Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
htm
Falamos em tradução; mais especificamente – e esta especificidade diz tudo, porque indica que
um poema requer procedimentos próprios de leitura e de tradução – tradução poética. Este tipo de
tradução é diferenciado, porque seu objeto apresenta peculiaridades, que podem ser desveladas à
luz dos fundamentos teóricos escolhidos para tanto. No caso de Haroldo de Campos, as referências
que adota progressivamente para a construção do próprio pensamento se articulam de modo a
alimentar um plano existente desde o início, atento a tudo de que pode se servir para firmar-se. O
ensaísta tece, fio a fio, uma teia de ideias que se torna mais intrincada à medida que se
desenvolve, embora seu contorno já estivesse originalmente definido.
Haroldo sempre pensou a tradução de poesia como uma “re-criação”, ou seja, um fazer de novo.
Em seu primeiro artigo de fôlego sobre o assunto, “Da tradução como criação e como crítica”, de
1962, uma das fontes de que o autor se vale é a noção de “informação estética” (do filósofo
alemão Max Bense), que, própria da linguagem poética, seria marcada pela imprevisibilidade e
pela fragilidade: a informação de um texto poético é “inseparável de sua realização”, ou seja, é
coincidente com a totalidade desse texto; o modo como ele está organizado constitui o tipo de
informação que o caracteriza. Ao valer-se dessa referência, Haroldo revela sua opção pela ideia
central de que a operação tradutora em poesia não pode ser apenas pela via do “conteúdo”, ou
“significado” do texto, via que se liga a ideias como as de “fidelidade” ao original e de
“literalidade”. Porque, sendo a informação de um poema o poema todo, não se poderia considerar
a mera reprodução do “sentido” como uma tradução satisfatória desse texto. Mas um problema se
coloca: se a informação estética é “frágil”, porque qualquer mudança de seus constituintes a
transforma, não se poderá traduzir um poema, uma vez que “passá-lo” a outra língua sempre
envolverá mudança...
Para Haroldo de Campos, a “tradução de textos criativos será sempre recriação, ou criação
paralela, autônoma porém recíproca”; nela “não se traduz apenas o significado”, mas a
fisicalidade, a materialidade da palavra: suas propriedades sonoras e imagéticas. O significado
será apenas “a baliza demarcatória do lugar da empresa recriadora“, o que indica que se está “no
avesso da chamada tradução literal”.
Transposição criativa. Numa só palavra, transcriação: este o termo adotado em definitivo por
Haroldo de Campos, para designar essa atividade que será criação, inevitavelmente.
Mas para se criar um novo cristal deve-se partir do primeiro, que terá de ser desvendado, e, por
isso, não poderá ser visto como um diamante intocável. A transcriação envolveria uma
“coreografia móvel” – em que “se desmonta e se remonta a máquina da criação” –, uma “pulsão
dionisíaca” que “dissolve a diamantização apolínea do texto original”, colocando “a cristalografia
em reebulição de lava”: o cristal se torna, de novo, magma que se poderá remoldar em nova ação
criadora. Há algo de orgânico nisso: Haroldo também fala em realizar, no poema original, uma
vivissecção, à semelhança da operação de animal vivo para estudo de sua fisiologia interna
(vendo-se o poema como um “ser de linguagem”), a fim de se conhecer seu funcionamento antes
de recriá-lo em outra língua.
Poesia vem do substantivo grego poíesis, ligado ao verbo poiéo, que significa fazer, produzir,
fabricar, criar. Assim, transcriar um poema é fazê-lo de novo. Mas também será fazer, de novo, o
novo: renovar o poema de origem, seguindo o lema make it new, proposto pelo poeta e tradutor
norte-americano Ezra Pound. Ao transcriar um poema segundo a concepção de Haroldo de
Campos, será preciso pensar em, uma vez conhecida sua “forma”, fazer um novo poema inserido
em novo lugar e novo tempo, em vez de se fazer uma “arqueologia” de sua função social, cultural
ou histórica. Assim, ao traduzir um haicai (modelo clássico japonês de poema breve) de Bashô,
em vez de ser apenas “fiel” a seu conteúdo ou, mesmo, a certos aspectos “sociais” da prática
dessa poesia na época, Haroldo procura recriar, em português, um poema dotado de visualidade
(a escrita ideogrâmica é visual por natureza) e capaz de re-produzir a concisão do original,
valendo-se, por exemplo, da criação de uma palavra nova, uma “palavra-valise” à maneira de
Lewis Carroll ou James Joyce: o verbo saltombar corresponderia ao verbo tobikomu, composto de
tobu, saltar, mais komeru, entrar.
o velho tanque
rã salt´
tomba tumba
rumor de água
Pode-se causar um certo “estranhamento” no leitor deste novo tempo e espaço, embora o poema
a ele se dirija, renovadoramente: há uma tendência, na transcriação, de “levar o leitor (de uma
língua) ao autor (de outra)”, privilegiando um dos dois caminhos identificados pelo pensador
romântico alemão Schleiermacher para a tradução (o outro seria “levar o autor ao leitor”).
Para citar outro exemplo, tomemos um elemento da transcriação, feita por Haroldo, do Bere’shit,
o Gênese. No início do texto, aparece a expressão “fogoágua”, correspondente à palavra hebraica
shamáyim, normalmente traduzida por “céu”. Baseando-se numa hipótese sugerida por Henri
Meschonic, de que se poderia entrever, nessa palavra, um composto de ’esh (fogo) e máyim
(água), Haroldo fornece em “fogoágua” (“imagem cósmica de um magma de fogo e água”) um
correspondente “concreto” ao abstrato “céu” (abstrato porque já conceptualizado), uma
representação reveladora, informação que surge nova, de novo...
As transcriações realizadas pelo poeta são, já – ao lado dos poemas recriados em nossa língua por
Augusto de Campos, seu irmão – reconhecidas como modelares, exemplos do que de melhor se
produziu em português. Resta, contudo, obter-se amplo reconhecimento relativo à sua preciosa
contribuição teórica à tradução poética, para o qual, creio, o livro que ora organizamos,
denominado Transcriação, será de fundamental importância.