Razão fria e barbárie cher, íntima do ditador e fazendo-se fotografar ao lado dele em Londres, como para exprimir a sua so- Público, 24 de Abril de 2013 lidariedade a um compagnon de route, quando este já se via acossado pela justiça. Unia-os a "razão fria" - "O animismo dotava de alma as coisas. O capitalis- a "razão que se nega a si mesma" - do "capitalismo mo coisifica as almas." Assim se pronunciavam, no totalitário, cuja técnica de satisfazer as necessida- seu exílio norte-americano, em meados dos anos des torna impossível essa satisfação e tende para a 40, Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, que erradicação do ser humano": palavras de Adorno e haviam escapado a tempo às perseguições nazis. Horkheimer, provavelmente lançadas ao papel em Numa obra sobre a "dialética da razão", denunciam 1944, que soam com uma inquietante atualidade se- a "racionalidade totalitária", que subordina toda a tenta anos depois. Ecoam nos alertas do Papa Fran- existência ao formalismo lógico e reduz o pensa- cisco, que tem apelado ao abandono de um logos au- mento ao dispositivo matemático. A racionalidade torreferencial, desligado do pathos da compaixão. torna-se irracional e é por isso que "a miséria cresce tão desmedidamente quanto desmedidamente cres- Sem compaixão, esse "grande sentimento" que ce a capacidade de lhe pôr termo". A mesma racio- Rousseau e outros enciclopedistas consideravam a nalidade irracional tinha levado ao planeamento e à fonte das "principais virtudes sociais", não há espe- condução da guerra pela Alemanha e o resultado rança de reconciliação da humanidade consigo pró- era o que estava à vista: uma Europa em ruínas, de- pria e com a natureza. Só um saber nascido da com- vastada, milhões de mortos, a própria Alemanha ar- paixão (Durch Mitleid wissend, como se canta no Par- rasada. sifal, a obra mais política de Wagner) pode dar ver- dadeira resposta aos problemas da existência, tam- Nem a guerra, nem hoje a austeridade, são coisas de bém aos económicos. Como dizem Adorno e "psicopatas". Se em ambas há algo de demencial, o Horkheimer, "sem esperança não é a existência". que nelas impera não é, porém, uma patologia clíni- Sem esperança é "o saber que no símbolo matemá- ca, própria de inimputáveis, mas sim a "racionalida- tico ou visual se apropria da existência e a perpetua de totalitária": a "razão fria", como também lhe como esquema". Quanto mais o modelo é perfeito chamam Adorno e Horkheimer, ou a razão amputa- (sem erros na folha de Excel...) tanto mais a barbá- da do instinto moral - porque amputada da emoção rie social se mascara de "ciência" económica. -, como têm verificado empiricamente António Da- másio e Frans de Waal. Mário Vieira de Carvalho
Um dos grandes trunfos da propaganda nazi foi sa-
ber usar a "razão fria" para planear a aura do Führer. Ele mesmo, como se sabe, ensaiava ao espelho as poses e a retórica adequadas. Os congressos e ou- tros grandes eventos públicos eram cuidadosamen- te encenados, não só para promover a "emocionali- zação indireta da atmosfera através da participação de massas", mas também, e sobretudo, para repro- duzi-la em filme como espetáculo mediático, assim inaugurando a manipulação de massas em larga es- cala (como desde logo observou Walter Benjamin, então, por sua vez, exilado em Paris). A "razão fria" que produzia o teatro político visava suscitar a ade- são irracional ao chefe. Culminou nas complexas máquinas de extermínio: a da guerra e a do holo- causto.
A "razão fria" do neoliberalismo não é de natureza
diferente. Bem o sabem os chilenos, usados como cobaias no laboratório da escola de Chicago sob a