurso que se põe contra o discurso do outro,
mas não para dominar, mas sim para ser entendido, encontra aí o elemento, digamos assim, central da linguagem
e fundamentador de todos os outros discursos e também do nosso saber, do nosso conhecimento.
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5
Observe destaque que Cattoni de Oliveira realiza ao demonstrar a afirmativa de que havia uma vertente
interpretativa de historiadores que tinham como objetivo abrandar e relativizar os acontecimentos da história
alemã: “Autores como o historiador alemão Ernest Nolte destaca-se, nessa polêmica, em razão da radicalidade e
influência. Nolte, que teria sido discípulo de Heidegger, relativiza a tal ponto os crimes nazistas que chega a
afirmar que o extermínio em massa levado a cabo nos campos de concentração por parte do regime hitlerista
teria sido tão-somente uma espécie de “reação”, sendo algo, portanto, que deveria ser compreendido apenas
como mais um dos capítulos de uma suposta “guerra civil mundial” perpetrada entre americanismo e
comunismo, ao longo do século XX” (OLIVEIRA, 2007, p. 03).
6
“A prender com a história não significa, para Habermas, apenas revisar os conteúdos da tradição cultural, mas
fundamentalmente enfrentar a derrota das esperanças do passado. É preciso refletir sobre as tradições que
fracassaram, sobre os desenganos e sobre a capacidade de indicar que caminho não podemos seguir”
(CITTADINO, 2007, p. 59).
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O patriotismo constitucional habermasiano é, na verdade, a confecção de uma idéia constitucional e de um
sentimento comunitário empírico. Ele consiste em um compartilhamento consciente de sentimentos de
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“apenas de um consenso ético de uma dada comunidade” (CRUZ, 2006, p. 97). Para
Habermas o patriotismo constitucional é fonte de legitimidade de toda a estrutura do Poder
Constituinte e de sua Teoria Discursiva do Direito e da Democracia. Para o autor a ideia de
povo e de nacionalismo é substituída pela ideia de patriotismo constitucional. Agora a
identidade do sujeito ocorre pelo compartilhamento coletivo de uma permanente
aprendizagem com os princípios constitucionais. Veja Rouanet a respeito:
Somente no reconhecimento do outro como livre e igual é que poderá surgir uma
identidade coletiva, isso não quer dizer, muito pelo contrário, de que todos tenham que
possuir mesmo entendimento a respeito de questões de tradição, crença e cultura, por
exemplo. Como visto acima, é pelo princípio da diferença é que a democracia se constitui
como organização social válida e forte.
A atitude cívica é pautada no exercício de conhecimento e interpretação permanente
da Constituição. O reconhecimento de iguais liberdades subjetivas no espaço
procedimentalizado discursivo legitimado pelos direitos fundamentais é que possibilita a
reconstrução interpretativa da Constituição. Conforme Cittadino: “O patriotismo
constitucional, tal como formulado por Habermas, difere da idéia de que o patriotismo é uma
identificação comum com uma comunidade histórica fundada em certos valores”
(CITTADINO, 2007, p. 61).
Habermas não procura buscar na ideia de povo uma espécie de refúgio para os
problemas da modernidade, ou ainda, fundamentar levianamente a política e a aplicação do
direito a partir de um conceito vago. O patriotismo constitucional vai substituir a ideia
tradicional de povo e servir de abertura para o texto constitucional ser entendido como
inacabado, aberto e perene. Ele não procura substancializar a constituição e muito menos
formar um patriotismo cultural baseando na homogeneidade ou no multiculturalismo. Sua
proposta é compreender que o patriotismo constitucional é uma atitude, uma postura, um
pertencimento à comunidade, inspirado pelo vínculo a uma idéia contrafática percebido pela comunidade
(MICHELMAN, 2001, p. 254, tradução nossa). “Habermasian constitutional patriotism, in fact, is a confection
counterfactual constitution idea and empirical communitarian sentiment. It consist in a conscious sharing of
sentiments of attachment to the community, inspired by the community's perceived attachment to the
counterfactual idea”.
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esclarecimento cívico, uma ação democrática e constitucional que por meio dele, os cidadãos
aceitam que as raias da solidariedade social se resguardam no direito e na Constituição. Nos
dizeres de Habermas, “A isso corresponde um conceito processual de identidade coletiva”
(HABERMAS, 2002, p. 330). Em outras palavras, quando cidadãos se reconhecem diferentes
culturalmente e iguais em direitos fundamentais, é possível perceber que a solidariedade
social está amparada na Constituição. Nem o direito e nem a Constituição são substâncias
éticas como cardápio de princípios morais valorativos e hierárquicos. Os princípios
constitucionais devem ser entendidos como possibilitadores do espaço procedimental
discursivo que os sujeitos se reconhecem como detentores de iguais liberdades subjetivas.
Assim, o patriotismo constitucional fomenta o espaço discursivo para formar uma
cultura política procedimental constitucionalizada. Em virtude de ele ser compartilhado e não
defender nenhum modelo do que seja “vida boa” é que se pode caracterizá-lo como neutro e
procedimental, assim como o princípio da democracia o é.
A consciência história é que possibilita a constante construção da democracia e do
constitucionalismo. Somente no exercício legítimo da cidadania democrática é que se poderá
instaurar o processo de construção da identidade coletiva. Mas para que esse processo
deliberativo democrático ocorra é necessário estabelecer como prioridade a efetivação dos
direitos fundamentais e da soberania popular como suportes legítimos da democracia
constitucional.
O patriotismo constitucional necessita da história argumentativa e autocrítica, aquela
história que supõe a tomada de consciência da ambivalência de cada tradição participante de
uma mesma identidade coletiva. “Nossa identidade não é algo que assumimos, mas também
um projeto de nós mesmos” (HABERMAS, 2002, p. 330).
Habermas defende que é através de uma sociedade reflexiva que o processo político
de modernização pode alcançar um futuro promissor em que se respeita a autonomia pública e
privada. Ele propõe uma leitura tensionada, bem dialética neste ponto, entre realidade e
normatividade. Uma realidade que cidadãos por meio de um complexo processo discursivo
fixam direitos e deveres e reconhecem-se entre si.
Baseado nas observações precedentes pode-se inferir que a democracia
constitucional surge como algo complexo, fragmentado e incompleto. Ela deve ser
considerada um vazio que ocupa o intervalo entre dois sentidos. Primeiramente, a consciência
da ausência de uma democracia plena é indispensável para haver a sua reconstrução
permanente e, consequentemente, a democracia constitucional é inerentemente incompleta,
daí aberta e a procura de completude.
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tese que proporciona a superação das antigas tradições constitucionais pelo fato delas não
serem “capazes de nortear um estudo adequado a um paradigma de Estado democrático de
direito” (PEDRON, 2009, p. 53).
Sob a ótica da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas não se
privilegia nem a visão republicana nem a liberal,8 nem a visão comunitarista nem a liberalista,
mas concebe a visão do pluralismo como sendo tanto visões individuais do mundo quanto
perspectivas a respeito do que seja o bem. Ou seja, Habermas não privilegia nem a autonomia
privada do justo (liberalismo), nem a autonomia pública do bem (comunitarismo). Mas, o que
será determinante para a realização da melhor interpretação é a interlocução realizada
procedimentalmente entre as duas autonomias, a pública e a privada. Nas palavras de
Rouanet:
Quanto à noção de “patriotismo constitucional”, esta parece ser uma boa tentativa de
se situar entre a noção liberal de direitos individuais e a noção não liberal de direitos
coletivos, uma vez que se apóia na Constituição, e por esse motivo dependerá da
escolha do próprio povo de cada país (ROUANET, 2005, p. 82).
8
O patriotismo constitucional é, portanto, menos que um nacionalismo republicano e mais que um
individualismo possessivo. Por um lado, o individualismo liberal não é capaz de assegurar a coesão social, e
pode levar à dissolução da sociedade; por outro lado, o nacionalismo republicano pode levar à perda das
liberdades individuais asseguradas na Modernidade Ocidental (ROUANET, 2005, p. 78).
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4 - Conclusão
9
Ainda na mesma linha de raciocínio de aplicação de uma democracia procedimental, pode-se citar ainda o
artigo 5º inciso LIV da Constituição que impõem: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal.” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, 1988, art. 5º, LIV, grifo nosso). Entende-se
legal no texto da Constituição como “devido processo constitucional”.
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5 - Referências
CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Habermas e o Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen
Júris, 2006.
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FREITAG, Barbara. 1941 – Dialogando com Jürgen Habermas / Barbara Freitag. – Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005. – (Biblioteca Colégio do Brasil; 10).288p.
HABERMAS, Jürgen. Sobre a legitimação dos direitos humanos. In: MERLE, Jean-
Christophe; MOREIRA, Luiz. Direito e legitimidade. São Paulo: Landy, 2003a. 425p.
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MICHELMAN, Frank. Morality, Identity and “Constitution Patriotism”. Ratio Juris. Vol.
14. 3 september 2001 (253-71).
PEDRON, Flávio Barbosa Quinaud. A tese do patriotismo constitucional como superação das
antigas tradições. revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 44, p. 53-64, jan./mar. 2009.
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Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir a mudança do papel do Estado em
face do modelo econômico neoliberal, sobretudo no que concerne ao direito e à prestação
jurisdicional. Este modelo econômico impõe um novo modo de governar: se antes cabia ao
Estado elaborar planos econômicos guiados pelos seus próprios objetivos, direcionados à
concretização dos direitos dos cidadãos, por exemplo, no cenário contemporâneo o Estado
governa para e em função da economia. As ações estatais estão voltadas para a salvaguarda do
mercado, pois manter o seu saudável funcionamento é a principal preocupação. Dessa forma,
a garantia do pleno emprego, a diminuição dos abismos sociais, entre outros objetivos
próprios do welfare state, têm sua importância reconhecida, contudo, são questões
secundárias. Por isso, pode-se dizer que o Estado Contemporâneo vive um processo de
“economização” e de relativização das garantias constitucionalmente asseguradas. O direito,
assim como os sistemas de justiça, não estão imunes a este processo. Ambos são avaliados
sob o ponto de vista dos consumidores, de modo que são submetidos a uma lógica
(eficientista) que não lhes é própria. Não só o direito, como a prestação jurisdicional, são
enformados pelos seguintes valores: eficiência, produtividade e padronização. O cumprimento
destes valores permite que os atores econômicos reúnam certo número de informações
necessárias a adoção de comportamentos estratégicos, de modo que possam prever as
decisões, avaliar os custos que possam vir a ter com o judiciário e o peso burocrático dos
mesmos. Nesse cenário, a preocupação com a garantia de direitos constitucionais, bem como
com a qualidade da prestação jurisdicional são relegadas a segundo plano.
Resumen: Este trabajo tiene como objetivo analizar la evolución del papel del Estado en el
modelo económico neoliberal, especialmente respecto al derecho y a la adjudicación. Este
modelo económico requiere una nueva forma de gobernar: si antes la función del Estado
correspondia al dever de desarrollar planes económicos, guiados por sus propios objetivos y
orientados a la realización de los derechos de los ciudadanos, por ejemplo, en el escenario
contemporâneo, el Estado gobierna para y en función de la economía. Las acciones del
Estado están dirigidas a salvaguardar el mercado, pues mantener su buen funcionamiento es
su principal preocupación. De este modo, lograr el pleno empleo, reducir abismos sociales,
entre otros objetivos propios del Estado de Bienestar, tienen su importância reconozida, sin
embargo, son cuestiones secundarias. Por lo tanto, se puede decir que el Estado
contemporáneo vive un processo de “economización" y de relativización de las garantías
constitucionales. El Derecho, bien como los sistemas de justicia, no están inmunes a este
1
Mestranda em Direito Público do Programa de pós-graduação em direito da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos. Graduada pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: julialafayette@hotmail.com.
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proceso. Ambos son evaluados desde el punto de vista de los consumidores, por una lógica
(eficientista) que no les pernenece. No sólo el derecho, como la adjudicación, son
conformados por los siguientes valores: eficiencia, productividad y estandarización. El
cumplimiento de estos valores permite que los agentes económicos reunan cierto número de
informaciones necesarias a la adopción de conductas estratégicas, de modo que puedan
predecir las decisiones, evaluar los costos que puedan tener con la carga legal y burocrática de
ellos. En este escenario, la preocupación con la garantía de los derechos constitucionales, bien
como con la calidad de la adjudicación son relegados a un segundo plano.
1. INTRODUÇÃO
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por meio de levantamento bibliográfico. O artigo está dividido em duas partes: na primeira,
procura-se demonstrar a crise do Estado de Bem-Estar Social diante da globalização da
economia e a crescente supremacia do poder econômico frente ao poder político e jurídico
(2.1). Ainda, será discutido o surgimento do modelo neoliberal no período pós-segunda
guerra, cuja pertinência se justifica por explicar a mudança de pensamento quanto ao papel do
Estado na economia, sendo a experiência alemã a mais significativa, como afirma Foucault
(2.2).
Na segunda parte, esclarece-se a relevante mudança da política liberal - Estado laissez-
faire-, para a política neoliberal - Estado supervisor/regulador do jogo econômico (3.1). Em
seguida, discute-se a perda de autonomia do Direito em decorrência de um Estado que passa a
se pautar por valores neoliberais (3.2).
De acordo com Hobsbawn (2007, p. 11), o impacto da globalização é mais sentido por
aqueles que dela não se beneficiam. A ampliação dos mercados globais trouxe como
conseqüência a acentuação das desigualdades econômicas e sociais entre os Estados Nações,
ainda que tenha havido uma diminuição geral da pobreza extrema. O crescimento do abismo
sócio-econômico entre os mais e menos abastados no interior dos estados também não
mostrou sinais de desaceleração (HOBSBAWN, 2007, p. 11).
Tal conjuntura, combinada com condições de extrema instabilidade econômica
decorrentes das práticas de livre mercado global, formam o eixo gerador das principais
tensões sociais e políticas do século XXI. Ao mesmo tempo em que a ascensão de novas
economias asiáticas ameaça os índices de desenvolvimento humano dos povos do velho norte,
países como Índia e China, dificilmente, alcançarão o alto nível de vida europeu para suas
vastas populações.
É em torno disto que provém a polarização das opiniões que dizem respeito aos
impactos da globalização. A divergência ocorre entre os que estão protegidos das suas
conseqüências negativas - os empresários, que recorrem à mão-de-obra barata de outros países
para baixar os custos e contornar a concorrência, os profissionais da alta tecnologia, os
profissionais que possuem curso superior, capazes de conseguir trabalho em mercados de alta
renda - e aqueles que neste rol não estão incluídos (HOBSBAWN, 2007, p. 11).
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“É por isso que, para a maior parte daqueles que vive dos salários provenientes dos
seus empregos nos velhos ‘países desenvolvidos’, o começo do século XXI oferece um
quadro sombrio, para não dizer sinistro” (HOBSBAWN, 2007, p. 11-12). Com as mesmas
qualificações, existe um imenso número de trabalhadores de outros países dispostos a exercer
as mesmas tarefas a apenas uma pequena fração dos salários pagos no Ocidente, isso sem
contar com a pressão do grande “exército de reserva de trabalhadores” imigrantes dentro dos
próprios países desenvolvidos, egressos das “aldeias das grandes zonas globais de pobreza”
(HOBSBAWN, 2007, p. 11-12).
Com isso, percebe-se que o mercado livre global comprometeu a existência do Estado
do Bem-Estar Social, constituindo tal realidade uma das faces da crise do Estado, temática
discutida por Bolzan de Morais (2011, p.14). Segundo o autor, este modelo de Estado vem
enfrentando dificuldades de três ordens distintas: fiscal financeira, ideológica e filosófica. E é
apegando-se às mencionadas dificuldades e fragilidades deste modelo nos presentes dias, que
surge a proposta neoliberal como contraponto, ao defender o retorno a uma ordem estatal
reduzida (BOLZAN DE MORAIS, 2011, p. 14).
2
Segundo Canotilho (2002, p. 31-32), “fala-se (e teoriza-se a este propósito) de um ‘estado economizado’ e de
um ‘estado dispensador de serviços’. Como o próprio adjectivo insinua o ‘estado economizado’ é um ‘estado
economizador’ segundo os paradigmas de racionalidade econômico-privada. O Estado Social deve sujeitar-se a
uma terapia adequada. Há que substituir, em primeiro lugar, o big government do estado de bem estar por um
estado ‘reduzido’ e ‘elegante’. Para isso ser possível, os inúmeros serviços e administração estatais, caros e
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nacionais ou locais, como escolas, fornecimento de água, prisões e correios, hoje estão
“transformadas em empresas de negócios ou entregues a elas; e os funcionários públicos
foram transferidos para agências independentes ou substituídos por contratistas comerciais”
(HOBSBAWN, 2007, p. 105).
Nesse cenário, o Estado tem aspirado o modus operandi da empresa privada com fins
lucrativos. Em lugar da mobilização ativa e passiva dos cidadãos, o Estado passou a confiar
nos mecanismos econômicos do mercado. Só que dessa conjuntura emerge um problema
crucial, como bem revela Hobsbawn (2007, p. 105): “o ideal de soberania do mercado não é
um complemento à democracia liberal, e sim uma alternativa a ela”.
O ideal de soberania do mercado constitui uma alternativa a todos os outros tipos de
política: pauta-se por uma soma de escolhas, racionais ou não, de indivíduos que decidem de
acordo com suas preferências pessoais. Tal mecanismo ignora a necessidade de decisões
políticas, consistentes naquelas orientadas para interesses comuns ou de um determinado
grupo (HOBSBAWN, 2007, p. 106). A revelação dos interesses dos consumidores, medidos
pelo mercado - ou, mais precisamente, pelas pesquisas de mercado - tornaram-se meios mais
eficientes do que o defasado método de contar votos nas eleições.
Considerando isto, “a participação no mercado substitui a participação na política” e
“o consumidor toma o lugar do cidadão” (HOBSBAWN, 2007, p. 106). Diante disso,
permanece a seguinte pergunta: tal escolha se coaduna com um sistema político liberal e
democrático?
É certo que o Estado, como organização democrática, está vinculado às exigências
próprias de uma democracia, seus controles públicos, limites procedimentais e, sobretudo, aos
direitos e garantias cidadãs. No entanto, outras limitações emergem no presente Estado
Contemporâneo além daquelas que delineiam o Estado Constitucional. O Estado Moderno -
“tradicionalmente centro único e autônomo de poder”, “protagonista na arena internacional” e
“ator supremo” no âmbito do seu espaço territorial - está em crise, como evidencia Bolzan de
Morais (2011, p. 21).
Os centros de poder se dispersaram. Distante do protagonismo exercido pelo Estado
Moderno no cenário mundial, surgem em cena não só organizações internacionais
institucionalizadas, sobretudo no domínio econômico – entre elas, Organização Mundial do
Comércio (OMC), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização dos Países
insuficientes, devem ser substituídos por esquemas privados empresariais. Mais do que isso. Os próprios
instrumentos de direcção e organização econômico-privados revelam operacionalidade suficiente para serem
introduzidos na máquina estatal”.
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Neves (2008, p. 218) reflete tal situação mencionando que a realização do Estado
Democrático de Direito agravou-se com os novos fluxos de economização no plano da
sociedade mundial, ou seja, “por força de uma expansão hipertrófica do código econômico
(‘globalização econômica’) em detrimento da autonomia dos sistemas político e jurídico”.
Assim, os códigos binários “lícito/ilícito” e “poder/não-poder”, próprios dos sistemas
jurídico e político respectivamente, são extremamente frágeis para conter a ação restritiva e
destrutiva dos sistemas econômicos sobre os sistemas jurídicos dos Estados nacionais
(NEVES, 2008, p. 219). Nesse cenário, o que ocorre não é uma autopoiese da economia
diante da política e do direito, o que na verdade ocorre é uma “hipertrofia do código
econômico em prejuízo dos códigos jurídico e político”.
Embora o mesmo constitucionalista ressalte que a influência dos interesses
econômicos varie de acordo com o grau de solidez do Estado Democrático de Direito, ele
argumenta que tais interesses constituem fatores que asfixiam uma esfera pública pluralista,
uma vez que dificultam a concretização da “soberania do povo”, da “soberania do Estado”, do
princípio da igualdade e da cidadania (NEVES, 2008, p. 219).
Conforme mencionado, a “sociedade política mundial” - composta por Estados
nacionais - possui mecanismos de regulação econômica que transcendem os limites
circunscritos pelos Estados nacionais. No entanto, o mercado mundial, principalmente o
mercado financeiro, opõe-se com muito mais força à vulnerável ordem política e jurídica
internacional. Isto para não mencionar que, não raro, a ordem político-jurídica internacional
está intrinsecamente ligada aos interesses das grandes potências, de modo que, acreditar que
tais organizações estão voltadas para a concretização do Estado Democrático de Direito
através de uma eficiente regulação da economia, muitas vezes, não passa de uma quimera
(NEVES, 2008, p. 219).
Conforme Jânia Saldanha (2010a, p. 9), para o modelo atual de economia de mercado,
o que está em pauta é que a economia “sirva de princípio, de forma e de modelo para o
próprio Estado” e, nisto, pode-se incluir também as organizações interestatais e supra-estatais.
Destarte, para o neoliberalismo, a preocupação central é manter o exercício global do poder
político orientado de acordo com a economia de mercado e baseado nas suas características:
abstração, estandartização, concorrência e quantificação. Com base nisso, Jânia Saldanha
elucida que quando isto ocorre, o abstrato se sobrepõe ao concreto e tais práticas passam a
representar a “‘normalidade abstrata’ de que se nutre o neoliberalismo para impor padrões de
conduta e padrões de gestão”.
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No Estado de polícia vigente no século XVIII, a liberdade era identificada como uma
liberdade de privilégios, liberdade reservada, liberdade proveniente de um estatuto, ligado a
uma profissão, ou a uma concessão de poder. Por outro lado, a liberdade de mercado era
reconhecida como liberdade de “deixar fazer” ou laissez faire, isto é, possuía uma lógica
diferente das anteriores, visto que não era regulamentada de modo preciso.
Mas, o que assegurava a permissão de liberdade do mercado no interior da razão de
Estado, ou, no interior do funcionamento do Estado de polícia, era o princípio de
enriquecimento, de crescimento, que culminaria com o fortalecimento do poder estatal. Em
poucas palavras, resumia-se ao intuito de “alcançar mais Estado com menos governo: era
essa, em suma, a resposta do século XVIII”. O laissez faire trazia conseqüências positivas
para o Estado, equivalente ao seu aumento de poder (FOUCAULT, 2004, p. 139-140).
Nesse passo, Foucault revela-se um autor indispensável para se compreender o
surgimento do neoliberalismo, mais precisamente, do neoliberalismo alemão, próprio do pós-
guerra, do qual “somos contemporâneos e no qual estamos implicados”. Discorre-se acerca do
neoliberalismo alemão – ou ordoliberalismo – neste artigo por ser a experiência mais rica, aos
olhos de Foucault, sobre esta nova arte de governar (neoliberal), cuja característica principal
parece ser a de “fobia ao Estado” (FOUCAULT, 2004, p. 139).
Contrariamente ao problema presente no Estado de polícia do século XVIII,
consistente no problema de inserir uma liberdade de mercado no interior do Estado, como
explicitado no início deste subcapítulo, o problema da Alemanha, em 1948, foi
diametralmente oposto (FOUCAULT, 2004, p. 140).
O problema alemão assim se delimitava: “supondo, atrevo-me a dizer, um Estado que
não existe; supondo a tarefa de fazer um Estado existir; como legitimar, de certo modo
antecipadamente, esse Estado futuro?” (FOUCAULT, 2004, p. 140). Ou seja: como tornar
aceitável que a liberdade econômica limite o Estado, mas, ao mesmo tempo, permita que o
mesmo exista? De acordo com Foucault, estas indagações refletem o objetivo primeiro,
histórico e politicamente primeiro, do neoliberalismo, pois, no período pós-segunda guerra,
a história tinha dito não ao Estado alemão. Agora é a economia que vai lhe
possibilitar afirmar-se. O crescimento econômico contínuo vai substituir uma
história claudicante. A ruptura da história vai portanto poder ser vivida e aceita
como ruptura de memória, na medida em que vai se instaurar na Alemanha uma
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nova dimensão da temporalidade que não será mais a da história, que será a do
crescimento econômico. Inversão do eixo do tempo, permissão do esquecimento,
crescimento econômico – tudo isso está, creio eu, no âmago da maneira como
funciona o sistema econômico-político alemão. A liberdade econômica co-produzida
pelo crescimento do bem-estar, do Estado e do esquecimento da história
(FOUCAULT, 2004, p. 116).
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não haverá o jogo do mercado, que se deve deixar livre, e, depois, a área em que o
Estado começará a intervir, já que precisamente o mercado, ou antes a concorrência
pura, que é a própria essência do mercado, só pode aparecer se for produzida, e
produzida por uma governamentalidade ativa (FOUCAULT, 2004, p. 164-165).
Para alcançar-se a almejada concorrência, vai haver uma “justaposição total dos
mecanismos do mercado indexados à concorrência e da política governamental” e o governo
acompanhará do início ao fim a economia de mercado. A política social, de cunho permanente
e multiforme, não será contra a economia de mercado: ela será condição de possibilidade para
que o mecanismo formal da concorrência aconteça, isto é, para que “a regulação que o
mercado concorrencial deve assegurar possa se dar corretamente”, de modo que os efeitos
negativos inerentes a uma ausência de concorrência sejam impedidos (FOUCAULT, 2004, p.
222).
Diante desta conjuntura, Avelãs Nunes (2011, p.118) refere que o combate à inflação
constitui a única política econômica bem fundamentada, pois ela afeta o mecanismo dos
preços relativos e põe em causa o funcionamento do “livre” mercado e a “racionalidade” das
economias capitalistas. Com o objetivo político de se alcançar a estabilidade dos preços, os
outros objetivos próprios de uma política econômica (que não a neoliberal) são postos em
segundo plano, para não dizer que nem ao menos são lembrados.
As medidas próprias de uma política keynesiana, constituintes da essência do estado
social - como crescimento econômico, pleno emprego, desenvolvimento regional equilibrado,
redistribuição do rendimento e justiça social -, e que objetivam conciliar capitalismo e
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E é neste curso que seguirá a jurisdição, tendo como tema governar a ordem
espontânea da vida econômica.
Conforme Chevallier (2009, p. 69), ainda que o Estado não mais seja o “motor do
desenvolvimento” e o gestor dos setores-chave da economia, não quer dizer que ele esteja
menos engajado. “A complexidade crescente dos circuitos econômicos, as mutações
tecnológicas, a sofisticação dos produtos financeiros, a globalização das trocas”, mas também
a crescente pressão dos poderes econômicos, cujo poderio tem se reforçado com a
globalização, impõem que o Estado assuma um papel interventivo, como mencionado no
início deste capítulo (CHEVALLIER, 2009, p. 69).
Como Foucault, Chevallier afirma que a intervenção pelo Estado dirige-se à fixação
das regras do jogo econômico, ao estabelecimento de determinadas disciplinas a prevalecerem
em detrimento de outras e à proteção de determinados interesses. Desse modo, o Estado
permanece presente na economia, só que de modo mais distante, como um “supervisor”, “cuja
presença é indispensável para assegurar a manutenção dos grandes equilíbrios e criar as
condições propícias a seu desenvolvimento” (CHEVALLIER, 2009, p. 69).
Assim, de um Estado operador, detentor de empresas implantadas principalmente nos
setores de base (como energia, transportes e telecomunicações), passou-se ao Estado
regulador, diante dos movimentos de privatizações, muitas vezes impostos pelas instituições
financeiras como “programas de ajuste estrutural” na economia3. Nesse cenário, é certo que a
3
Segundo Chevallier (2009, p. 72), “esse movimento geral de privatização de empresas até então controladas
pelo Estado não significa, no entanto, que esse se desvincule totalmente da esfera das atividades produtivas. Não
apenas as privatizações encontram alguns limites estruturais (como o demonstram nos países europeus as
dificuldades de privatização das ferrovias ou da rede postal, desencadeada, no entanto, em janeiro de 2006 no
Japão), mas ainda o Estado é chamado a permanecer presente na economia, seja mantendo o seu controle sobre
atividades de importância estratégica (indústria de armamento, nuclear...), seja suplementando o capital privado
insuficiente para salvar determinados florões industriais (Alstom na França, em agosto de 2003) (‘Estado
maqueiro’); mais generalizadamente, as participações que ele conserva no capital de um conjunto de empresas
(participações doravante geridas na França por uma ‘Agência das Participações do Estado – APE ou na China
pela ‘Comissão de Controle e de Gestão dos Ativos do Estado’) permitem-lhe, enquanto acionista, influenciar as
estratégias dessas empresas. A retomada pelo Estado do setor energético (petróleo, gás), notadamente na Rússia
(Gazprom, Rosneft) ou em determinados países da América Latina (Bolívia em 2006, Venezuela em 2007),
mostra, sob outro aspecto, que um movimento reativo tende a se produzir e que o Estado pretende manter o
controle dos recursos julgados essenciais”.
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mudança de papel o tirou do estatuto de operador econômico, no entanto, isto não quer dizer
que ele tenha integralmente deixado de intervir na economia (CHEVALLIER, 2009, p. 72).
Conforme o mesmo autor, o papel de regulador implica em um novo papel do Estado
na economia: para a teoria dos sistemas, a regulação “compreende o conjunto dos processos
pelos quais os sistemas complexos conseguem manter o seu estado estacionário, preservando
os seus equilíbrios essenciais, malgrado as perturbações externas” (CHEVALLIER, 2009, p.
72). A partir da intervenção do Estado na economia, presume-se, portanto, que o sistema
econômico não encontre o seu equilíbrio por si.
Desse modo, cabe à regulação supervisionar o jogo econômico, determinar regras,
amortecer tensões e compor conflitos, de maneira que garanta a manutenção do equilíbrio do
conjunto. Neste processo de regulação, o Estado não se identifica mais como ator, mas sim
como “árbitro” do processo econômico, cuja função limita-se a enquadrar a atuação dos
operadores e esforçar-se para harmonizar suas ações. Para desempenhar estas funções, exige-
se uma “posição de exterioridade relativamente ao jogo econômico; uma capacidade de
arbitragem entre os interesses em jogo; uma ação contínua a fim de proceder aos ajustes
necessários” (CHEVALLIER, 2009, p. 73).
Para tanto, Chevallier (2009, p. 73) refere que a regulação necessita de uma série de
meios de ação: “a regulamentação (rule-making), a fiscalização (monitoring), a alocação dos
direitos (adjudication), a composição dos litígios (dispute resolution)”. Se o processo de
regulamentação passa pelo canal do direito e pela formalização jurídica, ele ocorre de uma
forma bastante diferente da regulamentação clássica, pois o “direito da regulação” é maleável,
pragmático, flexível, além de ser elaborado com a participação estreita dos destinatários, ou
interessados, e sua revisão é recorrente, de acordo com os resultados obtidos, sem, no entanto,
comprometer a estabilidade das programações estratégicas dos interesses privados
(CHEVALLIER, 2009, p. 73).
Contudo, o Estado não é a única instância de regulação da economia. Como menciona
Chevallier (2009, p. 73), além dele, existem outros atores e formas de regulamentação que
atuam de forma a complementar, ou até mesmo, a substituir a regulação estatal. Ao seu lado,
há mecanismos de autorregulação, “fundados sobre a auto-organização e sobre a
autodisciplina dos grupos profissionais”, por exemplo, como as ordens profissionais
francesas. Há também o mecanismo de corregulação, em que atores públicos e privados
atuam conjuntamente.
A título de exemplo, o Relatório Al Gore de 1992, intitulado Reinventing Government,
sugeria que o mecanismo da autorregulação pudesse ser um modo eficiente de reforma na
55
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regulamentação, capaz de ensejar uma melhor aceitação e adaptação a novas regras. O mesmo
ocorreu no programa britânico de “reforma da regulamentação”, em 1997 e, em de 1998,
intitulado – Principles of Good Regulation. Mais tarde, em 2000, também no Alternatives to
State Regulation. No entanto, as incertezas que pairavam sobre o consenso entre os atores
privados fizeram com que novamente os atores públicos fossem reintroduzidos, estimulando-
se, portanto, o mecanismo de corregulação como uma importante saída (CHEVALLIER,
2009, p. 73).
Segundo Hespanha (2009, p. 430), o “mundo de novas unidades econômicas
transforma-se num mundo de unidades, também novas, de natureza política e normativa”.
Cada uma destas unidades constitui um novo centro de poder, bem como um novo centro de
produção de normas jurídicas. Estas normas tornam-se obrigatórias por contratos firmados
entre as unidades transnacionais, já as normas jurídicas de regulamentação genérica são
válidas para um setor de atividade, como as normas técnicas, por exemplo.
Por outro lado, Hespanha (2009, p. 431) expõe que as unidades, preocupadas com
estabilização e segurança das suas relações presentes, requerem uma disciplina obrigatória
para os “participantes das transações no mundo globalizado”. Ou seja, tais unidades postulam,
“um direito do mercado globalizado, uma espécie de desenvolvimento e extensão do direito
comercial que, na Antiguidade e na Idade Média, regulava as relações mercantis nas várias
praças comerciais do mundo (lex mercatoria)” (como será visto adiante, a idéia de uma
suposta estabilidade e segurança na lex mercatoria será questionada).
Na sociedade globalizada, Hespanha (2009, p. 431-432) afirma que as realidades estão
sempre em mutação e, por isso, a textualidade do Código deve ser substituída pela
maleabilidade de princípios menos fixamente formulados. Destarte, há quem pense que, a
partir desta maleabilidade normativa, possa surgir uma “comunidade de valores comum a
todos os sujeitos da comunidade global”, ou, em outras palavras, de “valores cosmopolitas”
(HESPANHA, 2009, 432).
Há quem pense, além disso, que a comunidade global responsável por gerar tais
valores seria a comunidade dos sujeitos econômicos transnacionais, representada por grandes
empresas transnacionais, cujos especialistas cumprem regras de boa gestão, ou regras
prudenciais, “apoiados por departamentos de aconselhamento ou de law firms também
internacionais, auditadas por firmas, novamente internacionais de gestão e auditoria”, que
resolvem seus problemas não mediante a justiça do Estado4, mas sim por meio da arbitragem,
4
Conforme Chevallier (2009, p. 146), “o recurso à arbitragem para compor as diferenças contribui para dar
força obrigatória aos usos do comércio internacional: a arbitragem, com efeito, não somente resulta em subtrair
56
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
isto é, por tribunais privados compostos por árbitros selecionados conforme sua capacidade
técnica e, sobretudo, de acordo com a sua sensibilidade ao ambiente das empresas e dos
grandes negócios5 (HESPANHA, 2009, p. 432).
Segundo Hespanha (2009, p. 432-433), seria este complexo político-mercantil o
constituinte do “caldo de cultura de uma ordem de valores (e, logo de um direito) para a
sociedade globalizada”, intitulada pelo autor como “constituição econômica do mercado
global”. À luz desta visão de mundo e das normas a ela associadas, as transações são fáceis e
seguras, mesmo diante de uma “dispersão geográfica” e da ausência do poder coercitivo
estatal.
Uma característica da “constituição econômica do mercado global” seria a
flexibilidade quanto aos assuntos “antipáticos para o mercado” - como a defesa dos interesses
nacionais, ou das comunidades nacionais, a garantia dos direitos dos cidadãos, a salvaguarda
de valores comunitários, a defesa dos direitos dos trabalhadores, entre outros – restando
evidente que nem todos os fatores e atores seriam igualmente “globalizáveis”, tendo esta
característica somente os interesses em consonância com a lógica do mercado global.
Desse modo, questões locais como a “deslocalização das empresas, as desigualdades
de rendimento e, portanto, de poder de compra de umas regiões para as outras, a diferente
exposição às catástrofes climáticas, diferente acesso às matérias-primas” são assuntos a serem
resolvidos simplesmente pelo funcionamento das leis do mercado internacional. Para estas
situações, o direito - estreitamente vinculado à prática cotidiana, às regras do mercado, e
os litígios entre os operadores econômicos à competência dos tribunais estatais, mas ainda assegura a tomada em
consideração de outras regras que não apenas o exclusivo direito estatal (usos, jurisprudência arbitral); os
agentes econômicos exigem escolher os seus juízes (forum shopping) e ter os seus litígios decididos segundo um
direito específico adaptado às necessidades do comércio internacional (law shopping). Ora, a arbitragem
conheceu um desenvolvimento prodigioso, favorecido pela pressão das law firms americanas e pelo liberalismo
muito grande dos Estados: tornou-se o procedimento normal de composição de diferenças comerciais
internacionais; a sua institucionalização por meio da adoção de estruturas permanentes – instituições arbitrais
com vocação genérica, tais como Corte permanente de arbitragem ou especializada, como o ‘Centro
Internacional para a composição de diferenças relativas aos investimentos’ (CIRDI), criado sob a égide do Banco
Mundial pela Convenção de Washington de 18 de março de 1965 – tende a fazer da jurisdição o direito comum
dos negócios internacionais. Se as sentenças arbitrais não são geralmente executáveis senão depois de um
procedimento de exequatur, a Convenção de Washintown impõe aos Estados a obrigação de reconhecer aquelas
provenientes do CIRDI e de a elas assegurar a execução ‘tal como se tratasse de um julgamento definitivo’ dos
tribunais nacionais (art. 54)”.
5
Para Chevallier, “O ‘direito da globalização’ se apresenta com um direito ‘extraestatal’ na medida em que ele é
em boa parte construído pela iniciativa dos operadores econômicos. O processo de globalização conduziria,
irresistivelmente, com efeito, à aparição de um ‘direito global’, concebido e aplicado no âmbito externo dos
Estados: é a tese de A.J.ARNAUD, para quem as trocas entre atores econômicos passaria mais e mais pela
elaboração de regras e o recurso a mecanismos de solução de litígios que evitam a mediação estatal. A
globalização jurídica tomaria a forma de ‘relações jurídicas cujo tratamento ultrapassa o quadro nacional ou
comunitário, sem entrar dentro do espaço jurídico internacional stricto sensu’. Correlativamente, ver-se-á
delinear uma reestruturação das profissões jurídicas, pela criação, sob o modelo americano, de grandes
escritórios de assessoramento, encarregados de aportar aos operadores econômicos os recursos jurídicos
necessários e servindo de liame de composição amigável de desacordos”.
57
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
pouco vinculado a outros valores que não o da utilidade (e a utilidade imediata) – demonstrar-
se-ia injusto e desequilibrado (HESPANHA, 2009, p. 435).
Chevallier (2009, 146-147) versa que, devido às suas características, o direito da
globalização se parece com uma contemporânea versão da lex mercatoria - desenvolvida na
Idade Média pelos mercadores sobre as questões de trocas entre mercadorias, que
progressivamente se esfacelou diante dos direitos estatais, sem, contudo, haver desaparecido
por completo. Sendo a lex mercatoria um direito instrumental sob domínio dos práticos e por
eles criado, o direito da globalização também excederia o poder estatal. No entanto, faz-se
uma ressalva, pois “a autonomia dessa lex mercatoria moderna, formada a partir dos usos do
comércio internacional e da jurisprudência arbitral, não é senão relativa” (CHEVALLIER,
2009, p. 147).
Ainda que haja uma crescente adoção dos “usos do comércio internacional” por parte
das jurisdições nacionais, a lex mercatoria possui limitações, pois o seu caráter flexível não se
coaduna com a exigência de segurança e de previsibilidade que o desenvolvimento das trocas,
da concorrência e de investimentos necessita. Inclusive, os próprios operadores preferem se
sustentar em bases mais sólidas (CHEVALLIER, 2009, p. 147).
De acordo com Garapon (2008B, p. 2), o Neoliberalismo, nada mais sendo do que a
“extensão do paradigma econômico a todos os âmbitos da sociedade e da vida individual”,
não exclui do seu âmbito de influência o setor jurídico, de modo que o movimento da Law
and Economics não mais se limita apenas às universidades norte-americanas.
Segundo Garapon (2008B, p. 3), o novo modelo de justiça neoliberal se pauta por três
critérios novos, que excedem o “perímetro tradicionalmente reconhecido à justiça”. As
justificativas clássicas do ato de julgar são suplantadas pela
6
Conforme Gaiger (2008, p. 169), “no âmbito das preocupações ditadas pela economia capitalista, a eficiência
refere-se essencialmente à exigência de otimizar-se a relação custo/benefício, pela decisiva incidência desta
sobre a rentabilidade ou a taxa de lucro dos negócios. Nesses termos, a eficiência é compreendida como o
equacionamento de varáveis reduzidas ao plano econômico, muito embora comportem elementos que
transcendem essa esfera ou possuem outra natureza, como o trabalho e os demais agenciamentos sociais da
estratégia produtiva em questão (...). A eficiência capitalista não considera, senão utilitariamente, benefícios
58
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
sociais gerados pela ação econômica, tais como postos de trabalho, valorização do ser humano, preservação do
ambiente natural e qualidade de vida. Ela despreza importantes questões, a exemplo do consumo de recursos
não-renováveis e da transferência de custos para o exterior da empresa ou para as gerações futuras ”.
7
Para um maior aprofundamento no tema consultar “DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum.
Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004” e “DELMAS-
59
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
MARTY, Mireille. Três Desafios para um Direito Mundial. Tradução: Fauzi Hassan Choukr. 1. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris.
8
Um bom exemplo é a introdução da plea bargaining na França, consistente na possibilidade de o réu concordar
em negociar sua pena com o promotor. Segundo Garapon (2008A, p. 29), “na Common Law, em que a força
motriz do processo é constituída pelas partes privadas, não causa surpresa o fato de a metáfora econômica
subentender o raciocínio institucional até mesmo no contexto penal, ao passo que a cultura judiciária francesa
não pode conceber a pilotagem de sua justiça senão em termos de políticas públicas e acesso à justiça”. Para um
60
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
aprofundamento do tema, consultar “GARAPON, Antoine. Julgar nos Estados Unidos e na França: Cultura
Jurídica Francesa e Common Law em uma Perspectiva Comparada. Tradução: Regina Vasconcelos. Riod e
Janeiro: Lumen Juris, 2008”.
61
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
cujo direito é apenas uma informação a ser considerada ao se traçar suas estratégias
individuais.
Na mundialização, portanto, os sistemas jurídicos estão em concorrência, o que
possibilita o exercício do forum shopping pelos litigantes, que consiste em submeter suas lides
à jurisdição que lhes for mais favorável (GARAPON, 2008B, p. 7). Esta prática é também
exercida para litigantes institucionais (multinacionais), ou para vítimas de crime contra a
humanidade, por exemplo.
Se no direito nacional o direito dos investidores é sopesado pelo direito dos
trabalhadores, que aparecem na mesma esfera jurídica; no contexto globalizado, não há mais
espaço para os direitos sociais. Como expõe Garapon (2008B, p.7), “investidores e
trabalhadores não possuem qualquer espaço político em comum”. Castanheira Neves (2002,
p. 30), ao analisar o cenário ora descrito, diria que o direito “deixa de ser um auto-subsistente
de sentido e de normatividade para passar a ser um instrumento – um finalístico instrumento e
um meio ao serviço de teologias que de fora o convocam e condicionantemente o submetem”.
Assim, o comportamento pessoal e institucional muda as suas bases de equilíbrio “do
bem, do justo, da validade (axiológica material), para as “do últil e da funcionalidade, da
eficiência, da performance” (CASTANHEIRA NEVES, 2002, p. 35). Garapon evidencia que
o modelo neoliberal se substitui traiçoeiramente aos princípios da justiça clássica, ao priorizar
os critérios de eficiência, das vantagens comparativas e da segurança. No cenário neoliberal,
todos estes valores se impõem como o principal conteúdo dos “guias da reforma geral das
instituições” (GARAPON, 2008B, p. 19).
Por tais valores serem transcendentes, eles não precisam estar acompanhados dos
valores tradicionais. O que se percebe, diante disso, é que o cenário neoliberal provoca uma
“laicização das instituições”, que são revaloradas sob a lógica de uma racionalidade que a elas
não pertence, ou que lhes é totalmente estranha: concorrência e empreendimento
(GARAPON, 2008B, p. 19). Ao evidenciar a eficiência, a universidade de interesses e a
precisão dos dados mensuráveis fornecidos às instituições e à opinião, acalma-se a função
deliberativa da democracia, pondo-se um “fim prematuro à tensão inelutável de pontos de
vista opostos” (GARAPON, 2008B, p. 24).
Contudo, o que se quer dizer não é que os valores - segurança, liberdade do sujeito,
eficiência, utilidade – devam ser desconsiderados a priori, mas sim que devem ser submetidos
à discussão, pois “a despolitização começa logo que um valor tem por ímpeto ser justo por ele
mesmo, sem ter como se justificar” (GARAPON, 2008B, p. 25). Desse modo, não se pode
recriminar uma escola de pensamento por ser originária de escolhas ideológicas, ou por tomar
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
partido de alguma versão em detrimento de outra. O que se deve fazer, segundo Garapon
(2008, p. 24), é protestar que o neoliberalismo disfarça suas escolhas (ideológicas) e
apresenta-as (as escolhas) como evidências. Este é um importante caminho para reanimar a
discussão democrática9.
Avelãs Nunes (2011, p. 253) elucida que uma crítica à globalização não pode se
confundir com o retorno a algum “paraíso perdido, negador da ciência e do progresso”.
Mesmos os adversários da globalização apóiam a revolução científica e tecnológica. O que há
de errado na globalização “é o neoliberalismo que a alimenta, a estrutura dos poderes em que
ela se apoia, os interesses que serve”, mas não a revolução científica e tecnológica
especificamente, acusadas por alguns de serem as responsáveis por possibilitar o
desenvolvimento de um projeto neoliberal. De acordo com Avelãs Nunes, o erro está na
utilização perversa que se faz a partir de tal progresso.
Portanto, considerando-se a globalização como um “projeto político”, necessário é um
“espírito de resistência à ideologia dominante”, que deve começar desde já a partir de uma
construção teórica. Assim, poder-se-á construir um modelo político que englobe os objetivos
cujo mercado é incapaz de abarcar. Da mesma forma, necessário é um projeto cultural que
faça frente à lógica determinista e sem alternativas da globalização neoliberal, reconhecida
como uma das marcas da “civilização-fim-da-história (AVELÃS NUNES, 2011, p. 254).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
9
Gaiger (2008, p. 170) esclarece na obra “Dicionário Internacional da Outra Economia” que “uma visão
alternativa de eficiência alia-se indissoluvelmente à discussão sobre a eficácia da ação empreendida, isto é, sobre
os fins a serem alcançados e as possibilidades de atingi-los. Tais fins, longe de se restringirem ao faturamento e
ao crescimento econômico, ou, ainda, a uma profícua relação mercantil entre produtores e consumidores,
vinculam-se à satisfação de necessidades e a objetivos materiais, socioculturais e ético-morais dos indivíduos e
da coletividade, imediatos ou de longo prazo. A racionalidade em questão compõe-se de valores dirigidos à
qualidade de vida do grupo diretamente implicado e à garantia de melhorias e de segurança humana para a
sociedade. Assim concebida, a eficiência consiste, pois, na capacidade de se gerirem esses resultados por meio
da oferta de bens e serviços com qualidade referida a seu valor de uso, mediante estratégias produtivas e
procedimentos de controle que assegurem a perenidade de tais processos e a oferta permanente daqueles
benefícios”.
63
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
instituições estatais. Com isso, percebeu-se que o Estado passa a confiar nos mecanismos
econômicos do mercado, não cabendo mais a ele cumprir o dever finalístico de cumprir uma
função social.
Destacou-se o papel exercido pelos novos atores, principalmente no que diz respeito
ao funcionamento da economia, e mencionou-se que tais atores atuam se não diretamente no
processo de normatização, ao menos “paranormativamente” – mediante a influência
econômica que exercem, capaz de mudar o destino dos Estados territoriais. Com base nisso,
elucidou-se que, nos dias de hoje, a sociedade tem se reproduzido primariamente baseada no
código “ter/não-ter”, em detrimento dos códigos “lícito/ilícito” e “poder/não poder”, o que
afeta as bases do Estado Democrático e Social de Direito.
A partir dos aportes de Michel Foucault, explicou-se a reelaboração de alguns
elementos fundamentais da doutrina neoliberal, não tanto da teoria econômica do liberalismo,
mas sim do liberalismo como arte de governar, ou como doutrina de governo. À luz da
experiência nazista, os ordoliberais foram capazes de “detectar” que a invariante antiliberal
das políticas econômicas (keynesianismo, protecionismo, assistencialismo), só podiam, cedo
ou tarde, culminar com o Estado de traços nazistas.
Por outro lado, nada se provou acerca da defectibilidade intrínseca da economia de
mercado, pois todos os defeitos foram atribuídos ao Estado. Com isso, em oposição a uma
liberdade de mercado definida pelo Estado, implantou-se um Estado sob vigilância do
mercado.
No segundo capítulo, demonstrou-se que, para os neoliberais, o essencial do mercado
reside na concorrência, tornando-se esta a espinha dorsal da teoria da economia de mercado.
Como a concorrência é um mecanismo formal, ela só ocorre diante de um certo número de
condições, a serem artificialmente preparadas pelo Estado. É assim que surge o modelo de
Estado supervisor/regulador da economia de mercado, caracterizado como um “árbitro” das
regras do jogo econômico, e o Direito sucumbe a esta “funcionalização”/instrumentalização
do Estado.
Não sendo o Estado o único regulador da economia, evidenciou-se o papel
desempenhado pelas novas unidades econômicas, transformadas em, também novas, unidades
políticas e jurídicas. Dentre elas, destacam-se os sujeitos econômicos transnacionais, cujos
consultores jurídicos preocupam-se com regras de boa gestão aptas a impulsionar a economia
de mercado global. Embora, o “direito da regulação” seja maleável, pragmático, flexível, além
de ser elaborado com a participação estreita dos destinatários, ou interessados, ele deve ter sua
previsibilidade assegurada. Para tanto, o Estado desempenha um importante papel como
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garantidor deste status quo, através de uma legislação estatal. Como explicado, a lex
mercatoria não cumpre a exigência de previsibilidade.
Ademais, discutiram-se as conseqüências desse novo modelo de Estado “enformado”
pelo modelo Neoliberal, na autonomia do Direito. Como argumenta Castanheira Neves, o
direito torna-se uma função de outros interesses, e, assim, ruma a um modelo
descomprometido com a consolidação do Estado Democrático e Social de Direito. Tudo isto,
para atender à demanda por eficiência e padronização, cujos standards são, geralmente,
importados dos modelos jurídicos próprios dos países economicamente mais influentes,
especificamente do Commun Law, por também ser mais adaptável às evoluções das trocas
econômicas.Como mencionado, a Jurisdição, então, transforma-se em um forum shopping,
perde a sua função simbólica e passa a ser avaliada somente pelo que é mensurável, e não por
critérios de justiça.
Contra os valores neoliberais - que tem por ímpeto justificarem-se por eles mesmos,
silenciando o debate inerente à democracia participativa e representativa, necessário é por às
claras suas verdadeiras escolhas, também fruto de uma certa ideologia, para que sejam
discutidos e repensados, e não vistos como uma saída sem alternativas à globalização
neoliberal.
Por fim, pretendeu-se, igualmente, ao longo do trabalho, demonstrar que o Estado não
ruma ao desaparecimento. Ainda que suas clássicas atribuições tenham sido reelaboradas, ele
permanece mais atuante do que nunca, seja na esfera legislativa, política, ou judiciária.
REFERÊNCIAS
AVELÃS NUNES, António José. As voltas que o mundo dá...: Reflexões a propósito das
aventuras e desventuras do estado social. 1.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
GAIGER, Luiz Inácio. Eficiência. In: CATTANI, Antonio David; LAVILLE, Jean-Louis;
GAIGER, Luiz Inácio; HESPANHA, Pedro. Dicionário Internacional da Outra Economia.
1.ed. Coimbra: Almedina, 2009.
GARAPON, Antoine. Julgar nos Estados Unidos e na França: Cultura Jurídica Francesa
e Common Law em uma Perspectiva Comparada. Tradução: Regina Vasconcelos. Riod e
Janeiro: Lumen Juris, 2008A.
NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. 2.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.
SALDANHA, Jânia Maria Lopes. A jurisdição partida ao meio. A (in)visível tensão entre
eficiência e efetividade. In: STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, José Luis (org.).
Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica – Anuário do Programa de Pós-graduação em
Direito da UNISINOS: Mestrado e Doutorado. São Leopoldo: UNISINOS, 2010a.
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2
Paulo Márcio Cruz
RESUMO
O presente artigo trata dos reflexos da atual crise financeira global nas estruturas do Estado de Bem
Estar europeu. A Europa que protege foi e é um lema da União Europeia. Todavia, o Estado de Bem-
Estar vem sofrendo críticas na Europa desde as décadas de oitenta e noventa do século passado. A
atual situação de crise intensa abre possibilidade para questionamentos dos modelos existentes de
Estado de Bem-Estar sob diversos ângulos, colocando dúvidas sobre a atual oportunidade e
viabilidade do mesmo. O objetivo deste artigo é incitar a discussão acerca dos limites e do destino
próximo do Estado de Bem-Estar frente à crise financeira internacional.
PALAVRAS-CHAVE: Estado de Bem-Estar. Crise Financeira Internacional. Europa. União
Europeia.
ABSTRACT
In the past five decades Europeans have transformed high taxes in a protection net, which ranges
from the crib to the tomb. Europe that protects is the motto of European Union. Nevertheless, the
Welfare State has been suffering critics in Europe since the 1980s. The current situation of intense
crises opens the possibility to question the existing model of Welfare State under different
viewpoints, raising doubts about the current opportunity and viability of such State model. The
objective of this paper is to promote the discussion about the limits and the near future of the Welfare
State in the face of the international financial crisis.
KEYWORDS: Welfare State. International Financial Crisis. Europe. European Union.
1
O presente trabalho é fruto das reflexões e debates efetuados pelos professores doutores Paulo Márcio Cruz e
Maurizio Oliviero durante a estada do segundo na UNIVALI, no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ciência Jurídica – PPCJ/UNIVALI, cursos de Mestrado e Doutorado, como Professor Estrangeiro Visitante, com
bolsa da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, de março de 2011 a
outubro de 2012.
2
Pós-Doutor em Direito do Estado pela Universidade de Alicante, na Espanha, Doutor em Direito do Estado pela
Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Instituições Jurídico-Políticas também pela Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC. Coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI em seus programas de Doutorado e Mestrado em
Ciência Jurídica. Foi Secretário de Estado em Santa Catarina e Vice-reitor da UNIVALI. É professor visitante nas
universidades de Alicante, na Espanha, e de Perugia, na Itália. (pcruz@univali.br).
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A América Latina sempre enxergou os estados de bem-estar europeus com admiração e com
uma indisfarçável vontade de ter o mesmo modelo em seus países. Tem sido o sonho dos latino-
americanos quando se discute qual o modelo ideal de Estado. Nas últimas décadas o Estado de Bem
Estar foi sobejamente discutido nos meios acadêmicos como um modelo a ser seguido.
De maneira até inusitada, a crise iniciada em 2008 coloca em xeque o modelo de Estado, ou,
pelo menos, gera questionamentos profundos sobre sua viabilidade a médio e longo prazo.
Os especialistas economistas assistem atônitos, com a sua ciência mais inexata do que
nunca, a crise que começou nos Estados Unidos e vem derretendo ativos financeiros, empregos e a
credibilidade de todo sistema econômico da Europa, com gravíssimas repercussões na vida do
cidadão comum. Aquele cidadão que acreditou – e ainda acredita – ser seu modo de vida o mais
adequado para as nações de nosso planeta.
Na verdade, em toda a Europa Ocidental, o estilo de vida europeu está em debate. O mundo
todo sempre admirou os europeus por seu sistema de benefícios sociais e por seus sistemas de saúde
pública. Enfim, por seu modelo de bem-estar social, em contraste com a dureza do jogo de mercado
noutros países “capitalismocêntricos”, já pedindo desculpas pelo neologismo.
Os europeus, ao longo das últimas cinco décadas transformaram impostos altos em uma rede
de proteção que vai do berço à sepultura. A Europa que protege é um lema da União Europeia. Mas
todos os governos da Europa com grandes orçamentos, receitas fiscais em queda e envelhecimento da
população enfrentam o aumento do déficit público e o endividamento privado - e outras notícias ruins
produzidas pela crise financeira.
Na Grécia, por exemplo, país atingido em cheio pela crise, a sociedade ressente-se de pagar
impostos elevados para financiar um estado inchado e de eficiência duvidosa. Reverbera a antiga
discussão entre a função pública, na qual seus membros chegam a se aposentar aos 50 anos com altos
salários, enquanto aqueles que estão na iniciativa privada, pela forma como as coisas estão
caminhando, terão de trabalhar até chegar aos 70. Em toda Europa existem questionamentos sobre
qual será o futuro daqueles que dependem ou dependerão da assistência do Estado. Os cidadãos com
idades próxima da aposentadoria estão profundamente pessimista em relação à consecução desse
objetivo. Para esse cidadão, o governo está tergiversando sobre a solução aos graves problemas que
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
atingem a população e não acredita que haverá condições de encher os cofres da previdência. A frase
mais ouvida é a de que “o país não tem futuro”.
Entretanto, acredita-se que a perplexidade que toma conta da Europa Ocidental
poderia ser amenizada com a retomada do debate sobre o novo papel do Estado de Bem-
Estar4, que contestou a concepção liberal de que a liberdade e o desenvolvimento das
atividades privadas só podem ser garantidos através da limitação das funções do Estado.
Considerando as experiências ocorridas nos países ocidentais, pode-se dizer que a
transformação dos Estados liberais em Estados de Bem-Estar implicou uma ruptura de
determinados aspectos da ordem jurídica e econômica até então existente.
Diante dessa realidade, o Estado passou a chamar para si a solução dos problemas
sociais emergentes, principalmente através de sua principal característica: a intervenção direta
nos domínios econômico, social e cultural.
Pode-se entender por Estado de Bem-Estar uma determinada concepção de conformação
estatal, baseada na intervenção social e econômica que levaram a efeito alguns Estados liberal-
democráticos contemporâneos. Uma análise da evolução do Estado Moderno mostra diversas
experiências de intervenção social, econômica e – mais recentemente – cultural, do Estado5.
O Estado de Bem-Estar é, na verdade, uma adaptação do Estado burguês capitalista, ou seja,
dos regimes baseados na Democracia pluralista. A plena articulação do Estado de Bem-Estar só pode
funcionar com base em dois fundamentos do Estado liberal-democrático contemporâneo. Em
primeiro lugar, as propostas do Estado de Bem-Estar tiveram como intenção garantir a acumulação
capitalista – mediante a intervenção sobre a demanda – com a intenção de manter a estabilidade
social. Em segundo lugar, o Estado de Bem-Estar proporcionou uma nova e importante dimensão à
Democracia, a partir do reconhecimento de um conjunto de direitos sociais (SÁNCHEZ, 1996, p.
336).
Através do constitucionalismo social, o Estado de Bem-Estar passou a desenvolver
ações acompanhadas de uma crescente inclusão, nas Constituições, não só de previsões de
regulação estatal das relações contratuais, mas também de comandos aos poderes públicos para
que passem a prover ou financiar uma série de prestações de serviços, em geral públicos e
4
Estado de Bem-Estar é sinônimo de Estado Social Democrata ou simplesmente Estado Social, que são
denominações diferentes para um mesmo modelo ideológico de Estado, cada um deles com algumas características
próprias, como será visto mais adiante.
5
Conforme FORSTHOFF, 1996, p. 123.
70
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gratuitos, aos cidadãos (CRUZ, 2001, p. 202). Os esforços para garantir a igualdade de
oportunidades – que, frise-se, é o objetivo principal do Estado de Bem-Estar – e distribuição de
renda derivada de algumas ações do próprio Estado, completaram esta nova dimensão da
Democracia que este modelo ideológico de Estado representa (BONAVIDES, 1996, p. 186).
Portanto, principalmente em algumas matérias, o Estado de Bem-Estar – ou os poderes
públicos – passou a prestar serviços diretamente à população, como nas já aludidas áreas da
saúde, educação, habitação e, principalmente, a seguridade – ou previdência – social, como
aposentadorias, auxílio-velhice, salário-desemprego, afastamentos remunerados para tratamento
de saúde, pensões etc. Estas foram as ações através das quais o Estado de Bem-Estar
materializou-se e, a bem da verdade, resolveu boa parte dos problemas sociais nos países onde foi
implantado de forma decidida. A doutrina costuma dizer que o Estado de Bem-Estar se
caracteriza por ser fortemente ativo com as classes passivas, e passivo com as classes ativas,
numa alusão a pobres e ricos, nesta ordem.
Esta tendência foi acompanhada também, por óbvio, de um aumento da carga tributária
nestes países. As elites, diante da ameaça real do Comunismo instalado na extinta União
Soviética, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando aquele regime ganhou força
tecnológica e bélica, resolveram pagar esta conta. Que não foi pequena, mas que valeu a pena, em
todos os casos, para aquelas elites. Foi mais ou menos no sentido do “entregar os anéis para não
perder os dedos”.
Com o fim da União Soviética, no final da década de oitenta, esta tendência foi
progressivamente freada, quando não invertida, pelo movimento ideológico denominado
Neoliberalismo, que será tratado em capítulo próprio mais adiante.
Os estudiosos do Estado de Bem-Estar vêm utilizando como indicador, de maneira a
estabelecer a intensidade do Estado de Bem-Estar em um determinado país, o nível de gasto
público e, em particular, de gasto com o setor social. Este indicador se apresenta como um
percentual sobre o conjunto da riqueza produzida pelo país (Produto Interno Bruto – PIB). Na
maioria dos países que adotam este modelo de Estado, o conjunto do gasto público, nas décadas
de 70 e 80, chegou a representar entre 40 a 50% do PIB. (GIORGIS, 2006, p. 1905). Em alguns
países, como os escandinavos, tidos como exemplos de Estado de Bem-Estar, chegou a 50%.
A consequência desse movimento foi o sobrestamento de muitos dos dogmas liberais,
com o Estado, antes considerado um mal necessário, passando a ser um elemento fundamental a
71
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todos os setores sociais, inclusive para aqueles que se opunham à sua intervenção (DALLARI,
1972, p. 136).
72
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73
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garantissem a preservação dos postos de trabalho. O próprio Estado passou a ser um empregador
em grande escala, principalmente com o crescimento do contingente de funcionários públicos
dedicados aos serviços sociais, resposta a uma demanda social cada vez maior. O Estado de Bem-
Estar transforma-se num elemento importante na resolução do problema do desemprego
(NAVARRO, 1998, p. 107).
Os economistas britânicos foram os responsáveis pela formulação econômica do Estado
de Bem-Estar. A política econômica e social correspondente ao Estado de Bem-Estar corresponde
às posições de John Maynard Keynes e seus seguidores (VERDÚ; MURILLO DE LA CUEVA,
2000, p. 120).
Podemos dizer que depois de Adam Smith e Thomas Malthus, economistas da escola
clássica, e de Karl Marx, nenhum outro teórico foi tão importante quanto Keynes, pensador de
muita influência na renovação das teorias econômicas tradicionais e na reformulação da política
econômica do livre mercado.
A necessidade de alavancar o crescimento econômico e a extensão de um maior bem-
estar para toda a Sociedade são considerados princípios indissociáveis que se vinculam à
crescente intervenção do Estado e que estão ligados, de forma inequívoca, a Keynes.
Numa leitura sistematizadora do postulado de Keynes, é possível dizer que ele defendeu
seu conceito de “multiplicador de demanda” como sendo a regra através da qual o aumento dos
gastos governamentais aumenta a demanda agregada, o que criaria uma otimização do trabalho e
do capital numa escala tal que a produção se expandiria em proporção superior ao crescimento
daqueles gastos.
Considerando-se estas análises, pode-se dizer que a “equação keynesiana” apoiou a
possibilidade de se fazer convergir elementos de mercado e sociais através da articulação de
políticas redistributivas.
Numa perspectiva histórica, parece evidente que a pregação de Keynes, como modelo
que pretendeu promover a combinação de recursos entre o mercado e o Estado converteu-se, até
fins dos anos setenta, numa doutrina econômica que quase ninguém questionava, na medida em
que sua defesa se relacionava estreitamente com a construção do Estado de Bem-Estar e permitia
que este desfrutasse de um amplo consenso.
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A obra de Keynes foi plenamente reconhecida em seus últimos anos de vida. Em 1944,
chefiou a delegação do Reino Unido à Conferência de Bretton Woods6, nos Estados Unidos.
O modelo keynesiano, independentemente de sua consistência teórica, contou com
vários elementos que ajudaram a torná-lo uma unanimidade nos mais diversos setores sociais e
ideológicos. (KING; SCHNEIDER, 1993, p. 136). Uma das expressões mais visíveis deste fato
foi o desaparecimento das disputas entre as classes sociais que convulsionaram as sociedades
capitalistas nos períodos anteriores à II Guerra Mundial, o que pode ser atribuído a dois fatores:
a) o crescimento econômico que as sociedades ocidentais experimentaram a partir dos
anos cinquenta; e
b) a extensão do Bem-Estar social a camadas cada vez mais amplas da Sociedade.
O Estado de Bem-Estar passou a gozar de um enorme grau de consenso, assim como as
políticas econômicas keynesianas.
Nas duas décadas após a II Guerra Mundial havia uma sensação de que, efetivamente, a
consolidação e a expansão do Estado de Bem-Estar correspondiam, na realidade, a um período
que poderia significar o fim do confronto ideológico entre esquerda e direita ou entre liberdade e
igualdade. O decurso dos acontecimentos, porém, mostrou o equívoco desta percepção.
De qualquer forma, em qualquer destas direções, as pesquisas disponíveis são
suficientemente amplas para uma abordagem sistemática sobre este assunto. Um bom exemplo de
coincidência que se pode encontrar nos estudos sobre o Estado de Bem-Estar é a que tem o gasto
público como principal hipótese de pesquisa, critério muito utilizado até por conta da falta de dados
para operar com outras hipóteses.
Um dos traços permanentes nos textos que tratam deste tema, é que a maioria das
abordagens que se limitam à analise do Estado de Bem-Estar a partir dos investimentos públicos,
consideram que todo gasto realizado pelo Estado tem o mesmo valor, independente dos seu fins e
dos seus resultados.
Assim, as diferenças que devem ser apreciadas entre os diversos modelos de Estado de Bem-
Estar possibilitam a elaboração de distintas classificações, como a classificação já clássica realizada
6
Quando a guerra aproximava-se do fim, a Conferência de Bretton Woods foi o ápice de dois anos e meio de
planejamento da reconstrução pós-guerra pelos Tesouros dos EUA e Reino Unido. Representantes estadunidenses
estudaram com os colegas britânicos a reconstituição do que tinha estado faltando entre as duas guerras mundiais:
um sistema internacional de pagamentos que permitisse que o comércio fosse efetuado sem o medo de
desvalorizações monetárias repentinas ou flutuações selvagens das taxas de câmbio — problemas que praticamente
paralisaram o capitalismo mundial durante a Grande Depressão.
75
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por Titmuss, que distinguiu dois modelos: a) o residual, no qual o Estado desempenha uma função
mínima na provisão do bem-estar, cujos serviços são de escassa qualidade e destinam-se à
subsistência, ao contrário da mercado e da família, que são as instituições que gozam de maior
relevância; b) o institucional que, diferente do anterior, tem o Estado como principal instrumento
para a provisão do bem-estar (BLAS GUERRERO; VERDÚ, 1997, p. 117).
O britânico Richard Titmuss7 é uma das principais referências contemporâneas e que se
dedicou à investigação das políticas sociais e do Estado de Bem-Estar, em suas múltiplas formas
e efeitos.
Os modelos ditos “institucionais” se caracterizariam pela universalidade dos serviços
prestados, ou seja, com os serviços atendendo a toda Sociedade de forma indistinta. Nesta forma
de organização, o Estado assume um papel de intervenção com o objetivo de assegurar um
mínimo de bem-estar em todos aqueles âmbitos considerados imprescindíveis ao conforto
individual.
Naqueles ditos “residuais”, ao contrário, a intervenção somente aconteceria quando
falhassem os instrumentos preceptores – a família e o mercado – para a realização do bem-estar.
Neste caso, a intervenção ficaria limitada a segmentos bem delimitados e praticamente excluídos
da Sociedade.
A diferença básica entre estes dois tipos de Estado de Bem-Estar está no fato de que, nos
“institucionais”, os direitos sociais para a cidadania ocupam um espaço central, enquanto que,
nos ditos “residuais”, os direitos estariam sujeitos a provas de merecimento por critérios de
carência social.
Para se ir além do critério do estrito conhecimento do gasto público para classificar o
Estado de Bem-Estar, deve-se ter em conta, então, a análise dos programas de intervenção do
Estado em diversas políticas sociais. Aspectos como as condições para desfrutar das ações que
oferecem os programas, universalidade e especificidade de alguns destes programas ou qualidade
das transferências econômicas previstas nos mesmos são questões relevantes que devem ser
consideradas quando se pretende aprofundar o debate sobre o Estado de Bem-Estar.
7
RICHARD MORRIS TITMUSS (1907-1973), um dos maiores e mais respeitados estudiosos do Estado de Bem-
Estar do Ocidente e um dos seus mais influentes teóricos na Grã-Bretanha, foi professor do London School of
Economics de 1950 até sua morte, em 1973. Escreveu, entre outras obras, The philosuphy of welfare: selected
writings of Richard M. Titmuss, Commitment to Welfare, EssMys on “the Relfare sPM te”, Social policy: an
introduction, Problems of Social Policy e Unequal rights.
76
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O Estado de Bem-Estar gozou de um amplo consenso desde os anos quarenta até os anos
setenta, durando, mais especificamente, até a crise econômica de 1973, que abalou os princípios
keynesianos e sobre os quais havia se sustentado. A partir desta crise o consenso do pós-guerra
em torno da economia mista e do Estado-Providência, partilhado, sofreu seu primeiro importante
revés (MISHRA, 1995, p. 5).
A fase de pujança econômica iniciada após a II Guerra Mundial chegou ao fim, por
conta de dois fatos marcantes. O primeiro deles foi a decisão dos Estados Unidos de não
manter a convertibilidade do dólar em ouro, tomada em virtude da quantidade da moeda
norte-americana em circulação em outros países (BLAS GUERRERO; VERDÚ, 1997, p.
119). Os problemas econômicos causados por esta decisão se prolongaram desde meados da
década de setenta até o início da de oitenta. Diante desta nova realidade econômica, os países
ocidentais começaram a ter sérias dificuldades para continuar implementando suas políticas
econômicas baseadas no modelo keynesiano.
Importante ressaltar, no entanto, que a crise econômica de 1973 não foi a única
responsável pelo questionamento ao modelo keynesiano. O segundo fato marcante foi o
crescimento descontrolado do gasto público. Este fato, importante lembrar, é um dos grandes – se
não o principal - problemas de países europeus, que se debatem entre a pressão de seus cidadãos
para manter os benefícios do Estado de Bem-Estar e as exigências do Banco Central Europeu e
do FMI para que controlem o déficit público, aumentem a carga tributária e para que o Estado
abandone a intervenção em diversos setores, principalmente o social.
Está-se falando de uma época em que a Europa estava em estágio inicial de sua
integração econômico-financeira.
Hoje a realidade é outra. Os governos atuais, na Europa, engessados pela gestão
centralizada do euro, passam a ter que conviver com a contradição de manter os altos custos do
Estado de Bem Estar e aumentar a carga tributária ou reduzir os investimentos públicos que
beneficiavam milhares de pessoas. (CRUZ; FERRER, 2010, p. 12-17). Em qualquer dessas
situações, a impopularidade e o possível desgaste eleitoral são fantasmas sempre presentes.
A intervenção do Estado para regular a economia, que havia sido a prática característica
do modelo keynesiano para fazer frente, respectivamente, ao crescimento da estagnação ou ao da
inflação, mostrara-se ineficientes para combater a atual crise na Europa.
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80
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(CRUZ, 2008, p. 9). É preciso observar se a força mais ampla da história continuará atuando com
a crise iniciada em 2008.
Fundamentado em tudo o que até aqui foi exposto e discutido, a relação causa-efeito da
crise em relação ao Estado de Bem-Estar na Europa aparece como um enredo que não pode ser
separado ou desmembrado. O Estado de Bem Estar e a crise iniciada em 2008 são indissociáveis8.
Nessa discussão deve-se também considerar o fato de que o fundamento constitucional
do Estado de Bem estar faz parte do núcleo duro do constitucionalismo europeu, como seu
pressuposto de fundo para a aceitação de tal modelo de estado de bem-estar.9 Mas mesmo assim,
essa tradição de constitucionalismo social, diante do contexto atual globalizado, sem regras claras
de mercado, corre o risco de desintegrar-se em confronto com a voracidade e a rapidez que o
sistema econômico mundial impõe aos países ocidentais atualmente. (CRUZ; STELZER, 2009, p.
132).
Diversamente de tudo quanto sucede nos EUA, onde a marginalidade e a disparidade
sociais foram sempre dominantes, com a vantagem de um mercado de trabalho muito mais
flexível, boa parte dos Estados europeus estão descobrindo graves carências nos serviços sociais,
o que é mais complicado quando ligada a uma constante e crescente precariedade no mercado de
trabalho. Em outras palavras, a crise econômica além de acentuar a crise de trabalho quase zerou
o valor “amortizador” social do Estado de Bem Estar. Segundo os recentes dados fornecidos pela
UE, nos Países membros, cerca de 114 milhões de pessoas, no mês de julho de 2010, estavam no
risco de exclusão social: cerca de um jovem entre quatro está ainda à procura da primeira
ocupação.
Neste quadro, a Europa aparece extremamente frágil já que como se tratou
anteriormente, as diversas variantes nacionais do modelo de Estado de Bem Estar Europeu estão
realmente em profunda crise. Ademais, parecem nesta fase prevalecerem os egoísmos nacionais.
8
Sobre isso, recomenda-se seja observada a crítica de FINK; LEWIS; CLARKE, 2001.
9
Sobre isso ver COUSINS, 2005.
81
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10
Sobre isso ver JIMENA QUESADA, 2011, p. 76 e CAMPEDELLI, 2010, p. 594.
82
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83
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Real”, que em realidade está sustentado pela estrutura judicial europeia e não positivado. Tudo
isso fruto de uma política legislativa descoordenada e, sobretudo, sem uma análise do impacto
econômico de tal modelo no tempo (ex ante e ex post), tarefa que deveria ser dos legisladores em
suas tarefas decisionais. (RODOTÀ, 2007, p. 76). Portanto, a ausência de debate sobre a
sustentabilidade-factibilidade-exigibilidade intensifica o risco e pode produzir um posterior
agravamento da relação entre o Estado de Bem-Estar e a crise econômica, com uma definitiva
renúncia ao modelo histórico europeu. Já não por opção, mas por necessidade.
Tal risco declinado acima pode assumir dimensões ainda mais complexas. De fato, ou a
crise econômica em relação ao Estado de Bem-Estar constitui uma ocasião de relançamento do
modelo como oposição à globalização negativa, de segunda oportunidade e de redenção corajosa
do sonho e do modelo comunitário ou se revelará o infeliz início do fim do projeto europeu.
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86
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RESUMO
A compreensão do estado de exceção é ponto nevrálgico de discussão nas escolas
jusfilosóficas, justamente por representar a falta de sua normatização em um texto
constitucional perante a inexperiência do poder constituinte em identificá-lo, impedindo,
dessa forma, a sua positivação. Sua total abstração impede a sua estrita definição, restando-lhe
a análise de teorias acerca de sua natureza e de suas implicações na soberania estatal. Não se
destoando da experiência contemporânea, o próprio constitucionalismo brasileiro enfrentou o
dilema da existência da excepcionalidade no contraste à própria normalidade constitucional.
O entendimento do estado de exceção passa pela definição de seu campo de atuação. Diante
dessa afirmação, o presente trabalho aborda a reflexão filosófica doutrinária que compreende
a natureza da excepcionalidade, as consequências advindas de sua institucionalização na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o complexo relacional deu sua
existência com a garantia da própria democracia. Nesse sentido, colhem-se os reflexos da
própria legitimidade de instalação de um estado excepcional como necessário, ou não, a
manutenção da ordem social, evidenciando a experiência do texto constitucional de 1988 no
desempenho de instituições consideradas democráticas para a defesa do Estado. Por isso, o
que se pretende com o presente trabalho científico é apresentar uma definição mais próxima
do que se coaduna com a realidade do estado de exceção, evidenciando as suas principais
características, as suas relações com a própria soberania estatal, a sua experimentação na
Constituição Federal de 1988 e a sua relação com a garantia da própria democracia.
ABSTRACT
Understanding the State of exception is a central discussion in the jusphilosophical schools,
precisely because it represents the lack of standardization in their constitutional text before the
inexperience of constituent power in identifying it, preventing thus their positivization. Its
total abstraction prevents its strict definition, leaving it to analyze theories about their nature
and its implications in the State’s sovereignty. There is no grand differentiation in the
contemporary experience, the Brazilian constitutionalism itself is faced with the dilemma of
the existence of exceptionality in contrast to its own constitutional normality. The
understanding of the State of exception is the definition of its field. Given this assertion, this
paper discusses the philosophical reflection that this understanding of a doctrinal nature of
this exceptionality, the consequences arising from its institutionalization in the constitution of
the Federal Republic of Brazil in 1988 and its complex existence with the safeguard of
democracy itself. In this sense, people gather reflections of their own ideas of the legitimacy
of the installation of an exceptional condition as needed, or not, the maintenance of social
order, showing the experience of the 1988 constitution in the performance of democratic
institutions considered for the defense of the State. So, what is intended with this scientific
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work is to present a definition closer that meets the reality of the State of exception,
highlighting its main characteristics, its relationships with State sovereignty, Its
experimentation in the Constitution of 1988 and its relationship with the safeguard of
democracy itself.
INTRODUÇÃO
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1
SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 13: “Ao contrário, para isso precisa-se
de uma competência, a princípio, ilimitada, ou seja, a suspensão de toda ordem existente. Entrando-se nessa
situação, fica claro que, em detrimento do Direito, o Estado permanece. Sendo o estado de exceção algo
diferente da anarquia e do caos, subsiste, em sentido jurídico, uma ordem, mesmo que não uma ordem jurídica.
A existência do Estado mantém, aqui, uma supremacia indubitável sobre a validade da norma jurídica. A
decisão liberta-se de qualquer vínculo normativo e torna-se absoluta em sentido real. Em estado de exceção, o
Estado suspende o Direito por fazer jus à autoconservação, como se diz”.
89
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possibilite a tomada de decisão por parte do soberano, responsável por reconstituir o estado
normal anterior à turbação provocada. Diante do vazio normativo surge a autoridade capaz de
reconduzir o Estado ao seu originário status quo. Faz-se segundo o dever de resguardar a
própria incolumidade estatal diante de agentes estranhos aos interesses nacionais –
desvinculados aos propósitos da soberania do Estado afetado.
Defronte à complexa questão existente, Schmitt empreende a noção de um binômio
conceitual importante: soberania e decisão. Tratam-se de idéias empregadas sob o mesmo
aspecto funcional, vinculadas à necessidade de legitimar aquele responsável por conduzir o
Estado durante a vigência do estado excepcional. O entendimento de Carl Schmitt ao afirmar
que “soberano é quem decide sobre o estado de exceção” revela a profunda conexão existente
entre os termos.2 O jurista entende que diante do quadro de excepcionalidade, na não-vigência
da ordem constitucional, caberia apenas ao soberano, agente receptor da totalidade de
interesses comuns ao Estado, transcender aos próprios limites constitucionais e proporcionar a
continuidade da integridade estatal. O Estado, portanto, traduziria o desejo do povo.
Percebe-se a evidente importância do fator decisório na atuação do soberano. As
decisões, mecanismos eminentemente políticos, agregam legitimidade à capacidade
desempenhada pela autoridade diante do estado de exceção. O soberano exerce o monopólio
da última decisão. É em face de tal afirmativa que a natureza da soberania estatal deve ser
compreendida não como monopólio coercitivo ou imperialista, mas como monopólio
decisório.3 Esse feito impede que haja superposição de qualquer outro instituto diante da
autoridade exercida pelo soberano – sua palavra é a última e assim deve ser aplicada.
Em sua obra “O Guardião da Constituição” (Der Hüter der Verfassung), Carl
Schmitt nega ao Poder Judiciário a atribuição de guarda da constituição.4 Sua reflexiva análise
produz a compreensão de que somente caberia ao Presidente do Reich ser o guardião do texto
constitucional, bem como efetuar o controle de constitucionalidade das leis e dos atos
normativos. Schmitt entende que todo ato de reconhecimento de inconstitucionalidade de uma
lei encontra-se preenchido por um profundo aspecto político, visto que é ato decisório. Um
tribunal constitucional ao assim decidir estaria em incompatibilidade com a sua própria
natureza, visto que ao Poder Judiciário caberia a exegese legal.
2
SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 7.
Ibid., p. 14.
3
4
SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 193-205.
90
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5
O art. 48 da Constituição de Weimar de 11 de agosto de 1919 assim dispõe: “Caso a segurança e a ordem
públicas estejam seriamente ameaçadas ou perturbadas, o Presidente do Reich (Reichspräsident) pode tomar as
medidas necessárias a seu restabelecimento, com auxílio, se necessário, de força armada. Para esse fim, pode
ele suspender, parcial ou inteiramente, os direitos fundamentais (Grundrechte) fixados nos artigos 114, 115,
117, 118, 123, 124 e 154".
6
SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 233-234: “O fato de o
presidente do Reich ser o guardião da Constituição corresponde, porém, apenas também ao princípio
democrático, sobre o qual se baseia a Constituição de Weimar. O presidente do Reich é eleito pela totalidade do
povo alemão e seus poderes políticos perante as instâncias legislativas (especialmente dissolução do parlamento
do Reich e instituição de um plebiscito) são, pela natureza dos fatos, apenas um ‘apelo do povo’. Por tornar o
presidente do Reich o centro de um sistema de instituições e poderes plebiscitários, assim como político-
partidariamente neutro, a vigente Constituição do Reich procura formar, justamente a partir dos princípios
democráticos, um contrapeso para o pluralismo dos grupos sociais e econômicos de poder e defender a unidade
do povo com uma totalidade política”.
7
Ibid., p. 233-234: “A Constituição busca, em especial, dar à autoridade do presidente do Reich a possibilidade
de unir diretamente a essa vontade política da totalidade do povo alemão e agir, por meio disso, como guardião
e defensor da unidade e totalidade constitucionais do povo alemão. A esperança de sucesso de tal tentativa é a
base sobre a qual se fundam a existência e a continuidade do atual Estado alemão”.
91
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8
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 11.
9
Ibid., p. 22: “Um exame da situação do estado de exceção nas tradições jurídicas dos Estados ocidentais
mostra uma divisão – clara quanto ao princípio, mas de fato muito mais nebulosa – entre ordenamentos que
regulamentam o estado de exceção no texto da constituição ou por meio de uma lei, e ordenamentos que
preferem não regulamentar explicitamente o problema. Ao primeiro grupo pertencem a França (onde nasceu o
estado de exceção moderno, na época da Revolução) e a Alemanha; ao segundo, a Itália, a Suíça, a Inglaterra e
os Estados Unidos. Também a doutrina se divide, respectivamente, entre autores que defendem a oportunidade
de uma previsão constitucional ou legislativa do estado de exceção e outros, dentre os quais se destaca Carl
Schmitt, que criticam sem restrição a pretensão de se regular por lei o que, por definição, não pode ser
normatizado”.
92
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93
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O filósofo italiano conclui a sua obra “Estado de Exceção” (Stato di Eccezione) sob a
premissa necessária de se evitar que na vigência do estado excepcional haja a abolição
provisória da distinção entre Poder Legislativo, Judiciário e Executivo.16 Havendo a
concentração dos poderes sob uma mesma autoridade, tender-se-á ao estado de exceção
transformar-se em prática durável do governo. O estado de exceção passaria, portanto, a ser a
regra.
16
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 48-49.
17
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 2004, v.2, p. 528-529: “Por toda parte inicia-se o desenvolvimento do Estado
moderno, pela tentativa de desapropriação, por parte do príncipe, dos portadores ‘particulares’ de poder
administrativo que existem a seu lado, isto é, daqueles proprietários de recursos administrativos, bélicos e
financeiros e de bens politicamente aproveitáveis de todos os tipos. Todo o processo constitui um paralelo
perfeito ao desenvolvimento da empresa capitalista, mediante a desapropriação gradativa dos produtores
autônomos. No fim vemos que no Estado moderno de fato há a concentração em um ponto supremo da
disposição sobre todos os recursos da organização política, que mais nenhum funcionário é proprietário
pessoal do dinheiro que desembolsa ou dos prédios, das reservas, dos instrumentos ou da maquinaria bélica de
que dispõe. No ‘Estado’ atual, está, portanto, completamente realizada - e isto é essencial para o conceito - a
‘separação’ entre o quadro administrativo, os funcionários e trabalhadores administrativos, e os meios
materiais da organização. Para nossa consideração, cabe, portanto, constatar o puramente conceituai (sic): que
o Estado moderno é uma associação de dominação institucional, que dentro de determinado território pretendeu
com êxito monopolizar a coação física legítima como meio da dominação e reuniu para este fim, nas mãos de
seus dirigentes, os meios materiais de organização, depois de desapropriar todos os funcionários estamentais
autônomos que antes dispunham, por direito próprio, destes meios e de colocar-se, ele próprio, em seu lugar,
representado por seus dirigentes supremos”.
94
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18
MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 185: “Em 21 de
maio, a Montagne trouxe ao debate a questão preliminar e propôs a rejeição de todo o projeto porque violava a
Constituição. O partido da ordem respondeu que se violaria a Constituição sempre que tal fosse necessário”.
19
Ibid., p. 58.
20
Ibid., p. 121: “Sob o pretexto da salut public [salvação pública – francês], um motim teria permitido dissolver
a Constituinte, violar a Constituição no interesse da própria Constituição”.
95
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21
MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 68: “A monarquia de
julho era apenas uma sociedade por ações para explorar a riqueza nacional da França e cujos dividendos eram
distribuídos pelos ministros, Câmaras, 240 mil eleitores e o seu séquito. Luís Felipe era o diretor dessa
sociedade, um Roberto Macaire no trono. Num tal sistema, o comércio, a indústria, a agricultura, a navegação,
os interesses da burguesia industrial não podiam deixar de estar constantemente ameaçados e de sofrer
prejuízos. “Gouvernement à bom marche”, governo barato, fora o que ela durante as jornadas de julho
inscrevera na sua bandeira”.
22
Ibid, 2008, p. 60: “Ruptura da Constituição, ditadura, regresso ao absolutismo, regis voluntas suprema lex!
[a vontade do rei é a lei suprema! – latim] Portanto, coragem, meus senhoras, deixam de conversas e
arregacem as mangas”.
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Enfim, o papel do estado de exceção como meio regulador dos anseios populares, faz
emergir uma lógica quase que particular do Estado, colide frontalmente com o direito
universal à revolução dos povos, o qual menciona Engels.23 A positivação do estado de
exceção no texto constitucional empresta, em tese, legitimidade à sua instauração, levando à
reflexão sobre até que ponto sua manifestação contrária a determinado movimento
revolucionário é realmente legítima, ainda que amparada pela legalidade.
A adoção dos meios legais pela burguesia para consagrar suas pretensões na nova
realidade social demonstrou a expressa relação entre a afirmação da nascente classe
dominante no cenário político e a disseminação de seus interesses nas mais diversas esferas
do aparelho estatal. Assim sendo, é razoável pensar se o poder constituinte ao incorporar o
estado de exceção na sua legalidade respalda-se, em qualquer medida, no consenso popular?
É inegável que as supressões das garantias e liberdades individuais visam à
manutenção da ordem posta, burguesa ou não. No entanto, a sobrevivência do Estado se vê
ameaçada exatamente pelo movimento daqueles que outrora lhe legitimaram e também os
meios para sua subsistência.
O poder legítimo entre o embate do poder estatal e o movimento revolucionário
pertencerá ao vencedor desse conflito. Enquanto não houver a superação ou supressão do
estado de exceção pela vontade popular é porque esta não se mostrou suficientemente
fortalecida e consensualizada para subverter a ordem, razão pela qual, a contrário senso,
infere-se que a legitimidade ainda repousa no Estado constituído. Quando a “massa” reunir
condições objetivas, relativas ao contexto fático, e subjetivas, a respeito de sua capacidade de
auto-organização, para promover a inauguração da nova ordem social, é o momento que a
legitimidade desloca-se da ordem jurídica para a ordem social, da razão do Estado para a
razão política, do estado de exceção para o povo.
23
MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 58.
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apenas fixar os direitos fundamentais dos cidadãos e as instituições básicas do país como
solucionar questões que estivessem fora de seu alcance.24
O conflito de proposições para a determinação dos dispositivos constitucionais
advinha da existência dos diversos interesses presentes na promulgação do texto
constitucional. O inevitável choque de aspirações dos mais variados grupos sociais,
representantes das maiorias e das minorias, revelou a significação plural contida na
participação livre e democrática que foi o processo legislativo de elaboração da Constituição.
Tratava-se de um instante único e essencial em que categorias sociais marginalizadas – como
os indígenas, os negros, as mulheres e os trabalhadores rurais e urbanos – passaram a ser
contempladas pela proteção dos dispositivos constitucionais.
Acontece, no entanto, que a tensão resultante da unificação de interesses tão
dissonantes poderia comprometer a própria ordem constitucional. No sentido de evitá-lo,
determinou o constituinte, no sexto título da Constituição Federal brasileira, sob a
denominação “Da defesa do Estado e das instituições democráticas”, o estabelecimento de
estado emergencial capaz de promover a continuidade e a normalidade do ordenamento
jurídico pátrio: o Estado de Sítio.
A dotação, ainda, de uma lógica unificadora registrou a necessidade do
estabelecimento de um capítulo ao texto constitucional que tratasse sobre a intervenção a ser
praticada entre entes federativos. Do artigo 34 ao 36 da Constituição Federal de 1988 restaram
disposições objetivas e completivas para a persecução de um estágio garantidor da
minimalista integridade estatal.
No intento de compreender a complexidade de tais institutos, passa-se à análise de
suas peculiaridades e de seus princípios sustentadores.
24
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 524:
“Havia um anseio de que ela [Assembléia Nacional Constituinte] não só fixasse os direitos dos cidadãos e as
instituições básicas do país como resolvesse muitos dos problemas fora de seu alcance. Os trabalhos da
Constituinte foram longos, tendo-se encerrado formalmente a 5 de outubro de 1988 quando foi promulgada a
nova Constituição. A inexistência de um projeto inicial que servisse de base às discussões contribuiu para
alongar os trabalhos. Embora dessem muitas vezes a impressão de ser caóticos, o fato é que foram debatidas,
além de coisas menores, questões centrais da organização do Estado e dos direitos dos cidadãos”.
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fator transitório presente na excepcionalidade, visto que a total anulação retiraria o sentido
teleológico da própria formulação de uma exceção. Trata-se do reestabelecimento da ordem
constitucional anterior em vigência e não do desenvolvimento de uma ordem constitucional
diversa, pois à exceção não caberia o desiderato de constituição de uma nova aspiração social,
todavia o simples prosseguimento da ordem até então tida por legitimamente constituída.
O professor Gilberto Bercovici em sua obra Constituição e “Estado de Exceção
Permanente” afirma que na existência de um caso de exceção ao Estado caberia por suspender
o direito em virtude de um direito de auto-conservação.26 Tratar-se-á tal fato como
consequente desdobramento da justificação de atuação do Estado em face da constituição da
excepcionalidade. À autoridade responsável por resolver a questão incumbiria o dever
máximo de garantir a incolumidade da organização estatal, bem como de todos os alicerces
inerentes à existência da ordem constitucional.27
O parágrafo único do artigo 137 da Constituição Federal de 1988 destaca que caberá
ao Presidente da República, após solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o
estado de sítio, relatar os motivos determinantes de seu pedido em face das duas situações
possíveis de ocorrência do próprio estado excepcional – conforme incisos I e II do dispositivo.
Quis o legislador ampliar a capacidade justificativa do agente executivo em razão dos casos
taxados, dando-lhe certa discricionariedade de ação motivadora para que agisse conforme o
interesse nacional.
Interpretação diversa ocorre ao se analisar os artigos 34 e 35 do próprio texto
constitucional. Agora se trata de casos passíveis de intervenção taxativamente descritos pelo
legislador, motivados unicamente por sua desobediência pontual. O aspecto discricionário,
diferentemente do ocorrido no estado de sítio, é bem mais contido.
26
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidades de Weimar. Rio de
Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 27.
27
Id., 2005, p. 209: “Para Bluntschli, a necessidade de conservação do Estado é o primeiro dever do governo.
Em nome dessa convervação, a ordem jurídica pode ser violada, para que não se sacrifique o todo à parte.
Qualquer outro direito perece diante do direito supremo da salvação do Estado.”
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compreensão é clara: apenas as medidas elencadas poderão ser realizadas. Trata-se, portanto,
da possibilidade de suspensão da liberdade de reunião ou da intervenção nas empresas de
serviços públicos em decretação de estado excepcional ou da intervenção.
É preciso compreender que a existência de um estado excepcional acaba por influir
no exercício de um direito marginal e distinto daquele vigente em situação normal. Tal
compreensão segue em plena consonância com o exercício dos próprios direitos e garantias.
Embora sejam considerados fundamentais e inerentes ao homem, na prevalência de um estado
de exceção cercear-se-ão conforme o interesse da normalização estatal – se o ordenamento
jurídico é modificado, modificam-se também as restrições às liberdades.28
Em relação ao disposto quanto à intervenção, percebe-se que não há limitação quanto
a direito fundamental ou a garantia. Tratam-se de restrições impostas a comandantes do Poder
Executivo afastados do exercício de seus cargos em razão das motivações constitucionalmente
dispostas. O parágrafo quarto do artigo 36 da Constituição Federal de 1988 ainda revela que
cessados os motivos da intervenção poderão as autoridades afastadas voltarem aos seus
cargos, salvo determinação legal impeditiva.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Título original: Politische Theologie.
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RESUMO
Neste artigo objetiva-se refletir sobre a ressignificação da Teoria Geral do Estado, em especial
os aportes da Filosofia Política, a partir da prevalência dos direitos humanos, verificável na
teoria jurídica contemporânea, em especial na que defende o chamado modelo de Estado
Humanista. A consolidação destes direitos (acumulação de gerações de direitos civis,
políticos, econômicos, culturais, ambientais, da paz e da democracia) representa o
redimensionamento da compreensão sobre o conceito, estrutura, função e papel do ente estatal
no contexto da sociedade contemporânea. A partir disso, tem-se fundamento para práticas
políticas e jurídicas, indicando-se rumos de decisão, informando-se, assim, a natureza
deôntica do Estado e, principalmente, estabelecendo-se critérios de racionalidade
hermenêutica para implemento normativo prático. Neste rumo, o problema consiste em se
pensar as relações entre Direito e Estado para se identificar o sentido destes quando
informados pelas categorias de direitos que, conforme se sustenta dentre as hipóteses deste
artigo, representam a finalidade maior, quando assentados na vigente e indeclinável noção da
dignidade da pessoa humana como centro irradiador de sentido e demais posturas éticas
protetivas como modo de realidade jurídica.
PALAVRAS-CHAVE: Estado Humanista; humanismo jurídico; direitos humanos e
democracia; hermenêutica.
ABSTRACT
In this article the central objective is to reflect about the redefinitions senses on State’s
General Theory, in particular with the Political Philosophy contributions, from the prevalence
of human rights in contemporary legal theory, especially in defending the state model called
*
Professora de Direito Constitucional. Conselheira do Ministério da Justiça (2008-2012). Mestre e Doutora em
Direito Constitucional. Pós-Doutoranda em Direito Público. profagmb@hotmail.com
** Licenciado em artes visuais pela FAP/PR, especialista em direito público pela ESMAFE/PR e mestrando em
direitos humanos e democracia (inclusão social e cidadania) pela UFPR. Advogado em
Curitiba. eliseurventuri@gmail.com
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1. INTRODUÇÃO
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Por fim, é relevante destacar também que o tema guarda ligação direta com a
temática do Grupo de Trabalho “Teoria do Estado e da Constituição”, ao qual se submete este
artigo para apreciação, especialmente pela análise interdisciplinar feita a partir dos Direitos
Constitucional e Internacional Público em sinergia com a Filosofia Política e a Teoria Geral
do Estado, ao tratar de peculiaridades desta última disciplina que merecem ser ressignificadas
face à assunção do Estado de Direito Humanista, em direta conexão com o dever
constitucional de proteção e de concretização dos direitos humanos fundamentais, exsurgindo
daí ser apropriada a sua análise e o seu aprofundamento neste artigo científico.
Para uma abordagem que se pretenda seja contemporizada com a supremacia dos
direitos humanos, contudo, alguns elementos precisam ser revistos, em seus sentidos e
significados atuais, pela disciplina, como modo de melhor contextualizar e pontuar seu objeto.
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comum, poderes político, jurídico e funções estatais, (DALLARI, 1998) assumem novas
feições, vetorizados pelos direitos humanos.
Ademais, ainda nas linhas da Teoria do Estado, também são pensados (DALLARI,
1998) os pontos de contato entre Estado e Direito (personalidade jurídica estatal, relações com
a política, sociedade, comunidade, nação), bem como mudanças do ente estatal por meio de
reforma e revolução. Igualmente, a disciplina abarca os vínculos do Estado com o governo,
em especial enfocando o regime democrático (aspiração e ideal moderno, princípios, formas
direta, semidireta, representativa e participativa), além de questões fundamentais como o
referendo, o plebiscito, a iniciativa e o veto populares, o recall.
Tal enfoque é temperado pelas dimensões críticas da Filosofia Política, de modo que
as características próprias do conhecimento científico naquele orbe de conteúdo são
equalizadas pela dinâmica do pensamento filosófico, apto a abordar as mudanças e
necessidades de adequação das demandas da realidade social.
A Filosofia Política dialoga com o campo da Teoria Geral do Estado, contudo, suas
pretensões são mais discursivas e menos classificatórias. Assim, ocupa-se das relações
humanas coletivas, social e politicamente organizadas para a produção dos modos de
existências, sobretudo por meio do aporte crítico dos sistemas vigentes, inserindo-lhes em
questionamentos éticos, estéticos, políticos, jurídicos, enfim, filosóficos.
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O manejo dos valores políticos vigentes, portanto, encontra elo na conjugação dos
enfoques de ambas disciplinas, de modo a auxiliar na composição de uma axiologia política e
jurídica, a partir dos indicativos vigentes pelas categorias de direitos.
Tal como destaca Mogado (2010, p. 469), a Filosofia Política, em seu aporte
histórico, demonstra o sentido da possibilidade de problemas e soluções políticos, sendo que,
na contemporaneidade, se assiste ao monopólio da forma democrática, no ocidente, a partir do
que a pergunta do filósofo se daria acerca das conformações racionais deste modelo.
O filósofo político, assim, sem uma sujeição obrigatória ao regime em que vive, mas
vinculado a ele por sua própria existência temporal, articularia argumentos em conflito na
batalha política, clarificando a natureza das respostas, demonstrando viabilidades de escolhas
dentre várias possibilidades.
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universo e que sua continuidade demanda uma série de condições pessoais e ambientais
atendidas.
Tanto assim que, ainda conforme Morgado (Id., ib., p. 487), a tônica dos direitos
humanos revela o substrato moral da democracia, definindo o seu conteúdo enquanto
regime político, daí se falar em igualdade democrática, em liberdade democrática, e demais
valores políticos qualificados de “democráticos”, ainda que implicitamente, no manejo do
conteúdo dos diplomas de direitos humanos.
Por estes mesmos motivos, o trabalho do filósofo político seria marcado pela
respeitabilidade e pela responsabilidade, na medida em que, sem se sujeitar, lhe incumbe
identificar as regras do regime político, com reconhecimento do valor da democracia e
consideração pelos sentidos e significados do bem individual e coletivo.
Esta fundamentação de ideias dos Estados pode ser vista no estudo de Bester (2005,
p. 10-26), para quem o histórico e a evolução conceitual de Estado e de constitucionalismo
são imprescindíveis para a compreensão do Direito Constitucional, uma vez que Estado e
Constituição apresentam-se como expressões históricas concorrentes, a despeito da
modernidade da terminologia.
Para a autora, a vocação ideológica do Estado não pode ser cindida da Constituição,
ao mesmo tempo em que os conceitos de Estado, de Estado de Direito e de Estado
Constitucional e Democrático de Direito devem ser adequadamente distinguidos para se
entender o Estado em suas feições e dimensões atuais.
112
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Por fim, ainda conforme sua síntese (BESTER, 2005, p. 24-26), o Estado atual seria
do tipo neoliberal, marcado pela forma de Estado Gerencial, configurando um Estado mínimo
que admite privatizações, desregulamentações, flexibilizações, gerando novos déficits
humanos no cenário globalizado, o que, nos termos da autora, em regra representam um
Estado do Mal-Estar para trabalhadores e hipossuficientes que ficam expostos à voracidade
do mercado.
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Estas compreensões e ponderações (Id., ib., p. 26) são relevantes para o escopo deste
artigo, que trata do humanismo e se preocupa, portanto, com as condições de manutenção e
reprodução da vida humana, que dependem de fortes institutos jurídicos efetivos; por isso,
detém-se na passagem final de sua análise do Estado contemporâneo:
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Por fim, ainda para os mesmos autores (GOMES; MAZZUOLI, 2005, p. 197), a
síntese mais recente seria a do direito universal, expressa na forma do Estado
Constitucional e Humanista de Direito, que se apresenta como macrogarantia da proteção
dos direitos humanos ante o exercício arbitrário e ilegítimo do poder político estatal.
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Pero sobre esa base común del reconocimiento del fin del Estado y del orden
jurídico caben, y se han producido, floraciones humanistas muy diferentes, las cuales
divergen en cuanto a la apreciación de cuales sean los medios más adecuados y
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A hipótese proposta neste artigo considera que os direitos humanos não se encerram
em uma das partes do estudo de Teoria do Estado, justamente porque o objeto, o Estado, não
se restringe ao elemento funcional-estruturante.
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REFERÊNCIAS
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RESUMO
O novo constitucionalismo latino-americano, capitaneado pelas constituições da Venezuela
(1999), Equador (2008) e Bolívia (2009), erige no subcontinente com um conjunto normativo
de densidade democrática e pluralista e até então não experimentados no âmbito do
constitucionalismo regional. Em uma de suas dimensões de pluralidade resultou na
incorporação no texto constitucional das cosmovisões dos povos indígenas originários,
traduzido por bem viver, especificamente dos quíchuas na Constituição do Equador, de 2008,
e dos aimarás na Constituição da Bolívia, de 2009.
Isso não representa, contudo, uma negação à identidade de matriz europeia ocidental, que
tradicionalmente se apresentou no constitucionalismo latino-americano, mas tampouco
significa sua continuidade. Porém, um ponto central é o olhar dispensado ao oprimido, que está
nessa condição por ser pobre, ameríndio, negro, mulher, ou seja, por ser o “outro”.
Desse modo, o presente estudo tem como objetivo demonstrar a importância o processo de
reflexão iniciado com as teorias da libertação que surgiram no início da década de 1970 sob a
influência da teoria da dependência, desenvolvida por Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank,
Teotônio dos Santos, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Falletto e outros.
Defendo a tese de que o objetivo central do novo constitucionalismo latino-americano é a
libertação do oprimido e, com isso, a filosofia da libertação, desenvolvida por Enrique Dussel,
figura como importante marco teórico que sustenta a proposta de refundação do Estado.
PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalismo; filosofia da libertação; América Latina;
dependência.
RESUMEN
El nuevo constitucionalismo latinoamericano, capitaneado por las constituciones de Venezuela
(1999), Ecuador (2008) y Bolivia (2009), se erige el subcontinente con un conjunto de densidad
normativa democrática y pluralista, hasta ahora no probado en el constitucionalismo regional.
Una de sus dimensiones de pluralidad dio lugar a la incorporación en la Constitución de la
cosmovisión de los pueblos indígenas originarios, traducidos por el vivir bien, en concreto del
quichua en la Constitución ecuatoriana de 2008 y de los aymaras en la Constitución Política de
Bolivia, 2009.
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Esto no es, sin embargo, una negación de la identidad de matriz de Europa occidental, que
tradicionalmente aparecían en el constitucionalismo latinoamericano, pero tampoco significa
su continuidad. Pero, el punto central es el aspecto relevado a los oprimidos, que se encuentra
en esta condición por ser pobres, indígenas, negros, mujeres, es decir, por ser el "otro".
Por lo tanto, este estudio pretende demostrar la importancia del proceso de reflexión iniciado
con el lanzamiento de las teorías que surgieron en la década de 1970 bajo la influencia de la
teoría de la dependencia, desarrollado por Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, el Teotônio
Santos, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Falletto y otros.
Yo sostengo que el objetivo central del nuevo constitucionalismo latinoamericano es la
liberación del oprimido y, por tanto, la filosofía de la liberación desarrollada por Enrique Dussel
figura como importante marco teórico que apoya la propuesta de reformar el Estado.
PALABRAS CLAVE: Constitucionalismo; filosofía de la liberación; América Latina;
dependencia.
1. Introdução
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para o oprimido.
Após a Conferência de Medellín, de 19683, marco inicial da teologia da libertação, sob
a influência da teoria da dependência, propagada pelas ciências sociais latino-americanas,
surgiu na Argentina a filosofia da libertação4, que tem como expoente autores como Enrique
Dussel, Rodolfo Kusch, Arturo Andrés Roig, Juan Carlos Scannonne, Aníbal Fornari, Osvaldo
Ardiles, Julio De Zan, Horacio Cerutti, entre outros (SCANNONE, 2009, p. 60). Trata-se de
importante marco do pensamento crítico latino-americano onde se questiona as bases de
dominação do subcontinente e que serve de marco filosófico para as recentes rupturas operadas
pelo novo constitucionalismo latino-americano.
A partir deste momento, portanto, ganha força na região questões como a inclusão do
“outro”, considerando os direitos dos povos indígenas, assim como a cultura popular latino-
americana (DUSSEL, 1997) e, por causa dessa importância, a filosofia da libertação será tratada
aqui como o marco filosófico do novo constitucionalismo latino-americano.
A filosofia ocidental, segundo Ludwig (2011, p. 7 e 8), apresenta como principal
fundamento de sua elaboração a categoria da totalidade. Esta se revela no paradigma do ser, da
consciência e do agir comunicativo. Assim, verifica-se uma ontologia da totalidade onde o
mundo é iluminado pela visão do “ser”, que detém a verdade e a lógica prevalescente é a de
dominar o “outro”, o “não-ser”, sem qualquer espaço para alteridade, na concepção de Dussel
(1973, p. 108).
A ideia de dominação, que permeia o pensamento da filosofia ocidental, permite
imaginar diversas dicotomias que figuram como temas relevantes e polêmicos, tais como
civilização e barbárie, nacional e estrangeiro, modernidade e tradição. São exemplos de
dualidades na qual um deve se sobrepor ao outro, justamente por esse outro ser diferente e
causar certo estranhamento.
O subcontinente latino-americano foi moldado à luz da modernidade. Conforme será
visto adiante com mais detalhes, a modernidade não foi simplesmente importada para a América
Latina, mas sua própria ideia teve origem no impacto filosófico que representou a descoberta e
a invasão europeia (DUSSEL, 2010b), com os intensos discursos racionais de legitimidade das
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ações espanholas.
A identidade latino-americana se apresenta mestiça, ultrapassando a dimensão racial
para centrar-se na mestiçagem cultural. Durante muito tempo essa foi a justificativa utilizada
pelos estudiosos para o subdesenvolvimento da região. O pensamento que concebe a
possibilidade enriquecedora de culturas diferentes coexistirem no mesmo Estado-nação não era
vista com bons olhos à luz dos principais pensadores do século XIX e início do século XX.
Período este em que as teorias racistas – e totalitárias – proliferaram (SOTELO, 1975, p. 37)5,
sendo que muitos delas creditavam a instabilidade institucional dos países hoje considerados
multiculturais justamente na falta de homogeneidade étnica.
No entanto, embora inserida no âmbito da modernidade, a América Latina nunca deixou
de ter um papel periférico no desenvolvimento dos pressupostos modernos (DOMINGUES,
2009, p. 7), tendo sido rotulado como um continente subdesenvolvido ou em desenvolvimento.
A hipótese central desse trabalho considera que o movimento teórico da libertação se
trata do marco teórico que acompanha o novo constitucionalismo latino-americano. Naquele
período, pela primeira vez o subcontinente voltou seus olhos para si e pensou a realidade a partir
de espírito de sua época.
Contudo, os movimentos bruscos são facilmente percebidos e a reação não tardou a
aparecer. As ditaduras militares proliferaram na América Latina com a missão de sufocar o
pensamento “subversivo”. Seria necessário esperar a redemocratização para que o resultado das
teorias da libertação pudessem ser percebidas.
O presente estudo se divide em três partes.
A primeira parte trata da inserção do novo constitucionalismo latino-americano em seu
contexto econômico, político e social. Pretende-se estabelecer um perfil do constitucionalismo
e contrasta-lo com as inovações do novo constitucionalismo.
A segunda parte é dedicada ao estudo da libertação e suas diferentes manifestação no
campo dos estudos sociais na América Latina, passando pela teologia da libertação, filosofia da
libertação e mesmo a pedagogia da libertação.
A terceira parte, por fim, destaca o tratamento conferido ao oprimido pelo novo
constitucionalismo latino-americano. Nesse ponto estudamos o caso boliviano, onde
5 Roberto Gargarella explica que foram muitos os pensadores inspirados pelo pensamento de
Rousseau que consideraram indispensável projetar uma sociedade homogênea como condição de
possibilidade para tornar possível um autogoverno coletivo. As teorias racistas também
condicionaram importantes autores que pensaram o Direito Constitucional, como Francisco
Campos, autor da Constituição de 1937 e teórico do regime fascista de Getúlio Vargas, e Carl
Schmitt, teórico da Alemanha nazista.
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cosmovisão quíchua erigiu à norma constitucional como meio de trazer povos históricamente
alijados ao processo de decisão política do Estado.
O estudo foi realizado por meio de pesquisa bibliográfica como fonte primária.
Secudariamente utilizamos documentos estatísticos como meio de quantificação dos grupos
marginalizados, sejam eles oficiais ou elaborados pela sociedade civil.
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momento histórico de “Era das Revoluções”6 e tal nome não lhe foi dado sem motivo. Em
particular, na América Latina, as duas Guerras Mundiais e a consequente ascensão dos Estados
Unidos como potência mundial ensejaram mudanças substanciais e seus desdobramentos
marcaram profundamente o destino do subcontinente.
Com o foco no atual momento da América Latina, Boaventura de Sousa Santos visualiza
quatro dimensões que caracterizam o contexto sócio-político-cultural do continente latino-
americano, que se referem ao caráter: i) das lutas; ii) da acumulação; iii) da hegemonia; e iv)
do debate civilizatório (SANTOS, 2010, p. 55 e segs.).
Para desenvolver cada uma dessas dimensões, Boaventura de Sousa Santos estabelece
uma dualidade antagônica e dialética. O principal traço característico diz respeito ao caráter das
lutas, contudo, embora possua um forte viés marxiano, o autor não se refere à luta de classes ao
avaliar as lutas no âmbito da América Latina. Trata-se, na verdade, do que chama de “lutas
ofensivas” e “lutas defensivas”, que coexistem e se tencionam.
As lutas ofensivas, segundo o autor, não têm necessariamente um potencial socialista,
mas sim a tomada do poder do Estado para realizar as mudanças importantes nas políticas
públicas (SANTOS, 2010, p. 55). Nesse cenário podemos inserir as ações sociais que serviram
de base para o novo constitucionalismo latino-americano, como a revolução bolivariana, que
proporcionou um avanço democrático no quadro institucional, mediante mecanismos de
democracia direta e participativa, bem como o controle dos recursos naturais e, naturalmente, a
organização dos movimentos indígenas como mola-mestra dessas transformações. Por outro
lado, as lutas defensivas figuram como elemento de contenção do poder repressivo do Estado
ou de poderes fáticos (SANTOS, 2010).
A segunda dimensão do contexto latino-americano que se destaca diz respeito à
coexistência entre acumulação ampliada e a acumulação primitiva (SANTOS, 2010, p. 57), na
qual Boaventura de Sousa Santos empresta forte conotação marxiana. Segundo ele, há uma
acumulação ampliada exercida pelo capital por meio dos mecanismos econômicos, amplamente
compreendidos. A acumulação primitiva se trata daquela pautada na apropriação, muitas vezes
ilegal e violenta. A relação entre uma e outra pode ser representada pela concepção de nação e
de imperialismo, este incorporando à frente da acumulação primitiva e aquela a noção de
acumulação ampliada. Em que se pese a relevância do embate entre imperialismo e soberania,
tema sempre presente na América Latina, cremos que não há propriamente uma contraposição
6 Título que dá nome à obra de Eric Hobsbawn, “A Era dos Extremos”, que estabelece o intervalo
entre 1914 e 1991 para delimitar o “breve século XX”.
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7 Segundo definição contemporânea de barbárie de Francis Wolf, considera-se cultura bárbara (e,
portanto, uma cultura "incivilizada") aquela que não dispõe, em seu próprio cerne, de estruturas que
lhe permitam admitir, assimilar ou reconhecer outra cultura - ou seja, a simples possibilidade de
outra forma de humanidade (WOLF, 2004, p. 40-43). Segundo essa definição, podemos encontrar
alguns focos de barbárie em uma Europa que se fecha cada vez mais ao estrangeiro e possibilita
atentados, como o de Oslo, na Noruega, em 22 de julho de 2011, em que um norueguês ligado à
extrema direita explodiu uma bomba contra um prédio do governo e abriu fogo contra a juventude
do Partido Trabalhista, matando mais de 70 pessoas. No entanto, o tema barbárie já foi debatido
anteriormente na América Latina por Domingo F. Sarmiento, em sua clássica obra “Vida de Juan
Facundo Quiroga” ou “Civilización y Barbarie”, onde analisa as condições de governabilidade da
América Latina por meio da vida de Juan Facundo, representado como típico caudilho que encarna.
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originários camponeses. Assim, grande importância dessa dimensão reside na refutação da tese
que seria inevitável um “choque de civilizações”8 e mostrar que um Estado plurinacional que
articule a coexistência de culturas antagônicas é possível.
Outro aspecto significativo do debate civilizatório é “la pertenencia mutua de
capitalismo y colonialismo en el código genético de la modernidad ocidental” (SANTOS, 2010,
p. 61). O capitalismo como um sistema típico de produção de pobreza e de exclusão social,
naturalmente necessita de um “mercado emergente” e de “regiões subdesenvolvidas” para
poder funcionar; ou, em outras palavras, necessita de “colônias econômicas” para que possa
maximizar a remuneração do capital.
Desse modo, podemos observar três marcos importantes para fins do nosso estudo: i) a
independência, quando emergiu certo sentimento de protonacionalidade, durante o século XIX;
ii) as lutas sociais travadas durante o século XX, que proporcionaram insurgente articulação
política de camadas sociais até então alijadas; iii) o desenvolvimento amadurecido dos
movimentos sociais, articulados suficientemente para reivindicar direitos e erigi-los a nível
constitucional, refundando o próprio Estado.
Indaga-se sobre precisão terminológica para designar um conjunto de constituições que
não representam sequer a metade dos países que compreendem a América Latina. No entanto,
mudando a perspectiva do seu sentido, o novo constitucionalismo latino-americano se
caracteriza por lançar ideias originais que surgem em uma região do planeta que historicamente
se alimentou do pensamento estrangeiro, sobretudo europeu e estadunidense. Talvez por esse
motivo, o novo constitucionalismo mereça ser denominado latino-americano.
Outra questão terminológica relevante se refere à diferença estabelecida por alguns
autores, como Ramiro Ávila Santamaría, entre neoconstitucionalismo latino-americano e
neoconstitucionalismo andino.
O primeiro se trata da recepção do neoconstitucionalismo construído pela doutrina
europeia e que tiveram um desenvolvimento próprio em nossa região, destacando-se a expansão
de direitos, o aprofundamento do controle de constitucionalidade, o redimensionamento do
Estado, o constitucionalismo econômico voltado para a igualdade e o hiper-presidencialismo
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9 A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe foi criada em 1948 pelo Conselho
Econômico e Social das Nações Unidas e tem como objetivo promover a cooperação econômica na
América Latina. Com a coordenação das ações da CEPAL, Celso Furtado e Raúl Prebisch se
tornaram os grandes expoentes do pensamento desenvolvimentista.
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10 Em sua obra “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire estabelece a contradição entre opressores e
oprimidos, encontrando na libertação sua superação (FREIRE, 2011, p. 41), na mesma linha da
filosofia da libertação.
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que se trata do marco filosófico do novo constitucionalismo latino-americano, que tem também
o objetivo de descolonizar, libertando todos aqueles que de algum modo encontram-se
oprimidos pelas assimetrias históricas conduzidas tanto no plano interno quanto no plano
internacional11.
Nesse esteio, podemos apontar que a filosofia da libertação iniciou-se com a resposta
do filósofo mexicano Leopoldo Zea à obra do peruano Augusto Salazar Bondy. A problemática
de Bondy centrou-se em perguntar se existe uma filosofia em “nuestra América”, levantando a
hipótese de que não existe uma filosofia hispanoamericana peculiar, genuína e original, ou seja,
com uma personalidade histórico-cultural própria, embora não negue a possibilidade disso
ocorrer no futuro (BONDY, 2006, p. 72-74 e 93-94).
Em resposta à obra de Bondy, Zea destaca de plano que a própria problemática de Bondy
contém um estranhamento, tendo vista que “quando nos perguntamos pela existência de uma
filosofia americana, fazemo-lo partindo do sentimento de uma diversidade, do fato de que nos
percebemos e sentimos distintos” (ZEA, 2005, p. 357). De modo, Zea quer dizer que a conexão
intelectual com os países centrais é tão forte que o simples fato de pensar autônomamente nos
causa estranhamento, afinal, o grego antigo não se perguntou se existe uma filosofia na Grécia,
tampouco o francês ou alemão fizeram.
A partir desse ponto, o mencionado autor não só afirma a produção filosófica na
América Latina, como também traça sua peculiaridade: ao contrário da filosofia europeia, que
perdeu sua humanidade ao longo do tempo, ao negar humanidade ao “outro”, como denuncia
Sartre (idem, p. 460), a filosofia latino-americana tem a peculiaridade de “subverter a história”
e “mudar uma ordem na qual a essência do homem foi menosprezada” (idem, p.485), lançando
o caminho no qual a filosofia da liberatação iria perfilhar.
Para compreender adequadamente o pensamento que subjaz tudo isso, é fundamental
conhecer a trajetória e o locus epistêmico dos principais autores. Para o estreito alcance desse
trabalho, elegeu-se Enrique Dussel como marco filosófico central, não obstante outros autores
trilharem caminhos convergentes, que serão abordados aqui.
Dussel nasceu em Mendoza na Argentina em 1934 e é uma das maiores referências do
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suporte teórico às críticas do pensamento moderno que pretendem ser aqui esboçadas.
Assim, para alcançar esse objetivo, o presente estudo se divide em três partes, que visam
abordar como o discurso colonial se oculta no pensamento moderno e a recente tentativa de
quebra do paradigma abissal nas novas constituições andinas.
A compreensão do fenômeno da moderidade ocidental passa pela ideia de que se trata
de um modo de vida que surgiu em determinada época e lugar, sendo posteriormente
internacionalizado, servindo de paradigma para qualquer povo que pretende obter alguma
relevância no cenário internacional.
A modernidade foi um caminho construído para que a razão atingisse uma pretensa
forma de compreensão totalizante do mundo. Descartes, Kant, Hegel e tantos outros
pavimentaram essa via de aceitação da razão. Segundo seus postulados, o ser humano, único
ser racional, deve ser o fim último de todas as ações para a satisfação das próprias necessidades.
Seu grande instrumento de ação passou a ser a ciência, ápice do pensamento racional, a grande
produtora da verdade universal.
A modernidade e a colonialidade são fenômenos, portanto, altamente mescláveis em
diversos momentos, em especial assim que a modernidade encontrou no capitalismo seu
formato padrão de apropriação. A modernidade elaborou uma forma de pensar lastreada na
racionalidade que levou às grandes descobertas e uma forma de apropriação da natureza para a
satisfação das necessidades humanas. O homem se tornou o centro do universo. Aníbal Quijano
assim descreve esse momento:
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essa região se tornou colônia de países semiperiféricos (Espanha e Portugal) que perderam sua
centralidade com a Revolução Industrial, deslocando-se o centro cultural do mediterrâneo (Sul
da Europa) para o Norte da Europa (DUSSEL, 2010b, p. 307).
Em síntese, o autor defende a ideia de que a modernidade filosófica não surgiu com
Descartes ou Espinosa e, consequentemente, no Centro-Norte da Europa, mas sim na Península
Ibérica, após a invasão da América, fato que implicou profundos questionamentos filosóficos,
não experimentados no resto da Europa.
Além de identificar esses elementos, surge a necessidade de mobilizar os atuais
instrumentos hegemônicos de um modo contra-hegemônico. Para isso, ao passo que o desafio
epistemológico passa por compreender uma teoria que considere a alteridade, o pesquisador
deve fazer um esforço epistêmico para uma abertura ao outro distinto e minimize os efeitos de
suas preconcepções.
12 O “Consenso de Washington” foi elaborado pelo economista britânico John Williamson como um
conjunto de proposições para serem adotadas pelos países da América Latina. Williamson elaborou
dez pontos centrais para a política econômica: “a) disciplina fiscal visando eliminar o déficit público;
b) mudança das prioridades em relação às despesas públicas, eliminando subsídios e aumentando
gastos com saúde e educação; c) reforma tributária, aumentando os impostos se isto for inevitável,
mas “a base tributária deveria ser ampla e as taxas marginais deveriam ser moderadas”; d) as taxas
de juros deveriam ser determinadas pelo mercado e positivas; e) a taxa de câmbio deveria ser
também determinada pelo mercado, garantindo-se ao mesmo tempo em que fosse competitiva; f) o
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Contudo, o efeito da adoção dessas políticas por parte dos países latino-americanos foi
catastrófica, de modo que os problemas históricos foram agravados, gerando maior
concentração de renda, desemprego e, ao mesmo tempo, pouco crescimento econômico
(GUILLEN, 2012). Não sem motivo razoável, o preâmbulo da Constituição da Bolívia de 2009
expressamente declara que o Estado colonial, republicano e neoliberal encontra-se no
passado13.
Para reconstruir uma noção de Estado que seja adequada para a realidade cultural e
social, a Bolívia incorporou em seu texto constitucional de 2009 um fundamento ético que se
posiciona como alternativa ao individualismo e ao etnocentrismo do capitalismo hegemônico.
Trata-se do paradigma do “vivir bien”.
Assim, para que possamos realizar uma adequada análise comparativa entre dignidade
da pessoa humana e bem viver, devemos antes compreender o que é resgatado e incorporado
no constitucionalismo boliviano, conceber o próprio paradigma cultural. Com isso, traça-se
breves linhas sobre a cosmovisão do povo aimará, que serviu de referência na elaboração do
texto constitucional.
Segundo os dados oficiais obtidos por meio do último censo boliviano de 2001, a
população aimará representa o segundo maior contingente populacional dentre os povos
originários, ficando atrás apenas dos quíchuas (BOLÍVIA, 2001). Não obstante isso, a
Constituição de 2009 se refere à suma qamaña quando trata de bem viver, no idioma aimará, e
não sumak kawsay, em quíchua.
Em boa medida, isso se deve por causa do nacionalismo aimará que surgiu com mais
intensidade entre 1990 e 2000, onde o indigenismo surgiu como força política revolucionária
após as revoltas populares em face da política neoliberal adotada durante os anos de 1980 e
1990, que geraram demissões em massa e só fez aumentar a população envolvida do plantio da
coca. Com efeito, a pressão dos EUA para o combate a essa prática, nesse cenário conflituoso,
desaguou no forte movimento indigenista (LINS, 2009), que já vinha se articulando
intelectualmente ao longo do século XX, com a Guerra do Chaco e a Revolução de 1952.
Contudo, isso não explica uma demanda presente em todo o processo constituinte de 2008: a
nacionalidade aimará.
comércio deveria ser liberalizado e orientado para o exterior (não se atribui prioridade à liberalização
dos fluxos de capitais); g) os investimentos diretos não deveriam sofrer restrições; h) as empresas
públicas deveriam ser privatizadas; i) as atividades econômicas deveriam ser desreguladas; j) o
direito de propriedade deve ser tornado mais seguro.” (BRESSER PEREIRA, 1991, p. 6).
13 “Dejamos en el pasado el Estado colonial, republicano y neoliberal.”
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tivessem passado a serem cidadãos, passaram a ser, também, pobres e, assim, membros de uma
classe social. Observamos, desse modo, uma tensão entre dois grupos sociais que se polarizam:
o criollo mestiço, que deseja expandir o latifúndio, e o indígena, que luta por defender seu
território, não obstante estar em jogo outros grupos sociais excluídos.
O quarto momento em destaque se trata dos eventos políticos que ocorreram ao longo
do século XX e se tornaram cruciais para a articulação recente da identidade aimará. Em
primeiro lugar, evidencia-se a Guerra do Chaco, que deflagrou conflito militar entre Bolívia e
Paraguai entre os anos de 1932 e 1935.
Enfrentando problemas políticos intensos com a deterioração da economia, devido aos
esforços da Bolívia para a Segunda Guerra Mundial em reduzir o preço do estanho, o governo
de Daniel Salamanca perdeu a maioria do congresso em 1º de julho de 1931. Após incidente
pequeno na fronteira com o Paraguai, Salamanca surpreende rompendo relações com o
Paraguai. Ao mesmo tempo, nesse período, alegando ameaçar comunistas, tentou aprovar
decreto que lhe daria plenos poderes, mas sua proposta foi rejeitada pelo Poder Legislativo.
Diante disso, Salamanca concentrou esforços na questão fronteiriça (ANDRADE, 2007, p. 31).
Segundo Everaldo Andrade, muitos autores indicam que a principal motivação da guerra se
trata dos supostos campos petrolíferos da região do Chaco. Contudo, essa afirmação não pode
ser feita descontextualizada do plano de fundo político e econômico (idem ibidem).
A guerra teve início em 1932 e o cenário desenhava uma vitória Boliviana, cuja
população e estrutura econômica eram superiores às do Paraguai. No entanto, o exército
boliviano era composto majoritariamente por indígenas que viviam nos altiplanos e a região do
Chaco apresentou um cenário completamente diferente, onde a resistência física seria decisiva.
Os paraguaios acostumados com as adversidades do território, superaram as capacidade
militares bolivianas. Como resultado, a paz foi celebrada em 14 de julho de 1935, com o triste
saldo para Bolívia de 65 mil vidas em soldados mortos e 240 mil quilômetros quadrados em
território.
Contudo, o fator decisivo da derrota boliviana foi a própria estrutura social. O Exército
reproduziu a segregação social no interior da caserna e no campo de batalha, onde os aimarás e
quíchuas eram constantemente humilhados pelos brancos e mestiços. Oficiais criollos gozavam
de regalias enquanto os soltados eram carentes de cuidados médicos mínimos.
Portanto, segundo Everaldo de Oliveira Andrade:
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Diante dessas transformações ocorridas ao longo do tempo, não podemos imaginar que
o novo constitucionalismo latino-americano resgate uma cosmovisão inteiramente pré-colonial.
Não podemos esquecer que os indígenas do altiplano, vestidos com suas roupas típicas,
remontam a imposição de Carlos III, no final do século XVIII, bem como os trajes femininos e
penteado das índias, repartido ao meio, imposições do vice-rei Toledo. Mesmo a coca foi objeto
de intervenção na cultura indígena, deixando de ser um instrumento ritualístico para ser um
produto conveniente para o espanhóis (GALEANO, 2011, p. 73) No entanto, trata-se de
recuperar uma cultura que sofreu intensas transformações ao longo do tempo, sobretudo com o
processo de evangelização, mas foi preservada e hoje se revela como símbolo da mestiçagem e
da interculturalidade latino-americana.
Além disso, uma análise comparativa sobre a cosmovisão indígena no
constitucionalismo latino-americano deve levar em consideração as forças repressivas que
atuam em face de determinados grupos sociais. Abaixo podemos observar dados da CEPAL
sobre a parcela da população que se diz sofrer fazer parte de um grupo discriminado.
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No quadro acima podemos observar que, dentre os países da América Latina, a Bolívia
figura em terceiro lugar como país que possui maior porcentagem da população pertencente a
grupo discriminado, perdendo apenas para a Guatemala e para o Brasil. Desse modo, a
constituinte de 2008 se encontrava em um contexto de demanda por superação de desigualdades
e diante de forte movimento político articulado pelos grupos indígenas.
Assim, a partir desse momento, devemos estudar o conteúdo da cosmovisão que é
resgatado pelo constitucionalismo boliviano. Um dos maiores obstáculos para a traduzibilidade
entre o pensamento ocidental e aimará se trata do reducionismo cartesiano introjetado pelo
ocidente. O conceito de desenvolvimento é um exemplo. Para o povo aimará, o
desenvolvimento tem algo a ver com vida (Jaka), mas, ao mesmo tempo, vida é indissociável
do conceito de morte (Jiwa). O conceito ocidental de desenvolvimento, ao revés, não está
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5. Conclusão
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6. Referências
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153
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RESUMO: O presente artigo busca analisar a relação entre as construções teóricas de Nancy
Fraser acerca do reconhecimento, com os aspectos gerais do novo modelo de Estado
Plurinacional surgido na América Latina. Para tanto, analisaremos a concepção bidimensional de
justiça social em Nancy Fraser, bem como sua visão acerca da política do reconhecimento e os
problemas que o Estado Moderno Nacional, enquanto instituição reguladora da vida em
sociedade, apresenta na busca pela efetivação dessa justiça social. Após, verificaremos como o
Modelo Plurinacional de Estado pode responder aos problemas do Estado Moderno Nacional
apontados por Nancy Fraser, descrevendo, assim, como o nosso presente se configura como um
reflexo do nosso passado, ou seja, como a identidade nacional do Estado Nacional ainda está
presente no contexto periférico latino americano, e mais, como o novo Estado Plurinacional
latino americano pode ser visto como uma nova visão de Estado, que poderá romper com os
grilhões do Estado Nacional, rumo a uma justiça social efetiva, onde redistribuição e
reconhecimento sejam vistos como faces de uma mesma moeda.
ABSTRACT: This paper analyzes the relationship between the theoretical constructs of Nancy
1
Membro do BIOGEPE – Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão – da Faculdade de Direito de Vitória. Membro do
Grupo de Pesquisa Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória.
Bolsista da FAPES – Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Espírito Santo. Mestrando em Direitos e
Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória. Pós Graduado em Direito Público pelo Centro
Universitário Newton Paiva. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. Professor e Advogado.
2
Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Programa de Pós-
Graduação Stritu Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais (Mestrado) da Faculdade de Direito de Vitória.
Coordenador do Grupo de Pesquisa Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais. Presidente da
Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH). Professor e Advogado.
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Fraser on the recognition with the general aspects of the new model Plurinational State emerged
in Latin America. Therefore, we will analyze the two-dimensional conception of social justice in
Nancy Fraser, as well as its view of the politics of recognition and the problems the Modern
National State, while regulatory institution of society, shows that in the search for effective social
justice. After we check how the Model Plurinational State may respond to the problems of the
Modern National State appointed by Nancy Fraser, describing, as well as our present is
configured as a reflection of our past, ie, as the national identity of the nation state still is present
in peripheral Latin American context, and more, as the new Latin American Plurinational State
can be seen as a new vision of the state, which can break the shackles of the National State,
towards an effective social justice, where redistribution and recognition are viewed as sides of the
same coin.
INTRODUÇÃO
O mundo mudou! Atualmente nosso tempo vem sendo marcado por profundas crises
sociais, econômicas e culturais que pensávamos nunca serem possíveis. Potências econômicas
vem perdendo espaço no “jogo econômico-financeiro” da globalização. Países de modernidade
tardia, tais como o Brasil, são considerados os “novos ricos”, a “bola da vez”, o que demonstra
como estamos insertos em tempos de transformações.
Diante desse mapa global, temos algo essencial, o problema do Estado Moderno
Nacional e seu modelo econômico – capitalismo – que já não corresponde mais aos anseios de
uma “aldeia global”, que está interligada por redes sociais virtuais, por prazeres tão fugazes
quanto necessários, por buscas respeito, de direitos, e mais, de reconhecimento.
Percebendo essa situação, bem como a existente e incessante busca do ser humano por
155
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reconhecimento, teóricos do mundo todo vêm desenvolvendo estudos para explicar essa situação-
problema. Dentre estes estudiosos podemos citar, para ilustrarmos a importância do tema, nomes
como o do canadense Charles Taylor, do alemão Axel Honneth e da norte americana Nancy
Fraser, cada qual percebendo, a sua maneira, a problemática da busca pelo reconhecimento.
Mas não só as teorias da busca por reconhecimento surgem no cenário atual como
explicações para o que estamos vivenciando. Novas acepções, modelos e, porque não, novos
paradigmas para o Estado, também ganham espaço na tentativa de desencobrirmos aquelas
pessoas alijadas da participação no mundo globalizado em que vivemos.
É nesse sentido, que destacaremos, no decorrer deste artigo, os novos modelos de Estado
surgidos na América Latina (Bolívia e Equador), denominados Plurinacionais, demonstrando em
que divergem do Estado Moderno, bem como em que medida podemos perceber nesse novo
modelo uma resposta às crises, principalmente àquelas insertas ao reconhecimento, que hoje
levam o Estado, nos moldes em que fora gestado a mais de 500 anos, à beira de um precipício.
Nós somos seres humanos, seres culturais, sociais, e em decorrência desse fato sempre
atuamos em nosso contexto social, na tentativa de sermos reconhecidos como sujeitos sociais,
como sujeitos capazes de participar ativamente de uma sociedade.
Será, portanto, nesse contexto de busca por reconhecimento, de busca por justiça social e
a partir das discussões trazidas acima, que buscaremos resposta ao seguinte problema: é possível
relacionarmos as linhas gerais da teoria de Nancy Fraser, referentes a essa problemática, àquelas
do modelo de Estado Plurinacional, buscando, a partir daí, proporcionar a todos não só o
reconhecimento em relação a cultura dominante, mas também, uma participação paritária da vida
em sociedade, sem que se exclua ou extermine determinadas culturas “submissas”?
A partir de então, para buscarmos resposta ao problema lançado acima, num primeiro
momento, traremos à discussão as construções de Fraser acerca do reconhecimento – e da
redistribuição – apontando suas divergências com outros teóricos, em especial, as que têm com
Axel Honneth, demonstrando como sua leitura percebe o modelo de Estado Moderno em que
vivemos, e mais, quais os principais elementos caracterizadores de sua teoria.
Faremos, em seguida, uma análise do modelo de Estado que surge na América do Sul,
denominado Plurinacional, apontando suas bases, bem como suas distinções em face do Estado
Moderno em que estamos inseridos, e mais, como essa construção pode alterar as relações entre
as pessoas a nível local, regional, nacional e internacional, resolvendo, assim, os problemas que
156
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3
Neste trabalho não iremos abordar as construções teóricas de Charles Taylor acerca do reconhecimento. No entanto,
para maiores esclarecimentos acerca de seus posicionamentos sobre o tema aqui discutido, ver TAYLOR, Charles. As
Fontes do Self: a construção da identidade moderna. 3ªed. São Paulo: Editora Loyola, 2011; TAYLOR, Charles.
Argumentos Filosóficos. São Paulo: Editora Loyola, 2000. Cap. 12, p. 241-274.
4
Em relação a Axel Honneth, o presente estudo trará abordagens feitas por Nancy Fraser acerca de seu estudo, haja
vista neste artigo buscarmos expor, de forma mais detalhada, as características principais do pensamento desta, de
modo que para um maior aprofundamento acerca da visão do alemão Axel Honneth sobre a problemática do
reconhecimento, ver HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ªed..
Trad. por REPA, Luiz. São Paulo: Editora 34, 2009; MATTOS, Patrícia. O Reconhecimento, entre a Justiça e a
Identidade. In.: Revista Lua Nova, nº63, 2004 e LUCAS, Doglas Cesar e OBERTO, Leonice Cadore.
Redistribuição versus Reconhecimento. Apontamentos sobre o debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth. In.:
Revista Direitos Culturais. Santo Ângelo. Vol. 5. nº8. jan./jun. 2010, p. 27-40.
157
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analítica, a primeira injustiça que podemos perceber, é aquela referente a visão sócio econômica –
percebida a partir de uma estrutura política econômica da sociedade em que vivemos – que gera
problemas, tais como: a exploração da mão de obra, a marginalização econômica e a privação de
um padrão material mínimo de vida. A segunda injustiça que podemos perceber em Fraser, é
aquela referente ao perfil simbólico e cultural, que está atrelada aos “padrões sociais” de
representação, interpretação e comunicação, ou seja, uma injusta de onde podemos retirar, por
exemplo, problemas relacionados a dominação cultural, ao não reconhecimento e ao desrespeito
(MOREIRA, 2010, p. 48-49).
Para combater tais injustiças, Fraser destaca a necessidade de efetivarmos, como visto
acima, uma justiça social que não seja arraigada de forma isolada, em mecanismos de combate a
má distribuição de bens e valores, ou naqueles inerentes ao combate do não reconhecimento, o
que poderia gerar um eclipse de uma busca pela outra, mas sim, em mecanismos que nos
possibilite perceber, de forma conjunta, tanto a satisfação da redistribuição, quanto do
reconhecimento.
Um desses mecanismos é percebido pela autora com o desígnio de princípio da paridade
de participação, que surge como meio de interação entre os vários sujeitos sociais, sem que um
venha a se sobrepor ao outro, ou seja,
a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade
interagir entre si como pares. São necessárias pelo menos duas condições para que a
paridade participativa seja possível. Primeiro, deve haver uma distribuição de recursos
materiais que garanta a independência e “vos” dos participantes. (…) a segunda condição
requer que os padrões institucionalizados de valor cultural exprimam igual respeito por
todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a consideração
social (FRASER, 2002, p. 13).
Assim, podemos reconhecer que o princípio da paridade de participação pode ser visto
como o objetivo principal da teoria da justiça em Fraser, haja vista esta ideia ser de melhor
compreensão e concretização, do que aquela desenvolvida por Honneth – ideia de autorrealização
– e mais, por possibilitar que saiamos da análise do reconhecimento a partir de uma perspectiva,
meramente, ética.
E mais, para que essa noção de paridade de participação efetivamente ocorra, podemos
extrair, do pensamento de Fraser, dois pressupostos básicos, quais sejam: a remoção dos
obstáculos para uma participação social completa, bem como o desmantelamento dos obstáculos
160
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culturais que foram institucionalizados ao longo do tempo (PINTO, 2008, p. 41) – o que,
conforme demonstraremos no decorrer deste trabalho, pode ocorrer através de um novo modelo
de Estado que venha substituir o modelo atual, ou seja, um “novo” Estado capaz de ser
construído a partir tanto das noções de redistribuição, quanto de reconhecimento, de modo a
desconstruir as institucionalizações culturais do, ainda soberano, Estado Nacional.
Temos de destacar ainda – a partir do dito acima – uma das principais divergências entre
Honneth e Fraser, qual seja: a construção ética, segundo Fraser, da teoria do reconhecimento de
Honneth, que separa de forma esquizofrênica, a filosofia moral. Segundo a citada autora,
Honneth separa a noção de moralität kantiana (o correto) – ligada a ideia de distribuição – da
noção de reconhecimento (o bem) – sittlichkeit (ética) hegeliana –, o que para ela não deve ser o
correto, sob pena de sobrepormos as ideias de reconhecimento sobre as de redistribuição,
causando, assim, um eclipse da redistribuição pelo reconhecimento (COUTINHO, 2012, p. 16).
Se por um lado Honneth, seguindo a tradição hegeliana, apregoa que o reconhecimento
intersubjetivo é uma condição essencial para o desenvolvimento de uma identidade –
reconhecimento das identidades – Fraser, ao seu turno, não vê o reconhecimento como uma
categoria central da sociologia e psicologia moral, onde a ideia de reconhecimento está ligada a
noção de autorrealização individual, mas sim, o enxerga como sendo uma questão de justiça, ou
seja, o reconhecimento passa a ser uma espécie de padrão universal de justiça, aceito por todos,
partindo da ideia de que todos os seres humanos possuem igual valor (MATTOS, 2004, p. 150).
Ao construir a ideia de redistribuição e reconhecimento como sendo dimensões de uma
mesma justiça, e mais, dessas acepções como mecanismos irredutíveis um ao outro, submetendo-
os àquilo que chama de princípio da paridade de participação, como visto acima, podemos
concluir que Fraser posiciona ambos na perspectiva da moralidade, ou seja, a autora evita, assim,
voltar-se à ética5.
Outra construção – já mencionada acima – de Fraser, é em relação ao reconhecimento
enquanto questão de status social, ou seja, o que nos exige reconhecimento não é uma questão de
identidade específica de um indivíduo ou grupo, mas sim, a condição necessária para os membros
desse grupo serem tidos como parceiros integrais durante a interação social.
Conclui Fraser (2007a, p. 107), portanto, que “o não reconhecimento,
5
Para maiores esclarecimentos acerca do distanciamento que Nancy Fraser propõe no tocante a análise do
reconhecimento, ver FRASER, Nancy. Reconhecimento sem Ética?. In.: Revista Lua Nova, São Paulo. n.70. pp.
101-138. 2007.
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importância que o Estado possui na concretização ou afastamento dessas premissas lançadas pela
autora.
É importantíssimo, então, discutirmos a presença do Estado como um dos principais
componentes para que alcancemos o reconhecimento, a redistribuição, a paridade de participação,
ou seja, uma verdadeira justiça social.
Podemos perceber que, tanto nas construções de Nancy Fraser, quanto nas construções
filosófico doutrinárias de Axel Honneth – principal opositor das ideias de Fraser, e que poderá ser
melhor estudado em outro trabalho – a figura do Estado caracterizada ali é aquela do Estado
Nacional – moderno – principalmente o modelo de Estado Nacional fincado nos países do
hemisfério norte (PINTO, 2008, p. 48).
Se, ao contrário, analisarmos as discussões acerca do reconhecimento e, desse modo, da
justiça social trazida por Fraser, em contextos de extrema pobreza, como a grande maioria dos
países do sul global, poderemos extrair daí que o reconhecimento ficará adstrito ao
reconhecimento externo, ou seja, o outro, nacionalmente identificado enquanto habitante do
norte, reconhecerá o sulista sem que daí, necessariamente, se construa uma relação de paridade.
Perceberemos, a partir de então, que o modelo de Estado Moderno Nacional, imposto
aos países de modernidade tardia, como o caso do Brasil, é fonte – a partir do momento em que
se possibilita a um determinado status social ser tido como o espelho para todas as espécies de
reconhecimento que daí partirem – das dificuldades existentes para que alcancemos, realmente,
uma justiça social. E mais, como nos adverte Pinto (2008, p. 50)
Se o Estado, tal qual está proposto, é o responsável por grande parte das injustiças, este
mesmo Estado só pode ser o executor das tarefas a ele atribuídas por Fraser, se for
transformado em agente de políticas socialmente justas. (…). É no embate entre o
sistema e seus elementos exteriores que se poderá reconstruir o Estado.
164
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seja: a questão da identidade nacional e seus desdobramentos – a relação entre o nós e o eles
surgida na busca dessa identidade nacional, como o fato da política da identidade nacional ter
representado um gigantesco massacre dos povos originários dos países periféricos, em especial,
dos latino americanos.
Os problemas aludidos – acerca da construção de uma identidade nacional – estão para o
Estado Nacional, assim como a construção do capitalismo, enquanto modelo econômico-
financeiro, está para o Estado Liberal, ou seja, iremos perceber a partir de então como a busca e a
formação de uma identidade nacional foi essencial para o surgimento do Estado enquanto
instituição moderna, em substituição ao modelo feudal de agrupamento social. E mais, como a
identidade nacional foi utilizada pelo poder soberano do Estado, com o objetivo de construir uma
sociedade separada não só entre o Nós e o Eles/Outros, mas também, entre aqueles e os
considerados inexistentes.
Nessa caminhada, buscaremos um marco para o surgimento do paradigma da
Modernidade – devemos frisar aqui que a história não é, e não deveria ser, vista de forma linear e
estanque, ou seja, acontecimentos históricos, tais como o surgimento da Modernidade, bem como
de suas instituições sociais, tais como o Estado, não possuem hora, dia, mês ou ano exatos, mas,
ao contrário, são frutos de revoluções, de décadas de avanços e retrocessos em direção ao novo –
o ano de 14926, haja vista este ano ter marcado o “descobrimento” das Américas por Colombo,
bem como a queda de Granada, última cidade muçulmana da Europa medieval.
Sob tal perspectiva, percebemos em Dussel (1994, p. 11) que Espanha e Portugal são os
primeiros modelos de Estados que surgem com a modernidade no fim do séc. XV, e mais, que a
partir do momento em que espanhóis e portugueses se lançam ao mar, as primeiras periferias vão
sendo formadas.
Há que ressaltar, antes de continuarmos, o fato de que em Dussel é possível realizar uma
análise não europeizada da história humana, em especial, acerca da origem da principal
instituição moderna: o Estado. Também perceberemos que, sua desvinculação com o
conhecimento da metrópole, nos possibilita perceber como pensadores, do cabedal de Hegel,
entendiam a Europa – reconhecida como o fim de toda e qualquer racionalidade. Assim, tudo o
6
Em que pesem as discussões históricas e doutrinárias acerca do termo inicial do Estado, enquanto instituição
moderna, adotamos nesse trabalho o mesmo entendimento de José Luiz Quadros Magalhães, conforme artigo acerca
das discussões travadas entre o culturalismo e o universalismo diante do Estado Plurinacional. MAGALHÃES, José
Luiz Quadros de. Culturalismo e Universalismo diante do Estado Plurinacional. In: Revista Mestrado em Direito
– UNIFIEO – Osasco, ano 10, nº2. 2010a. p. 201-219.
165
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A partir da construção exposta acima por Magalhães, temos que ressaltar a utilização da
religião como um dos principais mecanismos de uniformização da identidade nacional. A Santa
Inquisição, neste sentido, atuava como instrumento de afastamento daqueles tidos como
diferentes, do inexistente, de modo que nacionais só seriam os que professassem as mesmas
condutas religiosas do europeu da metrópole – condutas cristãs.
A partir desse momento pode-se retirar as primeiras conclusões dessas discussões
166
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históricas, filosóficas, políticas e culturais, quais sejam: que o Estado, enquanto instituição
moderna, surgido no final do séc. XV, é uniformizador, haja vista existir, dentro de seu sistema
jurídico-legal, um único direito de família, bem como um único direito de propriedade; é
homogenizador, afinal, a ideia de identidade nacional é necessária para a formação e permanência
do Estado sendo que, desse modo, na busca por essa identidade o europeu poderia se valer de
quaisquer meios que lhe aprouvesse.
E mais, podemos perceber, também, que o modelo econômico do capital se consolidou
como essência da economia moderna, haja vista sê-lo baseado à época, na exploração mineral das
colônias periféricas, dos povos originários enquanto instrumentos/produtos e, posteriormente, no
tráfico dos habitantes da África para as Américas (MAGALHÃES, 2012b, p. 3).
Percebemos, também, que para haver, realmente, a formação de um Estado Nacional
europeu, haveria a necessidade de se criar uma identidade nacional europeia, ou seja, a partir da
imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos,
para que assim todos reconhecessem o poder soberano do Estado.
Portanto, o Estado nacional, em seu processo de gestação, está embrionariamente ligado
à intolerância, ou seja, à negação da diversidade religiosa e cultural que, estando fora de
determinados padrões e limites estabelecidos pela cultura hegemônica da identidade nacional,
deveriam ser adequadas, ou, em muitos casos, exterminadas.
2.1 – O Nosso Presente Como Reflexo do Nosso Passado: a identidade nacional no contexto
periférico latino americano
167
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De forma diferente da Europa, onde foram construídos Estados nacionais para todos que
se enquadrassem ao comportamento religioso imposto pelos Estados, na América não se
esperava que os indígenas e negros se comportassem como iguais, era melhor que
permanecessem à margem, ou mesmo, no caso dos povos originários (chamados
indígenas pelo invasor europeu), que não existissem: milhões foram mortos.
168
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“A divisão é tal que o “outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, torna-se
inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. (...). Tudo aquilo que é produzido
como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que
a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. (...). Para além
dela há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não dialética”. (2007, p. 3-4).
Desta feita, a construção de uma identidade nacional pelo Estado Moderno Nacional
atuou como mecanismo de radicalização entre aqueles que pactuam do modelo hegemônico de
7
A palavra estética aparece aqui empregada no mesmo sentido que FABRIZ (1999) lhe dá.
8
Essa expressão está empregada no presente trabalho no mesmo sentido empregado por Agamben, ou seja,
representa o que ele chama de Homo Sacer, ou seja, a vida matável. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder
soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
169
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ser, e aqueles que sequer poderão, um dia, vir a ser reconhecidos, haja vista serem a-humanos,
inexistentes.
Diante dessa visão entre os que são iguais e aqueles que sequer virão a ser igualizados,
percebemos que a chegada do Europeu em terras americanas se pautou nessa dicotomia, ou seja,
como os habitantes originários dessas terras não pactuavam com o modo de ser europeu, bem
como não aceitavam tal ingerência – a cristianização dos povos originários da América é um dos
inúmeros exemplos – poderiam ser objeto das mais vis atrocidades – afinal para além do equador
não há pecados –, pois na condição de “zona colonial” esses povos originários eram vistos como
exemplos do que um dia se intitulou “Estado de Natureza”, ou seja, “as teorias do contrato social
dos séculos XVII e XVIII são tão importantes pelo que dizem como pelo que silenciam”
(SANTOS, 2007, p. 6-8).
O movimento de escravização dos “índios”, portanto, foi entendido como mecanismo
necessário para a conquista da metrópole sobre a colônia, pois como os habitantes dessas “novas”
terras nem sequer eram humanos, ou morreriam ou serviriam como mercadoria, instrumento de
trabalho. Neste mesmo sentido, Faoro nos aponta que:
O selvagem americano deveria ser subjugado, para se integrar da rede mercantil, da qual
Portugal era o intermediário. Sem essa providência perder-se-ia o pau-brasil, e,
sobretudo, a esperança dos metais preciosos se desvaneceria. (2001, p. 127).
170
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Portanto, em que pesem as diferenças entre a América Latina ao final do séc. XV, com a
atual América Latina, a ingerência da identidade nacional ainda está imanente em nosso meio, ou
seja, se antes ser nacional era professar os dogmas europeus, hoje ser nacional e participar
avidamente da sociedade capitalista de consumo.
A estética do poder do Estado Nacional que em sua formação se vinculava a ideia de
identidade nacional, ainda hoje separa aqueles que estão, nos dizeres de Boaventura, desse lado
na linha, daqueles que estão do outro lado, não só pela cor da pele, etnia, credo ou sexo, mas,
também, por ser, ou não, um homo consumens globalizado.
171
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
americanas, ou seja, como a imposição de um modus vivendi, ínsita ao moderno Estado Nacional,
provoca uma homogeneização social pautada em aspectos étnicos, religiosos, físicos e,
atualmente, a partir do capital, haja vista que nos dias de hoje aquele que consome e, portanto,
gera riqueza, é reconhecido enquanto cidadão, caso contrário, não é visto como pertencente ao
povo, se tornando indigno de ser escutado, de ser reconhecido.
Nosso tempo está repleto de crises, de mudanças, que vem e vão de forma tão rápidas
que logo são esquecidas e deixam de ser entendidas como mudanças. O novo de hoje,
literalmente, está cada vez mais rápido se tornando o velho do amanhã. As mudanças sociais,
culturais, filosóficas e políticas, estão transformando nosso mundo em um cenário um tanto
quanto curioso, afinal, enquanto os “novos ricos” vivem o sol escaldante de um verão promissor,
o “outro árabe”, reinventa a primavera, o “nós” euro-norte americano está imerso em um
congelante recesso econômico, que ameaça por fim a hegemonia financeira dos colonizadores.
Entretanto, devemos perseguir sempre o entendimento de que o diferente não pode mais
ser esquecido, o igual não pode ser restringido à antiga acepção europeizada de identidade
nacional analisada acima, ou seja, deveremos – se ainda não somos assim – saber conviver com
o paradoxo do nacionalismo – a dicotomia entre o Nós e o Eles – entendendo-o, a partir de
agora, nesse contexto de transformações globais, como o paradoxo do plurinacionalismo.
Acerca dessa noção de paradoxo do nacionalismo, destacamos as palavras de
Hobsbawm (1997, p.145), que o entendia como sendo o fato de, ao se formar sua própria nação, o
Estado automaticamente criar movimentos contra nacionais, ou seja, movimentos que não
reconheciam a legitimidade do Rei, advindo de uma determinada cultura, em face de todas as
outras. Os Outros, nesse contexto, eram, e ainda são, forçados a assimilar-se à cultura dominante,
esquecendo, ao poucos suas origens, ou a serem relegados a eterna inferioridade.
Neste sentido, a criação do Estado Nacional no fim do séc. XV ocasionou a origem de
um Rei, ou seja, em substituição ao regime feudal, o Rei era aquele que encarnava o espírito de
seu povo, e desse modo, não poderia se identificar como pertencente a essa ou àquela cultura
pretérita, sob o risco de não conseguir que as demais culturas lhe vissem como soberano.
Portanto, a construção de uma identidade nacional se tornou extremamente importante para que o
soberano conseguisse desenvolver seus poderes. (MAGALHÃES, 2012a, p. 7).
Diante de tais circunstâncias, vemos que a América Latina talvez seja o local de maior
diversidade étnico-cultural em nosso planeta, tendo em vista possuir representantes de várias
172
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culturas originárias, que apesar de tudo, ainda resistem, bem como de culturas orientais,
africanas, europeias e muçulmanas, ou seja, é “o Continente da diferença”.
É bem no meio deste contexto de diversidade que surge um “novo” tipo de Estado, ou
seja, uma nova formulação para a instituição Estado, com objetivo de substituir o modelo de
Estado Nacional surgido no fim séc. XV, por um novo paradigma, que seja apto a solucionar os
problemas do reconhecimento da diversidade cultural, não por meio de uma imposição cultural
de uma identidade nacional – tratada por Fraser como reificação cultural –, mas sim, através de
um diálogo entre os diferentes, da consolidação daquilo que, no contexto da teoria de Fraser, ela
chama de paridade de participação.
Para fixarmos, portanto, as primeiras visualizações desse novo modelo de Estado,
destacamos as palavras de Vieira (2012) que nos aponta, dentre as principais características das
Constituições Latino Americanas que inauguram essa nova conformação para o Estado, dentre as
quais se destacam, principalmente, as Constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009, a
principal delas, qual seja: o fato de que nesse modelo, o povo é visto como uma sociedade aberta
de sujeitos constituintes, o que, via de consequência, representa uma superação das noções de
identidade nacional construídas a partir de uma única cultura hegemônica dentro do Estado
Nacional.
Sob tais pontos, Baldi (2008) destaca que esse Estado Plurinacional possuiu três ciclos,
ou seja, como origem o constitucionalismo multicultural (1982/1988), ou seja, as primeiras
discussões acerca da insuficiência do modelo nacional em garantir direitos – de primeira, segunda
ou terceira dimensão – para aquelas pessoas que não comungassem dos ideais culturais impostos
pelo colonizador como necessários ao reconhecimento, o que objetivou, neste primeiro momento,
o surgimento de legislações que reconhecessem os direitos indígenas específicos, bem como a
noção de diversidade cultural.
Em seguida a esse modelo multicultural, deu-se a ascensão daquilo que se denominou
um constitucionalismo pluricultural (1988/2005), que trouxe o reconhecimento da existência de
sociedades multiétnicas e de Estados Pluriculturais. Exemplo de uma Constituição Pluricultural
surgida neste período, apontada pelo autor, é a Constituição da Venezuela de 1999. E mais, neste
contexto, podemos ainda destadar o surgimento da Convenção 169 da Organização Mundial do
Trabalho, reconhecendo um catálogo de direitos indígenas, afro e outros de cunho coletivo aos
indivíduos e povos cujo Estado a ratificasse – essa Convenção que foi ratificada pelo Brasil pelo
173
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9
“En la Constitución colombiana aparecen, aún de forma imperfecta pero claramente reconocibles, algunos rasgos
novedosos e diferenciados con respecto al constitucionalismo clásico, que más tarde impregnarán y serán
desarrollados por los procesos constituyntes ecuatoriano de 1998, venezolano de 1999, boliviano del 2006-2009 y, de
nuevo, Ecuador en el 2007-2008. (...). La Constitución colombiana de 1991 constituye, por lo tanto, el punto de
inicio del nuevo constitucionalismo en el continente” (Tradução nossa).
174
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Há que ressaltar, neste ponto, que esse novo paradigma é diferente, em termos
estruturais, por exemplo, de Estados reconhecidos como regionais, tais como: a Espanha e a
Itália. Neste sentido, nos demonstra Magalhães (2010a, p. 202) que
175
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pela dominação cultural, mas pelo que se tem de diferente, ou seja, construirão um Estado
enquanto seres reconhecidos, chamados ao diálogo social de forma paritária, sem privilégios, haja
vista todos nós, segundo a constituição bolivariana, sermos seres pertencentes a Pacha Mama.
Há que lembrarmos, também, que a construção do Estado Nacional na América Latina
oriunda dos movimentos de independência dos vários Estados, dentre eles o Brasil, não fez cessar
o sentimento de ser colonizado, inerente ao latino americano, ou seja, depois dos movimentos
pelas independências na América Latina, o colonialismo continuou, só que de outros meios, tais
como: através da ingerência do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, em resumo,
através do mercado global transnacional pautado economicamente pelo sistema capitalista
consumista (SANTOS, 2009, p. 198).
Portanto, no âmbito desse novo Estado Plurinacional, surgido na primeira década deste
século, será priorizado um modelo de institucionalização calcado numa democracia participativa,
ou seja, os governos não serão compostos apenas de representantes das camadas sociais
dominantes, pois serão, sobretudo, integrados por representantes de diversas culturas, inclusive a
indígena, tudo isso a partir de um processo eminentemente participativo e dialógico.
A partir desses fatos, Grijalva (2008, p. 50-51) ao, também, analisar a formação desse
novo modelo plurinacional surgido na América latina, destaca que:
De outro lado, Sánchez Parga (2008) analisando as diretrizes desse novo Estado
plurinacional, tece-lhes algumas críticas, ao partir do entendimento de um existente exagero,
nesse novo paradigma, dos poderes do Executivo, haja vista ser, segundo ele, a única forma, de se
consubstanciar as propostas oriundas dessa matriz.
Neste ponto, o mencionado autor coloca que não será uma simples alteração
10
“El constitucionalismo plurinacionales o debe ser um nuevo tipo de constitucionalismo basado en relaciones
interculturales igualitárias que redefinan y reinterpreten los derechos constitucionales e reestruturen la
institucionalidad proveniente del Estado Nacional. El Estado plurinacional no es o no debe reducirse a una
Constitución que incluye um reconocimiento puramente culturalista, (...), sino um sistema de foros de deliberación
intercultural auténticamente democrática” (Tradução nossa).
176
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constitucional, inaugurando o Estado Plurinacional e uma nova matriz constitucional, que alterará
a realidade dos povos e culturas excluídas, tendo em vista que para ele “(...), é preciso reconhecer
que é a sociedade que faz a Constituição e não a Constituição que faz a sociedade11” (SÁNCHEZ
PARGA, 2008, p. 82).
Há, também, os apontamentos trazidos por Kraus (2012, p. 60) acerca dos problemas
para se efetivar a democracia nesses novos Estados Plurinacionais, ou seja, para ele o potencial
de conflitos advindos de um alto nível de pluralismo sub cultural – existência de várias culturas
menores dentro de uma cultura estatal – afetará de forma negativa a capacidade de integração
política de regimes plurinacionais.
Entretanto, em que pesem as referidas críticas, mesmo que haja um reforço dos poderes
do Executivo, em um primeiro momento, com objetivo de se concretizar os direitos e garantias
dispostos na Constituição, o novo constitucionalismo latino americano possibilita uma maior e
mais ativa participação da sociedade, ou seja, o povo estará mais presente nas decisões de seu
governo, pois dentro desse governo, estarão representantes de várias culturas.
O Estado moderno Nacional de matiz capitalista, nascido da intolerância com aqueles
que não partilhavam da identidade nacional, dependente. em seu desenvolvimento. de políticas de
intolerância, exploratórias, uniformizadoras, já não suporta os anseios de um mundo interconecto,
uma aldeia global, por onde os direitos humanos necessitam ser reconstruídos, não como
mecanismos de uniformização, imposição cultural do poder enquanto estética do belo, mas como
mecanismo de integração cultural, enquanto mecanismo de reconhecimento.
Com a expansão de uma globalização virtual, as culturas excluídas da lógica do Estado
Moderno, capitalista, voltado para a uniformização pela igualdade de crenças – atualmente o
consumo –, houve o surgimento de um novo modelo de Estado – Plurinacional – cujo fim é, não
só o reconhecimento de direitos, mas a salvaguarda de meios que garantam o surgimento de
culturas encobertas pelo Estado Nacional, ou seja, que a identidade nacional seja forjada a partir
da diferença entre os vários Eu’s de uma mesma sociedade, Eu's esses, que sejam reconhecidos e
que possam participar, igualmente, do discurso social, que recebam, em redistribuição,
mecanismos que lhes possibilitem inaugurar-se enquanto sujeito de direitos.
Como nos mostra Grijalva, (2008, p. 52) acerca de como deveremos pautar a condução
11
“(...), es preciso reconhecer que es la sociedade la que hace La Constitución y no La Constitución que hace la
sociedade” (Tradução nossa).
177
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desse modelo constitucional de Estado latino americano, chegamos a conclusão de que nesse
paradigma que surge, necessariamente, deveremos ser: Dialógicos – pois o novo modelo requer
comunicação e deliberações permanentes entre as culturas; Concretizantes – pois deveremos
buscar soluções específicas, e em tempo, para situações individuais e coletivas; e Garantistas –
haja vista essas soluções surgirem por meio de deliberações, cujo marco de compreensão é o
reconhecimento dos valores constitucionais institucionalizados pelos Direitos Humanos.
Neste mesmo sentido Santos (2007, p. 26-27) já nos alertava acerca da necessidade de
refundação do Estado, ou seja, de uma nova construção estatal em buscasse resgatar uma parcela
do povo esquecida há mais de 500 anos, o que pode ser justificado por inúmeros fatores, sendo o
principal deles o fato de enfrentamos hoje um grande distanciamento entre a teoria política e a
prática política
O Estado plurinacional e, consequentemente, o novo constitucionalismo latino
americano que lhe é inerente, nos termos trazidos acima, lançam uma nova conotação à
democracia, ou seja, estatui o que Santos (2007, p. 47) denomina de Demodiversidade, uma
democracia onde a diversidade cultural tem voz, onde não ser igual é ser normal, onde não
pertencer à cultura reificada, não é significado de não reconhecimento, de injustiça social.
Temos sempre que nos lembrar que o diverso não, necessariamente, será desunido, bem
como o que aparentemente está unido, não, necessariamente, será uniforme, ou seja, “temos o
direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, mas, temos o direito de ser diferentes,
quando a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 2011, p. 462).
O Estado Plurinacional, assim, não é sinônimo de não “Estado” enquanto instituição de
organização social, mas, ao contrário, é um resgate do Outro, do esquecido, daquele não
reconhecido, daquele inexistente aos olhos do poder, do povo ou do indivíduo, é um rompimento
com uma série de instituições e seus significados modernos – Estado, Nação, Identidade
Nacional, Soberania – dentre as quais, está a democracia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
178
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atualidade, seja por uma visão social, política ou filosófica, concluindo, a partir de suas
premissas, pela existência de elementos do Estado Nacional que impedem a efetivação de uma
justiça social – que na visão de Fraser é bidimensional, agrupando não só o reconhecimento mas,
também, a redistribuição –, visualizamos a necessidade de amoldarmos esse Estado, enquanto
ente regulador da vida em sociedade, às questões de nosso tempo, que já não são resolvidas pela
estrutura organizacional do Estado em que vivemos.
E mais, após termos apresentado, também, na segunda parte deste trabalho, uma
reconstrução – mesmo que sucinta – dos elementos essenciais utilizados para a formação do
Estado Moderno Nacional, dentre os quais destacamos a identidade nacional, demonstrando,
inclusive, como se deu seu surgimento no contexto latino americano, bem como os elementos
caracterizadores do novo modelo de Estado Plurinacional, e o fato desse modelo responder aos
problemas apresentados atualmente, segundo Fraser, pelo moderno Estado Nacional, podemos
então trazer nossas conclusões.
Conforme destacamos acima, enquanto seres humanos que somos, sempre atuaremos na
tentativa de sermos reconhecidos enquanto entes sociais, ou seja, como sujeitos capazes de
participar ativamente de uma sociedade.
Nesse contexto de busca por reconhecimento, de busca, segundo Fraser, por justiça
social, podemos perceber que é possível estabelecermos uma relação produtiva entre aquilo que,
em linhas gerais, Nancy Fraser nos traz acerca dessa problemática, àquilo que o modelo de
Estado Plurinacional nos traz, buscando, a partir daí, proporcionar a todos, não só o
reconhecimento em relação a cultura dominante, mas, também, uma participação paritária da vida
em sociedade, sem que se exclua ou extermine determinadas culturas tidas como “submissas”
pelo simples fato de serem diferentes daquilo que temos posto em nós, como sendo a identidade a
ser buscada.
Portanto, em que pesem as divergências semânticas, doutrinárias e de perspectiva,
podemos perceber que, ao analisarmos conjuntamente os apontamentos de Nancy Fraser e os
contornos do Estado Plurinacional, em relação ao problema da busca pelo reconhecimento, da
igualdade de participação na vida em sociedade, da redistribuição de bens e valores que possam
nos possibilitar o mínimo necessário para que alcancemos tal participação, ou seja, o problema da
injustiça social, percebemos que as propostas não são tão distantes assim.
Precisamos, então, buscarmos um “novo” Estado, um Estado que nos possibilite não
179
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uma identidade, mas sim, um reconhecimento nacional, que nos proporcione mecanismos de
resgate cultural e que não seja pautado na palavra de poucos, mas, ao contrário, seja o reflexo da
razão de muitos, ou seja, um Estado democraticamente Plurinacional.
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182
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RESUMO
É inescusável afirmar-se que a América Latina sempre foi uma região de contrastes sociais,
econômicos e culturais. Entretanto, não se pode perder de vista que, nessa mesma região, os
processos de tomada de decisão se apresentam, por um lado, de forma uniformizada, e, por
outro, dotados de características próprias, como se observa nos períodos do paternalismo
getulista brasileiro e peronista argentino, da ditadura militar brasileira e da ditadura Pinochet
no Chile; não se podendo, outrossim, desconsiderar, as especificidades do processo de
redemocratização desses países. Com efeito, tem-se, contemporaneamente, a formação e o
desenvolvimento de um presidencialismo de coalizão no Brasil e no Chile com características
de clivagem institucional, cuja influência dos financiadores de campanha é ainda mais
permeável por setores que possuem interesse em obter ou continuar obtendo alguma
vantagem no esteio da máquina pública. O presente trabalho busca comparar esse aspecto e
relacioná-lo à forma como as empresas, na condição de financiadoras de campanha, buscam
influenciar no processo de tomada de decisões sobre a implantação dos grandes projetos de
energia convencional em biomas estratégicos, como as hidrelétricas na região da Amazônia
brasileira e na Patagônia chilena. Para isso, adota-se a teoria do discurso como marco teórico,
suplementado pela visão externa da teoria dos sistemas. O método comparado é utilizado na
abordagem do tema em análise, considerando-se de forma rígida os aspectos temporais e
espaciais de suas constatações.
________
* Mestre e doutor em Direito Constitucional
** Especialista em Direito
183
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ABSTRACT
Is indispensable said that Latin America has always been a region of social, economic and
cultural contrasts. However, we cannot lose sight of the fact that, in this same region, the
decision-making procedures are, on the one hand, standardized form, and, on the other, with
its own characteristics, as noted in the paternalist periods of Brazilian getulism and Argentine
Peronism, the Brazilian military dictatorship and Pinochet's dictatorship in Chile; cannot, in
addition, disregard, the specifics of the process of democratization in these countries. Indeed,
it has, at the same time, the formation and the development of a coalition presidentialism in
Brazil and in Chile with cleavage institutional characteristics, whose campaign donor
influence is even more permeable for sectors which have interest in get or continue getting
some advantage in the mainstay of public machine. The present paper seeks to compare this
aspect and relate it to how companies, funders, seek influence in decision-making on the
deployment of large conventional power projects in strategic, biomes as the hydroelectric
plants in the region of the Brazilian Amazon and Chilean Patagonia. To this end, it adopts the
theory of speech as theoretical framework, supplemented by external vision of systems
theory. The comparative method is used in the approach of the subject under review,
considering rigid temporal and spatial aspects of their findings.
01 INTRODUÇÃO
184
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1
Juan Linz, nos anos noventa, de forma precursora, criticou funcionalmente o sistema presidencialista,
ressaltando que dupla legitimidade dos poderes, originada pela eleição independente do presidente e do
Congresso ao invés de favorecer os freios e contrapesos, obstariam à governabilidade, principalmente nos casos
em que o Presidente não contasse com maioria no parlamento. Alegava, ainda, o problema trazido pelo fato de
que o Parlamento não dispõe de muitos mecanismos para interromper o mandato presidencial, em caso de
governo ineficiente, e convocar de novas eleições. Dessa forma, já que chefe do Executivo não precisa de apoio
partidário no congresso para se manter no poder, haveria incentivos para a formação de partidos políticos fracos
e pouco preocupados em fornecer sustentação aos chefes do Executivo, os quais, por sua vez, acabam atuando de
maneira personalizada. (LINZ; VALENZUELA, 1994, p. 56)
185
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jurídica). Parece não haver como desvincular as duas perspectivas, principalmente no tocante
às forças políticas e suas agremiações partidárias.
O caciquismo da América espanhola, ou o coronelismo na América portuguesa, é o
fenômeno básico que dirigiu toda a vida política da América Latina no século XIX.
Hoje em dia decadente, o caciquismo deixou, no entanto, importantes
sobrevivências na facies arcaica da sociedade dualista (LAMBERT, 1969, p. 200).
Tanto assim que o atual “chavismo” (sem Hugo Chavez2) na Venezuela não é um
fenômeno historicamente isolado, mas a personificação da política em escala de massas e
resultado da crise das tradicionais instituições corporativas e políticas de representação.
No passado, mesmo recente, o caudilhismo triunfou tão freqüentemente que para
muitos parece ser a característica política mais relevante da América Latina. Basta
recordar o caso da Venezuela, quase caricatural, na verdade: a partir de 1830, data
da dissolução da Grande Colômbia, que abre a existência nacional da Venezuela, até
1935, os caudilhos se sucederam um após o outro. Paez, que domina o país de 1830
a 1846, é substituído pelos irmãos Monagas (1846-1861), depois, novamente, Paez
(1861-1863), Gusmán Blanco (1870-1887), Crespo (1887-1898), Castro (1899-
1908) e, finalmente, Gómez (1908-1935). No decorrer de um século, o regime
caudilhista não foi interrompido, senão durante os sete anos de 1863-1870, que
foram, porém, sete anos de guerra civil. (LAMBERT, 1969, p. 202).
No entanto, isso não tem nada de natural ou naturalizado, mas é produto de uma
construção social embrulhada e engessada, que estimula estrategicamente os destinatários a
percebê-la como se fosse sempre assim e que não se necessita de mudança. A personificação
da unidade da vontade social por meio de lideranças plebiscitárias leva em consideração os
suportes técnicos oferecidos pela reformulação da representação política, conforme
desvendou Luhmann (1998, p. 98):
Em razão das críticas usualmente feitas às concepções de causalidade e de
liberdade, não deveria ser difícil reformular as diretrizes de observação ocultas
nesses conceitos. Buscamos, assim, conceitos que possam orientar as pesquisas
histórica e regionalmente comparadas, e cuja expressividade se encontre acima da
dos conceitos de "cultura" e de "mentalidade". Parte-se da suposição de que uma
revisão conceptual não apenas se adaptará melhor ao saber já disponível no que toca
às concepções acerca da causalidade e da liberdade, como também, ao mesmo
tempo, fornecerá melhores pontos de partida para as pesquisas comparadas, já que
partiria do fato de a causalidade não ser simplesmente uma construção livremente
oscilante que pudesse avaliar o verdadeiro e o falso ou o funcional e o não-
funcional, e de a liberdade não ser apenas um postulado normativo no sentido de,
como se diz, a emancipação ser a sua melhor parte, mas que, em ambos os casos,
tratar-se-ia de construções cuja aplicação tem que ser apreendida sob condições
históricas e regionais específicas e que dificilmente serão revistas no caso de prova.
Pois, como já se comprovou, dificilmente se consegue expurgar essas concepções
quando não são oferecidas possibilidades bem melhores e mais concretas.
Com efeito, além desse presidencialismo diferenciado3, Brasil e Chile ainda possuem
um sistema multipartidário, produto de um gradual - e não linear - processo político ainda
2
Presidente da Venezuela eleito em 1998 e reeleito em 2000 e 2006, o qual faleceu em 05 de março de 2013.
3
Importa salientar que nenhum sistema político é puro e muito menos perfeito como lembra Sartori (2006, pp.
135 e 147), ao analisar o semipresidencialismo francês, “Vimos que tanto o presidencialismo quanto o
parlamentarismo podem falhar, especialmente nas suas formas puras. A partir desses dois extremos, somos
levados a buscar uma solução ‘mista’: uma modalidade de organização política que se situe entre os dois e se
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arraigado na questão desse voto pessoal, seja nos cargos de eleição majoritária, seja nos
cargos de eleição proporcional. No Chile, esse aspecto é observado em razão do sistema
eleitoral ser binominal com lista aberta e “prêmio” para a segunda lista (imposto por Pinochet
após a derrota no plebiscito de 1988), incentivando os partidos a disputarem de forma
coligada as eleições (MELO; NUNES, 2008), como também estimula a competição entre as
agremiações dentro de uma mesma coalizão. E, consequentemente, o sistema acaba por
estimular a identificação com o candidato e não com o partido.
Chilean democracy is based on a presidential regime, typical in Latin
America. Under the constitution of 1980, inherited from a dictatorship and still in
place despite numerous reforms reinforcing the powers of the president. Executive
power is directed by the president, elected for four years without the possibility
of immediate reelection. Facing him is a bicameral legislature composed of a Senate
whose 38 members are electedfor 8 years and indefinitely renewable, within
binomial circunscriptions, and a 120 member Chamber of Deputies whose 120
members are elected for 4 years, also for renewable terms, and also in binominal
districts. (JOIGNANT, 2008, p. 47).
No caso brasileiro, a combinação do sistema de representação proporcional e de lista
aberta - dado o arranjo federativo descentralizado - também promove a personalização do
voto, correndo-se o risco de estimular a indisciplina dentro da agremiação partidária 4,
dificuldade dos instrumentos de controle do comportamento legislativo de suas bancadas e
estímulo aos parlamentares a tratarem de políticas localistas (“paroquiais”) em detrimento das
de cunho nacional5, Isso, conforme Santos Gracco (2006), principalmente devido ao fim da
“verticalização partidária”6, não mais obrigando a vinculação entre as candidaturas em âmbito
inspire em ambos [...] Levando em conta o que segue, declaro que um sistema político é semipresidencialista se
as seguintes propriedades ou características lhe puderem ser aplicadas conjuntamente: a) Chefe de Estado
(Presidente) é eleito por votação popular – de forma direta ou indireta -, com um mandato determinado; b)o
Chefe de Estado compartilha o Poder Executivo com um Primeiro Ministro, em uma estrutura dupla de
autoridade com os três seguintes critérios de definição: b.1) embora independente do Parlamento, o Presidente
não tem o direito de governar sozinho ou diretamente, e, portanto, sua vontade deve ser canalizada e processada
pelo seu governo; b.2) inversamente, o Primeiro Ministro e seu gabinete independem do Presidente, na medida
em que dependem do Parlamento, estão sujeitos à confiança e/à não confiança parlamentar pelo que precisam de
apoio da maioria do Parlamento; b.3) a estrutura dupla de autoridade do semipresidencialismo permite diferentes
equilíbrios e a oscilação de prevalências do poder dentro do Executivo, estritamente sobre a condição de que
subsista a ‘autonomia potencial’ de cada componente do Executivo.
4
Dado à autonomia dos candidatos em relação à suas agremiações, mesmo após a histórica decisão do Supremo
Tribunal Federal estabelecendo que a partir de 27.03.2007 considera-se que o mandado pertence ao partido e não
a seu membro, salvo justa causa. (SANTOS GRACCO, 2008).
5
Embora alguns autores têm defendido que esse caráter tem sido cada vez mais diluído: “[...] a investigação da
conexão eleitoral unicamente como função da relação entre políticos e cidadãos (eleitores) não contempla toda a
complexidade do processo legislativo, já que a representação se faz não só do ponto de vista geográfico, mas
também dos interesses organizados. Assim, grupos de interesse – sindicatos, associações ruralistas etc. – podem
ter influência em diversos tipos de município, viabilizando ou dificultando campanhas. A nosso ver, com relação
a esse argumento, tornar-se-ia mais interessante para o estudo da dinâmica legislativa brasileira obter uma
perspectiva analítica focada sobre os grupos de interesse, as atividades de lobby e a influência dos setores
organizados da sociedade. Em outras palavras, para além da relação direta entre deputados e eleitores, é preciso
considerar a policy community, a issue network ou os iron-triangles.” (RICCI; LEMOS, 2004).
6
Vide Emenda Constitucional nº 52, que alterou o art. 17, parágrafo 1º, da Constituição brasileira (BRASIL,
2006).
187
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7
Novas democracias da m r ica atina introduziram ou mantiveram medidas que estendem os poderes
legislativos emergenciais do executivo. Hoje, poderes equivalentes aos das medidas provis rias (MPs) instituídas
pela Constituicão brasileira de 19 vigoram em cinco outros países da região: Col mbia, rgentina, Chile, Peru
e Equador. Essas medidas são usualmente vistas como mais uma característica do presidencialismo latino-
americano, um resíduo autoritário herdado pelas novas democracias. (FIGUEREDO; LIMOGI, 1997, p. 127).
8
Como foi a votação do novo Código Florestal brasileiro em 2012 e nos vetos sobre a distribuição federativa dos
Royalties em 2013.
188
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A necessidade energética do presente século não pode ser resolvida como ocorreu no
século passado durante o regime militar brasileiro e a ditadura chilena. Isso deve ser
ressaltado por dois motivos. O primeiro relaciona-se com a natureza do direito em questão:
direito indisponível e transindividual, cujos afetados são indeterminados por definição e
ligados por circunstâncias fáticas. O segundo motivo questiona a própria plataforma
9
Neste momento não há como não remontar-se ao escândalo do “mensalão”, maior caso de corrupção já julgado
pelo Supremo Tribunal Federal (Ação Penal nº 470) que consistiu, de forma sucinta, em fornecimento de
dinheiro a parlamentares (compra de votos) em troca de apoio ao Executivo, nos anos de 2003 a 2005, durante o
governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, do PT (Partido dos Trabalhadores), ainda que sem evidências
empíricas da extensão de seus efeitos no resultado de votações como a reforma da previdência (EC 41/2003).
10
termo “ utonomização” foi cunhado da teoria dos sistemas de Ni las uhmann, no sentido de classificar a
desvinculação dos sistemas funcionais do direito, da política e da economia como outrora fundantes da
diferenciação social. [ ]o deslocamento da representação das instâncias mediadoras clássicas para arenas
plurais, tendo em vista a sua autonomização e os abusos em nome dos representados, interfere na qualidade do
“sentimento de representação” e a consequente indisponibilidade do mandado, seja pela configuração do
estelionato eleitoral da representação, cujo compromisso está viciado na origem, seja pela apropriação ind b ita
da soberania popular em que o compromisso inicial do representante de esforçar-se para criar ou reforçar
expectativas de comportamento e práticas institucionais de consideração p blica desviado ap s a assunção do
mandato. (SANTOS GRACCO, 2008, p. 19)
190
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energética dos dois países: não é mais concebível, diante dos novos padrões de produção e
consumo relacionados aos limites do planeta e o reconhecimento de direito de populações
tradicionais, implementarem-se projetos que exigem dos recursos naturais o que eles não
podem mais oferecer, sem resvalar-se na sua capacidade de resiliência.
Assim, o que se demonstra a seguir é o desacerto da decisão brasileira e chilena de
construir grandes projetos hidrelétricos em biomas vulneráveis, pois mesmo sendo uma fonte
de energia limpa, a energia hidrelétrica é considerada convencional por exigir o alagamento
de grandes extensões dos territórios dos países e ainda contribuir para o aumento da emissão
de gases que influenciam na frequência de eventos naturais extremos (mudanças climáticas),
ainda que mitigados pelo novo conceito de usina-plataforma11. Além disso, preocupa-se com
o procedimento de legitimação (e não de legitimidade) dentro do arcabouço institucional que
os tenha viabilizado. Isso porque, conforme será demonstrado, é cediço que os fragmentários
presidencialismos de coalizão brasileiro e chileno permitem o avanço de empreendimentos
ligados diretamente aos financiadores de campanhas (empreiteiras e mineradoras) sobre
biomas sensíveis e até agora não explorados, sem considerar efetivamente outras alternativas
técnicas e locacionais.
Com efeito, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL divulgou recentemente
o Relatório de Acompanhamento de Estudos e Projetos de Usinas Hidrelétricas (BRASIL,
2013), demonstrando a existência de 144 (cento e quarenta e quatro) projetos hidrelétricos na
região da Amazônia brasileira, entre grandes hidrelétricas e pequenas centrais hidrelétricas
(PCH's com potencial abaixo de 30 megawatts). Esses projetos envolvem os Estados do Acre,
Amazonas, Rondônia, Pará, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão, impactando
significativamente as bacias dos rios envolvidos.
No Estado do Amazonas, destacam-se os projetos das empresas Voltalia Energia do
Brasil e a Energias Renováveis S/A (ERSA) na área do rio Canumã e seu afluente, rio Acari,
na calha do Madeira, não esclarecendo o referido relatório sobre seu potencial energético
esperado. Na fronteira entre os Estado do Acre e Amazonas existe outro empreendimento
localizado na região do rio Juruá e seu afluente, rio Moa. Nos Estados do Pará e Tocantins,
atingindo os municípios de Palestina do Pará/PA, Piçarra/PA, São Geraldo do Araguaia/PA,
Ananás/TO, Aragominas/TO, Araguaina/TO, Riachinho/TO e Xambioá/TO, tem-se o projeto
hidrelétrico de Santa Isabel, localizado na região do rio Araguaia, no Pará, retomado pelo
11
Trata-se da utilização do conceito de plataforma de petróleo na construção das hidrelétricas de modo a reduzir
o desmatamento para fins de canteiro de obras, uma vez que os trabalhadores construíram o empreendimento
pela logística de deslocamentos de equipamentos e materiais por helicópteros.
191
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Consórcio GESAI (Geração Santa Isabel, integrado pelas mineradoras Vale, Alcoa Alumínio
S/A, BHP Billiton Metais S/A, Votorantim Cimentos Ltda e a empreiteira Camargo Corrêa
S/A). Esse empreendimento ficou suspenso por alguns anos por encontrar-se em área
considerada de alta prioridade para a proteção da biodiversidade, além de afetar diretamente
131 cavidades naturais. Com a previsão de cobrir 250 km² com seu reservatório, estima-se
gerar 1080 megawatts. Além dessa, tem-se a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, integrante
do Complexo do Tapajós12, com o reservatório de 722,25 km² e estimativa de gerar 6.133
megawatts. No Estado de Rondônia tem-se a construção da hidrelétrica de Jirau que aproveita
o potencial energético do Rio Madeira com o reservatório planejado para de 258 km2 e
estimativa de gerar 3.750 megawatts, de responsabilidade da Energia Sustentável do Brasil
(ESBR, integrada pelas empresas Suez Energy, Eletrosul e Chesf). Juntamente com esse
empreendimento, tem-se a hidrelétrica de Santo Antônio de responsabilidade do consórcio
Madeira Energia, integrado pela Odebrech e Furnas Centrais Elétricas S/A, formando-se o
denominado Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, sendo que esse tem a estimativa de gerar
3.150 megawatts com um reservatório de 271 km2 (BRASIL, 2011).
Mas, sem sombra de dúvidas, o mais avançado e que mais tem ganhado notoriedade é
o projeto de da hidrelétrica de Belo Monte13, no Estado do Pará, com a previsão estimada de
gerar 11.233 megawatts com um reservatório de 516 Km2, instalado no Rio Xingu. Esse
empreendimento está sob a responsabilidade do Consórcio Norte Energia, integrado pela
Chesf, Vale, Queiroz Galvão, J Malucelli, Cetenco Engenharia, Mendes Júnior Trading
Engenharia, Contern Construções e Comércio, Serveng-Civilsan e Galvão Engenharia.
Nota-se que as falhas nos estudos de impacto ambiental específicos de cada
empreendimento - quando deveria ser estratégico de modo a envolver toda a região - e sua
12
Na microrregião estão previstas 07 hidrelétricas: São Luiz do Tapajós (6133 MW), Jatobá (2338 MW), e
Chocorão (3336 MW) no rio Tapajós, e Cachoeira do Caí (802 MW), Jamanxim (881 MW), Cachoeira dos Patos
(528 MW), e Jardim do Ouro (227 MW) no rio Jamanxim. O total da capacidade instalado seria de 14.245 MW.
[...] O custo das usinas seria R$ 40,9 bilhões/US$ 20,76 bilhões. A mais cara seria São Luiz (US$ 9,2 bi), daí
vai Jatoba ($4 bi), Chocorão ($4,3 bi), Cachoeira do Caí ($1,02 bi), Jamanxim ($984 mi), Cachoeira dos Patos
($751 mi), e Jardim do Ouro ($500 mi) (SWITKES, 2009, grifo nosso).
13
Belo Monte será hidrelétrica menos produtiva e mais cara, dizem técnicos. Eles preveem que insegurança
jurídica e ambiental vão complicar usina. Leilão definiu grupo que tocará obra, formado por Chesf e
construtoras. A hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, Pará, será a usina que produzirá menos energia,
proporcionalmente à capacidade de produção, e que terá maior custo para os investidores na comparação com
outros empreendimentos de grande porte, em razão da intensidade dos impactos sociais e ambientais na região
[...].O governo estima cerca de R$ 3 bilhões dos R$ 19 bilhões totais previstos para a construção. Especulações
dão conta de que a obra total custe até R$ 30 bilhões."A usina está em um local longe e o primeiro problema é
o acesso. Entra em território que não é reserva indígena, mas tem população indígena. Se conhece o terreno
olhando de cima", acrescentou. Para o engenheiro, há muita coisa na construção da hidrelétrica que não se pode
prever. "A complexidade disso é exatamente pelo porte da obra. Os problemas serão de magnitude e
consequencias do porte da obra", afirma Areco (OLIVEIRA e JUSTE, 2010, grifo nosso).
192
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14
Vide art. 225, parágrafo 1º, inciso IV, da Constituição da República (BRASIL, 1988).
15
Vide Resolução nº 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (BRASIL, 1997).
16
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 609.748/2011 - Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal
entendeu que a teoria do fato consumado não pode ser invocada para conceder direito inexistente sob a alegação
de consolidação da situação fática pelo decurso do tempo .
17
Das dez maiores financiadoras de campanhas políticas, seis são empreiteiras. O valor fornecido por
empreiteiras nessas eleições <2012> é de R$54 milhões, de acordo com os documentos emitidos no fim do
último mês, o que representa 75% do total doado para as campanhas. Na lista das dez maiores empresas que
fomentaram as candidaturas, apenas quatro não são construtoras: dois bancos (Alvorada e BMG), um frigorífico
(JBS) e uma empresa de exportação e importação (Coimbra). A principal financiadora é a construtora
Andrade Gutierrez, que doou R$23.085 milhões, seguida pela OAS, com R$21.260 milhões distribuídos
entre diversos partidos. As outras empreiteiras são Queiroz Galvão, Cristiani-Nielsen, Odebretch, Carvalho
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
Quadro 1: Ranking dos maiores doadores para a campanha de Dilma Rousseff em 2010.
Fonte: Bramatti e Toledo (2010).
Hoskent e Camargo Correa. Os partidos, comitês e candidatos têm obrigação legal de prestar contas a respeito
da campanha.A grande contribuição das empreiteiras não é novidade no país. Desde que o marketing começou a
fazer parte do dia-a-dia dos candidatos, as campanhas carecem de montantes de dinheiro para atrair votos. O
financiamento é fruto de doações, já que por instrução da lei nenhum incentivo pode vir dos cofres públicos. A
maior parte do dinheiro acumulado vem de empresas. Muitas dessas empresas fecham contratos com o governo,
em sua maioria, grandes empreiteiras. (CAIRES, 2012, grifos nossos).
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
Quadro 2: Quadro geral dos doadores para a campanha de Dilma Rousseff em 2010, por setor.
Fonte: Bramatti e Toledo (2010).
Quadro 3: Quadro comparativo de valores doados pelas empresas financiadoras da campanha de Dilma Rousseff
em 2010 x valores recebidos pelas mesmas pelo governo eleito.
Fonte: Toledo (2010).
Diante disso fica patente como a sustentação financeira das campanhas tem relação
direta com manutenção de projetos de energia convencional de grande impacto na amazônia
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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
brasileira. De outro lado, demonstra também como a agenda do poder Executivo sobrepõe-se
ao poder Legislativo, cujos financiamentos também não destoam das eleições majoritárias:
[...] como o sistema eleitoral brasileiro se alimenta de práticas clientelistas, já
fartamente indicadas pela literatura, os parlamentares buscam apoio no setor
privado como forma de capitalizar recursos, tanto para as campanhas quanto
para a produção de políticas de interesse localizados, que possam maximizar as
chances de eleição. Além do mais, em um sistema altamente competitivo como o
brasileiro, recusar a doação do setor privado aumenta os riscos deste capital buscar
apoio na oposição, aumentando as incertezas do sucesso eleitoral. Por esta razão o
apoio do capital privado ocorre com todos os candidatos de todas as regiões do Brasil,
independentemente do grau de desenvolvimento sócio-econômico do território.
(RIBEIRO; SOUZA, 2011, p. 16).
Por seu turno, necessário agora verificar como esse mosaico de interesses tem sido
trabalhado no âmbito do presidencialismo de coalizão chileno.
196
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
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“[...] tanto o agir comunicativo quanto o agir estratégico partem do pressuposto do participante, e não mais do
observador. Ao passo que o primeiro é uma ação voltada para o entendimento e reconhecimento mútuo, o
segundo, embora não seja lingüístico, não pode ser considerado instrumental; visto que pressupõe o agir
comunicativo, podendo ser convertido em ação instrumentalizante, que, ao ter a linguagem como mero meio de
comunicação, conserva singular o plano de ação do altere do ego. Assim, no primeiro nível de idealização
(idealidade da generalidade dos conceitos e significados – semântica), os participantes da interação têm de
atribuir-se reciprocamente a consciência de seus atos; ou seja, têm de supor que eles são capazes de orientar seu
agir por pretensões de validade. Do contrário, tantos os participantes filósofos (perspectiva interna) quanto os
observadores sociológicos (perspectiva interna), enquanto virtuais participantes, passam do enfoque
performativo (Peirce, assumido por Habermas) para o estratégico (finalístico/objetivador). [...] Essa
universalidade da aceitabilidade racional mantém a tensão pela não ocorrência de síntese hegeliana de todos os
contextos, como o ocorreu na representação do Estado liberal (excessos do Poder Legislativo) e na
representação do Estado social (excessos do Poder Executivo). No mais, somente a aceitação obrigatória da
contingência gerada por essa tensão permanente pode fazer das pretensões de validade caminhos para uma
prática cotidiana ligada ao contexto (concepção principiológica da linguagem) da representação política
institucionalmente aceita como uma construção.” (S NT S G R CC , 200 , p. 64-65).
197
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
19
El 11 de diciembre de 2005 se realizaron elecciones presidenciales y parlamentarias en todo el país y un tema
que en estos días cobra realce en la discusión pública es el del financiamiento de campañas políticas, tanto por
parte de privados (personas naturales, empresas y organizaciones sociales) como del Fisco. Para normar este
crítico aspecto del proceso electoral existe una clara legislación al respecto. Las donaciones monetarias a
partidos políticos están normadas principalmente por la Ley N° 19.884 sobre transparencia, límite y control del
gasto electoral, y por la Ley N° 19.885, que norma el buen uso de donaciones de personas jurídicas que
originan beneficios tributarios. En la Ley N°19.884 hay que hacer notar dos aspectos. El primero es que fija un
límite de dinero que una persona natural o jurídica puede donar a campañas políticas en una misma elección,
sea a uno o varios partidos, sea a uno o varios candidatos. Los límites son: 1.000 UF para cada candidato a
elecciones municipales.1.250 UF para cada candidato al Congreso Nacional. 2.000 UF para cada candidato a
la Presidencia de la República. 10.000 UF para cualquier conjunto de candidatos.10.000 UF para un mismo
partido político. El segundo aspecto es que se crean tres mecanismos para efectuar donaciones que buscan
hacer más transparentes los procesos y evitar los tráficos de influencias y los cobros de favores
(FINANCIAMIENTO, 2005).
20
Los que conocen la cocina de Apoquindo 3000 –el cuartel general de las empresas del ex- senador, ubicado al
frente de su comando “oficial”– sitúan al tope de esta pirámide a su íntimo amigo y socio, el empresario José
Cox Donoso. El director de la administradora de fondos de inversiones CMB Prime (que tiene oficinas apenas
unos pisos más abajo que el candidato) es quien ha liderado la recolección para la campaña. Algunos allegados a
Piñera agregan que cumple dicha tarea junto a al menos otros cuatro ejecutivos, entre los que se cuentan los
también empresarios Patricio Parodi y Juan Bilbao, de Consorcio Financiero. Otros mencionan a Bernardo Matte
–de viejos nexos con RN y más bien cercano a Andrés Allamand - como parte de la misma red (MINAY, 2009).
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04 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma vez que nenhum mosaico jurídico de controle de tomadas de decisão é perfeito,
mas produto de uma construção permanente, quando se reflete sobre as relações entre o poder
Executivo e o poder Legislativo na história institucional brasileira e chilena, observa-se a
preponderância da agenda daquele, principalmente após o advento do Estado Social e as
demandas por políticas públicas de massa.
Com efeito, quando se analisam os financiadores dessa transformação de votos em
cargos políticos, constata-se que, mesmo sendo suas doações regulares e lícitas, essas
possuem uma vinculação direta com o retorno do capital investido nas campanhas com os
empreendimentos de grandes hidrelétricas na região da Amazônia brasileira e da Patagônia
chilena.
Assim, a fragmentação do processo de tomada de decisão no presidencialismo de
coalizão reflete na postura dos poderes Executivo e Legislativo no sentido de viabilizar os
marcos jurídicos para a execução das obras relacionadas com as empresas que implementam
esses grandes projetos hidrelétricos. Além disso, propugnam no ambiente comunicacional um
caráter pejorativo às energias renováveis não convencionais (solar e eólica) denominando-as
como “não firme” por alegação não serem estocáveis. Por outro lado, ressaltam
ilegitimamente as hidrelétricas como a única energia renovável firme e de escala.
Esse discurso estratégico tem a finalidade de perpetuar a fonte de financiamentos das
campanhas eleitorais bem como, ao contrário dos países desenvolvidos e mesmo em
desenvolvimento, de deixar de realizar um maior aporte financeiro inicial para as energias
renováveis não convencionais. O cerne da discussão está no fato que essas escolhas, sob o
pano-de-fundo imediatista, pode gerar um anacronismo político e energético. O primeiro pelo
fato de inviabilizar outras candidaturas que não das coalizões que estiveram comprometidas
com a permanência e a ampliação desses projetos. O segundo relaciona-se com o fato de que,
diante da efetiva alteração dos regimes de chuvas como consequência das mudanças
climáticas, esses grandes reservatórios naquilo que um dia foi um rico bioma estarão sub-
utilizados.
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Sandra Nascimento1
RESUMO
RESUMEN
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derechos de los "indios" en virtud de sus costumbres, tradiciones y derechos sobre las
tierras que tradicionalmente ocupan y la naturaleza de la respuesta juridica, racialista,
conservador y positivista que aún domina el escenario jurídico brasileño.
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Introdução
Fonte: IBGE – Censo 2010 (IBGE, 2012). A metodologia para obtenção das informações considera o
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quesito raça/cor, na pesquisa por amostra de domicilio. Os indígenas que estão em áreas não demarcadas
não integram os números da pesquisa, e certamente o numero seria maior se a metodologia fosse
especifica.
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Registro como referencia que na história do direito ocidental, a codificação do direito civil na França
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Tradução livre.
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“impose conflicting demands or norms; they may have different styles and orientations”
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Principio do direito internacional, afirmado na Carta das Nações Unidas, no Pacto de Direitos Civis e
Políticos e no Pacto de Direitos Econômicos, sociais e culturais e na Declaração das Nações Unidas sobre
os Direitos dos Povos Indígenas.
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escuta com primazia dos povos indígenas interessados ou modo de ocupação de opção
de cada etnia.
|Por ocasião da demarcação da terra indígena da comunidade Pataxó Hã Hã Hae,
o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da questão de ordem nº 312-1-Bahia em
2002, considerou que a qualificação de terra indígena exigiria a presença concomitante
dos quatro elementos normativamente prescritos e que constituiria, nas palavras do
relator, Ministro Nelson Jobim, em “quatro círculos concêntricos” e que haveria uma
relação de dependência entre os quatro elementos, quais sejam, ser habitada, caráter
permanente, utilização para atividade produtiva e destinada a reprodução física e
cultural .
Em 1996 editou-se o Decreto nº 1.775, tendo por finalidade resolver uma das
questões problema em relação ao procedimento anterior, regulamentado pelo Decreto
22 de 1991, relacionado a alegada ausência de contraditório, admitindo que os
interessados não indígenas, entenda-se ocupantes das áreas indígenas não demarcadas,
poderiam aduzir as seguintes defesas, de que sua área não pode ser considerada terra
indígena ou de que as benfeitorias não foram indenizadas.
De acordo com a decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2002, criou-se o que
seria denominado “diálogo-confronto” com o grupo técnico.
Judicialmente, após a realização do laudo antropológico e das defesas
apresentadas, o documento final segue para homologação do Ministro da Justiça a
quem, por força do Decreto nº 1.775/96 se conferiu competência para rejeitar as defesas,
acolhendo o relatório técnico; determinar nova diligencia ou ainda, desaprovar a
identificação por não terem sido atendidos os elementos constitucionais. Nessa ultima
hipótese evidencia-se
A demarcação territorial foi de todo mundo acelerada a partir de 1988,
apresentando resultados importantes, como destaca Aurélio Veiga Rios, “não só pela
determinação constitucional de que ela fosse concluída pela União Federal em cinco
anos (art. 67 do ADCT), mas também, pela ação do Estado em promover o resgate
histórico do direito dos índios às terras que lhes resta ocupar” (2002, p. 69).
Contudo, o teor literal do enunciado normativo não possui, em si, normatividade,
e somente em situações concretas no plano da realidade é possível identificar seu
alcance e efetividade, e por esta razão torna-se relevante a descrição do processo de
territorialização do TI Laranjeira Ñanderu, uma entre outras muitas que não foram
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movimento político Guarani para retomada de seus territórios, a partir da década de 80,
ocasião em que se intensificaram as tensões (Benites, 2012).
A reserva está hoje dividida nas aldeias de Jaguapiré e Bororo, nesta vivendo o
numero maior do povo Guarani Kaiowá, estimando-se um total de 12 mil pessoas,
gerando sérios conflitos “intra-comunitários” (Aylwin, 2009)
Os processos de demarcação das terras indígenas antes de 1988 eram concluídos
sem qualquer preocupação com a preservação de espaço para reprodução física e
cultural, para as opções de produtividade, pois faziam parte do projeto de integração do
“índio” e de assegurar o processo civilizatório, e nesse contexto, sequer foi levado em
consideração a dimensão da posse de natureza comunitária e, por esta razão se iniciaram
processos de revisão demarcatória, em fins da década de 90.
A demora na conclusão da demarcação fez com que várias famílias extensas,
historicamente vinculadas ao Tekoha Juaguapiré, retomassem outras áreas, além da
reserva e ainda ocupadas por fazendeiros, e nominalmente identificada como Jaguapiré
Memby (Benites, 2012).
A organização social do povo Guarani Kaiowá é estabelecida a partir de
parentela extensa7, que segundo Benites são muito distintas entre si no seu modo de
viver próprio, múltiplo, o teko reta, e que estão associado a contexto de
territorialização. (Benites, 2012)
A delimitação territorial foi realizada sem levar em conta as estruturas sociais
organizativas de cada povo, em razão do conjunto de famílias estendidas Kaiowá
Guarani, contribuindo para a mobilização política que viria a reivindicar o
reconhecimento, por autodemarcação, de parte de seu território na região do município
de Rio Brilhante, pela retomada do TI Laranjeira Ñanderu.
O que se reivindica pelo povo Guarani Kaiowá, por uma das famílias extensas,
antes confinada na aldeia Lagoa Rica, que compõe a área denominada de “Brilhante
pegua”, são pequenas parcelas de terra e, inclusive na área de reserva legal da Fazenda
Santo Antônio da Nova Esperança, não pode ser classificada como conflito entre
proprietários “titulados”.
A ausência na demarcação administrativa pelo órgão público – FUNAI, levou a
judicialização da questão por meio de “ação de reintegração de posse”, medida judicial
protetiva da posse e propriedade regulada pelo direito civil e processual civil, em
7
Cf. Pereira, Levi M. Parentesco e Organização Social Kaiowá. Dissertação de mestrado. 1999. Biblioteca
do IFCH – PUC. Campinas, São Paulo.
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Embora o apelo da FUNAI e dos indígenas para que "... enquanto perdurarem os
estudos de identificação e delimitação” fosse a comunidade mantida na área, a ordem de
desocupação e reintegração da posse dos fazendeiros foi cumprida em 11 de setembro
de 2009.
A comunidade indígena passou, então, a viver em acampamento às margens da
rodovia federal - BR 163, nas proximidades de seu tekoha , submetidas, contudo, a
situação de riscos de toda natureza.
No curso dessa ação, os fazendeiros tomaram para si a justiça própria, se
armaram, queimaram as ocas, contrataram segurança privada armada, tudo sob os
olhares dos poderes públicos, impunemente.
No discurso do poder judiciário a questão da territorialização indigena está
contida na categoria de disputas pela posse de terras entre índios e proprietários rurais
culminam geralmente em acirrados conflitos”, o que demonstra outro grande equivoco
conceitual, politico-ideologicamente marcado pela dimensão monocultural e de
ausência de compreensão acerca do diálogo interétnico, pois não se trata de disputa de
posse. Os povos indígenas não estão disputando a posse, pois a posse já lhes é
originária. O que deve ser compreendido é o processo histórico de expropriação dos
territórios tradicionalmente ocupados mediante políticas e leis de terras que se
sobrepuseram aos direitos indígenas.
Observa-se ainda que a interpretação aplicação do programa normativo do artigo
231 sofre arbitrária restrição, incompatível com os princípios constitucionais da
autodeterminação, porém, contraditoriamente, reconhece o direito a cultura no que diz
respeito, por exemplo, a crenças e as expressões culturais vinculadas ao artesanato e as
danças tradicionais.
O Poder Judiciário fragmenta a normatividade do artigo 231 para acolher apenas
o teor literal que se representa nas expressões costumes, crenças e tradições deixando
de levar em consideração, com o mesmo valor, a expressão “os direitos tradicionais
sobre as terras que ocupam”.
Em 2010, a FUNAI em nome dos autores, que até então, não possuem
representação própria judicialmente, requereu que fosse autorizada a produção de prova
pericial de natureza etno-histórica e antropológica, a fim de comprovar a ocupação
tradicional da etnia Guarani Kaiowá no local do imóvel objeto da ação de reintegração
de posse, o que só foi possível após decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª. Região,
invalidando a negativa dada pelo juiz titular.
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Considerações finais
No atual cenário brasileiro, a posição dos povos indígenas está longe de ser a de
equivalência sociopolítica, principalmente em razão da estrutura institucional que
mantém um sistema neoprotecionista por meio da Fundação Nacional do Indio –
FUNAI e de intervenções missionárias que tendem as práticas de desintegração cultural
desses povos.
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Sobre o termo povo e sua localização no discurso jurídico, destaca-se que a reflexão na América Latina,
8
em países como Bolívia, Venezuela, Colômbia, entre outros, de formação pluriétnica e plurinacional, a
terminologia povo não é utilizada no sentido do direito internacional. Por força mesmo, do que contem a
Convenção 169, a dimensão que se tem consagrado é no sentido de afirmar a condição de povos
indígenas como parte da sociedade nacional, com autonomia relativa.
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9
inaugurado após a guerra da tríplice aliança
232
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233
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to be gaining popularity.
236
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
RESUMO
O exame dos aspectos mais relevantes que norteiam o ordenamento jurídico pátrio indica a
necessidade de se averiguar a postura ativista adotada pelo Supremo Tribunal Federal, diante,
principalmente, dos atos deliberativos internos do parlamento brasileiro. A fiscalização da
adequação constitucional prévia foi atribuída expressamente ao Legislativo e ao Executivo,
devendo o Judiciário manifestar-se apenas posteriormente, em relação a normas que já
ingressaram no ordenamento jurídico. Nessa perspectiva, a pesquisa tem como objetivo
demonstrar a impossibilidade de realização do controle judicial preventivo de
constitucionalidade diante do processo legislativo, como forma de se resguardar a separação
de poderes, sob a ótica teórica e casuística, em especial, por meio da análise do julgamento do
mandado de segurança nº 31.816, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que determinou a
necessidade de apreciação dos vetos presidenciais em ordem cronológica pelo Congresso
Nacional. O tema suscita discussões, em virtude, principalmente, das decisões interventivas
do Judiciário na seara interna do Legislativo. Acerca do caso, propõe-se o fortalecimento do
parlamento, como forma de inibir MculPurMda “ÓurisPocrMciM”, pelMqual o Judiciário surge
como o poder do Estado dotado de credibilidade para solucionar quaisquer demandas.
ABSTRACT
The examination of the most relevant aspects that guide the Brazilian legal system indicates
the need to investigate the activist stance adopted by the Supreme Court, on, primarily, of the
Brazilian Parliament's internal deliberative acts. The constitutional adequacy prior
surveillance was assigned expressly to the Legislative and the Executive, and the Judiciary
manifested only in relation to standards that have already entered the legal system. In this
perspective, the research aims to demonstrate the impossibility of realization of judicial
review on the legislative process, as a way to protect the separation of powers, by theoretical
perspective series, in particular, through the analysis of the injunction n. 31.816, report of
Minister Luiz Fux, which determined the need of assessment of presidential vetoes in
chronological order by the National Congress. The theme gives rise to discussions, because,
mainly, of the intervention of Judicial decisions in the field of internal legislation. About the
case, it is proposed the strengthening of Parliament as a way of inhibiting the culture of
237
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"juristocracia", by which the judiciary comes as State power endowed with credibility to
resolve any demands.
INTRODUÇÃO
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Prossegue-se com a análise breve, no segundo capítulo, da Teoria dos Atos Interna
Corporis, como ferramenta de inibição da interferência do Judiciário em questões internas do
Legislativo. Dividiu-se o estudo na observância de dois aspectos: primeiramente, quanto ao
mérito do projeto de espécie normativa em tramitação na casa legislativa. Em segundo
momento, houve a reflexão quanto aos atos interna corporis, que não configuram todo e
qualquer ato interno legislativo.
A justificativa para este trabalho, considerando a sua repercussão social, diz respeito ao
incentivo ao aprimoramento do senso crítico que é enriquecido quando do debate sobre o
surgimento das normas infraconstitucionais e a sua consequente e necessária adequação à
Constituição Federal, principalmente, para viabilizar a importância do voto para a
concretização da democracia e do fortalecimento da soberania popular. Este trabalho, então,
propõe uma visitação ao tema do controle de constitucionalidade à luz da separação dos
239
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Contudo, relevante mencionar a observação feita por José Afonso da Silva (1997, p.
131), ao entender que a escolha dos governantes não significa, necessariamente, atender-se
aos anseios da maioria do povo. Ao contrário, percebe-se o privilégio da minoria detentora do
poder:
Quanto mais divergentes são os interesses das classes sociais, quanto mais aguçadas
são as contradições do sistema social vigente, tanto mais acirrados são os debates e
240
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as lutas no processo de formação das leis, já que estas é que vão estabelecer os
limites dos interesses em jogo, tutelando uns e coibindo outros. Daí também a luta
prévia relativa à composição dos órgãos incumbidos da função popular e decisão por
maioria, os titulares de interesses que conseguirem maior representação terão a
possibilidade de domínio. Essa luta prévia se traduz no procurar evitar-se que os
interesses dominados, ou que se quer dominar, venham a participar de legislação. A
história registra esse embate, que tem culminado nos grandes revoluções, sempre
com a consequência de novas conquistas democráticas.
241
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Sobre o assunto, consagrou-se a Teoria dos Atos Interna Corporis, pela qual se
resguardam os atos estritamente parlamentares mencionados no regimento interno do controle
externo. Dessa forma, no Brasil, todo o procedimento relativo à produção legislativa deve ter
como fundamento os ditames do regimento interno ao qual se submete cada casa legislativa,
devendo observar, além disso, as determinações estabelecidas pelos órgãos técnicos,
denominados de comissões, responsáveis pela apreciação da constitucionalidade, legalidade,
juridicidade, regimentalidade e a técnica legislativa das proposições.
Os interna corporis das Câmaras também são vedados à revisão judicial comum,
mas é preciso que se entenda em seu exato conceito, e nos seus justos limites, o
significado de tais atos. Em sentido técnico-jurídico, interna corporis não é tudo que
provém do seio da Câmara, ou de suas deliberações internas. Interna corporis são só
aquelas questões ou assuntos que entendem direta e imediatamente com a economia
interna da corporação legislativa, com seus privilégios e com a formação ideológica
da lei, que, por sua própria natureza, são reservados à exclusiva apreciação e
deliberação de Plenário da Câmara. Tais são os atos de escolha da Mesa (eleições
internas), os de verificação de poderes e incompatibilidade de seus membros
(cassação de mandatos, concessão de licenças, etc.) e os de utilização de suas
prerrogativas institucionais (modo de funcionamento da Câmara, elaboração do
Regimento, constituição de Comissões, organização de Serviços Auxiliares, etc.) e a
valoração das votações. Daí não se conclua que tais assuntos afastam, por si sós, a
revisão judicial. Não é assim. O que a Justiça não pode é substituir deliberação da
Câmara por um pronunciamento judicial sobre o que é da exclusiva competência
discricionária do Plenário, da Mesa ou da Presidência.
242
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semelhança da Carta Federativa. Em virtude dessa relação direta com a Constituição, pode ter
a sua constitucionalidade verificada.
243
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A abordagem nesse tópico será feita com o intuito de apreciar a conjuntura histórica à
qual se submeteu a ordem constitucional brasileira. Inicialmente, reconhece-se o regime da
Constituição Federal de 1824, primeiro documento que coordenou a seara política do Brasil.
Havia a imponência do Poder Moderador, como responsável por dispor sobre a organização
política e velar pelo equilíbrio e pela harmonia dos demais poderes, conforme menciona o seu
artigo 98: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado
privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante,
para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio, e harmonia
dos mais poderes políPicosB”
244
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Nesse período, também surgiu um novo instituto, diante do controle concentrado e por
via incidental, perante o Supremo Tribunal Federal, denominado de representação
interventiva, pelo qual a lei que autorizasse a intervenção federal, em razão da violação de
princípios constitucionais, deveria ser, previamente, apreciada pelo STF para que declarasse
sua constitucionalidade.
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A Constituição de 1967 não trouxe maiores alterações para a ordem jurídica quanto ao
controle de constitucionalidade, apenas deixou de prever a possibilidade da ação genérica
contida na Emenda Constitucional nº 16.
Em seguida, com MF onsPiPuição de 1969, em seu MrPigo 15, §3º, “d”, foi previsPMMMção
direta na seara estadual, relativa unicamente à intervenção estatal em município, que ocorrerá
quando os
246
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247
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Ressalte-se que é a Constituição que se submete aos comandos do povo, sendo fruto da
soberania popular, o que desmitifica o entendimento de que é a Carta Federativa que confere a
supremacia ao povo. Dessa forma, o Estado e o direito são produtos da vontade popular, não
se confundindo, em hipóPese MlgumM, com MprópriMsoNerMniMB“O EsPMdo não Pem vontade
própriM, nem MF onsPiPuiçãoBAmNos são produto dMMção de um Oomem ou grupo de Oomens”
(BERCOVICI, 2008, p. 23).
248
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Para tanto, faz-se um breve retrocesso histórico. Diante de um Estado Liberal, percebia-
se a pouca autonomia dos juízes para adotarem a hermenêutica na sua atividade prática.
Adotava-se o silogismo simples. O Judiciário, politicamente nulo, deveria apenas pronunciar
a lei e obedecer aos ditames normativos impostos pelo parlamento. Nesse aspecto, enfatizava-
se a função do Legislativo, que deveria produzir normas claras e com o máximo de
objetividade.
249
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Parece de bom alvitre indicar a solução para tal embate entre poderes por meio
principiológico. O princípio da soberania popular, pelo qual o povo é dotado de legitimidade
para compor o poder constituinte, é o idealizador de tal controvérsia.
250
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Constituição, não lhes é possível agir de maneira diversa. Foram escolhidos, portanto, como
representantes do povo para cumprir as diretrizes constitucionais, criadas pelo poder
constituinte originário, de procedência popular.
A chave para a solução desses problemas e, assim, para a solução do problema geral
da jurisdição constitucional é o conceito de representação argumentativa.
Representação é uma relação de dois polos entre um repraesentandum e um
repraesentans. No caso da legislação parlamentar a relação entre o repraesentandum
–o povo- e um repraesentans- o parlamento- é essencialmente determinada pela
eleição. Agora, é possível determinar um modelo de democracia que contem não
mais do que um sistema de tomada de decisões centralizado em torno dos conceitos
de eleição e regra da maioria. Esse seria um modelo de democracia puramente
decisional. Um conceito adequado de democracia deve, entretanto, compreender não
apenas a decisão, mas também o argumento. A inclusão da argumentação no
conceito de democracia cria a democracia deliberativa. A democracia deliberativa é
uma tentativa de institucionalizar o discurso enquanto um mecanismo possível de
tomada de decisões públicas. Por essa razão, a conexão entre o povo e o parlamento
não deve ser unicamente determinada por decisões expressas em eleições e votos,
mas também por argumentos. Nesse sentido, a representação do povo pelo
parlamento é, ao mesmo tempo, volitiva ou decisional e argumentativa ou
discursiva.
A representação do povo por uma corte constitucional é, em contraste, puramente
argumentativa. O fato de a representação pelo parlamento ser volitiva tanto quanto
discursiva demonstra que representação e argumentação não são incompatíveis.
251
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No início deste ano, inclusive, o atual presidente da Suprema Corte, Ministro Cezar
Peluso, tendo identificado o quanto a existência de mecanismos de controle prévio
poderia desafogar o Poder Judiciário, chegou a defender formalmente a criação de
tal instituto. No entanto, diante de críticas severas à ideia, justamente fundadas na
alegação de violação à tripartição dos Poderes Republicanos, acabou abandonando
sua defesa. (REBELO, 2011, online)
Cumpre destacar, por outro lado, que os constituintes quando quiseram exigir a
observância de uma ordem cronológica, o fizeram de forma expressa, como ocorre
no caso do art. 100 da Lei MMior, que Mssim dispõe: ‘Os pagamentos devidos pelas
Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de
sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de
apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a
designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos
adicionais abertos para este fim’ (grifei).
Ora, se não é possível extrair do texto constitucional, de plano, ao menos em um
exame perfuntório, a mesma obrigatoriedade para a apreciação dos vetos na ordem
cronológica em que foram recebidos, entendo que a imposição de tal exigência ao
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Acertadamente e em consonância com os votos dos ministros Rosa Weber, Dias Toffoli,
Cármen Lúcia, Teori Zavascki, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, convergiu-se ao
entendimento de que se trata de questão interna corporis, ou seja, tema imune à interferência
do Judiciário.
CONCLUSÃO
Sobre esse aspecto, renasce o pensamento acerca da separação dos poderes, idealizado
por diQersos pensMdores liberMis, como I ocke, mMs que se consMgrou com MoNrM“O EspíriPo
das I eis”, de MutoriMde MonPesquieu, em 1748.
256
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O projeto de ato normativo, objeto de análise, deve ser apreciado por aqueles
legitimados constitucionalmente, ou seja, apenas os parlamentares da casa legislativa em que
esteja ocorrendo sua tramitação. Ao Judiciário somente resta pronunciar-se após a conclusão
do trâmite legislativo.
Nesse sentido, vê-se a importância das Comissões de Constituição e Justiça, que têm o
escopo de confrontar o projeto de lei ou do ato normativo com a Constituição; e, quando o
concretiza, realiza o controle preventivo de constitucionalidade.
Porém, não raras vezes, os documentos a elas enviados não recebem tratamento
constitucional suficiente, e, ainda assim, em razão da inatividade do Legislativo, que não
realiza satisfatoriamente a sua tarefa institucional de legislar, são aprovados e ingressam na
ordem jurídica. Isso gera uma descrença no parlamento, que deveria se fortalecer como poder
do Estado legitimamente popular, contudo, vê-se desacreditado pelo próprio povo.
257
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Quanto aos regimentos internos das casas legislativas, estes compõem o sistema jurídico
brasileiro, subordinando-se às premissas da Constituição Federal e, portanto, não há
empecilhos, na hermenêutica constitucional do Supremo Tribunal Federal, para que se admita
a viabilidade de instrumento processual para verificar os vícios procedimentais de
inconstitucionalidade.
Outro aspecto abordado nesse trabalho disse respeito à atuação dos magistrados quanto
ao exercício do controle preventivo de constitucionalidade dos atos legislativos. Com a
judicialização da política, o parâmetro estabelecido em relação aos juízes passou a reconhecê-
los como defensores da democracia, por meio da sua atuação, que transcende diversas searas
da sociedade, seja a civil, a penal ou a econômica.
258
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Escolher os representantes não é ato de mera evolução política; é uma aquisição pessoal
de cada um como cidadão e deve ser enaltecido diante de um sistema democrático-
representativo. Por isso, deve-se votar conscientemente, a fim de fortalecer o Poder
Legislativo, que almeja restabelecer sua credibilidade ao povo.
REFERÊNCIAS
259
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260
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
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Malheiros, 1997.
261
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1
Advogada. Assessora Jurídica do Município de Nova Cruz/RN. Mestranda em Direito Constitucional na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
2
Advogado. Especialista em Direito e Cidadania; Criminologia e Direito do Trabalho (todas pela UFRN).
Mestre em Direito Constitucional. Doutor em Direito do Estado (ambos pela PUC/SP). Professor da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UFRN. Professor da Escola de Magistratura do Rio Grande
do Norte – ESMARN. Professor da Universidade Potiguar – UNP. Membro da Academia de Letras Jurídicas do
Rio Grande do Norte (Cadeira n. 15: Des. Paulo Pereira da Luz). Diversas obras publicadas.
262
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ABSTRACT: We witness the flurry of laws regulating all sorts of rights, giving citizens a
sense of security, and a variety of legal prerogatives, essentially the so-called fundamental
rights, and, therefore, are protected from various interventions in their private sphere as well
as in the social sphere. This set full of rights, played by the state-provider, often running away
from its function of correcting social inequalities, what blocks something very important to
the individuals : the feedback, which in this case corresponds to the necessary requirement of
compliance (compliance constitutional rights), by the State and its competences. It is the
fundamental duty of the theory that conceives every right a benefit, whether acting or
abstaining. By the way, the oversupply of these rights is nothing if you do not monitor the
implementation thereof. Here, we want to dwell on those rights which require a state service,
which impose the positive role of the state to materialize and start to write effectively, and
efficiently, the factual and legal world of the recipients. But why the doctrine on this issue is
so scarce? Why only the rights are known, but the correlates duties stay in the background,
especially the fundamental duty of state action, which depends directly on the effectiveness of
the constitutional system? Is not it (the state) subject of obligations? Yes, however, is more
interested grant rights to the masses, deluding them with false appearance of democratic
system of law, provided with rights, freedoms and guarantees, that otherwise, submit them
flawed, cruel and grueling process of (non) compliance of their duties, what does not allow
the realization of rights, that legitimize the constitutional system, based on the principle of
human dignity.
1 INTRODUÇÃO
3
No vertente artigo, para fins didáticos, as expressões “deveres fundamentais” e “deveres constitucionais”,
devem ser entendidas sempre pela maior abrangência que possam, semântica e juridicamente, representar.
Considera-se, assim, em qualquer das asserções os deveres fundamentais, os legais ou os supralegais, além dos
implícitos, extraídos do sistema.
4
Diz-se Estado-provedor não apenas vinculando-o aos direitos sociais, mas também à criação de condições para
que os direitos de liberdade sejam efetivos. Considera-se, assim, ultrapassada a velha dicotomia que separa os
direitos de defesa dos direitos prestacionais, pois que ambos necessitam da atuação estatal, um positiva, outro
263
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pela superação do Estado minimalista, incute nos indivíduos a plausível luta e incessante
busca pela realização dos direitos inerentes à sua condição humana, tantos já preconizados
pelo texto constitucional, na tentativa (in)suscetível de se formalizar completamente o
universo dos direitos, o que se convém chamar de direitos fundamentais, bloco de
prerrogativas que confere legitimação à própria Constituição, também conhecida como
Constituição Cidadã.
Os direitos fundamentais, fins constitucionais, são, como se sabe, aqueles que
exigem do Estado uma prestação e compõem o núcleo essencial do sistema constitucional, do
qual se extrai a ideia de dignidade da pessoa humana. Tal atuação por parte do ente estatal,
por sua vez, encontra-se vinculada à atuação político-legislativa, ao que se pode fazer
referência imediata a um mecanismo de conformação do público espectador.
Mas, e os deveres fundamentais? Quem os busca tão ferozmente?
O que se tem, na verdade, é o esquecimento desta parcela do Direito que tão
importante é, sem, contudo, resvalar na perca de relevância. É inimaginável realizar
efetivamente um Estado Democrático de Direito pautado na igualdade substancial que
incansavelmente se deseja, quando apenas se propugna a noção de direitos fundamentais,
relegando a plano secundário o feedback destes, a saber, a observância dos correlatos deveres
fundamentais, sejam dos próprios indivíduos ou do Estado.
É a partir desta problemática, pois, que o estudo que aqui se propõe será
desenvolvido, com vistas a identificar a interligação entre as teorias dos direitos e deveres
fundamentais e o sistema constitucional hodierno, ocupando-se, especialmente, do dever de
atuação do Estado, apontando, por fim, possíveis formas de otimização e dissolução do
dilema que se impõe em decorrência da referida imbricação.
negativamente. Isto porque, transcrevendo o ensinamento de Isabel Moreira, “a liberdade dos cidadãos não é
mais uma liberdade em face do (inimigo) Estado, mas configurada em termos que a sua existência depende de
condições que, se não estão ao alcance do indivíduo (isto é: se este não consegue reuni-las no âmbito da sua
autonomia existencial), devem ser criadas pelo Estado que as assume como tarefa”. (MOREIRA, Isabel. A
solução dos direitos. Coimbra: Almedina, 2007, p. 37).
264
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5
Ana Paula de Barcelos, neste sentido, enfatiza que, “do ponto de vista jusfilosófico, e para uma sociedade como
a contemporânea, que crê nos postulados humanistas e na democracia, a dignidade da pessoa humana (aí
incluindo o seu aspecto material), constitui o valor mais fundamental”. (BARCELOS, Ana Paula de. A Eficácia
Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 248).
265
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parte dos cidadãos, promovida pelos dispositivos que, abstratamente, conferem-lhes os mais
diversificados direitos e garantias que, por motivos vários, não saem do papel.6
Com efeito, ao passo que a dignidade da pessoa humana se configura um direito do
homem, direito subjetivo de ter sua dignidade respeitada, impõe, igualmente, um dever, a
obrigação de se portar com dignidade em face de si mesmo e dos outros que consigo vivem
em sociedade. Mas não só isso. Impõe, ao mesmo tempo, o dever do Estado de promover esta
dignidade, de permitir que ela seja acessível aos cidadãos, pois que em nada é relevante
pronunciá-la se não forem propiciadas as condições de sua materialização. Do contrário, será
sempre uma abstração, não obstante provoque imensurável sedução.
Em sendo abstração apenas, perde completamente o sentido de diretriz axiológico-
normativa do sistema constitucional, em vista de que a realidade social a que se destina tal
sistema não necessita de mais abstrações, ilusões, mas, sim, de concretização. Concretização
esta que depende frontalmente da atuação estatal quando da consecução de suas obrigações
constitucionais e políticas, isto é, de seus deveres fundamentais. Na prática dos tribunais,
importa em relevantíssimo instrumento nos processos de interpretação e ponderação. Nas
duas hipóteses, pois, o princípio-mor da dignidade da pessoa humana se liberta da vagueza
que lhe oprime, deixando de ser meramente mecanismo retórico, figura ilustrativa, para
ganhar foros de relevo jurídico.
Corroborando a ideia de vinculação entre dignidade da pessoa humana e dever
fundamental, Jorge Reis Novais (2011, p. 51) afirma que quando este princípio plasmado na
Constituição é formalmente acolhido no respectivo texto constitucional, o que ocorreu com a
realidade jurídica brasileira, além de representar, como dito, a qualidade de um valor moral
legitimador da força normativo-constitucional de um Estado de Direito material, também se
transforma em um dever-ser jurídico, já que vincula a atuação dos Poderes do Estado,
impondo-lhes uma atividade positiva.
No plano jurídico, âmbito que interessa ao feito, conforme salienta Ana Paula de
Barcelos, ao considerar especialmente a situação brasileira inaugurada com o advento da
Constituição de 1988, o princípio constitucional em apreço (dignidade da pessoa humana)
tornou-se o princípio estruturante, fundante da ordem jurídica e, bem assim, a finalidade
6
“O teor do discurso constitucional, ao deixar ambíguo, vago, ou mesmo apagado e esquecido o conteúdo
significativo da dignidade da pessoa humana, pretende conferir exatamente, pela sua própria índole, de uma
cruel e proposital espécie de desconsideração ao citado valor, permitindo, assim, como isto, não cumprir o seu
compromisso com tal valor que é deixado a vagar pelas malhas da rede constitucional como se fosse a expressão
‘Dignidade da Pessoa Humana, mera figura de retórica” (LÖWENTAL, Ana Maria Valiengo. Exame da
expressão ‘A Dignidade da Pessoa Humana’ sob o Ângulo de uma Semiótica Jurídica. In: Revista da
Universidade de Ibirapuera, vol. I, n. 3, p. 28) .
266
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
7
Sobre este assunto, conferir as lições de Peter Härbele.
8
Conforme ensina Isabel Moreira, “a força normativa da Constituição também repousa na obrigação da
interpretação mais conforme à Lei Fundamental” (op. cit., p. 224).
9
Diante da vagueza da locução “dignidade da pessoa humana”, o problema que vem se impondo na atualidade é
identificar qual é esse mínimo e quais efeitos concretos possui.
267
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
10
Para Dimitri Dimoulis , trata-se do fenômeno da baixa densidade normativa, que torna difícil decidir qual das
partes envolvidas em um conflito está com a razão constitucional, já que interpretações conflitantes entre elas
são autorizadas por um texto constitucional extremamente genérico. (DIMOULIS, Dimitri. Arguição de
descumprimento de preceito fundamental. Problemas de concretização e limitação. Revista dos Tribunais, v.
832, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 13-16).
11
Por ser temática objeto de grandes controvérsias, impõe estudo autônomo, detalhado, pelo que se deixa de
adentrá-la.
12
O ideal é que esses conteúdos básicos da dignidade sejam universalizáveis, multiculturais, de modo a poderem
ser compartilhados e desejados por toda a família humana.
13
Segundo BARROSO, op. cit., p. 12: “Princípios são normas jurídicas com certa carga axiológica, que
consagram valores ou indicam fins a serem realizados, sem explicitar comportamentos específicos. Sua aplicação
poderá se dar por subsunção, mediante extração de uma regra concreta de seu enunciado abstrato, mas também
mediante ponderação, em caso de colisão com outras normas de igual hierarquia. Além disso, seu papel no
sistema jurídico difere do das regras, na medida em que eles se irradiam por outras normas, condicionando seu
sentido e alcance”.
268
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14
Não se fala aqui em uma nova forma de Estado, mas, sim, como faz Isabel Moreira, “de uma modalidade da
forma de Estado Democrático de Direito”. Não pretendendo, portanto, substituir as tarefas antigas, mas
complementá-las com novas, na busca por uma maior igualdade social. (MOREIRA, Isabel. A solução dos
Direitos. Coimbra: Almedina, 2007, p. 34).
15
Sobre este aspecto, diante da imposição e do crescimento de incumbências ao Estado, Isabel Moreira consigna
que o atual Estado deu lugar a um novo modelo que pode ser batizado de Estado “Pós-Social” (op. cit., p. 41).
269
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16
Para o professor LEONARDO MARTINS, o estudo detalhado da questão de quem são os titulares de
determinado direito é de crucial importância para a aplicação dos direitos fundamentais. Porém, como o cerne do
presente estudo não é os direitos fundamentais, ousa-se não se imiscuir nesta particularidade. (MARTINS,
Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 68-69).
17
Por esta teorização, uma vez consagradas legalmente as prestações sociais, o legislador não poderá depois
eliminá-las sem alternativas ou compensações, o que impõe, segundo Queiroz, “a acção do Estado, num ‘dever
de legislar’” (op. cit., p. 70). É tese da irreversibilidade dos direitos fundamentais.
270
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Desta forma, estará o Estado cumprindo o seu dever de atuação, a sua função social, ao criar
igualdade de oportunidades de fato, garantindo a todos a liberdade fundamental.
Não se pode descurar, a bem da verdade, que a respectiva implementação é objeto de
políticas de conformação legislativa, de modo que têm a sua materialização comprometida
ante a não atuação do Poder Legislativo. Ressalve-se, por oportuno, ainda, a significativa
atuação do Poder Judiciário nos casos de omissão ou insuficiente realização.
O modelo de ordenamento que vem avançando reclama um balanceamento de
valores, impondo o “alargamento da justiça política e o reconhecimento de um princípio de
interpretação activista por parte do juiz” (MOREIRA, 2007, p. 209), e o entendimento de que
os preceitos constitucionais são mandamentos que obrigam o legislador a prosseguir em sua
tarefa com equilíbrio, proporção e justiça, sob pena de serem “fórmula vácua de conteúdo”
(MOREIRA, 2007, p. 211), daí a relevância da atuação dos Poderes Judiciário e Legislativo.
De modo geral, por ser a realização desses direitos essenciais uma imposição do
princípio da dignidade humana, pois que conferem um mínimo de dignidade à vida dos que
avidamente dele necessitam, representam obrigação jurídica a cargo do Estado, impondo
limite e parâmetro à sua atuação, não obstante as suas dificuldades de ordem institucional
(financeira e estrutural), uma vez que é função do Estado promover a igualdade substancial,
mediante a satisfação generalizada das necessidades básicas, permitindo aos cidadãos um
mínimo vital.18
Contudo, a doutrina jurídica muito pouco se debruça acerca dessa questão de crucial
relevância, qual seja, a dimensão positiva do dever de atuação do Estado, que aponta o tipo e
o nível de relação existente entre o ente estatal e os indivíduos/sociedade.
Por outro lado, todos são sabedores da “inflação de direitos” a que, cotidianamente, a
sociedade é submetida. São direitos de toda a espécie. Direitos estes que, assustadoramente,
padecem de efetivação, principalmente, no que atine aos direitos sociais. Esta problemática é,
por sua vez, tratada rotineiramente pelos operadores e estudiosos do Direito, resvalando
sempre no fosso que é a discrepância entre a realidade e o texto constitucionais. Inúmeros
estudos advindos dos mais célebres constitucionalistas versam sobre a questão da ineficácia
dos direitos fundamentais, com maior enfoque aos de 2ª geração (direitos econômicos, sociais
e culturais).
Mas, e o dever fundamental estatal de tutela? Existe um equilíbrio na consideração
entre os direitos e deveres fundamentais?
18
Este dilema acerca dos argumentos fazendários e constitucionais diante da dicotomia reserva do possível x
mínimo existencial merece análise mais acurada em estudo autônomo, o qual não se propõe no presente artigo.
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272
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19
Há de se ressalvar que à existência de um direito nem sempre corresponde a existência de um dever, salvo se a
intenção for dizer que ao direito de um implica o dever de reconhecimento e respeito do outro.
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20
Lei Fundamental alemã (art. 1, I, 2, GG). Saliente-se que a dogmática do dever estatal de tutela foi
desenvolvida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, doutrina essa ainda não completamente
sistematizada.
274
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funcional, em que as interpretações jurídicas sejam feitas com o escopo de assegurar eficácia
concretiva aos comandos normativos à luz da dignidade humana, como forma de se realizar
valores intrínsecos à manutenção do Estado como a igualdade (material) e a liberdade.
Por esta razão é que pôr a dignidade da pessoa humana efetivamente no cume do
sistema constitucional se impõe, pois que ela carrea toda a carga de demandas pela realização
da Justiça, fim primeiro colimado pelo Direito. No que diz respeito ao dever de atuação estatal
em prol da sociedade e dos indivíduos, serve a dignidade humana como elemento unificador
do sistema e, bem assim, como “uma grande referência no sentido da necessidade de proteção
dos valores fundamentais constitucionais conquistados pela humanidade” (BITTAR, 2010, p.
261), ocasião em que se promove e densifica a otimização do sistema constitucional, dando-
lhe maior efetividade e evitando que o Estado se utilize de seus direitos e deveres como
instrumentos de manipulação de muitos, no interesse de poucos.
Urge cobrar o respeito ao pacto inicial, fazendo cumprir as cláusulas sociais
indispensáveis à dignidade humana e à sobrevivência, em prol da proclamada igualdade
substancial.
4 CONCLUSÃO
275
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276
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encontrará um ambiente social, político e jurídico fértil, onde germinarão direitos atrelados ao
dever cumpridor do Estado, oportunidade na qual o sistema constitucional, renovado,
triunfará uno e efetivo, apto a ser realizado, pautado por preceitos que não serão, o que
Lassale há muito já propunha, mera folha de papel.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Fernando Bastos de. Pequena Enciclopédia de Moral e Civismo. Rio de Janeiro:
Companhia Nacional de Material de Ensino, Ministério da Educação e Cultura - MEC, 1967.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Das constituições dos direitos à crítica dos direitos.
Direito Público, Brasília, n. 7, 2005.
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MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São
Paulo: Atlas, 2012.
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RESUMO
O controle concentrado e abstrato de constitucionalidade brasileiro tornou o Supremo
Tribunal Federal peça chave na análise dos conflitos federativos, uma vez que o exercício
dessa atribuição permite a Corte decidir sobre os limites das competências das entidades
federativas fixadas na Constituição. Por conseguinte, as decisões do Supremo nesses casos
culminam na “centralização” ou na “descentralização” da federação. Este artigo pretende,
pois, investigar se as decisões da corte constitucional brasileira têm tomado alguma direção
clara e, a partir dos resultados alcançados, discutir alguns pontos sobre como pode ser
investigado o papel do judiciário na federação. Antes, contudo, apresenta brevemente como
tem sido abordada, em parte da literatura, a relação entre judiciário e federalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Federalismo; Controle de constitucionalidade; Poder Judiciário.
ABSTRACT
Brazilian judicial review turned the Supreme Court into a key figure in the analysis of federal
conflicts to the extent that this assignment allows the court to decide on the limits of the
federal entities’ powers constitutionally established. Thus, the Supreme Court’s verdicts
culminate in "centralization" or "decentralization" of the federation. This article aims,
therefore, to investigate whether the decisions of the constitutional court in Brazil have taken
some clear direction and, from the results, to discuss some points on how the role of the
judiciary could be investigate. Before, however, it presents briefly how the relationship
between the judiciary and federalism, in part of the literature, has been addressed.
KEYWORDS: federalism; judicial review; judiciary.
1 Introdução
Nas federações a existência de pelo menos dois níveis de governo com atribuições
definidas constitucionalmente em uma relação não hierárquica levanta a questão sobre quem
será o árbitro quando ocorrer disputas sobre a jurisdição. Na primeira federação moderna, a
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2 Judiciário e federalismo
Já nos Artigos Federalistas o reconhecimento da importância do judiciário no arranjo
institucional inaugurado pela constituição está entre os motivos que justificaram a sua
formação como ramo independente de poder. Na mesma linha, nas federações atuais, a
essencialidade da preservação do texto constitucional - e, por consequência, da distribuição do
poder entre os entes federativos - surge como uma das razões para a criação de um órgão
independente como árbitro para os eventuais conflitos que surjam entre as suas unidades
componentes.
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judiciário superior aos demais ramos do poder. Os juízes seriam apenas intermediários entre o
povo e o legislativo, que deveria ser mantido dentro dos limites fixados constitucionalmente,
ou seja, os magistrados protogeriam o povo contra uma possível usurpação perpetrada pelo
legislativo. Na verdade, Hamilton considerava o judiciário o ramo mais fraco entre os poderes
por não ter participação na força e na riqueza nem a capacidade de tomar resoluções e
depender inclusive do executivo para fazer valer seus julgamentos (HAMILTON in
HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 464). Por isso, seriam necessárias medidas
suplementares para assegurar independência nos exercícios de suas funções. O autor então
sugere garantias de estabilidade funcional e de não redução da remuneração (HAMILTON in
HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 468).
A estabilidade dos cargos judiciais se apresenta como dispositivo assecuratório de
independência na medida em que nomeações periódicas, sejam elas promovidas pelo
executivo, pelo legislativo ou pelo próprio povo, sujeitam os juízes às preferências e à
influência das autoridades responsáveis pela escolha, se considerarmos ser interesse do
magistrado a recondução ao cargo. Do mesmo modo, a garantia da não redução da
remuneração reforça a imunidade judicial frente às influências externas por eliminar a
possibilidade de os demais poderes interferirem na subsistência dos magistrados como forma
de pressão (HAMILTON in HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 468-470). Para a
garantia do magistrado e, ao mesmo tempo, proteção do judiciário contra a má prática dos
juízes, as hipóteses de suspensão e destituição foram estabelecidas no próprio texto
constitucional e submetidas a controle pelo poder legislativo (HAMILTON in HAMILTON;
MADISON; JAY, 2003, p. 470).
Outra relação entre legislativo e judiciário é debatida no Artigo n o. 81. Nele,
pretende-se fundamentar a existência de uma corte suprema como órgão independente do
poder legislativo. O alvo de Hamilton é a ideia de que a capacidade de a Suprema Corte dizer
a última palavra sobre a constitucionalidade das leis a tornaria superior ao legislativo, que
estaria impossibilitado de sobrestar a medida. O poder de interpretar as leis de acordo com a
Constituição é encarado, nessas objeções, como habilitação para o exercício arbitrário das
funções judiciais. Como visto, essas questões já foram parcialmente enfrentadas no Artigo n o.
78, quando se atribuiu aos juízes a tarefa de proteger a Constituição e, portanto, de invalidar
leis incompatíveis com o texto constitucional. A resposta havia sido que o judiciário era o
órgão intermediário entre o povo e o legislativo. Nesse momento, no entanto, a objeção é mais
séria, pois se trata de defender que o judiciário – no caso, a Suprema Corte – também será a
instância final da decisão sobre a constitucionalidade. No Artigo no. 81, Hamilton procura dar
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1
Na verdade, uma combinação dos dois modelos
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2
O controle de constitucionalidade, no entanto, não necessariamente é realizado por uma única corte; pode ser
realizada pelos tribunais inferiores e a decisão final atribuída a uma última instância recursal, como a Suprema
Corte norte-americana.
289
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última instância recursal na ordem jurídica nacional (suprema corte), são apontadas como
características secundárias, isto é, como garantias e não como um componente da federação
(LIJPHART, 2003, p. 215).
Dos seis países enquadrados por Lijphart (2003, p. 251) no grau máximo de rigidez
constitucional (com exigências mais rigorosas para a alteração da Constituição) cinco são
conhecidas federações – Austrália, Canadá, Suíça, Estados Unidos e Alemanha, classificadas
no estudo comparativo de Watts (2008, p. 28-38) como federações maduras. Exigências
rigorosas, no entanto, não se apresentam como um obstáculo efetivo às maiorias
parlamentares se inexistir um órgão independente com competência para decidir a
compatibilidade da legislação com a Constituição (LIJPHART, 2003, p. 253), na medida em
que restaria ao legislativo, caso fosse o responsável pelo juízo de constitucionalidade, optar
pelo caminho de produzir leis contrárias à carta maior ao invés de emendar o texto
constitucional.
A possibilidade de controle de constitucionalidade é, assim, para o autor, decorrência
lógica da própria ideia de Constituição e judiciário independente, embora haja constituições
que explicitamente neguem às suas cortes esse poder – como a holandesa (LIJPHART, 2003,
p. 254). Entre os países que Lijphart identificou a presença de um forte poder de controle de
constitucionalidade (presença de controle de constitucionalidade e alto grau de ativismo da
corte), seja exercida por um tribunal especializado (corte constitucional) ou não (suprema
corte), todos são federações – Alemanha, Índia, Estados Unidos e Canadá (depois de 1982;
anteriormente é situado como de “controle de constitucionalidade de força média”). Entre os
nove estados em que essa característica estava ausente, apenas dois eram federais – Suíça e
Bélgica (apenas até 1984, posteriormente identifica-se um controle de constitucionalidade
fraco) – e dois “semifederais” – Holanda e Israel (LIJPHART, 2003, p. 257), conforme
classificação do autor (2003, p. 217). Revisões judiciais mais fortes e numerosas são
encaradas como uma tendência e associadas a democracias mais recentes (LIJPHART, 2003,
p. 258). Por fim, Lijphart (2003, p. 260) reconhece explicitamente a ligação entre
federalismo, controle de constitucionalidade e constituições rígidas.
Demonstrada a forte correlação entre suprema corte e federalismo, a próxima parte se
dedica a investigar, de modo específico, a influência da alta corte brasileira – o Supremo
Tribunal Federal (STF) – quanto a movimentos de centralização ou de descentralização no
sistema federativo nacional.
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3
O assunto é abordado na seção 4.4.
291
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A primeira consideração a ser feita, é que Oliveira toma "como pressuposto o caráter
político da atuação do Judiciário na resolução de conflitos federativos entre estados e governo
federal" (OLIVEIRA, 2009, p. 227), interpretando, assim, o julgamento contrário ou
favorável a um ente federativo como uma decisão política - e não técnica. O estudo se baseia
nos dados de 305 ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), de um total de 941
envolvendo questões federativas (OLIVEIRA, 2009, p. 234). Foram considerados apenas três
tipos de ação, abrangendo somente conflitos entre as esferas estadual e federal: 1) ações
propostas pelo Procurador-Geral da República contra o Governador do Estado ou Assembleia
Legislativa; 2) ações propostas pelos Governadores dos Estados contra o Presidente da
República, Senado Federal, Congresso ou Ministro de Estado; e 3) ações propostas pelas
Assembleias Legislativas estaduais contra o Presidente da República, Senado Federal,
Congresso ou Ministro de Estado (OLIVEIRA, 2009, p. 234). Estavam, portanto, excluídas as
ações propostas pelos demais legitimados4 e as que envolviam a esfera municipal. Por fim, as
ações foram reunidas em dois blocos – ações da União contra Estados (grupo 1) e ações dos
Estados contra a União (grupo 2) (OLIVEIRA, 2009, p. 235) e classificadas em nove temas -
administração pública, servidor público, política social, políticas econômicas, privatizações,
regulação econômica do setor público, política tributária, regulação da sociedade civil e
competição política (OLIVEIRA, 2009, p. 242-243).
Em primeiro lugar, os dados revelaram que mais da metade das ações, sejam elas
propostas pelos Estados ou pela União ainda estavam aguardando julgamento. A diferença
entre as porcentagens é relativamente pequena – 53,3% para a União contra 61,5% para os
Estados, mas deve ser levado em conta que a União propôs quase quatro vezes mais ações do
que os Estados (240 e 65 ADI, respectivamente)(OLIVEIRA, 2009, p. 239). A primeira
hipótese suscitada por Oliveira (2009, p. 240) é se o Judiciário tem se eximido de seu papel de
árbitro do conflito federativo. Outra possibilidade seria que a baixa frequência de atuação
revelasse apenas “fragilidade desse instrumento, como árbitro de contendas judiciais, para a
resolução de questões federativas, ainda mais se considerarmos a necessidade de respostas
rápidas (...)" (OLIVEIRA, 2009, p. 246).
Em segundo lugar, além de apresentar maior disposição na apreciação das ações
propostas pela União, o STF foi ainda mais generoso na concessão de liminares (que têm
eficácia imediata contra o requerido) para o governo central: 73,6% contra 15,8% dos Estados
4
Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e confederação
sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
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5
Excluíram-se, assim, as ações propostas pelos demais legitimados (Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, Confederações sindicais ou entidades de
classe de âmbito nacional), independentemente de quem ocupe o outro polo da demanda e as disputas “internas”,
isto é, legitimados federais contra instituições centrais e legitimados estaduais contra instituições estaduais.
293
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3.3 Resultados
O número total de ADI contabilizadas entre 1988 e 2012 foi de 4751, das quais 896
(19%) envolviam conflitos federativos. A averiguação da existência de inclinação do STF em
privilegiar um dos entes federativos, por sua vez, envolveu a análise da disposição da corte no
julgamento (denominada aqui de eficiência) e dos resultados (taxa de sucesso). Assim,
enquanto a segunda examina se há diferenças estatisticamente significativas na obtenção de
êxito conforme a entidade propositora, a primeira atesta se há um tratamento distinto na
condução do processo, isto é, se o STF soluciona mais rapidamente as ações propostas por um
dos entes. Por fim, verifica-se se a distribuição das ADI está concentrada em um legitimado
específico.
A segunda constatação é que entre disputas federativas e não federativas não houve
diferenças estatisticamente significativas quanto ao desempenho na condução do processo
pelo STF: 32% (287) das ADI envolvendo conflitos federativos ainda não foram julgadas
definitivamente, ao passo que 34,8% (1342) das ações que não envolviam tal tipo de disputa
6
Núcleo de Direito e Política - UFPR. Dados coletados por Jéssika Kaminski, Antônio Eduardo Seixas, Galanni
Dorado de Oliveira, Guilherme Cantero Nunes, Kayan Acassio e Fernando Santos de Camargo e organizados
pelo Prof. Dr. Fabricio Ricardo de Limas Tomio.
294
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aguardam julgamento (Tabela 3.4.2). O chi-quadrado7 foi apenas de 2,49, ou seja, abaixo do
limite de 3,84 para um intervalo de confiança de 95%.
Tabela 3.4.3 Situação das ADI envolvendo disputas federativas conforme a entidade
requerente no período 1988-2012
Julgadas Aguardado julgamento
Entidade
Frequência Frequência Frequência Frequência Total
requerente
observada Esperada observada Esperada
União 547 547,15 258 258,85 805
Estado 62 61,85 29 29,15 91
Total 609 287 896
Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 0,0012
7
O teste do chi-quadrado (X2) permite verificar se a diferença entre duas distribuições é estatisticamente
significativa (não aleatória). Assim, serve para confirmar se duas variáveis categóricas estão ou não relacionadas
entre si (hipótese de independência). Para um intervalo de confiança de 95%, a diferença será estatisticamente
significativa se ultrapassar o limite crítico de 3,841, quando o grau de liberdade for igual a 1(conforme a tabela
de distribuição do chi-quadrado), como nos testes aplicados neste artigo.
295
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Tabela 3.5.1 Taxa de sucesso das ADI julgadas envolvendo disputas federativas conforme a
entidade requerente no período 1988-2012
Sucesso Fracasso
Entidade
Frequência Frequência Frequência Frequência Total
requerente
observada Esperada observada Esperada
União 289 265,94 516 539,06 805
Estado 7 30,06 84 60,94 91
Total 296 600 896
Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 29,4074
8
O Q de Yule permite averiguar a intensidade da relação entre duas variáveis dicotômicas (o chi-quadrado
apenas verifica se variáveis categóricas estão ou não relacionadas entre si, mas é incapaz de mensurar a força da
correlação).
296
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tiveram êxito em apenas 12% (11) das ações. O chi-quadrado obtido foi de 33,25 para um
intervalo de confiança de 95% (Tabela 3.6.1). Do mesmo modo, contudo, a disparidade na
distribuição das ações propostas conforme o requerente (10% para os Estados e 90% para
União) não permitiu mensurar a força da correlação (Q de Yule) por ultrapassar a distribuição
recomendada para o teste (70:30).
Tabela 3.6.1 Taxa de sucesso das ADI julgadas e aguardando julgamento (deferimento de
liminar) envolvendo disputas federativas conforme a entidade requerente no período 1988-
2012
Sucesso “ampliado” Fracasso
Entidade
Frequência Frequência Frequência Frequência Total
requerente
observada Esperada observada Esperada
União 349 323,44 456 481,56 805
Estado 11 36,56 80 54,44 91
Total 360 536 896
Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 33,2526
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9
A Mesa da Câmara de Deputados não propôs nenhuma ação direta de inconstitucionalidade no período
considerado.
10
Houve, na verdade, também uma redução no número de processos sobre questões federativas ainda não
julgados. No período entre 1988 e 2002, conforme os dados da autora, mais da metade dessas ações aguardavam
julgamento. Caso se considere os dez anos posteriores, de acordo com este estudo, constata-se que 32% dos
processos envolvendo disputas federativas ainda não foram julgados.
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de interpretação constitucional, o STF se apresenta como ator com poder de veto, embora na
maioria das vezes possa estar absorvido pelos demais (TSEBELIS, 2009, p. 317). Essa linha
de raciocínio parece sugerir que a decisão de uma disputa federativa é uma questão de
preferência política - pela centralização ou pela descentralização - ou mesmo como
retribuição com aqueles que os indicaram. Nessa linha, o julgamento é encarado como
resultado do arbítrio dos juízes e só é possível predizê-lo pelo conhecimento prévio das
preferências dos membros da corte. O argumento, portanto, ignora que questões técnicas
podem estar em jogo, e mesmo que o alinhamento ideológico dos membros do tribunal seja
em outro sentido, ignorar os obstáculos institucionais pode ser muito custoso.
Um argumento semelhante é desenvolvido por Tsebelis na explicação de como os
tribunais constitucionais podem vetar a legislação, já que, pelas suas características
institucionais, estariam incluídos “no núcleo de unanimidade dos atores existentes com poder
de veto” (TSEBELIS, 2009, p. 318). A primeira razão é que na escolha de juízes para a
suprema corte, algumas de suas posições decisórias não são conhecidas ou são consideradas
secundárias no momento (TSEBELIS, 2009, p. 319). A segunda é justamente que a revogação
de uma lei não é necessariamente uma oposição à ação governamental; ela pode ser
simplesmente “a expressão das preferências procedimentais, como a introdução de restrições
técnicas”, ou seja, “O tribunal pode estar indicando ao governo que essa determinada maneira
de atingir seu objetivo viola a Constituição e que, portanto, deve-se seguir uma linha de ação
diferente” (TSEBELIS, 2009, p. 319).
Nesse sentido, a anulação de uma lei estadual, por exemplo, pode ocorrer em razão
do descumprimento de uma regra procedimental na sua elaboração e não pelo entendimento
de que determinada matéria seria “melhor regulada” por uma lei federal (ainda que a
justificativa técnica possa ser vista como um subterfúgio ao enfrentamento da questão de
mérito). Do mesmo modo, pode haver uma violação patente de um dispositivo constitucional,
como uma lei estadual, no Brasil, que estabelecesse um novo tipo penal ou alterasse a pena de
um tipo previsto em legislação federal, embora tal situação possa soar improvável. Nesses
casos é possível predizer, com significativa probabilidade de êxito, a decisão do tribunal – e
não se deve atribuir isso a uma tendência do tribunal em favorecer o governo federal ou os
estaduais. É provável que esta não seja efetivamente uma situação frequente, mas, para maior
clareza e precisão, uma análise não pode desconsiderar essa distinção.
Além disso, outra possibilidade deve ser considerada: a existência de casos
repetitivos, como, por exemplo, quando vários estados promulgam lei em uma determinada
matéria que são, posteriormente, declaradas inconstitucionais. Se o julgamento das ações não
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ocorrer simultaneamente, várias decisões são incluídas como dados diferentes da tendência de
reforçar o governo central, quando, na verdade, houve apenas uma decisão pela centralização,
replicada por uma questão procedimental de uniformização. Como há certa previsibilidade
quando decisões sinalizam a posição do tribunal em certo sentido, quando se tratar de casos
semelhantes, talvez seja mais adequado considerá-los como um único dado.
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Os instrumentos judiciais, por sua vez, podem envolver uma série de diferentes
mecanismos, com abrangência e efeitos diversos. A constituição brasileira, por exemplo,
prevê cinco espécies de ação de controle de constitucionalidade: ação direta de
inconstitucionalidade (genérica), ação declaratória de constitucionalidade, arguição de
descumprimento de preceito fundamental, ação direta de inconstitucionalidade interventiva e
ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Dessas, as quatro primeiras podem remeter
diretamente a disputas federativas. A seguir, apresenta-se uma síntese das características
principais das três primeiras, já que a ação direta de inconstitucionalidade interventiva é um
instrumento da intervenção provocada por requisição, abordado anteriormente.
A ação direta de inconstitucionalidade (ADI), como visto, visa à invalidação de lei
ou ato normativo federal ou estadual, posteriores à promulgação do texto constitucional atual,
incompatíveis com a Constituição Federal. Para os estudos sobre o papel do judiciário
interessam particularmente aquelas em que se situam em polos opostos autoridades federais e
estaduais.
Já ação declaratória de constitucionalidade (ADC) destina-se a “blindar” leis ou atos
normativos federais. Serve, assim, como mecanismo preventivo para o governo central,
embora tenha como legitimados os mesmo da ADI. Contudo, devido à sua natureza dúplice
(como a ADI), pode surtir efeito reverso ao esperado: a decisão de constitucionalidade
implica na procedência da ação declaratória e na improcedência da ação direta e vice-versa.
Como instrumento passível de aumentar os poderes da esfera federal, talvez seja pertinente a
sua consideração.
A arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), por sua vez, inclui
a esfera municipal, embora tenha os mesmo legitimados da ADI e da ADC, e engloba mesmo
dispositivos anteriores à Constituição de 1988. Restringe-se a “atos”, sem abranger questões
de legislação. Uma análise detalhada poderia aferir sua utilização nas disputas federativas.
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5 Considerações finais
Nos Artigos Federalistas o reconhecimento da importância do judiciário no arranjo
institucional inaugurado pela constituição está entre os motivos que justificaram a sua
formação como ramo independente de poder. Na mesma linha, nas federações atuais, a
essencialidade da preservação do texto constitucional - e, por consequência, da distribuição do
poder entre os entes federativos - surge como uma das razões para a criação de um órgão
independente como árbitro nos eventuais conflitos que surjam entre as suas unidades
componentes. Federalismo, constituição rígida e controle de constitucionalidade aparecem,
assim, relacionados em estudos comparativos. Uma explicação alternativa da independência
do judiciário nas federações, centrada mais nos efeitos dos aspectos institucionais do que na
intencionalidade de seus desenhistas, é que nesses sistemas, dado determinadas características
institucionais frequentemente associadas, há maior estabilidade decisória e, portanto, menor
probabilidade de o legislativo obter sucesso no sobrestamento das decisões judiciais. Seja
qual for o caminho da causalidade, a relação frequente entre federalismo e judiciário
independente instiga o estudo sobre o papel das altas cortes nas federações. No estudo aqui
desenvolvido, foi possível demonstrar que, quando decide - seja definitivamente, seja
provisoriamente pelo deferimento de liminar - o STF se inclina em favor do ente central.
Contudo, uma série de questões a serem consideradas para transformar esse dado em uma
conclusão. Desse modo, a pesquisa sobre a influência da alta corte no sistema federativo
brasileiro deve investigar as possibilidades de atuação e o teor das decisões do árbitro
federativo, de modo a identificar indicadores que permitam aferir o grau de influência na
configuração do arranjo federativo.
6 Bibliografia
ANDERSON, George. Federalismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2009.
305
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HALBERSTAM, Daniel. Comparative Federalism and the Role of The Judiciary. In:
Whittington, K.; Kelemen, D.; Caldeira, G. Oxford Handbook Of Law And
Politics. New York: Oxford Univ. Press, 2008. Disponível em:
<http://www.law.ed.ac.uk/europa/files/halberstamcomparativefederalismjudiciary.pd
f>. Acesso em: 03 fev. 2013.
______.; HILLS, R. State Autonomy in Germany and The United State. Annals of
American Academy of Political and Social Science, mar. 2001,v. 574, p. 173-184.
Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/1049063>. Acesso em: 11 dez. 2012.
OLIVEIRA, Vanessa Elias de. Poder judiciário: árbitro dos conflitos constitucionais
entre estados e união. Lua Nova [online]. 2009, n.78, p. 223-250. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ln/n78/a11n78.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2012.
306
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SUMÁRIO:
1. Notas introdutórias; 2. Relato do julgamento do STF sobre
fidelidade partidária – tese vencedora e tese vencida; 3. Voto
nominal versus voto partidário; 4. O descompasso entre a
decisão do STF e a realidade das urnas; 5. Alternativa à decisão
do STF e a candidatura sem vinculação partidária; 6. Conclusão;
7. Referências bibliográficas.
RESUMO:
Este artigo foi elaborado no âmbito do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento
das Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-Graduação
em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na concorrência do Edital Universal nº 14/2011 (Processo nº
480729/2011-5), e pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(FAPERJ), na concorrência do Edital nº 09/2011 (Processo nº E-26/111.832/2011), além de Bolsa de Iniciação
Científica (IC-FAPERJ).
†
Mestranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. E-mail: cquirino@casacivil.rj.gov.br.
††
Graduando pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail:
pedrofedericiaraujo@gmail.com.
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verdadeiro soberano do Estado e como tal não pode ter sua vontade suprimida, afinal é capaz
de “tomar conta de si mesmo”.
ABSTRACT:
The present work starts in the current constitutional and political scenario of Brazil,
including constant tension before Federal Supreme Court decisions, when concerned about
the nature of Governments, competence and framework of separated Powers. Partisan loyalty
is the main issue analyzed, raised to discussion through Resolution, Injunctions and Direct
Action of Unconstitutionality before superior courts, namely the Electoral Court and the
Federal Supreme Court. The aim is to verify the degree of legitimacy around the modern
understanding that established political parties as holders (owners) of parliamentary mandates
(seats). The major purpose is to demonstrate how Courts should not decide about issues
related to other powers frameworks if people themselves can exercise directly this control.
Regarding the selected case, three arguments are brought forward: (i) the decision of the
Federal Supreme Court contradicts the will of the people expressed through the vote; (ii)
assuming the vote as a very important aspect of the democracy, the Courts should not change
its decision; (iii) as the sovereign power of the State, the people cannot see their will collapse,
after all “people can take care of themselves”.
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1. NOTAS INTRODUTÓRIAS
As discussões sobre fidelidade partidária são travadas sob diversas formas e aspectos.
Não se pode negar que é tema presente não só na esfera acadêmica jurídica, mas que se
relaciona com todos os cidadãos ao menos uma vez a cada dois anos (tratando-se,
obviamente, dos eleitores que comparecem às urnas nesse intervalo de tempo). Não é demais
sublinhar que se está diante de assunto de suma importância para o povo brasileiro e de
conexão direta com as matrizes dos poderes federativos e das instituições que participam do
cenário político e jurídico nacional na equação da governabilidade
O objeto que aqui se propõe analisar é a decisão do Supremo Tribunal Federal - STF
em relação ao debate travado sobre fidelidade partidária no Mandado de Segurança 26.602.
Em breves assertivas, vale dizer que se trata de decisão justaposta ao entendimento da
Resolução nº 22.526 (derivada da Consulta nº 1.398/2007) do Tribunal Superior Eleitoral
determinando que o candidato que porventura trocar de legenda após a eleição deverá perder
o mandato. Afirmou-se para tanto, em um verdadeiro “giro jurisprudencial”1, que o mandato
não pertence à pessoa do candidato eleito, mas sim ao partido, alterando entendimento
anterior do STF em relação ao ponto. Quanto às suas particularidades, a decisão será melhor
analisada posteriormente, esclarecendo-se qual era a posição anterior do Tribunal
Constitucional e como se operou tal mudança de entendimento. Importante ressaltar, no que
se refere ao objeto, que os argumentos da decisão não serão avaliados em certos ou errados;
em verdade, o que se pretende averiguar seria o grau de representatividade contido no
posicionamento assumido, e quais eventuais consequências poder-se-ia derivar desta decisão
no Poder Legislativo e na adequação que se coloca diante do mundo real.
Do objeto selecionado para estudo, surgem os pontos e as perguntas nodais que
orientam a análise e os argumentos suscitados neste trabalho. A premissa inicialmente
traçada subsume-se a verificar se a decisão do Supremo Tribunal Federal reflete a “realidade
das urnas”, isto é, se foram considerados aspectos singulares de representação eleitoral, tais
como identificação dos eleitores com partidos ou a afinidade pessoal com determinados
candidatos. Diante desta problemática, busca-se averiguar como a Corte Constitucional em
algumas decisões, a exemplo da análise do caso em específico, pode contrastar com a opinião
1
“A Emenda Constitucional 5, de 15.05.1985, suprimiu o instituto, agora revigorado, em outras bases, primeiro,
de modo expresso, pela Constituição de 1988; depois, diante do polêmico giro jurisprudencial operado pelo
Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral.”CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade
Partidária e Impeachment. 2ª Ed. Curitiba: Juruá Editora, 2012. p. 27.
310
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2
KRAMER, Larry D. People Themselves: Popular Constitutionalism and Judicial Review. Oxford
University Press, 2004. p. 105.
3
KRAMER, Op.cit., p. 107.
311
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
Antes de relatar o julgamento exarado pelo Supremo Tribunal Federal sobre fidelidade
partidária, cabe apontar que esta suscita diversas perspectivas. Aqui se trata da fidelidade
partidária relacionada à mudança de partido (legenda) após eleito, no decurso do mandato, o
que não se confunde com a fidelidade partidária em relação às posições do eleito durante as
votações no Congresso ou com sua postura parlamentar. Mais especificamente, estamos
tratando da fidelidade partidária relacionada com o regime proporcional com voto em lista
aberta (RPLA)4-5, próprio, na esfera federal, da eleição dos Deputados Federais6-7.
4
Conceitualmente, pode-se entender sistemas eleitorais como conjuntos de leis e regras partidárias que
estabelecem as regras para a competição eleitoral entre os partidos e a dinâmica interna dos mesmos. Há três
modelos de representação nas democracias: (i) majoritário, (ii) proporcional e (iii) misto. Bem colocados são os
esclarecimentos de Cristian Klein quanto à caracterização destes modelos, notadamente quanto ao proporcional:
“Sistemas proporcionais priorizam a representatividade. Seus defensores argumentam que a função primordial de
um sistema eleitoral é espelhar a diversidade da população no Parlamento.” KLEIN, Cristian. O desafio da
reforma política – consequências dos sistemas eleitorais de listas aberta e fechada. Mauad X: Rio de Janeiro,
2007, p. 25.
5
“Na lista aberta, não há uma relação de nomes preordenada. É o eleitor quem decide que candidatos ocuparão
as cadeiras conquistadas pelo partido. Os nomes mais votados ocupam os primeiros lugares de cada lista
partidária. No Brasil, no Peru e na Letônia, o cidadão tem duas opções: votar em candidatos ou na lista partidária
(voto de legenda).” Dado interessante é trazido pelo autor, ao apontar que das trinta e três maiores democracias,
que adotam o sistema proporcional de lista, 19 (58%) utilizam a lista fechada e 14 (42%) permitem o voto
preferencial (lista aberta, flexível ou livre).
6
Vale fazer breve esclarecimento: um Estado não precisa, necessariamente, uniformizar o sistema eleitoral. No
Brasil, por exemplo, adota-se o sistema majoritário de dois turnos na eleição para a Presidência da República, o
de maioria simples para o Senado Federal e o sistema proporcional de lista para a Câmara dos Deputados.
7
“(...) Manifesta-se, aqui, um segundo tipo de fidelidade partidária, insuscetível de autorizar sanção,
constituindo, portanto, a perda do mandato decretada pela Justiça Eleitoral, nos termos do novo entendimento do
Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitora, autêntica mutação constitucional, mera consequência
do nosso modelo de democracia representativa fortemente marcada pelo monopólio partidário das candidaturas
aos cargos eletivos.” CLÈVE. Op. cit., p. 24. Note-se no texto do autor que o mesmo fala na perda do mandato
decretada pela Justiça Eleitoral. Estamos diante de ponto crucial do presente trabalho onde encontramos a
questão de ser o povo o “outorgante” do mandato, como pode a Justiça Eleitoral revogá-lo? O assunto será
melhor abordado nos próximos itens.
8
Quociente partidário (QP) ou quociente eleitoral (QE) equivale ao número de votos válidos do partido ou
coligação. BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina. Quociente partidário. Disponível em:
<http://www.tre-sc.gov.br/site/eleicoes/eleicoes-proporcionais-criterios/index.html>. Acesso em 22 de fevereiro
de 2013.
312
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Nessa esteira, temos duas perspectivas diferentes: (i) a existência de candidatos menos
votados que dependem exclusivamente da soma de votos do partido para serem eleitos e (ii) a
situação de candidatos com grande volume de votos que não só não dependem dessa soma do
partido, como são eles responsáveis para que o partido tenha direito a um número de vagas
maior na aplicação do quociente partidário. Este é o cerne fundamental da discussão que se
colocou no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal durante os julgamentos
das mencionadas demandas. Para uma melhor digressão, é necessário contextualizá-las.
O Partido da Frente Liberal (PFL), representado pelo presidente da sigla, Jorge Bornhausen,
apresentou Consulta (CTA 1398) ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)10, na qual indagou sobre a
ocupação de vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, na hipótese em que o titular da vaga troca
de partido. O relator da matéria é o ministro Cesar Asfor Rocha. Na prática, a consulta busca
estabelecer a fidelidade partidária no país. Foram seus termos, in verbis:
9
A clareza de raciocínio de Jairo Nicolau se mostra indispensável para a questão: “O sistema em vigor no Brasil
oferece duas opções aos eleitores: votar em um nome ou em um partido. As cadeiras obtidas pelos partidos (ou
coligações entre partidos) são ocupadas pelos candidatos mais votados de cada lista. É importante sublinhar que
as coligações entre os partidos funcionam como uma única lista; ou seja, os mais votados da coligação,
independentemente do partido ao qual pertençam, elegem-se. Diferentemente de outros países (Chile, Finlândia e
Polônia) onde os eleitores têm que obrigatoriamente votar em um nome da lista para ter o seu voto contado para
o partido, no Brasil os eleitores têm a opção de votar em um nome ou em um partido (legenda). O voto de
legenda é contado apenas para distribuir as cadeiras entre os partidos, mas não tem nenhum efeito na distribuição
das cadeiras entre os candidatos”. NICOLAU, Jairo. O sistema eleitoral de lista aberta no Brasil. In: NICOLAU,
Jairo e POWER, Timothy J.. Instituições representativas no Brasil. Balanço e Reforma. Belo Horizonte:
Editora UFMG e Rio de Janeiro: IUPERJ, 2005.
10
O artigo 23, inciso XII, do Código Eleitoral, resguarda ao TSE a atribuição de responder a consultas
formuladas em tese, por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político.
11
Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 2 (relatório).
313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
Com o julgamento da Consulta n.º 1398 pelo Tribunal Superior Eleitoral, onde restou
afirmado que perde o mandato o parlamentar que migrar injustificadamente para outro
partido, o tema da infidelidade partidária voltou a ocupar a pauta do STF, por meio da
propositura dos Mandados de Segurança n.º 22.602, 22.603 e 22.604, todos contra atos do
presidente da Câmara dos Deputados que se negou a declarar vagos os cargos daqueles que
mudaram de partido.
No julgamento das referidas ações constitucionais o STF mudou de posicionamento,
entendendo pela ocorrência de perda do mandato do parlamentar que, de forma injustificada,
abandona o partido pelo qual se elegeu. A infidelidade partidária, enfim, segundo o STF,
constituía-se em hipótese de perda do mandato eletivo. Diz a ementa no julgamento do MS n.º
22.602:
“Mandado de segurança conhecido, ressalvado entendimento
do Relator, no sentido de que as hipóteses de perda de mandato
parlamentar, taxativamente previstas no texto constitucional,
reclamam decisão do Plenário ou da Mesa Diretora, não do Presidente
da Casa, isoladamente e com fundamento em decisão do Tribunal
Superior Eleitoral. 2. A permanência do parlamentar no partido
político pelo qual se elegeu é imprescindível para a manutenção da
representatividade partidária do próprio mandato. Daí a alteração da
jurisprudência do Tribunal, a fim de que a fidelidade do parlamentar
perdure após a posse no cargo eletivo. 3. O instituto da fidelidade
partidária, vinculando o candidato eleito ao partido, passou a vigorar a
partir da resposta do Tribunal Superior Eleitoral à Consulta n. 1.398,
em 27 de março de 2007. 4. O abandono de legenda enseja a extinção
do mandato do parlamentar, ressalvadas situações específicas, tais
como mudanças na ideologia do partido ou perseguições políticas, a
serem definidas e apreciadas caso a caso pelo Tribunal Superior
Eleitoral. 5. Os parlamentares litisconsortes passivos no presente
mandado de segurança mudaram de partido antes da resposta do
Tribunal Superior Eleitoral. Ordem denegada”
[grifos nossos]
314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
Com base nessa decisão e de outras com caráter similar, o Tribunal Superior Eleitoral
editou a Resolução n.º 22.610/2007, o que fez com que o Supremo Tribunal Federal voltasse a
examinar a matéria, dessa vez com uma amplitude maior, já que o fez em sede de Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADIN), nas ADIN 4086 e 3999.
Na ADIN n.º 4086 proposta pelo Procurador Geral da República, questionou-se a
inconstitucionalidade de vários artigos da Resolução TSE n.º 22.610/2007, dentre eles: o
artigo 2º12, que ao atribuir competência ao Tribunal Superior Eleitoral e aos Tribunais
Regionais Eleitorais, feriria o artigo 121 da CF/8813, uma vez que tal artigo prevê reserva de
Lei Complementar para instituição de competência dos Tribunais, Juízes e Juntas Eleitorais;
suposta usurpação da competência dos poderes executivo e legislativo para legislarem sobre
matéria eleitoral, conforme disposto nos artigos 22, I14, 48 caput15 e 84, IV16 da CF/88, em
virtude do artigo 1º da Resolução dispor de forma inovadora sobre a perda do mandato
eletivo17, bem como infração ao princípio da separação dos poderes, previsto pelos artigos
2º18, 60, § 4º, III19 da CF/88.
Percebe-se que as decisões do STF em sede de Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade possuem efeitos especiais, sobretudo por valer para todos os
jurisdicionados, inclusive de observância obrigatória para todo o Poder Judiciário e Poder
Executivo. E foi com esse poder de decisão que a Corte Suprema entendeu ser a Resolução n.º
22.610/2007 do TSE plenamente compatível com a CF/88, ou seja, declarou (por via da
12
“Art. 2º - O Tribunal Superior Eleitoral é competente para processar e julgar pedido relativo a mandato federal;
nos demais casos, é competente o tribunal eleitoral do respectivo estado.”
13
“Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e
das juntas eleitorais.”
14
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual,
eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;”
15
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o
especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
16
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)IV - sancionar, promulgar e fazer publicar
as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
17
Art. 1º - O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo
eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa. § 1º - Considera-se justa causa: I) incorporação
ou fusão do partido; II) criação de novo partido; III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa
partidário; IV) grave discriminação pessoal. § 2º - Quando o partido político não formular o pedido dentro de 30
(trinta) dias da desfiliação, pode fazê-lo, em nome próprio, nos 30 (trinta) subseqüentes, quem tenha interesse
jurídico ou o Ministério Público eleitoral. § 3º - O mandatário que se desfiliou ou pretenda desfiliar-se pode
pedir a declaração da existência de justa causa, fazendo citar o partido, na forma desta Resolução.
18
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
19
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...)§ 4º - Não será objeto de deliberação a
proposta de emenda tendente a abolir: (...)III - a separação dos Poderes”.
315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
2.1. A tese vencedora que conferiu os mandatos parlamentares aos partidos políticos
20
Ressalta-se que não temos interesse em falar dos efeitos ex nunc atribuídos a Resolução do TSE, já que o
objeto do presente trabalho limita-se à verificação do entendimento de que o mandato pertence ao partido e não
ao candidato.
21
Campo da filosofia e hermenêutica jurídica que certamente não é objeto deste trabalho. Mas, dada a colocação
de certas proposições nos votos dos Ministros, é importante demonstrar essa possibilidade de duplicidade de
entendimento que corroborará a conclusão final.
22
“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor
igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...)§ 3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei: (...)V -
a filiação partidária;”
23
Trata-se de expressão conhecida no meio das ciências sociais e políticas que refere-se às democracias onde os
partidos políticos exercem papel de protagonista, quase como um monopólio dos mesmos.
24
Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 31.
316
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
25
“Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania
nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os
seguintes preceitos: (...)§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna,
organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem
obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal,
devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.”
26
Importante referenciar mais uma vez que, em que pese as interpretações dos Illmo Ministros, estamos diante
de diferente tipo de fidelidade partidária, conforme já demonstrado pelo texto de Clèmerson Cléve transcrito
acima. Essa diferenciação foi inclusive mencionada pelo Ministro Cezar Peluso durante seu voto. Não nos parece
que se possa usar facetas diversas de um mesmo instituto jurídico como se fossem a mesma.
27
“Art. 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional,
em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal.
28
“Art. 108 - Estarão eleitos tantos candidatos registrados por um Partido ou coligação quantos o respectivo
quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido.”
29
Ilustra bem o comentário tecido pelo Ministro Relator Cesar Asfor Rocha: “Antes de dar por concluído este
voto, quero registrar que mandei fazer um levantamento de todos os deputados eleitos nas eleições de 2006 e
pude verificar que, dos quinhentos e treze deputados federais eleitos, somente trinta e um (cerca de 6,04%)
obtiveram votos próprios para atingir o quociente eleitoral, sem que houvesse necessidade de receber votos
conferidos à sua legenda atribuídos a outros candidatos do seu próprio partido ou de sua própria coligação”.
317
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30
Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 3.
31
Como mencionado acima o objeto do artigo não é verificar a correção da decisão do STF, o que nos levará
apenas a breve menção as teses dissenssoras, já que o ponto crucial do estudo será tratado em item posterior.
318
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a importância dos partidos políticos dada pela Carta Magna, porém explicou, claramente, que
a Constituição não desejou prever hipótese de perda de mandato por troca de legenda, o que
constaria no art. 5532, caso fosse de desejo33, Foi em virtude desse entendimento do STF que
se considerou a sua nova posição como mutação constitucional. Coloca-se em questão a
interpretação da Constituição, quando em ausência de disposição expressa, os precedentes
anteriores determinaram pela não perda do mandato parlamentar. O que agora se revela
conflitante, quando a nova proposição é de que, apesar de não haver previsão da hipótese,
depreende-se da Constituição que o parlamentar não pode manter o mandato por partido que
não se elegeu.
Em alegações, as partes trouxeram alguns argumentos interessantes, dentre eles o de
que o vínculo político é autônomo, ou seja, que o vínculo entre candidato eleito e instituição,
uma vez estabelecido, não é intermediado pelo partido, ao menos não em sua natureza
jurídica. De mesma forma, alegaram os deputados que tinham, à época, seu mandato
ameaçado, que não dependeram dos quocientes eleitorais para obter suas cadeiras, assim, não
deveriam carregar o fardo de permanecerem vinculados a seus partidos. Sustentou-se ainda
que, diante da possibilidade de voto na legenda e no candidato, a maioria dos eleitores escolhe
o candidato e não no partido34.
Dos três argumentos mencionados, os dois últimos merecem destaque, sendo que o
último será tema específico do próximo item. Importante se mostra a alegação de que alguns
Deputados não necessitam dos quocientes eleitorais para serem eleitos, porque foi a mesma
questão nodal que serviu a ambos os acórdãos. Curioso notar que, no voto do relator do
julgamento no TSE, foram apontados dados estatísticos para demonstrar que a maioria dos
deputados necessita do quociente eleitoral para serem eleitos. A questão que aqui causa
inquietude poderia ser formulada da seguinte forma: como podem os Plenários de ambos os
Tribunais basearem suas decisões em um dado que corresponde apenas, queremos ressaltar,
apenas à maioria? Como podem os Deputados que, em tese, não dependeram dos partidos
para se eleger, estarem também impedidos de trocar de partido durante o mandato? Deve-se
lembrar ainda, que para ser eleito sem depender do quociente partidário, os referidos
candidatos estão entre os mais votados do País. Estas problemáticas por si só seriam
facilmente respondidas pelos defensores da tese vencedora, entretanto o que se pretende aqui,
32
“Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:(...)”
33
MS 26.602/DF. Relator: Ministro Eros Graus, 2007. p. 44.
34
“Alega que no Brasil pode-se votar tanto na legenda do partido como no candidato, individualmente, sendo
essa última modalidade de votação a que prevalece entre os eleitores.” MS 26.602/DF. Relator: Ministro Eros
Graus, 2007. p. 10.
319
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A conclusão a que se pretende chegar nesta seção será demonstrar que o eleitor não
equaciona somente a ideologia partidária ao decidir seu voto. O fator nominal36, isto é, a
pessoa do candidato, é elemento que sobressai no momento dessa escolha.
Não é demais enfatizar que há existência de significativa parcela da população que
não considera a conjuntura ideológica. Hodiernamente, pode-se verificar que os Deputados
Federais mais votados nos Estados são, normalmente, exemplos dessa escolha.
Ab initio, veja-se os resultados das últimas eleições de São Paulo para Deputado
Federal, considerados os candidatos com grande número de votos37:
35
CLÈVE. Op. cit., p. 31.
36
O fator nominal nada mais é do que a importância do nome, do pessoal, do individual, isto é, das
características que tornam o candidato singular em relação aos outros e ao partido.
37
Tabela preparada pelos autores. Dados disponibilizados no sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, em
“estatística das eleições”.
320
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
dois últimos: Clodovil e Tiririca encontram-se projetados em uma nova tendência partidária e
eleitoral, de eleição de figuras públicas com grande exposição na mídia, forte apelo popular e
que não demonstravam, até o momento, nenhuma aptidão política. Diametralmente oposta é a
situação em que se encontrava o candidato Enéas Ferreira, vez que possuía história política
conquistada paulatinamente no cenário nacional, muito antes do sobredito período eleitoral.
Diante de tais premissas, podem-se analisar dois elementos indispensáveis para caracterizar o
recrudescimento do voto personalizado: (i) as crises de representatividade do Poder
Legislativo, haja vista os escândalos de corrupção rompantes nas décadas anteriores e; (ii) a
frágil mobilização ideológica partidária.
Como já diversas vezes ressaltado, a lista aberta oferece um maior grau de liberdade
ao eleitor. No final do processo eleitoral, o parlamentar, representante eleito para ser
responsável pelas decisões legislativas, será uma escolha feita por meio do voto
personalizado. Nesta esteira, tradicionalmente se vislumbra o cenário brasileiro como avesso a
partidos. A conexão eleitoral, desta forma, seria amplamente personalista, pois os eleitores
estariam notadamente identificados com candidatos39.
Ademais, não obstante esta enraizada personalização eleitoral, também não se pode
afastar que no período democrático o país viveu situações de intenso descontentamento do
eleitorado em face de escândalos políticos – tais como casos de corrupção. Desta forma, o
voto preferencial funciona como “válvula de escape que trabalha a favor da legitimidade do
sistema político e é inexistente no sistema de lista fechada. Na lista aberta, os eleitores tem a
chance de punir o mau parlamentar. Na lista fechada, essa é uma prerrogativa exclusiva do
partido”40.
Apontadas tais premissas, pode-se verificar que o quadro acima traz a indicação de
Deputados Federais de grande apelo midiático, com vida anterior de presença em programas
de televisão, carreira artística e identificação com público. É importante destacar que nenhum
dos dois candidatos apresentados tinha história de liderança política, nem relação clara com
qualquer partido. Clodovil se candidatou pelo Partido Trabalhista Cristão – PTC (antigo
Partido da Juventude que elegeu o Presidente Fernando Collor, posteriormente, denominado
Partido da Reconstrução Nacional, antes se firmar com a sigla atual). Tratamos de um partido
que teve o nome alterado por três vezes. Apesar do sucesso nas eleições presidenciais do
38
O candidato Clodovil, em 2006, ficou atrás dos Deputados Paulo Maluf e Celso Russomanno, mas como
evidenciava mais claramente nossa tese, trouxemos seus dados para o artigo.
39
V., por todos, MAINWARING, Scott. Políticos, partidos e sistemas eleitorais – o Brasil numa perspectiva
comparada. Novos Estudos Cebrap, n.29, 1991.
40
Cf. explica KLEIN, Cristian. Op. cit., p.53.
321
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
início dos anos 90, não se pode atribuir ao partido grande conhecimento ou identificação da
massa popular. Junto a esse fato, o partido já demonstrou afeição por candidatos sem carreira
política, vez que, além de Clodovil já foi candidato pelo PTC José Mojica Marins, o famoso
“Zé do Caixão”.
Não se pode – nem pretende a análise em tela - questionar a utilização de candidatos
sem carreira política anterior. O que se pretende demonstrar é que a pequena projeção do
partido e o sucesso de votação do então Deputado Clodovil são indicadores claros de que a
eleição do terceiro Deputado Federal mais votado de São Paulo não se atribuiu ao projeto
político do partido. Fosse isso, os então eleitores de Clodovil iriam dirigir novamente grandes
votos ao PTC, possibilitando o aumento de sua bancada na Câmara dos Deputados, o que não
ocorreu.
Pode-se vislumbrar idêntica situação quanto à eleição do Deputado Federal Francisco
Everaldo Oliveira Silva. Este nome pouco conhecido, na verdade, carrega um significante sem
valor se comparado ao seu nome artístico: Tiririca. Eleito Deputado Federal mais votado no
Estado de São Paulo nas eleições de 2010, segundo deputado mais votado da história do país.
Qual a ideologia política de partido apresentada pelo candidato durante as eleições?
Sua plataforma política era a ética, honestidade e a aproximação da política que acontece em
Brasília com a base eleitoral que pretendia atingir. A campanha pautou-se na ironia para
questionar a política brasileira41, inteligência publicitária (e/ou política) que lhe rendeu
representação junto ao Ministério Público por afronta ao Congresso Nacional, sem quaisquer
desdobramentos posteriores.
Neste caso, poder-se-ia atribuir a campanha publicitária do candidato a uma ideologia
partidária? Obviamente a resposta é negativa. Provavelmente, muitos eleitores sequer sabiam
que estavam votando em um candidato do Partido da República.
Desta forma, torna-se fato notório que as candidaturas de Clodovil e Tiririca não
encontraram respaldo na apresentação de um partido político, mas sim, predominantemente,
no voto nominal, isto é, aquele dirigido única e exclusivamente ao candidato, não ao partido.
Não obstante, tais candidaturas funcionam como verdadeiros dínamos propulsores dos
partidos, haja vista que essas votações contribuem em larga escala para o aumento do
quociente partidário e, consequentemente, da bancada na Câmara dos Deputados.
De outro giro, vislumbra-se exemplo de personalismo: a eleição do Deputado Federal
Enéas. O famoso político iniciou sua carreira nas primeiras eleições presidenciais diretas após
41
O candidato utilizou bordões do tipo: “O que faz um deputado federal? Na realidade, eu não sei. Mas vote em
mim que eu te conto” e “ Vote Tiririca, pior que tá não fica”.
322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
42
NICOLAU, Jairo. O sistema eleitoral de lista aberta no Brasil. In: NICOLAU, Jairo e POWER, Timothy J..
Instituições representativas no Brasil. Balanço e Reforma. Belo Horizonte: Editora UFMG e Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2005, p. 105.
43
Temos no Brasil um chamado sistema misto, onde o eleitor pode votar no candidato ou na legenda do partido.
O percentual de votos nas legendas é menor hoje, apesar das variações, se comparado aos anos anteriores, o que
é fator crucial nessa verificação da personalização do voto do eleitor e falha na credibilidade dos partidos.
323
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
escolha se pautava no partido e, por fim, a mesma porcentagem atribuiu a decisão aos dois
fatores44.
Não resta dúvida que se apresentou aqui o desejado, o eleitor em cenário pátrio vota
pensando principalmente nas características pessoais do candidato e não no partido ou na
ideologia partidária. Todos os fatores acima respaldam essa posição e consagram a hipótese
ventilada de que a identificação se dá entre eleitor-candidato, logo o requisito de filiação
partidária, em tese, poderia ser reconsiderado e interpretado como elemento meramente
formal e procedimental para a eleição de diversos candidatos (como, de fato, aconteceu em
alguns momentos). A realidade eleitoral brasileira, em panorama geral, não consagra os
partidos políticos como fortes instituições ideológicas e de reconhecimento popular a influir
determinantemente nas decisões de voto da população.
Em face das conclusões anteriormente traçadas, pode-se ressaltar uma premissa que
recrudesce ao longo da análise empreendida: o posicionamento do STF, in casu, aparenta não
estar em perfeito encaixe com as engrenagens fáticas sociais. Em outras palavras, não
obstante a justaposição normativa se fazer presente em todo o arcabouço argumentativo
traçado para sustentar o pertencimento do mandato ao partido e não ao agente político, as
ferramentas interpretativas utilizadas parecem não considerar como o eleitor percebe
individualmente o candidato e, por diversas vezes, não atrela seu voto a qualquer ideologia
partidária. Tal constatação aponta para diversas consequências delicadas, notadamente quanto
ao distanciamento da Corte Constitucional para como parcela significativa da sociedade
concebe o voto personificado. Há, aparentemente, ausência de compreensão institucional
quanto ao fenômeno que, de tão nítido, pode beirar o senso comum.
Somente a titulo de esclarecimento, deve ficar consignado que, hodiernamente, a
construção de democracias constitucionais estão articuladas sob dois eixos: (i) autogoverno do
povo e (ii) direitos fundamentais. É nítido o recrudescimento popular na esfera pública,
moldando-se como legitimador dos atos/omissões praticados pelo Poder Público, bem como
igualmente límpido a necessidade de manutenção de um governo que proteja minorias.
44
NICOLAU, Jairo. Op. cit., p. 110.
324
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
45
Dada a extensão do tema e as diversas nuances das teorias trabalhadas, é interessante ler as sintéticas e densas
considerações feitas em BOLONHA, Carlos; EISENBERG, José; RANGEL, Henrique. Problemas institucionais
no constitucionalismo contemporâneo. Direitos Fundamentais & Justiça, ano 5, n.17, 2011.
46
"O ponto em que o constitucionalismo popular difere do entendimento atual está em segundo plano. Ele não
presume que a interpretação jurídica autorizada possa acontecer apenas nos tribunais, mas, antes, pressupõe que
um processo de interpretação igualmente válido possa ser empreendido nos poderes políticos e pela comunidade
geral. (...). " KRAMER, Larry. Democracia deliberativa e constitucionalismo popular: James Madison e o
'interesse do homem". Limites do controle de constitucionalidade. BIGONHA, Antonio Carlos; MOREIRA,
Luiz (org.). Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009, p.89.
47
V. KRAMER, Larry. Foreword: We The Court. Harvard Law Review, v. 115, n.1, 2001.
48
A digressão ora trabalhada debruça-se principalmente nos capítulos 4 e 5, p. 93 – 143, da obra de de
KRAMER, op. cit.,. Como o que se pretende nessa seção é reproduzir a tese apresentada nesses dois capítulos do
livro, nos reservamos o direito de não introduzir as referências a cada página...
49
Os Framers ficaram assim designados após sua contribuição ao debate que antecedeu a promulgação da
Constituição dos Estados Unidos e, posteriormente publicados sob o título: HAMILTON, Alexander;
MADISON, James; JAY, John. The federalist papers. Electronic Classics Series Publication: Pennsylvania
State University, 2001. Em contraponto, no entanto, os antifederalistas criticavam principalmente o sistema de
checks and balances, aludindo-se naturais entraves causados pelas próprias desavenças políticas da Democracia.
325
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
das instituições do Estado e dos papéis a que se caberiam aos Poderes, aos partidos e ao povo.
O que importa principalmente são as discussões que se detiveram acerca do controle judicial
sobre atos de outros Poderes, vamos além da perspectiva de Marbury vs Madison, tida
erroneamente como marco inicial do judicial review50.
Após a perda do poder dos Federalistas para os Republicanos e uma série de
estratégias utilizadas pelos perdedores para se manterem no jogo de governabilidade através
dos órgãos Judiciários, surge a discussão sobre a independência dos Poderes e sobre a
soberania/supremacia do Judiciário. As Cortes justificavam a necessidade de controle de leis e
atos inconstitucionais por serem elas representantes do povo, guardiãs da Constituição e que
por isso deveriam se negar a aplicar normas contrárias a mesma, porque qualquer cidadão
deveria agir deste modo, sendo o principal mecanismo para manter a vontade do povo
manifesta no texto magno.
De um lado temos os Federalistas, preocupados e amedrontados com as participações
populares no Estado, fortalecendo a ideia de um governo forte, que não se confunde com o
povo. Pensamento que coloca a soberania popular como elemento criador do Estado, ao passo
que, uma vez escolhidos os representantes para governar, na forma estabelecida pela
Constituição, não seria mais o povo chamado a resolver qualquer problema de competência
governamental. Seria uma democracia “tradicional” de escolha, onde a soberania popular
estaria alienada aos seus representantes após a nomeação dos mesmos, dessa forma a
soberania não é perpetuamente popular, mas do povo deriva. A posição federalista acerca do
controle judicial se coloca nesse sentido, baseada na necessidade de decisões
intragovernamentais, caberia ao poder judiciário controlar os atos parlamentares que
violassem a Constituição, porque este seria a instituição com a devida imparcialidade e
formação para tanto. A tese aqui vai além de um simples controle: consiste, em verdade, na
grande jogada da supremacia do Judiciário em relação aos outros Poderes, vez que ele teria
prerrogativa inclusive para declarar inconstitucionais leis promulgadas pelo Parlamento51. O
Poder Judiciário finalmente foi consagrado como instituição máxima de proteção da
Neste sentido, “Entretanto, convém notar que, apesar da habitualidade com que são confundidas, não existe
identidade entre a proposta de adotar um sistema de ‘freios e contrapesos’ e um sistema de (simples) divisão de
poderes. Mais ainda, nos anos de debate constitucional, nos Estados Unidos, federalistas e antifederalistas se
distinguiram entre si fundamentalmente pela posição que adotaram frente a tais questões”. GARGARELLA,
Roberto. “Em nome da Constituição: o legado Federalista dois séculos depois”. Filosofia Política Moderna: de
Hobbes a Marx Boron. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006, p. 176.
50
De acordo com o autor, não se pode utilizar o caso supracitado como defesa para a supremacia judicial, vez
que o objetivo do judicial review, à época, era outro. Para uma melhor aprofundamento quanto ao ponto, v.
SNOWISS, Sylvia. The Marbury of 1803 and the Modern Marbury.
51
Para além de um projeto de Estado, as posições federalistas nesse sentido relacionam-se intimamente com seu
interesse em manter o poder após derrota nas eleições pelo país.
326
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
Federação, isto porque seria ele o único capaz de guardar a Constituição dos ataques do
parlamento e do próprio povo. Este que poderia, segundo os Federalistas, ser considerado seu
maior inimigo nessa questão.52
Instaurou-se então à discordância republicana. Questionou-se primeiramente a
inexistência de um princípio que concedesse ao Judiciário esse poder de revisão que estava
sendo deferido. À resposta federalista de que a indecisão de umiapoder para dar a palavra
final seria o estabelecimento de uma indecisão perpétua em caso de conflitos, os republicanos
diziam que a interpretação final reside no povo53. A seu turno, Jefferson e Madison defendem
que não há melhor segurança de controle do que aquela colocado nas mãos do povo, para o
arrepio dos Federalistas. Com ações públicas (leia-se ações deflagradas pelo Governo) e
determinadas de cada órgão governamental, configuraram-se vários sentinelas nas figuras dos
cidadãos. Afinal de contas todos estão subordinados a vontade da comunidade. A
argumentação trazida alude inclusive à possibilidade de o Judiciário cometer violações em
nome da constituição, contra ela mesma54. Desta feita, não estaríamos nunca seguros, se não
nas mãos do povo. Aqui reiteram o principal ponto: people can take care of themselves – o
povo é capaz de tomar conta de si mesmo (tradução nossa).
Em que pesem as extremidades defendidas, os Republicanos não desejavam expurgar
o controle judicial ou ainda questionar as qualidades e qualificações do Judiciário para tomar
decisões relativas ao direito. O que se colocava em questão era o exacerbado enaltecimento de
um dos Poderes do Estado, a colocação do Poder Judiciário como supremo, posição de
superioridade essa não aceita pelos Republicanos, pois se entendia que a verdadeira
supremacia só poderia revelar-se no povo e em ninguém mais.
Dito isto, pode-se afirmar que há uma relação íntima entre os impasses destacados no
cenário norte-americano e a problemática trazida por meio das decisões do STF e do TSE
sobre fidelidade partidária. A revisão e o controle judicial são questões consagradas no direito
sobre diversos aspectos, entretanto não se pode esquecer os ensinamentos trazidos pelos
republicanos com tanta assertividade: por mais que seja necessário um Poder capaz de
resolver os conflitos emergentes entre os próprios Poderes do Estado, não deveria a Corte
Constitucional arrogar-se nessa qualidade para interpretar a Constituição em manifesta
contraposição à vontade manifesta do povo.
52
KRAMER. Op. cit., p. 132.
53
Apenas é importante destacar essa colocação como proposição chave: em caso de indecisão, a interpretação
final da constituição fica com o povo.
54
Destaca-se aqui também algo que se adequa perfeitamente a nossa proposição de relação entre as discussões
relatadas e ao nosso caso.
327
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
55
Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 7.
56
Possibilidade de voto no candidato ou na legenda nas eleições proporcionais para Deputados Federais.
57
"Ademais, sem responsividade popular o Judiciário representa o povo apenas de forma paternalística, pois se o
agente protege os interesses do titular segundo o seu julgamento (e não o do titular), atua como espécie de
superego de uma sociedade que se infantiliza pela incapacidade de tomar decisões que afetam a sua vida."
BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra
sobre o sentido da Constituição? Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2012, p.216. Para maior aprofundamento,
v. MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade – o papel da atividade jurisprudencial na
‘sociedade-órfã’. Novos Estudos Cebrap, n. 58, p. 183-202.
328
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
O autor utiliza o quadro para afirmar sua tese de que os eleitores estão preocupados
com a fidelidade partidária e que não votam somente pelo candidato, mas o partido tem
extrema importância nessa escolha.59 Não temos dúvida que tais conclusões refletem alguma
parcela da população, mas já foi demonstrado eleitores que só levam em conta o elemento
pessoal e que são a aparente maioria. Com a devida vênia, há motivos para se discordar das
correlações feitas entre as conclusões exaradas pelo autor e das estatísticas apresentadas, vez
que não parece ser razoável inferir desse quadro elementos que contrariem a mencionada
pesquisa de opinião com pergunta direta que foi exposto mais acima.
Em perspectiva diversa, é verificável que, não obstante as diferentes proporções
indicadas, a taxa de reeleição aumentou em ambos os casos, , o que demonstra um aumento
no apreço dos eleitores pelos candidatos ainda que os mesmos alternem de partido.
Não obstante o uso engendrado pelo autor, as informações trazidas neste quadro
também servem para verificar outra premissa: admitindo-se que há eleitores votantes em
partido e candidato (sem distinção de maioria ou minoria) e que, supostamente, há
insatisfação dos eleitores quando seus candidatos mudam de legenda (representada pela taxa
de 46,7% de deputados “infiéis” que perderam a eleição – conforme os dados da tabela),
ainda assim a decisão de conferir os mandatos parlamentares aos partidos foi inadequada.
Inadequada porque essas considerações demonstram o que se pretendeu neste item, que o
58
MARENCO, André. Desempenho Eleitoral, Voto Partidário e Responsabilização nas Eleições Legislativas
Brasileiras. In: INÁCIO, Magna e RENNÓ Lucio. Legislativo Brasileiro em Perpectiva Comparada. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 301.
59
MARENCO, Op. cit., p. 298-303.
329
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
povo é capaz de tomar conta dele mesmo, ele é o verdadeiro controlador dos poderes
constituídos da República.
Mais uma vez coloca-se questão central do Estado e de Constituição dos Poderes e é
nesse ponto que a revisão judicial deve se limitar a violações manifestas e expressas da
constituição, sob pena de violar a vontade do povo, entendimento colocado pelos republicanos
nos debates sobre o tema.60 Soma-se a isso a questão de maior importância, evidenciada nesse
caso específico da fidelidade partidária: o povo é capaz de tomar conta de si mesmo e exercer
controle. O exercício desse controle se faz a cada legislatura nas urnas e seria eficaz e
legítimo, demonstrando claramente a vontade do povo em punir com a perda do mandato os
candidatos que trocassem de legenda contra os anseios de seus eleitores e ao inverso, ratificar
o ato daqueles que trocaram de legenda em favor de seus eleitores. O maior remédio para a
alegada “imoralidade” da infidelidade partidária é o voto61.
O arcabouço argumentativo até então construído demonstra sua total pertinência para
concluirmos pela viabilidade de duas premissas: (i) a tentativa de consonância entre o
posicionamento das Cortes Superiores e os anseios sociais e (ii) a predisposição parlamentar
na propositura do Projeto de Emenda Constitucional nº 7 de 2012 – PEC nº 7/2012 – do
Senador Cristovam Buarque62.
Quanto ao primeiro ponto, pode parecer simples – e beirando a ingenuidade – suscitar
que bastaria às Cortes que se predispusessem a incutir nas suas equações decisórias elementos
extraídos das situações sociais. É uma questão de vontade institucional63.
Ademais, a questão também perpassa pelo olhar institucional crítico. Não é necessário
se estender em relação ao posicionamento que deveria ter sido tomado pelos tribunais que
figuram nesse imbróglio jurídico. Alternativamente ao posicionamento inadequado, o STF e o
60
KRAMER. Op. cit., p. 102-103.
61
KRAMER. Op. cit., p. 141-142.
62
De pronto deve ser assinalado que não se pretende analisar os aspectos técnicos e econômicos derivados da
PEC, mas tão somente o proposto mecanismo de desfiliação partidária para candidatura.
63
Vontade institucional é um elemento utilizado pela teoria neoinstitucionalista de matriz histórica-interpretativa
para designar o elemento subjetivo das instituições, sua força-motriz, caracterizada pela combinação de
perspectiva coletiva de indivíduos que participam da instituição e da cultura institucional da organização.V.
MILLER, Mark C. The view of the courts from the hill: a neo-institutional perspective. In: MILLER, Mark C. &
BARNES, Jeb (Ed.). Making Policy, Making Law: an interbranch perspective. Washington, DC:
Georgetown University Press, 2004, p. 53/71.
330
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição
TSE poderiam não ter alterado o entendimento anterior, não necessariamente baseando-se no
fato de que o partido não tem importância, mas colocando a clara e forte posição de que é o
povo o verdadeiro soberano do Estado e que ele exercerá o controle relativo a esta questão.
Demonstrar ainda que o judiciário não deve sub-rogar-se em tão importante decisão do povo
em relação aos seus representantes, sob pena de colocar em conflito e em confusão os
verdadeiros papéis de Estado e cidadão. São mais do que plausíveis os argumentos
apresentados pelos Ministros em relação à fidelidade partidária, mas não deveriam os mesmos
ter se prestado a jurisdição nesse ponto, afirmando que a Constituição concede o poder
máximo ao povo e que em questões de Constituição do Estado que não sejam manifestamente
infringentes do Texto Magno, não deve a Corte se posicionar em lugar do povo. Seria um
posicionamento adequado com a realidade e menos controverso, que neste liame não geraria
tensão entre os poderes, mas principalmente não afastaria a identificação do cidadão com as
instituições republicanas.
Quanto ao segundo ponto, a Proposta de Emenda à Constituição nº 7/2012 pretende
alterar a redação do §3º, V do art. 14 da Constituição Federal64, para acrescentar a
possibilidade de candidatura sem vinculação a Partido Político, apenas com a subscrição de
determinado número de eleitores65. A justificativa elaborada debruça-se sobre a necessidade
de afastar do ordenamento jurídico o monopólio partidário e, consequentemente, oportunizar
ofortalecimento da soberania popular. Não se quer com isso defender qualquer argumento que
tente denegrir ou marcar como nocivas as instituições partidárias, pelo contrário. Não se pode
afastar a importância da manutenção partidária brasileira e a motivação para o seu paulatino
fortalecimento ideológico. Entretanto não se pode esconder o abismo existente entre o papel
ideal dos partidos políticos – que proporcionaria a conexão representativa direta com o
cidadão –, diferente do que se apresenta na prática, inclusive no momento das urnas.
64
Assim determina o artigo 14 da Constituição Republicana: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio
universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...)§ 3º - São
condições de elegibilidade, na forma da lei: (...)V - a filiação partidária”. Pretende-se alterar este inciso, que
passaria a ter a seguinte redação: “ V – a filiação partidária ou, na forma da lei, a subscrição do pedido de
registro de candidatura por certo número de eleitores.”
65
Conforme se extrai do sítio eletrônico do Senado Federal, a PEC encontra-se estagnada desde 29 de fevereiro
de 2012, aguardando pronunciamento da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. É interessante ainda
transcrever breve excerto da justificativa traçada pelo Senador Cristovam Buarque: “(...) A mudança proposta é
facilmente aplicável ao sistema eleitoral atualmente praticado, seja para cargos do Poder Executivo ou do
Legislativo, bem como adaptável a eventuais mudanças no sistema vigente, como, por exemplo, a adoção de um
modelo distrital puro ou misto. Questões como a suplência e o funcionamento parlamentar podem ser resolvidas
mediante a aplicação das regras constitucionais já vigentes e alterações no ordenamento infraconstitucional. Com
certeza de que essa medida permitirá o aprimoramento da representação política e a aproximação entre
mandantes e seus mandatários, (...).”
331
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6. CONCLUSÃO
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Oxford handbook of political science. New York: Oxford University Press, p. 196/216.
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Classics Series Publication: Pennsylvania State University, 2001.
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KITSCHELT, Herbert. Party Systems. In: GOODIN, Robert E. The Oxford handbook of
political science. New York: Oxford University Press, p. 616/647
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perspective. Washington, DC: Georgetown University Press, 2004, p. 53/71.
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