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FORTALEZA
2017
MÁRCIO ANDRÉ TEIXEIRA BARRADAS
Fortaleza
2017
MÁRCIO ANDRÉ TEIXEIRA BARRADAS
Aprovado em ___/___/___
BANCA EXAMINADORA:
Orientador Prof.ª Dr.ª Tânia Maria Couto Maia. Faculdade Católica de Fortaleza
During the whole period of history, it has always motivated interest in seeking to understand
justification by faith in Pauline theology. The objective of this research is to elaborate an
exegetical analysis of Rom 3,21-26, trying to understand, in Pauline theology, the work of
salvation to all humanity due for the redemption of Jesus Christ. The core issues, which are
analyzed: the justice of God, the role of the Law in the history of salvation, and the grace of
God in Jesus Christ. The elaboration of this thesis presents the thought of scholars of Pauline
Theology, exegesis and biblical dictionaries, as well as the teachings of Church and dogmatic
theology most relevant to biblical understanding. The exegesis of this thesis assists in a better
general understanding of the Epistle to the Romans, and also it helps to discover the depth of
Pauline theology. The justification, central theme of this research, occurs through the grace of
God, demanding from each one the faith in Jesus Christ as an answer, and the gratuitousness of
salvation that is independent of the works of the Law. This thesis research proposes an in-depth
reading of the specific stretch of the Scriptures (Rom 3,21-26), giving the reader a sharp
theological view, consistent with the density of the theme.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8
INTRODUÇÃO
1
Por toda a monografia, AT será a abreviação de Antigo Testamento.
9
necessidade de combater os ciclos judaizantes da sua época, que enfatizavam preceitos da Lei
que diminuíam a importância da graça de Cristo e da vida no Espírito.
No terceiro capítulo, adentrar-se-á no tema central da monografia: A justificação
mediante a redenção realizada por Jesus Cristo em Rm 3,21-26. Ora, para tanto, será necessário
dividi-lo em duas partes. Primeiramente, com uma exposição breve, mas pertinente, serão
apresentados alguns teólogos e documentos da Igreja que, ao longo da história, e com o fulcro
de aprofundamento acerca do entendimento sobre a justificação, apontam para a complexidade
e importância do tema. No segundo momento, a exegese da perícope escolhida para
aprofundamento desta monografia, com a finalidade de, ao citar os estudiosos eminentes e
atuais em Romanos, dar ao leitor a real chave de interpretação bíblica que é entendimento do
contexto e da intenção que Paulo tinha ao escrever a presente epístola.
Por fim, na conclusão, será analisado se os objetivos desta presente pesquisa
monográfica foram utilizados, quais os meios que serviram para sua pesquisa, qual a sua
contribuição acadêmica e o que se pode melhorar para os estudantes de teologia que desejarem
dar continuidade à presente pesquisa.
10
Após a sua publicação, ao longo dos séculos, esta epístola, por questões interpretativas,
esteve tanto no centro do debate protestante-católico, quanto no centro da controvérsia judaico-
cristã. Somente recentemente, como consequência da consciência ecumênica pós-Vaticano II e
da consciência inter-religiosa pós-holocausto, os modelos interpretativos anteriores começaram
a se separar.
Já não é possível ler esta carta, sem levar em conta as numerosas e variadas
técnicas literárias com as quais foi escrita. Ou seja, é necessário evitar uma
leitura diretamente teológica, sob pena de fazer Paulo dizer o oposto do que
ele diz. Algumas precauções são indispensáveis para saborear a beleza deste
escrito [tradução nossa].4
A estrutura da presente epístola é semelhante aos outros modelos de composição. Existe
o destinatário (præscriptum 1,1-7), a despedida (postscriptum 15,33), as notícias (Rom 15,17-
2 Cf. MUDDIMAN, John. BARTON, John. The Pauline Epistles. New York: Oxford University Press, 2010. p.
58.
3
Todas as citações bíblicas em português presentes nesta monografia foram utilizadas pela seguinte tradução:
BÍBLIA: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2010.
4
“ Ya no es posible leer esta carta sin tener em cuentalas numerosas y variadas técnicas literarias com las que
ha sido redactada. Es decir, es necesario evitar una lectura diretamente teológica, so pena de ahacer decir a
Pablo lo contrario de lo que dice. So nin dispensables algunas precauciones para saborear La belleza de este
escrito”. ALETTI, Jean Noël. Comentario Bíblico Internacional. Navarra: Verbo Divino, 2000. p. 1417.
11
32), as saudações (Rm 16), e as petições e exortações (Rm 12-15). Na parte doutrinal da
epístola, existe a propositio (a tese central da epístola: Rm 1,16-17), e a probatio (o
desenvolvimento explicativo da propositio). A probatio pode ser dividida em três partes: A
primeira trata da afirmação que tanto os judeus quanto os gentis são justificados pela fé (Rm
1,18-4,25). A segunda, com relação à vida nova e à esperança dos batizados (Rm 5-8). Por fim,
a terceira que se refere a Israel e às nações, e ao futuro de Israel.5
Em todo e qualquer aprofundamento dos textos paulinos, requer-se uma atenção com os
termos que Paulo utiliza, já que são inúmeros os equívocos interpretativos com o pensamento
paulino. Ora, em Romanos não seria diferente, pelo tamanho da epístola e pela profundidade
em que são desenvolvidos os temas. A presente pesquisa monográfica aprofunda,
especificamente, os seguintes termos: justiça de Deus por Jesus Cristo, Lei, graça e justificação
pela fé. Por isso, a apresentação de uma visão geral da epístola; bem como o contexto histórico
em que foi escrita; serve de auxílio propedêutico para posterior aprofundamento bíblico e
exegético do tema desta monografia.
Na Epístola aos Romanos, Paulo expõe muitos temas semelhantes aos da carta aos
Gálatas; porém, a Epístola aos Romanos é escrita de forma mais sistemática e em um ambiente
mais tranquilo e reflexivo. Romanos expressa o processo de maturação da teologia paulina.
Ademais, Paulo opta nesta epístola por um estilo literário grego (uso da diatribe, por exemplo),
e que não aborda nenhum problema específico da Igreja Romana, sendo que na seção exortativa
(cap. 12-14), apenas são abordados temas de forma generalizada, fruto de experiências
anteriores da ação missionária de Paulo.7
5
Cf. ALETTI, op. cit., p. 1417.
6
Cf. CRANFIELD, C. E. B.. Carta aos Romanos. Anacleto Alves (trad.). São Paulo: Paulinas, 1992. p. 9.
7
FITZMAYER, Joseph A., et al. Comentario bíblico "San Jerónimo”. Vol.4. Madrid: Cristantad, 1972. p. 103.
12
São Paulo escreveu duas cartas sobre a salvação gratuita que Deus concedeu
por meio de Jesus Cristo aos que creem nele. A primeira é a Carta aos Gálatas,
no auge da controvérsia com os judaizantes. A segunda é a Carta aos
Romanos, na qual, embora o contexto da controvérsia continue a existir,
aprofunda ainda a exposição da salvação operada por Cristo de forma serena
e, cuidadosamente, fundamentada, com perspectivas muito mais abrangentes
do que em Gálatas [tradução nossa].8
Na experiência que Paulo tem ao longo da sua vida missionária, deparou-se com a crise
dos judaizantes, e compreendeu que a justificação e a salvação do homem não dependem das
obras da lei, mas, ao invés disto, da fé em Jesus Cristo (cf. Rm 1,16-17). Ora, aos judeus que se
veem salvos e perfeitos cumpridores da Lei, Paulo critica veementemente, chamando-os de
“guia de cegos, luz dos que andam nas trevas, educador dos ignorantes e mestre dos que não
sabem” (Rm 2,19-20a). Paulo reconhece que, por conta do seu orgulho, “que ensinas aos outros,
mas não ensinas a ti mesmo” (Rm 2,21a), acabam os judeus caindo na hipocrisia, “que ensinas
que não deve furtar, e furtas!” (Rm 2,21) ou ainda, “que te glorias na Lei, desonras a Deus pela
transgressão da Lei” (Rm 2,23).
Por conta da problemática inicial apresentada por Paulo (cf. Rm 1,18-3,20), em que
apresenta que tanto o judeu quanto o gentio são pecadores, não se pode afirmar que somente os
judeus conhecem a vontade de Deus, por terem a lei mosaica, em detrimento dos gentios. De
fato, decorrente da consciência humana, toda a humanidade pode ter a ideia de justiça. Para
melhor compreender a novidade da teologia paulina desenvolvida na Epístola aos Romanos,
requer-se uma apresentação da transição da compreensão da Ira Divina (presente no AT), para
a justiça de Deus (na teologia Paulina).
8
“San Pablo escribió dos cartas sobre la salvación gratuita que Dios ha concedido por medio de Jesucristo a
quienes creen en Él. La primera es la Carta a los Gálatas, en el momento álgido de la polémica con los judaizantes.
La segunda es la Carta a los Romanos, en la que aunque sigue existiendo el trasfondo de la polémica, sin embargo
profundiza en la exposición de la salvación obrada por Cristo de modo sereno, cuidadosamente razonado, con
perspectivas mucho más abarcadoras que en Gálatas”. CASCIARO, José María (org.); et al. NOTA DE PIE DE
PÁGINA, in: BIBLIA. N. T. Epístola a los Romanos. Español. Pamplona: Eunsa, 2002. p. 2784.
13
Para o povo do Antigo Testamento não era suficiente dizer que Deus era o Senhor da
lei, mas que Ele permanecia fiel a sua aliança. A justiça de Deus manifestava-se na sua ação
salvífica, que corresponde à fidelidade à aliança por parte do seu povo. Dentre as
particularidades da língua hebraica, três verbos referem-se à prática da justiça: ( דִּ יןdîn), שָׁ פַט
(shᾱphat) e ( יבִרrîb).
O verbo ( דִּ יןdîn)9 designa o ato de justiça destinado a estabelecer a legalidade dos
decretos, julgamentos e leis. Assim quando se lê: “o homem justo atende ( )דִּ יןa causa dos
pobres” (cf. Pr 29,7), percebe-se a ação de Deus que julga com justiça a causa dos fracos.
Igualmente: “pois se eles bebem, eles esquecem as leis e não atendem ( )דִּ יןo direito dos
destituídos” (Pr 31,5), e: “Abre a boca para dar sentenças justas, para defender ( )דִּ יןos pobres e
os indigentes” (cf. Pr 31,9).
שפַט
ָׁ (shᾱphat)10 é o termo predominante na linguagem judicial bíblica para designar o
ato de julgar. Eli julgou Israel por quarenta anos (1 Sm 4,18) e que Samuel julgou Israel em
Ramá (cf. 1 Sm 7,17). Neste caso, שפַט
ָׁ (shᾱphat) significa governar ou orientar. O Senhor se
alegra de que Salomão, durante o sonho em Gabaon, havia pedido o discernimento para
governar (שפַט
ָׁ ) com retidão (cf. 1 Rs 3,11). Israel proclama que o seu Deus é o guia de todos os
povos: que as nações se regozijem e cantem de alegria, porque julga (שפַט
ָׁ ) os povos com justiça
e governam as nações da terra (cf. Sl 67,5).
9
“Tem significado quase idêntico ao de shᾱphat (q.v.) e do substantivo derivado miṧpᾱt (q.v.). Aparece apenas 23
vezes, uma fração das vezes em que shᾱphat e mishpᾱt aparecem. Das 23 vezes, cinco são paralelos de shᾱphat
(Jr 5,28; 22,16; Pv 31,8; Sl 7,8[9]; 9,8[9]), e em duas outras a palavra está associada no texto com mishpᾱt (Sl
72,2; Jr 21,12).” ( דִּ יןdîn). Robert D. CULVER. In: Dicionário Internacional de teologia do Antigo Testamento.
HARRIS, Laird R. (org.) et al. São Paulo: Vida Nova, 1998. p. 309-310.
10
“Shᾱphat, junto com o substantivo que lhe é derivado, mishpat, é a palavra mais comum para designar a função
de governo em qualquer esfera e em qualquer manifestação”. ( שָׁ פַ טshᾱphat). Robert D. CULVER. In: HARRIS,
op. cit., p. 1602-1603.
14
O terceiro termo hebraico, que pode significar que o ato de justiça, deriva da raiz
rib.11Às vezes pode ter o sentido de apresentar o Senhor atuando como advogado, outras vezes,
como juiz, ou ainda, para julgar ou vindicar (cf. 1 Sm 24,15-16). Também, pode-se encontrar
a divindade como autoridade civil hostil (cf. Is 27,8), ou de forma civil e amistosa (cf. Jr 50,34).
Por fim, pode-se dizer que Deus pleiteia (rîb) a sua própria causa (cf. Sl 74,22) e que defende
os justos contra os ímpios (1 Sm 25,39).
Nestes termos, o ato de julgar de Deus não é um mero ato punitivo. Nestas três palavras
acima citadas que descrevem o Deus que julga o seu povo, expressa o alerta que Deus faz, como
um Pai que corrige o seu filho, e que deseja o melhor para ele. A infidelidade à aliança por parte
do povo de Deus é um fato recorrente ao longo do AT, e que os profetas, reiteradamente,
exortavam-nos para retornar para Deus, como é possível perceber a seguir.
Aos chefes de Jerusalém, Isaías anuncia o juízo do Senhor (cf. Is 3,13). Também, o
profeta Miqueias, profetiza que o Senhor entra em processo contra o seu povo (cf. Mq 6,1-3).
Inúmeras são outras passagens das Escrituras em que os profetas denunciam a infidelidade do
povo de Israel (cf. Os 6,7-8; 8,1; 13,6; Is 1,2. 4; Jr 2,17. 19. 29; 4,17; 5,19; etc.). Por isso, o
profeta Oséias enfatizava ao denunciar toda a violência e injustiça de Israel: “porque não há
fidelidade, nem amor, nem conhecimento de Deus na terra” (Os 4,1-2; cf. Jr 9,1-2).
Entre aqueles que caíram na infidelidade, estavam envolvidas todas as camadas sociais.
Até os notáveis, os funcionários da corte monárquica, beneficiavam-se da sua posição e se
corrompiam (cf. 2 Sm 20,23-25; 8,16-18; 1 Rs 4,1-6). A administração do Estado apelou para
funcionários públicos: ministros do rei (1 Rs 4,2), governadores (1 Rs 20,14) ou funcionários
simples (Jr 24,8). Porém, Qohélet expressa o que significa esta situação social (cf. Ecl 10,16-
17).
11
“Rîb: contenda, controvérsia, disputa. Em paralelos poéticos, aparece junto com palavras que designam
justificação, pedido de defesa, punição, castigo”. ( יבִרrîb). CULVER, Robert D., in: HARRIS, op. cit., p. 1423.
15
Em meio às infidelidades do povo de Israel, o Senhor inicia o processo (rîb) entra contra
seu povo. Ao renegar os compromissos com Deus, Israel rompe a integridade da aliança. Como
consequência, em nome de sua fidelidade ao pacto e à justiça que ele espera para o seu povo (Is
5,7), é como se Deus entrasse em julgamento contra esse. Por isso, o julgamento confirma a
radicalidade da aliança.
Quando Israel concebe a sua existência relacionada com o Senhor, por meio da aliança,
a ira divina transforma-se em expressão de exclusividade e privilégio. Dentre os motivos que
causam a ira divina é o culto aos falsos deuses (cf. Jr 4,4. 8. 26; 7,20; Ez 6,12; Os 5,10),
provocado pelo orgulho humano (cf. Is 9,11), pela incredulidade prática (cf. Is 9,16), pela
desumanidade (cf. Is 9,18. 20), pela não observância das leis divinas (cf. Ez 5,13), e por todo
delito (cf. 7,3. 8).
A cólera nunca é um fim em si mesmo para Deus. Revela que Deus é afetado
pelo abandono de seu povo. Mas ele não age impelido pela cólera. Oséias
proferiu estas palavras do Senhor: ‘meu coração está abalado, todas as minhas
12
“Para la alianza, el diálogo es lo primero. La contestación se regula de viva voz, en el cara a cara. El rib que
dirigen los profetas responde al trágico problema de la ruptura de la alianza. Permite al Señor explicar el
contencioso que existe entre él y su pueblo. Convoca a los interlocutores para una confrontación y les recuerda
las exigencias que la alianza les impone. Bajo la forma del rib, El Señor habla a su pueblo. Interpela, interroga
porque está implicado en la alianza; no desde el exterior, para confeccionar un dossier completo del asunto, sino
porque él mismo está acusado por el comportamiento de Israel, su oponente. El rib es así el lugar donde se revela
la justicia del Señor según su fidelidad a la alianza. Revela a Israel que esta justicia se le ofrece siempre”.
VERKINDERE, Gérard. La justicia en el Antiguo Testamento. Navarra: Verbo Divino, 2001. p. 35.
16
entranhas tremem. Não darei largos o ardor da minha ira; não destruirei Efraim
novamente, pois eu sou Deus, não um homem, no meio de ti, sou o Santo, e
não me comprazo destruir’ (Os 11,8-9) [tradução nossa].13
13
“La cólera no es nunca un fin en sí mismo para Dios. Revela que a Dios le afecta el abandono de su pueblo.
Pero no actúa llevado por la cólera. Oseas enuncia estas palabras del Señor: El corazón me da un vuelco, todas
mis entrañas se estremecen. No dejaré correr el ardor de mi ira, no volveré a destruir a Efraín, porque yo soy
Dios, no un hombre, en medio de ti yo soy el Santo, y no me complazco en destruir (Os 11,8-9)”. VERKINDERE,
op. cit., p. 44.
14
“Entendemos que ‘a verdade de Deus’, aqui, significa a realidade que se compõe do próprio Deus e da sua auto-
revelação, e que a ‘mentira’ significa a futilidade completa da idolatria”. CRANFIELD, op. cit., p. 44-45.
15
“A ‘mente depravada’ é aquela tão corrompida que é inteiramente indigna de confiança em decisões morais”.
CRANFIELD, op. cit., p. 46.
16
Cf. ALETTI, op. cit., p. 1423.
17
“La relación ofensa/retribuición no tiene otra función que la de manifestar la justa reacción divina ante una
conducta humana responsable y ya contradictoria”. ALETTI, op. cit., p. 1423.
17
seus corações, por força do testemunho da sua consciência e dos seus pensamentos (cf. Rm
2,15).
A justiça de Deus, no NT, tem uma novidade: a pessoa de Jesus Cristo. Eis que surge,
na plenitude dos tempos, uma salvação universal em que tanto judeus como gentios estão
inseridos neste projeto divino de dar, à humanidade, a comunhão plena com Deus. O
estabelecimento da aliança por Deus pelo fiel cumprimento da Lei no AT, bem como as
profecias que exortavam o povo de Deus de retornar ao caminho de santidade por meio da
conversão, não foram suficientes para o estabelecimento da vontade de Deus, de seu plano
salvífico. A justiça de Deus no NT é o cumprimento das promessas de Deus no AT, por meio
da ação redentora de Jesus. Por isso, cabe agora aprofundar a exegese de Rm 3,21-26, para
compreender que a justiça de Deus é manifestada por Jesus Cristo.
1.3 INÍCIO DO COMENTÁRIO EXEGÉTICO DE RM 3,21-2619
²¹Agora, porém, independentemente da Lei, se manifestou a justiça de Deus,
testemunhada pela lei e pelos profetas, ²²justiça de Deus que opera pela fé em
Jesus Cristo, em favor de todos os que creem – pois não há diferença, ²³visto
18
“Por tanto, en Pablo la justicia es más que un concepto ético; reviste una dimensión salvífica: es
inseparablemente juicio y gracia. Por eso no evoca en primer lugar la justicia que Dios espera del hombre, sino
la que él le otorga ajustándolo a su vocación y haciéndole justo. El creyente es justificado por el «don de la
justicia» (cf. Rom 5,17), que recibe del poder creador y «recreador» de Dios tal como se ha manifestado a través
de la resurrección de Cristo, vencedor de la muerte y del pecado. En este sentido, la obra de Dios, plenamente
realizada en Jesucristo, es más que una simple remisión de los pecados. Introduce a los creyentes en una vida
nueva, al mismo tiempo que hace de ellos miembros del Cuerpo de Cristo”. DEBERGÉ, Pierre. La justicia en el
Nuevo Testamento. Navarra: Verbo Divino, 2003. p. 16.
19
O comentário exegético desta perícope será iniciado neste capítulo e que nos dois capítulos seguintes serão
aprofundados.
18
que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus – ²⁴e são
justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em
Cristo Jesus: ²⁵Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu
próprio sangue, mediante a fé. Ele queria assim manifestar sua justiça, pelo
fato de ter deixado sem punição os pecados de outrora, ²⁶no tempo da
paciência de Deus; ele queria manifestar sua justiça no tempo presente para
mostrar-se justo e para justificar aquele que apela para a fé em Jesus.20
20
BÍBLIA, N. T. Epístola aos Romanos. Português. Bíblia de Jerusalém. Reed. São Paulo: Paulus, 2010. Cap. 3,
vers. 21-26.
21
BIBLE. N. T. Epistle to the Romans. Greek. The Greek New Testament. Edmonds: Former, 2008. Chap. 3,
vers. 21-26.
22
Cf. “Agora, porém, insinua o caráter decisivo, para a fé, dos eventos do evangelho na sua objetividade como
eventos que aconteceram num tempo particular no passado e são completamente diferentes, e independentes da
resposta do homem a eles. O ‘agora’ deve ser entendido como possuindo o seu significado temporal completo: o
contraste assinalado pelo ‘porém’ aqui é esse, uma série decisiva de eventos entre a situação anterior e a situação
posterior”. CRANFIELD, op. cit., p. 75.
23
“Si tratta del momento escatologico della rivelazione definitive”. KUSS, Otto. La lettera ai Romani.
Morcelliana: Brescia, 1962. p. 157.
24
A dimensão retórica pode ser entendida, também, como um mero progresso argumentativo segundo Romano
Penna: “De caráter retórico, como técnica para evidenciar um mero progresso argumentativo” [tradução nossa].”
“Di tipo retorico, come tecnica per evidenziare un mero progresso argomentativo”. PENNA, Romano. Lettera
ai Romani. Bologna: Dehoniane, 2010. p. 236.
25
“(…) come articulazione di due epoche diverse e successive nella storia della salvezza”. Ibidem.
26
Cf. “’Mas agora’ marca a mudança no foco de Paulo da antiga era do domínio do pecado para a nova era da
salvação” [tradução nossa]. “’But now’ marks the shift in Paul’s focus from the old era of sin’s domination to the
new era of salvation”. MOO, Douglas J..The Espistle to the Romans. Michican: Eerdmans, 1966. p. 221.
27
Cf. NYGREN, Anders. Commentary on Romans. Philadelphia: Fortress Press, 1983.
19
28
Cf. “Como" a ira de Deus ‘dominou a antiga era’ (1,18), então a justiça de Deus ‘domina a nova’. ‘Justiça de
Deus’ significa aqui o mesmo que em Rm 1,17; a atividade justificativa de Deus” [tradução nossa]. “As ‘the wrath
of God ‘dominated the old era’ (1, 18), so ‘the righteousness of God’ dominates the new. ‘Righteousness of God’
means the same here as in Rm 1,17; the justifying activity of God”. MOO, op. cit., p. 221.
29
Cf. CRANFIELD, op. cit., p. 30.
30
“A passagem está diretamente relacionada com Rm 1,16-17, retornando o Apóstolo para até mesmo usar quase
as mesmas expressões e afirmando que é agora, na nova economia inaugurada com o Evangelho, quando a" justiça
de Deus "é revelada sobre o mundo para todos os que crêem (v.21-22)” [tradução nossa]. “El pasaje enlaza
directamente con 1,16-17, volviendo el Apóstol a usar incluso casi las mismas expresiones y afirmando que
es ahora, en la nueva economía inaugurada con el Evangelio, cuando se revela la «justicia de Dios»
sobre el mundo para todos los que creen (v.21-22)”. TURRADO, Lorenzo; et al. Biblia Comentada.
Professores de Salamanca. V. 4. Madrid: Biblioteca de autores Cristianos, 1965. p. 278.
31
Cf. NYGREN, op. cit., p. 144.
32
“ἀποκαλύπτω, uma palavra composta formada de καλuπτω (esconder, ocultar) e ἀπο (de), levar consigo a ideia
de ‘desvendar’ alguma coisa que estava anteriormente oculta, que é descoberta e se dá a conhecer [tradução
nossa]”. “ἀποκαλύπτω un compuesto formado del simple καλuπτω, abrir, ocultar, esconder, con el énfasis que se
da al descubrimiento, se señala que lo que hasta entonces estaba oculto se descubre y se da a conocer”. W.
Muríale. REVELACIÓN (ἀποκαλύπτω). W. Muríale, in: Dicionário Teologico del Nuevo Testamento. COENEN,
Lothar (org.) et al. 3ª ed. Vol. 3. Salamanca: Sígueme, 1990. p. 98.
33
“φανερόω: Tornar aparente (literal ou figurativo): - aparecer, declarar manifestamente, (fazer) manifestar
(adiante), mostrar (auto)” [tradução nossa]. “φανερόω: to render apparent (literal or figurative): — appear,
manifestly declare, (make) manifest (forth), shew (self)”. STRONG, James. Φανερόω. In: Greek dictionary of
the New Testament. STRONG, James (org.). Albany: AGES Software, 1997. n. 5319.
34
“Mentre ἀποκαλύπτω insiste di piú sull’idea del punto di partenza del disvelamento, φανερόω implica
maggiormente l’idea del far conoscere apertamente”. PENNA, op. cit., p. 238.
20
sangue de Cristo, o outro quando esse evento faz-se palavra no anúncio. Mas um equivale ao
outro, porque na prática é sempre a mesma salutar justiça de Deus'” [tradução nossa].35
35
“Essa infatti conosce due momenti distinti e insieme complementari della sua dimonstrazione: uno nell'effusione
storica del sangue di Cristo, l'altro quando quell'evento si fa semplice parola nell'annuncio. Ma l'uno equivale
all'altro, poiché in atto è sempre la medesima, salutifera 'giustizia di Dio'.” PENNA, op. cit., p. 238-239.
36
CRANFIELD, op. cit., p. 76.
37
Cf. FITZMAYER, op. cit. p. 126.
38
“È dunque l’assenza della Legge Che dà come l’intonazione all’intera espozione, come se Paolo volesse
sgombrare il campo da ciò che sarebbe un ostacolo per poter parlare adequadamente della giustizia di Dio e della
sua manifestazione. D’altronde, è interessante osservare che la preposizione ‘senza’ in Rm viene impiegata in
rapporto alla Legge e alle sue opere cinque volte su sei (cf. 3,21. 28; 4,6; 7,8. 9).[...] Ma il fatto che essa risulti il
contraltare addiritura della giustizia di Dio la riconosce come un’entità di prima grandezza, sia pur nello stesso
tempo in cui Paolo la rifiuta”. PENNA, op. cit., p. 237.
39
Por toda a monografia, NT será a abreviação de Novo Testamento.
40
Cf. MOO, op. cit. p. 223.
41
Cf. CRANFIELD, op. cit. p. 75.
21
pelos profetas e pela Lei Mosaica ao coração da questão: “nós estamos condenados e
preparados, pelo qual somos convocados para ouvir o conteúdo desse veredicto”.42
Portanto, temos que reconhecer que, segundo Paulo, foi operada uma alteração
da parte de Deus mesmo na sua relação com a Lei, que não é mais considerada
eficaz para os fins da justificação; como resultado, ele mudou também sua
relação com os homens, pois agora (nynì dé), Deus escolhe se relacionar com
eles somente através de Jesus Cristo. Esta mudança teológica,
inevitavelmente, implica também especular sobre a nível antropológico a
pessoa humana: agora é proposto ao homem para se relacionar com Deus não
através da lei, mas por Jesus Cristo. A questão é posta sobre uma inesperada
intervenção de Deus, diante do qual, no entanto, o homem é chamado para
42
Cf. BARTH, karl. A shorter commentary on Romans. Maico M. Michielin (org.). New York: Ashgate,
2007. p. 25.
43
KERTELGE, Karl. A Epístola aos Romanos. Petrópolis: Vozes, 1982. p. 77.
44
Ibidem.
45
FITZMAYER, op. cit., p. 127.
46
“A "adversativa", mas (dè), reitera a sua própria maneira uma distância a esse critério, mas a exclusão requerente
vem explicitamente oposta a uma "fé em Jesus Cristo" (pístis Iesoû Christoû). Na verdade, deve-se notar a
construção preposicional do complemento: "mediante a fé (dà písteos) em Jesus Cristo". Este tipo de construção
também tem um paralelo com a Lei, porque muitas vezes, incluindo o contexto de nosso versículo, encontramos a
construção especular "pela lei" (dá nómou: Rm 2,12; 3,20. 27 [bis]; 4, 13, 7,7 ver também Gal 2,19. 20)” [tradução
nossa]. “L’avversativa ‘ma’ (dé) ribadisce a suo modo una presa di distanza da quel tipo di criterio, ma la sua
esclusione richiede viene esplicitamente opposta ‘la fede in Gesù Cristo’ (pístis Iesoû Christoû). Anzi, si deve
notare la contruzione preposizionale del complemento: ‘mediante la fede (dià písteos) in Gesù Cristo’. Questo
tipo di costruzione ha un parallelo anche a proposito della Legge, poiché più volte, compreso il contesto del nostro
versetto, troviamo il costrutto speculare ‘mediante la Legge’ (dià nómou: Rm 2,12; 3,20.27 [bis]; 4,13; 7,5.7; cf.
anche Gal 2,19.20)”. PENNA, op. cit., p. 241.
47
Cf. KÄSEMANN, Ernst. Commentary on Romans. Michican: Eerdmans, 1980. p. 94.
48
CRANFIELD, op. cit., p. 76.
22
colocar em ato um outro tipo de relacionamento: não com a lei, mas com
Cristo [Tradução nossa].49
Com relação à expressão πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ, há um equívoco quanto à sua tradução.
A dúvida é quanto se a correta tradução deve ser levada em conta como um genitivo objetivo
ou genitivo subjetivo. “No primeiro caso, Jesus Cristo é objeto da nossa fé/confiança pessoal
na direção dEle; no segundo caso, Ele é sujeito à sua própria fé/fidelidade” [tradução nossa].50
Os comentadores contemporâneos defendem que, neste caso, deve-se traduzir como genitivo
objetivo.51
A justiça de Deus é dirigida a todos, mas só alcança os que têm fé.52 Por meio da fé é
que a salvação tem um caráter universal, não se sujeitando a nenhuma condição ou
pressuposto.53 Portanto, a justiça de Deus, sendo manifestada por graça divina, dá acesso à
salvação tanto ao judeu quanto ao gentil, favorecendo todos aqueles que detiverem a fé em
Jesus Cristo.
49
“Allora bisogna riconoscere che, secondo Paolo, è stato operato un cambiamento da parte di Dio stesso nel suo
rapporto con la Legge, la quale non viene più considerata efficace ai fini della giustificazione; di conseguenza, è
cambiato anche il suo rapporto con gli uomini poichè ora (nynì dé) Dio sceglie di relazionarsi a essi solo mediante
Gesù Cristo. Questo cambiamento a livello teologico ne comporta inevitabilmente anche speculare a livello
antropologico: ora all'uomo è proposto di relazionarsi a Dio non più mediante la Legge, ma mediante Gesù Cristo.
In questione c'è dunque un inatteso intervento di Dio, di fronte al quale però anche l'uomo è chiamato a mettere
in atto altro tipo di relazione: non più con a Legge, ma con Cristo.” PENNA, op. cit., p. 241.
50
“Nel primo caso, Gesù Cristo è oggetto della nostra personale fede/fiducia verso di lui, nel secondo egli è
soggetto di una sua propria fede/fedeltà.” PENNA, op. cit., p. 241.
51
Cf. Ibidem, p. 242.
52
Cf. STAM, op. cit., p. 23.
53
Cf. KERTELGE, op. cit., p. 77.
54
Cf. MOO, op. cit., p. 226.
55
WIERSBE, Warren W. Comentario Biblico Expositivo: Novo Testamento – volume I. Santo André:
Geográfica, 2006. p. 681.
23
transcendente da glória relativa que já ilumina a vida dos crentes; Paulo pode
falar em outra parte de eles serem transformados “da glória para a glória”
(2Cor 3,1-8); porém, não se deve empanar o caráter decisivo da diferença entre
as duas glórias.56
Por isso, o Apóstolo, afirma que “todo homem é mentiroso” (Rm 3,4), recorrendo ao
Salmo 115/116,11, “trata-se da primeira declaração da universalidade do pecado da
humanidade” [tradução nossa].57 Ao longo do capítulo são várias citações de passagens das
Escrituras que Paulo assim faz, pois “as citações escriturísticas ressaltam, enfim, mais uma vez,
de maneira clara e incisiva, que é Deus que se apresenta em 1,18-3,20 como acusador de toda
a humanidade. A palavra da Escritura soa aqui como sua palavra acusadora”.58
Para melhor compreender a justiça de Deus, que é manifestada por Jesus, precisa-se,
anteriormente, partir de uma visão geral da Epístola aos Romanos, bem como entender como
se deu a justiça divina no AT. A transição da ira divina para a justiça de Deus decorreu por
meio de Jesus Cristo. No entanto, a justiça de Deus manifestou-se independentemente da Lei.
Seria possível afirmar que a Justiça divina estaria separada da Lei? Como compreender esta
separação, haja vista que a Lei para o povo do Antigo Testamento era a revelação da vontade
de Deus para o seu povo? Seria a Lei mosaica injusta para que Deus, assim, preferisse aboli-
la? No próximo capítulo será abordado o papel da Lei em Paulo e como se dá a vida nova em
Cristo.
56
CRANFIELD, op. cit., p. 76-77.
57
“Se trata de la primera declaración de la universalidad del pecado de la humanidad”. FARMER, William R.
(org.). Comentário Bíblico Internacional. Navarra: Verbo Divino, 2000. p. 1427.
58
KERTELGE, op. cit., p. 71.
59
“Il capitolo terzo è come una pietra tombale posta sul passato fallimentare dell'umanità. Iniziato con il
riconoscimento del privilegio giudaico, il brano arriva a questo punto ad affermare la maggiore colpevolezza del
giudaismo: un duro colpo per l'orgoglio e la presunzione giudaica che Paolo, il fariseo di un tempo, non esita ad
assestare nel cuore stesso della religiosità giudaica. Paolo ha sgretolato la posizione di privilegio pretesa dai
giudei che non sono quindi diversi, per quanto concerne il peccato, dai pagani. Tutti gli uomini sono pareggiati
su un ben triste comun denominatore. Peggio ancora, tutti si trovano nell'impossibilità di avere una soluzione.
Non da loro, ma da Dio, verrà un soffio di novità, portatore di vita”. ORSATTI, Mauro. Il capolavoro di Paolo.
Lettura pastorale della Lettera ai Romani. Bologna: Centro Dehoniano, 2002. p. 24.
24
60
RUIZ DE LA PEÑA, Juan L.. O dom de Deus: antropologia teológica. Petrópolis: Vozes, 1996. p. 188.
61
“Este uso geral de goel se justifica a partir do pressuposto da condição criadora e régia de Javé; enquanto autor
e senhor de tudo e de todos, ao agir como goel, Javé não resgata um bem estranho, não exige algo alheio; reivindica
sempre algo que lhe pertence; retoma uma possessão original, refazendo um antigo vínculo de domínio”. Ibidem,
p. 201.
25
Jr 50,29).62 Por último, Deus é chamado de Justo (que provem da palavra justiça: tsedaqah).63
Por isso há um paralelismo entre justiça e salvação tanto em Dêutero-Isaías (Is 51,5. 6. 8; 56,1),
como, ainda nos salmos (Sl 36,7; 40,10s; 98,2; 143,1s, 11s). Portanto, houve uma evolução do
significado das palavras relacionadas à aliança e à salvação,64 do que fez decorrer a
compreensão de quem é Deus e a sua conduta para com o homem.
Por meio desta brevíssima explicação àcerca do relacionamento de Deus para com o seu
povo, segundo a teologia bíblica do Antigo Testamento, é possível ter o entendimento acerca
da lei no AT. A princípio, pode-se afirmar que a lei dirige o agir e o viver do homem em vista
de um bem, que contém o caráter de ser exigido, de obrigatoriedade. “O ser humano se depara
com a exigência de Deus concretamente no Νόμος, na lei do AT, cujo sentido não é outro senão
conduzir o ser humano para a vida”.65
O ‘padrão’ ou ‘estrutura’ do nomismo da aliança é o seguinte: (1) Deus
escolheu Israel e (2) deu a lei. A lei implica tanto (3) a promessa de Deus para
manter a eleição como (4) a obrigação de obedecer. (5) Deus recompensa a
obediência e pune a transgressão. (6) A lei prevê meios de expiação, e a
expiação resulta em pecado (7) manutenção ou restabelecimento da relação da
aliança. (8) Todos os que são mantidos na aliança por obediência, expiação e
misericórdia de Deus pertencem ao grupo que será salvo. Uma interpretação
importante do primeiro e último ponto é que a eleição e, em última instância,
a salvação são consideradas pela misericórdia de Deus e não pela realização
humana [tradução nossa].66
62
“A santidade do povo é efeito da ação santificadora de Javé: ‘eu sou Javé, o que vos santifica’ (Lv 22,32; cf.
22,9). E tal ação deriva da eleição com que Javé distinguiu o povo: ‘tu és um povo consagrado a Javé, teu Deus;
Ele te elegeu a ti para que sejais o povo de sua propriedade pessoal’ (Dt 7,6).” RUIZ DE LA PEÑA, op. cit., p.
202.
63
“’A justiça de Javé não é a simbolizada por uma virgem com os olhos vendados e tendo uma balança em uma
de suas mãos, mas aquela que estende seu braço até o infeliz, caído por terra’. Em outras palavras: que Deus seja
justo quer dizer que faz justiça a suas promessas e se comporta com o seu povo tal e como jurara”. Ibidem, p.
204.
64
“Assim ocorreu com berit (de pacto jurídico à relação nupcial), com goel (do libertador do direito familiar ao
autor da libertação escatológica do seu povo), com qadosh (de distante a próximo) e com tsedaqah (de equidade à
parcialidade salvífica)”. Ibidem, p. 206.
65
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: editora Teológica, 2004. p. 322.
66
“The' pattern 'or' structure 'of covenantal nomism is this :(1)God has chosen Israel and (2) given the law. The
law implies both (3) God's promise to maintain the election and (4) the requirement to obey. (5) God rewards
obedience and punishes transgression. (6) The law provides for means of atonement, and atonement result sin (7)
maintenance or re-establishment of the covenantal relationship.(8 ) All those who are maintained in the covenant
by obedience, atonement and God's mercy belong to the group which will be saved .An important interpretation
of the first and last points is that election and ultimately salvation are considered to be by God's mercy rather than
human achievement”. SANDERS, E.P. Paul and Palestinian Judaism. Philadelphia: Fortress Press, 1977. p. 422
26
livros da lei de Moisés, os mandamentos estão inscritos no horizonte gracioso do relato dos
benefícios de Deus em favor do seu povo. Mas, pode-se acrescentar uma última observação
sobre o pagamento divino sancionado pela lei de Moisés. A este respeito, um segundo mal-
entendido deve ser evitado: estes dados escriturísticos não devem ser interpretados como a
transição de um regime de gratuidade para um regime mercenário. De fato, Deus faz os israelitas
amadurecer, de sua passividade inicial em face dos dons gratuitos de Deus para a consciência
da necessidade de corresponder ativamente a tais benefícios.
No ambiente da lei para o povo do AT há uma correspondência e explicação da lei que
manifesta o âmbito teológico da fé de Israel. Ademais, este âmbito teológico da lei era a ideia
da aliança. Javé escolheu Israel como o seu povo e Israel reconheceu-O como o seu Deus. Esta
é a base de todo o AT e o fundamento imediato de toda a lei. Portanto, cabe a observação
primeira de que a lei não era simplesmente um sistema justo para regular as relações humanas,
mas uma exigência para com o seu povo. De fato, “Isto confirma claramente que o lugar
teológico desta lei é a aliança da eleição; não se ordena aquilo que cria a aliança com Javé;
proíbe-se, contudo, aquilo que a revoga.” [tradução nossa].67
Por isso, a lei, no AT, com relação à salvação do povo judaico, nos círculos judaicos da
época de Paulo, consistia no nomismo da aliança.68 Este consiste em que o povo antigo
acreditava que a salvação não é obtida pelo sucesso de uma série de méritos, mas permanecendo
na aliança como povo de Deus. A resposta à aliança foi, obviamente, a obediência; mas metade
da expiação foi imensamente dedicada àqueles que não obedeceram plenamente.
O conjunto das crenças típicas do nomismo da aliança incluía um forte senso
de privilégio especial e prerrogativa em relação a outros povos [...]. Mas
significava, também e inevitavelmente, um reforço do senso de identidade
nacional e da separação de outras nações [...]. Este é, evidentemente, o maior
fator motivador para a reconstituição de Judá depois do exílio (Es 9-10), e o
senso de uma necessidade básica de permanecer leal às obrigações da aliança
era, obviamente, um dos fatores mais poderosos na tentativa macabeia de
restaurar a integridade nacional e de preservar a identidade nacional.69
Por isso, a argumentação incisiva de Paulo contra os círculos judaicos da sua época,
como é possível ver na carta aos Gálatas, era da interpretação dada da relação entre lei e aliança.
Primeiramente, é importante observar que o cumprimento da lei tinha apenas o caráter de
67
“Ciò conferma chiaramente che il luogo teologico di questa legge è l´alleanza dell'elezione; non si comanda ciò
che crea l'alleanza con Jahvè; si proibisce, piuttosto, ciò che le revoca”. Νόμοσ. W. Gutbrod, in: KITTEL,
Gerhard. FRIEDRICH, Gerhard (orgs.). Grande Lessico del Nuovo Testamento. Vol. 7. Brescia: Paideia, 1971.
p. 1276.
68
Expressão utilizada por SANDERS, no qual busca substituir a imagem tradicional do judaísmo estritamente
legalista, por uma visão de equilíbrio entre a consciência de eleição de Israel (Aliança) e a obrigação de obediência
dela decorrente (nomismo).
69
DUNN, James D. G.. A nova perspectiva sobre Paulo. São Paulo: Paulus, 2011. p. 262-263.
27
identidade nacional de Israel ou a sua ética, separando os judeus dos demais povos. Segundo,
as obras da lei referem-se à prática da lei da aliança, que é imposta ao membro da aliança,
equivalendo aos atos da lei nos escritos de Qumran.70
2.1.2 A origem do pensamento paulino sobre a lei
Na epístola aos Romanos, as questões delineadas sobre a lei têm um papel decisivo e
fundamental. Das cento e dezenove (119) ocorrências de nomos em todo corpus paulino, setenta
e duas (72) encontram-se em Romanos e trinta e duas (32) em Gálatas.71 Como em Gálatas, a
declaração de Paulo sobre a Lei faz afirmações negativas e positivas. Ele argumenta que as
obras da Lei não podem justificar, e que a Lei, que não é concebida como aliança no Sinai, pode
ser cumprida pelos cristãos. Em Romanos, no entanto, Paulo articula sua crítica da aliança
sinaítica de maneira breve. Em Gálatas, Paulo nunca mencionou o poder na Lei (cf. Gl 6: 13-
14), mas em Romanos o seu argumento chega a um novo patamar, de acordo com a tese que
ele pronuncia contra a vanglória ou o “gloriar-se” na Lei como possessão especial do povo
judeu (Rm 2,17,23; 4,2; cf. Fl 3,3-6).
A lei, em Paulo, é aquela que exige uma ação do homem, uma vontade determinada (Rm
1,25; Gl 5,3; 6,13). Da mesma forma que na Lei mosaica, Paulo também compreende que a Lei
é expressão da vontade do Deus vivo, no entanto, o que Paulo critica é “a valorização rabínica
de que esta vontade foi fixada de uma vez para sempre, não é causal, embora o uso linguístico
seja, no todo, correspondente” [tradução nossa].72
O significado central do imperativo de Deus se manifesta quando Paulo pode
falar de Νόμος como uma entidade pessoal. Em Rm 3,19 a lei fala, em Rm
4,15 age, em Rm 7,1 reina, em 1Cor 9,8 diz. Às vezes, pode-se traduzir Nomos
com 'Deus', enquanto ele se manifesta na lei. Mas isso não significa
hipostatização, nem mesmo incipiente, porque ao lado das expressões citadas
há sempre as correspondentes de natureza impessoal (Rom 3,20; 4,15; 7,2;
1Cor 9,9) [tradução nossa].73
70
“Na crise macabeia, isto significava especialmente a circuncisão e as leis alimentares, e depois dela temos
indicações suficientes de que o assunto do nomismo da aliança enfocaria nesses mesmos mandamentos e em
quaisquer outros que reforçassem o fato de que os judeus eram distintos, e isto sempre que a identidade judaica
estivesse em questão. Tais atos/obras da Lei tornaram-se como que testes para aferir a fidelidade ao judaísmo”.
DUNN, op. cit., 2011, p. 265.
71
Cf. DUNN, James D. G.. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003.
72
“[...] alla valorizzazione rabbinica secondo cui questa volotà si è fissata una volta per sempre, non è causale,
benché l'uso linguistico sia, nel complesso, correspondente.” W. Gutbrod. Νόμοσ, in: KITTEL, op. cit., p. 1361.
73
“Il significato centrale della volontà imperativa di Dio si manifesta pure quando Paolo può parlare del Νόμος
come d'un'entità personale. In Rom. 3,19 la legge parla, in Rom 4,15 agisce, in Rom 7,1 regna, in 1Cor 9,8 dice.
qualche volta si potrebbe tradurre Nomos con 'Dio', in quanto egli si manifesta nella legge. Però questo non
equivale a una ipostatizzazione, nemmeno incipiente, perchè accanto alle espressioni citate si trovano sempre
quelle corrispondenti di natura impersonale (Rom 3,20; 4,15; 7,2; 1Cor 9,9)”. W. Gutbrod. Νόμοσ, in: KITTEL,
Gerhard. FRIEDRICH, Gerhard (orgs.). Grande Lessico del Nuovo Testamento. Vol. 7. Brescia: Paideia, 1971.
p. 1362.
28
Nas cartas paulinas, segundo Sanders,74 encontra-se não uma teologia da lei, mas Paulo
busca responder e anunciar, em diversas circunstâncias, aos judeus e aos gentios, a necessidade
da participação no sacrifício de Jesus Cristo para a salvação. Daí Paulo adverte acerca da não
necessidade do cumprimento da lei judaizante, em especial ao que se refere à circuncisão, ao
sábado e às práticas alimentares. Isso poderia dificultar a missão entre os gentios e, em especial,
poderia erroneamente sustentar que a chave para a salvação fosse o judaísmo, mas na verdade
era a participação em Cristo. A explicação central de Paulo, no entanto, parece ser que a Lei foi
dada para condenar qualquer um, para que todos pudessem ser salvos por Jesus Cristo.
A descrição de Paulo que Dunn propõe,75 substituindo a anterior, acredita que Paulo
trabalhou, na sua nova compreensão da Lei, no ímpeto da controvérsia com os judeus cristãos,
que acreditavam que para manter um lugar para o povo de Deus na aliança, eles devem adotar
as três obras de Lei, que eram o emblema nacional de Israel: circuncisão, observância do sábado
e observações alimentares. A controvérsia de Paulo com as "obras da Lei" não é, portanto,
contrariada pela necessidade de ganhar a salvação fazendo boas ações, mas contra a criação de
que a salvação é, pelo menos em parte, condicionada pela apreensão à nação de Israel e à
observância da Lei como um sinal desse estado. Como resultado, as alegações positivas de
Paulo sobre a Lei não são incompatíveis com suas principais alegações negativas, porque estas
são direcionadas contra o mau uso da Lei mais do que contra a própria Lei.
Räisänen sugere que Paulo produziu sua primeira tentativa de explicar a relação entre
Lei e Fé em Cristo quando os judaizantes invadiram suas Igrejas de Galácia.76 Este grupo era
antagonista de Paulo e produziu um caso relevante, baseado em argumentos honestos da
Escritura hebraica, de acordo com os quais os cristãos de outras etnias teriam que aderir à Lei
e assim tornar-se judeus. Paulo, convencido com base em sua própria experiência, de que essas
adições ao pedido de fé em Cristo foram impedidas, começou a lançar de argumentos para
provar sua convicção. Na concepção de Räisänen, Paulo teve pouco sucesso. Em vez de
produzir um contra-argumento convincente, ele fez uma série de declarações, algumas
contradições mutuamente contraditórias e outras distorções claras da concepção judaica da Lei.
O certo é que, diante do estudo sobre a lei em Paulo, existem vários modos de considerá-
la. Na tentativa de unificar os pensamentos dos teólogos, os que estão em maior evidência
defendem que o pensamento paulino evoluiu entre Gálatas e Romanos; que a lei é a mesma em
Paulo, no entanto, vista em perspectivas diferentes. Ao falar sobre a lei, Paulo aplica um número
74
SANDERS, E. P.. Paulo, a Lei e o povo judeu. José Raimundo Vidigal (trad.). São Paulo: Paulinas.1990.
75
Cf. DUNN, 2011, op. cit..
76
Cf. RÄISÄNEN, Heikki. Paul and the Law. Tübingen: Mohr, 1987.
29
restrito de convicções básicas que ao ser aplicadas em problemas diferentes, levam-no a dizer
coisas diferentes sobre a lei. Portanto, “um dos fatores que dificulta a compreensão das
afirmações de Paulo sobre a lei é a dificuldade geral de distinguir entre a razão pela qual ele
adota uma posição e os argumentos que ele alega em favor dela”.77
2.1.3 A continuidade na descontinuidade
Apesar de alguns teólogos de Paulo atribuírem-lhe severos comentários sobre a lei,
enfatizando a liberdade dos cristãos, um dos intérpretes recentes que negam enfaticamente que
Paulo considerou a lei como abolida é Cranfield. Segundo ele, não é a própria lei que é criticada
e rejeitada por Paulo, mas sim o (suposto) mal-entendido judaico e o mau uso da Torá, que foi
pervertido pelo ensino judaico a um código legalista que exige ações meritórias. Recentemente
Hübner argumentou que, enquanto Paulo em Gálatas argumenta que a lei foi substituída, em
Romanos ele sustenta que a lei está em vigor; é apenas a lei pervertida e incompreendida que é
eliminada. A Torá de Deus foi reforçada como a "lei da fé" (Rom 3.27) e como a “lei do
Espírito” (Rom 8.2).
Cranfield alerta, em particular, que se tenha em mente que a língua grega do dia de
Paulo não possui um grupo de palavras correspondente ao nosso “legalismo”, “legalista”. Deve-
se, portanto, estar sempre preparado para considerar a possibilidade de que as declarações
paulinas, que à primeira vista parecem menosprezar a lei, eram realmente dirigidas não contra
a própria lei, mas contra esta falta de entendimento e uso indevido daquilo que agora tem uma
terminologia conveniente, verifica-se que, para Cranfield, sempre é o caso, quando Paulo
parece ser crítico com a lei.78
Em Gal 3.15-20, Paulo apresenta cinco pontos que são difíceis de conciliar com a visão
de Cranfield. Primeiro, a lei chegou tarde à cena: no Sinai, quatrocentos e trinta (430) anos após
a promessa. Segundo, a lei teve um propósito negativo: foi dada "por transgressões". Terceiro,
seria um arranjo temporário, válido (mas realmente válido!) Até que a "semente" venha. Quarto,
foi dado por anjos. Quinto, foi recebido (ou dado, veja abaixo) por um mediador, e isso, de
alguma forma, mostra a distância de Deus que é um.
Parece, então, que, em seu ensinamento real, Paulo ignorou a Torá - seu lado ritual e
moral. A maior parte de sua ética realmente confiou nos padrões estabelecidos na Torá, mas
esta é outra questão. Nos conteúdos reais de sua ética, ele é claramente um judeu. Mas ele não
obtém suas exortações morais formalmente da Torá - apesar de referências ocasionais à Bíblia.
Isso também é claro a partir de passagens como Rm 12,1-2, Fl 1,10 e Fl 4,8. As duas primeiras
77
Cf. SANDERS, 1990, op. cit., p. 14.
78
Cf. CRANFIELD, op. cit..
30
Então, é definida aquilo que Paulo chama de fraqueza da lei. Esta está
essencialmente no fato que a lei se ocupa somente do pecado com a proibição
e a condenação. A lei é fraca διὰ τῆς σαρκός (Rm 8,3), pela realidade do
pecado que não pode superar. Assim, a fraqueza da lei pode ser enunciada
também dizendo que é incapaz de produzir a vida (Gl 3,21) [tradução nossa].79
79
“Così è definida quella che Paolo chiama la debolezza della legge. Essa sta essenzialmente nel fatto che la
legge si occupa del peccato soltanto colla proibizione e la condanna. La legge è debole διὰ τῆς σαρκός (Rom.
8,3), per la realtà del peccato che essa non può superare. Così la debolezza della legge può essere enunziata
anche dicendo che non è in grado di produrre la vita (Gal. 3,21)”. Νόμοσ. W. Gutbrod, in: KITTEL, Gerhard.
FRIEDRICH, Gerhard (orgs.). Grande Lessico del Nuovo Testamento. Vol. 7. Brescia: Paideia, 1971. p. 1374.
80
BECKER, J. Christiaan. Paul the Apostle apud: SANDERS, 1990, op. cit., p. 51.
81
HÜBNER, Hans. Das Gesetz bei Paulus: Ein Beitrag zum werden der paulinischen Theologie, apud:
SANDERS, 1990, op. cit., p. 52.
82
SANDERS, 1990, op. cit., p. 53.
32
da fé e não por meio das suas obras (Rm 4,3). A base do argumento de Paulo é o fato
soteriológico, já que a promessa de Abraão e a sua descendência está ligada não à lei, mas à fé
(Rm 4,13). Enfim, há uma relação de continuidade argumentativa de que os judeus não têm fé
em Jesus Cristo no trecho em Rm 3,27 a Rm 4,25. A crítica de Paulo recai em `judeus´ (Rm
3,29), a circuncisão (Rm 3,30; 4,9. 12), os ‘da lei’ (4,14. 16).
Assim, dois temas inter-relacionados dominam Rm 3,27-4,25: (a) Deus
justifica judeus e gentios sobre a mesma base, a fé, e sua ação não depende de
modo algum da obediência à lei, nem a promessa se restringe aos que são ‘da
lei’ (Rm 3,29s; 4,9-14; 4,16). (b) O exemplo de Abraão prova este ponto.
Abraão foi justificado pela fé; isso nada tinha a ver com a lei (Rm 4,2-4. 10s.
13. 16s.).83
83
SANDERS, 1990, op. cit., p. 55.
84
Ibidem, p. 75.
33
A pergunta paradigmática, na carta aos Gálatas, “por que então a lei?” (Gl 3,19), provém
da afirmação do versículo anterior, no qual a herança (salvação) não é decorrida pela lei. Ora,
sendo a promessa da herança anterior à lei, a lei foi acrescentada por causa das nossas
transgressões. Por conta disso, a lei “aprisionou todas as coisas debaixo do pecado” (Gl 3,22),
nós éramos guardados sob a lei até que viesse a fé (v. 23), e que a lei tinha o papel de pedagogo
(Gl 3,24).
Para o nosso objetivo, porém, não parece necessário decidir se estão ou não
em exata concordância entre si as afirmações de que a lei foi dada ‘por causa
das transgressões’, que ela ‘encerrou todas as coisas debaixo do pecado’, que
‘nós éramos guardados sob a tutela da lei’, que ‘a lei era nosso pedagogo’. A
linha geral do raciocínio é clara em cada caso. A força constritora ou
escravizadora da lei durou até a chegada da fé (3,19; cf. 4,4s) e de fato a lei
foi dada com o fim de levar à justificação pela fé, nem que fosse
negativamente.86
A lei apresenta um lugar negativo no plano divino de salvação, ao ligá-la com o pecado.
Na carta aos Gálatas, Paulo apresenta a lei como algo pelo qual o próprio Paulo está morto (Gl
2,19); não é o vetor da justiça (Gl 2,21;3,11); não é da fé (Gl 3,12); provoca uma maldição (Gl
3,10.13); é contrária à promessa e à herança de Abraão (Gl 3,17-18). Portanto, a lei foi dada
por Deus a fim de que todos fossem condenados e que a redenção fosse preparada por todos
mediante a fé (Gl 3,22. 24).
O papel da lei, na carta aos Gálatas tem dois aspectos. Primeiramente, o papel da lei, em
Gálatas, é de proteger Israel: “Antes que chegasse a fé, nós éramos guardados sob a tutela da
Lei para a fé que haveria de se revelar. Assim a Lei se tornou nosso pedagogo até Cristo [...]”
(Gl 3,23-24). Por isso, a primeira função da Lei era dar orientações àcerca da boa conduta da
criança, para guiá-la e impor limites para que ela não se desvie do caminho reto.
A imagem é desenvolvida pela descrição da Lei como παιδαγωγὸς: trata-se do
escravo que levava o menino de casa à escola e o trazia de volta, e cuja
responsabilidade compreendia tipicamente a guarda do menino, sua educação
nas boas maneiras e sua correção, se necessário. A imagem é essencialmente
positiva. A pertinência dessa interpretação é confirmada pela volta de Paulo à
imagem do herdeiro menor, submetido a tutores e curadores, para descrever o
estatuto de Israel antes da vinda da fé (Gl 4,2). Em outras palavras, o papel
85
SANDERS, 1990, op. cit., p. 33.
86
Ibidem, p. 78.
34
87
DUNN, James D. G.. Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo. Paulo, uma
teologia em construção. Andreas Dettwiler (org.); et al. São Paulo: Loyola, 2011. p. 248-249.
88
“É que a imagem vai mudando aos poucos, de ‘vigilante’ (παιδαγωγὸς) (Gl 3,23-25), passando por ‘tutores e
curadores’ (Gl 4,1), a ‘elementos do mundo’ (στοιχεῖα) (Gl 4,3.9). Paralelamente, o estatuto dos que estão
‘submetidos’ a essas figuras varia progressivamente: de escolar (‘sob o παιδαγωγὸς’, Gl 3,25) ao herdeiro menor
(νήπιοι) (‘sujeito a tutores e curadores’, Gl 4,2), não diferindo em nada de um escravo (Gl 4,1), apesar de sua
situação de herdeiro, para uma condição de escravo ‘submetido aos στοιχεῖα’ (Gl 4,9). DUNN, James D. G.. Paulo
e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo. Paulo, uma teologia em construção. Andreas
Dettwiler (org.); et al. São Paulo: Loyola, 2011. p. 250.
89
“O ponto essencial do paralelismo entre os stoicheia e a lei se percebe enfocando a convicção de Paulo de que
a condição do judeu e a do gentio deve ser a mesma, pois Cristo salva a todos na mesma base. O denominador
comum é a servidão e a equiparação da lei com os stoicheia é material”. SANDERS, 1990, op. cit., p. 81.
90
Ibidem, p. 82.
35
91
“Como em Gl 3,22. 24, as cláusulas finais em Rm 5,20s são significativas: o desígnio último da ação de Deus
era preparar para a salvação; a lei foi dada para aumentar a transgressão, com a finalidade de que por fim reinasse
a graça”. SANDERS, 1990, op. cit., p. 83.
36
A pergunta retórica de Paulo: “será que a lei é pecado?” (Rm 7,7), neste capítulo da
epístola, a lei é situada ao lado da morte, do pecado e da carne. Não foi Deus quem falhou ao
tomar-se o entendimento de que a lei é boa e dada por Deus, mas no pecado. A transferência de
responsabilidade de Deus para o poder do pecado mostra a nova situação humana. Portanto, a
lei é boa e dada por Deus, sendo que a sua transgressão não é atribuída a responsabilidade de
Deus, mas é decorrente ao uso que o pecado faz da lei ao usar o que é carnal, tornando o homem
impedido de obedecer à lei de Deus.
As três afirmações que Paulo faz em Romanos (3,20; 4,25; 5,20); fazem a conexão entre
lei e pecado, sem muito descer em explicações quanto a isso, diferentemente do que em Gálatas.
Inicialmente, há uma relação entre a função da lei: “para que avultasse a falta” (Rm 5,20), com
“para que o pecado, através do preceito, aparecesse em toda a sua virulência” (Rm Rm 7,13).
Da mesma forma, há uma relação complementar entre: “pela lei vem o conhecimento do
pecado”(Rm 3,20), com “para o pecado se revelar” (Rm 7,13). Por fim, há uma relação entre a
lei e conhecimento do pecado: “eu não conheci o pecado senão através da lei” (Rm 7,7).
O agente ativo produtor do pecado, diferentemente de Gl 3,22. 24 e de Rm 5,20s,
atribuído a Deus e a Lei, em Rm 7 é atribuído ao próprio pecado. Em Rm 7,7-8,8 há uma
reviravolta no pensamento paulino, no que se refere à relação entre a lei e o plano divino da
salvação, já que se antes afirmava que a lei “aumenta o pecado” (Rm 5,20), e que diferentemente
em Rm 7,7-13, o pecado e não Deus, serviu-se da lei:
Do começo ao fim, Paulo descreve a condição humana anterior a Cristo como
servidão, escravidão a um poder que se opõe a Deus. A condição pré-cristã é
descrita como escravidão ao pecado (6,6.17. 20), como está na carne (7,5) e
como está sob a lei (6,14s; 7,6). Paulo, é claro, não diz que a lei é pecado ou
é a carne. Também em Rm 7,5 existe distinção: são atiçadas pela lei as paixões
daqueles que estão na carne e que estão sob a lei; e a libertação do pecado e
da carne implica a libertação da lei.92
O segundo papel da lei é de como o pecado a utiliza e distorce o sentido desta, gerando
o desejo e a cobiça para fazer o que é contrário à vontade de Deus. A lei não deve ser confundida
com o pecado, já que as transgressões são decorrentes da fraqueza da carne e do poder do
pecado. Portanto, “a Torá não funciona apenas como a norma do bem e do mal, ela pode ser
manipulada por outros poderes, infelizmente, o poder do pecado, mas também o poder do
Espírito (Rm 8,2)”.93
92
SANDERS, 1990, op. cit., p. 85.
93
DUNN, James D. G.. Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo. Paulo, uma
teologia em construção. Andreas Dettwiler (org.); et al. São Paulo: Loyola, 2011. p. 257.
37
A lei surge então como uma divisória, em seu lado negativo, entre os que estão sob
a influência do poder do pecado e sob a influência do poder de Cristo. Ora, estar sob a lei
significa estarem sob o pecado: “o pecado não terá sobre vós nenhum domínio, porque não
estais debaixo da lei, mas sob a graça” (Rm 6,14). O pecado tido como poder (cf. Rm 6,10s),
tem como consequência afirmar que o pecado é o poder pelo qual se morre. Da mesma forma,
Paulo relaciona o estar sob a lei com o estar sob a morte, pois enquanto o pecado domina os
que estão sob a lei (cf. Rm 6,10), os que estão sob a graça não estão sob o julgo deste poder
(Rm 6,15).94
No capítulo 7, da epístola aos Romanos, Paulo inova na relação entre o pecado e a lei,
excluindo a subordinação à vontade salvífica de Deus. Reconhece-se que Deus deu a lei e que
a lei e o pecado estão relacionados. No entanto, muda-se a relação entre lei, vontade de Deus e
o pecado (cf. Rm 7,7-13): a lei é boa e foi dada para a vida (Rm 7,10), mas foi usada por um
poder estranho que é o pecado (Rm 7,8. 11. 13). Daí percebe-se a mudança na relação entre
pecado e a própria intervenção de Deus na carta aos Gálatas (Gl 3,22. 24), bem como entre a
vontade de Deus e a lei. O pecado agora é o agente ativo que se serve da lei contra o projeto de
Deus.95
Outra questão é referente à carne, com relação à natureza humana. Ora, se os homens
são carnais (Rm 7,14), eles são profundamente influenciados a agir contra o bem que a lei
prescreve (Rm 7,15-23). O que Paulo acrescenta é que há uma lei do pecado (Rm 7,23), o que
assim a caracteriza como o próprio pecado (Rm 7,17.20), sendo impedidora de cumprir a
vontade de Deus. Enfim, segue a citação que resume os três tipos de relação entre a vontade de
Deus, a lei e o pecado:
Acabamos de ver três modos diferentes de Paulo apresentar a interconexão
entre vontade de Deus, a lei e o pecado. A afirmação mais freqüente, a de Gl
3,22-24 e de Rm 5,20s (claramente ecoada também em Rm 3,20 e 4,15),
subordina a lei e o pecado, com o qual está positivamente ligada, à vontade de
Deus. [...] O modo de ver de Rm 7,7-13, a saber, que a lei é utilizada pelo
pecado para produzir a transgressão à vontade de Deus, [...]. Finalmente, a
posição de Rm 7,14-25, que rompe a ligação positiva entre lei e transgressão,
[...].96
94
“Em Rm 6 o pecado não é o instrumento que Deus usa para manter todos no cativeiro, a fim de que ele possa
salvar a todos na base da fé. Tem status independente e não está sujeito ao controle de Deus. Em Rm 6 e na primeira
parte de Rm 7, Paulo mantém a ligação que fazia anteriormente entre pecado e lei. Chega quase a equiparar lei e
pecado; mas já que o pecado é agora poder estranho não submetido à vontade de Deus, ele tem que negar a equação
implícita”. SANDERS, 1990, op. cit., p. 86.
95
“A lei, antes, é o agente do pecado porque condena e, assim, provoca a transgressão. O pecado, mediante o
mandamento, ensina o que é cobiçar: a lei condena a concupiscência e, consequentemente, quem cobiça (7,7-11);
assim, a lei é o agente do pecado”. Ibidem, p. 87.
96
Ibidem, p. 89.
38
A questão central, ou seja, o grande problema teológico em que Paulo estava deparando-
se era: “qual o plano de Deus antes de Cristo? qual era o objetivo da lei? Como se pode
harmonizar a história de Israel (incluindo a lei) com a intenção de Deus de salvar a todos por
Cristo?’’97 Em Rm 7 há uma análise antropológica e existencial, com as suas afirmações sobre
a lei, o pecado e a humanidade. Daí resulta a que humanidade sem Cristo não pode cumprir a
lei de forma absoluta (Rm 7,14-25), não significando que a lei seja difícil para ser observada
adequadamente.
O terceiro papel da lei é a de ser norma e medida para a vontade de Deus para Israel.
Igualmente como em Gálatas, era exposto sobre a função protetora da lei para Israel, mas com
a vinda de Cristo põe-se fim a esta fase pela necessidade da fé (Rm 9,33-10,4). Daí é possível
falar em duas justiças: a que vem da Lei (Rm 10,5) e a que vem da fé (Rm 10, 6-10). Por conta
do nomismo da aliança, os círculos judaicos da época de Paulo defendiam que o cumprimento
da Lei é totalmente possível para Israel, e a Lei era tida como uma expressão da sabedoria
universal. Por isso Paulo vem exortar que “a palavra de fé que pregamos” (Rm 10,8) é a que
fala no Deuteronômio (Dt 30,14). Por isso a lei pode ser entendida como expressão de fé: “a
Lei é a expressão da fé. É isso que cria entre 10,6-12 e 9,31 uma verdadeira inclusão: a Lei era
a lei de justiça para Israel, mas Israel não a alcançou porque ‘eles não a esperavam da fé’ (9,32);
todavia, entendida como palavra de fé (10,8), a Lei é uma via de justiça para todos aqueles que
creem (10,4-10)”.98
Um grande erro interpretativo do pensamento paulino é o risco que se tem em apontar
definições reducionistas àcerca das analogias em que Paulo faz. A finalidade de Paulo em criar
essas analogias é em vista de sustentar uma ideia nova por meio de um método escriturístico-
argumentativo. Quando Paulo faz um paralelo entre Espírito e carne; ou ainda espírito e lei, não
é concebível entender que esteja sendo igualados os seguintes termos: lei, carne e pecado. O
grande erro interpretativo do pensamento paulino é a tendência do extremismo,99 ou seja, “a
tendência de imaginar as coisas em termos de ‘ou tudo ou nada’”.100
97
SANDERS, 1990, op. cit., p. 93.
98
DUNN, James D. G.. Paulo e a Torá: o papel e a função da Lei na teologia de Paulo, o apóstolo. Paulo, uma
teologia em construção. Andreas Dettwiler (org.); et al. São Paulo: Loyola, 2011. p. 258.
99
“Esses paralelos não estabelecem a identidade da ‘lei’ nem com o ‘pecado’ nem com a ‘carne’, assim como o
paralelo entre a lei e os stoicheia em 4,3-5 não significa que os dois sejam idênticos”. SANDERS, 1990, op. cit.,
p. 82.
100
Ibidem, p. 82.
39
A liberdade da lei mosaica, segundo Paulo, é decorrente pela substituição por outra lei,
a saber: a nova lei de Cristo, a Torá do Messias. A expressão, é claro, ocorre em Gl 6,2; 1 Cor
9,20-21. Ao povo cristão cabe estar sob a lei de Cristo, ἔννομος Χριστοῦ, (1Cor 9,21), e ser
escravo de Cristo, δοῦλός ἐστιν Χριστοῦ, (1Cor 7,22). Dessa forma a lei de Cristo é a lei do
amor, no qual os cristãos devem levar os fardos uns dos outros pela caridade fraterna: “Carregai
o fardo uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo (τὸν νόμον τοῦ Χριστοῦ) (Gl 6,2).
Segundo James Dunn, a lei de Cristo é o mandamento do amor, no qual segue a explicação:
[...] Carregar o peso do outro é, evidentemente, amar o próximo que sofre. E
como carregar o fardo do outro é cumprir a lei de Cristo, segue-se que a ‘lei
101
RUIZ DE LA PEÑA, op. cit., p.230.
40
A vida com Cristo faz de cada homem estar não mais sob o domínio do pecado, “porque
não estais debaixo da Lei, mas sob a graça” (Rm 6,14). Nesta distinção, Paulo utiliza três
imagens para representar o conteúdo desta dicotomia. Primeiro, a obediência é assemelhada a
figura de um escravo, que pode submeter-se ao pecado e a morte, outra obediência que leva a
justiça (Rm 6,16). Segundo, é a opção que se faz ou de entregar os vossos membros, ou seja, a
integridade da vossa vida, à escravidão da impureza e da desordem, ou à serviço da justiça para
a santificação (Rm 6,19). Terceiro, que o fruto do pecado é a morte, e o fruto da graça de Deus
é a vida eterna em Jesus Cristo (Rm 6,20-23).
A participação da vida em Cristo, à semelhança da compreensão sobre a Lei em face do
mistério pascal, decorre da transformação do homem em nova criatura, sendo como Cristo. É
preciso morrer para o pecado para viver com Cristo (Rm 6,2). A vida nova, é fruto da
experiência pascal de cada fiel, decorre do batismo, pois “se morremos com Cristo, cremos que
nós viveremos também com ele (Rm 6,8). O batismo é a semelhança, a imagem da morte de
Cristo. Precisa-se, todo fiel, morrer para o pecado para alcançar a vida nova: “o objetivo da
crucificação do velho homem é reduzir à impotência este corpo de pecado a fim de cessemos
de ser escravo do pecado”.103
Para entender o que a lei realmente é para Paulo, é necessário partir daquilo
que a cruz de Jesus é para ele. Todos os seus pensamentos estão girando em
torno do princípio de que Jesus crucificado é o Cristo; por isso, a concepção
da lei também se concentra nisso [tradução nossa].104
Para estar inserido na dinâmica da graça, da vida em Cristo, é preciso ser batizado. O
batismo é o sinal concreto da adesão e seguimento a Cristo, e, por força do sacramento, sinal
visível da graça invisível. O batismo é a imagem da associação que todo o cristão deve ter na
morte de Cristo. É pelo sacrifício pascal de Cristo que se recebe a vida na graça. Pela salvação
dada por Jesus Cristo, “Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue,
mediante a fé” (Rm 3,25); “justificados por seu sangue, seremos por ele salvos da ira” (Rm
5,9); “da obra de justiça de um só, resultou para todos os homens justificação que traz a vida”
102
DUNN, op. cit., 2003, p. 737.
103
REY, Bernard. Nova criação em Cristo no pensamento de Paulo. São Paulo: Academia Cristã, 2005. p. 127.
104
“Per comprendere che cosa veramente sia la legge in Paolo, è necessario partire da quel che è per lui la croce
di Gesù. Tutto il suo pensiero gravita intorno al principio che Gesù crocifisso è il Cristo; perciò anche la sua
concezione della legge si incentra su questo”. Νόμοσ. W. Gutbrod, in: KITTEL, op. cit., p. 1364.
41
(Rm 5,18); “pelo corpo de Cristo fostes mortos para a Lei, para pertencerdes a outro, àquele
que ressuscitou dentre os mortos, a fim de produzir frutos para Deus” (Rm 7,4); “Cristo morreu
e reviveu para ser o Senhor dos mortos e dos vivos” (Rm 14,9).
2.3.2 A Lei da fé
A vida interior (homem interior)105 é a forma com a qual o homem depara-se com duas
realidades contrastantes, “o de não praticar o que eu quero, mas fazer o que detesto” (Rm 7,15);
são duas leis, a lei do pecado e a lei da razão, sendo que “pela razão sirvo à lei de Deus e pela
carne à lei do pecado” (Rm 7,25). Quando não se faz o que se quer, a transgressão da Lei será
atribuída ao pecado que habita em cada pessoa (Rm 7,20), que pela carne, obedece à lei do
pecado (Rm 7,25). Mas o que é afinal a lei do pecado? Cranfield responde que:
[...] a identidade da outra, ‘a lei do pecado’, exige algum esclarecimento. Dá
a impressão de Paulo estar usando aqui a palavra ‘lei’ metaforicamente, para
designar poder exercido, autoridade, controle, e que ele quer dizer por ‘a lei
do pecado’, o poder, a autoridade, o domínio exercido sobre nós pelo pecado.
[...] O fato de o pecado exercer sobre nós tal autoridade é hedionda usurpação
do privilégio da lei de Deus.106
Tanto a fé quanto o amor são os fundamentos da Lei. Para Paulo, “[...] quem está em
Jesus Cristo, nem a circuncisão nem a incircuncisão são eficazes, mas a fé que age pelo amor”
(Gl 5,6); “pois toda a lei encontra o seu cumprimento nesta única palavra: amarás o teu próximo
como a ti mesmo” (Gl 5,14). A fé para o Apóstolo tem a sua devida importância ao apresentar
Abraão (Gl 3,6), Ao citar Habacuc: “quem é justo viverá pela fé” (Gl 3,11). Por fim, a
compreensão da Lei é decorrente de “o conhecimento de Jesus Cristo Senhor. Por causa dele,
perdi tudo e considero tudo isso como lixo, a fim de ganhar a Cristo e ser achado nele, não já
com uma justiça que seja minha, que venha da lei, mas com a que vem pela fé em Cristo” (Fl
3,8b-9).
Ao aparente conflito que se possa haver entre Lei e fé, é importante perceber que a “lei
da fé” (Rm 3,27), que é a fé em Jesus (Rm 3,26), reflete a busca pela justiça decorrida não pelas
obras da lei, mas pela fé (Rm 9,30-32). Pela fé não se elimina a Lei, mas a consolida (Rm 3,31).
Por isso a lei da fé visa o cumprimento da Lei do AT não para buscarem as obras da Lei com o
fim da justificação, mas convidando os homens à fé.
Paulo certamente não põe a palavra da fé e a lei como tal em antítese. Com
certeza ele opõe a palavra da fé e a lei entendida ‘como se fosse pelas obras’
105
“O significado de ‘o homem interior’ aqui tem de ser quase o mesmo que o de ‘minha mente’ nos vv. 23 e 25,
os quais precisam ser entendidos levando em conta aquela renovação da mente a que se faz referência em 12,2. A
mente, que reconhece e que está ligada à lei de Deus, é a mente que está sendo renovada pelo Espírito de Deus; e
o homem interior, de que Paulo fala, é a atuação do Espírito de Deus dentro do cristão”. CRANFIELD, op. cit., p.
164.
106
Ibidem, p. 165.
42
(9,32; 10,15); mas não a palavra da fé e ‘a lei da justiça’ entendida ‘pela fé’
(9,32; 10,6). Se Paulo tivesse pretendido separar a lei de que se fala em Dt 30,
11-14 e a palavra da fé, o seu uso da passagem dessa maneira seria deixado
sua exposição vulnerável a uma franca rejeição. Pelo contrário, seu uso dela
confirma que para Paulo a palavra da fé era de fato essa lei corretamente
entendida. 107
A lei da fé pode ser entendida como um princípio de isonomia entre judeus e gentios. A
lei da fé está em oposição às obras da lei, que faziam dos judeus sentiram-se gozando do
privilégio da salvação. A Escritura, diz Paulo, sacrificou todas as coisas sob o pecado, para que
a promessa fosse dada aos crentes em virtude da Palavra em Jesus Cristo (Gl 3,22). Por isso,
devem recorrer à promessa, e esta implica confiança naquele Deus cuja fidelidade é
demonstrada na permanência dos efeitos da aliança mantidos desde os patriarcas e confirmada
em Cristo.
A lei da fé marca o modo de agir do cristão. O comportamento que se espera do cristão
é fundamentado na relação de confiança com Deus, já que o pecado decorre da desconfiança
em Deus (Rm 1,21), e a desconfiança gera a autocondenação (Rm 14,22-23). A obediência da
fé exige um comprometimento e um seguimento, já que “a obediência da fé caracteriza a fé
como não meramente receptiva, mas também responsiva”.108 Por isso, ao amor e à eleição de
Deus cabe ao fiel uma resposta de fé, por meio da adesão de vida. No entanto, vale a ressalva
de que a justiça de Deus não se alcança, mas se recebe por graça e ação gratuita. O que na
verdade a lei da fé, que essencialmente não é uma lei, poderia ser traduzida por princípio da fé,
ou seja, um modus operanti da vida cristã.
2.3.3 A Lei do Espírito
A Lei do Espírito tem por finalidade libertar o crente da lei do pecado e da morte (Rm
8,2). A Lei mosaica não sendo o princípio da salvação (Rm 7,7), por ter sido enfraquecida pela
carne (Rm 8,3), foi por meio de Cristo que condenou o pecado na sua carne, para que o preceito
da Lei fosse cumprido em todos (Rm 8,3-4). Ora, a Lei do Espírito “capacita a revoltar-se contra
o poder usurpador do pecado com verdadeira medida de eficácia”.109 Por isso, a lei do Espírito
capacita-nos para viver segundo o Espírito e desejar as coisas do Espírito (Rm 8,5); torna-nos
moradas do Espírito e pertencentes a Cristo (Rm 8,9); e dá vida aos corpos mortais (Rm 8,11).
Enfim, a Lei do Espírito pode ser definida solenemente da seguinte forma:
Há uma lei suprema, pela constituição de que toda lei se firma e cai. Esta
possibilidade, este evento, esta lei, é o Espírito. O Espírito é aquele que é novo,
107
DUNN, 2003, op. cit., p. 721.
108
Ibidem, p. 715.
109
CRANFIELD, op. cit., p. 171.
43
existencial, de uma vez por todas, a vida universal, existencial, que foi
revelada em Cristo [tradução nossa].110
Paulo utiliza a linguagem profética do AT que anunciava a nova aliança (Jr 31,31-33)
ao falar sobre a Lei do Espírito. Como na antiga aliança que era constituída pela Lei (sendo esta
considerada o único mediador da justificação), o mattan tôrâ, da mesma forma a nova aliança
era constituída por uma lei interior, não feita em tábuas de pedra, mas sobre o coração. 111 Por
isso, “lei que, por definição, o homem não poderá mais romper, precisamente porque será
interior, fazendo uma unidade, de alguma forma, com sua própria natureza” [tradução nossa].112
Ademais, Tomás de Aquino vem explicar o que venha a ser a Lei do Espírito:
De certa forma, esta lei pode ser o Espírito Santo, de modo que a lei do Espírito
significa a lei o qual é o Espírito. Porque uma lei é dada para que, através dela,
os homens possam ser levados ao bem; Daí, o Filósofo diz em Ética II que a
intenção do legislador é tornar os cidadãos bons. A lei humana faz isso
simplesmente indicando o que deve ser feito; mas o Espírito Santo que habita
na mente não só ensina o que deve ser feito instruindo o intelecto, mas também
inclina a afeição para agir corretamente [...] [tradução nossa].113
A Lei do Espírito e a própria vida no Espírito é articulada pela noção de três termos:
Espírito, herança e filiação (Rm 8, 14-17). Enquanto que os judeus consideravam como filhos
de Deus os descendentes de Abraão e os membros do povo escolhido, Paulo fala da adoção
filial (Rm 9,4) é garantida por Cristo (Gl 4,5), no qual este é a descendência de Abraão (Gl
3,16). A herança é garantida pela filiação adotiva ao participarmos do mistério pascal de Jesus
(Rm 8,17) e por ser conduzido pelo Espírito (Rm 8,14). Quanto ao Espírito, “o Espírito não é
apenas aquele que confere a herança, mas constitui-a ele mesmo. Pelo dom do Espírito, os
homens participam, desta vida, na vida mesma de Deus, que anima o Corpo de Cristo
ressuscitado ao qual estão unidos”.114
O papel do Espírito, vê-se, é fazer dos homens imagens de Cristo, formar neles
os traços do Filho morto para a carne e ressuscitado para a vida pelo Espírito
que reintegra o Homem-Deus na posse de sua herança. As tribulações desta
110
“There is a supreme law, by the constitution of which every law stands and falls. This possibility, this event,
this law, is the Spirit. The Spirit is that new, existential, once-for-all, universal life, which has been revealed in
Christ”. BARTH, op. cit., p. 273.
111
Cf. LYONNET, Stanislao S. I.. La storia della salvezza nella Lettera ai Romani. Napoli: M. D’Auria Editore
Pontificio, 1966.
112
“[…] legge che per definizione l'uomo non sarà più capace di rompere, proprio perchè essa gli sarà interiore,
facendo tutt'uno, in qualche modo, con la sua stessa natura”. LYONNET, op. cit., p. 137.
113
“In one way this law can be the Holy Spirit, so that the law of the spirit means the law which is the Spirit. For
a law is given in order that through it men may be led to the good; hence, the Philosopher says in Ethics II that
the intention of the lawgiver is to make citizens good. Human law does this by merely indicating what ought to be
done; but the Holy Spirit dwelling in the mind not only teaches what is to be done by instructing the intellect but
also inclines the affection to act aright […].” AQUINAS, Thomas. Commentary on the Letter to the Romans.
Disponível em: https://sites.google.com/site/aquinasstudybible/home/romans/st-thomas-aquinas-on-romans/chap
ter-1/chapter-2/chapter-3/chapter-4/chapter-5/chapter-6/chapter-7/chapter-8. Acesso em: 20/10/2017.
114
REY, op. cit., p. 215.
44
vida não podem estancar esta fonte de esperança que o batismo fez jorrar no
coração dos cristãos tornados co-herdeiros de Cristo e chamados à sua glória,
elas contribuem mesmo a configurá-los mais a seu ‘irmão primogênito’. A
espera da criação inteira deveria mesmo firmar-lhes a confiança.115
115
REY, op. cit., p. 216.
45
116
“[...] El vivir justamente es un don divino, no sólo porque Dios otorgó al hombre el don natural del libre
albedrío, sine el cual no se puede vivir justa ni injustamente [...]”. AGUSTÍN, S. El Espíritu y la letra. Cap. V,
n° 7. In: Obras de San Agustín: Tratados sobre la gracia. Vol. 6. Fr. Victorino Capanaga, O. R. S. A. (org. e trad.)
et al. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1949. p. 695.
117
Cf. Ibidem, cap. XXXIII, n° 58. p. 793.
118
Cf. Ibidem, cap. XXX, n° 52. p. 779.
46
Foi concedido ao homem o livre arbítrio por Deus, a fim de que o homem, vivendo em
pureza e santidade, possa se assemelhar com o Criador.119 Ao pecar, segundo o Bispo de Hipona
(Agostinho), o homem perde a liberdade e não o livre arbítrio, já que “o livre arbítrio cativo
não tem poder senão para pecar, porém não para agir segundo a justiça, se não for ajudado e
libertado por Deus” [tradução nossa].120 Por conta do pecado original, o livre arbítrio passa a
ser cativo (liberum arbitrium captivatum), sendo este comprometido com o pecado. Porém, o
livre arbítrio não é perdido, e nem deixa de existir, torna-se incapacitado, no qual só será curado
por meio da graça.121
Na justificação, o livre arbítrio cativo (liberum arbitrium captivatum) torna-se o livre
arbítrio libertado (liberum arbitrium liberatum), pela ação dessa graça de cura. Por isso, a
possibilidade de não pecar não pode existir na humanidade caída, embora Agostinho se deva
apontar que isso não exclui a liberdade natural dos seres humanos. Deus não nos mandaria fazer
algo, a menos que houvesse livre arbítrio pelo qual poderíamos fazê-lo. A ética de Agostinho
pressupõe que o destino dos seres humanos é determinado pelo mérito ou pelo demérito, que
juntos por sua vez, pressupõem - pelo menos para Agostinho - que os humanos possuem livre
arbítrio.
[...] como o apóstolo Paulo escreve, Deus julgará o mundo quando vier, como
toda a Igreja confessa no Símbolo, para julgar os vivos e os mortos. Se a graça
de Deus não é dada, como o mundo será salvo? E se a liberdade não é dada,
como ele irá julgar o mundo? Portanto, o livro e a carta que os dois irmãos
mencionados os levaram de minha parte, entenda-os de modo que não negueis
a graça de Deus; nem defendais a liberdade de maneira que separeis da graça
de Deus, como se por algum motivo pudéssemos pensar ou fazer algo sem ela,
de acordo com Deus. Não podemos fazer isso de forma alguma. Por isso o
Senhor ao falar da justiça disse aos seus discípulos: ‘sem mim, nada podeis
fazer’ [tradução nossa].122
119
Cf. AGUSTÍN, S. La naturaleza y la gracia. Cap. LXIV, n° 77. In: Obras de San Agustín: Tratados sobre la
gracia. Vol. 6. Fr. Victorino Capanaga, O. R. S. A. (org. e trad.) et al. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
1949. p. 929.
120
“El libre albedrío cautivo no tiene poder sino para pecar, mas no para obrar la justicia, si no fuere ayudado y
liberado por Dios”. AGUSTÍN, S. Réplica a las dos cartas de los pelagianos. Libro III, cap. VIII, n° 24. Acesso
em: http://www.augustinus.it/spagnolo/contro_lettere_pelagiani/index2.htm. Disponível em: 30/10/2017.
121
Cf. AGUSTÍN, S. La naturaleza y la gracia. Cap. LXIV, n° 77. In: Obras de San Agustín: Tratados sobre la
gracia. Vol. 4. Fr. Victorino Capanaga, O. R. S. A. (org. e trad.) et al. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
1949. p. 929.
122
“[...] como escribe el apóstol Pablo, Dios juzgará al mundo cuando venga, como toda la Iglesia lo confiesa en
el Símbolo, a juzgar a los vivos y al os muertos. Si no se da la gracia de Dios, ¿cómo salvará al mundo? Y si no
se da la libertad ¿como juzgará al mundo? Por lo tanto, el libro y la carta que los dos mencionados hermanos os
llevan de mi parte, entended los de modo que no nieguen la gracia de Dios; ni defendéis la libertad de manera
que la separéis de la gracia de Dios, como si por alguna razón pudiésemos sin ella pensar o hacer algo según
Dios. En ninguna manera lo podemos. Por eso, al hablar el Señor del fruto del a justicia, dijo a sus discípulos:
Sin mí nada podéis hacer”. AGUSTÍN, S. Carta a Valentín. 214, n° 2. In: Obras de San Agustín. Cartas. Vol. 9.
Fr. Lope Cilleruelo O. S. A. (org. e trad.); et al. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1953. p. 1003.
47
123
Cf. AGUSTÍN, S. Sermone 169. In: Obras Completas de San Agustín. Sermones. Vol. 23. Amador del Fueyo,
O. S. A. (org. e trad.); et al. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1983.
124
“Iustificatio mostra ex gratia, non sine mostra voluntate”. Ibidem, nº 13. p. 660.
125
“La justicia de Dios puede existir sin tu voluntad, pero no puede existir en ti al margen de tu voluntad”.
AGUSTÍN, S. Sermone 169, op. cit., nº 13. p. 661.
126
“¿Qué significa para nuestra justificación? Para justificarnos, para hacernos justos. Serás obra de Dios, no
sólo por ser hombre, sino también por ser justo. [...] Quien te hizo sin ti, no te justificará sin ti. Por lo tanto, creó
sin que lo supiera el interesado, pero no justifica sin que lo quiera él. Con todo, es el quien justifica; para que no
sea justicia tuya, para no volver a lo que para ti es daño, perjuicio, estiércol, hállate en él desprovisto de justicia
propia, la que procede de la ley, pero poseyendo la que llega por la fe en Cristo, la justicia que proviene de Dios:
La justicia de la fe para conocerle a él y la fuerza de su resurrección y la participación en sus dolores. También
ella será tu fuerza; la participación en los dolores de Cristo será tu fuerza”. Ibidem.
48
De fato, Deus opera diante dos homens no ato da justificação, e coopera com eles no
processo de justificação.127 Agostinho entende o mérito como um presente de Deus para o
pecador justificado, daí ele relaciona vida eterna, graça e mérito na seguinte frase: “Quando
Deus coroa nossos méritos, não coroa senão os seus próprios dons” [tradução nossa].128
O centro da doutrina de justificação de Agostinho é a sua compreensão da “justiça de
Deus”, (iustitia Dei). A justiça de Deus não é a justiça pela qual Deus é ele mesmo, mas aquela
pelo qual Deus justifica os pecadores. A justiça de Deus, velada no AT e revelada no NT em
Jesus Cristo, é assim chamada porque, ao conferir isso aos homens, Deus os torna justos.129
Daí, Agostinho entende que o verbo justificar significa “tornar justos”: “Pois, que outra coisa
significa ser justificado, senão tornar-se justo por aquele que justifica o ímpio, para que o ímpio
venha a fazer-se justo?” [tradução nossa].130
Por fim, ao interpretar o trecho de Rm 5,1ss., Agostinho entende que a justificação deve
ser pelo amor e não pela fé simplesmente, já que assim como a cobiça é a raiz do mal, o amor
é a raiz do bem. Para tanto, o Bispo de Hipona utiliza os trechos: 1Cor 13,1-3 e Gl 5,6. Ele
entende que a fé sozinha é meramente o consentimento da verdade revelada, sendo a fé mesma
inadequada para justificar, necessitando de sua suplementação pela caridade para justificar a
humanidade.131
A contribuição de Agostinho lançou as bases para o desenvolvimento medieval da
doutrina da justificação. Embora seja claramente incorreto caracterizar o grande renascimento
teológico dos séculos XII e XIII, além de uma expansão e desenvolvimento das ideias de
Agostinho, o papel crítico que sua teologia desempenhou como recurso e norma, podendo ser
observada com algumas dificuldades.
3.1.2 A consolidação na Idade Média
O período medieval caracterizou-se por suas tentativas de acumular material bíblico e
patrístico considerados relevantes para questões particulares de teologia, interpretação, e por
sua tentativa de desenvolver métodos hermenêuticos para resolver as aparentes contradições
127
Cf. AGUSTÍN, S. De la gracia y del libre albedrio. Cap. XVII, nº 33. In: Obras Completas de San Agustín.
Tratados sobre la gracia. V. 6. Fr. Victorino Capanaga, O. R. S. A. (org. e trad.); et al. 2ª ed.. Madrid: Biblioteca
de Autores Cristianos, 1949. p. 276.
128
“[...] cuando Dios corona nuestros méritos no corona sino sus dones”. AGUSTÍN, S. Carta 194. Cap. V, nº 19.
In: Obras Completas de San Agustín. Tratados sobre La gracia. Vol. 11. Fr. Lope Cilleruelo, O. S. A. (org. e
trad.); et al. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1949. p. 817.
129
Cf. AGUSTÍN, S. Del espíritu y del a letra. Cap. XI, nº 18, op. cit., p. 716.
130
“Pues ¿qué otra cosa quiere decir justificados sino hechos justos por aquel que justifica al impío, para que del
impío venga a hacer se justo?” Ibidem, Cap. XXVI, nº 45. p. 763.
131
AGUSTÍN, S. Tratado sobre La Santísima Trinidad. Livro XV, cap. XVIII, nº 32. In: Obras Completas de
San Agustín. Vol. 5. Fr. Luis Arias, O. S. A. (org. e trad.); et al. 2ª ed. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos,
1956. p. 901.
49
encontradas neste processo. Ademais, na Idade Média era comum a existência de coleções de
"frases" patrísticas, no qual parecem ter sido modeladas a exemplo das codificações dos
canonistas, que inicialmente agrupavam seus decretórios coletados cronologicamente, e depois,
de acordo com assuntos. O exame de tais coleções de frases patrísticas sugere que elas foram
amplamente retiradas das obras de Agostinho. A coleção mais famosa, “As Sentenças em quatro
Livros” de Pedro Lombardo, foi denominado “breviário agostiniano”, na medida em que
aproximadamente 80% de seu texto é ocupado por mil citações de Agostinho.132
Com o renascimento teológico do final do século XII e do século XII, assegurou-se que
o quadro da discussão medieval da justificação fosse essencialmente agostiniano. O período viu
o conceito de justificação desenvolvido em uma transformação: a transferência da discussão
sobre a salvação da humanidade do mitológico ao moral. A ênfase que é então colocada sobre
o caráter moral ou jurídico de Deus, inevitavelmente, leva ao aumento do interesse pela natureza
precisa de justiça de Deus (iustitia Dei) e, portanto, na questão de como a justiça de Deus
(iustitia Dei) e a justiça dos homens (iustitia hominis) estão correlacionadas.
A compreensão medieval característica da natureza da justificação pode ser resumida
assim: a justificação não se refere apenas ao início da vida cristã, mas também à sua continuação
e perfeição final, em que os cristãos são feitos justos diante de Deus e da humanidade através
de uma mudança fundamental em sua natureza, e não apenas em seu status. Com efeito, a
distinção entre justificação (entendida como um pronunciamento externo de Deus) e
santificação (entendida como processo posterior de renovação interna), característica do
período da Reforma Protestante, não está presente ente os medievais.
Com Tomás de Aquino, houve a aplicação do modelo aristotélico que tem a sua máxima:
tudo que é movido o é pela ação de outro. Daí, Aquinate (Tomás de Aquino) entende a
justificação em uma ordem na natureza, ocorre da seguinte forma: “o primeiro dentre eles é a
infusão da graça; o segundo, o movimento do livre arbítrio para Deus; o terceiro, o
movimento do livre arbítrio contra o pecado; o quarto enfim, a remissão da culpa”.133
Tomás agora justifica isso com base na física aristotélica. Por natureza, o movimento
do motor deve vir em primeiro lugar, seguido da disposição do assunto, ou do movimento
daquilo que deve ser movido, seguido do término final do movimento quando o objetivo do
movimento foi alcançado. Assim, a infusão da graça deve preceder a remissão do pecado, pois
a infusão da graça é a causa eficiente dessa remissão. Assim, o motus (movimento) que é a
132
Cf. MCGRATH, Alister E. Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification. New York:
Cambridge University Press, 2005.
133
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Vol. 4. Seção I. Parte II. q. 113, a. 8. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
50
justificação termina na remissão do pecado, que pode ser considerado como o término da
infusão da graça.134
Tomás de Aquino define a justificação sendo como "um movimento pelo qual a mente
humana é movida por Deus do estado do pecado a um estado de justiça (quidam motus quo
humana mens movetur a Deo a statu peccati in statum iustitiae).135 Isso permite que um
processo de justificação triplo seja estabelecido: infusão da graça, movimento do livre arbítrio
e remissão dos pecados (infusio gratiae, motu sliberi arbitrii, remissio peccatorum). A tradição
tinha, no entanto, estabelecido um duplo movimento do livre arbítrio na justificação: fé (dirigida
a Deus) e contrição (dirigida para afastamento do pecado). Enfim, na justificação, de acordo
com Tomás, a humanidade é transformada de um estado de natureza corrupta para um estado
de graça habitual; de um estado de pecado a um estado de justiça, com a remissão dos
pecados.136
As características gerais dos primeiros ensinamentos franciscanos sobre a natureza da
justificação podem ser encontradas na obra “Itinerário da mente para Deus” de São Boaventura,
que desenvolve um conceito hierárquico de justificação que reflete claramente a influência de
Dionísio. As três operações fundamentais de graça para a justificação são a purificação, a
iluminação e a percepção da alma.137
Os três aspectos da justificação do pecador correspondem aos "três caminhos"
que são tão característicos da espiritualidade de Boaventura, distinguidos por
seus objetivos e não por sua relação no tempo. O stimulus conscientiae motiva
o caminho da purificação, o radius intelligentiae o caminho da iluminação e
o igniculus sapientiae o caminho da unidade com Deus. Desde o momento da
sua primeira infusão, a graça santificadora assume a substância e as faculdades
da alma, definindo cada um em seu respectivo lugar, e ordenando a alma que
pode ser conforme a Deus.138
134
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Vol. 4. Seção I. Parte II. q. 113, a. 8. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
135
AQUINO, op. cit., Seção I. Parte II. q. 113, a. 5.
136
Ibidem, Seção I. Parte II. q. 113, aa. 1, 2.
137
BOAVENTURA, S. Intinerário da mente para Deus. Petrópolis: Vozes, 2012. Cap. IV, nº 3.
138
MCGRATH, op. cit., p. 67.
51
retidão dentro da natureza superior dos seres humanos, quer seja considerado como mens ou
como anima.
3.1.3 A reforma protestante diante a justificação
O fim da Idade Média e início da Idade Moderna é marcado pela dialética entre liberdade
divina e liberdade humana, com relação às controvérsias sobre a doutrina da justificação. O
século XIII viu o surgimento do determinismo de Averrois em Paris, representando uma séria
ameaça ao conceito de liberdade divina. Entre as proposições que foram condenadas em Paris
em 1277 foram várias as que negaram ou questionaram seriamente a onipotência e a liberdade
de Deus. Na sua forma original, a dialética entre os dois poderes de Deus foi concebida como
uma solução para este dilema e está particularmente associada a Alexandre ‘o grande’ e Duns
Scotus.
No final da Idade Média, a necessidade de reforma e renovação dentro da igreja cristã
na Alemanha e em outros lugares era tão óbvia que não podia mais ser ignorado. O cristianismo
medieval anterior tinha sido principalmente monástico, focado na vida, adoração e escritos dos
mosteiros e conventos da Europa. O século XV foi referido como o período de inflação da
literatura mística, refletindo o crescente interesse popular na religião, testemunhando uma
ampla apropriação popular de crenças e práticas religiosas, nem sempre em formas
ortodoxas.139
O principal princípio da Reforma é geralmente considerado como sua doutrina de
justificação, tendo como grande expoente o teólogo Martinho Lutero. Para Lutero, esta doutrina
era tida como o “primeiro e principal artigo [...] [e] regente e juiz sobre todas as partes da
doutrina cristã”.140
O fenômeno da "religião popular" muitas vezes apresentava uma relação
tangencial com as declarações mais precisas e abstratas da doutrina cristã que
a igreja preferia - mas que muitos achavam ininteligível ou pouco atraente.
Em algumas partes da Europa, as crenças religiosas populares ecoavam as
noções de “cultos de fertilidade” emergiram, ligados e enredados com os
padrões e preocupações das comunidades agrárias rurais. A religião muito
popular foi moldada pelo medo da morte e do inferno, muitas vezes ligada a
crenças mais populares de demônios e demônios à espreita em bosques e
lugares escuros, aguardando a oportunidade de arrebatar almas imprudentes e
levá-las direto para o inferno. Às vezes, dicas dessas preocupações populares
podem ser encontradas nos primeiros escritos de Lutero, particularmente
quando ele agonizou sobre as implicações de sua própria incapacidade de
139
Cf. MCGRATH, Alister E. Luther’s Theology of the Cross. 2ª ed. Oxford: Blackwell Publishing, 2011.
140
CATOLICA ROMANA E FEDERAÇÃO LUTERANA MUDIAL. Declaração conjunta sobre a doutrina
da justificação. Johannes F.Hasenack; Luís M. Sander (Trad. e rev.). 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2000. nº 1.
52
Agora está claro que houve uma confusão considerável na igreja medieval tardia,
indubitavelmente, exacerbada por um clero em grande parte sem educação, sobre questões de
doutrina e sobre a doutrina da justificação, em particular. É precisamente essa confusão
generalizada no início do século XVI que pareceu ter ocasionado e catalisado as reflexões
teológicas de Lutero nos anos 1509-1519.
Por meio da compreensão luterana, Deus justifica o pecador somente na fé (sola fide).
A fé faz com que o pecador confie em Deus e entre em comunhão com Ele. A justificação e a
renovação estão ligadas pelo Cristo presente na fé, já que a renovação da conduta de vida segue
à justificação.
No cenário de transição da Idade Média para a Idade Moderna, com o voluntarismo,
nominalismo, o primordial princípio da Reforma é a doutrina de justificação, tendo como
grande expoente o teólogo de Martinho Lutero.
Dentre as características principais do entendimento da justificação na reforma
protestante, pode-se destacar: Primeiro, que a justificação é definida como a declaração forense
de que os crentes são justos, e não o processo pelo qual eles são feitos justos; segundo, a
elaboração da distinção sistemática entre a justificação (o ato externo pelo qual Deus declara
que o pecador é justo) e a santificação ou regeneração (o processo interno de renovação dentro
dos seres humanos); terceiro, a justiça sobre a qual esse julgamento se baseia necessariamente
é externa aos seres humanos.
A compreensão da justificação de Lutero (1513-14) pode ser resumida da seguinte
forma: os humanos devem reconhecer a sua fraqueza espiritual e inadequação, e transformar a
humildade em suas tentativas de auto-justificação para pedir a Deus sua graça. Deus trata essa
humildade de fé (humilitas fidei) como pré-requisito necessário para a justificação nos termos
do pacto (isto é, como o tempo em si próprio dos seres humanos) e, em seguida, cumprir as
obrigações de Deus sob a promessa de conferir graça sobre eles. Dessa forma, Lutero entende
que os humanos são capazes de fazer uma resposta a Deus sem o auxílio de uma graça especial
141
“The phenomenon of “folk religion” often bore a tangential relationship to the more precise yet abstract
statements of Christian doctrine that the church preferred – but that many found unintelligible or unattractive. In
parts of Europe, popular religious beliefs echoing the notions of classical “fertility cults” emerged, connected and
enmeshed with the patterns and concerns of agrarian rural communities. Much popular religion was shaped by a
fear of death and hell, often linked with more popular beliefs of fiends and devils lurking in woods and dark places,
awaiting their opportunity to snatch unwary souls and take them straight to hell. At times, hints of these popular
concerns can be found in Luther’s early writings, particularly as he agonized over the implications of his own
inability to achieve the holiness that his age regarded as a guarantee of salvation”. MCGRATH, 2011, op. cit.,
p. 13.
53
e que essa resposta da iustitia fidei é a pré-condição necessária (quod in se est) para a concessão
de graça justificadora.
Para melhor compreender sobre a doutrina da justificação pela fé, é importante ter em
mente que Lutero realizou quatro debates no ano de 1535, para a obtenção de quatro doutorados
de pessoas que ele orientava.142
Lutero distinguiu entre a justiça humana e a justiça divina. Dizia em um dos debates
acerca da interpretação de Rm 3,28 que a justiça humana “é uma máscara e ímpia hipocrisia
perante Deus”.143 Que a justiça humana se obtém da glória humana, enquanto que a justiça
divina encontra glória diante de Deus. Ele também enfatiza a distinção entre fé e obras, no qual
as obras apenas indicam a fé, como os frutos indicam a árvore e não que as obras justificam.
Portanto, Lutero diz que as obras indicam se tenho fé.
Diante de Deus é necessária a fé, não as obras; diante dos seres humanos são
necessárias as obras e o amor que nos revela como justos diante de nós
mesmos e diante do mundo. Finalmente admitimos, portanto, que o ser
humano se justifica a si mesmo com respeito a causa efetiva, não com respeito
à causa eficiente. Pois esta procede de Deus somente, sem obras,
exclusivamente por meio da fé em Cristo, o que é manifesto nesta mulher que
não teria derramado lágrimas se não tivesse depositado confiança em Cristo.144
As características do conceito de iustitia Dei de Lutero são: que a justiça que é um dom
de Deus, em vez de uma justiça que pertence a Deus; segundo, a justiça é revelada na cruz de
Cristo; terceiro, a justiça que contradiz com os preconceitos humanos.
Na interpretação sobre a Epístola aos Romanos, Lutero compreendia que a humanidade
é entendida como passiva diante a ação divina da justificação. Lutero, agora, utiliza o conceito
agostiniano de graça operativa e insiste que os seres humanos são essencialmente passivos para
a primeira graça, assim como uma mulher é quando ela concebe. Por isso, ele entende que a
graça não é apropriada ativamente, mas é passivamente recebida pela humanidade.
Dentre as diferenças entre Agostinho e Lutero, é perceptível tanto na antropologia,
quanto na soteriologia. Na antropologia, com relação ao pecado. Lutero afirma que o livre
arbítrio humano é mantido cativo pelo pecado e é incapaz de alcançar a justiça sem a graça. É
neste ponto que Lutero primeiro faz referência à ideia do servum arbitrium, uma ideia que
domina sua polêmica anti-Erasmiana de 1525. Já na soteriologia, Lutero expressa a prioridade
142
“Desde 1535 começaram a ocorrer novamente, em Wittenberg, promoções de teólogos ao grau de doutor. Tais
promoções eram precedidas por debates. Para tais debates, Lutero formulava teses que tiveram que ser defendidas
pelos promovendos. Após a defesa, Lutero em geral ainda formulava respostas aos argumentos usados”.
LUTHERI, Martini. Disputatio Domini de iustificatione. In: Martinho Lutero. Obras selecionadas. Vol. 3. Luis
Henrique Dreher (trad.). Porto Alegre: Concórdia, 1992. p. 201.
143
LUTHERI, Martini. Disputatio Domini de iustificatione. In: Martinho Lutero, op. cit., p. 203.
144
Ibidem, p. 211.
54
soteriológica divina ao falar, primitivamente, em termos de "justificação pela fé", usando assim
a imagem paulina (Rm 5,1) e passagens relacionadas. Agostinho expressa essa mesma noção
falando de "salvação pela graça", levando as imagens paulinas (Ef 2,8).
3.1.4 O concílio de Trento
No Concílio de Trento, dentre os documentos, foi elaborado o Decreto sobre a
justificação (1947). Este decreto tinha como objetivo rechaçar a doutrina de Lutero sobre a
justificação e sobre a cooperação do homem com a graça de Deus; também, sobre as ideias
sobre predestinação de Calvino e também a doutrina pelagiana que nega a necessidade da graça
para obter a justificação. O concílio de Trento estabeleceu inicialmente a tarefa de lidar com
seis questões, no qual, em 22 de junho de 1546, uma comissão de teólogos estabeleceu as
seguintes perguntas para discussão:
1) Qual é a justificação, nominalmente e na verdade (quo ad nomen et quo ad
rem) e o que deve ser entendido quando se diz que "a humanidade é
justificada" (iustificari hominem)? 2) Quais são as causas da justificação?
Qual parte é reproduzida por Deus? E o que é necessário para os seres
humanos? 3) O que deve ser entendido quando se diz que ‘a humanidade é
justificada pela fé’ (iustificari hominem per fidem)? 4) Que papel
desempenham as funções humanas e os sacramentos na justificação, já antes,
durante ou depois disso? 5) O que precede, acompanha e segue a justificação?
6) Por meio de quais provas é apoiada a doutrina católica? [tradução nossa].145
145
“1. What is justification, nominally and actually (quoad nomen et quoad rem), and what is to be understood
when it is said that ‘humanity is justified’ (iustificari hominem)? 2. What are the causes of justification? What part
is played by God? And what is required of humans? 3. What is to be understood when it is said that ‘humanity is
justified by faith’ (iustificari hominem per fidem)? 4. What role do human works and the sacraments play in
justification, whether before, during or after it? 5. What precedes, accompanies and follows justification? 6. By
what proofs is the Catholic doctrine supported?” MCGRATH, 2005, op. cit., p. 326.
55
146
“[...] la santificación y renovación del hombre interior, por la voluntaria recepción de la gracia y los dones,
de donde el hombre se convierte de injusto en justo y de enemigo en amigo, para ser ‘heredero según la esperanza
de la vida eterna’ [Tit 3,7]”. CONCILIO DE TRENTO. Decreto sobre la justificación, in: DENZINGER, Heinrich.
HÜNERMANN, Peter. El magistério de la Iglesia. Enchiridion symbolorum definitionum et declarationum de
rebus fidei et morum. Barcelona: Herder, 1999. nº 1527. A partir de agora, a citação será feita da seguinte forma:
Denzinger, nº 1528.
147
Cf. Denzinger, nº 1529.
148
“La fe es el principio de la humana salvación”. Denzinger, nº 1532.
149
Denzinger nº 1559.
56
150
CATOLICA ROMANA E FEDERAÇÃO LUTERANA MUDIAL. Declaração conjunta sobre a doutrina
da justificação. Johannes F.Hasenack; Luís M. Sander (Trad. e rev.). 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2000. nº 40 e 41.
57
tenta focar, com a maior precisão possível, a compreensão do texto bíblico à luz da real intenção
que o autor bíblico tenta transmitir. Ou seja, o estudo deve se dirigir à seguinte questão: o que
Paulo quis dizer sobre a justificação? Eis que passará a ser desenvolvida esta reflexão em dois
pontos.
3.2.1 A justificação pela fé, graça e redenção de Cristo
A justificação de Deus não foi algo criado por Paulo em suas cartas, mas provém do
pensamento judaico.151 Quando Paulo fala da justiça, está falando uma palavra sacra para o
judaísmo, sendo que a doutrina da justificação para Paulo serve de instrumento de polêmica e
fruto de uma atividade pastoral.
A compreensão da justificação é remetida desde o AT. Primeiro, reconhece-se a
iniciativa de Deus tanto na criação quanto na eleição, seja mediante por causa do seu amor e
fidelidade ao juramento aos patriarcas, ou pelas exigências de Deus para que seu povo volte à
fidelidade para com Deus (Sl 51,14; 65,5; 71,15; Is 46,13; 51,5-8; 62,1-2). Segundo, para
manter a aliança era necessário a reparação dos pecados através do arrependimento e sacrifício.
Terceiro, a ênfase de Paulo dada à graça de Deus não era uma reação contra a fé judaica, mas a
reafirmação da fé ancestral.
Por isso precisa ser dito aqui com toda clareza que a justificação pela fé é, em
seu cerne, uma doutrina judaica; que a dependência da graça divina permanece
uma ênfase consistente que perpassa todo o pensamento judaico, pelo menos
até o pensamento de Paulo e que não há nenhum ensinamento claro, na
documentação judaica pré-paulina, de que a aceitação por Deus tivesse de ser
merecida.152
Quando Paulo utiliza a expressão: justificados pela fé, ele quer responder a essa
pergunta: como é que os gentios podem ser aceitos da mesma forma que os judeus? Ora, a fé
está em oposição com as obras da Lei: “sabendo que nenhum ser humano é justificado pelas
obras da Lei, mas somente através da fé em Jesus Cristo” (Gl 2,16); “[...] porque afirmamos
que alguém é justificado pela fé, sem obras da Lei” (Rm 3,28).
A justificação pela fé é uma bandeira levantada por Paulo contra toda e
qualquer presunção de status privilegiado diante de Deus, em virtude da etnia,
da cultura ou da nacionalidade, contra toda e qualquer tentativa de preservar
essas distinções espúrias mediante práticas que excluem e dividem.153
151
“O Dêutero-Isaias rompe, assim, com toda a evidência, os limites do emprego jurídico. O paralelismo entre ‘ser
justificado’ e ‘ser glorificado’ mostra muito bem que dikaioûsthai toma o sentido de ‘achar salvação”. JEREMIAS,
Joachim. A mensagem central do Novo Testamento. João Rezende Costa (trad.). São Paulo: Paulinas, 1977. p.
68.
152
DUNN, 2011, op. cit., p. 530.
153
Ibidem, p. 306.
58
A justificação do fiel não é decorrida de uma forma forense ou moralista, mas de uma
forma soteriológica. Deve ser entendida como uma ação salvífica de Deus,154 de forma radical:
atuando no presente (Rm 3,24-26; 5,1. 9. 17; 8,30; 9,30; I Cor 6,11); sendo como um dom (τῆς
δωρεᾶς τῆς δικαιοσύνης – Rm 5,17); sendo o modo de gerar a vida no Espírito (τὸ δὲ πνεῦμα
ζωὴ διὰδικαιοσύνην – Rm 8,10); é a justiça da fé em detrimento da justiça da Lei (δικαιοσύνην
δὲ τὴν ἐκ πίστεως – Rm 9,30) e também (ἡ δὲ ἐκ πίστεως δικαιοσύνη – Rm 10,6).
A conexão existente entre o v. 24 com o anterior é decorrente da articulação de duas
expressões: “todos pecaram” (πάντες γὰρ ἥμαρτον) e “são justificados” (δικαιούμενοι),155 sendo
que a primeira enfatiza a universalidade da condição pecadora que impede os homens de
participar da glória de Deus. A temática sobre o pecado foi bem explorada na epístola aos
Romanos em três capítulos,156 como preparação para a compreensão e importância da
necessidade da justificação. Já na segunda expressão, que é o ato de se tornar justo, reparando
um erro cometido e as consequências decorridas do pecado cometido. Daí, seguem duas
questões preliminares: De que forma somos justificados e quem assim o faz?
A justificação é realizada gratuitamente. A palavra grega traduzida por gratuitamente é
δωρεὰν, que consta somente três vezes nas cartas paulinas: além de Rm 3,24, também está
presente em 2 Cor 11,7. Porém é em Gl 2,21 que vale fazer uma aproximação hermenêutica
(“Não invalido a graça de Deus; porque, se é pela Lei que vem a justiça, então Cristo morreu
em vão”). Enquanto que em Romanos enfatiza o modo de como a justificação é realizada,
gratuitamente (sentido positivo de δωρεὰν), na carta aos Gálatas descreve o modo de como a
morte de Cristo seria “em vão” (sentido negativo de δωρεὰν). Em ambas, como aproximação,
fazem referência que a justiça de Deus vem da graça pela redenção de Jesus Cristo.
τῇ αὐτοῦ χάριτι, Em Rm 3,24 é usado o substantivo χάριτι, ‘graça’, pela
primeira vez após o uso dele na saudação inicial (1,7) e que em nossa carta
se encontrará novamente 22 vezes, constituindo um dos temas fortes de
todo este escrito, também, como o é de toda a teologia paulina (com outras
17 vezes em letras autênticas com referência a Deus ou a Cristo, ver Rm
6,14b: ‘Você não está sob a lei, mas sob a graça’) [tradução nossa].157
A justificação é realizada por meio da graça (χάρις). Para entender a doutrina da graça
em Paulo não se devem evitar os seguintes aspectos: “a graça procede de Deus, se concentra no
154
“’Ser justificado’, aplicado a um ato de Deus e posto em paralelo com ‘achar graça’, não tem o sentido estreito
de ‘ser absolvido’, mas antes o sentido mais largo de ‘ser em favor’”. DUNN, 2011, op. cit., p. 69.
155
MOO, op. cit., p. 227.
156
Cf. STAM, Cornelius R. Commentary on the Epistle of Paul to the Romans. Chicago: Berean, 1984. p. 77.
157
“τῇ αὐτοῦ χάριτι, che impiega il sostantivo χάριτι, 'grazia', per la prima volta dopo il suo uso formulare nel
saluto iniziale (1,7) e che nella nostra lettera si incontrerà ancora 22 volte, costituendo uno dei temi forti di tutto
lo scritto, così come lo è di tutta la teologia paolina (con altre 17 volte nelle lettere autentiche con riferimento a
Dio o a Cristo; cf. Rm 6,14b: 'Non siete sotto la legge, ma sotto la grazia'). PENNA, op. cit., p. 249.
59
evento de Cristo e é eficaz para os crentes batizados” [tradução nossa].158 Em Jesus Cristo
personifica-se a graça de Deus, pois para Paulo pode-se usar a χάρις de Deus e a χάρις de Cristo
como expressões paralelas (Rm 5,15). Cristo aparece como aquele que concede graça ao
apóstolo e às igrejas (2 Cor 8,9; 12,9; Gl 1,16). Os crentes já estão em estado de graça (cf. 1Cor
1,4, Rm 5,21), pois, por meio do evento de Cristo, foram removidos do seu estar fadados à
história passada de condenação (Romanos 5,15-16); Portanto, a graça triunfa sobre os poderes
do pecado e da morte.
Em suas cartas aos Gálatas e aos Romanos, Paulo relata as afirmações de χάρις
exclusivamente, na sua doutrina da justificação, que é determinada pela
nomenclatura. Ele expressa surpresa com a rapidez com que os gálatas se
desviaram da graça (Gl 1,6) e diz: ‘Vocês que desejam ser justificados pela lei
se afastaram de Cristo; vocês se apartaram da graça’ (Gl 5,4). [...] A concepção
fundamental da soteriologia paulina não está vinculada a uma compreensão
negativa da lei ou a uma concepção particular de justificação, mas deriva,
positivamente, da lógica de transformação e participação. Através da mudança
de status do Filho, os crentes batizado são colocados em um novo status, a
saber, a graça. Com seu uso extensivo do termo χάρις (63 vezes em Paulo, de
155 vezes no Novo Testamento), Paulo sinaliza que ele entende o novo tempo
como o tempo da graça [tradução nossa].159
158
“[…] grace proceeds from God, is concentrated in the Christ event, and is effective for baptized believers”.
SCHNELLE, Udo. Theology of the New Testament. Translated by M. Eugene Boring .Michican: Baker
Academic, 2009. p. 280.
159
“In his letters to the Galatians and the Romans, Paul relates χάρις statements to his exclusive doctrine of
justification, which is determined by nomology. He expresses surprise at how quickly the Galatians had turned
aside from grace (Gal. 1:6) and says, “You who want to be justified by the law have cut yourselves off from Christ;
you have fallen away from grace” (Gal. 5:4). [...] The fundamental conception of Pauline soteriology is not bound
to a negative understanding of the law or a particular conception of justification but derives positively from the
logic of transformation and participation. Through the Son’s change of status, baptized believers are placed in a
new status, namely, grace. With his extensive use of the term χάρις (63 times in Paul, of 155 times in the New
Testament), Paul signals that he understands the new time as the time of grace. SCHNELLE, op. cit., p. 281.
160
“Um [sentido] é "resgatar" (ἐξηγόρασεν, "comprar", em 1Cor 6,20; 7,23; Gl 3,13; 4,5) com seus sinônimos
"redenção" (de ἀπολύειν, "desatar, lançar , libertar, dispersar, "com a derivada, ἀπολύτρωσιν," redenção", em Rm
3.24; 8.23; 1Cor 1,30 e "libertação"(ἠλευθέρωσέν, "libertar ", em Rm 6,18. 22; 8,2; Gl 5,1) [tradução nossa].“Uno
è quello di "riscatto"( ἐξηγόρασεν, "comperare"; in ICor 6,20; 7,23; Gal 3,13; 4,5) con i suoi sinonimi
"redenzione"(da ἀπολύειν,"slegare, rilasciare, liberare, affrancare", col derivato ἀπολύτρωσιν; "redenzione"; in
Rm 3,24; 8,23; ICor 1,30) e "liberazione" (ἠλευθέρωσέν,"liberare" ; in Rm 6,18. 22; 8,2; Gal 5,1)”.PENNA,
Romano. I ritratti originali di Gesù il Cristo. Milano: San Paolo, 1999. p. 145.
60
161
JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Redemptor hominis. São Paulo: Loyola, 1979. n° 9.
162
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição pastoral Gaudium et Spes. São Paulo: Loyola, 1990. n° 38.
163
CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen gentium. São Paulo: Loyola, 1990. n° 48.
164
JOÃO PAULO II, Papa. op. cit., n° 10.
165
Cf. PENNA, 2010, op. cit., p. 249.
166
Cf. MOO, op. cit., p. 228.
167
CRANFIELD, op. cit., p. 77.
168
Cf. KUSS, op. cit., p. 161.
61
169
MOO, op.cit., p. 231.
170
Cf. TURRADO, op. cit., p. 282.
171
“Al centro di Lev. 16 c'è-sempre secondo Gese e Janowski- l'aspersione di sangue sulla kapporet come
incontrotra il Dio che si rivela e l'uomo che gli si sacrifica; questo evento si lascia interpretare come la
riproduzione della «scena originaria» sul Sinai (Ex. 24,15 ss.)”. LANG, B. ( ִכפֶּרkipper). in: Grande Lessico
dell´Antigo Testamento. ANDERSON, W. George (org.); et al. Davide Astori, Franco Ronchi (trad). Vol. 4.
Brescia: Paideia, 2004. p. 520.
172
“O centro indisputável das explicações antigas da Lei é o Dia da Expiação, quando o hilastérion, ou kapporet,
deve ser aspergido com sangue para mediar a remissão de todos os pecados. Paulo obviamente pressupõe que a
igreja à qual escreve está familiarizada com a Lei Mosaica, 7:1. Logo, é natural que retratasse Jesus, neste contexto,
como sendo Kapporet superior que é eficaz mediante a fé ao invés de mediante a observância puramente externa”.
RECONCILIAÇÃO. H.G. Link, in: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. COENEN,
Lothar e BROWN, Colin (Org.). São Paulo: Vida Nova, 2000. p. 1960.
173
Ibidem.
62
Outros fazem a analogia do sacrifício de Cristo com a eficácia do sacrifício dos mártires
em Macabeus,174 fazem referência à Is 53,10; 2 Mc 17,22 e em 2 Cor 5,18, no qual a tradução
é perdão.175 Para Deissmann significa “meios de propiciação” e para Dodd significa “meios de
expiação”.176 Já para Friezt, a oferta sacrificial de Jesus na cruz dá um sentido novo ao kapporet,
como novo instrumento de propiciação capaz de aplacar a ira de Deus, 177 não devendo ser
entendido hilastérion como sacrifício, mas como instrumento de propiciação.178
Dos significados propostos para esta palavra grega, aqui, diferentes de
‘propiciatório’, os quais, já rejeitamos podemos, em vista do que se acabou
de dizer, eliminar como inverossímeis aqueles que expressamente visam
excluir a ideia de propiciação. A sugestão mais provável pareceria ser ‘um
sacrifício propiciatório’. Tomamos a declaração de Paulo no sentido de que
Deus quis o Cristo como um sacrifício propiciatório, no sentido de que
Deus, já que na sua misericórdia resolveu perdoar os homens pecadores e,
sem de forma alguma tolerar o seu pecado, propôs-se dirigir contra o seu
próprio Eu, na pessoa do seu Filho, todo o peso daquela ira que eles
mereciam.179
A expiação é necessária ser sangrenta para que seja oferta de vida e fonte de salvação.
Von Rad entendia que a expiação não ocorre pelo sangue em si, mas dá-se pela vida contida
nele. A expiação, portanto, não depende do sangue, mas sim da vida, que é sustentada pelo
sangue.180 No AT a palavra sangue (Dām- )ָּ ד181 aparece 360 vezes, representando a força vital
e que pode ser relacionada com alma (nefeš-)ׁשֶפֶנ: A nefeš de cada ser vivente é o seu Dām (Lv
17,14); O Dām é a nefeš (Dt 12,23). Daí, entende-se que no sacrifício pascal de Jesus na cruz,
ele entregou-se inteiramente, e fazendo uma releitura do AT, entende-se que o sangue de Jesus
plenifica a imagem do gō’ēl haddām:
Com esta expressão, quer-se certamente apontar para um dos parentes mais
próximos, referindo-se ao menos à definição de gō’ēl que se dá nas
disposições relativas sobre o resgate da propriedade familiar alienada (Lv
25,25). [...] no gō’ēl háddām sendo aquele que permite com o sangue
derramado ‘o retorno à comunidade de origem’. No entanto, é suficiente ver
no gō’ēl a pessoa a quem compete uma determinada obrigação decorrente do
parentesco (1Re 16,11); No caso específico, a obrigação diz respeito à dām,
isto é, a vingança de sangue. O sangue é solicitado (biqqēš, 2Sm 4,11),
reivindicado (dāraš, Ez 33,6), resgatado (gā’āl). Com o cumprimento da
vingança de sangue, o sangue da vítima inocente vem a ser "cancelado",
174
Cf. BARTON, John e MUDDIMAN, John. The Oxford bible commentary. New York: Oxford, 2007. p. 1092.
175
KÄSEMANN, op. cit., p. 1960.
176
DOO, op. cit., p. 234.
177
Cf. TURRADO, op. cit., p. 282.
178
Cf. Ibidem, p. 283.
179
CRANFIELD, op. cit., p. 82.
180
Cf. VON RAD, Gerhard. Estudios sobre el Antiguo Testamento. Salamanca: Sigueme, 1976.
181
“Dām é o veículo por excelência da vitalidade pessoal e diferenciada; é o elemento vital no indivíduo” [tradução
nossa]. “Dām El veicolo per eccellenza della vitalità personale e differenziata; è l'elemento vitale nell'individuo”.
Dām-םָּ ד. KOPFSTEIN, B. Kedar, in: Grande Lessico dell´Antigo Testamento. ANDERSON, W. George;
CAZELLES, Henri (org.); et al. Davide Astori, Franco Ronchi (trad.). Vol. 2. Brescia: Paideia, 2002. p. 269.
63
extinto como uma dívida: ȗbi ‘artā dām hannāqȋ (Dt 19,13) [tradução
nossa].182
Por fim, mediante o sacrifício expiatório é que a humanidade alcançou o perdão dos
seus pecados. A relação que se deve ser feita é entre ἱλαστήριον juntamente com διὰ πίστεως,
pois é "mediante a fé que ele suscita, Jesus é o ἱλαστήριον” [tradução nossa].183 Há uma
mudança no homem, como uma substituição, que ao dar uma dignidade maior a este, dando um
verdadeiro arrependimento capaz de inseri-lo, por ação da graça de Deus e mediante a fé em
Jesus Cristo, numa vida nova, em um juízo que alcança toda a humanidade.
O perdão dos pecados decorrente da redenção realizada por Jesus não significa que se
deixou para o homem a impunidade, mas que Deus distingue o pecador do pecado, conduzindo
o homem a ter uma fé autêntica, que ao seguir a Cristo propicia uma vida nova. Essa revelação
da graça, que é julgamento e que por isso cria uma fé que também é arrependimento, consiste
não só em tornar conhecido o comportamento de Deus no mundo transcendente, mas em uma
verdadeira realização da graça e julgamento em relação à humanidade.
A expressão “sacrifício expiatório” requer quatro observações: Primeiro, deve ser
acolhida mediante a fé: somente por meio desta é que se obtém os benefícios próprios da
redenção de Cristo. Segundo, é que com o sacrifício propiciatório manifesta-se a justiça de
Deus, por meio da bondade e misericórdia de Deus. Terceiro, que essa justiça é manifestada no
tempo presente, reconhecendo a ação progressiva do evangelho por meio da proclamação da
sua pregação. Quarto é o fato de Deus ser justo e justificar o homem. Ao ser justo, Deus
demonstra quem o é, na sua misericórdia e amor, e que não é injusto ao justificar o homem
pecador, mas, como explica Cranfield, Deus paga um alto preço para justificar o homem:
O perdão realizado mediante a cruz é o perdão de alto preço, digno de Deus,
perdão que, longe de tolerar o mal do homem, é, uma vez que envolve
ninguém menos do que o portador por Deus do fardo insuportável desse mal,
ele mesmo na pessoa de seu Filho bem-amado a revelação da plenitude do
ódio que Deus tem do mal do homem, ao mesmo tempo, que é o seu real e
completo perdão.184
182
“Con quest’espressione si vuole certamente indicare uno dei parenti più prossimi, stando almeno alla
definizione di gō’ēl che si dà nelle disposizioni relative al riacquisto di proprietà fondiarie familiari alienate (Lev.
25,25 ss.48 s.). [...] nel gō’ēl haddām colui che permette al sangue versato «il ritorno alla comunità di origine»
(Koch 410). Tuttavia è sufficiente vedere nel gō’ēl la persona cui compete un determinato obbligo derivante dalla
parentela (1Reg. 16,11); nel caso specifico l'obbligo riguarda il dām, cioè la vendetta di sangue (cfr. M. Noth, BK
rxjr, 348). Il sangue viene cercato (biqqēš, 2 Sam. 4,11), reclamato (dāraš, Ezech. 33,6), riscattato (gā’āl). Con il
compimento della vendetta di sangue, il sangue della vittima innocente viene 'cancellato', estinto come un debito:
ȗbi ‘artā dām hannāqȋ (Deut. 19,13). Dām- ָּדם. KOPFSTEIN, B. Kedar, in: Grande Lessico dell´Antigo
Testamento. ANDERSON, W. George; CAZELLES, Henri (org.); et al. Davide Astori, Franco Ronchi (trad.).
Vol. 2. Brescia: Paideia, 2002. p. 277.
183
“Mediante la fede che egli suscita, Gesù è lo ἱλαστήριον”. Ỉλαστήριον. J. Herrmann, in: Grande Lessico del
Nuovo Testamento. KITTEL, Gerhard; FRIEDRICH, Gerhard (org.).Vol.4. Brescia: Paideia, 1968. p. 1006.
184
CRANFIELD, op. cit., p. 80.
64
Portanto, para Paulo, a morte de Cristo tinha um sentido expiatório. Em três pontos
pode-se desenvolver essa afirmação. Primeiro, o sacrifício de Cristo era pela remissão dos
pecados. A exemplo do AT o sacrifício pelo pecado gerava a remoção do pecado e o perdão do
pecador (Lv 4,5). Segundo, Cristo encarnou a “carne do pecado” para vencer o pecado na carne
(Rm 8,3), juntamente, “Deus o fez pecado por causa de nós” (2 Cor 5,21). É com a oferta do
sangue de Cristo que se exerce a função do sacrifício expiatório, já que “é o sangue, isto é, a
vida, que faz expiação” (Lv 17,11). Terceiro Paulo entendia na morte do animal sacrificial como
a morte do pecador enquanto pecador: “nosso velho homem foi crucificado com ele, para que
fosse destruído” (Rm 6,6). Em outras palavras, a maneira pelo qual o sacrifício tratava o pecado
era pela destruição da vítima carregada com o pecado.
A remissão dos pecados passados (Rm 3,25b) representa “a função de instrumento de
expiação, personificado por Jesus, que é, precisamente, a manifestação dessa iustitia salutifera”
[tradução nossa].185 Deve-se ter uma atenção especial em: “pela remissão dos pecados passados,
com a clemência de Deus (Rm 3,25b)” (τὴν πάρεσιντῶν προγεγονό των ἁμαρτημάτων). Em
particular, a compreensão do significado da palavra πάρεσιν, que se encontra somente uma vez
em todas as Sagradas Escrituras, que Paulo utilizou para ressaltar a noção de perdão divino que
está intimamente e essencialmente relacionado com a obra de redenção.
A noção de perdão divino não é deduzida de um conceito particular de Deus,
a partir de uma ideia de graça divina, mas verificada como um fato em sua
obra de redenção. A pregação, portanto, não consiste em um ensinamento que
ilustra o conceito de Deus, mas no anúncio do que Deus fez [tradução
nossa].186
Outra expressão que merece uma reflexão maior é: “no tempo da paciência de Deus”(ἐν
τῇ ἀνοχῇτοῦ Θεοῦ) (Rm 3,26). Esta deve estar relacionada com a expressão precedente: “pelo
seu próprio sangue” (ἐντῷ αὐτοῦ αἵματι) (Rm 3,25), por meio de um valor instrumental, bem
como relacionada com “pela sabedoria de Deus” (ἐν τῇ σοφίᾳτοῦ Θεοῦ) (1Cor 1,21),
expressando um modo de se exercitar a paciência de Deus. O significado de ἀνοχῇ compreende-
se como a tolerância divina, uma paciência de Deus que reteve a sua própria ira,187 até o tempo
185
“Al tema della giustizia di Dio, introdotto nel v.21 (che a sua volta riprendeva 1,17) per dire ora chiaramente
che la funzione di strumento di espiazione, impersonata da Gesù, rappresenta appunto la manifestazione di quella
iustitia salutifera”. PENNA, 2010,op. cit., p. 262.
186
“La nozione di perdono divino non si deduce da un particolare concetto di Dio, da una idea della grazia divina,
ma è accertata come un fatto nella sua opera di redenzione. La predicazione non consiste quindi in un
insegnamento che illustri il concetto di Dio, ma nell'annuncio di ciò che Dio ha fatto”. ἀφίημι. R. Bultmann, in:
Grande Lessico del Nuovo Testamento. KITTEL, Gerhard; FRIEDRICH, Gerhard (org.).Vol.1. Brescia: Paideia,
1965. p. 1361.
187
Cf. Ἀνἡχει. H. Schlier, in: Grande Lessico del Nuovo Testamento. KITTEL, Gerhard; FRIEDRICH, Gerhard
(org.). Vol.1. Brescia: Paideia, 1965. p. 968.
65
Enfim, Paulo relacionava a morte de Cristo (Cristo que assume na sua carne a
humanidade adâmica) com o sacrifício pelos pecados da humanidade. Com a sua morte, põe-se
o fim na humanidade sob o poder do pecado e da morte, a destruição do homem como pecador
(Rm 7,4), sendo esta a única forma em que Deus poderia resolver o problema do poder do
pecado e da morte. Participando da morte de Jesus mediante a fé, o homem pode ser salvo de
morrer a morte, como resultado da sua subserviência ao pecado. O que antes era um decreto de
condenação: “todos pecaram, todos estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23), agora, pode-
se proclamar a salvação do Evangelho: “Ele [Deus] queria manifestar sua justiça no tempo
presente para mostrar-se justo e para justificar aquele que apela para a fé em Jesus” (Rm 3,26).
188
“(...) Esprime un intervento divino legato a un evento che si determina dal contesto, e che qui non sono certo i
peccati passati ma è la presentazione di Cristo come hilastérion.” PENNA, 2010, op. cit., p. 265.
189
CRANFIELD, op. cit., p. 80.
66
CONSIDERAÇÕES FINAIS
análise se Paulo quis abolir a Lei, percebeu-se que ele na verdade quis combater os erros de
interpretação da Lei dos ciclos judaicos da época. Foi entendido que há uma continuidade na
descontinuidade, pelo fato de que a Lei do AT é plenificada pela vida na graça, pela novidade
da fé em Jesus Cristo e na vida segundo o Espírito Santo. Por isso, percebeu-se que se no AT o
centro era a Lei, no NT o centro é a pessoa de Jesus Cristo, já que a Lei serviu de preparação
no plano da salvação, como um pedagogo, para a acolhida da salvação realizada por Jesus.
No terceiro capítulo foi abordado, de forma específica, o tema central da monografia.
Para tanto, foi dividido em duas partes: uma primeira parte, preocupou-se em apresentar a
teologia da justificação em Agostinho, Tomás, Lutero, Concílio de Trento e na Declaração
Conjunta no século XX. Percebeu-se o quanto o tema foi refletido e discutido por questões
pastorais. Na segunda parte, foi feita uma exegese da perícope central da monografia,
analisando-se cada termo segundo a visão de alguns dos grandes estudiosos de Paulo da
atualidade. Entendeu-se que a justificação é de fundamental importância para a teologia paulina,
pois ela enfoca o processo de salvação realizado pela redenção de Cristo, devendo ser
despertada a fé em Cristo, a vida na graça e a condução segundo o Espírito.
Para abordar, com profundidade a temática desenvolvida foram utilizadas variadas
fontes bibliográficas. Com relação ao comentário exegético, foi dada uma ênfase maior nos
autores: Romano Penna e Cranfield. Na utilização dos dicionários bíblicos, mereceu uma ênfase
o grande léxico tanto do AT quanto do NT. Ao refletir sobre a Lei em Paulo, utilizou-se dois
livros de Paul Sanders, que foram muito importantes para a compreensão do papel da Lei na
história da salvação e, também, do fato que Paulo não quis abolir a Lei, mas dá-la um novo
sentido diante do evento Cristo. Bem como a teologia de Räisänen e Dunn serviram para
colaborar na reflexão sobre a Lei em Paulo. Já na pesquisa histórica da reflexão sobre a
justificação, coube o destaque da excelente obra de Alister Mcgrath, autor bastante renomado
da universidade de Oxford na Inglaterra.
Convém ressaltar o esforço intelectual empregado nas leituras de obras sobre o assunto,
em fontes bibliográficas pesquisadas em inglês, italiano e espanhol. A importância disto, parte
do pressuposto de que a literatura portuguesa nessa área, bem como as traduções para o
português são escassas e, se a pesquisa ficasse limitada apenas às obras que dispomos em nossa
língua tornaria a monografia bastante empobrecida.
Haja vista o dispendioso trabalho na tradução, a novidade dessa pesquisa, deu-se
também, na exploração de um tema que é amplamente trabalhado na teologia protestante e que
pouco trabalhado na teologia católica. Dentre as inúmeras propostas de esclarecimento desta
monografia, foi certificado que a exegese e a reflexão teológica acerca da justificação não é
68
uma criação de Martinho Lutero, já que bem anteriormente com Agostinho foi iniciada essa
reflexão e tão bem desenvolvida por este, e que tantos outros teólogos católicos deram
continuidade a isso. E, também, que as diferenças entre Católicos e Luteranos sobre a
interpretação da justificação não devem servir de condenação de um imputando ao outro, mas
que percebendo e respeitando a diferença, construam um relacionamento de diálogo, tendo em
vista a semelhança que os aproximam que é a fé e o seguimento a Jesus Cristo.
Outra colaboração importante para o meio acadêmico é a exegese específica da perícope
(Rm 3,21-26), que se utilizando de autores especialistas e bem capacitados, serviu para
aprofundar o texto bíblico. Ora, Paulo tem um vocabulário particular e uma forma de
apresentação da sua teologia que exige uma atenta pesquisa para que não seja apresentado o
pensamento paulino em meio às distorções. Por isso, recorreu-se a atenção em algumas palavras
em grego desta perícope, comparando-as ao todo do corpus paulinus. Para o aprofundamento
da exegese, destacou-se a reflexão sobre as seguintes Palavras gregas: διὰδικαιοσύνην,
ἱλαστήριον, πάρεσιν, ἀπολυτρώσεως, φανερόω, πίστεως Ἰησοῦ Χριστοῦ, χάρις.
Dada a importância do tema, aos estudantes de teologia que se interessarem, torna-se
necessário o desenvolvimento de projetos que visem aprofundar o estudo sobre a justificação,
sugerindo-se que seja mais trabalhado a relação da justiça de Deus no AT com a justiça em
Paulo, por conta da amplitude do tema. Também merece um aprofundamento sobre a Lei no
AT e em Paulo, que igualmente deve-se proceder com o estudo da justificação ao longo da
história e de uma exegese mais aprofundada de Rm 3,21-26. A continuidade nas pesquisas
bibliográficas dos aspectos acima citados favorece para a renovação do conhecimento bíblico e
da produção acadêmica.
Neste sentido, o estudo da justificação realizado mediante a redenção de Jesus Cristo
(cf. Rm 3,21-26), embora não tenha tido a pretensão de esgotar a temática, alcançou o seu
objetivo, uma vez que para este aluno serviu de luz e atingiu aquele ponto no qual a consciência
sente-se recompensada pelo que foi dado conhecer sobre um assunto tão importante e de
grandes consequências para a vida prática de todo cristão que leva a sério sua fé.
69
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Bíblia
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