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Coleção CONPEDI/UNICURITIBA

Vol. 37

Organizadores

Prof. Dr. Orides Mezzaroba


Prof. Dr. Raymundo Juliano Rego Feitosa
Prof. Dr. Vladmir Oliveira da Silveira
Profª. Drª. Viviane Coêlho de Séllos-Knoerr

Coordenadores

Prof. Dr. Rogério Dultra dos Santos


Prof. Dr. Emerson Gabardo
Profª. Drª. Janaina Rigo Santin

TEORIA DO ESTADO E DA CONSTITUIÇÃO

2014
2014 Curitiba
Curitiba
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

S964
Teoria do Estado e a Constituição
Nossos Contatos Coleção Conpedi/Unicuritiba.
Organizadores : Orides Mezzaroba / Raymundo Juliano
São Paulo Rego Feitosa / Vladmir Oliveira da Silveira
Rua José Bonifácio, n. 209, / Viviane Coêlho Séllos-Knoerr.
Coordenadores : Rogério Dultra dos Santos
cj. 603, Centro, São Paulo – SP /Emerson Gabardo/ Janaina Rigo Santin.
CEP: 01.003-001 Título independente - Curitiba - PR . : vol.37 - 1ª ed.
Clássica Editora, 2014.
622p. :
Acesse: www. editoraclassica.com.br
ISBN 978-85-8433-025-6
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EDITORA CLÁSSICA
Conselho Editorial
Allessandra Neves Ferreira Luiz Eduardo Gunther
Alexandre Walmott Borges Luisa Moura
Daniel Ferreira Mara Darcanchy
Elizabeth Accioly Massako Shirai
Everton Gonçalves Mateus Eduardo Nunes Bertoncini
Fernando Knoerr Nilson Araújo de Souza
Francisco Cardozo de Oliveira Norma Padilha
Francisval Mendes Paulo Ricardo Opuszka
Ilton Garcia da Costa Roberto Genofre
Ivan Motta Salim Reis
Ivo Dantas Valesca Raizer Borges Moschen
Jonathan Barros Vita Vanessa Caporlingua
José Edmilson Lima Viviane Coelho de Séllos-Knoerr
Juliana Cristina Busnardo de Araujo Vladmir Silveira
Lafayete Pozzoli Wagner Ginotti
Leonardo Rabelo Wagner Menezes
Lívia Gaigher Bósio Campello Willians Franklin Lira dos Santos
Lucimeiry Galvão

Equipe Editorial
Editora Responsável: Verônica Gottgtroy
Capa: Editora Clássica
XXII ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI/ UNICURITIBA
Centro Universitário Curitiba / Curitiba – PR

MEMBROS DA DIRETORIA
Vladmir Oliveira da Silveira
Presidente
Cesar Augusto de Castro Fiuza
Vice-Presidente
Aires José Rover
Secretário Executivo
Gina Vidal Marcílio Pompeu
Secretário-Adjunto

Conselho Fiscal
Valesca Borges Raizer Moschen
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa
João Marcelo Assafim
Antonio Carlos Diniz Murta (suplente)
Felipe Chiarello de Souza Pinto (suplente)

Representante Discente
Ilton Norberto Robl Filho (titular)
Pablo Malheiros da Cunha Frota (suplente)

Colaboradores
Elisangela Pruencio
Graduanda em Administração - Faculdade Decisão
Maria Eduarda Basilio de Araujo Oliveira
Graduada em Administração - UFSC
Rafaela Goulart de Andrade
Graduanda em Ciências da Computação – UFSC

Diagramador
Marcus Souza Rodrigues
Sumário

APRESENTAÇÃO ........................................................................................................................................ 11

A LEGITIMIDADE DO ESTADO DE DIREITO NAS RAIAS DA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL


(Vinícius Silva Bonfim) ................................................................................................................................ 20

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 21

O DIREITO COMO UM ELEMENTO CONSTITUTIVO DE SEU TEMPO ...................................................... 22

HABERMAS E A DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL: O USO COMPLEMENTAR DA TESE DO


PATRIOTISMO CONSTITUCIONAL COMO FUNDAMENTO DE LEGITIMIDADE DO ESTADO DE DIREITO 26

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 35

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 36

NEOLIBERALISMO E CRISE DO WELFARE STATE: A RECONFIGURAÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NA


ECONOMIA GLOBALIZADA (Julia Lafayette Pereira) ................................................................................ 40

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 41

A CRISE DO ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL NA ECONOMIA GLOBALIZADA ....................................... 42

A RECONFIGURAÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA GLOBALIZADA ....................................... 52

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 64

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 66

REFLEXÕES SOBRE A CRISE FINANCEIRA INTERNACIONAL E O ESTADO DE BEM-ESTAR (Paulo


Márcio Cruz) ............................................................................................................................................... 69

PARA COMEÇAR: NOTAS DE INTRODUÇÃO ............................................................................................. 70

PARA DESENVOLVER: O ESTADO DE BEM ESTAR E ALGUMAS ABORDAGENS IMPORTANTES ............... 73

PARA TERMINAR: EM DIREÇÃO À DEFINIÇÃO DE UM NOVO MODELO DE ESTADO NA EUROPA.


LIMITES E PRÉ-CONDIÇÕES ...................................................................................................................... 82

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 85

O ESTADO DE EXCEÇÃO E A GARANTIA DA DEMOCRACIA (Francisco de Albuquerque Nogueira Júnior) ... 88

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 89

DO ESTADO DE EXCEÇÃO EM CARL SCHMITT .......................................................................................... 90

DO ESTADO DE EXCEÇÃO EM GIORGIO AGAMBEN ................................................................................. 93

DO ESTADO DE EXCEÇÃO SEGUNDO KARL MARX ................................................................................... 95

DO ESTADO DE EXCEÇÃO NA DEMOCRACIA BRASILEIRA ....................................................................... 98


CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 104

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 106

BREVES NOTAS POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO DA TEORIA GERAL DO ESTADO A PARTIR DOS
DIREITOS HUMANOS E DO HUMANISMO JURÍDICO: HERMENÊUTICA E RACIONALIDADE NO
ESTADO HUMANISTA (Gisela Maria Bester e Eliseu Raphael Venturi) ...................................................... 107

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 108

TEORIA GERAL DO ESTADO E FILOSOFIA POLÍTICA: PROBLEMÁTICAS DO ESTADO E INFLUÊNCIAS


NA CONSTITUIÇÃO DO HUMANISMO JURÍDICO .................................................................................... 110

O ESTADO HUMANISTA E A HERMENÊUTICA JURÍDICA: RACIONALIDADE PRÓPRIA E VISÃO DE


MUNDO ..................................................................................................................................................... 116

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 120

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 121

A LIBERTAÇÃO COMO OBJETIVO CENTRAL DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-


AMERICANO: OS CAMIMNHOS PARA UM CONSTITUCIONALISMO DA LIBERTAÇÃO (Adriano
Corrêa de Sousa) ......................................................................................................................................... 126

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 127

O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO NO CONTEXTO REGIONAL ............................... 131

DEPENDÊNCIA E LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA .............................................................................. 135

O OPRIMIDO E OS CAMINHOS PARA UM CONSTITUCIONALISMO DA LIBERTAÇÃO ............................... 142

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 149

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 150

A NOÇÃO DE JUSTIÇA SOCIAL EM NANCY FRASER E O ESTADO PLURINACIONAL: DA REIFICAÇÃO


CULTURAL PELA IDENTIDADE NACIONAL AO RECONHECIMENTO PARITÁRIO DO OUTRO (Heleno
Florindo da Silva e Daury César Fabriz) ....................................................................................................... 155

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 156

A CONCEPÇÃO BIDIMENSIONAL DE JUSTIÇA SOCIAL EM NANCY FRASER: APOLÍTICA DO


RECONHECIMENTO E OS PROBLEMAS DO ESTADO MODERNO NACIONAL EM QUE VIVEMOS ........... 158

A ESPERANÇA QUE NASCE NA AMÉRICA DO SUL: DE COMO O MODELO PLURINACIONAL DE ESTADO


RESPONDE AOS PROBLEMAS DO ESTADO MODERNO NACIONAL APONTADOS POR NANCY FRASER 164

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 179

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 181

O PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO E A INFLUÊNCIA DOS FINANCIADORES DE CAMPANHA SOBRE


A IMPLANTAÇÃO DE PROJETOS DE ENERGIA CONVENCIONAL NA AMAZÔNIA BRASILEIRA E NA
PATAGÔNIA CHILENA(Abraão Soares Dias Dos Santos Gracco e Renata Soares Machado Guimarães de Abreu) 184

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 185

OS PRECEDENTES DA REMODELAGEM REPRESENTATIVA BRASILEIRA E CHILENA NOS PROCESSOS


DE TOMADA DE DECISÕES ........................................................................................................................ 186

A INFLUÊNCIA DOS FINANCIADORES DE CAMPANHAS NOS PROJETOS HIDRELÉTRICOS NA


AMAZÔNIA BRASILEIRA E NA PATAGÔNIA CHILENA .............................................................................. 191

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 200

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 200

CONSTITUIÇÃO, ESTADO PLURINACIONAL E AUTODETERMINAÇÃO ÉTNICO-INDÍGENA: UM


GIRO AO CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO ( Sandra Nascimento) .................................... 205

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 207

O CONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA E A QUESTÃO INDÍGENA ........................................... 209

O CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E A PLURINACIONALIDADE ...................................... 212

NORMATIVIDADE CONSTITUCIONAL, PLURALISMO JURÍDICO E DIVERSIDADE ÉTNICO-INDÍGENA . 215

O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO E A AUTODETERMINAÇÃO INDÍGENA: PARÂMETROS


ÉTNICO-INDÍGENAS PARA A ADEQUADA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL ................................... 218

TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE ÉTNICO-INDÍGENA: O QUE É TERRA INDÍGENA DE OCUPAÇÃO


TRADICIONAL NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO ................................................................................ 223

O CASO GUARANI KAIOWA E O TERRITÓRIO LARANJEIRA ÑANDERU: DEMARCAÇÃO TERRITORIAL


E OS PARADOXOS DA CONCRETIZAÇÃO CONSTITUCIONAL ................................................................... 226

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 231

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 235

DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO: CONTROLE PREVENTIVO DOS ATOS INTERNA CORPORIS DO


LEGISLATIVO PELO PODER JUDICIÁRIO (Martonio Mont’Alverne Barreto Lima e Maria Alice Pinheiro
Nogueira) .................................................................................................................................................... 238

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 239

PODER LEGISLATIVO E DEMOCRACIA ...................................................................................................... 241

O PODER LEGISLATIVO, OS ATOS INTERNA CORPORIS E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE . 242

O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA ........................................ 245

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 257

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 260

DEVER FUNDAMENTAL DE ATUAÇÃO DO ESTADO COMO ELEMENTO PROMOTOR DA IGUALDA-


DE SUBSTANCIAL E EFETIVIDADE DO SISTEMA CONSTITUCIONAL: DESDOBRAMENTOS DA DIG-
NIDADE DA PESSOA HUMANA(Marília Ferreira da Silva, Erick Wilson Pereira) ..................................... 263

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 264

A INTERSECÇÃO ENTRE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DEVERES FUNDAMENTAIS ....................... 265

DEVER DE ATUAÇÃO DO ESTADO COMO DESDOBRAMENTO DA DIGNIDADE PESSOA HUMANA ...... 270
.
CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 276

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 278

FEDERALISMO E PODER JUDICIÁRIO: A ATUAÇÃO DO STF NAS DISPUTAS FEDERATIVAS(Fernando


Santos de Camargo) .................................................................................................................................... 280

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................ 280

JUDICIÁRIO E FEDERALISMO ................................................................................................................... 281

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NAS DISPUTAS FEDERATIVAS ........................................................... 292

O PAPEL DO JUDICIÁRIO EM SISTEMAS FEDERATIVOS: QUESTÕES DE PESQUISA ............................... 300

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................................... 306

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 306

FIDELIDADE PARTIDÁRIA: A VONTADE DA CONSTITUIÇÃO, DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E


DO POVO (Carina de Castro Quirino e Pedro Federici Araújo) .................................................................... 309

NOTAS INTRODUTÓRIAS .......................................................................................................................... 311

RELATO DO JULGAMENTO DO STF SOBRE FIDELIDADE PARTIDÁRIA – TESE VENCEDORA E TESE


VENCIDA .................................................................................................................................................... 312

VOTO NOMINAL VERSUS VOTO PARTIDÁRIO .......................................................................................... 321

O DESCOMPASSO ENTRE A DECISÃO DO STF E A A REALIDADE DAS URNAS ........................................ 325

ALTERNATIVA À DECISÃO DO STF E A CANDIDATURA SEM VINCULAÇÃO PARTIDÁRIA ............................ 331

CONCLUSÃO .............................................................................................................................................. 333

REFERÊNCIAS ............................................................................................................................................ 333


COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Caríssimo(a) Associado(a),

Apresento o livro do Grupo de Trabalho Teoria do Estado e da Constituição, do XXII


Encontro Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito
(CONPEDI), realizado no Centro Universitário Curitiba (UNICURUTIBA/PR), entre os dias
29 de maio e 1º de junho de 2013.

O evento propôs uma análise da atual Constituição brasileira e ocorreu num ambiente
de balanço dos programas, dada a iminência da trienal CAPES-MEC. Passados quase 25 anos
da promulgação da Carta Magna de 1988, a chamada Constituição Cidadã necessita uma
reavaliação. Desde seus objetivos e desafios até novos mecanismos e concepções do direito,
nossa Constituição demanda reflexões. Se o acesso à Justiça foi conquistado por parcela
tradicionalmente excluída da cidadania, esses e outros brasileiros exigem hoje o ponto final do
processo. Para tanto, basta observar as recorrentes emendas e consequentes novos
parcelamentos das dívidas dos entes federativos, bem como o julgamento da chamada ADIN
do calote dos precatórios. Cito apenas um dentre inúmeros casos que expõem os limites da
Constituição de 1988. Sem dúvida, muitos debates e mesas realizados no XXII Encontro
Nacional já antecipavam demandas que semanas mais tarde levariam milhões às ruas.

Com relação ao CONPEDI, consolidamos a marca de mais de 1.500 artigos submetidos,


tanto nos encontros como em nossos congressos. Nesse sentido é evidente o aumento da
produção na área, comprovável inclusive por outros indicadores. Vale salientar que apenas no
âmbito desse encontro serão publicados 36 livros, num total de 784 artigos. Definimos a
mudança dos Anais do CONPEDI para os atuais livros dos GTs – o que tem contribuído não
apenas para o propósito de aumentar a pontuação dos programas, mas de reforçar as
especificidades de nossa área, conforme amplamente debatido nos eventos.

Por outro lado, com o crescimento do número de artigos, surgem novos desafios a
enfrentar, como o de (1) estudar novos modelos de apresentação dos trabalhos e o de (2)
aumentar o número de avaliadores, comprometidos e pontuais. Nesse passo, quero agradecer a
todos os 186 avaliadores que participaram deste processo e que, com competência, permitiram-
nos entregar no prazo a avaliação aos associados. Também gostaria de parabenizar os autores

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

selecionados para apresentar seus trabalhos nos 36 GTs, pois a cada evento a escolha tem sido
mais difícil.

Nosso PUBLICA DIREITO é uma ferramenta importante que vem sendo aperfeiçoada
em pleno funcionamento, haja vista os raros momentos de que dispomos, ao longo do ano, para
seu desenvolvimento. Não obstante, já está em fase de testes uma nova versão, melhorada, e
que possibilitará sua utilização por nossos associados institucionais, tanto para revistas quanto
para eventos.

O INDEXA é outra solução que será muito útil no futuro, na medida em que nosso
comitê de área na CAPES/MEC já sinaliza a relevância do impacto nos critérios da trienal de
2016, assim como do Qualis 2013/2015. Sendo assim, seus benefícios para os programas serão
sentidos já nesta avaliação, uma vez que implicará maior pontuação aos programas que
inserirem seus dados.

Futuramente, o INDEXA permitirá estudos próprios e comparativos entre os


programas, garantindo maior transparência e previsibilidade – em resumo, uma melhor
fotografia da área do Direito. Destarte, tenho certeza de que será compensador o amplo esforço
no preenchimento dos dados dos últimos três anos – principalmente dos grandes programas –,
mesmo porque as falhas já foram catalogadas e sua correção será fundamental na elaboração da
segunda versão, disponível em 2014.

Com relação ao segundo balanço, após inúmeras viagens e visitas a dezenas de


programas neste triênio, estou convicto de que o expressivo resultado alcançado trará
importantes conquistas. Dentre elas pode-se citar o aumento de programas com nota 04 e 05,
além da grande possibilidade dos primeiros programas com nota 07. Em que pese as
dificuldades, não é possível imaginar outro cenário que não o da valorização dos programas do
Direito. Nesse sentido, importa registrar a grande liderança do professor Martônio, que soube
conduzir a área com grande competência, diálogo, presença e honestidade. Com tal conjunto de
elementos, já podemos comparar nossos números e critérios aos das demais áreas, o que será
fundamental para a avaliação dos programas 06 e 07.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Com relação ao IPEA, cumpre ainda ressaltar que participamos, em Brasília, da III
Conferência do Desenvolvimento (CODE), na qual o CONPEDI promoveu uma Mesa sobre o
estado da arte do Direito e Desenvolvimento, além da apresentação de artigos de pesquisadores
do Direito, criteriosamente selecionados. Sendo assim, em São Paulo lançaremos um novo
livro com o resultado deste projeto, além de prosseguir o diálogo com o IPEA para futuras
parcerias e editais para a área do Direito.

Não poderia concluir sem destacar o grande esforço da professora Viviane Coêlho de
Séllos Knoerr e da equipe de organização do programa de Mestrado em Direito do
UNICURITIBA, que por mais de um ano planejaram e executaram um grandioso encontro.
Não foram poucos os desafios enfrentados e vencidos para a realização de um evento que
agregou tantas pessoas em um cenário de tão elevado padrão de qualidade e sofisticada
logística – e isso tudo sempre com enorme simpatia e procurando avançar ainda mais.

Curitiba, inverno de 2013.

Vladmir Oliveira da Silveira


Presidente do CONPEDI

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Apresentação

Impossível deixar de reconhecer a importância desempenhada pelo fenômeno estatal


na modernidade e o papel da Teoria do Estado para desvendar as inúmeras matizes dessa
instituição elementar, sua estrutura, seu funcionamento, bem como sua relação com o sistema
jurídico e os direitos fundamentais. Afinal, é no Estado que se encontra o locus privilegiado de
emanação do jurídico, em uma íntima ligação entre a Teoria do Estado e a Teoria da
Constituição, eis que, tradicionalmente, o fenômeno constitucional disciplina a organização e a
limitação dos poderes estatais.
Entretanto, a complexidade das transformações estatais neste limiar do século XXI
exige um novo olhar sobre a Teoria do Estado e da Constituição, capaz de reconhecer a
travessia em curso, porém destinado a inaugurar uma nova visão dos fenômenos estatal e
constitucional, a partir da articulação dos os elementos que conformam a sociedade política
com os elementos da sociedade civil.
Nesse sentido, o XXII Encontro Nacional do CONPEDI teve como tema: 25 Anos
da Constituição Cidadã: os atores sociais e a concretização sustentável dos objetivos da
República. Realizou-se nos dias 29 de maio a 01 de junho de 2013, nas dependências da
Unicuritiba, em Curitiba-PR, congregando pesquisadores de instituições e programas de
Mestrado e Doutorado das mais diversas partes do Brasil e do exterior.
Fazendo jus à elevada relevância do tema, o grupo de trabalho Teoria do Estado e
da Constituição apresentou sua contribuição ao debate, a partir de três eixos temáticos: Eixo I-
Teoria do Estado e Novos Paradigmas (artigos 1 a 9). Eixo II- Teoria da Constituição e
Direitos Fundamentais (artigos 10 a 15). Eixo III- Controle de Constitucionalidade e
Judicialização da Política (artigos 16 a 26).
Na primeira parte deste livro coletivo tem-se o eixo temático intitulado “Teoria do
Estado e Novos Paradigmas”, reunindo os primeiros nove artigos aprovados para publicação
no evento.
Nesse contexto, Vinícius Silva Bonfim apresenta seu artigo “A Legitimidade do
Estado de Direito nas Raias da Democracia Constitucional”. O artigo analisa criticamente a
função da cidadania na efetividade da Constituição, uma vez que o processo de construção

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democrática é um vir a ser contínuo de luta por reconhecimento de direitos. Para o autor,
alicerçado no pensamento habermasiano, em uma democracia constitucional é necessário que
os cidadãos se reconheçam como coautores das decisões do Estado. É uma via de mão dupla,
pois o Estado só possui o monopólio da coerção em virtude da liberdade dos indivíduos de
constituí- lo.
Por sua vez, Julia Lafayette Pereira discute, no artigo “Neoliberalismo e Crise do
Welfare State: a reconfiguração do papel do Estado na economia globalizada”, a mudança do
papel do Estado em face ao modelo econômico neoliberal, sobretudo no que concerne ao
Direito e à prestação jurisdicional. Se antes cabia ao Estado elaborar planos econômicos
guiados pelos seus próprios objetivos, direcionados à concretização dos direitos dos cidadãos,
no cenário contemporâneo a autora entende que o Estado governa para e em função da
economia.
Já o artigo “Reflexões sobre a Crise Financeira Internacional e o Estado de Bem
Estar”, de Paulo Márcio Cruz, traz a discussão sobre os reflexos da atual crise financeira global
nas estruturas do Estado de Bem Estar europeu. Para o autor, a crise abre possibilidade para
questionamentos dos modelos existentes de Estado de Bem Estar sob diversos ângulos,
colocando dúvidas sobre a atual oportunidade e viabilidade do mesmo. O objetivo do artigo é
incitar a discussão acerca dos limites e do destino próximo do Estado de Bem Estar frente à
crise financeira internacional.
No artigo “O Estado de Exceção e a Garantia da Democracia”, Francisco de
Albuquerque Nogueira Júnior aborda a reflexão filosófica doutrinária que compreende a
natureza e as características da excepcionalidade, suas relações com a soberania estatal, as
consequências advindas de sua institucionalização na Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 e o complexo relacional de sua existência como garantia da própria democracia.
Por sua vez, os autores Eliseu Raphael Venturini e Gisela Maria Bester, no artigo
“Breves Notas por uma Ressignificação da Teoria Geral do Estado a partir dos Direitos
Humanos e do Humanismo Jurídico: hermenêutica e racionalidade no Estado humanista”
refletem sobre a ressignificação da Teoria Geral do Estado, em especial os aportes da Filosofia
Política, a partir da prevalência dos direitos humanos, verificável na teoria jurídica
contemporânea e no modelo de Estado Humanista. A hipótese central a ser discutida, portanto,

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

é a de que o advento histórico do Estado Humanista, qualificado assim por conta da


prevalência dos direitos humanos e do humanismo jurídico como cosmovisão construída em
torno de sua vigência, repercute diretamente no orbe conteudístico da Teoria Geral do Estado,
cujo próprio objeto maior – o Estado – se redimensionou.
Adriano Corrêa de Sousa, no artigo “A Libertação como Objetivo Central do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano: os caminhos para um constitucionalismo da libertação”
informa que o novo constitucionalismo latino-americano erige com um conjunto normativo de
densidade democrática e pluralista e até então não experimentados no âmbito do
constitucionalismo regional. Tal fenômeno resultou na incorporação no texto constitucional das
cosmovisões dos povos indígenas originários, traduzido por bem viver, especificamente dos
quíchuas na Constituição do Equador, de 2008, e dos aimarás na Constituição da Bolívia, de
2009. Para o autor, o ponto central desse novo constitucionalismo é o olhar dispensado ao
oprimido, que está nessa condição por ser pobre, ameríndio, negro, mulher, ou seja, por ser o
“outro”.
Já o artigo “A Noção de Justiça Social em Nancy Fraser e o Estado Plurinacional: da
reificação cultural pela identidade nacional ao reconhecimento paritário do outro”, dos autores
Heleno Florindo da Silva e Daury Cesar Fabriz, busca analisar a relação entre as construções
teóricas de Nancy Fraser acerca do reconhecimento, com os aspectos gerais do novo modelo de
Estado Plurinacional surgido na América Latina. Entendem que o Modelo Plurinacional de
Estado pode responder aos problemas do Estado Moderno Nacional rumo a uma justiça social
efetiva, na qual redistribuição e reconhecimento sejam vistos como faces de uma mesma
moeda.
Por sua vez, o artigo “O Presidencialismo de Coalizão e a Influência dos
Financiadores de Campanha sobre a Implantação de Projetos de Energia Convencional na
Amazônia Brasileira e na Patagônia Chilena”, de Abraão Soares Dias dos Santos Gracco e
Renata Soares Machado Guimarães de Abreu analisa a influência dos financiadores de
campanha no que chama de presidencialismo de coalizão do Brasil e do Chile, com
características de clivagem institucional para obter ou continuar obtendo alguma vantagem no
esteio da máquina pública e influenciar o processo de tomada de decisões sobre a implantação

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

dos grandes projetos de energia convencional em biomas estratégicos, como as hidrelétricas na


região da Amazônia brasileira e na Patagônia chilena.
Por fim, esta primeira parte da obra encerra com a colaboração de Sandra
Nascimento, no artigo intitulado “Constituição, Estado Plurinacional e Autodeterminação
Étnico-Indígena: um giro ao constitucionalismo latinoamericano”. A autora discute a
normatividade constitucional em sistemas sociais pluriétnicos e pluriculturais, tomando como
referência o discurso institucional jurisdicional na questão das retomadas dos territórios
indígenas. A reflexão abrange o paradoxo da “constitucionalização” dos direitos dos “índios”
decorrentes dos seus costumes, tradições e direitos sobre as terras que tradicionalmente
ocupam e a resposta jurídica racialista, conservadora e positivista que ainda domina o cenário
jurídico brasileiro.
Um segundo núcleo estruturante das apresentações tratou da temática geral “Teoria
da Constituição e Direitos Fundamentais”. Foram apresentadas seis pesquisas de alta
relevância e atualidade.
O professor Martonio Mont’Alverne Barreto Lima também apresentou um trabalho
em conjunto com Maria Alice Pinheiro Nogueira, sobre o tema “Democracia e Constituição:
controle preventivo dos atos interna corporis do Legislativo pelo Poder Judiciário”. A ideia
fundamental de sua investigação é tecer um discurso crítico relativamente à postura ativista do
Supremo Tribunal Federal. Para tanto tomou como objeto central a questão do controle dos
atos interna corporis do Poder Legislativo. Após fazer uma verificação atenta da questão, os
autores concluem que é preciso fortalecer o Parlamento, notadamente se for considerada a atual
cultura brasileira, que se denota inserida em um paradigma que chamam de “juristocracia”.
“O Dever Fundamental de Atuação do Estado como Elemento Promotor da
Igualdade Substancial e Efetividade do Sistema Constitucional: desdobramentos da dignidade
da pessoa humana”, foi o assunto tratado por Marília Ferreira da Silva e Erick Wilson Pereira.
O pano de fundo da pesquisa é o descompasso entre um número crescente de direitos,
notadamente de natureza fundamental constitucional e o alto índice de não concretização
destes direitos. Como resposta ao problema propugnam por uma maior ênfase dos estudos
sobre o dever fundamental de atuação concreta do Estado na garantia de direitos. Denunciam a

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

pouca doutrina na matéria e buscam um deslocamento da reflexão da fundamentação dos


direitos em si, ruma à preocupação com sua efetividade.
Também tratando do Poder Judiciário (tema recorrente nos trabalhos apresentados
no grupo) mas agora mediante outro enfoque, Fernando Santos de Camargo refletiu sobre o
tema “Federalismo e Poder Judiciário: a atuação do STF nas disputas federativas”. O seu texto
inicia com uma apresentação descritiva para o fim de propor a importância da atuação judicial
na concretização do processo de centralização e descentralização federativa. Após tecidas as
considerações preliminares e apresentado como é o desenvolvimento temático o Brasil, o autor
conclui que, aparentemente, o STF possui uma inclinação em favor do entre central, mas
ressalva que para ser efetuada uma proposição mais contundente é necessária a continuidade da
pesquisa.
Carina de Castro Quirino e Pedro Federici Araújo defenderam suas conclusões
relativas à investigação intitulada “Fidelidade Partidária: a vontade da Constituição, do
Supremo Tribunal Federal e do Povo”. A discussão não poderia ser mais atraente em face à
conjuntura político-social brasileira. O foco do trabalho foi a tratativa da legitimidade das
decisões referentes ao sistema representativo indireto existente no Brasil. Os autores não se
limitam a descrever a questão, propondo de forma concreta que a decisão do STF que confere
aos partidos o direito ao mandato não corresponde à vontade popular, pelo que é merecedora
de críticas e de uma necessária revisão em prol de uma maior realização da democracia.
No texto “Constituição e Paradoxos da Afirmação da Cidadania no Brasil: o caso
das forças armadas no texto constitucional de 1988”, os autores José Adeildo Bezerra de
Oliveira e Zaneir Gonçalves Teixeira problematizam, a partir de uma análise histórica e
jurídica, o processo de construção da cidadania no Brasil pós-1988, observando as condições
de elaboração da Constituição Federal vigente e explicitando aspectos paradoxais de seu texto
quanto ao papel constitucional das Forças Armadas.
Por fim, no texto “A CNI e a Defesa da Constituição: um retrato da atuação de uma
confederação sindical empresarial como intérprete constitucional no marco do Estado
Democrático de Direito”, de Camilla de Oliveira Cavalcanti, examina-se a atuação da
Confederação Nacional da Indústria (CNI) como intérprete da Constituição Federal de 1988 no
processo de controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Insere-se na discussão o papel de uma Constituição e a forma como assegurar sua força
normativa em meio a constantes transformações econômicas e sociais.
O terceiro e último núcleo estruturante das apresentações do Grupo de Trabalho tratou
da temática “Controle de Constitucionalidade e Judicialização da Política ”. Os textos
reunidos sob esta temática geral tratam especificamente dos desdobramentos políticos e
institucionais da efetivação da Constituição de 1988 no Brasil, tendo como um elemento de
destaque o papel do Poder Judiciário nas suas mais variadas funções.
No texto “Governabilidade e capacidade para emendar: o Poder Executivo e as
Emendas Constitucionais”, o acadêmico Henrique Rangel e o professor Carlos Bolonha
analisam, a partir de um marco teórico institucionalista, que une Direito e Ciência Política, a
questão das Emendas Constitucionais. Abordam este objeto a partir do problema político do
presidencialismo de coalizão, relacionando governabilidade e capacidade de emenda do
Executivo. Avaliam que, mesmo com a possibilidade da redução da influência do Executivo no
Congresso Nacional, não diminui a sua governabilidade, o que aponta para o caráter sistêmico
das coalizões nas democracias contemporâneas. Realizam a pesquisa levando em conta a
análise das Emendas à Constituição de 1988, avaliando a participação do Executivo na sua
elaboração e no seu encaminhamento, bem como os desdobramentos de sua relação com o
Poder Legislativo e com o Poder Judiciário.
No artigo “O direito fundamental a limitação da jornada de trabalho: uma análise do
projeto de Emenda Constitucional do empregado doméstico”, o mestrando Murilo Kerche de
Oliveira e a professora Mirta Lerena Misailidis examinam um tema bastante discutido durante
o ano de 2013, o limite da jornada de trabalho do empregado doméstico. Analisam não
somente a PEC nº66/2012 em votação no Congresso Nacional e os benefícios que traz para o
empregado doméstico, mas o impacto político e social da incorporação desta medida no
ordenamento jurídico brasileiro.
“A natureza jurídica do Tribunal de Contas da União: uma análise sob a ótica da Teoria
Geral do Estado, do Direito Administrativo e do Direito Constitucional”, da professora
Fernanda de Carvalho Lage, é um artigo que tem a pretensão de avaliar a questão da separação
de poderes no Brasil a partir do funcionamento de órgãos de controle como é o caso do

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Tribunal de Contas da União. O objetivo do trabalho, que tem natureza interdisciplinar, é


determinar a natureza jurídica do órgão, dando relevância especial à sua independência.
“A crise funcional do estado contemporâneo brasileiro: uma análise das PEC´s nº
03/2011, nº 33/2011 e do PRC 21/2011”, da mestranda Mirelle Monte Soares, entende a
relação entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário como explicitadora de uma crise
institucional, caracterizada pela disputa por prerrogativas. Analisa, em especial, a PEC nº
3/2011, a PEC nº 33/2011 e o PRC nº 21/2011, de autoria do Deputado Federal Nazareno
Fonteles. Considera que a crise do Estado Brasileiro se mensura exatamente pelo processo de
judicialização da política e, em especial, pela extrapolação dos poderes experimentada pelo
STF.
Já o artigo “O Judiciário como intérprete oficial da Constituição: mitos, incongruências
e problemas democráticos a partir da análise comparada do Direito norte-americano”, Lara
Freire Bezerra de Sant’Anna foca um tema específico, o controle judicial de
constitucionalidade. Entretanto, seguindo a tendência crítica do artigo anterior, examina a ideia
de supremacia da interpretação judicial da Constituição. Realiza este exame a partir do direito
comparado, avaliando os caminhos históricos que separam a construção do instituto no Direito
norte-americano e as consequências políticas e filosóficas de suas incongruências no Direito
brasileiro.
Ainda sobre a temática de crítica ao controle judicial de constitucionalidade, “A
judicialização da política como corolário da globalização: desvio de finalidade ou redefinição
de papéis?” é um texto seminal, em que os professores José Querino Tavares Neto e Juvêncio
Borges Silva examinam o enfraquecimento do caráter dirigente, inscrito originariamente na
Constituição de 1988, pela influência do fenômeno da globalização. Um termômetro da erosão
do poder e alcance do Estado-Nação como elemento conceitual e político que poderia guiar o
desenvolvimento da soberania brasileira e o fenômeno da judicialização da política. Os autores,
lançando mão de uma bibliografia sofisticada e extremamente atual, avaliam a transformação –
ao mesmo tempo sutil e profunda – do Estado brasileiro e da divisão dos poderes da Nação
tendo em conta o fenômeno da judicialização.
“O amparo da Revisão Judicial na Constituição brasileira”, é um artigo em que as
professoras Katya Kozicki e Lissandra Espinosa de Mello Aguirre examinam o controle de

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

constitucionalidade no Brasil e a origem técnica do judicial review. O artigo tem como


horizonte de sentido verificar a implementação dos direitos fundamentais, em especial os
direitos de minorias, através deste instituto. Consideram que a supremacia do Poder Judiciário
é uma exigência para a realização prática do Estado Democrático de Direito. Na sua origem
histórica, a prática da revisão judicial estaria intimamente ligada à realização da democracia, na
medida em que, segundo o argumento das autoras, seu funcionamento é um limitador
institucional à tirania das maiorias.
No artigo “A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: delineamentos da
Lei n. 9.882/99 - aptidão para o questionamento de atos formal e materialmente legislativos”,
os professores Alexandre Walmott Borges e Luciana Campanelli Romeu fazem uma análise
detalhada, na melhor tradição da dogmática constitucional, da ADPF. A examinam levando em
conta que o seu funcionamento constitucional deve obedecer a principiologia de divisão
funcional e orgânica dos poderes. Negam, com base neste aspecto de fundo, a possibilidade de
que a ADPF seja cabível para questionar os atos formal e materialmente legislativos, mesmo
diante da possibilidade de violação de preceito fundamental. Concluem, dentre outros pontos,
ser viável o questionamento por arguição dos atos legislativos meramente formais, como os
atos administrativos.
O tema da preservação do caráter federativo do Estado brasileiro aparece como nuclear
no artigo “Representação Interventiva Federal: relevantes e inovadoras alterações inseridas
pela Lei Nº 12.562, de 23 de dezembro de 2011”, dos professores Jader Ferreira Guimarães e
Renata Vitória Oliveira Dos Santos Trancoso. Os autores argumentam que a representação
interventiva deve ser reexaminada tendo em vista as alterações trazidas pela legislação de
2011, em especial no que tange à legitimidade ativa e aos requisitos para a sua propositura.
Um dos textos mais inovadores da coletânea aqui apresentada é o “Poder Executivo e
Poder Judiciário: o Estado brasileiro frente a expulsão de estrangeiros na Era Vargas”, de
Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci e Osvaldo Estrela Viegaz. A utilização de método
historiográfico, em especial a pesquisa de arquivos, trouxe à tona um caso exemplar das
relações tensas entre o Poder Executivo e o Poder Judiciário, no caso de extradição de caráter
político durante o período em torno da Segunda Guerra Mundial. Valendo-se do exame dos
processos de expulsão realizados pelo Supremo Tribunal Federal, o artigo avalia o caráter

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

eminentemente político das decisões do STF, ora avalizando, ora combatendo o caráter
claramente ilegal de inúmeros atos do Poder Executivo.
Finalmente, encerrando as contribuições relativas ao estudo do processo de
judicialização, temos o texto “O constitucionalismo e a nova moral tributária: o estado
constitucional brasileiro e seus reflexos no Direito Tributário”, do mestrando Antonio Alves
Pereira Netto. Neste trabalho, o autor examina como o forte ativismo judicial altera
substantivamente o escopo e o alcance de princípios constitucionais tributários, com uma
modificação clara na justificação do poder de tributar. O texto analisa a relação desta mutação
do sentido dos princípios tributários à luz do processo de globalização e de judicialização da
política, avaliando de forma contundentemente crítica o surgimento de um “novo conjunto de
preceitos morais” que objetivaria legitimar e controlar a execução de normas de direito
tributário no Brasil.
Assim, é com grande satisfação que apresentamos a comunidade jurídica a presente
obra. Que todos possam se valer dos inúmeros ensinamentos aqui presentes.

Coordenadores do Grupo de Trabalho

Professor Doutor Rogério Dultra dos Santos – UFF

Professor Doutor Emerson Gabardo – PUC PR

Professora Doutora Janaína Rigo Santin – UPF

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A LEGITIMIDADE DO ESTADO DE DIREITO NAS RAIAS DA DEMOCRACIA


CONSTITUCIONAL

THE LEGITIMATE STATE OF LAW IN CONSTITUCTIONAL DEMOCRACY


RAYS

Vinícius Silva Bonfim1

RESUMO
O presente artigo tem por finalidade a análise da Teoria da Constituição sob o olhar da tese do
patriotismo constitucional trabalhado por Jürgen Habermas. Elaborou-se primeiramente uma
visão da cidadania moderna na dinâmica de busca por efetividade da democracia
constitucional. O artigo analisa criticamente a função da cidadania na efetividade da
Constituição uma vez que o processo de construção democrática é um vir a ser contínuo de
luta por reconhecimento de direitos. Demonstra-se que os sujeitos constitucionais, a partir do
uso dos direitos fundamentais, fazem a interpretação da Constituição de maneira que ela se
torne um constante interpretar das múltiplas identidades coletivas. Para que ocorra a
construção permanente da Constituição, aberta para uma comunidade de interpretes, antes se
deve ter uma devida compreensão da cidadania, da democracia e da Constituição.
Palavras-chave: Democracia, Cidadania, Constituição, Efetividade, Patriotismo
Constitucional.

ABSTRACT
This article aims to analyze the theory of the Constitution from the perspective of theory of
constitutional patriotism worked by Jürgen Habermas. It was first elaborated a vision of
modern citizenship in the dynamics of search effectiveness of constitutional democracy. The
article critically examines the role of citizenship in the Constitution effectiveness once the
construction process is a democratic become continuous struggle for recognition of rights.
Demonstrates that the constitutional subject, from the use of fundamental rights, make the
interpretation of the Constitution so that it becomes a constant interpretation of multiple
collective identities. For the occurrence of permanent construction of the Constitution, to open
a community of interpreters, first one must have a proper understanding of citizenship,
democracy and the Constitution.
Keywords: Democracy, Citizenship, Constitution, Effectiveness, Constitutional Patriotism.

1
Mestre e Doutorando em Teoria do Direito pela Puc/Minas, Professor no I.E.S. J. Andrade e Professor na
Faculdade Arquidiocesana de Curvelo.

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1 - Introdução

O presente artigo visa construir um raciocínio que aponte a necessidade urgente de


elaboração de uma teoria que possa dar suporte a aplicação do direito sem que se tenha uma
alternativa paternalista ou clientelista à democracia. Quer dizer, para que se realmente tenha
uma Constituição democrática não basta que o texto normativo expresse essa vontade, já que
a construção do direito perpassa também pelo discurso de justificação (judiciário), além do
discurso de aplicação (legislativo).
O processo de legitimidade do direito não se realiza tão somente pelo o que os
teóricos do direito e da teoria da argumentação jurídica chamam de discurso de aplicação, mas
sim também por um discurso de justificação que ocorre no ato de efetivação da norma.
Em uma democrática constitucional é necessário que os cidadãos se reconheçam
como coautores das decisões do Estado. É uma via de mão dupla, o Estado só possui o
monopólio da coerção em virtude da liberdade dos indivíduos de constituí-lo
democraticamente. Sendo assim, a representatividade da atividade estatal, em qualquer poder
ou esfera que se pense, deve ser uma extensão da vontade pública, da opinião pública.
Habermas chama esse movimento de construção da opinião e da vontade pública que ocorre
através da sociedade civil e da esfera pública de modelo de eclusas.
Este artigo visa apresentar uma teoria que possa dar respaldo a aplicabilidade de uma
vertente democrática que trate os cidadãos como autossuficientes para pensar e construir o
direito legítimo. Uma democracia constitucional não aliena a competência para que poucos
sejam responsáveis para levantar problemas e também solucioná-los. Além disso, a ideia de
patriotismo constitucional visa dar fundamento tanto ao discurso de aplicação, do poder
legislativo, quanto à participação da sociedade civil na construção de decisões políticas e
jurídicas no âmbito do judiciário. Quer-se dizer com isso que há uma relação necessária entre
o discurso de aplicação e justificação com a participação da sociedade civil na construção das
decisões do estado, independentemente de onde é que elas ocorram.
A legitimidade do direito visa essa estrutura de complementariedade, não há papeis
isolados ou protagonistas na Teoria da Constituição e do Estado. Há um papel compartilhado
de construção da democracia constitucional que cidadãos que se entendem como livres e
iguais reivindicam por melhores condições de acesso aos direitos fundamentais.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

2 - O direito como um elemento constitutivo de seu tempo.

O direito a cidadania permite o processo contínuo e reflexivo que repercute na


possibilidade de alteração da realidade circundante do sujeito constitucional e na utilização
das prerrogativas jurídicas e políticas do cidadão. O papel da cidadania está diretamente
vinculado ao exercício da autonomia do cidadão, mesmo quando este deixa de realizá-lo, não
deixa de sê-lo. Deve-se entender que aquele que não participa da política, que se abstém de
assumir a responsabilidade de construir o seu futuro, aquele cidadão apático politicamente que
prefere transferir a responsabilidade para que outrem realize o “papel desagradável” da
política, fomenta o paternalismo e o clientelismo Estatal.2 Ou ainda na mesma linha, aquele
que prefere que outrem pense em seu lugar, encontra-se na menoridade. Nas palavras de
Menelick de Carvalho:

Para Rosenfeld, tal como para Friedrich Müller, Chantal Mouffe e a maior parte da
filosofia política e da doutrina constitucional atuais, sabemos hoje, por experiência
própria, que a tutela paternalista elimina precisamente o que ela afirma preservar.
Ela subtrai dos cidadãos exatamente a cidadania, o respeito à sua capacidade de
autonomia, à sua capacidade de aprender com os próprios erros, preservando
eternamente a minoridade de um povo reduzido à condição de massa (de uma não-
cidadania), manipulável e instrumental por parte daqueles que se apresentam como
seus tutores, como os seus defensores, mas que, ainda de modo inconsciente, crêem
a priori e autoritariamente na sua superioridade em relação aos demais e assim, os
desqualificam como possíveis interlocutores. O debate público e os processos
constitucionais de formação de uma ampla vontade e opinião pública são assim
privatizados (CARVALHO NETTO, 2003, p. 11).

O esclarecimento dos cidadãos a respeito do uso de seus direitos políticos


constitucionalmente garantidos é o caminho mais adequado para a construção da democracia
constitucional e de melhores interpretações do constitucionalismo brasileiro. Quanto mais
forem os sujeitos constitucionais, cidadãos esclarecidos na defesa dos seus direitos
fundamentais, mais adequada será a aplicação do patriotismo constitucional. Claro que isso
não que quer dizer que sempre que se vise uma questão quantitativa tenha-se a
correspondência qualitativa, já que na contemporaneidade não há mais que se atribuir
2
Em continuidade ao raciocínio anteriormente exposto, utilizando-se da fala de Rosemiro Pereira Leal ao
dissertar a respeito da celeridade processual utilizada como forma de excluir o cidadão da participação da
construção das decisões judiciais, afirma que: “A paz ilusória que a desatinada celeridade anuncia por uma
jurisdição-relâmpago (sumarização cognitiva) implica um clientelismo consumista episodicamente satisfeito
numa lógica fetichizada de um mercado de decisões ágeis, sem que os conflitos sociais e econômicos sofram
redução pelo exercício fiscalizatório popular e incondicional de controle da constitucionalidade democrática na
base de produção e aplicação das leis no marco jurídico-teórico do devido processo constitucional”. (LEAL,
2002, p. 32).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

unicamente à maioria o papel das decisões. Muito pelo contrário, o que o artigo fundamenta é
que há a necessidade de uma revisão permanente de quais são os princípios de justiça que essa
sociedade plural e democrática pretende compartilhar. Muitas vezes pode-se observar que é a
própria maioria que exclui e segrega os indivíduos, mas sempre sob um fundamento
equivocado que pode aparecer no discurso de aplicação quanto no de justificação.
O exercício da cidadania condiciona-se, então, para questões de consolidação de
mecanismos que possibilitem aberturas procedimentais cívicas na reconstrução permanente do
Estado Constitucional. Assim sendo, se a educação é um possibilitador do esclarecimento
cívico necessário para que os cidadãos possam assumir a responsabilidade de interpretar
(construir) a realidade constitucional existente, provavelmente, maior elucidação de seus
direitos e melhores interferências da sociedade civil na esfera pública será feita.
Na democracia Constitucional o respeito mútuo dos cidadãos na construção da
decisão estatal é uma exigência para que se possa declarar iguais direitos e liberdades. A
construção da democracia necessita de permanente atenção às ações públicas que dizem
respeito a todos os agentes públicos, sejam eles juízes, prefeitos, deputados ou senadores,
nenhum deles possui a prerrogativa para decidir discricionariamente. O agente público está
vinculado aos fundamentos constitucionais adequados em cada caso específico no ato de
proferir suas decisões. Em outras palavras, deve haver uma comunicação constante entre
sociedade civil e esfera pública que possibilite a atualização daquilo que se chama de
identidade constitucional.
Por um lado deve haver uma insatisfação com a realidade política e jurídica, por
outro, uma vontade de atualização da identidade pela ausência de consensos sobre quais são
os princípios fundamentais de justiça que devem ser aplicados aos casos práticos ou ainda
quais são as políticas públicas que devem ser efetivadas. Essa problemática somente se solve
com a transformação dos momentos, o que em grande parte o direito é o responsável. Seja
para possibilitar a manifestação das diversas identidades ou, seja para constatar uma alteração
da realidade por alteração normativa.
A democracia constitucional emerge do encontro do eu com o outro fundado na
ausência e na alienação, encontra-se em uma posição que requer que ele esqueça a sua
identidade, se utilizado de um discurso enraizado em uma linguagem comum que vincula e
une os múltiplos outros.

Uma teoria que ser entenda como democrática não pode acolher o cidadão de
maneira a caracterizá-lo como hipossuficiente e incapaz de assumir a responsabilidade de

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

interpretar seu passado, construir o seu presente e projetar o seu futuro. A democracia
constitucional não deve privilegiar qualquer modelo específico de “vida boa”, qualquer
projeto específico. Ela visa que iguais oportunidades sejam presentes independentemente de
quais decisões os indivíduos tomem no decorrer da vida.

A abertura à discussão dos conflitos de interesse dentro dos meios inerentes para a
resolução dos mesmos é característica de um povo que se reconhece como igual e compartilha
de princípios de justiça que possam ser defesos por qualquer um deles. Através do diálogo
intersubjetivo é que os cidadãos poderão manifestar suas identidades e defender seus
interesses amparados pelos direitos fundamentais. A problemática não é de universalizar
nenhum modo de vida, pelo contrário, é garantir a manifestação da pluralidade de concepções
de bem por meio de mecanismos procedimentais em que os cidadãos sejam tratados como
iguais e livres. Como já demonstrou GALUPPO: “enquanto o antônimo para igualdade é
desigualdade, o antônimo para identidade é diferença” (GALUPPO, 2002, p. 214). A
homogeneidade impossibilita o reconhecimento dos indivíduos como cidadãos livres e iguais
em busca de efetividade dos direitos fundamentais. Veja Menelick de Carvalho:

Não há espaço público sem respeito aos direitos privados à diferença, nem direitos
privados que não sejam em si mesmos destinados a preservar o respeito público às
diferenças individuais e coletivas na vida social. Não há democracia, soberania
popular, sem a observância dos limites constitucionais à vontade da maioria, pois aí
há, na verdade, uma ditadura; nem constitucionalismo sem legitimidade popular,
pois aí há autoritarismo. A igualdade reciprocamente reconhecida de modo
constitucional a todos e por todos os cidadãos, uma vez que, ao mesmo tempo, a
todos e por todos é também reconhecida reciprocamente a liberdade, só pode
significar a igualdade do respeito às diferenças, pois embora tenhamos diferentes
condições sociais e materiais, distintas cores de pele, diferentes credos religiosos,
pertençamos a gêneros distintos ou não tenhamos as mesmas opções sexuais, nos
respeitamos ainda assim como se iguais fossemos, não importando todas essas
diferenças (CARVALHO NETTO, 2003, p. 13).

Os movimentos sociais possuem importância primordial na dinâmica de constituição


da identidade democrática quando agem em solidariedade no espaço procedimental
discursivo, pois eles reivindicam a revisitação constante dos princípios fundamentais
estabelecidos na sociedade.
O direito é o instrumento de manifestação da diferença, da divergência, da
desigualdade. Ele é produto da descontinuidade histórica, e para que ele se manifeste
legitimamente, os indivíduos devem ser necessariamente livres. Não há direito sem liberdade,
muito menos qualquer hipótese de igualdade. Primeiro o indivíduo é livre, depois ele
regulamenta suas questões de igualdade. Claro, que a igualdade de fato é uma busca

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permanente, pois como se viu acima, caracteriza-se a democracia pelo princípio da diferença e
pelo respeito às minorias. Inclusive essa é a contribuição de Kant ao possibilitar pensar o
conceito dignidade como um fim em si mesmo. Hegel também contribui para esse movimento
moderno na análise intersubjetiva do processo de reconhecimento mútuo.3 São essas
contribuições que possibilitam a construção de uma visão pluralista e de pressupostos
universalistas e de reciprocidade na democracia constitucional. Esse processo dinâmico,
aberto e que tem por objetivo o movimento de negação e de posterior aceitação é o que Hegel
denomina de dialética. Hegel utiliza deste conceito para demonstrar como os indivíduos nas
relações sociais buscam a identidade através das diferenças. Diferenças que são apropriadas
pelas identidades que se entendem. Ou seja, o sujeito é famélico e busca a todo o momento
satisfazer seus desejos com o outro. É na negação do outro que tem a afirmativa de sua
própria identidade. Mas ao mesmo tempo em que nega, o sujeito constitucional se abre para a
possibilidade de se reconhecer em determinada identidade alheia.
A problemática contemporânea encontra-se na colonização dos mecanismos
linguísticos que servem de abertura à sociedade civil, como os meios midiáticos que são
privados e muitas vezes defendem interesses egoísticos, privados e/ou burocráticos. A
linguagem muitas vezes é colonizada pelo mercado e pela burocracia, e é o que ocorre com a
esfera pública no Brasil.
Grande parte dos problemas diz respeito ao uso que se dá à linguagem no direito. O
uso tecnicista da linguagem, a interpretação instrumentalizada, traz consigo uma tradição que
impossibilita a compreensão dos diversos mundos da vida e sempre realiza análise
tendenciosa do direito e da democracia. O problema do direito é também um problema de
linguagem, de interpretação que se faz da Constituição e da democracia.
A necessidade de reconstrução de uma teoria democrática constitucional é pelo fato
do próprio direito não ser contínuo. Ele desconstitui o que está constituído. Ele oxigena as
relações sociais através de intepretações sociais que, grande parte das vezes, se manifestam
através de revoluções e reivindicações populares. O que se pode afirmar, de certa forma, é que
o direito mantem a estabilidade social, ele muda, desconstitui para manter a continuidade.
Quer-se dizer com isso que ele possui uma característica holística que marca seu tempo e
determina seu espaço de acordo com a dinâmica social de interpretação, intervenção e
reivindicação de direitos.

3
Kant e Hegel são dois autores que fazem parte de um movimento intelectual que visava descobrir as formas de
constituição do espírito (conhecimento). Este movimento foi primeiramente denominado de Idealismo
Transcendental, pois a época , tinha-se era a Prússia, e não a Alemanha.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

A democracia constitucional deve institucionalizar procedimentos deliberativos em


que os interesses manifestos dentro da sociedade civil possam ser ouvidos e discutidos com
igual respeito por todos na esfera pública. Esses interesses diversos buscam, além de tudo, o
reconhecimento da identidade em um processo moderno de legitimação. O direito entra como
um mecanismo de integração social que irá fundamentar o respeito mútuo entre os cidadãos
que possuem interesses divergentes, mas que são detentores de igual respeito e liberdade.
A construção normativa através da participação popular, cidadã, não se preocupa
somente com a teoria do direito, mas também com uma teoria da sociedade. O direito nesta
construção é considerado o efetivador da teoria social através da integração social pela
comunicação (tensão) existente entre o mundo da vida e os sistemas.

3 – Habermas e a Democracia Constitucional: o uso complementar da tese do Patriotismo


Constitucional como fundamento de legitimidade do Estado de Direito.

Habermas se apropria da tese do patriotismo constitucional para complementar sua


Teoria Discursiva do Direito e da Democracia.4 A tese do patriotismo se preocupa com a
construção da identidade coletiva e possui como fundamento a validade do documento da
Constituição como elemento universalizante e neutro. É a partir dessa tese que se verá que o
exercício da democracia constitucional depende da virtude cívica em defesa das necessidades
fundamentais públicas.
O patriotismo constitucional representa a construção da identidade histórica e
política de uma coletividade a partir da Constituição. O termo foi “inicialmente introduzido
pelo filósofo Dolf Sternberg, e mais tarde, retomado pelo sociólogo Mario Rainer Lepsius”
(LACROIX, 2005, p.123) na criação de uma nova identidade coletiva pós-guerra. Foi com

4
O pensamento de Habermas que se explica em Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade contorna
algumas das aporias decorrentes da sobrecarga idealizante na atividade decisória do Estado de Direito. Habermas
disciplina que o encontro de fundamentos é no âmbito da linguagem, no âmbito do discurso. Antes de qualquer
outro fator, de qualquer outra coisa, antes de ser ideologia, antes de ser política, antes de ser instrumento de
domínio, a linguagem apela para a cognição. Habermas entende que, se elaborarmos um local onde as disputas
linguísticas não tenham ruídos ideológicos, onde elas possam se dar de maneira livre, esse local ideal faria com
que a linguagem se desse exclusivamente como cognição. Esse elemento cognitivo da linguagem que faz com
que Habermas diga que, nesse discurso em condição livre, nesse discurso que se põe contra o discurso do outro,
mas não para dominar, mas sim para ser entendido, encontra aí o elemento, digamos assim, central da linguagem
e fundamentador de todos os outros discursos e também do nosso saber, do nosso conhecimento.

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base na Lei Fundamental da República Federativa Alemã de 1949, ou pode-se também


chamar de Lei Fundamental de Bonn que essa discussão é semeada.
O termo foi utilizado pela primeira vez “durante o debate sobre o passado nacional-
socialista que, no verão de 1986, opôs os intelectuais da Alemanha ocidental” (LACROIX,
2005, P. 123). Nesse debate entre os historiadores a preocupação primeira era em constituir
uma resposta legítima aos alemães para a formação da identidade política e do próprio
passado alemão do nazismo e dos campos de concentração.
Habermas vislumbra a possibilidade de que os argumentos utilizados nesse debate
poderiam possuir um caráter implícito de maquiar e induzir a interpretação da história alemã
ao esquecimento e negação das atrocidades ali ocorridas.5 O que de certa forma causaria a
instrumentalização da história e do direito, assim, a linguagem mais uma vez sofreria as
consequências da técnica e da manipulação. Nos dizeres de Lacroix:

Essa “controvérsia dos historiadores”, ou “batalha do historicismo”, questionava, em


primeiro lugar, um método abrangente de restituição de sua história e, através dela, a
reconstrução da identidade alemã, que alguns pretendiam engajar na perspectiva de
uma reparação narcisista. Nesse contexto, historiadores de renome decidiam assistir
à renovação da consciência nacional, trazendo imagens “positivas” do passado – o
que supunha uma relativização dos crimes nazistas, cuja singularidade era às vezes
explicitamente repudiada, entre as outras (LACROIX, 2005, p. 123).

No entanto, Habermas pretende construir um processo que possibilite a reconstrução


da identidade coletiva na Alemanha sem que interpretações amenas sejam priorizadas para
ocultar as mazelas sócio-políticas ocorridas durante o Holocausto. O que o autor propõe é que
a responsabilidade da interpretação do passado presente, dessa reconstrução da história,
partisse principalmente da própria sociedade.6 Por isso é que ele procura combater os
historiadores e negar o raciocínio exposto, uma vez que entende a necessidade da maturidade
dos próprios cidadãos alemães no (re)conhecimento e interpretação de seu próprio passado, de
sua própria história. Veja Cattoni de Oliveira:

5
Observe destaque que Cattoni de Oliveira realiza ao demonstrar a afirmativa de que havia uma vertente
interpretativa de historiadores que tinham como objetivo abrandar e relativizar os acontecimentos da história
alemã: “Autores como o historiador alemão Ernest Nolte destaca-se, nessa polêmica, em razão da radicalidade e
influência. Nolte, que teria sido discípulo de Heidegger, relativiza a tal ponto os crimes nazistas que chega a
afirmar que o extermínio em massa levado a cabo nos campos de concentração por parte do regime hitlerista
teria sido tão-somente uma espécie de “reação”, sendo algo, portanto, que deveria ser compreendido apenas
como mais um dos capítulos de uma suposta “guerra civil mundial” perpetrada entre americanismo e
comunismo, ao longo do século XX” (OLIVEIRA, 2007, p. 03).
6
“A prender com a história não significa, para Habermas, apenas revisar os conteúdos da tradição cultural, mas
fundamentalmente enfrentar a derrota das esperanças do passado. É preciso refletir sobre as tradições que
fracassaram, sobre os desenganos e sobre a capacidade de indicar que caminho não podemos seguir”
(CITTADINO, 2007, p. 59).

26
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Habermas, assim, irá combater veemente historiadores neoconservadores que


pretendiam justificar, remetendo-se, mais uma vez, a uma dada tradição cultural
herdada, uma certa normalização da história alemã que apelaria, quer seja à
negação, quer seja ao esquecimento do holocausto e da experiência totalitária do
nazismo (OLIVEIRA, 2007, p. 03).

Cidadãos com o papel pacífico, típico dos neoconservadores, é visão romântica e


exacerbada do autoritarismo nacionalista do século XIX. Por isso é que Habermas utiliza a
tese do patriotismo constitucional para fomentar a emancipação e construção de uma
democracia constitucional que vai contra o instrumentalismo e constitui a identidade de uma
nação que se entende esclarecida. Veja: “Ora, para Habermas, o desejo dos
neoconservadores de chegar a uma identidade “convencional” seria marcada uma regressão
em relação às precárias vantagens conquistadas pela RFA, desde 1949” (LACROIX, 2005,
p. 125).
Diante da visão crítica a qual fora formado é que Habermas pensa a reconstrução do
passado histórico da identidade alemã. Pois, “foi precisamente contra tal tentação que
Habermas fez chegar ao espaço público o tema do patriotismo constitucional” (LACROIX,
2005, p. 124). Portanto, a noção de patriotismo constitucional utilizada por Habermas assenta-
se “à titularidade de direitos fundamentais de participação política, jurídico-
constitucionalmente delineados, garantidores de uma autonomia jurídica pública.”
(OLIVEIRA, 2007, p. 04).
A utilização da expressão patriotismo constitucional reforça a idéia de que os fatos
do passado somente poderão ser instituídos como elementos fundamentais na construção da
identidade coletiva presente caso passarem por um crivo suspeitoso da experiência moral dos
cidadãos. “O passado deixa de ser fonte de legitimação de práticas sociais e se transforma
em um legado a partir do qual é possível extrair lições” (CITTADINO, 2007, p. 59).
Ao atribuir a responsabilidade aos cidadãos de alcançarem a identidade coletiva por
meio das diversas interpretações da Constituição é que a democracia pode ser viável. É nesse
fluxo interpretativo de reconstrução do passado conforme o presente e com o horizonte de
expectativa pautado no futuro presente é que se dá a necessidade de abertura constitucional na
formação da identidade coletiva.
Habermas vai além da afirmativa do amigo e Professor de Direito Público de
Harvard, Michelman, de que o patriotismo constitucional seria somente um
“compartilhamento consciente de sentimentos” (MICHELMAN, 2001, 254)7 ou de que seria

7
O patriotismo constitucional habermasiano é, na verdade, a confecção de uma idéia constitucional e de um
sentimento comunitário empírico. Ele consiste em um compartilhamento consciente de sentimentos de

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

“apenas de um consenso ético de uma dada comunidade” (CRUZ, 2006, p. 97). Para
Habermas o patriotismo constitucional é fonte de legitimidade de toda a estrutura do Poder
Constituinte e de sua Teoria Discursiva do Direito e da Democracia. Para o autor a ideia de
povo e de nacionalismo é substituída pela ideia de patriotismo constitucional. Agora a
identidade do sujeito ocorre pelo compartilhamento coletivo de uma permanente
aprendizagem com os princípios constitucionais. Veja Rouanet a respeito:

Nesse sentido, em vez de orgulhar-se de um “sentimento nacional” ou de “um


sentimento de pertença à nação”, que o mais das vezes se apóia sobre uma pertença
unidade cultural, religiosa, ética ou lingüística (que em alguns casos pode ser real,
mas isso não importa para o argumento), cabe ao cidadão unir-se em torno dos
princípios constitucionais que asseguram os mesmos direitos e deveres a cada
indivíduo que faz jus ao título de cidadão daquele país (ROUANET, 2005, p. 79).

Somente no reconhecimento do outro como livre e igual é que poderá surgir uma
identidade coletiva, isso não quer dizer, muito pelo contrário, de que todos tenham que
possuir mesmo entendimento a respeito de questões de tradição, crença e cultura, por
exemplo. Como visto acima, é pelo princípio da diferença é que a democracia se constitui
como organização social válida e forte.
A atitude cívica é pautada no exercício de conhecimento e interpretação permanente
da Constituição. O reconhecimento de iguais liberdades subjetivas no espaço
procedimentalizado discursivo legitimado pelos direitos fundamentais é que possibilita a
reconstrução interpretativa da Constituição. Conforme Cittadino: “O patriotismo
constitucional, tal como formulado por Habermas, difere da idéia de que o patriotismo é uma
identificação comum com uma comunidade histórica fundada em certos valores”
(CITTADINO, 2007, p. 61).
Habermas não procura buscar na ideia de povo uma espécie de refúgio para os
problemas da modernidade, ou ainda, fundamentar levianamente a política e a aplicação do
direito a partir de um conceito vago. O patriotismo constitucional vai substituir a ideia
tradicional de povo e servir de abertura para o texto constitucional ser entendido como
inacabado, aberto e perene. Ele não procura substancializar a constituição e muito menos
formar um patriotismo cultural baseando na homogeneidade ou no multiculturalismo. Sua
proposta é compreender que o patriotismo constitucional é uma atitude, uma postura, um

pertencimento à comunidade, inspirado pelo vínculo a uma idéia contrafática percebido pela comunidade
(MICHELMAN, 2001, p. 254, tradução nossa). “Habermasian constitutional patriotism, in fact, is a confection
counterfactual constitution idea and empirical communitarian sentiment. It consist in a conscious sharing of
sentiments of attachment to the community, inspired by the community's perceived attachment to the
counterfactual idea”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

esclarecimento cívico, uma ação democrática e constitucional que por meio dele, os cidadãos
aceitam que as raias da solidariedade social se resguardam no direito e na Constituição. Nos
dizeres de Habermas, “A isso corresponde um conceito processual de identidade coletiva”
(HABERMAS, 2002, p. 330). Em outras palavras, quando cidadãos se reconhecem diferentes
culturalmente e iguais em direitos fundamentais, é possível perceber que a solidariedade
social está amparada na Constituição. Nem o direito e nem a Constituição são substâncias
éticas como cardápio de princípios morais valorativos e hierárquicos. Os princípios
constitucionais devem ser entendidos como possibilitadores do espaço procedimental
discursivo que os sujeitos se reconhecem como detentores de iguais liberdades subjetivas.
Assim, o patriotismo constitucional fomenta o espaço discursivo para formar uma
cultura política procedimental constitucionalizada. Em virtude de ele ser compartilhado e não
defender nenhum modelo do que seja “vida boa” é que se pode caracterizá-lo como neutro e
procedimental, assim como o princípio da democracia o é.
A consciência história é que possibilita a constante construção da democracia e do
constitucionalismo. Somente no exercício legítimo da cidadania democrática é que se poderá
instaurar o processo de construção da identidade coletiva. Mas para que esse processo
deliberativo democrático ocorra é necessário estabelecer como prioridade a efetivação dos
direitos fundamentais e da soberania popular como suportes legítimos da democracia
constitucional.
O patriotismo constitucional necessita da história argumentativa e autocrítica, aquela
história que supõe a tomada de consciência da ambivalência de cada tradição participante de
uma mesma identidade coletiva. “Nossa identidade não é algo que assumimos, mas também
um projeto de nós mesmos” (HABERMAS, 2002, p. 330).
Habermas defende que é através de uma sociedade reflexiva que o processo político
de modernização pode alcançar um futuro promissor em que se respeita a autonomia pública e
privada. Ele propõe uma leitura tensionada, bem dialética neste ponto, entre realidade e
normatividade. Uma realidade que cidadãos por meio de um complexo processo discursivo
fixam direitos e deveres e reconhecem-se entre si.
Baseado nas observações precedentes pode-se inferir que a democracia
constitucional surge como algo complexo, fragmentado e incompleto. Ela deve ser
considerada um vazio que ocupa o intervalo entre dois sentidos. Primeiramente, a consciência
da ausência de uma democracia plena é indispensável para haver a sua reconstrução
permanente e, consequentemente, a democracia constitucional é inerentemente incompleta,
daí aberta e a procura de completude.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

O texto constitucional depende do contexto e este é aberto a interpretações ao longo


do tempo para que se possa reinterpretar e reconstruir a democracia constitucional. Nesse
exercício de reconhecimento e de luta por reconhecimento é que está a função do cidadão
enquanto participante da política, pois, é somente no exercício da cidadania é que se produz
cidadãos. Não há ditadura que possa preparar o indivíduo para a cidadania. Esta envolve a
permanente reconstrução e reinterpretação do que se entende da e por Constituição.
Pelo fato da sociedade estar em constante mudança e o direito ser uma maneira de
relatar essas modificações, a democracia constitucional é aberta, é um hiato, é um estágio
indefinido. Ela só pode ser apreendida mediante o discurso intersubjetivo que vincula todos os
atores que estão e serão reunidos pelo mesmo conjunto de normas constitucionais.
É a partir de um compartilhamento coletivo dos direitos fundamentais instituídos na
Constituição que o passado constitucional deve emergir de forma íntegra, sem deixar que
retalhos históricos sejam realizados a fim de desconstituir a democracia. A história então é
considerada “como processo aberto de transformação de contextos sociais que permite, na
análise desse processo, o reexame do tempo presente” (REPOLÊS, 2007, p. 03) A
reconstrução do presente permite o movimento interpretativo permanente e vivo da
atualização da democracia e da Constituição.
Na sociedade moderna e pós-convencional, utilizando aqui termo apoiado nas formas
de desenvolvimento cognitivo de Piateg e da evolução moral dos sujeitos de Kohlberg, o que
Habermas propõe é que a identidade seja criada a partir da Constituição, uma vez que o
pluralismo é exatamente a coexistência de várias religiões, crenças e culturas que apesar de
serem diferentes e divergentes, se respeitam mutuamente. Pois, a abertura da Constituição é a
mesma para todos, os direitos nela contidos são necessariamente universalizados, como os
direitos fundamentais e a soberania popular. Os indivíduos se reconhecem nela e nesta
cidadania reflexiva se entendem como livres e iguais. Veja Habermas a respeito:

Em uma associação de livres e iguais, todos precisam entender-se, em conjunto,


como autores das leis às quais se sentem individualmente vinculados como seus
destinatários. Por isso o uso público da razão legalmente institucionalizado no
processo democrático representa aqui a chave para a garantia de liberdades iguais
(HABERMAS, 2002, p. 123).

Na Teoria Discursiva do Direito e da Democracia não há a homogeneidade de uma


ordem compartilhada de valores, esta ideia é substituída pelo pluralismo defendido na
Constituição em que se tem a defesa das autonomias pública e privada, procedimentalmente
estabelecidas. Veja Cattoni de Oliveira:

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Por fim, no que se refere ao pluralismo social e cultural, o patriotismo


constitucional, que para Habermas envolve justamente a construção de uma cultura
política pluralista com base na Constituição democrática de uma república de
cidadãos livres e iguais, é expressão de uma forma de integração social, que se dá,
pois, através da construção dessa identidade política pluralista e aberta, que pode ser
sustentada por formas de vida e identidades ético-culturais diversas e mesmo
divergentes, que convivem entre si, desde que assumam uma postura não-
fundamentalista de respeito recíproco, umas com as outras (OLIVEIRA, 2007, p.
05).

Habermas substitui a ideia de Ethos compartilhado pela idéia de patriotismo


constitucional estabelecendo que a identidade coletiva possui por base comum a Constituição.
Esta, legitimada continuamente durante sua própria existência, é fundamentadora da
igualdade na sociedade por ser único fator igualmente compartilhado por todos. O patriotismo
constitucional reafirma a idéia de que os legitimados para participar dos processos
deliberativos decisório são os sujeitos constitucionais, aqueles que criam e recriam sua
identidade conforme o tempo e o espaço, de acordo com cada caso específico.
A cidadania reflexiva demonstra a alteração da matriz de pensamento ao reafirmar o
esclarecimento cívico no exercício de reinterpretação e participação permanente de
construção da Constituição e não adoção de modelos cívicos herdados por tradições utilitárias
e instrumentais. Cattoni de Oliveria em seu ilustre artigo intitulado “Revisão é Golpe! Por um
Exercício de Patriotismo Constitucional Contra Fraudes à Constituição”, demonstra a
importância da participação da sociedade civil no que diz respeito à construção da identidade
coletiva “a partir das condições jurídico-constitucionais de um processo deliberativo
democrático capaz de estreitar a relação entre os diversos grupos culturais e de consolidar
uma cultura política de tolerância entre eles” (OLIVEIRA, 2007, p. 06). Sob tais
pressupostos democráticos deliberativos é que a prática da cidadania será condizente com os
direitos políticos, pois, somente assim é que se poderá legitimar o exercício cívico reflexivo
na democracia constitucional. Ainda com Cattoni de Oliveira: “Isso significa dizer em ultima
análise a defesa do patriotismo constitucional identifica-se não com uma tradição cultural
herdada, mas refletida – à luz dos direitos fundamentais e da democracia, princípios típicos
do constitucionalismos moderno.” (OLIVEIRA, 2007, p. 04).
A ideia de patriotismo constitucional demonstra a maturidade de uma nação pela
construção e reconstrução da Constituição pelos sujeitos constitucionais. Essa liberdade
interpretativa é o que distingue toda a história do constitucionalismo, pois, a abertura e o
espaço de demonstração de aprendizado é o que fortalece a democracia constitucionalizada. O
patriotismo constitucional apropriado pela Teoria Discursiva do Direito e da Democracia é a

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

tese que proporciona a superação das antigas tradições constitucionais pelo fato delas não
serem “capazes de nortear um estudo adequado a um paradigma de Estado democrático de
direito” (PEDRON, 2009, p. 53).
Sob a ótica da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas não se
privilegia nem a visão republicana nem a liberal,8 nem a visão comunitarista nem a liberalista,
mas concebe a visão do pluralismo como sendo tanto visões individuais do mundo quanto
perspectivas a respeito do que seja o bem. Ou seja, Habermas não privilegia nem a autonomia
privada do justo (liberalismo), nem a autonomia pública do bem (comunitarismo). Mas, o que
será determinante para a realização da melhor interpretação é a interlocução realizada
procedimentalmente entre as duas autonomias, a pública e a privada. Nas palavras de
Rouanet:

Quanto à noção de “patriotismo constitucional”, esta parece ser uma boa tentativa de
se situar entre a noção liberal de direitos individuais e a noção não liberal de direitos
coletivos, uma vez que se apóia na Constituição, e por esse motivo dependerá da
escolha do próprio povo de cada país (ROUANET, 2005, p. 82).

Diante do pluralismo existente e do alto grau de complexidade da sociedade


moderna, os cidadãos assumem cada vez mais papeis sociais diferentes. Ora atuando na
defesa de interesses pessoais, na concepção individual de vida boa, ora como cidadão
organizado na sociedade civil que está lutando por direitos compartilhados na esfera pública.
Mas, o mais importante que se pode reconhecer neste tema é que necessariamente a gênese do
direito somente poderá ocorrer a partir de um debate em que tem como prioridade a
comunicação entre as autonomias pública e privada.
A ideia de que a Constituição é aberta aos interpretes e de que os afetados e
interessados é que possuem legitimidade para a titularidade do Poder Constituinte que está
dentro do que Habermas chama de patriotismo constitucional. O poder constituinte passa a ter
como titular os cidadãos e o povo é substituído pela ideia de patriotismo constitucional, ou
seja, a Constituição será um projeto em (re)construção e o poder constituinte um fenômeno
perene na prática discursiva de aprendizado em que leva em consideração o cidadão e o povo
ao mesmo tempo.
Assim, o Processo Legislativo Constitucional tem como titular os cidadãos
amparados pela Constituição aberta e inacabada. Mas para que eles, cidadãos, no exercício

8
O patriotismo constitucional é, portanto, menos que um nacionalismo republicano e mais que um
individualismo possessivo. Por um lado, o individualismo liberal não é capaz de assegurar a coesão social, e
pode levar à dissolução da sociedade; por outro lado, o nacionalismo republicano pode levar à perda das
liberdades individuais asseguradas na Modernidade Ocidental (ROUANET, 2005, p. 78).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

cívico de seus direitos fundamentais possam exercer a função de re(construção) da


Constituição, necessário é voltar a atenção para questões cernes da Teoria Discursiva do
Direito e da Democracia como a função da sociedade civil e da esfera pública na legitimidade
do processo legislativo, uma vez que possuem papel decisivo na (re)construção participativa
da identidade coletiva.
Necessariamente a sociedade civil e a esfera pública devem ser levadas a sério no
que tange à construção da interpretação constitucional proporcionada pelo espaço
procedimental deliberativo discursivo. A tentativa constante é de efetivar os direitos
fundamentais a partir do exercício cívico de uma cultura política constitucionalizada na
participação em um processo deliberativo procedimental discursivo em que os cidadãos
possam, através de discursos, manifestarem no processo legislativo. Assim sendo, o devido
processo legislativo que não leva a cabo o fluxo comunicativo criado da sociedade civil para a
esfera pública, não está condizente com os princípios fundamentais e com a soberania
popular. Pois, como nos dizeres de Cattoni de Oliveira: “A constituição da república não está
à disposição do Legislativo, que constitucional e democraticamente deve representar mas que
não incorpora ou substitui a “soberania popular” (OLIVEIRA, 2007, p. 10).
A participação cívica na construção da opinião e da vontade pública apresenta-se
como exercício legítimo do Estado de Direito, pois o processo legislativo constitucionalizado
tem como resultado a soberania popular, esta, por sua vez, somente pode ser resultado da
construção em conjunto de um entendimento proporcionado pelos direitos fundamentais na
reinterpretação do direito e da Constituição. Os agentes públicos não podem atuar
desvinculados da formação da opinião e da vontade pública uma vez que são representantes
populares, assim, agir discricionariamente seria agir fora dos padrões de legitimidade
habermasiana. Dever-se-ia, à luz da Teoria Discursiva, aumentar a proximidade entre
sociedade civil e esfera pública na construção normativa.
A conectividade entre a sociedade civil e a esfera pública é elemento fundamental
para o exercício legiferante, pois, a construção participativa das normas é requisito essencial
na legitimidade da democracia e da interpretação da Constituição.
A Constituição da República Federativa do Brasil contempla os princípios basilares
da democracia procedimental deliberativa ao estabelecer com ênfase em seu primeiro artigo
que se constitui em Estado Democrático de Direito e tem como direitos fundamentais: “ I – a
soberania; II – cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa; V – O pluralismo político” (CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA, 1988, art. 1º). Para fortalecer a idéia de que a participação cívica é necessária e

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

também cerne da Constituição da República, ainda no artigo primeiro, no parágrafo único,


impõe-se que: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos
ou diretamente, nos termos desta Constituição” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, 1988,
art. 1º). Ou seja, os representantes possuem o papel de proporcionar a aproximação da
sociedade civil e da esfera pública na construção da opinião e da vontade pública, por isso são
representantes do povo, caso contrário, atuam como executores de políticas individuais,
egoísticas e privatistas.9 A leitura constitucional deve ser realizada a partir de seus princípios
e seu texto normativo deve ser compreendido como um corpo principiológico que possibilita
amarrar as possíveis falhas ou aberturas do texto constitucional elaborado pelo Poder
Constituinte Originário.

4 - Conclusão

O presente artigo demonstra como o exercício da cidadania é a chave mestra para a


aproximação contínua de melhores condições de legitimidade do direito. Idealizar um regime
de governo que dialoga com a sociedade civil é criar condição de possibilidade que cidadãos
partícipes da política sejam responsáveis pela trajetória sócio-política escolhida, assim sendo,
haverá maior carga de legitimidade das políticas públicas e de reconhecimento das minorias
organizadas, enquanto atuantes em um espaço procedimental que está vinculado a questões de
solidariedade e reconhecimento mútuo. As deliberações públicas devem partir das duas
esferas, tanto da privada quanto da pública para garantir o devido processo legislativo por via
da participação da sociedade civil na esfera pública.

Com a utilização da tese do patriotismo constitucional conclui-se que o poder


constituinte é um projeto perene e inacabado, que o processo legislativo deve ser fundado na
participação cívica dos sujeitos de direito na defesa de suas interpretações constitucionais na

9
Ainda na mesma linha de raciocínio de aplicação de uma democracia procedimental, pode-se citar ainda o
artigo 5º inciso LIV da Constituição que impõem: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o
devido processo legal.” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, 1988, art. 5º, LIV, grifo nosso). Entende-se
legal no texto da Constituição como “devido processo constitucional”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

forma de procedimentos deliberativos democráticos em que se tem como finalidade o


pluralismo reconhecido.

A necessidade de conexão entre a sociedade civil e a esfera pública para


manifestação dos fluxos comunicativos institucionalizados e que a Constituição não é mais
em uma ordem homogênea, linear e substantiva, mas sim, aberta, viva, perene e cidadã são
fundamentos basilares da democracia constitucional.

A efetivação da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia com a Tese do


patriotismo constitucional ganha contornos mais adequados e que, fundada em um documento
universalmente compartilhado, pode realizar em maior medida a efetividade dos direitos
fundamentais e da soberania popular, bem como também da equiprimordialidade entre as
autonomias pública e privada.

O patriotismo constitucional reflete a maturidade de uma nação pelo constante


processo de (re)construção da Constituição, pois a partir do exercício dos direitos
fundamentais, constitucionalmente garantidos, é que se fundamenta a relação equânime das
duas autonomias, sem que se possa afirmar a priorização da autonomia pública frente a
privada.

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38
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NEOLIBERALISMO E CRISE DO WELFARE STATE: A


RECONFIGURAÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA
GLOBALIZADA

NEOLIBERALISMO Y CRISIS DEL ESTADO DE BIENESTAR: LA


RECONFIGURACIÓN DEL PAPEL DEL ESTADO EN LA ECONOMIA
GLOBALIZADA
Julia Lafayette Pereira1

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo discutir a mudança do papel do Estado em
face do modelo econômico neoliberal, sobretudo no que concerne ao direito e à prestação
jurisdicional. Este modelo econômico impõe um novo modo de governar: se antes cabia ao
Estado elaborar planos econômicos guiados pelos seus próprios objetivos, direcionados à
concretização dos direitos dos cidadãos, por exemplo, no cenário contemporâneo o Estado
governa para e em função da economia. As ações estatais estão voltadas para a salvaguarda do
mercado, pois manter o seu saudável funcionamento é a principal preocupação. Dessa forma,
a garantia do pleno emprego, a diminuição dos abismos sociais, entre outros objetivos
próprios do welfare state, têm sua importância reconhecida, contudo, são questões
secundárias. Por isso, pode-se dizer que o Estado Contemporâneo vive um processo de
“economização” e de relativização das garantias constitucionalmente asseguradas. O direito,
assim como os sistemas de justiça, não estão imunes a este processo. Ambos são avaliados
sob o ponto de vista dos consumidores, de modo que são submetidos a uma lógica
(eficientista) que não lhes é própria. Não só o direito, como a prestação jurisdicional, são
enformados pelos seguintes valores: eficiência, produtividade e padronização. O cumprimento
destes valores permite que os atores econômicos reúnam certo número de informações
necessárias a adoção de comportamentos estratégicos, de modo que possam prever as
decisões, avaliar os custos que possam vir a ter com o judiciário e o peso burocrático dos
mesmos. Nesse cenário, a preocupação com a garantia de direitos constitucionais, bem como
com a qualidade da prestação jurisdicional são relegadas a segundo plano.

Palavras-chave: neoliberalismo; Estado de Bem-Estar Social; eficiência; globalização.

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo analizar la evolución del papel del Estado en el
modelo económico neoliberal, especialmente respecto al derecho y a la adjudicación. Este
modelo económico requiere una nueva forma de gobernar: si antes la función del Estado
correspondia al dever de desarrollar planes económicos, guiados por sus propios objetivos y
orientados a la realización de los derechos de los ciudadanos, por ejemplo, en el escenario
contemporâneo, el Estado gobierna para y en función de la economía. Las acciones del
Estado están dirigidas a salvaguardar el mercado, pues mantener su buen funcionamiento es
su principal preocupación. De este modo, lograr el pleno empleo, reducir abismos sociales,
entre otros objetivos propios del Estado de Bienestar, tienen su importância reconozida, sin
embargo, son cuestiones secundarias. Por lo tanto, se puede decir que el Estado
contemporáneo vive un processo de “economización" y de relativización de las garantías
constitucionales. El Derecho, bien como los sistemas de justicia, no están inmunes a este

1
Mestranda em Direito Público do Programa de pós-graduação em direito da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos. Graduada pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: julialafayette@hotmail.com.

39
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

proceso. Ambos son evaluados desde el punto de vista de los consumidores, por una lógica
(eficientista) que no les pernenece. No sólo el derecho, como la adjudicación, son
conformados por los siguientes valores: eficiencia, productividad y estandarización. El
cumplimiento de estos valores permite que los agentes económicos reunan cierto número de
informaciones necesarias a la adopción de conductas estratégicas, de modo que puedan
predecir las decisiones, evaluar los costos que puedan tener con la carga legal y burocrática de
ellos. En este escenario, la preocupación con la garantía de los derechos constitucionales, bien
como con la calidad de la adjudicación son relegados a un segundo plano.

Palabras clave: neoliberalismo; Estado de bienestar; eficiencia; globalización.

1. INTRODUÇÃO

É recorrente a discussão de que a dinâmica da globalização exerce uma influência


significativa na relativização do poder dos Estados Nacionais. Muitos autores, imersos nesta
discussão, preocupam-se com o futuro do Estado, perguntando-se, se há futuro promissor para
ele, ou se, por outro lado, ele ruma ao gradativo desaparecimento.
Longe do protagonismo outrora exercido pelo Estado Moderno, surgem novos atores
no atual cenário globalizado, que se materializam não só na forma de organizações
internacionais e supranacionais institucionalizadas, como também na forma de empresas e
organizações econômicas transnacionais.
Preocupados com o bom funcionamento da economia de “livre mercado global”, esses
novos atores acabam por menosprezar a importância da consolidação do Estado de Bem-Estar
Social: não raro, estimulam não só a desregulamentação de garantias constitucionalmente
asseguradas aos cidadãos, como também o desmantelamento dos antigos controles
regulamentares que limitavam a economia concorrencial.
Esse é o cenário cuja responsabilidade é, muitas vezes, atribuída ao modelo econômico
neoliberal, acusado de introduzir o pensamento econômico a todas as esferas da sociedade.
Considerando isto, a presente pesquisa tem como intuito esclarecer a reconfiguração
do papel do Estado na economia globalizada, bem como expor que o neoliberalismo está
intrinsecamente atrelado a esta mudança de papel.
Além disso, diante do poder regulamentar das organizações institucionalizadas e,
sobretudo, das empresas e organizações transnacionais informalmente associadas ao poder
regulamentar, pretende-se mostrar como o Direito teve sua autonomia prejudicada pela
introdução da lógica econômica no seu sistema.
O presente trabalho foi construído a partir do método hermenêutico-fenomenológico.
Partiu-se de pré-compreensões acerca do tema que foram postas à prova ao longo da pesquisa

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por meio de levantamento bibliográfico. O artigo está dividido em duas partes: na primeira,
procura-se demonstrar a crise do Estado de Bem-Estar Social diante da globalização da
economia e a crescente supremacia do poder econômico frente ao poder político e jurídico
(2.1). Ainda, será discutido o surgimento do modelo neoliberal no período pós-segunda
guerra, cuja pertinência se justifica por explicar a mudança de pensamento quanto ao papel do
Estado na economia, sendo a experiência alemã a mais significativa, como afirma Foucault
(2.2).
Na segunda parte, esclarece-se a relevante mudança da política liberal - Estado laissez-
faire-, para a política neoliberal - Estado supervisor/regulador do jogo econômico (3.1). Em
seguida, discute-se a perda de autonomia do Direito em decorrência de um Estado que passa a
se pautar por valores neoliberais (3.2).

2. A CRISE DO ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL NA ECONOMIA


GLOBALIZADA

De acordo com Hobsbawn (2007, p. 11), o impacto da globalização é mais sentido por
aqueles que dela não se beneficiam. A ampliação dos mercados globais trouxe como
conseqüência a acentuação das desigualdades econômicas e sociais entre os Estados Nações,
ainda que tenha havido uma diminuição geral da pobreza extrema. O crescimento do abismo
sócio-econômico entre os mais e menos abastados no interior dos estados também não
mostrou sinais de desaceleração (HOBSBAWN, 2007, p. 11).
Tal conjuntura, combinada com condições de extrema instabilidade econômica
decorrentes das práticas de livre mercado global, formam o eixo gerador das principais
tensões sociais e políticas do século XXI. Ao mesmo tempo em que a ascensão de novas
economias asiáticas ameaça os índices de desenvolvimento humano dos povos do velho norte,
países como Índia e China, dificilmente, alcançarão o alto nível de vida europeu para suas
vastas populações.
É em torno disto que provém a polarização das opiniões que dizem respeito aos
impactos da globalização. A divergência ocorre entre os que estão protegidos das suas
conseqüências negativas - os empresários, que recorrem à mão-de-obra barata de outros países
para baixar os custos e contornar a concorrência, os profissionais da alta tecnologia, os
profissionais que possuem curso superior, capazes de conseguir trabalho em mercados de alta
renda - e aqueles que neste rol não estão incluídos (HOBSBAWN, 2007, p. 11).

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“É por isso que, para a maior parte daqueles que vive dos salários provenientes dos
seus empregos nos velhos ‘países desenvolvidos’, o começo do século XXI oferece um
quadro sombrio, para não dizer sinistro” (HOBSBAWN, 2007, p. 11-12). Com as mesmas
qualificações, existe um imenso número de trabalhadores de outros países dispostos a exercer
as mesmas tarefas a apenas uma pequena fração dos salários pagos no Ocidente, isso sem
contar com a pressão do grande “exército de reserva de trabalhadores” imigrantes dentro dos
próprios países desenvolvidos, egressos das “aldeias das grandes zonas globais de pobreza”
(HOBSBAWN, 2007, p. 11-12).
Com isso, percebe-se que o mercado livre global comprometeu a existência do Estado
do Bem-Estar Social, constituindo tal realidade uma das faces da crise do Estado, temática
discutida por Bolzan de Morais (2011, p.14). Segundo o autor, este modelo de Estado vem
enfrentando dificuldades de três ordens distintas: fiscal financeira, ideológica e filosófica. E é
apegando-se às mencionadas dificuldades e fragilidades deste modelo nos presentes dias, que
surge a proposta neoliberal como contraponto, ao defender o retorno a uma ordem estatal
reduzida (BOLZAN DE MORAIS, 2011, p. 14).

2.1. A “ECONOMIZAÇÃO” DO ESTADO E A RELATIVIZAÇÃO DOS


DIREITOS CONSTITUCIONALMENTE ASSEGURADOS PELO ESTADO
DEMOCRÁTICO E SOCIAL DE DIREITO

Segundo Hobsbawn (2007, p. 105), politólogos e ideólogos, desde a década de 70,


vem defendendo o retorno a um modelo de laissez-faire ultra-radical, ao criticar o Estado e
afirmar que o “seu papel tem de ser reduzido a qualquer preço”. Assim, em oposição a um
Estado que tem como função a proteção e promoção do bem-estar social, a implementação de
prestações públicas e o dever finalístico de cumprir uma função social (BOLZAN DE
MORAIS, 2011, p. 31), tal corrente acredita que os serviços prestados pelas autoridades
públicas são indesejáveis (HOBSBAWN, 2007, p. 105).
Defendem que o “mercado” pode fornecê-lo de um modo melhor, mais eficiente e
mais barato, de modo que, nessa perspectiva, tem ocorrido uma privatização maciça tanto dos
serviços públicos como dos cooperativos2. Atividades outrora de competência dos governos

2
Segundo Canotilho (2002, p. 31-32), “fala-se (e teoriza-se a este propósito) de um ‘estado economizado’ e de
um ‘estado dispensador de serviços’. Como o próprio adjectivo insinua o ‘estado economizado’ é um ‘estado
economizador’ segundo os paradigmas de racionalidade econômico-privada. O Estado Social deve sujeitar-se a
uma terapia adequada. Há que substituir, em primeiro lugar, o big government do estado de bem estar por um
estado ‘reduzido’ e ‘elegante’. Para isso ser possível, os inúmeros serviços e administração estatais, caros e

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nacionais ou locais, como escolas, fornecimento de água, prisões e correios, hoje estão
“transformadas em empresas de negócios ou entregues a elas; e os funcionários públicos
foram transferidos para agências independentes ou substituídos por contratistas comerciais”
(HOBSBAWN, 2007, p. 105).
Nesse cenário, o Estado tem aspirado o modus operandi da empresa privada com fins
lucrativos. Em lugar da mobilização ativa e passiva dos cidadãos, o Estado passou a confiar
nos mecanismos econômicos do mercado. Só que dessa conjuntura emerge um problema
crucial, como bem revela Hobsbawn (2007, p. 105): “o ideal de soberania do mercado não é
um complemento à democracia liberal, e sim uma alternativa a ela”.
O ideal de soberania do mercado constitui uma alternativa a todos os outros tipos de
política: pauta-se por uma soma de escolhas, racionais ou não, de indivíduos que decidem de
acordo com suas preferências pessoais. Tal mecanismo ignora a necessidade de decisões
políticas, consistentes naquelas orientadas para interesses comuns ou de um determinado
grupo (HOBSBAWN, 2007, p. 106). A revelação dos interesses dos consumidores, medidos
pelo mercado - ou, mais precisamente, pelas pesquisas de mercado - tornaram-se meios mais
eficientes do que o defasado método de contar votos nas eleições.
Considerando isto, “a participação no mercado substitui a participação na política” e
“o consumidor toma o lugar do cidadão” (HOBSBAWN, 2007, p. 106). Diante disso,
permanece a seguinte pergunta: tal escolha se coaduna com um sistema político liberal e
democrático?
É certo que o Estado, como organização democrática, está vinculado às exigências
próprias de uma democracia, seus controles públicos, limites procedimentais e, sobretudo, aos
direitos e garantias cidadãs. No entanto, outras limitações emergem no presente Estado
Contemporâneo além daquelas que delineiam o Estado Constitucional. O Estado Moderno -
“tradicionalmente centro único e autônomo de poder”, “protagonista na arena internacional” e
“ator supremo” no âmbito do seu espaço territorial - está em crise, como evidencia Bolzan de
Morais (2011, p. 21).
Os centros de poder se dispersaram. Distante do protagonismo exercido pelo Estado
Moderno no cenário mundial, surgem em cena não só organizações internacionais
institucionalizadas, sobretudo no domínio econômico – entre elas, Organização Mundial do
Comércio (OMC), Fundo Monetário Internacional (FMI), Organização dos Países

insuficientes, devem ser substituídos por esquemas privados empresariais. Mais do que isso. Os próprios
instrumentos de direcção e organização econômico-privados revelam operacionalidade suficiente para serem
introduzidos na máquina estatal”.

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Exportadores de Petróleo (OPEP) -, ou das novas tecnologias de comunicação - a


International Telecommunication Union (ITU), entre outras -. como também surgem
“empresas e organizações transnacionais informalmente associadas e produtoras de
regulamentação”, cujo poder econômico e social, muitas vezes, excede o do conjunto dos
Estados Nações, segundo Hespanha (2009, p.428-430).
Bolzan de Morais argumenta que as empresas transnacionais exercem um papel
central, pois suas decisões “não podem ser contrastadas sob o argumento da soberania
estatal”. Por não estarem ligadas a algum Estado em particular, suas decisões não podem ser
deslegitimadas, nem contrariadas, tendo em vista que a influência econômica que exercem
nos países, sobretudo nos mais fracos, pode afetar negativamente a situação sócio-econômica
dos mesmos.
O crescimento do poder dos atores econômicos chega a ser tão significativo ao ponto
de controlarem de modo velado não só os governos dos Estados Nacionais como, até mesmo,
o das entidades supra e interestatais, como União Européia (EU) e Organização das Nações
Unidas (ONU). O poder das autoridades eleitas nestes entes se encontra reconfigurado, para
não dizer reduzido. Segundo Neves (2008, p. 219), organizações regionais como União
Européia, Nafta, Mercosul, apesar de certa eficiência (em graus muito diversos), são antes
“instrumentos do mercado mundial, do que instituições políticas internacionais destinadas a
assegurar e promover a cidadania, o princípio da igualdade e a ‘soberania do povo’ nos
respectivos ‘Estados-Membros’”.
Neves (2008, p. 217-218) menciona que o fenômeno da globalização não consiste em
um problema para a realização do Estado Democrático de Direito, desde que existam
eficientes mecanismos interestatais e supra-estatais de regulação jurídica das novas relações
que surgem. Por outro lado, argumenta que um importante problema da sociedade mundial,
como responsável pelo condicionamento negativo ou enfraquecimento do Estado
Democrático de Direito, consiste no fato de que esta sociedade de reproduz primariamente
baseada no código “ter/não-ter”. Este código se revela o mais forte, e, como quotidianamente
se reproduz além de fronteiras, o sistema econômico permanece intocável pelos Estados
“enquanto sistemas jurídico-políticos diferenciados segmentariamente em territórios”
(NEVES, 2008, p. 218).
Conforme Bolzan de Morais (2011, p. 23), diferentemente dos agentes políticos, os
agentes econômicos não possuem visibilidade pública, de maneira que impõem orientações à
ação estatal que permanecem apenas nos bastidores dos órgãos estatais, sem passar pelo filtro
do debate público e da manifestação da vontade de uma maioria politicamente representada.

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Neves (2008, p. 218) reflete tal situação mencionando que a realização do Estado
Democrático de Direito agravou-se com os novos fluxos de economização no plano da
sociedade mundial, ou seja, “por força de uma expansão hipertrófica do código econômico
(‘globalização econômica’) em detrimento da autonomia dos sistemas político e jurídico”.
Assim, os códigos binários “lícito/ilícito” e “poder/não-poder”, próprios dos sistemas
jurídico e político respectivamente, são extremamente frágeis para conter a ação restritiva e
destrutiva dos sistemas econômicos sobre os sistemas jurídicos dos Estados nacionais
(NEVES, 2008, p. 219). Nesse cenário, o que ocorre não é uma autopoiese da economia
diante da política e do direito, o que na verdade ocorre é uma “hipertrofia do código
econômico em prejuízo dos códigos jurídico e político”.
Embora o mesmo constitucionalista ressalte que a influência dos interesses
econômicos varie de acordo com o grau de solidez do Estado Democrático de Direito, ele
argumenta que tais interesses constituem fatores que asfixiam uma esfera pública pluralista,
uma vez que dificultam a concretização da “soberania do povo”, da “soberania do Estado”, do
princípio da igualdade e da cidadania (NEVES, 2008, p. 219).
Conforme mencionado, a “sociedade política mundial” - composta por Estados
nacionais - possui mecanismos de regulação econômica que transcendem os limites
circunscritos pelos Estados nacionais. No entanto, o mercado mundial, principalmente o
mercado financeiro, opõe-se com muito mais força à vulnerável ordem política e jurídica
internacional. Isto para não mencionar que, não raro, a ordem político-jurídica internacional
está intrinsecamente ligada aos interesses das grandes potências, de modo que, acreditar que
tais organizações estão voltadas para a concretização do Estado Democrático de Direito
através de uma eficiente regulação da economia, muitas vezes, não passa de uma quimera
(NEVES, 2008, p. 219).
Conforme Jânia Saldanha (2010a, p. 9), para o modelo atual de economia de mercado,
o que está em pauta é que a economia “sirva de princípio, de forma e de modelo para o
próprio Estado” e, nisto, pode-se incluir também as organizações interestatais e supra-estatais.
Destarte, para o neoliberalismo, a preocupação central é manter o exercício global do poder
político orientado de acordo com a economia de mercado e baseado nas suas características:
abstração, estandartização, concorrência e quantificação. Com base nisso, Jânia Saldanha
elucida que quando isto ocorre, o abstrato se sobrepõe ao concreto e tais práticas passam a
representar a “‘normalidade abstrata’ de que se nutre o neoliberalismo para impor padrões de
conduta e padrões de gestão”.

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2.2. COMO ISSO FOI POSSÍVEL? APORTES FOUCAULTIANOS PARA A


COMPREENSÃO DO NEOLIBERALISMO

No Estado de polícia vigente no século XVIII, a liberdade era identificada como uma
liberdade de privilégios, liberdade reservada, liberdade proveniente de um estatuto, ligado a
uma profissão, ou a uma concessão de poder. Por outro lado, a liberdade de mercado era
reconhecida como liberdade de “deixar fazer” ou laissez faire, isto é, possuía uma lógica
diferente das anteriores, visto que não era regulamentada de modo preciso.
Mas, o que assegurava a permissão de liberdade do mercado no interior da razão de
Estado, ou, no interior do funcionamento do Estado de polícia, era o princípio de
enriquecimento, de crescimento, que culminaria com o fortalecimento do poder estatal. Em
poucas palavras, resumia-se ao intuito de “alcançar mais Estado com menos governo: era
essa, em suma, a resposta do século XVIII”. O laissez faire trazia conseqüências positivas
para o Estado, equivalente ao seu aumento de poder (FOUCAULT, 2004, p. 139-140).
Nesse passo, Foucault revela-se um autor indispensável para se compreender o
surgimento do neoliberalismo, mais precisamente, do neoliberalismo alemão, próprio do pós-
guerra, do qual “somos contemporâneos e no qual estamos implicados”. Discorre-se acerca do
neoliberalismo alemão – ou ordoliberalismo – neste artigo por ser a experiência mais rica, aos
olhos de Foucault, sobre esta nova arte de governar (neoliberal), cuja característica principal
parece ser a de “fobia ao Estado” (FOUCAULT, 2004, p. 139).
Contrariamente ao problema presente no Estado de polícia do século XVIII,
consistente no problema de inserir uma liberdade de mercado no interior do Estado, como
explicitado no início deste subcapítulo, o problema da Alemanha, em 1948, foi
diametralmente oposto (FOUCAULT, 2004, p. 140).
O problema alemão assim se delimitava: “supondo, atrevo-me a dizer, um Estado que
não existe; supondo a tarefa de fazer um Estado existir; como legitimar, de certo modo
antecipadamente, esse Estado futuro?” (FOUCAULT, 2004, p. 140). Ou seja: como tornar
aceitável que a liberdade econômica limite o Estado, mas, ao mesmo tempo, permita que o
mesmo exista? De acordo com Foucault, estas indagações refletem o objetivo primeiro,
histórico e politicamente primeiro, do neoliberalismo, pois, no período pós-segunda guerra,

a história tinha dito não ao Estado alemão. Agora é a economia que vai lhe
possibilitar afirmar-se. O crescimento econômico contínuo vai substituir uma
história claudicante. A ruptura da história vai portanto poder ser vivida e aceita
como ruptura de memória, na medida em que vai se instaurar na Alemanha uma

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nova dimensão da temporalidade que não será mais a da história, que será a do
crescimento econômico. Inversão do eixo do tempo, permissão do esquecimento,
crescimento econômico – tudo isso está, creio eu, no âmago da maneira como
funciona o sistema econômico-político alemão. A liberdade econômica co-produzida
pelo crescimento do bem-estar, do Estado e do esquecimento da história
(FOUCAULT, 2004, p. 116).

Para que a liberdade econômica pudesse ser fundadora, limitadora e garantidora do


Estado, foi essencial a reelaboração de alguns elementos fundamentais da doutrina liberal: não
tanto da teoria econômica do liberalismo, como explica Foucault, mas sim do liberalismo
como arte de governar, ou como doutrina de governo.
A Escola de Friburgo - inspiradora da programação da política neoliberal na Alemanha
- teve o nazismo como um contexto histórico extremamente favorável para refletir e
desenvolver sua teoria. A partir dos problemas, das falhas existentes no nazismo, a eles foi
possível definir o “campo de adversidade” que tinham de definir para depois atravessá-lo e
alcançarem seu objetivo. Como menciona Foucault (2004, p. 145), “o nazismo foi, de certo
modo, o ‘caminho de Damasco’ epistemológico e político” do neoliberalismo.
Assim, o mesmo autor traz as três coisas que os teóricos da Escola de Friburgo tinham
de fazer. Primeiramente, deveriam traçar um objetivo, aquele mencionado alhures: fundar um
Estado legítimo a partir de um espaço de liberdade dos parceiros econômicos. Em segundo
lugar, deveriam definir os adversários contra os quais podiam se chocar para alcançar o seu
objetivo. Mais precisamente, deveriam definir o “sistema geral” contra o qual seu objetivo
podia se chocar, ou seja, o “campo de adversidade”. Por último, obviamente, deveriam
atravessar o “campo de adversidade” e alcançar seus objetivos. Para tanto, era necessário
“redistribuir os recursos conceituais e técnicos que eles tinham à sua disposição”
(FOUCAULT, 2004, p. 146).
Foi o que a experiência nazista os propiciou, de modo que nela conseguiram
reconhecer “inimigos”, definir estratégias para combatê-los, e, enfim, atingirem seu escopo
final, ou o que tinham como solução para os problemas presentes no nazismo.
Segundo os ensinamentos do arqueólogo, o pensamento liberal alemão é anterior a
Escola de Friburgo, porém se manifestava de forma ainda discreta, desde Lujo Brentano, cuja
obra tentava defender e manter o liberalismo clássico em um contexto que não lhe era
favorável. Alguns autores, entre eles List, impunham reservas à economia liberal argüindo
que a mesma não era universalmente aplicável, não passando de simples modelo fruto de uma
“posição hegemônica e politicamente imperialista” inglesa. Para a nação alemã, necessário
era uma política de cunho protecionista (FOUCAULT, 2004, p. 147).

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Na perspectiva de alguns pensadores, o liberalismo clássico alemão também já


encontrava dificuldades não só no plano teórico, como também prático, ante o socialismo
bismarckiano encontrado no final do século XVIII. Para eles, não era necessário apenas uma
política que protegesse a Alemanha do exterior. Era igualmente necessário, em âmbito
interno, dominar e eliminar tudo o que pudesse comprometer a unidade nacional. O
proletariado, visto como uma ameaça à unidade nacional e estatal, deveria ser “reintegrado no
seio do consenso social e político” (FOUCAULT, 2004, p. 147).
Outro obstáculo ao liberalismo clássico em território alemão foi o desenvolvimento de
um modelo de economia planificada, ou seja, organizada em torno de um aparelho
administrativo responsável pelas principais decisões no setor econômico, pela atribuição dos
recursos raros, pelo estabelecimento do nível dos preços e pela garantia do pleno emprego.
Tal prática, adotada forçadamente diante da situação da Alemanha durante a guerra,
permaneceu recorrente tanto nos governos socialistas como não socialistas alemães
(FOUCAULT, 2004, p. 148).
Por fim, houve mais um obstáculo ao liberalismo clássico, desta vez constituído pelos
keynesianos alemães, cujas idéias não diferiam das dos keynesianos em geral, que propunham
certas modalidades de intervenção no Estado sobre os equilíbrios gerais da economia. Desse
modo, desde antes da tomada do poder pelos nazistas, a Alemanha continha “quatro
elementos que constituíam verdadeiros ferrolhos contra uma política liberal”: economia
protegida, socialismo de Estado, economia planificada e intervenções de tipo keynesiano
(FOUCAULT, 2004, p. 148). São, portanto, estas as discussões que os neoliberais vão herdar
dos pensadores liberais que os antecederam.
Foucault explica que o que o nazismo fez, na verdade, foi reunir estes diferentes
elementos: “organização de um sistema econômico em que a economia protegida, a economia
de assistência, a economia planificada, a economia keynesiana formavam um todo, um todo
solidamente amarrado”, cujas faces estavam solidamente articuladas pela administração
econômica implantada (FOUCAULT, 2004, p. 149). A planificação tinha como objetivo
assegurar protecionismo absoluto à autarquia econômica da Alemanha e, ainda, garantir uma
política de assistência. Os efeitos inflacionários que daí surgiriam seriam solucionados com a
preparação para a guerra.
Para Foucault, o grande golpe teórico dos neoliberais alemães foi não ter dito que o
nazismo era produto de uma crise de Estado extrema e que o sistema econômico implantado
era uma monstruosidade. Nem mesmo, haver dito, tal qual os keynesianos, que o nazismo era

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o resultado de uma combinação inconciliável de elementos heterogêneos e contraditórios,


cujo resultado não poderia servir de modelo analítico para a história geral.
Os neoliberais alemães recusaram-se a ver tal monstruosidade no modelo. Contudo,
afirmavam que o nazismo era uma verdade ou uma relação natural entre aqueles diferentes
elementos. De acordo com eles, qualquer um dos elementos adotados faria surgir na cena da
ação governamental os outros elementos, pois são dependentes entre si. Assim, os alemães
neoliberais - ou ordoliberais, como os denomina Foucault – entre eles, Hayek e Röpke,
estudaram a política do New Deal, e a política keynesiana dos planos Beveridge,
respectivamente, e concluíram que o que estavam preparando era simplesmente o nazismo
(FOUCAULT, 2004, p. 150-151).
Para os ordoliberais, “a diferença essencial não era entre socialismo e capitalismo, a
diferença essencial não era tampouco entre esta estrutura constitucional e aquela outra”. A
verdadeira diferença consistia naquela entre uma política liberal e qualquer outro modelo de
intervenção econômica, seja ele de tipo keynesiado, seja ele mais radical como o plano
autárquico alemão. Esta conclusão seria, portanto, uma invariante antiliberal própria a todos
regimes cuja intervenção econômica faz-se presente (FOUCAULT, 2004, 151).
A segunda conclusão a que os ordoliberais chegam é que, na estrutura jurídica da
Alemanha nacional-socialista, o Estado perde o estatuto de personalidade jurídica e passa a
ser instrumento do povo (Volk) – este sim o verdadeiro fundamento do direito. O objetivo
final do Estado é o povo em sua organização de comunidade (Gemeinschaft). O Estado é
apenas um instrumento, nada mais que isso. Do mesmo modo, o Estado é também
desqualificado internamente pelo princípio do Führertum, isto é, pelo princípio de condução,
consistente no dever de responsabilidade e obediência, sem comunicação vertical de cima
para baixo ou de baixo para cima entre os diferentes elementos da comunidade (FOUCAULT,
2004, p. 152).
A terceira conclusão dos ordoliberais é a de que a existência do partido e do conjunto
legislativo responsável pelas relações entre aparelho administrativo e partido concentraram a
autoridade muito mais no partido do que no Estado, o que evidenciava, novamente, a posição
subordinada deste. Diante desse cenário, os ordolibeirais interpretam que o Estado é assim
subordinado porque suas estruturas, próprias do século XIX, não são capazes de dar conta das
exigências requeridas pelo III Reich.
Nesta linha de raciocínio, argüiram que, se fosse desejado um modelo de intervenção
estatal na economia, o Estado necessitaria de um sobre-Estado, tal qual necessitaram os
nazistas, mediante formas de intensificação do seu poder, como o tema da Gemeinschaft, o

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princípio de obediência ao Führer e a existência do partido. Embora a conduta adotada pelos


nazistas estivesse orientada a criação de suplementos de Estado, ou de um Estado em via de
nascimento, tais medidas eram por eles apresentadas como um modelo destruidor do Estado
burguês e capitalista (FOUCAULT, 2004, p. 153).
Por isso, a Escola de Friburgo conclui que há um nexo necessário entre tal organização
de Estado e o seu crescimento, de modo que a adoção de apenas um elemento pelo sistema
econômico (sistema econômico com economia protegida, por exemplo), implicará na adoção
dos outros três (economia de assistência, economia planificada e economia keynesiana). Por
fim, para que todos elementos sejam instaurados e funcionem, necessários será o crescimento
do poder estatal (FOUCAULT, 2004, p. 153).
Contra a crítica nazista de que o estado capitalista reduziu os indivíduos ao estado de
átomos, ou que os reuniu de uma forma “nivelada e anônima, a da massa”, os neoliberais
alemães perguntam-se se “os nazistas, com sua organização, seu partido, seu princípio do
Führertum” não fizeram o mesmo. Para eles, o nazismo intensificou a sociedade de massa,
consumista, uniformizada e normalizada, a julgar pela massa de Nuremberg, pelos
espetáculos de Nuremberg. o uniforme desejo consumista de todos e o mito do Volkswagen
(FOUCAULT, 2004, p. 155).
Nesse contexto, os neoliberais se posicionam afirmando que tais características são
próprias de um Estado que não aceita o liberalismo, mas sim de um Estado que enveredou
pelos caminhos de uma economia protecionista, de uma política de planificação, ou,
principalmente, de “uma política na qual o mercado não desempenha seu papel e em que a
administração, a administração estatal ou paraestatal, é que assume a responsabilidade
cotidiana dos indivíduos” (FOUCAULT, 2004, p. 155).
Por isso, tais aspectos não estão ligados à economia mercantil, mas sim ao
antiliberalismo. Assim sendo, os defeitos da economia de mercado não restam provados, não
há, nem mesmo, provas de uma defectibilidade intrínseca a economia de mercado: todos os
defeitos são atribuídos ao Estado.
É nesse ponto que há uma reviravolta no pensamento liberal clássico próprio do século
XVIII, pois há uma mudança na função da economia de mercado deste século para o século
XIX. No lugar dela dizer ao Estado que, a partir de certo limite, ele não pode mais intervir;
deve-se permitir que a economia de mercado seja em si mesma, deixando de ser, portanto, o
princípio limitador do Estado, mas sendo, por outro lado, o princípio de regulação do Estado,
desde sua existência até sua ação. Os neoliberais assim se posicionam amparados na

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justificativa de que o Estado é o portador de vícios intrínsecos, ao contrário da economia de


mercado, cujos defeitos não estão provados.
Em oposição a uma liberdade de mercado definida pelo Estado e mantida sob sua
vigilância, o neoliberalismo é o Estado sob vigilância do mercado: a liberdade de mercado
cumpre o papel organizador e regulador do Estado, desde a sua existência a sua última
modalidade de intervenção. Portando, retoma-se a idéia inicial de que foi a experiência nazista
que possibilitou uma mudança radical no pensamento liberal clássico, bem como, solucionar o
problema de conseguir legitimar um Estado que é preciso se tornar aceitável aos olhos de
outros. A partir do que foi exposto, aproveita-se a seguinte indagação de Foucault (2004, p.
159): “o que está em questão é saber se, efetivamente, uma economia de mercado pode servir
de princípio, de forma e de modelo para um Estado cujos defeitos, atualmente, à direita como
à esquerda, por uma razão ou por outra, todo o mundo desconfia”.

3. A RECONFIGURAÇÃO DO PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA


GLOBALIZADA

Entre a política do laissez-faire e a política neoliberal há uma mutação


importantíssima: o que importa não é deixar a economia livre, o que realmente importa é até
onde os poderes de informação políticos e sociais da economia de mercado vão poder se
estender. Nessa perspectiva, os neoliberais alemães realizam certo número de deslocamentos,
de transformações e inversões da doutrina liberal tradicional, para que seja possível afirmar
que a economia de mercado tenha o poder de enformar o Estado e reformar a sociedade
(FOUCAULT, 2004, p. 160).
No liberalismo do século XVIII, o princípio do mercado era a troca: uma troca livre
entre os parceiros que “estabelecem por sua própria troca uma equivalência entre dois
valores”. Assim, limitava-se o Estado para que fosse possível que a equivalência dos preços
fosse factualmente uma equivalência, alcançando-se, desse modo, um mercado válido.
Demandava-se o Estado simplesmente para que atuasse na produção, a fim de que a
propriedade privada dos meios de produção fosse assegurada.
Para os neoliberais, no entanto, o essencial do mercado reside na concorrência, o que,
segundo Foucault (2004, p. 161), não passa de uma simples evolução do pensamento da
doutrina e da teoria liberais no decorrer do século XIX. Em praticamente toda teoria liberal do
fim do século XIX, admite-se que o essencial está na concorrência, ou seja, na desigualdade e

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

não na igualdade. A partir daí, é a concorrência/monopólio que constituirá a espinha dorsal da


teoria da economia de mercado.
Mas afinal, o que é a concorrência? Foucault (2004, p. 163) responde que ela “não é
de modo algum um dado natural. A concorrência é um eîdos. A concorrência é um princípio
de formalização. A concorrência possui uma lógica interna, tem sua estrutura própria”. Desse
modo, ela só ocorre se a sua lógica for observada, pois ela consiste em um “jogo formal de
desigualdades”, e não em um jogo natural entre indivíduos e comportamentos, como explica
Foucault.
Como uma estrutura formal não acontece naturalmente sem um certo número de
condições, a concorrência, como jogo formal, só aparecerá e produzirá os seus efeitos
mediante uma preparação cuidadosa e artificialmente preparada e nisto consiste o ponto
fulcral, bem ilustrado com a seguinte passagem:

não haverá o jogo do mercado, que se deve deixar livre, e, depois, a área em que o
Estado começará a intervir, já que precisamente o mercado, ou antes a concorrência
pura, que é a própria essência do mercado, só pode aparecer se for produzida, e
produzida por uma governamentalidade ativa (FOUCAULT, 2004, p. 164-165).

Para alcançar-se a almejada concorrência, vai haver uma “justaposição total dos
mecanismos do mercado indexados à concorrência e da política governamental” e o governo
acompanhará do início ao fim a economia de mercado. A política social, de cunho permanente
e multiforme, não será contra a economia de mercado: ela será condição de possibilidade para
que o mecanismo formal da concorrência aconteça, isto é, para que “a regulação que o
mercado concorrencial deve assegurar possa se dar corretamente”, de modo que os efeitos
negativos inerentes a uma ausência de concorrência sejam impedidos (FOUCAULT, 2004, p.
222).
Diante desta conjuntura, Avelãs Nunes (2011, p.118) refere que o combate à inflação
constitui a única política econômica bem fundamentada, pois ela afeta o mecanismo dos
preços relativos e põe em causa o funcionamento do “livre” mercado e a “racionalidade” das
economias capitalistas. Com o objetivo político de se alcançar a estabilidade dos preços, os
outros objetivos próprios de uma política econômica (que não a neoliberal) são postos em
segundo plano, para não dizer que nem ao menos são lembrados.
As medidas próprias de uma política keynesiana, constituintes da essência do estado
social - como crescimento econômico, pleno emprego, desenvolvimento regional equilibrado,
redistribuição do rendimento e justiça social -, e que objetivam conciliar capitalismo e

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

democracia restam sacrificadas. Os monetaristas reconhecem na inflação um fenômeno


exclusivamente monetário, resultado de um aumento da quantidade de moeda em circulação
em maior medida do que aquela em que aumenta a produção (AVELÃS NUNES, 2011, p.
119). Nessa perspectiva, a inflação deve ser controlada mediante a diminuição da quantidade
de moeda em circulação, o que, inevitavelmente, acarretará a contração da atividade
econômica e, consequentemente, o aumento do desemprego.
Contudo, como se vivessem ainda no século XVIII, os neoliberais acreditam que a
partir desta situação ocorra uma diminuição dos valores salariais, o que possibilitará aumento
do lucro das empresas. Esta conjuntura possibilitará o aumento nos investimentos privados e,
em seguida, o “relançamento da economia”. Assim, haverá a ampliação das oportunidades de
emprego. Diante disto, o que se constata na política neoliberal é que a economia está entregue
às leis do mercado e é refratária a qualquer mecanismo de salvaguarda dos direitos sociais
(AVELÃS NUNES, 2011, p. 119).
Para que o Estado de direito funcione na ordem econômica, as leis na ordem
econômica devem ser eminentemente formais. Não é dever do Estado estabelecer planos
orientados a uma opção econômica global, afirmando, por exemplo, que as distâncias entre as
rendas deve diminuir. Cabe a ele somente dizer às pessoas o que devem e o que não devem
fazer. Ainda, uma lei deve respeitar a ordem econômica à luz do Estado de Direito, por isso,
deve ser criada a priori na forma de regras fixas, e não deve ser passível de correção diante
dos efeitos dela decorrentes. Da mesma forma, tais normas consistirão em molduras, dentro
das quais os agentes econômicos poderão decidir livremente, cientes de que aquele quadro
legal fixado não será alterado.
Em virtude de estas leis serem tão obrigatórias aos outros, como – sobretudo – ao
Estado, por meio delas deve ser possível prever exatamente como o poder público se
comportará (FOUCAULT, 2004, p. 237). A partir disso, percebe-se que este modelo de
Estado de direito exclui um sujeito universal de saber econômico “que poderia, de certo
modo, pairar acima do conjunto dos processos, definir fins para eles e substituir esta ou aquela
categoria de agentes para tomar esta ou aquela decisão”. (FOUCAULT, 2004, p. 238). Para
eles, o Estado deve ser cego aos rumos da economia. Nesse sentido,

O Rule of Law e o Estado de direito formalizam a ação do governo como um


prestador de regras para um jogo econômico em que os únicos parceiros e os únicos
agentes reais devem ser os indivíduos ou, digamos, se preferirem, as empresas. Um
jogo de empresas regulado no interior de uma moldura jurídico-institucional
garantida pelo Estado: é essa a forma geral do que deve ser o quadro institucional de
um capitalismo renovado (FOUCAULT, 2004, p. 238).

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E é neste curso que seguirá a jurisdição, tendo como tema governar a ordem
espontânea da vida econômica.

3.1. A FIGURA DO ESTADO REGULADOR/SUPERVISOR E O


SURGIMENTO DE NOVOS ATORES E FORMAS DE REGULAÇÃO:
RUMO AO DIREITO NEGOCIADO

Conforme Chevallier (2009, p. 69), ainda que o Estado não mais seja o “motor do
desenvolvimento” e o gestor dos setores-chave da economia, não quer dizer que ele esteja
menos engajado. “A complexidade crescente dos circuitos econômicos, as mutações
tecnológicas, a sofisticação dos produtos financeiros, a globalização das trocas”, mas também
a crescente pressão dos poderes econômicos, cujo poderio tem se reforçado com a
globalização, impõem que o Estado assuma um papel interventivo, como mencionado no
início deste capítulo (CHEVALLIER, 2009, p. 69).
Como Foucault, Chevallier afirma que a intervenção pelo Estado dirige-se à fixação
das regras do jogo econômico, ao estabelecimento de determinadas disciplinas a prevalecerem
em detrimento de outras e à proteção de determinados interesses. Desse modo, o Estado
permanece presente na economia, só que de modo mais distante, como um “supervisor”, “cuja
presença é indispensável para assegurar a manutenção dos grandes equilíbrios e criar as
condições propícias a seu desenvolvimento” (CHEVALLIER, 2009, p. 69).
Assim, de um Estado operador, detentor de empresas implantadas principalmente nos
setores de base (como energia, transportes e telecomunicações), passou-se ao Estado
regulador, diante dos movimentos de privatizações, muitas vezes impostos pelas instituições
financeiras como “programas de ajuste estrutural” na economia3. Nesse cenário, é certo que a

3
Segundo Chevallier (2009, p. 72), “esse movimento geral de privatização de empresas até então controladas
pelo Estado não significa, no entanto, que esse se desvincule totalmente da esfera das atividades produtivas. Não
apenas as privatizações encontram alguns limites estruturais (como o demonstram nos países europeus as
dificuldades de privatização das ferrovias ou da rede postal, desencadeada, no entanto, em janeiro de 2006 no
Japão), mas ainda o Estado é chamado a permanecer presente na economia, seja mantendo o seu controle sobre
atividades de importância estratégica (indústria de armamento, nuclear...), seja suplementando o capital privado
insuficiente para salvar determinados florões industriais (Alstom na França, em agosto de 2003) (‘Estado
maqueiro’); mais generalizadamente, as participações que ele conserva no capital de um conjunto de empresas
(participações doravante geridas na França por uma ‘Agência das Participações do Estado – APE ou na China
pela ‘Comissão de Controle e de Gestão dos Ativos do Estado’) permitem-lhe, enquanto acionista, influenciar as
estratégias dessas empresas. A retomada pelo Estado do setor energético (petróleo, gás), notadamente na Rússia
(Gazprom, Rosneft) ou em determinados países da América Latina (Bolívia em 2006, Venezuela em 2007),
mostra, sob outro aspecto, que um movimento reativo tende a se produzir e que o Estado pretende manter o
controle dos recursos julgados essenciais”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

mudança de papel o tirou do estatuto de operador econômico, no entanto, isto não quer dizer
que ele tenha integralmente deixado de intervir na economia (CHEVALLIER, 2009, p. 72).
Conforme o mesmo autor, o papel de regulador implica em um novo papel do Estado
na economia: para a teoria dos sistemas, a regulação “compreende o conjunto dos processos
pelos quais os sistemas complexos conseguem manter o seu estado estacionário, preservando
os seus equilíbrios essenciais, malgrado as perturbações externas” (CHEVALLIER, 2009, p.
72). A partir da intervenção do Estado na economia, presume-se, portanto, que o sistema
econômico não encontre o seu equilíbrio por si.
Desse modo, cabe à regulação supervisionar o jogo econômico, determinar regras,
amortecer tensões e compor conflitos, de maneira que garanta a manutenção do equilíbrio do
conjunto. Neste processo de regulação, o Estado não se identifica mais como ator, mas sim
como “árbitro” do processo econômico, cuja função limita-se a enquadrar a atuação dos
operadores e esforçar-se para harmonizar suas ações. Para desempenhar estas funções, exige-
se uma “posição de exterioridade relativamente ao jogo econômico; uma capacidade de
arbitragem entre os interesses em jogo; uma ação contínua a fim de proceder aos ajustes
necessários” (CHEVALLIER, 2009, p. 73).
Para tanto, Chevallier (2009, p. 73) refere que a regulação necessita de uma série de
meios de ação: “a regulamentação (rule-making), a fiscalização (monitoring), a alocação dos
direitos (adjudication), a composição dos litígios (dispute resolution)”. Se o processo de
regulamentação passa pelo canal do direito e pela formalização jurídica, ele ocorre de uma
forma bastante diferente da regulamentação clássica, pois o “direito da regulação” é maleável,
pragmático, flexível, além de ser elaborado com a participação estreita dos destinatários, ou
interessados, e sua revisão é recorrente, de acordo com os resultados obtidos, sem, no entanto,
comprometer a estabilidade das programações estratégicas dos interesses privados
(CHEVALLIER, 2009, p. 73).
Contudo, o Estado não é a única instância de regulação da economia. Como menciona
Chevallier (2009, p. 73), além dele, existem outros atores e formas de regulamentação que
atuam de forma a complementar, ou até mesmo, a substituir a regulação estatal. Ao seu lado,
há mecanismos de autorregulação, “fundados sobre a auto-organização e sobre a
autodisciplina dos grupos profissionais”, por exemplo, como as ordens profissionais
francesas. Há também o mecanismo de corregulação, em que atores públicos e privados
atuam conjuntamente.
A título de exemplo, o Relatório Al Gore de 1992, intitulado Reinventing Government,
sugeria que o mecanismo da autorregulação pudesse ser um modo eficiente de reforma na

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

regulamentação, capaz de ensejar uma melhor aceitação e adaptação a novas regras. O mesmo
ocorreu no programa britânico de “reforma da regulamentação”, em 1997 e, em de 1998,
intitulado – Principles of Good Regulation. Mais tarde, em 2000, também no Alternatives to
State Regulation. No entanto, as incertezas que pairavam sobre o consenso entre os atores
privados fizeram com que novamente os atores públicos fossem reintroduzidos, estimulando-
se, portanto, o mecanismo de corregulação como uma importante saída (CHEVALLIER,
2009, p. 73).
Segundo Hespanha (2009, p. 430), o “mundo de novas unidades econômicas
transforma-se num mundo de unidades, também novas, de natureza política e normativa”.
Cada uma destas unidades constitui um novo centro de poder, bem como um novo centro de
produção de normas jurídicas. Estas normas tornam-se obrigatórias por contratos firmados
entre as unidades transnacionais, já as normas jurídicas de regulamentação genérica são
válidas para um setor de atividade, como as normas técnicas, por exemplo.
Por outro lado, Hespanha (2009, p. 431) expõe que as unidades, preocupadas com
estabilização e segurança das suas relações presentes, requerem uma disciplina obrigatória
para os “participantes das transações no mundo globalizado”. Ou seja, tais unidades postulam,
“um direito do mercado globalizado, uma espécie de desenvolvimento e extensão do direito
comercial que, na Antiguidade e na Idade Média, regulava as relações mercantis nas várias
praças comerciais do mundo (lex mercatoria)” (como será visto adiante, a idéia de uma
suposta estabilidade e segurança na lex mercatoria será questionada).
Na sociedade globalizada, Hespanha (2009, p. 431-432) afirma que as realidades estão
sempre em mutação e, por isso, a textualidade do Código deve ser substituída pela
maleabilidade de princípios menos fixamente formulados. Destarte, há quem pense que, a
partir desta maleabilidade normativa, possa surgir uma “comunidade de valores comum a
todos os sujeitos da comunidade global”, ou, em outras palavras, de “valores cosmopolitas”
(HESPANHA, 2009, 432).
Há quem pense, além disso, que a comunidade global responsável por gerar tais
valores seria a comunidade dos sujeitos econômicos transnacionais, representada por grandes
empresas transnacionais, cujos especialistas cumprem regras de boa gestão, ou regras
prudenciais, “apoiados por departamentos de aconselhamento ou de law firms também
internacionais, auditadas por firmas, novamente internacionais de gestão e auditoria”, que
resolvem seus problemas não mediante a justiça do Estado4, mas sim por meio da arbitragem,

4
Conforme Chevallier (2009, p. 146), “o recurso à arbitragem para compor as diferenças contribui para dar
força obrigatória aos usos do comércio internacional: a arbitragem, com efeito, não somente resulta em subtrair

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isto é, por tribunais privados compostos por árbitros selecionados conforme sua capacidade
técnica e, sobretudo, de acordo com a sua sensibilidade ao ambiente das empresas e dos
grandes negócios5 (HESPANHA, 2009, p. 432).
Segundo Hespanha (2009, p. 432-433), seria este complexo político-mercantil o
constituinte do “caldo de cultura de uma ordem de valores (e, logo de um direito) para a
sociedade globalizada”, intitulada pelo autor como “constituição econômica do mercado
global”. À luz desta visão de mundo e das normas a ela associadas, as transações são fáceis e
seguras, mesmo diante de uma “dispersão geográfica” e da ausência do poder coercitivo
estatal.
Uma característica da “constituição econômica do mercado global” seria a
flexibilidade quanto aos assuntos “antipáticos para o mercado” - como a defesa dos interesses
nacionais, ou das comunidades nacionais, a garantia dos direitos dos cidadãos, a salvaguarda
de valores comunitários, a defesa dos direitos dos trabalhadores, entre outros – restando
evidente que nem todos os fatores e atores seriam igualmente “globalizáveis”, tendo esta
característica somente os interesses em consonância com a lógica do mercado global.
Desse modo, questões locais como a “deslocalização das empresas, as desigualdades
de rendimento e, portanto, de poder de compra de umas regiões para as outras, a diferente
exposição às catástrofes climáticas, diferente acesso às matérias-primas” são assuntos a serem
resolvidos simplesmente pelo funcionamento das leis do mercado internacional. Para estas
situações, o direito - estreitamente vinculado à prática cotidiana, às regras do mercado, e

os litígios entre os operadores econômicos à competência dos tribunais estatais, mas ainda assegura a tomada em
consideração de outras regras que não apenas o exclusivo direito estatal (usos, jurisprudência arbitral); os
agentes econômicos exigem escolher os seus juízes (forum shopping) e ter os seus litígios decididos segundo um
direito específico adaptado às necessidades do comércio internacional (law shopping). Ora, a arbitragem
conheceu um desenvolvimento prodigioso, favorecido pela pressão das law firms americanas e pelo liberalismo
muito grande dos Estados: tornou-se o procedimento normal de composição de diferenças comerciais
internacionais; a sua institucionalização por meio da adoção de estruturas permanentes – instituições arbitrais
com vocação genérica, tais como Corte permanente de arbitragem ou especializada, como o ‘Centro
Internacional para a composição de diferenças relativas aos investimentos’ (CIRDI), criado sob a égide do Banco
Mundial pela Convenção de Washington de 18 de março de 1965 – tende a fazer da jurisdição o direito comum
dos negócios internacionais. Se as sentenças arbitrais não são geralmente executáveis senão depois de um
procedimento de exequatur, a Convenção de Washintown impõe aos Estados a obrigação de reconhecer aquelas
provenientes do CIRDI e de a elas assegurar a execução ‘tal como se tratasse de um julgamento definitivo’ dos
tribunais nacionais (art. 54)”.
5
Para Chevallier, “O ‘direito da globalização’ se apresenta com um direito ‘extraestatal’ na medida em que ele é
em boa parte construído pela iniciativa dos operadores econômicos. O processo de globalização conduziria,
irresistivelmente, com efeito, à aparição de um ‘direito global’, concebido e aplicado no âmbito externo dos
Estados: é a tese de A.J.ARNAUD, para quem as trocas entre atores econômicos passaria mais e mais pela
elaboração de regras e o recurso a mecanismos de solução de litígios que evitam a mediação estatal. A
globalização jurídica tomaria a forma de ‘relações jurídicas cujo tratamento ultrapassa o quadro nacional ou
comunitário, sem entrar dentro do espaço jurídico internacional stricto sensu’. Correlativamente, ver-se-á
delinear uma reestruturação das profissões jurídicas, pela criação, sob o modelo americano, de grandes
escritórios de assessoramento, encarregados de aportar aos operadores econômicos os recursos jurídicos
necessários e servindo de liame de composição amigável de desacordos”.

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pouco vinculado a outros valores que não o da utilidade (e a utilidade imediata) – demonstrar-
se-ia injusto e desequilibrado (HESPANHA, 2009, p. 435).
Chevallier (2009, 146-147) versa que, devido às suas características, o direito da
globalização se parece com uma contemporânea versão da lex mercatoria - desenvolvida na
Idade Média pelos mercadores sobre as questões de trocas entre mercadorias, que
progressivamente se esfacelou diante dos direitos estatais, sem, contudo, haver desaparecido
por completo. Sendo a lex mercatoria um direito instrumental sob domínio dos práticos e por
eles criado, o direito da globalização também excederia o poder estatal. No entanto, faz-se
uma ressalva, pois “a autonomia dessa lex mercatoria moderna, formada a partir dos usos do
comércio internacional e da jurisprudência arbitral, não é senão relativa” (CHEVALLIER,
2009, p. 147).
Ainda que haja uma crescente adoção dos “usos do comércio internacional” por parte
das jurisdições nacionais, a lex mercatoria possui limitações, pois o seu caráter flexível não se
coaduna com a exigência de segurança e de previsibilidade que o desenvolvimento das trocas,
da concorrência e de investimentos necessita. Inclusive, os próprios operadores preferem se
sustentar em bases mais sólidas (CHEVALLIER, 2009, p. 147).

3.2. O DIREITO NEGOCIADO (ECONOMICIZADO) E A PRESTAÇÃO


JURISDICIONAL ENFORMADA PELA ECONOMIA NEOLIBERAL

De acordo com Garapon (2008B, p. 2), o Neoliberalismo, nada mais sendo do que a
“extensão do paradigma econômico a todos os âmbitos da sociedade e da vida individual”,
não exclui do seu âmbito de influência o setor jurídico, de modo que o movimento da Law
and Economics não mais se limita apenas às universidades norte-americanas.
Segundo Garapon (2008B, p. 3), o novo modelo de justiça neoliberal se pauta por três
critérios novos, que excedem o “perímetro tradicionalmente reconhecido à justiça”. As
justificativas clássicas do ato de julgar são suplantadas pela

eficiência6, um metavalor que abre a frente de todos os outros, o respeito das


escolhas do jurisdicionado, considerado um ator racional, que desloca o centro de

6
Conforme Gaiger (2008, p. 169), “no âmbito das preocupações ditadas pela economia capitalista, a eficiência
refere-se essencialmente à exigência de otimizar-se a relação custo/benefício, pela decisiva incidência desta
sobre a rentabilidade ou a taxa de lucro dos negócios. Nesses termos, a eficiência é compreendida como o
equacionamento de varáveis reduzidas ao plano econômico, muito embora comportem elementos que
transcendem essa esfera ou possuem outra natureza, como o trabalho e os demais agenciamentos sociais da
estratégia produtiva em questão (...). A eficiência capitalista não considera, senão utilitariamente, benefícios

58
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gravidade da justiça e, enfim, a segurança, a qual confere a tudo uma referência


substancial, pronta para homogeneizar os processos judiciais.

A padronização - reconhecida como um requisito da eficiência - consiste no primeiro


gesto da administração de traço neoliberal. Desse modo, a busca pela padronização de todas
as atividades visa, sobretudo, a possibilitar que os destinatários das regras possam se conduzir
de modo estratégico, prevendo comportamentos. Se, de acordo com Foucault, o principal
pilar da democracia neoliberal é a concorrência (mesmo que artificialmente criada),
considerada o mais eficiente método de regular as atividades humanas e de mediar a
coexistência, as reformas que vivenciamos atualmente mostram diversos exemplos
(GARAPON, 2008B, p. 3).
Segundo Chevallier (2009, p. 159), a exigência de coerência (ou padronização) passa
por múltiplas vias, sendo o “pluralismo ordenado” um dos traços da paisagem jurídica
contemporânea. Ele se traduz tanto por uma “coordenação por entrecruzamentos”, ou seja,
sofrendo influências cruzadas (reduzindo-se, por exemplo, as divergências jurisprudenciais
mediante um diálogo entre juízes de diferentes nações), como por uma “harmonização por
reaproximação” estabelecida a partir de referencial comum, ou, ainda, por uma “unificação
por hibridização”, consistente na combinação de vários sistemas jurídicos.
Destarte, a difusão dos “princípios comuns” por espaços jurídicos diversos torna
possível uma organização coerente, de maneira que as regras jurídicas constituirão as “portas”
e os princípios diretores constituirão as pontes que ligarão “territórios normativos diversos” e
“regulações diversas”, geralmente criadas segundo lógicas próprias. A existência de uma
“interlegalidade horizontal” entre legislações diversas, cujas especificidades lhes são próprias,
e de uma “internormatividade” dentre os espaços jurídicos, possibilita uma espécie de
“harmonização suave entre os diferentes pontos de produção do direito” (CHEVALLIER,
2009, p. 158).
Diante da emergência desses princípios, pode-se antever a produção de um “direito
comum pluralista”, construído por sucessivos ajustamentos e pela incorporação de diversas
culturas jurídicas do mundo7. Contudo, nesse cenário pode-se observar o fenômeno da
hegemonia jurídica, pois

sociais gerados pela ação econômica, tais como postos de trabalho, valorização do ser humano, preservação do
ambiente natural e qualidade de vida. Ela despreza importantes questões, a exemplo do consumo de recursos
não-renováveis e da transferência de custos para o exterior da empresa ou para as gerações futuras ”.
7
Para um maior aprofundamento no tema consultar “DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum.
Tradução: Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004” e “DELMAS-

59
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

a extensão contínua de um fundo comum de regras e de princípios não é apenas a


expressão de uma interdependência crescente entre os Estados, ilustrada por uma
comunhão sempre maior de valores; é também o produto de mecanismos mais
difusos de imposição (CHEVALLIER, 2009, p. 159).

A hegemonia jurídica é reflexo da desigualdade que preside as relações entre os


Estados. Logo, as potências que possuem mais condições de atuar no cenário internacional,
isto é, aquelas que dispõem de mais recursos, tem mais condições de impor o seu “sistema de
valores, o seu modelo de organização política e também a sua concepção do direito”, como
explica Chevallier (2009, p. 159). Desse modo, mediante a “força de atração intrínseca” que
exercem, as potências fazem pressões bastante concretas com o intuito de influenciar o
conteúdo do direito de outros sistemas jurídicos.
Sendo assim, quanto maior for a dependência, maior a vulnerabilidade diante de
pressões e influências exteriores e, com isso, a permeabilidade do sistema jurídico. Os
dispositivos de auxílio constituem um bom exemplo, pois as instituições financeiras
condicionam a prestação de ajuda financeira a um conjunto de imposições de ordem
institucional e a “transposição de standards jurídicos dominantes”. Nessa conjuntura, as
instituições financeiras internacionais se tornaram os principais agentes difusores de um
determinado modelo jurídico, tudo isso para atender a exigência de good governance
(CHEVALLIER, 2009, p. 159).
No âmbito do direito, a globalização se traduz por uma maior influência exercida
pelo direito de tradição anglo-saxã, ou norte-americana, especificamente. A Commun Law
constitui um modelo melhor adaptável às evoluções das trocas econômicas, em contraposição
ao modelo romano-germânico. O que ilustra bem isto é o relatório Doing Business in 2004
elaborado pelo Banco Mundial, que classificava o sistema jurídico francês entre os menos
eficientes do mundo no que diz respeito aos negócios. Com base nisso, os sistemas de justiça
são estimulados a aderir a algumas características próprias ao modelo de direito de inspiração
anglo-saxã, como o mecanismo da plea bargaining8. (CHEVALLIER, 2009, p. 159).

MARTY, Mireille. Três Desafios para um Direito Mundial. Tradução: Fauzi Hassan Choukr. 1. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris.

8
Um bom exemplo é a introdução da plea bargaining na França, consistente na possibilidade de o réu concordar
em negociar sua pena com o promotor. Segundo Garapon (2008A, p. 29), “na Common Law, em que a força
motriz do processo é constituída pelas partes privadas, não causa surpresa o fato de a metáfora econômica
subentender o raciocínio institucional até mesmo no contexto penal, ao passo que a cultura judiciária francesa
não pode conceber a pilotagem de sua justiça senão em termos de políticas públicas e acesso à justiça”. Para um

60
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Garapon (2008B, p. 6) argumenta que “a justiça neoliberal acelera um processo de


revisão de perspectiva que está em gestação desde décadas atrás: ela muda de lugar o ponto de
vista a partir do qual é endereçado o direito”. Se uma vez o direito era endereçado ao poder,
ou ao interesse geral, hoje, ele gravita em torno do sujeito. O sujeito – consumidor do direito -
passa a ser o “árbitro da qualidade da justiça”, deixando de o ser, portanto, o Estado. O direito
tem como referência o destinatário das regras (sujeito), e não mais o seu emissor (Estado).
O mesmo autor também traz como exemplo o relatório do Banco Mundial Doing
Business, cujo intuito, segundo Garapon, consiste em comparar os direitos nacionais em
termos de competitividade. Sendo a competitividade o principal escopo, percebe-se que a
justiça é avaliada de acordo com os interesses privados, ou seja, de acordo com os interesses
dos destinatários das regras. Desse modo,
o direito é reduzido a um instrumento à disposição do investidor: desse momento em
diante – o instrumento jurídico é colocado a serviço de uma única parte, o investidor
– os indicativos comparativos são destinados a avaliar as vantagens que eles
procuram, o contencioso é considerado um entrave e um custo (GARAPON, 2008B,
p. 6).

No Brasil, um importante relatório elaborado pelo Banco Mundial – “O setor


judiciário na América Latina e no Caribe”, de 1996 – tinha, dentre os seus objetivos, destacar
a importância de que o judiciário trabalhe com o valor certeza, pois, “sob o ponto de vista dos
interesses econômicos, se um Estado – e suas instituições – mudam as regras do jogo no
percurso da partida, as empresas não poderão saber o que é lucro ou não no futuro”
(SALDANHA, 2010, p. 84). Sendo, portanto, a previsibilidade um importante valor a ser
preservado aos olhos do Banco Mundial, encontrou-se oportunamente uma justificativa
favorável para a criação da súmula vinculante, da repercussão dos recursos extraordinários e
especial e, ainda, da súmula impeditiva de recursos, constantes na Emenda Constitucional n.
45.
Diante disto, o direito deixa de constituir um quadro formal compromissado com a
efetivação do interesse geral, ou “um conjunto de garantias com o escopo de neutralizar o
desequilíbrio entre as partes” (protegendo o hiposuficiente seja ele consumidor ou
trabalhador), e se torna apenas um “destrinchador de interesses contraditórios” (GARAPON,
2008B, p. 7). Nesse novo modelo de justiça neoliberal, o direito não é mais pensado a partir
do seu interior, mas sim de seu exterior, sob o ponto de vista dos consumidores do direito,

aprofundamento do tema, consultar “GARAPON, Antoine. Julgar nos Estados Unidos e na França: Cultura
Jurídica Francesa e Common Law em uma Perspectiva Comparada. Tradução: Regina Vasconcelos. Riod e
Janeiro: Lumen Juris, 2008”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

cujo direito é apenas uma informação a ser considerada ao se traçar suas estratégias
individuais.
Na mundialização, portanto, os sistemas jurídicos estão em concorrência, o que
possibilita o exercício do forum shopping pelos litigantes, que consiste em submeter suas lides
à jurisdição que lhes for mais favorável (GARAPON, 2008B, p. 7). Esta prática é também
exercida para litigantes institucionais (multinacionais), ou para vítimas de crime contra a
humanidade, por exemplo.
Se no direito nacional o direito dos investidores é sopesado pelo direito dos
trabalhadores, que aparecem na mesma esfera jurídica; no contexto globalizado, não há mais
espaço para os direitos sociais. Como expõe Garapon (2008B, p.7), “investidores e
trabalhadores não possuem qualquer espaço político em comum”. Castanheira Neves (2002,
p. 30), ao analisar o cenário ora descrito, diria que o direito “deixa de ser um auto-subsistente
de sentido e de normatividade para passar a ser um instrumento – um finalístico instrumento e
um meio ao serviço de teologias que de fora o convocam e condicionantemente o submetem”.
Assim, o comportamento pessoal e institucional muda as suas bases de equilíbrio “do
bem, do justo, da validade (axiológica material), para as “do últil e da funcionalidade, da
eficiência, da performance” (CASTANHEIRA NEVES, 2002, p. 35). Garapon evidencia que
o modelo neoliberal se substitui traiçoeiramente aos princípios da justiça clássica, ao priorizar
os critérios de eficiência, das vantagens comparativas e da segurança. No cenário neoliberal,
todos estes valores se impõem como o principal conteúdo dos “guias da reforma geral das
instituições” (GARAPON, 2008B, p. 19).
Por tais valores serem transcendentes, eles não precisam estar acompanhados dos
valores tradicionais. O que se percebe, diante disso, é que o cenário neoliberal provoca uma
“laicização das instituições”, que são revaloradas sob a lógica de uma racionalidade que a elas
não pertence, ou que lhes é totalmente estranha: concorrência e empreendimento
(GARAPON, 2008B, p. 19). Ao evidenciar a eficiência, a universidade de interesses e a
precisão dos dados mensuráveis fornecidos às instituições e à opinião, acalma-se a função
deliberativa da democracia, pondo-se um “fim prematuro à tensão inelutável de pontos de
vista opostos” (GARAPON, 2008B, p. 24).
Contudo, o que se quer dizer não é que os valores - segurança, liberdade do sujeito,
eficiência, utilidade – devam ser desconsiderados a priori, mas sim que devem ser submetidos
à discussão, pois “a despolitização começa logo que um valor tem por ímpeto ser justo por ele
mesmo, sem ter como se justificar” (GARAPON, 2008B, p. 25). Desse modo, não se pode
recriminar uma escola de pensamento por ser originária de escolhas ideológicas, ou por tomar

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

partido de alguma versão em detrimento de outra. O que se deve fazer, segundo Garapon
(2008, p. 24), é protestar que o neoliberalismo disfarça suas escolhas (ideológicas) e
apresenta-as (as escolhas) como evidências. Este é um importante caminho para reanimar a
discussão democrática9.
Avelãs Nunes (2011, p. 253) elucida que uma crítica à globalização não pode se
confundir com o retorno a algum “paraíso perdido, negador da ciência e do progresso”.
Mesmos os adversários da globalização apóiam a revolução científica e tecnológica. O que há
de errado na globalização “é o neoliberalismo que a alimenta, a estrutura dos poderes em que
ela se apoia, os interesses que serve”, mas não a revolução científica e tecnológica
especificamente, acusadas por alguns de serem as responsáveis por possibilitar o
desenvolvimento de um projeto neoliberal. De acordo com Avelãs Nunes, o erro está na
utilização perversa que se faz a partir de tal progresso.
Portanto, considerando-se a globalização como um “projeto político”, necessário é um
“espírito de resistência à ideologia dominante”, que deve começar desde já a partir de uma
construção teórica. Assim, poder-se-á construir um modelo político que englobe os objetivos
cujo mercado é incapaz de abarcar. Da mesma forma, necessário é um projeto cultural que
faça frente à lógica determinista e sem alternativas da globalização neoliberal, reconhecida
como uma das marcas da “civilização-fim-da-história (AVELÃS NUNES, 2011, p. 254).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No primeiro capítulo, explicou-se como o “livre mercado global” comprometeu as


bases do Estado de Bem-Estar Social, sendo esta uma das faces da crise do Estado. Discutiu-
se o objetivo das organizações interestatais, supranacionais e das organizações econômicas e
empresas transnacionais de que o Estado tenha o seu poder reduzido, seja estimulando o
movimento de privatização de empresas, seja importando o modelo de gestão privada às

9
Gaiger (2008, p. 170) esclarece na obra “Dicionário Internacional da Outra Economia” que “uma visão
alternativa de eficiência alia-se indissoluvelmente à discussão sobre a eficácia da ação empreendida, isto é, sobre
os fins a serem alcançados e as possibilidades de atingi-los. Tais fins, longe de se restringirem ao faturamento e
ao crescimento econômico, ou, ainda, a uma profícua relação mercantil entre produtores e consumidores,
vinculam-se à satisfação de necessidades e a objetivos materiais, socioculturais e ético-morais dos indivíduos e
da coletividade, imediatos ou de longo prazo. A racionalidade em questão compõe-se de valores dirigidos à
qualidade de vida do grupo diretamente implicado e à garantia de melhorias e de segurança humana para a
sociedade. Assim concebida, a eficiência consiste, pois, na capacidade de se gerirem esses resultados por meio
da oferta de bens e serviços com qualidade referida a seu valor de uso, mediante estratégias produtivas e
procedimentos de controle que assegurem a perenidade de tais processos e a oferta permanente daqueles
benefícios”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

instituições estatais. Com isso, percebeu-se que o Estado passa a confiar nos mecanismos
econômicos do mercado, não cabendo mais a ele cumprir o dever finalístico de cumprir uma
função social.
Destacou-se o papel exercido pelos novos atores, principalmente no que diz respeito
ao funcionamento da economia, e mencionou-se que tais atores atuam se não diretamente no
processo de normatização, ao menos “paranormativamente” – mediante a influência
econômica que exercem, capaz de mudar o destino dos Estados territoriais. Com base nisso,
elucidou-se que, nos dias de hoje, a sociedade tem se reproduzido primariamente baseada no
código “ter/não-ter”, em detrimento dos códigos “lícito/ilícito” e “poder/não poder”, o que
afeta as bases do Estado Democrático e Social de Direito.
A partir dos aportes de Michel Foucault, explicou-se a reelaboração de alguns
elementos fundamentais da doutrina neoliberal, não tanto da teoria econômica do liberalismo,
mas sim do liberalismo como arte de governar, ou como doutrina de governo. À luz da
experiência nazista, os ordoliberais foram capazes de “detectar” que a invariante antiliberal
das políticas econômicas (keynesianismo, protecionismo, assistencialismo), só podiam, cedo
ou tarde, culminar com o Estado de traços nazistas.
Por outro lado, nada se provou acerca da defectibilidade intrínseca da economia de
mercado, pois todos os defeitos foram atribuídos ao Estado. Com isso, em oposição a uma
liberdade de mercado definida pelo Estado, implantou-se um Estado sob vigilância do
mercado.
No segundo capítulo, demonstrou-se que, para os neoliberais, o essencial do mercado
reside na concorrência, tornando-se esta a espinha dorsal da teoria da economia de mercado.
Como a concorrência é um mecanismo formal, ela só ocorre diante de um certo número de
condições, a serem artificialmente preparadas pelo Estado. É assim que surge o modelo de
Estado supervisor/regulador da economia de mercado, caracterizado como um “árbitro” das
regras do jogo econômico, e o Direito sucumbe a esta “funcionalização”/instrumentalização
do Estado.
Não sendo o Estado o único regulador da economia, evidenciou-se o papel
desempenhado pelas novas unidades econômicas, transformadas em, também novas, unidades
políticas e jurídicas. Dentre elas, destacam-se os sujeitos econômicos transnacionais, cujos
consultores jurídicos preocupam-se com regras de boa gestão aptas a impulsionar a economia
de mercado global. Embora, o “direito da regulação” seja maleável, pragmático, flexível, além
de ser elaborado com a participação estreita dos destinatários, ou interessados, ele deve ter sua
previsibilidade assegurada. Para tanto, o Estado desempenha um importante papel como

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garantidor deste status quo, através de uma legislação estatal. Como explicado, a lex
mercatoria não cumpre a exigência de previsibilidade.
Ademais, discutiram-se as conseqüências desse novo modelo de Estado “enformado”
pelo modelo Neoliberal, na autonomia do Direito. Como argumenta Castanheira Neves, o
direito torna-se uma função de outros interesses, e, assim, ruma a um modelo
descomprometido com a consolidação do Estado Democrático e Social de Direito. Tudo isto,
para atender à demanda por eficiência e padronização, cujos standards são, geralmente,
importados dos modelos jurídicos próprios dos países economicamente mais influentes,
especificamente do Commun Law, por também ser mais adaptável às evoluções das trocas
econômicas.Como mencionado, a Jurisdição, então, transforma-se em um forum shopping,
perde a sua função simbólica e passa a ser avaliada somente pelo que é mensurável, e não por
critérios de justiça.
Contra os valores neoliberais - que tem por ímpeto justificarem-se por eles mesmos,
silenciando o debate inerente à democracia participativa e representativa, necessário é por às
claras suas verdadeiras escolhas, também fruto de uma certa ideologia, para que sejam
discutidos e repensados, e não vistos como uma saída sem alternativas à globalização
neoliberal.
Por fim, pretendeu-se, igualmente, ao longo do trabalho, demonstrar que o Estado não
ruma ao desaparecimento. Ainda que suas clássicas atribuições tenham sido reelaboradas, ele
permanece mais atuante do que nunca, seja na esfera legislativa, política, ou judiciária.

REFERÊNCIAS

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aventuras e desventuras do estado social. 1.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

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Transformação Espacial (Espaço-temporal) dos Direitos Humanos. 2.ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2011.

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Revista da Procuradoria-geral do Estado do Rio Grande do Sul. v. 25 n. 56, de 2002.
Disponível em: <http://www.pge.rs.gov.br/download.asp?nomeArq=revista_pge_56.pdf>.
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Almeida Prado Galvão. 1.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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Paulo: Martins Fontes, 2004.

GAIGER, Luiz Inácio. Eficiência. In: CATTANI, Antonio David; LAVILLE, Jean-Louis;
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Tradução: Jânia Maria Lopes Saldanha. In: Revista Espirit, n. 349, novembro de 2008B.

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constitcional: um olhar sobre o direito processual brasileiro. In: Estudios
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janeiro de 2012.

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REFLEXÕES SOBRE A CRISE FINANCEIRA INTERNACIONAL E O ESTADO


DE BEM-ESTAR1

REFLECTIONS ON THE INTERNATIONAL FINANCIAL CRISIS AND THE


WELFARE STATE

2
Paulo Márcio Cruz

RESUMO
O presente artigo trata dos reflexos da atual crise financeira global nas estruturas do Estado de Bem
Estar europeu. A Europa que protege foi e é um lema da União Europeia. Todavia, o Estado de Bem-
Estar vem sofrendo críticas na Europa desde as décadas de oitenta e noventa do século passado. A
atual situação de crise intensa abre possibilidade para questionamentos dos modelos existentes de
Estado de Bem-Estar sob diversos ângulos, colocando dúvidas sobre a atual oportunidade e
viabilidade do mesmo. O objetivo deste artigo é incitar a discussão acerca dos limites e do destino
próximo do Estado de Bem-Estar frente à crise financeira internacional.
PALAVRAS-CHAVE: Estado de Bem-Estar. Crise Financeira Internacional. Europa. União
Europeia.

ABSTRACT
In the past five decades Europeans have transformed high taxes in a protection net, which ranges
from the crib to the tomb. Europe that protects is the motto of European Union. Nevertheless, the
Welfare State has been suffering critics in Europe since the 1980s. The current situation of intense
crises opens the possibility to question the existing model of Welfare State under different
viewpoints, raising doubts about the current opportunity and viability of such State model. The
objective of this paper is to promote the discussion about the limits and the near future of the Welfare
State in the face of the international financial crisis.
KEYWORDS: Welfare State. International Financial Crisis. Europe. European Union.

1
O presente trabalho é fruto das reflexões e debates efetuados pelos professores doutores Paulo Márcio Cruz e
Maurizio Oliviero durante a estada do segundo na UNIVALI, no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ciência Jurídica – PPCJ/UNIVALI, cursos de Mestrado e Doutorado, como Professor Estrangeiro Visitante, com
bolsa da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, de março de 2011 a
outubro de 2012.
2
Pós-Doutor em Direito do Estado pela Universidade de Alicante, na Espanha, Doutor em Direito do Estado pela
Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Instituições Jurídico-Políticas também pela Universidade
Federal de Santa Catarina – UFSC. Coordenador e professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI em seus programas de Doutorado e Mestrado em
Ciência Jurídica. Foi Secretário de Estado em Santa Catarina e Vice-reitor da UNIVALI. É professor visitante nas
universidades de Alicante, na Espanha, e de Perugia, na Itália. (pcruz@univali.br).

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PARA COMEÇAR: NOTAS DE INTRODUÇÃO

A América Latina sempre enxergou os estados de bem-estar europeus com admiração e com
uma indisfarçável vontade de ter o mesmo modelo em seus países. Tem sido o sonho dos latino-
americanos quando se discute qual o modelo ideal de Estado. Nas últimas décadas o Estado de Bem
Estar foi sobejamente discutido nos meios acadêmicos como um modelo a ser seguido.
De maneira até inusitada, a crise iniciada em 2008 coloca em xeque o modelo de Estado, ou,
pelo menos, gera questionamentos profundos sobre sua viabilidade a médio e longo prazo.
Os especialistas economistas assistem atônitos, com a sua ciência mais inexata do que
nunca, a crise que começou nos Estados Unidos e vem derretendo ativos financeiros, empregos e a
credibilidade de todo sistema econômico da Europa, com gravíssimas repercussões na vida do
cidadão comum. Aquele cidadão que acreditou – e ainda acredita – ser seu modo de vida o mais
adequado para as nações de nosso planeta.
Na verdade, em toda a Europa Ocidental, o estilo de vida europeu está em debate. O mundo
todo sempre admirou os europeus por seu sistema de benefícios sociais e por seus sistemas de saúde
pública. Enfim, por seu modelo de bem-estar social, em contraste com a dureza do jogo de mercado
noutros países “capitalismocêntricos”, já pedindo desculpas pelo neologismo.
Os europeus, ao longo das últimas cinco décadas transformaram impostos altos em uma rede
de proteção que vai do berço à sepultura. A Europa que protege é um lema da União Europeia. Mas
todos os governos da Europa com grandes orçamentos, receitas fiscais em queda e envelhecimento da
população enfrentam o aumento do déficit público e o endividamento privado - e outras notícias ruins
produzidas pela crise financeira.
Na Grécia, por exemplo, país atingido em cheio pela crise, a sociedade ressente-se de pagar
impostos elevados para financiar um estado inchado e de eficiência duvidosa. Reverbera a antiga
discussão entre a função pública, na qual seus membros chegam a se aposentar aos 50 anos com altos
salários, enquanto aqueles que estão na iniciativa privada, pela forma como as coisas estão
caminhando, terão de trabalhar até chegar aos 70. Em toda Europa existem questionamentos sobre
qual será o futuro daqueles que dependem ou dependerão da assistência do Estado. Os cidadãos com
idades próxima da aposentadoria estão profundamente pessimista em relação à consecução desse
objetivo. Para esse cidadão, o governo está tergiversando sobre a solução aos graves problemas que

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

atingem a população e não acredita que haverá condições de encher os cofres da previdência. A frase
mais ouvida é a de que “o país não tem futuro”.
Entretanto, acredita-se que a perplexidade que toma conta da Europa Ocidental
poderia ser amenizada com a retomada do debate sobre o novo papel do Estado de Bem-
Estar4, que contestou a concepção liberal de que a liberdade e o desenvolvimento das
atividades privadas só podem ser garantidos através da limitação das funções do Estado.
Considerando as experiências ocorridas nos países ocidentais, pode-se dizer que a
transformação dos Estados liberais em Estados de Bem-Estar implicou uma ruptura de
determinados aspectos da ordem jurídica e econômica até então existente.
Diante dessa realidade, o Estado passou a chamar para si a solução dos problemas
sociais emergentes, principalmente através de sua principal característica: a intervenção direta
nos domínios econômico, social e cultural.
Pode-se entender por Estado de Bem-Estar uma determinada concepção de conformação
estatal, baseada na intervenção social e econômica que levaram a efeito alguns Estados liberal-
democráticos contemporâneos. Uma análise da evolução do Estado Moderno mostra diversas
experiências de intervenção social, econômica e – mais recentemente – cultural, do Estado5.
O Estado de Bem-Estar é, na verdade, uma adaptação do Estado burguês capitalista, ou seja,
dos regimes baseados na Democracia pluralista. A plena articulação do Estado de Bem-Estar só pode
funcionar com base em dois fundamentos do Estado liberal-democrático contemporâneo. Em
primeiro lugar, as propostas do Estado de Bem-Estar tiveram como intenção garantir a acumulação
capitalista – mediante a intervenção sobre a demanda – com a intenção de manter a estabilidade
social. Em segundo lugar, o Estado de Bem-Estar proporcionou uma nova e importante dimensão à
Democracia, a partir do reconhecimento de um conjunto de direitos sociais (SÁNCHEZ, 1996, p.
336).
Através do constitucionalismo social, o Estado de Bem-Estar passou a desenvolver
ações acompanhadas de uma crescente inclusão, nas Constituições, não só de previsões de
regulação estatal das relações contratuais, mas também de comandos aos poderes públicos para
que passem a prover ou financiar uma série de prestações de serviços, em geral públicos e

4
Estado de Bem-Estar é sinônimo de Estado Social Democrata ou simplesmente Estado Social, que são
denominações diferentes para um mesmo modelo ideológico de Estado, cada um deles com algumas características
próprias, como será visto mais adiante.
5
Conforme FORSTHOFF, 1996, p. 123.

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gratuitos, aos cidadãos (CRUZ, 2001, p. 202). Os esforços para garantir a igualdade de
oportunidades – que, frise-se, é o objetivo principal do Estado de Bem-Estar – e distribuição de
renda derivada de algumas ações do próprio Estado, completaram esta nova dimensão da
Democracia que este modelo ideológico de Estado representa (BONAVIDES, 1996, p. 186).
Portanto, principalmente em algumas matérias, o Estado de Bem-Estar – ou os poderes
públicos – passou a prestar serviços diretamente à população, como nas já aludidas áreas da
saúde, educação, habitação e, principalmente, a seguridade – ou previdência – social, como
aposentadorias, auxílio-velhice, salário-desemprego, afastamentos remunerados para tratamento
de saúde, pensões etc. Estas foram as ações através das quais o Estado de Bem-Estar
materializou-se e, a bem da verdade, resolveu boa parte dos problemas sociais nos países onde foi
implantado de forma decidida. A doutrina costuma dizer que o Estado de Bem-Estar se
caracteriza por ser fortemente ativo com as classes passivas, e passivo com as classes ativas,
numa alusão a pobres e ricos, nesta ordem.
Esta tendência foi acompanhada também, por óbvio, de um aumento da carga tributária
nestes países. As elites, diante da ameaça real do Comunismo instalado na extinta União
Soviética, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando aquele regime ganhou força
tecnológica e bélica, resolveram pagar esta conta. Que não foi pequena, mas que valeu a pena, em
todos os casos, para aquelas elites. Foi mais ou menos no sentido do “entregar os anéis para não
perder os dedos”.
Com o fim da União Soviética, no final da década de oitenta, esta tendência foi
progressivamente freada, quando não invertida, pelo movimento ideológico denominado
Neoliberalismo, que será tratado em capítulo próprio mais adiante.
Os estudiosos do Estado de Bem-Estar vêm utilizando como indicador, de maneira a
estabelecer a intensidade do Estado de Bem-Estar em um determinado país, o nível de gasto
público e, em particular, de gasto com o setor social. Este indicador se apresenta como um
percentual sobre o conjunto da riqueza produzida pelo país (Produto Interno Bruto – PIB). Na
maioria dos países que adotam este modelo de Estado, o conjunto do gasto público, nas décadas
de 70 e 80, chegou a representar entre 40 a 50% do PIB. (GIORGIS, 2006, p. 1905). Em alguns
países, como os escandinavos, tidos como exemplos de Estado de Bem-Estar, chegou a 50%.
A consequência desse movimento foi o sobrestamento de muitos dos dogmas liberais,
com o Estado, antes considerado um mal necessário, passando a ser um elemento fundamental a

71
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

todos os setores sociais, inclusive para aqueles que se opunham à sua intervenção (DALLARI,
1972, p. 136).

PARA DESENVOLVER: O ESTADO DE BEM ESTAR E ALGUMAS ABORDAGENS


IMPORTANTES

Estado de Bem-Estar é o sistema político-econômico que, mantendo um âmbito privado


capitalista, encarrega o Estado de tarefas relativas à obtenção de condições sociais mínimas,
como foi visto acima.
Esse conceito de Estado de Bem-Estar tem suas origens históricas nos segundo e
terceiros quartos do Século XX, caso se aceite a premissa de que sua plena consolidação foi
produzida após a Segunda Guerra Mundial. Em muitas ocasiões o seu conceito foi utilizado como
sinônimo de “Estado Social”. Alguns autores, como Wolkmer (1990, p. 72), usam
indistintamente ambos os termos. Outros, de acordo com o âmbito cultural no qual foram
formados (nórdico ou anglo-saxão), utilizam as expressões “Estado Social” ou “Estado Social-
Democrata” para definir categorias similares, senão iguais.
É possível apontar alguns aspectos diferentes entre ambos. Em primeiro lugar é preciso
observar que o Estado Social é o modelo através do qual se concretiza a vontade de intervenção
social dos organismos públicos, mesmo considerando que tanto o Estado de Bem-Estar quanto o
Estado Social tenham reconhecimento constitucional. O que ocorre é que o nível de intervenção é
diferente. Em segundo lugar, é comum utilizar-se o conceito de Estado de Bem-Estar para referir-
se a âmbitos de intervenção pública que são menores que os incluídos no conceito de Estado
Social.
A ação interventora e reguladora do Estado em matéria econômica e trabalhista, no que
se refere à política salarial, pode-se dizer que é uma característica do Estado Social, mas que não
faz parte dos objetivos primordiais do Estado de Bem-Estar.
É a partir dos anos 40, na Inglaterra, que são firmados e explicitados os princípios
fundamentais do Estado de Bem-Estar. Em 1939, Alfred Zimmern, catedrático em Oxford,
contrapôs welfare a power, numa clara intenção de diferenciar os regimes democráticos dos
fascistas que por aquela época estavam em plena expansão no continente. O Estado de Bem-
Estar, segundo a doutrina inglesa daquela década, deveria garantir a todos os cidadãos,

72
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

independente de sua renda, a proteção de direitos sociais relacionados ao trabalho, previdência,


saúde, maternidade e educação.
O fato de o uso do conceito de Estado de Bem-Estar ter origem acadêmica constituiu-se
numa razão a mais para se prestar uma atenção especial às primeiras manifestações de
concretização política da dimensão social do Estado.
A profunda crise estrutural da Sociedade e do Estado verificada entre as duas grandes
guerras tem sido considerada a responsável pela exaustão completa do modelo liberal clássico.
Neste período entre os dois conflitos mundiais, muitas transformações foram operadas. Neste
sentido, como assinala Touchard (1993, p. 489), houve o desaparecimento do dualismo entre
Estado e Sociedade e se manifestam abertamente os fatores que representavam para o Estado a
transformação das capacidades e condições da existência individual.
O avanço mais importante, entretanto, foi representado pela constituição do Estado
como Estado Social, em resposta direta às necessidades substanciais das classes subalternas
emergentes. Assistiu-se, portanto, no período entre guerras, principalmente, a uma retomada por
parte do Estado e do seu aparelho, de uma função de gestão direta da ordem social, mas,
sobretudo da ordem econômica, cujo andamento natural era agora posto em dúvida pela menor
homogeneidade de classe da Sociedade Civil e pela impossibilidade de um controle automático e
unívoco do próprio Estado, por parte desta mesma Sociedade.
O Bem-Estar voltou a ser o objetivo mais prestigioso da gestão do poder, embora não
mais em função declaradamente fiscal e político-econômica, como nos tempos do Estado
Absoluto, e sim, em vista de um progressivo e indefinido processo de integração social
(BOBBIO, 1994, p. 430).
Este momento de surgimento de novas formas de prestação social a partir do Estado ou,
preferindo, de ruptura com as políticas assistenciais próprias do Estado Liberal clássico, pode ser
considerado como o início de um processo dinâmico de ajuste entre o indivíduo e o Estado. Um
dos eixos principais de tal processo foi o surgimento da seguridade social em todas suas formas,
fato que ajuda sobremaneira na análise científica dos diversos modelos possíveis do Estado de
Bem-Estar.
Interessante ressaltar que, assim como o que se observa na atual crise europeia, o
principal sintoma de esgotamento do modelo liberal clássico, durante as três primeiras décadas do
século XX foi o aumento acelerado do desemprego. O Estado passou a patrocinar políticas que

73
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

garantissem a preservação dos postos de trabalho. O próprio Estado passou a ser um empregador
em grande escala, principalmente com o crescimento do contingente de funcionários públicos
dedicados aos serviços sociais, resposta a uma demanda social cada vez maior. O Estado de Bem-
Estar transforma-se num elemento importante na resolução do problema do desemprego
(NAVARRO, 1998, p. 107).
Os economistas britânicos foram os responsáveis pela formulação econômica do Estado
de Bem-Estar. A política econômica e social correspondente ao Estado de Bem-Estar corresponde
às posições de John Maynard Keynes e seus seguidores (VERDÚ; MURILLO DE LA CUEVA,
2000, p. 120).
Podemos dizer que depois de Adam Smith e Thomas Malthus, economistas da escola
clássica, e de Karl Marx, nenhum outro teórico foi tão importante quanto Keynes, pensador de
muita influência na renovação das teorias econômicas tradicionais e na reformulação da política
econômica do livre mercado.
A necessidade de alavancar o crescimento econômico e a extensão de um maior bem-
estar para toda a Sociedade são considerados princípios indissociáveis que se vinculam à
crescente intervenção do Estado e que estão ligados, de forma inequívoca, a Keynes.
Numa leitura sistematizadora do postulado de Keynes, é possível dizer que ele defendeu
seu conceito de “multiplicador de demanda” como sendo a regra através da qual o aumento dos
gastos governamentais aumenta a demanda agregada, o que criaria uma otimização do trabalho e
do capital numa escala tal que a produção se expandiria em proporção superior ao crescimento
daqueles gastos.
Considerando-se estas análises, pode-se dizer que a “equação keynesiana” apoiou a
possibilidade de se fazer convergir elementos de mercado e sociais através da articulação de
políticas redistributivas.
Numa perspectiva histórica, parece evidente que a pregação de Keynes, como modelo
que pretendeu promover a combinação de recursos entre o mercado e o Estado converteu-se, até
fins dos anos setenta, numa doutrina econômica que quase ninguém questionava, na medida em
que sua defesa se relacionava estreitamente com a construção do Estado de Bem-Estar e permitia
que este desfrutasse de um amplo consenso.

74
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

A obra de Keynes foi plenamente reconhecida em seus últimos anos de vida. Em 1944,
chefiou a delegação do Reino Unido à Conferência de Bretton Woods6, nos Estados Unidos.
O modelo keynesiano, independentemente de sua consistência teórica, contou com
vários elementos que ajudaram a torná-lo uma unanimidade nos mais diversos setores sociais e
ideológicos. (KING; SCHNEIDER, 1993, p. 136). Uma das expressões mais visíveis deste fato
foi o desaparecimento das disputas entre as classes sociais que convulsionaram as sociedades
capitalistas nos períodos anteriores à II Guerra Mundial, o que pode ser atribuído a dois fatores:
a) o crescimento econômico que as sociedades ocidentais experimentaram a partir dos
anos cinquenta; e
b) a extensão do Bem-Estar social a camadas cada vez mais amplas da Sociedade.
O Estado de Bem-Estar passou a gozar de um enorme grau de consenso, assim como as
políticas econômicas keynesianas.
Nas duas décadas após a II Guerra Mundial havia uma sensação de que, efetivamente, a
consolidação e a expansão do Estado de Bem-Estar correspondiam, na realidade, a um período
que poderia significar o fim do confronto ideológico entre esquerda e direita ou entre liberdade e
igualdade. O decurso dos acontecimentos, porém, mostrou o equívoco desta percepção.
De qualquer forma, em qualquer destas direções, as pesquisas disponíveis são
suficientemente amplas para uma abordagem sistemática sobre este assunto. Um bom exemplo de
coincidência que se pode encontrar nos estudos sobre o Estado de Bem-Estar é a que tem o gasto
público como principal hipótese de pesquisa, critério muito utilizado até por conta da falta de dados
para operar com outras hipóteses.
Um dos traços permanentes nos textos que tratam deste tema, é que a maioria das
abordagens que se limitam à analise do Estado de Bem-Estar a partir dos investimentos públicos,
consideram que todo gasto realizado pelo Estado tem o mesmo valor, independente dos seu fins e
dos seus resultados.
Assim, as diferenças que devem ser apreciadas entre os diversos modelos de Estado de Bem-
Estar possibilitam a elaboração de distintas classificações, como a classificação já clássica realizada

6
Quando a guerra aproximava-se do fim, a Conferência de Bretton Woods foi o ápice de dois anos e meio de
planejamento da reconstrução pós-guerra pelos Tesouros dos EUA e Reino Unido. Representantes estadunidenses
estudaram com os colegas britânicos a reconstituição do que tinha estado faltando entre as duas guerras mundiais:
um sistema internacional de pagamentos que permitisse que o comércio fosse efetuado sem o medo de
desvalorizações monetárias repentinas ou flutuações selvagens das taxas de câmbio — problemas que praticamente
paralisaram o capitalismo mundial durante a Grande Depressão.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

por Titmuss, que distinguiu dois modelos: a) o residual, no qual o Estado desempenha uma função
mínima na provisão do bem-estar, cujos serviços são de escassa qualidade e destinam-se à
subsistência, ao contrário da mercado e da família, que são as instituições que gozam de maior
relevância; b) o institucional que, diferente do anterior, tem o Estado como principal instrumento
para a provisão do bem-estar (BLAS GUERRERO; VERDÚ, 1997, p. 117).
O britânico Richard Titmuss7 é uma das principais referências contemporâneas e que se
dedicou à investigação das políticas sociais e do Estado de Bem-Estar, em suas múltiplas formas
e efeitos.
Os modelos ditos “institucionais” se caracterizariam pela universalidade dos serviços
prestados, ou seja, com os serviços atendendo a toda Sociedade de forma indistinta. Nesta forma
de organização, o Estado assume um papel de intervenção com o objetivo de assegurar um
mínimo de bem-estar em todos aqueles âmbitos considerados imprescindíveis ao conforto
individual.
Naqueles ditos “residuais”, ao contrário, a intervenção somente aconteceria quando
falhassem os instrumentos preceptores – a família e o mercado – para a realização do bem-estar.
Neste caso, a intervenção ficaria limitada a segmentos bem delimitados e praticamente excluídos
da Sociedade.
A diferença básica entre estes dois tipos de Estado de Bem-Estar está no fato de que, nos
“institucionais”, os direitos sociais para a cidadania ocupam um espaço central, enquanto que,
nos ditos “residuais”, os direitos estariam sujeitos a provas de merecimento por critérios de
carência social.
Para se ir além do critério do estrito conhecimento do gasto público para classificar o
Estado de Bem-Estar, deve-se ter em conta, então, a análise dos programas de intervenção do
Estado em diversas políticas sociais. Aspectos como as condições para desfrutar das ações que
oferecem os programas, universalidade e especificidade de alguns destes programas ou qualidade
das transferências econômicas previstas nos mesmos são questões relevantes que devem ser
consideradas quando se pretende aprofundar o debate sobre o Estado de Bem-Estar.

7
RICHARD MORRIS TITMUSS (1907-1973), um dos maiores e mais respeitados estudiosos do Estado de Bem-
Estar do Ocidente e um dos seus mais influentes teóricos na Grã-Bretanha, foi professor do London School of
Economics de 1950 até sua morte, em 1973. Escreveu, entre outras obras, The philosuphy of welfare: selected
writings of Richard M. Titmuss, Commitment to Welfare, EssMys on “the Relfare sPM te”, Social policy: an
introduction, Problems of Social Policy e Unequal rights.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

O Estado de Bem-Estar gozou de um amplo consenso desde os anos quarenta até os anos
setenta, durando, mais especificamente, até a crise econômica de 1973, que abalou os princípios
keynesianos e sobre os quais havia se sustentado. A partir desta crise o consenso do pós-guerra
em torno da economia mista e do Estado-Providência, partilhado, sofreu seu primeiro importante
revés (MISHRA, 1995, p. 5).
A fase de pujança econômica iniciada após a II Guerra Mundial chegou ao fim, por
conta de dois fatos marcantes. O primeiro deles foi a decisão dos Estados Unidos de não
manter a convertibilidade do dólar em ouro, tomada em virtude da quantidade da moeda
norte-americana em circulação em outros países (BLAS GUERRERO; VERDÚ, 1997, p.
119). Os problemas econômicos causados por esta decisão se prolongaram desde meados da
década de setenta até o início da de oitenta. Diante desta nova realidade econômica, os países
ocidentais começaram a ter sérias dificuldades para continuar implementando suas políticas
econômicas baseadas no modelo keynesiano.
Importante ressaltar, no entanto, que a crise econômica de 1973 não foi a única
responsável pelo questionamento ao modelo keynesiano. O segundo fato marcante foi o
crescimento descontrolado do gasto público. Este fato, importante lembrar, é um dos grandes – se
não o principal - problemas de países europeus, que se debatem entre a pressão de seus cidadãos
para manter os benefícios do Estado de Bem-Estar e as exigências do Banco Central Europeu e
do FMI para que controlem o déficit público, aumentem a carga tributária e para que o Estado
abandone a intervenção em diversos setores, principalmente o social.
Está-se falando de uma época em que a Europa estava em estágio inicial de sua
integração econômico-financeira.
Hoje a realidade é outra. Os governos atuais, na Europa, engessados pela gestão
centralizada do euro, passam a ter que conviver com a contradição de manter os altos custos do
Estado de Bem Estar e aumentar a carga tributária ou reduzir os investimentos públicos que
beneficiavam milhares de pessoas. (CRUZ; FERRER, 2010, p. 12-17). Em qualquer dessas
situações, a impopularidade e o possível desgaste eleitoral são fantasmas sempre presentes.
A intervenção do Estado para regular a economia, que havia sido a prática característica
do modelo keynesiano para fazer frente, respectivamente, ao crescimento da estagnação ou ao da
inflação, mostrara-se ineficientes para combater a atual crise na Europa.

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Com o desequilíbrio fiscal e o aumento da recessão e do desemprego, verificado,


principalmente, nos países da periferia europeia, a estrutura pública de Estado de Bem-Estar ficou
ainda mais vulnerável.
As novas orientações são no sentido de que os governos não devem manter as políticas
voltadas para o pleno emprego, já que isto criaria efeitos indesejáveis, como o aumento da
inflação e a diminuição da produtividade.
Será muito difícil manter a base ideológica e política do Estado de Bem-Estar diante da
onda conservadora e tecnocrata que assola o Ocidente europeu. Pode-se dizer que os principais
serviços universais – manutenção dos rendimentos, cuidados de saúde e educação – terão grandes
dificuldades para sobreviverem ao movimento neoconservador na Europa Ocidental.
O Estado de Bem Estar vem sofrendo críticas na Europa desde as décadas de oitenta e
noventa do século passado. A atual situação de crise intensa abre possibilidade para
questionamentos dos modelos existentes de Estado de Bem-Estar sob diversos ângulos, colocando
dúvidas sobre a atual oportunidade e viabilidade do mesmo. De forma ampla, as críticas
correspondem a três posturas ideológicas distintas e, dependendo do tema em discussão, opostas: o
neoliberalismo, o neoconservadorismo e a neotecnocracia (se é que se pode chamar assim), esta
última representada por correntes reformistas, como aquela representada pelo Premiê Mario Monti,
na Itália (CRUZ, 2011, p. 76).
As pregações neoconservadoras giram em torno, principalmente, de movimentos
políticos e econômicos destinados a diminuir o Estado Médio de Bem-Estar para a condição de
um Estado capaz de enfrentar a atual crise econômica na Europa e insistem em dois fenômenos
para sustentar esta “nova” proposta de atuação política, econômica e estatal:
a) a Crise de Governabilidade, originada por uma ideologia igualitária que tende a
“deslegitimar” a autoridade política, através de uma intervenção do Estado que não
pretendia outra coisa senão corrigir efeitos sociais perversos causados pelo passado
Liberalismo. A disposição do Estado de intervir nas relações sociais provoca um enorme
aumento nas solicitações dirigidas às instituições políticas, determinando a sua paralisia
pela sobrecarga de demanda. As bases de sua crítica se situam no corolário de que o
Estado não pode assimilar uma demanda por serviços públicos e gratuitos ilimitada por
parte da Sociedade; e

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b) a Sobrecarga do Estado a partir de concepções pluralistas da Sociedade, que se


compõe de múltiplos grupos, cujos interesses são objeto de negociação e compromisso
com o Poder. Estes grupos trabalham com uma expectativa cada vez mais elevada para
o seu nível de vida. O sistema de disputa entre os grupos de pressão e as agremiações
políticas obriga o governo a assumir vários compromissos, mesmo que contraditórios,
para se manter no Poder. Assim, os governos não possuem autoridade suficiente para
impor o que se poderia denominar de um adequado ajuste econômico. As tentativas
feitas pelos governos para ter maioria nos parlamentos implicaram ampliar ao extremo
o exercício da negociação, deturpando a concepção de Democracia. O resultado desta
falta de “correções periódicas de rumo” acaba por formar um círculo vicioso do qual o
Estado de Bem-Estar, após determinado período, torna-se refém.
O Neoconservadorismo é o principal movimento de oposição aos modelos de Estado de
Bem-Estar observado na atual crise. O Estado de Bem-Estar e a Democracia Social, por extensão,
são, para a Neoconservadorismo, incompatíveis com a ética e a liberdade política e econômica.
Contra o Estado de Bem-Estar existem, atualmente, argumentos muito robustos e não são
poucos nem de pouca intensidade. Os neoconservadores, aliados muitas vezes aos neoliberais (e até
mesmo a liberais ortodoxos), mesmo ressalvadas as discordâncias que se possa ter em relação aos
seus argumentos, expõem contradições muito concretas em suas críticas.
Muito do que se pode ler sobre a grave crise pela qual atravessa a Europa permite
apontar essas contradições, sendo possível resumir aquelas que seriam as mais relevantes e as que
mais têm tido efeito na opinião pública:
a) o Desestímulo à Economia de Mercado provocado pelo Estado de Bem-Estar.
Segundo este argumento, o Estado de Bem-Estar retira do mercado os incentivos para
investir e empreender;
b) o Alto Custo do Estado de Bem-Estar, provocada pelo rápido crescimento das
burocracias e castas de funcionários públicos, concorre em recursos humanos e
econômicos com a iniciativa privada e consome recursos que poderiam ser aplicados na
produção industrial não-estatal;
c) a Incapacidade de Solução do Estado de Bem-Estar. Um exemplo dos argumentos –
que parecem inconsistentes – que os neoconservadores e neoliberais utilizam em

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relação a esta incapacidade do Estado de Bem-Estar seria relativo à pobreza, já que,


apesar dos recursos destinados ao seu combate, não conseguiu erradicá-la;
d) a Obstrução da Liberdade. Além do risco à Democracia, esta crítica está relacionada
também com a impossibilidade da escolha, pelos cidadãos, dos serviços que serão
colocados ao seu dispor;
e) a Oposição à Iniciativa Privada, que é produzida como consequência do super-
dimensionamento do tamanho do Estado. A redução de seu tamanho – para chegar a um
Estado Novo Mínimo –, a privatização dos serviços, a contenção do poder dos sindicatos
de trabalhadores e a redução da burocracia são as principais propostas que o
Neoconservadoriesmo, o Neoliberalismo e a Neotecnocracia apontam como alternativas
às políticas típicas do Estado de Bem-Estar.
Porém há outras questões que são apontadas como responsáveis pela crise do Estado de
Bem-Estar e a sua falta de capacidade para atender a suas funções tradicionais:
a) o Estado como protetor, não funciona como deveria, já que não consegue evitar a
falta de segurança pública, o terrorismo e o surgimento de movimentos anarquistas;
b) o Estado como administrador industrial tem demonstrado sua incompetência. Suas
empresas sempre dão prejuízo, sufocam as pequenas e médias empresas e sacrificam
o setor primário da economia;
c) o Estado como controlador econômico mostra uma política econômica marcada por
incertezas e oscilações, com recessão, monetarista e não-monetarista, sendo incapaz de
evitá-la;
d) o Estado como magistrado está desprestigiado, oferecendo uma justiça lenta e, algumas
vezes, corrupta. Não raramente, incorre em inconstitucionalidades evidentes e é refém
do corporativismo, tanto público como privado.
Estamos assistindo a talvez a mais grave crise do Estado social, que afeta todas as suas
estruturas: políticas, socioeconômicas e jurídicas. Estamos vivendo uma aguda e crítica etapa de
transição da civilização ocidental de modo que o Estado, fruto dessa civilização, sofre
intensamente essa crise (VERDÚ; MURILLO DE LA CUEVA, 2000, p. 117).
Com possivelmente algumas poucas exceções e bem determinadas, será muito difícil o
Estado de Bem-Estar Social e seus programas históricos sobreviverem em sua matriz original.

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(CRUZ, 2008, p. 9). É preciso observar se a força mais ampla da história continuará atuando com
a crise iniciada em 2008.

PARA TERMINAR: EM DIREÇÃO À DEFINIÇÃO DE UM NOVO MODELO DE


ESTADO NA EUROPA. LIMITES E PRÉ-CONDIÇÕES.

Fundamentado em tudo o que até aqui foi exposto e discutido, a relação causa-efeito da
crise em relação ao Estado de Bem-Estar na Europa aparece como um enredo que não pode ser
separado ou desmembrado. O Estado de Bem Estar e a crise iniciada em 2008 são indissociáveis8.
Nessa discussão deve-se também considerar o fato de que o fundamento constitucional
do Estado de Bem estar faz parte do núcleo duro do constitucionalismo europeu, como seu
pressuposto de fundo para a aceitação de tal modelo de estado de bem-estar.9 Mas mesmo assim,
essa tradição de constitucionalismo social, diante do contexto atual globalizado, sem regras claras
de mercado, corre o risco de desintegrar-se em confronto com a voracidade e a rapidez que o
sistema econômico mundial impõe aos países ocidentais atualmente. (CRUZ; STELZER, 2009, p.
132).
Diversamente de tudo quanto sucede nos EUA, onde a marginalidade e a disparidade
sociais foram sempre dominantes, com a vantagem de um mercado de trabalho muito mais
flexível, boa parte dos Estados europeus estão descobrindo graves carências nos serviços sociais,
o que é mais complicado quando ligada a uma constante e crescente precariedade no mercado de
trabalho. Em outras palavras, a crise econômica além de acentuar a crise de trabalho quase zerou
o valor “amortizador” social do Estado de Bem Estar. Segundo os recentes dados fornecidos pela
UE, nos Países membros, cerca de 114 milhões de pessoas, no mês de julho de 2010, estavam no
risco de exclusão social: cerca de um jovem entre quatro está ainda à procura da primeira
ocupação.
Neste quadro, a Europa aparece extremamente frágil já que como se tratou
anteriormente, as diversas variantes nacionais do modelo de Estado de Bem Estar Europeu estão
realmente em profunda crise. Ademais, parecem nesta fase prevalecerem os egoísmos nacionais.

8
Sobre isso, recomenda-se seja observada a crítica de FINK; LEWIS; CLARKE, 2001.
9
Sobre isso ver COUSINS, 2005.

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Estes fatores, valorados conjuntamente, constituem os limites absolutos para o encaminhamento


de soluções de curto e médio prazo para a referida crise.
As finalidades da presente reflexão poderão ser úteis, também, em relação ao debate que
está envolvendo os principais protagonistas da atual fase histórica, indicando algumas tendências
que tentam redefinir o sistema do Estado de Bem-Estar europeu no contexto da crise
econômica.10
O exercício realizado no presente artigo, como em outras partes também destacado,
requer uma capacidade diferente e inovadora de compreender a complexidade, a amplitude e a
globalidade dos problemas que as autoridades monetárias europeias tentam varrer para debaixo
do tapete. Além disso, é necessária também uma nova investida metodológica baseada na
interdisciplinaridade de análises entre juristas, sociólogos, cientistas políticos e economistas.
Nesta perspectiva, a construção de um novo paradigma social europeu, que possa ser
sustentável, requer algumas pré-condições imprescindíveis de razoabilidade e justiça, como: a) a
redefinição estrutural da organização política da União Europeia, caracterizada por critérios de
unidade fiscal (não só monetária); b) a redeterminação dos paradigmas de equidade social; e c) a
adoção de instrumentos flexíveis de equilíbrio orçamentário. (CRUZ; OLIVIERO, 2012, p. 23).
Mas, se a moderação é a face jurídica da sustentabilidade econômica dos direitos sociais e do
próprio Estado de Bem-Estar, a vontade política é a pré-condição fática sem a qual nada é
possível. (CRUZ; FERRER, 2011, p. 13). Até o momento não há qualquer definição sobre qual
projeto político-estratégico a União Europeia realmente adotará. Não está claro se a União
Europeia pretende construir uma sociedade indubitavelmente mais austera e sóbria, mas
realmente solidária no seu conteúdo e direcionada aos mais necessitados, ou se, ao invés disso,
pretenda “decidir não decidir”, ou seja, perpetuar, em nome da idolatria ao mercado, uma política
neoliberal sabidamente inconsistente, permitindo que um sentimento cada vez mais egoísta tome
conta de seus membros, o que significa renunciar ao seguinte passo da integração da Europa do
tipo ab infra (dentro, abaixo, entre) e a um critério de solidariedade mais forte, que seja ab intra
(fora, acima) e que não seja ab extra (distante, longínqua).
Em outras palavras, a situação atual poderia ser definida como um tempo de carência de
regras; de ausência de estadistas e líderes europeus e mundiais com estatura suficiente para

10
Sobre isso ver JIMENA QUESADA, 2011, p. 76 e CAMPEDELLI, 2010, p. 594.

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enfrentar esse desafio; e, como consequência deste panorama, de ausência de adequadas e


corajosas escolhas político-legislativas nos diversos níveis nacional e continental, tanto europeu
como global.
A austeridade fiscal e os esforços para reduzir salários em países que sofrem
estrangulamento monetário podem causar a fratura de sociedades, governos e até dos Estados.
Sem uma solidariedade maior, é improvável que essa história termine bem.
Neste contexto, no qual parece prevalecer um conjunto de táticas de curto prazo e típicas
dos egoísmos favoritos dos governos nacionais, que sofrem de miopia relativa aos direitos sociais
e àqueles referentes às expectativas humanas das gerações futuras, é importante não se deixar de
assinalar e/ou considerar a função de suplência subsidiária desenvolvida pela jurisprudência.
Emerge, de maneira sempre mais evidente, o relatório decisivo, racional e estratégico dos
tribunais nacionais e supranacionais, cuja jurisprudência parece substituir os Parlamentos nesta
longa transição sistemática (não somente europeia, mas mundial) cujos êxitos são pouco
divulgados.
O dado incontroverso é que o vazio normativo e a ausência de políticas legislativas
produziram um fenômeno de reforço normativo do tipo jurisprudencial, a ponto de se poder
afirmar que a existência de alguns direitos, não só os sociais, são muito mais fruto de um trabalho
de criação judicial do Direito do que movimentos coordenados de governos ou de autoridades
europeias. (COLAPIETRO, 2009, p. 46).
Substancialmente, além da valoração puramente formalista, ao menos na Europa, o
Estado Constitucional Moderno parece adquirir, definitivamente, semblantes de um Estado
jurisdicional, profundamente “empapado” de direito supranacional europeu. O que permite
especular o embrião de um Estado Transnacional.
Nesse sentido o trabalho dos tribunais europeus, por ter servido como núcleo duro das
tradições constitucionais, contribui para alimentar o desenvolvimento de um endereço comum
transnacional (CRUZ; OLIVIERO, 2012, p. 5).
Mesmo que o papel desempenhado pelos tribunais pareça claro, menos compreensível
parecem ser as consequências jurídicas sobre a ordem constitucional e as econômicas sobre o
tratamento político dado à crise. Na realidade, a possível consequência disso tudo é que os
tribunais europeus, apenas atentando ao núcleo valorativo da tradição do constitucionalismo
europeu, alcançado através de diversas decisões, levem a um modelo de “Estado de Bem-Estar

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Real”, que em realidade está sustentado pela estrutura judicial europeia e não positivado. Tudo
isso fruto de uma política legislativa descoordenada e, sobretudo, sem uma análise do impacto
econômico de tal modelo no tempo (ex ante e ex post), tarefa que deveria ser dos legisladores em
suas tarefas decisionais. (RODOTÀ, 2007, p. 76). Portanto, a ausência de debate sobre a
sustentabilidade-factibilidade-exigibilidade intensifica o risco e pode produzir um posterior
agravamento da relação entre o Estado de Bem-Estar e a crise econômica, com uma definitiva
renúncia ao modelo histórico europeu. Já não por opção, mas por necessidade.
Tal risco declinado acima pode assumir dimensões ainda mais complexas. De fato, ou a
crise econômica em relação ao Estado de Bem-Estar constitui uma ocasião de relançamento do
modelo como oposição à globalização negativa, de segunda oportunidade e de redenção corajosa
do sonho e do modelo comunitário ou se revelará o infeliz início do fim do projeto europeu.

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O ESTADO DE EXCEÇÃO E A GARANTIA DA DEMOCRACIA


STATE OF EXCEPTION AND THE SAFEGUARD OF DEMOCRACY

Francisco de Albuquerque Nogueira Júnior*

RESUMO
A compreensão do estado de exceção é ponto nevrálgico de discussão nas escolas
jusfilosóficas, justamente por representar a falta de sua normatização em um texto
constitucional perante a inexperiência do poder constituinte em identificá-lo, impedindo,
dessa forma, a sua positivação. Sua total abstração impede a sua estrita definição, restando-lhe
a análise de teorias acerca de sua natureza e de suas implicações na soberania estatal. Não se
destoando da experiência contemporânea, o próprio constitucionalismo brasileiro enfrentou o
dilema da existência da excepcionalidade no contraste à própria normalidade constitucional.
O entendimento do estado de exceção passa pela definição de seu campo de atuação. Diante
dessa afirmação, o presente trabalho aborda a reflexão filosófica doutrinária que compreende
a natureza da excepcionalidade, as consequências advindas de sua institucionalização na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o complexo relacional deu sua
existência com a garantia da própria democracia. Nesse sentido, colhem-se os reflexos da
própria legitimidade de instalação de um estado excepcional como necessário, ou não, a
manutenção da ordem social, evidenciando a experiência do texto constitucional de 1988 no
desempenho de instituições consideradas democráticas para a defesa do Estado. Por isso, o
que se pretende com o presente trabalho científico é apresentar uma definição mais próxima
do que se coaduna com a realidade do estado de exceção, evidenciando as suas principais
características, as suas relações com a própria soberania estatal, a sua experimentação na
Constituição Federal de 1988 e a sua relação com a garantia da própria democracia.

PALAVRAS-CHAVE: Estado de exceção; Soberania; Teoria do Direito; Democracia.

ABSTRACT
Understanding the State of exception is a central discussion in the jusphilosophical schools,
precisely because it represents the lack of standardization in their constitutional text before the
inexperience of constituent power in identifying it, preventing thus their positivization. Its
total abstraction prevents its strict definition, leaving it to analyze theories about their nature
and its implications in the State’s sovereignty. There is no grand differentiation in the
contemporary experience, the Brazilian constitutionalism itself is faced with the dilemma of
the existence of exceptionality in contrast to its own constitutional normality. The
understanding of the State of exception is the definition of its field. Given this assertion, this
paper discusses the philosophical reflection that this understanding of a doctrinal nature of
this exceptionality, the consequences arising from its institutionalization in the constitution of
the Federal Republic of Brazil in 1988 and its complex existence with the safeguard of
democracy itself. In this sense, people gather reflections of their own ideas of the legitimacy
of the installation of an exceptional condition as needed, or not, the maintenance of social
order, showing the experience of the 1988 constitution in the performance of democratic
institutions considered for the defense of the State. So, what is intended with this scientific

Graduado no Curso de Direito pela Universidade de Fortaleza. Advogado.


*

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work is to present a definition closer that meets the reality of the State of exception,
highlighting its main characteristics, its relationships with State sovereignty, Its
experimentation in the Constitution of 1988 and its relationship with the safeguard of
democracy itself.

KEYWORDS: State of emergency; Sovereignty; Theory of Law, Democracy.

INTRODUÇÃO

A compreensão da História revela a existência de um processo de normatização das


sociedades e a consequente concepção dos Estados. Trata-se da necessidade de criação de
normas e regras que pudessem pautar a coexistência pacífica entre indivíduos dotados de um
anímico sentimento de agrupamento, delimitados sob um mesmo espaço territorial provido de
uma peculiar soberania. No instante de afrontamento da legalidade posta, caberia ao Estado,
sob a representação de uma cúpula diretiva, a resolução da celeuma criada, competindo-lhe
dirimir a turbulência causada à ordem legal vigente, impedindo, assim, a fragilização da
instituição estatal.
O relacionamento entre os Estados e um consequente comportamento mútuo de
beligerância reflete a ocorrência de outra situação em que há a perturbação da legalidade
estabelecida. Sob a tentativa de imposição da vontade de um Estado sobre o outro, há de se
perceber a possibilidade de capitulação de uma ordem legal até então estabelecida, porém
fagocitada em razão de interesses alienígenas distintos.
Diante dessa experimentação histórica, fez-se necessária a elaboração cognitiva de
instituto sensível que pudesse no resvalo da ordem legal manter e preservar a columidade
estatal, garantindo a sobrevivência inerente da soberania.
O processo de constitucionalização trouxe mudanças significativas aos Estados
nacionais na obtenção do intento de autopreservação. A constituição posta passou a dispor
acerca da própria organização funcional do Estado, estabelecendo funções e criando órgãos
necessários a gerência da máquina administrativa. Houve um fortalecimento dos poderes
públicos na perseguição de uma finalidade social única, embora não represente paralelo
necessário com a institucionalização de um estado democrático de direito. É correto, contudo,
observar que coube a esse processo de fixação de uma ordem constitucional a necessidade de
elaboração de mecanismos particulares que pudessem tolher qualquer intento turbatório, seja
ele intrínseco ou extrínseco, à própria soberania nacional.

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A complexidade da questão se fez surgir, porém, no instante de se perceber a própria


institucionalização daquilo que jamais fora institucionalizado. Ou seja, como compreender os
limites de um estado de exceção? A quem caberia a legitimidade de solucionar as
intervenções à ordem constitucional estabelecida? E mais. O que é o próprio estado
excepcional?
Tratam-se, portanto, de questões fundamentais que passaram a ser pontos
fundamentais de discussão dos mais variados meios acadêmicos das principais escolas
jusfilosóficas do mundo.

1 DO ESTADO DE EXCEÇÃO EM CARL SCHMITT

O estado de exceção compreendido por Carl Schmitt, jurista e filósofo alemão do


começo do século XX, revela a formação de uma indagação fundamental: como agir na
prevalência de um estado excepcional? A questão expande-se sob o círculo da indefinição
ainda marcante da própria situação da excepcionalidade.
A não conceituação, como observado por Schmitt, não é óbice para a formação
conceitual das influências passíveis de serem sentidas na ocorrência real da excepcionalidade.
Trata-se de um conceito vago a priori, visto que há a falta de experimentação histórica que
pudesse definir o indefinido espaço surgido diante da generalidade constitucional. O processo
constitucionalista e a consolidação dos valores democráticos ainda permaneciam sob obtusa
compreensão diante da realidade autocrática cultuada pelos seculares Estados nacionais,
insensíveis a uma ordem constitucional prevalecente e emanante da própria funcionalidade do
organismo estatal. Definir como exceção o que sempre fora a regra é questão de difícil
resolução.
Ao passo da natural indefinição, sobrevém, todavia, especificação de sentido
disforme ao de outros estados também anormais, porém marginais à compreensão da
sobrevivência estatal. Schmitt, assim, distingue o estado de exceção da anarquia ou do caos.
Diferentemente dos últimos, há algo naquele que subsiste mesmo diante da impossibilidade
de prevalência normativa – sendo compreendido fundamentalmente como o Estado.1 Desfaz-
se a ordem constitucional a fim de que a inexistência de qualquer vínculo normativo

1
SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 13: “Ao contrário, para isso precisa-se
de uma competência, a princípio, ilimitada, ou seja, a suspensão de toda ordem existente. Entrando-se nessa
situação, fica claro que, em detrimento do Direito, o Estado permanece. Sendo o estado de exceção algo
diferente da anarquia e do caos, subsiste, em sentido jurídico, uma ordem, mesmo que não uma ordem jurídica.
A existência do Estado mantém, aqui, uma supremacia indubitável sobre a validade da norma jurídica. A
decisão liberta-se de qualquer vínculo normativo e torna-se absoluta em sentido real. Em estado de exceção, o
Estado suspende o Direito por fazer jus à autoconservação, como se diz”.

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possibilite a tomada de decisão por parte do soberano, responsável por reconstituir o estado
normal anterior à turbação provocada. Diante do vazio normativo surge a autoridade capaz de
reconduzir o Estado ao seu originário status quo. Faz-se segundo o dever de resguardar a
própria incolumidade estatal diante de agentes estranhos aos interesses nacionais –
desvinculados aos propósitos da soberania do Estado afetado.
Defronte à complexa questão existente, Schmitt empreende a noção de um binômio
conceitual importante: soberania e decisão. Tratam-se de idéias empregadas sob o mesmo
aspecto funcional, vinculadas à necessidade de legitimar aquele responsável por conduzir o
Estado durante a vigência do estado excepcional. O entendimento de Carl Schmitt ao afirmar
que “soberano é quem decide sobre o estado de exceção” revela a profunda conexão existente
entre os termos.2 O jurista entende que diante do quadro de excepcionalidade, na não-vigência
da ordem constitucional, caberia apenas ao soberano, agente receptor da totalidade de
interesses comuns ao Estado, transcender aos próprios limites constitucionais e proporcionar a
continuidade da integridade estatal. O Estado, portanto, traduziria o desejo do povo.
Percebe-se a evidente importância do fator decisório na atuação do soberano. As
decisões, mecanismos eminentemente políticos, agregam legitimidade à capacidade
desempenhada pela autoridade diante do estado de exceção. O soberano exerce o monopólio
da última decisão. É em face de tal afirmativa que a natureza da soberania estatal deve ser
compreendida não como monopólio coercitivo ou imperialista, mas como monopólio
decisório.3 Esse feito impede que haja superposição de qualquer outro instituto diante da
autoridade exercida pelo soberano – sua palavra é a última e assim deve ser aplicada.
Em sua obra “O Guardião da Constituição” (Der Hüter der Verfassung), Carl
Schmitt nega ao Poder Judiciário a atribuição de guarda da constituição.4 Sua reflexiva análise
produz a compreensão de que somente caberia ao Presidente do Reich ser o guardião do texto
constitucional, bem como efetuar o controle de constitucionalidade das leis e dos atos
normativos. Schmitt entende que todo ato de reconhecimento de inconstitucionalidade de uma
lei encontra-se preenchido por um profundo aspecto político, visto que é ato decisório. Um
tribunal constitucional ao assim decidir estaria em incompatibilidade com a sua própria
natureza, visto que ao Poder Judiciário caberia a exegese legal.

2
SCHMITT, Carl. Teologia política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 7.
Ibid., p. 14.
3
4
SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 193-205.

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Após uma profunda introspecção na temática, Schmitt aborda o dispositivo presente


no art. 48 da Constituição de Weimar.5 Na ocorrência de uma situação emergencial a por em
risco a integridade do Estado, bem como a segurança e a ordem públicas, é o Presidente do
Reich competente a fim de equalizar a excepcionalidade surgida, tomando as medidas
necessárias a fim de restaurar a ordem constitucional. Schmitt revela o caráter legítimo e
democrático presente nesse dispositivo ao compreender que o Presidente do Reich é eleito
pela totalidade do povo alemão, derivando seus poderes perante as instâncias legislativas de
um próprio “apelo do povo”.6
Schmitt aprimora o entendimento acerca daquele que é legítimo para atuar na
existência de um estado excepcional. O soberano concentra a totalidade dos anseios populares
e suas decisões são respaldadas na necessidade de permanência da ordem jurídica e social. Ao
decidir no estado de exceção, o soberano reflete consequentemente o sentimento nacional
total e regular. O Presidente do Reich é o soberano diante do próprio texto constitucional,
visto tratar-se de condicionamento particular dado pela nação alemã. A não
institucionalização, contudo, em nada desclassificaria o caráter legítimo desse entendimento.
O Presidente do Reich permanece na representação do Estado sob a anuência do povo alemão
e suas decisões são convalidadas a partir da aceitação automática que é feita pela sociedade
quanto aos caminhos empreendidos na gestão estatal. É a evidente vontade política da
totalidade do povo alemão em atribuir a guarda da constituição ao Presidente do Reich que o
define como soberano.7

5
O art. 48 da Constituição de Weimar de 11 de agosto de 1919 assim dispõe: “Caso a segurança e a ordem
públicas estejam seriamente ameaçadas ou perturbadas, o Presidente do Reich (Reichspräsident) pode tomar as
medidas necessárias a seu restabelecimento, com auxílio, se necessário, de força armada. Para esse fim, pode
ele suspender, parcial ou inteiramente, os direitos fundamentais (Grundrechte) fixados nos artigos 114, 115,
117, 118, 123, 124 e 154".
6
SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 233-234: “O fato de o
presidente do Reich ser o guardião da Constituição corresponde, porém, apenas também ao princípio
democrático, sobre o qual se baseia a Constituição de Weimar. O presidente do Reich é eleito pela totalidade do
povo alemão e seus poderes políticos perante as instâncias legislativas (especialmente dissolução do parlamento
do Reich e instituição de um plebiscito) são, pela natureza dos fatos, apenas um ‘apelo do povo’. Por tornar o
presidente do Reich o centro de um sistema de instituições e poderes plebiscitários, assim como político-
partidariamente neutro, a vigente Constituição do Reich procura formar, justamente a partir dos princípios
democráticos, um contrapeso para o pluralismo dos grupos sociais e econômicos de poder e defender a unidade
do povo com uma totalidade política”.
7
Ibid., p. 233-234: “A Constituição busca, em especial, dar à autoridade do presidente do Reich a possibilidade
de unir diretamente a essa vontade política da totalidade do povo alemão e agir, por meio disso, como guardião
e defensor da unidade e totalidade constitucionais do povo alemão. A esperança de sucesso de tal tentativa é a
base sobre a qual se fundam a existência e a continuidade do atual Estado alemão”.

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2 DO ESTADO DE EXCEÇÃO EM GIORGIO AGAMBEN

O filósofo italiano Giorgio Agamben em sua obra “Estado de Exceção” (Stato di


Eccezione) reassume a discussão quanto à existência de um estado excepcional e de suas
implicações a integridade estatal. O estado de exceção é compreendido como um ponto de
desequilíbrio entre o direito público e o fato político, a situar-se numa franja ambígua e
incerta, na intersecção entre o jurídico e o político.8 Trata-se de insurreição de aparente
“anomalia” ao considerado status quo em existência, promovente de uma situação que
extrapolaria, em princípio, a normalidade do texto constitucional vigente.
Agamben, através de sua capacidade filosófica, desperta a necessidade de convergir
doutrina sociológica e jurídica diante da apresentação de um estado excepcional. Tal posição
é apresentada quando decide relacionar sistematicamente a distinção dada pela tradição
jurídica dos Estados ocidentais à necessidade ou não de regulamentação do estado de exceção
por instrumento normativo. O filósofo empreende a divisão entre autores que defendem a
oportunidade de uma previsão constitucional ou legislativa do estado de exceção e os que
criticam a pretensão de se regular por lei o que não pode ser normatizado.9
A consequência dessa análise enseja o entendimento da oportunidade legislativa de
delimitar o alcance da atividade do agente soberano diante de situação de exceção, evitando a
transmutação do status excepcional para um posterior status ditatorial. Sua percepção
histórica o leva a acreditar no fracasso da continuidade dos princípios democráticos em um
Estado tomado pela excepcionalidade e desprovido de normatização limitante dos atos do
agente soberano na vigência do interstício legal. Agamben rememora, portanto, o estado de
exceção em que a Alemanha se encontrou sob a presidência de Hindenburg. Sob a perspectiva
dominante de Carl Schmitt de que caberia ao Presidente do Reich a “guarda da constituição”,
agente receptor da totalidade dos anseios nacionais, a condução da política do Estado alemão
transgrediu a fase de transição de um estado excepcional para um possível estado
democrático. O fim da República de Weimar, contudo, demonstrou que o paradigma da

8
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 11.
9
Ibid., p. 22: “Um exame da situação do estado de exceção nas tradições jurídicas dos Estados ocidentais
mostra uma divisão – clara quanto ao princípio, mas de fato muito mais nebulosa – entre ordenamentos que
regulamentam o estado de exceção no texto da constituição ou por meio de uma lei, e ordenamentos que
preferem não regulamentar explicitamente o problema. Ao primeiro grupo pertencem a França (onde nasceu o
estado de exceção moderno, na época da Revolução) e a Alemanha; ao segundo, a Itália, a Suíça, a Inglaterra e
os Estados Unidos. Também a doutrina se divide, respectivamente, entre autores que defendem a oportunidade
de uma previsão constitucional ou legislativa do estado de exceção e outros, dentre os quais se destaca Carl
Schmitt, que criticam sem restrição a pretensão de se regular por lei o que, por definição, não pode ser
normatizado”.

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ditadura constitucional funciona, na verdade, como uma fase de transição da excepcionalidade


para a instauração de um regime totalitário.10
A devida positivação do estado de exceção ocorreria, segundo Agamben, mediante a
produção de um sistema de cláusulas gerais que possibilitariam a autoridades competentes e
específicas a adotar medidas necessárias para lidar com a crise em voga. Os atos
governamentais emitidos em descompasso à previsão legal deveriam ser considerados ilegais
e passíveis de serem corrigidos por um Bill of indemnity especial.11
Guerras civis, resistências, interferências à ordem constitucional e democrática
seriam exemplos de agentes propulsores que levariam ao estado de exceção. A
excepcionalidade se apresenta cada vez mais como paradigma dominante em governos na
política contemporânea.12 O esforço empreendido a fim de se solidificar os preceitos de
estado democrático de direito ocasionaram um desenvolvimento na ciência pragmática
jurídica de situações excepcionais, previamente identificadas, a fim de que a soberania estatal
não viesse a ser posta em risco diante de agentes desagregadores da ordem constitucional.
Obtém-se, assim, uma necessidade preeminente de equalizar a oposição topográfica implícita
das disposições normativas durante a vigência de um estado de exceção.
Como pode uma anomia ser inscrita na ordem jurídica?13 A resposta para essa
pergunta é justamente o que satisfaz o equalizamento da oposição topográfica referida. Trata-
se de compreender a anomia como antítese – e não como paradoxo.14 A antitética situação
posta permite a existência de uma zona de indiferença que compreende a excepcionalidade.
No instante de sua vigência não há a abolição ou suspensão da norma constitucional, porém
há a prevalência da normatização paralela incumbida de restaurar a devida ordem
constitucional normal. Buscam-se, portanto, diante da necessidade de se recuperar a
normalidade constitucional, medidas a fim de se reparar os entraves políticos, sociais e
jurídicos consequentemente existentes.
Trata-se, portanto, o estado de exceção de “viés necessário” a fim de se defender a
ordem constitucional, não se compreendendo como violação ocasional ou casuística.15 À crise
instaurada sobraria o exercício normal de competências extraordinárias, exercidas sob o
respaldo popular e político, não jurídico.
10
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 29.
11
Ibid., p. 22-23.
12
Ibid., p. 13.
13
Ibid., p. 39.
14
Na antítese as ideias não se anulam, apesar de contrárias - tal fato não ocorre com o paradoxo, pois as ideias
em conflito são insuscetíveis de convivência.
15
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição: poder constituinte, estado de exceção e os limites da teoria
constitucional. São Paulo: [s.n], 2005, p. 36.

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O filósofo italiano conclui a sua obra “Estado de Exceção” (Stato di Eccezione) sob a
premissa necessária de se evitar que na vigência do estado excepcional haja a abolição
provisória da distinção entre Poder Legislativo, Judiciário e Executivo.16 Havendo a
concentração dos poderes sob uma mesma autoridade, tender-se-á ao estado de exceção
transformar-se em prática durável do governo. O estado de exceção passaria, portanto, a ser a
regra.

3 DO ESTADO DE EXCEÇÃO SEGUNDO KARL MARX

O conceito de Estado, segundo Max Weber, designa a entidade que consiste em um


povo residente num território definido e que vive sob um sistema governamental organizado,
sujeito de relações internacionais, capaz de engajar-se diretamente ou por intermédio de outro
Estado. Weber concebe o Estado como sendo um agrupamento de dominação de caráter
institucional cuja direção administrativa reivindica com sucesso o monopólio da coerção
física legítima sobre um determinado espaço físico. As decorrências lógicas de seu
pensamento resvalam, sobretudo, na concentração e na organização da violência, não mais
dispersa, mas sob a forma de monopólio institucional – polícia ou exército –, além da
delimitação de fronteiras – dentro das quais o Estado exerce seu poder17.
A análise inicial desenvolvida por Max Weber da acepção sobre o monopólio
legítimo do Estado da violência física e a plena institucionalização dos meios de dominação e
organização dessa coerção pelos dirigentes estatais se mostra essencial para a compreensão da
análise de Karl Marx sobre o estado de exceção.
Ocorre que a racionalização do Estado, tendo em vista a renúncia dos indivíduos ao
uso da força em benefício do governo constituído, é o pilar de sustentação dos Estados

16
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 48-49.
17
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 2004, v.2, p. 528-529: “Por toda parte inicia-se o desenvolvimento do Estado
moderno, pela tentativa de desapropriação, por parte do príncipe, dos portadores ‘particulares’ de poder
administrativo que existem a seu lado, isto é, daqueles proprietários de recursos administrativos, bélicos e
financeiros e de bens politicamente aproveitáveis de todos os tipos. Todo o processo constitui um paralelo
perfeito ao desenvolvimento da empresa capitalista, mediante a desapropriação gradativa dos produtores
autônomos. No fim vemos que no Estado moderno de fato há a concentração em um ponto supremo da
disposição sobre todos os recursos da organização política, que mais nenhum funcionário é proprietário
pessoal do dinheiro que desembolsa ou dos prédios, das reservas, dos instrumentos ou da maquinaria bélica de
que dispõe. No ‘Estado’ atual, está, portanto, completamente realizada - e isto é essencial para o conceito - a
‘separação’ entre o quadro administrativo, os funcionários e trabalhadores administrativos, e os meios
materiais da organização. Para nossa consideração, cabe, portanto, constatar o puramente conceituai (sic): que
o Estado moderno é uma associação de dominação institucional, que dentro de determinado território pretendeu
com êxito monopolizar a coação física legítima como meio da dominação e reuniu para este fim, nas mãos de
seus dirigentes, os meios materiais de organização, depois de desapropriar todos os funcionários estamentais
autônomos que antes dispunham, por direito próprio, destes meios e de colocar-se, ele próprio, em seu lugar,
representado por seus dirigentes supremos”.

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contemporâneos, notadamente os ocidentais. Todavia, quando o Estado perde sua


racionalização e os sujeitos se proclamam legítimos para promoverem a violência e
provocarem uma ruptura do status constitucional vigente, dar-se-á aceso o sinal de alerta
institucional.
A consequência disso revela-se na utilização dos meios tidos como adequados e
necessários à conservação do Estado, conferindo a aparência de legalidade às tais medidas
empregadas pela cúpula do poder. A tensão deste conflito repousa essencialmente no fato de o
estado de exceção agir exclusivamente acobertado pelo império legal, de onde se presume
haver consentimento social, embora seja instaurado somente pelo Chefe do Poder Executivo
em nome da racionalidade contra a democracia popular.
Dotado das experiências revolucionárias vivenciadas na França a partir do ano de
1848, Karl Marx denuncia o estado de exceção como derivado imediato do Estado burguês,
reorganizado e reaparelhado jurídico, político e administrativamente para oprimir as revoltas
do proletariado e seu iminente anseio pela derrubada da ordem. Trata-se de uma medida
vinculada aos interesses burgueses de manutenção e subsistência do Estado com vistas à
preservação de sua dominação sobre as classes economicamente fragilizadas. Para tanto, a
necessidade de racionalização burguesa obriga a transmudação de sua forma política e
jurídica, normalmente vulnerando o próprio texto constitucional, sempre que a manutenção do
Estado estiver em risco, leia-se, para aqueles que detêm o controle da máquina
administrativa.18
Friedrich Engels destaca aquilo que se opõe ao estado excepcional como sendo o
“direito à revolução”, único direito verdadeiramente histórico e endossado pela consciência
universal, sobre o qual se sustentam todos os Estados modernos, surgindo, assim a tensão
natural entre o direito ao golpe de Estado dos povos e as medidas de urgência promovidas
pelo Estado no intuito de sua sobrevivência.19
Karl Marx denuncia constantes casos durante a instabilidade na gestão francesa com
as revoluções desencadeadas de 1848 em que era comum alegar-se ser inescusável violar a
Constituição no intuito de preservá-la.20 Soa audacioso afirmar referida assertiva quando não
há sequer um dispositivo legal que embase pretensão nesse sentido.

18
MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 185: “Em 21 de
maio, a Montagne trouxe ao debate a questão preliminar e propôs a rejeição de todo o projeto porque violava a
Constituição. O partido da ordem respondeu que se violaria a Constituição sempre que tal fosse necessário”.
19
Ibid., p. 58.
20
Ibid., p. 121: “Sob o pretexto da salut public [salvação pública – francês], um motim teria permitido dissolver
a Constituinte, violar a Constituição no interesse da própria Constituição”.

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Afinal, como precisar quais casos efetivamente arriscariam a sobrevivência da ordem


constitucional? Ademais, quem seria legitimado para se pronunciar sobre a “legalidade” das
providências adotadas para manutenção da constituição?
Questionamentos como esses induziram Marx a explicitar a estruturação do poder
por detrás do que se acreditava ser a república francesa, manipulada, na verdade, pela soma de
interesses daqueles que momentaneamente dirigiam o rumo do país, os quais se viam
frequentemente obrigados a desrespeitarem dispositivos constitucionais durante as atividades
legislativas com o único escopo de sua autopreservação.21
Com base no combate às revoluções proletárias na França, Marx destaca ao lado do
cunho ideológico e contrarrevolucionário do estado de exceção seu aspecto brutal e
sanguinário. Conforme se ampliavam as contradições entre trabalho e capital, o Estado
necessitava aprimorar seus mecanismos para a escravização social, de sorte que em cada
revolução desatada era exposto com maior nitidez o caráter puramente repressivo do poder
estatal.
O emprego da violência estatal sob a forma jurídica, ou ditadura do Estado, como
prefere Engels, é a demonstração sem nenhum rebuço do fim perseguido na república
burguesa para perpetuar a dominação do capital e a escravidão do trabalho.22 Revela-se o
expediente mais politizado e essencial no cotidiano da luta de classes no que se refere ao
combate das aspirações proletárias à consecução de justiça social que tanto amedronta a
estrutura do poder.
Não menos relevante é a capacidade de internacionalização sobre o estado de
exceção – este refém do capital globalizado. Importante ferramenta para o deleite do poderio
internacional foi possível perceber sua magnitude com o desrespeito ao acervo de regras
internacionais por parte do governo prussiano no garrote da Comuna de Paris, mas que,
todavia, não lhe resultou em nenhuma represália internacional compatível. A união dos
governos em torno do capital internacional apenas realizou indagações à Prússia acerca das
poucas vítimas que escaparam do duplo cordão formado em torno de Paris.

21
MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 68: “A monarquia de
julho era apenas uma sociedade por ações para explorar a riqueza nacional da França e cujos dividendos eram
distribuídos pelos ministros, Câmaras, 240 mil eleitores e o seu séquito. Luís Felipe era o diretor dessa
sociedade, um Roberto Macaire no trono. Num tal sistema, o comércio, a indústria, a agricultura, a navegação,
os interesses da burguesia industrial não podiam deixar de estar constantemente ameaçados e de sofrer
prejuízos. “Gouvernement à bom marche”, governo barato, fora o que ela durante as jornadas de julho
inscrevera na sua bandeira”.
22
Ibid, 2008, p. 60: “Ruptura da Constituição, ditadura, regresso ao absolutismo, regis voluntas suprema lex!
[a vontade do rei é a lei suprema! – latim] Portanto, coragem, meus senhoras, deixam de conversas e
arregacem as mangas”.

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Enfim, o papel do estado de exceção como meio regulador dos anseios populares, faz
emergir uma lógica quase que particular do Estado, colide frontalmente com o direito
universal à revolução dos povos, o qual menciona Engels.23 A positivação do estado de
exceção no texto constitucional empresta, em tese, legitimidade à sua instauração, levando à
reflexão sobre até que ponto sua manifestação contrária a determinado movimento
revolucionário é realmente legítima, ainda que amparada pela legalidade.
A adoção dos meios legais pela burguesia para consagrar suas pretensões na nova
realidade social demonstrou a expressa relação entre a afirmação da nascente classe
dominante no cenário político e a disseminação de seus interesses nas mais diversas esferas
do aparelho estatal. Assim sendo, é razoável pensar se o poder constituinte ao incorporar o
estado de exceção na sua legalidade respalda-se, em qualquer medida, no consenso popular?
É inegável que as supressões das garantias e liberdades individuais visam à
manutenção da ordem posta, burguesa ou não. No entanto, a sobrevivência do Estado se vê
ameaçada exatamente pelo movimento daqueles que outrora lhe legitimaram e também os
meios para sua subsistência.
O poder legítimo entre o embate do poder estatal e o movimento revolucionário
pertencerá ao vencedor desse conflito. Enquanto não houver a superação ou supressão do
estado de exceção pela vontade popular é porque esta não se mostrou suficientemente
fortalecida e consensualizada para subverter a ordem, razão pela qual, a contrário senso,
infere-se que a legitimidade ainda repousa no Estado constituído. Quando a “massa” reunir
condições objetivas, relativas ao contexto fático, e subjetivas, a respeito de sua capacidade de
auto-organização, para promover a inauguração da nova ordem social, é o momento que a
legitimidade desloca-se da ordem jurídica para a ordem social, da razão do Estado para a
razão política, do estado de exceção para o povo.

4 DO ESTADO DE EXCEÇÃO NA DEMOCRACIA BRASILEIRA

Em 1º de fevereiro de 1987 iniciaram-se os debates promovidos pela Assembleia


Nacional Constituinte a fim de formular novo texto constitucional para a República
Federativa do Brasil. Dotado de uma experimentação histórica em ciclos de autoritarismo e
democracia, o constituinte brasileiro, legitimado pelos anseios da população, procurou não

23
MARX, Karl. A revolução antes da revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 58.

97
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apenas fixar os direitos fundamentais dos cidadãos e as instituições básicas do país como
solucionar questões que estivessem fora de seu alcance.24
O conflito de proposições para a determinação dos dispositivos constitucionais
advinha da existência dos diversos interesses presentes na promulgação do texto
constitucional. O inevitável choque de aspirações dos mais variados grupos sociais,
representantes das maiorias e das minorias, revelou a significação plural contida na
participação livre e democrática que foi o processo legislativo de elaboração da Constituição.
Tratava-se de um instante único e essencial em que categorias sociais marginalizadas – como
os indígenas, os negros, as mulheres e os trabalhadores rurais e urbanos – passaram a ser
contempladas pela proteção dos dispositivos constitucionais.
Acontece, no entanto, que a tensão resultante da unificação de interesses tão
dissonantes poderia comprometer a própria ordem constitucional. No sentido de evitá-lo,
determinou o constituinte, no sexto título da Constituição Federal brasileira, sob a
denominação “Da defesa do Estado e das instituições democráticas”, o estabelecimento de
estado emergencial capaz de promover a continuidade e a normalidade do ordenamento
jurídico pátrio: o Estado de Sítio.
A dotação, ainda, de uma lógica unificadora registrou a necessidade do
estabelecimento de um capítulo ao texto constitucional que tratasse sobre a intervenção a ser
praticada entre entes federativos. Do artigo 34 ao 36 da Constituição Federal de 1988 restaram
disposições objetivas e completivas para a persecução de um estágio garantidor da
minimalista integridade estatal.
No intento de compreender a complexidade de tais institutos, passa-se à análise de
suas peculiaridades e de seus princípios sustentadores.

4.1 Da normalidade e da continuidade do núcleo do sistema político democrático

A constituição de um Estado Democrático de Direito exige como pressuposto


inevitável a normalidade do status social e da ordem jurídica. Trata-se do exercício imperioso
praticado pelo Estado em regular as diversas questões sociais e econômicas, mantendo o

24
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 13.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, p. 524:
“Havia um anseio de que ela [Assembléia Nacional Constituinte] não só fixasse os direitos dos cidadãos e as
instituições básicas do país como resolvesse muitos dos problemas fora de seu alcance. Os trabalhos da
Constituinte foram longos, tendo-se encerrado formalmente a 5 de outubro de 1988 quando foi promulgada a
nova Constituição. A inexistência de um projeto inicial que servisse de base às discussões contribuiu para
alongar os trabalhos. Embora dessem muitas vezes a impressão de ser caóticos, o fato é que foram debatidas,
além de coisas menores, questões centrais da organização do Estado e dos direitos dos cidadãos”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

devido funcionamento das instituições organizacionais estatais e resguardando a soberania


nacional e a aplicabilidade dos direitos fundamentais.
Após a conquista dessa “situação organizacional normal”, faz-se necessário a
continuidade do sistema político produzido. A linearidade e a não interferência na ordem
constitucional vigente permitem o desenvolvimento eficaz e pleno dos institutos democráticos
nacionais, o que resulta em inescusável avanço nos diversos campos sociais e econômicos do
Estado.
Vencidos os dois estágios iniciais de consolidação do organismo estatal, há por
resultado final e imprescindível a conquista do objetivo do Estado. Trata-se da pacificação
completa em seu território. Tal fato só em plenitude se realizaria diante do controle das
diversas variações sociais que em tamanha inconstância interfeririam no estabelecimento de
fins nacionais comuns. Como solução para tal questão fez-se presente a chamada reflexão
liberal sobre a existência de um estado excepcional a ser posto em exercício a cada vez que
necessário fosse impelir a existência de forças antagônicas ao desiderato constitucional
potencialmente liberal.25

4.2 Da justificação da situação excepcional e do princípio da auto-conservação

A adoção do estado excepcional se justifica diante de ameaça à unidade política do


Estado que é posta em fragilidade diante de uma situação conflituosa. Questões de ordem
interna ou externa acabam por interferir na compreendida continuidade do status
constitucional tão fundamental na vitaliciedade do organismo estatal. Na tentativa de
reestabelecer a anterior normalidade que se subleva a “excepcionalidade”.
O estado de exceção não deve ser entendido como um estado anárquico. Há naquele
a subsistência de uma ordem composta por vetores excepcionais constitucionalmente
compreendidos – diferentemente do segundo em que nenhum direito habita. Para fins de
melhor elucidação remete-se à didática de dois conjuntos que se interseccionam formando
uma região em comum. Há um conjunto que deve ser visualizado por “estado de
normalidade” e outro por “estado de conflito”. A intersecção é a representação do “estado
excepcional” em que se mesclam ambas as condições dos conjuntos interligados. Na exceção
há a substância do sentido vital de continuidade do Estado como característica essencial do
25
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição: poder constituinte, estado de exceção e os limites da teoria
constitucional. São Paulo: [s.n], 2005, p. 203: “Os fins do estado de sítio são restritivos: garantir o poder do
Estado, a liberdade constitucional e a sociedade liberal burguesa contra os radicalismos dos democratas,
comunistas e anarquistas. A reflexão liberal sobre o estado de exceção, geralmente, se refere aos atentados que
podem ser cometidos contra a ordem político-social existente não pelo executivo, mas sobretudo pelo
legislativo”.

99
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

fator transitório presente na excepcionalidade, visto que a total anulação retiraria o sentido
teleológico da própria formulação de uma exceção. Trata-se do reestabelecimento da ordem
constitucional anterior em vigência e não do desenvolvimento de uma ordem constitucional
diversa, pois à exceção não caberia o desiderato de constituição de uma nova aspiração social,
todavia o simples prosseguimento da ordem até então tida por legitimamente constituída.
O professor Gilberto Bercovici em sua obra Constituição e “Estado de Exceção
Permanente” afirma que na existência de um caso de exceção ao Estado caberia por suspender
o direito em virtude de um direito de auto-conservação.26 Tratar-se-á tal fato como
consequente desdobramento da justificação de atuação do Estado em face da constituição da
excepcionalidade. À autoridade responsável por resolver a questão incumbiria o dever
máximo de garantir a incolumidade da organização estatal, bem como de todos os alicerces
inerentes à existência da ordem constitucional.27
O parágrafo único do artigo 137 da Constituição Federal de 1988 destaca que caberá
ao Presidente da República, após solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o
estado de sítio, relatar os motivos determinantes de seu pedido em face das duas situações
possíveis de ocorrência do próprio estado excepcional – conforme incisos I e II do dispositivo.
Quis o legislador ampliar a capacidade justificativa do agente executivo em razão dos casos
taxados, dando-lhe certa discricionariedade de ação motivadora para que agisse conforme o
interesse nacional.
Interpretação diversa ocorre ao se analisar os artigos 34 e 35 do próprio texto
constitucional. Agora se trata de casos passíveis de intervenção taxativamente descritos pelo
legislador, motivados unicamente por sua desobediência pontual. O aspecto discricionário,
diferentemente do ocorrido no estado de sítio, é bem mais contido.

4.3 Dos agentes desagregadores responsáveis pela tomada da situação excepcional

São os agentes desagregadores a razão primeira pela existência do estado


excepcional, visto que o descompasso de interesse entre eles e o Estado acaba por criar uma
situação atípica, ou tipicamente prevista, que interfere na continuidade e na normalidade das
funções estatais.

26
BERCOVICI, Gilberto. Constituição e estado de exceção permanente: atualidades de Weimar. Rio de
Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 27.
27
Id., 2005, p. 209: “Para Bluntschli, a necessidade de conservação do Estado é o primeiro dever do governo.
Em nome dessa convervação, a ordem jurídica pode ser violada, para que não se sacrifique o todo à parte.
Qualquer outro direito perece diante do direito supremo da salvação do Estado.”

100
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

As transformações provocadas pela evolução do sistema capitalista trouxeram


profundas interferências e consequentes modificações na evolução da organização estatal de
diversos países da América Latina. Detentores de modos primários de produção, os Estados
latino-americanos não acompanharam o desenvolvimento industrial e tecnológico dos
denominados “países desenvolvidos”, restando-lhes infindáveis crises econômicas
desestruturalizantes. A recessão econômica interna facilitou a transposição de agentes
externos desagregadores e nocivos à própria soberania estatal, facilmente visualizado diante
do exemplo de controle da economia nacional por organismos internacionais como o Fundo
Monetário Internacional.
Ao se analisarem os dispositivos referentes à intervenção percebe-se a existência de
particulares agentes desagregadores internos. Tratam-se dos próprios entes federativos – com
exceção da União – que ao se avistarem em descompasso com as suas gerências e devidas
funções constitucionais, encontram-se passíveis de serem intervencionados por outro ente que
a Constituição lhe tenha garantido a interferência. É o caso da União que intervém no Estado-
membro ou no Distrito Federal que não der provimento à execução de lei federal. Há, ainda, a
existência de agentes desagregadores externos na intervenção – que é o caso da invasão
estrangeira que comprometa a soberania do Estado.
Os incisos I e II do artigo 137 da Constituição Federal de 1988 explicitam claramente
os agentes desagregadores responsáveis pela decretação de estado de sítio. A comoção grave
de repercussão nacional ou a ocorrência de fatos comprovativos da ineficácia de medida
tomada durante o estado de defesa refletem os agentes internos, enquanto que os agentes
externos são a declaração de estado de guerra ou a resposta à agressão armada estrangeira.

4.4 Das limitações impostas na ocorrência do estado excepcional

A restrição de garantias e direitos é condição peculiar na existência de um estado


excepcional. Trata-se de medida adotada pelo Estado como forma de minar os mais sensíveis
focos de incongruência com a normalidade e a continuidade da ordem constitucional, visto
que enfraquece a possibilidade de insurreições ante a atividade controladora estatal.
No estado de sítio a limitação ocorre em razão de dois fatores. O primeiro é
percebido diante da leitura da primeira parte do artigo 138 da Constituição Federal de 1988. O
texto constitucional prevê que as garantias constitucionais que ficarão suspensas serão
indicadas em face do decreto do estado de sítio proferido pelo Presidente da República. Já o
segundo fator surge como delimitador daqueles direitos que poderão ser passíveis de
limitação. Sua previsão é percebida no artigo 139 da Constituição brasileira e sua

101
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

compreensão é clara: apenas as medidas elencadas poderão ser realizadas. Trata-se, portanto,
da possibilidade de suspensão da liberdade de reunião ou da intervenção nas empresas de
serviços públicos em decretação de estado excepcional ou da intervenção.
É preciso compreender que a existência de um estado excepcional acaba por influir
no exercício de um direito marginal e distinto daquele vigente em situação normal. Tal
compreensão segue em plena consonância com o exercício dos próprios direitos e garantias.
Embora sejam considerados fundamentais e inerentes ao homem, na prevalência de um estado
de exceção cercear-se-ão conforme o interesse da normalização estatal – se o ordenamento
jurídico é modificado, modificam-se também as restrições às liberdades.28
Em relação ao disposto quanto à intervenção, percebe-se que não há limitação quanto
a direito fundamental ou a garantia. Tratam-se de restrições impostas a comandantes do Poder
Executivo afastados do exercício de seus cargos em razão das motivações constitucionalmente
dispostas. O parágrafo quarto do artigo 36 da Constituição Federal de 1988 ainda revela que
cessados os motivos da intervenção poderão as autoridades afastadas voltarem aos seus
cargos, salvo determinação legal impeditiva.

4.5 Da discricionariedade e da limitação do agente soberano

A situação de decretação de estado excepcional surge como forma de tentar realinhar


a organização estatal a fim de reestabelecer a normalidade e a continuidade da ordem
constitucional vigente. O legislador originário, consciente de uma evolução histórica em prol
da consolidação de um Estado brasileiro Democrático de Direito, dispôs no texto
constitucional um equilíbrio entre a determinação de poderes discricionários ao agente
executivo, bem como sua consequente limitação.
A capacidade discricionária é percebida na decretação do estado de sítio no disposto
do parágrafo único do artigo 137, em que caberá ao Presidente da República relatar os
motivos determinantes do pedido de decretação. A possibilidade de decretar estado de sítio
em face de ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa remete à questão da
preservação da ordem pública ou da paz social. Tratam-se, inevitavelmente, de aspectos
subjetivos ao entendimento humano, podendo refletir diretamente na compreensão pessoal do
agente executivo em sua abordagem. Ainda em caráter discricionário, há o disposto na
28
BERCOVICI, Gilberto. Soberania e constituição: poder constituinte, estado de exceção e os limites da teoria
constitucional. São Paulo: [s.n], 2005, p. 212: “No entanto, a violação e restrição das liberdades individuais não
se justifica por um direito subjetivo do Estado, mas pela necessidade e impossibilidade de aplicar as normas que
regulam a vida normal estatal. Portanto, as restrições são provenientes de um novo ordenamento advindo da
situação excepcional, que determina de modo diverso as fronteiras entre a atividade do Estado e a esfera
individual”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

segunda parte do artigo 138 da Constituição brasileira que possibilita ao Presidente da


República designar o executor das medidas específicas e quais serão as áreas abrangidas.
Passados os aspectos discricionários, avistam-se os limitadores. Embora a decretação
do estado de sítio ocorra por iniciativa de solicitação do Presidente da República, apenas o
Congresso Nacional, por maioria absoluta, poderá autorizar a sua decretação – conforme
disposto no caput e no parágrafo único do artigo 137 do texto constitucional. O estado de sítio
não poderá ser decretado por período superior a trinta dias, nem prorrogado, conforme haja a
existência de incidência de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que
comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa. Havendo a existência
de guerra ou de resposta armada estrangeira, o estado de sítio poderá ser decretado por todo o
tempo em que perdurá-las. É preciso também afirmar que o artigo 139 limita o poder de
atividade do agente executivo durante o exercício do estado de sítio, visto que apenas as
medidas mencionadas poderão ser restringidas.
A limitação da atividade do agente soberano na intervenção deve ser compreendida
diante da leitura do artigo 36 do texto constitucional. A decretação da intervenção dependerá
de solicitação do Poder Legislativo ou do Poder Executivo constrangido ou impedido – nos
casos do art. 34, IV – ou de requisição do Supremo Tribunal Federal quando a coação for
exercida contra o Poder Judiciário. A decretação ainda dependerá de requisição do Supremo
Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal Superior Eleitoral nos casos
de desobediência a ordem ou a decisão judiciária. Há também o caso de decretação de
intervenção diante de representação do Procurador-Geral da República e o seu devido
provimento pelo Supremo Tribunal Federal na ocorrência da hipótese do art. 34, VII, e no
caso de recusa à execução de lei federal. Deverá, por fim, o decreto de intervenção ser
submetido à apreciação do Congresso Nacional ou da Assembleia Legislativa do Estado no
prazo de 24 horas, conforme previsto no primeiro parágrafo do artigo 36 da Constituição
brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As evidências resultantes da abordagem filosófica e da própria compreensão de


natureza jurídico-política da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
demonstraram que o estado de exceção é um instituto de conceituação imprecisa que habita o
campo da política e do senso jurídico, reflexo da contraposição de interesses na manutenção
da ordem constitucional estabelecida.

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Sua caracterização reflete a existência, ou não, de uma situação juridicamente


desconhecida ao prenunciado pelo ordenamento jurídico de um Estado. Trata-se, portanto, da
evidente falta de experiência do poder constituinte em prever a anormalidade constitucional,
resultante do descompasso entre a garantia da soberania estatal e os fatores de propulsão
desencadeadores da excepcionalidade. Ao tratar desses fatores, podem, portanto, sê-los
agrupados em dois: internos – movidos dentro da própria estrutura estatal – ou externos –
reflexos da interferência provocada por um organismo estrangeiro ou por outro Estado
soberano.
Compreende-se, portanto, o estado de exceção em uma dúplice natureza, tanto
reacionária quanto revolucionária, modulado em razão dos interesses que o propulsionam. Sua
definição antitética comporta tanto a plena garantia da democracia como a sua não satisfação,
tendo em vista o exercício da própria excepcionalidade como fruto de um legítimo e autêntico
interesse contrário ao vigoro de uma ordem constitucional, compreendendo-a, antes de tudo,
como inconstitucional aos interesses do povo.
A experimentação histórica revelou diante dos ciclos de autoritarismo e democracia o
convívio da excepcionalidade no processo de formação histórica do próprio
constitucionalismo brasileiro. Dotado dessa vivência, coube ao constituinte brasileiro de 1987
a promulgação de uma Constituição que pudesse, embora de forma genérica, solucionar as
questões que estivesse fora do seu alcance normativo, de forma a evitar o enfraquecimento
das instituições públicas, a fragilidades dos Poderes Públicos e a limitação dos direitos e
garantias fundamentais dos indivíduos e da coletividade. O sexto título da Constituição
Federal de 1988 (“Da defesa do Estado e das instituições democráticas”) representa
justamente a tentativa do novo texto constitucional em promover a continuidade da
normalidade do ordenamento jurídico pátrio diante do surgimento do estado emergencial e à
borda da previsão constitucional.
Desta forma, nada mais razoável do que afirmar que o estado de exceção é, sim,
mecanismo legítimo de garantia da democracia, havendo, porém, a necessidade de sua
conformidade com o desiderato legítimo do povo, não atinente a interesses particulares e
totalitários. Sua instituição, no entanto, tornar-se-á prejudicial quando no exercício de forças
reacionárias, instituídas com o único objetivo de tornar menos democrático o gerenciamento
estatal com a justificativa de pacificação social.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília:


Editora da Universidade de Brasília, 2004, v.2.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

BREVES NOTAS POR UMA RESSIGNIFICAÇÃO DA TEORIA GERAL DO


ESTADO A PARTIR DOS DIREITOS HUMANOS E DO HUMANISMO JURÍDICO:
HERMENÊUTICA E RACIONALIDADE NO ESTADO HUMANISTA

BRIEF NOTES TOWARDS A STATE’S GENERAL THEORY RESSIGNIFICATION


FROM HUMAN RIGHTS AND LEGAL HUMANISM: HERMENEUTICS AND PUBLIC
RATIONALITY AT HUMANIST STATE

Gisela Maria Bester*


Eliseu Raphael Venturi**

RESUMO
Neste artigo objetiva-se refletir sobre a ressignificação da Teoria Geral do Estado, em especial
os aportes da Filosofia Política, a partir da prevalência dos direitos humanos, verificável na
teoria jurídica contemporânea, em especial na que defende o chamado modelo de Estado
Humanista. A consolidação destes direitos (acumulação de gerações de direitos civis,
políticos, econômicos, culturais, ambientais, da paz e da democracia) representa o
redimensionamento da compreensão sobre o conceito, estrutura, função e papel do ente estatal
no contexto da sociedade contemporânea. A partir disso, tem-se fundamento para práticas
políticas e jurídicas, indicando-se rumos de decisão, informando-se, assim, a natureza
deôntica do Estado e, principalmente, estabelecendo-se critérios de racionalidade
hermenêutica para implemento normativo prático. Neste rumo, o problema consiste em se
pensar as relações entre Direito e Estado para se identificar o sentido destes quando
informados pelas categorias de direitos que, conforme se sustenta dentre as hipóteses deste
artigo, representam a finalidade maior, quando assentados na vigente e indeclinável noção da
dignidade da pessoa humana como centro irradiador de sentido e demais posturas éticas
protetivas como modo de realidade jurídica.
PALAVRAS-CHAVE: Estado Humanista; humanismo jurídico; direitos humanos e
democracia; hermenêutica.

ABSTRACT
In this article the central objective is to reflect about the redefinitions senses on State’s
General Theory, in particular with the Political Philosophy contributions, from the prevalence
of human rights in contemporary legal theory, especially in defending the state model called

*
Professora de Direito Constitucional. Conselheira do Ministério da Justiça (2008-2012). Mestre e Doutora em
Direito Constitucional. Pós-Doutoranda em Direito Público. profagmb@hotmail.com
** Licenciado em artes visuais pela FAP/PR, especialista em direito público pela ESMAFE/PR e mestrando em
direitos humanos e democracia (inclusão social e cidadania) pela UFPR. Advogado em
Curitiba. eliseurventuri@gmail.com

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“Humanist State”. The consolidation of these rights (accumulation of civil, political,


economical, cultural, environmental, and for peace and democracy rights) represents the
resizing comprehension about the concept, structure, function and role of the state entity in
the context of contemporary society. From this, has a foundation for political and legal
practices, indicating whether courses of decision and informing the deontic State’s nature and
mainly settling criteria for hermeneutical rationality and practical normative implement. In
this way, the central problem consists in thinking relations between Law and State for identify
the meaning of these when informed by the subjective right’s categories that, as it is sustained
among the hypotheses of this article, represent higher juridical order, much more while seated
in force and unwavering sense of the dignity of the human person as the radiating center
sense, besides any other and other ethical protective stances as a mode of legal reality.
KEYWORDS: Humanist State; legal humanism; human rights and democracy; hermeneutics.

1. INTRODUÇÃO

A figura do ente estatal intrigou historicamente e segue intrigando o pensamento


político e jurídico à procura da construção de orientações, conformações e sentidos para as
vidas individuais e coletivas, buscando-se, assim, estabelecer marcos institucionais de
regulação da produção e reprodução da vida e da convivência humanas em sociedade.

A partir do complexo fenômeno cultural da existência de uma organização social


nominada “Estado” decorrem as mais variadas questões, a serem enfrentadas tanto pela Teoria
Geral do Estado quanto pela Filosofia Política, posto que, a partir de qual seja o modelo
estatal vigente, declinam-se as orientações dos mais variados setores da sociedade, assim
como o manejo dos valores políticos e jurídicos na interpretação e na intervenção da realidade
social.

Tendo por referência as peculiaridades temáticas de tais disciplinas, é inevitável


considerar o papel do Direito neste contexto, eis que ínsito à problemática tanto da Teoria do
Estado quanto da Filosofia Política, ao mesmo tempo em que distinto e próprio enquanto
campo de reflexão filosófica e científica.

Neste plano de ideias e diálogo de saberes, no presente artigo objetiva-se, mais do


que ser expositivo e conceitualmente exaustivo, transitar brevemente por algumas
possibilidades de ressignificação da Teoria Geral do Estado, tendo-se por mote tanto os
aportes da Filosofia Política e sua função essencialmente crítica, quanto a prevalência material
do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o qual confere substância moral ao debate.

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Considera-se e adota-se a teoria da existência de um Estado Humanista de Direito,


como forma expressiva do humanismo jurídico, modo de cosmovisão a que, igualmente, se
filia neste artigo. Nesta perspectiva, integram-se funcionalmente os problemas e aportes dos
campos indicados, tendo-se por finalidade última a concreção dos direitos humanos, uma vez
que todo estudo jurídico deve necessariamente considerar as incidências dos conteúdos desses
direitos fundamentais em suas discussões e em suas práticas.

Assim, o problema central desta proposta de verificação de ressignificação dos


conteúdos aludidos é o de se tracejar algumas das relações entre Estado e Direito,
identificando-se a informatividade das categorias de direitos subjetivos que, conforme se
sustenta dentre as hipóteses deste artigo, representam a teleologia jurídica, quando pensados
ante a noção da dignidade da pessoa humana e demais posturas ético-protetivas correlatas
como modo de realidade jurídica insculpido pelos direitos humanos, o que funcionaliza as
instituições democráticas e a iniciativa privada em torno de fins maiores do que seus
interesses estritamente considerados.

A hipótese central a ser discutida, portanto, é a de que o advento histórico do Estado


Humanista, qualificado assim por conta da prevalência dos direitos humanos e do humanismo
jurídico como cosmovisão construída em torno de sua vigência, repercute diretamente no orbe
conteudístico da Teoria Geral do Estado, cujo próprio objeto maior – o Estado – se
redimensionou.

Logo, também a integração crítica da Filosofia Política é indispensável para se


repensar o fenômeno do ente estatal diante da sociedade e suas demandas, especialmente no
manejo de diferentes linhas argumentativas em conflito, quando da escolha por um rumo, no
momento decisório. As implicações hermenêuticas disto são profundas, uma vez que a
racionalidade jurídica se coaduna com o modelo estatal vigente, implicando sensibilidade e
racionalidade dos intérpretes, o que exige compromisso e vinculação semântica e pragmática
dos agentes.

Para o desenvolvimento do problema que deu origem a este artigo emprega-se a


sistemática metodológica de raciocínio dialético e interdisciplinar, abordando-se aspectos das
disciplinas científicas e filosóficas envolvidas na construção da problemática, pensando-se nas
influências recíprocas, com aspectos dedutivos a partir de sentidos teóricos, razão pela qual
predominam o estudo bibliográfico e a análise teórica como técnicas de pesquisa empregadas.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Por fim, é relevante destacar também que o tema guarda ligação direta com a
temática do Grupo de Trabalho “Teoria do Estado e da Constituição”, ao qual se submete este
artigo para apreciação, especialmente pela análise interdisciplinar feita a partir dos Direitos
Constitucional e Internacional Público em sinergia com a Filosofia Política e a Teoria Geral
do Estado, ao tratar de peculiaridades desta última disciplina que merecem ser ressignificadas
face à assunção do Estado de Direito Humanista, em direta conexão com o dever
constitucional de proteção e de concretização dos direitos humanos fundamentais, exsurgindo
daí ser apropriada a sua análise e o seu aprofundamento neste artigo científico.

2. TEORIA GERAL DO ESTADO E FILOSOFIA POLÍTICA: PROBLEMÁTICAS


DO ESTADO E INFLUÊNCIAS NA CONSTITUIÇÃO DO HUMANISMO JURÍDICO

De um modo geral, no campo da Teoria Geral do Estado articulam-se as questões


essenciais para a investigação e o esclarecimento das formas e manifestações do ente estatal
ao longo do tempo e do espaço, depreendendo-se, assim, algumas características e modelos
comuns em diferentes sociedades historicamente pontuadas.

O foco próprio da disciplina pode ser apontado como o conceito de Estado, a


diferença deste com o de nação, os elementos constitutivos de território, povo e governo, as
variantes de soberania e autonomia, assim como as formas de Estado e as relações internas e
externas.

A disciplina abarca também a questão da divisão dos poderes e da forma de governo,


ao compasso das classificações clássicas de pensadores como Aristóteles e Maquiavel, com
especial atenção aos sistemas de governo e ao regime político democrático.

Para uma abordagem que se pretenda seja contemporizada com a supremacia dos
direitos humanos, contudo, alguns elementos precisam ser revistos, em seus sentidos e
significados atuais, pela disciplina, como modo de melhor contextualizar e pontuar seu objeto.

Assim, exemplificativamente, as dinâmicas da sociedade (teorias de sua origem,


finalidade, moral e convenções, organizações políticas) e o Estado propriamente pensado em
sua origem e formação, expressão histórica e tipologia (antigo, grego, romano, medieval,
moderno), mais conceitos plúrimos como os de soberania, território, povo, cidadania, bem

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comum, poderes político, jurídico e funções estatais, (DALLARI, 1998) assumem novas
feições, vetorizados pelos direitos humanos.

Ademais, ainda nas linhas da Teoria do Estado, também são pensados (DALLARI,
1998) os pontos de contato entre Estado e Direito (personalidade jurídica estatal, relações com
a política, sociedade, comunidade, nação), bem como mudanças do ente estatal por meio de
reforma e revolução. Igualmente, a disciplina abarca os vínculos do Estado com o governo,
em especial enfocando o regime democrático (aspiração e ideal moderno, princípios, formas
direta, semidireta, representativa e participativa), além de questões fundamentais como o
referendo, o plebiscito, a iniciativa e o veto populares, o recall.

Outrossim, integram ainda a disciplina os partidos políticos e sistemas de


representação, assim como o sufrágio, as normas de direitos humanos – marcando a
interrelação destes direitos, mas de modo isolado – a separação de poderes, as formas de
governo (monarquia, república, parlamentarismo, presidencialismo) e de regime político,
assim como a questão do Estado federal. Por fim, problemas do Estado contemporâneo são
levantados (DALLARI, 1998), tais como as relações internacionais, a intervenção estatal na
sociedade e os modos de produção econômica (modelos não intervencionistas, liberais,
neoliberais, estados socialista e capitalista, democracias populares, socialismo asiático,
questões sobre igualdade).

Desta sorte, os exemplos de enfoques da Teoria Geral do Estado apontam para a


definição conceitual do ente, acompanhado do exame de elementos constitutivos, em um
trabalho precipuamente científico de classificação e definição, em um exame explicativo e
demonstrativo.

Tal enfoque é temperado pelas dimensões críticas da Filosofia Política, de modo que
as características próprias do conhecimento científico naquele orbe de conteúdo são
equalizadas pela dinâmica do pensamento filosófico, apto a abordar as mudanças e
necessidades de adequação das demandas da realidade social.

A Filosofia Política dialoga com o campo da Teoria Geral do Estado, contudo, suas
pretensões são mais discursivas e menos classificatórias. Assim, ocupa-se das relações
humanas coletivas, social e politicamente organizadas para a produção dos modos de
existências, sobretudo por meio do aporte crítico dos sistemas vigentes, inserindo-lhes em
questionamentos éticos, estéticos, políticos, jurídicos, enfim, filosóficos.

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O manejo dos valores políticos vigentes, portanto, encontra elo na conjugação dos
enfoques de ambas disciplinas, de modo a auxiliar na composição de uma axiologia política e
jurídica, a partir dos indicativos vigentes pelas categorias de direitos.

A expressão tradicional dos problemas da Filosofia Política encontra suas bases


desde Platão e Aristóteles, assim como em Cícero e Maquiavel, apenas para citar os nomes
mais recorrentes na disciplina, passando-se pelo labor dos mais diversos filósofos modernos e
contemporâneos, como Hobbes, Locke, Rousseau, Montesquieu, Comte, Gramsci, Marx,
Weber, Constant, Mill, Berlin, Arendt, Bobbio, Kant, Hegel, Mill, Rawls, Habermas, Sandel,
Rorty, entre outros. Tais pensadores, ao problematizarem as questões do bem comum, da
igualdade e da liberdade, assim como as finalidades e expectativas democráticas e
republicanas, formaram um corpo de pensamento filosófico apreendido pelas formas
jurídicas.

Tal como destaca Mogado (2010, p. 469), a Filosofia Política, em seu aporte
histórico, demonstra o sentido da possibilidade de problemas e soluções políticos, sendo que,
na contemporaneidade, se assiste ao monopólio da forma democrática, no ocidente, a partir do
que a pergunta do filósofo se daria acerca das conformações racionais deste modelo.

O filósofo político, assim, sem uma sujeição obrigatória ao regime em que vive, mas
vinculado a ele por sua própria existência temporal, articularia argumentos em conflito na
batalha política, clarificando a natureza das respostas, demonstrando viabilidades de escolhas
dentre várias possibilidades.

O surgimento histórico do Estado Neutro, segundo Morgado, no cerne da filosofia


política moderna, retiraria as preocupações teológicas de fundamentação da ordem pública,
para se instituir uma concepção do Estado com novas bases: “sendo filosofia política, isto é,
filosofia do homem e das coisas humanas, obrigou-se [a filosofia política] a uma igualmente
tremenda abstração: o cidadão tinha de prescindir de ser homem, um ser com ideias,
convicções, concepções do bem, religião, e por aí em diante” (Idem, ibidem, p. 478).

Esta mudança de eixo ideológico proporcionou a inserção do humanismo como base


de busca dos fundamentos do Estado na modernidade e contemporaneidade, posto que a
problemática do humano e das coisas humanas passou a ser enfocada. Deste modo, os direitos
subjetivos gravitam em torno da noção de que o ser humano ocupa um lugar privilegiado no

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

universo e que sua continuidade demanda uma série de condições pessoais e ambientais
atendidas.

Tanto assim que, ainda conforme Morgado (Id., ib., p. 487), a tônica dos direitos
humanos revela o substrato moral da democracia, definindo o seu conteúdo enquanto
regime político, daí se falar em igualdade democrática, em liberdade democrática, e demais
valores políticos qualificados de “democráticos”, ainda que implicitamente, no manejo do
conteúdo dos diplomas de direitos humanos.

Por estes mesmos motivos, o trabalho do filósofo político seria marcado pela
respeitabilidade e pela responsabilidade, na medida em que, sem se sujeitar, lhe incumbe
identificar as regras do regime político, com reconhecimento do valor da democracia e
consideração pelos sentidos e significados do bem individual e coletivo.

Desta maneira, os trabalhos de Teoria Geral do Estado, ao identificarem expressões


estatais, ao compasso do trabalho de Filosofia Política, que agrega a dimensão valorativa e
crítica, necessitam ser projetados em suas expressões jurídicas, próprias dos direitos humanos
e do humanismo que embasa a própria existência estatal na contemporaneidade.

Esta fundamentação de ideias dos Estados pode ser vista no estudo de Bester (2005,
p. 10-26), para quem o histórico e a evolução conceitual de Estado e de constitucionalismo
são imprescindíveis para a compreensão do Direito Constitucional, uma vez que Estado e
Constituição apresentam-se como expressões históricas concorrentes, a despeito da
modernidade da terminologia.

Para a autora, a vocação ideológica do Estado não pode ser cindida da Constituição,
ao mesmo tempo em que os conceitos de Estado, de Estado de Direito e de Estado
Constitucional e Democrático de Direito devem ser adequadamente distinguidos para se
entender o Estado em suas feições e dimensões atuais.

Se o Estado em sua acepção moderna, conforme Weber, na leitura de Bester (2005,


p. 10), seria o detentor da força legítima para manutenção da ordem vigente, o Estado de
Direito seria resultado das revoluções modernas (caracterizando-se pelo império da lei, pela
divisão de poderes, pela legalidade administrativa, e pelos direitos e liberdades fundamentais),
enquanto o Estado Constitucional de Direito é o Estado limitado pelo Direito, “cujo poder se
baseia no respeito a uma Constituição, que o autolimita” (Id., ib., p. 13), expresso na forma
típica do Estado liberal clássico.

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No entanto, a questão nevrálgica do Estado, “apenas”, Constitucional de Direito,


seria o problema de se admitirem ditaduras em sua forma, de sorte que o Estado
Constitucional e Democrático de Direito emergiria como forma qualificada, cuja legitimidade
advém da soberania popular.

Segundo a autora (BESTER, 2005, p. 14), pensar a formação e o desenvolvimento do


Estado, em suas fases históricas, ou seja, em expressões distintas ao longo do tempo, implica
analisar mudanças que não necessariamente revelem evolução, mas sim modos de se entender
o fenômeno que modernamente se nominou Estado.

Neste sentido, em apertada síntese, o Estado na antiguidade clássica seria um Estado


escravista, com exercício direto da democracia por pequenas populações locais. Na Europa
Medieval ter-se-ia o fragmentário Estado feudal, marcado pela poliarquia e pelo Estado
estamental, além do crescimento das cidades e das relações comerciais, revelando, ao longo
do caminho, as bases para a formação do poder estatal monista. O Estado absolutista marcaria
a Idade Moderna, de modo que o poder centralizado nas mãos do monarca extinguira a
fragmentariedade do Estado medieval, sendo que ante as abusividades absolutistas nasceriam
os pleitos de liberdade e de limitação do poder estatal (BESTER, 2005, p. 18).

No início da idade contemporânea, seguindo o histórico de Bester (2005, p. 20),


surgiria o Estado liberal clássico (guardião das liberdades e não-intervencionista), com a
máxima de fundamentação do Estado na teoria da Soberania Popular, merecendo destaque a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. O Estado do Bem-Estar Social
marcaria o início do século XX, cujos préstimos foram a limitação das explorações humanas
cometidas pelo liberalismo ilimitado, de sorte a formar um Estado prestacionista, providente e
intervencionista, obrigado a sistemas de previdência, seguro social, habitação, educação,
saúde, enfim, comprometido com o núcleo dos direitos sociais atuais.

Por fim, ainda conforme sua síntese (BESTER, 2005, p. 24-26), o Estado atual seria
do tipo neoliberal, marcado pela forma de Estado Gerencial, configurando um Estado mínimo
que admite privatizações, desregulamentações, flexibilizações, gerando novos déficits
humanos no cenário globalizado, o que, nos termos da autora, em regra representam um
Estado do Mal-Estar para trabalhadores e hipossuficientes que ficam expostos à voracidade
do mercado.

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Estas compreensões e ponderações (Id., ib., p. 26) são relevantes para o escopo deste
artigo, que trata do humanismo e se preocupa, portanto, com as condições de manutenção e
reprodução da vida humana, que dependem de fortes institutos jurídicos efetivos; por isso,
detém-se na passagem final de sua análise do Estado contemporâneo:

Se esta guinada de um Estado de tipo social a um Estado de perfil neoliberal é


criticada até nos países que já viveram um autentico Estado Social, muito mais o é
em um país em que o Estado Social é tardio, como no caso brasileiro atual. Pela
Constituição Federal vigente há uma conformação do Estado de tipo social, isto
pelos princípios que majoritariamente veicula (bem-estar, justiça social, solidarismo,
dignidade da pessoa humana, igualdade, função social da propriedade etc.), em que
pese também adotar princípios de livre mercado. Ocorre que já desde 1989, no ano
seguinte à entrada em vigor do texto constitucional de 1988, iniciou-se por parte dos
governantes uma ofensiva neoliberal contra essa concepção de Estado. Isto é a prova
de que no Brasil se comete aquele erro classificado por Hermann Heller como um
dos mais graves do pensamento político, que consiste em confundir governo com
Estado, operando-se pois a confusão do ‘núcleo de poder que realiza positivamente
o poder estatal com o próprio Estado’. Para o autor, ‘do fato, certamente exato, de
que o Estado se apoia neste núcleo de poder extrai-se a falsa consequência de que
este núcleo de poder ‘é’ o Estado. Este sofisma está na base de todas as
inadmissíveis concepções que confundem o Estado com o seu governo, e ao poder
do Estado com o poder do governo’. (BESTER, 2005, p. 26).

Conforme a pensadora pontua em seu estudo, aos variados “perfis” de Estado


correspondem expressões constitucionais que refletem a ideologia do tempo em que são
construídas. Assim, para o modelo do Estado contemporâneo acima debatido, tem-se o seu
posicionamento acerca da Constituição:

Diante disso tudo [deletérios efeitos humanos do neoliberalismo global], para a


manutenção da força normativa da Constituição há que se defender o que nela está
positivado, notadamente em termos de direitos fundamentais e do perfil de Estado
de tipo social que foi configurado pelo poder constituinte originário ao Estado
brasileiro. (BESTER, 2005, p. 56).

Veja-se, pois, que a compreensão exaltada pela autora é do tipo humanista, no


momento em que expressa a preocupação com o ser humano em suas condições de existência
e modo de realidade. Este tipo de apreensão revela uma avaliação do sistema e ordenamento
jurídico, vendo-lhe funções e significados que transcendem a pura normatividade.

Para este ponto de vista, alguns autores valem-se da terminologia “Estado


Humanista”, como modo de compreender as relações entre Estado, Direito e Justiça, em
especial por uma organização própria de sistema de fontes.

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Assim, tem-se tanto uma cosmovisão, conforme o exemplo da construção teorética


de Bester, como um sistema de organização de representações estatais, sendo este segundo
modelo a ser explorado no tópico seguinte.

3. O ESTADO HUMANISTA E A HERMENÊUTICA JURÍDICA: RACIONALIDADE


PRÓPRIA E VISÃO DE MUNDO

Conforme Gomes e Mazzuoli (2010, p. 195) o Estado Constitucional e Humanista de


Direito representa uma síntese histórica do último modelo estatal evolutivo havido no mundo
ocidental. Para os autores, a conjunção de fontes do direito neste modelo é a característica
própria de sua coordenação, critério mesmo que serve para se verificar diferentes ondas
evolutivas.

No Estado Constitucional e Humanista de Direito são fontes normativas em


recíproco diálogo as leis (JAYME, 1995), os códigos, a Constituição, a jurisprudência interna,
os tratados internacionais (em especial os que versem sobre direitos humanos), a
jurisprudência internacional e o direito universal com valor supraconstitucional.

Respectivas fontes teriam se consagrado em diferentes momentos históricos,


marcando os trânsitos entre Absolutismo, Legalismo, Constitucionalismo (e
Neoconstitucionalismo), Internacionalismo e Universalismo, os quais marcam “[...] a
evolução do direito rumo à concretização de normas e princípios cada vez mais
humanizantes” (GOMES; MAZZUOLI, 2005, p. 21, grifo no original).

Assim, na primeira onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça, no modelo


revolucionário liberal, ter-se-ia o Estado Legalista, seguido, na segunda onda, pelo Estado
Constitucional de Direito, em que houve predomínio da Constituição e jurisprudência interna.
A terceira onda seria do Estado Constitucional e Internacional de Direito, momento em que os
tratados e a jurisprudência internacional assumem relevância.

Por fim, ainda para os mesmos autores (GOMES; MAZZUOLI, 2005, p. 197), a
síntese mais recente seria a do direito universal, expressa na forma do Estado
Constitucional e Humanista de Direito, que se apresenta como macrogarantia da proteção
dos direitos humanos ante o exercício arbitrário e ilegítimo do poder político estatal.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Estado, Direito e Justiça, assim, são estruturados em torno da regulamentação


jurídica, buscando-se equacionar interesses e direitos individuais e coletivos.

Sendo assim, é vocação do Estado Constitucional e Humanista de Direito a proteção


ampla e irrestrita dos seres humanos tutelados pelo ordenamento jurídico, que passa a ser
considerado como uma totalidade de conhecimento orientada para a proteção de direitos e
valores consolidados e que se pretende efetivar e maximizar, transmutando-se os preceitos
jurídicos em implemento prático.

Além disso, na sistemática do Estado Humanista, a democracia substancial (tutela


efetiva dos direitos fundamentais) se sobrepõe à democracia meramente formal (expressão da
vontade da maioria), de sorte que os desvios dos direitos ou sua supressão não são tolerados
nem mesmo que assim seja a vontade do maior contingente de pessoas.

Assim, o Estado Humanista significa, ancorado nas figuras do Estado, do Direito e


da Justiça integrados, instrumento limitado, vinculado e orientado à garantia de direitos
humanos, de sorte que todos os atos jurídicos de uma sociedade devem seguir tal
funcionalização. O argumento derradeiro de Gomes e Mazzuoli é o seguinte:

Dos horrores e atrocidades cometidos no período sombrio do holocausto, lições


universais puderam ser tomadas por toda a sociedade internacional, espraiando-se
reflexos no direito interno dos Estados, que passaram cada vez mais consagrar
normas protetivas de direitos humanos. Essas normas vão ganhando corpo cada vez
mais denso (em valores, axiologicamente) e concentrado, até chegarem à
característica de jus cogens, que são normas imperativas de direito internacional
geral, aceitas e reconhecidas pela sociedade dos Estados com um todo, das quais
nenhuma derrogação é permitida e que só podem ser modificadas por norma ulterior
da mesma natureza (arts. 53 e 54 da Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados de 1969). ( 2010, p. 199).

Outros pensadores, na linha de Gomes, Mazzuoli, Bester, acima expostos, também


têm refletido em caminho similar, integrando instâncias hermenêuticas e buscando
fundamentos vários, sempre humanistas, para o fenômeno estatal. A função legitimatória e
embasadora do humanismo pode ser visualizada, por exemplo, no argumento seguinte:

É dever indeclinável do Estado humanista buscar em primeiro lugar a sua


legimitação como instância que promove o bem-estar da coletividade. E isto, na
acepção hegeliana, consiste em seguir o que hoje se pode denominar lei de
responsabilidade ética em contraponto à falácia da lei de responsabilidade fiscal. A
primeira, sendo eminentemente ética, consiste na viabilização de políticas de
desenvolvimento e de justiça social; a segunda, meramente contábil, limita a

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

capacidade de intervenção do governo, à sombra da ideologia liberal do chamado


‘Estado mínimo’, e, consequentemente, da ação pública que se fizer indispensável.
(BOMBASSARO; KRÜGGELER; SOUZA, 2009, p. 221). [grifou-se].

Na linha dos modelos histórico-evolutivos indicados nos pontos precedentes


(DALLARI, 1998; BESTER, 2005), o humanismo cívico, enquanto movimento de modo de
ver e avaliar o mundo, é rememorado como importante elemento informativo da ordem
jurídico-estatal, antecedendo-lhe e, assim, indicando os pontos de partida a serem integrados
na concretude do real.

O movimento humanista se caracteriza pela sua defesa intransigente da dignidade da


pessoa humana. É um movimento que concentra todas as suas energias e forças para
o homem e em favor do homem. Tem como princípios básicos a exaltação dos
valores éticos e morais que atendam ao direito do livre pensar e do livre agir. O
movimento humanista no seu processo histórico de desenvolvimento buscou sempre
destacar a importância do homem como sujeito de sua própria história e,
fundamentalmente, que todas as formas de organização política, jurídica e
econômica provêm da vontade do próprio homem. Assim, o poder temporal deveria
ficar vinculado à vontade única e exclusiva do próprio homem, enquanto que o
poder espiritual deveria preocupar-se com a fé dos homens. A vinculação, portanto,
de um discurso de legitimação do poder temporal através do poder espiritual não era
aceita pelo movimento humanista. (MEZZAROBA, 2004, p. 122).

Os reconhecimentos da origem e finalidades do Estado revelam o humanismo como


pressuposto e consequente, donde se pode depreender a sua função interpretativa por meio da
conferência de significação às práticas jurídicas e como fundamento de discussão e avaliação
dos rumos políticos.

Conforme Britto (2007) destaca ao longo de sua argumentação pela compreensão do


humanismo como categoria constitucional, o ponto de vista para se visualizar o humanismo
jurídico depende da apreensão global e hermenêutica dos valores jurídicos vigentes, a serem
manejados por meio de uma postura comprometida e vinculada com a realização destes
valores.

O trabalho do filósofo político aproxima-se, assim, do trabalho do intérprete jurídico,


reunindo-se as dimensões cindidas na divisão social do trabalho e reincorporando a dimensão
de concreção dos valores jurídicos. Veja-se esta cosmovisão humanista antecedente às
ideologias, ao compasso da submissão do Estado ao humanismo.

Pero sobre esa base común del reconocimiento del fin del Estado y del orden
jurídico caben, y se han producido, floraciones humanistas muy diferentes, las cuales
divergen en cuanto a la apreciación de cuales sean los medios más adecuados y

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

eficaces para el cumplimiento de tal finalidad. Y, así, coincidentes en el


reconocimiento de ese fin supremo – el servicio a los seres humanos vivientes – pero
divergentes en cuanto a la elección de los medios, figuran de modo igual dentro de
una visión humanista, entre otros, los siguientes ideários: el individualismo liberal
– en parte considerable juzgado ya como caduco –; la tesis democrática; el
intervencionismo; el neoliberalismo; y el socialismo como ideal ético-jurídico de
índole humanista (es decir, no inspirado por la mecánica y periclitada tesis del
materialismo histórico, ni incurso en la monstruosa aberración totalitaria); y muchos
otros matices intermedios. Son patentes las grandes diferencias entre esos criterios
de estimativa o axiología político-jurídica; pero se trata de diferencias relativas tan
solo a lo que se considera como medios más adecuados y eficientes para la
realización del ideal humanista. Por debajo de esas importantes diferencias, hay, sin
embargo, la concordancia en el reconocimiento de la tesis primordial del
humanismo, a saber: el hombre no ha nacido para el Estado, sino que el Estado
ha sido hecho para servir a los seres humanos. (RECASÉNS SICHES, 2003, p.
324-325). [grifou-se].

O mesmo entendimento é adotado no cerne de disciplinas jurídicas específicas,


donde se retira seus fundamentos, como na referência do Direito Administrativo citada
abaixo, reforçando, mais uma vez, o valor ético anterior ao jurídico, criando a ambiência
política de desenvolvimento da vida coletiva na comunidade organizada.

Este princípio capital, que afirma no Direito contemporâneo o postulado da


supremacia do homem sobre suas próprias criações, tem sua trajetória histórica
traçada desde Protágoras, definindo-o como medida de todas as coisas; sua primeira
grande elaboração teórica com o Direito Natural, em suas sucessivas expressões
doutrinárias; sua redescoberta pelo humanismo, com sua rica elaboração moderna e
a sua atual revalorização pós-moderna, como um princípio supraconstitucional,
justamente considerado com o um fundamento da própria civilização. Seu
recebimento explícito, primeiro, nas declarações de direitos do homem e, depois,
nas declarações de direitos fundamentais constitucionalizadas, atesta essa capital
importância, como, de modo especial, a sua destacada inclusão nos documentos
constitutivos da União Europeia, acompanhado da afirmação solene da
inviolabilidade da pessoa humana, o que assinala não apenas sua importância como
megaprincípio do Direito, como o seu conteúdo de precedência lógica e ética sobre
o Estado e seus desdobramentos políticos. Conclusões essas que igualmente
resultam de sua destacada explicitação no art. 1º, III, da Constituição brasileira de
1988 (MOREIRA NETO, 2009, p. 85).

O Direito Constitucional, conforme analisado no estudo de Bester (2005) no ponto


precedente, é espaço privilegiado dessa discussão, tanto pelo caráter intermediário que
assume, entre o direito interno e o internacional, quanto pela fortuna axiológica que
representa. Segundo Paulo Bonavides:

As bases morais do humanismo constitucional da Carta de 1988 acham-se cifradas


num princípio pendular, que é a chave da abóbada dessa catedral do
constitucionalismo brasileiro: o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse
princípio está para o constitucionalismo do Estado Social, nesta fase do pós-

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positivismo, assim como o princípio da separação de poderes esteve para o


constitucionalismo do Estado liberal na época clássica do positivismo
legalista. Princípio novo nos anais do constitucionalismo, perpassa ele a carta
contemporânea dos direitos fundamentais com o dogma consagrador da alforria
moral do ser humano, em idade de incertezas geradas pelas convulsões da
globalização (BONAVIDES, 2006).

Deste modo, a ressignificação da Teoria Geral do Estado, como corolário e


decorrência imediata da mudança do seu próprio objeto, o “Estado”, se mostra patente a partir
da referida fortuna axiológica e de cosmovisão concedida pelo Direito Internacional dos
Direitos Humanos, cujos preceitos especialmente teleológicos e abertos demandam a
densificação hermenêutica no trabalho interpretativo, atividade de condensação e visualização
dos fundamentos morais da democracia que demanda a postura consciente do intérprete,
aproximando-se do filósofo político.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Teoria Geral do Estado, pensada em conjunto à Filosofia Política, sofre cabais


mudanças quando verificada a partir da prevalência dos direitos humanos, corpo de
conhecimento inarredável da teoria jurídica contemporânea, consagrada no atual modelo de
Estado Humanista, o qual, por sua vez, consolida o humanismo jurídico como cosmovisão
própria do Direito sobre a vida coletiva.

A hipótese proposta neste artigo considera que os direitos humanos não se encerram
em uma das partes do estudo de Teoria do Estado, justamente porque o objeto, o Estado, não
se restringe ao elemento funcional-estruturante.

Assim, a consequência lógica da hipótese é a de que a mudança do objeto leva à


mudança dos métodos e problemas científicos e filosóficos estatuídos em seu entorno, e esta
estrutura de pensamento é determinante na compreensão jurídica dos fenômenos sociais,
posto ser o Estado a base do Direito positivo vigente, o qual se deve aplicar por meio das
instituições democráticas.

Portanto, resta inevitável concluir que o potencial hermenêutico dos direitos


humanos ressignifica a tal ponto a estrutura estatal que se pode falar de um
redimensionamento do Estado e da Teoria Geral respectiva, na medida em que todos os

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elementos constitutivos são orientados teleologicamente no rumo da ética do cuidado e da


proteção humana e ambiental estatuída pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos.

A atividade hermenêutica da Filosofia Política é central para a compreensão do ente


estatal, seja pela via dos elementos estruturais fornecidos pela Teoria Geral do Direito, seja
pelo momento crítico filosófico em que se questionam os sentidos e efetividades dos valores
da comunidade política.

Em suma: se a Teoria Geral do Estado fornece as bases científicas do fenômeno


estatal (o qual se vê obrigado de redimensionamento por força das mudanças do ente estatal),
a Filosofia Política permite a crítica, tendo em vistas a moralidade trazida pelos direitos
humanos, das práticas realizadas na comunidade política, definindo-se prioridades e
escolhendo entre as possibilidades de alocação de recursos materiais e jurídicos. Este trânsito
de saberes equipa o procedimento hermenêutico com substância.

Por sua vez, a acumulação de gerações de direitos civis, políticos, econômicos,


culturais, ambientais, da paz e da democracia nas Constituições ocidentais redimensionou não
apenas o Estado como a sociedade civil contemporâneos, vinculando em um projeto comum
as esferas pública e privada, todos preocupados, por força do direito, com a consecução dos
objetivos e fundamentos constitucionais.

Esta cosmovisão humanista torna o Estado um aparato destinado à efetividade e à


concreção dos direitos de idêntico perfil, sendo pensada a sua estrutura vetorizada ante tal
finalidade. Com isso, as ações no corpo institucional se direcionam e classificam-se pela
medida do compromisso com estes direitos, definindo as orientações dos seus agentes. Assim,
a apontada ressignificação dos conteúdos da Teoria Geral do Estado contribui para que a
racionalidade hermenêutica direcionada ao implemento prático do normativismo humanístico
revista-se de significados jurídicos mais densos, que demandam o labor interpretativo
casuístico e comprometido com as posturas éticas e protetivas de todas as pessoas em
sociedade.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

A LIBERTAÇÃO COMO OBJETIVO CENTRAL DO NOVO


CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: OS CAMIMNHOS PARA UM
CONSTITUCIONALISMO DA LIBERTAÇÃO

LA LIBERACIÓN COMO OBJETIVO CENTRAL DEL NUEVO


CONSTITUCIONALISMO LATINOAMERICANO: LOS CAMINOS HACIA UN
CONSTITUCIONALISMO DE LA LIBERACIÓN

Adriano Corrêa de Sousa1

RESUMO
O novo constitucionalismo latino-americano, capitaneado pelas constituições da Venezuela
(1999), Equador (2008) e Bolívia (2009), erige no subcontinente com um conjunto normativo
de densidade democrática e pluralista e até então não experimentados no âmbito do
constitucionalismo regional. Em uma de suas dimensões de pluralidade resultou na
incorporação no texto constitucional das cosmovisões dos povos indígenas originários,
traduzido por bem viver, especificamente dos quíchuas na Constituição do Equador, de 2008,
e dos aimarás na Constituição da Bolívia, de 2009.
Isso não representa, contudo, uma negação à identidade de matriz europeia ocidental, que
tradicionalmente se apresentou no constitucionalismo latino-americano, mas tampouco
significa sua continuidade. Porém, um ponto central é o olhar dispensado ao oprimido, que está
nessa condição por ser pobre, ameríndio, negro, mulher, ou seja, por ser o “outro”.
Desse modo, o presente estudo tem como objetivo demonstrar a importância o processo de
reflexão iniciado com as teorias da libertação que surgiram no início da década de 1970 sob a
influência da teoria da dependência, desenvolvida por Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank,
Teotônio dos Santos, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Falletto e outros.
Defendo a tese de que o objetivo central do novo constitucionalismo latino-americano é a
libertação do oprimido e, com isso, a filosofia da libertação, desenvolvida por Enrique Dussel,
figura como importante marco teórico que sustenta a proposta de refundação do Estado.
PALAVRAS-CHAVE: Constitucionalismo; filosofia da libertação; América Latina;
dependência.

RESUMEN
El nuevo constitucionalismo latinoamericano, capitaneado por las constituciones de Venezuela
(1999), Ecuador (2008) y Bolivia (2009), se erige el subcontinente con un conjunto de densidad
normativa democrática y pluralista, hasta ahora no probado en el constitucionalismo regional.
Una de sus dimensiones de pluralidad dio lugar a la incorporación en la Constitución de la
cosmovisión de los pueblos indígenas originarios, traducidos por el vivir bien, en concreto del
quichua en la Constitución ecuatoriana de 2008 y de los aymaras en la Constitución Política de
Bolivia, 2009.

1 Mestre em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da


Universidade Federal Fluminense. Professor Substituto de Direito Constitucional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Advogado. E-mail: adrianosousa@id.uff.br.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Esto no es, sin embargo, una negación de la identidad de matriz de Europa occidental, que
tradicionalmente aparecían en el constitucionalismo latinoamericano, pero tampoco significa
su continuidad. Pero, el punto central es el aspecto relevado a los oprimidos, que se encuentra
en esta condición por ser pobres, indígenas, negros, mujeres, es decir, por ser el "otro".
Por lo tanto, este estudio pretende demostrar la importancia del proceso de reflexión iniciado
con el lanzamiento de las teorías que surgieron en la década de 1970 bajo la influencia de la
teoría de la dependencia, desarrollado por Ruy Mauro Marini, André Gunder Frank, el Teotônio
Santos, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Falletto y otros.
Yo sostengo que el objetivo central del nuevo constitucionalismo latinoamericano es la
liberación del oprimido y, por tanto, la filosofía de la liberación desarrollada por Enrique Dussel
figura como importante marco teórico que apoya la propuesta de reformar el Estado.
PALABRAS CLAVE: Constitucionalismo; filosofía de la liberación; América Latina;
dependencia.

1. Introdução

Na passagem do século XX para o século XXI, o cenário político latino-americano


assistiu a ascensão de um modelo constitucional que pretende ser, pela profundidade e alcance
das suas mudanças, transformador da realidade social e criador de uma nova matriz de
pensamento. Isso ocorre em um ambiente aparentemente estagnado com o fim da Segunda
Guerra Mundial e a promulgação da Constituição da República Italiana, de 1947, da Lei
Fundamental de Bonn, de 1949, bem como o fim da Guerra Fria e a ascensão hegemônica do
liberalismo político como principal legitimador do Estado.
Contudo, essa constatação é tão-somente aparente, tendo em vista que ainda predomina
nas pesquisas da área de Direito algumas tendências prejudiciais para uma adequada
compreensão dos fenômenos políticos e sociais locais e regionais. Dentre elas, podemos apontar
a incorporação majoritária do conhecimento produzido nos países centrais (Estados Unidos e
Europa) e, concomitantamente, a desconsideração do pensamento inovador produzido na
Améria Latina. Nesse sentido, a construção de uma teoria do constitucionalismo é
monopolizada por um caminho de mão única, conforme pretendemos demonstrar adiante.
O novo constitucionalismo latino-americano, capitaneado pelas constituições da
Venezuela (1999), Equador (2008) e Bolívia (2009)2, desenvolve no subcontinente com um

2 Sobre as transformações operadas na seara do Direito Constitucional, a doutrina apresenta o


neoconstitucionalismo como o conjunto difuso de críticas que demonstram a insuficiência do
constitucionalismo moderno e, com isso, a necessidade de trazer novamente a discussão ética ao
Direito com a normatividade dos princípios, mediante o uso da nova interpretação constitucional, da
ponderação de interesses, da força normativa da constituição etc., muito difundida por meio de
coletâneas organizadas por Miguel Carbonell. Veremos adiante que, sem negar os avanços do
neoconstitucionalismo, o novo constitucionalismo latino-americano opera transformações mais

126
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

conjunto normativo de densidade democrática e pluralista até então não experimentados no


âmbito do constitucionalismo regional. Uma de suas dimensões de pluralidade resultou na
incorporação no texto constitucional das cosmovisões dos povos indígenas originários,
traduzido por bem viver, especificamente dos quíchuas na Constituição do Equador, de 2008,
e dos aimarás na Constituição da Bolívia, de 2009.
Sua ascensão ocorre após momento de ruptura política, operada pelo processo de
redemocratização realizado ao longo da década de 1980 na América Latina e emergiu da base
da sociedade por meio de diversos movimentos sociais iniciados a partir do século XX, sendo
que até o presente momento ainda não se encontram definitivamente consolidados. Estamos
tratando, assim, de um "constitucionalismo em configuração" (PASTOR e DALMAU, 2010).
Desse modo, o constitucionalismo, para esses países, passou a ter outro papel que não
apenas o de declarar direitos fundamentais e assegurar a divisão de funções. Existe a proposta
de voltar a atenção ao oprimido e devolver para ele sua dignidade e isso ocorre tanto pelos
mecanismos de democracia ampliada (plebiscitos, referendos, revogação de mandato), como
também pelo pluralismo, que não se limita ao aspecto político, promovendo a refundação do
Estado com base em premissas diferentes daquelas que caracterizaram o Estado moderno de
tipo europeu, como o da plurinacionalidade.
No entanto, o novo constitucionalismo latino-americano, amplamente lastreado em
movimentos da base da sociedade, somente conseguiu transformar essas pretensões em prática
após longo processo de reflexão iniciado no final da década de 1960 e início da década de 1970.
Partindo-se de um sujeito latino-americano oprimimido, nasceu um conjunto de teorias próprias
do subcontinente que mira suas questões existenciais neste tipo de sujeito histórico.
Para explicar o fracasso do desenvolvimento na América Latina, a teoria da dependência
elaborada por Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, André Gunder Frank e outros,
demonstrou a superação do pensamento etapista necessário para trilhar o caminho do
desenvolvimento. Assim, essa teoria revelou outros atores, centrais e hegemônicos, que
estariam em jogo e com poder de controlar os fluxos de capitais, não bastando que os Estados
seguissem um caminho pré-estabelecido.
Esse pensamento no plano econômico foi fundamental para dar início a um conjunto de
ideias que surgiriam durante a década de 1970. Desse modo, a Teologia da Libertação, passando
pela Filosofia da Libertação, bem como pela Pedagogia da Libertação têm, em comum, o olhar

significativas, em verdadeira perspectiva de refundação do Estado e de ruptura com a lógica política


anterior.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

para o oprimido.
Após a Conferência de Medellín, de 19683, marco inicial da teologia da libertação, sob
a influência da teoria da dependência, propagada pelas ciências sociais latino-americanas,
surgiu na Argentina a filosofia da libertação4, que tem como expoente autores como Enrique
Dussel, Rodolfo Kusch, Arturo Andrés Roig, Juan Carlos Scannonne, Aníbal Fornari, Osvaldo
Ardiles, Julio De Zan, Horacio Cerutti, entre outros (SCANNONE, 2009, p. 60). Trata-se de
importante marco do pensamento crítico latino-americano onde se questiona as bases de
dominação do subcontinente e que serve de marco filosófico para as recentes rupturas operadas
pelo novo constitucionalismo latino-americano.
A partir deste momento, portanto, ganha força na região questões como a inclusão do
“outro”, considerando os direitos dos povos indígenas, assim como a cultura popular latino-
americana (DUSSEL, 1997) e, por causa dessa importância, a filosofia da libertação será tratada
aqui como o marco filosófico do novo constitucionalismo latino-americano.
A filosofia ocidental, segundo Ludwig (2011, p. 7 e 8), apresenta como principal
fundamento de sua elaboração a categoria da totalidade. Esta se revela no paradigma do ser, da
consciência e do agir comunicativo. Assim, verifica-se uma ontologia da totalidade onde o
mundo é iluminado pela visão do “ser”, que detém a verdade e a lógica prevalescente é a de
dominar o “outro”, o “não-ser”, sem qualquer espaço para alteridade, na concepção de Dussel
(1973, p. 108).
A ideia de dominação, que permeia o pensamento da filosofia ocidental, permite
imaginar diversas dicotomias que figuram como temas relevantes e polêmicos, tais como
civilização e barbárie, nacional e estrangeiro, modernidade e tradição. São exemplos de
dualidades na qual um deve se sobrepor ao outro, justamente por esse outro ser diferente e
causar certo estranhamento.
O subcontinente latino-americano foi moldado à luz da modernidade. Conforme será
visto adiante com mais detalhes, a modernidade não foi simplesmente importada para a América
Latina, mas sua própria ideia teve origem no impacto filosófico que representou a descoberta e
a invasão europeia (DUSSEL, 2010b), com os intensos discursos racionais de legitimidade das

3 Trata-se da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, convocada pelo Papa


Paulo VI, cuja temática foi “A Igreja na presente transformação da América Latina à luz do Concílio
Vaticano II”. O Concílio Vaticano II, por sua vez, XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, foi
convocado no dia 25 de janeiro de 1961, pelo Papa João XXIII.
4 Maiores detalhes sobre a Filosofia da Libertação, bem como sobre a Teologia da Libertação e a
Teoria da Dependência serão apresentados ao longo deste trabalho.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

ações espanholas.
A identidade latino-americana se apresenta mestiça, ultrapassando a dimensão racial
para centrar-se na mestiçagem cultural. Durante muito tempo essa foi a justificativa utilizada
pelos estudiosos para o subdesenvolvimento da região. O pensamento que concebe a
possibilidade enriquecedora de culturas diferentes coexistirem no mesmo Estado-nação não era
vista com bons olhos à luz dos principais pensadores do século XIX e início do século XX.
Período este em que as teorias racistas – e totalitárias – proliferaram (SOTELO, 1975, p. 37)5,
sendo que muitos delas creditavam a instabilidade institucional dos países hoje considerados
multiculturais justamente na falta de homogeneidade étnica.
No entanto, embora inserida no âmbito da modernidade, a América Latina nunca deixou
de ter um papel periférico no desenvolvimento dos pressupostos modernos (DOMINGUES,
2009, p. 7), tendo sido rotulado como um continente subdesenvolvido ou em desenvolvimento.
A hipótese central desse trabalho considera que o movimento teórico da libertação se
trata do marco teórico que acompanha o novo constitucionalismo latino-americano. Naquele
período, pela primeira vez o subcontinente voltou seus olhos para si e pensou a realidade a partir
de espírito de sua época.
Contudo, os movimentos bruscos são facilmente percebidos e a reação não tardou a
aparecer. As ditaduras militares proliferaram na América Latina com a missão de sufocar o
pensamento “subversivo”. Seria necessário esperar a redemocratização para que o resultado das
teorias da libertação pudessem ser percebidas.
O presente estudo se divide em três partes.
A primeira parte trata da inserção do novo constitucionalismo latino-americano em seu
contexto econômico, político e social. Pretende-se estabelecer um perfil do constitucionalismo
e contrasta-lo com as inovações do novo constitucionalismo.
A segunda parte é dedicada ao estudo da libertação e suas diferentes manifestação no
campo dos estudos sociais na América Latina, passando pela teologia da libertação, filosofia da
libertação e mesmo a pedagogia da libertação.
A terceira parte, por fim, destaca o tratamento conferido ao oprimido pelo novo
constitucionalismo latino-americano. Nesse ponto estudamos o caso boliviano, onde

5 Roberto Gargarella explica que foram muitos os pensadores inspirados pelo pensamento de
Rousseau que consideraram indispensável projetar uma sociedade homogênea como condição de
possibilidade para tornar possível um autogoverno coletivo. As teorias racistas também
condicionaram importantes autores que pensaram o Direito Constitucional, como Francisco
Campos, autor da Constituição de 1937 e teórico do regime fascista de Getúlio Vargas, e Carl
Schmitt, teórico da Alemanha nazista.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

cosmovisão quíchua erigiu à norma constitucional como meio de trazer povos históricamente
alijados ao processo de decisão política do Estado.
O estudo foi realizado por meio de pesquisa bibliográfica como fonte primária.
Secudariamente utilizamos documentos estatísticos como meio de quantificação dos grupos
marginalizados, sejam eles oficiais ou elaborados pela sociedade civil.

2. O novo constitucionalismo latino-americano no contexto regional

O constitucionalismo que emergiu da independência dos países da América Latina se


tratou de um modelo conservador e perfeccionista, resultante de uma combinação de imposição
de valores morais e da autoridade estatal. Segundo Gargarella, a presença do conservadorismo
se tornou dominante a partir de 1815, assim que se dissipou o entusiasmo pós-revolucionário
(2005, p. 85).
Além disso, o projeto constitucional desse período se pautou por um perfeccionismo
moral, isto é, os indivíduos deveriam orientar suas vidas conforme as pautas determinadas pela
autoridade pública, encarregada da defesa da moralidade, mediante o uso de seu poder
coercitivo e assegurando que os indivíduos vivam de modo apropriado (GARGARELLA, 2005,
p. 87).
Esse caráter manifestamente manipulador do constitucionalismo latino-americano do
século XIX serviu às elites políticas e assegurou a manutenção do poder, inclusive para Igreja.
Trata-se de uma postura que parte do pressuposto de que o indivíduo não é capaz de escolher
os melhores valores a seguir por si só, por ser naturalmente violento e inculto, e estes valores
devem ser estabelecidos por uma classe política superior intelectualmente, remontando uma
ideia próxima ao Rei Filósofo platônico ou mesmo ao despotismo ilustrado.
A crescente exigência de homogeneização do Estado aliada a uma realidade social
altamente assimétrica construiu um cenário marcado pela instabilidade institucional no plano
político durante século XIX e, especialmente, o século XX. Regimes ditatoriais ascenderam e
caíram nesse período e, com isso, atos de brutalidade foram realizados sob o olhar atento do de
um Estado policial que não tolerava dissidências. Destaca-se a forte participação dos setores
militares, criando uma cultura de intervenção política das Forças Armadas que se arrastou até
os dias de hoje, sempre com forte caráter autoritário.
As transformações operadas na virada do século XX em todo o mundo rotularam esse

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

momento histórico de “Era das Revoluções”6 e tal nome não lhe foi dado sem motivo. Em
particular, na América Latina, as duas Guerras Mundiais e a consequente ascensão dos Estados
Unidos como potência mundial ensejaram mudanças substanciais e seus desdobramentos
marcaram profundamente o destino do subcontinente.
Com o foco no atual momento da América Latina, Boaventura de Sousa Santos visualiza
quatro dimensões que caracterizam o contexto sócio-político-cultural do continente latino-
americano, que se referem ao caráter: i) das lutas; ii) da acumulação; iii) da hegemonia; e iv)
do debate civilizatório (SANTOS, 2010, p. 55 e segs.).
Para desenvolver cada uma dessas dimensões, Boaventura de Sousa Santos estabelece
uma dualidade antagônica e dialética. O principal traço característico diz respeito ao caráter das
lutas, contudo, embora possua um forte viés marxiano, o autor não se refere à luta de classes ao
avaliar as lutas no âmbito da América Latina. Trata-se, na verdade, do que chama de “lutas
ofensivas” e “lutas defensivas”, que coexistem e se tencionam.
As lutas ofensivas, segundo o autor, não têm necessariamente um potencial socialista,
mas sim a tomada do poder do Estado para realizar as mudanças importantes nas políticas
públicas (SANTOS, 2010, p. 55). Nesse cenário podemos inserir as ações sociais que serviram
de base para o novo constitucionalismo latino-americano, como a revolução bolivariana, que
proporcionou um avanço democrático no quadro institucional, mediante mecanismos de
democracia direta e participativa, bem como o controle dos recursos naturais e, naturalmente, a
organização dos movimentos indígenas como mola-mestra dessas transformações. Por outro
lado, as lutas defensivas figuram como elemento de contenção do poder repressivo do Estado
ou de poderes fáticos (SANTOS, 2010).
A segunda dimensão do contexto latino-americano que se destaca diz respeito à
coexistência entre acumulação ampliada e a acumulação primitiva (SANTOS, 2010, p. 57), na
qual Boaventura de Sousa Santos empresta forte conotação marxiana. Segundo ele, há uma
acumulação ampliada exercida pelo capital por meio dos mecanismos econômicos, amplamente
compreendidos. A acumulação primitiva se trata daquela pautada na apropriação, muitas vezes
ilegal e violenta. A relação entre uma e outra pode ser representada pela concepção de nação e
de imperialismo, este incorporando à frente da acumulação primitiva e aquela a noção de
acumulação ampliada. Em que se pese a relevância do embate entre imperialismo e soberania,
tema sempre presente na América Latina, cremos que não há propriamente uma contraposição

6 Título que dá nome à obra de Eric Hobsbawn, “A Era dos Extremos”, que estabelece o intervalo
entre 1914 e 1991 para delimitar o “breve século XX”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

entre as acumulações ampliadas e primitivas, pois a lógica do sistema capitalista é a produção


de pobreza (MARSHALL, 1967) e, com isso, a natural necessidade de sempre haver um
mercado emergente, bases para o florescimento do imperialismo.
A terceira dimensão trata de uma ideia a algum tempo trabalhada por Boaventura de
Sousa Santos: o hegemônico e o contra-hegemônico. O novo constitucionalismo latino-
americano, conforme seu desenho institucional apresentado pretende claramente ser um uso
contra-hegemônico de um instrumento hegemônico, que é o constitucionalismo. Assim
compreende o autor sobre instrumentos hegemônicos:

Entiendo por instrumentos hegemónicos las instituciones desarrolladas


en Europa a partir del siglo XVIII por la teoría política liberal con vista
a garantizar la legitimidad y gobernabilidad del Estado de Derecho
moderno en las sociedades capitalistas emergentes. (SANTOS, 2010,
p. 58)

Desse modo, o uso contra-hegemônico é operado pelo novo constitucionalismo por


meio da ampliação de mecanismos democráticos, de modo que as classes sociais possam se
apropriar dos instrumentos políticos – e não o capital, mediante sua extensa rede de mecanismos
legais ou ilegais, aproveitando-se do gargalo democrático existente na democracia liberal.
Por fim, a quarta dimensão do contexto latino-americano passa pelo debate civilizatório,
que se manifesta hoje por dualidades complexas alcançadas em universos culturais e políticos
bastante distintos (SANTOS, 2010, p. 60). O canal de comunicação político estabelecido com
o movimento indígena no âmbito do novo constitucionalismo latino-americano proporcionou
uma releitura política e sociológica do embate entre civilização e barbárie7: o que antes era visto
como bárbaro sob a óptica abissal hoje é reinterpretado à luz de novos paradigmas. Algumas
dessas dualidades podem ser representadas, segundo Boaventura de Sousa Santos por: recursos
naturais ou Pachamama; desenvolvimento ou Sumak Kawsay; Estado-nação ou Estado
plurinacional; descentralização/desconcentração ou autogoverno dos povos indígenas

7 Segundo definição contemporânea de barbárie de Francis Wolf, considera-se cultura bárbara (e,
portanto, uma cultura "incivilizada") aquela que não dispõe, em seu próprio cerne, de estruturas que
lhe permitam admitir, assimilar ou reconhecer outra cultura - ou seja, a simples possibilidade de
outra forma de humanidade (WOLF, 2004, p. 40-43). Segundo essa definição, podemos encontrar
alguns focos de barbárie em uma Europa que se fecha cada vez mais ao estrangeiro e possibilita
atentados, como o de Oslo, na Noruega, em 22 de julho de 2011, em que um norueguês ligado à
extrema direita explodiu uma bomba contra um prédio do governo e abriu fogo contra a juventude
do Partido Trabalhista, matando mais de 70 pessoas. No entanto, o tema barbárie já foi debatido
anteriormente na América Latina por Domingo F. Sarmiento, em sua clássica obra “Vida de Juan
Facundo Quiroga” ou “Civilización y Barbarie”, onde analisa as condições de governabilidade da
América Latina por meio da vida de Juan Facundo, representado como típico caudilho que encarna.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

originários camponeses. Assim, grande importância dessa dimensão reside na refutação da tese
que seria inevitável um “choque de civilizações”8 e mostrar que um Estado plurinacional que
articule a coexistência de culturas antagônicas é possível.
Outro aspecto significativo do debate civilizatório é “la pertenencia mutua de
capitalismo y colonialismo en el código genético de la modernidad ocidental” (SANTOS, 2010,
p. 61). O capitalismo como um sistema típico de produção de pobreza e de exclusão social,
naturalmente necessita de um “mercado emergente” e de “regiões subdesenvolvidas” para
poder funcionar; ou, em outras palavras, necessita de “colônias econômicas” para que possa
maximizar a remuneração do capital.
Desse modo, podemos observar três marcos importantes para fins do nosso estudo: i) a
independência, quando emergiu certo sentimento de protonacionalidade, durante o século XIX;
ii) as lutas sociais travadas durante o século XX, que proporcionaram insurgente articulação
política de camadas sociais até então alijadas; iii) o desenvolvimento amadurecido dos
movimentos sociais, articulados suficientemente para reivindicar direitos e erigi-los a nível
constitucional, refundando o próprio Estado.
Indaga-se sobre precisão terminológica para designar um conjunto de constituições que
não representam sequer a metade dos países que compreendem a América Latina. No entanto,
mudando a perspectiva do seu sentido, o novo constitucionalismo latino-americano se
caracteriza por lançar ideias originais que surgem em uma região do planeta que historicamente
se alimentou do pensamento estrangeiro, sobretudo europeu e estadunidense. Talvez por esse
motivo, o novo constitucionalismo mereça ser denominado latino-americano.
Outra questão terminológica relevante se refere à diferença estabelecida por alguns
autores, como Ramiro Ávila Santamaría, entre neoconstitucionalismo latino-americano e
neoconstitucionalismo andino.
O primeiro se trata da recepção do neoconstitucionalismo construído pela doutrina
europeia e que tiveram um desenvolvimento próprio em nossa região, destacando-se a expansão
de direitos, o aprofundamento do controle de constitucionalidade, o redimensionamento do
Estado, o constitucionalismo econômico voltado para a igualdade e o hiper-presidencialismo

8 A terminologia é de autoria de Samuel Huntingon, em que desenvolve a tese de que algumas


relações intercivilizacionais têm maior tendência para o conflito do que outras. No nível micro, as
linhas de fratura mais violentas estariam entre o Islã e seus vizinhos ortodoxos, hindus, africanos e
cristãos ocidentais. No nível macro, a divisão predominante estaria entre o Ocidente e o resto, com
os conflitos mais intensos ocorrendo entre as sociedades muçulmana e asiática, de um lado, e o
Ocidente, do outro. Assim, o motor disso seria a interação de três fatores: a arrogância ocidental, a
intolerância islâmica, a postura afirmativa sínica, proporcionando o inevitável choque de civilizações
(HUNTINGTON, 2010).

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(SANTAMARÍA, 2011, p. 60). Não obstante isso, ainda se trata de um constitucionalismo


pensado a partir do Norte, como resposta às suas crises geradas pela tensão entre neoliberalismo
e estado de bem-estar.
O neoconstitucionalismo andino ou transformador, majoritariamente tratado como novo
constitucionalismo latino-americano, diz respeito à resposta ao problema da colonização
persistente no subcontinente por meio da dominação, da exploração e da discriminação. Além
disso, outros temas como a segregação de grupos minoritários e majoritários excluídos e
marginalizados em razão de sua relação de pertencimento a determinada etnia ou classe social.
Para superar, definitivamente, essa complexa problemática, aparece o novo
constitucionalismo latino-americano, que se propõe a resgatar a tradição revolucionária típica
dos momentos de ruptura política, tão frequentes na nossa história. Autores como Dalmo Dallari
nos permitem esclarecer as possibilidades de uma ação realmente transformadora, identificando
as duas formas de transformação do Estado: a primeira por meio da evolução ou da revolução,
por outro lado a segunda ocorre de modo progressivo no tempo, com a assimilação gradual de
ideias e costumes. A revolução se trata de uma mudança brusca, que remove os obstáculos que
impedem a livre circulação do pensamento e das opiniões (DALLARI, 2007, p. 142).
Desse modo, novo constitucionalismo latino-americano se trata de um produto
originário de movimentos sociais, que começaram a se articular e sofisticar na América Latina
a partir da primeira metade do século XX, em especial com a incorporação de ideias marxianas
na classe trabalhadora e pobre, que progressivamente impregnam os setores progressistas.
Assim, o caráter revolucionário do novo constitucionalismo latino-americano é revelado
pela tentativa de distribuição equitativa de direitos entre as classes sociais, forçando que as
elites tenham que ceder parte de seu poder em favor dos grupos marginalizados. O próximo
capítulo objetiva expor as teorias desenvolvidas na América Latina diante do cenário de
exclusão social.

3. Dependência e libertação na América Latina

No plano econômico, a crise de 1929 ensejou em uma reversão do coeficiente de


comércio exterior dos chamados “países industrializados” (FURTADO, 2007, p. 103), o que
resultou na queda de demanda por produtos primários e, com isso, um impacto catastrófico na
economia latino-americana. Como uma das regiões mais inseridas no sistema de divisão

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internacional do trabalho (FURTADO, 2007, p. 108) – justamente com a função de exportar


produtos primários – a falta de demanda criou a necessidade de diversificar a base econômica.
Essa necessidade fez nascer o desenvolvimentismo na região, que buscou superar o
domínio colonial e fazer surgir burguesias locais com anseio de encontrar seu espaço na
expansão do capitalismo mundial (SANTOS, 2000, p. 26), por meio de políticas econômicas
orientadas para o crescimento da produção industrial e da infraestrutura urbana, com
participação ativa do estado e o aumento do mercado consumidor.
No entanto, a política desenvolvimentista não conseguiu traduzir suas pretensões em
realidade. Somente a partir da década de 1960 se conseguiu estabelecer um esforço crítico para
compreender os obstáculos para um desenvolvimento iniciado em um momento que o mundo
estava já sob o domínio hegemônico das forças imperialistas. Esse esforço deu origem à teoria
da dependência, que visava dar um passo além do desenvolvimentismo para alcançar as bases
de uma efetiva descolonização.
A teoria da dependência reconheceu a situação histórica de subdesenvolvimento e sua
relação entre periferia e centro. Afastou-se a ideia de que o caminho para o desenvolvimento
deveria percorrer uma fase evolutiva, tal qual a dos países centrais. O processo capitalista, desde
seu início, estabeleceu dois tipos de relação: uma entre centro e periferia e outra entre
economias centrais. Assim, as economias latino-americanas se incorporaram ao sistema
capitalista, desde sua fase colonial como periferia, e nessa situação permaneceram após a
formação dos Estados nacionais (CARDOSO e FALETTO, 2011, p. 46). Isso significa que não
está em jogo etapas que estão à disposição para serem superadas por parte das economias
emergentes, mas sim uma relação de controle do desenvolvimento de outras economias, tendo
em vista que a relação entre centro e periferia tem como resultado a formação de zonas de
dependência ou mesmo de outros centos econômicos (idem, p. 47).
Além disso, outro obstáculo encontrado para o desenvolvimento foi a resistência das
elites latino-americanas em se desvencilharem das suas bases coloniais de poder. Isso porque
alguns pressupostos básicos do desenvolvimento não tiveram condições de possibilidade na
América Latina, como o alargamento do mercado de consumo interno, que necessariamente
implicaria em melhor distribuição de renda. No caso brasileiro, a exigência de reforma agrária
e investimentos para geração de base intelectual, científica e técnica capaz de sustentar as novas
bases econômicas ecoaram de modo muito negativo nas elites, pois se negavam em aceitar
pagar um preço que ameaçasse seu poder (SANTOS, 2000, p. 34). Exatamente por isso, a
alternativa mais conveniente encontrada pela burguesia foi a de se associar com o capital

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estrangeiro, que detinha o conhecimento necessário para promover o desenvolvimento.


Contudo, como efeito secundário, tal postura forjou o caminho da dependência.
Especificamente no caso brasileiro, a teoria do desenvolvimentismo, capitaneada por
Celso Furtado e pela CEPAL9, ganhou força no governo de Getúlio Vargas, mas desde logo
encontrou forte oposição por parte das elites. A intensa campanha pelo impeachment foi
resfriada pelo seu suicídio e criou forte mobilização popular que retardou os anseios da
burguesia, que desejava acabar com o modelo corporativista para abrir caminho com a entrada
do capital externo. O governo de Juscelino Kubitschek acabou por permitir a entrada de
investimentos externos, mas houve o compromisso para condicionar isso à construção de uma
indústria de base, que permitiria um desenvolvimento menos dependente.
Contudo, isso não foi suficiente para impedir que as elites permitissem o golpe de Estado
executado pelos militares em 1964, que inseriu o Brasil definitivamente no caminho da
dependência. No entanto, o cenário externo foi decisivo para seu êxito, na medida em que os
Estados Unidos, por meio da CIA, prestou assessoramento e influenciou decisivamente para a
ruptura democrática, garantindo o êxito de seus interesses no país e, assim, demonstrou como
a relação de poder hegemônico pode determinar a formação de zonas de subserviência.
Assim, a estrutura econômica dos países latino-americanos nasceu subordinada ao
mercado externo. Em uma situação de dominação e dependência, a formação superior acabou
introjetando esse modus operandi, limitando a produção intelectual à recepção do pensamento
europeu. Segundo o filósofo brasileiro Julio Cabrera , “hoje em dia a Europa não precisa perder
seu tempo rejeitando-nos, porque ela já tem representantes internos que desempenham a
contento esse papel excludente.” (CABRERA, 2011).
Somente no século XX, esse panorama passou a sofrer uma análise crítica mais
sofisticada. Nesse período, inciou-se um questionamento sobre as condições de possibilidade
de uma filosofia latino-americana. O marco dessa reflexão ocorreu por ocasião da Segunda
Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, chamada de Conferência de Medellín, de
1965, cujo tema foi “A Igreja na presente transformação da América Latina à luz do Concílio
Vaticano II”.
O evento buscou discutir ideias sobre a adequada aplicação do Concílio Vaticano II na
América Latina. Contudo, as consequências transbordou seus objetivos, pois proporcionou que

9 A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe foi criada em 1948 pelo Conselho
Econômico e Social das Nações Unidas e tem como objetivo promover a cooperação econômica na
América Latina. Com a coordenação das ações da CEPAL, Celso Furtado e Raúl Prebisch se
tornaram os grandes expoentes do pensamento desenvolvimentista.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

os intelectuais pensassem a partir da sua própria experiência e localidade.


Assim, sob a influência da teoria da dependência, que estava nesse momento se
propagando nas ciências sociais latino-americanas, desde um pondo de vista da teologia
política, constuiram-se diversas correntes de pensamento que covergiam na interpretação do
Evangélio como modo de libertação de injustiças e de condições sócio-políticas opressoras.
Trata-se aqui da chamada teologia da libertação.
Todo o ambiente criado em Medellín propiciou que se transportassem os
questionamentos da teologia política para a filosofia, nascendo a filosofia da libertação. Essa
mudança de campo de conhecimento não alterou seu objeto, que busca a recompreensão do
indivíduo como libertação humana integral e não meramente no plano sociológico ou
econômico, objeto da teoria da dependência. Assim, a “libertação” se opõe dialeticamente à
dependência e opressão (SCANNONE, 2009, p. 60).
A filosofia da libertação deu seguimento à reflexão intelectual realizada a partir da
década de 1960, sobre o papel da América Latina diante do mundo, iniciada com a teoria da
dependência e que se refletiu em outras áreas, como, por exemplo, com a pedagogia da
libertação, com Paulo Freire10.
Portanto, trata-se de um período intelectualmente fértil para a América Latina, onde pela
primeira vez pensou-se o mundo a partir de nossa localidade. O mesmo fizeram os pensadores
europeus com sua filosofia, ou seja, propuzeram soluções universais para problemas
localizados. O filósofo Pedro Novelli, professor da UNESP, assim escreveu sobre as condições
de possibilidade da filosofia:

O pensar filosófico se manifesta historicamente em determinadas


culturas e épocas. A filosofia se consolida aos poucos como opção de
alguns povos e, não é por acaso que ela pode ser identificada a certos
grupos. Os gregos ainda continuam sendo identificados com a filosofia,
mas na atualidade o endereço da filosofia passou para outros países.
França e Alemanha congregam as maiores referências na história da
filosofia. Oceania, África, Ásia e América não são sinônimos do pensar
filosófico, e, se a filosofia recebe nesses lugares algum destaque, cabe
indagar se não estão reproduzindo os temas e interesses filosóficos
europeus (NOVELLI, 2006).

Por conta dessas caracteríticas que contextualizam a filosofia da libertação, entendemos

10 Em sua obra “Pedagogia do Oprimido”, Paulo Freire estabelece a contradição entre opressores e
oprimidos, encontrando na libertação sua superação (FREIRE, 2011, p. 41), na mesma linha da
filosofia da libertação.

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que se trata do marco filosófico do novo constitucionalismo latino-americano, que tem também
o objetivo de descolonizar, libertando todos aqueles que de algum modo encontram-se
oprimidos pelas assimetrias históricas conduzidas tanto no plano interno quanto no plano
internacional11.
Nesse esteio, podemos apontar que a filosofia da libertação iniciou-se com a resposta
do filósofo mexicano Leopoldo Zea à obra do peruano Augusto Salazar Bondy. A problemática
de Bondy centrou-se em perguntar se existe uma filosofia em “nuestra América”, levantando a
hipótese de que não existe uma filosofia hispanoamericana peculiar, genuína e original, ou seja,
com uma personalidade histórico-cultural própria, embora não negue a possibilidade disso
ocorrer no futuro (BONDY, 2006, p. 72-74 e 93-94).
Em resposta à obra de Bondy, Zea destaca de plano que a própria problemática de Bondy
contém um estranhamento, tendo vista que “quando nos perguntamos pela existência de uma
filosofia americana, fazemo-lo partindo do sentimento de uma diversidade, do fato de que nos
percebemos e sentimos distintos” (ZEA, 2005, p. 357). De modo, Zea quer dizer que a conexão
intelectual com os países centrais é tão forte que o simples fato de pensar autônomamente nos
causa estranhamento, afinal, o grego antigo não se perguntou se existe uma filosofia na Grécia,
tampouco o francês ou alemão fizeram.
A partir desse ponto, o mencionado autor não só afirma a produção filosófica na
América Latina, como também traça sua peculiaridade: ao contrário da filosofia europeia, que
perdeu sua humanidade ao longo do tempo, ao negar humanidade ao “outro”, como denuncia
Sartre (idem, p. 460), a filosofia latino-americana tem a peculiaridade de “subverter a história”
e “mudar uma ordem na qual a essência do homem foi menosprezada” (idem, p.485), lançando
o caminho no qual a filosofia da liberatação iria perfilhar.
Para compreender adequadamente o pensamento que subjaz tudo isso, é fundamental
conhecer a trajetória e o locus epistêmico dos principais autores. Para o estreito alcance desse
trabalho, elegeu-se Enrique Dussel como marco filosófico central, não obstante outros autores
trilharem caminhos convergentes, que serão abordados aqui.
Dussel nasceu em Mendoza na Argentina em 1934 e é uma das maiores referências do

11 O novo constitucionalismo também se projeta no plano internacional com propostas inovadoras. A


Constituição do Equador, de 2008, oferece parâmetros de proteção de direitos aos imigrantes bem
superiores aos instrumentos internacionais. Assim estabelece seu art. 40 estabelece que “no se
identificará ni se considerará a ningún ser humano como ilegal por su condición migratoria”. Apesar
dos avanços, o Equador continua aplicando lei de imigração anterior ao documento constitucional,
com esteio em outros valores, como soberania e segurança nacional, em descompasso com a atual
ordem constitucional (COALICIÓN POR LAS MIGRACIONES Y EL REFUGIO, 2012).

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pensamento latino-americano na atualidade. Filósofo formado em 1957 pela Universidad


Nacional de Cuyo, doutor em filosofia pela Universidad Complutense de Madrid, em 1959.
Prossegue seus estudos na Europa também nas áreas de Teologia e História na Sorbonne,
passando pelo Oriente Médio, até regressar para a Argentina em 1968 para lecionar Ética na
Universidad Nacional de Cuyo. Logo, trata-se de um representante da cultura mestiça, de
formação latino-americana e europeia.
A partir desse período, começa a ver a América Latina “como uma totalidade a partir de
fora” (ZIMMERMANN, 1987, p. 28), sendo que suas publicações se notabilizaram pela
originalidade em formular uma Filosofia da Libertação para a América Latina, que estivesse
fora do paradigma da autoconsciência proposto pelo filósofo mexicano Leopoldo Zea, bem
como por se colocar como crítico da modernidade, ao menos daquela modernidade do norte da
Europa imposta como paradigma.
Por conta das hostilidades da ditadura militar na Argentina, é expulso da Universidad
Nacional de Cuyo em 1975 e, nesse mesmo ano, exila-se no México, aonde a maior parte das
suas obras são escritas.
Logo, podemos verificar que se trata de um autor que construiu sua formação acadêmica
do lado hegemônico do pensamento moderno, mas que tenta pensar o Outro a partir da crítica
de sua própria concepção de mundo.
Debruçando-se sobre as obras de Dussel, Roque Zimmermann estabeleceu a seguinte
periodização, para fins didáticos, da evolução do pensamento dusseliano: uma primeira fase
ontológica, que data de 1961 até 1969; segunda fase metafísica, de 1968 até 1976; e uma fase
mais concreta, de 1976 até os dias atuais, isto é, 1986, no caso (ZIMMERMANN, 1987, p. 31).
Na “fase ontológica”, Dussel tenta desconstruir todo o pensamento ontológico da
filosofia ocidental, conforme se poderá observar nos capítulos seguintes, revelando um ser
latino-americano oculto, oprimido, colonizado e ontologicamente dependente (idem, p. 31).
Em sua fase metafísica, o autor partiu de Ricoeur e Lévinas para compreender a
categoria de Exterioridade, para justamente tentar superar a ontologia dialética entre opressor e
oprimido, a partir da autoconsciência (idem, p. 32).
Por fim, em sua terceira fase, que se inicia a partir de seu exílio no México, começa a
ter importância a sua análise crítica de Marx (idem, p. 32). Contudo, vale dizer que essas fases
não se superpõem, mas são predominantes em cada momento, sendo certo que o autor não
deixou de lado os traços de cada uma dessas fases.
Por conta dessas características enunciadas, esse autor foi escolhido para servir de

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suporte teórico às críticas do pensamento moderno que pretendem ser aqui esboçadas.
Assim, para alcançar esse objetivo, o presente estudo se divide em três partes, que visam
abordar como o discurso colonial se oculta no pensamento moderno e a recente tentativa de
quebra do paradigma abissal nas novas constituições andinas.
A compreensão do fenômeno da moderidade ocidental passa pela ideia de que se trata
de um modo de vida que surgiu em determinada época e lugar, sendo posteriormente
internacionalizado, servindo de paradigma para qualquer povo que pretende obter alguma
relevância no cenário internacional.
A modernidade foi um caminho construído para que a razão atingisse uma pretensa
forma de compreensão totalizante do mundo. Descartes, Kant, Hegel e tantos outros
pavimentaram essa via de aceitação da razão. Segundo seus postulados, o ser humano, único
ser racional, deve ser o fim último de todas as ações para a satisfação das próprias necessidades.
Seu grande instrumento de ação passou a ser a ciência, ápice do pensamento racional, a grande
produtora da verdade universal.
A modernidade e a colonialidade são fenômenos, portanto, altamente mescláveis em
diversos momentos, em especial assim que a modernidade encontrou no capitalismo seu
formato padrão de apropriação. A modernidade elaborou uma forma de pensar lastreada na
racionalidade que levou às grandes descobertas e uma forma de apropriação da natureza para a
satisfação das necessidades humanas. O homem se tornou o centro do universo. Aníbal Quijano
assim descreve esse momento:

(...) foi elaborado e formailizado um modo de produzir conhecimento


que dava conta das necessidades cognitivas do capitalismo: a mediação,
a externalização (ou objectivação) do cognoscível em relação ao
conhecedor, para o controlo das relações dos indivíduos com a natureza
e entre aquelas em relação a esta, em especial a propriedade dos
recursos de produção. (QUIJANO, 2010, p. 74)

O capitalismo, ao corresponder como formato padrão de apropriação da modernidade,


estabelece um novo modo de relação do homem com o seu ambiente. Todas as coisas, sejam
elas humanas ou não, são passíveis de serem apropriadas, caso permitam a acumulação de
capital. Dessa forma, a colonização foi antes um empreendimento do recém formado Estado-
nação para a acumulação primária de capital.
Com uma crítica epistemológica da modernidade, Enrique Dussel objetiva reinserir
América Latina no mapa geopolítico mundial, bem como na história da filosofia, desde que

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essa região se tornou colônia de países semiperiféricos (Espanha e Portugal) que perderam sua
centralidade com a Revolução Industrial, deslocando-se o centro cultural do mediterrâneo (Sul
da Europa) para o Norte da Europa (DUSSEL, 2010b, p. 307).
Em síntese, o autor defende a ideia de que a modernidade filosófica não surgiu com
Descartes ou Espinosa e, consequentemente, no Centro-Norte da Europa, mas sim na Península
Ibérica, após a invasão da América, fato que implicou profundos questionamentos filosóficos,
não experimentados no resto da Europa.
Além de identificar esses elementos, surge a necessidade de mobilizar os atuais
instrumentos hegemônicos de um modo contra-hegemônico. Para isso, ao passo que o desafio
epistemológico passa por compreender uma teoria que considere a alteridade, o pesquisador
deve fazer um esforço epistêmico para uma abertura ao outro distinto e minimize os efeitos de
suas preconcepções.

4. O oprimido e os caminhos para um constitucionalismo da libertação

Conforme estudado anteriormente, o novo constitucionalismo latino-americano é


apresentado como proposta descolonizadora na medida em que se pauta em um modelo
alternativo, buscando justiça cultural, política, social e redistributiva, mediante convivência
plural entre os membros da sociedade e, além disso, possa romper com a relação de dependência
econômica e cultural historicamente estabelecida com os países centrais.
Essa relação de dependência, diagnosticada primeiramente com a teoria da dependência,
agravou-se com o endividamento gerado pelo desenvolvimentismo das ditaduras militares
latino-americanas, que se associou com o capital externo. Diante disso, o neoliberalismo surgiu
como proposta dos países centrais para a solução da dívida externa e do colapso das economias
da América Latina durante a década de 1980. As teses do neoliberalismo foram sintetizadas em
um documento que foi celebrado pelas instituições multilaterais sediadas em Washington. Por
isso ficou conhecido como Consenso de Washington12.

12 O “Consenso de Washington” foi elaborado pelo economista britânico John Williamson como um
conjunto de proposições para serem adotadas pelos países da América Latina. Williamson elaborou
dez pontos centrais para a política econômica: “a) disciplina fiscal visando eliminar o déficit público;
b) mudança das prioridades em relação às despesas públicas, eliminando subsídios e aumentando
gastos com saúde e educação; c) reforma tributária, aumentando os impostos se isto for inevitável,
mas “a base tributária deveria ser ampla e as taxas marginais deveriam ser moderadas”; d) as taxas
de juros deveriam ser determinadas pelo mercado e positivas; e) a taxa de câmbio deveria ser
também determinada pelo mercado, garantindo-se ao mesmo tempo em que fosse competitiva; f) o

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Contudo, o efeito da adoção dessas políticas por parte dos países latino-americanos foi
catastrófica, de modo que os problemas históricos foram agravados, gerando maior
concentração de renda, desemprego e, ao mesmo tempo, pouco crescimento econômico
(GUILLEN, 2012). Não sem motivo razoável, o preâmbulo da Constituição da Bolívia de 2009
expressamente declara que o Estado colonial, republicano e neoliberal encontra-se no
passado13.
Para reconstruir uma noção de Estado que seja adequada para a realidade cultural e
social, a Bolívia incorporou em seu texto constitucional de 2009 um fundamento ético que se
posiciona como alternativa ao individualismo e ao etnocentrismo do capitalismo hegemônico.
Trata-se do paradigma do “vivir bien”.
Assim, para que possamos realizar uma adequada análise comparativa entre dignidade
da pessoa humana e bem viver, devemos antes compreender o que é resgatado e incorporado
no constitucionalismo boliviano, conceber o próprio paradigma cultural. Com isso, traça-se
breves linhas sobre a cosmovisão do povo aimará, que serviu de referência na elaboração do
texto constitucional.
Segundo os dados oficiais obtidos por meio do último censo boliviano de 2001, a
população aimará representa o segundo maior contingente populacional dentre os povos
originários, ficando atrás apenas dos quíchuas (BOLÍVIA, 2001). Não obstante isso, a
Constituição de 2009 se refere à suma qamaña quando trata de bem viver, no idioma aimará, e
não sumak kawsay, em quíchua.
Em boa medida, isso se deve por causa do nacionalismo aimará que surgiu com mais
intensidade entre 1990 e 2000, onde o indigenismo surgiu como força política revolucionária
após as revoltas populares em face da política neoliberal adotada durante os anos de 1980 e
1990, que geraram demissões em massa e só fez aumentar a população envolvida do plantio da
coca. Com efeito, a pressão dos EUA para o combate a essa prática, nesse cenário conflituoso,
desaguou no forte movimento indigenista (LINS, 2009), que já vinha se articulando
intelectualmente ao longo do século XX, com a Guerra do Chaco e a Revolução de 1952.
Contudo, isso não explica uma demanda presente em todo o processo constituinte de 2008: a
nacionalidade aimará.

comércio deveria ser liberalizado e orientado para o exterior (não se atribui prioridade à liberalização
dos fluxos de capitais); g) os investimentos diretos não deveriam sofrer restrições; h) as empresas
públicas deveriam ser privatizadas; i) as atividades econômicas deveriam ser desreguladas; j) o
direito de propriedade deve ser tornado mais seguro.” (BRESSER PEREIRA, 1991, p. 6).
13 “Dejamos en el pasado el Estado colonial, republicano y neoliberal.”

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Inicialmente, um dos momentos fundamentais para a construção de um povo aimará foi


a conquista inca e a integração dos diversos territórios pertencentes por populações de origem
aimará ao Império Inca (Tawantinsuyu em quíchua), aproximadamente em 1450. Nesse sentido,
grupos étnicos diferentes, mas similares, como “aullaga, ayaviri, cana, canchis, carangas,
charcas, chicha, larilari, lupacas, umasuyus, pacaje, pacasa y quillaca”, reuniram-se ao redor
do sentimento de uma etnia aimará e de seu território da administração imperial, chamado
Qullasuyu. (MAKARAN-KUBIS, 2009, p. 45-46).
O segundo momento fundamental aqui apresentado foi o impacto sofrido com a
conquista e dominação espanhola sobre a comunidade aimará e sua integração em 1532 ao
sistema colonial como Vice-Reinado do Peru. O perfil atual do povo aimará é aquele que sofreu
os efeitos da colonização, com a mita14, a reducción15, a evangelização, bem como a imposição
linguística. Com isso, para melhor administração colonial por parte dos espanhóis, os povos
indígenas foram reagrupados sob a mesma matriz linguística para facilitar a evangelização, que
a partir de determinado momento passou a usar o idioma nativo em suas missões. Assim,
mesmo diante da exploração brutal, os aimarás conseguiram manter certo grau de autonomia
no regime colonial.
O terceiro momento em destaque para a construção da identidade aimará é a
independência e, com isso, o surgimento da República da Bolívia. Esse período assistiu as
reformas liberais – que começaram a ser incorporadas ainda com a Constituição de Cádiz
(SALA VILA, 1992) – objetivaram que os indígenas absorvessem toda a matriz de pensamento
ocidental que se consagrou com a modernidade: o individualismo em detrimento do
corporativismo; a cidadania ao invés das castas; a civilização em prejuízo a “barbárie”. Assim,
essas reformas acabaram por contribuir para a desintegração da cultura aimará, na medida em
que afetaram o núcleo político, econômico e cultural mais importante: o ayllu16 (MAKARAN-
KUBIS, 2009, p. 47).
As teorias racistas da época terminaram por marginalizar os aimarás que, não obstante

14 O sistema de administração adotado pelos espanhóis recuperou, na exata medida do conveniente,


o modelo inca. Assim ocorreu com ayllus, que eram pequenas extensões de terra que eram
administradas por famílias incas e dependiam de caciques (SALA VILA, 1992, p. 52). A mita,
outrossim, resgatou o sistema de divisão do trabalho inca, tratando-se do trabalho compulsório, na
forma de imposto comunal (SALA VILA, 1992, p. 59).
15 Populações assentadas em luares separados das cidades onde viviam os espanhóis, com finalidade
eminentemente evangelizadora.
16 Trata-se do núcleo orgânico social familiar, onde se trabalha coletivamente e a propriedade é
comum a todos os membros.

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tivessem passado a serem cidadãos, passaram a ser, também, pobres e, assim, membros de uma
classe social. Observamos, desse modo, uma tensão entre dois grupos sociais que se polarizam:
o criollo mestiço, que deseja expandir o latifúndio, e o indígena, que luta por defender seu
território, não obstante estar em jogo outros grupos sociais excluídos.
O quarto momento em destaque se trata dos eventos políticos que ocorreram ao longo
do século XX e se tornaram cruciais para a articulação recente da identidade aimará. Em
primeiro lugar, evidencia-se a Guerra do Chaco, que deflagrou conflito militar entre Bolívia e
Paraguai entre os anos de 1932 e 1935.
Enfrentando problemas políticos intensos com a deterioração da economia, devido aos
esforços da Bolívia para a Segunda Guerra Mundial em reduzir o preço do estanho, o governo
de Daniel Salamanca perdeu a maioria do congresso em 1º de julho de 1931. Após incidente
pequeno na fronteira com o Paraguai, Salamanca surpreende rompendo relações com o
Paraguai. Ao mesmo tempo, nesse período, alegando ameaçar comunistas, tentou aprovar
decreto que lhe daria plenos poderes, mas sua proposta foi rejeitada pelo Poder Legislativo.
Diante disso, Salamanca concentrou esforços na questão fronteiriça (ANDRADE, 2007, p. 31).
Segundo Everaldo Andrade, muitos autores indicam que a principal motivação da guerra se
trata dos supostos campos petrolíferos da região do Chaco. Contudo, essa afirmação não pode
ser feita descontextualizada do plano de fundo político e econômico (idem ibidem).
A guerra teve início em 1932 e o cenário desenhava uma vitória Boliviana, cuja
população e estrutura econômica eram superiores às do Paraguai. No entanto, o exército
boliviano era composto majoritariamente por indígenas que viviam nos altiplanos e a região do
Chaco apresentou um cenário completamente diferente, onde a resistência física seria decisiva.
Os paraguaios acostumados com as adversidades do território, superaram as capacidade
militares bolivianas. Como resultado, a paz foi celebrada em 14 de julho de 1935, com o triste
saldo para Bolívia de 65 mil vidas em soldados mortos e 240 mil quilômetros quadrados em
território.
Contudo, o fator decisivo da derrota boliviana foi a própria estrutura social. O Exército
reproduziu a segregação social no interior da caserna e no campo de batalha, onde os aimarás e
quíchuas eram constantemente humilhados pelos brancos e mestiços. Oficiais criollos gozavam
de regalias enquanto os soltados eram carentes de cuidados médicos mínimos.
Portanto, segundo Everaldo de Oliveira Andrade:

A guerra não significou uma integração do índio à nação; pelo


contrário, reafirmou toda a estrutura social de opressão, que ele já

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conhecia, e aprofundou ainda mais o fosso que separava a elite burguesa


branca da maioria indígena ou mestiça (idem, p. 33)

O primeiro partido político a surgir no pós-guerra foi o Partido Obrero Revolucionario


(POR), em 1935, que teria influência decisiva posteriormente, na Revolução de 1952 e na
consolidação da Central Obrera Boliviana (COB).
Em segundo lugar, temos os eventos que desaguam na Revolução de 1952, que
determinou mudanças substanciais na vida política e social da Bolívia, com a nacionalização
das minas de estanho, a reforma agrária, o voto universal e a reforma educacional
(MAKARAN-KUBIS, 2009). No entanto, a articulação política do movimento revolucionário
mais uma vez polarizou a sociedade boliviana, sendo as classes burguesas emergentes
representadas pelo Movimento Nacional Revolucionario (MNR), que desejavam implementar
transformações desde cima com apoio popular. A classe trabalhadora, por outro lado, foi
representada pela Central Obrera Boliviana (COB), com propostas de mudanças radicais do
sistema que marginalizava e oprimia (MAKARAN-KUBIS, 2009).
Assim, a crescente articulação do indigenismo na Bolívia desencadeou um movimento
de viés nacionalista aimará. Trata-se do movimento katarista, em homenagem a Tupac Katari17,
indígena aimará que liderou uma rebelião contra o Império Espanhol na província de Sicasica,
região do Alto Perú (MARINO, 2000). O katarismo se consolida a partir da década de 1970 e
é promovido pela intelectualidade aimará de formação universitária para recuperar uma
identidade étnica própria e, assim, se opor ao então nacionalismo homogeneizante do Estado
boliviano. Segundo Álvaro García Linera, para o Estado moderno “lo indio es pues, para la
racionalidad estatal, la purulencia social en proceso de displicente extirpación; es la muerte
del sentido histórico de lo válido” (GARCÍA LINERA, 2009, p. 252). Diríamos, em um sentido
dusseliano, que o índio é o não-ser.
Um dos grandes pensadores kataristas foi o filósofo aimará Fausto Reinaga, figura
central do movimento. Seu lema "Ni Cristo, ni Marx" convoca um retorno aos valores dos povos
originários e, segundo Makaran-Kubis, serve de “excelente ilustración del ‘despertar’ étnico
en Bolivia de los años setenta.” (MAKARAN-KUBIS, 2009).
Desse modo, a eleição de Evo Morales está inserida nesse contexto de nacionalismo
aimrá e do katarismo. Segundo Hoyêdo Nunes Lins, a repressão à produção de coca no final de
década de 1990 e início de 2000, foi o principal motor que revelou as novas lideranças, as

17 Trata-se de pseudônimo adotado, seu nome original era Julián Apaza.

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figuras de Evo Morales e de Felipe Quispe:

O repúdio ao combate à produção de coca se fortaleceu no governo de


Hugo Banzer Suárez (eleito em 1997), quando a repressão transformou-
se em "guerra" pela erradicação (Bolivia..., 1998). Entre os insurgentes
que, na segunda metade de 2000, bloqueavam estradas e lutavam contra
as forças de segurança, em Cochabamba e Oruro, figuravam
plantadores de coca exigindo a preservação de espaços para cultivo no
Chapare, a nordeste de Cochabamba, e o fim das iniciativas de extinção
em Yungas, ao norte de La Paz. À frente da sublevação perfilavam-se
Evo Morales e Felipe Quispe, este também uma liderança aimará,
defensor do "nacionalismo indigenista" (pertencente ao Movimiento
Indigenista Pachacutik). (LINS, 2009)

Diante dessas transformações ocorridas ao longo do tempo, não podemos imaginar que
o novo constitucionalismo latino-americano resgate uma cosmovisão inteiramente pré-colonial.
Não podemos esquecer que os indígenas do altiplano, vestidos com suas roupas típicas,
remontam a imposição de Carlos III, no final do século XVIII, bem como os trajes femininos e
penteado das índias, repartido ao meio, imposições do vice-rei Toledo. Mesmo a coca foi objeto
de intervenção na cultura indígena, deixando de ser um instrumento ritualístico para ser um
produto conveniente para o espanhóis (GALEANO, 2011, p. 73) No entanto, trata-se de
recuperar uma cultura que sofreu intensas transformações ao longo do tempo, sobretudo com o
processo de evangelização, mas foi preservada e hoje se revela como símbolo da mestiçagem e
da interculturalidade latino-americana.
Além disso, uma análise comparativa sobre a cosmovisão indígena no
constitucionalismo latino-americano deve levar em consideração as forças repressivas que
atuam em face de determinados grupos sociais. Abaixo podemos observar dados da CEPAL
sobre a parcela da população que se diz sofrer fazer parte de um grupo discriminado.

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Tabela 1: Porcentagem de população que afirma pertencer a um grupo discriminado


Países 2011
Argentina 17.3
Bolívia (Estado Plurinacional de) 34.3
Brasil 34.7
Chile 22.2
Colômbia 19.6
Costa Rica 17.8
Equador 16.4
El Salvador 6.9
Guatemala 34.8
Honduras 21.9
México 21.8
Nicarágua 17.2
Panamá 12.2
Paraguai 14.6
Peru 29.5
República Dominicana 17.7
Uruguai 15.8
Venezuela (República Bolivariana de) 12.7
Fonte: CEPALSAT – Base de dados 2012 | CEPAL.

No quadro acima podemos observar que, dentre os países da América Latina, a Bolívia
figura em terceiro lugar como país que possui maior porcentagem da população pertencente a
grupo discriminado, perdendo apenas para a Guatemala e para o Brasil. Desse modo, a
constituinte de 2008 se encontrava em um contexto de demanda por superação de desigualdades
e diante de forte movimento político articulado pelos grupos indígenas.
Assim, a partir desse momento, devemos estudar o conteúdo da cosmovisão que é
resgatado pelo constitucionalismo boliviano. Um dos maiores obstáculos para a traduzibilidade
entre o pensamento ocidental e aimará se trata do reducionismo cartesiano introjetado pelo
ocidente. O conceito de desenvolvimento é um exemplo. Para o povo aimará, o
desenvolvimento tem algo a ver com vida (Jaka), mas, ao mesmo tempo, vida é indissociável
do conceito de morte (Jiwa). O conceito ocidental de desenvolvimento, ao revés, não está

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subordinado ao princípio de complementaridade de opostos, mas pelo princípio de identidade.


Assim, desenvolvimento para o ocidente é simplesmente desenvolvimento (MEDINA, 2001, p.
33).
Desse modo, como em aimará não existem substantivos abstratos, apenas concretos,
mediante radicais enriquecidos de prefixos e sufixos, no qual se forma uma rede de
complementariedade (MEDINA, 2001, p. 34). Portanto, um dos grandes desafios os povos
originários é compreender a dimensão e o significado de desenvolvimento, que lhe é negado
pelo ocidente por serem justamente subdesenvolvidos. Exatamente para compreender isso que
ganha relevo a expressão qamaña.

5. Conclusão

Observamos incialmente os alicerces teóricos do novo constitucionalismo latino-


americano. Vimos que a democracia é expandida para instrumentos diretos, para permitir mais
legitimidade das decisões políticas. Ao mesmo tempo, o pluralismo surge como característica
marcante, permitindo o diálogo intercultural.
Ainda nesse ponto, contextualizamos a América Latina para demonstrar sua posição
periférica e dependente, sujeita à colonização nos dias atuais por meio da posição hegemônica
dos países centrais refletida na economia, na esfera militar e mesmo na imposição cultural. Em
seguida, partimos para análise do constitucionalismo latino-americano, sem dúvida
influenciado por essa projeção periférica.
Longe de apresentar conclusões cerradas sobre o problema levantado, o presente estudo
buscou aproximar a teoria constitucional encartada no novo constitucionalismo latino-
americano ao conjunto de teorias da libertação desenhadas em determinados campos do
conhecimento, particularmente na economia, na teologia, na filosofia e na educação.
Propomos, com isso, um marco filosófico para o novo constitucionalismo latino-
americano. Mapeando os pensamentos dos quais podemos apontar como essencialmente
originais do subcontinente, observamos a teoria da dependência na economia, a teologia da
libertação, no campo teológico, a filosofia da libertação na área filosófica, bem como a
pedagogia da libertação na área da educação. Assim, partimos da análise desse movimento de
libertação iniciado a partir da década de 1960 para apontar a filosofia da libertação e seu foco
no oprimido como sujeito histórico como a mais apta a lidar com temas como a descolonização,

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o pluralismo e o bem viver.


Contudo, outros problemas surgem em decorrência disso e devem ser enfrentados pela
sociedade. Com o pluralismo sendo o instrumento para levar dignidade a povos historicamente
alijados, como poderemos desenvolver um adequado espaço de traduzibilidade intercultural?
Observamos as dificuldades para compreensão da cultura quíchua sobre
desenvolvimento. A palavra qamaña surge, assim, como uma tentativa de compreensão desse
fenômeno, revelando uma visão holística de mundo e de integração entre espiritualidade e
materialidade.
No entanto, outras dificuldades revelam na medida em que o pluralismo avança. Haveria
possibilidade de convívio entre capitalismo e a cosmovisão quíchua encartada na Constituição
da Bolívia de 2009? O desenvolvimento da economia nos tempos atuais, que demanda um
crescimento econômico ilimitado, poderia se compatibilizar com o tratamento biocêntrico? São
questões relevantes e complexas que devem ser enfrentadas.
Portanto, o caminho trilhado pelo novo constitucionalismo latino-americano para
conferir dignidade ao oprimido e possibilidade de ser voz ativa na condução dos assuntos
relevantes da sociedade nos leva a pensar em um constitucionalismo da libertação, cuja fonte
filosófica advém de uma superação da ontologia da totalidade.

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A NOÇÃO DE JUSTIÇA SOCIAL EM NANCY FRASER E O ESTADO


PLURINACIONAL: Da Reificação Cultural pela Identidade Nacional ao Reconhecimento
Paritário do Outro

A CONCEPT OF SOCIAL JUSTICE IN STATE AND NANCY FRASER


PLURINATIONAL: From Cultural Reification the Joint National Identity Recognition of
the Other

Heleno Florindo da Silva1


Daury César Fabriz2

RESUMO: O presente artigo busca analisar a relação entre as construções teóricas de Nancy
Fraser acerca do reconhecimento, com os aspectos gerais do novo modelo de Estado
Plurinacional surgido na América Latina. Para tanto, analisaremos a concepção bidimensional de
justiça social em Nancy Fraser, bem como sua visão acerca da política do reconhecimento e os
problemas que o Estado Moderno Nacional, enquanto instituição reguladora da vida em
sociedade, apresenta na busca pela efetivação dessa justiça social. Após, verificaremos como o
Modelo Plurinacional de Estado pode responder aos problemas do Estado Moderno Nacional
apontados por Nancy Fraser, descrevendo, assim, como o nosso presente se configura como um
reflexo do nosso passado, ou seja, como a identidade nacional do Estado Nacional ainda está
presente no contexto periférico latino americano, e mais, como o novo Estado Plurinacional
latino americano pode ser visto como uma nova visão de Estado, que poderá romper com os
grilhões do Estado Nacional, rumo a uma justiça social efetiva, onde redistribuição e
reconhecimento sejam vistos como faces de uma mesma moeda.

ABSTRACT: This paper analyzes the relationship between the theoretical constructs of Nancy
1
Membro do BIOGEPE – Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão – da Faculdade de Direito de Vitória. Membro do
Grupo de Pesquisa Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória.
Bolsista da FAPES – Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Espírito Santo. Mestrando em Direitos e
Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória. Pós Graduado em Direito Público pelo Centro
Universitário Newton Paiva. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. Professor e Advogado.
2
Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Programa de Pós-
Graduação Stritu Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais (Mestrado) da Faculdade de Direito de Vitória.
Coordenador do Grupo de Pesquisa Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais. Presidente da
Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH). Professor e Advogado.

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Fraser on the recognition with the general aspects of the new model Plurinational State emerged
in Latin America. Therefore, we will analyze the two-dimensional conception of social justice in
Nancy Fraser, as well as its view of the politics of recognition and the problems the Modern
National State, while regulatory institution of society, shows that in the search for effective social
justice. After we check how the Model Plurinational State may respond to the problems of the
Modern National State appointed by Nancy Fraser, describing, as well as our present is
configured as a reflection of our past, ie, as the national identity of the nation state still is present
in peripheral Latin American context, and more, as the new Latin American Plurinational State
can be seen as a new vision of the state, which can break the shackles of the National State,
towards an effective social justice, where redistribution and recognition are viewed as sides of the
same coin.

PALAVRAS-CHAVE: Reconhecimento, Redistribuição, Paridade de Participação, Reificação


Cultural, Estado Plurinacional.

KEYWORDS: Recognition, Redistribution, Parity of Participation, Cultural Reification,


Plurinational State.

INTRODUÇÃO

O mundo mudou! Atualmente nosso tempo vem sendo marcado por profundas crises
sociais, econômicas e culturais que pensávamos nunca serem possíveis. Potências econômicas
vem perdendo espaço no “jogo econômico-financeiro” da globalização. Países de modernidade
tardia, tais como o Brasil, são considerados os “novos ricos”, a “bola da vez”, o que demonstra
como estamos insertos em tempos de transformações.
Diante desse mapa global, temos algo essencial, o problema do Estado Moderno
Nacional e seu modelo econômico – capitalismo – que já não corresponde mais aos anseios de
uma “aldeia global”, que está interligada por redes sociais virtuais, por prazeres tão fugazes
quanto necessários, por buscas respeito, de direitos, e mais, de reconhecimento.
Percebendo essa situação, bem como a existente e incessante busca do ser humano por

155
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reconhecimento, teóricos do mundo todo vêm desenvolvendo estudos para explicar essa situação-
problema. Dentre estes estudiosos podemos citar, para ilustrarmos a importância do tema, nomes
como o do canadense Charles Taylor, do alemão Axel Honneth e da norte americana Nancy
Fraser, cada qual percebendo, a sua maneira, a problemática da busca pelo reconhecimento.
Mas não só as teorias da busca por reconhecimento surgem no cenário atual como
explicações para o que estamos vivenciando. Novas acepções, modelos e, porque não, novos
paradigmas para o Estado, também ganham espaço na tentativa de desencobrirmos aquelas
pessoas alijadas da participação no mundo globalizado em que vivemos.
É nesse sentido, que destacaremos, no decorrer deste artigo, os novos modelos de Estado
surgidos na América Latina (Bolívia e Equador), denominados Plurinacionais, demonstrando em
que divergem do Estado Moderno, bem como em que medida podemos perceber nesse novo
modelo uma resposta às crises, principalmente àquelas insertas ao reconhecimento, que hoje
levam o Estado, nos moldes em que fora gestado a mais de 500 anos, à beira de um precipício.
Nós somos seres humanos, seres culturais, sociais, e em decorrência desse fato sempre
atuamos em nosso contexto social, na tentativa de sermos reconhecidos como sujeitos sociais,
como sujeitos capazes de participar ativamente de uma sociedade.
Será, portanto, nesse contexto de busca por reconhecimento, de busca por justiça social e
a partir das discussões trazidas acima, que buscaremos resposta ao seguinte problema: é possível
relacionarmos as linhas gerais da teoria de Nancy Fraser, referentes a essa problemática, àquelas
do modelo de Estado Plurinacional, buscando, a partir daí, proporcionar a todos não só o
reconhecimento em relação a cultura dominante, mas também, uma participação paritária da vida
em sociedade, sem que se exclua ou extermine determinadas culturas “submissas”?
A partir de então, para buscarmos resposta ao problema lançado acima, num primeiro
momento, traremos à discussão as construções de Fraser acerca do reconhecimento – e da
redistribuição – apontando suas divergências com outros teóricos, em especial, as que têm com
Axel Honneth, demonstrando como sua leitura percebe o modelo de Estado Moderno em que
vivemos, e mais, quais os principais elementos caracterizadores de sua teoria.
Faremos, em seguida, uma análise do modelo de Estado que surge na América do Sul,
denominado Plurinacional, apontando suas bases, bem como suas distinções em face do Estado
Moderno em que estamos inseridos, e mais, como essa construção pode alterar as relações entre
as pessoas a nível local, regional, nacional e internacional, resolvendo, assim, os problemas que

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Fraser destaca em relação ao reconhecimento no Estado Moderno Nacional.


Portanto, em tempos onde o reconhecimento vem sendo estudado por teóricos de todo o
mundo, bem como a construção de novas acepções para a figura do Estado põem em cheque os
elementos caracterizadores do Estado Moderno, de cunho nacional, em que vivemos, o presente
trabalho, a partir de uma leitura múltipla dialética, tem a função de colaborar com os estudos de
ambos, demonstrando como poderemos construir, a partir da junção dos problemas e soluções
levantados por Fraser em seus estudos sobre o reconhecimento, com as diretrizes do Estado
Plurinacional, uma concepção de paridade de participação que nos possibilite, nos termos
destacados por Fraser, alcançar, realmente, uma justiça social inclusiva e transformativa.

1 – A CONCEPÇÃO BIDIMENSIONAL DE JUSTIÇA SOCIAL EM NANCY FRASER: A


Política do Reconhecimento e os Problemas do Estado Moderno Nacional em que Vivemos

Para compreendermos como Nancy Fraser constrói seu posicionamento acerca do


reconhecimento fixaremos, neste ponto, algumas premissas básicas em seus estudos, tais como, a
ideia de paridade de participação, reificação cultural, a visão bidimensional de justiça social, que
compreende as ideias de redistribuição e de reconhecimento, dentre outros aspectos que por
ventura exporemos em nossa construção.
Contudo, antes de visualizarmos, em si, os conceitos de Nancy Fraser acerca de sua
visão do reconhecimento, devemos destacar que a referida autora aparece como ícone desse
assunto, juntamente com outros grandes nomes da atualidade – Charles Taylor3 e Axel Honneth4
– e mais, que ela constrói seus entendimentos acerca do reconhecimento de uma forma peculiar.
Para Fraser (2008, p. 168-169) não há possibilidade de apreendermos a noção pura de

3
Neste trabalho não iremos abordar as construções teóricas de Charles Taylor acerca do reconhecimento. No entanto,
para maiores esclarecimentos acerca de seus posicionamentos sobre o tema aqui discutido, ver TAYLOR, Charles. As
Fontes do Self: a construção da identidade moderna. 3ªed. São Paulo: Editora Loyola, 2011; TAYLOR, Charles.
Argumentos Filosóficos. São Paulo: Editora Loyola, 2000. Cap. 12, p. 241-274.
4
Em relação a Axel Honneth, o presente estudo trará abordagens feitas por Nancy Fraser acerca de seu estudo, haja
vista neste artigo buscarmos expor, de forma mais detalhada, as características principais do pensamento desta, de
modo que para um maior aprofundamento acerca da visão do alemão Axel Honneth sobre a problemática do
reconhecimento, ver HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2ªed..
Trad. por REPA, Luiz. São Paulo: Editora 34, 2009; MATTOS, Patrícia. O Reconhecimento, entre a Justiça e a
Identidade. In.: Revista Lua Nova, nº63, 2004 e LUCAS, Doglas Cesar e OBERTO, Leonice Cadore.
Redistribuição versus Reconhecimento. Apontamentos sobre o debate entre Nancy Fraser e Axel Honneth. In.:
Revista Direitos Culturais. Santo Ângelo. Vol. 5. nº8. jan./jun. 2010, p. 27-40.

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reconhecimento se não a aliarmos àquela referente a redistribuição, traduzindo tal perspectiva


naquilo que a autora entende como sendo justiça social.
A partir de então, poderemos perceber que sua construção teórica nasce da visão que tem
do tempo em que vivemos, ou seja, Nancy Fraser aponta que a sociedade contemporânea está
perto de uma importante transformação social, onde a globalização exerce um papel fundamental,
haja vista o fato da ordem internacional, dominada por Estados soberanos, começar a se
desgastar, ou seja, aos poucos está sendo substituída por uma ordem globalizada, que reduzirá a
capacidade de governação dos Estados Nacionais, afinal, esses já não correspondem mais aos
anseios da sociedade do conhecimento em que estamos inseridos (FRASER, 2002).
Diante do cenário percebido pela autora, podemos concluir que a globalização está
gerando um novo modus de reivindicação política, que podemos denominar de luta pelo
reconhecimento. De um lado essa busca pelo reconhecimento pode ver vista como uma forma de
ampliarmos nosso entendimento acerca da noção de justiça social, que passará a compreender
não só questões inerentes a representação e a identidade mas, também, questões acerca do
problema da diferença.
Sob esta perspectiva, temos de destacar que nas palavras de Fraser (2007b, p. 298) a
mudança da redistribuição para o reconhecimento, “é parte de uma transformação histórica de
maior escala”, que está associada, segundo ela, “à globalização”, seja se a percebemos sob a ótica
da queda do comunismo, seja se a olharmos à luz da ascensão do neoliberalismo enquanto
modelo de governo no plano político-econômico.
De outro lado, não podemos concluir que esse cenário de busca pelo reconhecimento nos
proporcionará um aprofundamento das questões acerca da redistribuição, ou seja, a busca pelo
reconhecimento poderá, por si só – se visualizada de forma estanque ao problema da
redistribuição – proporcionar um desenvolvimento desigual para a sociedade em que vivemos.
Fraser, a partir de então, (2002, p. 10) nos demonstra problemas ou riscos, bem como
soluções que podem ser percebidas como inerentes ao atual cenário da globalização,
principalmente em se tratando do caráter identitário e do reconhecimento social, e mais, frente
àquilo que ela destaca como substituição de lutas – da redistribuição ao reconhecimento – senão
vejamos
o risco da substituição das lutas por redistribuição pelas lutas por reconhecimento (…).
Para neutralizar esse risco, proporei uma análise da justiça social. (…) o risco da atual
centralidade da política cultural (…). Para que este risco seja neutralizado, proponho
uma concepção não identitária do reconhecimento adequada à globalização (…) o risco

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da globalização estar a subverter as capacidades do Estado para reparar os tipos de


injustiça. A fim de neutralizar este risco, proporei uma concepção múltipla de soberania
que descentre o enquadramento nacional. Em cada um dos casos, as concepções
propostas assentam em potencialidades emancipatórias que estão a despontar na atual
constelação.

Assim, se analisarmos o pensamento de Nancy Fraser, a partir dessas primeiras


conclusões que autora nos coloca, perceberemos que as angústias acerca daquilo que ela traz
como justiça social estão separadas em duas frentes de um mesmo lado da batalha, ou seja, por
uma perspectiva, temos a busca pela redistribuição, que almejam uma distribuição mais
igualitária dos recursos e bens que possuímos enquanto grupo social e, por outro lado,
percebemos as políticas de reconhecimento, tais como aquelas inerentes às minorias étnicas,
raciais, sexuais ou de gênero.
Fraser (2008, p.167-170) nos aponta, a partir das premissas acima, que um dos grandes
problemas trazidos pela globalização à justiça social é o fenômeno da troca de lutas – da
redistribuição de renda ao reconhecimento –, sendo que para ela, não deveríamos nos restringir,
na busca pela justiça social, a uma dessas duas perspectivas, haja vista o fato de que a justiça
requer tanto redistribuição, quanto reconhecimento. É a partir desse ponto que a citada autora
constrói sua visão bidimensional da justiça social.
Ressalta-se neste ponto – quando Fraser reconhece o problema do reconhecimento como
sendo inerente às questões da justiça social – que a citada autora diverge de outros expoentes –
Taylor e Honneth – da teoria do reconhecimento, haja vista o fato desses últimos ligarem a ideia
de reconhecimento com as noções de ética, conforme depreenderemos abaixo.
A partir disso, Moreira (2010, p. 46) destaca que na era pós-socialista, conforme
apregoado por Fraser, há um processo de transformação da sociedade, configurado pela troca
gradativa das lutas por redistribuição pelas lutas por reconhecimento, ou seja, “os conflitos de
classe são substituídos, nas três últimas décadas, por conflitos de status social (termo utilizado
pela autora para se referir à condição de reconhecido), advindos da dominação cultural”.
Desta feita, se o reconhecimento e a redistribuição, enquanto faces de uma mesma
moeda – justiça social –, são os remédios para alcançarmos respostas aos problemas de nosso
tempo, antes de continuarmos, temos de destacar, a contrário sensu, as injustiças que são
percebidas por Fraser em nosso contexto, reconhecidas, assim, como o mal a ser combatido.
Aqui, através de uma distinção reconhecida pela própria autora como meramente

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analítica, a primeira injustiça que podemos perceber, é aquela referente a visão sócio econômica –
percebida a partir de uma estrutura política econômica da sociedade em que vivemos – que gera
problemas, tais como: a exploração da mão de obra, a marginalização econômica e a privação de
um padrão material mínimo de vida. A segunda injustiça que podemos perceber em Fraser, é
aquela referente ao perfil simbólico e cultural, que está atrelada aos “padrões sociais” de
representação, interpretação e comunicação, ou seja, uma injusta de onde podemos retirar, por
exemplo, problemas relacionados a dominação cultural, ao não reconhecimento e ao desrespeito
(MOREIRA, 2010, p. 48-49).
Para combater tais injustiças, Fraser destaca a necessidade de efetivarmos, como visto
acima, uma justiça social que não seja arraigada de forma isolada, em mecanismos de combate a
má distribuição de bens e valores, ou naqueles inerentes ao combate do não reconhecimento, o
que poderia gerar um eclipse de uma busca pela outra, mas sim, em mecanismos que nos
possibilite perceber, de forma conjunta, tanto a satisfação da redistribuição, quanto do
reconhecimento.
Um desses mecanismos é percebido pela autora com o desígnio de princípio da paridade
de participação, que surge como meio de interação entre os vários sujeitos sociais, sem que um
venha a se sobrepor ao outro, ou seja,

a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros (adultos) da sociedade
interagir entre si como pares. São necessárias pelo menos duas condições para que a
paridade participativa seja possível. Primeiro, deve haver uma distribuição de recursos
materiais que garanta a independência e “vos” dos participantes. (…) a segunda condição
requer que os padrões institucionalizados de valor cultural exprimam igual respeito por
todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a consideração
social (FRASER, 2002, p. 13).

Assim, podemos reconhecer que o princípio da paridade de participação pode ser visto
como o objetivo principal da teoria da justiça em Fraser, haja vista esta ideia ser de melhor
compreensão e concretização, do que aquela desenvolvida por Honneth – ideia de autorrealização
– e mais, por possibilitar que saiamos da análise do reconhecimento a partir de uma perspectiva,
meramente, ética.
E mais, para que essa noção de paridade de participação efetivamente ocorra, podemos
extrair, do pensamento de Fraser, dois pressupostos básicos, quais sejam: a remoção dos
obstáculos para uma participação social completa, bem como o desmantelamento dos obstáculos

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culturais que foram institucionalizados ao longo do tempo (PINTO, 2008, p. 41) – o que,
conforme demonstraremos no decorrer deste trabalho, pode ocorrer através de um novo modelo
de Estado que venha substituir o modelo atual, ou seja, um “novo” Estado capaz de ser
construído a partir tanto das noções de redistribuição, quanto de reconhecimento, de modo a
desconstruir as institucionalizações culturais do, ainda soberano, Estado Nacional.
Temos de destacar ainda – a partir do dito acima – uma das principais divergências entre
Honneth e Fraser, qual seja: a construção ética, segundo Fraser, da teoria do reconhecimento de
Honneth, que separa de forma esquizofrênica, a filosofia moral. Segundo a citada autora,
Honneth separa a noção de moralität kantiana (o correto) – ligada a ideia de distribuição – da
noção de reconhecimento (o bem) – sittlichkeit (ética) hegeliana –, o que para ela não deve ser o
correto, sob pena de sobrepormos as ideias de reconhecimento sobre as de redistribuição,
causando, assim, um eclipse da redistribuição pelo reconhecimento (COUTINHO, 2012, p. 16).
Se por um lado Honneth, seguindo a tradição hegeliana, apregoa que o reconhecimento
intersubjetivo é uma condição essencial para o desenvolvimento de uma identidade –
reconhecimento das identidades – Fraser, ao seu turno, não vê o reconhecimento como uma
categoria central da sociologia e psicologia moral, onde a ideia de reconhecimento está ligada a
noção de autorrealização individual, mas sim, o enxerga como sendo uma questão de justiça, ou
seja, o reconhecimento passa a ser uma espécie de padrão universal de justiça, aceito por todos,
partindo da ideia de que todos os seres humanos possuem igual valor (MATTOS, 2004, p. 150).
Ao construir a ideia de redistribuição e reconhecimento como sendo dimensões de uma
mesma justiça, e mais, dessas acepções como mecanismos irredutíveis um ao outro, submetendo-
os àquilo que chama de princípio da paridade de participação, como visto acima, podemos
concluir que Fraser posiciona ambos na perspectiva da moralidade, ou seja, a autora evita, assim,
voltar-se à ética5.
Outra construção – já mencionada acima – de Fraser, é em relação ao reconhecimento
enquanto questão de status social, ou seja, o que nos exige reconhecimento não é uma questão de
identidade específica de um indivíduo ou grupo, mas sim, a condição necessária para os membros
desse grupo serem tidos como parceiros integrais durante a interação social.
Conclui Fraser (2007a, p. 107), portanto, que “o não reconhecimento,

5
Para maiores esclarecimentos acerca do distanciamento que Nancy Fraser propõe no tocante a análise do
reconhecimento, ver FRASER, Nancy. Reconhecimento sem Ética?. In.: Revista Lua Nova, São Paulo. n.70. pp.
101-138. 2007.

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consequentemente, não significa depreciação e deformação da identidade de grupo. Ao contrário,


ele significa subordinação social no sentido de ser privado de participar como igual na vida
social”.
Como podermos perceber, nesse modelo de status criado por Fraser, para verificarmos a
ocorrência do reconhecimento, temos de ter como premissa base, o seu contrário: o não
reconhecimento. Essa negativa ao reconhecimento será visível no momento em que as
instituições sociais, tais como: o Estado, estruturarem a interação social nos moldes de normas
culturais que sirvam para impedir a paridade de participação, dando origem àquilo que a citada
autora chama de reificação cultural.
Temos de destacar, neste ponto, que a abordagem do reconhecimento, enquanto uma das
faces de uma mesma moeda – justiça social –, criada por Fraser, vai de encontro com o modelo
padrão da política de reconhecimento, qual seja, o modelo da identidade.
Em relação a esse modelo da identidade, diagnosticado por Fraser como um dos
problemas para se alcançar a justiça social, devemos destacar que, segundo ela, aquele se
caracteriza por dar azo a uma política da identidade, o que para Fraser, não parece ser o caminho
mais correto, haja vista essa identidade criada enquanto modelo, ser um padrão de aceitação ou
não do outro, reificando, assim, a cultura dominante, em desfavor da cultura submissa.
Partindo dessas preocupações, ou seja, que o modelo de identidade oriundo dessa
política padronizada de reconhecimento, podemos perceber que Fraser destaca a violência
cultural que essa forma de reconhecimento pode gerar, de modo que para ela

(…) o modelo reifica a cultura. Ignorando as interações transculturais, ele trata as


culturas como profundamente definidas, separadas e não interativas, como se fosse óbvio
onde uma termina e outra começa. Como resultado, ele tende a promover o separatismo e
a enclausurar os grupos ao invés de fomentar interações entre eles (FRASER, 2007a,
p.107).

É a partir dessa percepção de reconhecimento que Fraser constrói sua visão de


reconhecimento enquanto status, o que nos possibilita, diferentemente das visões de Honneth e
Charles Taylor, examinar os padrões institucionalizados de valoração cultural em função de seus
efeitos sobre a posição relativa dos atores sociais, ou seja, se, e quando, esses padrões culturais,
institucionalizados, possibilitam aos vários atores sociais constituírem-se como parceiros atuantes
no seio social enquanto seres iguais (FRASER, 2007a, p. 108).

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Será a partir dessas discussões acerca da funcionalidade do Estado Moderno Nacional,


em tempos de capitalismo globalizado, em relação as políticas do reconhecimento, bem como o
problema da padronização de um modus vivendi, ou seja, de uma cultura dominante, que deve ser
percebida enquanto a correta, descaracterizando as demais, que buscaremos, no ponto seguinte,
verificar como o “novo” modelo de Estado, surgido em terras latino americanas, pode ser o
começo de um rompimento com o modelo nacional de Estado, que nasceu, se concretizou e ainda
hoje representa uma forma de violação, pela cultura dominante, do modo de vida daquelas
culturas que ficam a margem da sociedade, ou daquelas que nem sequer são reconhecidas
enquanto cultura.
Acerca do referido fenômeno globalizante em que vivemos, temos de destacar as
palavras de Fraser (2002, p. 17) acerca das ameaças que a globalização representa para o Estado
Nacional, haja vista o fato de em nossos dias não ser mais possível que admitamos esse modelo
de Estado como sendo a única instância de atuação e regulação da justiça social, haja vista o
Estado Nacional não dar conta, nos moldes em que fora gestado e que ainda permanece, de
separar quais os temas são nacionais, quais são locais, regionais ou globais, padronizando, assim,
o que será ou não reconhecido.
É preciso termos uma visão múltipla, que venha descentrar as institucionalizações do
Estado Nacional, ou seja, é preciso que saibamos respeitar e concretizar direitos para todos,
independentemente se pertencem a essa ou aquela cultura, a essa ou aquela identidade, a esse ou
aquele status social. Portanto, abre-se espaço agora para discutirmos como o Estado Plurincional
é capaz de vencer os problemas de reconhecimento, apresentados por Fraser enquanto reificação
cultural, do Estado Moderno Nacional.

2. – A ESPERANÇA QUE NASCE NA AMÉRICA DO SUL: De como o Modelo


Plurinacional de Estado Responde aos Problemas do Estado Moderno Nacional Apontados
por Nancy Fraser

Ao falarmos de reconhecimento, bem como de justiça social, reificação cultural,


paridade de participação, não podemos nos esquecer de que os apontamentos trazidos por Nancy
Fraser em sua obra, não podem ser percebidos, separadamente, à questão da análise da

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importância que o Estado possui na concretização ou afastamento dessas premissas lançadas pela
autora.
É importantíssimo, então, discutirmos a presença do Estado como um dos principais
componentes para que alcancemos o reconhecimento, a redistribuição, a paridade de participação,
ou seja, uma verdadeira justiça social.
Podemos perceber que, tanto nas construções de Nancy Fraser, quanto nas construções
filosófico doutrinárias de Axel Honneth – principal opositor das ideias de Fraser, e que poderá ser
melhor estudado em outro trabalho – a figura do Estado caracterizada ali é aquela do Estado
Nacional – moderno – principalmente o modelo de Estado Nacional fincado nos países do
hemisfério norte (PINTO, 2008, p. 48).
Se, ao contrário, analisarmos as discussões acerca do reconhecimento e, desse modo, da
justiça social trazida por Fraser, em contextos de extrema pobreza, como a grande maioria dos
países do sul global, poderemos extrair daí que o reconhecimento ficará adstrito ao
reconhecimento externo, ou seja, o outro, nacionalmente identificado enquanto habitante do
norte, reconhecerá o sulista sem que daí, necessariamente, se construa uma relação de paridade.
Perceberemos, a partir de então, que o modelo de Estado Moderno Nacional, imposto
aos países de modernidade tardia, como o caso do Brasil, é fonte – a partir do momento em que
se possibilita a um determinado status social ser tido como o espelho para todas as espécies de
reconhecimento que daí partirem – das dificuldades existentes para que alcancemos, realmente,
uma justiça social. E mais, como nos adverte Pinto (2008, p. 50)

Se o Estado, tal qual está proposto, é o responsável por grande parte das injustiças, este
mesmo Estado só pode ser o executor das tarefas a ele atribuídas por Fraser, se for
transformado em agente de políticas socialmente justas. (…). É no embate entre o
sistema e seus elementos exteriores que se poderá reconstruir o Estado.

Após essas primeiras incursões ao diálogo proposto, passaremos à analise do Moderno


Estado Nacional e as transformações inauguradas pelo novo constitucionalismo latino americano
acerca do Estado Plurinacional, ou seja, destacaremos, a partir de agora, como se deu, ao longo
dos séculos, a formação do modelo de Estado em que estamos inseridos, bem como o fato desse
modelo hoje estar chegando “à beira do precipício”.
Para tanto, nos utilizaremos – haja vista as características do presente trabalho – do
aspecto que julgamos ser mais relevante para a caracterização do Estado Moderno Nacional, qual

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seja: a questão da identidade nacional e seus desdobramentos – a relação entre o nós e o eles
surgida na busca dessa identidade nacional, como o fato da política da identidade nacional ter
representado um gigantesco massacre dos povos originários dos países periféricos, em especial,
dos latino americanos.
Os problemas aludidos – acerca da construção de uma identidade nacional – estão para o
Estado Nacional, assim como a construção do capitalismo, enquanto modelo econômico-
financeiro, está para o Estado Liberal, ou seja, iremos perceber a partir de então como a busca e a
formação de uma identidade nacional foi essencial para o surgimento do Estado enquanto
instituição moderna, em substituição ao modelo feudal de agrupamento social. E mais, como a
identidade nacional foi utilizada pelo poder soberano do Estado, com o objetivo de construir uma
sociedade separada não só entre o Nós e o Eles/Outros, mas também, entre aqueles e os
considerados inexistentes.
Nessa caminhada, buscaremos um marco para o surgimento do paradigma da
Modernidade – devemos frisar aqui que a história não é, e não deveria ser, vista de forma linear e
estanque, ou seja, acontecimentos históricos, tais como o surgimento da Modernidade, bem como
de suas instituições sociais, tais como o Estado, não possuem hora, dia, mês ou ano exatos, mas,
ao contrário, são frutos de revoluções, de décadas de avanços e retrocessos em direção ao novo –
o ano de 14926, haja vista este ano ter marcado o “descobrimento” das Américas por Colombo,
bem como a queda de Granada, última cidade muçulmana da Europa medieval.
Sob tal perspectiva, percebemos em Dussel (1994, p. 11) que Espanha e Portugal são os
primeiros modelos de Estados que surgem com a modernidade no fim do séc. XV, e mais, que a
partir do momento em que espanhóis e portugueses se lançam ao mar, as primeiras periferias vão
sendo formadas.
Há que ressaltar, antes de continuarmos, o fato de que em Dussel é possível realizar uma
análise não europeizada da história humana, em especial, acerca da origem da principal
instituição moderna: o Estado. Também perceberemos que, sua desvinculação com o
conhecimento da metrópole, nos possibilita perceber como pensadores, do cabedal de Hegel,
entendiam a Europa – reconhecida como o fim de toda e qualquer racionalidade. Assim, tudo o

6
Em que pesem as discussões históricas e doutrinárias acerca do termo inicial do Estado, enquanto instituição
moderna, adotamos nesse trabalho o mesmo entendimento de José Luiz Quadros Magalhães, conforme artigo acerca
das discussões travadas entre o culturalismo e o universalismo diante do Estado Plurinacional. MAGALHÃES, José
Luiz Quadros de. Culturalismo e Universalismo diante do Estado Plurinacional. In: Revista Mestrado em Direito
– UNIFIEO – Osasco, ano 10, nº2. 2010a. p. 201-219.

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que há de bom em se tratando de filosofia e teorias, em especial, àquelas ínsitas ao Direito,


partem da Europa Ocidental, seja da Grécia, Alemanha, Itália ou França.
A partir daí, a “conquista” das Américas pode ser caracterizada como algo de extrema
importância na construção da subjetividade europeia como sendo o centro e o fim de toda a
história mundial, seja porque através da exploração dos recursos que aqui existiam, seja pela
utilização dessas terras como mecanismos de enriquecimento dos pobres e miseráveis europeus –
aqueles que, embora não tido como Nós, eram reconhecidos enquanto Outros, um “privilégio”
que os habitantes originários das Américas não possuíam, conforme veremos abaixo.
Nesta linha, percebemos que a partir do momento em que o Europeu coloca seus pés em
solo Americano dá-se início a uma série de atentados contra os habitantes originários, ou seja, tais
pessoas, não reconhecidas como humanas, eram passíveis de quaisquer tipos de atrocidades, seja
frente a sua cultura, seja frente ao seu corpo e, na grande maioria das vezes, contra sua vida.
Contudo, ao perceber a necessidade, bem como a possibilidade – através do poderio
bélico – de se utilizar os povos que aqui viviam como instrumentos de exploração de suas terras –
coloniais – ao benefício da metrópole, deu-se a partida para a formação de uma identidade
nacional, a fim de que as várias culturas, diferentes entre si, se reconhecessem enquanto
pertencentes àquela sociedade – metrópole.
Nesta busca, surgem instituições uniformizadoras, que aviltam a cultura existente, haja
vista não sê-la condizente com aquela tida como a correta, como a que representa o belo. Diante
disso, Magalhães aponta que:

“A identidade nacional é fundamental para a centralização do poder e para a construção


das instituições modernas, que nos acompanham até hoje, sem as quais o capitalismo
teria sido impossível: o poder central, os exércitos nacionais, a moeda nacional, os
bancos nacionais, o direito nacional uniformizador, especialmente o direito de família,
de sucessões e de propriedade, a polícia nacional, as polícias secretas e a burocracia
estatal, as escolas uniformizadoras e uniformizadas” (2012a, p. 2).

A partir da construção exposta acima por Magalhães, temos que ressaltar a utilização da
religião como um dos principais mecanismos de uniformização da identidade nacional. A Santa
Inquisição, neste sentido, atuava como instrumento de afastamento daqueles tidos como
diferentes, do inexistente, de modo que nacionais só seriam os que professassem as mesmas
condutas religiosas do europeu da metrópole – condutas cristãs.
A partir desse momento pode-se retirar as primeiras conclusões dessas discussões

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históricas, filosóficas, políticas e culturais, quais sejam: que o Estado, enquanto instituição
moderna, surgido no final do séc. XV, é uniformizador, haja vista existir, dentro de seu sistema
jurídico-legal, um único direito de família, bem como um único direito de propriedade; é
homogenizador, afinal, a ideia de identidade nacional é necessária para a formação e permanência
do Estado sendo que, desse modo, na busca por essa identidade o europeu poderia se valer de
quaisquer meios que lhe aprouvesse.
E mais, podemos perceber, também, que o modelo econômico do capital se consolidou
como essência da economia moderna, haja vista sê-lo baseado à época, na exploração mineral das
colônias periféricas, dos povos originários enquanto instrumentos/produtos e, posteriormente, no
tráfico dos habitantes da África para as Américas (MAGALHÃES, 2012b, p. 3).
Percebemos, também, que para haver, realmente, a formação de um Estado Nacional
europeu, haveria a necessidade de se criar uma identidade nacional europeia, ou seja, a partir da
imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos,
para que assim todos reconhecessem o poder soberano do Estado.
Portanto, o Estado nacional, em seu processo de gestação, está embrionariamente ligado
à intolerância, ou seja, à negação da diversidade religiosa e cultural que, estando fora de
determinados padrões e limites estabelecidos pela cultura hegemônica da identidade nacional,
deveriam ser adequadas, ou, em muitos casos, exterminadas.

2.1 – O Nosso Presente Como Reflexo do Nosso Passado: a identidade nacional no contexto
periférico latino americano

A partir dessas premissas, ao trazermos o contexto de formação do Estado Nacional para


o contexto da América Latina, perceberemos que, em terras latinas, esse paradigma de Estado
surge a partir de lutas pela independência no decorrer do séc. XIX, ou seja, antes de serem
Estados Nacionais, os atuais países latino americanos foram, durante séculos, espaços de todos os
tipos de exploração.
Ressalta-se a existência de um detalhe comum à todos os países latino americanos: o
fato de que os seus entes soberanos surgiram como meros benefícios destinados a uma parcela
minoritária da população – a parcela que a época era reconhecida enquanto Nós ou Eles (esses, os
europeus pobres) –, ou seja, para o contexto da busca pela identidade do povo de cada uma das

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sociedades independentes, necessária para a formação de um Estado, continuavam como “massa”


desinteressante às elites, os representantes dos povos originários – “índios” –, bem como aqueles
de imigração forçada – os negros.
Neste ponto, ao analisar o processo de formação do Estado Nacional no contexto
europeu, com o Estado Nacional que se formou – impositivamente – na América Latina,
Magalhães (2010c, p. 16) aponta que foram processos diferentes, senão vejamos

De forma diferente da Europa, onde foram construídos Estados nacionais para todos que
se enquadrassem ao comportamento religioso imposto pelos Estados, na América não se
esperava que os indígenas e negros se comportassem como iguais, era melhor que
permanecessem à margem, ou mesmo, no caso dos povos originários (chamados
indígenas pelo invasor europeu), que não existissem: milhões foram mortos.

Em todo o contexto latino americano a formação dos Estados Nacionais foi


hegemonizada pelas classes dominantes, de matrizes europeias, conforme visualizamos acima,
sendo que, em relação aos inúmeros agrupamentos indígenas, por exemplo, houve um
planejamento acerca de uma pretensa universalização, que ia desde o reconhecimento de direitos
jurídico-políticos de cidadania àqueles que se enquadrassem como “cidadãos”, à prática de
etnocídio.
Se voltarmos à acepção europeia de identidade nacional como mecanismo
homogenizador do Estado Nacional, perceberemos que, a partir da necessidade de se fortalecer
enquanto Estado, cunhou-se o que entendemos como identidade nacional, ou seja, dos elementos
que os europeus entendiam à época serem os que melhor demonstravam o modo de vida a ser
seguido, buscou-se estratificar o mundo conhecido a partir de sua semelhança com esse modelo,
o que legitimou a exclusão dos povos muçulmanos, bem como a dizimação dos “índios” no
contexto latino americano, e a escravização do africano.
Quanto à expressão destacada acima – índios – temos de destacar o seu conteúdo, de
separação entre o Nós – europeu – e o Eles – os povos originários que aceitavam seguir o modus
vivendi europeu –, bem como entre o Nós e o Inexistente – o índio que não se sujeitava aos
desígnios europeus – haja vista ao fato de que, etimologicamente, o desígnio índio se referir ao
habitante do que se conhecia à época como Índias, e mais, ao fato de que nas Américas, àquela
época, existirem dezena de milhões de “índios” de inúmeras culturas diferentes, o que para o
Europeu não significava nada, legitimando, assim, a imputação de uma única personalidade a

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todos os povos originários que aqui existiam.


A história, assim, nos ajuda a perceber como essa identidade forçada – índio –,
possibilitou a dizimação cultural pelo Europeu dos povos originários das Américas, entendidos
como não humanos, inexistentes, haja vista, dentre as inúmeras diferenças com o perfil, ou seja, a
estética7, europeia, não professarem a mesma religião.
Momento interessante que nos demonstra como essa configuração da identidade imposta
ao “índio” ocorreu, dá-se no debate entre o Frei Bartolomeu de Las Casas e o professor Juan
Gines de Sepulveda, por onde o primeiro escrevia ao Rei que o Eles/Inexistentes – os índios –
assim como o Nós, eram pessoas humanas, e deveriam ser tratadas como tal, sendo que, em
contrapartida, o segundo, visualizava a possibilidade de intervenção cultural, mesmo com a
utilização da força, a fim de evangelizar, “em cristo, aqueles seres”. (MAGALHÃES, 2012a, p.
5).
Antes, contudo, de aprofundarmos no reconhecimento da identidade nacional como
verdadeira estética do poder soberano do Estado Nacional, há que ressaltar que no presente
trabalho não há pretensão de esgotar todos os acontecimentos históricos ocorridos desde o
surgimento do Estado, da construção de uma identidade nacional, bem como do Estado em que
esse modelo se encontra em nossos dias, mas, tão somente, lançar uma nova visão de tais fatos.
A partir dessa visão radicalizada, extraída ao longo da construção daquilo que
destacamos ser a representação da busca por uma identidade nacional, percebemos que as
pessoas que não se encontram do lado “certo” e “universal”, o Nós, portanto, nem sequer serão
entendidas como outro, pois esse é passível de reconhecimento, são, mas do que isso, percebidas
como seres inexistentes, matáveis8. Diante disso, acentua Boaventura de Sousa Santos que:

“A divisão é tal que o “outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, torna-se
inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. (...). Tudo aquilo que é produzido
como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que
a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. (...). Para além
dela há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não dialética”. (2007, p. 3-4).

Desta feita, a construção de uma identidade nacional pelo Estado Moderno Nacional
atuou como mecanismo de radicalização entre aqueles que pactuam do modelo hegemônico de
7
A palavra estética aparece aqui empregada no mesmo sentido que FABRIZ (1999) lhe dá.
8
Essa expressão está empregada no presente trabalho no mesmo sentido empregado por Agamben, ou seja,
representa o que ele chama de Homo Sacer, ou seja, a vida matável. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder
soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

169
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

ser, e aqueles que sequer poderão, um dia, vir a ser reconhecidos, haja vista serem a-humanos,
inexistentes.
Diante dessa visão entre os que são iguais e aqueles que sequer virão a ser igualizados,
percebemos que a chegada do Europeu em terras americanas se pautou nessa dicotomia, ou seja,
como os habitantes originários dessas terras não pactuavam com o modo de ser europeu, bem
como não aceitavam tal ingerência – a cristianização dos povos originários da América é um dos
inúmeros exemplos – poderiam ser objeto das mais vis atrocidades – afinal para além do equador
não há pecados –, pois na condição de “zona colonial” esses povos originários eram vistos como
exemplos do que um dia se intitulou “Estado de Natureza”, ou seja, “as teorias do contrato social
dos séculos XVII e XVIII são tão importantes pelo que dizem como pelo que silenciam”
(SANTOS, 2007, p. 6-8).
O movimento de escravização dos “índios”, portanto, foi entendido como mecanismo
necessário para a conquista da metrópole sobre a colônia, pois como os habitantes dessas “novas”
terras nem sequer eram humanos, ou morreriam ou serviriam como mercadoria, instrumento de
trabalho. Neste mesmo sentido, Faoro nos aponta que:

O selvagem americano deveria ser subjugado, para se integrar da rede mercantil, da qual
Portugal era o intermediário. Sem essa providência perder-se-ia o pau-brasil, e,
sobretudo, a esperança dos metais preciosos se desvaneceria. (2001, p. 127).

A Identidade Nacional, a partir dos citados pressupostos uniformizadores, aparece como


elemento estético do poder do Estado, ou seja, a estética europeia entendida como sendo aquela
visão correta, haja vista ser o belo, o padrão a ser necessariamente seguido, o que deve ser
endeusado, aparece, perfeitamente, na busca por uma identidade nacional, que como visto acima,
foi o elemento utilizado pelo Estado Nacional moderno e soberano, para unir os vários povos,
anteriormente separados em feudos.
Desse modo, podemos visualizar que a formação de uma identidade nacional atuou, no
âmbito do Estado Nacional moderno, como instrumento do poder soberano, ou seja, a identidade
funcionava como a estética do poder no Estado Nacional a fim de separar os nacionais, o Nós,
dos não nacionais, o Eles/Outros, e mais, de possibilitar a utilização daqueles que nem sequer
eram tidos como Outros, pois eram a-humanos, justificando, nesses termos, a escravidão e a
dizimação de culturas milenares que existiam em terras do Novo Mundo, tais como a Inca, a
Maia e a Asteca.

170
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Portanto, em que pesem as diferenças entre a América Latina ao final do séc. XV, com a
atual América Latina, a ingerência da identidade nacional ainda está imanente em nosso meio, ou
seja, se antes ser nacional era professar os dogmas europeus, hoje ser nacional e participar
avidamente da sociedade capitalista de consumo.
A estética do poder do Estado Nacional que em sua formação se vinculava a ideia de
identidade nacional, ainda hoje separa aqueles que estão, nos dizeres de Boaventura, desse lado
na linha, daqueles que estão do outro lado, não só pela cor da pele, etnia, credo ou sexo, mas,
também, por ser, ou não, um homo consumens globalizado.

2.2 – O Novo Estado Plurinacional Latino Americano: de um constitucionalismo nacional


ao um constitucionalismo plurinacional

A partir da visão lançada frente a formação da identidade nacional, peça fundamental na


construção do Estado Nacional em que vivemos, bem como do fato de que é por esses e outros
motivos que o Estado moderno Nacional é apontado pelos autores da teoria do reconhecimento,
em especial, por Nancy Fraser, como um dos responsáveis pelas injustiças sociais que nos
assolam enquanto sociedade cosmopolita, é que destacaremos o contexto de nascimento do
Estado Plurinacional, abreviando, desde já, que tal perspectiva é totalmente diversa daquela que,
a priori, veio substituir, o que demonstraremos através de exemplos de Estados em que já
podemos perceber tais novidades.
Como dito acima, transpostos os delineamentos que utilizamos em relação a construção
do moderno Estado Nacional através da imposição de uma identidade nacional, forjada a partir de
divisões e separações entre os indivíduos sociais, é chegado momento de analisarmos a
construção desse novo modelo de Estado, entendido como Plurinacional, e mais, como se dá a
construção de um novo constitucionalismo democrático latino americano, que se pauta na busca,
por exemplo, por uma concepção diferente aos direitos humanos, bem como pela concretização
de uma justiça social, que reconheça, e ao mesmo tempo, redistribua os elementos essenciais para
vivermos paritariamente em sociedade.
Assim, destacaremos a influência do capitalismo na formação de uma sociedade de
consumo, encrustando valores como sendo os que devemos seguir, sem que, com isso, se
mantenha um diálogo permanente com aquelas culturas que não são de matriz euro-norte-

171
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

americanas, ou seja, como a imposição de um modus vivendi, ínsita ao moderno Estado Nacional,
provoca uma homogeneização social pautada em aspectos étnicos, religiosos, físicos e,
atualmente, a partir do capital, haja vista que nos dias de hoje aquele que consome e, portanto,
gera riqueza, é reconhecido enquanto cidadão, caso contrário, não é visto como pertencente ao
povo, se tornando indigno de ser escutado, de ser reconhecido.
Nosso tempo está repleto de crises, de mudanças, que vem e vão de forma tão rápidas
que logo são esquecidas e deixam de ser entendidas como mudanças. O novo de hoje,
literalmente, está cada vez mais rápido se tornando o velho do amanhã. As mudanças sociais,
culturais, filosóficas e políticas, estão transformando nosso mundo em um cenário um tanto
quanto curioso, afinal, enquanto os “novos ricos” vivem o sol escaldante de um verão promissor,
o “outro árabe”, reinventa a primavera, o “nós” euro-norte americano está imerso em um
congelante recesso econômico, que ameaça por fim a hegemonia financeira dos colonizadores.
Entretanto, devemos perseguir sempre o entendimento de que o diferente não pode mais
ser esquecido, o igual não pode ser restringido à antiga acepção europeizada de identidade
nacional analisada acima, ou seja, deveremos – se ainda não somos assim – saber conviver com
o paradoxo do nacionalismo – a dicotomia entre o Nós e o Eles – entendendo-o, a partir de
agora, nesse contexto de transformações globais, como o paradoxo do plurinacionalismo.
Acerca dessa noção de paradoxo do nacionalismo, destacamos as palavras de
Hobsbawm (1997, p.145), que o entendia como sendo o fato de, ao se formar sua própria nação, o
Estado automaticamente criar movimentos contra nacionais, ou seja, movimentos que não
reconheciam a legitimidade do Rei, advindo de uma determinada cultura, em face de todas as
outras. Os Outros, nesse contexto, eram, e ainda são, forçados a assimilar-se à cultura dominante,
esquecendo, ao poucos suas origens, ou a serem relegados a eterna inferioridade.
Neste sentido, a criação do Estado Nacional no fim do séc. XV ocasionou a origem de
um Rei, ou seja, em substituição ao regime feudal, o Rei era aquele que encarnava o espírito de
seu povo, e desse modo, não poderia se identificar como pertencente a essa ou àquela cultura
pretérita, sob o risco de não conseguir que as demais culturas lhe vissem como soberano.
Portanto, a construção de uma identidade nacional se tornou extremamente importante para que o
soberano conseguisse desenvolver seus poderes. (MAGALHÃES, 2012a, p. 7).
Diante de tais circunstâncias, vemos que a América Latina talvez seja o local de maior
diversidade étnico-cultural em nosso planeta, tendo em vista possuir representantes de várias

172
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

culturas originárias, que apesar de tudo, ainda resistem, bem como de culturas orientais,
africanas, europeias e muçulmanas, ou seja, é “o Continente da diferença”.
É bem no meio deste contexto de diversidade que surge um “novo” tipo de Estado, ou
seja, uma nova formulação para a instituição Estado, com objetivo de substituir o modelo de
Estado Nacional surgido no fim séc. XV, por um novo paradigma, que seja apto a solucionar os
problemas do reconhecimento da diversidade cultural, não por meio de uma imposição cultural
de uma identidade nacional – tratada por Fraser como reificação cultural –, mas sim, através de
um diálogo entre os diferentes, da consolidação daquilo que, no contexto da teoria de Fraser, ela
chama de paridade de participação.
Para fixarmos, portanto, as primeiras visualizações desse novo modelo de Estado,
destacamos as palavras de Vieira (2012) que nos aponta, dentre as principais características das
Constituições Latino Americanas que inauguram essa nova conformação para o Estado, dentre as
quais se destacam, principalmente, as Constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009, a
principal delas, qual seja: o fato de que nesse modelo, o povo é visto como uma sociedade aberta
de sujeitos constituintes, o que, via de consequência, representa uma superação das noções de
identidade nacional construídas a partir de uma única cultura hegemônica dentro do Estado
Nacional.
Sob tais pontos, Baldi (2008) destaca que esse Estado Plurinacional possuiu três ciclos,
ou seja, como origem o constitucionalismo multicultural (1982/1988), ou seja, as primeiras
discussões acerca da insuficiência do modelo nacional em garantir direitos – de primeira, segunda
ou terceira dimensão – para aquelas pessoas que não comungassem dos ideais culturais impostos
pelo colonizador como necessários ao reconhecimento, o que objetivou, neste primeiro momento,
o surgimento de legislações que reconhecessem os direitos indígenas específicos, bem como a
noção de diversidade cultural.
Em seguida a esse modelo multicultural, deu-se a ascensão daquilo que se denominou
um constitucionalismo pluricultural (1988/2005), que trouxe o reconhecimento da existência de
sociedades multiétnicas e de Estados Pluriculturais. Exemplo de uma Constituição Pluricultural
surgida neste período, apontada pelo autor, é a Constituição da Venezuela de 1999. E mais, neste
contexto, podemos ainda destadar o surgimento da Convenção 169 da Organização Mundial do
Trabalho, reconhecendo um catálogo de direitos indígenas, afro e outros de cunho coletivo aos
indivíduos e povos cujo Estado a ratificasse – essa Convenção que foi ratificada pelo Brasil pelo

173
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Decreto nº 5.051, de 19 de Abril de 2004.


Ao fim, como último ciclo de desenvolvimento desse novo contexto constitucional
latino americano, destaca o citado autor, o constitucionalismo plurinacional surgido em 2006 no
contexto da Declaração das Nações Unidas sobre direitos indígenas. Como exemplos desse
constitucionalismo plurinacional surgem as Constituições do Equador e da Bolívia, dando origem
ao denominado Estado Plurinacional.
No entanto, em que pese Baldi destacar a construção desse novo modelo de Estado
Latino Americano através de uma evolução iniciada no constitucionalismo multicultural da
década de 1980, haja vista as constituições surgidas ali serem exemplos de reconhecimento e
proteção cultural – por exemplo, os arts. 231 e 232, da CRFB/88 – existem entendimentos
diversos, que ligam essa nova visão de Estado, originariamente a Constituição Colombiana de
1991, é o que destaca Noguera-Fernándes e Diego, ao afirmarem que:

Na Constituição colombiana aparecem, mesmo que imperfeitamente, mas claramente


reconhecível, alguns elementos inovadores e diferenciados em relação ao
constitucionalismo clássico, que mais tarde permearão e serão desenvolvidos nos
processos constituintes equatoriano em 1998, venezuelano em 1999, e boliviano em
2006-2009 e, de novo, no Equador em 2007-2008. (...). A Constituição colombiana de
9
1991 é, por conseguinte, o ponto de partida do novo constitucionalismo no continente .
(2011, p. 18).

Afora as discussões sobre qual instrumento normativo efetivamente deu o “ponta-pé-


inicial” para o surgimento desse novo modelo de Estado latino americano, o que nos interessa
aqui é o fato desse novo modelo paradigmático representar uma novidade capaz de romper com a
lógica moderna de Estado vigente há 500 anos, ou seja, esse novo modelo de Estado,
efetivamente diverso, pautado pela multiplicidade de ordenamentos jurídicos e pela elaboração de
mecanismos de diálogo, objetiva, como se perceberá adiante, a construção de uma “carta”
mínima de Direitos Humanos a serem respeitados dentro de uma sociedade, esses de cunho,
reconhecidamente, multicultural, o que possibilitará, ao analisarmos tal ponto, à luz das
discussões trazidas por Fraser, uma paridade de participação em sociedade, bem como,
mecanismos efetivos para alcançarmos aquilo que ela designa como justiça social.

9
“En la Constitución colombiana aparecen, aún de forma imperfecta pero claramente reconocibles, algunos rasgos
novedosos e diferenciados con respecto al constitucionalismo clásico, que más tarde impregnarán y serán
desarrollados por los procesos constituyntes ecuatoriano de 1998, venezolano de 1999, boliviano del 2006-2009 y, de
nuevo, Ecuador en el 2007-2008. (...). La Constitución colombiana de 1991 constituye, por lo tanto, el punto de
inicio del nuevo constitucionalismo en el continente” (Tradução nossa).

174
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Há que ressaltar, neste ponto, que esse novo paradigma é diferente, em termos
estruturais, por exemplo, de Estados reconhecidos como regionais, tais como: a Espanha e a
Itália. Neste sentido, nos demonstra Magalhães (2010a, p. 202) que

O Estado Plurinacional, portanto, vai muito além do regionalismo presente no


constitucionalismo italiano (1947) e espanhol (1978), uma vez que nestes países, embora
a constituição tenha admitido a autonomia administrativa e legislativa das comunidades
autônomas ou regiões, reconhecendo a diversidade cultural e linguística, mantém a base
uniformizadora, ou seja, um direito de propriedade e um direito de família.

Assim, diferentemente do Estado Nacional, essa nova conformação de Estado, se afasta


dos elementos uniformizadores utilizados pela lógica dos Estados Modernos Nacionais, quais
sejam, a existência de um único direito de propriedade e de família para toda a coletividade.
A noção de família, bem como de propriedade, utilizadas para uniformizar, identificar os
nacionais de uma sociedade, não surgia através de um diálogo entre as diversas culturas, ao
contrário, era imposta pela cultura hegemônica, ou seja, conforme se deslindou acima, o poder do
Estado imputava uma estética a ser seguida.
A atual Constituição da Bolívia, na tentativa de resguardar os direitos dos indígenas ou
descendentes destes, grande maioria da população daquele país, trouxe uma inovação, qual seja: a
criação de uma justiça indígena, com tribunais próprios, formado por juízes escolhidos na própria
comunidade indígena – atualmente existem 36 sistemas jurídicos na Bolívia –, bem como a
formação de um Tribunal Constitucional Plurinacional, onde estão presentes representantes das
comunidades indígenas, o que rompe com a lógica uniformizadora da identidade nacional,
pautada em um único direito nacional.
Destaca-se, ainda, que a jurisdição ordinária comum não se sobrepõe a jurisdição
indígena, ou seja, as decisões tomadas nos tribunais indígenas não poderão ser revistas pela
Justiça ordinária (MAGALHÃES, 2012c).
Os povos originários – aquele conjunto de indivíduos que, originariamente, habitam
determinado território – ou aqueles de migração forçada – historicamente os africanos – ganham
espaço no Estado Plurinacional boliviano, ou seja, depois de séculos de silêncio, poderão
participar da formação de seu ordenamento jurídico, bem como da solução de suas divergências,
não a partir de um direito nacional uniformizador, mas nos termos que sua cultura lhes determina.
Participarão da construção de um Estado onde os cidadãos serão iguais em direito, não

175
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

pela dominação cultural, mas pelo que se tem de diferente, ou seja, construirão um Estado
enquanto seres reconhecidos, chamados ao diálogo social de forma paritária, sem privilégios, haja
vista todos nós, segundo a constituição bolivariana, sermos seres pertencentes a Pacha Mama.
Há que lembrarmos, também, que a construção do Estado Nacional na América Latina
oriunda dos movimentos de independência dos vários Estados, dentre eles o Brasil, não fez cessar
o sentimento de ser colonizado, inerente ao latino americano, ou seja, depois dos movimentos
pelas independências na América Latina, o colonialismo continuou, só que de outros meios, tais
como: através da ingerência do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial, em resumo,
através do mercado global transnacional pautado economicamente pelo sistema capitalista
consumista (SANTOS, 2009, p. 198).
Portanto, no âmbito desse novo Estado Plurinacional, surgido na primeira década deste
século, será priorizado um modelo de institucionalização calcado numa democracia participativa,
ou seja, os governos não serão compostos apenas de representantes das camadas sociais
dominantes, pois serão, sobretudo, integrados por representantes de diversas culturas, inclusive a
indígena, tudo isso a partir de um processo eminentemente participativo e dialógico.
A partir desses fatos, Grijalva (2008, p. 50-51) ao, também, analisar a formação desse
novo modelo plurinacional surgido na América latina, destaca que:

O constitucionalismo plurinacional é ou deve ser um novo tipo de constitucionalismo


baseado em relações interculturais igualitárias que redefinem e reinterpretam os direitos
constitucionais e reestruturam a institucionalidade provenientes do Estado Nacional. O
Estado plurinacional não é ou não deve se reduzir a uma Constituição que inclui um
reconhecimento puramente cultural, (...), senão um sistema de foros de deliberação
10
intercultural autenticamente democrática .

De outro lado, Sánchez Parga (2008) analisando as diretrizes desse novo Estado
plurinacional, tece-lhes algumas críticas, ao partir do entendimento de um existente exagero,
nesse novo paradigma, dos poderes do Executivo, haja vista ser, segundo ele, a única forma, de se
consubstanciar as propostas oriundas dessa matriz.
Neste ponto, o mencionado autor coloca que não será uma simples alteração

10
“El constitucionalismo plurinacionales o debe ser um nuevo tipo de constitucionalismo basado en relaciones
interculturales igualitárias que redefinan y reinterpreten los derechos constitucionales e reestruturen la
institucionalidad proveniente del Estado Nacional. El Estado plurinacional no es o no debe reducirse a una
Constitución que incluye um reconocimiento puramente culturalista, (...), sino um sistema de foros de deliberación
intercultural auténticamente democrática” (Tradução nossa).

176
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

constitucional, inaugurando o Estado Plurinacional e uma nova matriz constitucional, que alterará
a realidade dos povos e culturas excluídas, tendo em vista que para ele “(...), é preciso reconhecer
que é a sociedade que faz a Constituição e não a Constituição que faz a sociedade11” (SÁNCHEZ
PARGA, 2008, p. 82).
Há, também, os apontamentos trazidos por Kraus (2012, p. 60) acerca dos problemas
para se efetivar a democracia nesses novos Estados Plurinacionais, ou seja, para ele o potencial
de conflitos advindos de um alto nível de pluralismo sub cultural – existência de várias culturas
menores dentro de uma cultura estatal – afetará de forma negativa a capacidade de integração
política de regimes plurinacionais.
Entretanto, em que pesem as referidas críticas, mesmo que haja um reforço dos poderes
do Executivo, em um primeiro momento, com objetivo de se concretizar os direitos e garantias
dispostos na Constituição, o novo constitucionalismo latino americano possibilita uma maior e
mais ativa participação da sociedade, ou seja, o povo estará mais presente nas decisões de seu
governo, pois dentro desse governo, estarão representantes de várias culturas.
O Estado moderno Nacional de matiz capitalista, nascido da intolerância com aqueles
que não partilhavam da identidade nacional, dependente. em seu desenvolvimento. de políticas de
intolerância, exploratórias, uniformizadoras, já não suporta os anseios de um mundo interconecto,
uma aldeia global, por onde os direitos humanos necessitam ser reconstruídos, não como
mecanismos de uniformização, imposição cultural do poder enquanto estética do belo, mas como
mecanismo de integração cultural, enquanto mecanismo de reconhecimento.
Com a expansão de uma globalização virtual, as culturas excluídas da lógica do Estado
Moderno, capitalista, voltado para a uniformização pela igualdade de crenças – atualmente o
consumo –, houve o surgimento de um novo modelo de Estado – Plurinacional – cujo fim é, não
só o reconhecimento de direitos, mas a salvaguarda de meios que garantam o surgimento de
culturas encobertas pelo Estado Nacional, ou seja, que a identidade nacional seja forjada a partir
da diferença entre os vários Eu’s de uma mesma sociedade, Eu's esses, que sejam reconhecidos e
que possam participar, igualmente, do discurso social, que recebam, em redistribuição,
mecanismos que lhes possibilitem inaugurar-se enquanto sujeito de direitos.
Como nos mostra Grijalva, (2008, p. 52) acerca de como deveremos pautar a condução

11
“(...), es preciso reconhecer que es la sociedade la que hace La Constitución y no La Constitución que hace la
sociedade” (Tradução nossa).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

desse modelo constitucional de Estado latino americano, chegamos a conclusão de que nesse
paradigma que surge, necessariamente, deveremos ser: Dialógicos – pois o novo modelo requer
comunicação e deliberações permanentes entre as culturas; Concretizantes – pois deveremos
buscar soluções específicas, e em tempo, para situações individuais e coletivas; e Garantistas –
haja vista essas soluções surgirem por meio de deliberações, cujo marco de compreensão é o
reconhecimento dos valores constitucionais institucionalizados pelos Direitos Humanos.
Neste mesmo sentido Santos (2007, p. 26-27) já nos alertava acerca da necessidade de
refundação do Estado, ou seja, de uma nova construção estatal em buscasse resgatar uma parcela
do povo esquecida há mais de 500 anos, o que pode ser justificado por inúmeros fatores, sendo o
principal deles o fato de enfrentamos hoje um grande distanciamento entre a teoria política e a
prática política
O Estado plurinacional e, consequentemente, o novo constitucionalismo latino
americano que lhe é inerente, nos termos trazidos acima, lançam uma nova conotação à
democracia, ou seja, estatui o que Santos (2007, p. 47) denomina de Demodiversidade, uma
democracia onde a diversidade cultural tem voz, onde não ser igual é ser normal, onde não
pertencer à cultura reificada, não é significado de não reconhecimento, de injustiça social.
Temos sempre que nos lembrar que o diverso não, necessariamente, será desunido, bem
como o que aparentemente está unido, não, necessariamente, será uniforme, ou seja, “temos o
direito de ser iguais quando a diferença nos inferioriza, mas, temos o direito de ser diferentes,
quando a igualdade nos descaracteriza” (SANTOS, 2011, p. 462).
O Estado Plurinacional, assim, não é sinônimo de não “Estado” enquanto instituição de
organização social, mas, ao contrário, é um resgate do Outro, do esquecido, daquele não
reconhecido, daquele inexistente aos olhos do poder, do povo ou do indivíduo, é um rompimento
com uma série de instituições e seus significados modernos – Estado, Nação, Identidade
Nacional, Soberania – dentre as quais, está a democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após delinearmos, na primeira parte deste trabalho, os contornos essenciais da visão de


Nancy Fraser acerca da política do reconhecimento, fonte dos mais variados estudos em nossa

178
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

atualidade, seja por uma visão social, política ou filosófica, concluindo, a partir de suas
premissas, pela existência de elementos do Estado Nacional que impedem a efetivação de uma
justiça social – que na visão de Fraser é bidimensional, agrupando não só o reconhecimento mas,
também, a redistribuição –, visualizamos a necessidade de amoldarmos esse Estado, enquanto
ente regulador da vida em sociedade, às questões de nosso tempo, que já não são resolvidas pela
estrutura organizacional do Estado em que vivemos.
E mais, após termos apresentado, também, na segunda parte deste trabalho, uma
reconstrução – mesmo que sucinta – dos elementos essenciais utilizados para a formação do
Estado Moderno Nacional, dentre os quais destacamos a identidade nacional, demonstrando,
inclusive, como se deu seu surgimento no contexto latino americano, bem como os elementos
caracterizadores do novo modelo de Estado Plurinacional, e o fato desse modelo responder aos
problemas apresentados atualmente, segundo Fraser, pelo moderno Estado Nacional, podemos
então trazer nossas conclusões.
Conforme destacamos acima, enquanto seres humanos que somos, sempre atuaremos na
tentativa de sermos reconhecidos enquanto entes sociais, ou seja, como sujeitos capazes de
participar ativamente de uma sociedade.
Nesse contexto de busca por reconhecimento, de busca, segundo Fraser, por justiça
social, podemos perceber que é possível estabelecermos uma relação produtiva entre aquilo que,
em linhas gerais, Nancy Fraser nos traz acerca dessa problemática, àquilo que o modelo de
Estado Plurinacional nos traz, buscando, a partir daí, proporcionar a todos, não só o
reconhecimento em relação a cultura dominante, mas, também, uma participação paritária da vida
em sociedade, sem que se exclua ou extermine determinadas culturas tidas como “submissas”
pelo simples fato de serem diferentes daquilo que temos posto em nós, como sendo a identidade a
ser buscada.
Portanto, em que pesem as divergências semânticas, doutrinárias e de perspectiva,
podemos perceber que, ao analisarmos conjuntamente os apontamentos de Nancy Fraser e os
contornos do Estado Plurinacional, em relação ao problema da busca pelo reconhecimento, da
igualdade de participação na vida em sociedade, da redistribuição de bens e valores que possam
nos possibilitar o mínimo necessário para que alcancemos tal participação, ou seja, o problema da
injustiça social, percebemos que as propostas não são tão distantes assim.
Precisamos, então, buscarmos um “novo” Estado, um Estado que nos possibilite não

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

uma identidade, mas sim, um reconhecimento nacional, que nos proporcione mecanismos de
resgate cultural e que não seja pautado na palavra de poucos, mas, ao contrário, seja o reflexo da
razão de muitos, ou seja, um Estado democraticamente Plurinacional.

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182
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

O PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO E A INFLUÊNCIA DOS


FINANCIADORES DE CAMPANHA SOBRE A IMPLANTAÇÃO DE PROJETOS DE
ENERGIA CONVENCIONAL NA AMAZÔNIA BRASILEIRA E NA PATAGÔNIA
CHILENA

THE COALITION PRESIDENTIALISM AND THE INFLUENCE OF CAMPAIGN


DONORS ON THE DEPLOYMENT OF CONVENTIONAL ENERGY PROJECTS IN THE
BRAZILIAN AMAZON AND CHILEAN PATAGONIA

Abraão Soares Dias Dos Santos Gracco *

Renata Soares Machado Guimarães de Abreu **

RESUMO
É inescusável afirmar-se que a América Latina sempre foi uma região de contrastes sociais,
econômicos e culturais. Entretanto, não se pode perder de vista que, nessa mesma região, os
processos de tomada de decisão se apresentam, por um lado, de forma uniformizada, e, por
outro, dotados de características próprias, como se observa nos períodos do paternalismo
getulista brasileiro e peronista argentino, da ditadura militar brasileira e da ditadura Pinochet
no Chile; não se podendo, outrossim, desconsiderar, as especificidades do processo de
redemocratização desses países. Com efeito, tem-se, contemporaneamente, a formação e o
desenvolvimento de um presidencialismo de coalizão no Brasil e no Chile com características
de clivagem institucional, cuja influência dos financiadores de campanha é ainda mais
permeável por setores que possuem interesse em obter ou continuar obtendo alguma
vantagem no esteio da máquina pública. O presente trabalho busca comparar esse aspecto e
relacioná-lo à forma como as empresas, na condição de financiadoras de campanha, buscam
influenciar no processo de tomada de decisões sobre a implantação dos grandes projetos de
energia convencional em biomas estratégicos, como as hidrelétricas na região da Amazônia
brasileira e na Patagônia chilena. Para isso, adota-se a teoria do discurso como marco teórico,
suplementado pela visão externa da teoria dos sistemas. O método comparado é utilizado na
abordagem do tema em análise, considerando-se de forma rígida os aspectos temporais e
espaciais de suas constatações.

PALAVRAS-CHAVE: Presidencialismo de Coalizão; América Latina; Financiamento de


Campanhas; Hidrelétricas; Amazônia Brasileira; Patagônia Chilena.

________
* Mestre e doutor em Direito Constitucional
** Especialista em Direito

183
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

ABSTRACT
Is indispensable said that Latin America has always been a region of social, economic and
cultural contrasts. However, we cannot lose sight of the fact that, in this same region, the
decision-making procedures are, on the one hand, standardized form, and, on the other, with
its own characteristics, as noted in the paternalist periods of Brazilian getulism and Argentine
Peronism, the Brazilian military dictatorship and Pinochet's dictatorship in Chile; cannot, in
addition, disregard, the specifics of the process of democratization in these countries. Indeed,
it has, at the same time, the formation and the development of a coalition presidentialism in
Brazil and in Chile with cleavage institutional characteristics, whose campaign donor
influence is even more permeable for sectors which have interest in get or continue getting
some advantage in the mainstay of public machine. The present paper seeks to compare this
aspect and relate it to how companies, funders, seek influence in decision-making on the
deployment of large conventional power projects in strategic, biomes as the hydroelectric
plants in the region of the Brazilian Amazon and Chilean Patagonia. To this end, it adopts the
theory of speech as theoretical framework, supplemented by external vision of systems
theory. The comparative method is used in the approach of the subject under review,
considering rigid temporal and spatial aspects of their findings.

KEYWORDS: Coalition presidentialism; Latin America; Financing of campaigns;


Hydroelectric Power Plants; Brazilian Amazon; Chilean Patagonia.

01 INTRODUÇÃO

A queda do absolutismo monárquico e a eclosão das revoluções burguesas do século


XVIII acarretaram a junção momentânea da burguesia e da classe popular no contexto do
fervor iluminista. Isso devido ao fato de, pela primeira vez na história humana, ter sido
possibilitado construir-se uma sociedade de seres livres, iguais e agora proprietários, no
mínimo, do próprio corpo, desmoronando, de uma vez por todas, a fase pré-moderna
(SANTOS GRACCO, 2008). Nesse contexto, Charles-Louis de Secondat (Montesquieu), em
suas pesquisas empíricas, deixou como legado para a humanidade a constatação de que todo
aquele que exerce o poder tende ao abuso e, exatamente por não possuir mais fundamentação
metafísica, esse poder deveria ser dessacralizado e descentralizado para exercentes diversos.
Desse modo, a doutrina dos checks-and-balances, aperfeiçoada por Immanuel Kant e pelos
pais fundadores americanos (HAMILTON, JAY e MADSON, 2009) buscou resolver a
permanente tensão dessa divisão funcional de poderes, principalmente pela referida
descentralização do exercício legítimo dessas.
Sob esse aspecto, o estudo das relações entre os poderes Executivo e Legislativo é
particularmente relevante para o Brasil e o Chile, países cujo sistema de governo (o

184
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

presidencialismo) tem sido objeto de especial atenção da Ciência Política, da Teoria do


Estado e do Direito Constitucional. Isso não só pelos impasses entre esses poderes – o que
acarreta, na visão de alguns autores1, crise de governabilidade -, mas também por causa da
preponderância da figura do Presidente da República sobre o Legislativo, em decorrência de
suas prerrogativas constitucionais.
No entanto, essa tensão não se confirma quando é analisado o comportamento desses
poderes em relação aos agentes financiadores de suas campanhas, os quais influenciam, de
maneira direta, os procedimentos brasileiros e chilenos de tomada de decisão, mormente em
relação aos grandes projetos de engenharia que possuem repercussões ambientalmente
relevantes.
Assim, na segunda seção do presente trabalho, busca-se analisar os precedentes da
remodelagem do sistema representativo de tomada de decisões nos dois países em comento.
Na terceira seção, adentra-se nos aspectos relacionados à plataforma energética dos dois
países e na forma como os financiadores de campanha têm moldado esses Estados a adotarem
políticas energéticas equivocadas em relação a outros países em desenvolvimento e
desenvolvidos. Por fim, na quarta seção, esboçam-se as considerações finais sem a pretensão
do esgotamento conclusivo da matéria, eminentemente complexa.

02 OS PRECEDENTES DA REMODELAGEM REPRESENTATIVA BRASILEIRA E


CHILENA NOS PROCESSOS DE TOMADA DE DECISÕES

Nos países em comento, o sistema presidencialista, herdado do modelo americano,


possui características próprias que o diferem deste, mormente pela continuidade da
dessacralização do imperador pelo Presidente de República (HAMBLOCH, 1981). Nesse
contexto, é de asseverar que a América Latina possui um histórico de centralização política e
de personificação institucional acentuado. Em determinados países, a preponderância da
figura do exercente (pessoa física) suplanta em muito a organização institucional (pessoa

1
Juan Linz, nos anos noventa, de forma precursora, criticou funcionalmente o sistema presidencialista,
ressaltando que dupla legitimidade dos poderes, originada pela eleição independente do presidente e do
Congresso ao invés de favorecer os freios e contrapesos, obstariam à governabilidade, principalmente nos casos
em que o Presidente não contasse com maioria no parlamento. Alegava, ainda, o problema trazido pelo fato de
que o Parlamento não dispõe de muitos mecanismos para interromper o mandato presidencial, em caso de
governo ineficiente, e convocar de novas eleições. Dessa forma, já que chefe do Executivo não precisa de apoio
partidário no congresso para se manter no poder, haveria incentivos para a formação de partidos políticos fracos
e pouco preocupados em fornecer sustentação aos chefes do Executivo, os quais, por sua vez, acabam atuando de
maneira personalizada. (LINZ; VALENZUELA, 1994, p. 56)

185
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

jurídica). Parece não haver como desvincular as duas perspectivas, principalmente no tocante
às forças políticas e suas agremiações partidárias.
O caciquismo da América espanhola, ou o coronelismo na América portuguesa, é o
fenômeno básico que dirigiu toda a vida política da América Latina no século XIX.
Hoje em dia decadente, o caciquismo deixou, no entanto, importantes
sobrevivências na facies arcaica da sociedade dualista (LAMBERT, 1969, p. 200).
Tanto assim que o atual “chavismo” (sem Hugo Chavez2) na Venezuela não é um
fenômeno historicamente isolado, mas a personificação da política em escala de massas e
resultado da crise das tradicionais instituições corporativas e políticas de representação.
No passado, mesmo recente, o caudilhismo triunfou tão freqüentemente que para
muitos parece ser a característica política mais relevante da América Latina. Basta
recordar o caso da Venezuela, quase caricatural, na verdade: a partir de 1830, data
da dissolução da Grande Colômbia, que abre a existência nacional da Venezuela, até
1935, os caudilhos se sucederam um após o outro. Paez, que domina o país de 1830
a 1846, é substituído pelos irmãos Monagas (1846-1861), depois, novamente, Paez
(1861-1863), Gusmán Blanco (1870-1887), Crespo (1887-1898), Castro (1899-
1908) e, finalmente, Gómez (1908-1935). No decorrer de um século, o regime
caudilhista não foi interrompido, senão durante os sete anos de 1863-1870, que
foram, porém, sete anos de guerra civil. (LAMBERT, 1969, p. 202).
No entanto, isso não tem nada de natural ou naturalizado, mas é produto de uma
construção social embrulhada e engessada, que estimula estrategicamente os destinatários a
percebê-la como se fosse sempre assim e que não se necessita de mudança. A personificação
da unidade da vontade social por meio de lideranças plebiscitárias leva em consideração os
suportes técnicos oferecidos pela reformulação da representação política, conforme
desvendou Luhmann (1998, p. 98):
Em razão das críticas usualmente feitas às concepções de causalidade e de
liberdade, não deveria ser difícil reformular as diretrizes de observação ocultas
nesses conceitos. Buscamos, assim, conceitos que possam orientar as pesquisas
histórica e regionalmente comparadas, e cuja expressividade se encontre acima da
dos conceitos de "cultura" e de "mentalidade". Parte-se da suposição de que uma
revisão conceptual não apenas se adaptará melhor ao saber já disponível no que toca
às concepções acerca da causalidade e da liberdade, como também, ao mesmo
tempo, fornecerá melhores pontos de partida para as pesquisas comparadas, já que
partiria do fato de a causalidade não ser simplesmente uma construção livremente
oscilante que pudesse avaliar o verdadeiro e o falso ou o funcional e o não-
funcional, e de a liberdade não ser apenas um postulado normativo no sentido de,
como se diz, a emancipação ser a sua melhor parte, mas que, em ambos os casos,
tratar-se-ia de construções cuja aplicação tem que ser apreendida sob condições
históricas e regionais específicas e que dificilmente serão revistas no caso de prova.
Pois, como já se comprovou, dificilmente se consegue expurgar essas concepções
quando não são oferecidas possibilidades bem melhores e mais concretas.
Com efeito, além desse presidencialismo diferenciado3, Brasil e Chile ainda possuem
um sistema multipartidário, produto de um gradual - e não linear - processo político ainda

2
Presidente da Venezuela eleito em 1998 e reeleito em 2000 e 2006, o qual faleceu em 05 de março de 2013.
3
Importa salientar que nenhum sistema político é puro e muito menos perfeito como lembra Sartori (2006, pp.
135 e 147), ao analisar o semipresidencialismo francês, “Vimos que tanto o presidencialismo quanto o
parlamentarismo podem falhar, especialmente nas suas formas puras. A partir desses dois extremos, somos
levados a buscar uma solução ‘mista’: uma modalidade de organização política que se situe entre os dois e se

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arraigado na questão desse voto pessoal, seja nos cargos de eleição majoritária, seja nos
cargos de eleição proporcional. No Chile, esse aspecto é observado em razão do sistema
eleitoral ser binominal com lista aberta e “prêmio” para a segunda lista (imposto por Pinochet
após a derrota no plebiscito de 1988), incentivando os partidos a disputarem de forma
coligada as eleições (MELO; NUNES, 2008), como também estimula a competição entre as
agremiações dentro de uma mesma coalizão. E, consequentemente, o sistema acaba por
estimular a identificação com o candidato e não com o partido.
Chilean democracy is based on a presidential regime, typical in Latin
America. Under the constitution of 1980, inherited from a dictatorship and still in
place despite numerous reforms reinforcing the powers of the president. Executive
power is directed by the president, elected for four years without the possibility
of immediate reelection. Facing him is a bicameral legislature composed of a Senate
whose 38 members are electedfor 8 years and indefinitely renewable, within
binomial circunscriptions, and a 120 member Chamber of Deputies whose 120
members are elected for 4 years, also for renewable terms, and also in binominal
districts. (JOIGNANT, 2008, p. 47).
No caso brasileiro, a combinação do sistema de representação proporcional e de lista
aberta - dado o arranjo federativo descentralizado - também promove a personalização do
voto, correndo-se o risco de estimular a indisciplina dentro da agremiação partidária 4,
dificuldade dos instrumentos de controle do comportamento legislativo de suas bancadas e
estímulo aos parlamentares a tratarem de políticas localistas (“paroquiais”) em detrimento das
de cunho nacional5, Isso, conforme Santos Gracco (2006), principalmente devido ao fim da
“verticalização partidária”6, não mais obrigando a vinculação entre as candidaturas em âmbito

inspire em ambos [...] Levando em conta o que segue, declaro que um sistema político é semipresidencialista se
as seguintes propriedades ou características lhe puderem ser aplicadas conjuntamente: a) Chefe de Estado
(Presidente) é eleito por votação popular – de forma direta ou indireta -, com um mandato determinado; b)o
Chefe de Estado compartilha o Poder Executivo com um Primeiro Ministro, em uma estrutura dupla de
autoridade com os três seguintes critérios de definição: b.1) embora independente do Parlamento, o Presidente
não tem o direito de governar sozinho ou diretamente, e, portanto, sua vontade deve ser canalizada e processada
pelo seu governo; b.2) inversamente, o Primeiro Ministro e seu gabinete independem do Presidente, na medida
em que dependem do Parlamento, estão sujeitos à confiança e/à não confiança parlamentar pelo que precisam de
apoio da maioria do Parlamento; b.3) a estrutura dupla de autoridade do semipresidencialismo permite diferentes
equilíbrios e a oscilação de prevalências do poder dentro do Executivo, estritamente sobre a condição de que
subsista a ‘autonomia potencial’ de cada componente do Executivo.
4
Dado à autonomia dos candidatos em relação à suas agremiações, mesmo após a histórica decisão do Supremo
Tribunal Federal estabelecendo que a partir de 27.03.2007 considera-se que o mandado pertence ao partido e não
a seu membro, salvo justa causa. (SANTOS GRACCO, 2008).
5
Embora alguns autores têm defendido que esse caráter tem sido cada vez mais diluído: “[...] a investigação da
conexão eleitoral unicamente como função da relação entre políticos e cidadãos (eleitores) não contempla toda a
complexidade do processo legislativo, já que a representação se faz não só do ponto de vista geográfico, mas
também dos interesses organizados. Assim, grupos de interesse – sindicatos, associações ruralistas etc. – podem
ter influência em diversos tipos de município, viabilizando ou dificultando campanhas. A nosso ver, com relação
a esse argumento, tornar-se-ia mais interessante para o estudo da dinâmica legislativa brasileira obter uma
perspectiva analítica focada sobre os grupos de interesse, as atividades de lobby e a influência dos setores
organizados da sociedade. Em outras palavras, para além da relação direta entre deputados e eleitores, é preciso
considerar a policy community, a issue network ou os iron-triangles.” (RICCI; LEMOS, 2004).
6
Vide Emenda Constitucional nº 52, que alterou o art. 17, parágrafo 1º, da Constituição brasileira (BRASIL,
2006).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

nacional, estaduais, distritais ou municipais. E mais, incentiva-se que os políticos valorizem


suas características próprias e abdiquem das ideologias (TELLES, 2010).
Não obstante tudo isso, contrariando-se o pessimismo da literatura a respeito da
inviabilidade desses sistemas (MAINWARING, 1993, MAIWARING; SCULLY, 1995,
SHUGART; MAINWARING, 1997, LINZ, 1994, LINZ; VALENZUELA, 1994, LINZ;
STEPAN, 1996, SARTORI, 1996 apud MELO, 2009), Brasil e Chile são os dois casos mais
bem sucedidos de governos de coalizão da América Latina, com alta governabilidade, por
meio da articulação e manutenção, pelo Presidente da República, de uma base de sustentação
no Congresso. E isso a um preço institucional muito elevado para o último, à vista da
existência de mecanismos de antecipação do debate legislativo por meio das medidas
provisórias (atos normativos com força de lei – Gesetzeseigenschaften - imediatamente à sua
expedição pelo Presidente da República) no Brasil e o seu equivalente na Constituição
chilena7.
O contrapeso nas relações entre os poderes Executivo e Legislativo, sem sombra de
dúvidas, tem feito parte do processo de aprendizado democrático após a onda da
redemocratização. Diante dessa nova engenharia constitucional, a formação de coalizões
disciplinadas no governo se torna necessária, já que um gabinete composto por vários partidos
é um gabinete representativo de matizes ideológicos, programáticos e até mesmo pragmáticos.
Isso, por um lado, tem sido legitimamente fomentado, mas, por outro, pode acarretar impasses
em temas sensíveis8, gerando uma avalanche política para tomada de posição do poder
Judiciário, muitas vezes como um substituto funcional (LUHMANN, 1998).
Desse modo, quando trata das dinâmicas dos governos de coalizão brasileiro e chileno,
Melo (2009, p. 24) ressalta a necessidade de se fazer referência, entre outros aspectos, ao “[...]
número de atores envolvidos no jogo e a distância entre suas preferências políticas, fatores
que, conjugados, remetem ao problema de como aprovar a agenda de governo evitando ao
máximo os custos da barganha e os problemas de coordenação”. E completa o autor: “No
Brasil, relativamente ao caso chileno, os presidentes sempre tiveram que lidar com um quadro

7
Novas democracias da m r ica atina introduziram ou mantiveram medidas que estendem os poderes
legislativos emergenciais do executivo. Hoje, poderes equivalentes aos das medidas provis rias (MPs) instituídas
pela Constituicão brasileira de 19 vigoram em cinco outros países da região: Col mbia, rgentina, Chile, Peru
e Equador. Essas medidas são usualmente vistas como mais uma característica do presidencialismo latino-
americano, um resíduo autoritário herdado pelas novas democracias. (FIGUEREDO; LIMOGI, 1997, p. 127).
8
Como foi a votação do novo Código Florestal brasileiro em 2012 e nos vetos sobre a distribuição federativa dos
Royalties em 2013.

188
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

de maior fragmentação partidária e um menor grau de informação acerca de seus eventuais


parceiros”.
Ainda sobre a fragmentação partidária, principalmente pela possibilidade dos dois
sistemas admitirem coligações no sistema proporcional pode-se afirmar que:
Dado o multipartidarismo e a natureza das coalizões feitas no interior do
parlamento, um partido razoavelmente forte, detentor de um número considerável de
cadeiras, pode ser deslocado dos centros mais importantes de decisão congressual.
Por outro lado, um pequeno partido, dependendo de seu perfil ideológico, pode ter
seu poder decisório ampliado consideravelmente se sua adesão for crucial para a
formação da coalizão parlamentar. Ao contrário, em sistemas partidários
parlamentares com dois partidos, aquele que obtiver o maior número de cadeiras
define a agenda legislativa, pois comandará os loci, relevantes de decisão. O
comportamento dos membros do parlamento, sejam líderes partidários ou não,
adequa-se automaticamente em uma ou outra situação. No sistema bipartidário, a
luta pelo maior número possível de cadeiras é decisiva, pois, sem isto, é
praticamente impossível exercer qualquer influência na composição da agenda. Em
sistemas multipartidários, além do poder parlamentar, fonte aliás incerta de
influência legislativa, é fundamental ter acesso aos cargos governamentais que
alocam recursos públicos e regulam as atividades dos agentes econômicos e sociais.
Por isso, no Brasil, a importância de ter acesso a cargos do Executivo (SANTOS,
2003, pp. 64-65).
Portanto, a partir dessas premissas, deve-se considerar o aumento do custo político e
econômico dessa governabilidade artificial, contingencial e precária denominada de
presidencialismo de coalizão (SANTOS GRACCO; ABREU, 2010), concretizada por acordos
políticos sobre cargos de primeiro e segundo escalão do governo. Com efeito, essas
negociações viabilizam, além da reeleição do Presidente ou a permanência de seu partido no
poder, a própria agenda presidencial perante o poder Legislativo para formar gabinete.
A formação e duração de coalizões legislativas em favor do governo seriam função
de acordos estabelecidos entre o chefe do Executivo e os partidos com assento no
Parlamento, acordos que envolvem a distribuição de postos ministeriais a pessoas
indiciadas pelos partidos e apoio destes à agenda proposta pelo governo ao
Congresso (ANASTASIA; MELO; SANTOS, 2005, p. 57).
Assim, vê-se, de um lado, o Chefe do Executivo liderando a coalizão e, de outro, a
oposição em seu papel contra-majoritário na arena do Congresso. Se o sistema partidário é,
portanto, composto por muitas agremiações, nenhuma delas teria maioria para formar o
governo como ocorre no sistema parlamentarista, de modo que o Presidente da República
precisa utilizar a estratégia da patronagem de cargos e políticas públicas específicas para
formar e mesmo manter sua base de sustentação junto ao Legislativo.
Em primeiro lugar, o presidente sabe que as lideranças partidárias, dados o voto
personalizado, não possuem controle de natureza eleitoral sobre suas bancadas. Por
isso, sua expectativa é que as taxas de coesão partidária não podem ser garantia de
formação e manutenção de uma base de apoio sistemática no parlamento. A
barganha em torno de propostas políticas com lideranças dos grandes partidos se vê
limitada, por decorrência das preferências dos políticos tomados individualmente.
Nenhum acordo partidário é suficiente para formar a coalizão. De forma resumida,
pode-se dizer que o presidente é vítima do efeito de informação (RIKER, 1962): ele
não sabe o tamanho real de sua base de sustentação, dada a expectativa de taxas

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reduzidas de coesão partidária. Por outro lado, o presidente possui recursos


importantes que podem ser utilizados como moeda de troca numa eventual compra
de apoio parlamentar, notadamente, cargos no Governo Federal. Ora, se ele espera
que a coalizão formal de apoio não corresponderá à base efetiva conquistada no
parlamento quando da votação de matérias de seu interesse, então , não lhe resta
outra alternativa senão oferecer postos do Executivo para membros de partidos
estranhos à coalizão de apoio formal. (SANTOS, 2003, p. 66)
Eis então o motivo pelo qual se pode entender que os governos de coalizão se
associam a custos mais altos para o processo decisório do que os governos formados por
partidos majoritários (POTERBA, 1994).
Portanto, a combinação de um Executivo historicamente forte com um Legislativo
fragmentado em vários partidos, sem uma identificação ideológica ou programática com a
liderança da coalizão, poderia custar um alto preço de modo a criar riscos de impasses
decisórios por motivos pouco republicanos e de ineficiência do procedimento de tomada de
decisões legítimas a tempo e modo9. Aumenta-se, desse modo, o risco de autonomização10
dessas instâncias legítimas de representação política clássica e enfraquecendo as
possibilidades fugazes de construção de um projeto de nação coletivo, uma vez que passam a
girar em torno de si mesmas sem lastro no sentimento de constituição da comunidade de
princípios.

03 A INFLUÊNCIA DOS FINANCIADORES DE CAMPANHAS NOS PROJETOS


HIDRELÉTRICOS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA E NA PATAGÔNIA CHILENA

A necessidade energética do presente século não pode ser resolvida como ocorreu no
século passado durante o regime militar brasileiro e a ditadura chilena. Isso deve ser
ressaltado por dois motivos. O primeiro relaciona-se com a natureza do direito em questão:
direito indisponível e transindividual, cujos afetados são indeterminados por definição e
ligados por circunstâncias fáticas. O segundo motivo questiona a própria plataforma

9
Neste momento não há como não remontar-se ao escândalo do “mensalão”, maior caso de corrupção já julgado
pelo Supremo Tribunal Federal (Ação Penal nº 470) que consistiu, de forma sucinta, em fornecimento de
dinheiro a parlamentares (compra de votos) em troca de apoio ao Executivo, nos anos de 2003 a 2005, durante o
governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, do PT (Partido dos Trabalhadores), ainda que sem evidências
empíricas da extensão de seus efeitos no resultado de votações como a reforma da previdência (EC 41/2003).
10
termo “ utonomização” foi cunhado da teoria dos sistemas de Ni las uhmann, no sentido de classificar a
desvinculação dos sistemas funcionais do direito, da política e da economia como outrora fundantes da
diferenciação social. [ ]o deslocamento da representação das instâncias mediadoras clássicas para arenas
plurais, tendo em vista a sua autonomização e os abusos em nome dos representados, interfere na qualidade do
“sentimento de representação” e a consequente indisponibilidade do mandado, seja pela configuração do
estelionato eleitoral da representação, cujo compromisso está viciado na origem, seja pela apropriação ind b ita
da soberania popular em que o compromisso inicial do representante de esforçar-se para criar ou reforçar
expectativas de comportamento e práticas institucionais de consideração p blica desviado ap s a assunção do
mandato. (SANTOS GRACCO, 2008, p. 19)

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energética dos dois países: não é mais concebível, diante dos novos padrões de produção e
consumo relacionados aos limites do planeta e o reconhecimento de direito de populações
tradicionais, implementarem-se projetos que exigem dos recursos naturais o que eles não
podem mais oferecer, sem resvalar-se na sua capacidade de resiliência.
Assim, o que se demonstra a seguir é o desacerto da decisão brasileira e chilena de
construir grandes projetos hidrelétricos em biomas vulneráveis, pois mesmo sendo uma fonte
de energia limpa, a energia hidrelétrica é considerada convencional por exigir o alagamento
de grandes extensões dos territórios dos países e ainda contribuir para o aumento da emissão
de gases que influenciam na frequência de eventos naturais extremos (mudanças climáticas),
ainda que mitigados pelo novo conceito de usina-plataforma11. Além disso, preocupa-se com
o procedimento de legitimação (e não de legitimidade) dentro do arcabouço institucional que
os tenha viabilizado. Isso porque, conforme será demonstrado, é cediço que os fragmentários
presidencialismos de coalizão brasileiro e chileno permitem o avanço de empreendimentos
ligados diretamente aos financiadores de campanhas (empreiteiras e mineradoras) sobre
biomas sensíveis e até agora não explorados, sem considerar efetivamente outras alternativas
técnicas e locacionais.
Com efeito, a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL divulgou recentemente
o Relatório de Acompanhamento de Estudos e Projetos de Usinas Hidrelétricas (BRASIL,
2013), demonstrando a existência de 144 (cento e quarenta e quatro) projetos hidrelétricos na
região da Amazônia brasileira, entre grandes hidrelétricas e pequenas centrais hidrelétricas
(PCH's com potencial abaixo de 30 megawatts). Esses projetos envolvem os Estados do Acre,
Amazonas, Rondônia, Pará, Tocantins, Mato Grosso e Maranhão, impactando
significativamente as bacias dos rios envolvidos.
No Estado do Amazonas, destacam-se os projetos das empresas Voltalia Energia do
Brasil e a Energias Renováveis S/A (ERSA) na área do rio Canumã e seu afluente, rio Acari,
na calha do Madeira, não esclarecendo o referido relatório sobre seu potencial energético
esperado. Na fronteira entre os Estado do Acre e Amazonas existe outro empreendimento
localizado na região do rio Juruá e seu afluente, rio Moa. Nos Estados do Pará e Tocantins,
atingindo os municípios de Palestina do Pará/PA, Piçarra/PA, São Geraldo do Araguaia/PA,
Ananás/TO, Aragominas/TO, Araguaina/TO, Riachinho/TO e Xambioá/TO, tem-se o projeto
hidrelétrico de Santa Isabel, localizado na região do rio Araguaia, no Pará, retomado pelo

11
Trata-se da utilização do conceito de plataforma de petróleo na construção das hidrelétricas de modo a reduzir
o desmatamento para fins de canteiro de obras, uma vez que os trabalhadores construíram o empreendimento
pela logística de deslocamentos de equipamentos e materiais por helicópteros.

191
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Consórcio GESAI (Geração Santa Isabel, integrado pelas mineradoras Vale, Alcoa Alumínio
S/A, BHP Billiton Metais S/A, Votorantim Cimentos Ltda e a empreiteira Camargo Corrêa
S/A). Esse empreendimento ficou suspenso por alguns anos por encontrar-se em área
considerada de alta prioridade para a proteção da biodiversidade, além de afetar diretamente
131 cavidades naturais. Com a previsão de cobrir 250 km² com seu reservatório, estima-se
gerar 1080 megawatts. Além dessa, tem-se a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, integrante
do Complexo do Tapajós12, com o reservatório de 722,25 km² e estimativa de gerar 6.133
megawatts. No Estado de Rondônia tem-se a construção da hidrelétrica de Jirau que aproveita
o potencial energético do Rio Madeira com o reservatório planejado para de 258 km2 e
estimativa de gerar 3.750 megawatts, de responsabilidade da Energia Sustentável do Brasil
(ESBR, integrada pelas empresas Suez Energy, Eletrosul e Chesf). Juntamente com esse
empreendimento, tem-se a hidrelétrica de Santo Antônio de responsabilidade do consórcio
Madeira Energia, integrado pela Odebrech e Furnas Centrais Elétricas S/A, formando-se o
denominado Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, sendo que esse tem a estimativa de gerar
3.150 megawatts com um reservatório de 271 km2 (BRASIL, 2011).
Mas, sem sombra de dúvidas, o mais avançado e que mais tem ganhado notoriedade é
o projeto de da hidrelétrica de Belo Monte13, no Estado do Pará, com a previsão estimada de
gerar 11.233 megawatts com um reservatório de 516 Km2, instalado no Rio Xingu. Esse
empreendimento está sob a responsabilidade do Consórcio Norte Energia, integrado pela
Chesf, Vale, Queiroz Galvão, J Malucelli, Cetenco Engenharia, Mendes Júnior Trading
Engenharia, Contern Construções e Comércio, Serveng-Civilsan e Galvão Engenharia.
Nota-se que as falhas nos estudos de impacto ambiental específicos de cada
empreendimento - quando deveria ser estratégico de modo a envolver toda a região - e sua

12
Na microrregião estão previstas 07 hidrelétricas: São Luiz do Tapajós (6133 MW), Jatobá (2338 MW), e
Chocorão (3336 MW) no rio Tapajós, e Cachoeira do Caí (802 MW), Jamanxim (881 MW), Cachoeira dos Patos
(528 MW), e Jardim do Ouro (227 MW) no rio Jamanxim. O total da capacidade instalado seria de 14.245 MW.
[...] O custo das usinas seria R$ 40,9 bilhões/US$ 20,76 bilhões. A mais cara seria São Luiz (US$ 9,2 bi), daí
vai Jatoba ($4 bi), Chocorão ($4,3 bi), Cachoeira do Caí ($1,02 bi), Jamanxim ($984 mi), Cachoeira dos Patos
($751 mi), e Jardim do Ouro ($500 mi) (SWITKES, 2009, grifo nosso).
13
Belo Monte será hidrelétrica menos produtiva e mais cara, dizem técnicos. Eles preveem que insegurança
jurídica e ambiental vão complicar usina. Leilão definiu grupo que tocará obra, formado por Chesf e
construtoras. A hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, Pará, será a usina que produzirá menos energia,
proporcionalmente à capacidade de produção, e que terá maior custo para os investidores na comparação com
outros empreendimentos de grande porte, em razão da intensidade dos impactos sociais e ambientais na região
[...].O governo estima cerca de R$ 3 bilhões dos R$ 19 bilhões totais previstos para a construção. Especulações
dão conta de que a obra total custe até R$ 30 bilhões."A usina está em um local longe e o primeiro problema é
o acesso. Entra em território que não é reserva indígena, mas tem população indígena. Se conhece o terreno
olhando de cima", acrescentou. Para o engenheiro, há muita coisa na construção da hidrelétrica que não se pode
prever. "A complexidade disso é exatamente pelo porte da obra. Os problemas serão de magnitude e
consequencias do porte da obra", afirma Areco (OLIVEIRA e JUSTE, 2010, grifo nosso).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

necessária e adequada publicidade14 bem como no planejamento inadequado das licenças


ambientais exigidas15 deságuam no poder Judiciário. Constata-se que por tratar-se de uma
demanda que exige uma maior maturação sobre os interesses envolvidos na arena política, o
seu debate em busca de solução deveria partir dos cenários montados entre os poderes
Executivo, Legislativo e os afetados diretos. O problema que procedimentos de licenciamento
mal instruídos e a desconsideração de interesses, como das populações tradicionais, atrai o
poder Judiciário como um substituto funcional do necessário desse ausente debate na esfera
pública.
Isso fica evidente no caso da hidrelétrica de Belo Monte em que o poder Judiciário
constatou que faltavam até os pressupostos para se considerar um licenciamento. No entanto,
mesmo suspendendo as obras num primeiro momento, principalmente nas licenças ambientais
iniciais, até mesmo a teoria do fato consumado16 já foi alegada para pleitear-se a restauração
do prosseguimento das mesmas.
A confiança na insegurança jurídica difundida e incorporada ao meio empresarial é
patente de modo que empreendimentos, diante de várias opções de energias firmes renováveis
diferentes da hidrelétrica, tornariam inviáveis projetos grandes em uma região cuja
biodiversidade e clima são sensíveis a qualquer alteração de suas condições naturais. Para se
tomar um parâmetro atual, verificam-se países como a Alemanha e China caminhando em
direção oposta à brasileira. Nos Estados Unidos também não tem sido diferente quanto à
alteração crescente de sua plataforma energética, sendo que, em 2012, aquele país passou a
gerar em escala 13.000 megawatts, o equivalente a uma hidrelétrica de Belo Monte, somente
com energia solar e eólica.
A grande questão que se evidencia na manutenção de uma plataforma energética
convencional é o fato das obras de engenharia permitirem licitamente a transferência dos
valores desprendidos pelas construtoras, mineradoras e bancos no financiamento de campanha
em todos seus matizes17.

14
Vide art. 225, parágrafo 1º, inciso IV, da Constituição da República (BRASIL, 1988).
15
Vide Resolução nº 237 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (BRASIL, 1997).
16
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 609.748/2011 - Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal
entendeu que a teoria do fato consumado não pode ser invocada para conceder direito inexistente sob a alegação
de consolidação da situação fática pelo decurso do tempo .
17
Das dez maiores financiadoras de campanhas políticas, seis são empreiteiras. O valor fornecido por
empreiteiras nessas eleições <2012> é de R$54 milhões, de acordo com os documentos emitidos no fim do
último mês, o que representa 75% do total doado para as campanhas. Na lista das dez maiores empresas que
fomentaram as candidaturas, apenas quatro não são construtoras: dois bancos (Alvorada e BMG), um frigorífico
(JBS) e uma empresa de exportação e importação (Coimbra). A principal financiadora é a construtora
Andrade Gutierrez, que doou R$23.085 milhões, seguida pela OAS, com R$21.260 milhões distribuídos
entre diversos partidos. As outras empreiteiras são Queiroz Galvão, Cristiani-Nielsen, Odebretch, Carvalho

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

É sintomático que, nas eleições de presidenciais de 2010, poucas empresas foram


responsáveis pela maior parte do financiamento da campanha da presidente Dilma Rousseff,
sendo que metade de todo o dinheiro declarado pela campanha da presidente eleita saiu de 27
maiores doadores. Apenas o setor de empreiteiras e construtoras doou pelo menos R$ 37
milhões para os cofres petistas, o que representa mais de 27% de toda a arrecadação,
conforme destacam Bramatti e Toledo (2010). Nota-se que todas elas, direta ou indiretamente,
estão envolvidas na construção das usinas hidrelétricas na região amazônica.

Quadro 1: Ranking dos maiores doadores para a campanha de Dilma Rousseff em 2010.
Fonte: Bramatti e Toledo (2010).

Hoskent e Camargo Correa. Os partidos, comitês e candidatos têm obrigação legal de prestar contas a respeito
da campanha.A grande contribuição das empreiteiras não é novidade no país. Desde que o marketing começou a
fazer parte do dia-a-dia dos candidatos, as campanhas carecem de montantes de dinheiro para atrair votos. O
financiamento é fruto de doações, já que por instrução da lei nenhum incentivo pode vir dos cofres públicos. A
maior parte do dinheiro acumulado vem de empresas. Muitas dessas empresas fecham contratos com o governo,
em sua maioria, grandes empreiteiras. (CAIRES, 2012, grifos nossos).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Quadro 2: Quadro geral dos doadores para a campanha de Dilma Rousseff em 2010, por setor.
Fonte: Bramatti e Toledo (2010).

Se verificar o benefício direto a essas empresas pode-se chegar à conclusão que ao


menos 12 empreiteiras e construtoras que doaram para a campanha da presidente Dilma
Rousseff são fornecedoras do governo federal:
Só em 2010, receberam, por ora, R$ 1,247 bilhão. Juntas, doaram R$ 28,4 milhões
ao comitê da petista ou ao seu partido. Nenhum outro setor econômico recebe tanto
dinheiro do governo federal. Isso dá pistas da razão pela qual o segmento de
construção foi o que mais contribuiu para a campanha de Dilma. Foi responsável por
um em cada quatro reais que entraram nas contas do comitê. A Construtora Andrade
Gutierrez S/A, por exemplo, doou R$ 5,1 milhões ao Comitê Financeiro Nacional
para Presidente da República administrado pelo PT. Recebeu, apenas em 2010, R$
391 milhões do governo federal, principalmente pelas obras da Ferrovia Norte-Sul.
A Construções e Comércio Camargo Correa doou R$ 8 milhões à campanha de
Dilma. Recebeu até hoje R$ 99 milhões do governo federal, pela construção da
Norte-Sul e por obras de irrigação. Tem mais a receber, como pelas eclusas da
usina hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, inauguradas esta semana por Lula e
Dilma (TOLEDO, 2010).

Quadro 3: Quadro comparativo de valores doados pelas empresas financiadoras da campanha de Dilma Rousseff
em 2010 x valores recebidos pelas mesmas pelo governo eleito.
Fonte: Toledo (2010).

Diante disso fica patente como a sustentação financeira das campanhas tem relação
direta com manutenção de projetos de energia convencional de grande impacto na amazônia

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

brasileira. De outro lado, demonstra também como a agenda do poder Executivo sobrepõe-se
ao poder Legislativo, cujos financiamentos também não destoam das eleições majoritárias:
[...] como o sistema eleitoral brasileiro se alimenta de práticas clientelistas, já
fartamente indicadas pela literatura, os parlamentares buscam apoio no setor
privado como forma de capitalizar recursos, tanto para as campanhas quanto
para a produção de políticas de interesse localizados, que possam maximizar as
chances de eleição. Além do mais, em um sistema altamente competitivo como o
brasileiro, recusar a doação do setor privado aumenta os riscos deste capital buscar
apoio na oposição, aumentando as incertezas do sucesso eleitoral. Por esta razão o
apoio do capital privado ocorre com todos os candidatos de todas as regiões do Brasil,
independentemente do grau de desenvolvimento sócio-econômico do território.
(RIBEIRO; SOUZA, 2011, p. 16).
Por seu turno, necessário agora verificar como esse mosaico de interesses tem sido
trabalhado no âmbito do presidencialismo de coalizão chileno.

3.2 Os Projetos Hidrelétricos na Patagônia Chilena

A construção de centrais hidrelétricas na região da Patagônia demonstra a tendência na


América Latina de avançar-se sobre regiões de biodiversidade sensíveis, com projetos de
hidrelétricas ainda defendidos como as uma das poucas energias firmes sustentáveis. Após
estudos para a implantação de cinco hidrelétricas ao longo dos rios Baker e Pascua, tem-se a
aprovação de mais projeto hidrelétrico na região. Esse denominado projeto Rio Cuervo, da
Energia Austral, é um empreendimento conjunto das australianas Origin Energy e Xstrata
Copper que busca gerar 640 megawatts. Ele também está situado em Puerto Aysén, na
Patagônia chilena, uma região com grandes reservas de água e natureza quase inexplorada. Os
primeiros cinco projetos têm o valor estimado de US$ 3,2 bilhões, uma joint venture entre a
chilena Colbún e a hispano-italina Endesa, e prevê a geração de 2.750 megawatts de
eletricidade, sendo que as barragens inundariam 5.900 hectares de área virgem. Não por
acaso, o governo argentino também tenha interesse em utilizar a Patagônia para tais
empreendimentos. Tanto assim que, no final do ano de 2012, foi aberta uma licitação
internacional para a construção de duas hidrelétricas sobre o rio Santa Cruz, na Patagônia,
com investimentos na ordem de 4,5 bilhões de dólares (ROSSI, 2012).
Somando-se a isso há o fato que, além da geração da energia nos projetos chilenos, no
âmbito da transmissão, tem-se a previsão da construção de 1.900 km de linhas de entre as
usinas e a distribuição para o sistema elétrico que atende a região de Santiago e as minas de
cobre da Codelco e da Anglo American, de modo que 80% da energia gerada será
disponibilizada para a indústria, comércio e mineradoras (PROTESTOS, 2011).

196
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Nesse contexto, os poderes Executivo e Legislativo também deixaram para o poder


Judiciário o enfrentamento de questões como a concepção dos projetos das hidrelétricas
chilenas, que são próprias do debate político institucional do presidencialismo de coalizão.
Desse modo, justiça do Chile acolheu o pedido dos ambientalistas e suspendeu a construção
do projeto hidrelétrico no Rio Cuervo, contrariando a recomendação de uma comissão de
revisão ambiental, que havia aprovado administrativamente o projeto. E mais, ignorando uma
recomendação do serviço nacional de geologia e do serviço de mineração de rejeitar o
levantamento de solos feito pelos empreendedores (JUSTIÇA, 2012).
É fato que enquanto o Brasil possui uma taxa de cobertura energética de 92% e o Chile
possui o índice de 33%, sendo que esse importa 97% dos seus combustíveis fósseis e tem uma
grande dependência da geração hidrelétrica. Mesmo assim, ambos os países avançam da
mesma forma convencional sobre as áreas ambientalmente sensíveis e com o mesmo
argumento: a necessidade energética. Esse agir estratégico 18 fica demonstrado quando se
verifica em uma pesquisa feita pelo instituto Ipsos que 61% da população chilena rejeita os
projetos sobre a região. No entanto, a autonomização das instâncias políticas de representação
enseja a constatação que o cumprimento dos compromissos assumidos com os financiadores
de campanha tem sido mais relevante:
La preocupación respecto a la influencia del financiamiento de la política en las
políticas públicas de un país se centra en el rol de las donaciones corporativas más
que en las individuales. Una visión respecto a las donaciones corporativas
(empresas y organizaciones gremiales) al financiamiento de campañas es que estas
tienen por objetivo “comprar” legislación favorable, en particular leyes que
permitan obtener subsidios o exenciones tributarias [...]. Dada la evidencia
existente respecto a la motivación y la influencia de grupos corporativos para
contribuir financieramente a las campañas electorales, la pregunta relevante es por
qué no se observan montos mayores de contribuciones al financiamiento de
campañas dado que es tan rentable hacerlo. Una explicación posible es que
contribuir con dinero a una campaña electoral es simplemente una forma de
participación (Ansolabehere et al, 2002). En ese sentido, las personas donarían

18
“[...] tanto o agir comunicativo quanto o agir estratégico partem do pressuposto do participante, e não mais do
observador. Ao passo que o primeiro é uma ação voltada para o entendimento e reconhecimento mútuo, o
segundo, embora não seja lingüístico, não pode ser considerado instrumental; visto que pressupõe o agir
comunicativo, podendo ser convertido em ação instrumentalizante, que, ao ter a linguagem como mero meio de
comunicação, conserva singular o plano de ação do altere do ego. Assim, no primeiro nível de idealização
(idealidade da generalidade dos conceitos e significados – semântica), os participantes da interação têm de
atribuir-se reciprocamente a consciência de seus atos; ou seja, têm de supor que eles são capazes de orientar seu
agir por pretensões de validade. Do contrário, tantos os participantes filósofos (perspectiva interna) quanto os
observadores sociológicos (perspectiva interna), enquanto virtuais participantes, passam do enfoque
performativo (Peirce, assumido por Habermas) para o estratégico (finalístico/objetivador). [...] Essa
universalidade da aceitabilidade racional mantém a tensão pela não ocorrência de síntese hegeliana de todos os
contextos, como o ocorreu na representação do Estado liberal (excessos do Poder Legislativo) e na
representação do Estado social (excessos do Poder Executivo). No mais, somente a aceitação obrigatória da
contingência gerada por essa tensão permanente pode fazer das pretensões de validade caminhos para uma
prática cotidiana ligada ao contexto (concepção principiológica da linguagem) da representação política
institucionalmente aceita como uma construção.” (S NT S G R CC , 200 , p. 64-65).

197
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

simplemente por motivación ideológica, por interés en algunas elecciones en


particular y porque tienen ingresos suficientes como para participar en política de
7
esta forma . Otra explicación, que puede ser complementaria a la anterior es que
hay formas más efectivas de influir en legislación favorable para grupos de interés
específicos. (AGOSTINI, 2011).
Desse modo, assim como no Brasil, os agentes financiadores de campanha no Chile
participam dos grandes projetos de hidrelétricas em regiões de biodiversidade sensível.
Embora a reforma do mecanismo de financiamento tem sido alterado19, tem-se que o controle
nessa seara ainda é fugidio. A influência desses agentes na tomada de decisões fica patente
quando se verifica que um dos coordenadores financeiros da campanha do atual presidente
Sebastián Piñera foi Bernardo Lorraín Matte20, presidente da Colbún, empresa envolvida
diretamente com o projeto das hidrel tric as na Patag nia chilena, que atualmente faz “meia
culpa” diante da mobilização internacional pela preservação da região:
Colbún se incorporó a HidroAysén en el año 2006 y era una prioridadsocializar el
proyecto a nivel regional (en Aysén), pero ignoramos completamente la audiencia
nacional", dijo el directivo en el marco de un seminario organizado por Valor Futuro
y la Escuela de Administración de la Universidad Católica. No obstante, Larraín
Matte se excusó afirmando que "fue un error que cualquiera habría cometido, porque
pensar que HidroAysén se convertiría en un tema mundial era algo difícil de
anticipar (BERNARDO, 2012).
Como toda abordagem que se realiza sobre o tema, a preocupação não pode ser apenas
pela legalidade do financiamento. É importante também focar-se nos mecanismos de controle
popular sobre as pretensões - muitas vezes, nada republicanas - dos financiadores de
campanha e sua encampação mediante políticas públicas, como a política energética dos
Estados brasileiro e chileno, pela coalizão presidencial exercente do poder.

19
El 11 de diciembre de 2005 se realizaron elecciones presidenciales y parlamentarias en todo el país y un tema
que en estos días cobra realce en la discusión pública es el del financiamiento de campañas políticas, tanto por
parte de privados (personas naturales, empresas y organizaciones sociales) como del Fisco. Para normar este
crítico aspecto del proceso electoral existe una clara legislación al respecto. Las donaciones monetarias a
partidos políticos están normadas principalmente por la Ley N° 19.884 sobre transparencia, límite y control del
gasto electoral, y por la Ley N° 19.885, que norma el buen uso de donaciones de personas jurídicas que
originan beneficios tributarios. En la Ley N°19.884 hay que hacer notar dos aspectos. El primero es que fija un
límite de dinero que una persona natural o jurídica puede donar a campañas políticas en una misma elección,
sea a uno o varios partidos, sea a uno o varios candidatos. Los límites son: 1.000 UF para cada candidato a
elecciones municipales.1.250 UF para cada candidato al Congreso Nacional. 2.000 UF para cada candidato a
la Presidencia de la República. 10.000 UF para cualquier conjunto de candidatos.10.000 UF para un mismo
partido político. El segundo aspecto es que se crean tres mecanismos para efectuar donaciones que buscan
hacer más transparentes los procesos y evitar los tráficos de influencias y los cobros de favores
(FINANCIAMIENTO, 2005).
20
Los que conocen la cocina de Apoquindo 3000 –el cuartel general de las empresas del ex- senador, ubicado al
frente de su comando “oficial”– sitúan al tope de esta pirámide a su íntimo amigo y socio, el empresario José
Cox Donoso. El director de la administradora de fondos de inversiones CMB Prime (que tiene oficinas apenas
unos pisos más abajo que el candidato) es quien ha liderado la recolección para la campaña. Algunos allegados a
Piñera agregan que cumple dicha tarea junto a al menos otros cuatro ejecutivos, entre los que se cuentan los
también empresarios Patricio Parodi y Juan Bilbao, de Consorcio Financiero. Otros mencionan a Bernardo Matte
–de viejos nexos con RN y más bien cercano a Andrés Allamand - como parte de la misma red (MINAY, 2009).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

04 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma vez que nenhum mosaico jurídico de controle de tomadas de decisão é perfeito,
mas produto de uma construção permanente, quando se reflete sobre as relações entre o poder
Executivo e o poder Legislativo na história institucional brasileira e chilena, observa-se a
preponderância da agenda daquele, principalmente após o advento do Estado Social e as
demandas por políticas públicas de massa.
Com efeito, quando se analisam os financiadores dessa transformação de votos em
cargos políticos, constata-se que, mesmo sendo suas doações regulares e lícitas, essas
possuem uma vinculação direta com o retorno do capital investido nas campanhas com os
empreendimentos de grandes hidrelétricas na região da Amazônia brasileira e da Patagônia
chilena.
Assim, a fragmentação do processo de tomada de decisão no presidencialismo de
coalizão reflete na postura dos poderes Executivo e Legislativo no sentido de viabilizar os
marcos jurídicos para a execução das obras relacionadas com as empresas que implementam
esses grandes projetos hidrelétricos. Além disso, propugnam no ambiente comunicacional um
caráter pejorativo às energias renováveis não convencionais (solar e eólica) denominando-as
como “não firme” por alegação não serem estocáveis. Por outro lado, ressaltam
ilegitimamente as hidrelétricas como a única energia renovável firme e de escala.
Esse discurso estratégico tem a finalidade de perpetuar a fonte de financiamentos das
campanhas eleitorais bem como, ao contrário dos países desenvolvidos e mesmo em
desenvolvimento, de deixar de realizar um maior aporte financeiro inicial para as energias
renováveis não convencionais. O cerne da discussão está no fato que essas escolhas, sob o
pano-de-fundo imediatista, pode gerar um anacronismo político e energético. O primeiro pelo
fato de inviabilizar outras candidaturas que não das coalizões que estiveram comprometidas
com a permanência e a ampliação desses projetos. O segundo relaciona-se com o fato de que,
diante da efetiva alteração dos regimes de chuvas como consequência das mudanças
climáticas, esses grandes reservatórios naquilo que um dia foi um rico bioma estarão sub-
utilizados.

REFERÊNCIAS

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CONSTITUIÇÃO, ESTADO PLURINACIONAL E AUTODETERMINAÇÃO


ÉTNICO-INDÍGENA: um giro ao constitucionalismo latinoamericano.

CONSTITUCIÓN, ESTADO PLURINACIONAL Y LA AUTODETERMINACIÓN


INDIGENA: un giro al constitucionalismo latinoamericano.

Sandra Nascimento1

RESUMO

A Constituição tem sido compreendida como expressão da realidade organizativa de


uma sociedade servindo como fundamento para o exercício do poder político, dotada de
supremacia e sustentada na democracia, entretanto, é constituída de elementos culturais
eurocêntricos hegemônicos, que conservam o modelo de unicidade jurídica de base
normativa lógico-formal e forjam a unidade nacional justificando as espoliações das
terras indígenas e a incorporação/integração dos índios a uma sociedade nacional,
ocultando ou deixando em segundo plano a sua condição política de autodeterminação.
Esse artigo discute a normatividade constitucional em sistemas sociais pluriétnicos e
pluriculturais, tomando como referencia o discurso institucional jurisdicional na questão
das retomadas dos territórios indígenas. A reflexão abrange o paradoxo da
“constitucionalização” dos direitos dos “índios” decorrentes dos seus costumes,
tradições e direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam e a resposta jurídica
racialista, conservadora e positivista que ainda domina o cenário jurídico brasileiro.

Palavras-chave: Constitucionalismo; autodeterminação; territórios indígenas.

RESUMEN

La Constitución ha sido entendida como una expresión de la realidad organizativa de


una sociedad que funciona como base para el ejercicio del poder político, dotado de la
supremacía y sostenida en la democracia, sin embargo, se compone en elementos
culturales eurocéntricos hegemónicos, que conservan el modelo de la unidad jurídica en
su base normativo lógico-formal y forjan la unidad nacional que justifica el despojo de
las tierras indígenas y la fusión / integración de los indígenas a la sociedad nacional, y
hace la ocultación de su condición política de autodeterminación. En este trabajo se
analizan los sistemas normativos constitucionales pluriétnicos y multiculturales,
tomando como referencia el discurso institucional sobre el tema de la reconquista de los
territorios indígenas. La reflexión abarca la paradoja de la "constitucionalización" de los
1
Doutoranda em Ciências Sociais no Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas –
CEPPAC/UnB. Mestre em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Professora de Direito
Constitucional do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Advogada e Consultora em Direitos
Humanos.

204
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

derechos de los "indios" en virtud de sus costumbres, tradiciones y derechos sobre las
tierras que tradicionalmente ocupan y la naturaleza de la respuesta juridica, racialista,
conservador y positivista que aún domina el escenario jurídico brasileño.

Palabras clave: Constitucionalismo; la autodeterminación; los territorios indígenas.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Introdução

A memória pós-colonial e a retórica da modernidade ocidental nos mostra que os


sistemas constitucionais na América Latina, de tradição romano-germânica, foram
constituídos no modelo da unidade jurídica e da homogeneidade político-cultural, cujas
bases epistemológicas sustentam a sistematicidade e normatividade Estatal como única
dotada de validade e legitimidade.
Em fins da década de 80, com a última onda de democratização, a eclosão de
demandas então silenciadas, colocou a diversidade étnica e o pluralismo na agenda
político-institucional e social, como reação ao racialismo geo-histórico e cultural até
então preservadas no contexto da modernidade.
As questões indígenas alcançaram destaque, na medida em que o desenho da
interação étnica haveria de se redefinir em face da ressignificação das posições dos
sujeitos enquanto titulares de direitos, em especial, do direito a identidade étnica e à
autodeterminação.
Assistimos, com certo entusiasmo, a textualização do pluralismo e a refundação
de Estados-Nação na perspectiva multicultural, a partir da incorporação da diversidade
cultural, da identidade étnica, linguística e da autonomia territorial indígenas
inaugurando assim o “constitucionalismo latino-americano”, marcando uma ruptura
com o modelo constitucional até então predominante nas Constituições do continente.
Na onda de refundação dos Estados-Nação sob a perspectiva multicultural, a
Constituição Brasileira de 1988 é uma das cartas políticas que reúne inconsistência
jurídica no que se refere à dimensão indentitária pluriétnica e de autonomia indígena,
pois, embora o país seja constituído por mais de 258 formas societárias indígenas
originárias e, atualmente, com uma população de quase um milhão de indígenas
autodeclarados2, não assume nem declara a dimensão pluriétnica e multicultural como
fundamentes da sociedade nacional.
A Constituição Brasileira sequer menciona “povos indígenas”. O texto
constitucional utiliza a expressão “índios”, “grupos” ou “comunidades”. Apesar disso, o

Fonte: IBGE – Censo 2010 (IBGE, 2012). A metodologia para obtenção das informações considera o
2

quesito raça/cor, na pesquisa por amostra de domicilio. Os indígenas que estão em áreas não demarcadas
não integram os números da pesquisa, e certamente o numero seria maior se a metodologia fosse
especifica.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

documento constitucional de 1988 reconheceu aos índios sua cultura, costumes,


tradições e os direitos territoriais sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
No contexto do constitucionalismo latino americano em fins da década de 80, e
do novo constitucionalismo inaugurado nessa primeira década do século XXI, no plano
de avanços conceituais, pondera-se que a diversidade étnico indígena tem sido
politicamente ocultada, socialmente rejeitada e juridicamente desqualificada, como se
tem observado em episódios criminosos contra as populações indígenas no Chile,
Colômbia, Equador, Peru e Brasil.
Esse artigo discute os aspectos da normatividade constitucional e da
conflitualidade entre norma-texto e realidade a partir discurso institucional na questão
judicial de demarcação de um dos territórios do povo Guarani Kaiowá, denominado
Laranjeira Ñanderu, na região de Rio Brilhante no Estado de Mato Grosso do Sul no
Brasil, tendo em vista as decisões judiciais tendem a caracterizar o movimento de
ocupação do tekoha pelos indigenas como ato de “violência” contra a propriedade
privada em que se desenvolvem desastrosas atividades agropecuárias e agroindustriais.
Propõe-se aqui uma reflexão crítica acerca da constitucionalização dos direitos
dos “índios” decorrentes dos seus costumes, tradições e direitos sobre as terras que
tradicionalmente ocupam e o paradoxo da unicidade territorial e da mononormatividade.
A análise da questão da demarcação do território do povo Guarani Kaiowá
servirá, de inicio, para abrir espaço nos estudos constitucionais sobre a dimensão
jurídica da autodeterminação e autonomia dos povos indígenas enquanto direito e
principio constitucional.
O argumento é construído a partir da compreensão sobre o constitucionalismo e
a questão indígena no contexto da América Latina em fins da década de 80, com os
desdobramentos ao novo constitucionalismo de natureza pluriétnica e plurinacional. Os
fundamentos dessa reflexão cingem-se ao plano das normatividades produzidas a partir
do processo hermenêutico e do reconhecimento do pluralismo jurídico como campo que
proporcionará o esboço dos parâmetros jurídico-politicos sobre a diversidade étnica e a
autodeterminação indígena. Na questão da demarcação territorial, discute-se o conceito
normativo de território indígena em diálogo com a antropologia sob a ótica da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O registro sociopolítico e
judicial da questão que envolve a demarcação do TI Laranjeira Ñanderu propiciará a
analise jurídico constitucional na perspectiva pluriétnica e pluricultural, na qual tento

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

demonstrar o paradoxo de concretização das expectativas normativo-constitucionais


diante do modelo de monormatividade.

O Constitucionalismo na América Latina e a questão indígena:

Constitucionalismo é uma noção que dimensiona o movimento de reivindicação


de autoridade jurídica para a decisão politica de moldar a organização política, o
exercício do poder político e a garantia das liberdades, em um sistema de normas
supremas emanadas de uma força constituinte originária. Enquanto movimento possui
uma historicidade e contextualidade geocultural, que desde sua expressão mais evidente
em termos de difusão ideológica a partir da Revolução Francesa de 1789 e dos ideais
individualistas e liberais, chega-se ao novo constitucionalismo resultante das revoluções
étnico indígenas da América Central e América Andina que impõem a primazia da
plurinacionalidade.
Enquanto noção o constitucionalismo é um constructo que incorpora
significações multidimensionais. No sentido amplo, pode ser compreendido como
fenômeno relacionado ao fato de que todos os Estados possuem uma constituição. Em
sentido estrito, o constitucionalismo pode ser compreendido como o movimento
jurídico, politico, social e ideológico que impõe a limitação do poder por constituições
escritas, consistindo, assim, em técnica jurídica de tutela das liberdades fundamentais e
contenção dos arbítrios do Estado, encontrando no contexto europeu e estadunidense,
em fins do século XVIII, seus marcos históricos e normativos, com as revoluções
francesas de 1789 e norte americana de 1776 (Bulos, 2008).
Embora não se tenha precisão conceitual, é possível identificar formas de
expressão de constitucionalismo desde a antiguidade clássica e na idade media, como
afirma Herman Heller, Leon Homa, T. O. Elias ou Karl Lowenstein ( apud Bulos
(2008), entretanto, chamo a atenção para o caráter do direito político que se constituiu
com as primeiras constituições escritas a partir da modernidade, com o Estado-Nação
Moderno e suas consequências sobre as novas institucionalidades na América Latina
pós-colonial.
As reflexões nesse trabalho estão delimitadas ao contexto do constitucionalismo
moderno de fins do século XVIII, compreendido como movimento jurídico, político e
cultural que promoveu a ruptura com o absolutismo, inaugurando o modelo de Estado
Constitucional, caracterizado pela primazia da separação de poderes e pela tutela das

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

liberdades fundamentais, no qual o exercício do poder político é limitado por uma


Constituição produto de poder constituinte e, por esta razão dotada de supremacia.
(Bobbio, Matteucci, & Pasquino, 1998).
A trajetória do constitucionalismo moderno, contudo, não se constituiu de modo
linear e sem retrocessos. A experiência constitucional-liberal europeia sofreu os
impactos das revoluções socialistas do século XIX, e das contrarrevoluções que
impediram a consolidação de um formato institucional de validade universal, porém, o
projeto de hegemonização da organização estruturante do Estado Liberal e burguês, por
assim dizer, não foi interrompido.
A América Latina, no contexto pós-colonial, foi destino do projeto da
modernidade europeia destinado a afirmar uma identidade nacional, instituir a unicidade
jurídica e garantir a unidade territorial, dando sequência à logica da dominação colonial
(Mignolo W. D., 2002). As cartas constitucionais do inicio do século XIX, embora
tenham particularidades geo-histórias, adotaram em geral a separação de poderes, a
declaração dos direitos políticos e democracias representativas, como se vê, a exemplo
na Carta Constitucional do Império Brasileiro de 1824.
A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder
de vocação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira identidade da
modernidade. Dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do
referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo
padrão de poder (Quijano, 2005).
De acordo com o Uadi Lamego Bulos o constitucionalismo moderno representou
a reaproximação entre os fundamentos éticos da vida humana e o Direito,
reintroduzindo as concepções de justiça e legitimidade coincidindo até a primeira
metade do século XX com o positivismo jurídico3 (2008).
A partir de meados do século XX, em decorrência dos episódios que marcaram a
II Guerra Mundial, levaram a redefinição da ordem jurídica e política, marcando o
neoconstitucionalismo, como mais uma etapa da experiência constitucional europeia.
Essa referência histórica é importante para contextualizar os processos de
redefinição do pensamento jurídico e do constitucionalismo, que a partir de meados e

Registro como referencia que na história do direito ocidental, a codificação do direito civil na França
3

em 1804 marca o positivismo jurídico, reconhecido como positivismo-legalista. Na primeira metade do


século XX o positivismo jurídico é reconfigurado a partir do positivismo-normativista kelseniano (Kelly,
2010), reconhecido também como neopositivismo, que dá ênfase à linguagem, ao teor literal da norma e
segundo o qual a constituição regula a criação de outras normas , sendo fonte das demais normas
infraconstitucionais, marcando o ponto de vista jurídico-positivo.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

fins do século XX se constitui pela aproximação das ideias de constitucionalismo e


democracia, no marco filosófico do pospositivismo jurídico, que busca ir além da
legalidade estrita, levando a quebra de paradigmas em face da afirmação da força
normativa da Constituição, da expansão da jurisdição constitucional e no
desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional inspirada pela
teoria da justiça (Barroso, 2007).
O neconstitucionalismo coincide com o processo de internacionalição dos
direitos humanos, no qual a pessoa humana, enquanto sujeito, é recolocada no campo
sociopolítico a partir da declaração de que todos nascem livres e iguais em direitos e
dignidade, marcando a importância da politica relacionada com a identidade e o retorno
da moralidade à política e do humanismo ao Direito (Douzinas, 2009, p. 34).
O discurso dos Direitos Humanos repercutiu na América Latina, em fins da
década de 80, com impacto nos processos redemocratização dos países até então
submetidos a regimes ditatoriais de caráter militar, e no cenário dos estudos jurídicos
críticos, marcado pela indissociável relação em direito e política (Kelly, 2010).
Esse novo contexto produziu uma explosão de demandas sociais, com as quais a
engenharia do novo Estado Democrático de Direito, entenda-se Estado-Nação
Constitucional, para garantir estabilidade institucional haveria de ser redefinida para
assegurar a inclusão dos interesses de grupos e comunidades antes à margem da
proteção social e do reconhecimento identitário, em especial, das populações indígenas
que, nesse período, ainda estavam submetidas a processos de dominação,
aniquilamento e ocultamento das identidades étnicas.
Não se pode deixar, contudo, de relacionar a historia do constitucionalismo sob a
gestalt indígena, para quem o constitucionalismo liberal significou “el sometimiento
indígena, esto es, el despojo de sus territorios, el aseguramiento de su subordinación
política, y su anulación cultural”; e o constitucionalismo social significou
integracionismo (Fajardo, 2006).
Somente com as lutas dos povos indígenas por reconhecimento de sua identidade
cultural foi possível em fins do século XX e inicio do século XXI, a produção de uma
legislação importante sobre os direitos dos povos no âmbito do Estado e no âmbito
internacional, levando à aprovação da Convenção 169 da Organização Internacional do
Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, em 1989
(Rodrigues Pinto, 2008).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Nesse cenário o protagonismo indígena foi determinante para provocar a


redefinição do modelo de Estado-Nação, abrindo frente para um “constitucionalismo
latino-americano” e incorporação do pluralismo jurídico, porém, não de forma global ou
linear, no continente, destacando-se contudo o constitucionalismo andino.

O constitucionalismo latino-americano e a plurinacionalidade

A trajetória de [re]apropriação histórico-cultural das populações indígenas na


América Latina provocou uma onda de constitucionalização de direitos e liberdades
fundamentais orientadas agora por uma leitura moral do Direito, voltada para o
reconhecimento do outro, acomodando a diversidade etnicorracial e a pluralidade de
culturas no discurso do multiculturalismo.
Segundo Rodrigues Pinto o multiculturalismo constitucional foi-se difundindo
na América Latina a partir das Constituições da Guatemala (1986) e da Nicarágua
(1987), destacando que outros países criaram suas próprias variações do
reconhecimento dos direitos indígenas, e que tais constituições de alguma forma forma
“aceitam e protegem a identidade étnica de suas minorias e quase todas reconhecem a
precedência dos povos indígenas em relação ao estabelecimento do Estado” (Rodrigues
Pinto, 2008).
Nesse cenário, contudo um novo quadro do constitucionalismo latinoamericano
seria desenhado a partir dos anos 90 com as Constituições Políticas do Equador e Peru,
e no ano de 2009 com a Constituição Política Bolívia ao constituir uma nova
institucionalidade fundamentada na plurinacionalidade.
Essa nova face do constitucionalismo latino-americano, no período de 2006 a
2009, foi configurada no contexto da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos
dos povos indígenas em 2007 e constituída
“a partir do protagonismo indígena, de que são resultado, também, um papel
diferenciado da justiça indígena (no caso boliviano, sujeita apenas ao Tribunal
Constitucional) e um novo léxico baseado na própria cosmovisão indígena (de
que o reconhecimento de direitos a “pacha mama” no Equador e dos princípios-
de cunho aimará- da nação boliviana são alguns exemplos)” (Baldi).

Não há duvidas de que as mudanças politicas e os novos processos sociais de


luta, protagonizados principalmente pela força “inconteste dos povos indígenas no
Continente”, marcaram um novo paradigma de constitucionalismo, de configuração
pluralista intercultural (Wolkmer, 2010).

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Enquanto movimento, contudo, o constitucionalismo de vertente plurinacional


ou pluralista intercultural não alcançou, ainda, espaço no sistema jurídico de todos os
países, a exemplo do Chile e do Brasil, sendo, pois distintas as respostas jurídicas para
as questões que abrangem o pluralismo, a autodeterminação sociopolítica e autonomia
territorial indígena.
Uma breve análise comparativa quanto à finalidade normativa em cada sistema
constitucional permite identificar, de um lado, os modelos que se baseiam na dimensão
multicultural, que tão somente representa o reconhecimento formal do pluralismo
cultural e da diversidade étnica enquanto expressão de „colonialidad de poder”. As
concepções multiculturalistas de identidade, cultura, entre outras, nas palavras de Silva,
“desempenharam um papel meramente retórico na transformação da situação colonial
dos povos indígenas na região” (Silva, 2012).
De acordo com Wolkmer os documentos legais e os textos constitucionais
elaborados na América Latina, em grande parte, têm sido a expressão da vontade e do
interesse de setores das elites hegemônicas, formadas e influenciadas pela cultura
europeia ou anglo-americana (2010).
Encontramos, contudo, de outro lado, as Constituições que incorporam o
pluralismo cultural e a diversidade étnico indígena enquanto condição sociopolítico
constituinte, ou seja, admitem sua origem pluriétnica como se verifica em relação às
Constituições do Equador de 1993 e da Bolívia de 2009, que afirmam sua natureza
plurinacional.
Essas duas constituições contemplam a reengenharia institucional, assegurando a
participação de grupos étnicos indígenas enquanto parte fundante do Estado e da
sociedade, sem reduzi-los à condição de grupo vulnerável, em cujas circunstâncias
sociopolíticas exercem, em condições de igualdade, o poder constituinte e, por meio de
outra organização politico-administrativa, que contempla espaços de participação
política plena, integram as estruturas de governo.
As Constituições da Venezuela, Equador e Bolívia seriam, assim, marco
normativo do que se tem convencionado denominar “novo constitucionalismo latino-
americano”, segundo Dalmau, para quem uma constituição que esteja à altura do novo
constitucionalismo deveria se basear na participação do povo, ser redigida por uma
Assembleia Constituinte, e buscar o "Sumak kamaña" ou o "Sumak kawsay" que
significa em quéchua o "viver bem" (Dalmau, 2009)

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O novo constitucionalismo é reação evidente ao processo de colonialismo


interno, como estratégia contra hegemônica, e surge em razão da insuficiência do
pensamento multicultural, que, na verdade, enquanto elemento politico ideológico tão
somente contribui para a preservação do liberalismo e das práticas de dominação.
Nesse sentido, o multiculturalismo, afirma Silva, como filosofia política crítica
do liberalismo, elaborado a partir da experiência com os “cultural mosaics” e dos
“melting pots” da América do Norte, passou a desempenhar este papel paradigmático
constituindo um novo ideal civilizatório para as elites políticas dos países da América
Latina no século XX, após a desilusão com seus mitos de democracia racial (2012).
De outro lado, Raquel Yriogyen pondera que as “ reformas constitucionales de
los países andinos incorporan derechos indígenas y el discurso del multiculturalismo, y
suponen cambios paradigmáticos respecto de la ideología jurídica monista (Fajardo,
2006).
Pode-se considerar que o multiculturalismo serviu para abrir espaço para o
reconhecimento das identidades étnicas, porém, criticamente, deve ser superado, na
medida em que coloca os povos indígenas no mesmo contexto de todos os outros
grupos que reclamam por reconhecimento.
Sob essa perspectiva, Goméz chama a atenção para o fato de não se confundir
ou subsumir o tema dos direitos indígenas no espaço da diversidade, pois, afirma “ Si
bien es cierto que estos movimientos y organizaciones se agrupan en colectividades, el
ejercicio de los derechos que reclaman, la titularidad de los mismos siempre se
individualiza. Diferente es el caso de los pueblos indígenas, que también están
incluidos en el espacio de la diversidad pero la naturaleza de los derechos que
reclaman es colectiva como lo es su titularidad” (Gómez, 2000)
É certo, porém, que até o evento desse “novo constitucionalismo”, as
constituições latino-americanas não contemplaram “as necessidades de seus segmentos
sociais majoritários, como as nações indígenas, as populações afro-americanas, as
massas de campesinos agrários e os múltiplos movimentos urbanos” (Wolkmer, 2010)
Deve-se, contudo, levar em consideração que nenhuma das Constituições, por
mais contra hegemônica que possa indicar seu teor literal, está livre de tensões no
âmbito de sua aplicação e, assim, não estarão desprovidas dos problemas de
normatividade em relação ao programa normativo que afirma o direito à diversidade
étnica e ao pluralismo, principalmente em razão de impasses conceituais, que ainda

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

influenciam o sistema constitucional no continente com as nuances político ideológicas


dominantes.
Sem pretender, contudo, esgotar conceitualmente ou criticamente o tema, penso
ser importante, para a análise dos paradoxos de aplicação da constituição às questões
indígenas no sistema jurídico brasileiro, fazer algumas considerações sobre a força
normativa da constituição no contexto da diversidade étnico-indígena e das
consequências práticas no âmbito das relações interétnicas, no campo político e jurídico.

Normatividade constitucional, pluralismo jurídico e diversidade étnico-indígena

O Direito Político ou Direito Constitucional, como categoria de conhecimento, é


tradicionalmente compreendido como sendo o “conjunto de regras que estrutura o
aparelho da potencia dos Estados. Contempla em sua finalidade a tarefa de estabelecer
a organização do Estado, definir o regime político, fixar a estrutura governamental e
regulamentar suas relações com os outros Estados (Goyard-Fabre, 2002, p. 2).
No centro do modelo de Estado-Nação, está a Constituição que define o estatuto
orgânico do Estado e é nela que reside a base da potência estatal (Goyard-Fabre, 2002,
p. 103). Pondera Goyard-Fabre (2002) que se “a potencia é força e, às vezes, violência,
o poder político implica a ordem de direito erigida por um conjunto de vínculos
institucionais e que o poder político é constituído pelas normas que regem a organização
institucional da política e seu funcionamento no âmbito por ela determinado e
delimitados” (2002, p. 2).·.
A constituição é norma que contém recortes da realidade social e, enquanto
norma jurídica “é mais do que um enunciado de linguagem que está no papel” cuja
aplicação, ou seja, concretização, em um dado caso, se faz a partir dos dados fornecidos
pelo programa da norma, pelo âmbito da norma e pelas peculiaridades do conjunto dos
fatos” (Müller, 2010)
A normatividade da Constituição não é, assim, produzida pelo teor literal e sim
pelos elementos extralinguísticos, do tipo sociocultural e político, que se produzem e
reproduzem no processo hermenêutico, sendo a normatividade um processo estruturado,
que garante a análise hermenêutica da relação entre norma-texto e realidade, para além
do positivismo legalista (Müller, 2010).

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Nesse sentido, o significado e sentidos do texto não condicionam de modo


acabado, a produção de efeitos da norma, sendo que é o olhar do destinatário/interprete
que, contextualizadamente, confere validade e legitimidade às expressões jurídicas,
associadas à historicidade e exigências sociais, culturais, políticas, econômicas ou de
qualquer outra ordem que integram os modos de ser de determinada sociedade e que
funcionam como parâmetros da normatividade.
Apropriando da noção de que no “ direito constitucional uma norma jurídica
não é um juízo hipotético isolável diante do seu âmbito de regulamentação, nenhuma
forma colocada com autoridade por cima da realidade, mas uma inferência
classificadora e ordenadora a partir da estrutura material do próprio âmbito social
regulamentado” (Müller, 2010), é inegável considerar que os conteúdos que afirmam a
diversidade étnica sejam recorte da realidade e não pode ser ignorado pelo interprete ao
produzir a decisão no caso concreto.
A constitucionalização da diversidade étnica a partir do reconhecimento da
organização cultural, da cultura, dos costumes, das tradições indígenas assim como os
direitos territoriais, não é desprovida de normatividade, e funciona como parâmetro para
a efetividade jurídica, na dimensão da realidade.
Oportuno considerar que o problema da efetividade da Constituição no que se
refere aos preceitos da diversidade cultural e identidade étnica indígena e suas
consequências fáticas, não está apenas no plano metodológico de interpretação ou de
técnica classificatória das normas constitucionais, mas sim, de caráter conceitual
político-ideológico.
É necessário em última instância, como afirma Neves, fazer a distinção prática
da inefetividade da Constituição, que teriam fatores causais distintos, envolvendo de um
lado, conteúdos normativos que contenham fins que não se realizam em razão das
possibilidades estruturais e de outro, as condições e tendências das relações de poder
que estruturam a realidade constitucional (2007).
De acordo com Gómez a incorporação nos documentos constitucionais do
reconhecimento dos direitos indígenas, reconhecidos nas expressões “usos y
costumbres” anunciam a subordinação do direito indígena ao direito nacional, sendo
este “unicista y homogneizador de la diversidade cultural”. Para a autora implica em
“la recepción de um invitado de última hora, normas recién llegadas al derecho
nacional, simples adiciones que no lo cuestionan” (Gómez, 2000)

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A diversidade étnica, assim como o pluralismo étnico indígena e os direitos


indígenas, é certo, não se efetivam pela linguagem, porém, a linguagem jurídica é
determinante enquanto parâmetro para o âmbito normativo, que é o conjunto de dados
reais normativamente relevantes para a concretização individual da norma (Neves,
2007). O âmbito normativo, assim, deve ser considerado como espaço de
ressignificação e atualização permanente do sentido normativo das Constituições que
apenas tenham textualizado os direitos indígenas.
Em sistemas constitucionais que adotam a perspectiva do multiculturalismo,
com mais razão, estaremos diante do paradoxo da instrumentalidade normativa e de sua
efetividade, que poderá conter também a dimensão simbólica conservadora e racialista
que ainda encontra-se presente modelo jurídico influenciado pelo sistema
constitucional euroestadunidense.
A Constituição não se interpreta do mesmo modo que se interpretam as normas
comuns de direito civil ou de direito penal e por esta razão a atuação das instancias de
decisão não conseguem dar uma resposta constitucionalmente adequada às novas
situações de interação étnica indígena, pois exige a consequente superação do
positivismo legalista, do pragmatismo ou do oportunismo jurídico que tem silenciado
sobre os princípios fundamentais de sociedades pluriétnicas, quais sejam o da
autonomia e autodeterminação.
De acordo com Rangel compreender a autonomia e autodeterminação indígenas
exige a compreensão e aceitação do pluralismo jurídico, que enquanto fenômeno de
sociedades pluriculturais e multiétnicas deve ser compreendido no âmbito de uma outra
racionalidade, e que só pode ser o plano do direito subjetivo, que significa a “faculdade
ou poder da pessoa sobre seu ser, capacidades, atividades e posses para conquistar seu
desenvolvimento histórico e chegar à plenitude de seu fim último” (González Mofin
apud Rangel, 2004, p. 318)
Ao longo das últimas duas décadas foram se constituindo referencias
paradigmáticas para atuar no âmbito do pluralismo, enquanto noção de natureza
multidisciplinar levando a uma multiplicidade de concepções, mais precisamente pela
antropologia jurídica, sociologia jurídica, direito comparado, direito internacional, e dos
estudos sócio jurídicos (Tamanaha, 2007)4.

4
Tradução livre.

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Pluralismo jurídico é uma noção que designa a existência de várias ordens


jurídicas em um mesmo território, não diz respeito às meras representações jurídicas
plurais fundadas na mesma ordem jurídica, mas à identificação de sistemas próprios,
singulares, originários de formas societárias e de culturas distintas.
O que dá forma ao pluralismo jurídico não é a existência de múltiplas expressões
normativas, mas sim a distinção que existe entre elas, e que reclamam um lugar de
autoridade e que produzem, entre outros aspectos, exigências ou normas conflitantes, já
que devem conter diferentes estilos e orientações5 (Tamanaha, 2007).
Na história do direito, observa-se que a configuração das sociedades humanas é
marcada pelo pluralismo jurídico, desde a idade antiga, englobando o período medieval
que foi caracterizado por diferentes tipos de leis e instituições, ocupando o mesmo
espaço, às vezes conflitantes, às vezes complementares contestando e confrontando
hierarquias e organizações (Tamanaha, 2007).
A mudança dessa perspectiva pluralista ocorreria com o advento do jus
racionalismo do século XVIII.
Mas em que momento o pluralismo jurídico permite incorporar a
autodeterminação indígena, enquanto direito e enquanto principio norteador do diálogo
interétnico? Se considerarmos que as sociedades indígenas se constituem a partir de um
modo próprio de vida, possuem organização social distinta da sociedade nacional e
realizam seus usos e costumes, é consequência lógica que o reconhecimento e aceitação
do pluralismo jurídico levará ao reconhecimento da autodeterminação, do contrario,
não teremos avançado em nenhum grau na efetivação da diversidade étnica. Para
compreender os efeitos jurídicos da autodeterminação e sua influência nos processos de
demarcação territorial, no contexto constitucional brasileiro, apresento a seguir, um
esboço dos parâmetros de interpretação como mediadora da normatividade
constitucional.

O sistema constitucional brasileiro e a autodeterminação indígena: parâmetros


étnico-indígenas para a adequada interpretação constitucional.

O sistema constitucional brasileiro, assim como grande parte do mundo


ocidental, foi construído no marco da ideologia individualista e de homogeneidade
político-cultural, ocultando a diversidade étnica indígena no discurso da igualdade.

“impose conflicting demands or norms; they may have different styles and orientations”
5

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O discurso da diversidade inaugurado na dimensão política no final da década de


80 marca importante momento da história da redemocratização brasileira. A
Constituição Federal de 1988 contemplou demandas sociais importantes antes
desconsideradas, entre as quais, dos movimentos de defesa dos direitos dos povos
indígenas, ao incorporar no artigo 231 o reconhecimento da organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam. No que se refere às terras que tradicionalmente ocupam, a
Constituição Federal, o conteúdo material do artigo 231, na verdade, oculta uma a
perversa situação, na medida em que os direitos territoriais dos povos indígenas não se
concretizam senão pela atuação do poder público, pois foi delegada à União a tarefa de
demarcar as terras indígenas.
Ao analisar a estrutura organizativa do Estado Brasileiro após a
constitucionalização dos direitos à diversidade étnica e cultural verifica-se que não
houve alteração institucional capaz de propiciar a interação étnica e o fortalecimento
dos direitos dos povos indígenas, ou de tornar efetiva a proposta a dimensão do
pluralismo.
No Brasil, a promoção e proteção dos direitos dos povos indígenas –
considerados como grupos minoritários - e, portanto, destinatários de políticas
específicas para as “minorias”, têm sido realizadas, ainda, por meio de medidas de
inclusão, de caráter integracionista, que tendem a desqualificar as identidades étnicas, a
autonomia e a diversidade.
As diversas constituições desse final de século XX como antes já mencionado,
lograram incorporar disposições da mesma natureza, algumas contemplando uma
normatização mais ampliada, no sentido de disciplinar a instrumentalidade dos preceitos
da diversidade étnica, da identidade cultural e da autonomia territorial como é o caso
das Constituições da Guatemala de 1986 com a reforma de 1993, ao assegurar
constitucionalmente a assistência financeira e técnica nas terras indígenas, ou da
Constituição da Nicarágua de 1987 com as reformas de 2003, que assegura a
participação politica dos indígenas, bem como da Constituição da Colômbia de 1991
com as reformas de 2005, que assegura a autogestão dos territórios indígenas por
conselhos formados pelos usos e costumes das comunidades, ou ainda, a exemplo, a
Constituição do Peru de 1993 ao reconhecer personalidade jurídica e existência legal às
comunidades nativas, e autonomia na sua organização e trabalho e a livre disposição de
suas terras.

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Sem duvida alguma, os artigos 231 e 232 da Constituição Federal representam


um avanço no reconhecimento da diversidade étnica e cultural. Entretanto, não há como
deixar de analisar criticamente o impacto das condicionantes técnico-jurídicas que
acompanham esses enunciados e os demais dele decorrentes, que influenciam
diretamente na força normativa desses preceitos, incidindo diretamente nos processos de
“territorialização”.
Observa-se que o compromisso constitucional da diversidade étnica não
incorporou o caráter jurídico político da autodeterminação, pois os processos de
reconfiguração intersubjetiva tem sido, ainda, mediados por entidades e instituições
públicas e privadas de varias categorias, que de algum modo, conservam, nas práticas
protecionistas, a “moldura ideológica positivista” (Silva & Lorenzoni, 2012).
O reconhecimento das expressões culturais, costumes e tradições dos “índios”
não poderá se fazer dissociado da compreensão normativa constitucional sobre o que
seja o direito fundamental à diversidade étnica e cultural, ou seja, o direito à existência
singular enquanto povo com uma organização social e política próprias. Enquanto
direito fundamental vincula os poderes públicos e, nesse plano, há de se concluir que se
retira do legislador ordinário autorização para editar atos que possam restringir o núcleo
de incidência desse enunciado normativo, principalmente as que venham estabelecer
“sistemas classificatórios pelo grau de contato e interação com a sociedade nacional”,
tendo em vista que nestes, segundo Silva & Lorenzoni “o índio é, não somente
implicitamente, mais explicitamente e legalmente, definido pelo olhar e atos do sujeito
nacional” (2012).
Na sequência a esta reflexão me ocupo da tarefa de fazer um esboço preliminar
acerca dos elementos mínimos indispensáveis para a compreensão jurídica da
autodeterminação, enquanto direito e enquanto princípio contido implicitamente no teor
literal do artigo 231 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
O programa normativo desse dispositivo preceitua que são reconhecidos aos
índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos
originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-
las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Adotando a perspectiva teórica de antes apresentada de que a norma não se
identifica com o teor literal, é necessário, de um lado, extrair as significações
linguísticas, tais como o termo “reconhecer” que significa admitir ou aceitar, e de

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outro lado, as significações extralinguísticas e os aspectos extrajurídicos que integram a


normatividade.
No plano da sua aplicação esse enunciado normativo está tecnicamente pronto
para irradiar efeitos sobre as situações que contempla, abrangendo o conteúdo material
relativo a: organização social; costumes; línguas; tradições; crenças e, direitos
territoriais.
Esse conteúdo material revela o núcleo jurídico da diversidade étnica e cultural,
que é multidimensional e diz respeito, não ao direito a cultura, mas, à própria cultura. A
noção de cultura é, no entanto, plurissignificativo e de conceituação multidisciplinar.
Não pretendo aqui abrir a reflexão para o conceito de cultura, dada a sua complexidade,
porém, admitindo que “nenhuma cultura existe em estado puro e sem ter jamais sofrido
a mínima influência externa”, apenas como ponto de partida ara os fins de nortear a
proposta de produzir sentido ao enunciado constitucional, adoto aqui a noção de cultura
elaborada no âmbito da Declaração da Cidade do México sobre Política Culturais de
1982, como um conceito útil, como sendo o“ conjunto dos traços distintivos, espirituais
e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou um grupo social e
que abarca, para além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais
do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças”.
A partir dessa concepção é possível delimitar o campo normativo da diversidade
étnica, que se desdobra em vários núcleos jurídicos.
O desdobramento plurinuclear, entre outros, deverá abranger os seguintes
campos jurídicos: a) reprodução cultural sem interferência externa; b) manifestação
cultural autônoma; c) identidade étnica; d) convivência comunitária com o próprio
povo; e) acesso a ancestralidade; f) formação e desenvolvimento na sua própria
cultura; g) educação nos moldes de sua tradicionalidade; h)) educação no próprio
idioma ( língua materna); i) conservação das tradições; j) pertencimento étnico sem
condicionantes externas, e l) cidadania plena, livre de protecionismo.
Os princípios e os núcleos jurídicos materiais contidos no programa normativo
podem ser compreendidos em duas dimensões, considerando os efeitos jurídicos
latentes e os efeitos jurídicos manifestos. Em interação com a realidade produzem
consequências jurídicas de natureza negativa, no sentido de vedar de práticas
integracionistas e de impor respeito aos usos, costumes e tradições. De outro lado,
irradia sua natureza positiva ao impor a tarefa de assegurar o direito ao bem estar e à

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reprodução física e cultural. Implícita e de maneira latente, sobressai a natureza


preceptiva que impõe o reconhecimento da equivalência cultural e da autodeterminação.
Essa dimensão jurídica, assim entendo, como resultado da atividade interpretativa
constitucionalmente adequada à perspectiva pluriétnica e multicultural, confere aos
indígenas autonomia para tomar decisões sobre as questões relacionadas ao processo de
territorialização abrangendo, inclusive a autodemarcação dos limites territoriais
necessários à sua reprodução física e cultural.
Se os povos indígenas controlam os acontecimentos que os afetem, no que diz
respeito a seu território e sua cultura, poderão manter e fortalecer suas instituições,
cultura e tradições, assim como promover seu desenvolvimento de acordo com suas
necessidades e interesses, conforme enuncia a Declaração das Nações Unidas sobre os
direitos dos povos indígenas, A/RES/61/295, 10/12/2007.
Desse modo os parâmetros de interpretação constitucional devem coincidir com
a perspectiva internacional, ao declarar que os povos indígenas têm direito a livre
determinação segundo a qual determinam livremente sua condição política e buscam
livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural, consistindo o direito
de todos os povos de buscar o seu desenvolvimento material, cultural e espiritual
enquanto grupo social, ou seja, de controlar seu próprio destino.
Enquanto „direito‟ manifesta-se, ou seja, exterioriza-se, na autonomia ou
autogestão, que diz respeito a gestão de suas questões internas e locais e, enquanto
princípio a autodeterminação6 orienta as relações interétnicas no sentido de não admitir
intervenções arbitrárias, dominação ou negação da condição jurídica enquanto sujeito de
direitos, com ênfase em princípios conexos como o da não discriminação. Entenda-se
que a dimensão jurídica da autonomia só pode ser relacional, considerando, as
sociedades indígenas em face do Estado-Nação.
Embora, a Constituição Federal de 1988 não fazer referência a “povos
indígenas” ou “nações indígenas”, essa dimensão é implícita à realidade social do nosso
tempo recortada no artigo 231, e por esta razão a atividade hermenêutica,
principalmente realizada pelos juízes e tribunais, deve resultar na ampliação do espaço
de significação da diversidade étnica e do pluralismo proclamado no mencionado artigo,

6
Principio do direito internacional, afirmado na Carta das Nações Unidas, no Pacto de Direitos Civis e
Políticos e no Pacto de Direitos Econômicos, sociais e culturais e na Declaração das Nações Unidas sobre
os Direitos dos Povos Indígenas.

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afirmando e assumindo a dimensão da autodeterminação como princípio constitucional


e direito no âmbito do sistema jurídico interno.
Desse modo, a autodeterminação enquanto princípio constitucional deverá
nortear, em grau de superioridade hierárquica, a atividade do poder público, seja no
âmbito do poder legislativo, do poder executivo, e, principalmente no âmbito do poder
judiciário ao solucionar questões que envolvam interesses indígenas de modo a não
utilizar equivocadamente os instrumentos jurídicos que não sejam compatíveis com a
perspectiva mulitucultural e pluriétnica.
Sob essa perspectiva, apresento o esboço da reflexão acerca da demarcação da
TI Laranjeira Ñanderu e das normatividades conflitantes no pretenso diálogo interétnico
relativo a territorialização, a partir de um dialogo interdisciplinar com a antropologia.

Territorialidade e identidade étnico-indígena: o que é terra indígena de ocupação


tradicional no sistema jurídico brasileiro

O território é o âmbito estratégico-administrativo mais relevante na situação de


incorporação de populações indígenas dentro (e por parte) do Estado-nação. Do ponto
de vista indígena, no entanto, a cronologia de fatos históricos que caracterizam a perda
de suas autonomias territoriais tem profundas implicações para o modo como esses
grupos pensam e agem nas conjunturas do presente (Contreras, 2008).
Entretanto, significar o território é uma tarefa bastante complexa, pois a ideia de
território é construída a partir de uma historicidade singular, real ou mítica, e de acordo
com as relações internas dos povos entre si e no espaço, abrangendo o espaço ambiental
e o espaço cultural destinado à reprodução de hábitos e cultura (Marés, 2002).
A questão do reconhecimento dos direitos sobre os territórios indígenas possui
uma historicidade normativa que contribuiu em grande parte para os impasses atuais,
principalmente com a proclamação da república e do modelo federativo em 1889.
Com a então Constituição de 1891 foi atribuída aos Estados federados a
titularidade e controle sobre as terras “ocupadas pelos índios”, gerando impasses com o
poder local, o Município. Pelo Decreto nº 8.072 de 1910, foi criado do Serviço de
Proteção ao Índio no âmbito União, vinculado à Presidência da República, que passou a
atuar como mediadora do diálogo entre o Estado e o Município, sendo que nesse
período surgiram várias normas municipais e estaduais disciplinando a questão da
demarcação territorial indígena, de formas bem distintas.

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Em 1928 por meio do Decreto nº 5.484 as terras devolutas que eram da


titularidade dos Estados federados, e que os índios tinham a posse, passou para o
domínio da União, provocando assim, outro mail estar institucional, tendo em vista que
a União passa a fazer a gestão de terras no âmbito do território dos Estados federados.
Somente com a Constituição de 1934 se deu a constitucionalização da proteção
da posse indígena garantindo-se a posse das terras ocupadas de modo permanente,
seguindo a Constituição de 1946 e a carta constitucional de 1967 que conferiu aos
índios o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nela existente,
disciplinando ainda a nulidade de títulos que tivessem por objeto terra indígena.
E importante destacar que nenhum desses momentos de constitucionalização da
proteção da posse indígena se deu na perspectiva pluriétnica ou pluricultural e o
processo de demarcação quase sempre resultava da atuação jurisdicional, em razão do
conflito federativo.
Pretendendo eliminar as tensões federativas e conter as demandas indígenas, foi
aprovada, em 1973, a Lei nº 6.001 (Estatuto do Índio), de natureza explicitamente
integracionista, que não só disciplinou a configuração das identidades étnico-indígenas,
como também dispôs que as terras indígenas seriam demarcadas administrativamente
conforme decreto do poder executivo federal e sob a orientação do órgão de assistência
ao índio.
A Constituição de 1988 inova ao incorporar a diversidade étnica e cultural, e por
trazer de modo técnico, o conceito de terra indígena como se lê no § 1º do artigo 231:
são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, aquelas por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
Essa descrição técnico-jurídica é o parâmetro e limite para a atividade da
demarcação administrativa pelo poder público, no caso pela Fundação Nacional do
Índio - Funai e pelo Ministério da Justiça, alcançando e vinculando também o Poder
Judiciário, porém não foi suficiente para resolver os problemas de reconhecimento
territorial indígena, tendo em vista que não se trata de uma fórmula matemática,
dependendo de estudos etno-históricos, sociológicos, cartográficos e fundiários.
Como consequência, a definição de terra indígena passa a ser um constructo da
jurisprudência e da doutrina jurídica, mediadas pelos estudos antropológicos, mas que já
revelou ser equivocada, pois, em nenhum momento condiciona a identificação da terra à

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escuta com primazia dos povos indígenas interessados ou modo de ocupação de opção
de cada etnia.
|Por ocasião da demarcação da terra indígena da comunidade Pataxó Hã Hã Hae,
o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da questão de ordem nº 312-1-Bahia em
2002, considerou que a qualificação de terra indígena exigiria a presença concomitante
dos quatro elementos normativamente prescritos e que constituiria, nas palavras do
relator, Ministro Nelson Jobim, em “quatro círculos concêntricos” e que haveria uma
relação de dependência entre os quatro elementos, quais sejam, ser habitada, caráter
permanente, utilização para atividade produtiva e destinada a reprodução física e
cultural .
Em 1996 editou-se o Decreto nº 1.775, tendo por finalidade resolver uma das
questões problema em relação ao procedimento anterior, regulamentado pelo Decreto
22 de 1991, relacionado a alegada ausência de contraditório, admitindo que os
interessados não indígenas, entenda-se ocupantes das áreas indígenas não demarcadas,
poderiam aduzir as seguintes defesas, de que sua área não pode ser considerada terra
indígena ou de que as benfeitorias não foram indenizadas.
De acordo com a decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2002, criou-se o que
seria denominado “diálogo-confronto” com o grupo técnico.
Judicialmente, após a realização do laudo antropológico e das defesas
apresentadas, o documento final segue para homologação do Ministro da Justiça a
quem, por força do Decreto nº 1.775/96 se conferiu competência para rejeitar as defesas,
acolhendo o relatório técnico; determinar nova diligencia ou ainda, desaprovar a
identificação por não terem sido atendidos os elementos constitucionais. Nessa ultima
hipótese evidencia-se
A demarcação territorial foi de todo mundo acelerada a partir de 1988,
apresentando resultados importantes, como destaca Aurélio Veiga Rios, “não só pela
determinação constitucional de que ela fosse concluída pela União Federal em cinco
anos (art. 67 do ADCT), mas também, pela ação do Estado em promover o resgate
histórico do direito dos índios às terras que lhes resta ocupar” (2002, p. 69).
Contudo, o teor literal do enunciado normativo não possui, em si, normatividade,
e somente em situações concretas no plano da realidade é possível identificar seu
alcance e efetividade, e por esta razão torna-se relevante a descrição do processo de
territorialização do TI Laranjeira Ñanderu, uma entre outras muitas que não foram

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demarcadas justamente por não estarem na condição de historicidade imemorial da


ocupação.
As falas dos atores/agentes de “poder” demonstram que a normatividade
constitucional sobre a diversidade étnica, enquanto direito à diferença, e da autonomia
estão silenciadas, como se observa no caso Guarani Kaiowá, a seguir exposto.

O caso Guarani Kaiowa e o território Laranjeira Ñanderu: demarcação territorial


e os paradoxos da concretização constitucional

A questão sociopolítica e jurídica envolvendo a demarcação do território do


povo Guarani Kaiowá no TI Laranjeira-Ñanderu, no Município de Rio Brilhante em
Mato Grosso do Sul, é caracterizada por um “pseudo-conflito” entre proprietários
“titulados” e uma das comunidades dos Ava Kaiowá é mais um dos episódios jurídico-
constitucionais que mostra a frágil interação étnico-indígena, após a incorporação da
tradicionalidade, modo de vida, cultura e territorialidades indígenas no texto da
Constituição de 1988.
. A maior parte das terras ancestrais do povo Guarani Kaiowá e Guarani Ñandeva
foram invadidas pelo agronegócio, por intermináveis plantações de cana, de soja e
intercaladas com a pecuária. Na região foram instaladas usinas de produção de
álcool/etanol e o processo de demarcação de terras indígenas não se conclui por
intervenção da Federação dos Agricultores de Mato Grosso do Sul– Femasul, que tenta
contrapor-se às demarcações com o argumento desenvolvimentista. Desde 2007, 36
áreas indígenas aguardam a conclusão dos relatórios antropológicos pela FUNAI, no
processo de demarcação administrativa e homologação das áreas já identificadas.
Enquanto isso, a insegurança dos povos indígenas se intensifica.
A Reserva de Dourados, na região da capital do Estado de Mato Grosso do Sul foi
criada em 1917 pelo Decreto Estadual nº 401. Em 1925 foi transferida para o domínio da
União, como unidade administrativa do SPI, com uma área de 3.539 há, onde foram
instalados os Guarani Kaiowá, em razão de ali corresponder ao seu tekoha, em seguida os
Guarani Ñandeva e por fim, na década de 30, os Terena (Aylwin, 2009).
Foram delimitados oito pequenos espaços – “aldeias indígenas” – as de Dourados,
Amanbai, Caarapo, Takuapiry, Limão Vedere, Pirajú, Sassoró e Porto Lindo, sendo que na
na década de 70 os Kaiowás foram expulsos do seu Tekoha, por força da ação de
fazendeiros com “títulos” de propriedade, desencadeando várias reações, surgindo o

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movimento político Guarani para retomada de seus territórios, a partir da década de 80,
ocasião em que se intensificaram as tensões (Benites, 2012).
A reserva está hoje dividida nas aldeias de Jaguapiré e Bororo, nesta vivendo o
numero maior do povo Guarani Kaiowá, estimando-se um total de 12 mil pessoas,
gerando sérios conflitos “intra-comunitários” (Aylwin, 2009)
Os processos de demarcação das terras indígenas antes de 1988 eram concluídos
sem qualquer preocupação com a preservação de espaço para reprodução física e
cultural, para as opções de produtividade, pois faziam parte do projeto de integração do
“índio” e de assegurar o processo civilizatório, e nesse contexto, sequer foi levado em
consideração a dimensão da posse de natureza comunitária e, por esta razão se iniciaram
processos de revisão demarcatória, em fins da década de 90.
A demora na conclusão da demarcação fez com que várias famílias extensas,
historicamente vinculadas ao Tekoha Juaguapiré, retomassem outras áreas, além da
reserva e ainda ocupadas por fazendeiros, e nominalmente identificada como Jaguapiré
Memby (Benites, 2012).
A organização social do povo Guarani Kaiowá é estabelecida a partir de
parentela extensa7, que segundo Benites são muito distintas entre si no seu modo de
viver próprio, múltiplo, o teko reta, e que estão associado a contexto de
territorialização. (Benites, 2012)
A delimitação territorial foi realizada sem levar em conta as estruturas sociais
organizativas de cada povo, em razão do conjunto de famílias estendidas Kaiowá
Guarani, contribuindo para a mobilização política que viria a reivindicar o
reconhecimento, por autodemarcação, de parte de seu território na região do município
de Rio Brilhante, pela retomada do TI Laranjeira Ñanderu.
O que se reivindica pelo povo Guarani Kaiowá, por uma das famílias extensas,
antes confinada na aldeia Lagoa Rica, que compõe a área denominada de “Brilhante
pegua”, são pequenas parcelas de terra e, inclusive na área de reserva legal da Fazenda
Santo Antônio da Nova Esperança, não pode ser classificada como conflito entre
proprietários “titulados”.
A ausência na demarcação administrativa pelo órgão público – FUNAI, levou a
judicialização da questão por meio de “ação de reintegração de posse”, medida judicial
protetiva da posse e propriedade regulada pelo direito civil e processual civil, em

7
Cf. Pereira, Levi M. Parentesco e Organização Social Kaiowá. Dissertação de mestrado. 1999. Biblioteca
do IFCH – PUC. Campinas, São Paulo.

226
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

01/08/2008, na 2ª Vara Federal da Dourados, processo nº 0001228-46.2008.4.03.6002. Os


autores da ação se dizem proprietários titulados, Julio Cesar Cerveira, Mario Julio
Cerveira, Maria Luiza Cerveira, Zélia Maria Cerveira, José Cerveira Filho, Maria
Tereza Cerveira, Marco Antônio Cerveira, tendo como advogado Marcio Julio Cerveira,
todos da mesma família, que invocam os direito sobre a terra, para eles denominada de
“Fazenda Santo Antônio da Nova Esperança”.
O Poder Judiciário determinou de imediato que a Funai adotasse todas as
providencias para retirar os “silvícolas” da "Fazenda Santo Antônio da Nova
Esperança". Em breve análise do discurso já se constata o distanciamento do poder
judiciário de todo o debate e reflexões acerca da identidade étnica ao chamar os índios
Kaiowa Guarani de “silvícolas”.
De outro lado, demonstra total desconhecimento epistemológico acerca da
territorialidade indígena, e inegável insubordinação aos preceitos constitucionais sobre a
diversidade étnica, reduzindo toda a questão ao campo do direito civil, no âmbito da
proteção da propriedade privada, ao acolher e a pretensão de proteção possessória aos
fazendeiros por considerar inexistir até o momento “prova quanto ao direito da
comunidade Guarani Kaiowá sobre a área ocupada, e assim afastou a aplicação do
artigo 231 da Constituição Federal.
Para o poder judiciário a retomada do tekoha Guarani Kaiowá é ato de “invasão
de terras” que produz temeridade ao direito de propriedade, considerando que a inércia
do poder público, os indígenas “ são incentivados à invasão”.
Paradoxalmente, em outro momento da decisão, no que tange a ordem para
desocupar a área, argumenta a Juíza “...cumpre ressaltar que os princípios da dignidade
da pessoa humana, e especialmente os direitos assegurados aos indígenas, impõem
providência URGENTE da FUNAI no sentido de proporcionar, para aqueles que assim
desejarem, local adequado à sua segurança, bem-estar, e compatível com sua cultura”
No curso da ação judicial, e pretendendo fazer a então requerida prova da
tradicionalidade da ocupação indígena, fez-se estudo antropológico da área, porém o
Juiz Federal, titular arbitrariamente, concluiu que a FUNAI e os indígenas
compreenderam mal a realidade, e como não havia sido o Juízo informado do ingresso
de uma antropóloga na propriedade dos fazendeiros, onde a comunidade indígena
permanece, decidiu pela invalidade de quaisquer dados, informações, trabalhos ou
laudos eventualmente elaborados pela antropóloga.

227
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Embora o apelo da FUNAI e dos indígenas para que "... enquanto perdurarem os
estudos de identificação e delimitação” fosse a comunidade mantida na área, a ordem de
desocupação e reintegração da posse dos fazendeiros foi cumprida em 11 de setembro
de 2009.
A comunidade indígena passou, então, a viver em acampamento às margens da
rodovia federal - BR 163, nas proximidades de seu tekoha , submetidas, contudo, a
situação de riscos de toda natureza.
No curso dessa ação, os fazendeiros tomaram para si a justiça própria, se
armaram, queimaram as ocas, contrataram segurança privada armada, tudo sob os
olhares dos poderes públicos, impunemente.
No discurso do poder judiciário a questão da territorialização indigena está
contida na categoria de disputas pela posse de terras entre índios e proprietários rurais
culminam geralmente em acirrados conflitos”, o que demonstra outro grande equivoco
conceitual, politico-ideologicamente marcado pela dimensão monocultural e de
ausência de compreensão acerca do diálogo interétnico, pois não se trata de disputa de
posse. Os povos indígenas não estão disputando a posse, pois a posse já lhes é
originária. O que deve ser compreendido é o processo histórico de expropriação dos
territórios tradicionalmente ocupados mediante políticas e leis de terras que se
sobrepuseram aos direitos indígenas.
Observa-se ainda que a interpretação aplicação do programa normativo do artigo
231 sofre arbitrária restrição, incompatível com os princípios constitucionais da
autodeterminação, porém, contraditoriamente, reconhece o direito a cultura no que diz
respeito, por exemplo, a crenças e as expressões culturais vinculadas ao artesanato e as
danças tradicionais.
O Poder Judiciário fragmenta a normatividade do artigo 231 para acolher apenas
o teor literal que se representa nas expressões costumes, crenças e tradições deixando
de levar em consideração, com o mesmo valor, a expressão “os direitos tradicionais
sobre as terras que ocupam”.
Em 2010, a FUNAI em nome dos autores, que até então, não possuem
representação própria judicialmente, requereu que fosse autorizada a produção de prova
pericial de natureza etno-histórica e antropológica, a fim de comprovar a ocupação
tradicional da etnia Guarani Kaiowá no local do imóvel objeto da ação de reintegração
de posse, o que só foi possível após decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª. Região,
invalidando a negativa dada pelo juiz titular.

228
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

De acordo com as informações contidas no processo perante a Vara Federal de


Dourados – MS, em 16 de maio de 2011, o mesmo grupo Guarani Kaiowá retornou ao
seu território, provocando nova decisão judicial para a desocupação. Apenas nesse
momento se observa a referência à comunidade indígena enquanto parte no processo,
quando então o Poder Judiciário decide pela retirada dos indígenas, mesmo com o laudo
pericial do antropólogo do Ministério Público Federal, concluindo que a região
reivindicada fora no passado ocupada pelo povo Guarani Kaiowá, cuja desocupação
ocorreu alheia a vontade da etnia, nos processos de expulsão, inclusive, combinada com
a ação indigenista do antigo SPI.
A questão que envolve o reconhecimento territorial nesse, caso, assim como em
muitos outros semelhantes no Brasil, tem sido tratada no âmbito dos conflitos entre os
direitos sobre as terras tradicionalmente ocupadas e os títulos/matriculas registradas no
Cartório de Registro de Imóveis de Rio Brilhante/MS, demonstrando a propriedade do
imóvel.
Na verdade esse é um “pseudo conflito”. Não há como validar os títulos de
propriedade em nenhuma circunstância a teor do que dispõe o paragrafo 6º do artigo
231 da Constituição Federal ao prescrever que: "são nulos e extintos, não produzindo
efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das
terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios
e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União.
De outro lado, embora o direito de propriedade seja também assegurado
constitucionalmente, esse direito está condicionado a função social da propriedade e,
contudo, não pode se fazer validado no tempo, se em algum momento a área não era
produtiva para os fins da econômica capitalista e era então de ocupação indígena, por
certo.
Ademais, os equívocos jurídico-constitucionais levam o Poder Judiciário a
construir requisitos que invertem a lógica da proteção da terra indígena, pois devem
considerar que na ausência de estudos, mas na evidência da ocupação, a proteção deverá
incidir com primazia sobre a territorialidade indígena, e não concluir pela prevalência
do direito de propriedade como tem se constituído a tradição jurídica nas questões da
demarcação de terras na região de Mato Grosso do Sul.
As decisões judiciais reproduzem o racialismo e a perspectiva conservadora,
positivista-legalista inerente às práticas integracionistas e civilizacionistas inadmissíveis
na contemporaneidade. A simples leitura das razões de decidir do órgão jurisdicional,

229
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

nos aproxima, inevitavelmente dessa constatação, quando o Poder Judiciário contrapõe


de um lado “os produtores” e de outro os “índios”; ou quando se refere aos integrantes
da etnia Guarani Kaiowá como “silvícolas”; ou, ainda, quando qualifica o ato de
retomada do vinculo histórico do tekoha a “atos de insubordinação contra a ordem
pública”. Todas essas expressões são extraídas da decisão judicial proferida em 29 de
julho de 2011.
A fundamentação judicial é desprovida de qualquer componente mínimo
indispensável ao caráter declaratório da diversidade étnica, distanciado da perspectiva
pluralista, quando afirma que “os índios têm direito à proteção da sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições (art. 231, da CF/88), também têm o dever
de respeitar a ordem jurídica nacional, especialmente o direito à propriedade, que
também é garantido pela Constituição Federal, especialmente aquela que cumpre sua
função social”(grifei).
Aqui se dá o conflito de normatividades de que este trabalho se ocupou de
demonstrar, em razão de que o processo de interpretação que cumpre a função de
mediara efetividade do preceito constitucional declarado no artigo 231 da Constituição
Federal de 1988 recebe do interprete, significações fundamentadas na homogeneidade
cultural e na normatividade, que retiram a normatividade na perspectiva do pluralismo,
afasta o principio da autodeterminação e autonomia indígena e, silencia sobre a
diversidade étnica.
Até a finalização deste artigo, os estudos antropológicos periciais não foram
concluídos. O processo judicial continua. A comunidade indígena Guarani Kaiowá
continua na área de seu tekoha, até que haja a conclusão do processo de demarcação,
por força de decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª. Região, invalidando a decisão
do Juiz singular que determinava a desocupação, porém sob as ameaças constantes,
inclusive de morte.

Considerações finais

No atual cenário brasileiro, a posição dos povos indígenas está longe de ser a de
equivalência sociopolítica, principalmente em razão da estrutura institucional que
mantém um sistema neoprotecionista por meio da Fundação Nacional do Indio –
FUNAI e de intervenções missionárias que tendem as práticas de desintegração cultural
desses povos.

230
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

A reflexão aqui apresentadas abrange o paradoxo da “constitucionalização” dos


direitos dos “índios” decorrentes dos seus costumes, tradições e direitos sobre as terras
que tradicionalmente ocupam e as respostas jurídicas racialistas, conservadoras e
positivistas, e serve como contribuição para um giro crítico ao doutrinarismo
constitucionalista no Brasil, que toma os paradigmas eurocêntricos e as vertentes
teóricas estadounidenses para reproduzir o modelo do Estado de Direito Constitucional,
silenciando o cenário politico-jurídico na América Latina.
Ainda que tecnicamente haja evidências de incorporação de subjetividades
sociopolíticas e culturais, a resposta institucional ao desenho de sociedades pluriétnicas
não tem sido suficiente para produzir mudanças na relação interétnica, como demonstrei
na análise à questão da demarcação de territórios tradicionais que é geradora de
persistentes tensões sociais e graves violações dos direitos dos povos indígenas.
A interpretação jurídica constitucional é ato político e cultural (Godoy, 2011) que
permite fazer a integração entre norma-texto e realidade, a partir de um processo
intelectivo que, adequado aos preceitos da dignidade humana, da liberdade e da
igualdade, permite extrair do teor literal e das significações extralinguísticas, o princípio
da autodeterminação e autonomia indígenas, implícitos ao programa normativo do
artigo 231 da Constituição Brasileira de 1988 e seu diálogo com as demais normas.
A atuação do poder público, em qualquer circunstância, que deixa de levar em
conta a decisão do povo8 indígena sobre questões que lhes dizem respeito, também no
campo das interações étnicas, ofenderá o princípio e o direito de autodeterminação, que
devem ser compreendidos como “condicio sine qua non” para que os indígenas possam
desfrutar dos direitos fundamentais em um ambiente de segurança social.
Qualquer outra interpretação para aplicação da constituição que não considere a
autonomia e autodeterminação indígena é desprovida de legitimidade, e,
consequentemente, enfraquece a normatividade constitucional fazendo prolongar a já
longa conservação dos indígenas à margem da dignidade humana de que todos são
inerentemente destinatários.
Deve-se considerar que a ausência de estudos constitucionais específicos sobre a
questão indígena resulta na inexistência de reflexão crítica em relação aos produtos

Sobre o termo povo e sua localização no discurso jurídico, destaca-se que a reflexão na América Latina,
8

em países como Bolívia, Venezuela, Colômbia, entre outros, de formação pluriétnica e plurinacional, a
terminologia povo não é utilizada no sentido do direito internacional. Por força mesmo, do que contem a
Convenção 169, a dimensão que se tem consagrado é no sentido de afirmar a condição de povos
indígenas como parte da sociedade nacional, com autonomia relativa.

231
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

finais constitucionalmente alcançados, que se existente é produzida no marco de


manifestações de juristas conservadores ou com discursos do “racismo jurídico” que
associa a questão da territorialidade indígena a interesses de empresas transnacionais
que querem se apropriar dos recursos naturais, ou ainda fundados em humanismos
religiosos (Carbonell, 2007).
Convenhamos que no Brasil não há no campo jurídico um estudo aprofundado
sobre os resultados da constitucionalização conceitual sobre o que seja território
indígenas. As únicas produções doutrinárias são ainda conservadoras e tecnicistas,
unilaterais, desprovidas do elemento da interação étnica indígenas e da perspectiva
pluricultural.
Ao contrario do que se imagina, não se trata de ausência de norma
regulamentadora que inviabiliza a demarcação dos territórios indígenas no Brasil, mas é
de se reconhecer razão a Marés, não pela mesma motivação, quando afirma que a
Constituição contém em sua estrutura armadilhas nas quais os aplicadores ou o titular
do direito acabam caindo (Marés, 2002).
No processo de reconhecimento formal de seus territórios, os povos indígenas se
deparam com a exigência jurídica de ter que comprovar tecnicamente sua condição
étnica e seu “modo de ser indígena” para configurar que a terra que ocupam é terra
tradicional.
De outro lado, a demora institucional no reconhecimento administrativo dos
territórios indígenas, sempre marcada por confrontos entre agroempresários,
agroindústrias, usinas hidrelétricas, mineradoras e outras formas de invasão das áreas
indígenas, tem levado à judicialização das demandas que se arrastam por décadas, sem
que qualquer proteção aos povos indígenas seja tomada com primazia, conservando
práticas “etnocidas” subliminares.
A atuação judicial é notoriamente conservadora e positivista, incorporando o
discurso militarista da segurança nacional9 ou do desenvolvimento socioambientalmente
sustentável, impondo aos indígenas uma representação da sociedade que se diz plural,
porém, não vivencia o pluralismo, pois ao afirmar a igualdade atores enquanto sujeitos
de direitos e de obrigações reciprocamente, apenas o indígenas estão obrigados a se
integrar à cultura nacional. Os povos indígenas estão obrigados a aceitar os modos de
ser e de agir da sociedade nacional, sem reciprocidade.

9
inaugurado após a guerra da tríplice aliança

232
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

De outro, a equivocada classificação da demarcação territorial indígena como


disputa fundiária, aplicando a legislação civil de influência privatista e os institutos de
proteção possessória aos proprietários titulados, tem gerado entraves insuperáveis no
cotidiano dos populações indígenas, que se veem obrigadas a abandonar seus vínculos
territoriais históricos.
Esse cenário revela que o Estado Brasileiro e seus agentes desconsideram o
contexto histórico e cultural que produziu a expropriação territorial e a forçada
realocação dos povos indígenas em áreas rurais desprovidas de sustentabilidade ou em
áreas urbanas periféricas, e silenciam sobre a diversidade étnica, a pluriculturalidade e a
autodeterminação enquanto princípios implícitos fundantes da sociedade brasileira.
O sistema jurídico brasileiro, na dimensão formativa, conceitual e operativa, está
distanciado das reflexões e das transformações sociopolíticas do continente latino-
americano. Afirma Curtis que a separação entre eficácia simbólica e eficácia
instrumental do Direito é notória, pois do ponto de vista do método, a tendência
hegemônica na formação jurídica na região latino-americana reproduz os cânones do
formalismo jurídico europeu, o que tem contribuído para a negação do direito de
autodeterminação indígena.
No Brasil, as medidas de demarcação de terras quando em choque com
interesses de agroempresas, agricultores, fazendeiros entre outras categorias
econômicas e profissionais, os povos indígenas estão à margem do processo. Todos,
juízes, técnicos da Funai, peritos, membros do Ministério Público, empresas,
empresários, e “proprietários” falam e decidem sobre a territorialização indígena, em
perversas tramas processuais, em cuja cena a voz dos povos indígenas, é apenas mais
uma voz, porém, com nítida desigualdade de forças no jogo de interesses.
Nesse sentido, a dimensão jurídica constitucional da diversidade étnica
indígenas torna-se retórica, e a única normatividade que prevalece é dada pelos setores
conservadores da sociedade nacional. A contribuição das reflexões aqui apresentadas é
nos sentido de propiciar a incorporação das bases epistemológicos do “novo
constitucionalismo” ao pensamento jurídico brasileiro, para ressiginificar as relações
interétnicas reconhecer poder de decisão aos povos indígenas, enquanto protagonistas
da constituição nacional e não apenas enquanto grupos minoritários, dependentes e
vulneráveis socioeconomicamente.

233
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

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236
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO: CONTROLE PREVENTIVO DOS ATOS


INTERNA CORPORIS DO LEGISLATIVO PELO PODER JUDICIÁRIO

DEMOCRACY AND CONSTITUTION: JUDICIAL REVIEW OF LEGISLATIVE


INTERNA CORPORIS ACTS BY THE JUDICIARY

Martonio Mont’Alverne Barreto Lima

Maria Alice Pinheiro Nogueira

RESUMO

O exame dos aspectos mais relevantes que norteiam o ordenamento jurídico pátrio indica a
necessidade de se averiguar a postura ativista adotada pelo Supremo Tribunal Federal, diante,
principalmente, dos atos deliberativos internos do parlamento brasileiro. A fiscalização da
adequação constitucional prévia foi atribuída expressamente ao Legislativo e ao Executivo,
devendo o Judiciário manifestar-se apenas posteriormente, em relação a normas que já
ingressaram no ordenamento jurídico. Nessa perspectiva, a pesquisa tem como objetivo
demonstrar a impossibilidade de realização do controle judicial preventivo de
constitucionalidade diante do processo legislativo, como forma de se resguardar a separação
de poderes, sob a ótica teórica e casuística, em especial, por meio da análise do julgamento do
mandado de segurança nº 31.816, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que determinou a
necessidade de apreciação dos vetos presidenciais em ordem cronológica pelo Congresso
Nacional. O tema suscita discussões, em virtude, principalmente, das decisões interventivas
do Judiciário na seara interna do Legislativo. Acerca do caso, propõe-se o fortalecimento do
parlamento, como forma de inibir MculPurMda “ÓurisPocrMciM”, pelMqual o Judiciário surge
como o poder do Estado dotado de credibilidade para solucionar quaisquer demandas.

PALAVRAS-CHAVE: Controle judicial preventivo de constitucionalidade; Processo


legislativo; Jurisdição; Poder Legislativo; Atos interna corporis.

ABSTRACT

The examination of the most relevant aspects that guide the Brazilian legal system indicates
the need to investigate the activist stance adopted by the Supreme Court, on, primarily, of the
Brazilian Parliament's internal deliberative acts. The constitutional adequacy prior
surveillance was assigned expressly to the Legislative and the Executive, and the Judiciary
manifested only in relation to standards that have already entered the legal system. In this
perspective, the research aims to demonstrate the impossibility of realization of judicial
review on the legislative process, as a way to protect the separation of powers, by theoretical
perspective series, in particular, through the analysis of the injunction n. 31.816, report of
Minister Luiz Fux, which determined the need of assessment of presidential vetoes in
chronological order by the National Congress. The theme gives rise to discussions, because,
mainly, of the intervention of Judicial decisions in the field of internal legislation. About the
case, it is proposed the strengthening of Parliament as a way of inhibiting the culture of

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

"juristocracia", by which the judiciary comes as State power endowed with credibility to
resolve any demands.

KEYWORDS: Judicial Review; Legislative process; Jurisdiction; Legislative Branch;


Interna corporis acts.

INTRODUÇÃO

O controle de constitucionalidade consiste no instrumento de compatibilização da


Constituição com as normas infraconstitucionais. Através do estudo da Constituição Federal
de 1988, constata-se que existe a adoção do modelo prévio de constitucionalidade no Brasil,
que é realizado precipuamente pelos Poderes Legislativo e Executivo. Analisando casos
concretos, percebeu-se a tentativa de adequação do Poder Judiciário como legitimado à
realização do controle preventivo diante dos atos internos do parlamento. Isso gerou
inquietação em relação à possível ingerência desmedida de um poder sobre o outro.

Este trabalho resulta do estudo realizado visando à Teoria Geral do Estado e da


Constituição, enfocando na temática da política e das formas de Governo e de Estado, com o
intuito de averiguar, teórica e casuisticamente, o controle preventivo de constitucionalidade
concretizado no âmbito do Supremo Tribunal Federal, sob a perspectiva do
neoconstitucionalismo.

A metodologia utilizada caracteriza-se como um estudo descritivo-analítico,


desenvolvido através de pesquisa bibliográfica, utilizando-se da consulta a livros, publicações
especializadas, artigos e sítios eletrônicos, o que possibilitou fazer um exame histórico acerca
do surgimento do controle de constitucionalidade, essencial para a formulação das presentes
ideias, bem como fazer uma análise crítica concernente ao controle preventivo de
constitucionalidade.

Diante dessas considerações, buscou-se desenvolver pesquisa para responder aos


seguintes questionamentos: a partir da modernização do princípio da tripartição dos poderes,
seria possível flexibilizar a ingerência de um Poder sobre outro, resguardando a supremacia
da Constituição? Seria plausível haver uma intervenção preventiva do Poder Judiciário no
trâmite do processo legislativo para realizar o controle preventivo de constitucionalidade? Os
juízes, em razão da forma como ingressam na carreira da magistratura, ou seja, sem respaldo
popular, teriam legitimidade para decidir sobre questões políticas?

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Destarte, tem-se como objetivo analisar o controle judicial preventivo de


constitucionalidade sobre os atos interna corporis do Poder Legislativo, como forma de
questionamento acerca da permissão à averiguação constitucional das espécies normativas em
tese, ou seja, que ainda não integram o ordenamento jurídico pátrio. Além disso, busca-se
apreciar a consequência dessa admissão para a manutenção da ordem democrática. Nesse
sentido, para fins didáticos, o presente artigo divide-se em três capítulos, distribuídos na
forma explicitada a seguir:

O primeiro capítulo aborda a supremacia do Poder Legislativo, enaltecendo a


democracia representativa. Frisa-se, em seguida, que, após as Revoluções Burguesas, o
sistema democrático fortaleceu-se e passou a predominar nos Estados contemporâneos,
deixando o povo de ser mero espectador para atuar politicamente, comumente, por meio de
representantes.

Prossegue-se com a análise breve, no segundo capítulo, da Teoria dos Atos Interna
Corporis, como ferramenta de inibição da interferência do Judiciário em questões internas do
Legislativo. Dividiu-se o estudo na observância de dois aspectos: primeiramente, quanto ao
mérito do projeto de espécie normativa em tramitação na casa legislativa. Em segundo
momento, houve a reflexão quanto aos atos interna corporis, que não configuram todo e
qualquer ato interno legislativo.

O terceiro capítulo é dedicado, inicialmente, à apreciação do controle de


constitucionalidade na Constituição brasileira, a partir de um exame histórico do instituto. Em
seguida, observa-se a abordagem da jurisdição constitucional, da ordem democrática e da
soberania popular, sob a justificativa de se estudar a possibilidade de realização do controle
judicial preventivo de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro, bem como se
verifica a legitimidade dos magistrados para decidirem sobre questões concernentes ao
Legislativo.

A justificativa para este trabalho, considerando a sua repercussão social, diz respeito ao
incentivo ao aprimoramento do senso crítico que é enriquecido quando do debate sobre o
surgimento das normas infraconstitucionais e a sua consequente e necessária adequação à
Constituição Federal, principalmente, para viabilizar a importância do voto para a
concretização da democracia e do fortalecimento da soberania popular. Este trabalho, então,
propõe uma visitação ao tema do controle de constitucionalidade à luz da separação dos

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

poderes, da autonomia parlamentar e da supremacia das normas constitucionais, no afã de


analisar a harmonia e independência dos poderes.

1 PODER LEGISLATIVO E DEMOCRACIA

Citar a supremacia do Poder Legislativo significa evidenciar a figura democrática, que


se concretiza pelas manifestações da vontade do povo, titular da soberania. Notadamente, o
modelo democrático, que é bem aceito, não o foi sempre, em razão, principalmente, de não se
dar credibilidade suficiente ao autogoverno das massas. O Legislativo, por muito tempo
enfraquecido, fortificou-se, posteriormente, diante dos anseios populares por mudanças na
forma de governar o Estado. Isso ficou demonstrado, principalmente, diante da Revolução
Francesa, que transformou a forma de pensar a participação do povo no cenário político.

A partir de então, desencadeou-se uma nova concepção sobre a importância do povo na


conjuntura política. O povo, antes mero espectador das vontades do monarca e do Judiciário,
passou a atuar, diretamente ou por meio de seus representantes no Congresso, o que ressaltou
o equilíbrio entre os três Poderes.

Quanto à forma de atuação, a democracia representativa consagrou-se em diversos


países como modelo de manifestação do povo e foi acolhida pelo ordenamento jurídico
brasileiro. O conceito de democracia representativa corresponde a um modelo de Estado que
admite a participação ativa do povo na composição da ordem social e política, ou seja, a
expressão da vontade popular é prestigiada.

O tema basilar da concepção da democracia registra-se na eleição dos representantes,


por voto livre e secreto dado pelo povo, o que demonstra uma evolução democrática para o
Estado. Adotado o regime representativo, as decisões passam a ser tomadas de maneira
colegiada e majoritária pelo parlamento. Dessa forma, constata-se que o povo é o titular
soberano, mas não exerce a soberania de forma direta.

Contudo, relevante mencionar a observação feita por José Afonso da Silva (1997, p.
131), ao entender que a escolha dos governantes não significa, necessariamente, atender-se
aos anseios da maioria do povo. Ao contrário, percebe-se o privilégio da minoria detentora do
poder:

Quanto mais divergentes são os interesses das classes sociais, quanto mais aguçadas
são as contradições do sistema social vigente, tanto mais acirrados são os debates e

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

as lutas no processo de formação das leis, já que estas é que vão estabelecer os
limites dos interesses em jogo, tutelando uns e coibindo outros. Daí também a luta
prévia relativa à composição dos órgãos incumbidos da função popular e decisão por
maioria, os titulares de interesses que conseguirem maior representação terão a
possibilidade de domínio. Essa luta prévia se traduz no procurar evitar-se que os
interesses dominados, ou que se quer dominar, venham a participar de legislação. A
história registra esse embate, que tem culminado nos grandes revoluções, sempre
com a consequência de novas conquistas democráticas.

Em virtude da predominância de um regime democrático nos Estados modernos,


ressaltando a superioridade do Poder Legislativo, questiona-se, por conseguinte, a atribuição
constitucional dada ao Poder Judiciário para interpretar e construir o direito, por meio da
análise e do julgamento das questões internas do parlamento. Seria isso um mecanismo de
desvirtuamento da democracia, que deveria se concretizar pelas produções legislativas? Essa
questão será analisada posteriormente nos seguintes tópicos.

2 O PODER LEGISLATIVO, OS ATOS INTERNA CORPORIS E O CONTROLE DE


CONSTITUCIONALIDADE

É incontestável o papel do Legislativo para a democracia moderna, para o qual o poder


constituinte atribuiu a possibilidade de exercer o controle de constitucionalidade ainda durante
o trâmite do processo legislativo. É interessante mencionar que as produções legislativas são a
concretização dos anseios do povo, por meio de um processo legislativo rígido e cauteloso,
correspondente ao conjunto de atos realizados pelo Poder Legislativo, com o intuito de
propiciar a criação de novas leis e atos constitucionais. Já o procedimento legislativo se funda
no conjunto de regras jurídicas aptas a orientar todo processo de criação das leis, observando
as fases legislativa e administrativa, dirigidas por normas constitucionais, infraconstitucionais
e regimentais.

Finalizado o trâmite do processo legislativo, observando os dispositivos constitucionais


e as normas regimentais, com a apreciação da legitimidade ativa para a propositura, bem
como com o devido encaminhamento do parecer proferido pela Comissão de Constituição e
Justiça, competirá ao Chefe do Poder Executivo, com observância do artigo 66, §1º, da
Constituição Federal, pronunciar-se acerca do projeto de lei ou de ato normativo que lhe foi
encaminhado, podendo sancioná-lo ou vetá-lo, total ou parcialmente.

Contudo, é interessante mencionar a problemática do controle judicial preventivo de


constitucionalidade, que é uma modalidade de fiscalização não prevista na Constituição
Federal. Tal modelo de compatibilização, caso fosse aceito, permitiria a intervenção do Poder

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Judiciário para manifestar-se sobre a (in)constitucionalidade do projeto de lei ou ato


normativo que está sendo discutido na casa legislativa, com o fundamento de, desde logo,
evitar que um ato inconstitucional passe a vigorar. Não haveria, portanto, a necessidade de se
aguardar que a norma ingressasse no ordenamento jurídico para ocorrer a manifestação
judicial.

Sobre o assunto, consagrou-se a Teoria dos Atos Interna Corporis, pela qual se
resguardam os atos estritamente parlamentares mencionados no regimento interno do controle
externo. Dessa forma, no Brasil, todo o procedimento relativo à produção legislativa deve ter
como fundamento os ditames do regimento interno ao qual se submete cada casa legislativa,
devendo observar, além disso, as determinações estabelecidas pelos órgãos técnicos,
denominados de comissões, responsáveis pela apreciação da constitucionalidade, legalidade,
juridicidade, regimentalidade e a técnica legislativa das proposições.

Esta parte do trabalho destina-se a examinar a discussão doutrinária e jurisprudencial


acerca da possibilidade de apreciação judicial dos atos próprios do parlamento. Existem atos
internos que são reservados à apreciação exclusiva do Legislativo e devem ser respeitados
pelo Judiciário, gozando de imunidade interventiva. Contudo, é imperioso observar, como
preceitua Hely Lopes Meirelles (1997, p. 609), que essa escusa de ingerência judicial não se
aplica a todo e qualquer ato:

Os interna corporis das Câmaras também são vedados à revisão judicial comum,
mas é preciso que se entenda em seu exato conceito, e nos seus justos limites, o
significado de tais atos. Em sentido técnico-jurídico, interna corporis não é tudo que
provém do seio da Câmara, ou de suas deliberações internas. Interna corporis são só
aquelas questões ou assuntos que entendem direta e imediatamente com a economia
interna da corporação legislativa, com seus privilégios e com a formação ideológica
da lei, que, por sua própria natureza, são reservados à exclusiva apreciação e
deliberação de Plenário da Câmara. Tais são os atos de escolha da Mesa (eleições
internas), os de verificação de poderes e incompatibilidade de seus membros
(cassação de mandatos, concessão de licenças, etc.) e os de utilização de suas
prerrogativas institucionais (modo de funcionamento da Câmara, elaboração do
Regimento, constituição de Comissões, organização de Serviços Auxiliares, etc.) e a
valoração das votações. Daí não se conclua que tais assuntos afastam, por si sós, a
revisão judicial. Não é assim. O que a Justiça não pode é substituir deliberação da
Câmara por um pronunciamento judicial sobre o que é da exclusiva competência
discricionária do Plenário, da Mesa ou da Presidência.

A Constituição Federal prevê as normas básicas que regem o processo legislativo. O


regimento interno é o documento formal que compõe o ordenamento jurídico, com vigência e
eficácia, e apresenta as normas específicas do trâmite do devido processo legislativo, à

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

semelhança da Carta Federativa. Em virtude dessa relação direta com a Constituição, pode ter
a sua constitucionalidade verificada.

Hely Lopes Meirelles era um exemplo de defensor da possibilidade de ingerência


judicial nos atos internos do Legislativo, mas, concomitantemente, admitia ressalvas para essa
interferência. O âmbito de controle deveria se restringir apenas à formalidade, não adentrando
no domínio material da questão analisada.

Portanto, resta vedada a possibilidade do exercício do controle preventivo de


constitucionalidade sobre um projeto de espécie normativa, pois se estaria adentrando no
mérito de uma questão tipicamente legislativa, que ainda não tem vigência nem eficácia para
ser legitimamente apreciada judicialmente. Ao contrário, por compor o ordenamento jurídico,
o regimento interno pode ser alvo de compatibilização, porém, frise-se, o controle será
realizado de modo repressivo. Ressalte-se que a verificação só ocorrerá nos dispositivos com
referência direta na Constituição Federal, ou seja, os demais gozam de imunidade interventiva
judicial.

Não raras vezes, destarte, o Judiciário é demandado a se posicionar sobre a


constitucionalidade do conjunto de atos legislativos que almeja a elaboração de uma espécie
normativa. Nesse sentido, os parlamentares, que têm o direito líquido e certo de participarem
de um processo legislativo constitucional, utilizam-se do mandado de segurança, objetivando
arguir vícios formais de inconstitucionalidade do regimento interno, visando a assegurar o
trâmite do devido processo legislativo:

Os parlamentares, portanto, poderão propiciar ao Poder Judiciário a análise difusa de


eventuais inconstitucionalidades ou ilegalidades que estiverem ocorrendo durante o
trâmite de projetos ou proposições por meio de ajuizamento de mandados de
segurança contra atos concretos da autoridade coatora (Presidente ou Mesa da Casa
Legislativa, por exemplo), de maneira a impedir o flagrante desrespeito às normas
regimentais ao ordenamento jurídico e coação aos próprios parlamentares,
consistente na obrigatoriedade de participação e votação em um procedimento
inconstitucional ou ilegal. (MORAES, 2009, p. 721, grifo original).

No próximo capítulo, serão apreciadas questões relativas ao controle judicial de


constitucionalidade, à legitimidade dos magistrados em declarar um projeto de lei ou de ato
normativo inconstitucional ainda durante o processo legislativo, bem como serão expostos
julgamentos pátrios sobre a temática.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

3 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NA CONSTITUIÇÃO


BRASILEIRA

O controle de constitucionalidade consiste no mecanismo de adequação dos dispositivos


infraconstitucionais à Constituição Federal, refletindo a sua supremacia e a sua força
vinculante. A exigência de se estabelecer uma harmonia no ordenamento pátrio tem respaldo
na necessidade de garantir a segurança jurídica e, principalmente, proporcionar o
fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

A supremacia constitucional representa a superioridade hierárquica que a Constituição


Federal alcança no ordenamento jurídico em relação aos outros patamares preenchidos pelas
demais normas jurídicas, revelando-se como fundamento de validade. Já a rigidez
corresponde a uma característica do processo de elaboração e formação da norma
constitucional, que se demonstra mais complexa que os demais atos jurídicos.

A abordagem nesse tópico será feita com o intuito de apreciar a conjuntura histórica à
qual se submeteu a ordem constitucional brasileira. Inicialmente, reconhece-se o regime da
Constituição Federal de 1824, primeiro documento que coordenou a seara política do Brasil.
Havia a imponência do Poder Moderador, como responsável por dispor sobre a organização
política e velar pelo equilíbrio e pela harmonia dos demais poderes, conforme menciona o seu
artigo 98: “O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado
privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante,
para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio, e harmonia
dos mais poderes políPicosB”

Inexistia qualquer previsão do controle de constitucionalidade das leis e dos atos


normativos. Nesse sentido, não se tinha um órgão incumbido de fiscalizar a compatibilidade
da norma infraconstitucional com a Constituição. Percebe-se, portanto, o maior prestígio
concedido aos demais poderes, em detrimento do Judiciário, que tinha pouca atuação no
período imperial. Aliás, ressalte-se a intenção constitucional, em seu artigo 15, VIII e IX, em
exMlPMr o Poder I egislMPiQo como responsáQel por inPerprePMr e resguardar MFonsPiPuição: “É
da atribuição da Assembleia Geral: Fazer Leis, interpretá-las, suspendê-las, e rovogá-las;
Velar na guarda da Constituição, e promover o bem geral da Nação”.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Portanto, ausente a compatibilização da constitucionalidade na Constituição de 1824,


sua previsão adveio com o regime republicano, sob influência norte americana, ou seja, a
fiscalização era exercida de maneira incidental e difusa. A Constituição Federal de 1891
inovou, prescrevendo a competência da Justiça Federal para conhecer da validade e aplicação
das leis federais perante a Constituição, facultando-se a interposição de recursos ao Supremo
Tribunal Federal quando fosse negado o pleito na instância inferior, o que representou uma
mudança na concepção da política brasileira.

Posteriormente, aplicando o texto constitucional, adveio a lei nº 221, de 1894, que


dispôs sobre a organização da Justiça Federal republicana, em seu artigo 13, §10, in verbis:
“Os juízes e tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos
casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente
incompaPíQeis com Ms leis ou com MF onsPiPuição”B

Com a Constituição de 1934, no concernente ao tema do controle de


constitucionalidade, houve previsão da possibilidade de suspensão da espécie normativa pelo
Senado Federal quando declarada a sua inconstitucionalidade. Além disso, modificou-se o
sistema de compatibilização constitucional com a criação de condições para a eficácia
jurídica, ao exigir a maioria absoluta dos membros dos tribunais para a declaração de
inconstitucionalidade de uma lei.

Nesse período, também surgiu um novo instituto, diante do controle concentrado e por
via incidental, perante o Supremo Tribunal Federal, denominado de representação
interventiva, pelo qual a lei que autorizasse a intervenção federal, em razão da violação de
princípios constitucionais, deveria ser, previamente, apreciada pelo STF para que declarasse
sua constitucionalidade.

A Constituição de 1937, historicamente em concomitância com um regime autoritário,


manteve as exigências proferidas pelas Constituições anteriores, mas limitou a influência do
Poder Judiciário na seara política, atribuindo ao Executivo a possibilidade de rever a lei ou ato
normativo declarado inconstitucional, como prescreve o artigo 96, parágrafo único:

No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do


Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou
defesa do interêsse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República
submetê-la novamente ao exame do Parlamento; se êste a confirmar, por dois terços
de votos de cada uma das câmaras, ficará sem efeito a decisão do tribunal.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Tal dispositivo não foi reproduzido na Constituição de 1946. Já em 26 de novembro de


1965, repercutiu no ordenamento jurídico a Emenda Constitucional nº 16. Sob a égide do
regime militar, com influência do sistema europeu, instituiu-se a ação genérica de
inconstitucionalidade, a qual garantia ao Supremo Tribunal Federal a competência para
declarar a inconstitucionalidade de espécie normativa federal, após representação feita pelo
Procurador Geral da República. Portanto, caracterizado estava um controle por via principal,
por meio de ação direta, com fiscalização abstrata e concentrada no Supremo Tribunal
Federal, sem prejuízo da concomitância com o controle incidental e difuso (BARROSO,
2009, p. 64).

A Constituição de 1967 não trouxe maiores alterações para a ordem jurídica quanto ao
controle de constitucionalidade, apenas deixou de prever a possibilidade da ação genérica
contida na Emenda Constitucional nº 16.

Em seguida, com MF onsPiPuição de 1969, em seu MrPigo 15, §3º, “d”, foi previsPMMMção
direta na seara estadual, relativa unicamente à intervenção estatal em município, que ocorrerá
quando os

Tribunais de Justiça do Estado derem provimento à representação formulada pelo


Chefe do Ministério Público local para assegurar a observância dos princípios
indicados na Constituição estadual, bem como prover a execução de lei ou de ordem
ou decisão judiciária, limitando-se o decreto do Governador a suspender o ato
impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade.

FinalmenPe, com MEmendMF onsPiPucionMl nº 7, de 1977, em seu MrPB119, H, “p”, foi


indicada a competência do Supremo Tribunal Federal para julgar o pedido de medida cautelar
nas representações oferecidas pelo Procurador Geral da República, dirimindo quaisquer
dúvidas sobre o tema. Ademais, por meio dessa emenda instituiu-se a possibilidade de o STF
estabelecer, em caráter vinculante, a interpretação a ser dada a um dispositivo normativo
federal ou estadual.

O Brasil, na Constituição de 1988, adotou o modelo jurisdicional misto de controle de


constitucionalidade, por meio do qual se aprecia o controle concentrado, pelo uso de ações
diretas ou abstratas, e o controle difuso, mediante a interposição de vários meios processuais,
de efeito concreto, como o Mandado de Segurança, a Ação Popular e a Ação Civil Pública.

A Constituição Federal brasileira, ao consagrar o princípio da separação dos poderes do


Estado, negou a interferência na autonomia de um poder sobre o outro, em atenção aos

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

ensejos de independência e harmonia. Corroborando esse entendimento, não há previsão de


fiscalização judicial a priori de atos normativos destituídos de eficácia, vigência e validade.
Nesse contexto, no Brasil, o controle preventivo é assegurado aos órgãos políticos e internos
das Casas Legislativas e ao Chefe do Poder Executivo, o que enfatiza a autonomia
parlamentar. Assim, o modelo brasileiro de fiscalização judicial da constitucionalidade
caracteriza-se ordinariamente pelo controle repressivo.

3.1 Jurisdição constitucional versus soberania popular

Analisando a forma de governo democrática, precisa-se observar, igualmente, a


Constituição que rege a vida societária. Não se pode dissociar, por conseguinte, o Estado da
ordem constitucional. Portanto, o constitucionalismo dissemina o pensamento da submissão
de todas as autoridades políticas ao direito, repudiando, assim, o poder absoluto ou ilimitado.
Robert Alexy (2007, p. 301) aborda precisamente a temática:

A jurisdição constitucional é uma expressão da prioridade ou superioridade dos


direitos fundamentais sobre e contra a legislação parlamentar. Sua base lógica é o
conceito da contradição. A declaração de um estatuto como inconstitucional implica
que ele contradiga pelo menos uma norma da Constituição. Essa contradição no
nível das normas é acompanhada de uma contradição no nível dos juízos sobre as
normas. O juízo da corte constitucional é, na maioria dos casos, explícito. Adota a
seguinte formM: ‘O enunciMdo S é inconsPiPucional’. O Óuízo do parlMmento- pelo
menos durante o processo de legislação, quer dizer, antes de a atuação da corte
constitucional começar- é normMlmente Mpenas implíciPoB Tem M formM: ‘O
enunciMdo S é consPiPucional’BEssMs duas modalidades de contradição demonstram
que a jurisdição constitucional (revisão constitucional) é essencialmente
proposicional e, portanto, argumentativa ou discursiva.
A jurisdição constitucional, no entanto, consiste em mais do que asserções
concernentes à constitucionalidade. A corte constitucional não apenas diz algo, mas
faz algo. Ela tipicamente tem o poder de invalidar atos inconstitucionais do
parlamento. Esse tipo de participação na legislação significa que a atividade das
cortes constitucionais tem um caráter não apenas proposicional ou discursivo, mas
PMmNém insPiPucional ou ‘de MutoridMde’.

O Estado desempenha sua autoridade diante do exercício das atividades atribuídas a


cada um dos poderes. A jurisdição constitucional significa, então, a manifestação jurisdicional
do Estado diante das demandas impostas, que só se legitima quando compatibilizada com os
ditames democráticos. Já a atividade do parlamento é outra forma de o Estado exercer sua
autoridade, que, naturalmente, é legítima, por sua descendência popular, em razão de o Poder
Legislativo ser composto por membros escolhidos pelo povo para representá-lo, por meio de
mandato eletivo. Não há contexto mais democrático que esse.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

O impasse existe quando se confrontam as demandas sobre o trâmite do processo


legislativo levadas à apreciação do Judiciário. Como, então, ajustar a atuação jurisdicional
com a manifestação autônoma do Legislativo? A análise se inicia pelo contexto do poder
constituinte, que representa a real origem política do Estado, o qual tem como fundamento a
vontade do sujeito soberano, inclusive superior à Constituição, denominado povo. A
consagração da soberania popular nas Constituições nada mais é que uma maneira de
conceder caráter jurídico-formal à supremacia da vontade do povo, que passa a ser encarada
como um princípio relevante para a ordem política de cada Estado. Dessa forma, impõem-se
respeito e obediência aos seus ditames.

Ressalte-se que é a Constituição que se submete aos comandos do povo, sendo fruto da
soberania popular, o que desmitifica o entendimento de que é a Carta Federativa que confere a
supremacia ao povo. Dessa forma, o Estado e o direito são produtos da vontade popular, não
se confundindo, em hipóPese MlgumM, com MprópriMsoNerMniMB“O EsPMdo não Pem vontade
própriM, nem MF onsPiPuiçãoBAmNos são produto dMMção de um Oomem ou grupo de Oomens”
(BERCOVICI, 2008, p. 23).

Corrobora-se, por conseguinte, o entendimento de que a função legiferante,


desempenhada pelos representantes do povo, tem salutar importância para manter a ordem
político-democrática equilibrada, o que, mais uma vez, ratifica o pensamento sobre a
preponderância do Legislativo em relação aos demais poderes.

O Poder Legislativo, então, apresenta-se como a mais alta expressão da soberania


popular, e sua atuação é de grande relevância para a concretização da democracia. A
soberania, portanto, pertence ao povo, o qual a exerce por meio da escolha dos representantes
do Legislativo, a fim de consagrar a vontade do demos, que passou a ter respaldo na norma
constitucional. Disso, infere-se a necessidade de se ter um Legislativo livre na sua atuação,
sem amarras, principalmente, quanto aos entendimentos casuísticos dos Tribunais nacionais.

A soberania popular consagra-se, portanto, em um sistema em que exista um Legislativo


legítimo, que assim exerce sem percalços a democracia. A liberdade para legislar é uma forma
de exercitar a vontade do povo, que só se viabiliza em um ambiente político resguardado pela
precisa separação dos poderes do Estado.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Diante da atuação do Judiciário, é válido acrescentar a observação feita por Luís


Roberto Barroso (2009, p. 3), ao diferenciar jurisdição constitucional de controle de
constitucionalidade:

As locuções jurisdição constitucional e controle de constitucionalidade não são


sinônimas, embora sejam frequentemente utilizadas de maneira intercambiável.
Trata-se, na verdade, de uma relação entre gênero e espécie. Jurisdição
constitucional designa a aplicação da Constituição por juízes e tribunais. Essa
aplicação poderá ser direta, quando a norma constitucional discipline, ela própria,
determinada situação da vida. Ou indireta, quando a Constituição sirva de parâmetro
para sua validade. Nesse último caso, estar-se-á diante do controle de
constitucionalidade, que é, portanto, uma das formas de exercício da jurisdição
constitucional. (grifo original)

Nesse sentido, o tema da jurisdição constitucional comporta diversos questionamentos,


dentre eles, a indagação da legitimidade conferida aos magistrados togados para decidir sobre
trâmites legislativos, já que não têm origem de aclamação popular. Em regra, ingressam na
carreira jurídica por mérito próprio e não pela manifestação do povo.

Para tanto, faz-se um breve retrocesso histórico. Diante de um Estado Liberal, percebia-
se a pouca autonomia dos juízes para adotarem a hermenêutica na sua atividade prática.
Adotava-se o silogismo simples. O Judiciário, politicamente nulo, deveria apenas pronunciar
a lei e obedecer aos ditames normativos impostos pelo parlamento. Nesse aspecto, enfatizava-
se a função do Legislativo, que deveria produzir normas claras e com o máximo de
objetividade.

Já no período do Estado Social, adotava-se a postura de um Estado prestacional, no qual


se ressaltava a função desempenhada pelo Poder Executivo para o cumprimento das ações
estatais. Judiciário e Legislativo tinham pouca atuação política.

Em meio a um Estado Democrático de Direito consolidado, constata-se a adoção da


postura do Judiciário como guardião da Constituição Federal. Assim corrobora o pensamento
de Francisco Lisboa Rodrigues (2008, p. 39):

Se no Estado Liberal, com ênfase no primado da lei, o Legislativo foi o modelo de


exercício de poder; se no Estado Social (prestacional), era o Executivo que
comandava as ações, no Estado Democrático Constitucional de Direito é do
Judiciário que vem a função garantística de realização dos direitos fundamentais.

Questiona-se acerca dos parâmetros de atuação do Poder Judiciário. De fato, a ele


incumbem o resguardo e a interpretação final da Constituição Federal, mas como se deve

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

entender o alcance do exercício da autoridade judiciária para a concretização dos ideais


democráticos?

Em virtude do desempenho da jurisdição constitucional, é natural existir o embate entre


a fiscalização, com o intuito de impedir o ingresso de normas em descompasso com a
Constituição, e a independência do Legislativo para a produção livre de normas. A origem,
então, dos poderes influi na decisão sobre a preponderância de um sobre o outro.

Parece de bom alvitre indicar a solução para tal embate entre poderes por meio
principiológico. O princípio da soberania popular, pelo qual o povo é dotado de legitimidade
para compor o poder constituinte, é o idealizador de tal controvérsia.

Como parte de um silogismo, se o poder constituinte atribui legitimação às decisões do


Judiciário, não se pode mais questionar frontalmente o exercício do controle de
constitucionalidade. Contudo, há uma limitação.

A legitimação atribuída constitucionalmente ao Judiciário é claramente concedida de


maneira indireta, por meio do documento político que rege o Estado Democrático de Direito,
que se originou do poder constituinte, claramente de base popular. A legitimidade legislativa,
conferida diretamente pelo soberano, portanto, é indubitavelmente preponderante em relação
à legitimação do Judiciário.

Consubstanciando o pensamento de Locke, Montesquieu, Kant e Rousseau acerca da


organização estatal democrática, bem como da submissão do homem aos parâmetros
normativos, como aceitar a legitimidade dos magistrados para decidir sobre questões
políticas?

O fundamento do contratualismo diz respeito à restrição da liberdade individual, que se


transfere para a maioria, respeitando a vontade plural. O indivíduo obriga-se ao cumprimento
da lei a ele imposta, em benefício do interesse público. A opinião da maioria do povo, então,
determina a vontade do Estado, prevalecendo o entendimento da soberania popular.

Adentrando no conceito democrático, o agente político, para determinar sua


legitimidade, deve agasalhar-se de um mínimo de origem popular. O parlamento, no sistema
constitucional, consiste em órgão cujos agentes que o compõem são dotados de mandato
certo, submetendo-se aos ditames constitucionais. Identificadas suas atribuições na

250
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Constituição, não lhes é possível agir de maneira diversa. Foram escolhidos, portanto, como
representantes do povo para cumprir as diretrizes constitucionais, criadas pelo poder
constituinte originário, de procedência popular.

Em distinto entendimento, porém, vê-se disseminada o conceito de uma jurisdição


constitucional, como meio de reassegurar o poder detido pelas Supremas Cortes, o que revela
o pensamento de que a justiça constitucional tutelaria o exercício da soberania popular, por
meio do julgamento das demandas a ela impostas.

Em observância rápida a essa concepção, poder-se-ia aparentar uma premissa de


segurança jurídica para o próprio povo, contudo, vê-se manifestamente prejudicada a
democracia constituída, haja vista, principalmente, a origem ilegítima da investidura dos
membros do Supremo Tribunal Federal, no caso brasileiro, submetidos à indicação do Poder
Executivo, e não ao crivo de eleição, portanto, não podendo ser controlados pelo povo.

Robert Alexy (2007, p. 301-302) apresenta possível forma de conciliação entre o


modelo democrático e a legitimidade dos magistrados:

A chave para a solução desses problemas e, assim, para a solução do problema geral
da jurisdição constitucional é o conceito de representação argumentativa.
Representação é uma relação de dois polos entre um repraesentandum e um
repraesentans. No caso da legislação parlamentar a relação entre o repraesentandum
–o povo- e um repraesentans- o parlamento- é essencialmente determinada pela
eleição. Agora, é possível determinar um modelo de democracia que contem não
mais do que um sistema de tomada de decisões centralizado em torno dos conceitos
de eleição e regra da maioria. Esse seria um modelo de democracia puramente
decisional. Um conceito adequado de democracia deve, entretanto, compreender não
apenas a decisão, mas também o argumento. A inclusão da argumentação no
conceito de democracia cria a democracia deliberativa. A democracia deliberativa é
uma tentativa de institucionalizar o discurso enquanto um mecanismo possível de
tomada de decisões públicas. Por essa razão, a conexão entre o povo e o parlamento
não deve ser unicamente determinada por decisões expressas em eleições e votos,
mas também por argumentos. Nesse sentido, a representação do povo pelo
parlamento é, ao mesmo tempo, volitiva ou decisional e argumentativa ou
discursiva.
A representação do povo por uma corte constitucional é, em contraste, puramente
argumentativa. O fato de a representação pelo parlamento ser volitiva tanto quanto
discursiva demonstra que representação e argumentação não são incompatíveis.

Para o filósofo alemão, os tribunais são encarregados de procederem à representação


argumentativa, saneando as produções legislativas, que, muitas vezes, não fundamentam suas
decisões. Essa teoria tem sido adotada, não na integralidade, por parte do Supremo Tribunal
Federal, como pelo Ministro Gilmar Mendes, para justificar a judicialização da política e
explicar que dessa representação advém a legitimidade democrática do Pretório Excelso.

251
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Robert Alexy (2007, p. 303) determina condições fundamentais para a consolidação da


PeoriMMrgumenPMPiQM, quais seÓMm: “(1) A exisPênciMde Mrgumentos corretos ou plMusíveis, e
(2) a existência de pessoas racionais, ou seja, pessoas que sejam capazes e estejam dispostas a
MceiPMr MrgumenPos pelo fMPo de eles serem corretos ou plMusíveis”B Data venia, não se
concorda com a teoria argumentativa proposta por Robert Alexy. Estar-se-ia atribuindo
poderes abusivamente ao Judiciário, por meio de critérios totalmente subjetivos, o que não se
justifica como admissível.

Critica-se, comumente, a prática legislativa desnudada de compromisso político, técnico


e ético, em desconformidade com preceitos constitucionais. Como guardião diligente e
assíduo da Constituição Federal, restaria ao Supremo Tribunal Federal a militância pela
supervisão e pretensa correção dos atos legislativos. Nesse paradigma, reconhece-se a
ideologia de descrença na consciência da relevância da instituição do Poder Legislativo.
(STRECK; LIMA, 2011, online).

A jurisdição constitucional não pode ser exercida como instrumento da judicialização


política. Portanto, permitir a ingerência do Poder Judiciário nos atos em tramitação no
Legislativo corresponderia a uma interferência desmedida na independência e na harmonia
dos poderes, em desrespeito evidente aos princípios democráticos. Nesse sentido, causa
arrepio a possibilidade de se permitir a intervenção desse poder destituído de legitimidade
popular no processo legislativo, mediante um controle preventivo.

3.2 O entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal

O entendimento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal vem se modificando ao


longo das décadas de existência dessa Corte, para a qual, com a evolução constitucional,
coube a análise hermenêutica da demanda posta, ampliando seu exercício jurisdicional. Esse
trabalho questiona o controle preventivo de constitucionalidade realizado pelo Poder
Judiciário e, para analisá-lo de forma concreta, é importante observar o entendimento
jurisprudencial das Cortes pátrias, primeiro quanto à apreciação do regimento interno e, em
segundo momento, quanto à manifestação sobre o mérito do projeto de lei ou ato normativo
questionado.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou de diversas maneiras sobre o caso. Em


1980, no mandado de segurança nº 20.257, assim ficou decidido:

252
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO DA MESA DO CONGRESSO


QUE ADMITIU A DELIBERAÇÃO DE PROPOSTA DE EMENDA
CONSTITUCIONAL QUE A IMPETRAÇÃO ALEGA SER TENDENTE A
ABOLIÇÃO DA REPUBLICA. - CABIMENTO DO MANDADO DE
SEGURANÇA EM HIPÓTESES EM QUE A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL SE
DIRIGE AO PRÓPRIO PROCESSAMENTO DA LEI OU DA EMENDA,
VEDANDO A SUA APRESENTAÇÃO (COMO É O CASO PREVISTO NO
PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 57) OU A SUA DELIBERAÇÃO (COMO
NA ESPÉCIE). NESSES CASOS, A INCONSTITUCIONALIDADE DIZ
RESPEITO AO PRÓPRIO ANDAMENTO DO PROCESSO LEGISLATIVO, E
ISSO PORQUE A CONSTITUIÇÃO NÃO QUER - EM FACE DA GRAVIDADE
DESSAS DELIBERAÇÕES, SE CONSUMADAS - QUE SEQUER SE CHEGUE
A DELIBERAÇÃO, PROIBINDO-A TAXATIVAMENTE. A
INCONSTITUCIONALIDADE, SE OCORRENTE, JÁ EXISTE ANTES DE O
PROJETO OU DE A PROPOSTA SE TRANSFORMAR EM LEI OU EM
EMENDA CONSTITUCIONAL, PORQUE O PRÓPRIO PROCESSAMENTO JÁ
DESRESPEITA, FRONTALMENTE, A CONSTITUIÇÃO. INEXISTÊNCIA, NO
CASO, DA PRETENDIDA INCONSTITUCIONALIDADE, UMA VEZ QUE A
PRORROGAÇÃO DE MANDATO DE DOIS PARA QUATRO ANOS, TENDO
EM VISTA A CONVENIÊNCIA DA COINCIDÊNCIA DE MANDATOS NOS
VÁRIOS NÍVEIS DA FEDERAÇÃO, NÃO IMPLICA INTRODUÇÃO DO
PRINCÍPIO DE QUE OS MANDATOS NÃO MAIS SÃO TEMPORÁRIOS, NEM
ENVOLVE, INDIRETAMENTE, SUA ADOÇÃO DE FATO. MANDADO DE
SEGURANÇA INDEFERIDO. (Relator(a): Min. DÉCIO MIRANDA. Relator(a) p/
Acórdão: Min. MOREIRA ALVES. Julgamento: 08/10/1980. Órgão Julgador:
Tribunal Pleno Publicação DJ 27-02-1981 PP-01304 EMENT VOL-01201-02 PP-
00312 RTJ VOL-00099-03 PP-01031).

O posicionamento adotado, sob relatoria do Ministro Moreira Alves, que serviu de


precedente para demais julgamentos, foi pelo provimento ao controle judicial sobre o mérito
das deliberações legislativas, ao admitir a legitimidade do parlamentar para interpor mandado
de segurança, com a finalidade de coibir atos inconstitucionais.

Contudo, após a impetração do mandado de segurança nº 22.503 no STF, considerado o


caso paradigmático quanto ao controle de constitucionalidade preventivo, percebeu-se uma
mudança no posicionamento jurisprudencial, ao qual esse trabalho se filia, que passou a
admitir o controle judicial quando se tratar apenas de dispositivo regimental com referência
direta à Constituição Federal, proibida a manifestação quanto ao mérito do projeto de espécie
normativa analisado.

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA IMPETRADO CONTRA ATO DO


PRESIDENTE DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, RELATIVO À
TRAMITAÇÃO DE EMENDA CONSTITUCIONAL. ALEGAÇÃO DE
VIOLAÇÃO DE DIVERSAS NORMAS DO REGIMENTO INTERNO E DO ART.
60, § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRELIMINAR: IMPETRAÇÃO NÃO
CONHECIDA QUANTO AOS FUNDAMENTOS REGIMENTAIS, POR SE
TRATAR DE MATÉRIA INTERNA CORPORIS QUE SÓ PODE ENCONTRAR
SOLUÇÃO NO ÂMBITO DO PODER LEGISLATIVO, NÃO SUJEITA À
APRECIAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO; CONHECIMENTO QUANTO AO
FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL. MÉRITO: REAPRESENTAÇÃO, NA
MESMA SESSÃO LEGISLATIVA, DE PROPOSTA DE EMENDA

253
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

CONSTITUCIONAL DO PODER EXECUTIVO, QUE MODIFICA O SISTEMA


DE PREVIDÊNCIA SOCIAL, ESTABELECE NORMAS DE TRANSIÇÃO E DÁ
OUTRAS PROVIDÊNCIAS (PEC Nº 33-A, DE 1995). I - Preliminar. 1.
Impugnação de ato do Presidente da Câmara dos Deputados que submeteu a
discussão e votação emenda aglutinativa, com alegação de que, além de ofender ao
par. único do art. 43 e ao § 3º do art. 118, estava prejudicada nos termos do inc. VI
do art. 163, e que deveria ter sido declarada prejudicada, a teor do que dispõe o n. 1
do inc. I do art. 17, todos do Regimento Interno, lesando o direito dos impetrantes de
terem assegurados os princípios da legalidade e moralidade durante o processo de
elaboração legislativa. A alegação, contrariada pelas informações, de impedimento
do relator - matéria de fato - e de que a emenda aglutinativa inova e aproveita
matérias prejudicada e rejeitada, para reputá-la inadmissível de apreciação, é questão
interna corporis do Poder Legislativo, não sujeita à reapreciação pelo Poder
Judiciário. Mandado de segurança não conhecido nesta parte. 2. Entretanto, ainda
que a inicial não se refira ao § 5º do art. 60 da Constituição, ela menciona
dispositivo regimental com a mesma regra; assim interpretada, chega-se à conclusão
que nela há ínsita uma questão constitucional, esta sim, sujeita ao controle
jurisdicional. Mandado de segurança conhecido quanto à alegação de
impossibilidade de matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por
prejudicada poder ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa. II -
Mérito. 1. Não ocorre contrariedade ao § 5º do art. 60 da Constituição na medida em
que o Presidente da Câmara dos Deputados, autoridade coatora, aplica dispositivo
regimental adequado e declara prejudicada a proposição que tiver substitutivo
aprovado, e não rejeitado, ressalvados os destaques (art. 163, V). 2. É de ver-se,
pois, que tendo a Câmara dos Deputados apenas rejeitado o substitutivo, e não o
projeto que veio por mensagem do Poder Executivo, não se cuida de aplicar a norma
do art. 60, § 5º, da Constituição. Por isso mesmo, afastada a rejeição do substitutivo,
nada impede que se prossiga na votação do projeto originário. O que não pode ser
votado na mesma sessão legislativa é a emenda rejeitada ou havida por prejudicada,
e não o substitutivo que é uma subespécie do projeto originariamente proposto. 3.
Mandado de segurança conhecido em parte, e nesta parte indeferido. (Tribunal
Pleno. Ministro Relator: Marco Aurélio. Julgamento: 07/05/1996. Publicação: DJ
06-06-1997 PP-24872 EMENT VOL-01872-03 PP-00385 RTJ VOL-00169-01 PP-
00181).

Por tratar-se de dispositivo aludido na Constituição, ao Poder Judiciário competiu a


manifestação sobre a questão posta. Nesse caso, não se referiu a ato interno do parlamento
propriamente dito, mas ao dispositivo constitucional a que ele faz referência, e, como
guardião e intérprete último da Constituição, foi adequado esse entendimento. Portanto, o
regimento interno pode ser alvo de controle pelo Poder Judiciário, mas desde que mencione
dispositivo evidente na Constituição Federal.

Ressalte-se que, em momento posterior, diante de tantas demandas e em apreço ao


princípio da celeridade, o Ministro Cezar Peluso, enquanto presidente da Suprema Corte
NrMsileirM, declMrou, no enconPro do “Terceiro PMcto RepublicMno”, sua Mfeição Mo controle
judicial preventivo de constitucionalidade, ou seja, aceitou a possibilidade de o Judiciário
intervir no processo legislativo como um todo, mesmo diante do projeto de lei ou de ato
normativo. Porém, sob pressões externas, reconsiderou seu pensamento:

254
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

No início deste ano, inclusive, o atual presidente da Suprema Corte, Ministro Cezar
Peluso, tendo identificado o quanto a existência de mecanismos de controle prévio
poderia desafogar o Poder Judiciário, chegou a defender formalmente a criação de
tal instituto. No entanto, diante de críticas severas à ideia, justamente fundadas na
alegação de violação à tripartição dos Poderes Republicanos, acabou abandonando
sua defesa. (REBELO, 2011, online)

Em conformidade com o posicionamento adotado por este trabalho, vislumbra-se a


decisão proferida no Plenário do Supremo Tribunal Federal que cassou, por maioria dos
votos, a liminar concedida, em 07 de fevereiro de 2013, no mandado de segurança nº 31.816,
de relatoria do Ministro Luiz Fux (2013, online), que, com fundamento no artigo 66, §4º da
Constituição Federal, decidiu pela abstenção da acerca do Veto Parcial 38/2012 antes que se
procedesse à análise, em ordem cronológica de recebimento da respectiva comunicação, dos
demais vetos pendentes com prazo de análise expirado até aquela data, observadas as regras
regimentais pertinentes:

De plano, reporto-me os termos claros em que vazada a parte dispositiva da decisão,


cujo teor não deixa dúvidas de que o Congresso Nacional brasileiro não se encontra
impedido, por ordem judicial, de deliberar sobre toda e qualquer proposição, mas
apenas e tão somente de apreciar e votar vetos presidenciais fora da ordem
cronológica da respectiva comunicação. A decisão se limita a obstar a deliberação
aleatória e casuística de determinado veto presidencial diante do volume acumulado
de vetos pendentes, alguns com prazo constitucional expirado há mais de uma
década.

A Mesa do Congresso Nacional interpôs agravo de instrumento e questionou sobre


necessidade de observância da ordem cronológica dos vetos proferidos, pois não há qualquer
dispositivo que assim preceitue, bem como isso prejudicaria a apreciação imediata do então
recente veto parcial concedido pela Presidente da República ao projeto de lei nº 2.565/2011,
convertido na lei 12.734/2012, que aborda a partilha dos royalties relativos à exploração do
petróleo e gás natural.

Nesse sentido, transcreve-se o voto do Ministro Ricardo Lewandowski (2013, online),


que se manifestou contrário ao posicionamento do relator quanto à apresentação dos vetos:

Cumpre destacar, por outro lado, que os constituintes quando quiseram exigir a
observância de uma ordem cronológica, o fizeram de forma expressa, como ocorre
no caso do art. 100 da Lei MMior, que Mssim dispõe: ‘Os pagamentos devidos pelas
Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de
sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de
apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a
designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos
adicionais abertos para este fim’ (grifei).
Ora, se não é possível extrair do texto constitucional, de plano, ao menos em um
exame perfuntório, a mesma obrigatoriedade para a apreciação dos vetos na ordem
cronológica em que foram recebidos, entendo que a imposição de tal exigência ao

255
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Congresso Í McionMl, pelo Judiciário, significMriMsubPrair do I egislMPiQo o ‘poder de


Mgenda’, que se enconPrMínsiPo nMMmplMMutonomia que a Carta Magna confere a
esse Poder.
Nem mesmo os tribunais do País, vale lembrar, julgam as ações judiciais na ordem
cronológica em que foram propostas, mas segundo uma avaliação que leva em conta
a sua repercussão política, social, econômica ou jurídica e, em especial, o não menos
relevante interesse das partes em litígio.

Acertadamente e em consonância com os votos dos ministros Rosa Weber, Dias Toffoli,
Cármen Lúcia, Teori Zavascki, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, convergiu-se ao
entendimento de que se trata de questão interna corporis, ou seja, tema imune à interferência
do Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal, então, não resguardou de maneira hermética os atos


interna corporis da apreciação do Judiciário. Permitiu o controle no trâmite legislativo apenas
nos casos em que se faz referência direta a dispositivo constitucional, resguardando o objeto
das deliberações.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal adota a possibilidade de interferência do


Judiciário quanto ao processo legislativo apenas se houver referência direta à Constituição
Federal, resguardando a ingerência em relação ao mérito do projeto apreciado pela casa
legislativa.

CONCLUSÃO

Como observado no trabalho, o controle de constitucionalidade é o mecanismo de


fiscalização recíproca entre os poderes que garante a compatibilidade das normas
infraconstitucionais com a Constituição, consistindo em instrumento necessário à garantia de
uma segurança no ordenamento jurídico.

Sobre esse aspecto, renasce o pensamento acerca da separação dos poderes, idealizado
por diQersos pensMdores liberMis, como I ocke, mMs que se consMgrou com MoNrM“O EspíriPo
das I eis”, de MutoriMde MonPesquieu, em 1748.

Diante desse postulado, indicado no artigo 2º da Constituição Brasileira de 1988, foi


feito questionamento sobre a flexibilização do comando constitucional quanto à ingerência de
um poder sobre o outro. O princípio da separação dos poderes estabelece a independência e a
harmonia entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, e, de tanto relevo para a ordem
democrática, figura como cláusula pétrea em nosso ordenamento jurídico.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

No direito constitucional contemporâneo, é reconhecida a necessidade de se conceber a


separação dos poderes de uma maneira mais flexível, em razão da existência de uma
jurisdição constitucional que transcende as competências típicas, a fim de se poder construir
um Estado Democrático de Direito mais efetivo. Com respaldo hermenêutico, portanto, o
Legislativo, objeto de maior relevância para este estudo, não está imune às interferências do
Poder Judiciário. Contudo, há que se acentuar o respeito às suas competências precípuas.

Esse trabalho dividiu o estudo do controle de constitucionalidade em dois. Em primeiro


momento, destacou-se a ingerência do Judiciário no mérito do projeto de espécie normativa
em tramitação na casa legislativa. Em segundo momento, houve a reflexão quanto aos atos
interna corporis, que não configuram todo e qualquer ato interno legislativo.

A propositura de um projeto, com o intuito de vê-lo aprovado, para, posteriormente,


ingressar no ordenamento jurídico, faz parte de ato de deliberação exclusiva do parlamento,
que, por meio da manifestação da vontade dos seus membros, deve analisar a
constitucionalidade do projeto.

O projeto de ato normativo, objeto de análise, deve ser apreciado por aqueles
legitimados constitucionalmente, ou seja, apenas os parlamentares da casa legislativa em que
esteja ocorrendo sua tramitação. Ao Judiciário somente resta pronunciar-se após a conclusão
do trâmite legislativo.

Nesse sentido, vê-se a importância das Comissões de Constituição e Justiça, que têm o
escopo de confrontar o projeto de lei ou do ato normativo com a Constituição; e, quando o
concretiza, realiza o controle preventivo de constitucionalidade.

Porém, não raras vezes, os documentos a elas enviados não recebem tratamento
constitucional suficiente, e, ainda assim, em razão da inatividade do Legislativo, que não
realiza satisfatoriamente a sua tarefa institucional de legislar, são aprovados e ingressam na
ordem jurídica. Isso gera uma descrença no parlamento, que deveria se fortalecer como poder
do Estado legitimamente popular, contudo, vê-se desacreditado pelo próprio povo.

Frise-se, portanto, a necessidade do engajamento e da consequente qualificação técnica


das Comissões de Constituição e Justiça. Nesse sentido, quanto maior o seu compromisso
com a fiscalização da atividade legiferante, menor será o questionamento à presunção da
constitucionalidade das normas e maior será a credibilidade atribuída ao Legislativo.

257
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Quanto aos regimentos internos das casas legislativas, estes compõem o sistema jurídico
brasileiro, subordinando-se às premissas da Constituição Federal e, portanto, não há
empecilhos, na hermenêutica constitucional do Supremo Tribunal Federal, para que se admita
a viabilidade de instrumento processual para verificar os vícios procedimentais de
inconstitucionalidade.

Ressalte-se que não será feito o controle de constitucionalidade sobre qualquer


dispositivo do regimento interno. Mas apenas sobre aqueles os quais fizerem referência direta
à Constituição Federal, pois, caso contrário, estar-se-ia adentrando na seara dos atos interna
corporis, que são restritos à apreciação do Legislativo.

O uso de mandado de segurança por parlamentares que objetivam interromper o


processo legislativo só pode ser acolhido quando se tratar de lei ou ato normativo em
concreto, manifestamente contrário aos ditames constitucionais. Caso contrário, a apreciação
pelo Judiciário só se dará após a aprovação legislativa, de maneira posterior à sua vigência no
ordenamento jurídico.

Outro aspecto abordado nesse trabalho disse respeito à atuação dos magistrados quanto
ao exercício do controle preventivo de constitucionalidade dos atos legislativos. Com a
judicialização da política, o parâmetro estabelecido em relação aos juízes passou a reconhecê-
los como defensores da democracia, por meio da sua atuação, que transcende diversas searas
da sociedade, seja a civil, a penal ou a econômica.

O mMgisPrMdo deixou de represenPMr merM“NocMda lei” parMexercer MhermenêuticM


constitucional moderna, sendo o guardião da Constituição Federal. Não se pode, entretanto,
admitir a transformação do controle judicial preventivo de constitucionalidade em
instrumento mais político que jurídico. A separação de poderes deve ser respeitada
severamente, sob o infortúnio de se fragilizar a base democrática construída no Estado
Federal.

Além disso, observando os ditames do poder constituinte, ressalte-se a legitimidade


indireta dos juízes, conferida pela Constituição Federal, em oposição à legitimidade direta do
Legislativo atribuída pelo próprio povo. Como, então, sobrepor a decisão de um magistrado à
de um parlamentar ainda no processo legislativo? Não há plausibilidade para tanto.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

O Estado consagra-se como criação dos anseios do povo. O Legislativo, então, é


resultado da vontade popular. Disso, infere-se a legitimidade do parlamento advinda dos
soberanos, o que não ocorre com os magistrados.

O controle de constitucionalidade deve ser exercido conforme as balizas


constitucionalmente estabelecidas, que não garantiram expressamente a possibilidade de
apreciação judicial das espécies normativas ainda em tramitação no processo legislativo.

Ao Judiciário compete exclusivamente a análise das normas existentes concretamente


no ordenamento jurídico, ou seja, trata-se de uma fiscalização repressiva, por meio dos
instrumentos viáveis ao caso concreto.

Portanto, imperioso ter-se um Legislativo respeitado e forte, pois, a partir de então,


gera-se uma menor influência do Poder Judiciário, que, atualmente, recebe inúmeras
demandas, em razão do fácil acesso à Justiça, como forma encontrada pelo jurisdicionado de
receber uma resposta interpretativa de possível maior credibilidade ao caso concreto.

Finalmente, sugere-se uma maior conscientização concernente à importância do voto. O


direito de votar foi conquistado após difíceis obstáculos históricos, principalmente, o
autoritarismo, antes vigente. Se tão almejado e, hoje, atribuído de forma igualitária, deve ser
reconhecida a sua relevância.

Escolher os representantes não é ato de mera evolução política; é uma aquisição pessoal
de cada um como cidadão e deve ser enaltecido diante de um sistema democrático-
representativo. Por isso, deve-se votar conscientemente, a fim de fortalecer o Poder
Legislativo, que almeja restabelecer sua credibilidade ao povo.

Diante de todo o exposto, posiciona-se contrariamente ao controle judicial preventivo de


constitucionalidade, em virtude de se coadunar com o pensamento de que adotar a postura da
compatibilização judicial preventiva é consagrar no ordenamento jurídico brasileiro a
“ÓurisPocrMciM”B

REFERÊNCIAS

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NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel (coord.). A constitucionalização do
direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

259
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BARROSO, Luís Roberto. O Controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4. ed.


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BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: para uma crítica do constitucionalismo.


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DÉCIO MIRANDA. Relator(a) p/ Acórdão: Min. MOREIRA ALVES. Julgamento:
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_______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 31.816. Decisão


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_______. Supremo Tribunal Federal. Mandado de Segurança nº 31.816. Tribunal Pleno.


Ministro Relator: Luiz Fux. Voto: Ricardo Lewandowski. em:
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261
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

DEVER FUNDAMENTAL DE ATUAÇÃO DO ESTADO COMO ELEMENTO


PROMOTOR DA IGUALDADE SUBSTANCIAL E EFETIVIDADE DO SISTEMA
CONSTITUCIONAL:
DESDOBRAMENTOS DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

FUNDAMENTAL DUTY OF ACTION STATE OF PROMOTING SUBSTANTIAL


EQUALITY AS AN EFFECTIVE CONSTITUTIONAL SYSTEM:
DEPLOYMENT DIGNITY OF THE HUMAN PERSON
Marília Ferreira da Silva1
Erick Wilson Pereira2

RESUMO: Assiste-se à enxurrada de legislações regulando toda espécie de direitos,


conferindo aos cidadãos a sensação de segurança, em vista de que são titulares das mais
diversas prerrogativas jurídicas, essencialmente dos denominados direitos fundamentais, e,
por este motivo, estão protegidos das mais diversas intervenções em sua esfera privada, bem
como, no âmbito social. O cenário inflacionado de direitos, protagonizado pelo Estado-
provedor, tantas vezes fugindo de sua função de corrigir as desigualdades sociais, alheia os
indivíduos de um relevantíssimo fator: o feedback, que no caso em apreço, corresponde à
necessária obrigação de seu cumprimento (cumprimento dos direitos constitucionais), por
parte dos órgãos estatais competentes. Trata-se da teoria do dever fundamental que concebe a
cada direito uma prestação, seja ela de atuação ou de abstenção. Esquece-se, ou se encobre,
que a excessiva oferta desses direitos nada representa se não se lhe acompanhar a
concretização respectiva. Aqui, quer-se debruçar sobre aqueles direitos que exigem uma
prestação estatal, que impõem a atuação positiva do Estado para que se materializem e passem
a compor efetivamente, além de eficazmente, o mundo fático e jurídico dos destinatários. Mas
porque a doutrina acerca desta problemática é tão escassa? Porque apenas se propugna
direitos, relegando a segundo plano os correlatos deveres, especialmente o dever fundamental
de atuação do Estado, do qual depende diretamente a efetividade do sistema constitucional?
Não será ele (o Estado) sujeito à obrigações? Sim. Todavia, é mais interesse conceder direitos
às massas, iludindo-as com a falsa aparência de sistema democrático de direito, provido de
direitos, liberdades e garantias, que, de outra banda, apresentar-lhes o falho, cruel e
massacrante processo de (des)cumprimento dos seus deveres, o que inviabiliza a consecução
dos direitos outorgados, legitimadores do sistema constitucional, informado pelo primado da
dignidade da pessoa humana.

PALAVRAS-CHAVE: Dever Fundamental; Direito Fundamental; Dignidade da Pessoa


Humana; Estado Constitucional.

1
Advogada. Assessora Jurídica do Município de Nova Cruz/RN. Mestranda em Direito Constitucional na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
2
Advogado. Especialista em Direito e Cidadania; Criminologia e Direito do Trabalho (todas pela UFRN).
Mestre em Direito Constitucional. Doutor em Direito do Estado (ambos pela PUC/SP). Professor da
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UFRN. Professor da Escola de Magistratura do Rio Grande
do Norte – ESMARN. Professor da Universidade Potiguar – UNP. Membro da Academia de Letras Jurídicas do
Rio Grande do Norte (Cadeira n. 15: Des. Paulo Pereira da Luz). Diversas obras publicadas.

262
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

ABSTRACT: We witness the flurry of laws regulating all sorts of rights, giving citizens a
sense of security, and a variety of legal prerogatives, essentially the so-called fundamental
rights, and, therefore, are protected from various interventions in their private sphere as well
as in the social sphere. This set full of rights, played by the state-provider, often running away
from its function of correcting social inequalities, what blocks something very important to
the individuals : the feedback, which in this case corresponds to the necessary requirement of
compliance (compliance constitutional rights), by the State and its competences. It is the
fundamental duty of the theory that conceives every right a benefit, whether acting or
abstaining. By the way, the oversupply of these rights is nothing if you do not monitor the
implementation thereof. Here, we want to dwell on those rights which require a state service,
which impose the positive role of the state to materialize and start to write effectively, and
efficiently, the factual and legal world of the recipients. But why the doctrine on this issue is
so scarce? Why only the rights are known, but the correlates duties stay in the background,
especially the fundamental duty of state action, which depends directly on the effectiveness of
the constitutional system? Is not it (the state) subject of obligations? Yes, however, is more
interested grant rights to the masses, deluding them with false appearance of democratic
system of law, provided with rights, freedoms and guarantees, that otherwise, submit them
flawed, cruel and grueling process of (non) compliance of their duties, what does not allow
the realization of rights, that legitimize the constitutional system, based on the principle of
human dignity.

KEYWORDS: Fundamental Duty; Fundamental Right; Dignity of the Human Person;


Constitutional State.

1 INTRODUÇÃO

O presente arrazoado pretende, com brevidade, tratar da teoria que disciplina os


deveres fundamentais,3 pontuando, com especialidade, de um lado, a vala de esquecimento a
que são, discretamente, relegados, e, de outro, a intersecção destes para com a unidade e a
efetividade do sistema constitucional hodierno.
Vivencia-se o tempo em que os direitos se multiplicam em contagem infindável,
dada a velocidade com que as relações sociais surgem, modificam-se e se extinguem, cada
vez maior, dentro de um Estado que tenta, a todo custo, acompanhar tal processo de evolução.
A enxurrada de legislações permeia na sociedade e na consciência dos cidadãos os
direitos que possuem frente ao Estado-provedor4, as suas liberdades e garantias. E apoiada

3
No vertente artigo, para fins didáticos, as expressões “deveres fundamentais” e “deveres constitucionais”,
devem ser entendidas sempre pela maior abrangência que possam, semântica e juridicamente, representar.
Considera-se, assim, em qualquer das asserções os deveres fundamentais, os legais ou os supralegais, além dos
implícitos, extraídos do sistema.
4
Diz-se Estado-provedor não apenas vinculando-o aos direitos sociais, mas também à criação de condições para
que os direitos de liberdade sejam efetivos. Considera-se, assim, ultrapassada a velha dicotomia que separa os
direitos de defesa dos direitos prestacionais, pois que ambos necessitam da atuação estatal, um positiva, outro

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

pela superação do Estado minimalista, incute nos indivíduos a plausível luta e incessante
busca pela realização dos direitos inerentes à sua condição humana, tantos já preconizados
pelo texto constitucional, na tentativa (in)suscetível de se formalizar completamente o
universo dos direitos, o que se convém chamar de direitos fundamentais, bloco de
prerrogativas que confere legitimação à própria Constituição, também conhecida como
Constituição Cidadã.
Os direitos fundamentais, fins constitucionais, são, como se sabe, aqueles que
exigem do Estado uma prestação e compõem o núcleo essencial do sistema constitucional, do
qual se extrai a ideia de dignidade da pessoa humana. Tal atuação por parte do ente estatal,
por sua vez, encontra-se vinculada à atuação político-legislativa, ao que se pode fazer
referência imediata a um mecanismo de conformação do público espectador.
Mas, e os deveres fundamentais? Quem os busca tão ferozmente?
O que se tem, na verdade, é o esquecimento desta parcela do Direito que tão
importante é, sem, contudo, resvalar na perca de relevância. É inimaginável realizar
efetivamente um Estado Democrático de Direito pautado na igualdade substancial que
incansavelmente se deseja, quando apenas se propugna a noção de direitos fundamentais,
relegando a plano secundário o feedback destes, a saber, a observância dos correlatos deveres
fundamentais, sejam dos próprios indivíduos ou do Estado.
É a partir desta problemática, pois, que o estudo que aqui se propõe será
desenvolvido, com vistas a identificar a interligação entre as teorias dos direitos e deveres
fundamentais e o sistema constitucional hodierno, ocupando-se, especialmente, do dever de
atuação do Estado, apontando, por fim, possíveis formas de otimização e dissolução do
dilema que se impõe em decorrência da referida imbricação.

2 A INTERSECÇÃO ENTRE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DEVERES


FUNDAMENTAIS

negativamente. Isto porque, transcrevendo o ensinamento de Isabel Moreira, “a liberdade dos cidadãos não é
mais uma liberdade em face do (inimigo) Estado, mas configurada em termos que a sua existência depende de
condições que, se não estão ao alcance do indivíduo (isto é: se este não consegue reuni-las no âmbito da sua
autonomia existencial), devem ser criadas pelo Estado que as assume como tarefa”. (MOREIRA, Isabel. A
solução dos direitos. Coimbra: Almedina, 2007, p. 37).

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A Dignidade da Pessoa Humana representa um valor moral5, bastando, a priori,


compreender a sua vertente de primado constitucional e, como tal, definidor de consequências
jurídicas.
Tal primado passou a compor o ordenamento pátrio com o advento da Constituição
de 1988, período em que se processava a redemocratização das instituições domésticas,
contexto no qual também se estreitavam as relações entre o direito nacional e o direito
internacional, marcado pela Declaração de 1948, em resposta aos atentados contra a
humanidade, protagonizados pelos nazistas.
Relativizando-se o conceito até então vigente de soberania em prol de indivíduos
vulneráveis e desprotegidos, a dignidade da pessoa humana, desvinculada de qualitativos de
ordem moral, cultural ou religiosos, passou a ocupar lugar central no sistema jurídico
contemporâneo, impondo a sua observância nas mais diversas dimensões dogmático-jurídicas.
Bittar afirma que ao erigir valores-guia ao centro do sistema jurídico, entre eles, o da
dignidade, a Constituição Federal de 1988 assumiu grande potencial transformador da
sociedade brasileira, colaborando, assim, à formação fundamental da cultura dos direitos
humanos dentro de uma sociedade pluralista (BITTAR, 2010, p. 250), no plano interno.
Isto porque, ainda segundo ele, a dignidade da pessoa humana é expressão que possui
amplo alcance, reunindo em seu bojo todas as facetas dos direitos humanos, a exemplo da
prestação de serviços essenciais por parte do Estado; do cumprimento de políticas públicas;
do atendimento das necessidades sociais; da construção da justiça social; do alicerce das
tomadas de decisão em política legislativa, entre outras (BITTAR, 2010, p. 255).
O fato é que este potencial transformador vem sendo dificultado pelo que se
convencionou chamar de programaticidade das normas, adormecendo a perspectiva inovadora
trazida pela Constituinte e renegando as conquistas alcançadas por esta, conferindo-lhe, ao
contrário de efetividade, inocuidade.
Assim é que o presente arrazoado vem avolumar os estudos que insistem em vincular
o texto constitucional à dignidade da pessoa humana e à implementação dos direitos e deveres
fundamentais, por quem de direito, rejeitando, com isso, a falsa sensação de conformação por

5
Ana Paula de Barcelos, neste sentido, enfatiza que, “do ponto de vista jusfilosófico, e para uma sociedade como
a contemporânea, que crê nos postulados humanistas e na democracia, a dignidade da pessoa humana (aí
incluindo o seu aspecto material), constitui o valor mais fundamental”. (BARCELOS, Ana Paula de. A Eficácia
Jurídica dos Princípios Constitucionais: O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 248).

265
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

parte dos cidadãos, promovida pelos dispositivos que, abstratamente, conferem-lhes os mais
diversificados direitos e garantias que, por motivos vários, não saem do papel.6
Com efeito, ao passo que a dignidade da pessoa humana se configura um direito do
homem, direito subjetivo de ter sua dignidade respeitada, impõe, igualmente, um dever, a
obrigação de se portar com dignidade em face de si mesmo e dos outros que consigo vivem
em sociedade. Mas não só isso. Impõe, ao mesmo tempo, o dever do Estado de promover esta
dignidade, de permitir que ela seja acessível aos cidadãos, pois que em nada é relevante
pronunciá-la se não forem propiciadas as condições de sua materialização. Do contrário, será
sempre uma abstração, não obstante provoque imensurável sedução.
Em sendo abstração apenas, perde completamente o sentido de diretriz axiológico-
normativa do sistema constitucional, em vista de que a realidade social a que se destina tal
sistema não necessita de mais abstrações, ilusões, mas, sim, de concretização. Concretização
esta que depende frontalmente da atuação estatal quando da consecução de suas obrigações
constitucionais e políticas, isto é, de seus deveres fundamentais. Na prática dos tribunais,
importa em relevantíssimo instrumento nos processos de interpretação e ponderação. Nas
duas hipóteses, pois, o princípio-mor da dignidade da pessoa humana se liberta da vagueza
que lhe oprime, deixando de ser meramente mecanismo retórico, figura ilustrativa, para
ganhar foros de relevo jurídico.
Corroborando a ideia de vinculação entre dignidade da pessoa humana e dever
fundamental, Jorge Reis Novais (2011, p. 51) afirma que quando este princípio plasmado na
Constituição é formalmente acolhido no respectivo texto constitucional, o que ocorreu com a
realidade jurídica brasileira, além de representar, como dito, a qualidade de um valor moral
legitimador da força normativo-constitucional de um Estado de Direito material, também se
transforma em um dever-ser jurídico, já que vincula a atuação dos Poderes do Estado,
impondo-lhes uma atividade positiva.
No plano jurídico, âmbito que interessa ao feito, conforme salienta Ana Paula de
Barcelos, ao considerar especialmente a situação brasileira inaugurada com o advento da
Constituição de 1988, o princípio constitucional em apreço (dignidade da pessoa humana)
tornou-se o princípio estruturante, fundante da ordem jurídica e, bem assim, a finalidade

6
“O teor do discurso constitucional, ao deixar ambíguo, vago, ou mesmo apagado e esquecido o conteúdo
significativo da dignidade da pessoa humana, pretende conferir exatamente, pela sua própria índole, de uma
cruel e proposital espécie de desconsideração ao citado valor, permitindo, assim, como isto, não cumprir o seu
compromisso com tal valor que é deixado a vagar pelas malhas da rede constitucional como se fosse a expressão
‘Dignidade da Pessoa Humana, mera figura de retórica” (LÖWENTAL, Ana Maria Valiengo. Exame da
expressão ‘A Dignidade da Pessoa Humana’ sob o Ângulo de uma Semiótica Jurídica. In: Revista da
Universidade de Ibirapuera, vol. I, n. 3, p. 28) .

266
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

estatal mais precípua, assumindo para si todas as consequências advindas, inclusive, a


atividade da Hermenêutica que se impôs(õe) ao novo status conferido ao princípio, já que,
como assevera Moreira, a doutrina avança para uma teorização dos direitos fundamentais
enquanto princípios e valores, movendo-se no âmbito e na direção de “uma concepção de
Constituição evolutiva aberta à sociedade dos intérpretes” (MOREIRA, 2007, p. 191).7
Nesta esteira, há que se ter em mente sempre que a atividade reveladora do Direito
não é a de prescrever dispositivos, a exemplo da atividade legislativa, mas, outrossim, a de
interpretá-los8, pois como bem ensina Eduardo Bittar, o texto jurídico é o locus da
interpretação e é sempre a partir dele, e não da intenção do legislador, que parte o intérprete
jurídico na busca de alcançar o sentido da proposição jurídica (BITTAR, 2010, p. 239).
Desta feita, tem-se que o princípio da dignidade da pessoa humana e a sua realização
prática deve enformar, diga-se, dar forma, a todo o sistema constitucional que se declare
democrático para de uma banda garantir um mínimo9 digno de direitos aos indivíduos e, de
outra, assegurar o pluralismo político, elementos estruturais de qualquer Democracia.
Todavia, o que vem a ser essa dignidade?
Maria Celina Bodin de Moraes afirma ser a dignidade o elemento que distingue os
seres humanos dos outros seres vivos (MORAES, 2003, p. 112). Para ela, os homens detêm
uma substância única, uma qualidade própria comum unicamente à sua natureza de seres
humanos.
Em estudo como Professor Visitante da Universidade de Havard, em 2011, Luís
Roberto Barroso registrou que a dignidade da pessoa humana é uma realidade no mundo
ocidental, um consenso ético.
Segundo a lição de Barroso, a dignidade humana é um valor fundamental que se viu
convertido em princípio jurídico de estatura constitucional, seja por sua positivação em norma
expressa, seja por sua aceitação como um mandamento jurídico extraído do sistema
(BARROSO, 2011).
Entoando a superioridade do valor “dignidade” aos homens, também Kant, um dos
mais influentes filósofos do Iluminismo, citado por Moraes (2003, p. 115), chega a afirmar
que assim como “as coisas têm preço; as pessoas, dignidade”. Isso para refletir o dever de a

7
Sobre este assunto, conferir as lições de Peter Härbele.
8
Conforme ensina Isabel Moreira, “a força normativa da Constituição também repousa na obrigação da
interpretação mais conforme à Lei Fundamental” (op. cit., p. 224).
9
Diante da vagueza da locução “dignidade da pessoa humana”, o problema que vem se impondo na atualidade é
identificar qual é esse mínimo e quais efeitos concretos possui.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

legislação, a vigorar na sociedade, levar em consideração a realização desse valor carregado


pelo princípio da dignidade humana, como o seu mais relevante fim.
Neste particular, a Constituição Federal de 1988 normatizou, em seu artigo 1º, III, a
dignidade da pessoa humana como um dos “fundamentos da República”, delineando então a
tutela desse núcleo intangível, em detrimento dos valores civilistas-individualistas.
Desta feita, pode-se dizer, em consonância com a mais moderna doutrina, seguida
pela mais abalizada jurisprudência, que a dignidade da pessoa humana parece ser o vetor mais
poderoso, talvez o único, dentro do atual sistema constitucional, capaz de conceber a este uma
sistematização axiologicamente fundamentada, necessária à iminente superação do modelo de
Estado em vigor.
Segundo Junqueira de Azevedo (2002, p. 22), a consideração pelos pressupostos
materiais mínimos para o exercício da vida é preceito originado no imperativo categórico da
intangibilidade da vida humana, pressuposto do princípio jurídico da dignidade da pessoa
humana.
Então, pergunta-se: quais são esses pressupostos mínimos? Poderia-se dizer que são
os próprios direitos fundamentais plasmados na Constituição expressamente. Sim, porque se
alçados à categoria de direitos fundamentais pelo documento normativo supremo, são, de fato,
os componentes essenciais à existência de uma vida digna, pautada pela igualdade real.
Contudo, a obviedade da resposta esbarra na generalidade dos preceitos10, especialmente
daqueles que exigem uma prestação estatal, e nas dificuldades financeiras do Estado,
fundamento primeiro da teoria da reserva possível11.12
É, pois, a dignidade da pessoa humana que informa esse mínimo existencial,
conteúdo nuclear que viabiliza uma vida digna em consonância com os preceitos
constitucionais da contemporaneidade, alcançando o status de princípio jurídico13, expressão

10
Para Dimitri Dimoulis , trata-se do fenômeno da baixa densidade normativa, que torna difícil decidir qual das
partes envolvidas em um conflito está com a razão constitucional, já que interpretações conflitantes entre elas
são autorizadas por um texto constitucional extremamente genérico. (DIMOULIS, Dimitri. Arguição de
descumprimento de preceito fundamental. Problemas de concretização e limitação. Revista dos Tribunais, v.
832, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 13-16).
11
Por ser temática objeto de grandes controvérsias, impõe estudo autônomo, detalhado, pelo que se deixa de
adentrá-la.
12
O ideal é que esses conteúdos básicos da dignidade sejam universalizáveis, multiculturais, de modo a poderem
ser compartilhados e desejados por toda a família humana.
13
Segundo BARROSO, op. cit., p. 12: “Princípios são normas jurídicas com certa carga axiológica, que
consagram valores ou indicam fins a serem realizados, sem explicitar comportamentos específicos. Sua aplicação
poderá se dar por subsunção, mediante extração de uma regra concreta de seu enunciado abstrato, mas também
mediante ponderação, em caso de colisão com outras normas de igual hierarquia. Além disso, seu papel no
sistema jurídico difere do das regras, na medida em que eles se irradiam por outras normas, condicionando seu
sentido e alcance”.

268
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

de um dever-ser normativo e, por consequência, sindicável perante os Poderes estatais, pelo


que resvala nos princípios da liberdade e igualdade fática.
Tal entendimento que vem se disseminando por todo o mundo ocidental, compondo
as mais diversas Constituições e Tratados Internacionais, representa a passagem de um Estado
de Direito para um Estado Constitucional14 que tem por meta alcançar e fornecer, por meio de
estruturas jurídico-político-sociais, a plena satisfação de necessidades físicas, morais,
psíquicas e espirituais do ser humano, isto é, de um “minimum exigível socialmente, capaz,
por seus recursos, meios e técnicas, de alcançar justiça social” (BITTAR, 2010, p. 254),
igualdade material, de onde se infere a necessidade de observar incondicionalmente o
cumprimento dos deveres fundamentais por parte do Estado, responsável pelo bem-estar
social, agora pautado pelo discurso jurídico da dignidade da pessoa humana, elemento de
construção e aprimoramento de uma sociedade aberta e plural, o que impõe a preponderância
dos demais valores sociais e que estes, juntamente com a dignidade, estejam em permanente
processo de troca intersubjetiva.
Só assim, considerando a não soberania da superioridade da interpretação autêntica
proposta por Kelsen, mas, sim, permitindo o agir comunicativo de Habermas (através do
permanente processo de troca intersubjetiva entre os valores abrigados pela realidade
constitucional e, entre eles, a dignidade da pessoa humana) poder-se-á superar a ideia ainda
existente de Constituição apenas como mero documento formal, evidenciando-a como
documento real, ocasião em que poderá se considerar a superação do Estado de Direito em
direção a um Estado Constitucional, onde o princípio jurídico-mor da dignidade humana seja
embasamento à materialização dos direitos fundamentais, fim da Constituição, a partir do
cumprimento dos deveres fundamentais estatais, seja atuando positivamente ou se abstendo de
tal, mas vindo, em qualquer caso, em prol das necessidades dos excluídos, marginalizados, a
fim de lhes criar as condições ou lhes promovendo, ao menos, mínimas oportunidades para
que estes sejam (re)inseridos na sociedade.15

3 DEVER DE ATUAÇÃO DO ESTADO COMO DESDOBRAMENTO DA


DIGNIDADE PESSOA HUMANA

14
Não se fala aqui em uma nova forma de Estado, mas, sim, como faz Isabel Moreira, “de uma modalidade da
forma de Estado Democrático de Direito”. Não pretendendo, portanto, substituir as tarefas antigas, mas
complementá-las com novas, na busca por uma maior igualdade social. (MOREIRA, Isabel. A solução dos
Direitos. Coimbra: Almedina, 2007, p. 34).
15
Sobre este aspecto, diante da imposição e do crescimento de incumbências ao Estado, Isabel Moreira consigna
que o atual Estado deu lugar a um novo modelo que pode ser batizado de Estado “Pós-Social” (op. cit., p. 41).

269
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O catálogo de direitos fundamentais é demasiadamente extenso, conferindo aos seus


16
titulares um extenso rol de direitos, individuais e coletivos, e suas garantias.
Ao lado desse aparato de proteção à condição do indivíduo, enquanto homem e
cidadão, há, igualmente, a previsão de deveres jurídicos, de ordem individual e coletiva, tendo
em vista que os direitos antes referidos não se apresentam como meros “apelos ao legislador”,
“programas” ou “linhas de actuação política” (QUEIROZ, 2006, p. 65).
Neste particular, os direitos sociais, cuja concretização está afeita aos órgãos estatais,
exige uma atividade positiva do Estado, um dever, importando relevantes consequências
jurídicas, entre eles o dever de “reposição da igualdade” (MOREIRA, 2007, p. 236) e a
proibição do retrocesso social17.
Como se viu no tópico anterior, a dignidade da pessoa humana é princípio jurídico
que irradia efeitos sobre todo o ordenamento jurídico, impondo, assim, que todo ele, em sua
interpretação e aplicação, esteja pautado por um fundamento que confira aos seus
destinatários um mínimo de dignidade.
Ao tentar fixar limites a este mínimo, buscando compreender o que é e qual o seu
conteúdo, esbarra-se em dificuldades de ordem constitucional e institucional, dada a abertura
da expressão da cláusula de tutela, de onde emana a imposição de que seja a dignidade da
pessoa humana elemento de ponderação, além dos argumentos tangentes às dificuldades
orçamentárias e estruturais do Estado.
Todavia, não restam dúvidas de que cabe ao Estado-provedor implementar a
consecução dos direitos fundamentais expressamente arrolados na Constituição Federal de
1988, e, bem assim, aqueles implícitos que se extraem do corpo do texto constitucional, já que
dotados de eficácia plena e imediata. Esta é a questão chave diante do atual paradigma de
Estado.
Isabel Moreira, em suas lições, bem ensina que ao Estado cabe garantir a todos o
direito à educação, promovendo a cultura, a ciência, a educação física, o desporto, entre
outros (...), bem como assegurar o direito à saúde, à segurança social, à habitação, ao trabalho,
e ainda a proteção da infância, o desemprego, os idosos, etc, etc (MOREIRA, 2007, p. 36).

16
Para o professor LEONARDO MARTINS, o estudo detalhado da questão de quem são os titulares de
determinado direito é de crucial importância para a aplicação dos direitos fundamentais. Porém, como o cerne do
presente estudo não é os direitos fundamentais, ousa-se não se imiscuir nesta particularidade. (MARTINS,
Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 68-69).
17
Por esta teorização, uma vez consagradas legalmente as prestações sociais, o legislador não poderá depois
eliminá-las sem alternativas ou compensações, o que impõe, segundo Queiroz, “a acção do Estado, num ‘dever
de legislar’” (op. cit., p. 70). É tese da irreversibilidade dos direitos fundamentais.

270
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Desta forma, estará o Estado cumprindo o seu dever de atuação, a sua função social, ao criar
igualdade de oportunidades de fato, garantindo a todos a liberdade fundamental.
Não se pode descurar, a bem da verdade, que a respectiva implementação é objeto de
políticas de conformação legislativa, de modo que têm a sua materialização comprometida
ante a não atuação do Poder Legislativo. Ressalve-se, por oportuno, ainda, a significativa
atuação do Poder Judiciário nos casos de omissão ou insuficiente realização.
O modelo de ordenamento que vem avançando reclama um balanceamento de
valores, impondo o “alargamento da justiça política e o reconhecimento de um princípio de
interpretação activista por parte do juiz” (MOREIRA, 2007, p. 209), e o entendimento de que
os preceitos constitucionais são mandamentos que obrigam o legislador a prosseguir em sua
tarefa com equilíbrio, proporção e justiça, sob pena de serem “fórmula vácua de conteúdo”
(MOREIRA, 2007, p. 211), daí a relevância da atuação dos Poderes Judiciário e Legislativo.
De modo geral, por ser a realização desses direitos essenciais uma imposição do
princípio da dignidade humana, pois que conferem um mínimo de dignidade à vida dos que
avidamente dele necessitam, representam obrigação jurídica a cargo do Estado, impondo
limite e parâmetro à sua atuação, não obstante as suas dificuldades de ordem institucional
(financeira e estrutural), uma vez que é função do Estado promover a igualdade substancial,
mediante a satisfação generalizada das necessidades básicas, permitindo aos cidadãos um
mínimo vital.18
Contudo, a doutrina jurídica muito pouco se debruça acerca dessa questão de crucial
relevância, qual seja, a dimensão positiva do dever de atuação do Estado, que aponta o tipo e
o nível de relação existente entre o ente estatal e os indivíduos/sociedade.
Por outro lado, todos são sabedores da “inflação de direitos” a que, cotidianamente, a
sociedade é submetida. São direitos de toda a espécie. Direitos estes que, assustadoramente,
padecem de efetivação, principalmente, no que atine aos direitos sociais. Esta problemática é,
por sua vez, tratada rotineiramente pelos operadores e estudiosos do Direito, resvalando
sempre no fosso que é a discrepância entre a realidade e o texto constitucionais. Inúmeros
estudos advindos dos mais célebres constitucionalistas versam sobre a questão da ineficácia
dos direitos fundamentais, com maior enfoque aos de 2ª geração (direitos econômicos, sociais
e culturais).
Mas, e o dever fundamental estatal de tutela? Existe um equilíbrio na consideração
entre os direitos e deveres fundamentais?

18
Este dilema acerca dos argumentos fazendários e constitucionais diante da dicotomia reserva do possível x
mínimo existencial merece análise mais acurada em estudo autônomo, o qual não se propõe no presente artigo.

271
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Nesta esteira, o Professor Leonardo Martins enfatiza que há um fortíssimo


desequilíbrio doutrinário. E lança a questão que incita o presente estudo, excetuando a
realidade alemã: Porque a doutrina não se interessa pelos deveres fundamentais? Ao que
diretamente trata de responder: deve-se à hostilidade de muitos autores quanto ao caráter anti-
liberal dos deveres fundamentais, bem como à sua limitada relevância nas Constituições de
inspiração liberal. (MARTINS; DIMOULIS, 2012, p. 59).
De fato, a temática “deveres fundamentais” tem sido relegada a plano secundário,
enquanto todos os holofotes se ocupam em apresentar os brilhantes espetáculos
protagonizados pelos mais diversos direitos fundamentais e suas teorias. É o que Gomes
Canotilho (2005, p. 80) denomina de “excessiva enfatização”. Afinal, é politicamente mais
interessante conceder direitos que tratar da (in)suscetível concretização.
José Casalta Nabais (2004, p. 15) chega a se referir ao tema “deveres fundamentais”
como um daqueles que a doutrina contemporânea mais se esqueceu de tratar. Acompanhado
por Ingo Sarlet que, por sua vez, aponta o quase inexistente desenvolvimento jurisprudencial e
doutrinário acerca do tema no constitucionalismo brasileiro. Daí o motivo que enseja a
pesquisa e a torna relevante ao panorama jurídico-constitucional hodierno, onde se assiste
corriqueiramente à avassaladora avalanche de direitos reiteradamente desrespeitados e não-
implementados pela não atuação do Estado que se furta do cumprimento de suas obrigações,
impostas pela Constituição-tarefa.
A dignidade da pessoa humana enquanto princípio jurídico irradiador de
consequências jurídicas, impõe aos indivíduos que imprimam os ditames da dignidade em
seus comportamentos nas relações com os outros indivíduos, para com a sociedade como um
todo e, também, para consigo mesmo.
Relativamente ao Estado, como salienta Jorge Reis Novais (2011, p. 52), a exigência
moral de respeito pelos ditames de uma vida digna é, igualmente, critério de valoração da
legitimidade de sua atuação e, bem assim, fundamento apto a invalidar qualquer ato que
contrarie tais ditames, emanados de qualquer um dos poderes do Estado que promova a
violação.
Assim, em tendo a Constituição de 1988 elevado o princípio da dignidade humana a
fundamento da República, obrigou o Estado a conformar toda a sua ordem jurídica neste
sentido, vinculando seus Poderes a atuarem em conformidade com os preceitos emanados
deste princípio jurídico, fundamento estruturante da República brasileira.
Por assim ser, cabe ao Estado dispor de mecanismos de prevenção, proteção e
promoção da dignidade da pessoa humana em face de desafortunadas intervenções que

272
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

tendam a desafiá-lo, em razão de que ao projetá-la como fundamento republicano, afasta o


Estado da ideia de que possui um fim em si mesmo, aproximando-o da ideia de que é a pessoa
que é fim em si mesmo (NOVAIS, 2011, p. 52), de que existe para servir as pessoas e torna-
las iguais. Iguais, diga-se de passagem, não apenas perante a lei, mas, sim, e principalmente,
entre elas mesmas, iguais em chances.
Percebe-se que a Constituinte, no Capítulo I (Direitos e Deveres Individuais e
Coletivos) do Título II (Direitos e Garantias Fundamentais), ocupou-se de trazer
expressamente deveres fundamentais, devendo-se somar a estes, ainda, outras passagens que
se encontram esparsas no texto além daqueles deveres implicitamente extraídos.
Já fora mencionado antes que é inimaginável passar pelo estágio evolutivo de um
Estado Democrático de Direito, propugnando-se apenas direitos e desconsiderando os
deveres. Tanto assim o é que o legislador constituinte optou por inseri-los no mesmo capítulo,
unindo-os sistematicamente. Aos indivíduos portadores de direitos, também são atribuídos
deveres para com os outros, para com a sociedade e consigo mesmo.
Nesta oportunidade, interessam os deveres atinentes à atividade do Estado, enquanto
Estado-provedor-interventor, em prol da realização do princípio-vetor da dignidade, através
da sua obrigação de respeitar aquilo que se oferece pela Constituição, cumprindo-a, sem,
contudo, afetar desnecessária ou desproporcionalmente a autonomia individual. Do contrário,
vivenciar-se-ia um retrocesso inaceitável, essencialmente porque a liberdade, ao lado da
igualdade e da solidariedade social, são desdobramentos da dignidade da pessoa humana.
Direitos e deveres fundamentais possuem uma forte relação de imbricação, de modo
que a materialização dos direitos fundamentais sociais, por exemplo, depende diretamente do
cumprimento do dever de atuação positiva do Estado.19 De outro modo, registre-se o dever
correlato ao direito de um mesmo indivíduo, a exemplo do direito ao meio ambiente saudável
correlato ao dever de preservação do meio ambiente, modalidade que não é objeto do estudo
vertente, ocupado com a modalidade dever fundamental de atuação do Estado quanto ao
cumprimento dos direitos fundamentais.
Desta feita, impõe para que se tenha um sistema constitucional uno e efetivo que o
Estado assuma para si as responsabilidades que lhe são atinentes, entre elas o dever estatal de
tutela, entendido no seu sentido mais amplo, não restrito aos que se encontram na
Constituição, mas também os supralegais e legais.

19
Há de se ressalvar que à existência de um direito nem sempre corresponde a existência de um dever, salvo se a
intenção for dizer que ao direito de um implica o dever de reconhecimento e respeito do outro.

273
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Martins e Dimitri consignam que o dever estatal de tutela refere-se ao dever do


Estado de proteger ativamente o direito fundamental contra ameaças de violação
provenientes, sobretudo, de particulares.
E quem protege o direito fundamental contra a violação e/ou omissão proveniente do
próprio Estado? O que legitima esse dever estatal de atuação?
Após todo o delineado, fica fácil inferir: a dignidade da pessoa humana.
Segundo a Grundgesetz,20 o Estado é obrigado a observar e a proteger a dignidade da
pessoa humana, concepção da dogmática do efeito horizontal que deve ser levada a efeito pelo
constitucionalismo brasileiro.
A teor do que antes fora esposado, a dignidade é fundamento da República brasileira
e vincula o Estado a lhe dar espaço, pelo que a cada direito fundamental previsto ao
indivíduo, há um dever fundamental que obriga o ente estatal a atuar positiva ou
negativamente, observando, protegendo e/ou cumprindo o preceito constitucional.
Deste modo, não cabe ao Estado apenas se abster de comportamentos lesivos, ou
seja, de não intervir nas esferas individuais protegidas, e proteger ativamente os direitos
fundamentais em face de possíveis inobservâncias por particulares, como ensina Martins
(2012, p. 114). Cabe-lhe mais. Cabe-lhe o dever jurídico de dar efetivo cumprimento aos
preceitos constitucionais traduzidos pelos direitos fundamentais, fins constitucionais. São os
deveres de prestação do Estado, pelos quais se põe em prática serviços e políticas públicas
para a concretização desses direitos que legitimam todo o sistema constitucional. E tal não o é
apenas para se desincumbir de um ônus, mas, sim, porque “dele depende o desenvolvimento e
o progresso da pátria” (ÁVILA, 1967, p. 159).
Caso contrário, a quem cabe realizar o extenso rol de direitos fundamentais
desrespeitados e não implementados, mas fartamente encontrados na Constituição? Se não se
buscar conferir juridicidade ao dever de atuação do Estado, não obstante que o seja mediante
a via judicial, estes tais direitos que conferem ao Estado Brasileiro o caráter Democrático, não
passaram de figuras ornamentais, ilusórias, servientes aos grupos de poder, em detrimento das
massas, reiteradamente enganadas, iludidas, esquecidas, mola propulsora da crise institucional
vivenciada.
Isto porque a concepção moderna do Direito não preenche mais as expectativas da
sociedade, impondo-se pelas novas necessidades da pós-modernidade uma concepção

20
Lei Fundamental alemã (art. 1, I, 2, GG). Saliente-se que a dogmática do dever estatal de tutela foi
desenvolvida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, doutrina essa ainda não completamente
sistematizada.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

funcional, em que as interpretações jurídicas sejam feitas com o escopo de assegurar eficácia
concretiva aos comandos normativos à luz da dignidade humana, como forma de se realizar
valores intrínsecos à manutenção do Estado como a igualdade (material) e a liberdade.
Por esta razão é que pôr a dignidade da pessoa humana efetivamente no cume do
sistema constitucional se impõe, pois que ela carrea toda a carga de demandas pela realização
da Justiça, fim primeiro colimado pelo Direito. No que diz respeito ao dever de atuação estatal
em prol da sociedade e dos indivíduos, serve a dignidade humana como elemento unificador
do sistema e, bem assim, como “uma grande referência no sentido da necessidade de proteção
dos valores fundamentais constitucionais conquistados pela humanidade” (BITTAR, 2010, p.
261), ocasião em que se promove e densifica a otimização do sistema constitucional, dando-
lhe maior efetividade e evitando que o Estado se utilize de seus direitos e deveres como
instrumentos de manipulação de muitos, no interesse de poucos.
Urge cobrar o respeito ao pacto inicial, fazendo cumprir as cláusulas sociais
indispensáveis à dignidade humana e à sobrevivência, em prol da proclamada igualdade
substancial.

4 CONCLUSÃO

As teorias dos direitos fundamentais e seus mais espetaculares compêndios


praticamente anularam, num processo contínuo, diga-se de passagem, a categoria dos deveres
fundamentais, provavelmente impulsionadas por uma retaliação ao período em que apenas
estes figuravam no cenário sócio-jurídico.
Todavia, na ordem constitucional hodierna, impõe-se o imediato reconhecimento da
simbiose permanente e necessária entre essas duas vertentes do Direito, os direitos e os
deveres, sejam eles dos cidadãos, dos homens públicos ou do Estado.
No breve estudo elaborado neste, não obstante a escassa doutrina a respeito, sem
descurar de sua imensidão a explorar, analisou-se uma espécie do gênero deveres
fundamentais, qual seja o dever de atuação estatal, pelo qual o Estado-provedor encontra-se
obrigado pelas circunstâncias sociais, políticas e jurídicas, a dar cumprimento e efetividade
aos dispositivos constitucionais, essencialmente porque eles são desdobramentos do primado
da dignidade da pessoa humana, princípio jurídico maior que informa toda a ordem
constitucional, e disso depende a manutenção do sistema constitucional vivo e complacente
com as demandas sociais.

275
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

É, pois, o que a pós-modernidade e os avanços do Direito em direção a um Estado


Constitucional reclama para que se possa preencher as lacunas deixadas pelas teorias dos
direitos fundamentais: que sejam sopesados os direitos em face dos deveres e vice-versa, que
estas duas realidades sejam postas em relação de interdependência, e que os cidadãos
conscientizem-se dos deveres e da necessidade de cobro de sua observância, do que estar a
depender muitos dos problemas enfrentados pela ordem constitucional, entre eles, a afamada
discrepância entre o texto e a realidade constitucionais.
Esta perspectiva se torna muito mais relevante quando o que se põe em xeque são os
direitos e deveres fundamentais, onde se tem o Estado como sujeito passivo, obrigado a atuar
positivamente. Isto porque o acesso efetivo àqueles dependem direta e umbilicalmente do
cumprimento destes. Logo, se há deficiência no final da cadeia, ocasião da consecução dos
direitos em atendimento aos deveres, dada a negligência do ente estatal, resta completamente
comprometido o sistema constitucional.
Sabe-se que o sistema constitucional sobrevive de dois elementos basilares, quais
sejam, a sua unidade e efetividade, sem os quais todo o sentido de sistema democrático de
direito se esvai, em vista de que nada representa o mais extenso rol de direitos fundamentais
compendiados e outorgados a destinatários identificados ou identificáveis, se não se alcança o
mínimo de materialização.
Viu-se que o referido mínimo sofre por ausência de determinação concreta, já que a
doutrina esbarra em obstáculos de ordem constitucional e institucional ao tentar fixar limites
ao seu conteúdo.
Porém, ante a vivência da superação do Estado Democrático de Direito em prol de
um Estado Constitucional, emerge a dignidade da pessoa humana como a luz no fim túnel. É a
dignidade humana que, saindo de sua abstração, como alegam os retrógrados, impõe
parâmetros à atuação estatal, definindo, por seus ditames, o que vem a ser um mínimo digno
diante do caso concreto.
Por fim, ante o convencimento da importância de se elevar a teoria dos deveres
fundamentais, especialmente dos deveres de atuação do Estado, ao patamar em que se coloca
a teoria dos direitos fundamentais, conclama-se os cidadãos a assumir uma postura ativa, a
exigir o cumprimento daquilo que lhe fora conferido como direito subjetivo, fundamental,
daquele que tem a obrigação, o dever de o fazer, o Estado, controlando-os. Esta contribuição é
fundamental.
Unicamente desta forma, em consonância com as constantes mutações sociais e
imposições da pós-modernidade, a busca pela sonhada e desejada igualdade material,

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

encontrará um ambiente social, político e jurídico fértil, onde germinarão direitos atrelados ao
dever cumpridor do Estado, oportunidade na qual o sistema constitucional, renovado,
triunfará uno e efetivo, apto a ser realizado, pautado por preceitos que não serão, o que
Lassale há muito já propunha, mera folha de papel.

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contemporâneo: natureza jurídica, conteúdos mínimos e critérios de aplicação. Interesse
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278
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

FEDERALISMO E PODER JUDICIÁRIO: A ATUAÇÃO DO STF NAS


DISPUTAS FEDERATIVAS
FEDERALISM AND JUDICIARY: THE ROLE OF BRAZILIAN SUPREME
COURT IN FEDERAL DISPUTES

Fernando Santos de Camargo (Mestrado – UFPR)

RESUMO
O controle concentrado e abstrato de constitucionalidade brasileiro tornou o Supremo
Tribunal Federal peça chave na análise dos conflitos federativos, uma vez que o exercício
dessa atribuição permite a Corte decidir sobre os limites das competências das entidades
federativas fixadas na Constituição. Por conseguinte, as decisões do Supremo nesses casos
culminam na “centralização” ou na “descentralização” da federação. Este artigo pretende,
pois, investigar se as decisões da corte constitucional brasileira têm tomado alguma direção
clara e, a partir dos resultados alcançados, discutir alguns pontos sobre como pode ser
investigado o papel do judiciário na federação. Antes, contudo, apresenta brevemente como
tem sido abordada, em parte da literatura, a relação entre judiciário e federalismo.
PALAVRAS-CHAVE: Federalismo; Controle de constitucionalidade; Poder Judiciário.

ABSTRACT
Brazilian judicial review turned the Supreme Court into a key figure in the analysis of federal
conflicts to the extent that this assignment allows the court to decide on the limits of the
federal entities’ powers constitutionally established. Thus, the Supreme Court’s verdicts
culminate in "centralization" or "decentralization" of the federation. This article aims,
therefore, to investigate whether the decisions of the constitutional court in Brazil have taken
some clear direction and, from the results, to discuss some points on how the role of the
judiciary could be investigate. Before, however, it presents briefly how the relationship
between the judiciary and federalism, in part of the literature, has been addressed.
KEYWORDS: federalism; judicial review; judiciary.

1 Introdução
Nas federações a existência de pelo menos dois níveis de governo com atribuições
definidas constitucionalmente em uma relação não hierárquica levanta a questão sobre quem
será o árbitro quando ocorrer disputas sobre a jurisdição. Na primeira federação moderna, a

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

norte-americana, esse papel foi atribuído ao judiciário, a quem coube interpretar a


Constituição e, por consequência, decidir sobre os limites de atuação de cada ente federativo.
O modelo, de um modo geral, foi empregado na maioria dos sistemas federativos, nos quais a
importância da supremacia constitucional gerou uma forte demanda para a instituição de um
órgão independente para salvaguardá-la. No Brasil, o controle concentrado e abstrato de
constitucionalidade tornou o Supremo Tribunal Federal peça chave na análise dos conflitos
federativos, uma vez que o exercício dessa atribuição permite a Corte decidir sobre os limites
das competências das entidades federativas fixadas na Constituição. Por conseguinte, as
decisões do Supremo nesses casos culminam na “centralização” ou na “descentralização” da
federação.
Este artigo pretende, pois, investigar se as decisões da corte constitucional brasileira
têm tomado alguma direção clara e, a partir dos resultados alcançados, discutir alguns pontos
sobre como pode ser investigado o papel do judiciário na federação. Nessa linha, o texto dá
seguimento ao estudo pioneiro de Oliveira (2009) sobre o Poder Judiciário como árbitro da
federação brasileira, mas rediscute alguns dos seus pressupostos e amplia o foco de análise.
Antes, contudo, apresenta brevemente como tem sido abordada, em parte da literatura, a
relação entre judiciário e federalismo.
Para tanto, o texto foi divido em três partes. A primeira parte é dedicada à revisão
bibliográfica sobre o papel do judiciário nas federações. A segunda, por sua vez, apresenta o
estudo empírico realizado sobre influência do Supremo Tribunal Federal no federalismo
brasileiro com base nas Ações Direta de Inconstitucionalidade que envolveram disputas
federativas entre 1988 e 2012. A terceira expõe e discute algumas questões a respeito da
investigação sobre a influência das altas cortes federais e, em um sentido geral, de todo
judiciário, nos arranjos federativos.

2 Judiciário e federalismo
Já nos Artigos Federalistas o reconhecimento da importância do judiciário no arranjo
institucional inaugurado pela constituição está entre os motivos que justificaram a sua
formação como ramo independente de poder. Na mesma linha, nas federações atuais, a
essencialidade da preservação do texto constitucional - e, por consequência, da distribuição do
poder entre os entes federativos - surge como uma das razões para a criação de um órgão
independente como árbitro para os eventuais conflitos que surjam entre as suas unidades
componentes.

280
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Nesse contexto, as seções seguintes abordam tanto os argumentos normativos que


fundamentam a adoção de uma corte suprema nas federações quanto os estudos empíricos que
demonstram a força dessa correlação. A primeira examina o papel atribuído ao judiciário nos
Artigos Federalistas, que fundaram as bases da primeira federação moderna. A segunda seção
expõe, brevemente, a crítica de Halberstam (2008) aos argumentos contrários à adoção de um
árbitro judicial para conflitos federativos. Em seguida, apresentam-se alguns dados da
abrangente pesquisa de Watts (2008) sobre a posição do judiciário em diversas federações.
Nas duas seções seguintes, examina-se a abordagem dessa relação em dois trabalhos atuais
sobre instituições políticas: Tsebelis (2009) e Lijphart (2003), respectivamente. Enquanto no
estudo comparativo do segundo os dados denunciam uma relação entre federalismo,
Constituição e controle de constitucionalidade, a teoria do primeiro explica a associação entre
federalismo e judiciário independente.

2.1 O judiciário nos Artigos Federalistas


Dentre os artigos federalistas, seis se dedicam exclusivamente a temas do poder
judiciário (Artigos nos 78, 79, 80, 81, 82 e 83), como a organização e a competência das cortes
federais, a relação entre os tribunais estaduais e federais e a composição da Suprema Corte.
Escritos por Hamilton, esses textos procuram demonstrar a importância do papel do judiciário
como ramo independente de poder e a sua utilidade essencial na preservação do texto
constitucional, que, como expressão da vontade popular, deveria ser encarado como
autoridade superior a todos os ramos do poder. Apresento, nesta seção, algumas das ideias
centrais debatidas nos cinco primeiros artigos, uma vez que o último aborda uma questão
específica – o tribunal do júri - que escapa aos objetivos deste texto.
O título do Artigo no. 78 já enuncia a característica fundamental do sistema jurídico
federal inaugurado: “Os Juízes como Guardiões da Constituição”. A atribuição da capacidade
de interpretar a Constituição aos tribunais prenuncia o mecanismo de controle de
constitucionalidade, operacionalizado somente anos depois no caso Marbury versus Madison
(1803), em que o controle de constitucionalidade (judicial review) da legislação foi
compreendido como consequência lógica da supremacia da Constituição - argumento que,
como se verá, já se encontrava em Hamilton.
Para Hamilton, a atividade desempenhada pelo judiciário deveria ser dirigida a
preservar as determinações da autoridade delegante (o povo) frente os atos da autoridade
delegada (legislativo). Assim, contrariamente ao advogado pelos adversários da atribuição
dessa capacidade aos juízes, a possibilidade de invalidar atos legislativos não tornaria o

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

judiciário superior aos demais ramos do poder. Os juízes seriam apenas intermediários entre o
povo e o legislativo, que deveria ser mantido dentro dos limites fixados constitucionalmente,
ou seja, os magistrados protogeriam o povo contra uma possível usurpação perpetrada pelo
legislativo. Na verdade, Hamilton considerava o judiciário o ramo mais fraco entre os poderes
por não ter participação na força e na riqueza nem a capacidade de tomar resoluções e
depender inclusive do executivo para fazer valer seus julgamentos (HAMILTON in
HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 464). Por isso, seriam necessárias medidas
suplementares para assegurar independência nos exercícios de suas funções. O autor então
sugere garantias de estabilidade funcional e de não redução da remuneração (HAMILTON in
HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 468).
A estabilidade dos cargos judiciais se apresenta como dispositivo assecuratório de
independência na medida em que nomeações periódicas, sejam elas promovidas pelo
executivo, pelo legislativo ou pelo próprio povo, sujeitam os juízes às preferências e à
influência das autoridades responsáveis pela escolha, se considerarmos ser interesse do
magistrado a recondução ao cargo. Do mesmo modo, a garantia da não redução da
remuneração reforça a imunidade judicial frente às influências externas por eliminar a
possibilidade de os demais poderes interferirem na subsistência dos magistrados como forma
de pressão (HAMILTON in HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 468-470). Para a
garantia do magistrado e, ao mesmo tempo, proteção do judiciário contra a má prática dos
juízes, as hipóteses de suspensão e destituição foram estabelecidas no próprio texto
constitucional e submetidas a controle pelo poder legislativo (HAMILTON in HAMILTON;
MADISON; JAY, 2003, p. 470).
Outra relação entre legislativo e judiciário é debatida no Artigo n o. 81. Nele,
pretende-se fundamentar a existência de uma corte suprema como órgão independente do
poder legislativo. O alvo de Hamilton é a ideia de que a capacidade de a Suprema Corte dizer
a última palavra sobre a constitucionalidade das leis a tornaria superior ao legislativo, que
estaria impossibilitado de sobrestar a medida. O poder de interpretar as leis de acordo com a
Constituição é encarado, nessas objeções, como habilitação para o exercício arbitrário das
funções judiciais. Como visto, essas questões já foram parcialmente enfrentadas no Artigo n o.
78, quando se atribuiu aos juízes a tarefa de proteger a Constituição e, portanto, de invalidar
leis incompatíveis com o texto constitucional. A resposta havia sido que o judiciário era o
órgão intermediário entre o povo e o legislativo. Nesse momento, no entanto, a objeção é mais
séria, pois se trata de defender que o judiciário – no caso, a Suprema Corte – também será a
instância final da decisão sobre a constitucionalidade. No Artigo no. 81, Hamilton procura dar

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

maior sistematicidade ao seu raciocínio. A sua defesa encontra-se apoiada, essencialmente,


em três argumentos:
1) Em primeiro lugar, aceita a ideia de Constituição limitada, a decorrência lógica é
que o padrão para a interpretação das leis será o texto constitucional. Quando essa tarefa é
atribuída a um órgão integrante de um dos ramos do legislativo, a disposição para ajustar ou
modificar a aplicação de uma lei é minada, na medida em que o próprio órgão também
participou da elaboração do dispositivo legal contestado. Além disso, a composição da última
instância por membros do legislativo provocaria um estranho arranjo institucional no qual a
primeira instância seria formada por juízes permanentes (e, portanto, com maiores garantias
de imparcialidade) e a última instância seria um órgão de composição provisório e imutável,
sujeito a interesses partidários e circunstanciais (HAMILTON in HAMILTON;MADISON;
JAY, 2003, p. 481-482).
2) Em segundo lugar, a ratificação das decisões defeituosas pode ocorrer não
somente nos locais em que a última palavra sobre a constitucionalidade cabe ao Legislativo,
mas também em locais em que esse poder é exercido por um órgão desvinculado da atividade
legislativa. Nesse sentido, é necessário notar que mesmo na primeira hipótese o Legislativo
deve respeitar as decisões judiciais na medida em que seus atos legislativos só incidirão sobre
casos futuros (HAMILTON in HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 483).
3) Por fim, o risco de usurpação pelo poder judiciário da função legislativa é
superestimado, pois, segundo o autor, “Interpretações equivocadas e violações da vontade do
legislador podem eventualmente ocorrer, mas não serão extensas o bastante para gerar
grandes inconvenientes, ou em grau suficiente para afetar a ordem do sistema político”
(HAMILTON in HAMILTON; MADISON; JAY, 2003, p. 484, em tradução livre).
No Artigo no. 80, Hamilton fundamenta a competência dos tribunais federais. Entre
as atribuições, inclui as disputas entre os estados-membros, as quais certamente não poderiam
ser julgadas de modo imparcial pelas justiças estaduais. Não trata, no entanto, da competência
da Suprema Corte, que atualmente, por lei, detém competências originárias e recursais,
obrigatórias e facultativas, em uma série de disputas federativas (cf. CARVALHO, 2007, p.
168). A competência residual dos tribunais estaduais, por fim, é defendida no Artigo no. 82.
A Constituição norte-americana, no entanto, restringiu-se a estabelecer, além de uma
competência originária mínima, o método de escolha e nomeação, a garantia de vitaliciedade
dos membros da Suprema Corte, a possibilidade de renúncia e o procedimento para a
destituição do cargo. Os demais aspectos, como a qualificação e o número de juízes, são
determinados por lei.

283
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Assim, o cuidado no tratamento da organização e da instituição do poder judiciário


como órgão independente e imparcial no desempenho de suas atribuições, bem como o
destacado papel lhe atribuído na defesa da Constituição demonstram a importância
fundamental desse poder na estrutura federal, segundo os Artigos. Na próxima seção,
expõem-se a crítica de Halberstam (2008) aos argumentos que sustentam a ineficiência do
árbitro judicial como instituição apta à proteção do federalismo.

2.2 A possibilidade de alternativas ao árbitro judicial em Halberstam (2008)


A preocupação em estabelecer tribunais federais como órgãos imparciais nos
conflitos federativos nos Artigos Federalistas fortalece a compreensão das cortes como
essenciais na preservação do federalismo. A suspeita de parcialidade na resolução de conflitos
federativos, assim, pode colocar em dúvida o papel das cortes nessas disputas. Bzdera (1993),
por exemplo, demonstra o caráter nacionalista e centralizador das altas cortes federais,
característica que, segundo o autor, pode ser atribuída em grande parte ao modo de indicação
dos juízes. Desse modo, a constatação parece alimentar o sentimento de que a proteção do
federalismo não deve ser uma atribuição das instituições judiciais centrais. Contra esse senso,
Halberstam (2008) enumera e critica três visões defensoras da tese de que o judiciário não
deve ser o árbitro das disputas federativas.
Uma primeira visão parte justamente da ideia de que o judiciário federal favorece,
naturalmente, as instituições centrais. As outras duas posições, no entanto, partem de
considerações normativas sobre qual instituição deve salvaguardar a federação: enquanto uma
advoga a possibilidade e a necessidade de que a proteção da federação seja promovida pela
política e não pelo direito, a outra argumenta que "o Judiciário é, em qualquer hipótese,
incapaz de realizar qualquer investigação eficaz para averiguar se o equilíbrio do federalismo
foi violado" (HALBERSTAM, 2008, p. 2).
A primeira crítica de Halberstam é dirigida ao argumento de que a proteção do
federalismo deve ser atribuição da política e não do direito. Segundo o autor, esse argumento
ampara-se na ideia de que as estruturas políticas são suficientes para proteger a autonomia
estadual (HALBERSTAM, 2008, p. 2-3). Todavia, constata-se que mesmo nos sistemas
federativos verticais, como a Alemanha e Áustria, nos quais uma alta corte judicial federal
seria, em tese, menos imprescindível, deliberadamente optam pela sua instituição. Nesses
sistemas a ação do governo central sobre as unidades constituintes é ampla, mas o processo
decisório e os poderes fiscais estão entrelaçados. Por conseguinte, o governo central necessita
da cooperação das unidades constituintes para implantar suas políticas e aplicar a lei federal.

284
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Em tal sistema os interesses dos governos estaduais gozam de maior proteção


(HALBERSTAM; HILLS, 2001) comparativamente aos sistemas federativos horizontais,
como o norte-americano e o canadense, no qual “governo central e unidades constituintes são
organizações políticas independentes um ao lado da outra”, cada qual com “uma base
democrática independente e uma base fiscal independente, assim como a capacidade de
formular, de executar e de adjudicar suas próprias políticas" (HALBERSTAM, 2008, p. 3, em
tradução livre). Nos sistemas horizontais a coordenação vertical é operada, portanto, por
mecanismos informais, dependentes das condições políticas circunstanciais (HALBERSTAM,
2008, p. 4), o que torna o controle de constitucionalidade judicial ainda mais necessário. De
fato, como demonstra Halberstam (2008, p. 4, em tradução livre), a única exceção é a Suíça,
onde “uma tradição excepcionalmente forte de referendo popular levou à rejeição consistente
do controle de constitucionalidade”. Nos demais sistemas federativos, verticais ou horizontais,
as salvaguardas políticas são encaradas como proteção insuficiente ao federalismo.
A segunda crítica opõe-se à tese de que há uma tendência natural das supremas
cortes favorecerem as instituições centrais. Como já afirmado, Bzdera (1993) identifica essa
tendência em diversas federações, como a norte-americana, canadense e alemã; no Brasil,
Oliveira (2008) constata uma menor disposição do Supremo Tribunal Federal na solução de
disputas federativas propostas por atores estaduais. Nesse sentido, muitos estudiosos
sustentam "que judiciário central não é independente suficiente para servir como um árbitro
do federalismo"(HALBERSTAM, 2008, p. 4). Entre as razões alegadas estão a decisão do
governo central na criação, na manutenção e na composição desses tribunais e o interesse da
corte central em expandir sua jurisdição e manter seu suporte lógico e fiscal
(HALBERSTAM, 2008, p. 5). Entretanto, Halberstam demonstra, com base nos exemplos
norte-americano e canadense, que, de fato, pode haver uma tendência centralizadora no
exercício da jurisdição central, mas ela não se mantém por períodos prolongados.
Portanto, se no início a inclinação em favor da centralização pode ter em vista a
manutenção da União, na federação madura a resistência às investidas do governo federal
servem à sua manutenção como sistema federativo (HALBERSTAM, 2008, p. 8). O
federalismo, na verdade, “não é um estado final, mas um processo” (HALBERSTAM, 2008,
p. 6) e, embora flexível, o compromisso de divisão de poderes deve persistir. As cortes são,
nesse sentido, razoavelmente neutras. Portanto, para o autor, a tese de que a corte central se
inclina, invariavelmente, à ampliação dos poderes do governo federal superestima o controle
deste sobre aquela ao concebê-la como um agente federal e desconsidera a grande variedade

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de incentivos baseados nas preferências pessoais, na ética profissional e no ambiente


profissional (HALBERSTAM, 2008, p. 8).
Por fim, contra o argumento de que as cortes centrais são incapazes de dirimir
conflitos federativos, Halberstam (2008, p. 8) sustenta que, quando as regras federativas são
suficientemente claras, as cortes servem sim como árbitros. O autor defende, todavia, que a
melhor compreensão do princípio da subsidiariedade, inerente ao federalismo, pode contribuir
no desempenho desse papel, na medida em que clarifica as justificativas na tomada de
decisão. Assim, distingue subsidiariedade instrumental e subsidiariedade substantiva.
Enquanto a primeira "procura determinar qual nível de governo é mais adequado para atingir
determinado objetivo", a segunda "busca determinar qual nível de governo é o mais adequado
para determinar se um objetivo particular pode ser considerado um objetivo político"
(HALBERSTAM, 2008, p. 9-10). Portanto, é possível que um nível de governo seja
considerado apto a determinar qual ação deverá ser implementada, mas que outro seja
competente para executá-la.
Halberstam evidencia, desse modo, que as cortes centrais podem ser instituições úteis
ao federalismo. A próxima seção demonstra que a análise comparada reforça essa percepção.

2.3 Federalismo comparado: judiciário e sistemas federativos em Watts (2008)


Em estudo comparativo abrangendo quase trinta federações (incluindo situações
híbridas de federação-confederação, como a União Europeia, e experimentos federais pós-
conflitos, como o Iraque a partir de 2005), Ronald Watts destina um capítulo ao tema da
supremacia constitucional nas federações, considerada “pré-requisito para uma efetiva
operação da federação” (WATTS, 2008, p. 157, em tradução livre). A existência de “uma
constituição suprema escrita não modificável unilateralmente e que requer o consentimento
para emendas de uma proporção significante das unidades constituintes” (WATTS, 2008, p. 9,
em tradução livre) é enumerada por Watts como uma das características dos estados federais,
ao lado da repartição de poderes legislativos e administrativos entre os níveis de governo. O
não reconhecimento da supremacia constitucional comprometeria, desse modo, o desenho
institucional federal por não estabelecer obstáculos robustos a avanços de uma ordem de
governo sobre a outra (WATTS, 2008, p. 157).
O respeito ao texto constitucional e, consequentemente, à distribuição de
competências nele encerradas, seria assegurada por outro aspecto dos estados federais: a
presença de um árbitro para dirimir as disputas entre os entes federados. Para o autor, elas
podem ser de quatro ordens (WATTS, 2008, p. 158, em tradução livre): a interpretação da

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extensão de uma competência atribuída a um nível de governo, “o conflito de leis aprovados


por entidades federativas diferentes em áreas de legislação concorrente”, “a ameaça de grupos
que desafiam a jurisdição legal de um governo” e a violação de um direito constitucional por
uma lei. Watts (2008, p. 9) não estabelece uma forma específica desse árbitro: podem ser
tribunais, consultas populares ou uma câmara alta com poderes especiais. Assim, tanto
procedimentos eleitorais quanto judiciais podem ser empregados como meios primários na
resolução dessas disputas. “A maioria das federações apostou numa combinação de ambos"
(WATTS, 2008, p. 158, em tradução livre): a promoção de eleições em cada nível de governo
e a instituição de tribunais para a realização da interpretação constitucional de forma
imparcial (WATTS, 2008, p. 159).
A supremacia constitucional é, assim, reconhecida de forma explícita ou implícita
nos textos constitucionais, o que, segundo o autor, explica a importância crescente do controle
judicial de constitucionalidade no federalismo (WATTS, 2008, p. 157). Essa tarefa pode ser
desempenhada por um tribunal especializado (uma corte constitucional, como na Alemanha,
Áustria, Rússia, Bósnia e Herzegovina, Emirados Árabes, Bélgica e Espanha) ou por qualquer
tribunal da federação, mas com a decisão final reservada a uma última instância recursal (uma
suprema corte, modelo adotado nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Índia, Argentina,
Venezuela, México, Malásia, Nigéria, Paquistão, Comores, Micronésia, Palau, São Cristóvão
e Nevis e Brasil1) (WATTS, 2008, p. 159). Ainda, um terceiro modelo é encontrado na Suíça,
onde o Tribunal Federal decide a validade apenas das leis cantonais, enquanto a validade das
leis federais é decidida por consulta popular por meio de referendo realizado nos oito cantões
(WATTS, 2008, p. 158-159). A importância do papel exercido por esses tribunais na
federação, por sua vez, coloca no centro a preocupação da sua instituição como órgão
independente e imparcial, diretamente ligada ao método de escolha e nomeação de seus
membros (WATTS, 2008, p. 159). Na Etiópia, ao contrário de todas as demais federações, o
controle de constitucionalidade é atribuído a uma câmara alta, a Câmara da Federação,
composta por membros representantes dos estados, que tem “o direito exclusivo e a última
palavra na interpretação da constituição” (WATTS, 2008, p. 159).
Por fim, Watts (2008, p. 160) defende que a estrutura do sistema legal – isto é, se
apoiado em precedentes judiciais (common law) ou em códigos legais (civil law) – tem
influência sobre o controle de constitucionalidade nas federações. A relevância, no entanto, é
rechaçada por Tsebelis (2009, p. 316), ao argumentar que os únicos aspectos importantes são

1
Na verdade, uma combinação dos dois modelos

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a possibilidade de os tribunais realizarem interpretações constitucionais e a capacidade dos


sistemas políticos sobrestarem interpretações estatutárias ou constitucionais. Para Tsebelis, na
relação entre federalismo e judiciário estão em jogo outras questões, conforme exposto na
seção seguinte.

2.4 Atores com poder de veto e federalismo: o judiciário em sistemas federativos


por Tsebelis (2009)
Em Tsebelis, a relação entre federação e judiciário independente é associada a maior
estabilidade decisória, frequentemente percebida no desenho federal comparativamente aos
estados unitários. O argumento é o seguinte. A maior estabilidade decisória seria devida a
associação entre países federais e, pelo menos, uma de duas características: (1) a existência de
um legislativo bicameral, no qual a segunda câmara tem poder de veto efetivo na legislação,
ou (2) a exigência de maiorias qualificadas no processo decisório (TSEBELIS, 2009, p. 196).
Esses aspectos ampliariam a estabilidade decisória pela inclusão de novos atores com poder
de veto na arena, mas não seriam, por isso, exclusivos do federalismo, e sim apenas mais
frequentes nele (TSEBELIS, 2009, p. 196).
A inclusão de novos atores com poder de veto, por sua vez, ao reduzir o conjunto
vencedor do status quo, restringe as possibilidades de o legislativo sobrestar as escolhas do
judiciário (e da burocracia). Logo, o poder de arbítrio dos juízes (e dos burocratas) seria
reforçado com o aumento da estabilidade decisória (TSEBELIS, 2009, p. 311), conforme
apontam evidências empíricas (TSEBELIS, 2009, p. 327), o que explicaria a associação entre
federalismo e um judiciário forte e independente.
Contudo, para Tsebelis (2009, p. 204-205), a direção da causalidade não é evidente e,
portanto, não permite considerar o judiciário, de modo inequívoco, como um mecanismo de
proteção contra avanços do governo central. O autor, assim, contempla duas possibilidades: o
judiciário independente como uma consequência estrutural associada aos múltiplos atores
com poder de veto, ou uma consequência independente do federalismo, que amplia “a
independência do Judiciário não apenas porque o número de atores com poder de veto
aumenta, mas também porque se pede aos juízes que exerçam suas funções entre diferentes
níveis de governo” (TSEBELIS, 2009, p. 223).
Por fim, outra característica do judiciário que deve ser levada em conta no
federalismo é a possibilidade de tribunais realizarem interpretações constitucionais sem
possibilidade de sobrestamento do legislativo (a não ser por reforma da Constituição). A

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decisão por uma corte constitucional2 seria vinculada principalmente ao federalismo e à


ocorrência de distúrbios parlamentares (ALIVIZATOS, 2005 apud TSEBELIS, 2009, p. 321).
Frequente, portanto, em países federais, a atividade de interpretação constitucional,
diferentemente das decisões estatutárias (aplicação da lei ao caso concreto), torna o judiciário
um ator com poder de veto, cuja posição sobre determinada decisão legislativa é considerada
no processo decisório para evitar sua futura revogação (TSEBELIS, 2009, p. 317). Deste
modo, às supracitadas características associadas ao federalismo, soma-se outra na direção de
maior estabilidade decisória.
Assim, a maior independência e a sua atuação como um ator com poder de veto,
qualidades associadas por Tsebelis ao judiciário nos desenhos federativos, demonstram a
importância que os tribunais podem assumir nas disputas federais. Em Lijphart (2003), por
sua vez, a análise comparativa reforça a relação entre federalismo, Constituição e controle de
constitucionalidade, como se expõe a seguir.

2.5 Democracia, federalismo e judiciário em Lijphart (2003)


Lijphart (2003, p. 18 e 213) enquadra a descentralização e o federalismo como
métodos de divisão do poder do seu modelo “consensual” de democracia, no qual as
instituições buscam ampla participação e amplo acordo sobre as políticas de governo. Esse
modelo é apresentado como contraposição ao modelo “majoritário” de democracia,
desdobramento simples do princípio de que “a maioria” governa, ainda que seja uma “maior
minoria” (LIJPHART, 2003, p. 18). A distinção entre os dois extremos é operada em duas
dimensões: uma relativa à estrutura do poder conjunto (executivo-partidária) e outra relativa à
divisão do poder territorialmente (federal unitária) (p. 19; 213). Nessa segunda dimensão, o
modelo consensual associa-se a (1) governo federal e descentralizado, (2) bicameralismo, (3)
constituições rígidas, (4) controle de constitucionalidade e (5) bancos centrais independentes
(LIJPHART, 2003, p. 19). Federalismo e temas relacionados ao judiciário, como rigidez
constitucional e controle de constitucionalidade, assim, surgem lado a lado.
A primeira associação entre poder judiciário e federalismo aparece com enunciação
das características do desenho federativo na revisão da literatura especializada. Nessa linha,
uma Constituição escrita, com exigências rigorosas para emenda, e a presença de um tribunal
com a capacidade de revisar a legislação, seja sob a forma de uma corte constitucional ou de

2
O controle de constitucionalidade, no entanto, não necessariamente é realizado por uma única corte; pode ser
realizada pelos tribunais inferiores e a decisão final atribuída a uma última instância recursal, como a Suprema
Corte norte-americana.

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última instância recursal na ordem jurídica nacional (suprema corte), são apontadas como
características secundárias, isto é, como garantias e não como um componente da federação
(LIJPHART, 2003, p. 215).
Dos seis países enquadrados por Lijphart (2003, p. 251) no grau máximo de rigidez
constitucional (com exigências mais rigorosas para a alteração da Constituição) cinco são
conhecidas federações – Austrália, Canadá, Suíça, Estados Unidos e Alemanha, classificadas
no estudo comparativo de Watts (2008, p. 28-38) como federações maduras. Exigências
rigorosas, no entanto, não se apresentam como um obstáculo efetivo às maiorias
parlamentares se inexistir um órgão independente com competência para decidir a
compatibilidade da legislação com a Constituição (LIJPHART, 2003, p. 253), na medida em
que restaria ao legislativo, caso fosse o responsável pelo juízo de constitucionalidade, optar
pelo caminho de produzir leis contrárias à carta maior ao invés de emendar o texto
constitucional.
A possibilidade de controle de constitucionalidade é, assim, para o autor, decorrência
lógica da própria ideia de Constituição e judiciário independente, embora haja constituições
que explicitamente neguem às suas cortes esse poder – como a holandesa (LIJPHART, 2003,
p. 254). Entre os países que Lijphart identificou a presença de um forte poder de controle de
constitucionalidade (presença de controle de constitucionalidade e alto grau de ativismo da
corte), seja exercida por um tribunal especializado (corte constitucional) ou não (suprema
corte), todos são federações – Alemanha, Índia, Estados Unidos e Canadá (depois de 1982;
anteriormente é situado como de “controle de constitucionalidade de força média”). Entre os
nove estados em que essa característica estava ausente, apenas dois eram federais – Suíça e
Bélgica (apenas até 1984, posteriormente identifica-se um controle de constitucionalidade
fraco) – e dois “semifederais” – Holanda e Israel (LIJPHART, 2003, p. 257), conforme
classificação do autor (2003, p. 217). Revisões judiciais mais fortes e numerosas são
encaradas como uma tendência e associadas a democracias mais recentes (LIJPHART, 2003,
p. 258). Por fim, Lijphart (2003, p. 260) reconhece explicitamente a ligação entre
federalismo, controle de constitucionalidade e constituições rígidas.
Demonstrada a forte correlação entre suprema corte e federalismo, a próxima parte se
dedica a investigar, de modo específico, a influência da alta corte brasileira – o Supremo
Tribunal Federal (STF) – quanto a movimentos de centralização ou de descentralização no
sistema federativo nacional.

290
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

3 O Supremo Tribunal Federal nas disputas federativas


O STF que possui, entre suas atribuições constitucionais, a de dirimir conflitos entre
a União e os Estados. A resolução dessas disputas pode ser empreendida por diversos
mecanismos institucionais3. Neste estudo, entretanto, a análise restringe-se ao mais utilizado:
a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI).
A ADI é um instrumento do sistema de controle judicial de constitucionalidade para
a invalidação de lei ou ato normativo federal ou estadual incompatíveis com a constituição.
Por meio dela, um Estado pode requerer a invalidação de uma norma federal quando entender
que a União ao editar a lei desrespeitou as regras de repartição de competências
constitucionais e, do mesmo modo, a União pode solicitar a invalidação de lei estadual
quando entender que invadiu o âmbito de atribuições federais.
Nessa linha, o texto dá seguimento ao estudo pioneiro de Oliveira (2009) sobre o
Poder Judiciário como árbitro da federação brasileira, cujos métodos e resultados são
apresentados na seção seguinte. Todavia, também rediscute alguns dos seus pressupostos e
amplia o foco de análise, o que é tema das seções posteriores.

3.1 A pesquisa pioneira de Oliveira (2009)


Oliveira (2009) procura demonstrar "que há uma tendência do Poder Judiciário em
favorecer o Governo central, em detrimento dos governos estaduais, nas questões de ordem
constitucional que chegam ao STF" (OLIVEIRA, 2009, p. 226). Para isso, a autora analisa a
influência do Supremo Tribunal Federal no sistema federativo brasileiro como um capítulo do
papel desempenhado pelo poder judiciário nos países federais. A pesquisa focou a atuação do
Supremo Tribunal como árbitro nas disputas envolvendo dois níveis de entes federativos –
Estados-membros e União –, a partir das taxas de sucesso no julgamento das ações direta de
inconstitucionalidade que um propôs contra outro sob a alegação de usurpação da
competência legislativa, fixada no documento constitucional (OLIVEIRA, 2009, p. 224). Os
dados englobam ações propostas pela União contra os Estados e dos Estados contra a União,
no período entre 1988 e 2002. Os resultados demonstram que as ações impetradas pela União
contra os Estados foram mais vitoriosas. A autora os interpreta como indício de um
"federalismo centralizador" (OLIVEIRA, 2009, p. 224). Abaixo se descreve e se discute mais
detalhadamente o método empregado, os resultados obtidos e as conclusões aferidas.

3
O assunto é abordado na seção 4.4.

291
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

A primeira consideração a ser feita, é que Oliveira toma "como pressuposto o caráter
político da atuação do Judiciário na resolução de conflitos federativos entre estados e governo
federal" (OLIVEIRA, 2009, p. 227), interpretando, assim, o julgamento contrário ou
favorável a um ente federativo como uma decisão política - e não técnica. O estudo se baseia
nos dados de 305 ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), de um total de 941
envolvendo questões federativas (OLIVEIRA, 2009, p. 234). Foram considerados apenas três
tipos de ação, abrangendo somente conflitos entre as esferas estadual e federal: 1) ações
propostas pelo Procurador-Geral da República contra o Governador do Estado ou Assembleia
Legislativa; 2) ações propostas pelos Governadores dos Estados contra o Presidente da
República, Senado Federal, Congresso ou Ministro de Estado; e 3) ações propostas pelas
Assembleias Legislativas estaduais contra o Presidente da República, Senado Federal,
Congresso ou Ministro de Estado (OLIVEIRA, 2009, p. 234). Estavam, portanto, excluídas as
ações propostas pelos demais legitimados4 e as que envolviam a esfera municipal. Por fim, as
ações foram reunidas em dois blocos – ações da União contra Estados (grupo 1) e ações dos
Estados contra a União (grupo 2) (OLIVEIRA, 2009, p. 235) e classificadas em nove temas -
administração pública, servidor público, política social, políticas econômicas, privatizações,
regulação econômica do setor público, política tributária, regulação da sociedade civil e
competição política (OLIVEIRA, 2009, p. 242-243).
Em primeiro lugar, os dados revelaram que mais da metade das ações, sejam elas
propostas pelos Estados ou pela União ainda estavam aguardando julgamento. A diferença
entre as porcentagens é relativamente pequena – 53,3% para a União contra 61,5% para os
Estados, mas deve ser levado em conta que a União propôs quase quatro vezes mais ações do
que os Estados (240 e 65 ADI, respectivamente)(OLIVEIRA, 2009, p. 239). A primeira
hipótese suscitada por Oliveira (2009, p. 240) é se o Judiciário tem se eximido de seu papel de
árbitro do conflito federativo. Outra possibilidade seria que a baixa frequência de atuação
revelasse apenas “fragilidade desse instrumento, como árbitro de contendas judiciais, para a
resolução de questões federativas, ainda mais se considerarmos a necessidade de respostas
rápidas (...)" (OLIVEIRA, 2009, p. 246).
Em segundo lugar, além de apresentar maior disposição na apreciação das ações
propostas pela União, o STF foi ainda mais generoso na concessão de liminares (que têm
eficácia imediata contra o requerido) para o governo central: 73,6% contra 15,8% dos Estados

4
Presidente da República, Mesa do Senado Federal, Mesa da Câmara dos Deputados, Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso Nacional e confederação
sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

292
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(OLIVEIRA, 2009, p. 237). O resultado ainda é pior para as subunidades nacionais no


julgamento do mérito: nenhuma ação dos Estados contra a União prosperou, enquanto 22,5%
das ações propostas pela União (ou quase metade delas, se desconsiderar as que ainda
aguardam julgamento) foram julgadas procedentes. Os dados suscitam a hipótese de que “o
poder judiciário brasileiro (...) estaria favorecendo o desenvolvimento de um federalismo
centralizador" (OLIVEIRA, 2009, p. 246). Antes de sugerir uma conclusão, contudo, Oliveira
submete a hipótese ao seguinte teste: verificar se, em vez da identidade do ator impetrante,
não seria o “tema” o verdadeiro responsável pelo sucesso das ações.
De acordo com os dados, as ações propostas pelos Estados versaram principalmente
sobre regulação econômica do setor público (29,7%), administração pública (15,6%),
servidores públicos (14,1%) e política tributária (14,1%). Já a grande maioria das ações da
União tratou da administração pública (43,2%) e de servidores públicos (35,9%) (OLIVEIRA,
2009, p. 244). A diferença de matérias entre os impetrantes, assim, poderia sugerir o “sucesso
do tema”. Contudo, o fracasso de todas as ações estaduais não permitiu inferir conclusões, que
dependeriam de um trabalho mais minucioso na análise do conteúdo das ações, segundo
Oliveira (2009, p. 246). Para a autora, "Os dados apresentados pretenderam dar o pontapé
inicial para essa compreensão"(OLIVEIRA, 2009, p. 248).

3.2 Pressupostos da análise das ADI


Como Oliveira (2009), este estudo parte do exame das ADI para resolver o seu
problema-objeto, qual seja, se o STF tem contribuído na centralização ou na descentralização
da federação brasileira após a CRFB/1988. Entretanto, amplia-se o foco temporal de análise
para abarcar mais 10 anos (de 1988 a 2012) e da categoria “conflito federativo” para englobar
qualquer ação que envolva em um dos polos um legitimado federal (Presidente da República,
Senado Federal, Congresso Nacional e Procurador da República) e no outro um legitimado
estadual (Governadores de Estado ou do Distrito Federal e Assembleia Legislativa ou
Distrital)5. Além disso, procura comparar os dados relativos à disposição de julgamento
conforme o ente federativo nos conflitos federativos com os dados referentes a questões não
federativas e identificar os legitimados individualmente do polo propositor.

5
Excluíram-se, assim, as ações propostas pelos demais legitimados (Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, Confederações sindicais ou entidades de
classe de âmbito nacional), independentemente de quem ocupe o outro polo da demanda e as disputas “internas”,
isto é, legitimados federais contra instituições centrais e legitimados estaduais contra instituições estaduais.

293
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

3.3 Resultados
O número total de ADI contabilizadas entre 1988 e 2012 foi de 4751, das quais 896
(19%) envolviam conflitos federativos. A averiguação da existência de inclinação do STF em
privilegiar um dos entes federativos, por sua vez, envolveu a análise da disposição da corte no
julgamento (denominada aqui de eficiência) e dos resultados (taxa de sucesso). Assim,
enquanto a segunda examina se há diferenças estatisticamente significativas na obtenção de
êxito conforme a entidade propositora, a primeira atesta se há um tratamento distinto na
condução do processo, isto é, se o STF soluciona mais rapidamente as ações propostas por um
dos entes. Por fim, verifica-se se a distribuição das ADI está concentrada em um legitimado
específico.

3.4 Eficiência no julgamento


A primeira constatação a partir dos dados coletados foi o diferente uso da ADI que
fizeram os legitimados federais e estaduais (Tabela 3.4.1). Enquanto a União utilizou esse
instrumento para atuar nas disputas contra os Estados (83,6% das ADI propostas por
legitimados federais envolveram conflitos federativos), as subunidades nacionais o
empregaram para resolver disputas internas, como as batalhas jurídicas entre Governadores e
Assembleias (apenas 7,7% das ADI propostas por legitimados estaduais envolveram disputas
federativas).

Tabela 3.4.1 Número de ADI propostas entre 1988 e 2012


Conflito
União Estados Outros Total
Federativo
Sim 805 91 0 896
Não 157 1085 2613 3855
Total 962 1176 2613 4751
Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL 6.

A segunda constatação é que entre disputas federativas e não federativas não houve
diferenças estatisticamente significativas quanto ao desempenho na condução do processo
pelo STF: 32% (287) das ADI envolvendo conflitos federativos ainda não foram julgadas
definitivamente, ao passo que 34,8% (1342) das ações que não envolviam tal tipo de disputa

6
Núcleo de Direito e Política - UFPR. Dados coletados por Jéssika Kaminski, Antônio Eduardo Seixas, Galanni
Dorado de Oliveira, Guilherme Cantero Nunes, Kayan Acassio e Fernando Santos de Camargo e organizados
pelo Prof. Dr. Fabricio Ricardo de Limas Tomio.

294
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

aguardam julgamento (Tabela 3.4.2). O chi-quadrado7 foi apenas de 2,49, ou seja, abaixo do
limite de 3,84 para um intervalo de confiança de 95%.

Tabela 3.4.2 Situação das ADI propostas entre 1988 e 2012


Julgadas Aguardado julgamento
Conflito
Frequência Frequência Frequência Frequência Total
Federativo
observada Esperada observada Esperada
Sim 609 588,78 287 307,22 896
Não 2513 2533,22 1342 1321,78 3855
Total 3122 1629 4751
Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 2,4950

Do mesmo modo, não houve diferenças estatisticamente significativas no andamento


de processos que envolviam conflitos federativos conforme o legitimado requerente. Das 896
ações sobre conflitos federativos, 287 (32%) ainda não obtiveram solução definitiva. Os
legitimados estaduais foram responsáveis pela propositura de 91 (quase 10% do total) dessas
ações, das quais 29 (31,9% das ações estaduais) ainda não obtiveram solução definitiva.
Apesar de os legitimados federais haverem proposto quase nove vezes mais (805), a
porcentagem de ações não julgadas é praticamente a mesma (32%). Portanto, não houve
disparidade significativa entre as frequências observadas e as frequências esperadas caso a
distribuição fosse aleatória (Tabela 3.4.3). O chi-quadrado obtido foi de apenas 0,0012 para
um intervalo de confiança de 95%.

Tabela 3.4.3 Situação das ADI envolvendo disputas federativas conforme a entidade
requerente no período 1988-2012
Julgadas Aguardado julgamento
Entidade
Frequência Frequência Frequência Frequência Total
requerente
observada Esperada observada Esperada
União 547 547,15 258 258,85 805
Estado 62 61,85 29 29,15 91
Total 609 287 896
Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 0,0012

7
O teste do chi-quadrado (X2) permite verificar se a diferença entre duas distribuições é estatisticamente
significativa (não aleatória). Assim, serve para confirmar se duas variáveis categóricas estão ou não relacionadas
entre si (hipótese de independência). Para um intervalo de confiança de 95%, a diferença será estatisticamente
significativa se ultrapassar o limite crítico de 3,841, quando o grau de liberdade for igual a 1(conforme a tabela
de distribuição do chi-quadrado), como nos testes aplicados neste artigo.

295
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

3.5 Taxa de sucesso


A taxa de sucesso avalia o desempenho no processo conforme o requerente, isto é, se
obteve vitória final na ação (sucesso) ou não (fracasso). Contatou-se que os legitimados
federais obtiveram sucesso em 36% (289) das ações propostas, enquanto os legitimados
estaduais galgaram êxito em apenas 8% (7) dos processos que iniciaram. A diferença entre as
frequências observadas e as frequências esperadas (Tabela 3.5.1) gerou um chi-quadrado de
29,4. Embora o resultado demonstre que as diferenças observadas foram estatisticamente
significativas, a disparidade na distribuição das ações propostas conforme o requerente (10%
para os Estados e 90% para União) não permitiu mensurar a força da correlação (Q de Yule 8)
por ultrapassar a distribuição recomendada para o teste (70:30).

Tabela 3.5.1 Taxa de sucesso das ADI julgadas envolvendo disputas federativas conforme a
entidade requerente no período 1988-2012
Sucesso Fracasso
Entidade
Frequência Frequência Frequência Frequência Total
requerente
observada Esperada observada Esperada
União 289 265,94 516 539,06 805
Estado 7 30,06 84 60,94 91
Total 296 600 896
Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 29,4074

3.6 Taxa de sucesso “ampliada”


Por meio da taxa de sucesso ampliada pretende-se abarcar também as ações não
julgadas definitivamente. O índice pretende, assim, contornar uma possível distorção
provocada pelas ações ainda não julgadas (em alguns casos, propostas há muito tempo), mas
que já surtissem efeitos. Trata-se das hipóteses de concessão de liminar, em que o ente
requerente, embora não tenha assegurado o resultado final, pode usufruir de efeitos jurídicos
provisórios. Desse modo, classificaram-se como “sucesso”, além dos processos julgados
procedentes, os processos pendentes, mas com deferimento de liminar, isto é, nos quais
surtiram efeitos provisórios da decisão.
Constatou-se, nessa análise, uma diferença ainda maior nos resultados conforme o
propositor. Enquanto a União obteve sucesso em 43% (349) das ações propostas, os Estados

8
O Q de Yule permite averiguar a intensidade da relação entre duas variáveis dicotômicas (o chi-quadrado
apenas verifica se variáveis categóricas estão ou não relacionadas entre si, mas é incapaz de mensurar a força da
correlação).

296
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

tiveram êxito em apenas 12% (11) das ações. O chi-quadrado obtido foi de 33,25 para um
intervalo de confiança de 95% (Tabela 3.6.1). Do mesmo modo, contudo, a disparidade na
distribuição das ações propostas conforme o requerente (10% para os Estados e 90% para
União) não permitiu mensurar a força da correlação (Q de Yule) por ultrapassar a distribuição
recomendada para o teste (70:30).

Tabela 3.6.1 Taxa de sucesso das ADI julgadas e aguardando julgamento (deferimento de
liminar) envolvendo disputas federativas conforme a entidade requerente no período 1988-
2012
Sucesso “ampliado” Fracasso
Entidade
Frequência Frequência Frequência Frequência Total
requerente
observada Esperada observada Esperada
União 349 323,44 456 481,56 805
Estado 11 36,56 80 54,44 91
Total 360 536 896
Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL. Chi-quadrado (IC 95%) = 33,2526

3.7 Legitimados individuais


A análise individual dos legitimados demonstra que, além da disparidade entre o
número de ações propostas pelos legitimados federais e estaduais considerados em grupo
(90% e 10%, respectivamente), a autoria das ações da União está concentrada em um dos
legitimados: o Procurador-Geral da República. Sozinho, o chefe do Ministério Público
Federal foi responsável pela propositura de 798 das 805 ações propostas por legitimados
federais, ou seja, aproximadamente 99% delas (Tabela 3.7.1). O resultado não é de todo
surpreendente, uma vez que tal ator tem como uma de suas principais atribuições a iniciativa
de ações constitucionais. Entretanto, revela a necessidade de uma análise qualitativa das ações
que envolveram conflitos federativos, na medida em que o sucesso da União nas disputas é
atribuído a um ator que, por atuar com independência, não pode ser considerado um agente do
governo federal.

297
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Tabela 3.7.1 Tabela de correspondência: requerente9 x desempenho


Procurador-
Assembleia Governador Senado Presidente Total
Geral
Fracasso 0 55 0 257 1 313
Aguardando
julgamento 5 20 0 193 5 223
sem liminar
Aguardando
julgamento 1 3 1 59 0 64
com liminar
Sucesso 0 7 0 289 0 296
Total 6 85 1 798 6 896
Fonte: STF. Banco de dados organizado pelo DIRPOL.

3.8 A inclinação do STF


Os resultados obtidos indicam que o STF, no julgamento de ADI, tem decidido mais
favoravelmente à União, conforme havia apontado Oliveira (2003), mas o desempenho
semelhante da alta corte tanto no julgamento de conflitos federativos quanto na resolução das
demais disputas enfraquece as hipóteses, suscitadas por Oliveira (2003), de que a corte em se
eximido de decidir conflitos federativos ou de que a ADI é um instrumento frágil para
resolver questões federativas10. Além disso, não se pode afirmar uma "maior disposição" do
STF em decidir as ações iniciadas pelos legitimados federais, pois apesar de a União propor
quase dez vezes mais que os Estados, a proporção entre ações não julgadas e já decididas se
mantém e a diferença entre as distribuições observadas e esperadas é insignificante.
O sucesso da União, no entanto, revela que, quando decide - seja definitivamente,
seja provisoriamente pelo deferimento de liminar - o STF se inclina em favor do ente central.
Todavia, há duas dificuldades que não permitem, a partir dos dados analisados, transpor desse
indicativo para uma conclusão mais robusta. O primeiro é que a disparidade na distribuição
entre as ações iniciadas pelos legitimados federais e estaduais não permite mensurar a força
dessa correlação. O segundo empecilho é que o principal propositor das ADI da União contra
os Estados situa-se no ente federal, mas sua atuação é independente do governo central.

9
A Mesa da Câmara de Deputados não propôs nenhuma ação direta de inconstitucionalidade no período
considerado.
10
Houve, na verdade, também uma redução no número de processos sobre questões federativas ainda não
julgados. No período entre 1988 e 2002, conforme os dados da autora, mais da metade dessas ações aguardavam
julgamento. Caso se considere os dez anos posteriores, de acordo com este estudo, constata-se que 32% dos
processos envolvendo disputas federativas ainda não foram julgados.

298
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Portanto, o principal legitimado em favor da União não é, propriamente, um agente do


governo federal.
Os resultados obtidos neste trabalho, desse modo, mais do que oferecer respostas
definitivas, indicam algumas questões a serem abordadas no desenvolvimento do estudo sobre
o papel do STF na federação brasileira – tema da próxima parte deste trabalho.

4 O papel do judiciário em sistemas federativos: questões de pesquisa


Variadas questões podem ser levantadas quanto às possíveis conclusões que os
resultados obtidos permitem aferir. A primeira delas é quanto ao pressuposto da atuação
política do Supremo Tribunal Federal no julgamento de disputas federativas, como tomou por
pressuposto explícito Oliveira (2003) e implícito a pesquisa aqui desenvolvida. A segunda se
refere à limitação da pesquisa sobre a atuação do judiciário no conflito de duas entidades
federativas, quando no Brasil existem três. A terceira é justamente se outras instâncias do
poder judiciário, além do STF, podem ser consideradas na análise sobre a influência dos
tribunais sobre o arranjo federativo. A quarta remete à necessidade ou não da consideração de
outros mecanismos que denunciam conflitos federativos, mas não somente as demais
modalidades de controle constitucional (como a ação declaratória de constitucionalidade e a
arguição de descumprimento de preceito fundamental), mas também a participação do
judiciário nas medidas excepcionais, como a intervenção. A quinta, por fim, se antecipa aos
resultados empíricos e questiona se a decisão judicial por centralização na maioria dos casos,
mais do que uma posição política dos juízes, não seria reflexo das próprias características do
texto constitucional e, portanto, um efeito esperado – como defendeu Arretche (2009) no caso
das iniciativas legislativas. Essas questões são abordadas nas próximas seções como dados a
serem considerados nas pesquisas sobre o papel e a influência do poder judiciário nas
federações.

4.1 Preferências políticas e preferências procedimentais


A atuação política do judiciário, ou “judicialização da política”, está associada aos
movimentos de expansão do poder judiciário, que passa a ocupar um espaço no processo
decisório (CARVALHO, 2004; CARVALHO, 2007). Um processo político é judicializado
"quando houver possibilidade de censura constitucional futura ou quando uma decisão
baseada na jurisprudência altera os resultados legislativos" (CARVALHO, 2007, p. 174). A
atuação do STF nas disputas federativas por meio do controle de constitucionalidade, nesse
sentido, é política, pois decorre da sua inclusão no processo decisório. Nesse caso específico,

299
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

de interpretação constitucional, o STF se apresenta como ator com poder de veto, embora na
maioria das vezes possa estar absorvido pelos demais (TSEBELIS, 2009, p. 317). Essa linha
de raciocínio parece sugerir que a decisão de uma disputa federativa é uma questão de
preferência política - pela centralização ou pela descentralização - ou mesmo como
retribuição com aqueles que os indicaram. Nessa linha, o julgamento é encarado como
resultado do arbítrio dos juízes e só é possível predizê-lo pelo conhecimento prévio das
preferências dos membros da corte. O argumento, portanto, ignora que questões técnicas
podem estar em jogo, e mesmo que o alinhamento ideológico dos membros do tribunal seja
em outro sentido, ignorar os obstáculos institucionais pode ser muito custoso.
Um argumento semelhante é desenvolvido por Tsebelis na explicação de como os
tribunais constitucionais podem vetar a legislação, já que, pelas suas características
institucionais, estariam incluídos “no núcleo de unanimidade dos atores existentes com poder
de veto” (TSEBELIS, 2009, p. 318). A primeira razão é que na escolha de juízes para a
suprema corte, algumas de suas posições decisórias não são conhecidas ou são consideradas
secundárias no momento (TSEBELIS, 2009, p. 319). A segunda é justamente que a revogação
de uma lei não é necessariamente uma oposição à ação governamental; ela pode ser
simplesmente “a expressão das preferências procedimentais, como a introdução de restrições
técnicas”, ou seja, “O tribunal pode estar indicando ao governo que essa determinada maneira
de atingir seu objetivo viola a Constituição e que, portanto, deve-se seguir uma linha de ação
diferente” (TSEBELIS, 2009, p. 319).
Nesse sentido, a anulação de uma lei estadual, por exemplo, pode ocorrer em razão
do descumprimento de uma regra procedimental na sua elaboração e não pelo entendimento
de que determinada matéria seria “melhor regulada” por uma lei federal (ainda que a
justificativa técnica possa ser vista como um subterfúgio ao enfrentamento da questão de
mérito). Do mesmo modo, pode haver uma violação patente de um dispositivo constitucional,
como uma lei estadual, no Brasil, que estabelecesse um novo tipo penal ou alterasse a pena de
um tipo previsto em legislação federal, embora tal situação possa soar improvável. Nesses
casos é possível predizer, com significativa probabilidade de êxito, a decisão do tribunal – e
não se deve atribuir isso a uma tendência do tribunal em favorecer o governo federal ou os
estaduais. É provável que esta não seja efetivamente uma situação frequente, mas, para maior
clareza e precisão, uma análise não pode desconsiderar essa distinção.
Além disso, outra possibilidade deve ser considerada: a existência de casos
repetitivos, como, por exemplo, quando vários estados promulgam lei em uma determinada
matéria que são, posteriormente, declaradas inconstitucionais. Se o julgamento das ações não

300
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

ocorrer simultaneamente, várias decisões são incluídas como dados diferentes da tendência de
reforçar o governo central, quando, na verdade, houve apenas uma decisão pela centralização,
replicada por uma questão procedimental de uniformização. Como há certa previsibilidade
quando decisões sinalizam a posição do tribunal em certo sentido, quando se tratar de casos
semelhantes, talvez seja mais adequado considerá-los como um único dado.

4.2 Governos locais como ente federativo


Outro ponto a ser observado é que na federação brasileira há três – e não apenas duas
– entidades federativas: União, Estados e Municípios. Esse desenho institucional torna mais
complexas as disputas federativas. Isso porque negar à União a capacidade de produzir leis de
determinado conteúdo não significa necessariamente atribuir aos Estados a possibilidade de
realizá-lo. A constituição brasileira enumera as competências legislativas privativas da União
e dos Municípios, mas reserva aos Estados apenas áreas de competência concorrente com a
União (nas quais cabe às subunidades complementar a legislação federal ou suplementá-la na
sua ausência). Como são enunciados mais de 40 itens entre matérias de competência privativa
da União e concorrente da União e dos Estados, resta pouco espaço para as subunidades
nacionais exercerem sua competência residual privativa – sob esse aspecto, comparativamente
a outras federações, a brasileira aparece como a mais centralizada (TOMIO; ORTOLAN;
CAMARGO, 2010, p. 83). Um exame mais completo da influência do poder judiciário na
centralização ou descentralização deve, portanto, levar em conta três espécies de conflitos
federativos, conforme as entidades envolvidas: União e Estados, Estados e Municípios e
União e Municípios.

4.3 A existência de outros árbitros para os conflitos federativos


A terceira questão, por sua vez, remete a uma característica associada à presença de
três entes federativos: nem todas as disputas federativas em torno das competências
constitucionais são resolvidas no STF. A representação contra leis municipais que violam a
constituição estadual, por exemplo, se exerce perante o Tribunal de Justiça do Estado. Na
verdade, entretanto, é provável que a consideração dessa arena não gere muitos benefícios à
pesquisa, uma vez que a constituição federal restringe a possibilidade de inovação
institucional estadual e detalha as regras que devem estar presentes no documento estadual.
Como consequência, há poucas diferenças significativas entre as instituições políticas
estaduais, “resultantes de inovações jurídicas dos anos 90 ou legadas das antigas constituições
estaduais”, e “muitas destas diferenças resultam de interpretações jurídico-políticas

301
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

questionáveis da Constituição Federal, portanto, passíveis de sofrer ações diretas de


inconstitucionalidade (ADINs) e ter seus efeitos políticos sustados e revistos” (TOMIO in
CARREIRÃO; BORBA, 2006, p. 95). Assim, uma lei municipal que contraria a Constituição
estadual possivelmente viola também a Constituição federal. Nesse caso, ao lado da
representação perante o Tribunal de Justiça estadual, caberia a propositura de arguição de
descumprimento de preceito fundamental frente ao STF.

4.4 Demais mecanismos de resolução das disputas federativas


Um quarto ponto é a necessidade de se considerar outros mecanismos judiciais de
solução de impasse federativo. É possível dividi-los em duas modalidades: instrumentos
políticos e judiciais. Os instrumentos políticos englobam medidas de exceção, emendas à
constituição, acordos políticos e eleições (ANDERSON, 2009, p. 49). Os instrumentos
judiciais envolvem a revisão judicial da legislação.
Particularmente, no estudo do papel do judiciário na federação os instrumentos
políticos interessam quando há controle judicial prévio ou posterior de sua utilização. Poucas
constituições federais concedem poderes excepcionais ao governo central para restringir a
autonomia das subunidades em situações emergenciais, como distúrbios políticos graves ou
ameaças de desintegração (WATTS, 2009, p. 90). No Brasil, há previsão constitucional da
intervenção federal (União sobre Estados, ou União sobre Municípios localizados em
territórios federais) e estadual (Estados sobre Municípios), que podem ser “espontâneas”
(submetidas a controle político posterior do legislativo), “provocadas por solicitação
(submetidas a controle político prévio do legislativo, previstas apenas no caso de intervenção
federal)” e “provocadas por requisição” (submetidas a controle judicial prévio). Embora
somente a última hipótese tenha previsão explícita da participação do judiciário, dadas as
características do sistema jurídico brasileiro, nada impede que os demais casos sejam
submetidos a controle judicial posterior. A utilização desses instrumentos tem sido pouco
frequente no Brasil, mas a análise das situações em que foi empregado pode contribuir para a
compreensão da atuação do judiciário nas disputas federativas. De outro lado, a frequência no
emprego dos mecanismos interventivos pode se revelar um dado importante para estudos
comparativos da influência judicial nas federações. Na Índia, o uso extensivo de tais
instrumentos, apesar do controle judicial da Suprema Corte, recentemente tem sido
minimizado por pressões políticas (WATTS, 2008, p. 90). Na mesma linha, a emenda
constitucional interessa aos estudos quando passível de controle de constitucionalidade, como
é no Brasil.

302
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Os instrumentos judiciais, por sua vez, podem envolver uma série de diferentes
mecanismos, com abrangência e efeitos diversos. A constituição brasileira, por exemplo,
prevê cinco espécies de ação de controle de constitucionalidade: ação direta de
inconstitucionalidade (genérica), ação declaratória de constitucionalidade, arguição de
descumprimento de preceito fundamental, ação direta de inconstitucionalidade interventiva e
ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Dessas, as quatro primeiras podem remeter
diretamente a disputas federativas. A seguir, apresenta-se uma síntese das características
principais das três primeiras, já que a ação direta de inconstitucionalidade interventiva é um
instrumento da intervenção provocada por requisição, abordado anteriormente.
A ação direta de inconstitucionalidade (ADI), como visto, visa à invalidação de lei
ou ato normativo federal ou estadual, posteriores à promulgação do texto constitucional atual,
incompatíveis com a Constituição Federal. Para os estudos sobre o papel do judiciário
interessam particularmente aquelas em que se situam em polos opostos autoridades federais e
estaduais.
Já ação declaratória de constitucionalidade (ADC) destina-se a “blindar” leis ou atos
normativos federais. Serve, assim, como mecanismo preventivo para o governo central,
embora tenha como legitimados os mesmo da ADI. Contudo, devido à sua natureza dúplice
(como a ADI), pode surtir efeito reverso ao esperado: a decisão de constitucionalidade
implica na procedência da ação declaratória e na improcedência da ação direta e vice-versa.
Como instrumento passível de aumentar os poderes da esfera federal, talvez seja pertinente a
sua consideração.
A arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), por sua vez, inclui
a esfera municipal, embora tenha os mesmo legitimados da ADI e da ADC, e engloba mesmo
dispositivos anteriores à Constituição de 1988. Restringe-se a “atos”, sem abranger questões
de legislação. Uma análise detalhada poderia aferir sua utilização nas disputas federativas.

4.5 Outras determinantes


Por fim, o quinto ponto que quero abordar é se as decisões judiciais favoráveis à
União manifestam necessariamente um alinhamento ideológico dos tribunais em favor da
centralização. Análises do judiciário norte-americano demonstram a atuação da Suprema
Corte em favor do fortalecimento do governo central (KATZ, 2009 apud OLIVEIRA, 2009,
p. 231-232) e do aumento da importância dos tribunais federais na gestão de recursos, em
razão do crescimento expressivo das verbas concedidas pela União a partir dos anos 60
(WALKER, 1981, p. 149). Em estudo recente, no entanto, Meyer (2011) aponta a reversão

303
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

desse fenômeno e demonstra como os estados-membros tem aproveitado a tendência da


Suprema Corte nos últimos anos em limitar os poderes federais para regular interesses que
ultrapassariam a esfera regional. Nos Estados Unidos, os resultados podem ser mais
frequentemente interpretados como preferências políticas pela centralização ou
descentralização na medida em que a constituição federal atribui uma lista sucinta de
competências à União, relacionada principalmente a assuntos externos e interestaduais.
Assim, podem surgir temas que, dado a sua relevância, os tribunais entendam que mereçam
tratamento nacional, embora não estejam enumerados explicitamente como de competência da
União. No Brasil, entretanto, a enumeração das competências legislativas da União é muito
abrangente e, por consequência, a competência residual dos estados é diminuta. Há ainda,
como dito acima, uma série de competências legislativas concorrentes, distribuídas entre
governos central e estadual, nas quais cabe ao primeiro estipular regras gerais e ao segundo,
determinações específicas. Nesse quadro, parece ser mais provável que o Estado, ao legislar,
extrapole mais os limites de suas atribuições (reduzidas) do que o contrário. A centralização,
assim, seria um resultado esperado pelo próprio texto constitucional e não simplesmente
preferência dos juízes, que deveriam ignorar obstáculos institucionais para reverter o
fenômeno. Um argumento nesse sentido é desenvolvido por Arretche (2009) ao analisar o
aumento das inovações legislativas com o intuito centralizador a partir de 1995.
A autora contesta a interpretação de que o evento seja fruto simplesmente das
preferências políticas dos autores envolvidos no processo decisório (que superestimam o
objetivo de descentralização do texto constitucional) ao demonstrar a centralização como
desdobramento da própria carta de 1988 (ARRETCHE, 2009, p. 380). Entre os argumentos
elencados, estão os seguintes: (1) a Constituição Federal (CF) atribui iniciativa legislativa -
em muitas áreas privativas - para União em diversos setores, inclusive nos que regulamentam
políticas públicas que devem ser executadas pelas outras entidades federativas (ARRETCHE,
2009, p. 391); (2) a CF atribui iniciativa legislativa para União na regulação do exercício da
autonomia das unidades federativas, inclusive nas áreas orçamentárias, tributárias e
administrativas (ARRETCHE, 2009, p. 406); (3) a CF não estabeleceu pontos de vetos
adicionais para as entidades federativas: as questões federativas são decididas sempre na
arena central sem pontos de vetos descentralizados (ARRETCHE, 2009, p. 406); e (4) A CF
não exigiu supermaiorias para a aprovação de legislação que regula a autonomia das entidades
federativas, e onde isso ocorreu, comparativamente a outros países, a supermaioria exigida
não é tão extensa (Leis Complementares e Emendas Constitucionais) (ARRETCHE, 2009, p.
407-408). Segundo Arretche (2009, p. 403), mesmo onde houve oportunidade de vetar

304
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

legislações desfavoráveis a Estados e Municípios, as bancadas estaduais não se mobilizaram.


Diante disso, a maior centralização a partir de 1995 deve-se mais a agenda do governo, que
aproveitou as oportunidades institucionais, do que um esforço dirigido à formulação de um
novo pacto federativo (ARRETCHE, 2009, p. 412). Esse argumento não pode ser
desconsiderado no exame das decisões judiciais nas disputas federativas.

5 Considerações finais
Nos Artigos Federalistas o reconhecimento da importância do judiciário no arranjo
institucional inaugurado pela constituição está entre os motivos que justificaram a sua
formação como ramo independente de poder. Na mesma linha, nas federações atuais, a
essencialidade da preservação do texto constitucional - e, por consequência, da distribuição do
poder entre os entes federativos - surge como uma das razões para a criação de um órgão
independente como árbitro nos eventuais conflitos que surjam entre as suas unidades
componentes. Federalismo, constituição rígida e controle de constitucionalidade aparecem,
assim, relacionados em estudos comparativos. Uma explicação alternativa da independência
do judiciário nas federações, centrada mais nos efeitos dos aspectos institucionais do que na
intencionalidade de seus desenhistas, é que nesses sistemas, dado determinadas características
institucionais frequentemente associadas, há maior estabilidade decisória e, portanto, menor
probabilidade de o legislativo obter sucesso no sobrestamento das decisões judiciais. Seja
qual for o caminho da causalidade, a relação frequente entre federalismo e judiciário
independente instiga o estudo sobre o papel das altas cortes nas federações. No estudo aqui
desenvolvido, foi possível demonstrar que, quando decide - seja definitivamente, seja
provisoriamente pelo deferimento de liminar - o STF se inclina em favor do ente central.
Contudo, uma série de questões a serem consideradas para transformar esse dado em uma
conclusão. Desse modo, a pesquisa sobre a influência da alta corte no sistema federativo
brasileiro deve investigar as possibilidades de atuação e o teor das decisões do árbitro
federativo, de modo a identificar indicadores que permitam aferir o grau de influência na
configuração do arranjo federativo.

6 Bibliografia
ANDERSON, George. Federalismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2009.

ARRETCHE, Marta. Continuidades e descontinuidades da Federação Brasileira: de


como 1988 facilitou 1995. Dados [online]. 2009, vol.52, n.2, p. 377-423. Disponível

305
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

em: <http://www.scielo.br/pdf/dados/v52n2/v52n2a04.pdf>. Acesso em: 08 jul.


2012.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

FIDELIDADE PARTIDÁRIA: A VONTADE DA CONSTITUIÇÃO, DO SUPREMO


TRIBUNAL FEDERAL E DO POVO∗

PARTISAN LOYALTY: THE WILL OF THE CONSTITUTION, OF THE SUPREME COURT


AND OF THE PEOPLE

Carina de Castro Quirino†


Pedro Federici Araújo††

SUMÁRIO:
1. Notas introdutórias; 2. Relato do julgamento do STF sobre
fidelidade partidária – tese vencedora e tese vencida; 3. Voto
nominal versus voto partidário; 4. O descompasso entre a
decisão do STF e a realidade das urnas; 5. Alternativa à decisão
do STF e a candidatura sem vinculação partidária; 6. Conclusão;
7. Referências bibliográficas.
RESUMO:

A exposição parte do atual cenário constitucional e político brasileiro, das constantes


tensões diante dos julgamentos do Supremo Tribunal Federal quando relacionados à
concepção de Estado e competências dos outros poderes. A análise concentra-se na
problemática da fidelidade partidária, suscitada em Consulta ao Tribunal Superior Eleitoral,
em mandados de segurança no Supremo Tribunal Federal e mesmo Ações Diretas de
Inconstitucionalidade relacionadas ao tema. Busca-se a verificação do grau de legitimidade da
posição firmada que consagrou os partidos políticos como titulares dos mandatos
parlamentares. Intenta-se demonstrar que os Tribunais não deveriam posicionar-se em relação
a questões que influenciem nas constituições de outros poderes sempre que este controle
puder ocorrer diretamente pelo povo. Apresentam-se, baseados no caso tratado, os
argumentos de que (i) a decisão do STF não corresponde à vontade popular manifesta por
meio de sufrágio universal e direto; (ii) sendo o voto participação tão importante no processo
democrático, não deveriam os Tribunais alterar a escolha executada; (iii) o povo é o

Este artigo foi elaborado no âmbito do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento
das Instituições (LETACI), vinculado à Faculdade Nacional de Direito (FND) e ao Programa de Pós-Graduação
em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na concorrência do Edital Universal nº 14/2011 (Processo nº
480729/2011-5), e pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(FAPERJ), na concorrência do Edital nº 09/2011 (Processo nº E-26/111.832/2011), além de Bolsa de Iniciação
Científica (IC-FAPERJ).

Mestranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. E-mail: cquirino@casacivil.rj.gov.br.
††
Graduando pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail:
pedrofedericiaraujo@gmail.com.

308
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

verdadeiro soberano do Estado e como tal não pode ter sua vontade suprimida, afinal é capaz
de “tomar conta de si mesmo”.

PALAVRAS-CHAVE: Fidelidade Partidária, Constitucionalismo Popular, Emenda


Constitucional e Soberania Popular.

ABSTRACT:

The present work starts in the current constitutional and political scenario of Brazil,
including constant tension before Federal Supreme Court decisions, when concerned about
the nature of Governments, competence and framework of separated Powers. Partisan loyalty
is the main issue analyzed, raised to discussion through Resolution, Injunctions and Direct
Action of Unconstitutionality before superior courts, namely the Electoral Court and the
Federal Supreme Court. The aim is to verify the degree of legitimacy around the modern
understanding that established political parties as holders (owners) of parliamentary mandates
(seats). The major purpose is to demonstrate how Courts should not decide about issues
related to other powers frameworks if people themselves can exercise directly this control.
Regarding the selected case, three arguments are brought forward: (i) the decision of the
Federal Supreme Court contradicts the will of the people expressed through the vote; (ii)
assuming the vote as a very important aspect of the democracy, the Courts should not change
its decision; (iii) as the sovereign power of the State, the people cannot see their will collapse,
after all “people can take care of themselves”.

KEY-WORDS: Partisan Loyalty, Popular Constitutionalism, Constitutional Amendment and


People Sovereignty.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

As discussões sobre fidelidade partidária são travadas sob diversas formas e aspectos.
Não se pode negar que é tema presente não só na esfera acadêmica jurídica, mas que se
relaciona com todos os cidadãos ao menos uma vez a cada dois anos (tratando-se,
obviamente, dos eleitores que comparecem às urnas nesse intervalo de tempo). Não é demais
sublinhar que se está diante de assunto de suma importância para o povo brasileiro e de
conexão direta com as matrizes dos poderes federativos e das instituições que participam do
cenário político e jurídico nacional na equação da governabilidade
O objeto que aqui se propõe analisar é a decisão do Supremo Tribunal Federal - STF
em relação ao debate travado sobre fidelidade partidária no Mandado de Segurança 26.602.
Em breves assertivas, vale dizer que se trata de decisão justaposta ao entendimento da
Resolução nº 22.526 (derivada da Consulta nº 1.398/2007) do Tribunal Superior Eleitoral
determinando que o candidato que porventura trocar de legenda após a eleição deverá perder
o mandato. Afirmou-se para tanto, em um verdadeiro “giro jurisprudencial”1, que o mandato
não pertence à pessoa do candidato eleito, mas sim ao partido, alterando entendimento
anterior do STF em relação ao ponto. Quanto às suas particularidades, a decisão será melhor
analisada posteriormente, esclarecendo-se qual era a posição anterior do Tribunal
Constitucional e como se operou tal mudança de entendimento. Importante ressaltar, no que
se refere ao objeto, que os argumentos da decisão não serão avaliados em certos ou errados;
em verdade, o que se pretende averiguar seria o grau de representatividade contido no
posicionamento assumido, e quais eventuais consequências poder-se-ia derivar desta decisão
no Poder Legislativo e na adequação que se coloca diante do mundo real.
Do objeto selecionado para estudo, surgem os pontos e as perguntas nodais que
orientam a análise e os argumentos suscitados neste trabalho. A premissa inicialmente
traçada subsume-se a verificar se a decisão do Supremo Tribunal Federal reflete a “realidade
das urnas”, isto é, se foram considerados aspectos singulares de representação eleitoral, tais
como identificação dos eleitores com partidos ou a afinidade pessoal com determinados
candidatos. Diante desta problemática, busca-se averiguar como a Corte Constitucional em
algumas decisões, a exemplo da análise do caso em específico, pode contrastar com a opinião

1
“A Emenda Constitucional 5, de 15.05.1985, suprimiu o instituto, agora revigorado, em outras bases, primeiro,
de modo expresso, pela Constituição de 1988; depois, diante do polêmico giro jurisprudencial operado pelo
Supremo Tribunal Federal e pelo Tribunal Superior Eleitoral.”CLÈVE, Clèmerson Merlin. Fidelidade
Partidária e Impeachment. 2ª Ed. Curitiba: Juruá Editora, 2012. p. 27.

310
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

pública, alinhavando posicionamentos que eventualmente seriam diferentes se submetidos à


consulta popular2.
Nesta linha de raciocínio, aponta-se um objetivo geral concernente aos mecanismos de
interação entre instituições: como podem ser entendidas as instituições envolvidas na
problemática engendrada? Poder-se-ia afirmar que tanto o Poder Legislativo como o Poder
Judiciário e os partidos políticos são verdadeiramente compreendidos por quem é titular de
soberania, o povo? Neste contexto, uma hipótese passível de identificação seria a ausência de
compreensão das instituições brasileiras, afinal, como o eleitor brasileiro realmente assimila a
afeição partidária e a personificação do candidato? A partir desta hipótese, propõe-se um novo
foco para a tomada de posicionamento jurisdicional dando centralidade ao povo, o verdadeiro
soberano e instituidor do Estado. Vez que, se este não compreende instituições tão
importantes do jogo político brasileiro e, ocasionalmente, não se sente representado por elas,
como podemos falar em democracia?
Ao longo do trabalho serão visitados textos que tratam da fidelidade partidária, da
representatividade dos partidos políticos e da personificação do candidato, alguns de viés
jurídico e outros claramente da ciência social e política. Mas a questão maior que suscita a
abordagem de Larry Kramer, notadamente em sua obra “People Themselves: Popular
Constitutionalism and Judicial Review” , trata principalmente do constitucionalismo popular e
traz a discussão pretendida, de que o povo é o verdadeiro soberano do Estado, que suas
instituições não devem propor decisões que não refletem ou excluem a vontade do povo e de
que ele é o maior protetor de si mesmo3.
No que se refere à solução do problema apresentado, tendo, única e exclusivamente, o
tema da vinculação do candidato ao partido e da titularidade do mandato, serão apresentados
argumentos que identificam mutação constitucional na decisão do STF, que poderia ter sido
evitada em nome da separação dos poderes e principalmente para que não se constranja um
escolhido pelo povo a permanecer em um partido contra sua liberdade de consciência. Por
fim, será apresentado o projeto de Lei que tramita no Senado Federal alterando o texto legal
para permitir a candidatura sem partido político.

2. RELATO DO JULGAMENTO DO STF SOBRE FIDELIDADE PARTIDÁRIA –


TESE VENCEDORA E TESE VENCIDA

2
KRAMER, Larry D. People Themselves: Popular Constitutionalism and Judicial Review. Oxford
University Press, 2004. p. 105.
3
KRAMER, Op.cit., p. 107.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Antes de relatar o julgamento exarado pelo Supremo Tribunal Federal sobre fidelidade
partidária, cabe apontar que esta suscita diversas perspectivas. Aqui se trata da fidelidade
partidária relacionada à mudança de partido (legenda) após eleito, no decurso do mandato, o
que não se confunde com a fidelidade partidária em relação às posições do eleito durante as
votações no Congresso ou com sua postura parlamentar. Mais especificamente, estamos
tratando da fidelidade partidária relacionada com o regime proporcional com voto em lista
aberta (RPLA)4-5, próprio, na esfera federal, da eleição dos Deputados Federais6-7.

Não serão feitas explicações extensivas em relação ao RPLA, noção sempre de


compreensão confusa para aqueles que não têm intimidade com o procedimento e com as
aplicações matemáticas necessárias para chegar ao resultado do quociente partidário. O que se
torna útil esclarecer, em resumo e simplificação, é que no RPLA os candidatos dependem, em
tese, da quantidade de votos recebida pelo partido. Verificando-se que o partido que for mais
votado, na soma dos votos de cada candidato com os votos da legenda terá mais candidatos
eleitos. Ou seja, poderá um candidato com mais votos de um partido X perder a eleição para
um candidato com menos votos do partido Y, desde que não tenha atingido o quociente
partidário8 de votos necessários para se eleger dentro do seu próprio partido9.

4
Conceitualmente, pode-se entender sistemas eleitorais como conjuntos de leis e regras partidárias que
estabelecem as regras para a competição eleitoral entre os partidos e a dinâmica interna dos mesmos. Há três
modelos de representação nas democracias: (i) majoritário, (ii) proporcional e (iii) misto. Bem colocados são os
esclarecimentos de Cristian Klein quanto à caracterização destes modelos, notadamente quanto ao proporcional:
“Sistemas proporcionais priorizam a representatividade. Seus defensores argumentam que a função primordial de
um sistema eleitoral é espelhar a diversidade da população no Parlamento.” KLEIN, Cristian. O desafio da
reforma política – consequências dos sistemas eleitorais de listas aberta e fechada. Mauad X: Rio de Janeiro,
2007, p. 25.
5
“Na lista aberta, não há uma relação de nomes preordenada. É o eleitor quem decide que candidatos ocuparão
as cadeiras conquistadas pelo partido. Os nomes mais votados ocupam os primeiros lugares de cada lista
partidária. No Brasil, no Peru e na Letônia, o cidadão tem duas opções: votar em candidatos ou na lista partidária
(voto de legenda).” Dado interessante é trazido pelo autor, ao apontar que das trinta e três maiores democracias,
que adotam o sistema proporcional de lista, 19 (58%) utilizam a lista fechada e 14 (42%) permitem o voto
preferencial (lista aberta, flexível ou livre).
6
Vale fazer breve esclarecimento: um Estado não precisa, necessariamente, uniformizar o sistema eleitoral. No
Brasil, por exemplo, adota-se o sistema majoritário de dois turnos na eleição para a Presidência da República, o
de maioria simples para o Senado Federal e o sistema proporcional de lista para a Câmara dos Deputados.
7
“(...) Manifesta-se, aqui, um segundo tipo de fidelidade partidária, insuscetível de autorizar sanção,
constituindo, portanto, a perda do mandato decretada pela Justiça Eleitoral, nos termos do novo entendimento do
Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitora, autêntica mutação constitucional, mera consequência
do nosso modelo de democracia representativa fortemente marcada pelo monopólio partidário das candidaturas
aos cargos eletivos.” CLÈVE. Op. cit., p. 24. Note-se no texto do autor que o mesmo fala na perda do mandato
decretada pela Justiça Eleitoral. Estamos diante de ponto crucial do presente trabalho onde encontramos a
questão de ser o povo o “outorgante” do mandato, como pode a Justiça Eleitoral revogá-lo? O assunto será
melhor abordado nos próximos itens.
8
Quociente partidário (QP) ou quociente eleitoral (QE) equivale ao número de votos válidos do partido ou
coligação. BRASIL. Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina. Quociente partidário. Disponível em:
<http://www.tre-sc.gov.br/site/eleicoes/eleicoes-proporcionais-criterios/index.html>. Acesso em 22 de fevereiro
de 2013.

312
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Nessa esteira, temos duas perspectivas diferentes: (i) a existência de candidatos menos
votados que dependem exclusivamente da soma de votos do partido para serem eleitos e (ii) a
situação de candidatos com grande volume de votos que não só não dependem dessa soma do
partido, como são eles responsáveis para que o partido tenha direito a um número de vagas
maior na aplicação do quociente partidário. Este é o cerne fundamental da discussão que se
colocou no Tribunal Superior Eleitoral e no Supremo Tribunal Federal durante os julgamentos
das mencionadas demandas. Para uma melhor digressão, é necessário contextualizá-las.

O Partido da Frente Liberal (PFL), representado pelo presidente da sigla, Jorge Bornhausen,
apresentou Consulta (CTA 1398) ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)10, na qual indagou sobre a
ocupação de vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, na hipótese em que o titular da vaga troca
de partido. O relator da matéria é o ministro Cesar Asfor Rocha. Na prática, a consulta busca
estabelecer a fidelidade partidária no país. Foram seus termos, in verbis:

“Considerando o teor do art. 108 da Lei nº 4.737/65


(Código Eleitoral), que estabelece que a eleição dos candidatos a
cargos proporcionais é resultado do quociente eleitoral apurado
entre os diversos partidos e coligações envolvidos no certame
democrático.
Considerando que é condição constitucional de
elegibilidade a filiação partidária, posta para indicar ao eleitor o
vínculo político e ideológico dos candidatos.
Considerando ainda que, também o cálculo das médias, é
decorrente do resultado dos votos válidos atribuídos aos partidos
e coligações.
INDAGA-SE:
Os partidos e coligações têm o direito de preservar a
vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver
pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do
candidato eleito por um partido para outra legenda?”11

9
A clareza de raciocínio de Jairo Nicolau se mostra indispensável para a questão: “O sistema em vigor no Brasil
oferece duas opções aos eleitores: votar em um nome ou em um partido. As cadeiras obtidas pelos partidos (ou
coligações entre partidos) são ocupadas pelos candidatos mais votados de cada lista. É importante sublinhar que
as coligações entre os partidos funcionam como uma única lista; ou seja, os mais votados da coligação,
independentemente do partido ao qual pertençam, elegem-se. Diferentemente de outros países (Chile, Finlândia e
Polônia) onde os eleitores têm que obrigatoriamente votar em um nome da lista para ter o seu voto contado para
o partido, no Brasil os eleitores têm a opção de votar em um nome ou em um partido (legenda). O voto de
legenda é contado apenas para distribuir as cadeiras entre os partidos, mas não tem nenhum efeito na distribuição
das cadeiras entre os candidatos”. NICOLAU, Jairo. O sistema eleitoral de lista aberta no Brasil. In: NICOLAU,
Jairo e POWER, Timothy J.. Instituições representativas no Brasil. Balanço e Reforma. Belo Horizonte:
Editora UFMG e Rio de Janeiro: IUPERJ, 2005.
10
O artigo 23, inciso XII, do Código Eleitoral, resguarda ao TSE a atribuição de responder a consultas
formuladas em tese, por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político.
11
Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 2 (relatório).

313
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Em face às formulações levantadas, foi exarada a Resolução nº 22.256 de 2007,


oportunidade em que se lavrou a seguinte conclusão proferida pelo Ministro Relator:

“(...) respondo afirmativamente à consulta do PFL, concluindo


que os Partidos Políticos e as coligações conservam o direito à
vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver
pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do
candidato eleito por um partido para outra legenda.”

Com o julgamento da Consulta n.º 1398 pelo Tribunal Superior Eleitoral, onde restou
afirmado que perde o mandato o parlamentar que migrar injustificadamente para outro
partido, o tema da infidelidade partidária voltou a ocupar a pauta do STF, por meio da
propositura dos Mandados de Segurança n.º 22.602, 22.603 e 22.604, todos contra atos do
presidente da Câmara dos Deputados que se negou a declarar vagos os cargos daqueles que
mudaram de partido.
No julgamento das referidas ações constitucionais o STF mudou de posicionamento,
entendendo pela ocorrência de perda do mandato do parlamentar que, de forma injustificada,
abandona o partido pelo qual se elegeu. A infidelidade partidária, enfim, segundo o STF,
constituía-se em hipótese de perda do mandato eletivo. Diz a ementa no julgamento do MS n.º
22.602:
“Mandado de segurança conhecido, ressalvado entendimento
do Relator, no sentido de que as hipóteses de perda de mandato
parlamentar, taxativamente previstas no texto constitucional,
reclamam decisão do Plenário ou da Mesa Diretora, não do Presidente
da Casa, isoladamente e com fundamento em decisão do Tribunal
Superior Eleitoral. 2. A permanência do parlamentar no partido
político pelo qual se elegeu é imprescindível para a manutenção da
representatividade partidária do próprio mandato. Daí a alteração da
jurisprudência do Tribunal, a fim de que a fidelidade do parlamentar
perdure após a posse no cargo eletivo. 3. O instituto da fidelidade
partidária, vinculando o candidato eleito ao partido, passou a vigorar a
partir da resposta do Tribunal Superior Eleitoral à Consulta n. 1.398,
em 27 de março de 2007. 4. O abandono de legenda enseja a extinção
do mandato do parlamentar, ressalvadas situações específicas, tais
como mudanças na ideologia do partido ou perseguições políticas, a
serem definidas e apreciadas caso a caso pelo Tribunal Superior
Eleitoral. 5. Os parlamentares litisconsortes passivos no presente
mandado de segurança mudaram de partido antes da resposta do
Tribunal Superior Eleitoral. Ordem denegada”
[grifos nossos]

314
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Com base nessa decisão e de outras com caráter similar, o Tribunal Superior Eleitoral
editou a Resolução n.º 22.610/2007, o que fez com que o Supremo Tribunal Federal voltasse a
examinar a matéria, dessa vez com uma amplitude maior, já que o fez em sede de Ação Direta
de Inconstitucionalidade (ADIN), nas ADIN 4086 e 3999.
Na ADIN n.º 4086 proposta pelo Procurador Geral da República, questionou-se a
inconstitucionalidade de vários artigos da Resolução TSE n.º 22.610/2007, dentre eles: o
artigo 2º12, que ao atribuir competência ao Tribunal Superior Eleitoral e aos Tribunais
Regionais Eleitorais, feriria o artigo 121 da CF/8813, uma vez que tal artigo prevê reserva de
Lei Complementar para instituição de competência dos Tribunais, Juízes e Juntas Eleitorais;
suposta usurpação da competência dos poderes executivo e legislativo para legislarem sobre
matéria eleitoral, conforme disposto nos artigos 22, I14, 48 caput15 e 84, IV16 da CF/88, em
virtude do artigo 1º da Resolução dispor de forma inovadora sobre a perda do mandato
eletivo17, bem como infração ao princípio da separação dos poderes, previsto pelos artigos
2º18, 60, § 4º, III19 da CF/88.
Percebe-se que as decisões do STF em sede de Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade possuem efeitos especiais, sobretudo por valer para todos os
jurisdicionados, inclusive de observância obrigatória para todo o Poder Judiciário e Poder
Executivo. E foi com esse poder de decisão que a Corte Suprema entendeu ser a Resolução n.º
22.610/2007 do TSE plenamente compatível com a CF/88, ou seja, declarou (por via da

12
“Art. 2º - O Tribunal Superior Eleitoral é competente para processar e julgar pedido relativo a mandato federal;
nos demais casos, é competente o tribunal eleitoral do respectivo estado.”
13
“Art. 121. Lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e
das juntas eleitorais.”
14
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual,
eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;”
15
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o
especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
16
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...)IV - sancionar, promulgar e fazer publicar
as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução;
17
Art. 1º - O partido político interessado pode pedir, perante a Justiça Eleitoral, a decretação da perda de cargo
eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa. § 1º - Considera-se justa causa: I) incorporação
ou fusão do partido; II) criação de novo partido; III) mudança substancial ou desvio reiterado do programa
partidário; IV) grave discriminação pessoal. § 2º - Quando o partido político não formular o pedido dentro de 30
(trinta) dias da desfiliação, pode fazê-lo, em nome próprio, nos 30 (trinta) subseqüentes, quem tenha interesse
jurídico ou o Ministério Público eleitoral. § 3º - O mandatário que se desfiliou ou pretenda desfiliar-se pode
pedir a declaração da existência de justa causa, fazendo citar o partido, na forma desta Resolução.
18
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
19
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...)§ 4º - Não será objeto de deliberação a
proposta de emenda tendente a abolir: (...)III - a separação dos Poderes”.

315
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

improcedência da ADIN) que a citada resolução é constitucional, e, nessa qualidade, com


validade e eficácia assegurada no ordenamento jurídico20.
Debruçando-se tanto sobre a Resolução do TSE, quanto aos argumentos engendrados
nos writs impetrados, é oportuno destacar as principais teses e os destacados argumentos que
sustentaram as posições dos Tribunais, assim como as alegações das partes e Ministros
vencidos e da jurisprudência contornada.

2.1. A tese vencedora que conferiu os mandatos parlamentares aos partidos políticos

A tese vencedora em ambos os Tribunais trouxe diversos argumentos legais,


constitucionais e principiológicos. Utilizou-se ainda de técnicas interpretativas para chegar à
conclusão, hasteando a vontade do Constituinte, a função da norma e a consagração
axiológica da figura dos partidos na Constituição Federal de 1988. Todos esses métodos são
de extrema importância na interpretação jurídica, mas é importante ressaltar que não são
absolutos e objetivos. Em outras palavras trata-se de mera perspectiva do intérprete, vez que
ao alterar o referencial, o mesmo método pode justificar conclusões diferentes21.
O argumento mais enaltecido nas considerações feitas pelos Ministros foi o suposto
tratamento especial conferido aos partidos políticos pela Constituição Republicana.
Interpretou-se a condição da filiação partidária para elegibilidade, prevista no § 3º, V do art.
14 da Carta Magna22, como máxima de que o partido político é o elemento essencial da
candidatura e não o candidato em si. A disposição constitucional estaria consagrando a
chamada “democracia representativa partidária”23, onde o partido é o elo entre candidato e
eleitor, relação que não subsiste sem o mesmo.
O Ministro Cezar Peluso, durante seu voto no julgamento do TSE, chegou a
demonstrar a relação da seguinte maneira24:
ELEITOR ------------ PARTIDO ------------ CANDIDATO

20
Ressalta-se que não temos interesse em falar dos efeitos ex nunc atribuídos a Resolução do TSE, já que o
objeto do presente trabalho limita-se à verificação do entendimento de que o mandato pertence ao partido e não
ao candidato.
21
Campo da filosofia e hermenêutica jurídica que certamente não é objeto deste trabalho. Mas, dada a colocação
de certas proposições nos votos dos Ministros, é importante demonstrar essa possibilidade de duplicidade de
entendimento que corroborará a conclusão final.
22
“Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor
igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...)§ 3º - São condições de elegibilidade, na forma da lei: (...)V -
a filiação partidária;”
23
Trata-se de expressão conhecida no meio das ciências sociais e políticas que refere-se às democracias onde os
partidos políticos exercem papel de protagonista, quase como um monopólio dos mesmos.
24
Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 31.

316
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Esta demonstração permaneceria antes e depois da eleição, consagrando o


entendimento de que o eleitor só poderia votar no candidato, caso este possua um partido.
Logo, não poderia o candidato ser responsável pela quebra de um desses elos
(candidato/partido), mantendo-se o mandato que só lhe foi conferido por meio de votos
angariados pelo partido.
Nesta linha de raciocínio, os acórdãos utilizam-se do § 1º do art. 17 da Constituição25,
no qual está expressa a possibilidade de os partidos políticos estabelecerem “normas de
disciplina e fidelidade partidária”. O raciocínio segue uma lógica consistente, afinal, se o
texto máximo da República previu que os partidos políticos tinham o poder de,
internamente26, disciplinar a fidelidade partidária, atribuiu-se importância supralegal a este
instituto jurídico. Logo, estamos diante de mais uma indicação no diploma constitucional de
que a fidelidade partidária é elemento fundamental do cenário político brasileiro, devendo ser
preservada à luz da Constituição.
Na mesma esteira interpretativa, colocaram-se os Eminentes Julgadores diante do
artigo 45 da Constituição Federal27 combinado com o artigo 108 do Código Eleitoral28. O
primeiro dispõe sobre o sistema eleitoral brasileiro, configurando-se através da representação
proporcional. O segundo está diante do estabelecimento do quociente partidário que
determinará a eleição de um candidato a Deputado Federal. A leitura destes dois dispositivos,
interpretados de forma sistemática, possibilita concluir que sopesou-se apenas um dos
aspectos do RPLA vigente no Brasil, o de que alguns (maioria) candidatos somente se elegem
em função do quociente eleitoral atingido pelo partido29. Não foi esquecimento a parcela que,
teoricamente, não dependeria do quociente eleitoral para ser eleito, mas entendeu-se que o

25
“Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania
nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e observados os
seguintes preceitos: (...)§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna,
organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem
obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal,
devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária.”
26
Importante referenciar mais uma vez que, em que pese as interpretações dos Illmo Ministros, estamos diante
de diferente tipo de fidelidade partidária, conforme já demonstrado pelo texto de Clèmerson Cléve transcrito
acima. Essa diferenciação foi inclusive mencionada pelo Ministro Cezar Peluso durante seu voto. Não nos parece
que se possa usar facetas diversas de um mesmo instituto jurídico como se fossem a mesma.
27
“Art. 45. A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos, pelo sistema proporcional,
em cada Estado, em cada Território e no Distrito Federal.
28
“Art. 108 - Estarão eleitos tantos candidatos registrados por um Partido ou coligação quantos o respectivo
quociente partidário indicar, na ordem da votação nominal que cada um tenha recebido.”
29
Ilustra bem o comentário tecido pelo Ministro Relator Cesar Asfor Rocha: “Antes de dar por concluído este
voto, quero registrar que mandei fazer um levantamento de todos os deputados eleitos nas eleições de 2006 e
pude verificar que, dos quinhentos e treze deputados federais eleitos, somente trinta e um (cerca de 6,04%)
obtiveram votos próprios para atingir o quociente eleitoral, sem que houvesse necessidade de receber votos
conferidos à sua legenda atribuídos a outros candidatos do seu próprio partido ou de sua própria coligação”.

317
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

sistema eleitoral consagra um procedimento de atribuição dos cargos eletivos de deputados


federais que impossibilita o enfraquecimento dessa instituição que é o partido político.30
Seria, na visão dos Tribunais, uma ofensa ao ordenamento jurídico e aos eleitores o candidato
que mudasse de partido após eleito, já que teve proveito do quociente partidário e do sistema
eleitoral para garantir seu cargo político.
Outro argumento aduzido nos votos seria a ponderação de que a Constituição Federal
secundariza essa participação direta do eleitor para colocar os partidos como verdadeiros
protagonistas do cenário político, sendo este o verdadeiro representante do povo nas Casas
Republicanas. Em tese, o candidato não existiria fora do partido político, sendo este a face de
sua identidade política, consagrando-se a ideologia na qual se fixou ao se eleger. Forma-se
então, para além de uma relação de dependência entre eleito e partido, uma relação de
simbiose e mútuo controle, que seria capaz de evitar uma “promiscuidade ideológica” capaz
de macular o vínculo entre eleitor e eleito.
Baseados em todas as premissas argumentativas dispostas e em outras mais que não
cabe desmembrar neste trabalho, o TSE e o STF consagraram a hipótese de perda de mandato
de candidato que, uma vez eleito, decida por trocar de legenda sem justa causa. Desta forma,
venceu a tese de que o mandato pertence ao partido, uma vez que a violação de todos os
valores e dispositivos constitucionais e legais mencionados acima seria a verdadeira quebra
do pacto eleitor – partido – candidato.

2.2. As teses vencidas e o precedente contornado

Inaugurando essa breve menção às opiniões adversas ao decisum explicado acima31, há


quem divirja por completo do entendimento consagrado pelos Tribunais Superiores.
Este excerto demonstra claramente a posição daqueles que não aceitam a recente
decisão dos tribunais por entendê-la como verdadeira normatização de punição que a
Constituição não previu. Por mais que se sustente que o mandato pertence ao partido, não há
como não se verificar sanção ao deputado que muda de legenda, afinal como encarar de outra
forma?
O dissenso entre o recente entendimento e o anterior posicionamento do Supremo
Tribunal Federal pode ser demonstrado no voto do Ministro Moreira Alves, citado no próprio
julgamento do MS 26.602/DF, voto proferido em precedente de 1989. O Ministro apresentou

30
Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 3.
31
Como mencionado acima o objeto do artigo não é verificar a correção da decisão do STF, o que nos levará
apenas a breve menção as teses dissenssoras, já que o ponto crucial do estudo será tratado em item posterior.

318
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

a importância dos partidos políticos dada pela Carta Magna, porém explicou, claramente, que
a Constituição não desejou prever hipótese de perda de mandato por troca de legenda, o que
constaria no art. 5532, caso fosse de desejo33, Foi em virtude desse entendimento do STF que
se considerou a sua nova posição como mutação constitucional. Coloca-se em questão a
interpretação da Constituição, quando em ausência de disposição expressa, os precedentes
anteriores determinaram pela não perda do mandato parlamentar. O que agora se revela
conflitante, quando a nova proposição é de que, apesar de não haver previsão da hipótese,
depreende-se da Constituição que o parlamentar não pode manter o mandato por partido que
não se elegeu.
Em alegações, as partes trouxeram alguns argumentos interessantes, dentre eles o de
que o vínculo político é autônomo, ou seja, que o vínculo entre candidato eleito e instituição,
uma vez estabelecido, não é intermediado pelo partido, ao menos não em sua natureza
jurídica. De mesma forma, alegaram os deputados que tinham, à época, seu mandato
ameaçado, que não dependeram dos quocientes eleitorais para obter suas cadeiras, assim, não
deveriam carregar o fardo de permanecerem vinculados a seus partidos. Sustentou-se ainda
que, diante da possibilidade de voto na legenda e no candidato, a maioria dos eleitores escolhe
o candidato e não no partido34.
Dos três argumentos mencionados, os dois últimos merecem destaque, sendo que o
último será tema específico do próximo item. Importante se mostra a alegação de que alguns
Deputados não necessitam dos quocientes eleitorais para serem eleitos, porque foi a mesma
questão nodal que serviu a ambos os acórdãos. Curioso notar que, no voto do relator do
julgamento no TSE, foram apontados dados estatísticos para demonstrar que a maioria dos
deputados necessita do quociente eleitoral para serem eleitos. A questão que aqui causa
inquietude poderia ser formulada da seguinte forma: como podem os Plenários de ambos os
Tribunais basearem suas decisões em um dado que corresponde apenas, queremos ressaltar,
apenas à maioria? Como podem os Deputados que, em tese, não dependeram dos partidos
para se eleger, estarem também impedidos de trocar de partido durante o mandato? Deve-se
lembrar ainda, que para ser eleito sem depender do quociente partidário, os referidos
candidatos estão entre os mais votados do País. Estas problemáticas por si só seriam
facilmente respondidas pelos defensores da tese vencedora, entretanto o que se pretende aqui,

32
“Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador:(...)”
33
MS 26.602/DF. Relator: Ministro Eros Graus, 2007. p. 44.
34
“Alega que no Brasil pode-se votar tanto na legenda do partido como no candidato, individualmente, sendo
essa última modalidade de votação a que prevalece entre os eleitores.” MS 26.602/DF. Relator: Ministro Eros
Graus, 2007. p. 10.

319
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

como já anteriormente indicado, não é a improcedência dos argumentos que prevaleceram,


mas que, conjugado com a alegação de que o eleitor, em sua maioria ou no que pese os
candidatos mais votados, vota pensando no candidato e não no partido (se pretende
demonstrar no próximo item), essas problemáticas revelam que a decisão não corresponde à
verdadeira vontade do povo.
Apenas para concluir os posicionamentos divergentes em relação à decisão do STF,
com o fim de demonstrar que o Pretório Excelso poderia ter decidido de forma diversa, surge
o posicionamento doutrinário que diverge por completo dos excessivamente mencionados
acórdãos. Considerando toda importância dada aos partidos políticos, ainda assim essa
corrente propugna pela autonomia e liberdade do parlamentar, afirmando que o mandato seria
do mesmo em função do partido. A contrario sensu do entendimento jurisprudencial que
coloca o mandato como do partido, exercido pelo Deputado.35

3. VOTO NOMINAL VERSUS VOTO PARTIDÁRIO

A conclusão a que se pretende chegar nesta seção será demonstrar que o eleitor não
equaciona somente a ideologia partidária ao decidir seu voto. O fator nominal36, isto é, a
pessoa do candidato, é elemento que sobressai no momento dessa escolha.
Não é demais enfatizar que há existência de significativa parcela da população que
não considera a conjuntura ideológica. Hodiernamente, pode-se verificar que os Deputados
Federais mais votados nos Estados são, normalmente, exemplos dessa escolha.
Ab initio, veja-se os resultados das últimas eleições de São Paulo para Deputado
Federal, considerados os candidatos com grande número de votos37:

Ele ição Candidato (Partido) Núme ro de Votos

2002 Enéas Ferreira Carneiro (PRONA – sem coligação) 1.573.642


2006 Clodovil (PT C) 493.951
2010 T iririca (PR) 1.353.820

Os candidatos listados foram os mais votados do Estado e do País38 no respectivo


período eleitoral. Dos três candidatos listados, pode-se extrair uma característica comum aos

35
CLÈVE. Op. cit., p. 31.
36
O fator nominal nada mais é do que a importância do nome, do pessoal, do individual, isto é, das
características que tornam o candidato singular em relação aos outros e ao partido.
37
Tabela preparada pelos autores. Dados disponibilizados no sítio eletrônico do Tribunal Superior Eleitoral, em
“estatística das eleições”.

320
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

dois últimos: Clodovil e Tiririca encontram-se projetados em uma nova tendência partidária e
eleitoral, de eleição de figuras públicas com grande exposição na mídia, forte apelo popular e
que não demonstravam, até o momento, nenhuma aptidão política. Diametralmente oposta é a
situação em que se encontrava o candidato Enéas Ferreira, vez que possuía história política
conquistada paulatinamente no cenário nacional, muito antes do sobredito período eleitoral.
Diante de tais premissas, podem-se analisar dois elementos indispensáveis para caracterizar o
recrudescimento do voto personalizado: (i) as crises de representatividade do Poder
Legislativo, haja vista os escândalos de corrupção rompantes nas décadas anteriores e; (ii) a
frágil mobilização ideológica partidária.
Como já diversas vezes ressaltado, a lista aberta oferece um maior grau de liberdade
ao eleitor. No final do processo eleitoral, o parlamentar, representante eleito para ser
responsável pelas decisões legislativas, será uma escolha feita por meio do voto
personalizado. Nesta esteira, tradicionalmente se vislumbra o cenário brasileiro como avesso a
partidos. A conexão eleitoral, desta forma, seria amplamente personalista, pois os eleitores
estariam notadamente identificados com candidatos39.
Ademais, não obstante esta enraizada personalização eleitoral, também não se pode
afastar que no período democrático o país viveu situações de intenso descontentamento do
eleitorado em face de escândalos políticos – tais como casos de corrupção. Desta forma, o
voto preferencial funciona como “válvula de escape que trabalha a favor da legitimidade do
sistema político e é inexistente no sistema de lista fechada. Na lista aberta, os eleitores tem a
chance de punir o mau parlamentar. Na lista fechada, essa é uma prerrogativa exclusiva do
partido”40.
Apontadas tais premissas, pode-se verificar que o quadro acima traz a indicação de
Deputados Federais de grande apelo midiático, com vida anterior de presença em programas
de televisão, carreira artística e identificação com público. É importante destacar que nenhum
dos dois candidatos apresentados tinha história de liderança política, nem relação clara com
qualquer partido. Clodovil se candidatou pelo Partido Trabalhista Cristão – PTC (antigo
Partido da Juventude que elegeu o Presidente Fernando Collor, posteriormente, denominado
Partido da Reconstrução Nacional, antes se firmar com a sigla atual). Tratamos de um partido
que teve o nome alterado por três vezes. Apesar do sucesso nas eleições presidenciais do

38
O candidato Clodovil, em 2006, ficou atrás dos Deputados Paulo Maluf e Celso Russomanno, mas como
evidenciava mais claramente nossa tese, trouxemos seus dados para o artigo.
39
V., por todos, MAINWARING, Scott. Políticos, partidos e sistemas eleitorais – o Brasil numa perspectiva
comparada. Novos Estudos Cebrap, n.29, 1991.
40
Cf. explica KLEIN, Cristian. Op. cit., p.53.

321
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

início dos anos 90, não se pode atribuir ao partido grande conhecimento ou identificação da
massa popular. Junto a esse fato, o partido já demonstrou afeição por candidatos sem carreira
política, vez que, além de Clodovil já foi candidato pelo PTC José Mojica Marins, o famoso
“Zé do Caixão”.
Não se pode – nem pretende a análise em tela - questionar a utilização de candidatos
sem carreira política anterior. O que se pretende demonstrar é que a pequena projeção do
partido e o sucesso de votação do então Deputado Clodovil são indicadores claros de que a
eleição do terceiro Deputado Federal mais votado de São Paulo não se atribuiu ao projeto
político do partido. Fosse isso, os então eleitores de Clodovil iriam dirigir novamente grandes
votos ao PTC, possibilitando o aumento de sua bancada na Câmara dos Deputados, o que não
ocorreu.
Pode-se vislumbrar idêntica situação quanto à eleição do Deputado Federal Francisco
Everaldo Oliveira Silva. Este nome pouco conhecido, na verdade, carrega um significante sem
valor se comparado ao seu nome artístico: Tiririca. Eleito Deputado Federal mais votado no
Estado de São Paulo nas eleições de 2010, segundo deputado mais votado da história do país.
Qual a ideologia política de partido apresentada pelo candidato durante as eleições?
Sua plataforma política era a ética, honestidade e a aproximação da política que acontece em
Brasília com a base eleitoral que pretendia atingir. A campanha pautou-se na ironia para
questionar a política brasileira41, inteligência publicitária (e/ou política) que lhe rendeu
representação junto ao Ministério Público por afronta ao Congresso Nacional, sem quaisquer
desdobramentos posteriores.
Neste caso, poder-se-ia atribuir a campanha publicitária do candidato a uma ideologia
partidária? Obviamente a resposta é negativa. Provavelmente, muitos eleitores sequer sabiam
que estavam votando em um candidato do Partido da República.
Desta forma, torna-se fato notório que as candidaturas de Clodovil e Tiririca não
encontraram respaldo na apresentação de um partido político, mas sim, predominantemente,
no voto nominal, isto é, aquele dirigido única e exclusivamente ao candidato, não ao partido.
Não obstante, tais candidaturas funcionam como verdadeiros dínamos propulsores dos
partidos, haja vista que essas votações contribuem em larga escala para o aumento do
quociente partidário e, consequentemente, da bancada na Câmara dos Deputados.
De outro giro, vislumbra-se exemplo de personalismo: a eleição do Deputado Federal
Enéas. O famoso político iniciou sua carreira nas primeiras eleições presidenciais diretas após

41
O candidato utilizou bordões do tipo: “O que faz um deputado federal? Na realidade, eu não sei. Mas vote em
mim que eu te conto” e “ Vote Tiririca, pior que tá não fica”.

322
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

fundar o Partido de Reedificação da Ordem Nacional – PRONA, onde obteve uma


surpreendente votação, considerando seu tempo de exposição no horário eleitoral. Após
seguidos insucessos em eleições presidenciais, Enéas decidiu candidatar-se a Deputado
Federal.
O PRONA elegeu junto com Enéas mais cinco Deputados Federais que atingiram
votações inferiores aos mil votos, dentro do colégio eleitoral de São Paulo esses números
sequer podem ser expressos em porcentagem considerável. Portanto, não estamos diante de
um partido que encontrava apreço ou identificação popular, mas somente de um nome que
alavancou a representação partidária na Câmara dos Deputados.
Fica claro nas situações apresentadas acima que o sucesso dos três candidatos não se
deveu à confiança sobre um projeto de partido como instituição representativa indispensável
ao sistema eleitoral. Ao inverso, o que se demonstrou foi a força de grandes nomes de
visibilidade nacional, seja através de sua carreia artística, jornalística ou política, nomes que
representaram a vontade do povo brasileiro que o elegeu, representação que certamente não
encontrava tamanho respaldo se colocada em função do partido político. Considerando o
colégio eleitoral de São Paulo, tão representativo no cenário brasileiro, estamos diante de forte
indicador da hipótese apresentada, de que o eleitor brasileiro não vota, em sua maioria,
pensando no partido, mas sim no candidato.
Não fosse o demonstrado acima, é ainda de se mencionar que alguns estudos
demonstraram a recrudescente necessidade de um candidato se individualizar de seus
companheiros de partido e a grande autonomia conferida aos candidatos a deputado federal
em suas campanhas são pontos determinantes para uma votação centrada no candidato e não
no partido42. Importantíssimo ainda mencionar que, em dados apresentados pelo TSE, foi
possível identificar clara queda nos votos nas legendas43.
Para que fique ainda mais clara a questão, é interessante apresentar os dados da
pesquisa IUPERJ-2002, que em coleta de opinião procedeu à seguinte pergunta: “na escolha
para deputado Federal, o que foi mais importante, o candidato ou o partido ao qual ele
pertence?” O resultado aponta que noventa e dois por cento (92%) dos eleitores responderam
que o candidato havia sido mais importante, enquanto quatro por cento (4%) disseram que a

42
NICOLAU, Jairo. O sistema eleitoral de lista aberta no Brasil. In: NICOLAU, Jairo e POWER, Timothy J..
Instituições representativas no Brasil. Balanço e Reforma. Belo Horizonte: Editora UFMG e Rio de Janeiro:
IUPERJ, 2005, p. 105.
43
Temos no Brasil um chamado sistema misto, onde o eleitor pode votar no candidato ou na legenda do partido.
O percentual de votos nas legendas é menor hoje, apesar das variações, se comparado aos anos anteriores, o que
é fator crucial nessa verificação da personalização do voto do eleitor e falha na credibilidade dos partidos.

323
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

escolha se pautava no partido e, por fim, a mesma porcentagem atribuiu a decisão aos dois
fatores44.
Não resta dúvida que se apresentou aqui o desejado, o eleitor em cenário pátrio vota
pensando principalmente nas características pessoais do candidato e não no partido ou na
ideologia partidária. Todos os fatores acima respaldam essa posição e consagram a hipótese
ventilada de que a identificação se dá entre eleitor-candidato, logo o requisito de filiação
partidária, em tese, poderia ser reconsiderado e interpretado como elemento meramente
formal e procedimental para a eleição de diversos candidatos (como, de fato, aconteceu em
alguns momentos). A realidade eleitoral brasileira, em panorama geral, não consagra os
partidos políticos como fortes instituições ideológicas e de reconhecimento popular a influir
determinantemente nas decisões de voto da população.

4. O DESCOMPASSO ENTRE A DECISÃO DO STF E A A REALIDADE DAS


URNAS

Em face das conclusões anteriormente traçadas, pode-se ressaltar uma premissa que
recrudesce ao longo da análise empreendida: o posicionamento do STF, in casu, aparenta não
estar em perfeito encaixe com as engrenagens fáticas sociais. Em outras palavras, não
obstante a justaposição normativa se fazer presente em todo o arcabouço argumentativo
traçado para sustentar o pertencimento do mandato ao partido e não ao agente político, as
ferramentas interpretativas utilizadas parecem não considerar como o eleitor percebe
individualmente o candidato e, por diversas vezes, não atrela seu voto a qualquer ideologia
partidária. Tal constatação aponta para diversas consequências delicadas, notadamente quanto
ao distanciamento da Corte Constitucional para como parcela significativa da sociedade
concebe o voto personificado. Há, aparentemente, ausência de compreensão institucional
quanto ao fenômeno que, de tão nítido, pode beirar o senso comum.
Somente a titulo de esclarecimento, deve ficar consignado que, hodiernamente, a
construção de democracias constitucionais estão articuladas sob dois eixos: (i) autogoverno do
povo e (ii) direitos fundamentais. É nítido o recrudescimento popular na esfera pública,
moldando-se como legitimador dos atos/omissões praticados pelo Poder Público, bem como
igualmente límpido a necessidade de manutenção de um governo que proteja minorias.

44
NICOLAU, Jairo. Op. cit., p. 110.

324
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

O crescimento do judicial review nas democracias constitucionais suscitou a


inquietude em alguns teóricos que, angustiados com os rumos da atuação judicial, propuseram
paradigmas criativos em contraposição ao judicial review sem que se determinasse o status de
supremacia judicial. Dentre eles, surge o Constitucionalismo Popular45.
Tendo em Larry Kramer um dos seus teóricos expoentes, sua premissa centra-se no
que denomina de “constitucionalismo popular”46, onde o povo é quem deveria ser o intérprete
final do texto constitucional, e não a Corte Constitucional. Para instrumentalizar sua
participação, são várias as formas de manifestação da vontade popular, notadamente o direito
de petição, o voto direto e as mobilizações populares. 47
Em breve contextualização, esta proposta esteve bastante difundida entre os séculos
XVIII e XIX. À época, o direito constitucional estava intrinsecamente atado a questões
políticas. A instância jurisdicional não parecia adequada para apreciar aquela espécie de
direito tão relacionada à atividade política, já que seus integrantes não eram eleitos e,
portanto, não poderiam ser responsabilizados pelos seus atos. Em principio, as questões
políticas seriam decididas pelos representantes do poço e, em úlçtima instancia, pelo próprio
povo diretamente, ao eleger ou não aqueles representantes que defendessem as posições de
sua preferência.
Em síntese, o constitucionalismo popular e o judicial review são colocados sob a
perspectiva da soberania popular, utilizando-se o teórico dos debates e embates entre
federalistas e republicanos para justificar e consolidar a revisão judicial tal como por ele
idealizada48.
O conflito político entre Federalistas49 e Republicanos se torna problema crônico no
cenário político norte-americano. É nesse contexto de tensão que se dão as discussões acerca

45
Dada a extensão do tema e as diversas nuances das teorias trabalhadas, é interessante ler as sintéticas e densas
considerações feitas em BOLONHA, Carlos; EISENBERG, José; RANGEL, Henrique. Problemas institucionais
no constitucionalismo contemporâneo. Direitos Fundamentais & Justiça, ano 5, n.17, 2011.
46
"O ponto em que o constitucionalismo popular difere do entendimento atual está em segundo plano. Ele não
presume que a interpretação jurídica autorizada possa acontecer apenas nos tribunais, mas, antes, pressupõe que
um processo de interpretação igualmente válido possa ser empreendido nos poderes políticos e pela comunidade
geral. (...). " KRAMER, Larry. Democracia deliberativa e constitucionalismo popular: James Madison e o
'interesse do homem". Limites do controle de constitucionalidade. BIGONHA, Antonio Carlos; MOREIRA,
Luiz (org.). Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009, p.89.
47
V. KRAMER, Larry. Foreword: We The Court. Harvard Law Review, v. 115, n.1, 2001.
48
A digressão ora trabalhada debruça-se principalmente nos capítulos 4 e 5, p. 93 – 143, da obra de de
KRAMER, op. cit.,. Como o que se pretende nessa seção é reproduzir a tese apresentada nesses dois capítulos do
livro, nos reservamos o direito de não introduzir as referências a cada página...
49
Os Framers ficaram assim designados após sua contribuição ao debate que antecedeu a promulgação da
Constituição dos Estados Unidos e, posteriormente publicados sob o título: HAMILTON, Alexander;
MADISON, James; JAY, John. The federalist papers. Electronic Classics Series Publication: Pennsylvania
State University, 2001. Em contraponto, no entanto, os antifederalistas criticavam principalmente o sistema de
checks and balances, aludindo-se naturais entraves causados pelas próprias desavenças políticas da Democracia.

325
COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

das instituições do Estado e dos papéis a que se caberiam aos Poderes, aos partidos e ao povo.
O que importa principalmente são as discussões que se detiveram acerca do controle judicial
sobre atos de outros Poderes, vamos além da perspectiva de Marbury vs Madison, tida
erroneamente como marco inicial do judicial review50.
Após a perda do poder dos Federalistas para os Republicanos e uma série de
estratégias utilizadas pelos perdedores para se manterem no jogo de governabilidade através
dos órgãos Judiciários, surge a discussão sobre a independência dos Poderes e sobre a
soberania/supremacia do Judiciário. As Cortes justificavam a necessidade de controle de leis e
atos inconstitucionais por serem elas representantes do povo, guardiãs da Constituição e que
por isso deveriam se negar a aplicar normas contrárias a mesma, porque qualquer cidadão
deveria agir deste modo, sendo o principal mecanismo para manter a vontade do povo
manifesta no texto magno.
De um lado temos os Federalistas, preocupados e amedrontados com as participações
populares no Estado, fortalecendo a ideia de um governo forte, que não se confunde com o
povo. Pensamento que coloca a soberania popular como elemento criador do Estado, ao passo
que, uma vez escolhidos os representantes para governar, na forma estabelecida pela
Constituição, não seria mais o povo chamado a resolver qualquer problema de competência
governamental. Seria uma democracia “tradicional” de escolha, onde a soberania popular
estaria alienada aos seus representantes após a nomeação dos mesmos, dessa forma a
soberania não é perpetuamente popular, mas do povo deriva. A posição federalista acerca do
controle judicial se coloca nesse sentido, baseada na necessidade de decisões
intragovernamentais, caberia ao poder judiciário controlar os atos parlamentares que
violassem a Constituição, porque este seria a instituição com a devida imparcialidade e
formação para tanto. A tese aqui vai além de um simples controle: consiste, em verdade, na
grande jogada da supremacia do Judiciário em relação aos outros Poderes, vez que ele teria
prerrogativa inclusive para declarar inconstitucionais leis promulgadas pelo Parlamento51. O
Poder Judiciário finalmente foi consagrado como instituição máxima de proteção da

Neste sentido, “Entretanto, convém notar que, apesar da habitualidade com que são confundidas, não existe
identidade entre a proposta de adotar um sistema de ‘freios e contrapesos’ e um sistema de (simples) divisão de
poderes. Mais ainda, nos anos de debate constitucional, nos Estados Unidos, federalistas e antifederalistas se
distinguiram entre si fundamentalmente pela posição que adotaram frente a tais questões”. GARGARELLA,
Roberto. “Em nome da Constituição: o legado Federalista dois séculos depois”. Filosofia Política Moderna: de
Hobbes a Marx Boron. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006, p. 176.
50
De acordo com o autor, não se pode utilizar o caso supracitado como defesa para a supremacia judicial, vez
que o objetivo do judicial review, à época, era outro. Para uma melhor aprofundamento quanto ao ponto, v.
SNOWISS, Sylvia. The Marbury of 1803 and the Modern Marbury.
51
Para além de um projeto de Estado, as posições federalistas nesse sentido relacionam-se intimamente com seu
interesse em manter o poder após derrota nas eleições pelo país.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Federação, isto porque seria ele o único capaz de guardar a Constituição dos ataques do
parlamento e do próprio povo. Este que poderia, segundo os Federalistas, ser considerado seu
maior inimigo nessa questão.52
Instaurou-se então à discordância republicana. Questionou-se primeiramente a
inexistência de um princípio que concedesse ao Judiciário esse poder de revisão que estava
sendo deferido. À resposta federalista de que a indecisão de umiapoder para dar a palavra
final seria o estabelecimento de uma indecisão perpétua em caso de conflitos, os republicanos
diziam que a interpretação final reside no povo53. A seu turno, Jefferson e Madison defendem
que não há melhor segurança de controle do que aquela colocado nas mãos do povo, para o
arrepio dos Federalistas. Com ações públicas (leia-se ações deflagradas pelo Governo) e
determinadas de cada órgão governamental, configuraram-se vários sentinelas nas figuras dos
cidadãos. Afinal de contas todos estão subordinados a vontade da comunidade. A
argumentação trazida alude inclusive à possibilidade de o Judiciário cometer violações em
nome da constituição, contra ela mesma54. Desta feita, não estaríamos nunca seguros, se não
nas mãos do povo. Aqui reiteram o principal ponto: people can take care of themselves – o
povo é capaz de tomar conta de si mesmo (tradução nossa).
Em que pesem as extremidades defendidas, os Republicanos não desejavam expurgar
o controle judicial ou ainda questionar as qualidades e qualificações do Judiciário para tomar
decisões relativas ao direito. O que se colocava em questão era o exacerbado enaltecimento de
um dos Poderes do Estado, a colocação do Poder Judiciário como supremo, posição de
superioridade essa não aceita pelos Republicanos, pois se entendia que a verdadeira
supremacia só poderia revelar-se no povo e em ninguém mais.
Dito isto, pode-se afirmar que há uma relação íntima entre os impasses destacados no
cenário norte-americano e a problemática trazida por meio das decisões do STF e do TSE
sobre fidelidade partidária. A revisão e o controle judicial são questões consagradas no direito
sobre diversos aspectos, entretanto não se pode esquecer os ensinamentos trazidos pelos
republicanos com tanta assertividade: por mais que seja necessário um Poder capaz de
resolver os conflitos emergentes entre os próprios Poderes do Estado, não deveria a Corte
Constitucional arrogar-se nessa qualidade para interpretar a Constituição em manifesta
contraposição à vontade manifesta do povo.

52
KRAMER. Op. cit., p. 132.
53
Apenas é importante destacar essa colocação como proposição chave: em caso de indecisão, a interpretação
final da constituição fica com o povo.
54
Destaca-se aqui também algo que se adequa perfeitamente a nossa proposição de relação entre as discussões
relatadas e ao nosso caso.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Baseados em métodos interpretativos , o TSE e o STF alteraram o entendimento


jurisprudencial para dizer que o mandato do parlamentar eleito no regime proporcional não
pertence ao candidato, mas ao partido. Há, a nosso sentir, manifesta contradição: demonstrou-
se até o presente momento que, na realidade, o povo concede o mandato para o candidato e
não para o partido. A contrario sensu, como pode a Corte Constitucional, que deveria agir em
nome do povo, proferir decisão que contraria diretamente sua vontade?
Não se pode negar que a tese vencedora no STF é inteiramente aceitável do ponto de
vista argumentativo, mas não há na Constituição disposição expressa que determine a perda
do mandato parlamentar em caso de mudança de legenda, tendo a decisão se baseado em
métodos de interpretação da Constituição55, como diversas vezes mencionado nos votos dos
Ministros. E é nessa esteira que se defende a inadequação do novo entendimento
jurisprudencial, totalmente afastada daa verdadeira vontade do eleitor. Cabe aqui ponderar o
esquema apresentado pelo Ministro Cezar Peluso onde coloca a relação eleitoral como eleitor
– partido – candidato. Entendemos que a Constituição, ao admitir um sistema misto de
eleição56, estabeleceu uma relação triangular e não em linha. E os elos desse triângulo podem
se verificar mais fortes e mais fracos entre si. Todo o exposto acima nos leva a visualizar um
elo mais forte entre eleitor e candidato do que entre eleitor e partido. Portanto, os três fatores
são imprescindíveis (o eleitor, o candidato e o partido político), mas o vínculo entre eleitor e
candidato se mostrou mais representativo. Por vezes então será inclusive baseado na
confiança do eleitor que o eleito deverá mudar de partido, para não macular esse pacto com o
mesmo, ao contrário do que determinaram os Ministros.
A situação de inadequação do controle judicial é tamanha que é possível remontar ao
defendido pelos Republicanos a mais de um século atrás. Não há controle mais seguro do que
aquele que reside com o povo.
Para que fique claro, o posicionamento aqui defendido não é a necessidade de consulta
ou verificação popular a cada decisão da Corte Constitucional57. No entanto, não se pode
negar a existência de questões de cunho eminentemente político e que podem ser defendidas
nas lacunas normativas posição justaposta à realidade social subjacente. Se a vontade popular

55
Resolução nº 22.526 do TSE, 2007. Relator: Ministro Cesar Asfor Rocha. p. 7.
56
Possibilidade de voto no candidato ou na legenda nas eleições proporcionais para Deputados Federais.
57
"Ademais, sem responsividade popular o Judiciário representa o povo apenas de forma paternalística, pois se o
agente protege os interesses do titular segundo o seu julgamento (e não o do titular), atua como espécie de
superego de uma sociedade que se infantiliza pela incapacidade de tomar decisões que afetam a sua vida."
BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra
sobre o sentido da Constituição? Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2012, p.216. Para maior aprofundamento,
v. MAUS, Ingeborg. Judiciário como superego da sociedade – o papel da atividade jurisprudencial na
‘sociedade-órfã’. Novos Estudos Cebrap, n. 58, p. 183-202.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

determina a eleição de determinado agente para o cargo de Deputado Federal, confiando em


suas características pessoais, não parece certo uma decisão judicial ter a prerrogativa de
constranger esse exercício.Configura-se aqui verdadeira usurpação da soberania popular.
Para ilustrar as assertivas acima traçadas, é pertinente trazer quadro estatístico sobre a
migração partidária e accountability eleitoral58. O quadro está baseado nos dados processados
pelo TSE em relação a levantamento realizado com dados obtidos na Câmara dos Deputados,
tangenciando estatísticas de reeleição de políticos que migraram de partido durante o mandato
em comparação com os que se mantiveram fiéis.

Ree leição por grupo de deputados (%)


1987-1990 1991-1994 1995-1998 1999-2002 2002-2006
Fidelidade 35,9 45,2 54,5 54,8 72,5
Migração 27,5 38,2 44,7 45,2 53,3

O autor utiliza o quadro para afirmar sua tese de que os eleitores estão preocupados
com a fidelidade partidária e que não votam somente pelo candidato, mas o partido tem
extrema importância nessa escolha.59 Não temos dúvida que tais conclusões refletem alguma
parcela da população, mas já foi demonstrado eleitores que só levam em conta o elemento
pessoal e que são a aparente maioria. Com a devida vênia, há motivos para se discordar das
correlações feitas entre as conclusões exaradas pelo autor e das estatísticas apresentadas, vez
que não parece ser razoável inferir desse quadro elementos que contrariem a mencionada
pesquisa de opinião com pergunta direta que foi exposto mais acima.
Em perspectiva diversa, é verificável que, não obstante as diferentes proporções
indicadas, a taxa de reeleição aumentou em ambos os casos, , o que demonstra um aumento
no apreço dos eleitores pelos candidatos ainda que os mesmos alternem de partido.
Não obstante o uso engendrado pelo autor, as informações trazidas neste quadro
também servem para verificar outra premissa: admitindo-se que há eleitores votantes em
partido e candidato (sem distinção de maioria ou minoria) e que, supostamente, há
insatisfação dos eleitores quando seus candidatos mudam de legenda (representada pela taxa
de 46,7% de deputados “infiéis” que perderam a eleição – conforme os dados da tabela),
ainda assim a decisão de conferir os mandatos parlamentares aos partidos foi inadequada.
Inadequada porque essas considerações demonstram o que se pretendeu neste item, que o

58
MARENCO, André. Desempenho Eleitoral, Voto Partidário e Responsabilização nas Eleições Legislativas
Brasileiras. In: INÁCIO, Magna e RENNÓ Lucio. Legislativo Brasileiro em Perpectiva Comparada. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 301.
59
MARENCO, Op. cit., p. 298-303.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

povo é capaz de tomar conta dele mesmo, ele é o verdadeiro controlador dos poderes
constituídos da República.
Mais uma vez coloca-se questão central do Estado e de Constituição dos Poderes e é
nesse ponto que a revisão judicial deve se limitar a violações manifestas e expressas da
constituição, sob pena de violar a vontade do povo, entendimento colocado pelos republicanos
nos debates sobre o tema.60 Soma-se a isso a questão de maior importância, evidenciada nesse
caso específico da fidelidade partidária: o povo é capaz de tomar conta de si mesmo e exercer
controle. O exercício desse controle se faz a cada legislatura nas urnas e seria eficaz e
legítimo, demonstrando claramente a vontade do povo em punir com a perda do mandato os
candidatos que trocassem de legenda contra os anseios de seus eleitores e ao inverso, ratificar
o ato daqueles que trocaram de legenda em favor de seus eleitores. O maior remédio para a
alegada “imoralidade” da infidelidade partidária é o voto61.

5. ALTERNATIVA À DECISÃO DO STF E A CANDIDATURA SEM VINCULAÇÃO


PARTIDÁRIA

O arcabouço argumentativo até então construído demonstra sua total pertinência para
concluirmos pela viabilidade de duas premissas: (i) a tentativa de consonância entre o
posicionamento das Cortes Superiores e os anseios sociais e (ii) a predisposição parlamentar
na propositura do Projeto de Emenda Constitucional nº 7 de 2012 – PEC nº 7/2012 – do
Senador Cristovam Buarque62.
Quanto ao primeiro ponto, pode parecer simples – e beirando a ingenuidade – suscitar
que bastaria às Cortes que se predispusessem a incutir nas suas equações decisórias elementos
extraídos das situações sociais. É uma questão de vontade institucional63.
Ademais, a questão também perpassa pelo olhar institucional crítico. Não é necessário
se estender em relação ao posicionamento que deveria ter sido tomado pelos tribunais que
figuram nesse imbróglio jurídico. Alternativamente ao posicionamento inadequado, o STF e o
60
KRAMER. Op. cit., p. 102-103.
61
KRAMER. Op. cit., p. 141-142.
62
De pronto deve ser assinalado que não se pretende analisar os aspectos técnicos e econômicos derivados da
PEC, mas tão somente o proposto mecanismo de desfiliação partidária para candidatura.
63
Vontade institucional é um elemento utilizado pela teoria neoinstitucionalista de matriz histórica-interpretativa
para designar o elemento subjetivo das instituições, sua força-motriz, caracterizada pela combinação de
perspectiva coletiva de indivíduos que participam da instituição e da cultura institucional da organização.V.
MILLER, Mark C. The view of the courts from the hill: a neo-institutional perspective. In: MILLER, Mark C. &
BARNES, Jeb (Ed.). Making Policy, Making Law: an interbranch perspective. Washington, DC:
Georgetown University Press, 2004, p. 53/71.

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

TSE poderiam não ter alterado o entendimento anterior, não necessariamente baseando-se no
fato de que o partido não tem importância, mas colocando a clara e forte posição de que é o
povo o verdadeiro soberano do Estado e que ele exercerá o controle relativo a esta questão.
Demonstrar ainda que o judiciário não deve sub-rogar-se em tão importante decisão do povo
em relação aos seus representantes, sob pena de colocar em conflito e em confusão os
verdadeiros papéis de Estado e cidadão. São mais do que plausíveis os argumentos
apresentados pelos Ministros em relação à fidelidade partidária, mas não deveriam os mesmos
ter se prestado a jurisdição nesse ponto, afirmando que a Constituição concede o poder
máximo ao povo e que em questões de Constituição do Estado que não sejam manifestamente
infringentes do Texto Magno, não deve a Corte se posicionar em lugar do povo. Seria um
posicionamento adequado com a realidade e menos controverso, que neste liame não geraria
tensão entre os poderes, mas principalmente não afastaria a identificação do cidadão com as
instituições republicanas.
Quanto ao segundo ponto, a Proposta de Emenda à Constituição nº 7/2012 pretende
alterar a redação do §3º, V do art. 14 da Constituição Federal64, para acrescentar a
possibilidade de candidatura sem vinculação a Partido Político, apenas com a subscrição de
determinado número de eleitores65. A justificativa elaborada debruça-se sobre a necessidade
de afastar do ordenamento jurídico o monopólio partidário e, consequentemente, oportunizar
ofortalecimento da soberania popular. Não se quer com isso defender qualquer argumento que
tente denegrir ou marcar como nocivas as instituições partidárias, pelo contrário. Não se pode
afastar a importância da manutenção partidária brasileira e a motivação para o seu paulatino
fortalecimento ideológico. Entretanto não se pode esconder o abismo existente entre o papel
ideal dos partidos políticos – que proporcionaria a conexão representativa direta com o
cidadão –, diferente do que se apresenta na prática, inclusive no momento das urnas.

64
Assim determina o artigo 14 da Constituição Republicana: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio
universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: (...)§ 3º - São
condições de elegibilidade, na forma da lei: (...)V - a filiação partidária”. Pretende-se alterar este inciso, que
passaria a ter a seguinte redação: “ V – a filiação partidária ou, na forma da lei, a subscrição do pedido de
registro de candidatura por certo número de eleitores.”
65
Conforme se extrai do sítio eletrônico do Senado Federal, a PEC encontra-se estagnada desde 29 de fevereiro
de 2012, aguardando pronunciamento da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. É interessante ainda
transcrever breve excerto da justificativa traçada pelo Senador Cristovam Buarque: “(...) A mudança proposta é
facilmente aplicável ao sistema eleitoral atualmente praticado, seja para cargos do Poder Executivo ou do
Legislativo, bem como adaptável a eventuais mudanças no sistema vigente, como, por exemplo, a adoção de um
modelo distrital puro ou misto. Questões como a suplência e o funcionamento parlamentar podem ser resolvidas
mediante a aplicação das regras constitucionais já vigentes e alterações no ordenamento infraconstitucional. Com
certeza de que essa medida permitirá o aprimoramento da representação política e a aproximação entre
mandantes e seus mandatários, (...).”

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COLEÇÃO CONPEDI/UNICURITIBA - Vol. 37 - Teoria do Estado e da Constituição

Nesta linha de raciocínio, é notável o esforço deflagrado pela iniciativa parlamentar


consciente de que não pode o ordenamento jurídico se distanciar por completo da vontade
popular ou excluir parcela representativa da população. E talvez seja este o ponto mais
interessante que há para se mostrar: há verdadeiro movimento político e a real possibilidade
de alteração constitucional quanto ao tema, que ganhou a pauta permanente nas discussões
políticas. Obviamente que ao campo das ciências sociais deve ser atribuída tarefa para
investigar melhor o tema e suas prováveis consequências no sistema eleitoral e na democracia
representativa.

6. CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, pode-se concluir que, apesar da correção de alguns


argumentos apresentados nas decisões questionadas (objeto deste trabalho), o resultado
deveria ser divergente do ocorrido diante da completa inadequação com a realidade eleitoral
brasileira. As posições e decisões acerca da interpretação constitucional devem ser cautelosas,
principalmente quando concernentes a questões de constituição do Estado. Em verdade, não
podem os Poderes assumir posicionamento à revelia do povo sem prejuízo de sua própria
vontade. O povo é capaz de tomar conta de si mesmo e exerce controle das instituições
parlamentares através do voto. Não pode ter frutado esse direito com base em interpretação
valorativa da Constituição (ainda que supostamente correta).
Reconhecemos a inadequação da decisão do STF e a crise institucional e de
legitimidade que pode se agravar nessa perspectiva. Se a decisão do STF contraria a soberania
popular, como pode este órgão ter sua legitimidade incontestável? Se um deputado, eleito pelo
povo, perde o mandato com base em nova interpretação do judiciário, como vai o povo
compreender a instituição parlamentar que não o representa? Essas perguntas pairam sobre a
cabeça de todos aqueles atentos às repercussões das decisões do STF na área política e as
dúvidas jamais serão interessantes para uma verdadeira compreensão das instituições e seus
papéis no jogo político brasileiro.
A legitimidade das instituições brasileiras, a identificação e sua compreensão pelo
povo são fatores essenciais à existência da verdadeira democracia e à consolidação do Estado
de Direito.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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