Академический Документы
Профессиональный Документы
Культура Документы
2015
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Como os juristas viam o mundo. 1550-1750. Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos,
ações e crimes
Edição impressa:
ISBN-13: 978-1508797524
ISBN-10: 1508797528
Lisboa 2015
2
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1 Introdução.
1.1 Apresentação.
1.1.1 “Uma sociedade construída sobre o direito”.
§ 1. Será útil para a historiografia geral ter em conta as leituras jurídicas da
sociedade, neste caso da sociedade da primeira época moderna ? Este livro parte de
uma profunda convicção de que sim. Tradicionalmente, em contrapartida, os
historiadores tendem a achar que não, sobretudo porque acham que o direito lida
com formas e formalidades, ao passo que a história deve tratar do estofo e miolo
das relações humanas. Na minha opinião, esta ideia tem pouco de correto e, por
isso, pensei que era útil propor aos historiadores este desafio de, por uma vez,
olharem o mundo da forma como os juristas o faziam.
§ 2. Certamente que a visão jurisdicista do mundo corresponde a uma
construção intelectual. O mundo dos juristas, mais do que “O Mundo”, é o seu
mundo, embora eles tendam a crer piamente que fora desse seu mundo não há mais
mundo (quod non est in libris non est in mundo). Isto não tem nada de singular. Passa-se
com os economistas, com os matemáticos e os físicos, com os médicos, e também
com os poetas. Todos criam muito mais do que descrevem e todos têm a tendência
para desvalorizar esses momentos fundamentalmente criadores das suas versões do
mundo. Os historiadores – que, também eles, criam o passado à medida que o
contam –aspiram a encontrar, na sua pureza original, na sua verdade em bruto, as
coisas “como elas realmente se passaram” e frequentemente desconfiam destas
narrativas em segunda mão, sobretudo se elas são muito senhoras de si. E as dos
juristas, de facto, são arrogantemente autossuficientes, envolvendo a sociedade
numa armadura de conceitos e de fórmulas que explicam tudo e se explicam a si
mesmos. No entanto – afastada que for a antipatia que tais certezas pomposas nos
suscitam -, estas construções intelectuais não apenas revelam bastante bem aspetos
muito importantes do funcionamento das sociedades, como nos dizem muito
acerca da própria lógica com a qual constroem as suas imagens do mundo. Com o
rigor analítico do seu saber – comparando, definindo, distinguindo, e prosseguindo
nisto até à exaustão - os juristas fornecem minuciosos planos de pormenor da
organização e do funcionamento da sociedade. E, depois, ao discutir e justificar as
suas conclusões, revelam o universo de pontos de vista, de argumentos e de razões
que podiam convencer os seus contemporâneos. Ou seja, os juristas descrevem
muito detalhadamente o mundo e muito exaustivamente as razões que movem o
mundo; o seu mundo, claro, e as suas razões para o movimento do mundo. Porém,
como o seu saber é organizado para intervir, como é um saber prático, como visa
dirigir comportamentos, e dirigi-los pelo convencimento, as suas proposições e as
suas razões têm que suscitar os consensos, propondo coisas possíveis, se possível
agradáveis, baseadas em razões prováveis. O enraizamento da visão jurídica do
mundo pressupõe este contínuo trânsito entre a “cultura” de um grupo e a
“natureza” de todos, estas permanentes apropriação cultural da “natureza” e
“naturalização da cultura”1.
1 Abordei estes temas, do ponto de vista da história do direito, em Cultura jurídica europeia […],
cit., maxime, cap. 2; na teoria do direito, em O caleidoscópio do direito […], cit., caps. 1.1. e 11.4.
3
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2 Pascoal [José] de Melo [Freire dos Reis], 1738-1798, Institutiones iuris civilis lusitani, Coimbra,
5
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
de pedir). Escolhemos estes dois exemplos, por não serem tão evidentes como a
completa autonomização do direito público ou do direito criminal, mais
frequentemente referida. Mas este estilo de renovação, de reforma e de recusa do
direito anterior encontra-se por toda a sua obra. Lobão, muito mais conservador e
apegado à jurisprudência tradicional, pode compensar um tanto o reformismo de
Pascoal. Mas também não deixa de adaptar à sua cultura jurídica e à sua
mundividência a lição dos antigos juristas.
1.1.3 Uma tradição jurídica, na Europa ?
§ 8. Estas ilusões acerca da tradição, que aqui conto desta forma breve e
apenas exemplificativa, são, afinal, a manifestação, no plano da prática da
investigação, de um conhecido problema teórico: a crítica da ideia de continuidade. A
confiança nas categorias jurídicas do presente ou a necessidade de as justificar
levaram a crer que a história do direito ocidental se podia descrever como um
processo contínuo de construção da dogmática de hoje, em que os conceitos
estruturantes atuais ou sempre tinham existido ou se tinham progressivamente
desenvolvido. Com isto, o direito atual poderia reivindicar-se de uma história, se
não de dois mil anos, pelo menos de um milénio 4.
§ 9. No entanto, houve, ao menos, esta rutura a que agora me refiro, a do
iluminismo jurídico. Podemos avaliar a sua dimensão desde logo pelo novo estilo
de livros jurídicos que trouxe para primeiro plano, as Institutiones ou manuais
elementares5, de que as de Pascoal de Melo são um magnífico exemplo. Trata-se de
livros totalmente distintos dos anteriores livros jurídicos. Para começar, no formato
(in octavo) e no volume (apenas umas poucas centenas de páginas pouco densas).
Depois, na estrutura do discurso, organizado e argumentado de forma sistemática,
com os títulos a começar por uma definição, cujos elementos se iam analisando em
sucessivos parágrafos. Finalmente, no conteúdo, pautado por uma atitude
frequentemente problematizadora das fontes de autoridade e crítica em relação ao
direito estabelecido. Para justificar a rutura com o direito vigente, usa-se às vezes a
retórica da necessidade de retorno às fontes, ou a um mítico direito romano
clássico ou aos autores renascentistas, que já o tinham procurado. Mas, noutros
contextos, mesmo este direito exemplar é apresentado como produto de possíveis
superstições. Apesar de os compêndios serem a exceção nos primeiros anos da
reforma, eles apareceram na generalidade das cadeiras “sintéticas”, que eram as
centrais na formação dos estudantes, e com isto moldaram a cultura jurídica das
gerações vindouras. O direito – tal como os livros jurídicos – nunca mais serão o
que tinham sido. O “romanismo” do séc. XIX – visível tanto na pandectística
como na doutrina francesa posterior à codificação – têm muito pouco a ver com o
“romanismo” dos juristas do direito comum.
§ 10. A rutura iluminista é, portanto, um primeiro óbice a que se fale de uma
tradição jurídica na Europa. Realmente, esta não foi a única rutura que perturbou a
linearidade do tempo jurídico ocidental. Apesar da discrição com que isso aparece
4 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia […], cit., maxime 3.5 e 3.6.
5 Cf. sobre este género literário: Klaus Luig, “Institutionslehrbücher des nationalen Rechts im 17.
und 18. Jahrhundert”, Ius commune, 3(1970) - http://data.rg.mpg.de/iuscommune/ic03_luig.pdf;
Johannes-Michael Scholz, “Penser les Institutes hispano-romaines”, Quaderni fiorentini per la storia del
direito moderno, 8(1979), 137-178 (http://www.centropgm.unifi.it/quaderni/13/letture.pdf);
6
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
nas fontes, a “receção” do direito romano fora também uma rutura, marcada por
uma extensa descontinuidade no enquadramento das práticas sociais pelo direito e
seu saber. Os magistrados medievais já não eram os magistrados romanos, nem os
bizantinos. O processo já não se estruturava como no tempo dos pretores. Os
contratos já não estavam condicionados pelos formalismos do direito clássico. A
família ou o testamento obedeciam a outras lógicas. A punição dos crimes já não
obedecia às peculiaridades do processo – quase extrajurídico – dos romanos. Os
juristas continuavam a referir-se aos institutos, aos magistrados, às peripécias
processuais do direito romano clássico, que encontravam no textos do Digesto,
mas o sentido das suas reflexões já não era o de encontrar soluções normativas.
Justamente, um outro problema metodológico do trabalho do historiador é o de
saber o que estavam estes juristas a fazer quando se perdiam em divagações e
distinções ligadas a institutos jurídicos que já não existiam6: estavam presos a
antigas rotinas textuais ?; ocupavam-se de investimentos meramente simbólicos,
que demonstrariam a sua erudição e o seu saber ?; construíam estratégias de
ampliação do campo de indeterminação do direito e, com isso, aumentavam a
importância social dos juristas, como decisores dos litígios ?; preparavam distinções
e desenvolvimentos dogmáticos ?
§ 11. Mesmo depois da reforma dos estudos de Coimbra, a tradição jurídica
letrada luso-brasileira não se unificou completamente, pois é possível identificar, ao
lado de uma fileira de juristas que aceitam globalmente a reforma iluminista e a
combinam, depois, com as inovações do Code civil francês de 1794 (como Melo
Freire e Coelho da Rocha), uma outra que permanece mais fiel à tradição da
praxística, combinada com a influência do conservador código prussiano de 1794
(como Rocha Peniz, Lobão, Correia Teles e Teixeira de Abreu).
1.1.4 Pluralidade de direitos, pluralidade de tradições.
§ 12. Se suspendermos a visão de uma tradição jurídica ocidental, muitos
direitos e muitas tradições aparecerão no espaço europeu. Desde logo, as tradições
dos direitos locais não letrados, a que já o jurista Odofredo, no séc. XIII, se referia
como chocantemente alheias ao espírito do direito dos académicos (“escritos por
burros”, Odofredo, In Dig. Vet. I. 3 de leg. et senatuscons.). Por outro, as tradições
jurídicas reinícolas que, partindo embora do direito comum, incorporavam fontes
importantes do direito dos reinos, como o Liber judicum, as Siete Partidas, as
Ordenações portuguesas ou as Leis de Toro. Ou ainda as tradições de julgar de um
tribunal superior, como o alegado direito anglo-saxão a que se referia a tradição
jurisprudencial inglesa; ou como os estilos da Casa da Suplicação ou das diversas
relações portuguesas, nomeadamente quando este estilo tivesse sido objeto de
recolha, de tratamento doutrinal e de publicação, como aconteceu com o estilo da
Casa da Suplicação, tratado por Manuel Mendes de Castro7 ou João Martins da
6 O que levanta uma questão a montante: o que é “existir”, para uma norma ou um princípio
jurídico? Num certo sentido, estes institutos ou figuras dogmáticas romanos a que os juristas europeus
continuam a referir-se existem, embora não como normas que se aplicassem na prática (em que prática
é que não se aplicavam ? não, decerto, na prática discursiva, pois continuavam a ser figuras do discurso
dos juristas …).
7 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana, advocatis, judicibus, utroque foro quotidie versantibus […],
cit..
7
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Costa8. Abaixo destas tradições jurídicas à medida das realidades políticas oficiais
dos reinos, as tradições dos direitos “populares”, nomeadamente das comunidades
marginais ao mundo do direito oficial e letrado, a que os contemporâneos
chamavam de “direito dos rústicos” (iura rusticorum)9 e de que ainda falaremos.
§ 13. Em suma, a ideia de uma tradição jurídica europeia, se pode fazer algum
sentido no âmbito de uma história mundial do direito, dificulta a visão de muitos
elementos de diferenciação que são necessários para contar uma história do direito
ocidental. Para além das vantagens historiográficas de rigor, o sublinhar da
pluralidade de tradições jurídicas (nomeadamente, na Europa) evita que a história
do direito europeu se oriente no sentido de legitimar uma política de unificação
(globalização) do direito privado europeu com base numa alegada tradição jurídica
comum10.
1.1.5 A tradição livresca do direito comum tardio da Europa do Sul.
§ 14. Este meu projeto de escrever uma espécie de “manual” da fase epigonal
do direito comum da Europa sul-ocidental transformou em perplexidades concretas
algumas das dificuldades metodológicas que eu já tinha identificado em abstrato.
Contarei, de seguida, como foi que certas questões teóricas me apareceram agora
sob a forma de indecisões de método.
§ 15. O objetivo do meu projeto era, como disse, o de facultar um panorama
do direito tal como ele aparece na literatura jurídica portuguesa anterior ao
iluminismo, tal como era presumivelmente aplicado nos tribunais e tal como era
vivido pela generalidade das pessoas. Dada a pluralidade de tradições jurídicas na
história do direito europeu e, por isso, a pluralidade de esferas em que elas se
desenvolvem e às quais se referem, é preciso definir o âmbito de validade deste
direito de que me vou ocupar.
§ 16. Parece importante salientar, desde já, que me refiro a um direito culto, a
um direito de uma elite de juristas letrados. A doutrina jurídica que lhe corresponde
está muito estreitamente dependente da doutrina do direito comum continental
europeu (ius commune), essa imponente massa doutrinal e dogmática que dominava a
cultura jurídica das faculdades de direito e dos tribunais letrados na Europa
Ocidental. Lendo as referências dos escritores portugueses constata-se que, no
universo desta tradição literária, estavam muito presentes os autores italianos dos
sécs. XII a XIV e os que, mais recentemente, tinham escrito sobre direito no
ambiente das universidades e dos tribunais das grandes monarquias do Sul da
Europa, nomeadamente da Espanha, de Portugal, dos Estados papais e, bastante
menos, da França. Os autores alemães rarissimamente aparecem e, ainda menos, os
Oxford University Press, 2001. Sobre o tema, mas sem intenções atualistas tão claras, Peter Stein,
Roman Law in European History, Cambridge University Press. 1999. Crítica:Tommaso Pavone, “A Critical
Review of Reinhard Zimmerman’s Roman Law, Contemporary Law”, 2014, in
http://tommasopavone.yolasite.com/resources/Zimmerman-Roman%20Law, %20Contemporary%
20Law, %20European%20Law%20%28Critical%20Review%29.pdf.
8
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ingleses. Não ignorando que existiam diferenças regionais nesta doutrina jurídica,
ela apresentava-se, no seu conjunto, como um património comum e
individualizador das duas grandes penínsulas da Europa ocidental e, parcialmente,
também do reino de França. Em termos culturais, este território correspondia ao da
Europa católica pós-tridentina, simplificando, da Europa do Sul.
§ 17. Para caraterizar com mais rigor este universo literário de referência,
recorri a um breve estudo estatístico de há uns anos acerca das citações de um
tratado sobre as especificidades que o autor considerou como as mais notáveis do
direito português11. Entre os autores aí mais citados aparecem os principais
decisionistas portugueses de seiscentos (nomeadamente, Álvaro Valasco, Jorge de
Cabedo e Melchior Febo), o comentarista Manuel Barbosa, os grandes tratados
monográficos italianos da viragem dos sécs. XVI para XVII (Prospero Farinacio,
Giulio Claro, Roberto Maranta, Giacomo Menochio), a par com Bártolo. Num
gráfico, o conjunto dos autores citados, ventilados pela nação do autor citado e o
século da sua morte 12, evolui assim:
100%
90%
80%
70% Espanhóis
60%
Italianos
50%
40% Portugueses
30%
Outros (sobretudo,
20% franceses)
10%
0%
Séc. XV % Séc. XVI % Séc. XVII % S. XV-XVII
%
Escolhemos a data da morte porque, ao utilizar o século como intervalo, esta é a mais próxima
12
9
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
13 No contexto dos livros usados em Portugal, Francisco Bermúdez de Pedraza, 1576-1655, Arte
legal para estudiar la Iurisprudencia, cit.; António de Sousa de Macedo, 1606-1682, Perfectus doctor in
quacumque scientia maxime in iure canonico & civili. […], cit., 1643; Jerónimo da Silva Araújo, Perfectus
advocatus, hoc est, tractatus de patronis, sive advocatis, theologicus, juridicus, historicus, et poeticus […], cit..
14 Nomeadamente, o de Manuel Barbosa, Remissiones doctorum ad contractus, ultimas voluntates, et
delicta spectantes in librum quartum, et quintum […], cit.; o de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana
[…], cit.; ou o de Manuel Álvares Pegas, Commentaria ad Ordinationes […], cit, este último já
monumental, mas cujo uso era facilitado pela existência de um índice que, só por si, já bastaria para
colher muitas referências: Manuel Álvares Solano do Vale, Index generalis […], cit..
15 Cf. Gustavo Cabral, Os decisionistas portugueses entre o direito comum e o direito pátrio, São Paulo,
10
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
11
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
doutrina dos contratos é apenas doutrina, com remissões mais ou menos forçadas
para um direito romano que já não correspondia em quase nada – senão em frases e
brocardos - à dogmática jurídica moderna. E, por isso mesmo, é muito útil que uma
descrição do direito da época moderna coloque esta doutrina do direito – que
assusta pela sua magnitude e pela sua natureza aparentemente hermética – ao
alcance dos historiadores sem formação jurídica (e, também, dos juristas sem
formação histórica). Já agora, também os apressados tradutores que confundem law
com lei, dar-se-ão conta, se tiverem paciência para ler o livro, do disparate a que o
anglicismo conduz.
1.1.7 O impacto social do direito letrado.
§ 24. Ainda sobre o âmbito do direito aqui descrito. Este direito vigorava nos
livros, claro está. E, por isso, modelava a cabeça de quem os lia – professores da
universidade, estudantes, juízes e advogados letrados. Eventualmente seriam lidos
em diagonal por alguns escrivães e procuradores com poucos estudos jurídicos,
talvez apenas com estudos preparatórios para a universidade, ou mesmo apenas
sabendo ler e escrever. Este mundo era muito restrito, do ponto de vista social.
Social e politicamente, era o mundo de uma certa elite que frequentava livros.
Geograficamente, era um mundo quase exclusivamente urbano. No entanto, este
saber possuía certos trunfos para se disseminar.
§ 25. Por um lado, era um direito vazado num discurso feito de – como se
diria hoje – sound bytes, de brocardos, curtas frases que condensavam
expressivamente uma regra, que ficavam no ouvido, e que se tornavam num
instrumento muito acessível e eficaz também na comunicação oral. Mesmo que não
se fosse capaz de reproduzir toda a argumentação que levava à conclusão, ou que
não se pudesse identificar a fonte da sua autoridade, o brocardo valia pela sua
expressividade e por ser comumente aceite. Estes átomos do discurso letrado
colonizavam, assim, como vírus a comunicação fora do círculo restrito dos leitores
de livros, tal como as breves jaculatórias e os versículos disseminavam entre os
crentes o saber religioso contido nos livros santos. Um pouco mais extensas do que
os brocardos eram as fórmulas ou cláusulas, com as quais os notários formalizavam
nos documentos escritos a descrição de situações ou vontade das partes, de modo a
que elas pudessem valer em direito. Também aqui, este saber formular estava bem
longe de conter o saber jurídico. Muitos escrivães não saberiam dar conta do
porquê de descrever as coisas assim, com aquelas formulações quase sagradas. As
partes, muito menos. Mas estas formas estereotipadas de escrever iam embebendo
o discurso vulgar e insinuando o saber técnico que estava por detrás delas.
§ 26. Por outro lado, o suporte escrito garantia a esta literatura uma enorme
difusão espacial. Embora os livros de direito desta época – normalmente
volumosos in folio - não fossem muito transportáveis, nem o material de que eram
feitos fosse muito resistente a certos climas e a muitas pragas, o certo é que
encontramos livros de direito nas periferias, não apenas do reino, mas ainda do
império16. Isto garantia o conhecimento da tradição jurídica letrada nos confins
século XVIII”, cit.; no “império”, Álvaro de Araújo Antunes, Espelho de cem faces […], cit.; alguns
dados sobre uma região “de fronteira”: Ivan Furmann, Cultura jurídica e transição entre colônia e império: a
experiência da ouvidoria de Paranaguá e Curitiba, cit..
12
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
17 Isto explica a existência de bibliotecas jurídicas “de aparato”, em que a desproporção entre o
número e tipo de livros e as virtualidade locais da sua utilização é evidente. Cf. Álvaro de Araújo
Antunes, Espelho de cem faces […], cit..
18 Cf. António Manuel Hespanha, "Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique",
cit..
19 Alejandro Agüero, “El testimonio procesal y la administración de justicia penal en la periferia de
13
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
20 Por exemplo, Helmut Coing, Europäisches Privatrecht, Vol. 1: Älteres Gemeines Recht (1500–1800),
cit.. Trad. castelhana de António Pérez Martin, Derecho privado europeu […], Madrid, Fundación Cultural
del Notariado, 1996.
21 Sobre a ordem expositiva na tradição jurídica europeia ocidental, v. Mario Losano, Sistema e
struttura nel diritto, I: Dalle origini alla Scuola Storica, Giappichelli, Torino 1968 (trad. port. Sistema e estrutura
no direito. I. Das origens à Escola Historica, S. Paulo, Martins Fontes, 2008), maxime, 9 ss..
22 Reconstituição do Edictum: Otto Lenel (1849-1935), Edictum Perpetuum, 1883.
23 Ou seja, direito que tratava de pessoas, direito que tratava de coisas, direito que tratava de
ações ou obrigações.
14
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
jurídica). Era antes uma organização por temas (como os índices temáticos, por
oposição aos sistemáticos), racionalmente inconsistente, mesmo com a tripartição
anunciada. Isso não chocava os juristas de então porque, apesar da lógica
“sistemática” da literatura “elementar” ou “institucional”, não se tinha em vista
uma exposição demonstrativa, ordenada a definitione e desenvolvida ex genere et
diferentia. Assim, os juristas seiscentistas, como em geral não se preocupavam com
uma exposição sistemática das matérias, escapavam a esta indecisão, ou seguindo a
“ordem legal” (i.e. a dos livros e títulos da compilação de referência para eles) ou
desistindo de uma exposição sistemática e optando por descrições sob a forma de
dicionários. Sistemáticas são as exposições dos grandes teólogos juristas ibéricos do
séc. XVI. Mas elas mesmas não têm nem raízes nem ecos na literatura jurídica mais
quotidiana e, por isso, deviam parecer algo estranhas ou rebuscadas aos juristas
comuns.
§ 30. Perante estas hesitações e dificuldades, acabei por optar por um plano
expositivo próximo do das Institutiones, por ter uma raiz forte nos textos, desde logo
nos comentários a esse livro do Corpus iuris civilis. E, depois, por ter sido o primeiro
modelo a ser usado pelos juristas da época moderna que tentaram descrições gerais
do direito24. O modelo das Institutiones não é, porém, muito consistente para nós –
nem o foi para os juristas que o usaram na época moderna -, sinal de que alberga
lógicas expositivas do passado que ainda faziam sentido para os juristas pós-
clássicos ou bizantinos, mas que já pareciam bizarras para os juristas setecentistas
(como Arnold Vinnius, por exemplo, que tenta, no entanto, justificar as
incongruências). Para além disso, a ordem das instituições não permitiria incluir as
questões dogmáticas sobre fontes de direito (a não ser como uma espécie de
proémio ao livro I) ou as questões de direito penal, a menos que se inserissem na
sequência da secção dedicada às obrigações que nascem de delitos. Tivemos,
portanto, que improvisar um pouco, seguindo sempre a arrumação que nos parecia
ser mais sugerida pela literatura jurídica moderna. O que me agradou nesta
arqueologia da ordem – a que, em todo o caso, não prestei tanta atenção como o
tema merece, porque isso desviaria a intenção desta obra – foi chegar a resultados
que, sendo consistentes com as fontes, quebrem as evidências de hoje acerca de
como falar do direito e como expor ordenadamente as suas matérias. É justamente
nesses momentos em que as fontes nos surpreendem e nos propõem vizinhanças e
relações temáticas insuspeitadas que nos damos conta do caráter situado e arbitrário
da nossa maneira de encadear as matérias jurídicas e, por detrás disso, do nosso
modelo implícito de ordem do direito. Pensei então nos juristas com deficiente
formação histórica e em como lhes fará bem pôr aqui à prova as suas construções e
categorias pretensamente perenes.
§ 31. No âmbito de cada instituto, é difícil escapar ao método geométrico,
que começa pela definição e pela regra, como proposições breves (“regula est, quae
rem quae est breviter enarrat”, D.50,17,1), nas quais como que se contém já toda a
natureza da coisa. Em todo o caso, convém ter presente que este não era, para os
juristas antigos, um método tão evidente ou tão garantidamente eficaz como hoje
nos parece. Um texto do Digesto alerta para isso: “omnis definitio in iure civili
periculosa est: parum est enim, ut non subverti possit” [no direito da cidade, toda a
definição é perigosa, pois é raro que não possa ser desmentida] (D. 50.17.202). Mas,
24 Sobre o modelo das Institutiones v. as obras citadas de Klaus Luig e J.-M. Scholz.
15
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
25 Bento Pereira, S.J. 1606-1681, Promptuarium juridicum quod scilicet in promptu exhibebit rite ac diligenter
quaerentibus omnes resolutiones circa universum jus Pontificiu[m], Imperiale, ac Regium, secundum quod in tribunalibus
Lusitaniae causaer decidi solent […], cit..
26 António Cardoso do Amaral, 15??-16??, Liber utilissimus iudicibus et advocatis, cit..
27 De methodo ac ratione studendi libri tres, Lugduni, apud Antonium Vincentium, 1541.
considerado, primeira interpretação literal; 2) divisão do texto nas suas partes lógicas, com a definição
de cada uma das figuras aí referidas e sua concatenação lógica, através das noções dialéticas de género,
espécie, etc.; 3) com base nesta ordenação lógica, re-elaboração sistemática do texto; 4) enunciação de
casos paralelos, de exemplos, de precedentes judiciais; 5) leitura "completa" do texto, i.e. leitura do
texto à luz do contexto lógico e institucional construído nos estádios anteriores; 6) indicação da natureza
do instituto (causa material), das suas características distintivas (causa formal), da sua razão de ser
(causa eficiente) e das suas finalidades (causa final); 7) ulteriores observações, indicação de regras gerais
(brocarda) e de opiniões de juristas célebres (dicta); 8) objeções à interpretação proposta, denotando o
caráter dialético das opiniões sobre problemas jurídicos, e réplicas, com larga utilização do instrumental
da dialética aristotélico escolástica.
16
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
provar, ficou quase sempre muito aquém daquilo que seria necessário para
identificar as raízes das “inconsistências” dogmáticas da doutrina jurídica moderna.
Seja como for, a identificação de alguns tópicos orientadores de cada instituto pode
ser uma ferramenta útil para o historiador que procure perceber a lógica (ou as
lógicas) que estavam pro detrás da valorização e regulação das situações jurídicas.
1.1.10 A “contextualização”.
§ 38. Muitos dirão que, lidando apenas com a literatura jurídica, vão fazer
falta os “contextos”.
§ 39. Desde logo, há necessidade de esclarecer de que contextos se está a
falar. Continuo muito convencido de que, tratando-se de contextualizar textos, os
contextos mais relevantes são … outros textos. Isto sobretudo porque os textos são
elaborados a partir de arquivos de elementos textuais: a língua, os argumentos, as
estratégias de argumentação, as conclusões já validadas antes, os conceitos. Estes
são os materiais com que se constrói um texto novo. E com os quais, portanto, as
“ideias” e os “interesses” se têm que vestir para que se possa falar deles no texto.
Então, o primeiro contexto a ter em conta nos textos é o seu contexto textual ou
intertexto. Isto significa que partimos da ideia de que a fonte mais imediata do
sentido de um texto é a das representações a partir das quais se interiorizou o
“mundo exterior”29. A primeira manifestação deste contexto textual é a tradição
literária em que as narrativas analisadas se inserem, incorporando tanto os
elementos de conteúdo como os elementos relativos ao suporte (a chamada
“bibliografia material”30).
§ 40. Esta perspetiva do contexto, aqui valorizada, visa reagir contra várias
formas de mecanicismo objetivista que tendem a explicar a ação humana apenas ou
predominantemente a partir de um jogo de determinantes puramente externas,
29 Desenvolvi a ideia numa versão anterior de Cultura jurídica europeia (Florianópolis, 2006), cap.
3.2.4: “Insistimos, pelo contrário, em que as práticas de que a história se ocupa são práticas de homens,
de alguma forma decorrentes de atos de cognição, de afetividade, de avaliação e de volição. Em
qualquer destes níveis da atividade mental pressuposta pela ação se encontram momentos irredutíveis de
escolha, em que os agentes constroem versões do mundo exterior, as avaliam, optam entre formas
alternativas de reação, representam os resultados e antecipam as consequências futuras. Todas estas
operações pertencem à esfera do mundo interior. São operações irredutivelmente intelectuais, baseadas
em representações construídas pelo agente, eventualmente a partir de estímulos (de muito variada
natureza) recebidos do exterior. No entanto, estes são reprocessados por mecanismos puramente
intelectuais, constituídos por utensílios mentais como grelhas de apreensão e de classificação, sistemas
de valores, processos de inferência, baterias de exemplos, modelos típicos de ação, etc. Enfim, tudo
representações. Quando, por exemplo, Karl Polanyi insiste no carácter "antropologicamente
embebido" do mercado não está a salientar outra coisa senão que as "leis do mercado" não constituem
lógicas de comportamento forçoso, decorrentes ou de uma lógica das coisas ou de uma razão
económica, mas modelos de ação que se fundam sobre sistemas de crenças e de valores situados numa
cultura determinada (de uma época, de um grupo social) […]; que o mundo não pode ser apreendido
senão como um texto 29 e que, portanto, a relação entre "realidade" e representação tem que ser
necessariamente entendida como uma forma de comunicação intertextual; que está apenas a insistir nesta
ideia de que todo o contexto da ação humana, ao qual esta ação necessariamente responde, é algo que
já passou por uma fase de atribuição de sentido 29. A realidade, ao ser apreendida como contexto de
ação humana, foi consumida pela representação.”. Remeti então para a ideia de pan-textualidade (Cf.
Peter Zyma, Textsoziologie. Eine kritische Einführung, Stuttgart, Metzler, 1980, cap. "Gesellschaft als
Text").
30 Cf. D. F. McKenzie, Bibliography and the Sociology of Texts: The Panizzi Lectures 1985, London, The
18
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
31 Para uma crítica do elenco estabelecido de fontes de direito, v. o meu livro Pluralismo e direito
Clavero); The American Historical Review, 97.1(1992) 221-222 (C. A. Hanson); The journal of modern history,
67.(1995) 758-759 (Julius Kirchner); Latin American Review, 31.1(1996) 113-134; Ann. Econ. Soc. Civ.
46.2(1991), 502-505 (J. F. Schaub).
33 Jean-Frédéric Schaub, “La penisola iberica nei secoli XVI e XVII: la questione dello Stato”,
Studi Storici, anno 36(1995, gennaio-marzo); Id. ”L’histoire politique sans I’État: mutations et
reformulations”, Historia a debate, 3(1993), 217-235; Id. "Le temps et l'État: vers un nouveau régime
historiographique de l'ancien régime français", Quad. fior. st. pens. giur. mod. 25(1996) 127-182; Angelo
Torre, “Percorsi della pratica. 1966-1995”, Studi storici, 1995, 799-829 (mais crítico); Roberto Bizzochi,
“Storia debile, storia forte”, Storia, 1996, 93-114
34 Paolo Grossi, L’ordine giuridico mediovale, Bari, Laterza, 1995.
35 Jean-Frédéric Schaub, La France espagnole: Les racines hispaniques de l'absolutisme français, Paris,
Seuil, 2003. Nota-se, sobretudo nos historiadores mais atentos ao legado das ideias políticas
renascentistas – nomeadamente, à tradição dos “políticos”, oriunda de Maquiavel -, uma tendência
para revalorizar o papel dos príncipes e das coroas. Para além de constituir o natural ricochete da
20
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
insistência na importância dos poderes periféricos, esta tendência explica-se por uma especial
valorização da política quinhentista italiana e de alguns “ republicanos ” do resto do continente (França.
Inglaterra). No plano prático-institucional, esta tentativa de trazer de novo o Estado para o primeiro
plano (bringing the State back in) defronta-se com dificuldades de prova.
36 Lauren Bentos & Richard J. Ross (eds.), Legal Pluralism and Empires, 1500–1850, New York,
NYU Press, 2013 (comentário: Antonio Manuel Hespanha, “The Legal Patchwork of Empires”, Rechts
Geschichte. Zeitschrift des Max-Planck-Instituts für europäische Rechtsgeschichte, 22(2014), 303-314; Alejandro
Cañeque, “The Political and Institutional History of Colonial Spanish America”, History Compass, 11/4
(2013), 280–291 (https://www.academia.edu/5670467/The_Political_and_Institutional_ History_
21
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
of_Colonial_Spanish_America).
37 Tamar Herzog já incorporava as mais recentes novidades da historiografia jurídica e institucional
europeia, desde o seu livro sobre a audiência de Quito (Upholding justice. Society, State, and the Penal System
in Quito (1650-1750), cit.).
38 Principalmente, em Tamar Herzog, Defining nations. Immigrants and citizens in early modern Spain and
Spanish America […], cit.; agora, convergente, Tamar Herzog, Frontiers of Possession. Spain and Portugal in
Europe and the Americas, cit..
22
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
correntes”, em Maria Fernanda Bicalho, João Fragoso, et alii, O Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica
imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), cit., 163-188; nesse volume, ainda, interessantes contribuições
para uma nova história da administração colonial brasileira: Maria Hebe Mattos, “A escravidão moderna
nos quadros do império português: o Antigo Regime em perspetival Atlântica”, 141-161; Maria
Fernanda Bicalho, “As câmaras e o governo do Imperio”, 189-221; Maria de Fátima Gouvêa, “Poder
político e administração na afirmação do complexo atlântico português (1645-1809)”, 285-316. Cf.
também, sobre o tema, Pedro Cardim, “O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os
primeiros Bragança”, Hispania. Revista del Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid, vol. 64/1,
nº 216 (Enero-Abril 2004), pp. 117-156; Alexandre Martins Viana, Antigo Regime no Brasil. Soberania,
justiça, graça e fisco (1643-1713), Editora Prisma, 2014.
40 Antonio Carlos Wolkmer, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma Nova Cultura do Direito,
São Paulo, Alfa-Ômega, 1994; Idem, “Pluralidade Jurídica na América Luso-Hispânica”, em Antonio
Carlos Wolkmer (org.) Direito e Justiça na América Indígena: Da Conquista à Colonização, Porto Alegre,
Livraria do Advogado, 1998. ps. 75/93. A que eu juntaria, pelo parentesco entre direito periférico e
direito informal, o estimulante estudo de Keith S. Rosen, “The Jeito: Brazil's Institutional Bypass of the
Formal Legal System and Its Developmental Implications”, cit..
41 V. Laura de Melo e Souza, O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século
XVIII, 2006. Em jeito de resposta, António Manuel Hespanha, “Depois do Leviathan”, cit.; mais
recentemente, avaliando a questão, Francisco Carlos Cosentino, "Uma leitura de António Manuel
Hespanha", em Cultura histórica & património, 2.1(2013), 72-88; e, de um ponto de vista também
divergente do que aqui expresso, José Jobson de Andrade Arruda, “Modalidades imperiais e
capitalismo comercial: um confronto histórico-conceitual”, comunicação apresentada ao Segundo
Congresso Latino Americano de História Econômica (Fevereiro 2010).
42 Sobre esta rutura - já destacada em Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha, “A
23
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
superado, nem como projeto, nem como prática. A questão mantem-se em aberto;
sendo certo que tem implicações profundas para a história colonial. Neste plano,
creio que os pontos de vista defendidos neste livro fazem mais justiça à capacidade
de ação política dos grupos coloniais, abundantemente documentada nas fontes.
1.1.13 Conclusão.
§ 53. Um livro destes faz-se mais facilmente depois de um largo percurso
pela história do direito, da sociedade e da cultura da época moderna. Escrevendo
para diversos públicos de historiadores fiz quatro décadas de peregrinações que me
levaram a estudar muitos aspetos das sociedades modernas, com especial destaque
para a portuguesa e para algumas das que habitavam o chamado império português.
Ao escrever este livro, dei-me conta de como ainda havia muitos espaços temáticos
não trilhados. Apesar disso, tecer conjuntamente o que sabia facilitou-me a tarefa
de explorar o que faltava saber. Parece-me que o quadro geral – que procurei não
sobrecarregar de referências que não adiantassem muito à compreensão global ou
que abrissem para relacionamentos ainda pouco sedimentados – enriquece a
compreensão da sociedade portuguesa e das sua projeções no além-mar. O próprio
quadro das sociedades meridionais da Europa Ocidental parece-me que pode
ganhar mais nitidez, pois o direito constitui um dos cimentos que, justamente
nestes séculos, lhe dá uma certa unidade, por cima dos despiques entre as grandes
monarquias. Por outro lado, o direito é seguramente um dos fatores de uma
diferenciação com a outra Europa- a do centro e do norte - que também se torna
mais nítida e mais ampla por esta altura e que, segundo creio, está na origem das
incompreensões mútuas dos nossos dias. Admito que obras como esta contribuam
para uma revalorização historiográfica das culturas da Europa do Sul, hoje a
caminho de se tornarem em cultura subalternas e exóticas, com o seu quê de
subversivo em relação às alegadas racionalidade, funcionalismo, sensatez e
universalidade das “culturas do norte”. Neste sentido, este livro estaria a contribuir
para uma reabilitação de modelos de conhecer, de valorizar e de ordenar, diferentes
dos que aparentemente (de facto, só aparentemente …) se vão estabelecendo
globalmente. Justamente por descrever uma espécie de paleo-epistemologia do Sul,
numa altura em que ela se consolidava numa literatura erudita poderosa e se
expandia para fora da Europa. Esse esplendor será breve, uma espécie de fogacho
de história. Mas, combinado com outras epistemologias ainda mais “a Sul” 43, terá
contribuído para estas alternativas culturais que tanto irritam os que aspiram a um
mundo padronizado. Não entendo este meu trabalho como uma empresa de
militância cívica ou cultural; no entanto, não me contraria nada se ele puder ter
algum préstimo desmistificador nas lutas civilizacionais dos nossos dias.
§ 54. Agradeço, por fim, aos que, na fase final de escrita, me ajudaram a
esclarecer dúvidas, me deram informações bibliográficas ou me fizeram leituras
críticas de partes do livro. Envolvo-os a todos num abraço fraterno.
43 Cf. Boaventura de Sousa Santos, Maria Paula Meneses (orgs.), Epistemologias do Sul, cit..
24
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1.2 Abreviaturas.
António Delgado da Silva, Collecção da Legislação
Portugueza desde a última Compilação das Ordenações,
A.D.S. Lisboa, Typografia Maigrense, 1829, em
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verobra.php?id_
obra=73
adn. adnotatio
alv. alvará
ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo
ar. aresto
ass. assento
av. aviso
BNL Biblioteca Nacional de Lisboa
C. Código de Justiniano
c. cânone, causa
C.J.Can. Corpus iuris canonici
C.J.Civ. Corpus iuris civilis
C.L. carta de lei
C.R. carta régia
cf. confira
Clem. Clementinas
col. coluna
cons. consultatio
D. Digesto
dec. decisio
decr. decreto
Decretales Decretais de Gregório IX
Decretum Decreto de Graciano
disp. disputatio
dist. distinctio
Extr. Comm. Extravagantes comuns
Extr. Joh. Extravagantes de João XXI
fin. final
gl. glosa
I. Instituições de Justiniano
i.e. id est, isto é
ibid. ibidem
id. idem
in cap. in caput, no início.
25
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
26
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
na ordem do texto.
45 De nuptiis é a epígrafe do tít. 10 do livro 1 das Institutiones.
46 Na Idade Média, os três últimos livros do Código eram frequentemente agrupados nos
chamados tres libri, formando, juntamente com outras fontes menores (Institutiones, Authenticum e Libri
feudorum) o Volumen parvum (livrinho).
47 Como antes se disse, o parágrafo 1 é, de facto, o segundo na ordem do texto.
48 Na Idade Média, o Digesto aparecia dividido em Digestum Vetum (livs. 1-24, 3, 2); Digestum novum
50 O nome grego do Digesto começava pela letra (pi) que, manuscrita se assemelhava a dois f. E
27
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
28
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tm
Direito canónico Corpus iuris C.J.Can. (pesquisável por palavra) -
canonici http://digital.library.ucla.edu/canonlaw/ ou
http://digital.library.ucla.edu/canonlaw/toc.h
tml;
http://web.colby.edu/canonlaw/tag/gregory-
ix/;
https://archive.org/details/corpusjuriscanon0
0cath;
Decreto de Graciano:
http://geschichte.digitale-
sammlungen.de/decretum-
gratiani/online/angebot
Decretais de Gregório IX:
http://books.google.pt/books?id=YXE8AA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
http://www.lex.unict.it/liber/accedi.asp;
http://books.google.pt/books?id=ktk9AAAA
cAAJ&hl=pt-
PT&source=gbs_book_other_versions;
http://purl.pt/24947/3/#/18;
Extravagantes de João XXIII::
http://biblelight.net/Extravagantes.htm
Biblia cum http://lollardsociety.org/?page_id=409
Glossa ordinaria http://www.arsedendi.org/?page_id=26
Direito comum Glosadores e Glossa ordinaria: http://www.jura.uni-
comentadores muenchen.de/fakultaet/lehrstuehle/lepsius/li
nkliste/linkliste_1.html;
Bártolo: várias obras disponíveis em
http://books.google.pt/books
Baldo: várias obras disponíveis em
http://books.google.pt/books
Direito ibérico Forum judicum Cod. Recesvindianus (Liber iudicum):
medieval (= Codex http://libro.uca.edu/vcode/visigoths.htm
reicesvindianus) (trad. inglesa);
http://www.documentacatholicaomnia.eu/03
d/0506-
0506,_AA_VV,_Leges_Romanae_Visigotoru
m_%5BScott_JP_Curatore%5D,_EN.pdf
(idem);
http://pt.scribd.com/doc/25252840/Fuero-
Juzgo-Parte-3-Forum-Judicum-Latin;
http://www.brepols.net/publishers/pdf/Brep
olis_MGH_EN.pdf (Monumenta Germaniae
Historica); http://www.mgh.de/dmgh/ (idem).
Las Siete Las Siete Partidas del Rey Don Alfonso El Sabio
Partidas [...], Partida Primera, Madrid, Imprenta Real,
1807
(http://books.google.pt/books?id=xKoKAA
AAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false); II (Partidas segunda e
terceira)
(http://books.google.pt/books?id=8F9HAA
AAYAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
29
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false);
http://books.google.pt/books?id=WhNaAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false); III (Partidas quarta,
quinta, sexta e sétima)
(http://books.google.pt/books?id=p7aI__5n
9cYC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false)
El fuero Real I, Madrid, Pantaleon Aznar, 1781, I
(https://books.google.pt/books?id=fz0_AAA
AcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false); II
(https://books.google.pt/books?id=bd9GFv6
DCAkC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false); III (Partidas 4 a 7)
Direito português Portugalliae http://pt.scribd.com/doc/25252840/Fuero-
monumenta Juzgo-Parte-3-Forum-Judicum-Latin ;
historica http://purl.pt/12270
Colleccão de livros http://purl.pt/307.
ineditos da
historia
portugueza dos
reinados de D.
Dinis. D. Afonso
IV, D. Pedro I e
D. Fernando,
vols. V/VI
Legislação Ordenações [Ed. S. Vicente de Fora (maior)]:
portuguesa de filipinas 1:
Antigo Regime https://books.google.pt/books?id=13pFAAA
AcAAJ&pg=PA351&lpg=PA351&dq=regime
nto+do+Desembargo+do+Pa%C3%A7o&so
urce=bl&ots=ZmGKHo-
47Z&sig=_YjEfCnqsEHD_J9Oo4DenkacZ9
k&hl=pt-
PT&sa=X&ei=M7GvVJqHGMesU7LOgagF
&redir_esc=y#v=onepage&q=regimento%20
do%20Desembargo%20do%20Pa%C3%A7o
&f=false;
2:
https://books.google.pt/books?id=xHdFAA
AAcAAJ&dq=regimento%20do%20Desemba
rgo%20do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks;
3:
https://books.google.pt/books?id=yHdFAA
AAcAAJ&dq=regimento%20do%20Desemba
rgo%20do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks;
4:
https://books.google.pt/books?id=NnpFAA
AAcAAJ&dq=regimento%20do%20Desemba
rgo%20do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
30
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
PT&source=gbs_similarbooks;
5:
https://books.google.pt/books?id=N3pFAA
AAcAAJ&dq=regimento%20do%20Desemba
rgo%20do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks
[Cândido Mendes de Almeida]:
1 a 5:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/
242733;
[Colecção de legislação antiga e moderna.
Ordenações filipinas]:
1:
https://books.google.pt/books?id=4aRFAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
2:
https://books.google.pt/books?id=gq9RAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
3-4:
https://books.google.pt/books?id=WV5OA
AAAYAAJ&dq=regimento%20do%20Desem
bargo%20do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks
[Colecção de legislação antiga e moderna. Leis
extravagantes]:
1 (LL.AA. 1603-1656):
https://books.google.pt/books?id=MK9RAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
2 (LL.AA. 1657-1750):
https://books.google.pt/books?id=SK9RAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
3 (LL.AA. 1750-1756):
https://books.google.pt/books?id=gq9RAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
4 (LL.AA. 1757-1761):
https://books.google.pt/books?id=ea9RAAA
AcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
5 (DD. 1603-1750):
https://books.google.pt/books?id=gq9RAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
Legislação http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/;
portuguesa de http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.
31
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Diárioss da
Assembleia
Nacional e
Câmara
Corporativa
Direito brasileiro Doutrina Civilística brasileira-
contemporâneo http://www.civilistica.com.br/link0201.html
Digesto brasileiro ou extracto e commentario
das ordebnações e leis posteriores até ao anno
de 1842, Rio de Janeiro, E. e H. Laemmert,
1843.
Geral Recursos http://cluster4.lib.berkeley.edu:8080/ERF/se
eletrónicos rvlet/ERFmain?cmd=searchSub&subjectId=
(Direito) 75&resTypeId=12
Grandes Biblioteca digital da Faculdade de Direito da
acervos Universidade de Coimbra: Doutrina jurídica
digitalizados dos sécs. XVI-XIX – c. uma centena de obras
(geralmente em PDF):
http://bibdigital.fd.uc.pt/website/autor/c1.ht
m
Biblioteca digital da Fac. Dir. da UNL:
http://fd.unl.pt
Biblioteca Ger. da Univ. de Coimbra: http://
almamater.uc.pt/index.asp?f=BGUCD
Biblioteca Nacional de Lisboa:
http://purl.pt/index/geral/PT/index.html
Bilbioteca Virtual Miguel de Cervantes:
http://www.cervantesvirtual.com/
Brasiliana – USP:
http://www.brasiliana.usp.br/
Gallica – Bibliothèque numérique de la
Bibliothèque Nationale de France:
http://gallica.bnf.fr/ -
Liberty Library of Constitutional Classics:
http://www.constitution.org/liberlib.htm:
http://www.constitution.org/liberlib.htm
Library of Congress (USA):
http://www.loc.gov/library/libarch-
digital.html
The online Library of liberty:
http://oll.libertyfund.org/?option=com_stati
cxt&Itemid=27
Universidade de São Paulo: acervo de obras
digitalizadas: http://www.obrasraras.usp.br/
University of California (Berkeley) - Literatura
jurídica medieval e moderna:
http://www.law.berkeley.edu/library/robbins
/overview_collection.html
Hathi Trust Digital Library -
http://www.hathitrust.org/
The Online Book Page -
http://onlinebooks.library.upenn.edu/search.
html
33
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
34
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2 As jurisdições e o direito.
§ 55. Iniciar esta exposição pela teoria da jurisdição pode parecer estranho, de
tal modo hoje ligamos a jurisdição à atividade de julgar, um sector muito particular
do exercício do poder, em que apenas se aplicam a casos concretos normas de
comportamento já estabelecidas, na generalidade, pelo legislador. Como adiante se
explicará, não era essa a maneira de ver as coisas na sociedade medieval e moderna.
Não apenas a jurisdição não era considerada como uma simples tarefa de aplicação
de um direito já estabelecido a casos concretos, como esta realização concreta do
direito era tida como a primeira manifestação da ordem política. Por isso, a
jurisdição era o exercício do poder, governar era julgar e o juiz – no sentido
alargado daquele que estabelece a ordem nos casos concretos da vida - era a figura
central da política. Cristo era juiz e os juízes terrenais imitavam essa função divina
de governo53.
§ 56. Realmente, esta ideia da centralidade da justiça e do ato de julgar na
instituição e manutenção da ordem brotava de uma conceção mais geral sobre a
ordem do mundo e da vida. De facto, a imagem da vida é, nestes tempos, se não a
imagem de um grande processo universal (que culminava num grande juízo, o Juízo
Final), pelo menos a imagem de uma sequência de atos “judiciais”, em que
impulsos opostos tentam ganhar reciprocamente a primazia perante um juiz que
julga dos seus méritos (a consciência). "Juízo", "foro da consciência", “acusação”,
“defesa”, “culpa” e mais algumas expressões colhidas do mundo judicial ajudam a
descrever estes processos psicológicos e morais de decisão que preenchem a vida
das pessoas: "Em primeiro lugar – escreve o jurista teólogo João Baptista Fragoso54
-, encontramos a nossa consciência, que de quando em quando faz as vezes e o
ofício do juiz e, por isso, se as ações praticadas são retas, absolve e defende a
vontade, enquanto autora delas, e se são más, a acusa e censura [...] Outras vezes, a
consciência faz as vezes de testemunha, depondo tanto contra nós como a nosso
favor [...]. Do mesmo modo, também faz as vezes de Deus, o verdadeiro Juiz [...]".
Foro da consciência, tribunais dos costumes, pleitos de amores, tantos são os
exemplos que nos oferecem as fontes literárias acerca desta matriz judiciária de
apreensão do real e da assimilação do governo a uma cadeia de decisões judiciais.
§ 57. Estes capítulos iniciais, sobre as teorias da jurisdição, das fontes de
direito e dos oficiais e magistrados, são, por isso, as sedes da reflexão dos juristas
medievais e modernos sobre o poder político. Do qual falam com os conceitos e
figuras discursivas que são próprios do seu saber – iurisdictio, imperium, potestas,
officium, magistratus – e não com aqueles com que nós hoje usamos para o mesmo
efeito – soberania, poder político, etc.. Isto cria-nos a impressão de que estão a falar
de tecnicidades do direito e do processo, de questões de detalhe sobre a
competência dos magistrados ou sobre a maneira de processar as lides. Porém, se
se olhar para além das palavras usadas, os temas que estão a ser discutidos são
53 É o que sugere Gabriel Álvares de Valasco, no seu tratado Judex Perfectus seu de Judice Perfecto
Christo Iesu, 1662. Sobre a centralidade da justiça na representação medieval e moderna do poder, v.
António Manuel Hespanha, “Justiça e administração …”, cit., (inspirado na ideia central de Pietro
Costa, Iurisdictio […], cit.).
54 Cf. Regimen […], pt. 1, p. 469, ns. 41 e 42.
35
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
muito mais gerais e fundamentais: eles estão a falar do poder de uns sobre os
outros e das modalidades do seu exercício.
2.1 A ideia de jurisdição.
§ 58. Para Bártolo - que continua a valer, no ius commune tardio, como texto
de referência - o sentido genérico de jurisdição era – como sugeria a própria palavra
(dictio iuris) – o “poder introduzido pela autoridade pública, que compreende a
faculdade de dizer o direito e de estatuir a equidade 55 56. Desde a obra clássica de
Pietro Costa, Iurisdictio: Semantica del potere politico nella pubblicistica medievale (1100 –
1433), de 1969, que se vem salientando que a palavra jurisdição (iurisdictio) exprimia
aquilo que era considerado como o núcleo da função política: julgar e ser julgado.
Pois o ato de julgar comportava, não apenas o momento decisiva da determinação
do direito de cada um, mas ainda a obrigatoriedade de as partes obedecerem àquilo
que o juiz declarasse acerca daquela situação jurídica. No ato de julgar, o direito – a
formalização da ordem política - era declarado e feito cumprir. Por isso é que a
instituição da jurisdição era um ato supremo da comunidade política, pelo qual ela
atribuía a alguém a função de realizar a ordem, fazendo leis, punindo os
contraventores, mas sobretudo, determinando qual era o equilíbrio estabelecido
pela república para cada caso concreto.
§ 59. A identificação da função de julgar como o momento nuclear em que o
poder político se exerce teve o condão de evidenciar a dispersão dos polos de
poder na sociedade europeia pré-contemporânea e, consequentemente, o
artificialismo de um modelo centralizado do poder, como aquele que foi
introduzido pela teoria política estadualista do séc. XIX, mas que não era o da
teoria política e jurídica desses dias57. Por outro lado, tem-se salientado que este
momento de determinação periférica e contextualizada da ordem não pode ser tido
como um assunto meramente privado, que apenas disciplina as relações entre as
partes do litígio, pois este é decidido segundo critérios que são tidos como
“públicos”, ou seja, fixados pela comunidade, para além de que a solução
encontrada se incorpora no direito e serve de padrão para outras decisões. Esta
perspetiva da centralidade do momento jurisdicional promoveu, a partir da década
de 197058, uma profunda revisão da história política e institucional da Europa
& equitatem statuendae … Et dicitur iurisdictio a iuris, & dictio, quod est potestas […] sic dicitur
iurisdictio quasi iuris potestas”, ibid. a.
57 Sobretudo no Sul da Europa, a teoria política dominante não foi até meados do séc. XVIII
(pelo menos) o “estadualismo” de Jean Bodin e dos “políticos” (a maior parte deles, com as suas obras
no Index librorum prohibitorum), mas o “corporativismo” da política católica – de autores como o Cardeal
Belarmino (1542-1621) e Francisco Suarez (1548-1617), vulgarizados pelos grandes jus-enciclopedistas
dos finais do séc. XVI (v.g. Domenico Toschi) -, insistindo na natureza compósita dos corpos políticos
e, por isso, no caráter limitado dos poderes do Estado (do príncipe).
58 Cf. Lauren Benton and Richard J. Ross (eds.), Legal Pluralism and Empires, 1500-1850, New
York, NYU Press, 2013: “The study of jurisdictional politics does not depend on a general definition of
‘law.’ Nor does it require distinctions between ’state‘ and ’non state‘ law. The jurisdictional claims of a
36
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
moderna, constituindo (mas uns quarenta anos depois) uma das propostas fortes
para a renovação da história colonial norte-americana.
§ 60. A definição de jurisdição que ocorre nas fontes de direito comum diz
respeito a este âmbito muito inclusivo de governo da cidade e corresponde ao que
acaba de se dizer: “a jurisdição é o poder público de conhecer causas e de as julgar,
que não existe com base no consentimento dos particulares, mas apenas daquele
que tem autoridade púbica, seja ele o príncipe, ou o povo”59. Por vezes, este poder
esgota-se numa ordem, pura e simples, como que alheia ao direito, como no caso
de o poder de reprimir os homens maus (prima gladii potestas contra facinorosos homines),
da competência exclusiva de quem não responde senão perante o povo; outras
vezes, assume a forma de uma declaração genérica do direito, como quando se
fazem leis (potestas statutaria vel legislativa); mais frequentemente, exprime-se num
julgamento em que, a pedido das partes, o juiz declara qual é o direito naquele caso.
Aqui, confluem o interesse público na certificação jurídica da situação e os
interesses privados contrapostos das partes. O juiz satisfazia um e outros, ou
desempenhando o seu officium nobile, ao promover oficiosamente os atos necessários
à satisfação do interesse público, ou correspondendo aos pedidos das partes no
âmbito do seu officium mercenarium de satisfazer os interesses destas (§ 548). Seja
como for, qualquer ato de jurisdição implicava algum poder de dar ordens ou de
constranger, quanto mais não fosse a autoridade mínima (modica coertio) que faz com
que os atos judiciais sejam reconhecidos e obedecidos pelas partes. Daí que, se
podia haver ordens que não estavam precedidas de uma averiguação jurídica (merum
imperium), não podia, em contrapartida, haver atos judiciais sem que o magistrado
não tivesse algum poder de mandar (imperium qui inest iurisdictioni)60.
2.2 Espécies e graus.
§ 61. Esta relação entre iurisdictio e imperium foi uma matéria muito trabalhada
pelos primeiros glosadores, a propósito da “árvore das jurisdições” (arbor
iurisdictionum), gravura muito frequente nos comentários ao título 2.1. De iurisdictione,
do Digesto, que continha os textos sobre a jurisdição e sobre o império nos quais
se baseia a dogmática do ius commune sobre este tema61. Bártolo refere-se a estas
classificações e graduações da jurisdição na sequência do seu comentário a texto.
§ 62. Segundo ele, império62 era a jurisdição que se exercia através do “ofício
wide range of authorities, from a guild or merchant ship captain to a conquistador or trading company,
can be analysed without they being defined neatly as public or private” (p. 6).
59 “Jurisdictio est publica de causis cognoscendi, et judicandi potestas, quae non privatorum
consensu datur, sed eo tantum, qui habet publicam auctoritatem, sive sit princeps, sive populus”,
Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 12.
60 Sobre este assunto, bem como sobre os temas tratados nos capítulos seguintes, v. António
Manuel Hespanha, “Justiça e administração […]”, cit., maxime, ps. 151 ss..
61 D.2.1.1, Ulpianus libro primo regularum: “Ius dicentis officium latissimum est: nam et bonorum
possessionem dare potest et in possessionem mittere, pupillis non habentibus tutores constituere,
iudices litigantibus dare; D.2.1.3, Ulpianus libro secundo de officio questoris: Imperium aut merum aut mixtum
est. Merum est imperium habere gladii potestatem ad animadvertendum facinorosos homines, quod
etiam potestas appellatur. Mixtum est imperium, cui etiam iurisdictio inest, quod in danda bonorum
possessione consistit. Iurisdictio est etiam iudicis dandi licentia”.
62 “Imperium, est iurisdictio, quae officio iudiciis nobili exercetur, et ponitur in deffinitione
iurisdictione pro genere, & verba officium nobili, ponuntur ad differentiam iurisdictionis simplicis,
quae exercetur officio iudicis mercenario … Et dicitur imperium, quia ex imperio, authoritate iudicis
procedit, et non ex aliquo iure, quod resideat apud partem” (ibid. b).
37
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
63 Alguns autores contavam apenas quatro graus, juntando o maius ao magnum e o minus ao parvum.
Et dicitur mixtum, quasi ex diversis constitutum, scilicet ex império & iurisdictione … Imperio partem,
eo quod officio iudicis nobili expeditur. Capit autem a iurisdictione partem, quia privatam utilitatem
respicit., Et nota quod illud dicitur mixtum, quod participat de duobus”, ibid. k.
66 O império diz respeito à utilidade pública e exerce-se pelo ofício nobre do juiz, que ele
desempenha oficiosamente (ou por acusação). A jurisdição (dizer o direito numa causa concreta) diz
respeito à utilidade dos particulares e exerce-se pelo ofício mercenário do juiz), ibid. 1, 2, 1 (de iur. omn.
iud.); 1, 3, 5: Os atos de mero império provêm apenas da autoridade do juiz, sem que haja qualquer
autoridade das partes para os exigir.
67 Ibid. l. q..
38
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
69 Ibid. r.
70 Ibid. s.
71 O texto de Bártolo também avisa que certos poderes podiam caber em dois graus diferentes,
conforme a perspetiva em que fossem encarados. Assim, a tortura podia ser pena, e então, pertencia
ao mero império; mas se servisse como meio de obter uma prova, já pertencia à jurisdição. A mesma
ambiguidade existia com a prisão, com a modica coertio e com a excomunhão, ibid. z.
72 Cf. Jesus Vallejo, “Power hierarchies …”, cit..
73 “In iurisdictione pelago nemo versatus est, qui naufragium non fecerit” (Domingos Antunes
39
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
74 Domingos A. Portugal avisa, cautamente, que, naquele mar imenso, só vai tratar da matéria da
jurisdição que se relaciona com as doações régias (Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 1).
Sobre doações régias de jurisdições e direitos reais, cap. 6.9.2.1.2. Exemplo de uso em matéria de
interpretação de doações: concedido o castelo, com a sua jurisdição, entende-se concedido o mero e
misto império (Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 13). Outras
regras de interpretação – restritivas dos poderes doados - decorriam sobretudo do direito pátrio,
nomeadamente da legislação quatrocentista. V.g.: só vêm nas doações aquelas coisas que são
explicitamente referidas (Ord. fil.2, 45, 7; 12, 14 e 156); a doação de jurisdições, como exorbitante do
direito comum, é de restringir e não de ampliar, Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […],
cit., liv. 3, cap. 44, n. 4; doado o castelo. não se entende doada a jurisdição, pois são coisas separadas,
ibid. ns. 5-8; a jurisdição não se adquire por prescrição, nem sequer imemorial, ibid. n. 17; a concessão
de jurisdições sempre se entende ser feita cumulativamente, ibid. n. 33). Note-se que a exigência de um
ato público (cláusula expressa em doação régia) para que uma jurisdição se transfira é consistente com a
definição publicística de jurisdição (de publico introducta), sempre presente na dogmática do direito
comum.
75 Cf. António Manuel Hespanha, “Représentation dogmatique …”, cit.; com objeções, Jesus
“Imperium”, na Pauly-Wissowa, Realencyclopädie der Classischen Altertumswissenschaft […], cit., vol. 9.2; de
onde basicamente recolhi o que se diz no texto.
40
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
modificar para melhor a realizar nos casos concretos. Mas dispunham também de
imperium para dar ordens que forçassem as partes a criar condições novas de
aplicação do direito. Ou seja, imperium parece evocar o exercício de um poder que
não está condicionado por uma constituição (pelo direito, como constituição), ou
porque não há constituição77 ou porque ela está a ser estabelecida justamente pela
vontade do magistrado imperial. Nas “cidades” (ou reinos), que correspondiam a
comunidades naturais, isso apenas aconteceria na sua fase primordial ou
constituinte (v. cap. 2.4.1.1); em momentos ulteriores, o governo consistia em
declarar e cumprir esse direito imanente à vida coletiva, tendo, por isso, um caráter
jurisdicional. Nas unidades políticas “artificiais”, agregados de múltiplas e diversas
comunidades naturais, essa constituição imanente não existia e, por isso, o governo
tinha que provir de ordens de quem tinha o poder de comandar. Isto acontecia,
tipicamente na guerra e nos períodos que se seguiam à conquista, em que a ordem
do vencedor e do conquistador eram o produto da vontade de um magistrado com
poderes imperiais (imperator, proconsul).
§ 72. Concluindo, imperium conotava inorganicidade ou heterogeneidade
constitucional da unidade política, arbitrariedade do mando, voluntarismo do
poder, disponibilidade dos laços políticos, predomínio da oportunidade. Embora
este poder imperial superior experimentasse também as dificuldades que decorriam
de, no interior do “império”, existirem comunidades organizadas cuja autonomia e
autorregulação era prudente respeitar, por razões de oportunidade e de economia
de poder. Era isto que acontecia nas províncias do império romano, em que a s
comunidades de colonos se organizavam naturalmente em cidades (constituídas à
semelhança de Roma) e em nações estrangeiras reconhecidas pelo poder romano
(nationes foederatae), que apenas caía sem limitações sobre os elementos políticos
inabsorvíveis (hostes). De qualquer modo, visto do ponto de vista do seu topo, o
poder era imperial.
§ 73. Esta era a situação nos impérios compósitos da idade moderna. O
império era constituído por “conquistas”, cuja identidade política não era pura e
simplesmente ignorada ou apagada, mas cujo reconhecimento era juridicamente
livre, apenas obedecendo às possibilidades da conjuntura. E nele existiam também
comunidades de colonos que, pelo convívio, naturalmente se constituíam em
réplicas das comunidades naturais da metrópole.
§ 74. Esta é também a lógica político-institucional do “império” português.
Nos meados do séc. XVII, o jurista e conselheiro do rei João Pinto Ribeiro
sublinhava esta estrutura compósita das conquistas portuguesas: "Vencidos [os reis
do Oriente], não os despojavam dos reinos e senhorios que possuíam. Ou os
deixavam neles com toda a majestade real, impondo-lhes algum tributo, por razão
da guerra, ou restituíam o reino a algum rei amigo a que injustamente estava
usurpado. Mostraram os nossos capitães o ânimo livre e desinteressado com que
procediam nas terras descobertas ou vencidas. A nenhuma mudaram seu antigo
nome, a nenhuma o deram de uma cidade ou província de Portugal [...]. Nunca os
sereníssimos reis de Portugal se intitularam de alguma província sujeita, se não foi a
da Guiné e do senhorio do comércio”78. Isto fazia com que o poder imperial do rei
77Como na guerra; e, por isso, o imperium é a autoridade típica dos magistrados militares.
78“Desengano ao parecer enganoso que deu a El-Rey de Castella Filipe IV certo ministro contra
Portugal”, 1645 (cit., António Vasconcelos de Saldanha, Vincere reges et facere […], cit., 184)..
41
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
tivesse que se acomodar com aqueles outros que a oportunidade tinha levado a
reconhecer.
§ 75. Esta pluralidade de prerrogativas políticas (iurisdictiones) reivindicada
pelos reis de Portugal79 (mas também de Espanha80) estava expressa no seu longo
título, que enumerava uma série de referencias políticas heterogéneas, cada qual
remetendo para diferentes direitos sobre diferentes comunidades ou diferentes
territórios. Por vezes estas referências remetiam para modelos conhecidos e de
conteúdos precisos (por exemplo, “rei”), por vezes para uma situação genérica e
vaga de senhorio (“Senhor da Guiné”), por vezes para um domínio impreciso
(“Senhor da conquista, da navegação e do comércio”) sobre territórios bastante
indeterminados (“Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”). No fim, a partícula “etc.”
permitia cobrir outras virtuais reivindicações políticas 81.
§ 76. Em todo o caso, o reconhecimento desta multiplicidade de poderes não
tirava ao poder do rei de Portugal o seu caráter imperial, permitindo-lhe adequar o
governo à frequentemente referida “mobilidade” das coisas do ultramar. Por isso,
as magistraturas delegadas (v. cap. 2.3) ou extraordinárias eram mais frequentes e
mais centrais no governo do império. As atribuições e competências eram mais
casuísticas e conjunturais. Os princípios gerais mais frequentemente substituídos
por normas pragmáticas (“pragmáticas”, leis orientadas para objetivos práticos,
ligados às necessidades da ação política). O julgamento (iudicium), como processo
ponderado e argumentado de decisão (v. cap. 7.1.5), capitulava mais
frequentemente perante o alvitre. O governo comissarial consistia numa atividade
mais levemente regulada, sobretudo dependente da mobilidade das situações. A
política ganhava por isso tonalidades maquiavélicas, de exploração das conjunturas
e de aproveitamento de uma vasta gama de relações e de oportunidades políticas.
Mas, paradoxalmente, esta atomização do modelo de decisão, em vez de constituir
um fator de generalização e de homogeneização da política, ainda multiplicava o
casuísmo e a contextualização do governo.
§ 77. Por outro lado, o caráter artificial desta composição que era o império
tornava necessária uma política de promoção da unidade, de que o projeto da
“União de Armas” contido no Grande Memorial (1624) do Conde Duque de Olivares
é um exemplo extremo (e, por isso, fracassado) 82. Eram mobilizadas categorias
79 “Pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África,
Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.”.
Sobre a titulação dos reis de Portugal, António Vasconcelos de Saldanha, Vincere reges et facere […], cit.,
178, 288 ss..
80 “Pela Graça de Deus, Rei de Castela, de Leão, de Aragão, das Duas Sicílias, de Jerusalém, [de
Nas doações régias, concediam-se terras com “todas as suas entradas e saídas”, significando direitos
potenciais sobre espaços vizinhos.
82 “Tenga V. Majd. Por el negocio más importante de su Monarquía el hacerse rey de España;
quiero decir, señor, que no se contente V. Majd con ser rey de Portugal, de Aragón, de Valencia,
conde de Barcelona, sino que trabaje y piense con consejo maduro y secreto por reducir estos reinos de
42
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que se compone España al estilo y leyes de Castilla, sin ninguna diferencia […]”, John H. Elliott and
José F. de la Peña, Memoriales y cartas del Conde Duque de Olivares […], cit., 1, pg. 96.
83 Mesmo aqui, é importante descontar alguns mitos do alegado centralismo gregoriano; v.
However, on the myths of ecclesiastical Gregorian centralism, Leandro Duarte Lust, Colunas de São
Pedro […], cit.; Amedeo de Vincentiis, “La sopravvivenza come potere […]”, cit..
84 Se um magistrado cometia a realização de atos jurisdicionais a um não magistrado, falava-se em
86 Cf. Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 14. Parece que a
delegação especialíssima de poderes destes não estava totalmente excluída, embora apenas naqueles
casos em que existisse um fortíssimo laço de confiança pública no magistrado delegado. Em Roma,
certos poderes imperiais foram concedidos especialmente a certos magistrados, de muita confiança
politica, como o prefeito do pretório e da cidade, os procônsules e os pretores (governadores) das
províncias, de tal modo que o império não lhes competia por causa da jurisdição do seu ofício, mas por
uma especial concessão, Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 15.
Esta será a fonte inspiradora da delegação de poderes dos vice-reis e, em menor grau, dos
governadores de províncias.
43
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
também o mero império não era delegável, apenas competindo aos magistrados
ordinários, ou seja, a quem a república tivesse entregado diretamente essas
atribuições por lei (originariamente, na época romana mais antiga, a lex de imperio,
mais tarde as leis ordinárias, por fim, as leis reais); por isso, atribuições como o
julgamento de causas criminais ou o exercício de atos de mando no decurso dos
processos87 não podiam ser exercidas por juízes delegados. Como a delegação era
um ato pessoal, fundado na confiança entre delegante e delegado, ela não podia ser
estendida por subdelegação (subdelegatio iurisdictionis), nem por extensão a outros atos
ou situações por acordo das partes (prorrogatio iurisdictionis). Do mesmo modo que se
extinguia pela morte ou substituição no cargo do delegante. Enfim, a jurisdição
delegada era uma forma pontual e precária de conferir poder, por oposição aos
poderes conferidos estável e genericamente aos magistrados ordinários.
§ 81. O rigor desta separação entre jurisdição ordinária e delegada atenua-se
muito com o impacto dos poderes imperial e real sobre a doutrina do direito.
Desde os primeiros glosadores que se afirmava, por um lado, que o delegado do
príncipe podia subdelegar, o que já permitia a expansão (ramificação) da jurisdição
delegada. Por outro lado, também cedo se começou a defender que a lei do príncipe
podia ser tida como fonte de jurisdição ordinária. Isto permitia que a lei régia
criasse magistraturas ordinárias, dotadas de jurisdição ordinária 88. Era isto que
explicava que o senhor das terras, a quem, nos termos da lei, fossem concedidas
jurisdições, fosse juiz ordinário, podendo delegar as suas atribuições (num ouvidor).
Também lhes podia ser concedido o poder de castigar os crimes (coercitio delictorum)
pois esse poder coercivo fazia parte da jurisdição (mixtum imperium)89 e esta era
concedível, embora apenas por doação expressa 90.
§ 82. Uma advertência final sobre a relevância deste quadro dogmático na
expansão das estruturas administrativas das épocas medieval e moderna. A ideia de
que a jurisdição era um poder de governo estabelecido pela comunidade e atribuído
a magistrados ordinários fazia com que a máquina político-administrativa estivesse
firmemente ancorada na tradição. As magistraturas eram as que eram e os seus
poderes também. A extensão deste aparelho apenas podia ocorrer, precária e
pontualmente, por meio da delegação, com todas as limitações que esta tinha. O
reconhecimento da lei do rei como uma nova fonte de legitimidade das jurisdições
e magistraturas, bem como o reconhecimento de que os delegados do rei são
magistrados ordinários, pelo menos para o efeito de poderem subdelegar, rompem
estas barreiras e vão permitir que, ao lado da anquilosada estrutura política
tradicional, surja uma nova estrutura, que pode crescer e crescer rapidamente (Cf.
adiante § 544.)91.
44
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
92 Síntese sobre a distinção no direito romano: Max Kaser, “’Ius publicum’ und ‘Ius privatum’”,
cit.. Sobre a tradição da distinção na tradição romanística: Francesco Calasso, “Ius publicum e ius
privatum nel diritto comune classico”, cit.; G. Chévrier, “Les critères de la distinction du droit privé et
du droit public dans la pensée savante médiévale”, cit.; Dieter Wyduckel, Ius publicum […], cit.; Paolo
Cappelinni, “Privato e pubblico [diritto intermedio]”, cit.; J. W. F. Allison, A Historical and
Comparative Perspective on English Public Law […], cit.; Gérard Giordanengo, “De l'usage du droit privé et
du droit public au Moyen Âge” […], cit.; Italo Birocchi, “La distinzione, ‘ius publicum/ius privatum’ nella
dottrina della scuola culta […]”, cit.; Gabor Hamza, “The classification into branches of modern legal
systems and roman law traditions”, cit.; Aloys Winterling, Politics and Society in Imperial Rome […], cit.;
Juan Manuel Blanch Nougués & Carmen Palomo Pinel, “Ius publicum y ius privatum en la experiencia
histórica del derecho. Un ejemplo insólito en las distinciones de Bártolo expuestas a través de
esquemas”, em Revista General de Derecho Romano, 18(2012).
93 Prefiro uma tradução muito ao pé da letra, para evitar a atração para formulações que
favoreçam a assimilação com os conceitos de hoje.
94 Cf. I.1, 21: “defensores civitatum (una cum eiusdem civitatis religiosissimo antistite vel apud alias
45
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 86. Este âmbito do significado de público fazia com que a distinção entre
direito público e direito privado contida nos dois textos referidos não fosse tão
clara como mais tarde pareceu ser à doutrina oitocentista do direito público. As
dificuldades de uma distinção substancial e cortante começavam pela ambiguidade
da palavra positiones, um termo usado na teoria retórica com um sentido técnico, que
parece remeter mais para uma atitude, um ponto de vista, uma perspetiva, um
aspeto, uma matéria de estudo (Huius studi […]) do que para uma distinção
substancial entre duas partes do direito. Depois, a claridade da distinção sofreu com
as incertezas do conteúdo de cada uma das categorias. O texto do Digesto
enumerava as questões que integrariam o direito público: coisas sagradas,
sacerdotes e magistrados. Mas o certo é que outros textos do Digesto indicavam
como sendo de direito público matérias que não diziam respeito nem às coisas
sagradas, nem aos sacerdotes, nem aos magistrados; como o testamento 95, as
tutelas96, os dotes97, as coisas afetas ao uso de todos os cidadãos98, as ações
criminais99, bem como todas aquelas normas jurídicas que não podiam ser
modificadas por pactos entre privados100.
§ 87. Em suma, os juristas romanos parece que não tinham construído um
conceito de direito público como um direito regendo as especiais relações entre a
república e os cidadãos, regulado por princípios sistemicamente opostos aos que
regulavam as relações entre cidadãos101. Nem tinham também desenvolvido
conceitos e figuras próprias e específicas desta parte do direito. A sua construção
dogmática alicerçava-se em figuras que hoje designaríamos de direito privado. As
questões que hoje chamaríamos de direito público - como a propriedade pública, os
poderes dos magistrados e as suas limitações, o direito ligado à religião, o
tratamento jurídico específico do interesse público – não ocupavam os juristas,
porque pareciam mais relacionadas com a mutável oportunidade em situações
concretas do que com princípios jurídicos permanentes 102, desses que derivariam da
natureza das coisas. Daí, talvez, que o texto citado de Ulpiano só em relação ao
direito privado afirme que ele pode ser colhido de preceitos de direito natural 103.
§ 88. O Digesto, ao recolher a doutrina jurídica anterior, assumia essa mesma
95 Cf. D. 28, 1, 3.
96 Cf. I, 1, 25: “nam et tutelam et curam placuit publicum munus esse”.
97 Que os tornavam inalienáveis, mesmo com o consentimento da mulher (C.5, 13 De rei uxoriae
est, si rem sacram aut religiosam, quam humani iuris esse credebat, vel publicam, quae usibus populi
perpetuo exposita sit […] dari quis stipuletur […] sed protinus inutilis est”).
99 Cf. I, 4, 18: “Publica iudicia neque per actiones ordinantur nec omnino quidquam simile habent
ceteris iudiciis de quibus locuti sumus, magnaque diversitas est eorum et in instituendis et in exercendis.
1. Publica autem dicta sunt, quod cuivis ex populo exsecutio eorum plerumque datur”.
100 Cf. D.50, 17, 45, 1.
102 Cícero justifica desta forma o facto de Quintus Mucius Sacevola se recusar a dar pareceres
sobre questões de direito público (Cicero, Pro Balbo, 19, 45), citado por J. W. F. Allison, A Continental
Distinction in the Common Law: A Historical and Comparative[…], pg. 110.
103 D.1, 1, 1, 2: “[…] Privatum ius tripertitum est: collectum etenim est ex naturalibus praeceptis
46
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
desvalorização do “direito público”, que nele não ocupa uma posição relevante 104.
Em contrapartida, no Código – e, sobretudo, nos seus últimos três livros (livros 10,
11, 12) ou, na designação medieval, Tres libri –, é que se iriam concentrar os temas
que, no futuro, constituirão o direito público. Os glosadores mantiveram esta ideia
de indistinção substancial entre direito público e privado, explicando a ocorrência
da oposição público-privado nos textos apenas como uma questão de método de
ensino, relacionada justamente com o facto de, na codificação justinianeia, as
matérias de direito público e de direito privado terem sedes diferentes
(respetivamente, os Tres libri e o Digesto)105. Embora Bártolo e Paulo de Castro
tivessem sugerido uma distinção categorial e mutuamente exclusiva entre as duas
partes do direito, como mundos dogmáticos distintos, dominados por interesses
contrapostos – o público e o privado -, isto não foi seguido pelos juristas que
escreveram depois. Baldo é típico nesta prudência em distinguir de forma nítida o
direito privado do público com recurso ao critério dos interesses prosseguidos por
um ou pelo outro. Na distinção, tudo seria apenas uma questão de grau: “illud est
publicum quod continet publicum bonum principaliter et per prius” 106. Também na
hierarquização dos interesses a ponderar, a utilidade principal (utilitas principalis), que
devia ser atendida, nem sempre era a pública, decorrendo a decisão sobre qual ela
fosse das circunstâncias do caso 107. Em contrapartida, a qualidade pública de uma
das partes da relação jurídica não era invocada como critério distintivo, pelo menos
principal.
§ 89. A noção de ius publicum funciona então como um tópico que pode servir
para justificar um feixe diverso de soluções jurídicas. Serve, por exemplo:
§ 90. (i) para justificar uma especial (mas não exclusiva nem mesmo decisiva)
relevância do interesse da comunidade, que justificaria a derrogação de algum
princípio de direito ou a ineficácia da vontade de particulares (por exemplo, de se
escusarem de serem tutores, v. cap. 3.3.2.1); v.g. suspendendo a eficácia da vontade
das partes em certas circunstâncias em que se manifestava um especial interesse de
todos.
§ 91. (ii) para justificar a inapropriabilidade por particulares de certas coisas
relacionadas com interesses comuns (v. cap. 4.2.2);
§ 92. (iii) para justificar as atribuições dos magistrados, nomeadamente
daquelas que eles exercem oficiosamente, sem carecer de um pedido das partes
(potestas a publico introducta […]); v.g. legitimando a coerção penal (“gladii
potestats ad animadvertendum facinorosos homines”), a imposição fiscal (“ius
fiscale dicitur ius publicum”, Cujacius) (v. cap. 2.2).
§ 93. Ou seja, perante certas questões cuja solução não era consistente com
os princípios do direito comum – os tais que decorriam do direito natural ou das
gentes ou do sistema do direito civil comum –, a invocação da utilidade pública, do
104 Cf. J. W. F. Allison, A Continental Distinction in the Common Law: A Historical and Comparative […],
Boa síntese da doutrina medieval sobre o tema em Gérard Giordanengo, “De l'usage du droit privé et
du droit public au Moyen Âge”, cit., pg. 3 ss..
107 Cf. Gérard Giordanengo, “De l'usage du droit privé et du droit public au Moyen Âge”, cit., 3.
47
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
108 O direito público não cabe, por exemplo, na sistematização tripartida das matérias jurídicas
111 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114, n. 15 (“Tunc versatur ius publicum quemquam
48
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
113 “Ius vel est publicum, vel privatum, vel mixtum. Publicum est quod directe pertinet ad statum
regni, vel respublicae; privatum est quod pertinat ad statum privatum uniuscusque; mixtum utrumque
includit, v.g. omnis quaestio criminalis habet ius mixtum, nempe publicum ex parte judicis punientis,
privatum ex parte partis damnum particulare subeuntis”, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114,
ns. 8 a 12.
114 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Ius”, n. 3 (“Ius publicum non
derogatur pacto aliquorum privatorum, cum ad utilitatem communem expectet [...]”.
115 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Ius”, n. 5 (“Iuri suo privato, & suae
actioni, et exceptioni, & legum auxilio potest quicumque regulariter renunciare, cum id faciat sine
incommodo alterius, vel iuris publici”).
116 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], cit..
117 Sobre a literatura francesa contemporânea, cf. Italo Birocchi, “La distinzione, ‘ius publicum/ius
Discursus de Primis Juris Publici Principiis: Occasione Hujus Studij Duae Sunt Positiones, 1711; Ignaz Schwartz,
Institutiones iuris publici universalis naturae et gentium, 1760.
119 Estatutos, 2, 6, 2, 4, pg. 454.
120 “Como o Direito Público ocupa o primeiro lugar na cidade também deve ser tratado em
primeiro lugar”, Prefácio aos estudantes; “Todo o direito e público, ou particular […] Ocupar-nos-
emos de um e outro, mas cumpre tratar primeiro do público que é sem dúvida a espécie mais nobre e
excelente do direito” (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 1, 1, 1); “O direito público
respeita à sociedade em geral, e determina os direitos dos Imperantes e dos cidadãos. O supremo
direito, no qual naturalmente se contem todos os mais, pertence ao Imperante, e por ele pode e deve
proteger a Nação e realizar todos os atos, sem os quais não se podem obter convenientemente a
segurança interna e externa dos cidadãos e a salvação do povo, que é a suprema lei” ( Institutiones iuris
civilis […], cit., 1, 1, 2).
49
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
121 Objeto de ensino separado, logo no início do ensino de direito pátrio (Ms. 1824, 1988 e 1989
da Livraria do ANTT: "Systema de Direito Público de Portugal Feiro pelo D.or José Joaq. Vieira
Godinho, lente na Cadeira de Direito Pátrio na Univcrsidade de Coimbra, D.or na, Faculdadcs de
Cânones e Leis: Collegial do Real Colleção de S. Pedro na mesma Universdadc. etc. Escripta por seu
discípulo José Alvares da Fonseca e Costa no anno de 1777 e corregida no de 1778").
122 Citado por F. Calasso, Medioevo dei diritto, cit., 501.
50
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
suas normas jurídicas próprias (iura propria, statuta) era geralmente atribuída a
qualquer comunidade humana com identidade territorial própria, desde a aldeia ao
reino (aldeias123, cidades124, comarcas125, províncias126). No espaço de um reino, esta
generosa atribuição de prerrogativas políticas colocava a questão de compatibilizar
a jurisdição dos corpos territoriais inferiores com a jurisdição real.
§ 103. Francisco Suarez no seu tratado sobre as leis127 aborda esta
compatibilização distinguindo dois tipos de comunidades, as perfeitas, que se bastavam
a si mesmas128, e as imperfeitas, que necessitavam do concurso de outras para o
desempenho das suas funções sociais. Só as primeiras disporiam de um poder
legislativo ilimitado (pleno). Quanto às segundas, o princípio geral era o de que
todas as comunidades territoriais “cidades” teriam capacidade de legislar (i.e. de
editar estatutos), desde que proporcionada ao âmbito da sua jurisdição (ou seja,
relativamente aos seus vizinhos, às coisas situadas no seu território, aos atos aí
praticados, aos crimes aí cometidos) e que respeitasse as competências legislativas
reservadas ao príncipe129. De qualquer modo, prossegue Suarez - agora em
polémica com a posição de Baldo antes citada no sentido da existência de uma
jurisdição natural em todos as comunidades territoriais -, os estatutos das cidades
que tenham reconhecido um superior e para ele tenham trespassado o seu poder
político originário necessitavam de aprovação do príncipe; aprovação que podia ser
123 Pagus ou villa era a povoação onde não havia nem governo nem tribunal próprio, ou seja, o
agregado desprovido de autonomia jurisdicional. Quanto muito, podia existir algum magistrado ou
oficial, com poderes delegados pelos magistrados da circunscrição político-administrativa em que se
inserisse. Em Portugal, aldeias eram os “casais”, “lugares” ou, mesmo, as freguesias (que apenas
tinham organização político-administrativa eclesiástica). No entanto, as Ordenações (Ord. fil.1, 65, 73/4)
previam a existência de juízes vintaneiros ou pedâneos, delegados dos juízes ordinários do concelho,
em aldeias maiores, com atribuições judiciais sobre causas de pouco valor.
124 As cidades eram as circunscrições com autonomia de governo. O direito conhecia uma
gradação entre elas, consoante o âmbito dessa autonomia (cf. António Manuel Hespanha, As vésperas
[…], ed. de 1986, cit., II.3). Na época moderna, o título de cidade era atribuído apenas a certos
aglomerados urbanos dotados de certa grandeza, definida por diversos critérios, dos quais se destacava
o ser sede de bispado (cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ed. de 1986, II.3). Em
termos mais gerais, porém, cidade era qualquer povoação com jurisdição separada, ou seja, com
autonomia de governo e de jurisdição; a que correspondia, no plano institucional, um órgão de governo
coletivo (em Portugal, uma câmara e juízes). Logo, o que a doutrina jurídica dizia, em geral, para as
civitates aplica-se, entre nós, aos concelhos (oppida, ou terras “com jurisdição separada”).
125 A comarca correspondia ao âmbito territorial da jurisdição de um corregedor (“correição”).
Rigorosamente, não compreendia as terras isentas de correição. Mas, na linguagem vulgar, a palavra
correição designava um território contínuo encabeçado pelo cabeça de correição (cujos limites
coincidiam com os da provedoria respetiva), ainda que dentro dele existissem terras senhoriais isentas
(António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ed. de 1986, II.3). Por extensão, também acontecia
chamar-se comarca às ouvidorias senhoriais.
126 A “província” era, em geral, a circunscrição atribuída à jurisdição de um magistrado. Em todo
o caso, o termo aplicava-se também a uma circunscrição com uma identidade apenas “natural”,
proveniente das características do ambiente físico e do temperamento das suas gentes. Em Portugal, as
províncias (Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e Algarve) não
tinham expressão institucional, salvo, a partir dos meados do séc. XVII, no domínio militar
(governadores [de armas] das províncias). Cf. sobre o conceito de província, António Manuel
Hespanha, As vésperas […], ed. de 1986, cit., II.3, sobre a sua identidade corográfica, Ana Cristina
Nogueira da Silva e A. M. Hespanha, “O quadro espacial” […], cit...
127 Tractatus de legibus […], cit..
Génova, etc.) que não reconheciam superior (qui superiorem non recognoscunt).
129 Cf. Suarez, Tractatus de legibus […], cit., III, c. 9, n. 17.
51
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
conferida caso a caso, por lei geral ou pelo uso e costume longamente praticados.
Como se vê, Suarez, contemporâneo das grandes monarquias da Época Moderna,
não pode já aceitar uma doutrina tão generosamente pluralista e descentralizadora
como a de Baldo; daí que exclua dos poderes de estatuição das comunidades as
matérias reservadas ao príncipe (regalia). Mas, sobretudo, que exija o acordo deste
para conferir validade aos estatutos locais. Em todo o caso, como se contenta com
um acordo tácito, indiciado por um uso longo e inveterado dos estatutos sem
oposição do príncipe, isto equivale a admitir que este tem que respeitar o direito
longamente usado nas comunidades locais, ou seja, a sua organização, os seus
costumes, os seus estatutos (v. cap. 2.5.6) 130.
2.4.1.2 Posturas, costumes locais e lei
§ 104. Em Portugal, todas estas questões foram tratadas pelos juristas. Porque,
apesar de não se conhecerem, aqui, pretensões de autonomia absoluta das cidades
(dos concelhos) em relação à coroa, o que é certo é que não eram raros os conflitos
em torno das prerrogativas da coroa e dos seus magistrados (nomeadamente, dos
corregedores) quanto aos ordenamentos jurídicos locais (posturas, costumes).
§ 105. Quanto à capacidade estatutária das cidades, a questão estava resolvida
nas próprias Ordenações. Na verdade, o tit. 1,66, pr. dispunha que competia aos
vereadores (à câmara) ter o “carrego de todo o regimento da terra [...], porque a
terra e os moradores dela possam bem viver”, especificando depois (§ 28 ss.) que
“proverão as posturas, vereações e costumes antigos da cidade, ou villa; e as que
virem são boas, segundo o tempo, façam-as guardar, e as outras emendar. E façam
de novo as que cumprir ao prol e bom regimento da terra”. Claro que se podia pôr
a questão (doutrinal) de saber se este poder estatutário era originário ou dependente
de concessão régia. Mas, fosse como fosse, ele estava estabelecido na lei, impondo-
se aos oficiais régios. De facto, as Ordenações também dispunham que “as posturas, e
vereações, que assim forem feitas [i. e. com audição da câmara, segundo um
processo estabelecido no § 28], o corregedor da comarca não lhas poderá revogar,
nem outro oficial ou desembargador nosso, antes as façam cumprir e guardar” (§
29). O rei, esse sim, poderia alterá-las se as julgasse inconvenientes, como podia
alterar a lei; por isso se determinava que os corregedores, no caso de depararem
com algumas posturas, “prejudiciaes ao povo e bem comum” dessem disso conta
ao rei, presumindo-se que ele escreveria à câmara insinuando a revogação delas, ou
mesmo que as revogaria ele próprio. O rei proveria pelo Desembargo do Paço, o
seu tribunal “de Graça”.
§ 106. Apesar deste reconhecimento da capacidade estatutária dos concelhos,
o direito continha certas regras limitativas. Por um lado, as posturas não poderiam
contemplar matérias cuja regulamentação estava reservada ao rei (regalia), como a
criação de monopólios (estancos) ou a imposição de tributos gerais. Por outro lado,
estando a capacidade de autogovemo dos concelhos ordenada ao bem particular da
terra, não poderiam estes editar normas de âmbito geral. Por fim, as posturas não
poderiam ofender direitos concedidos em geral, nem tomar ilícito o que, de outro
modo, fosse lícito131. É a partir destas regras que se estabelece a casuística daquilo
130 As mesmas restrições se notam quanto à questão de saber se o direito ou os estatutos locais
podem revogar a lei geral. Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.
131 Mas admitia-se que, obtido o acordo geral, nos termos prescritos nas Ordenações (Ord. fil.1, 66,
52
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que as câmaras podiam ou não regular por postura 132. O carácter aparentemente
humilde dos temas regulados não nos deve iludir quanto à importância destas
normas nas comunidades locais. De facto, que há de mais decisivo para a vida de
comunidades agrárias do que essas questões de águas, de pastos, de regimentos dos
mercados e das atividades económicas de que tratam as posturas?
§ 107. Uma outra questão era a de saber se as posturas podiam contrariar a lei
geral. As Ordenações (Ord. fil.1,66,29) declaram nulas as posturas que “forem feitas,
não guardada a forma” nelas estabelecidas (i. e. as feridas de vício formal, quanto ao
seu processo de feitura: v. g, não votadas em câmara). Mas não estende o mesmo
princípio às que contradigam, na substância, o disposto na lei régia. Em todo o
caso, a doutrina interpretava esta disposição extensivamente, extraindo daqui o
princípio de que as posturas “não podiam contradizer as leis superiores”133. No
entanto, a ficção de que as posturas vigoravam com o acordo tácito do rei, uma vez
feitas com o concurso dos juízes locais, representantes do monarca, jogava neste
caso a favor do direito local, mesmo que este fosse contrário à lei geral. De facto, a
postura que contrariasse a lei era como que uma derrogação de uma norma geral
num âmbito local, feita com o acordo tácito do rei, mantendo com o direito do
reino a mesma relação que, em termos gerais, o direito próprio mantinha com o
direito comum-. O mesmo se podia dizer dos costumes.
2.4.1.3 Jurisdição concelhia e jurisdição senhorial.
§ 108. A jurisdição dos concelhos também se impunha à jurisdição dos
senhores das terras, donatários da coroa (v. a seguir, cap. 2.4.3). Como a jurisdição
local era dos concelho e não do rei, ele não a podia doar. Portanto, a jurisdição
senhorial sobre as terras cujo senhorio tivesse sido doado era apenas a faculdade de
o senhor (ou os seus ouvidores) conhecerem por apelação das decisões dos juízes
das terras, dando recurso, por sua vez, para o tribunal da corte134.
2.4.1.4 Magistrados e oficiais dos concelhos.
§ 109. Um outro aspeto do autogoverno era constituído pela autonomia
concelhia na escolha dos magistrados e oficiais locais, bem como pela forma
autónoma e plena com que estes desempenhavam as suas funções. Explicar uma e
outra coisa supõe, no entanto, uma breve descrição das magistraturas, órgãos e
ofícios dos concelhos.
§ 110. Podemos sistematizar os oficiais locais em várias categorias. A primeira
será a dos oficiais de governo. Deles fazem parte, desde logo, os oficiais de governo,
que integram a câmara concelhia.
§ 111. Comecemos pelos vereadores. De acordo com as Ordenações Filipinas (Ord.
fil.1,66), competia, em geral, aos vereadores “ter cargo de todo o regimento da terra,
134 V. Ord. fil.2, 45, 50 e 3, 71; cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9 (ad Ord.
fil.2, 28, rubr), n. 82 ss. (p. 306). O princípio de que aos senhores cabia apenas a jurisdição de recurso
fora já estabelecido em Portugal por uma lei de 1372. Cf. sobre isto, António Manuel Hespanha,
História das instituições [...], cit., 283.
53
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
e porque a terra, e os moradores della possão bem viver” (Ord. fil.1,66, pr.)135. Os
vereadores eram eleitos pelos homens bons do concelho pelo sistema dos pelouros
descrito nas Ordenações136, embora a prática se afastasse, por vezes, do sistema legal.
Basicamente, o sistema era o seguinte: seis “eleitores”, escolhidos de entre os mais
aptos pela elite local, elaborava uma lista das pessoas “que mais pertencentes lhes
parecerem para os carregos do concelho”137. Confrontadas as listas e apurados os
que mais votos tinham para cada magistratura ou ofício, os seus nomes eram
escritos numa nova lista (“pauta”) e tirados à sorte os conjuntos de magistrados ou
oficiais para o próximo triénio. Os não sorteados ficavam para os triénios seguintes,
até se esgotarem os nomes constantes da “pauta” (cf. Ord. fil.1,67). Como se vê,
este sistema garantia aos notáveis locais (meliores terrae, “gente da governança”) a
ocupação ou distribuição das magistraturas por apaniguados seus. Nalgumas terras,
normalmente nas mais importantes, a escolha final parece ter passado a ser,
frequentemente, feita na corte (Desembargo do Paço), para onde eram enviadas as
pautas138. Noutras terras vigoravam costumes locais diferentes. Noutras, ainda,
eram os senhores que nomeavam as justiças, embora esta faculdade carecesse de
doação régia expressa.
§ 112. Quer a escolha fosse local ou não, os vereadores e as “justiças” do
concelho, uma vez investidos, tinham uma área autónoma de competência prevista
na lei e garantida pelo direito contra a usurpação. E, na legislação e jurisprudência
seiscentista e setecentista, são frequentes as determinações no sentido de se
respeitar a autonomia desta área jurisdicional. Tais determinações dirigiam-se,
nomeadamente, aos corregedores ou aos poderosos locais, assim como - por
ocasião das guerras da Restauração e da consequente tendência para a militarização
da administração, pelo menos nas zonas de guerra - aos governadores de armas das
províncias. Mas também existem testemunhos de independência das câmaras em
relação aos donatários, inclusivamente àqueles que as nomeavam ou confirmavam.
§ 113. Os três139 vereadores, com os juízes e, eventualmente, com os mesteres,
formavam a câmara. Ao lado dos vereadores, e eleitos pelo mesmo sistema,
existiam os almotacés140, com competência especializada no domínio do
135 Competência que a lei (Ord. fil.1, 66), seguidamente, miudamente especifica, em atribuições do
domínio político (defesa das jurisdições do concelho, n. 13; elaboração ou modificação de posturas, n.
28 ss.); do domínio económico - no sentido alargado que a palavra tem na linguagem política moderna
(guarda e gestão dos bens do concelho, ns. 2, 6, 12; supervisão das obras do concelho, n. 24; fomento
da arborização, n. 26; garantia do abastecimento, n. 8; tabelamento dos preços e dos salários, n. 32 s.);
do domínio financeiro (decidir sobre despesas do concelho e fazê-las escriturar, propor aos
corregedores ou Desembargo do Paço o lançamento de fintas, gerir fundos especiais, ns. 35 ss. 40 ss.
44 ss.); do domínio judicial (julgar os feitos de almotaçaria e de injúrias verbais, n. 5). Para enumeração
exaustiva e comentário, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 5 (ad Ord. fil. 1, 66).
136 Ord. fil.1, 67. “Pelouros” eram bolinhas de cera nas quais se metia um papelinho com o nome
câmara, para juiz e escrivão dos órfãos (onde fossem feitos por eleição) ou para quaisquer outros
oficiais que costumassem ser eleitos (Ord. fil.1, 67, pr.).
138 Sobre a evolução do sistema de eleições e justiças durante os séculos XVII e XVIII, Cf.
de dois).
140 Ord. fil.1, 69.
54
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
145 Dos restantes funcionários da administração concelhia ocorrentes nas fontes, referiremos,
147 No domínio das funções jurisdicionais, competia aos juízes a jurisdição ordinária do concelho,
julgando definitivamente dentro das suas alçadas (valores destas: Ord. fil. I, 68, 4 ss.) e dando apelação e
agravo, daí para cima, para a Relação do distrito. Além do título das Ordenações que vimos citando, há
legislação avulsa sobre os juízes. A principal pode ser encontrada em Manuel Fernandes Thomaz,
Repertorio geral […], s.v. “juiz”.
148 Ord. fil.1, 68, ns. 3 ss. 13 a 15 e 39 ss..
55
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
151 Cf. por exemplo, a provisão de 13.1.1580, que os encarrega do lançamento das sisas; o
regimento de 23.1.1643 (art.º 10.°), que lhes comete a superintendência da cobrança do real de água; a
CR de 15.12.1644, que lhes comete a substituição dos provedores nas terras da rainha. No séc. XVIII,
com a intensificação da política de controlo da periferia, chovem sobre eles novos encargos: vigilância
do contrabando, da edição de panfletos satíricos, julgamento dos feitos da alfândega na falta de juiz
próprio, inspeção dos passaportes, arrecadação do subsídio literário, delegados locais do intendente de
polícia, julgamento dos feitos das coutadas, etc..
152 Um dos argumentos tradicionais das teses que descrevem o sistema político moderno como
“centralizado” é justamente o da substituição dos juízes ordinários por juízes de fora, de nomeação
régia. O que acaba de ser dito mostra até que ponto tais teses são, pelo menos neste particular,
infundadas. Para os finais do séc. XVIII, v. Nuno Gonçalo Monteiro, “As comunidades territoriais”,
cit., pg. 310.
153 O exercício da profissão estava sujeito a exame pelo Desembargo do Paço, destinado a
verificar “se bem escrevem, e bem leem, e se são pertencentes para os officios” (“Reg. dos
desembargadores do Paço”, no fim do liv. I das Ord. fil. n. 71), sendo-lhes passada carta pelo mesmo
tribunal (n. 56), embora o depósito do seu sinal público seja feito na relação do distrito (Ord. fil.1, 44; cf.
ainda, para as terras senhoriais, Ord. fil.2, 45, 16).
154 Uma ideia do tipo de atos praticados pelos tabeliães e notários e da frequência de cada um
destes tipos na época a que nos reportamos pode ser formada a partir da publicação Index das notas de
vários tabeliães de Lisboa entre os anos de 1580 e 1747, Lisboa 1931-1935, 4 vols.; ou em “lndice dos livros de
notas do escrivão Christovam d' Azevedo”, Boletim de trabalhos históricos. Arquivo Municipal Alfredo Pimenta,
18(1956), 188; 19(1957), 183; 23(1963) 1005; 24(1964) 100; 25(1965) 147.
155 Sobre o tema e suas consequências histórico-culturais, António Manuel Hespanha, As vésperas
56
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
156 V. Ord. fil. 1, 48. Cf. sobre estes últimos oficiais e sobre a apreciação que deles fazia a doutrina
(ad I, 87), João Baptista Fragoso, Regimen […], pt. 1, liv. 6, disp. 15.
159 Dava apelação para a Relação do distrito (Ord. fil. 1, 88, 46).
57
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
nos regimentos das sisas dos séculos XV e XVI 160. Em virtude do regime de
encabeçamento das sisas - pelo qual os concelhos (na verdade, apenas cerca de um
terço deles) tinha contratado com a coroa o lançamento e cobrança das sisas a
troco da prestação de uma quantia fixa anual (“cabeção das sisas”) - toda a atividade
de lançamento e de cobrança das sisas, bem como a própria atividade contenciosa
daqui decorrente, era da responsabilidade dos órgãos concelhios, que deviam
promover o processo de arrendamento, repartição e cobrança do tributo (Regimento
de 1572, c. 1 ss.), por intermédio de oficiais por eles apresentados 161. Na falta destes,
os agentes da administração ativa, no domínio das sisas, eram, portanto, os próprios
oficiais do concelho, recorrendo-se também às justiças concelhias para a execução
dos revéis no pagamento do tributo (Regimento de 1476, c. 31)162.
§ 123. Neste capítulo das sisas, o caso de Lisboa é particular. Aí, as sisas eram
cobradas em repartições especiais (“casas”, “Sete casas”) cada qual dedicada a
certos tipos de mercadoria. Do mesmo modo, os seus aparelhos administrativo-
burocráticos são também diferentes (e mais completos)163.
§ 124. Um último grupo de oficiais locais é constituído pelos oficiais militares.
§ 125. A organização das milícias locais, ou ordenanças, data dos finais do
século XVI (regimento de 10.12.1570)164. Aí se dispunha que, sob o comando
supremo do capitão-mor (normalmente, o alcaide-mor da terra), servisse a antiga
milícia concelhia, agora organizada em companhias de ordenança às ordens de
capitães, alferes e sargentos, eleitos pelos oficiais da câmara e gente da governança
(n. 1 ss.). Estamos, como se vê, perante uma organização militar - de resto pouco
efetiva antes das guerras da Restauração165 - de carácter miliciano, sujeita a oficiais
160 Artigos das sisas, de 27.9.1476 (em José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., vol. 1, cit., pp.
205); Regimento do encabeçamento das sisas de 5.6.1572 (ibid. 278 ss.). Sobre a problemática da data e edição
destes regimentos, José Anastácio de Figueiredo, Synopsis […], cit., tom. 1, 109 e 236 ss..
161 Para a escolha dos juízes das sisas cf. cap. 31 dos Artigos de 1476.
162 Detalhes suplementares em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4 e II.5 a).
163 Descrição detalhada em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.
164 Publicado em Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, pp. 264 ss. (com
diplomas complementares); José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., vol. 5, pp. 183 ss. (com outros
diplomas dos sécs. XVI, XVII e XVIII sobre a organização militar). Cf. também Mapa. Memória da
administração pública brasileira (http://linux.an.gov.br/mapa/?p=4768).
165 Logo nas cortes de Tomar de 1580, quer a nobreza, quer os povos, pedem a extinção dos
alardos e dos ofícios das ordenanças pelas “vexações” e “opressões” que traziam aos povos (cap. XXX
III do povo e XIII da nobreza). Também Manuel Severim de Faria recomendava a isenção de serviço
militar como um dos privilégios com os quais se podiam motivar os lavradores para aumentar as suas
culturas (cf. “Arbitrios pera a abundancia de pam em Portugal”, intr. e notas de Vitorino Magalhães
Godinho, em Rev. de hist. econ. e soc. 5(1980), 108). São as grandes reformas militares de D. João IV que
modificam radicalmente a organização honorária da milícia (Regimentos das ordenanças, retomando a
regulamentação sebástica, de 1642; criação da Junta dos Três Estados para o controlo financeiro e
logístico das tropas; decreto de 18.1.1643 e Regimento de 9.5.1654, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol.
respetivo; Regimento do Conselho de Guerra, de 22.12.1644 - cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria
[…], cit., tom. 12, pp. 279 ss. e Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.; Regimento das fronteiras, de
29.7.1645 - cf. José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., tom. 5, pp. 416 ss.; Regimento dos
governadores de armas de 1.1.1650 e de 1.6.1678 - fundamental que, com os que instituem o Conselho
de Guerra e a Junta dos Três Estados, cria uma estrutura permanente de comando e controlo financeiro
e logístico, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, 59; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit.,
tom. 12, pp. 284 ss.; José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., tom. 5, pp. 180 ss. O carácter
revolucionário desta nova estrutura militar fica expresso nos problemas políticos e militares que causou e
58
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que levaram à extinção, em plena guerra, dos governadores de armas, a pedido dos povos (em
13.3.1654; cf. Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo).
166 Cf. António Manuel Hespanha (org.). “Nova História Militar de Portugal – séculos XVI-XVII”,
cit..
167 Cf. sobre este ponto, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.5.
59
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
ocorrendo uma justa causa relacionada com a suprema utilidade pública) 168.
§ 131. Por último, um importante fator de autonomia ou dependência política
eram as finanças. Neste plano, a base da autonomia concelhia consistia em que o
concelho pudesse fazer frente aos seus gastos com recurso às receitas próprias.
Apesar de, durante os séculos XVII e XVIII, ter havido momentos de crise
financeira que atingiram também os concelhos, o certo é que as instituições
concelhias dispunham de uma capacidade de resistência à crise maior do que as da
administração central. Nestas, de facto, o volume dos gastos (com salário ou
mercês e despesas fixas de funcionamento) era relativamente grande e
incomprimível. Enquanto que, nos concelhos, como uma administração honorária
ou paga com emolumentos, as despesas fixas eram muito menores, pelo que o
aparelho político-administrativo se podia adaptar melhor aos períodos de
penúria169.
2.4.1.6 O controlo do centro.
§ 132. Existiam, é certo, vínculos institucionais que colocavam os concelhos
sob um certo controlo da coroa. Estes vínculos consubstanciavam-se na ação de
algumas das magistraturas da administração periférica da coroa, nomeadamente na
área do governo político, da justiça e da fazenda.
§ 133. No domínio do governo político, os concelhos estavam sujeitos à tutela
do Desembargo do Paço, que a exercia por intermédio dos corregedores (cf. Ord.
fil.1,58)170. Eram estes magistrados que superintendiam na administração política
dos concelhos, verificando se ela decorria de acordo com as leis e regimentos. Esta
superintendência decorria, no entanto, sob a forma de uma tutela externa e não de
um verdadeiro poder de direção; daí que os corregedores, se podiam verificar a
legalidade da administração do concelho, não podiam, no entanto, dar instruções
aos seus órgãos, nem tão pouco avocar as suas competências 171. Em face do que
acaba de ser dito, parece lícito concluir-se que a eficácia dos corregedores como
instrumentos de subordinação político-administrativa do reino era relativamente
modesta, pelo menos em confronto com outras experiências europeias de
constituição de níveis periféricos da administração régia. Experiências que, como
veremos, são a fonte de inspiração da nova política da administração inaugurada
nos meados do século XVIII (v. cap. 2.4.3)172.
§ 134. Outro instrumento régio de controlo da administração real eram os
provedores, encarregados de tutelar a cura dos órfãos e de outras entidades que o
168 Cf. alv. 28.2.1634 (JJAS). Detalhes em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.5 e
Cf. 3.V.
169 Nuno Gonçalo Monteiro, “As comunidades territoriais” […], cit., pp. 322 ss..; Luís Nuno
171 Salvo nos casos em que isto era permitido por lei, como, v.g. no caso da avocação das ações
judiciais em que fossem partes poderosos locais ou, em geral, em relação a qualquer ação, enquanto
estivesse na terra (Ord. fil.1, 58, 22-23).
172 Nas terras senhoriais isentas de correição, este controlo da coroa não tinha lugar. Nem os
ouvidores senhoriais aí assumiam as funções dos corregedores. Na verdade, entendia-se que apenas
tinha sido doado o privilégio de isenção de correição real, mas não o de os ouvidores senhoriais
exercitarem os poderes de correição.
60
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
173 Cf. para mais detalhes sobre fontes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II. 4.
174 Sobre a residência (sindicância ou inspeção) dos juízes de fora e dos corregedores, feita por um
desembargador nomeado pelo rei, v. Ord. fil.1, 58, 31 ss.; 1, 60.
175 Cf. José Manuel Subtil, O Terramoto Político (1755-1759) - Memória e Poder […], cit..; também,
61
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
176 Existem tentativas de micro-reformas territoriais durante todo o período pombalino, muitas
vezes relacionadas com planos de fomento económico (v.g. do Alto Douro e Trás-os-Montes duriense,
em 6.4.1759; Açores, em 2.8.1766; Algarve, em 18.2.1773). Só mais tarde, por volta de 1790, se projeta
uma reforma territorial geral (cf. Ana Cristina Nogueira da Silva, O Modelo Espacial do Estado Moderno
[…], cit.).
177 José de Abreu Bacelar Chichorro, Memoria economico-politica da província da Extremadura [1795],
cit., 101.
62
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
em Leiria” […], cit.; v. ainda José V. Capela (org.), Política, administração, economia e finanças públicas
portuguesas (1750-1820) […], cit., 241-242.
181 Ibid. 28.
63
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
182 Para este efeito, socorremo-nos dos dados averiguados, para os meados do século XVII, no
meu trabalho As vésperas do Leviathan [...], cit., (alguns dos dados só foram publicados na ed. de autor,
de 1986).
64
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
183 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., V.2; também, António Manuel Hespanha,
185 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, disp. 1, § 2, n. 18.
186 Sobre ela, António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a
65
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
187 Cf. sobre o tema, António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime
189 Cf. S. Tomás, Summa theol, 1ª.2ae, qu. 88 10 ad 2; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., liv.
como existe, na economia moral das sociedades de Antigo Regime, uma “economia da graça” que gera
deveres de dar e deveres de retribuir. O que acaba por ter muita importância para a explicação de
mecanismos políticos práticos, como o regime das “mercês” em Portugal.
66
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
rei nem é obrigado a ouvir senão a sua consciência, nem a obedecer a qualquer
formalidade ou “figura de juízo”. Pelo contrário, aqui, o sigilo da decisão é a regra
principal, já que as próprias Escrituras recomendavam que não se deixasse que uma
mão soubesse das liberalidades feitas pela outra. A “Graça” é, portanto, o mundo
do governo informal, orientado por deveres de consciência ou por deveres morais,
em que as decisões se tomam no círculo mais íntimo da atividade real (a “câmara”),
pela mão de “escrivães da puridade” [i.e. do segredo] ou “secretários” [idem]. No caso
português, algumas matérias “de graça” tinham um tratamento mais autónomo e
regulado. Era, desde logo, o caso (de fronteira) dos assuntos de graça em matéria de
justiça, que eram instruídos para decisão régia pelo Desembargo do Paço. E do
domínio particularmente sensível de assuntos que envolviam relações com o poder
eclesiástico, cuja decisão era preparada pela Mesa da Consciência e Ordens. As
restantes matérias de graça eram decididas informalmente pelos secretários do rei
(secretários da câmara, mais tarde, secretários de Estado), embora o
reconhecimento de um direito a mercês (“ação”) tenha progressivamente
aproximado a gestão da liberalidade régia das tecnologias organizativas da justiça,
com a sua consequente formalização191.
2.4.2.1.3 O governo económico.
§ 152. A terceira área de governo era a oeconomia , que correspondia à imagem
do rei como “chefe da casa”, marido da república e pai dos vassalos. A doutrina
moderna foi particularmente expressiva sobre esta proximidade entre governar a
cidade e governar a família192. A assimilação entre um e outro ofício era profunda e
de sentido não metafórico, autorizando, nomeadamente, que as regras do governo
doméstico valessem para o governo da cidade e que a literatura dirigida ao pai de
família (Hausväterliteratur) tivesse, afinal, uma intenção claramente política.
§ 153. “A casa dos príncipes - escreve Baptista Fragoso - é a cidade; a cidade
constitui o fim da casa. Por isso é preciso que aqueles que vão dirigir as coisas
públicas se exercitem antes nas coisas económicas ou domésticas” 193. O
característico deste governo doméstico era o facto de que, não existindo no interior
da família (tal como ela era entendida então) interesses contrapostos entre si ou
oponíveis aos do interesse familiar, faltava aqui a dualidade de interesses que
caracteriza as matérias de justiça e, por isso, a decisão decorria de considerações de
mera oportunidade. A gubernatio era, assim, uma expressão geral, aplicável a toda a
atividade decisória que apenas envolvesse a ponderação de vantagens (e não de
interesses protegidos), quer se aplicasse no âmbito da família (gubernatio filiorum et
uxoris), de uma “universidade” (gubernatio communitatem monialium, por exemplo) ou
da república (gubernatio reipublicae). Podia-se falar, assim, de uma potestas dominica,
sobre a própria família (potestas domestica, maritalis, patria), sobre os servos e escravos
(potestas despotica ou herilis), todas elas decorrentes do poder de administração
(administratio) do pater sobre a sua própria casa (potestas oeconomica). De resto, a
transposição do conceito de administratio do plano do governo económico para o
plano do governo político era facilitada pelo aparecimento da palavra, referida a
191 Cf. os vários “regimentos das mercês”, nomeadamente o de 19.1.1671, Col. Chron. Leg.
(J.J.A.S.), 186 ss..
192 Cf. António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a
Revolução”, cit., 142, e bibl. aí cit., sobretudo os trabalhos de Daniela Frigo.
193 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., liv. 1, “Proem.”, 7.
67
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
atividades políticas, em dois títulos do Corpus iuris (D. 50, 8, De administratione rerum
ad civitates pertinentium; C. 11, 30, De administratione rerum publicarum), bem como pela
confusão entre autoridade e propriedade, entre regnum e domus, entre rex e pater, que
a episteme política medieval e moderna colhera dos textos de Aristóteles 194.
§ 154. No centro deste domínio da atividade do príncipe estavam os atos
relativos ao “governo económico” do reino, entendido como rei domesticae gubernatio
ou dispensatio domus, i.e. “administratio rei familiaris, quae consistit praesertim in
acquisitione, & conservatione pecuniae (administração da casa, ou das coisas
familiares, a qual consiste principalmente na aquisição e conservação do dinheiro)”.
Ou seja, a gestão dos bens e interesses da coroa. Isto englobava, desde logo, os atos
de gestão dos bens e rendas de que o rei era administrador. Em primeiro lugar, dos
bens e rendas da coroa do reino. Depois, dos bens e rendas afetados à corte e casa
real. Seguidamente, dos bens e rendas das casas anexas à real, como, em Portugal, a
Casa das Rainhas (na primeira metade do século XVI e depois de 1643), a Casa do
Infantado e a Casa de Bragança (depois de 1654). Depois, dos bens das ordens, de
que o rei era administrador a partir dos meados do século XVI. E, finalmente, dos
bens próprios da coroa, como os reguengos, as matas, as lezírias, etc. bem como
das capelas do padroado real195 (cf. caps. 2.4.3.3.2 e 4.2.2.2). Mas deste governo
“económico” - a que com o aproximar do estadualismo iluminista, se irá chamando
cada vez mais “político” - faziam ainda parte todos os atos necessários à realização
do bem estar geral do reino, nomeadamente, a garantia do seu abastecimento, pelo
controlo das importações e exportações, ou a sua “boa polícia” interior.
Manifestação curiosa deste poder de governo é o que se invoca, nas Ord. fil.2,3, para
justificar a punição pelo rei dos clérigos que o não tivessem sido suficientemente
pela jurisdição eclesiástica competente: “isto não por via de jurisdição, nem de
juízo, mas por usar bem de suas cousas, e afastar de si os malfeitores, e que não
houvessem delle sustentação, nem mercê”.
§ 155. Pertenciam, assim, ao governo económico todas aquelas decisões que,
por se deixarem circunscrever ao âmbito da casa do príncipe, podiam ser objeto de
avaliações de mera oportunidade. Neste sentido, a transposição para o plano da
república dos princípios e tecnologias de governo da “casa” constitui uma forma de
trânsito da típica administração jurisdicionalista das monarquias medievais e primo-
modernas para o governo “político” das monarquias da última fase do Antigo
Regime.
§ 156. Zona típica da informalidade, a oeconomia é-o também da reserva e do
recato (segredo) com que as coisas familiares devem ser tratadas. O critério de
decisão é, aqui, o da discricionariedade de um “prudente pai de família”, ao qual
cumpre adequar livremente os meios disponíveis à busca do sustento e
engrandecimento da casa. “Sustento” e “engrandecimento” devem ser objetivos
sublinhados neste momento, pois com eles se está a apontar para uma gestão que
não se limita a conservar, mas a prever, a prover e a promover; isto é, para uma
194 Nomeadamente da Economia doméstica - em que, entre as espécies do governo económico (i.e. da
casa [oikos]), se enumeram o governo real, dos delegados do rei, do Estado de homens livres e do
cidadão privado (cf. liv. II, cap. I).
195 Sobre as capelas da coroa, Joaquim Veríssimo Serrão, Livro das Igrejas e Capelas do padroado do reis
68
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
administração ativa. Coisa que, não sendo novidade ao nível doméstico ou mesmo
da comunidade, o era ao nível do reino. O processamento dos assuntos é o da
gestão informal exercida diretamente ou por meio de agentes livremente escolhidos
e livremente descartáveis (juntas, comissários), agindo na discreção da “casa” a
coberto do segredo que, também nos assuntos familiares, deve ser a regra.
“Secretários”, “criados”, “validos”, “intendentes”, “juntas” são, por sua vez, os
suportes desta administração doméstica.
2.4.2.1.4 O governo político.
§ 157. A ideia de que, para além de guardião dos interesses particulares e de
chefe de família, o príncipe encarnava também, como sua cabeça, um interesse
superior de toda a república tem uma antiga tradição nas fontes jurídicas. Já os
glosadores tinham aproximado, no dito mnemónico de “Christus-fiscus”, esta ideia
de que, tal como Cristo, cabeça do corpo místico da Igreja, resumia em si a
comunidade dos fiéis e representava os seus interesses, assim o “fisco”, a pessoa
pública do príncipe, tinha legitimidade para impor o interesse da república, em
termos tais que perante ele cedessem os direitos dos particulares. A tradição jurídica
medieval partiu daqui para reconhecer ao príncipe uma extraordinaria potestas que lhe
permitiria derrogar o direito e violar direitos dos particulares “publica et magna
causa interveniente”. Mas, quando a nova geração de politólogos em que se inclui
Nicolau Maquiavel e Jean Bodin, começaram a falar de “razão de Estado” e de
“soberania”, isto é, de razões e poderes próprios da república, essencialmente
distintos das razões e poderes dos privados, começou também a surgir a ideia de
que o governo da polis podia exigir que o príncipe, ex officio [por sua iniciativa] e
figura iudicii non servata [não observadas as formalidades do juízo], editasse comandos
ad consequendam publicam utilitatem [para realizar a utilidade pública], livremente
avaliada pelo príncipe. Estamos chegados ao conceito de governo político e, a curto
prazo, ao de ius publicum, um especial ramo do direito em que, pela primeira vez, o
príncipe e os particulares passavam a ocupar lugares não equilibrados no iudicium196.
§ 158. Não se pode, contudo, dizer que o conceito de governo político fosse
muito popular na literatura moderna peninsular sobre o governo, sendo conhecida
a conta em que eram tidos os “políticos” e o estilo de governo que eles
propugnavam197. Apesar disso, há temas em que a invocação das prerrogativas
políticas do rei tinha tradição. O primeiro é, decerto, o da punição criminal. Outro
é o da regia protectio; para justificar o seu poder de castigar os clérigos, o rei não
podia invocar a sua jurisdição, pois a ela escapavam os eclesiásticos. Daí que fosse
obrigado a invocar um poder económico, ou mesmo político (cf. muito
impressivamente, Ord. fil.2,3). Progressivamente, o conceito de governo político
vai-se estendendo e abrangendo, sucessivamente, um domínio mais vasto. No
período iluminista, encontramo-lo já plenamente desenvolvido198. Considera-se,
então, que ele engloba todas as medidas necessárias à defesa externa e interna do
reino (“o príncipe deve oficiosa e ativamente [“pro sua virili parte”] libertar a cidade
dos seus inimigos internos e externos e fazer em tudo aquilo que julgue necessário,
196 Cf. António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a
Revolução”, cit., 144 s..
197 Cf. para Portugal, Martim de Albuquerque, “Política, moral e direito”, cit..
69
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
sem que nunca pudesse ser compelido a prestar contas disso”. Aqui se incluiria o
ius gladii, a potestas legislatoria, o ius fisci, o ius circa sacra, o ius asylii, a potestas circa
agriculturam, commercium et res nauticas, o ius militare. Mas, mesmo neste final do século
XVIII, não falta quem reaja contra esta extensão das prerrogativas régias a título de
poder camerario, arcano, absoluto199.
§ 159. Seja como for, os finais do Antigo Regime constituem uma época em
que, claramente, a imagem do príncipe como caput reipublicae, como pessoa
pública, se sobrepõe às restantes. E em que o governo assume as características de
uma atividade dirigida por razões específicas (as razões do Estado), tendente a
organizar a sociedade, impondo-lhe uma ordem e defendendo-a do caos originário.
Inaugura-se, por outras palavras, uma era de “disciplina”, de “administração ativa”,
com quadros legitimadores, métodos e agentes muito distintos dos da passiva
administração jurisdicionalista. Agora, o governo legitima-se, planificando reformas
e levando-as a cabo, mesmo contra os interesses estabelecidos. Carece-se de eficácia
e o controlo sobre os aparelhos administrativos é uma condição para isso. Daí que
a administração devesse ser transformada num instrumento racional e adequado,
liberto de todos os constrangimentos de tipo corporativo. Que os oficiais devessem
ser disciplináveis e livremente amovíveis, tal como se enfatiza na legislação
pombalina sobre os ofícios (nomeadamente, a lei de 23.11.1770). Que os
procedimentos administrativos não devessem ser cogentes para o soberano, e
muito menos utilizáveis pelos particulares para atrasar a ação reformadora (v.g. por
meio de embargos dos atos régios: cf. CR. 2.11.1627, alv. 16.2.1642, alv. 10.7.1644).
Que o segredo (arcana imperii) e a surpresa se tornassem um instrumento
indispensável de governo.
§ 160. Esta classificação das matérias de governo permanece
fundamentalmente válida como arrumação intelectual da atividade político-
administrativa até aos finais do Antigo Regime. Ainda em 1793, Francisco Coelho
de Sousa Sampaio classifica os tribunais em “de Graça, de Justiça, da Fazenda, de
Economia, e Commercio”200. Há que notar a completa autonomização da fazenda
em relação à economia, explicável pela existência, desde há muito, de órgãos nela
especializados (Vedores da Fazenda e, depois, Conselho da Fazenda) e o acrescento
do “comércio”, por razões idênticas (Junta do Comércio), a que acresce, aqui, o
enorme interesse pelo tema, sobretudo num reino que vivia substancialmente dele,
a partir do advento do mercantilismo201. Embora, no mesmo autor, já se note a
hegemonia da política e da economia sobre todas as restantes áreas, quando
escreve, numa frase de antologia: “He certo, que todos os Magistrados são
políticos, e Economicos; porque toda a administração da Justiça se dirige a
economisar [!] e civilisar os povos, e promover a segurança publica [!]” (ibid. 1, 191
n. a), pois por “polícia” entende “a auctoridade que os princepes tem para
estabelecerem e proverem os meios, e subsidios, que facilitem, e promovão a
observancia das suas Leis” (ibid.1 138) e considera, consequentemente, que “todos
199 Cf. António Ribeiro dos Santos, Notas ao plano do Novo Codigo, cit..
200 Prelecções de direito pátrio […], cit., 1, 191.
201 Noutros autores aparece o ramo da milícia, que este não considera por o julgar fora do âmbito
da sua obra (embora, de seguida, enumere os seus principais órgãos, cf. 1, 198 ss.). É de notar a
dificuldade que transparece na classificação da Mesa da Consciência (cf. 1, 196).
70
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
71
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
milícia.
2.4.2.2.1 Os oficiais de justiça.
§ 165. Neste domínio, a administração régia apoia-se sobre dois tipos de
funcionários, os juízes de fora e os corregedores.
2.4.2.2.1.1 Os juízes de fora.
§ 166. Os juízes de fora são, tal como os juízes eleitos, os magistrados
ordinários dos concelhos, tendo, em princípio, atribuições iguais 205. Porém, dada,
sobretudo, a formação letrada desta magistratura, a doutrina - e a própria lei -
estabeleciam alguma distinção entre uns e outros 206 e dos padrões oficiais e letrados
de julgamento. Embora também se pudesse dizer que, sendo estes juízes nomeados
pela coroa, se instituiriam, deste modo, laços mais apertados de dependência e
redes mais eficazes de comando entre os magistrados locais e a administração
central. Não sublinharemos no entanto, este segundo aspeto, pois o estatuto do juiz
de fora é igual ao do juiz da terra, no que respeita à sua autonomia em relação a
cadeias hierárquicas207. Dir-se-ia, até, que aos juízes de fora é garantida uma maior
autonomia do que aos juízes ordinários. Na verdade, algumas das normas das
Ordenações sobre o controlo das justiças locais pelos corregedores, não se aplicavam
aos juízes de fora, umas por disposição expressa da lei nesse sentido, outras por
entendimento doutrinal pacífico208. Por outro lado, entendia a doutrina que os
corregedores não podiam - fora dos casos expressamente previstos na lei 209 -
conhecer por ação nova ou avocar as causas das terras em que houvesse juiz de
fora, ao contrário do que acontecia com as causas dos juízes ordinários 210.
205 Sobre as origens e evolução dos juízes de fora, cf. António Manuel Hespanha, História das
instituições [...], cit., 254 s. e bibliografia aí citada. Sobre a sua jurisdição, v. Ord. fil.1, 65.
206 As principais diferenças do regime dos juízes de fora em relação aos juízes ordinários eleitos
são: (i) eram nomeados pelo rei, depois de aprovados no Desembargo do Paço (leitura de bacharéis: exame
pelos desembargadores da Casa da Suplicação, votação pela mesa do Desembargo do Paço, Reg. Des.
Paço, § 6); (ii) tinham, como adiante se dirá no texto, jurisdição privativa em relação aos corregedores;
(iii) tinham uma maior alçada, Ord. fil.1, 65, 6 e 7; (iv) usavam varas brancas, enquanto que os juízes da
terra as usavam vermelhas; (v) não eram inspecionados pelos corregedores. Sobre esta diferença de
regime, Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 5, ad Ord. fil.1, 65, rubr. n. 26. (p. 5).
207 Sobre a residência (sindicância ou inspeção) dos juízes de fora e dos corregedores, feita por um
desembargador nomeado pelo rei, v. Ord. fil.1, 6. Doutrina: por todos, Nicolau Coelho Landim, Nova,
et scientifica tractatio […] I. De syndicatu judicum […], cit..
208 Assim, não poderiam exercer em relação aos juízes de fora as atribuições de Ord. fil.1, 58, 5 e
34 (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 4, ad Ord. fil. 1, 58, gl. 10, n.º 1 [pg. 543] e
literatura aí citada).
209 Feitos em que fossem parte juízes, alcaides, procuradores, tabeliães, fidalgos, abades, priores
72
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 167. O facto de o juiz de fora ser um oficial estranho à terra fazia dele um
elemento descomprometido em relação às relações locais de poder e de influência.
É justamente isto o que se quer dizer quando, no discurso oficial, se referem as
vantagens que adviriam para a administração da justiça e para a pacificação das
terras da existência de um oficial de justiça forâneo e estranho aos “bandos” locais.
E não é raro que o frequentador das fontes da época, nomeadamente dos livros de
vereações das terras onde havia juízes de fora, encontre exemplos dos confrontos
entre estes e os grupos de pressão locais. Que o juiz de fora representava, de facto,
um elemento perturbador dos arranjos políticos locais, isso parece um facto. O que
já pode, porém, ser problematizado é que a sua ação revertesse politicamente a
favor do fortalecimento do poder da coroa. Pois em relação a este oficial letrado
podem aplicar-se as conclusões que R. Ajello tirou - na base do seu estudo sobre o
caso napolitano - para o oficialato togado meridional. Ou seja, a ausência de um
controlo efetivo sobre a sua atividade, quer por parte dos particulares, quer por
parte do poder, dado o carácter fortemente corporativo desse grupo de oficiais e o
facto de os mecanismos de controlo serem, eles próprios, movimentados pelos
membros do mesmo corpo. Como conclusão - sujeita à verificação por meio de
estudos monográficos baseados na análise das fontes locais -, dir-se-ia que mais do
que a longa mão do poder central, o juiz togado é um elemento de enfraquecimento
das estruturas locais que, se joga indiretamente a favor da coroa, reverte
imediatamente a favor do fortalecimento da rede burocrática de que juízes de fora,
corregedores e provedores fazem parte e que filtra toda a comunicação entre o
centro e a periferia e - pelo menos em tempo de paz - adquire, assim, o controlo de
mais um instrumento fundamental de governo - a informação sobre o país.
§ 168. Seja como for, há uma restrição fundamental ao relevo que a
historiografia tradicional tem dado à criação dos juízes de fora como fatores de
centralização, quer ao que acaba de ser dito quanto ao seu papel de fator de
dissolução da vida jurídica. Tal restrição relaciona-se com o número extremamente
reduzido das terras que tinham juiz de fora. Na verdade, a rede dos juízes de fora é
absolutamente insuficiente para que possa ter o impacto centralizador que a
historiografia corrente lhe atribui211.
2.4.2.2.1.2 Os corregedores.
§ 169. Um outro oficial da administração real periférica era o corregedor,
magistratura criada no século XIV, inicialmente com jurisdição apenas delegada ou
comissarial, abrangendo os assuntos e a área territorial contida na carta régia de
delegação212. No século XVII, os corregedores constituem já uma magistratura
ordinária, com uma competência contida em geral nas Ordenações (ou legislação
extravagante) e exercendo-se sobre um território determinado por providências
legais ou por usos bem estabelecidos. São nomeados pelo rei por períodos
trienais213.
partes lhe sera tambem guardado” (José Anastácio de Figueiredo, Synopsis chronologica, cit., 1, 328).
211 Cf. dados em António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 171 ss..
212 Sobre a origem e desenvolvimento desta magistratura, António Manuel Hespanha, História das
pode ser encontrada, em geral, em Manuel Fernandes Thomaz, Repertorio geral […], cit., s.v.
“corregedor”; doutrina: Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 4, ad Ord. fil.1, 58 (com
73
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
governança.
216 Cf. mapas em Ana Cristina Nogueira da Silva, O modelo espacial […], cit., 40; Nuno Gonçalo
218 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 4, (ad Ord. fil.1, 58), gl. 12, n. 5 (p.
546). Privativa era, por exemplo, a competência dos provedores e contadores, pelo que os
corregedores não podiam, em princípio, intrometer-se em matérias de fazenda, a não ser quando a lei
expressamente o determinasse ou nas faltas do provedor (v. Ord. fil.1, 58, 10).
74
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
219 Cf. mapa das provedorias em Nuno Gonçalo Monteiro, “As comunidades territoriais”, cit.,
311.
220 Fonte legal: Ord. fil.1, 62; as atribuições dos provedores relativas a capelas, hospitais,
albergarias, confrarias, gafarias, obras, terças e resíduos estavam regulamentadas no regimento
manuelino de 27.9.1514 (em José Roberto R. M. C. Soisa, Systema dos regimentos reais […], 1783, 1, 37
ss.; sobre o qual, v. José Anastácio de Figueiredo, Synopsis chronologica, 1790, 1, 176 ss.) e na lei de
6.7.1596.
221 Estes últimos tinham eventualmente, jurisdições particulares - tal era o caso do Hospital de
76
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
77
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
222 A redenção dos cativos era urna obra de misericórdia atribuída à Ordem da Santíssima
Trindade, por quem foi demitida à coroa em 1562 (cf. alv. de 10.3 desse mesmo ano). Regimento dos
mamposteiros de 11.5.1560, José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., vol. 5, 486 ss..
223 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 181 ss.. 212 ss..
224 Assim, os contadores vinham de dois em dois anos a Lisboa prestar contas ao Conselho da
Fazenda (Reg. 17.10.1516, cit., cap. 85); recebiam deste os cadernos de assentamentos por onde os
almoxarifes haviam de fazer os pagamentos e vigiavam o cumprimento das instruções neles contidas
(ibid. cap. 78); tomavam anualmente as contas aos almoxarifes (ibid. cap. 81), etc. Quanto a estes, além
de sujeitos a este controlo, deviam pedir instruções aos contadores, no caso de dúvida (ibid. cap. 116);
enquanto que, a jusante, exerciam uma idêntica atividade de inspeção e instrução sobre escrivães e
recebedores (v.g. ibid. cap. 104).
78
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
225 Lista das contadorias, em 1516: Santarém, Leiria, Alenquer, Setúbal, Évora, Beja, Coimbra,
Viseu, Guarda, Algarve, Porto, Guimarães, Moncorvo (Reg. 17.10.1516, cap. 34, em José M. C. C. e
Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., 1, 24). No século XVII, aparecem, a mais, as de Viana,
Esgueira, Lamego, Pinhel, Castelo Branco, Tomar, Estremoz e Ourique.
226 Fonte legal: Ordenações da fazenda, de 17.10.1516, em José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos
228 Sobre a alfândega de Lisboa, que tinha, como já se viu, uma organização particular, v. o Foral
da Alfândega de Lisboa, de 15.10.1587, em José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., 2,
1 ss. Comentário e decisões judiciais em Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 9, ad Ord.
fil.2, 26, §§ 9 e 20, 33; e, ainda, Ord. fil.2, 28, rubr..
79
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
229 Sobre as jugadas - tributo sobre cuja aplicação havia muitas questões práticas, quer quanto às
terras por que era devido, quer quanto às isenções pessoais (v. Ord. fil.2, 33) - há uma vastíssima
literatura. Para a descrição sistemática, Francisco Coelho de Sousa Sampaio, Prelecções de direito pátrio
[…], cit., p. 102. Para a doutrina anterior: verdadeiro tratado sobre o tema, com muita jurisprudência,
regimento das jugadas de Santarém de 25.3.1559, foral novo e regimento das jugadas de Coimbra,
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 9, ad Ord. fil.2, 33, rubr. p. 357 ss.; Jorge de Cabedo,
Decisiones […], cit., pt. 1, dec. 188; pt. 2, dec. 64.
230 Os ofícios das sisas eram locais (v. supra). Em Lisboa, as sisas eram lançadas e cobradas nas
“casas de Lisboa”, sobre as quais, v. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.2.
231 Sobre este tipo administrativo, Cf. R. Durand, Le cartulaire du Baio-Ferrado du monastère de Grijó
233 Reg. 20.5.1640, José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., vol. 5, 655 ss.
234 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […}, cit., 218 ss..
80
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
235 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 224 ss..
236 Reg. das lezírias de 24.11.1576, em José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., 2,
289 ss.; reg. dos pauis, ibid. 315 ss. O carácter real das lezírias decorria quer do direito comum, quer do
direito pátrio (Ord. fil.2, 26). No campo do Mondego, havia também um provedor dos marachões, com
os seus oficiais (Reg. 8.9.1606, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 9, ad Ord. fil.2, 33,
gl. 33, ou Col. Chron. Leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, 178.
237 Cf. Reg. de 19.1.1699, em Col. chron. leg. (J.J.A.S.), pg. 424.
81
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
238 Cf. reg. 20.3.1605, em Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo A organização dos monteiros é
Hespanha, As vésperas […], cit., ps. 160 ss. (com quadros e gráficos).
241 Para indicações bibliográficas sobre a Casa Real e os seus oficiais, v. António Manuel
Hespanha, As vésperas […], cit., 228.
82
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
artífices.
2.4.2.3.2 Secretários.
§ 215. Os secretários (da câmara, de despacho, de Estado) apoiavam o rei nas
decisões correntes em matéria de graça e de governo 242. Constituem a sequência
dos oficiais que, desde a idade média, preparavam o despacho (ou “desembargo”)
do rei. Na segunda metade do século XVI, com o desenvolvimento da
administração sinodal, os secretários asseguram, frequentemente, a ligação entre o
rei e um dos conselhos palatinos (v.g. o secretário “de Estado”, com o Conselho de
Estado; o “da Índia”, com a repartição da Índia do Conselho da Fazenda ou,
enquanto este existiu (1604-1614), com o Conselho da Índia; o “da Fazenda”, com
o Conselho da Fazenda). Com D. João III e D. Sebastião aconteceu
frequentemente que um destes secretários ganhasse um ascendente no despacho
corrente (v.g. os Carneiros ou os Câmaras).
§ 216. Trata-se de um cargo com um regime institucional fluido, oscilando
entre o de simples auxiliares privados de despacho - oral ou escrito - do monarca e
o de ministros com competência para coordenar um ramo mais ou menos extenso
da administração. Em geral, coexistiam vários tipos de secretários (os “da câmara”,
os “dos conselhos”). A designação secretário “de Estado” apenas aparece durante o
domínio filipino, provavelmente por simpatia com a designação de idênticos
funcionários espanhóis.
§ 217. O número e designações dos secretários de Estado variou ao longo de
todo o século XVII e XVIII. Em 1604, eram quatro - negócios de Estado e Justiça;
matérias de Consciência e Ordens; negócios da Fazenda; petições e mercês -, cada
uma das quais correspondente, como se vê, à área de atribuições de um dos
conselhos do Paço; só a última era transversal, preparando o despacho de quaisquer
tipos de mercês. Em 1607, ficaram reduzidas a duas; mas em 1631 foi criada uma
nova secretaria “da Índia e Conquistas”. Estas secretarias funcionavam em Madrid;
em Lisboa, existiam também secretários dos vice-reis ou governadores, parecendo
que dois foram mais ou menos permanentes, o “de Estado” e o “das mercês”.
§ 218. Com D. João IV, atribuíram-se inicialmente todas as competências a
um só secretário, a que se chama “de Estado”, mas, logo em 1643 (alv. 29.11),
desdobrou-se esta secretaria em duas, a “de Estado” e a “das mercês e expediente”
(Reg. em http://purl.pt/24242), segundo uma repartição de competências
constante do mesmo alvará. Pelos finais do século XVII, criou-se a “secretaria da
assinatura”, encarregada do processamento da parte final dos diplomas régios.
§ 219. Em 1736 (alv. de 28.7243), foi reestruturada a orgânica das secretarias
(agora “secretarias de Estado”, criando três - a do Reino, a da Marinha e Ultramar e
a dos Negócios Estrangeiros e Guerra). Esta última é desdobrada em 1787. A da
Fazenda é criada em 1788 (dec. 15.12). Com isto, atinge-se a especialização da alta
administração central que encontramos nos finais do Antigo Regime e que presidirá
ainda, basicamente, à repartição dos ministérios no constitucionalismo monárquico.
A partir dos meados do século XVIII, aparece a figura do “ministro assistente ao
242 Cf. bibliografia em António Manuel Hespanha, História das instituições [...], cit., 342 e António
83
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
244 Sobre a estrutura e funcionamento das secretarias de Estado no séc. XVIII, José Manuel Subtil,
246 Reg. do Arquiduque Alberto, caps. 6 e 7; Reg. do Conde de Basto, de 18.7.1633, Col. chron. leg.
84
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
248 Cf. bibliografia e fontes em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 249 ss.
249 Cf. g. na Historia portugueza e de outras provincias do ocidente […], de Manuel Severim de Faria, cod.
241 B.N.L. “Fundo geral”.
250 Literatura, fontes e ulteriores desenvolvimentos em António Manuel Hespanha, As vésperas
[...], cit., 250 ss. Por último, com antecipações dos resultados de um importante trabalho de
investigação em curso, José Manuel Subtil, “Governo e administração […]”, cit., 163.
251 Cod. 11543 da B.N.L. fls. 168-170.
85
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
252 João Martins da Costa, Domus Suplicationis […], cit., III, 585. Para a segunda metade do século
que começar pelos textos legais (para a Casa da Suplicação, Ord. fil. 1, 5-34; para a Casa do Cível, Ord.
fil. 1, 35-46; legislação extravagante abundante em Manuel Fernandes Thomaz, Reportorio geral […], s.v.
“Relação [...]”, “Casa da Suplicação”, “Casa do Cível”, “Desembargadores”) e pelos comentários
doutrinais: antes de todos, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomos 2 e 3 (v. os “estilos” da
Casa do Cível, em tomo 4, ps. 13 ss.), João Martins da Costa, Domus Supplicationis […], cit.. Literatura
secundária em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.. Com organigrama, José Manuel Subtil,
“Governo e administração”, pg. 170.
254 A Relação da Baía foi criada em 1609 (Regimento, 7.3.1609), extinta em 5.4.1626 e novamente
restabelecida em 1652 (Regimento em 12.9.1652). A Relação do Rio foi criada em 16.1.1751 (Regimento
em 13.10.1751).
255 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], ed. 1986, I, 330 ss..
256 Sobre a sua hierarquia simbólica, António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 228 ss..
86
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
paralelismo com a evolução portuguesa, ainda que manifestando uma sistemática precocidade, tem
interesse recordar os traços gerais da alta administração financeira castelhana. O Consejo de Hacienda
existia desde 1532, com atribuições e estrutura semelhantes ao português. A cobrança e administração
dos serviços (millones) votados em cortes corria pela Comissión de millones, criada por 1590, integrada no
Consejo em 1658, e correspondente, nas suas funções, à nossa Junta dos Três Estados. O reforço da via
governativa em matéria de fazenda leva à criação, desde 1714, de uma Secretaria de Estado e Despacho
especializada, marginalizando o respetivo conselho.
87
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
261 José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., 1, 1-49.
262 No domínio da administração, competia-lhes: arrecadar as rendas reais (cap. 3); administrar o
comércio ultramarino (incluindo as rendas da Madeira) e decidir sobre temas com ele conexos (como o
abastecimento, defesa e obras das conquistas), cap. 6; tomar as contas aos almoxarifes e contadores das
comarcas, bem como a outros oficiais que lhas devessem (vedores da fazenda do Algarve e do Porto,
contador-mor de Lisboa, recebedores e rendeiros), passando as respetivas cartas de quitação, caps. 6 e
30. ss:; administrar os bens próprios do rei (lezírias, paços, casas, armazéns, terecenas, fortalezas),
cap. 6; preparar a decisão real em todos os assuntos de graça que tocassem a fazenda, nomeadamente
tenças, ordenados, padrões, dada de jurisdições, etc. caps. 7, 9, 50, 51-54; dar condicionalmente -
por cartas de “se assim é” - rendas reais, caps. 11, 20; dar ofícios das sisas e direitos reais, caps. 21-33.
No domínio da jurisdição voluntária, cabia-lhes: arrendar e aforar propriedades (cap. 3); arrendar rendas
reais (caps. 3, 10, 52); despachar, por si ou por consulta ao rei, todas as cartas em matéria de fazenda
(cap. 5). No domínio da jurisdição contenciosa, estava-lhes atribuído o conhecimento: dos recursos
(eventualmente, de acções novas) em matéria de sisas, cap. 23; dos feitos em que fossem parte os
rendeiros de rendas da coroa, cap. 23; dos erros dos oficiais da fazenda, cap. 24; das apelações das
decisões de almoxarifes, recebedores e rendeiros, cap. 25; e, em geral, de “todas as cousas que
pertencem à nossa fazenda, & della dependerem por qualquer via que seja”, quer por ação nova, quer
por apelação, cap. 23.
263 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 236 ss.
88
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
265 Sobre elas, António Manuel Hespanha, “A "Restauração" portuguesa […]”, cit...
266 Fontes suplementares: António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 239.
267 Cf. lista dos seus oficiais, denotando algumas reformas internas, no reg. 29.12.1753 (Colecção de
269 Sobre esta última fase da alta administração financeira, v. José Manuel Subtil, “Governo e
271 Bibl. e fontes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 251 ss.
89
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
272 O primeiro publicado em Collecção chronologica de legislação (J.J.A.S.), vol. respetivo, 228 ss.; o
274 Relatório de Pascoal de Melo sobre a sua reforma, em Manuel Paulo Merêa, “Um relatório
notável” […], cit.. Sobre os seus funcionários, cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.,
253; José Manuel Subtil, “Governo e administração”, 169.
275 Collecção chronologica de legislação (J.J.A.S.), vol. respetivo, 87. Cf. para mais pormenores, António
Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 255 ss. (e bibl. aí citada). Sobre tipologia de despachos, v.
Marcello José Gomes Loureiro, “O Conselho Ultramarino e sua pauta: aspetos da comunicação política
da monarquia pluricontinental (1640-1668) – notas de pesquisa”,
http://nuevomundo.revues.org/65830.
90
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
276 Reg. 14.7.1642 [ou 1643?], Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, 151; Collecção chronologica de leis
279 Col. Chron. Leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, pg. 10. Literatura e fontes, António Manuel
Hespanha, As vésperas [...], cit., 256 ss..
280 Sobre o Conselho Geral do Santo Ofício, v. José Pedro Paiva & Giuseppe Marcocci, História
91
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades” (com indicações bibliográficas; v. outra
bibliografia em António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 380 ss.).
283 Em História da Administração Pública [...], tom. 1, ps. 162 ss..
92
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
284 “La lutte de classes en Portugal à la fin du moyen âge”, Recherches internationales à la lumière du
uma revisão da teoria marxista, sublinhando a importância dos fatores não económicos na
caracterização dos modelos sociais, nomeadamente no “feudalismo tardio”. Cf. António Manuel
Hespanha, História das instituições [...], cit., 1, 92 ss.); desenvolvi muito o tema, acrescentando dados
empíricos, em As vésperas […], cit..
287 José Mattoso, Identificação de um país […], cit.1 47 ss.
288 Cf. como síntese, Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades”.
93
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
290 Sobre estes aspetos, como elementos do complexo de mecanismos políticos da corte, António
coisa imóvel, ou equivalente, com a transmissão do domínio útil, retendo a propriedade, com
prestação de fidelidade e exibição de serviços” (Curtius, Baldo).
94
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
serviço leal. Esta ideia da especialidade do regime vassalático peninsular fez curso.
S. Tomás (De rebuspublicis et principum institutione292) também a corrobora, afirmando
que, nas Espanhas, e principalmente em Castela, todos os principais vassalos do rei
se chamavam ricos-homens, pois o rei daria a cada barão uma quantia, de acordo
com os seus méritos, não tendo a maior parte deles jurisdições ou meios militares
que não os concedidos pelo rei. De onde decorreria a sua dependência,
nomeadamente económica, em relação a este. Não é líquido que esta imagem
literária de um regime senhorial mais dependente da coroa aqui do que no resto da
Europa correspondesse à situação real. Num mundo escasso em registos cuidados
das situações vividas, era fácil esta disseminação de imagens baseada unicamente na
autoridade dos textos em que apareciam. O que é certo é que ela se perpetuou,
nomeadamente nos textos legais e doutrinais portugueses dos finais da Idade Média
e da Época Moderna.
§ 267. Em Portugal, é a Lei Mental (Ord. man.2,17; Ord. fil.2,35) que fixa, desde
os inícios do século XV, o regime das concessões vassálicas, em termos bastante
próximos das concessões feudais do direito comum. Aplica-se apenas às concessões
com obrigações de serviço nobre, excluindo - tal como a doutrina do direito
comum - as concessões contra uma prestação económica (como as enfitêuticas, cf.
Ord. fil.2,35,7; v. cap. 4.3.3). Quanto ao serviço, adota o “costume de Espanha”
referido nas Partidas, estabelecendo (Ord. fil.2,35,3) que o donatário não seria
obrigado a “servir com certas lanças, como por feudo, porque [elRei] queria que
não fossem havidas por terras feudatárias, nem tivessem a natureza de feudo, mas
fosse obrigado a servir, quando por elle fosse mandado”. Quanto à devolução
sucessória, afastou-se o direito feudal lombardo compilado nos Libri feudorum, que
permitia a divisibilidade dos feudos, e adotou-se293 a solução da indivisibilidade e
primogenitura. Depois, consagrou-se a exclusão da linha feminina, em consonância,
também, com a solução das Partidas. A Lei Mental favoreceu, por fim, o princípio
de que os bens da coroa, embora doados, nunca perdessem essa natureza, não
podendo ser alienados pelos donatários sem licença régia Ord. fil.2,35,3). Pouco
depois, no tempo de D. João II, estabeleceu-se a regra de que as doações deviam
ser confirmadas, quer à morte do donatário, (confirmação por sucessão), quer por
morte do rei (confirmação de rei a rei). Dois outros títulos das Ordenações (Ord.
af.2,24; II, 40; Ord. man.2,15; 2,26; Ord. fil.2,26; 2,45) interessam à definição das
relações feudo-vassálicas na Época Moderna. O primeiro lista os direitos reais, ou
seja, os direitos próprios do rei (v. cap. 4.2.2.2); o segundo fixa o princípio de que
tais direitos, bem como as jurisdições, não podem ser tituladas senão por carta 294,
fixando, suplementarmente, algumas regras de interpretação destas cartas (v. cap.
292 Cf.
https://books.google.pt/books?id=iFg9AAAAcAAJ&pg=PA270&lpg=PA270&dq=De+rebuspublicis
+et+principum+institutione&source=bl&ots=49pZ4W-Ppt&sig=x2tetuVox5weej2vOgRyDhFn-
iA&hl=pt-PT&sa=X&ei=Mp-
3VPyeK4T_UL6KgdAJ&redir_esc=y#v=onepage&q=De%20rebuspublicis%20et%20principum%20in
stitutione&f=false.
293 Decerto por atracão exercida pelo regime da sucessão da coroa e do princípio aristotélico,
recebido pelo direito comum, bem como pelos direitos feudais franco e siciliano, de que “as dignidades
e jurisdições não se dividem”.
294 Excluindo, portanto, a possibilidade de aquisição por prescrição, admitida pelo direito
comum.
95
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
6.9.2.1.2 )295.
§ 268. Na prática, a Lei Mental constituiu uma moldura jurídica muito
complacente, sendo frequentemente dispensada, no sentido de autorizar a sucessão
por linha feminina. Também a política de confirmações foi sempre generosa,
mesmo nos momentos de maior tensão política. À sua sombra, as casas nobres
puderam perpetuar-se (amparadas pelo princípio da indivisibilidade, por vezes
reforçado com a instituição de morgados dos bens da coroa).
§ 269. Todo este regime entrou em crise nos finais do século XVIII, embora
tal crise tivesse sido prenunciada pela política de centralização do poder. A lei de
19.7.1790 aboliu as justiças senhoriais e as isenções de correição; os restantes
direitos reais, nomeadamente, os direitos de foral e as banalidades, são abolidos na
sequência da revolução liberal.
§ 270. Vejamos, porém, mais detalhadamente, os traços mais característicos do
regime jurídico dos senhorios.
2.4.3.3 O que era um senhorio e qual o seu conteúdo institucional.
§ 271. Segundo uma definição da época, “chamam-se senhores aqueles que
estão constituídos em alguma dignidade ou poder; a quem foi concedida alguma
terra, jurisdição ou império; ou em relação aos quais o povo é súbdito” 296.
§ 272. Nesta definição, o elemento chave é poder ou os seus equivalentes na
linguagem jurídico-política da época - iurisdictio, imperium.
2.4.3.3.1 Jurisdição
§ 273. Por iurisdictio (jurisdição) entendia-se, como se disse, o “poder instituído
pela república de dizer o direito e decidir em equidade [enquanto pessoa
pública]”297. Quanto ao imperium, ele é definido como o “poder [de usar a espada]
para coagir os facínoras” 298. Aperfeiçoamentos conceituais sucessivos levaram a
que o imperium acabasse por ser sinónimo de poder de coerção de que um
magistrado pode usar oficiosamente, ou em vista da utilidade pública (merum
imperium) ou da utilidade de um particular (mixtum imperium) (v. acima cap. 2.1)299.
295 Sobre a Lei Mental, para além das sínteses de António Manuel Hespanha, História das instituições
[...], cit., 286 n. 526 e Marcello Caetano, História do direito português [1140-1495] cit., 513 ss. v. José
Anastácio de Figueiredo, Synopsis chronologica [...], cit.1, 26, 167, e João Pedro Ribeiro, Indice chronologico
[…], cit., 91, 110/111; Manuel Paulo Merêa, “Génese da “Lei Mental”, cit.; José Mattoso, Identificação
de um país, cit.. A Lei Mental, com as declarações e interpretações a que foi sujeita, pode ler-se em Ord.
man.2, 17, donde passou, pouco modificada, para as seguintes (Ord. fil.2, 35). Fontes doutrinais: Manuel
da Costa, In celeberrimas iuris Cesarei leges, & paragraphos Commentarii, & de maioratu bonorum patrimonialium,
et de regni successione [...], cit.; Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit.; Manuel
Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomos 10 e 11; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
liv. 2. Exemplos textuais, John Gilissen, Introdução histórica ao direito [...], cit., 193 ss..
296 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, ad Ord. fil.2, 45, rubr. gl. 1, n. 2.
297 Para Portugal, Cf. a definição estreitamente inspirada nesta, de Domingos Antunes Portugal
mero império [...] consiste no poder supremo de gládio [...]. Assim, diz respeito à coerção dos
criminosos, como, por exemplo, à condenação ou deportação e a outras coisas relativas à punição dos
delitos e à composição dos litígios [...]. O misto império compete aos magistrados por direito próprio,
96
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
pois adere e está compreendido na jurisdição [...], por esta razão se dizendo misto, pois está misturado
com a jurisdição de tal modo que não se podem separar. E como nesta mistura umas vezes se salienta o
império e noutras a jurisdição, costuma-se falar de dois graus de misto império, no primeiro dos quais
se compreendem aquelas atribuições em que o império suplanta a jurisdição, como mandar fazer
estipulações pretórias ou entregar a posse [...], e no segundo aquelas em que a jurisdição suplanta o
império, como dar juízes aos litigantes” (Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit.,
13, c. 44, n. 16).
300 Senhor é Cristo, senhores são os reis ou os príncipes, senhor é o pater em sua casa em relação à
sua mulher, filhos e criados. Fora disto, a palavra não se devia usar em termos genéricos: “A ninguém
se deve chamar meu Senhor, ou Senhor meu, nem nosso Senhor, por serem estes títulos próprios de
Deus no Céu, e do Rei na terra, e assim aos Donatários da Coroa, e Senhores de terras, só se pode
escrever Senhor de tal terra, porque ainda que destas o seja, não é das pessoas” (escreve Manuel
Álvares Pegas). Cf. sobre a diferença entre rei e senhor e a explicação de porque é que os reis de
Portugal se intitulavam apenas “senhores” da Guiné, João de Barros, Décadas da Ásia […], cit., liv.1,
6, cap. I.
301 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, Ord. fil.2, 35, ns. 11 e 43.
302 Para uma detalhada explicação do conteúdo deste título, cf. por todos, o respetivo comentário
de Manuel Alvares Pegas (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad Ord. fil.2, 35, n. 1
ss.); também Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 42; ou Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42 ss..
303 Aqui se fundava o direito às terças dos concelhos, à expropriação por utilidade pública e à
97
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
adjacente e das suas ilhas305, bem como das salinas306 e das pescarias307; ao domínio
das minas308; à exigência de portagens e barcagens; ao domínio dos tesouros, dos
bens vagos (res nullius) ou que tivessem vagado309, dos bens dos condenados a
confisco e dos infames, bem como dos bens que o direito penal considerava
perdidos para a coroa; às heranças vacantes, etc. (v. cap. 5.3.1.5)310.
§ 279. No caso português, a listagem de Ord. fil.2,26 terminava por uma
cláusula geral - “e assim geralmente todo o encarrego assi real, como pessoal, ou
misto, que seja imposto pela lei, ou por costume longamente aprovado” (Ord.
fil.2,26,33). Os juristas311 procuravam substituir estas enumerações, incompletas,
por uma definição. E, assim, definiam os direitos reais como os direitos que
competem ao rei enquanto pessoa pública. Distinguiam, então, os direitos que os
particulares (ou o rei, enquanto particular) tinham uns em relação aos outros em
virtude de pactos, daqueles direitos que o rei tinha em relação aos vassalos por
imposição da lei ou costume. Estavam, em todo o caso, conscientes de que, no caso
destes últimos, não se tratava de uma categoria homogénea, pois uns procediam
“do supremo poder do rei”, outros de um “domínio universal” que este teria sobre
o reino, outros ainda do direito originário de conquista, outros, por fim, de pactos
antigos, da prescrição ou de costumes longamente usados. Alguns recordam a
distinção romana entre aerarium, património destinado à “defesa do estado da
república, sua dignidade e salvação”, e fiscum, votado às despesas pessoais ou
particulares do príncipe. Mas quase todos reconhecem que as classificações
romanas não tinham relevo prático-institucional.
2.4.3.3.3 As categorias dos bens e direitos do rei. Bens privados, fiscais e
da coroa.
§ 280. Jorge de Cabedo, escrevendo nos finais do século XVI312, dividia os
direitos reais em (i) uns que “procedem do supremo poder do príncipe, competindo
305 Aqui fundavam alguns a pretensão portuguesa e castelhana ao monopólio do comércio com o
ultramar.
306 Aqui se fundava o direito de pôr tributos no sal, bem como o domínio real das salinas,
salgados e sapais (que muitas vezes eram dadas em sesmaria, para secagem e cultivo, Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 53).
307 Aqui se fundavam as sisas do pescado e os impostos das almadravas.
309 Caso típico é o das capelas ou morgados a que faltasse sucessor dentro da ordem de sucessão
definida pelo instituidor (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, 51, n. 3).
310 Destes direitos, os juristas distinguiam entre direitos reais reservados ao príncipe e aqueles que
ele podia transferir para outrem. Entre os primeiros contavam-se os sinais de supremo poder, como a
feitura de leis gerais, a reunião de cortes, a criação de magistraturas, a justiça suprema (nomeadamente
a revisão de sentença ou a justiça em última instância), o uso do poder extraordinário (potestas
extraordinaria) e a concessão de medidas de graça. Porém, alguns autores, na sequência da doutrina
feudalizante do direito comum, entendessem que o rei podia conceder estes direitos a vassalos, desde
que o não fizesse perpetuamente (cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 66), mais comum
era a opinião no sentido da sua inseparabilidade da pessoa do príncipe, “a cujos ossos adeririam”.
311 Cf. para Portugal, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42; Domingos Antunes
Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, caps. 41 e 43; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...],
cit., vol. 10, pg. 13; vol. 11, pg. 2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 4, 1 ss.; Francisco
C. S. Sampaio, Prelecções [...], cit., 3, 83.
312 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42.
98
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
316 Entre os primeiros, alguns seriam reservados ao rei, que não os poderia alienar (Jorge de
que “hoje os príncipes não costumam ter erários distintos e todas as rendas se recolhem juntamente [...],
não se devendo estabelecer nenhuma diferença entre o erário público e o privado [...] esquecido o nome
de erário, se lhe substitui o de fisco, que entre nós e os castelhanos se diz câmara real [...]” (Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 43, n. 6). “Quanto ao foro - escreve
também (Manuel Álvares Pegas (Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, n. 2) - nada interessa se o
património do príncipe é privado ou público, nem mesmo quanto à possibilidade de ser protegido pelo
Juiz dos Feitos da Coroa”.
318 “Enquanto que o príncipe pode usar e abusar livremente das coisas que pertencem ao seu
património privado, aliená-las livremente [...] e transmiti-las aos herdeiros, ainda que não sucedam no
principado [...], cit., já aquelas coisas que não são do príncipe, mas da majestade ou coroa, não
transitam para os herdeiros e ficam sempre no império e principado, sendo apenas devidas aos que
sucedem no reino” ( liv. 3, c. 43, ns. 7-8).
319 Enumera as vias, rios, portos, ilhas, bens vagos, bens dos condenados e dos proscritos,
incorporação, v. Ord. fil.2, 36; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 16, n. 8; Ord.
fil.2, 46; 2, 35, 22.
99
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
sujeitos à Lei Mental, podendo ser alienados pelos donatários ou partilhados pelos
herdeiros destes, e estando sujeitos ao regime do direito comum. Tal era o caso dos
bens dados pelo rei em enfiteuse (que estavam isentos da Lei Mental, regendo-se
pelo regime normal da enfiteuse; cf. Ord. fil.2,35,7 e 4,41) e dos reguengos doados
em propriedade plena, gratuitamente ou com a obrigação de pagamento de alguma
pensão (que podiam ser livremente alienados, Ord. fil.2,17). Portugal, muito apegado
a uma classificação bipartida de longa tradição no direito comum, não cria uma
categoria específica para estes últimos bens, limitando-se a dizer que, embora sejam
da coroa do reino, não se regulam pela Lei Mental321.
§ 283. São estes grãos de areia que obrigam juristas seguintes a introduzir
alguma complexidade suplementar na classificação.
§ 284. Tratamento interessante é também o de Manuel Álvares Pegas, no seu
tratado sobre a Lei Mental, incluído nos tomos 10 e 11 do comentário às Ordenações.
§ 285. Manuel Álvares Pegas começa por distinguir, tal como o seu
contemporâneo Domingos Antines Portugal, entre património privado (“enquanto
pessoa orgânica”) e público (“enquanto rei, e a que chamam domínio da coroa e
cuja propriedade respeita à majestade e à coroa”) 322. No entanto, como ele
reconhece, as questões que se punham na prática diziam apenas respeito ao
património público e, dentro deste, à distinção entre bens da coroa do reino, a que
se aplicava a Lei Mental, e bens reais a que esta não se aplicava. Do que se tratava,
portanto, era de introduzir uma ulterior distinção no seio do património público do
príncipe, distinguindo entre “bens patrimoniais e reais dei Rei” e “bens da
coroa"323. E cita Diogo Marchão Themudo: “Ha uns bens da Coroa sujeitos à
disposição da Lei Mental; outros são bens da Coroa, patrimoniais, que não são
sujeitos à Lei Mental: os primeiros são aqueles que são bens da Coroa por sua
natureza, como jurisdições, direitos reais, tributos, e aqueles que pela sua real, ou
verbal incorporação, são bens da Coroa, e não do Fisco, nem do Príncipe […]. E
todos os mais por qualquer maneira advindos à Coroa, como Capelas, e Morgados,
prazos vacantes, que ainda que se chamem da Coroa, não são daqueles bens que
estão sujeitos à Lei Mental, ainda que sejam do Rei, e do seu Fisco como Rei,
porque somente o são as ditas Jurisdições, direitos reais e tributos, e o mais que
pela real, ou verbal incorporação são verdadeiramente da Coroa [...] inalienáveis e
indivisíveis, sujeitos à dita Lei Mental”324.
§ 286. Passando à enumeração dos bens da coroa, Manuel Álvares Pegas vai-
321 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 43, ns. 26 e 29;
Jorge de Cabedo já se deparara com este problema de os reguengos poderem ser divididos. Mas
considera de problemática legalidade - em face dos preceitos das Ordenações (Ord. fil.2, 35, 17-18) -
uma sentença recente que o admitia (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 27, n. 5).
322 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, ns. 1-2. No tomo anterior,
324 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 18
100
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
os arrumando numa ou noutra categoria. Era claro que estavam sujeitos à Lei
Mental, as cidades, vilas e castelos325, os montes maninhos (ibid. n. 21), as jugadas
(ibid. n. 23), os direitos reais enumerados na Ord. fil.2,26, os foros, rendas e direitos
reais concedidos de juro e herdade (ibid. n. 24; cf. Ord. fil. 2,35,6), os padroados
(ibid. n. 25; cf. Ord. fil. 2,35,5), as jurisdições (ibid. n. 26), as alcaidarias (ibid. n. 31), as
décimas das ilhas (ibid. n. 34). Claramente isentos da Lei Mental – e, por isso,
livremente transmissíveis e divisíveis - estavam os bens vagos (ibid. n. 8), os bens
confiscados (ibid. n. 16), as sesmarias (ibid. n. 13), os ofícios (ibid. n. 30), os direitos
a desembargos régios ou as ações por serviços (ibid. n. 40)326.
2.4.3.3.4 A doutrina iluminista sobre o património régio.
§ 287. No texto, antes citado, de Diogo Marchão Themudo já se encontra in
nuce a distinção que mais tarde será feita por Pascoal de Melo Freire, ao contrapor,
no âmbito dos bens reais, os bens do erário público (ou da coroa do reino) aos
bens fiscais (dominiais ou reguengos). Pascoal de Melo327 procura aproximar-se da
distinção romana entre erário público (= bens da coroa) e fisco do príncipe (=
reguengos e direitos reais). Mas, nesta época de apogeu de uma conceção “pura” da
monarquia e de identificação do soberano com a própria república, este teórico do
absolutismo iluminado não deixa de pôr reticências à distinção, que está subjacente
aos conceitos romanos, entre “povo” (ou “república”) e príncipe, cada qual titular
do seu património público. E, assim, adverte que a distinção romana não costuma
existir de forma tão marcada nas monarquias puras, tal como também já entre os
romanos, na época do império e do dominado, se corrompera 328. Na verdade,
incorporando-se a república no monarca, os respetivos patrimónios fundiam-se
também, não sendo a distinção entre erário e fisco senão uma questão de palavras.
É isto que explica, quando esclarece que, na linguagem corrente, a distinção entre
bens da coroa e fiscais se baseava num uso da linguagem vulgar, que não no rigor
do direito. Na verdade, a palavra fisco era usada para designar os bens que tinham
vindo à coroa in malam partem (i. e. por motivos maus, como a punição de crimes e
indignidades), enquanto que se reservava a expressão “bens da coroa do reino” para
os bens incorporados por qualquer outra causa. E, assim, uns e outros deviam ser
considerados da mesma forma quanto ao seu regime jurídico.
§ 288. Aparentemente, o que Pascoal de Meio pretende é um alargamento do
regime dos bens da coroa a todos os bens fiscais, no âmbito de uma estratégia que
o leva também a considerar os ofícios como bens da coroa, sujeitos portanto às
normas da Lei Mental (nomeadamente quanto à necessidade de confirmação da sua
doação).
§ 289. Esta homogeneização dos direitos reais e a subjacente identificação
entre imperante e república, encontra-se, já sem quaisquer hipotecas à tradição
romana, em Francisco de Sousa Sampaio: “por direitos reais entendemos todos os
direitos, faculdades, ou possessões, que pertencem ao Sumo Imperante, como tal, e
325 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, n. 5.
326 Isto significa que estes direitos em relação à coroa podiam ser livremente transmitidos pelos
seus titulares (cf. em todo o caso, Ord. fil.4, 14).
327 Institutiones iuris civilis, cit., 1, 4, 1.
101
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
rendas das pescarias, os portos de mar, os veios de metal, as presas (Ord. fil.2, 104).
333 ibid. 2, 26, 103, n. I.
335 Cf. António Ribeiro dos Santos, “Sobre os tributos”, manuscr. Bib. Nac. Lisboa, Fundo
Novo Código: “Ao soberano poder e majestade, que recebemos de Deos todo-poderoso, de reger e
governar nossos reinos e estados, estão inerentes certos direitos reaes ou magistérios, necessarios para
procurar e manter a felicidade e segurança publica dos mesmos reinos, estados e vassalo deles [...]”
(António Ribeiro dos Santos, Notas ao plano do Novo Codigo […], cit., “Direitos reais”, 13). Mas, como
102
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
nota Ribeiro dos Santos. não deixa de sucumbir perante a confusão comum aos tratadistas anteriores
entre direitos reais “naturais” e direitos reais “positivos”.
338 Enumeração das coisas que não podem ser doadas nem mesmo expressamente, em Institutiones
iuris civilis, cit.2, 3, 40, seguindo um critério casuístico e de raiz legislativa que Ribeiro dos Santos,
coerentemente, rejeita; v. António Ribeiro dos Santos, “Sobre os direitos reais”, manuscr. B.N.L, FG,
cod. 4677, pp. 21 ss..
339 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 42.
341 Ibid. 2, 3, 39 nota. E continua (dando uma nova interpretação à distinção entre concessões de
bens da coroa e concessões feudais): “por isso as palavras meri et mixti imperio, do direito romano, e altae
et bassae iurisdictionis, do direito feudal […] devem ser interpretadas segundo o espírito da nossa lei, e não
significam hoje outra coisa senão a doação da simples jurisdição”, Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
2, 3, 39 nota. Sobre isto, cf. também Francisco C. S. Sampaio, Prelecções [...], cit., III, t. 45, § 169 e
nota b.
342 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 41 nota, pg. 64, in fine, abona-se em
Jorge de Cabedo, Decisiones […] pt. 2, dec. 38, max. n. 6); mas esta decisão refere-se a uma coisa
diferente - a inalienabilidade, por doação ou contrato, de uma regalia majora, a correição.
343 Salvo no caso dos bens vinculados (morgados e capelas).
344 Estes bens são da coroa, mas não estão sujeitos ao regime especial de inalienabilidade e
indivisibilidade prescrito na Lei Mental (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, c.
28, pg. 62).
345 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 8, ad Ord. fil.2, 1, 16; tomo 10, ad Ord. fil.2,
35, rubr. c. 4 (p. 12 ss.); tomo 10, ad Ord. fil.2, 35, rubr. c. 39 (p. 301 ss.), max. ns. 32 e 54; tomo 10, c.
41, pg. 322 ss.; tomo 11, c. 29, pg. 62; Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit.,
pt. 2, c. 43, ns. 24 ss..
103
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 295. (iii) Pessoas a quem o rei tinha concedido bens da coroa (tais como
foros e outras rendas perpétuas, direitos de foral, monopólios, relegos, barcagens e
portagens, tributos, direitos de padroado); tratava-se, então, de donatários da coroa,
sujeitos ao regime estabelecido na Lei Mental.
§ 296. (iv) Donatários de jurisdições, comportando, nomeadamente, o poder
de julgar; tratava-se, aqui sim, de senhorios.
§ 297. (v) Donatários de bens das ordens militares; não sendo bens da coroa,
apesar da incorporação nesta da administração das ordens militares nos meados do
século XVI, discutia-se, ainda na segunda metade do século XVII, sobre se estavam
sujeitas à Lei Mental346. Já na segunda metade do século XVIII, entendia-se que as
comendas eram bens da coroa, sujeitos ao regime da Lei Mental 347. Por vezes, as
comendas continham, para além de dízimas e terças348, capitanias de castelos e
jurisdição civil e militar. Neste último caso, podiam ser consideradas como
senhorios.
§ 298. Como delegados ou vigários do rei, os senhores estavam, por direito
comum, sub-rogados nos seus poderes e direitos. Sempre, todavia, com a limitação
de que nunca poderiam exercer aqueles direitos reais inseparáveis da pessoa do rei,
a que acima nos referimos (regalia maiora, regalia quae ossibus principis adhaerent).
§ 299. Em todo o caso, o regime português dos senhorios continha limitações
maiores na aquisição, exercício e transmissão dos direitos senhoriais. É disto que se
tratará em seguida.
2.4.3.5 A constituição dos senhorios.
§ 300. Um dos pontos em que o direito pátrio se afastara do direito comum e
mesmo do direito dos reinos vizinhos da Hispania 349 fora o dos títulos de
constituição dos senhorios.
§ 301. Enquanto que o direito comum, refletindo o acentuado pluralismo
político do feudalismo da Europa central-ocidental, era muito favorável ao
alargamento do poder senhorial, o direito português, sobretudo a partir dos fins do
século XIV, tendia para uma acentuada parcimónia no que respeita aos títulos de
constituição de senhorios.
§ 302. A partir da Lei Mental, o princípio que, como vimos, vigorava nesta
matéria era o de que a aquisição de direitos reais ou de bens da coroa tinha que ser
titulada por um ato escrito e expresso (doação, sentença, inquirição), princípio que
se fundava no texto das Ordenações350.
346 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad. Ord. fil.2, 35, rubr. c. 41, ns. 33 ss.
348 Referimo-nos, não às terças "dos concelhos”, mas às terças das dizimas eclesiásticas,
concedidas aos reis de Castela e de Portugal pelo Papa (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec.
63).
349 Quanto ao regime do direito comum acerca dos poderes senhoriais v. por todos, Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 45; também, Jorge de Cabedo, Decisiones
[...], cit., pt. 2, dec. 41, n. 7. Para um confronto entre o direito castelhano e o direito português quanto
a este tema, v. Bartolomé Clavero, Mayorazgo […], cit.
350 Ord. fil.2, 45; 2, 17.
104
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
dec. 41 per totam; Álvaro Valasco, Quaestiones […], cit., qu. 8, n. 21 ss.; Manuel Barbosa, Remissiones
[…], cit., ad Ord. fil.2, 45, 10; Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 13, per totam; Manuel Mendes de
Castro, Practica […], cit., pt. 2. c. 37, n. 12; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., liv. 3, disp. 7,
n. 46 ss..
354 Cf. para o regime do direito comum, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...],
Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., pt. 2, c. 45 per totum; Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,
cons. 141, n. 4 ss.
356 Cf Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, pg. 149 ss, 158 ss..
357 Para a discussão da questão, v. por todos, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo
105
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
358 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9 (ad Ord. fil.2, 28, rubr.), n. 82 ss. (p.
306).
359 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9 (ad Ord. fil.2, 28, rubr.), n. 85 ss.;
106
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2.4.3.6.1 Correição
§ 314. Nos termos da lei (Ord. fil.2,45,8 e 9), a correição não estava incluída
nas doações, a não ser que expressamente doada. No entanto, não faltam os casos
de doação da correição, quer durante o século XVI, quer durante o século XVII,
quer a senhorios eclesiásticos, quer a senhorios laicos.
§ 315. A isenção da correição tinha como efeito, pela negativa, proibir a
entrada do corregedor régio nas terras dos donatários e, pela positiva, sub-rogar o
ouvidor senhorial nas funções desse magistrado real. Assim, no caso de doação da
correição, os ouvidores senhoriais exercitariam todos os poderes dos corregedores,
incluídos os relativos ao conhecimento de feitos por ação nova ou por via de
agravo (Ord. fil.1,65, 22 ss.).
2.4.3.6.2 Apelações
§ 316. Como já vimos, a jurisdição senhorial é, em Portugal, uma jurisdição de
segunda instância, já que a de primeira instância pertence às justiças concelhias. O
conhecimento dos recursos das sentenças dos juízes das terras constitui, portanto, a
sua manifestação. Mas mesmo quanto aos recursos, as justiças senhoriais não
podiam, salva doação expressa - que é corrente em relação às principais casas
senhoriais -, conhecer dos agravos; pois estes deviam subir diretamente (“omisso
medio”) aos corregedores ou aos desembargadores dos agravos das Casas da
Suplicação ou do Cível (cf. infra)360.
§ 317. Das suas decisões, as justiças senhoriais têm que dar recurso para o
tribunal da corte. No caso de o título conter uma referência expressa à doação das
apelações ou dos agravos (normalmente, quando era doada uma coisa, era doada a
outra), o senhor ficava com o poder de conhecer dos agravos e, quanto aos feitos
cíveis, eles terminariam no ouvidor, não havendo possibilidade de recurso para a
corte361.
2.4.3.6.3 Jurisdição
§ 318. Como já se disse, a doação da jurisdição era dominada pelo princípio do
carácter intermédio da jurisdição senhorial, que ressalvava, para baixo, a jurisdição
dos juízes das terras e, para cima, o direito real de apelação (Ord. fil.2,45, 50 e 3,71).
A jurisdição senhorial era exercida ou pessoalmente pelo senhor ou pelos ouvidores
senhoriais, providos trienalmente. Devendo estes residir na terra de que são
ouvidores, com jurisdição sobre outras terras do mesmo senhor num raio de 5
léguas (Ord. fil.2,45, 32; 41 e 42). Por vezes, os senhores obtinham o privilégio de os
juízes de fora de terras próximas serem seus ouvidores, o que os dispensava de
pagar a um ouvidor próprio; outras vezes, obtinham licença para que o seu ouvidor
residisse na cidade mais próxima, onde a facilidade de recrutar pessoa competente
era maior.
360 A distinção entre apelação e agravos é, basicamente, a seguinte: as apelações são recursos
quanto à decisão de fundo; os agravos são recursos quanto a aspetos formais ou de processo. Cf. cap.
7.1.14.
361 Sobre as dúvidas quanto a este ponto, António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., n. III.
5. b).
107
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
362 São coisas diferentes. A “dada” consiste na nomeação definitiva pelo senhor. A “apresentação”
consiste na proposta de nomeação feita pelo senhor, mantendo-se a confirmação pelo corregedor ou
Desembargado do Paço. Na “confirmação”, mantém-se a escolha (ou “eleição”) pelo concelho,
substituindo-se o senhor ao corregedor ou Desembargo do Paço na ratificação da escolha.
363 Cf. Alv. 19.11.1631, em Col. Chron. Leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.
364 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, ad Ord. fil.2, 45, 34; Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3. c. 43, n. 47 ss.; João Baptista Fragoso,
Regimen […], cit., liv. 1, disp. 7, n. 55 ss. (p. 349).
365 Para uma análise detalhada de cada tipo de direitos, v. António Manuel Hespanha, As vésperas
108
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
europeias desde o século XII ao século XVIII. Modelos puramente teóricos, cuja
relação com a conjuntura sociopolítica era equívoca ou contraditória; modelos que,
porém, permanecem como “constrangimentos latentes” que sobre determinam as
estratégias políticas dos vários grupos sociais.
§ 324. Provavelmente, mais do que a resposta aos problemas da conjuntura
portuguesa da baixa Idade Média, a Lei Mental representa o produto das
representações que os juristas - dominados por esquemas categoriais próprios (e
socialmente aleatórios) - tinham dos problemas sociais do momento e do modo
mais correto de os resolver.
§ 325. Como já vimos brevemente, os princípios estabelecidos pela Lei Mental
para a transmissão dos direitos senhoriais eram vários.
§ 326. O primeiro era o da primogenitura e masculinidade: a sucessão deferia-
se obrigatoriamente, por linha masculina, ao filho mais velho do donatário. O que
implicava um certo tipo de indivisibilidade dos bens senhoriais por morte deste 366.
§ 327. A primogenitura parece expandir-se na área europeia a partir do século
XII, sobretudo nas sucessões nobres (v. § 908). Tem-se insistido no seu interesse
para a conservação do poder das famílias, maxime das grandes famílias; mas os
argumentos “sociais” não parecem suficientemente trabalhados, pois a maior parte
dos objetivos sociais da primogenitura eram assegurados pelo regime da indivisão
familiar, de resto tradicional nos direitos germânicos.
§ 328. A primogenitura acabava por ser, apenas, uma das formas de encabeçar
num só a totalidade dos bens, mantidos unidos pelo princípio da indivisibilidade.
§ 329. No sentido da indivisibilidade, destaca-se a permanência de certos
tópicos oriundos do discurso jurídico letrado, nomeadamente o princípio de que as
jurisdições e as dignidades não se dividem (dignitates et jurisdictiones non dividuntur).
Bem como a sua ilustração mais eminente, a da indivisibilidade da coroa, bem
estabelecida desde cedo e longamente justificada nas Partidas (2,15,2). Os costumes
feudais não eram, a este propósito, unânimes. O direito feudal lombardo
consagrava a divisibilidade (Lib. feudorum,1,8); mas o direito feudal franco ou o
siciliano consagravam a indivisibilidade.
§ 330. Em Portugal, o costume de não dividir os castelos e as honras - ou seja,
os bens que importavam o exercício de poder - é detestável desde os meados do
século XIII. Tanto quanto se pode saber pelos estudos existentes, o princípio da
sucessão indivisível e primogenitural desenvolveu-se a partir deste século,
sobretudo em dois domínios: (i) o da transmissão de bens com jurisdição anexa 367;
a fonte era, decerto, a lei Praeterea, dos Lib. feud. (2, 55, pr. e 1); (ii) o da transmissão
de bens cujas rendas estivessem vinculadas a certo objetivo unitário (capela,
hospital). Na segunda metade do século XIV, já era frequente assegurar a
indivisibilidade dos bens da coroa doados, ou por uma cláusula da doação ou pela
366 Note-se, de passagem, que existem dois tipos de indivisibilidade do património familiar. Um
deles é o da indivisibilidade que corresponde a um direito global de toda a família sobre os bens
(Gesamtvermögen, patrimónios em mão comum), em que todos os familiares são incluídos globalmente
na herança. Um outro é o da indivisibilidade em que os bens se concentram num dos herdeiros,
normalmente o primogénito e em que os restantes familiares são excluídos da herança. Apesar de se
tratar de dois tipos de devolução sucessória que conduzem à indivisão, têm significados estruturais
opostos (cf. John Gilissen, Introdução histórica ao direito [...], cit., 673 ss.).
367 Exemplos em Henrique da Gama Barros, História […], cit., vol. 8, 254-260.
109
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
368 Henrique da Gama Barros, História […], cit., vol. 8, 245, 270-271, 282.
369 Henrique da Gama Barros, História […], cit., vol. 8, 267, 279).
370 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, pg. 41, n. 2.
371 Sobre a questão, v. cap. 5.4.6. A solução vem a ser adotada por D. João IV, a pedido das
cortes de 1641 (cap. 27 da nobreza e 26 do clero); cf. Capítulos gerais, pp. 55, 76 e 81. Cf. António
Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5.
372 João Baptista Fragoso, Regimen […], liv. 3, pg. 149, ns. 46. Cf. cap. 5.3.1.1.
110
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
373 Proibição da venda, Ord. man.2, 17, 16; Ord. fil.2, 35, 19. Proibidas estavam também a
imposição de censo ou pacto de retrovender (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, c.
228, pg. 551) ou o emprazamento perpétuo, nas doações temporárias “enquanto for nossa mercê”,
Ord. man.2, 17, 22; Ord. fil.2, 35, 20). No entanto, podiam-se vender os frutos (ibid. pg. 548, c. 220) ou
arrendar por menos de 10 anos (ibid. pg. 556, c. 234), trocar por outros bens da coroa, com
autorização do rei (ibid. ) ou empenhar para pagamento de dote ou arras (Ord. man.2, 17, 17; Ord. fil.2,
35, 20).
374 Cf. exemplos em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., n. III.5.
375 O feudo podia ser simplex ou conditionatum, este último incluindo encargos ou cláusulas modais
(moderatio exercitii); outros feudistas distinguiam entre o feudum francum, livre de serviços, e o non francum,
obrigado a certo serviço (Baldo, Commentaria […], 1524, pg. 4, col. 2, n. 38; pg. 5, col.1 n. 53; João
Baptista Fragoso, Regimen […], liv. 3, disp. 8, n. 15); mas os feudistas tendiam a entender como natural
o carácter oneroso (cf (Mario Giurba, Repetitiones de successione feudorum […], cit., “Prael.”, ns. 31, 42
ss.).
376 A fonte é a C.R. de 8.4.1434 (Monumenta henricina, vol. 5, 9 ss..
377 Pascoal de Melo, cuja obra reflete a orientação centralizadora e anti senhorial dos finais do séc.
XVIII, considera que, sendo as doações de bens da coroa sempre remuneratórias de serviços, os
donatários estavam sempre obrigados a servir, mesmo em maior medida do que os outros cidadãos
111
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
(Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 28). É esta consideração que leva à criação, na
segunda metade do séc. XVIII, de um imposto sobre as rendas dos bens da coroa (“quinto dos
donatários”).
378 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 39.
379 Nas cortes de Évora de 1481, Garcia de Resende, Chronica [...], cap. 29.
380 Para detalhes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5; doutrina dos finais do
séc. XVIII, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 32 ss..
381 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit..
112
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
382 Sobre a liberalidade régia, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..
383 Sentido desta dispensa, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 30.
384 Cf. exemplos em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5. Regime da reversão à
386 Pela lei de 12.1.1587, na Collecção chronologica de [...] leis [...] delrey D. Sebastião, Coimbra 1819.
387 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cons. 167, n. 5; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2,
dec. I ss. (max. dec. 19, 1 ss.); Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., pt. 2, c. 7,
n. 25; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., t. 12, ad Ord. fil.2, 45, 12, gl. 14, ns. 4 e 5 (p. 167).
388 Cf. caps. 28 da nobreza e 16 do clero.
389 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 31 ss..
113
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
exemplos que se nos deparam são, por isso, excecionais. No século XV, surgem-
nos, isso sim, casos de terras doadas como satisfação de dívidas da coroa. E, como
também era uma quase dívida a remuneração de serviços, esta proibição de venda
de senhorios e jurisdições podia ganhar contornos menos nítidos. No século XVII,
os Áustrias vendem algumas terras. Depois da Restauração, a ideia de realizar
dinheiro com a venda de senhorios não se perdeu. Num arbítrio de 1683, o rei é
aconselhado a procurar “pessoas que comprem jurisdições, logares, reguengos,
officios, capazes de se poderem vender“. De D. Pedro II, encontramos pelo menos
uma venda de terra.
§ 348. Esta situação de um país em que apenas cerca de um terço das terras é
da coroa fixa-se, assim, no decurso do século XV e permanece praticamente
inalterada - se não considerarmos a incorporação na coroa da administração das
terras das ordens militares, nos meados do século XVI - durante os sécs. XVI e
XVII. Isto não obstante a exortação de Filipe II, no seu testamento, aos seus
sucessores no sentido de não alienarem bens da coroa, exortação que era
acompanhada pela revogação de todas as doações por ele feitas; o seu sucessor
encarregou-se de as renovar e de lhes acrescentar algumas. Só na segunda metade
do século XVII, com a perda para a coroa de algumas casas senhoriais
(nomeadamente, a de Vila Real) e com a criação das Casas do Infantado e das
Rainhas, surgem outros domínios territoriais da família real que estabelecerão um
equilíbrio novo entre o poder territorial dos dinastas e o poder territorial dos
senhores. A integração do mestrado do Crato na Casa do Infantado, bem como a
extinção, durante o século XVIII, das casas da Feira, de Aveiro e da Atouguia
constituem pontos importantes, embora tardios, deste movimento de redução das
terras do reino ao senhorio real, movimento que culminará com a extinção das
jurisdições senhoriais pela lei de 13 de Julho de 1790390.
2.4.3.9 O regime senhorial nos últimos anos do Antigo Regime
§ 349. Os juristas portugueses dos finais do Antigo Regime eram fortemente
influenciados pela literatura política, social e jurídica que, por toda a Europa,
preparava profundas reformas na sociedade e no poder. Ideias-chaves desta
literatura eram a da exaltação da unidade do poder (i.e. o reforço da ideia
monárquica e “a construção do Estado”) e a da generalidade e abstração do direito
e da justiça, no seio de um processo (eventualmente correspondente a um projeto)
de racionalização global dos mecanismos sociais e políticos. Todas as formas de
particularismo político (jurídico ou judiciário), bem como todas as manifestações de
desigualdade e de “irracionalidade”, tornaram-se odiosas, embora com algumas se
tivesse que condescender para salvaguardar as formas de governo estabelecidas 391.
§ 350. O regime senhorial constituiu, para os juristas mais avançados da época,
uma dessas pedras de escândalo. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão)392 inicia um
390 Sobre a política senhorial da coroa durante o século, XVI a XVIII, v. António Manuel
Hespanha, As vésperas […], III.5; e Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades” (que
inclui cartografia dos domínios senhoriais).
391 Cf. sobre o impacto dos novos ideais, individualistas, contratualistas e racionalistas e as
tensões que provocava com as instituições estabelecidas, António Manuel Hespanha e Ângela Barreto
Xavier, “A Representação da Sociedade […]”, cit..
392 Trata-se de um jurista tendencialmente conservador, do ponto de vista social e político, autor
114
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
título das suas Notas a Melo (1814) dedicado aos direitos senhoriais com as seguintes
palavras: “Os Grandes do Reino, os Senhores Donatários de terras com jurisdição,
muitas vezes são fáceis em ampliar os seus Direitos, e terríveis aos seus vassalos, e
súbditos, e concorrendo com este espírito a prepotência deles, e de seus
obsequiosos Ministros, todo o Direito arma contra eles a sua presunção para se
julgar extorquido dos súbditos por força, e violência, qualquer Direito ou tributo de
que não mostrem justo título”393.
§ 351. Era este o espírito, de que também se encontram traços evidentes em
Pascoal de Melo, em Pereira e Sousa, em Francisco Coelho Sampaio, que explica a
insistência em dois tópicos que, se não são novos, são pelo menos expressos com
um vigor novo neste final do Antigo Regime.
§ 352. O primeiro é o da natureza graciosa, precária e revogável das doações
régias e da sua dependência em relação ao bem público, arbitrariamente avaliado
pelo monarca. Este princípio foi sobretudo invocado na segunda metade do século
XVIII, não tanto para efetivamente revogar doações, mas antes para justificar o
direito da coroa a extinguir ou reduzir certos direitos seus (nomeadamente,
tributários), mesmo que daí resultasse prejuízo para os donatários. Isto acontece,
por exemplo, com a lei de 4.2.1773, que extingue direitos de portagem. Suscitando
um donatário, em tribunal, a dúvida se ela teria lugar mesmo nas terras senhoriais,
pelo prejuízo que daí adviria aos donatários, a Casa da Suplicação determinou, por
assento, que sim, pois os bens da Coroa não perdiam, pela doação, a sua natureza e
“o Principe, doando, não fica ligado para não poder alterar a doação, quando
concorre o bem comum dos Povos, pois a sua graça é limitada com a reserva da
Alta Superioridade e Real Senhorio, que sem exceção tem em todos os que vivem
no continente dos seus domínios e debaixo da sua Real Protecção, para poder em
benefício do Estado e utilidade comum dos Vassalos, com a repulsa de qualquer
interesse particular, fazer nova Legislação que ligue a todos em geral sem
excepção”394.
§ 353. O segundo tópico era o do carácter limitado dos poderes senhoriais,
nomeadamente, a sua estrita dependência dos termos da carta de concessão,
caraterística que a doutrina iluminista realçará muito mais do que a anterior 395. Este
princípio é sobretudo afirmado em relação aos direitos reais contidos nos forais e
concedidos aos senhores por doações genéricas (cf. supra), afirmando enfaticamente
a doutrina de que não podiam ser cobrados senão os direitos expressamente
contidos na carta de foral e que não estivessem excluídos na carta de doação396.
de obras de defesa das posições senhoriais (Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Discurso […] sobre os
direitos dominicaes […], Lisboa, 1819; Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Discurso sobre a reforma dos
foraes[…], Lisboa, 1825).; cf. António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador […]”, cit..
393 Manuel de Almeida e Sousa, Notas […], cit., 2, 3, 17 e 18, rubr..
394 Ass. de 24.4.1778, Collecção chronologica dos Assentos da Casa da Suplicação e do Cível, Coimbra,
1817, 474. A frase provinha do preâmbulo do alv. de 29.9.1768, que limitava os privilégios da Colegiada
de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães. Em todo o caso, a lei de 19.7.1790, a que nos
referiremos, prevê uma reparação pelos prejuízos (“particulares”) causados aos donatários pela extinção
da jurisdição senhorial. O mesmo acontece com os projetos de reforma dos forais, dos inícios do séc.
XIX (cf. António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador {…]”, cit.).
395 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 39.
396 Cf. em sentido destoante, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Discurso […], cit., § 84; sobre
115
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
primeiro banco, correição ordinária, juiz de cabeça de comarca, juiz de primeira entrância.
398 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 61.
399 Note-se que, no Algarve, funcionava uma Junta de Justiça, para onde se recorria (cf. Dec.
e de nomear as justiças atribuídas aos donatários pela nova lei, por ser contrárias às Ordenações (Ord. fil.2,
45, 2 e 13; 1, 66, 30; 1, 67).
116
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
401 Cf. por último, Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades”, no sentido de
117
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
412 E, por isso, nos teólogos anteriores ao século XIV, a atenção prestada à Igreja, como corpo
institucional, é muito pequena; basta compulsar um índice temático da Summa theologica, de S. Tomás de
118
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que estavam unidos misticamente a Cristo, por via de uma sua união formal ao seu
vigário na Terra, o Papa. Com isto, com a exigência desta comunhão visível com a
Igreja terrenal, a congregação dos crentes adquire uma dimensão externa: os
membros da Igreja podem ser identificados, contados, distinguidos dos que o não
eram; são formalmente admitidos (nomeadamente pelo batismo, como janua
Ecclesiae, “porta da Igreja”), e podem ser formalmente expulsos (pela excommunicatio,
excomunhão, privação da comunicação)413. E é isto que permite que à Igreja sejam
aplicados os quadros do pensamento político-institucional estabelecidos para as
outras comunidades (ou corpos) de homens.
§ 371. Esta jurisdicionalização da Igreja estava em marcha desde a Idade
Média. Mas, a partir da Reforma, a teologia polémica dos católicos contra a
“religião da interioridade”, contra o carácter fundamentalmente pessoal e interior
da fé e da salvação, proposta pelos luteranos, tinha incentivado a valorização das
dimensões visíveis e institucionais da Igreja, nomeadamente da ligação institucional
e jurisdicional ao Papa como único e indispensável sinal visível da comunhão com
Cristo e, logo, de pertença à Igreja.
§ 372. Em alguns teólogos mais exigentes e mais conhecedores da antiga
tradição teológica sobre a igreja, a complexidade originária do conceito de Igreja
ainda aflorava. Para Francisco Suarez (que ainda bebe, de muito perto, em S.
Tomás), a Igreja é “o corpo político e moral composto pelos homens que
professam a verdadeira fé de Cristo” (corpus quoddam politicum, seu morale ex hominibus
veram fidem Christi profitentibus compositum)414. Isto ainda se acentua quando, em
seguida, Suarez exclui do seu campo de reflexão a Igreja triunfante e declara
ocupar-se apenas da Igreja dos homens, no seu trânsito terrestre atual (Igreja
“militante”) (ibid.). Todavia, ainda entende a Igreja como excedendo aquela que
seria composta apenas pelos homens que se encontram em união (visível) com o
Aquino, em que as entradas relativas à Igreja são relativamente muito poucas (mesmo se considerarmos
que a obra ficou incompleta). Também os tratados teológicos De Ecclesia apenas começam a surgir nos
inícios do século XIV. Cf. sobre a eclesiologia em S. Tomás e na época seguinte, Otto Hermann Pesch,
Tomás de Aquino […], cit., 449 ss.
413 Tudo isto se relaciona, em todo o caso, com questões teológicas mais vastas, nomeadamente,
3.
119
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
415 “Nimirum omnes, qui fidem habent, ecclesia membra essent; vero qui illa carent extra
ecclesiam constitui”, ibid. n. 6.
416 Embora aqui pareça estar a pensar apenas nos que estão em fase de doutrinação para receberem
o batismo formal (catecúmenos) e não ao “homo nutritus in sylva” (selvagem) que recebeu o dom da
graça independentemente de qualquer contacto com a Igreja institucional.
417 António de San Jose, Compendium salmanticense [...], cit.. Trata-se de uma obra de vulgarização
419 Embora, em seguida, se matizasse um pouco, admitindo que os não batizados pudessem fazer
parte de uma Igreja invisível (o que, todavia, não lhes permitiria participar dos sacramentos); também
os hereges e cismáticos seriam membros de direito, mas não de facto, da Igreja.
420 Entre tantos exemplos, Cf. Sebastião de Abreu [jesuíta, professor de teologia na Universidade
de Évora], lnstitutio parochi seu speculum parochorum, Évora, 1700. Encontram-se estas definições no
comentário ao Credo (“Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica [...]”).
421 Note-se que o próprio poder papal se ia também temporalizando. Com o progresso da
120
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
427 Como António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Clericus”.
121
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
dos dois estados: “Do clérigo se diz que é um soldado espiritual [...] e apesar de ser
filho de um qualquer artífice ou ínfimo plebeu, enquanto clérigo consagrado a
Deus, é maior e superior aos soldados deste mundo, mesmo que príncipes e reis
seculares” (n. 1).
§ 377. A definição do estado clerical não era apenas importante para marcar as
hierarquias dentro da sociedade eclesial, mas ainda para delimitar o âmbito dos
privilégios (sobretudo jurisdicionais) do clero. E, neste plano, ele consistia numa
dedicação, formal e definitiva, ao serviço divino.
§ 378. A formalização desta dedicação efetuava-se ou pelo sacramento da
ordem (ou ordenação), num dos seus diversos graus, ou pela colação (i.e. a
nomeação para) de um benefício (i.e. ofício eclesiástico), ou pela profissão numa
ordem religiosa, masculina ou feminina 428. Das dignidades e ofícios eclesiásticos
diremos mais tarde. A ordenação era o sacramento em virtude do qual um leigo era
ligado ao ministério da Igreja, recebendo o poder de consagrar e administrar o
sacramento da eucaristia (Trento, sess. XXIII, cap. III). A ordenação (ou ordem)
tinha sete graus: três maiores ou sacros (presbítero, diácono e subdiácono) e quatro
menores ou não sacros (acólito, exorcista, leitor e ostiário [porteiro])429. E não era
acessível a todos. Dela estavam (e continuam a estar, na Igreja Católica) excluídas as
mulheres. Mas, para além disso, existiam múltiplos impedimentos (ou
“irregularidades”) à sua receção. Os canonistas identificavam três tipos de
irregularidades: morais (crime430 431, infâmia432, demência, embriaguez, esponsais 433,
mancebia pública, falta de vocação); físicas434 (sexo435, doença contagiosa
[nomeadamente, lepra], falta de vista436, privação de algum membro, aleijão ou
428 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Clericus”, n.2.
429 Para fazer corresponder os graus da ordem (i.e. a hierarquia da igreja militante) à hierarquia dos
anjos (i.e. da igreja triunfante: anjos, arcanjos, tronos, dominações, virtudes, principados, potestades,
querubins, serafins, Decreto, 2ª parte, C. 23, qu. 3 de poenit. dist. 2, c.. 45), alguns canonistas falavam
de nove graus, juntando um superior (o episcopado) e um inferior (a prima tonsura). Outros, pelo
contrário, consideravam que o episcopado era uma dignidade e a primeira tonsura, uma preparação
para a ordem. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. Cf. “Ordo”, n. 3.
430 Bastava a suspeita forte, indiciada pelo facto de se ter sido pronunciado.
431 Era esta interdição de efundirem sangue que impedia os clérigos de condenarem em pena de
sangue (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 26; Bernardino Carneiro,
Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 57).
432 Decorrente de heresia, cisma ou apostasia; de condenação em crime civil que a importasse (v. g.
guardar castidade e adotassem vestes religiosas; o mesmo podia fazer quem se encontrasse separado da
mulher por adultério desta. Em contrapartida, não podiam ser ordenados os casados por duas vezes ou
os casados com mulher que tivesse sido “conhecida” por qualquer outro homem. Cf. António Cardoso
do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 17. A ordenação impedia a celebração do matrimónio
(Extrav. Jo. XXII, liv. VI, cap. un.).
434 Sobre elas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. "Ordo”, nº 10 e ss.
435 “Ordinari potest homo masculus”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.s.v.“Ordo”, n.
9.
436 Bastava a cegueira do olho esquerdo, para evitar que o sacerdote virasse a cara ao cálice e à
hóstia durante a consagração, quando o missal está do lado esquerdo. A perda de um dedo, salvo o
polegar, não era irregularidade.
122
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
437 Cf. CR 17.5.1612 (mandando executar um breve de Paulo V que excluía os cristãos novos do
sacramento da ordem); revogado pelas LL de 25.5.1773 e 15.12.1774 (e breve de Pio VI, de 14.7.1779).
438 Abolido pelo alv. 17.7.1771, art.º X.
439 Variava com as ordens e com as dioceses (em Lisboa e Évora, por exemplo, não se podia
receber a primeira tonsura antes dos sete anos; o diaconato exigia os 23 anos e a ordem presbiteral, os
25).
440 Saber ler e escrever, para a primeira tonsura; saber latim, para as ordens menores; licenciatura
em teologia ou cânones, para o episcopato (em princípio). Cf. Conc. Trento, sess. XXII, cap. 2, sess.
XXIII, cap. IV e XI, de reformat.; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 10.
441 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 30.
443 Na Península não podiam, por exemplo, usar barba nem bigode.
444 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ordo”, n. 94. Os clérigos menores
casados (uma vez só e com mulher virgem) gozavam de privilégio clerical apenas no foro criminal
(Trento, sess. XXIII de reformat. cap. 6), se andassem de hábito e tonsura e fossem destinados pelo
bispo ao serviço em alguma igreja (Trento, sess. XXIII de reformat. cap. 6).
123
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
445 Sobre os manuais de confessores, v. para Portugal, Francisco Bethencourt, “As artes da
Summa theologica, de S. Tomás de Aquino (há edições modernas, bilingues e traduzidas em francês,
italiano e espanhol). Mas, nos séculos XVI e XVII, produziram-se sumas que exerceram grande
influência em Portugal e na Espanha. Sobre as principais e sobre a teologia moral da época, v.
Melquíades Andrés (dir.), Historia de la teologia española, cit..
447 Cf. Adriano Prosperi, Tribunali della coscienza. Inquisistori, confessori, missionari […], cit..
124
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
448 Sobre a eficácia disciplinadora da pregação (parenética), cf. João Francisco Marques, A parenética
cit.; Franquelim Neiva Soares, A arquidiocese de Braga no século XVI. Visitas pastorais […], cit.; Joaquim de
Carvalho, e José Pedro Paiva, “Repertório das visitas pastorais [...], cit.; 1990.
450 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia […], cit.; Francisco Salgado de Somoza,
125
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
452 É a doutrina tradicional (S. Tomás, Summa theol. 2a.2ae, qu. 99, art. 3), reafirmada pelo
concílio de Trento (sess. 25, c. 20); sobre o tema, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, liv. 2,
disp. 4, epit. n. 264 ss..
453 Sobre esta última questão, v. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, liv. 1, disp. 2, §
4, ns. 191 ss. (judeus), 225 ss. (pagãos); também, Serafim de Freitas, De iusto imperio lusitanorum asiatico,
cit..
454 A dignidade da Igreja estaria para a dos reis, como o sol estaria para a lua, ou como a alma
estaria para o corpo (João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt 1, liv. 2, disp. 4, epit. ns. 269 e 302;
pt. 2, liv. 1, d. 1, § 12, n. 283).
455 Desde o português Álvaro Pais no seu De planctu Ecclesiae, até alguns dos teólogos juristas da
Segunda Escolástica (Gabriel Vasquez de Menchaca, Torquemada), passando pelos grandes canonistas
italianos dos sécs. XII e XIII (Cardeal-Hostiense, Abade Panormitano, João de Andrea). Uma das
fontes jurídicas invocadas era o cânone Grandi non immerito (Liber sextum, 1, 8, 2), relativo à deposição de
D. Sancho II.
456 “São de facto dois, Augusto Imperador, os poderes porque se rege principalmente o mundo: a
autoridade dos sagrados Pontífices e o poder real” (c. duo sunt quippe, Decretum, 1, dist.. 96, c. 10). Cf.
nesta distinctio, outros textos sobre o tema. O Gen. falava da criação de dois luzeiros no céu, donde
Inocêncio III derivara a ideia de dois poderes (“Deus fez dois grandes luzeiros, ou seja, instituiu duas
dignidades, quais são a autoridade pontifícia e o poder real”, cit., João Baptista Fragoso, Regimen [...],
cit., pt. 2, lb. 1, disp. 1, § 12, n. 283); os Evangelistas insistiam na ideia de que “o Filho de Deus não
126
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
veio ao mundo para julgar o mundo, mas para o salvar” (João, 3; Luc.7).
457 Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit., pt. 1, cap. 1, n. 53.
458 Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit..; Luís de Molina, Tractatus
460 É o caso da permissão da prostituição, do divórcio, da usura, do teatro profano ou dos cultos
perturbar a fé dos fiéis, ou de confissões e práticas religiosas que, pela sua perfídia ou aberração,
escandalizassem ou corrompessem os costumes. Escrevendo nos finais do séc. XVI, João Baptista
Fragoso - que, assume uma posição tolerante para com os judeus (João Baptista Fragoso, Regimen [...],
cit., pt. 1, liv. 1, disp. 2, § 4, n. 191 ss.) - afirmava que “os impérios e os reinos são corroídos se as
pessoas públicas por temeridade ou audácia chegarem a pensar que para a conservação da República e
consecução da paz pública nada se deve acautelar no domínio da religião, antes se devendo permitir que
cada um viva como quiser e siga o que entender mais conveniente em matéria religiosa [...] O qual erro,
como muito pernicioso, deve ser erradicado completamente e por nenhumas razões permitido ao
magistrado [...]” (ibid. n. 213); o que levava ao ideal expresso numa inscrição que teria visto em Paris,
“unus Deus, una fides, unus Rex, una lex”.
127
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
463 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., ibid. n. 303; Ord. fil.2, 1 a 3.
464 Em Portugal e em Espanha existiam, pelo menos a partir do séc. XVII, fortes correntes
“regalistas”, defendendo as prerrogativas do monarca em relação à Igreja. Para além de tirarem partido
de argumentos doutrinais como os referidos no texto, apoiavam-se nos dados do direito pátrio,
estabelecido em concordatas sobretudo dos sécs. XV e XVI, pelas quais os reis peninsulares teriam
adquirido direitos e isenções particulares em relação ao direito canónico comum (cf. para Portugal, o
tratado sobre o poder real, de Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia […], cit.). Com o
pensamento político iluminista, a isenção do poder temporal viria a ser fundada em argumentos
doutrinais novos (cf. António Ribeiro dos Santos, De sacerdotio et imperio [...], cit.; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 5).
465 A edição oficial conjunta do Corpus Iuris Canonici é de 1582. Manteve-se em vigor até 1917,
embora atualizado pelos novos cânones e decretais (ius novissimum). Sobre a sistematização interna de
cada uma das suas partes, v. 1.3.2.
466 Era o que acontecia, por exemplo, com a admissão, pelo direito civil, da usura ou da
foro civil. Mas a disciplina eclesiástica sobre certas matérias, que hoje nos parecem como essencialmente
seculares, como o casamento ou o registo pessoal, manteve-se até muito mais tarde. O registo civil só é
definitivamente estabelecido com o Código Civil de 1867, enquanto que os casamentos celebrados
canonicamente só deixarão de ser regulados, mesmo à face do direito secular, pelo direito canónico em
1975.
128
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
468 Sobre a situação da doutrina setecentista sobre as relações entre a Igreja e a Coroa em Portugal,
Manuel Augusto Rodrigues, “Tendência regalistas e episcopalistas […]”, cit.. Para uma perspetival mais
geral J.-Ph. Genet (coord.), État moderne […], cit.. Fontes doutrinais sobre a jurisdição eclesiástica: além
de Manuel Mendes Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (= liv. 2), Antonio Vanguerve Cabral, Pratica
judicial [...], cit., pt. 1, caps. 50 ss..
469 V. Ord. fil.2, 1: eclesiásticos sem superior no reino (Ord. fil.2, 1, pr.; magistrado competente:
Corregedor dos feitos cíveis), eclesiásticos que residissem na corte (Ord. fil.2, 1, 4: idem), membros das
ordens menores (Ord. fil.2, 1, 4; 2, 1, 27: competência das justiças ordinárias laicas), questões sobre bens
da coroa ou “reguengos” (património fiscal do rei) (Ord. fil.2, 1, 17 ss.: competência das justiças
especializadas nestas matérias); outros casos: Ord. fil.2, 1, 1; 2, 1, 5; 2, 1, 20. No domínio criminal, os
eclesiásticos gozavam de uma isenção geral, salvo para os crimes de lesa-majestade (Ord. fil.2, 1, pr.; 2,
1, 4/27). Para além das fontes citadas, podem ver-se os respetivos comentários de Manuel Álvares
Pegas, Commentaria [...], cit., e, para o período iluminista, de Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis
[...], cit., 1, 1, 13 ss.
470 Em que o vigário-geral apenas recebia as denúncias, remetendo-as ao Tribunal do Santo Ofício,
473 Que obrigava a observar o processo canónico devido (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria
[...], cit., t. 8, pg. 142, com bibl.) Sobre o tema v. Joaquim de Carvalho, “A jurisdição episcopal sobre
129
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
fil.2,5).
§ 406. A Igreja pretendia, além disso, a competência sobre outras matérias:
como as que envolvessem pecado (com base, um tanto forçada, em Ord. fil.3,64;
por exemplo, a violação de juramentos, v. g. em contratos); aquelas em que as
justiças seculares não atuassem (denegatio iustitiae); as causas em que existissem partes
miseráveis (inopiae litigantium causa); e, em geral, todas as causas em que os litigantes
recorressem, espontaneamente, às autoridades eclesiásticas, “prorrogando a sua
jurisdição”, como se dizia tecnicamente. No séc. XVIII, porém, a doutrina
civilística, imbuída já de estatalismo, não reconhecia a jurisdição da Igreja nestas
causas meramente civis474.
§ 407. Restavam, ainda, para a jurisdição eclesiástica as questões de “foro
misto” (causae mixti fori) que não tivessem sido avocadas por um tribunal laico, de
acordo com a regra da alternativa475.
§ 408. No âmbito da jurisdição eclesiástica, havia também especialidades
jurisdicionais.
§ 409. Para o julgamento dos membros da capela real ou dos clérigos que
residissem na corte, bem como para o das questões relativas à existência 476 de um
direito de padroado, era competente o capelão-mor, que dava recurso para o Juiz
dos Feitos da Coroa da Casa da Suplicação477. Para o julgamento de membros das
ordens militares (Cristo, Santiago, Avis, Malta, esta gozando de um regime um
tanto particular478), existia um ramo jurisdicional específico. Com efeito, os
cavaleiros das ordens apenas estavam isentos da jurisdição temporal em matéria
crime (e, mesmo aqui, apenas se gozassem de uma renda suficiente) 479. Neste caso,
a competência jurisdicional de primeira instância pertencia ao Juiz dos cavaleiros
das Três Ordens Militares, nas questões que surgissem na corte, ou, nas restantes,
aos ouvidores junto da Mesa mestral de cada ordem. A segunda instância era a
Mesa da Consciência e Ordens (v. cap. 2.4.2.3.8). A terceira, o rei, como grão-
475 As causae mixti fori compreendiam: questões sobre obras pias (Ord. fil.1, 62, 39-40-42), sobre
capelas ou associações religiosas (Ord. fil.1, 62, 39), sobre casos de concubinato (Ord. fil.2, 1, 13; 2, 9),
sobre delitos mixti fori (lenocínio, incesto, envenenamento, blasfémia, usura, Ord. fil.2, 9), sobre
testamentos. A competência dos tribunais eclesiásticos era concorrente com a dos tribunais seculares: a
partilha fazia-se segundo as regras da preventio (conhecia o tribunal que primeiro tomasse conhecimento
do litígio [“prevenisse”, viesse antes]) ou da alternativa (a competência alternava, por certos períodos,
entre os tribunais eclesiástico e temporal). Os casos mixti fori foram abolidos pelo decreto nº 24, de
16.5.1832. Para além das fontes citadas, v. os respetivos comentários em Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], cit..
476 Para outros aspetos, v. Ord. fil.2, 1, 1.
477 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., “Praefatio”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis
isenção geral em matéria cível e crime (Leis de 18.9.1602, 6.12.1612, art. 6). Cf. Manuel Mendes de
Castro, Practica Lusitana […], cit., pt. 1, c. 24, n. 10; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
4, 3, 54.
479 V. Ord. fil.2, 12, 1-2 [fonte: Lei de 11.2.1536, em Duarte Nunes de Leão, Col leg. Extrav. cit.,
11.3.4.].
130
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
480 António Manuel Hespanha, As vésperas [...] [ed. de 1986], cit., l, 459 n. 162.
481 Cf. http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=116&id_normas=
39133&accao = ver.
482 Arquivo: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4206562.
483 Cf. sobre os processos de mediação de conflitos, António Manuel Hespanha, Lei, justiça,
131
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
132
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
487 Se o ofício era “perpétuo” (no sentido de indisponível por quem o dá), a jurisdição era
rendimento de certo benefício pelo titular da sua colação (i.e. por aquele a quem competia prover esse
benefício) a favor de uma pessoa eclesiástica ou leiga (cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado
pratico compendiario das pensões ecclesiasticas [...], cit., § 21 ss.). As pensões podiam ser impostas pelo Papa,
pelos bispos, pelos grão-mestres das ordens militares e pelos reis (como grão-mestres ou padroeiros).
489 Sobre este tema, v. v. g. Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., cap. IV; mais recente, útil
como roteiro, Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico […], cit., § 121 ss.
490 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 1, disp. 20, § 1, ns. 1 ss. (pp. 655 ss.).
491 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 n. 3 e 4. O Concílio de Trento
134
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 429. Tal direito dizia-se honorífico, pois encerrava certas honras, como a de
apresentar (i. e. indicar ao titular do direito de nomeação ou colação, normalmente
o bispo) o titular do benefício (normalmente o reitor ou capelão da Igreja), a de ter
a precedência nos atos de culto (como as procissões, os ofícios, a bênção, etc.), a de
ter direito a preces, a cadeira especial na Igreja ou no coro, a ter sepultura em lugar
de destaque, etc.493.
§ 430. Dizia-se oneroso, porque sobre o patrono recaía o ónus de defender a
igreja ou capela do seu padroado e de impedir que os seus bens se dilapidassem 494.
§ 431. Dizia-se útil, pois o patrono, sua mulher e família tinham direito a ser
socorridos pelos rendimentos da Igreja se caíssem na miséria 495. O Concílio de
Trento (sess. 25, cap. 9) proibiu os patronos de se imiscuírem na perceção dos
rendimentos do benefício, deixando-os na livre disposição do beneficiado.
§ 432. O padroado podia ser eclesiástico, leigo ou misto496, consoante o
benefício fosse dotado com bens da Igreja ou com bens de leigos. Os padroados
não podiam ser vendidos, mas transmitiam-se por herança497. O Concílio de
Trento, no sentido de libertar as igrejas e benefícios dos direitos de padroado,
extinguiu a possibilidade de transmissão mortis causa dos padroados, apenas
excetuando aqueles de que fossem titulares os reis ou imperadores 498.
§ 433. Apesar de a apresentação do beneficiado pertencer ao patrono, a sua
colação pertencia ao ordinário499. Nos padroados eclesiásticos, o direito de
apresentação era partilhado com a Santa Sé 500.
§ 434. Ao benefício ou igreja sobre o qual impendia o direito de padroado
podia ser dado um comendador, ou seja, alguém encarregado de os proteger. Nesse
caso, ficam impendendo sobre os mesmos bens eclesiásticos tanto os direitos do
patrono como os do comendador. No entanto, o comendador não fazia suas as
rendas do padroado, a não ser que isso tivesse sido previsto no ato da instituição da
comenda, assim como não adquiria o direito de apresentação dos beneficiados 501.
(sess. 25, cap. 9) exigiu, pelo menos, documento autêntico ou posse imemorial para prova do direito de
padroado, mandando considerar como nulos todos os padroados fundados noutros títulos, salvo
quando os seus titulares fossem os reis ou imperador.
492 Sobre o padroado, fontes de direito canónico clássico, Decreto, lI, c. 16, qu. 7; Decretais, Ib. 6;
Trento, sess. 24 e 25. Literatura portuguesa: Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.; Bento Cardoso
Osório, Praxis de patronatu [...], cit..
493 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 ns. 7 a 11
494 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 n. 12.
495 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 n. 14.
496 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res. 2, n. 1.
497 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res. 2, n. 6.
499 A colação de benefício sem a apresentação do patrono era anulável, Jorge de Cabedo, De
patronatibus [...], cit., c. 1, n. 3 ss. No caso de o direito de apresentação não ser exercido no prazo de
quatro meses (padroados leigos) ou de seis meses (padroados eclesiásticos) a contar da vacatura do
benefício, o direito caducava para o Ordinário (ibid. n. 9; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit.,
XI, pg. 176, n. 6.
500 A apresentação era do patrono se o benefício vagasse nos meses de Março, Junho, Setembro e
Dezembro; nos restantes era da Santa Sé (Conc. Trento, sess. 24, cap. 18; Francisco Salgado de
Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit., pt. 3, c. 9, n. 99). Além disso, em qualquer dos casos, o
provimento devia ser feito, no caso do padroado eclesiástico, por concurso (Ibid. ).
501 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1, n, s 1 e 2. ps. 90-91.
135
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
502 Cf. Jorge de Cabedo, De patronatu […], cit.; Bento Osório, Praxis de patronatu regio[…], cit.;
José Joaquim Lopes Praça, Ensaio sobre o padroado portuguez […], cit.; Bernardino Carneiro, Elementos de
direito ecclesiastico […], cit., § 212 ss..
503 Luís (D.) de Sousa, Demonstratio juris patronatus […] Innocencio XI, anno MDCLXXVII, oblata,
506 Excetuavam-se, porém, os territórios nullius diocesis, dependentes diretamente da Santa Sé,
como eram, em Portugal, as prelazias quasi episcopais (Santa Cruz de Coimbra [ab séc. XII], Santa
Maria da Oliveira de Guimarães [ab. séc. XV], priorado do Crato [ab 1443], priorado de Tomar [ab
1554], capela real de Vila Viçosa [ab 1581], as prelazias de Moçambique [ab 1612], Pernambuco [ab
1612], Cuiabá e Goiás [ab 1745]) e algumas igrejas e. capelas privilegiadas (v.g. capela real, casa real de
Santo António, Igreja das Chagas de Lisboa, capela da Universidade de Coimbra). Cf. Bernardino
Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 152, 157.
507 Direito catedrático (ou ceras) e colecta (ou procuração).
508 A partir do séc. XII, nos bens diocesanos distinguem-se os da mitra, administrados pelo bispo,
morto); cf. CR. 9.3.1801 (João Pedro Ribeiro, Indice chronologico […], cit, 1, 128); alv. 3.7.1806.
136
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
510 Cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 397-403.
511 Cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 404-406. As Relações tinham
também competência de primeira instância na diocese metropolitana naqueles casos em que uma das
partes era um bispo ou nas causas que se arrastassem por mais de dois anos nos tribunais das dioceses
sufragâneas (ibid. 404).
512 Na origem deste tribunal esteve uma bula de Júlio II, de 21.7.1554, segundo a qual as causas
julgadas no reino não teriam recurso para a Santa Sé; assim, tais recursos para fora do reino eram
também proibidos pela lei do reino (Ord. fil.2, 13, pr.; cf. ainda Bernardino Carneiro, Elementos de direito
ecclesiastico [...], cit., 406).
513 Cf. aviso 3.7.1672 e Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 7, 34; magistrado
competente: Juiz dos feitos da coroa da Casa da Suplicação (Ord. fil.1, 9, 12;1 12, 5/6). Este recurso
(neste caso, de agravo) existia em todos os casos de abuso da jurisdição eclesiástica (v. Ord. fil.2, 1, 12-
14; cf. Francisco C. de Sousa Sampaio, Prelecções […]¸1, 109 ss.).
514 Cf. L. 2.3.1568, em Duarte Nunes de Leão, Leis extravagantes […], pg. 279. A provisão de
19.3.1569 (= concórdia de 1578, art. XII) não foi recebida pelas Ord. fil.. Sobre este tema, Marcello
Caetano, “Recepção e execução dos decretos […]”, cit..
515 Cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico […], pg. 433.
137
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
possuir quaisquer bens pessoais, nem mesmo em administração 516. Quanto aos
cónegos regulares, viviam fora da catedral, tendo, porém, aí alguma função (i.e.
tendo aí um ofício) ou recebendo, apenas, aí alguma prebenda. Na Época Moderna,
eram estes que constituíam a regra517. Os ofícios canónicos eram vários. Deles se
distinguiam alguns, instituídos por direito comum. Assim, o arcedíago (archidiaconus)
ou primeiro diácono substituía o bispo nas suas funções temporais, nomeadamente
judiciais518. Nestas últimas funções adquiriram tal importância que, pouco a pouco,
a sua jurisdição foi sendo considerada como ordinária (e não delegada pelo bispo);
o Concílio de Trento reagiu contra este abuso, reafirmando o carácter apenas
delegado desta jurisdição e retirando-lhes a competência para conhecerem das
causas criminais e matrimoniais (sess. 29, cap. XX, de reformat.). No entanto, a
doutrina seiscentista continuava a atribuir-lhes a primazia sobre os restantes
cónegos e a entender que os costumes que lhes conferiam jurisdição mais vasta
(nomeadamente, jurisdição ordinária) prevaleciam sobre o direito comum 519 520. O
arcipreste (archipresbytero) ou primeiro presbítero velava pelo exercício do culto e
substituía o bispo nas funções sacerdotais521 522. Existiam outros ofícios, dignidades
e primazias capitulares (ou canónicas, canonicatos), instituídas pelo direito particular,
escrito ou costumeiro de cada diocese 523: tesoureiro, custódio, sacristão, primiceiro,
chantre, preposto, mestre-escola, prior524 e simples conezias525.
§ 442. O colégio dos cónegos formava o cabido (ou capítulo) com importantes
funções na vida da diocese. Estando esta provida de bispo (sede plena), competia ao
cabido aconselhar e auxiliar o bispo nos assuntos árduos da diocese,
nomeadamente relativos a benefícios526. Para além disso, e como competência
516 Cf. lista das congregações de cónegos regulares em Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit.,
c.1, n. 25 ss. Já os cónegos regulares de Santo Agostinho tinham uma regra mais permissiva: podiam
possuir em administração os bens necessários ao seu sustento e a obras pias, embora esta posse fosse
precária, pelo que lhes podiam ser a todo o tempo retirados pelo superior (v. ibid. n. 19).
517 Cf. Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 1, n. 46.
518 Decr. Greg. IX, 1, 23; Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 5; Bernardino Carneiro,
520 O deão (decanus) era o cónego que presidia ao capítulo, normalmente o mais velho. Não se
tratava de um ofício ou dignidade, pois não tinha jurisdição; mas apenas de uma primazia (Agostinho
Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 7.
521 Decr. Greg. IX, 1, 24; Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 6; Carneiro 1896, 182.
522 Os arciprestes urbanos exerciam nas catedrais e os rurais (forâneos ou vigários da vara) tutelavam
um grupo de paróquias.
523 Para estes cargos, v. Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., 8 ss.
524 Os priores podem ser regulares e seculares e estes colegiais ou rurais. Os últimos equivaliam a
a receber prebendas e porções diárias (sobre estas, Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 21).
Prebenda (ou porção), por sua vez, era o direito a receber certos proventos das rendas da igreja de que
se fosse prebendário (ou porcionário), tendo em vista o sustento próprio. Em sentido genérico,
prebenda equivalia a qualquer direito a receber rendas da Igreja em razão de um ofício eclesiástico. Em
sentido próprio, significava o rendimento anexo a uma conezia. A palavra aplicava-se ainda à perceção
de rendas da Igreja; independente do exercício de qualquer ofício eclesiástico, em retribuição de uma
função meramente temporal; neste sentido, podiam ser concedidas a leigos e por estes livremente
vendidas, sem perigo de simonia (Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 12).
526 Decr Greg. IX, 2, 10, 4; Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 164.
138
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
(Conc. Trento, sess. 24, cans. 1 e 2; dados que deviam constar e fórmulas, Agostinho Barbosa, De
officio, et potestate parochi […], cit., 1, cap. 7, ns. 1-10), além do registo das confirmações (ou crismas)
(ibid. n. 16); podiam ainda organizar outros registos atinentes à vida da paróquia.
531 Cf. Sebastião de Abreu, Institutio parochi […], cit..
532 Símbolo dos apóstolos [Credo], dez mandamentos, padre-nosso, artigos da fé sobre o batismo,
a eucaristia e a penitência (Conc. Trento, sess. 24, c. 4 e sess. 5, cap. 2; Sebastião de Abreu, lnstitutio
parochi [...], cit., liv. 2, caps. 4 e 5 e liv. 5).
533 Note-se como, nesta formulação “pós-tridentina”, a função sacramental dos párocos
condiciona a “receção da graça”. Entre os sacramentos destacava-se o da penitência, pelo qual o pároco
adquiria o poder de ligar e desligar em relação à Igreja. Sobre a função sacramental, v. Sebastião de
Abreu, lnstitutio parochi [...], cit., liv. 2, c. 7 e liv. 9.
534 Os sacramentos administrados pelo pároco são o batismo, a penitência, a eucaristia e a
especialmente proibido o convívio em tabernas, a embriaguez, uma pose descomposta (grandes risadas,
altas vozes, correrias, vestes imodestas ou sujas), o teatro, as touradas, os jogos (salvo o xadrez), a
caça, a pesca, o comércio ou agricultura profissionais, o porte de armas, Agostinho Barbosa, De officio,
et potestate parochi […], cit., 1, c. 6.
139
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
536 A paróquia podia consistir, v.g. em certas famílias ou numa comunidade. Sempre que o âmbito
dos fregueses fosse uma comunidade definida em razão da natureza das pessoas (e não do território), o
pároco tomava a designação de capelão (era o que acontecia com os encarregados de, v. g. monges, da
corte, de militares, etc.).
537 Com o tempo, muitos curados transformaram-se em novas paróquias, adquirindo o seu cura
por abade ou prior. Originariamente, o abade era o superior ou prelado de certas congregações
religiosas regulares (S. Bento, S. Bernardo, S. Basílio). E o prior era, em geral, a pessoa eclesiástica
dotada de preeminência. O termo era usado: (i) para designar uma dignidade do cabido; (ii) o primeiro
prelado de certas comunidades monásticas (v. g. conventos dominicanos, agostinhos, carmelitas,
jerónimos); (iii) noutras comunidades (beneditinos, monges de S. Bernardo), o segundo prelado,
depois do abade, frequentemente encarregado da direção de uma comunidade subordinada à casa
principal ou abadia); (iv) o superior das ordens militares.
539 O pároco era, portanto, apenas o seu administrador ordinário, devendo afetá-las, salvo
intenção em contrário do ofertante (v. g. para os cativos, para um oratório, confraria ou capela), às
despesas inerentes à cura de almas (cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos
ecclesiasticos [...], cit., ps. 164 ss.).
540 Os dízimos ó eram obrigatórios no plano do direito (canónico): (i) quando se deviam a título de
censo ou de outro contrato; (ii) quando se deviam por testamento ou legado; (iii) quando os ministros da
Igreja carecessem de côngruo sustento, caso em que os paroquianos podem ser compelidos a pagá-los
sob pena de excomunhão; (iv) quando estivessem introduzidos por costume de, pelo menos, dez anos
(Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 24, n. 23 ss.).
541 Cf. Barbosa, Agostinho Barbosa, De officio, et potestate parochi […], cit., loc. cit.; e Manuel de
Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., (que podem servir de guias
para o estudo mais aprofundado deste tema); ou Manuel de Almeida e Sousa (de Lobão), Tratado prático
compendiario das pensões eclesiasticas […], cit..
140
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
542 Ou seja, bens deixados para missas por alma de alguém (João Baptista Fragoso, Regimen [...],
cit., pt. 2, 10, disp. 24, n. 3). Note-se, porém, que estas aquisições estavam interditas pelas Ordenações
(Ord. fil.2, 18), que proibiam qualquer aquisição de bens por contrato e obrigavam a Igreja e pessoas
eclesiásticas a vender no prazo de ano e dia os bens adquiridos por qualquer outro título (cf. Francisco
C. S. Sampaio, Prelecções […], 2, 18, ps. 64 ss.). Esta norma foi, porém, pouco praticada; daí a reação
que suscitou a ameaça de a executar à risca, feita, como medida de chantagem sobre a Igreja, durante o
valimento de Olivares. Era, por exemplo, frequente que a Igreja recebesse bens em domínio pleno e
apenas alienasse, por meio de contratos de enfiteuse, o domínio útil, mantendo, portanto, as rendas.
Note-se ainda como a aplicação desta lei, que obrigava à venda dos bens de raiz adquiridos e proibia a
aquisição de outros bens imóveis com o produto da venda, produziria enormes quantidades de dinheiro
líquido nas mãos das entidades eclesiásticas; o que explica a sua propensão, quer para despesas
sumptuárias ou de consumo (também caritativas), quer para a colocação do dinheiro em padrões de juro
(embora a distinção, para este efeito, entre juros e outras rendas periódicas, fosse pouco nítida na
doutrina; decisivo era o critério da ligação da renda a algum bem imóvel).
543 Sobre a história das décimas, Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os
dízimos ecclesiasticos [...], cit., 86 ss. maxime, 96. Fontes de direito canónico, Decretais, 3, 30 (De decimis,
primitiis et oblationibus ).
544 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi […], 1, c. 28, § 1, n. 9.
546 Pelo rigor do direito, eram devidas mesmo de atividades ilícitas e torpes, como o meretrício ou
as comédias, embora não estivesse em uso cobrá-las. Já os lucros usurários eram sujeitos a décima
(Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 28, § 1, 31-33).
547 Decretais, 3, 30, 7; 22; 26; 28. Discutindo a questão, Agostinho Barbosa, De officio, et potestate
episcopi [...], cit., ibid. ns. 35-37; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos
ecclesiasticos [...], cit., 32 ss. O princípio da tributação do rendimento líquido é adotado, em Portugal,
pelas décimas civis; nos finais do Antigo Regime, há quem pretende estendê-lo aos tributos forais e
mesmo aos cânones enfitêuticos e censíticos.
548 As Decretais (3, 30, 14) dizem que elas constituem um quasi debitum exigível em juízo.
549 Era o caso dos cistercienses, templários e hospitalários, dominicanos, franciscanos, cartuxos,
clarissas, etc. quanto às terras que cultivassem pelas próprias mãos (mas já não pelas que dessem de
arrendamento) (Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 28, § 2, n. 18 s.
550 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, c. 28, §2, n. 7 ss.
141
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
551 Cf. Decretais. 3, 30, 13; para Portugal, Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidário […], cit., s.
v. “Terças pontificais”.
552 As Decretais (3, 30, 15 e 17), proíbem a concessão de décimas a leigos. Mas esta proibição podia
ser contornada por privilégio papal (cf. Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., ibid. n.
50 ss.). Também se admitia a invocação de concessão ou prescrição anterior ao concílio de Latrão
(1139).
553 Sobre elas, v. por todos, Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., l, caps. 24
a 27; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit..
554 Estas prestações estabelecidas pelo costume são, por isso, chamadas usuais (quando tivessem
lugar em época certa) ou casuais (quando correspondessem a atos de culto sem ocorrência e momento
certos [incertus an, incertus quando]).
555 “Sobre a simonia e que ninguem exija ou prometa algo em troca de coisas espirituais” (epígrafe
do título 5, 3).
556 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., 94, 97.
Cf. ainda Frei Joaquim de Santa Rosa Viterbo, Elucidario [...], vs. “decimas”, “mortalhas”, “obradas”,
142
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tendente a restringir abusos neste domínio fazia correr o risco de uma geral
insatisfação dos curas de almas. É isto que explica o silêncio do Concílio de Trento
sobre o assunto; que, no entanto, aí chegou a ser levantado 557.
§ 456. Em Portugal, a questão também foi conflitual. Não apenas entre os
fregueses que não se queriam ver constrangidos a ofertas usuais (muito menos, a
ofertas não usuais), mas também entre os párocos e os dizimeiros, a propósito da
garantia de uma côngrua paroquial mínima ou da pretensão dos dizimeiros de se
apropriarem também do rendimento das oblatas. Assim, em relação às igrejas e
capelas que fossem comendas das ordens militares, o Papa Paulo IV obrigou, em
1555, os dizimeiros a garantirem aos párocos uma côngrua de 100 cruzados,
sempre que estes não os obtivesse pelas oblatas da Igreja558. E a resolução régia de
18.7.1560 ratificou uma composição entre a Ordem de Cristo e párocos das suas
novas comendas, reservando para estes últimos as oblatas usuais (“ofertas de mão
beijada”, outras ofertas por ocasião do ofertório da Missa, bem como a
administração dos sacramentos e da encomendação dos finados) 559. Indiretamente,
a questão também interessava à coroa. Por um lado, porque ao rei incumbia a régia
proteção dos seus vassalos contra as exações da Igreja; depois porque, em certos
casos, as ofertas eclesiásticas eram conflituais com interesses específicos cuja tutela
competia à coroa560; finalmente, porque a fiscalidade eclesiástica concorria com a
fiscalidade real (nomeadamente, com as décimas militares). Além de que, tal como a
carga fiscal senhorial, a eclesiástica era mal vista pelo pensamento fisiocrático,
dominante nos finais do século XVIII e hostil a todos os ónus sobre a
agricultura561.
§ 457. A panóplia das oblatas era muito vasta, dependendo dos usos locais. As
mais importantes eram as ofertas funerárias, umas relacionadas com os ofícios
fúnebres e funeral, outras com missas de sufrágio e aniversários. À primeira
categoria pertencia a lutuosa562, direito do pároco à melhor peça de roupa ou vaso de
metal precioso, à sua escolha, por morte de um paroquiano 563. E ainda a porção
558 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos e
oblações pias, pg. 121
559 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos e oblações pias, pg.
123; José Anastácio de Figueiredo, Synopsis […], cit., 2, 73. Cf. também Manuel de Almeida e Sousa
(Lobão), (Terceira) Conferência sobre as oblatas […] e a expontaneidade dos seus offerentes, cit..
560 É o caso das ofertas funerárias, que prejudicavam quer os órfãos (cujos interesses eram
tutelados pela coroa, através dos juízes dos órfãos e provedores), quer os cativos (que beneficiavam
tanto de deixas expressas como de heranças para que não houvesse herdeiros [“resíduos”] e cujos
interesses eram defendidos pelos mamposteiros dos cativos).
561 Nos finais do século XVIII, verifica-se um movimento de paróquias das dioceses de Braga e
Porto no sentido de os fiéis não poderem ser constrangidos a pagar as oblatas. A questão chega à Rainha
que, num decreto em que aflora claramente uma política de proteção dos paroquianos contra as exações
eclesiásticas, manda que se faça silêncio sobre a questão, enquanto não se tomassem medidas
definitivas, cujo estudo encomenda ao Arcebispo de Braga (dec. 30.7.1790, Manuel de Almeida e Sousa
(Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., 129.
562 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 24, n. 32.
563 Segundo Lobão (Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...],
cit., 124), uma lei de 1515 fixou a funerária numa certa quota da terça (ou quota disponível, de que o de
cujus pode livremente dispor), lei que teria sido revogada em 1640, tendo subsistido os costumes locais
sobre os ofícios devidos e o seu custo, consoante a qualidade do falecido. O poder temporal tentou
143
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
restringir as exações eclesiásticas. Uma provisão de 1712, dirigida aos provedores, proibiu que se
forçassem os herdeiros a pagar sufrágios e obras pias não estabelecidas pelos defuntos. E uma lei de
25.6.1766, fixou as despesas com sufrágios e funerárias numa quantia “racionável, e conforme ao
direito” (Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., 126 ss.).
564 Das despesas funerárias, uma parte era obrigatoriamente para o pároco, a título de retribuição
do seu trabalho: era a “quarta funerária”, por se ter fixado o seu montante numa quota parte das
despesas funerárias e em obras pias (Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., c. 25).
565 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., 124.
566 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., pg. 154.
567 Do mesmo modo, o convento era também designado por “casa”. As abadessas eram tratadas
570 É a lição de S. Tomás: “foemina non potest habere aliquam jurisdictionem spiritualem [...] non
habent clavem ordinis, aut jurisdictionis”; (as mulheres não podem ter qualquer jurisdição espiritual [...]
144
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
lhe obediência571; podiam ser por ele julgados sem a observância de processo (sem
“figura de juízo”); podiam ser castigados e metidos em cárcere572. No domínio
patrimonial, esta semelhança com os filhos-família era enorme (v. cap. 3.2.4). Na
verdade, os monges, tal como os filhos, nem tinham, em princípio, património
próprio, nem gozavam de capacidade jurídica patrimonial. A sua entrada na vida
religiosa era marcada por um contrato de dote - semelhante ao das filhas que, pelo
casamento, entravam noutra família -, em que, além da outorga do dote, o pai
renunciava ao filho573. A partir da sua entrada em religião, o monge morria para o
mundo e tornava-se incapaz de domínio e posse: adquiria para o convento de que
se considerava filho, tal como os filhos adquiriam para o pater; os seus contratos
eram nulos; não podia testar; carecia de capacidade sucessória passiva, mesmo ab
intestato574. Ainda como os filhos, podiam-lhe ser concedidos pelo superior, a título
precário, alguns bens (“pecúlio”, tal como nos bens de que os filhos tinham a
administração, v. cap. 3.2.4) para fins lícitos e honestos575.
§ 461. A entrada em religião era um ato livre, precedida por um noviciado (de
um ano) (conc. Trento, sess. 24, caps. 15/16) e pela tomada de votos. Os votos
eram o de pobreza, castidade, obediência e estabilidade na vida devota 576. O voto
de pobreza implicava a renúncia à propriedade pessoal, comunicando-se todos os
bens próprios, catuais ou futuros, à congregação, sendo administrados pelo
superior da congregação, auxiliado por administradores ou por ecónomos (cf.
provis. 7.11.1790)577 578. A castidade implicava a abstenção, não apenas de todas as
formas de prazer sexual, mas ainda do matrimónio. A estabilidade na vida devota
implicava a proibição, não apenas de reverter ao estado laical, mas ainda de
abandonar a ordem (apostasia, punida no foro eclesiástico, com cárcere; v. § 2262).
pois não têm a chave da ordem ou da jurisdição); no mesmo sentido, diz João Baptista Fragoso que a
abadessa só tem o governo doméstico e que monjas que lhe desobedeçam pecam da mesmo forma que
as filhas. Por carecerem de jurisdição, as abadessas não podiam benzer nem pregar. Todavia, os bispos
ou provinciais podem cometer às abadessas, em caso de urgente necessidade, poderes de impor
preceitos sob penas espirituais (João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 2, disp. 24, § 6, n.
9).
571 Obrigações dos regulares: João Baptista Fragoso, Regimen [...], pt. 2, liv. 2, disp. 24, § 9.
573 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], 1, 306 ss..
574 O direito comum admitia que os monges herdassem para o convento; uma lei de 17.7.1769, de
proibido os pecúlios monásticos, por serem fonte de abusos (sess. 25, cap. 39, §§ 4/5); mas a prática
subsequente voltou a admiti-los.
576 Para alguns monges existe um quarto voto: de defesa da religião com armas (ordens militares),
de redenção dos cativos (ordem da Santíssima Trindade), de obediência devota ao papa (jesuítas), cf.
Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], cit., 1, 292.
577 Só na sua alienação ou hipoteca deviam intervir os capítulos, aos quais competia, de resto,
auxiliar o superior na resolução dos negócios árduos, cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal
[…], cit., 1, 292. As congregações, em contrapartida, podem possuir bens, com as restrições já
referidas para a aquisição de bens por entidades eclesiásticas; algumas ordens mais rigoristas (v.g.
capuchinhos) não podiam possuir quaisquer bens (cf. conc. Trento, sess. 25, cap. 3).
578 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], cit., 1, 300; João Baptista Fragoso,
145
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
quod natura omnia animalia docuit: nam ius istud non humani generis proprium, sed omnium
animalium, quae in terra, quae in mari nascuntur, avium quoque commune est. Hinc descendit maris
atque feminae coniunctio, quam nos matrimonium appellamus, hinc liberorum procreatio, hinc
educatio: videmus etenim cetera quoque animalia, feras etiam istius iuris peritia censeri. 4. Ius gentium
est, quo gentes humanae utuntur. Quod a naturali recedere facile intellegere licet, quia illud omnibus
animalibus, hoc solis hominibus inter se commune sit.”; D.1.1.2. “Pomponius libro singulari enchiridii.
Veluti erga deum religio: ut parentibus et patriae pareamus.”; D.1.1.3. “Florentinus libro primo
institutionum. Ut vim atque iniuriam propulsemus: nam iure hoc evenit, ut quod quisque ob tutelam
corporis sui fecerit, iure fecisse existimetur, et cum inter nos cognationem quandam natura constituit,
consequens est hominem homini insidiari nefas esse.”; D.1.1.4. “Ulpianus libro primo institutionum.
Manumissiones quoque iuris gentium sunt. Est autem manumissio de manu missio, id est datio
libertatis: nam quamdiu quis in servitute est, manui et potestati suppositus est, manumissus liberatur
potestate. Quae res a iure gentium originem sumpsit, utpote cum iure naturali omnes liberi nascerentur
nec esset nota manumissio, cum servitus esset incognita: sed posteaquam iure gentium servitus invasit,
secutum est beneficium manumissionis. Et cum uno naturali nomine homines appellaremur, iure
gentium tria genera esse coeperunt: liberi et his contrarium servi et tertium genus liberti, id est hi qui
desierant esse servi.”; 1.1.5. “Hermogenianus libro primo iuris epitomarum. Ex hoc iure gentium
introducta bella, discretae gentes, regna condita, dominia distincta, agris termini positi, aedificia
collocata, commercium, emptiones venditiones, locationes conductiones, obligationes institutae:
exceptis quibusdam quae iure civili introductae sunt.”; 1.1.6. “Ulpianus libro primo institutionum. pr. Ius
civile est, quod neque in totum a naturali vel gentium recedit nec per omnia ei servit: itaque cum aliquid
146
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
addimus vel detrahimus iuri communi, ius proprium, id est civile efficimus. […].”; D.1.1.7. “Papinianus
libro secundo definitionum. pr. Ius autem civile est, quod ex legibus, plebis scitis, senatus consultis,
decretis principum, auctoritate prudentium venit”.
582 Cf. Etimologias, liv. 5, 2-4 (http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/
Isidore/home.html ou http://penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Roman/Texts/Isidore/5*.html#1 -
original; http://ebookbrowsee.net/is/isidoro-de-sevilha-etimologias#.U14ok_ldWY4, traduc. port.;
28.4.2014).
583 Maxime, Decretum, pt. 1, dist. 1, c. 1. A principal fonte de Graciano é Isidoro de Sevilha,
585 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, cit., 7.2.4 e 7.3.1.
586 Usa-se a sua principal obra neste domínio, o tratado De Iustitia et Iure (3 tomos, 1593-1600).
147
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 466. Para compatibilizar a versão teológica das esferas do direito com esses
textos que fundavam as leituras dos juristas, Luís de Molina 587 explicava que estes
estavam apenas preocupados com os preceitos jurídicos que visavam os aspetos
naturais do bem comum, não cuidando dos seus aspetos sobrenaturais. Por isso,
não consideravam as esferas do direito relativas às dimensões do bem que estavam
para além da natureza, tocando aos destinos sobrenaturais. Nomeadamente, não
consideravam aqueles preceitos do direito divino que não estivessem contidos na
ordem das coisas mundanas. E expunha, de seguida, as sistematizações dos
preceitos jurídicos quanto à sua natureza adotadas ou por teólogos ou por juristas.
2.5.2 O direito divino.
§ 467. Para os teólogos, pelo contrário, o direito tinha duas esferas
primordiais, a do direito natural e a do direito divino. O direito natural estaria
impresso por Deus na mente dos homens, de tal modo que estes poderiam
distinguir o bem do mal e conduzir-se em conformidade. Já o direito divino – que
por certo incluía o anterior, já que fora Deus o criador e ordenador da natureza –
incluía ainda preceitos estabelecidos por Deus, mas não inscritos na lei da natureza,
como os contidos no Antigo e Novo Testamento sobre deveres sobrenaturais dos
crentes, sobre cerimonial e outros (v.g. a instituição dos sacramentos). Por
contraposição ao direito divino natural, este último era o direito divino positivo.
Este direito divino positivo, fundado em preceitos diretos de Deus, tinha a mesma
natureza – voluntária, não natural – do direito criado pelos homens, para reger as
suas comunidades. Por isso, algum direito divino e todo o direito humano
distinguiam-se, pela sua natureza voluntária, do direito natural588.
§ 468. Dentro do direito humano, distinguia-se entre direito das gentes, direito
civil e direito canónico. O primeiro era comum a várias nações (embora não
necessariamente a todas).
§ 469. O direito civil era estabelecido em particular por uma comunidade
(república, cidade) para completar o seu regímen 589 e o direito canónico,
estabelecido pela Igreja para a sua disciplina interna 590. Se o direito das gentes não
carecia de uma especial positivação, por razões que se verão, já o direito civil e
canónico não existiam nem por natureza nem por um vago consenso, exigindo atos
de instituição ou positivação591.
§ 470. Para os juristas, que não cuidavam do direito visando fins sobrenaturais,
a referência ao direito divino positivo ou ao direito da Igreja era escusada, ficando-
se, frequentemente, pelas três categorias de direito natural, direito das gentes e
Para uma visão mais teológica do assunto, apoiando-se muito na lição de Tomás de Aquino, v.
Domingo de Soto, Tractatus de iustitia et de iure […], liv. 1, qu. 3 e ss..
588 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., Liv. 1, tract, 1, disp. 3, ns. 3 a 5.
589 Na verdade, as comunidades humanas também se regiam por preceitos de direito natural e por
preceitos de direito das gentes, pelo que o direito civil tinha a função de um complemento, justificado
pelas particulares condições de certa comunidade (lib. 1, tract. 1, disp. 3, n. 6).
590 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 3, n. 5.
591 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 3, n. 5, disp. 3, n. 6.
148
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
direito civil592.
Em todo o caso, a questão da eficácia do direito divino positivo –
nomeadamente do direito da Igreja (direito canónico) - era bastante relevante, em
termos práticos, pois a Igreja invocava as suas prerrogativas jurídicas contra o
poder temporal e os seus agentes.
§ 471. Na verdade, a Igreja reclamava o direito à sua liberdade, quer de auto-
organização, quer de desempenho do seu múnus pastoral, assim como se
considerava autorizada a coagir os príncipes cristãos a observar um mínimo das
regras de convivência cristã, impedindo, pelo menos, que as leis temporais
induzissem em pecado. Os casos de violação, pelos poderes temporais, destas
liberdades da Igreja estavam listados na bula In coena Domini (ou Bula da Ceia), que
era lida anualmente nas dioceses de todo o orbe católico, nos ofícios de Quinta-
Feira Santa593. De acordo com este documento, o Papa tinha o dever e o direito de
“defender a liberdade e jurisdição da Igreja contra todas as nações e gentes que se
desviassem (aberrare) do ovil de Cristo [...] de modo que aqueles que não se
coibissem por temor a Deus, fossem compelidos pela severidade da Igreja”,
podendo, para isso “derrogar os estatutos [i.e. direito temporal positivo] contra a
liberdade da Igreja, trazer a tribunal os que ocupassem a sua jurisdição e convencê-
los com remédios oportunos” 594. Na verdade, o múnus sobrenatural do Papa
permitir-lhe-ia revogar as “leis civis escritas e não escritas, que aprovassem os
crimes/pecados (scelera), mesmo apenas veniais, dos súbditos […] se os seus
autores, advertidos pelo Papa, não os quisessem revogar” (ibid. ns. 5 a 8), bem
como punir as violações aos preceitos da Bula 595 com a excomunhão perpétua (i.e.
subsistente, mesmo depois da morte do Papa que a proferira 596)597. Embora muito
controversa em todo o orbe católico e frequentemente proibida pelos poderes
temporais, a Bula da Ceia punha à disposição da Igreja um meio muito eficaz de
controle do poder temporal e de filtragem do direito civil – a excomunhão. Por
isso, constituía um reforço importante da eficácia do direito positivo divino
(nomeadamente, do direito canónico) em relação ao direito positivo temporal.
2.5.3 O direito natural e o direito positivo.
§ 472. Mais importante do que a arquitetura das distinções destes vários
direitos era a razão de ser delas, a qual se reportaria à natureza dos próprios
preceitos. Esta natureza implicava hierarquias e graus de indisponibilidade que se
iriam refletir em várias questões da dogmática das fontes de direito. Vale, por isso, a
pena detalhar algo mais a representação dos direitos e da sua força vinculativa que
está por detrás destas classificações
595 A Bula tipificava vinte casos de violação de violação das imunidades da Igreja. Cf. João Baptista
149
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 473. O direito natural era o que vigorava em todo o lado, porque a sua
eficácia provinha da natureza e não do arbítrio de legisladores. Este direito
assentava, assim, numa prévia ordenação do mundo, na qual as coisas e situações
tinham uma valia impressa por Deus na natureza, por vezes positiva, por vezes
negativa. Daqui dependia serem proibidas ou, pelo contrário, serem impostas pelo
direito natural. Nestes termos, as coisas eram boas – como socorrer a extrema
pobreza - ou más – como mentir ou furtar -, antes de o direito positivo dispor
sobre elas598. O direito natural equivalia à vontade ordenadora de Deus, naquela
parte em que a razão natural dos homens a podia entender. Era neste sentido que
os teólogos tomistas falavam, a propósito deste direito e das suas relações com o
direito divino, numa “participação” do homem no seu conhecimento: o direito
natural era o direito divino, mas apenas na medida em que este era acessível à
intuição humana. Para lá desta, estavam os preceitos escondidos da ordem divina,
alguns dos quais tinham sido explicitados e tornados obrigatórios como comandos
expressos (e algo misteriosos) de Deus dirigidos aos crentes, nomeadamente nas
Sagradas Escrituras (direito divino positivo). O facto de o direito natural estar ao
alcance de todos por via exclusivamente racional tinha consequências importantes:
ele vigorava para todos – e não apenas para os crentes – e era conhecido por todos
que tivessem o uso da razão, de tal modo que o erro sobre ele não desculpava.
§ 474. Pelo contrário, o direito positivo surgia de um preceito (praeceptum) ou
ordem, tendo origem na vontade de quem o emitia. Como tinha como objeto
situações ou coisas que a natureza não regulara, o caráter bom ou mau dessas
situações decorria do próprio preceito. Por isso, se se podia dizer que o direito
natural traduzia um equilíbrio estabelecido (uma razão, ratio), o direito positivo
traduzia uma vontade (voluntas), a vontade do que o emitira - ou, de uma forma
mais mitigada, útil para resolver um caso intermédio, o do direito das gentes, como
se verá - a vontade de quem tacitamente se lhe tivesse acomodado (podendo não o
fazer). Assim, eram de direito positivo civil os prazos de prescrição ou os
processuais, as formalidades dos atos jurídicos; de direito positivo divino, o jejum
da quaresma, o preceito da comunhão anual, etc.599.
§ 475. A existência do direito positivo derivaria tanto do facto de nem tudo ter
sido regulado pela natureza, como de que as luzes que a mente humana teria para
conhecer a ordem do mundo eram limitadas e equívocas, carecendo de certificação
por um preceito suplementar, este de direito positivo, que esclarecesse e fixasse os
contornos obscuros do direito natural em certas situações. Sem esta determinação
suplementar, o regime das comunidades seria incompleto, incerto ou sujeito a erros.
Era, portanto, para remediar esta possibilidade de erro sobre o direito natural que
surgia o direito positivo, fixando autoritariamente um preceito que faltava ou estava
incerto no direito natural600.
§ 476. Questão mais complicada era a de saber se o direito positivo podia,
além de concretizar o direito natural, revogar, mudar ou dispensar em casos
concretos as disposições deste. A resposta comum era a de que isso era não
possível naqueles casos em que o preceito natural fosse forçoso ou inevitável, como
150
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
aconteceria, por exemplo, com os preceitos de Decálogo (não por serem dados por
Deus aos homens, mas por corresponderem a normas naturais inevitáveis, ou seja,
indelevelmente impressas na consciência). Noutros casos, em contrapartida, a regra
natural podia deixar de obrigar. O exemplo era o do preceito natural de que as
coisas deviam ser restituídas ao seu dono por aquele que as tem precariamente
(como no depósito). Porém, podiam dar-se circunstâncias em que esse preceito não
devesse ser cumprido, como no caso da restituição de uma coisa ao seu dono,
estando ele louco ou possuído de furor tal que a própria coisa corresse o risco de se
perder601. Realmente, não se trataria de uma mudança do preceito, nem da sua
revogação ou da sua dispensa, mas da ocorrência de circunstâncias na situação
regulada (objectum praecepti) que excluíam a aplicação do preceito de direito natural
naquele caso, por faltar a razão natural para isso, ou até por surgir uma razão
natural para a não aplicação. Esta mutabilidade do direito natural por causa da
mutabilidade das circunstância explica porque é que o direito civil podia modificar
o direito natural, ao determinar a modificação das circunstâncias da situação que era
objeto de uma regulação natural602. Um exemplo era o da usucapião. Era proibida
pela regra de direito natural de que ninguém se podia apropriar de uma coisa de
outrem. No entanto, o príncipe teria o direito de tirar as coisas aos seus súbditos e
de as dar a outrem, quando isto fosse vantajoso para o bem da república. Daí poder
estabelecer circunstâncias perante as quais as coisas pudessem mudar de dono por
força da lei (da vontade do príncipe) quando isso fosse conveniente para a
tranquilidade e certeza do comércio jurídico e para o adequado cuidado de cada um
pelas suas coisas603. Outro exemplo era o da introdução (pelo direito das gentes) da
propriedade particular. Na verdade, Deus conservara as coisas em comum entre os
homens, por direito natural; mas não estabelecera que elas devessem ser comuns,
como também não proibira que se dividissem para melhor se administrarem e se
evitarem litígios entre os homens por causa do seu uso. Daí que, depois do Dilúvio,
os homens tenham, em quase todas as nações, dividido as coisas ou, pelo menos, se
tenham acomodado a essa divisão604. Também o estado de liberdade existiria por
natureza605, antes que os homens tivessem pecado. Tendo, porém, surgido o mal,
alguns homens tinham cometido atos ilícitos contra outros, tendo estes reagido pela
guerra justa dos outros contra eles. Nestas guerras, era de direito natural que o
vencedor matasse o vencido; mas também era um preceito da razão natural que
quem podia o mais, devia poder o menos. E, assim, ter-se-ia passado a permitir
entre muitas nações que os vencidos pudessem ser conservados (servare, servi), como
alternativa mais branda à sua morte606.
2.5.4 O direito positivo.
§ 477. O direito positivo divino tinha sido estabelecido ou por Deus
diretamente, ou pelos seus anjos e pelos seus profetas, em seu nome, ou por
aqueles a quem Deus tivesse dado o poder de estabelecer leis 607. Era este direito
151
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
que preceituava os jejuns, a observância dos dias santos, a não ordenação dos
bígamos.
§ 478. O direito positivo humano era constituído pelo direito das gentes e pelo
direito civil.
608 Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure […], cit., liv. 1, qu. 5, a.1 (corresponde a S.
Tomás, Summa, 1a.2ae, qu. 95I; também, 1a.2ae, 1, qu.5, a.3; e, sobretudo, 1a.2ae, qu.1, a.3).
609 Exemplo destes processos de dedução em Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure […],
152
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
613 “Qualis debeat fieri lex. Erit autem lex honesta, iusta, possibilis, secundum naturam,
secundum consuetudinem patriae, loco temporique conveniens, necessaria, utilis, manifesta quoque,
ne aliquid per obscuritatem in captionem contineat, nullo privato commodo, sed pro communi civium
utilitate conscripta” (Etymologiae, liv. 5, 21).
614 Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure […], cit., I. qu.5, a.3.
153
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
a sustentar a sujeição do direito positivo a esferas mais elevadas do direito 615, não
apenas para garantir que a resolução justa dos litígios se fazia por uma medida justa,
mas ainda para que os povos não fossem habituados a uma disciplina errada.
Também aqui, porém, as circunstâncias políticas contemporâneas, iam atenuando
estas vinculações do direito positivo, nomeadamente daquele que provinha de
comunidades ou príncipes que não reconhecessem superior, como os reis ou as
repúblicas soberanas. O texto mais invocado era D.1,3,31 que declarava, embora
com um sentido menos forte do que se quis fazer valer616, que o príncipe estava
liberto da obediência às leis (prínceps legibus solutus). Isto era muito enfatizado, quer
pelo regalismo da época, no sentido de afirmar que o poder do príncipe não estava
sujeito ao poder do Papa, pois este não era senhor do mundo temporal, quer pelos
juristas favoráveis à extensão do poder legislativo dos reis, com o objetivo de
afirmar que o rei, ao usar do seu poder extraordinário (potestas extraordinaria), podia
contrariar o direito positivo já existente e – embora apenas em algumas
circunstâncias e mediando justa indemnização – podia passar por cima de direitos
de particulares. No entanto, a faculdade de violar os preceitos da razão e da justiça
– por outras palavras, o direito natural, não era incluída entre as prerrogativas do
rei, mesmo para os juristas mais regalistas.
2.5.4.3 Direito comum e direitos próprios.
§ 484. A base textual para a reflexão sobre a acomodação entre as ordens
jurídicas das várias entidades políticas em que a sociedade se organizava
naturalmente era a lex Omnes populi do Digesto (D.1,1,9), que afirmava que todos os
povos – no sentido de comunidades – se regem “em parte pelo seu próprio direito
e em parte pelo direito comum de todos os homens”, esclarecendo depois que o
direito próprio era aquele que o povo de uma cidade institui para si mesmo, e que
por isso se chama direito próprio da cidade, ou direito civil, sendo o direito comum
o direito instituído pela razão natural e que, portanto, se observa por todo o lado.
Nos juristas medievais esta bipartição é localizada nas nações europeias que,
baseadas nas tradições textuais do direito romano e do direito canónico, recebidas e
trabalhadas pelos juristas letrados, usavam de um vasto património de princípios
jurídicos comuns617. Distinguiam entre este direito doutrinário, que vigorava por
força da sua racionalidade intrínseca, do direito particular, singular, próprio,
estatutário ou municipal, “que foi introduzido pela autoridade do legislador, tendo
em vista alguma utilidade particular, contra o teor da razão 618. Nestes termos, ao
passo que o direito comum se caraterizava pela sua universalidade tendencial, pela
sua razoabilidade, mas também pela sua vigência sobretudo indicativa, o direito
615 Cf. o disposto em Ord. fil.3, 64, quanto à impossibilidade de o direito induzir em pecado ou de
contrariar a “boa razão”. Ou a proibição de o chanceler-mor do reino registar (promulgar) deis régias
“contra direito” (Ord. fil.1, 2, 3-4). Ou ainda, a declaração de nulidade absoluta ou a concessão de
recurso extraordinário de revista de sentenças dadas contra direito expresso ou notoriamente injustas (v.
revisio) (Ord. fil. 3, 75, pr.; 3, 95, pr.; v. cap. 7.1.15.2).
616 O texto romano referia-se a leis no sentido técnico de constituições do príncipe. O regalismo e,
618 Cf. D.1, 3, 16. Alejandro Guzman Brito, “Sobre la historia de las nociones de derecho común y
154
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
619 Os estatutos não podiam obrigar os que não fosse súbditos daquele que os estabeleceu,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 20. Assim, as leis portuguesas não se
aplicavam aos estrangeiros, pois as leis de um reino não se podiam estender aos bens ou pessoas de
outro, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 20.
620 Cf. Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 105, n. 8.
621 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 151, ns. 18 a 20.
155
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
623 Cf. Manuel Themudo da Fonseca, Decisiones […], cit, dec. 12, ns. 10 e 31; dec. 13, n. 8.
624 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211, ns. 1 a 4.
625 Na verdade, continuava a ser forte a opinião de que, sendo um suplemento do direito comum,
o direito próprio deveria ser interpretado em conformidade com o direito comum (António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 2) e que, nas suas especialidades, era um direito estrito que
deveria ser aplicado restritivamente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 2
(ex. punia o autor e não mandante, se deste não falasse, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Statutum”, n. 3).
626 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, cit., 6.6.9.
627 Os estatutos que não fossem observados durante 10 anos eram nulo em absoluto, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 17. Já os da terra não poderiam ignorar a sua
ignorância, se os estatutos tivesse sido anunciados por pregão público, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 17. Mas se a pena do estatuto fosse a mesma do direito comum,
ninguém ficaria escuso, ibid.. Estas normas sobre a relevância do direito próprio eram formuladas
sobretudo para os estatutos, não se aplicando à lei dos reinos (“a ninguém aproveita a ignorância da lei”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 17).
629 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt.1, dec. 211, n. 5.
630 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211, n. 7.
631 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 117, n. 24.
632 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 150, n. 19 e 20.
156
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
634.
§ 492. A doutrina portuguesa distinguia várias espécies de leis: cartas de lei [ou
leis, assinadas solenemente pelo rei e com eficácia perpétua], alvarás [assinados pelo
rei, numa fórmula abreviada – “Eu, ElRei” - , e valendo apenas por um ano, Ord.
fil.2,39], cartas régias, portarias e avisos [diplomas exprimindo ordens singulares do
soberano ou dos tribunais da corte]635. As leis deviam ser seladas e publicadas, por
edital ou por envio aos oficiais que as devessem aplicar, pelo Chanceler Mor do
Reino (Ord. fil. 1,2,10), valendo, na corte, dentro de 8 dias (vacatio legis); no reino, de
3 meses; no ultramar, depois de um período mais longo, fixado pela doutrina de
formas diferentes636.
2.5.4.3.2 Os estatutos (ou posturas).
§ 493. A palavra estatuto (statutum)637 designa, na literatura jurídica medieval e
moderna, os preceitos jurídicos promulgados pelas comunidades particulares,
enquanto que a palavra lei (lex) se reservava para as normas provindas do príncipe
(ou, em geral, entidades políticas que não reconhecessem superior) 638.
§ 494. Provinham de uma vontade, do povo ou dos magistrados seus
delegados (i.e. a quem o povo tivesse atribuído o poder de fazer estatutos), que, por
natureza, deviam prover sobre o governo daquela comunidade, mas podiam limitar-
se a confirmar preceitos de direito natural (ou de direito comum) 639.
§ 495. Na época moderna, a questão mais aguda que aqui se põe é a das
relações entre o poder de fazer estatutos e o poder de fazer leis. Francisco Suarez
discute a questão longamente. Como ponto de partida, um paradoxo. Por um lado,
aquilo que lhe parece ser a atribuição pelo ius civile de poderes legislativos (i.e. de
competência para editar normas jurídicas dotadas de força vinculativa geral) a todos
os magistrados que tenham o governo das províncias (ou cidades). Por outro, a
dificuldade de aceitar que tal competência possa existir sem o acordo do príncipe 640,
paradoxo que, afinal, traduz a antinomia entre um princípio doutrinal oriundo de
um ambiente político francamente pluralista e um projeto de poder - já com
tradução institucional - voltado para a centralização política. A solução vai Suarez
buscá-la à distinção entre comunidades perfeitas e imperfeitas, reservando a plena
jurisdição - e, logo, a plena potestas legislativa - para as primeiras (a que, no plano das
633 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211.
634 Sobre o sistema de fontes do direito português, com detalhe, Guilherme Braga da Cruz, “O
direito subsidiário […]”, cit., Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do direito […], cit.
635 Cf. Nuno Espinosa Gomes da Silva, História […], 370 ss.; ensaio de estatística da produção
legislativa em Portugal, nos sécs. XVI a XVIII, em John Gilissen, Introdução histórica ao direito […], ps.
462 ss..
636 Segundo o direito comum, a vacatio legis era de dois meses, António Cardoso do Amaral, Liber
facere quicumque potest condere legem ”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Statutum”, n..
640 Francisco Suarez, Tractatus de legibus […], cit., liv. 3, cap. 9, n. 5.
157
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
641 Francisco Suarez, Tractatus de legibus […], cit., liv. 3, cap. 9, n. 17 e 20. As povoações menores
poderiam editar normas de convivência, mas estas valiam como pactos (ibid. ).
642 Francisco Suarez, Tractatus de legibus […], cit., liv. 6, c. 25, n 10 ss..
644 Por exemplo, negando que fosse relevante a ignorância sobre ela (António Cardoso do Amaral,
Ord. fil. 1, 66, 29, n. 6: "non posse inferiores infringere leges superiores [...] quod factum esse non
servata formam legis nullum esse vidimus"; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1. liv. 6, § 1, n.
44.
646 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 5, ad Ord. fil.1, 66, 28, c. 7, n. 15 (pg.
260).
158
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
teoria geral do direito comum, o ius proprium mantinha com o ius commune647.
§ 497. Apesar desta admissibilidade de princípio do valor das posturas feitas
de acordo com a forma legal, existiam certas regras complementares das quais
dependia a sua validade.
§ 498. A primeira era a regra segundo a qual o concelho não podia, ao fazer
posturas, estabelecer normas que só ao rei competem (regalia). Tal seria o caso, por
exemplo, da criação de monopólios ou do lançamento de tributos gerais 648. A
segunda era constituída pelo "princípio da especialidade", segundo o qual a
jurisdição e os poderes estatutários dos concelhos estavam funcionalmente
vinculados à satisfação do bem particular da comunidade concelhia. O que, no
plano do direito nacional, decorreria do proémio do tit. Ord. fil.1. 66 ("Aos
Vereadores pertence ter o cargo de todo o regimento da terra, e das obras do
Concelho, e de todo o que podérem saber, e entender, porque a terra, e os mora
dores della possão bem viver, e nisto hão de trabalhar"). A terceira era a de que, por
estatuto, não se podiam tirar direitos concedidos pelo direito comum ou tornar
ilícito aquilo que aliás seria lícito649, a não ser com o acordo dos ofendidos ou
estando em causa a utilidade comum. Cumpridos estes últimos requisitos a
competência estatutária ganhava grande amplitude, abrangendo um alargado tipos
de preceitos sobre uma enorme variedade de assuntos, documentada pelas coleções
de posturas que chegaram até nós650.
2.5.4.3.3 Costume.
§ 499. O costume era uma norma instituída pelos usos de uma comunidade,
de modo a induzir um consenso tácito sobre o seu conteúdo 651. Os costumes
podiam ser gerais ou especiais (mesmo apenas de uma família652). Desde que,
suplementarmente, cumprissem certos requisitos (justiça e conformidade com o
bem comum, racionalidade, durabilidade), os costumes tinham força de lei, no
âmbito da comunidade em que se tivesse constituído653.
647 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 5, ad Ord. fil.1, 66, 28, C. IV, n. 2.
648 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1. I. 7, disp. 19, § I. n. 26; já poderia
estabelecer certos tributos locais, visando o bem particular dos vizinhos (v. g. fintas).
649 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1. liv. 7, disp. 19, n. 4 (pg. 804).
650 Os estatutos podem repartir águas, mandar matar cães raivosos ou vadios, fixar os dias santos,
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, n. 1; “Consuetudo inducitur tacito consenso”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, n. 5. Para a doutrina dos teólogos,
Domingo de Soto, Traxtatus de iustitita […], cit., 1, qu.7, a.2. Se o costume tem força de lei, Luís de
Molina, Tractatus […], cit., pt. 1, qu. 34. Sobre a dogmática do costume, v. António Manuel
Hepsanha, As vésperas […], cit., 362 ss.; Nuno Espinosa Gomes da Silva, História […], 378 ss..
652 “Una familia potest in se facere consuetudinem”, Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit.. obs.
70, n. 24.
653 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, n. 2 e 11; Tomé Valasco,
Allegationes […], cit., all 56, ns. 3-4; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 110, n. 2; ibid. pt.
2, dec. 39, n. 6. Embora se considerasse que o costume era direito, exigia-se que a sua existência e
validade fossem confirmadas em juízo contraditório, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 125, n.
13.
159
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 500. Em Portugal, a opinião comum era a de que o costume local devia ser
atendido, mesmo quando contrário ao direito comum, desde que se verificassem
certos requisitos da sua validade (nomeadamente a sua prescrição e
racionalidade)654. Os limites a esta regra eram os óbvios: o direito divino e o direito
natural655, a que Álvaro Valasco acrescenta o direito canónico, mesmo em matéria
que não tivesse a ver com o pecado656.
§ 501. Discutida era já a questão de saber se valia contra a lei. Quanto a este
ponto, a orientação geral da literatura seiscentista era no sentido de que o costume
contra lei não devia ser observado, justificando-se esta opinião ou com os tópicos,
que já vinham do ius commune clássico, ou da irracionalidade deste costume, ou do
respeito devido à lei do príncipe. No entanto, despida a questão deste tom geral e
enfático, pode verificar-se que os autores têm posições muito matizadas: nem é
verdade que a doutrina dê, em todos os casos, relevo ao costume contrário à lei,
nem que ela o negue em absoluto. Por exemplo, Jorge de Cabedo657 dá conta de
decisões (Tomar, 1584) em que o costume local derrogara as regras de sucessão dos
morgados. Para Álvaro Valasco, seria pelo costume local e não pela lei que se
deviam regular as formalidades do inventário658. Já quanto ao costume praeter legem,
a opinião é a de que ele teria uma extensa eficácia, nomeadamente em sede de
interpretação dos negócios jurídicos. Assim, António Gama, Álvaro Valasco e
Tomé Valasco entendem que, em matéria de celebração de contratos ou na
interpretação do contrato enfitêutico, se devia atender ao costume 659 660.
§ 502. A eficácia normativa do costume resultava ainda do facto de ele
constituir um importante subsídio para a interpretação do direito e dos contratos
661.
654 Cf. por todos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, com tópicos
da doutrina contemporânea ("dicitur lex municipalis", n. 1; “cuius non extat memoria in contrarium
induct ius et privilegium ita ut non necesse allegare titulum“, n. 4; "consuetudo particularis vel special is
est illa quae consensu hominum unius loci est approbata, & homines illius loci adstringit, et in eodem
loco habet vim", n. 11; "habet vim legis" [sob certas condições ]), n. 2; "semper est attendenda", n. 5.
Outos exemplos em outras fontes: Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria […], cit., tomo 4, ad Ord..
fll.4.2.2. n. 1 (pg. 137) (os costumes da terra devem ser considerados nos contratos bonae fidei); t. 2, ad.
Ord. fil.3, 64, pr. n. 36-37 (a lei e o costume têm igual valor, sendo o costume prescrito considerado
como direito não escrito); n. 38 (o costume é mais eficaz do que os estatutos e as constituições
municipais); Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 7, ad Ord. fil.1, 87, pr. gl. 2, n. 3;
António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 193, n. 5 (o costume do reino prevalece na decisão das
causas sobre todas as leis e introduz-se por um só ato que tenha causa sucessiva por 40 anos); Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211, n. 5 (o costume do lugar diz-se direito comum); Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 140. n. 23 (“consuetudo antiqua habetur instar privilegium”).
655 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, n. 19; note-se, no
entanto, a equiparação entre lei e razão: “non potest tamen vincere legem aut rationem aut veritatem”
(ibid. n. 6), que justifica o tópico de que o costume contra legem é irracional.
656 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 133, n. 11. No mesmo sentido, Tomé Valasco,
Allegationes […], cit., all. 56, n. 12-14, 19; Antonio da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 83, n. 1.
657 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt.1, dec. 121, ns. 3 e 4.
659 Cf. Antonio da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 233, n.9; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
dec. dec. 21, n.2; Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 56 (maxime, ns. 15 ss..
660 o mesmo opina Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria […], cit., t. 4, ad Ord. fil. 4, 2, gl. 1
(p. 137.
661 Cf. Decisiones [...], cit., dec. 10, n. 4; dec. 14, n. 3 (é a interpretação ótima das leis e dos
160
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
estatutos); Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 146, n. 2-15 (a vontade contratual deve interpretar-
se pelo costume).
662 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, n. 10.
663 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, ns. 8 e 10; Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 162, n. 9 ss.; toda esta decisão incide sobre este ponto, de que faz
uma boa síntese. Teria que se provar: (i) que havia esse costume e que se traduzia em atos frequentes; (ii)
que o costume era prescrito, n. 11-12; (iv) que a prática dos atos era acompanhada de intenção de
observar um costume, n. 13; (v) que esse costume correspondia a um consenso geral, n. 16; (vi) e que
se tinha desenvolvido com o conhecimento do príncipe, o que se presumia num reino, n. 27. As
testemunhas deviam estar conscientes de que o costume era mais do que uma mera prática, n. 15.
664 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 212; António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Consuetudo”, n. 8.
665 Cf. Nuno Espinosa Gomes da Silva, Historia […], cit., 379 ss..
666 “Pro lege servanda”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 3, n. 5; também,
Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 63, n. 2 (no n. 4 refere-se à prova dos estilos.).
667 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 201, n. 1 a 8; v. também Álvaro Valasco,
669 “Dispensatio est relaxatio legis, seu iuris alicuius facta ab eo, qui habet jus dispesandi, per
quam dispensatus in illo casu solvitur, & eximitur ab illius vinculo”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Dispensatio”, n. 1.
161
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dispensatio”, n. 3. Sobre a teoria da dispensa (dispensatio), v. Domingo de
Soto, De iustitia et de iure […], cit., liv. 1, qu. 7, a. 3.
673 Sobre o privilégio como caraterística estrutural de uma ordem jurídica corporativa, v. António
162
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
675 Um fundamento especial e muito relevante dos agravos (e também dos embargos) era a obrepção
677 Cf. C.R. 2.11.1607, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.
678 Cf. C.R. 16.2.1642, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.
679 D.1, 1, 9 Gaius libro primo institutionum: “Omnes populi, qui legibus et moribus reguntur, partim
suo proprio, partim communi omnium hominum iure utuntur. Nam quod quisque populus ipse sibi ius
constituit, id ipsius proprium civitatis est vocaturque ius civile, quasi ius proprium ipsius civitatis: quod
vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes peraeque custoditur vocaturque ius
163
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
mais importante era a Epístola aos romanos, de S. Paulo, Romanos, 13:1 13, 1: “Cada qual seja submisso
às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram
instituídas por Deus. 13, 2: Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por
Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação. 13, 3: Em verdade, as autoridades
inspiram temor, não porém a quem pratica o bem, e sim a quem faz o mal! Queres não ter o que temer
a autoridade? Faze o bem e terás o seu louvor. 13, 4: Porque ela é instrumento de Deus para teu bem.
Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer
justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal. 13, 5: Portanto, é necessário submeter-se,
não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência. 13, 6: É também por essa
razão que pagais os impostos, pois os magistrados são ministros de Deus, quando exercem
pontualmente esse ofício. 13, 7: Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o
imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito”.
O Antigo Testamento (sobretudo o Livro dos Reis) também era invocado.
681 Estes proposições tinham sido defendidas por João Wiclef, João Huss, Richard Armachanus e,
em geral, os Valdenses, v. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure [...], cit., liv. 2, disp. 19, maxime
ns. 1 e 6.
682 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 21 (sobre a distinção entre os
poderes temporal e eclesiástico); liv. 2, disp. 29 (sobre o poder temporal dos papas).
683 Com o que ficava inclusivamente bastante enfraquecida a relevância das bulas pontifícias de
divisão do mundo que, rigorosamente, apenas poderiam ser entendidas como diretivas aos príncipes
cristãos relativamente à repartição das terras a descobrir, a fim de regular o múnus espiritual da
evangelização.
684 Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], Liv. 2, disps. 28 e 29. Saliente-se a
importância do texto de Luís de Molina, um dos primeiros discursos teológico-jurídicos completamente
articulados sobre a escravização dos negros. Dado o seu carácter articulado e desenvolvido, poderá ter
constituído uma apostila destinada ao ensino, em Coimbra ou em Évora, durante o período de 26 anos
em que o autor aí deu aulas (1566-1590). Cf. sobre ele, António Manuel Hespanha, “Luís de Molina e a
escravização dos negros”, cit..
164
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
685 Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], liv. 2, disp. 28 e 29; v. também disp. 21, ns.
165
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
direito natural, pois apenas são ofensas a Deus [...] O mesmo se diga dos pecados
contra a lei da natureza e de todos os outros que não resultem em prejuízo de
alguém, pois a sua punição apenas compete a Deus” (ibid. disp. 105).
2.5.7.2 O direito e a natureza.
§ 519. As reduzidas faculdades de intervenção dos europeus na vida das
comunidades nativas, não provinham do direito divino, mas antes do direito
meramente natural.
§ 520. De facto - como se disse - o segundo padrão doutrinal para determinar
o que era justo e o que era injusto no tratamento dos povos que estavam fora da
universo Europeu era o direito natural. Desenvolvendo tópicos que já apareciam na
tradição textual anterior, os juristas modernos perfilhavam a opinião de que o poder
civil tinha uma origem humana, sendo conatural à existência de uma comunidade
organizada687. Por isso, devia ser respeitado, desde que não estabelecesse formas de
organização contrárias à natureza ou não ofendesse direitos naturais de outros.
Assim, Francisco de Vitoria, no seu tratado sobre os índios recentemente
descobertos (De indiis recenter inventis relectio prior) é taxativo no sentido de que "o
pecado mortal não impede a propriedade civil de ser uma verdadeira propriedade",
"a infidelidade não é impedimento de que alguém seja verdadeiro proprietário", "a
fé não pode destruir nem o direito natural nem o humano" 688. Também Domingo
de Soto, ao discutir a legitimidade da guerra contra os infiéis que nunca tivessem
tido contacto com a mensagem evangélica, declara (apoiando-se em S. Tomás de
Aquino [Summa theol. 2ª.2ae. q. 10, a. 10] e em Tomas Vio Caietano) que "a fé não
destrói a natureza, antes a aperfeiçoa e, portanto, não justifica que se prive das suas
possessões os homens que as têm pelo direito das gentes; sobretudo porque a
infidelidade negativa, i.e. a daqueles que nunca ouviram falar do nome de Cristo,
não constitui pecado nem merece nenhum castigo" (De iustitia et iure [...], lib. V,
qu. 3). É esta ideia do carater natural do governo e do direito que sustenta a grande
autonomia do direito humano face ao direito divino e também a doutrina da
ilegitimidade da guerra, como meio de destruir comunidades políticas e direitos de
liberdade e de propriedade.
§ 521. Da guerra justa trata longamente Molina689, concluindo ser justa a
guerra, declarada pelo príncipe (col. 415 C), que “vinga injúrias, sempre que uma
nação ou cidade deva ser castigada, por ter deixado de vingar o que pelos seus foi
687 Cumpre destacar o contributo de Baldus de Ubaldis (1327-1400) para a ideia de que o governo
166
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
injustamente feito, ou de entregar o que por injúria foi levado” (col. 413 A).
Concretizando, justa era a guerra que visasse: (i) recuperar coisas nossas
injustamente ocupadas; (ii) submeter súbditos injustamente rebelados; (iii) vingar e
reparar injúria injustamente recebida690. Embora não estivesse excluída a guerra
ofensiva, dirigida à recuperação de coisas próprias, ao ressarcimento dos danos
causados e à vingança das injúrias sofridas, a guerra justa era, desde logo, a guerra
defensiva, nos seus distintos objetivos. Nestes termos, era claro que era injusta a
guerra motivada pela ambição de “ampliação do império, a glória ou comodidade
próprias” (col. 435 C).
§ 522. Porém, alguns casos de guerra – e, portanto, de escravização – eram
mais controversos. O que é que se podia dizer que seria tão nosso que a sua
usurpação justificasse razoavelmente a guerra ? Naturalmente, as coisas de uma
nação: o seu território, as suas cidades, as suas riquezas naturais (pescarias, riquezas
minerais, etc.). Mas, além destas coisas que seriam nossas por se integrarem no
património próprio, também aquelas que fossem nossas por pertencerem a um
património comum a todos, como, por exemplo, o direito de passagem. Segundo
Vitória, seria de direito das gentes viajar para outras províncias e viver aí, desde que
sem prejuízo dos indígenas. Esse direito estender-se-ia à utilização dos portos e dos
rios, pois também estes seriam comuns de todos, além de a liberdade do seu uso
constituir o fundamento de um direito natural à intercomunicação, próprio do
género humano691. Uma forma especial de comunicação era o anúncio do
Evangelho, em termos tais que a proibição de entrada de missionários ou a injúria
que lhes fosse feita dava motivo a guerra justa.
§ 523. Finalmente, a guerra era justa não apenas para garantir direitos próprios,
mas ainda nos casos em que as comunidades encontradas se desviassem dos
padrões humanos de convivialidade.
§ 524. Não teriam todos os homens o direito a que todos respeitassem as
normas básicas do comportamento humano ? Reduzindo à escravidão ou, pelos
menos, assumindo a direção política, das comunidades que violassem
grosseiramente esses preceitos ? A resposta da opinião comum era afirmativa,
legitimando que os povos encontrados pudessem ser postos, em virtude da sua
rudeza, sob uma situação de tutela, semelhante à dos rústicos europeus 692.
Recolhendo, até certo ponto, a teoria dos "servos por natureza", Domingo de Soto
reconhece que, tal como, dentro de uma cidade ou até de uma família, podia haver
pessoas rudes que carecessem de capacidade para se dirigirem a si mesmos, também
no orbe existiam nações "que nasceram para servir" e que, portanto, deveriam ser
subjugadas, submetendo à ordem “aqueles que, como feras, andam errantes e sem
nenhum respeito pelas leis do pacto [de convivência política], invadindo o alheio
por onde quer que passem" (De iustitia et iure, liv. 4, qu. 2, a. 2) 693. Foi este último o
tópico recorrente na justificação da expropriação e escravização dos ameríndios,
690 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 104, col. 431 D ss.
691 Molina afasta-se desta opinião comum, sendo muito mais restritivo: Luis de Molina, Tractatus
de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 104, col. 433.
692 cf. António Manuel Hespanha, "Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique",
167
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
694 Cf. sobre o tema, Anthony Pagden, The fall of natural man and the origins of comparative ethnology,
Cambridge 1982.
695 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 105.
696 Nesta última parte, Molina aproxima-se de Vitória (Relectio […], cit., col. 2, n. 15 ss.).
168
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
697 Na prática, mesmo legislativa, este universalismo tinha muitas limitações: v. Cristina Nogueira
169
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
698 No caso dos jurisconsultos romanos, dada a autoridade que os seus escritos gozaram na cultura
jurídica do Ocidente, a sua autoridade era equiparada à do legislador, chegando a designar-se as normas
emanadas de uns e outros indiferentemente como leges.
699 “As coisas que provêm de Deus estão ordenadas” (“Quae a Deo sunt ordinatae sunt”),
escreveu S. Tomás de Aquino. Lembremo-nos que, de acordo com os versículos do Génesis sobre a
criação, ao fim de cada um dos seus sete dias, Deus olhava para o que tinha criado e, invariavelmente,
achava que a criação estava bem [ordenada] (Gen. 1, 1-2).
700 A natureza também é definida por Cícero (séc. I d.C) como uma norma: “Lex vera atque
princeps, apta ad jubendum et ad vetandum, est ratio recta summi Jovis” [a lei verdadeira e principal,
apta para mandar e proibir, é a recta razão do grande Júpiter] (De legibus, 2, 8-13)
170
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tanto produzir uma solução certa, mas apenas pôr à disposição do orador
argumentos que tornassem convincentes os diversos pontos de vista.
§ 536. A opção por um ponto de vista devia basear-se em critérios objetivos
(mesmo, verificáveis). Uns formais, como a aceitação pelo uso (usu receptio 701), a
adoção pela prática dos tribunais (stylus curiae), a opinião favorável dos especialistas
(opinio communis doctorum). Outros substanciais (ou materiais): como evitar o absurdo
ou o inútil (absurda vel inutilia vitanda); ou como promover a harmonia do direito
(elegantia iuris)702; ou como favorecer a oportunidade e o bem comum (utilitas, bonum
commune). No meio de todos estes critérios, a acomodação da interpretação ao
sentido tradicionalmente dado aos textos era a regra de ouro, chegando a dizer-se
que este sentido usual valia mais do que o sentido verdadeiro 703
§ 537. Embora o direito não coincidisse com os textos, mas com algo que
estava antes deles (a ordem do mundo, a justiça, fonte mediata ou matéria, do
direito), estes dispunham de uma grande autoridade (chamavam-lhes a razão escrita,
ratio scripta), constituindo um critério decisivo para identificar o direito (fontes
imediatas, ou formais, do direito). Daí que alguns dos problemas de achamento do
direito coincidiam com problemas de interpretação de textos escritos. Embora não
nos devamos esquecer que, para as conceções da época, tudo podia valer como um
“texto”, desde que contivesse indícios de sentidos ocultos. Neste sentido se falava
do “livro da natureza” ou do “livro da vida”. Por isso, quando os juristas falam dos
status legales704 como constituindo a soma dos problemas de interpretação do direito,
eles não se estão a referir apenas àquilo a que nós hoje chamamos “interpretação
das leis”, mas a algo de muito mais abrangente, que poderíamos definir como
“leitura da ordem do mundo”.
§ 538. Os próprios textos do Corpus iuris civilis sobre a lei e a sua interpretação
– originaria ou sucessivamente estendidos, na sua doutrina, a outras fontes que não
eram lei, em sentido estrito705 – propunham, em geral, uma interpretação muito
atenta ao espírito da lei, à vontade do legislador, ou mesmo à letra da lei 706 707. Isto
701 D.1, 3 De legibus, 37. “optima enim est legum interpres consuetudo.”; ib. 23: “minine sunt
titulum, sub quo est situata”, Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 28, n. 47); interpretar a norma
de modo a evitar contradições (“ubi cessent contrarietas”, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […],
cit., dec. 21, n. 7); interpretando o direito do reino de modo a aproximá-lo do direito comum (“est
favorabilis interpretatio per quam reducimur ad ius commune”, Tomé Valasco, Allegationes […], cit.,
72, n. 22).
703 "Interpretatio inducta per consuetudinem operatur etiam contra poprium signficationem",
scriptum/sententiam: o sentido comum das palavras do texto coincidem ou não com o sentido querido pelo
autor ?; 2. Concordância entre leges contrariae: Como proceder perante leis contraditórias ?; 3. Resolução
da ambiguitas: Como revolver a ambiguidade de um texto ?; 4. Desenvolvimento da raciocinatio: Deve-se
concluir analogicamente do disposto num texto normativo para um caso idêntico nele não previsto ?
705 As regras para revolver os problemas (status) encontram-se, por exemplo, no Digesto (D, 1, 3;
“Voluntatem potiusquam verba spectari oportet”; D.10, 4, 19: “Non oportere ius civile calumniari [i.e.
Falso et scienter impugnare, Gothofredus], neque verba captari; sed qua mente quid dicitur
animavertere convenire”; D.27, 1, 13.2: “Et si maxime verba legis hunc habeat intellectum, aliquando
171
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
tamen mens legislatoris aliud vult [Quoties ex verbis legis simpliciter intellectis, praefertur iniquum
aequo, recedimus a verbis, et stamus menti rationique legis, Baldus]”.
707 Em sentido contrário: D.1, 3, 20-21: Non omnium quae a majoribus instituta sunt, rationem
reddi potest. Et ideo rationes eorum quae constituuntur inquiri non opportet. Alioquin multa ex his quae
certa sunt subvertuntur.
708 A autoridade do rei, que tinha o poder de fazer as leis (cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit.,
dec. 14, n. 7); mas também a dos tribunais palatinos, que participavam do corpo do rei (“Interpretatio
senatus pro lege observanda est”, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 1, dec. 212, n. 6).
709 “Ordinationes Regni jubentur servari prout jacent, sine exquisitis interpretationibus”, defede
Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 117, n. 20, contrapondo implicitamente uma interpretação
comum e sensata dos textos legais às interpretações cerebrinas dos juristas.
710 C.1, 14, 12, 3: “O Imperador é o único legislador e intérprete das leis”.
172
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
cumprem todas as funções que a teoria da interpretação mais tarde será chamada a
atender (argumentos a maiori, a minori, a contrariu, a simile, a causis, etc.)711.
2.6 Magistrados e oficiais
2.6.1 Definição
§ 541. O ofício era o desempenho de uma função712. Era uma noção geral,
com uso dentro e fora da linguagem jurídica. O seu sentido nuclear era o de uma
obrigação fundada na natureza. Os filósofos consideravam o ofício como um dever
ditado pela virtude - pela bondade, dai a equiparação entre “aquilo que se faz por
obrigação” [ob+ficium] e “aquilo que se faz por bondade” [bene+ficium] -, que
contrastava com aquilo que era exigido apenas pela conveniência ou interesse (atos
mercenários)713. Todo este campo de sentidos pesa sobre a palavra e os seus usos
jurídicos: a ligação entre natureza, ofício e honra, a oposição entre ofício e serviço
mercenário. No discurso do direito, ofício também era um conceito geral, no
sentido de que podia ser aplicado a todas as situações em que alguém estava
objetivamente vinculado a fazer algo. Esta vinculação tinha, quanto à sua existência
e quanto ao seu conteúdo, um caráter objetivo, ligado à natureza das coisas, à
tradição ou ao direito, não dependendo da vontade, como as obrigações que
provêm, por exemplo, de um contrato. Neste sentido, o ofício consistia num
conjunto de deveres forçosos, irrecusáveis e indisponíveis. António Cardoso do
Amaral define ofício como “um conceito geral, que compreende a obrigação que
impendia sobre alguém, seja em assuntos eclesiásticos, seja em assuntos profanos,
quer públicos, quer privados”714, distinguindo-os conforme fossem impostos em
função da utilidade de particulares (v.g. o ofício do tutor, v. cap. 3.3.2.1) ou antes
em função da utilidade da república (v.g. os ofícios jurisdicionais, como o de juiz) e
considerando estes últimos como particularmente vinculativos para aqueles sobre
que recaíssem, que não os poderiam recusar. Porém, o caráter natural dos ofícios
implicava a obrigação de os aceitar e, por isso, também as causas de escusa eram
muito semelhantes, como se verá, qualquer que fosse a utilidade que os
justificasse715.
§ 542. Estabelecidos por uma ordem normativa objetiva – a natureza, a
Joana Liberal Arnaut, A inteligência das leis […], cit., sobretudo, ps. 119 ss..
712 Bibliografia geral: João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, liv. 5, disp. 13, §§ 9-12; liv.
7. disp. 21-23; Manuel Barbosa, Remissiones doctorum […], ad Ord. fil. 1, 67; 69-70; 73-75; 3, 9; 4, 25; 4, 49;
5, 20; 5, 71-72. Acerca de muitos ofícios, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, decs. 98 ss.
713 Veja-se o tratado de Cícero sobre os deveres (De officiis), em que estes são considerados como
emanando de um direito fundado na natureza, cuja observância propiciava uma vida honrada ou honesta,
de acordo com a natureza. Diferente da avaliação dos atos quanto à sua bondade absoluta era a avaliação
da sua utilidade quanto às vantagens que podiam trazer Cf. Cícero, De officiis (44 a. C.), 1, 9, em
http://www.thelatinlibrary.com/cicero/off1.shtml, trad. http://www.constitution.org/rom/ de_officiis.
htm.
714 “Officium est nomen generale, comprehendens onus, ad quod quis tenentur, & est adstrictus,
sive in rebus ecclesiasticis, sive in prophanis, tam publicis quam privatis, & pertinet ad magistratus,
gubernationem, seu honorem, et aliquando habet nudum ministerium”, António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 1.
715 “Aliud est publicum, aliud privatum [...] necessarium autem officium est illud, quod utilitate, &
auctoritate Reipublicae dicitur publicum, & illud non potest recusari”, António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 2.
173
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
716 Como escrevia Charles Loyseau (ao censurar Jean Bodin, que destacava os ofícios de criação
régia) “les plus varies officiers” não eram “les derniers erigez”, mas “les anciens, dont on n’a mémoire
de l’érection”, Cinq livres du droit des offices, Chasteaudun, Abel l’Angelier, 1610, liv. IV, Des offices
non venaux, Ch. V, Des commissions, n. 4 (https://play.google.com/books/reader?id=
fwpeI8BJQ5kC& printsec=frontcover&output=reader&authuser=0&hl=pt_PT&pg=GBS.PP2).
717 Com as consequências jurídicas que isto tinha: interpretação restritiva, proibição de extensão
analógica, presunção de que se tratava de um regime estabelecido intuitus casus, intuitus personae), dever
de indemnizar eventuais prejudicados com a criação de novos ofícios ou com a extinção de algum já
existente..
718 Decisão judicial interessante: “Fez elRay aposentador de novo a Pero Borralho. Veio com
embargos na chancelaria Isabel Pereira dizendo que não houvera nunca senão um só aposentador, e que
era em seu prejuizo haver dois, pois se repartiriam os próis e precalços [...]. Julgou-se no juízo da coroa
que não era agravada, e que elRey para bem publico podia crear de novo os ofícios, que parecessem
necessários”, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, Aresto 24.
719 O oficial criado de novo devia reger-se pelo estatuto desse oficio nas cidades vizinhas, António
721 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, ns. 42 e 44.
722 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, ns. 31-32 (resiste-se ou
agrava-se quanto ao ato fora da jurisdição; recorre-se contra o ato dentro da jurisdição).
174
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ideia de que todos os ofícios eram do governante, que os atribuía aos seus
servidores por meio de uma delegação (parcial, disponível e revogável) da sua
jurisdição também se encontra nas fontes de direito romano, sobretudo do
principado e do Baixo-império.
§ 545. A figura conceitual usada para exprimir isto era a delegatio (ou mandatio)
jurisdictionis, pelo que esta jurisdição era dita delegata vel mandata, por oposição à
jurisdictio ordinaria. A jurisdictio delegata era especial, atribuindo o poder de tratar
(inquirir, processar, julgar) um caso ou um tipo específico de situações indicados na
carta de delegação. Foi por meio da delegação de jurisdição que se foi alargando a
estrutura de oficiais da coroa, na época moderna. Aos ofícios tradicionais –
normalmente, de governo (incluindo a justiça) das terras e outras corporações –
foram-se somando os funcionários em que o rei delegava o poder para tratar de
questões que antes estavam nas suas mãos e que ele geria informalmente (cognitio
extra ordinem) ou como coisas suas (dispondo delas por meio de leges rei suae dictae,
usando a sua potestas domestica ou privata administratio). Alguns deles eram
encarregados de conhecerem da causas concretas (juízes comissários) libertos das
formalidades do processo ordinário (sine strepitu et figura iudicium). Outros eram
nomeados para conhecer certos tipos de causas que tinham emergido com o
desenvolvimento da administração, como os negócios da guerra, da fazenda, do
património real ou da coroa. Na origem, estes novos ofícios eram classificados
como comissões (comissiones), curatelas (curationes) ou supervisões (superintendentiae).
§ 546. No final do séc. XVI, Jean Bodin, ao reconstruir as categorias do direito
público no âmbito de uma teoria do poder real como soberania, aproxima estas
comissões dos ofícios ordinários. Umas e outros seriam criados pelo príncipe, os
ofícios com uma jurisdição genérica, as comissões com uma jurisdição limitada no
espaço, no tempo e nas matérias, e dependente da vontade do concedente. Esta
construção não era muito inovadora, pois as suas bases dogmáticas estavam no
direito romano. Mas o alcance que Jean Bodin lhe dava abrangia setores cada vez
mais vastos e importantes do oficialato, pelo que afetava muito as instituições de
governo das monarquias modernas e o seu pessoal administrativo 723. Colocava o
príncipe (e não a natureza, a tradição ou o direito) como origem e regra dos ofícios,
integrava no governo da república áreas de administração antes consideradas quase
como que pessoais do rei, enquanto ecónomo (i.e. governador da sua casa),
libertava o poder real de muitos constrangimentos, mas reduzia na mesma medida
as prerrogativas dos oficiais.
§ 547. Não admira, por isso, que a criação régia de ofícios tenha suscitado
perplexidade e reações logo desde o seu aparecimento. Charles Loyseau reage
imediatamente a estas inovações, reafirmando a primazia dos “vrais offices” sobre
os criados de novo (“à nouveau erigez”), embora reconhecendo a importância das
comissões e a sua dependência em relação à vontade livre do príncipe (“… la
commission, qui n’a presque loy ni regle, ains depend quasi du tout de la volonté de
723 Jean Bodin, Les six livres de la République, Paris, Jacques du Puys, 1576, liv. 1, c. 3, e 8
http://fr.wikisource.org/w/index.php?title=Fichier:Bodin_-_Les_Six_Livres_de_la_R%C3%A9
publique, _1576.djvu&page=13; (Lyon, Jacques du Puys, 1580: https://play.google.com
/books/reader?id=KT3Pzv0zR_EC&printsec=frontcover&output=reader&authuser=0&hl=pt_PT&pg
=GBS.PP5). Cf. Vitor Ivo Comparato, “Note sulle teoria dela funzione publica in Bodin”, em
L’eduxazione giuridica […], cit..
175
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
724 Charles Loyseau, Cinq livres du droit des offices […], cit., liv. 1, ch. 1, n. 111.
725 Ord. fil. 2, 56 Libri Feudorum, 2, 56: “Quae sint regalia: potius ad fiscale ius, et proventus,
quam ad ipsam supremam authoritatem et dignitatem spectant”. (cf.
https://play.google.com/books/reader?id=T_BKAAAAcAAJ&printsec=frontcover&output=reader&a
uthuser=0&hl=pt_PT&pg=GBS.PT4).
726 Ubi onus, ibi emolumentum (se há um encargo, deve haver uma recompensa).
727 (“Quotiescunque officum iudicis deservit, dicitur mercenarium. Hoc est verum, quando
deservit ad eum finem, ad quem fuit intentata actio, secus si ad alium […]”, Bártolo, Opera […] omnia.
Dig Vet, ad 1, 1, De iur. omnium iud. (Adnotationes novae), pg. 31, Venetiis, 1590
(http://books.google.com.br /books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v= onepage&q&f=false). A distinção era complexa, pois
dependia de vários tipos de atos que o juiz podia praticar no decurso do processo: ”Pergunto quantas
formas há de atribuições (officium) do juiz […]. Digo que há três, uma como mercenário, quando serve
[http://ducange.enc.sorbonne.fr/deservire] a ação a partir (ex) da natureza [finalidade] da mesma ação,
como nos juízos de boa-fé, outra quando serve a ação em vista (propter) da natureza da mesma, como
nos juízos arbitrários […]. Certas atribuições do juiz são nobres, outras são mercenárias, outras
adversárias. As atribuições nobres são as que existem por si, quer o juiz as exerça por iniciativa própria,
ou a pedido de outrem, como inquirindo, ordenando a restituição in integrum, dando tutores, emitindo
decretos, estabelecendo o salário dos advogados e dos médicos e coisas semelhantes. Outras atribuições
são mercenárias, quando não existem por si, embora sirvam a ação, e isto pode acontecer de muitas
176
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
maneiras, quando serve a ação com o fim de que se proponha, como na citação e nos interrogatórios e
em tudo o que se faz antes da contestação da lide. Outras vezes serve a ação com o fim de que se exerça,
como quando concede prazos, aceita testemunhas e provas e em tudo o que fizer depois da contestação
da lide até à sentença definitiva. Outras vezes serve a ação com o fim de lhe por fim, e isto de três
formas, ou a partir (ex) da finalidade (natureza) da ação, como quando condena nos juros, frutos e
interesses nos juízos de boa-fé. Ou em vista da (propter) da finalidade da ação por algum seu acidente
externo, como nos juízos arbitrários, ou em virtude da natureza do juízo, ou da instância, não
atendendo a de que ação se trata, como na condenação nas despesas […] Por vezes, o ofício do juiz é
adversário, pois não serve a ação, mas antes se lhe opõe […] e isto pode acontecer de duas maneiras.
Primeiro quando o juiz propõe algo em vez da exceção […] ou quando serve a exceção interposta”
(Bártolo, Opera […] omnia. Dig Vet, ad 1, 1 De iur. omnium iuD.lex prima, n. 12 (p. 46), Venetiis, 1590
(http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false).
728 Cf. a definição bartolina de iurisdictio: “Iurisdictio in genere sumpta [est] potestas de publico
intoducat, cum necessitate iuris dicendi, & equitatem statuendae … Et dicitur iurisdictio a iuris, &
ditio, quod est potestas […], sic dicitur iurisdictio quasi iuris potestas” (Bártolo, Opera […] omnia. Dig
Vet, ad 1, 2, Rubr: Arbor iurisdictionum, pg. 44 v, Venetiis, 1590
(http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f =false). Cf. antes § 58.
729 “Imperium, est iurisdictio, quae officio iudiciis nobili exercetur, et ponitur in deffinitione
iurisdictione pro genere, & verba officium nobili, ponuntur ad differentiam iurisdictione simplicis,
quae exercetur officio iudicis mercenario … Et dicitur imperium, quia ex imperio, authoritate iudicis
procedit, et non ex aliquo iure, quod resideat apud partem” (O imnpério é a jurisdição que se exerce
pelo ofício noibre do juiz, sendo jurisdição o elemento genérico da definição e as palavras “do ofício
nobre” a diferença específica que o distingue da simples jurisdição, que é exercida pelo ofício
mercenário […] E diz-se império, pois a autoridade do juiz deriva do império e não de algum direito
que resida nas partes” (Bártolo, Opera […] omnia. Dig Vet, ad 1, 2, Rubr: Arbor iurisdictionum, b. p. 44 v,
Venetiis, 1590 (http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source= gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false).
730 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], pt. 1, liv. 1, disp. 2, ns. 121 ss. (maxime, n. 130,
onde se cita uma constituição papal de 1571, que estabelece a distinção com nitidez).
177
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
estava separada da nobreza, da honra (honor). Por isso, estes ofícios aproximavam-se
das profissões que serviam interesses particulares e que, por isso, deviam ser
remunerados pelos que a eles recorressem. Isto pode explicar bem a assimilação de
certos ofícios a um bem patrimonial (in patrimonio)731, com a consequente
alienabilidade, penhorabilidade e transmissibilidade na herança do titular. Por vezes,
a lógica da tradição textual ia tão longe que contradizia as práticas sociais. Um
exemplo disso foi a suspeita de indignidade que impendia sobre o ofício de tabelião,
por causa da aproximação que a Glosa fazia entre o tabelionado e a qualidade de
servo ou escravo. Na época moderna, porém, o ofício estava socialmente
prestigiado e era muito bem remunerado. Daí que a doutrina fosse enfática em
repudiar essa desqualificação, opondo à lógica dos textos a nova lógica social: “O
ofício de tabelião público, segundo o direito comum, é vil, e abjeto, pois o tabelião
é chamado de escravo público [na glosa] […] Não escusa de encargos pessoais.
Hoje, em toda a nossa Hispânia, o ofício do tabelionado é reputado como nobre, e
todos os que exercem tal ofício vivem à maneira da nobreza e são autorizados por
leis régias a andar com armas e cavalos, como os cavaleiros” 732.
§ 552. Na doutrina jurídica da época moderna, nota-se o progressivo
alargamento do caráter nobre dos ofícios – que, em rigor, só existia para os oficiais
que gozassem de atribuições que cabiam no “ofício nobre” – a todos os ofícios. Os
oficiais, na verdade, faziam parte, até certo ponto, do universo social dos
jurisconsultos. Eram, uns e outros, gente que comunicava entre si no âmbito do
mundo da comunicação letrada e que reciprocamente se consideravam como
segmentos da sanior et honoratior pars reipublicae. Embora as distinções entre os vários
agentes da cultura letrada estivessem sempre presentes, os juristas tendiam a
dignificar os oficiais, sendo também exigentes nas qualidades que os deviam
caracterizar733.
2.6.2 Consequências normativas da natureza dos ofícios.
§ 553. O ofício era uma honra porque participava da tarefa de governo da
república como atividade de estabelecimento/restabelecimento da ordem (honesta
publica vita). E os agentes de governo constituíam uma elite social que ainda se
reforçava pelo desempenho desta tarefa de estabelecer os equilíbrios naturais da
sociedade política (uma administração honorária, Honorationensverwaltung). Os ofícios
exigiam nobreza natural, mas o seu exercício reforçava essa nobreza 734.
§ 554. Desde logo, consistindo em honras, os ofícios não deviam ser
adquiridos por um preço, ou procurados gananciosamente, mas apenas exercidos
por quem comprovadamente tivesse uma vida digna (“officium est negandis
731 “Officia publica postquam sunt acquisita censetur in bonis, et veniunt sub appelatione illorum”
(os ofícios públicos, depois de adquiridos, são tidos como fazendo parte dos bens e entram no
conteúdo desta designação”), Álvaro Valasco, Praxis partitionum […], c. 13, n. 69.
732 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 50, citando Ord. fil.1, 57 e as
ns. 277/278; Nicolau Coelho Landim, De syndicatu […], c. 10, n. 50; João de Carvalho, Novus et
methodicus tractatus de una, et altera quarta legitima falcidia […], 1, n. 362.
178
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
735 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 4 (o ofício deve ser negado
738 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 51. Apoia-se no cân. 63 do
740 “Forenses non vocantur ad gobernandam rempublicam”, decide Álvaro Valasco, Decisiones [...],
cit., cons. 8, n. 19. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., discute a regularidade da concessão de um ofício
a um francês (Melchior Febo, Decisiones […], dec. 28, per totam).
741 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, ns. 29/30.
742 Álvaro Valasco coloca a suficiência de conhecimentos como um dever mais do provido do que
do concedente, entendendo que pecava aquele que não tivesse conhecimentos suficientes para o ofício
que pediu, (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 9, n. 30.
743 Neste caso, a aptidão técnica era controlada não apenas pelos exames universitários (cf. L.
13.1.1539, em Duarte Nunes de Leão, Collecção […], ed. 1796, pg. 580; Ord. fil. 1, 35, 2; Est. univ. III,
19, pr.), mas também por um exame perante o Desembargo do Paço (“leituras de bacharéis”: depois de
1541, data dos primeiros exames conhecidos; sobre estes exames, cf. Nuno Camarinhas, Juízes e
administração da justiça […], cit.).
744 Cf. Fernanda Olival, Ordens Militares e o Estado Moderno […], cit., (ed. polic. de 1988, 1, 140).
179
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Desembargo do Paco que despachasse o seu filho como corregedor para uma
comarca do primeiro banco, por ser esse o costume 745. E Lourenço Correia de
Lacerda pedia para um filho, logo que perfizesse 12 anos, um lugar extravagante de
desembargador do Porto, em atenção aos serviços de seu pai 746. Em 1660 (dec.
20.4) este provimento extraordinário dos filhos era considerado como excecional e
dependente de graça especial do rei. Mas não era apenas no caso dos filhos de
Desembargadores que o provimento em lugares de letras se fazia sem exame. Isto
também acontecia com certos lentes das Faculdades de Leis e Cânones e com os
ministros do Santo Oficio747. Enfim, diferentes sinais de uma mesma conceção
estatutária da carreira jurídica para que outros autores já têm chamado a atenção 748.
§ 558. No caso dos tabeliães exigia-se um exame de suficiência749. Também os
advogados estavam sujeitos a diversos tipos de controlo de competência 750.
§ 559. A exigência da honra fazia com que os ofícios se perdessem por
infâmia751.
§ 560. Talvez fosse esta ideia de que o exercício dos ofícios pressuponha e
reforçava uma certa dignidade natural que justificasse a reivindicação, apoiada pelo
direito doutrinal dos ofícios, quanto aos direitos de sucessão no ofício dos filhos de
um oficial que tivesse servido dignamente. Também aqui se manifestaria aquela
capacidade natural dos progenitores de propagar na descendência as suas
qualidades. É certo que o princípio foi inicialmente formulado para os filhos de
oficiais que tivessem morrido na guerra, a título de remuneração póstuma dos seus
serviços752. E, quando foi alargado a outros oficiais, o fundamento mais invocado
do direito dos filhos era o de que a concessão do ofício aos descendentes se
745 Arq. Nacional da Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Repartição da Justiça, Livro de
748 Cf. por todos, Filippo Ranieri, “De corpo a profissão”, cit.
749 Cf. Reg. do Desembargo do Paço, ns. 6, 56, 59, 64, 67, 71; Ord. fil. 1, 1, 44; 1, 78.
750 A partir das Ordenações manuelinas, os advogados letrados perante as Casa do Cível e Casa da
Suplicação deviam submeter-se a exame (Ord. man. 1, 38, pr.: “muito proveitosa cousa he aver hi
procuradores letrados, e entendidos, que procurem os feitos, que se tratarem assi em nossa corte,
como em a nossa Casa do Cível, e nas cidades, e villas de nosso Reino”, 1, 38, pr.); o mesmo
acontecia quanto aos advogados não letrados que exercessem perante outros tribunais (ibid.). Uma lei de
13.1.1539 (em Duarte Nunes de Leão, Collecção […], cit., pg. 796) fixava a exigência de estudos em 8
anos de estudos jurídicos. Trinta anos mais tarde, em 1576 (lei de 7.5, ibid. pg. 220), voltou-se atrás,
abrindo provisoriamente a advocacia a não letrados que soubessem ler e escrever. Mas as Ordenações
filipinas exigirão de novo os oito anos de estudos para advogar perante os tribunais superiores, além de
uma "oposição" perante o Chanceler da Casa da Suplicação, se se queria advogar perante este tribunal
(Ord. fil.1, 48 ss.). Pelo contrário, para exercer perante a Casa do Cível, bastava - pelo menos de 1603 a
1722 (assento de 27.4) - a graduação universitária e a admissão, sem exame, pelo Governador da Casa.
Para o resto do reino, a advocacia estava aberta livremente aos bacharéis e, dependendo de um exame
perante o Desembargo do Paço, a todas as pessoas "aptas segundo o direito comum e real" (v. Ord. fil.
1, 48, 4). Em contrapartida, os procuradores do número que actuavam perante os tribunais dos concelhos
mais pequenos, com livre acesso ao patrocínio judicial (Ord. fil. 1, 48, 4), não estavam sujeitos a
nenhum exame (Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tom. 2, gl. 130; tom. 4, ad Ord. fil.1, 48,
gl. 6 n. 1; tom. 7, ad Reg. Sen. Pal. c. 45, n. 1; tom. 14, ad 1, 48, n. 5). Cf. António Manuel Hespanha,
As vésperas […], p. 512 n. 96.
751 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 36.
180
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
justificava pelo facto de estes serem credores mais fortes do ato de graça do rei.
Mas este especial crédito fundava-se numa continuidade generativa entre pais e
filhos, que se manifestava também noutros pontos do direito.
§ 561. Esta conceção honorária dos ofícios é ainda consistente com outros
pontos da dogmática jurídica da época.
2.6.3 A capacidade para exercer ofícios públicos.
§ 562. Como funções de natureza pública753, os ofícios eram de exercício
obrigatório. O direito dispunha acerca das causas de escusa do dever de exercer um
ofício, sendo bastante restritivo quanto a isto: a falta de idade, a doença, a pobreza
e o ingresso em ordem religiosa escusavam, tal como ter mais de cinco filhos ou um
filho morto na guerra754. Também se podia estar escuso por privilegio (ou por
costume prescrito de estar escuso), como acontecia com os rendeiros das rendas
reais755. Estas escusas podiam não valer se não houvesse gente para desempenhar
os ofícios756. Pela mesma razão da imperatividade, não se podia abandonar o ofício
sob pena de se servir no dobro e de os bens do revel responderem pelo salário do
substituto757.
§ 563. Outra consequência do caráter público dos ofícios era a sua
incompatibilidade com o desempenho de funções que pudessem conflituar com o
interesse público. Assim, os oficiais da república por norma não podiam contratar,
por si ou interposta pessoa, pedir emprestado ou emprestar, bem como casar, no
lugar em que fossem oficiais, com pessoas sujeitas à sua jurisdição, sob pena de
nulidade dos atos praticados em contravenção e perda do objeto do negócio (Ord.
fil.4,15,1). Estas interdições prolongavam-se para além do termo do seu mandato.
Apenas se excetuavam os negócios de extrema necessidade (como alugar casa ou
comprar alimentos), celebrados publicamente e de boa-fé. Do mesmo modo, não
podiam estar em juízo no lugar em que exerciam758. António Cardoso do Amaral
refere que esta era a prática em todo o reino 759.
2.6.4 O exercício dos ofícios. Deveres deontológicos e retribuição.
§ 564. O desempenho dos ofícios regulava-se por normas que arrancavam da
ideia de que eles constituíam o exercício de funções devidas para com a coisa
pública ou para com os seus responsáveis máximos.
§ 565. Certos ofícios públicos, os exercidos sem carácter profissional e
quotidiano, participavam do imaginário do serviço religioso, combinado com o
imaginário do serviço feudal. O seu desempenho correspondia, em geral, a serviços
públicos devidos, pelo que deviam ser desempenhados gratuitamente. Exercê-los
bem dependia do valor e de um nobre espírito de serviço; a sua remuneração estava
753 Mesmo se algumas das suas atribuições visassem também a satisfação de utilidades particulares,
758 A não ser para responderem por furto, coisa “fétida e abominável nos oficiais e pessoas
181
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
760 Sobre a avaliação da honra dos oficiais honorários dos concelhos, v. António Manuel
Hespanha, Vésperas […], cit., 5.1.
761 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 386, n. 55.
763 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 385, n. 56; pg. 391, n. 80.
182
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
764 “Se não tiver ciência, a menos que tenha assessores peritos que consulte, faz sua a lide e, se
766 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 209, n. 1;Bento Pereira, Promptuarium [...],
“Officium”, n. 20.
768 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 38.
770 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 25.
771 Cf. Os manuais de confessores costumavam conter um capítulo dedicado aos pecados dos
oficiais públicos.
772 Cf. v.g. Ord. fil. 1, 92 ss..
773 Comentário doutrinal: Nicolau Coelho Landim, Nova et scientifica tractatio … De syndicatu iudicum
& aliorum officialium justitiae […], cit.; João Pinto Ribeiro, Obras varias sobre varios casos con tres relações […],
89 ss.; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 4, ad Ord. 1, 60; Manuel Lopes Ferreira,
183
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Direcção para os syndicantes […], cit.. Sobre a alegada complacência deste controle corporativo dos oficiais,
v. António Manuel Hepanha, As vésperas do Leviathan […], cit., 529 ss.
774 Sobre estes emolumentos, António Manuel Hespanha, Vésperas […], cit., II.5.1. Saliento
neste estudo que os rendimentos emolumentares dos oficiais eram muito superiores (cerca do dobro)
dos rendimentos salariais, o que configura o oficiliato, sobretudo o local, como uma profissão
eminente “liberal”, pouco dependente das prestações económicas da coroa (v. ibid. II.5.5).
775 João Baptista Fragoso, Regimen […], tom. 1, pg. 662, ns. 271 ss..
776 João Baptista Fragoso, Regimen […], tom. 1, pg. 662, n. 290.
777 João Baptista Fragoso, Regimen […], tom. 1, pg. 662, ns. 294 s..
778 Sobre o tema, para Portugal e seu império, v. Roberta Giannubilo Stumpf, “Os provimentos
184
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
necessários à consecução do bem da república, uma vez que o seu ofício não era o
de exercer pessoalmente todos esses ofícios, mas antes o de os prover em pessoas
dignas para isso780. Mesmo quanto aos ofícios que ele, por si, pudesse
desempenhar, o príncipe podia confiar pontualmente o seu exercício a delegados,
sem criar um ofício ordinário correspondente ao exercício permanente daquelas
funções. A figura conceitual usada para exprimir isto era a de iurisdictio delegata (ou
mandata) que – por oposição à iurisdictio ordinaria concedida para a generalidade das
causas – seria concedida para uma causa individualizada e concreta.
§ 576. Esta prerrogativa régia cessava quanto aos ofícios de algum corpo
particular dentro do reino, como um concelho ou uma universidade, caso em que
competia aos órgãos de governo dessas comunidades a criação e provimento dos
seus ofícios. Os ofícios dos concelhos – que eram os mais importantes ofícios não
régios – eram criados e providos pelas câmaras, no âmbito da sua jurisdição
própria. Por isso é que a escolha de oficiais das câmaras pelo rei ou seus
magistrados delegados, como os corregedores, podia ser anulada a pedido de
qualquer vizinho781. Jorge de Cabedo trata do provimento dos ofícios concelhios
numa decisão famosa782, em que se percebe a tensão entre uma posição regalista e
outra corporativista, bem como os argumentos que podiam ser mobilizados num e
no outro sentido. Cabedo não pode fugir ao princípio de que a dada dos ofícios
pertence a quem tiver a jurisdição omnímoda ou ordinária no território
correspondente, o que legitimaria a dada dos ofícios dos concelhos pelas câmaras.
Mas a isto opõe um expediente retórico geral: o de que o rei, como lex animata,
pode subverter a justiça ordinária e intervir livremente na escolha dos ofícios locais,
como se todos os ofícios estivessem na sua disposição 783. Daí que se tendesse para
uma posição indecisa, que repartia pelo rei e pelos concelhos, o poder de criar
magistrados (bem como a jurisdição ordinária): "In Lusitania non esse totam civile
potestatem, & temporalem iurisdictionem solum penes in principi, cum civitates,
oppida, & populi constituendi sibi judices ordinarios ius habent, & creandi
magistratus qui ius litigantibus reddere valeant"784.
§ 577. Na doutrina portuguesa era, portanto, ponto assente que o direito de
criar e de dar ofícios do reino785 era uma prerrogativa real, bem estabelecida no
título 2,26 das Ordenações (“Dos direitos reais”: “[Direito real he] poder para fazer
officiaes de Justiça, assi como são Corregedores, Ouvidores, Juizes, Meirinhos,
Alcaides, Tabelliães, Scrivães e quaisquer outros Officiaes deputados para
780 Ao escolher os seus oficiais, o príncipe incorria numa responsabilidade in eligendo, pelo que
ficava obrigado pelos atos dos oficiais, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officialis”, n. 1340.
781 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 1, dec. 112, n.1 1; Bento Pereira, Promptuarium [...],
cit., s. v. “Officialis”, n. 1343. Sobre a eleição dos ofícios, ibid. t. 2, dec. 84; Manuel Barbosa,
Remissiones doctorum […], ad 1, 67, 1, 9-10.
782 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 29 (“Se o rei pode dar ofícios da câmara de
alguma cidade ou concelho em que os oficiais dele pretendem que a dada dos ofícios lhes pertence”).
783 Cf. n. 4 da decisão. Como a decisão versava sobre o provimento dos escrivães das câmaras,
Cabedo argumenta ainda com o facto de os tabeliães e escrivães das justiças serem um ofício régio, pelo
que os das câmaras também o seriam.
784 Manuel Alvares Pegas, Commentaria [...], cit., t. 5, ad Ord. fil.2, 45, 13, gl. 2, n. 23.
785 Mas não de outros corpos políticos “com jurisdição separada”, como concelhos, ordens
185
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
786 “A concessão de ofícios e dignidades está reservada à majestade do rei”, escreve Melchior
160 ss..
788 V. Ord. fil. 2, 45, 31; 45, 15, sobre a excecionalidade da doação dos ofícios da fazenda e fiscais e
790 A confirmação régia da dada do ofício equivalia à dada pelo rei, escrevia Miguel de Reinoso,
186
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
(neste caso, apresentação e confirmação) dos ofícios 793, pelo este é mantido pelo
direito uti possidetis, mas não se decide sobre a questão substancial da competência
para prover o ofício, que fica para outro pleito.
§ 580. O rei podia dar ofícios vagos ou cartas de expectativas para os ofícios
quando vagassem, mesmo usando fórmulas indeterminadas, como a doação do
primeiro ofício que vagasse 794.
§ 581. Nos vice-reinados e governos da Índia e do Brasil, estas questões da
criação e provimento de ofícios estava contemplada nos regimentos de governo. Os
primeiros regimentos dos governadores gerais do Brasil 795 proibiam a criação de
novos ofícios pelos governadores, de acordo com a regra de que se tratava de uma
regalia796. Porém, para os ofícios já existentes, os governadores podiam nomear
serventuários, embora não pudessem provê-los a título definitivo. Em causa estava
não apenas o monopólio régio da criação de ofícios, mas ainda a garantia do direito
dos herdeiros do oficial falecido797. Jorge de Cabedo, que publica o segundo tomo
das suas Decisiones em 1604, indicia que, pouco antes (das Ordenações filipinas ?), teria
havido uma restrição dos poderes de criação ou provimento de oficiais pelos
governadores do ultramar, ao opinar que “os vice-reis e governadores das
províncias têm a faculdade de prover ofícios como antes, de contrário far-se-lhes-ia
grande prejuízo”798. Mas não é possível saber a que se refere799.
§ 582. A prerrogativa de prover ofícios podia ser doada, nos termos também
estabelecidos nas Ordenações, que obrigavam a uma menção expressa a ela na carta
de doação e excluíam a sua aquisição por prescrição, tal qual como acontecia com
as restantes regalias800. Isso era frequente nas doações de terras com jurisdição 801.
Seja como for, o princípio da natureza real dos ofícios mantinha-se nos planos
simbólico e doutrinal, jogando quer a favor do prestígio dos oficiais, como credores
da obediência e reverência devida ao rei, quer no sentido do príncipe, pois lhe
permitia reclamar um poder de supervisão sobre os ofícios 802.
793 Que, de resto, não tinha ambos a natureza de ofícios da câmara, pois a escrivaninha dos
cit., 1, 275; reg. Gaspar de Sousa, 6.10.1612, n. 44, ibid. cit., 1, 431; reg. Roque da Costa Barreto,
23.1.1677, ibid. cit., 2, 753. Em contrapartida, o primeiro “capitão donatário” tinha o direito de criar e
prover ofícios: carta de doação de Duarte, 25.9.1534, ibid. cit., 1, 133.
796 Por isso, os ofícios de justiça e do fisco concedidos pelos vice-reis ou governadores vagavam
no fim do mandato do concedente, ao contrário do que acontecia com os ofícios providos pelo rei,
Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 21, n. 1. o mesmo acontecia nos ofícios concedidos
pelos Mestres das ordens militares, cf. António da Gama, Decisiones […], cit., Dec. 353, n. 36.
797 Cf. Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes […], cit., n. 43, pg. 430.
799 Sobre os ofícios nos mundos coloniais, Roberta Stumpf & Chaturvedula (orgs). Cargos e ofícios
nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII-XVIII). Estudos & Documentos,
volume 14, Centro de História de Além-mar, Lisboa, 2012.
800 Cf. ainda Ord. fil. 2, 45, 1; 3; 13; 15; 31 (sobre a concessão desta prerrogativa a senhores de
terras).
801 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan […], cit., ps. 398 ss..
802 Discutia-se se os donatários a quem tivesse sido concedida a dada de ofícios tinham o poder de
dar cartas de esperança e de prover serventias, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 24, n.
187
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 583. Esta pretensão real de dirigir o oficialato era, porém, mais teórica do
que prática, porque a mesma doutrina opunha barreiras decisivas a uma intervenção
do rei no exercício da jurisdição dos oficiais. Por um lado, entendia-se que os
oficiais não deveriam cumprir as ordens reais contrárias aos seus regimentos ou ao
direito803. Esta restrição é tudo menos banal, pois impedia o estabelecimento de
uma pirâmide administrativa hierarquizada. Mas a doutrina entendia ainda que o rei
não podia alterar, invocando a oportunidade, o regimento dos oficiais da coroa,
autorizando estes a embargarem ordens régias abusivas. Por fim, mantinha-se bem
vivo na doutrina seiscentista a ideia do caráter odioso da jurisdição extraordinária
(comissões, processo extra ordinem)804, o que reforçava ainda o princípio de que o rei
devia respeitar as atribuições dos oficiais e magistraturas ordinárias e deixar correr
livremente as causas intentadas perante elas. O seguimento de alguns processos que
opuseram oficiais ao rei é suficiente para revelar o grau de independência prática de
que gozavam os titulares de ofícios da coroa no confronto com o paço 805. Não é
preciso realçar a importância que isto teve na criação de um poder autónomo dos
oficiais. É preciso esperar pelos meados do séc. XVIII para que este contexto
doutrinal e legal comece a mudar num sentido favorável ao efetivo fortalecimento
da disciplina régia sobre os oficiais da coroa 806.
10.
803 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tom. 3, ad Ord, 1, 21, gl. 3, n. 3 ss.; t. 4, ad
que se offerecerão a … no cargo de juiz de fora em Pinhel, Lisboa, Casa de Sam Roque da Companhia de Jesus,
1635, “Relação primeira”.
806 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], 1, 2, 20; CL. 23.11.1770; Alv. 20.5.1774.
807 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 13, ns. 111-117;
Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 20; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit.,
tom. 7, ad Ord. 1, 99 (por erro, aparece como 1, 98), gls. 1 e 2.
808 Cf. Aires Pinhel, De rescindenda venditione […], cap. 2, n. 31.
809 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 27, ns. 23 e 24.
188
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
direitos ao ofício810, direitos que só podiam ser violados com justa causa,
previamente ouvido o oficial811, mesmo que fosse provido da forma mais precária
(“enquanto for nossa mercê”), pois nem nesse caso podia ser removido do ofício
sem justa causa
§ 587. A opinião de Pinhel não era a opinião comum no séc. XVII. Esta,
consagrada numa decisão de Jorge de Cabedo812, reconhecia ao rei o poder de tirar
ofícios perpétuos (“enquanto for nossa mercê”) ou temporários, embora com duas
importantes limitações: desde que houvesse justa causa para isso e o titular fosse
indemnizado813. Este direito estava, porém, limitado nos casos de ofícios
comprados pelos titulares ou naqueles casos em que a doação do ofício fosse
remuneratória de serviços (ob servitia & benemerita), situações em que o ofício como
que se patrimonializava no seu titular. Com todas estas limitações, a doutrina
dominante não era tão diferente da defendida por Aires Pinhel. E, por isso, a sua
opinião continua a ser citada. Paradoxalmente, até a fórmula usual nas cartas de
concessão (“enquanto for nossa mercê”) era por alguns interpretada de forma a
aumentar ainda as garantias do nomeado, pois se entendia que concedia o ofício
sem prazo e, logo, perpetuamente814.
§ 588. Também a ideia de que a concessão de ofício era pessoal, de uma
pessoa (o rei) a outra (aquele oficial), não funcionava plenamente, pois a concessão
não caducava com a morte do rei concedente, como acontecia com as doações
régias. Assim, os ofícios reais não careciam de confirmação “de rei a rei” 815.
§ 589. Depois, sobretudo com base em Ord. fil. 1,99, introduziram-se algumas
exceções ao princípio geral da liberdade real de tirar ofícios. Este não valeria nos
casos de ofícios vendidos ou concedidos ob benemerita e, de qualquer modo,
obrigaria a indemnização, a menos que o ofício fosse tirado por erros do oficial816.
§ 590. Tudo isto combinado redundava numa acentuada estabilidade nos
ofícios. Os reis consideravam seu dever manter neles os oficiais que bem servissem
e a doutrina testemunha haver um costume nesse sentido 817.
2.6.5.3 Transmissibilidade dos ofícios por morte do titular.
§ 591. Mais importante do que esta indisponibilidade do ofício em vida era a
813 A indemnização apenas não existia no caso de a causa da privação do ofício ser a prática de
erros de ofício, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.. pt. 2, dec. 20, n. 4.
814“O ofício criado ad beneplacitum [“enquanto me aprouver”] é tido como perpétuo”, sintetiza
militares podiam avocar os ofícios dados pelos antecessores e concedê-los a outrem, tal como os
prelados, v. Jorge de Cabedo, Decisiones […], t. 2, dec. 21, n. 5. Também os ofícios concedidos por
governadores e vice-reis não se mantinham depois de findo os mandatos dos concedentes.
816 Os ofícios concedidos em doação remuneratória, como os concedidos em razão de serviços,
eram tidos como dados por contrato oneroso, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 8, n. 67
ss.; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, n. 1347. O contrato oneroso a que Reinoso
alude seria o de venda, que Álvaro Valasco considerada vinculativo para o rei e inquebrável (o príncipe
não pode sem causa privar alguém de ofícios que deu por dinheiro, Decisiones [...], cit., cons. 72, n. 5).
817 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 2, c. 13, n. 115 ss..
189
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
818 A faculdade de deixar ofícios em testamento raramente era concedida, ensina Melchior Febo,
Decisiones […], cit., dec. 128, n. 7 (Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1362).
819 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 129, 309 ss..
820 “Quod autem Reges hujus Regni ab antiquis temporis soleant providere filijs officialium
benemeritorum de officijs parentum non venit in dubio, imo transivit jam quasi in obligationem, &
debitum ipsius Regis, ut injuria fecisse dicatur si alteri donaverit, quemadmodum alias in alia materia
dixit Bar[tolus] […]”
821 Uma história, hostil, do princípio é contada no preâmbulo da CL. de 23.11.1770 (em António
Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tom. 1, ad Ord. 1, 1, gl. 1 74, n. 17; t. 7, ad Ord. 1, 99, gl. 2,
ns. 18 ss.; ns.. 24 ss. (sentenças); tom. 11, ad Ord. 2, 35, c. 197, n. 12; António de Sousa de Macedo,
Decisiones […], cit., pt. 3, 4, n. 7.
823 Cf. João Pinto Ribeiro, Usurpação, retenção e restauração de Portugal […], cit., 2, 29.
824 Se gozasse desta privilégio. No caso de não ter nomeado ninguém, considerava-se que nomeara
o filho mais velho, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, n. 1362, apoiando-se no
exemplo da sucessão enfitêutica (Ord. fil. 4, 36, § 3).
825 A casuística é muito rica: Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 7, ad Ord. 1, 99, gl.
2, ns. 24 ss..
190
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
826 Cf. Joana Estorninho de Almeida, A Forja dos Homens […], cit..
191
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tom. 7, ad Ord. 1, 96, pp. 414 ss.; t. 12, ad Ord. 2, 46;
Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 24; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, liv.
1, disp. 2, n. 121 ss..
830 Sendo menos grave nos outros, como os de tabelião; cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit..
pt. 2, dec. 24, ns. 1 ss.; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, n. 1365.
831 Sendo menos grave nos outros, como os de tabelião; cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit..
pt. 2, dec. 24, ns. 1 ss.; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, n. 1365.
832 Comentários: Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 14;
Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 7, ad Ord. 1, 96, pp. 414 ss.; t. 12, ad Ord. 2, 46; Jorge
de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 24; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, liv. 1, d.
2, n. 121 ss..
833 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 38, ns. 121 ss.
192
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
vendidos na medida em que são obrigações para com certas funções [...] e em que
têm um justo estipendio [ou seja, um salário correspondente aos custos do
exercício da função]. Já o poderão ser na medida em que tiverem certa eminência e
ocasião de lucrar, envolvendo o estipêndio um excesso sobre o débito […] como
são coisas seculares e que podem ser avaliadas, podem ser vendidos pelo príncipe”
(ibid. n. 123). O centro da argumentação está, portanto, no carácter naturalmente
devido (para com a república) dos serviços do oficial. A venda de uma coisa (a
função) que não era própria seria impossível. Como seria impossível a venda dos
réditos, pois estes correspondem exatamente (justamente) à função. Daí as
proibições de vendas de ofícios contendo administração de justiça (Pio V, 1571;
Ord. fil, 1,95), ainda que se opinasse que estas proibições podiam ser dispensadas
por licença (graça) régia e se constatassem abusos frequentes na matéria. Já nos
casos em que os réditos excediam a retribuição da função, incluindo alguma
oportunidade suplementar de lucro, a venda poderia ter lugar. Tal seria o caso de
outros ofícios públicos (como os tabeliados ou escrivaninhas) em que a retribuição
no estava tão rigidamente fixada, assumindo parcialmente a natureza de um ganho
puramente patrimonial. Nestes casos, os ofícios incorporavam-se no património
("Officia publica postquam sunt acquisita censetur in bonis, & veniunt sub
appelatione illorum"834).
§ 605. A venda de ofícios pelo rei não parece que tenha sido frequente em
Portugal835. Para além dos já referidos fatores de ordem doutrinal, nisto deve ter
pesado o facto de o nosso direito ter tutelado, como se viu, os direitos dos filhos
do titular, obstaculizando a venda e a disponibilidade pela coroa dos ofícios que
vagassem. Segundo a literatura autonomista portuguesa, os reis Habsburgo teriam,
no entanto, alterado a prática, no sentido da venalidade. Na Arte de furtar (1656, cap.
XVII836) escreve-se que os reis da Casa de Áustria “Faziam pratica neste reino coisa
nunca vista entre os portugueses: venderem-se a quem mais dava os ofícios que
antigamente se davam de graça […] Faziam jurar na Chancelaria os que compravam
os ofícios que nada davam por eles […]”. Esta acusação pode ter fundamento,
dadas as dificuldades do tesouro nessa época, mas sobretudo porque, em Espanha,
o grau de patrimonialização dos ofícios era maior. Sabe-se que houve, nos anos de
1630, vendas de ofícios de guerra e fazenda no ultramar. Mas faltam estudos que
coloquem a questão sobre bases empíricas mais fiáveis, até porque por “venda”
alguma desta literatura antiespanhola quer significar a concessão de ofícios por
peitas e subornos ou em remuneração de serviços financeiros. Seja como for, a
venalidade dos ofícios não foi, seguramente, uma particularidade do período
pt-PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false; http://www.slideshare.net/
giovannapiani/a-arte-de-furtar (ed. de 1744); http://www.brasiliana.usp.br/
bbd/handle/1918/01950100#page/7/mode/1up (ed. de 1752); https://archive.org/details/
artedefurtarespe00vieiuoft (1821).
193
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
filipina, pois existia antes. Da segunda metade do séc. XVI há notícias de venda de
ofícios, nomeadamente de escrivaninhas de justiça, embora pouco frequentes. Nos
inícios do séc. XVII, há uma avaliação dos ofícios do Brasil, para efeitos de
venda837 E nos finais do séc. XVII continua a haver alvitres recomendando a venda
de ofícios como uma forma de desempenho do reino.
§ 606. Parece ter sido no ultramar que a venda dos ofícios se generalizou
mais838. No Brasil, no início do séc. XVIII, um decreto real 839 determinou que os
novos ofícios, criados ou a criar840, deviam ser dados em propriedade a quem
prometesse uma doação (“donativo”) à Real Fazenda, enquanto que os oficiais
providos em serventia deveriam pagar à Fazenda um terço do rendimento do cargo
(terça) 841. Mais tarde, pela provisão de 23.12.1740, o regime de donativo foi
estendido a todos os ofícios (exceto aos rendeiros). Daí em diante, os ofícios vagos
eram vendidos em leilão842. Teoricamente, isto não constituía, uma venda, mas
antes a combinação de dois atos de graça – o donativo e a dada do ofício – ambos
regulados pelo chamado “direito antidoral e consuetudinário”
§ 607. Esta qualificação jurídica que justificava a venda de ofícios é
significativa. Por “antidoral” quer-se dizer que estes deveres mútuos (de gratificar o
tesouro e de dar o ofício) se fundam na gratidão e não numa relação sinalagmática
(ou mercenária). O conceito de “consuetudinário” é usado, desde os meados do
séc. XVIII, nomeadamente para qualificar os costumes jurídicos relativos à
transmissão dos ofícios que não se encaixam no conceito moderno de ofício como
um dever público e, por isso, incompatível com a patrimonialização. Por isso,
“consuetudinário” era – de acordo com as leis pombalinas relativas aos ofícios (CL,
23.11.1770, Alv. 20.5.1774; sobre a nova conceção do ofício, cf. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis […], cit. 1789, 1, 2, 20) – o direito dos filhos aos ofícios dos
pais. De 1761 a 1767, o Conselho Ultramarino vendeu em leilão a propriedade ou
as serventias trienais de todos os ofícios de justiça vagos da Bahia, autorizando os
compradores a arrendá-los a serventuários843. A partir de 1767, a venda em leilão
foi substituída pela venda a preço fixo, limitada às serventias, pagando o
837 Documento descoberto por José Manuel Santos Pérez (Univ. Salamanca): 51-vi-54, “Cargos da
[…], III, 754; fonte, Arq. Secret. do Governo da Bahia, liv.. 20, fls. 15).
840 Excluindo ofícios da fazenda.
841 A terça era a renda normalmente paga pelos serventuários aos proprietários do ofício, de acordo
com o sistema de arrendamento dos ofícios estabelecido nos meados do séc. XVII (cf. CL. de Julho
1648; António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 515).
842 A base para o cálculo do donativo era o montante pago pelo anterior titular ou o valor estimado
da serventia (prov. 2.4.1756). Se os ofícios fossem tão insignificantes que ninguém desse nada por eles, o
governador podia provê-los de graça (aviso 10.3.1740; fonte: Arq. Secr. Gov. Est. Brasil, Ordens régias,
mç. 1740).
843 Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes […], 1972, 2, 735; fonte, CR. 20.4.1758, no Arq.
Secret. Govern. Bahia, liv. 61 – 7. De acordo com uma lei de 1666, os serventuários tinham que pagar ao
titular do ofício um terço do rendimento da serventia do cargo. O regime vigente no Brazil representava
uma extensão desta regra: aqui, a terça relativa aos ofícios vagos dados em serventia era pago à coroa,
pois não havia um titular dos cargos. Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 515.
194
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
um caos nos arquivos, devida à transferência dos papéis e dos livros de uma casa para a outra (Marcos
Carneiro de Mendonça, Raízes […], 2, pg. 757).
847 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, 24, n. 7 (obtida a licença para renunciar, pode-
se renunciar, mas não vender, nem renunciar a troco de dinheiro). Cf. a decisão judicial transcrita por
Pegas, em Comentaria ad Ordinationes […], tomo 12, pp. 175 ss..
848 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9, pag. 290.
195
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Reinoso, Decisiones [...], cit., obs. 5, ns, 20 ss.. O texto legal de apoio era Ord. fil. 1, 96, que proibia a
renúncia em outrem sem licença especial do rei (cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., comentário a
este título).
852 Cf. discussão em Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit., obs 5, per totam.
853 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec.128, n.9 (“pro obtinenda renunciatione officii non
196
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
855 Sobre este processo de absolutização do poder do príncipe, com críticas a anteriores equívocos
sobre o tema - devidos, por um lado, a uma projecção sobre o passado dos conceitos oitocentistas de
soberania e, por outro, a uma leitura unilateral e incompleta da dogmática da época (sem reconhecer,
ainda por cima, o carácter limitado da história feita apenas sobre as realidades dogmáticas) -, v. as
páginas que escrevi sobre o assunto no prefácio à colectânea Poder e Instituições […], cit.. A análise
detalhada das limitações práticas do poder real na época moderna, fi-la em As vésperas do Leviathan […],
cit.
856 Teorias da irrevogabilidade das doações régias de jurisdições, da prescritibilidade das
jurisdições, da inviolabilidade dos direitos radicados ou adquiridos. Dependia de cada conjuntura
discursiva, a hegemonia de uma ou de outra destas correntes.
857 A doutrina distinguia, por vezes, entre os magistrados superillustres e os illustres; o critério estava
na possibilidade de exercício ou não dos graus de poder reservados ao príncipe, como, v. o poder
legislativo. De entre os magistrado eclesiásticos incluíam-se aqui os cardeais e os patriarcas. De todos
estes era aproximado, por gozar das suas prerrogativas em relação aos estudantes, o doutor lente com
mais de vinte anos de exercício. Sobre isto, G. Mastrillo, De magistratibus [...], cit., pt. 2, liv. 5, c. 6, ns.
18 ss..
858 A correspondência entre as magistraturas do Baixo Império e as da época medieval e moderna
era matéria discutida: o perfectus praetorii seria o vice-rei ou o tribunal da corte; o questor, o conselheiro
da fazenda ou o chanceler; o cônsul, o juiz da corte; os senadores, os membros dos conselhos régios;
os comites, os altos funcionários palatinos, etc..
197
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 617. O grau seguinte das magistraturas ordinárias era preenchido por aquelas
qui superiorem recognoscunt.
§ 618. Em primeiro lugar, pelas magistraturas territoriais; que, no direito
comum clássico, eram as magistraturas ordinárias por excelência, a ponto de Baldo
definir o carácter ordinário do juiz com recurso ao carácter geral e não
especializado (territorial) da sua jurisdição859. Nestas, dentre as magistraturas maiores,
i. e. dotadas de império, destacavam-se os praesides provinciarum, magistrados
ordinários e universais no âmbito da província 860. A estes se equiparavam, na
tipologia das fontes do direito romano, os outros magistrados encarregados de
dirigir as províncias - proconsules, procuratores caesaris - e, no direito intermédio, quer os
representantes regionais do rei - comites, duces, corrigedores861 -, quer os magistrados
que presidissem às cidades metropolitanae, maximae e magnae862. Nas fontes de direito
canónico, equiparam-se-lhes os bispos.
§ 619. Em segundo lugar, pelas magistraturas que presidiam a universitates não
territoriais (collegia), magistraturas que, no direito comum clássico, eram excecionais:
as fontes referem o reitor da universidade, os conservadores das nações
estrangeiras, os chefes militares em campanha e pouco mais. Estes magistrados
dispunham apenas de iurisdictio e da medica coertio a ela inerente (nomeadamente no
que respeita à administração dos bens das mesmas pessoas coletivas). A expansão
859 Cf. Baldus, Commentarium in Dig. Vet. 1. iubere cavere, D. De iur. omn. iud. (D.2, 1, 4).
860 Para a teoria do ius commune clássico a distinção entre regnum e provintia e civitas assentava sobre
um duplo critério. De um lado, um critério, digamos, geográfico distinguia entre espaços humanos de
povoamento contínuo e espaços de povoamento descontínuo - assim, os reinos e as províncias eram
communitates hominum in aedificiis separatis hobitatium, enquanto que as cidades, oppida, castra e villae ou vici
são communitates hominuum in eodem loco habitantium. Um critério jurídico-político permitia ir mais longe
na distinção: assim, os reinos, enquanto comunidades que não reconheciam superior, estariam dotados
de todos os graus de mero império, mesmo de mero império máximo, e seriam, portanto isentos de
qualquer sujeição jurisdicional; já as províncias seriam sempre unidades políticas dependentes, embora
gozando de mero império (excluindo, no entanto, o máximo); as cidades, em contrapartida, não
gozariam, em princípio, de todos os graus do império (mas apenas dos graus inferiores), embora
dispusessem de jurisdição; os oppida, castra e villae, enquanto submetidos a uma cidade, não gozariam
sequer de jurisdição. Este era o modelo geral, com base no qual eram classificados os casos concretos
que ocorriam. Sobre isto, por todos, v. António Manuel Hespanha, “Representação dogmática […]”,
cit., em que se remete para Francesco Ercole, Da Bartolo all'Althusio […], cit., pp. 79, 83 ss. 108 ss.
para o confronto entre os conceitos aristotélico e bartolista de cidade e de reino.
861 Os praesides provintinrum gozavam, ao nível da província que dirigiam, de uma competência
universal e cumulativa com a dos outros magistrados, o que quer dizer que podiam avocar as causas
destes. Eram classificados pela doutrina como judices perpetui et universales. Para a aplicação desta doutrina
aos nossos corregedores ou mesmo aos donatários, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, d. 13
(per totam), Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 4 (ad. 1, 58), gl. 1 (cfr. nas gl. 12, 23 e
24 algumas restrições ao carácter cumulativo da competência dos corregedores - não podem avocar as
causas dos contadores, dos juízes de fora e dos rnamposteiros).
862 Para esta classificação das cidades, cf. Gabriel Alvarez Valasco, In l. imperium […], cit., n. 71:
as civitates máximas eram as que tinhão jurisdicção civil e criminal e a que estavam sujeitas outras cidades
(correspondiam às capitais das províncias, sedes do praeses); as civitates magnae eram aquelas cujos
magistrados também tinham foro civil e criminal, mas que não tinham outras cidades sujeitas; as civitates
parvae eram as restantes, em que os magistrados apenas gozavam de iurisdictio. Metropolitanae eram as
cidades sedes de bispado. Havia ainda outras classificações das cidades: desde logo, a das fontes
romanas (C. 11, 12 De metropoli Beryto, 1. un.), que distinguia as cidades em função do número de
médicos, gramáticos, etc. que aí houvesse. Entre nós, a criação de cidades era um direito real. V. sobre
o tema das cidades na doutrina portuguesa, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 6, ad
Ord. fil. 1, 73, gl. 2, n. 1 ss..
198
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
863 Em Portugal, no século XVII, estas rnagistraturas eram inúmeras: conservadores das nações
estrangeiras, Juiz dos moedeiros, Juiz dos Cavaleiros, Conservador da Universidade, Juiz do Hospital
de Todos os Santos, juízes dos mesteres, etc..
864 Alguns magistrados deste tipo: Juiz da Índia, juízes dos órfãos, juízes das sisas, almoxarifes,
juízes das alfândegas, provedores, contadores, mamposteiros, dotados de uma competência privativa
em relação aos corregedores. Cfr. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 4 (ad. 1.58), gl. 2,
n. 1 e gl. 24, n. 6.
865 Sobre este processo de “consolidação” de magistraturas onginariamente delegadas, v. para a
França, Charles Loyseau, Traité du droict des offices [...], cit., liv. IV, c. V, nomeadamente ns. 15 ss. (o A.
relaciona a transformação das comissões em ofícios, através da sua formalização por lei do príncipe
[edito] com o interesse da realeza e dos oficiais em transforem os cargos em situações estáveis e, logo,
vendáveis). Sobre a interpretação histórico-sociológica dos aparelhos político administrativos na Europa
Moderna, v. Antonio Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., [Os oficiais, instrumentos ou entraves].
866 Para as fontes jurídicas e literárias da antiguidade, de onde esta distinção brotava, v. Jean
Bodin, Les six livres […], cit., liv. 3, c. 2 (p. 173 ss..); Charles Loyseau, Les cinq livres du droict des offices,
cit., liv. 4, c. 5, n. 3 ss..
199
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Mas foi preciso esperar pela segunda metade do século XVI para encontrar autores
que colocassem a distinção entre ofício e comissão no centro da teoria do ofício 867.
É o caso de Jean Bodin e de Charles Loyseau que, sublinhando nas suas obras a
figura do comissário, mostram bem a importância que esta (e o modelo
administrativo que ela representa)868 adquirem nesta época, em que o poder político
central estendia o seu campo de ação para fora do tradicional domínio do “iustitiam
dare”. Charles Loyseau, porventura mais próximo das fontes tradicionais do que
Jean Bodin, insinua ainda que os verdadeiros ofícios são, no fundo, os ofícios
ordinários de justiça, embora nos seus dias, causas “exógenas” (nomeadamente, a
instauração da venalidade dos ofícios) tivessem feito com que primitivas comissões
tenham sido decoradas com o carácter ordinário869. De qualquer modo, isto não
impede, antes pelo contrário, o aberto reconhecimento da existência de uma
administração que se processava ao lado da tradicional administração ordinária,
abrangendo domínios diferentes e novos, liberta das formalidades do processo
ordinário e, por fim, baseada num novo tipo de funcionário.
§ 623. Esta nova administração tanto abarcava tarefas extraordinárias, quer
quanto ao tempo (i. e. não permanentes), quer quanto ao assunto (ratione temporis vel
ratione subjecti, na fórmula adotada por Charles Loyseau), como tarefas ordinárias,
mas concedidas a alguém de forma precária ou excluindo as formas processuais
normais (cognitio extra ordinem}. A sua maior maleabilidade decorria, como já se
disse, desta mesma indefinição dos seus estatuto e processo; pois à plena
disponibilidade dos cargos somava-se a plena disponibilidade da competência e a
total maleabilidade processual 870. É esta nova estrutura político-administrativa que
se virá a impor no séc. XVIII.
2.6.7 Os ofícios no reino de Portugal.
2.6.7.1 Súmula
§ 624. Traçado este panorama dos grandes ramos do aparelho político-
administrativo, na periferia e no centro, importa fazer um balanço final, em que se
867 Obras e lugares citados na nota anterior; para a sua integração no contexto doutrinal e social da
época, v. os artigos de Vitor Ivo Comparato, Uffici e società a Napoli (1600-1647). Aspetti dell'ideologia del
magistrato nell'étà moderna, Firenze, 1974; Diego Quaglione, "L'ufficiale in Bartolo", L'educazione giuridica,
1. La tradizione italiana, Perugia, 1981, 143 ss.; Vitor Ivo Comparato, "Note sulla teoria della funzione
pubblica in Bodin", L'educazione giuridica, 2. L'étà moderna, Perugia 1981, 3 ss.; Salvo Mastelone, "Il
trattato di Charles Loyseau «Du droit des offices»", ibid. 17 ss.; sobre a interpretação sociológica da obra
de Charles Loyseau, nomeadamente quanto à sua teoria dos ofícios, v. a polémica entre Roland
Mousnier (La venatíté des offices sous Henri IV et Louis XIII, Rouen 1945; mais tarde, La monarchie absolue en
France, Paris 1979) e Boris Porshnev, Die Volksaufstände in Frankreich vor der Fronde, 1623-1648, Leipzig
1954; trad. franc. Paris 1963); e ainda Salvo Mastelone, “Introduzione al pensiero politico di Charles
Loyseau”, Critica storica, 4 (1965), 446-482.
868 Sobre o tipo administrativo do comissário, Otto Hintze, “ Der Comissarius […] ”, cit.; v.
cargos de justiça teriam sido conferidos sob forma de ofícios ordinários; mas não os da guerra “dont la
perpetuité est dangereuse”), nem os de finanças “ou la longue experience n'est nécessaire”). A situação
teria mudado, quanto aos últimos, após Luís XII; e quanto a alguns dos primeiros, após Henrique II.
870 “La comission, qui n'a presque loy ni regre, ains dépend quasi du tout de la volonté de celuy
qui la decerne”, Charles Loyseau, Les cinq livres du droict des offices, cit., liv. 1, c. 1, n. 111 (ed. cit., pg.
20); cfr. ainda Jean Bodin, Les six livres […], cit., ps. 620 ss..
200
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
avalie a importância relativa desses ramos, se visualize o peso que este aparelho tem
em relação à população do reino (notando as eventuais assimetrias regionais) e se
determine o peso de cada uma das principais categorias de oficiais no conjunto.
§ 625. Os cálculos numéricos de seguida apresentados baseiam-se em estudos
efetuados para o século XVII. Desde já se adverte que a extrapolação para os fins
do século XVIII é muito arriscada, tudo indicando que se verifica, a partir dos
meados de setecentos, uma sensível intensificação das estruturas políticas e
administrativas centrais871. Como também se dá uma alteração da importância
política e simbólica dos vários órgãos.
§ 626. Por volta de 1640, existem em Portugal cerca de 11 700 oficiais da
administração periférica, a que haverá que somar cerca de 500 outros da
administração palatina.
§ 627. A maior parte dos ofícios corresponde aos ofícios concelhios (cerca de
72%, incluindo aqui os ofícios da milícia honorária). Devendo notar-se que nestes
se poderão ainda incluir os ofícios das sisas e os dos órfãos, com o que a
percentagem subiria para 85%.
§ 628. Isto é particularmente nítido nas comarcas ao norte do Douro e na
Beira interior (comarcas de Viseu, Lamego, Pinhel e Guarda). Em contrapartida,
destes elementos estatísticos ressalta a modéstia, em termos quantitativos (cerca de
10%), do aparelho da administração real periférica.
§ 629. Estes elementos estatísticos permitem destacar uma outra conclusão: o
aparelho político-administrativo estava predominantemente voltado para a
realização das funções judicial e “económica” (ou “de polícia”). À primeira estavam
ligados cerca de 28% dos oficiais e à segunda cerca de 46% (incluindo aqui os
ofícios “dos órfãos, resíduos e capelas”). As tarefas fiscais-financeiras ocupavam
cerca de 12%, enquanto que a milícia ocupava 8%; sendo de notar que a milícia
mercenária - elemento considerado central nos processos europeus de construção
do Estado - não conta senão com pouco mais de meia centena de oficiais (uns 5
por mil, relativamente ao total).
§ 630. Estes números permitem-nos concluir algo sobre os fins do poder, tal
como eles se manifestavam na prática. Neste plano, os aparelhos de poder
confirmam, até certo ponto, o modelo doutrinal dominante. Na verdade, a
supremacia que os respúblicos continuavam a atribuir à justiça como fim primeiro
do poder refletia-se, no plano da ação política, na importância numérica dos ofícios
de justiça, embora esta importância fosse acompanhada - ou até ultrapassada - pela
dos ofícios “económicos” ou “de polícia”, a maior parte deles vindos da época
medieval. O que, por seu lado, mostra como a ideia de que ao poder cabe regular os
aspetos quotidianos da vida em comum não é uma inovação do “Polizeistaat”; o
qual, neste ponto, apenas transportou para o nível central um modelo de ação
política de há muito em vigor no nível periférico do poder (família, comunidades).
Assim, o peso dos ofícios de polícia - que, note-se, são quase todos ofícios
concelhios - não indicia, no nosso caso, a emergência de um paradigma moderno
de poder político, mas a supervivência das formas medievais de tutela comunal da
871 Cf. com novos dados numéricos, para os finais do séc. XVIII, que documentam um enorme
201
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
vida coletiva.
§ 631. Já os 12% dos ofícios da fazenda representam um traço característico
da organização proto estadual do poder político, embora aqui ainda estejam
incluídos os ofícios (locais) das sisas, que representam quase 50% do grupo. Se os
descontarmos, o significado deste sector reduz-se a uns 6% do total, dos quais -
acrescente-se - metade correspondia à administração alfandegária. A justiça estava
mais bem dotada, representando cerca de 28% dos ofícios totais. Mas, mesmo
assim, não existiam juízes régios sequer em 10% dos concelhos.
§ 632. A tipologia dos próprios ofícios reflete esta mesma estrutura
“jurisdicionalista” da administração ou mesmo aquilo a que se tem chamado a
“civilização do papel selado” (“civiltà della carta bollata”, F. Chabod). Na verdade,
se retiramos do conjunto os oficiais dos concelhos - os almotacés (9% do total) e os
vereadores (17% do total) -, um terço dos restantes oficiais é constituído por
escrivães - dos quais os escrivães do público e judicial representam cerca de 40 % -
e um quinto por juízes. Julgar e escrever são, pois, as tarefas paradigmáticas da
administração oficial na época moderna.
§ 633. Por outro lado, e como também já notámos, esta administração
periférica carecia de articulação, de modo a poder ser encarada como um aparelho
coerente e unificado.
§ 634. Para isto era, desde logo, decisivo o facto de a esmagadora maioria dos
oficiais pertencer, como se disse, a entidades dotadas de extensa autonomia
jurisdicional - os concelhos. A unidade poderia, no entanto, provir de um esforço
de articulação realizado pela administração real periférica. Mas, mesmo esta, era, em
si mesma, desarticulada. Desarticulada no topo; pela falta de órgãos palatinos de
coordenação, pelo menos até ao período pombalino, em que surge uma lógica “de
ministério” (ou “gabinete”), dominada por uma ideia de direção política
centralizada. Mas também na periferia, por falta de um funcionário com poderes de
coordenação global dos representantes locais da coroa, como o foram os
intendentes franceses ou o Kreishauptmann noutros reinos da Europa. Apesar da
tendência para o alargamento dos seus poderes, o corregedor foi sempre,
fundamentalmente, um oficial de justiça e de “administração civil”, nunca tendo
podido controlar as decisivas áreas da milícia ou da fazenda. As possibilidades de
intervenção na periferia do aparelho político-administrativo da coroa eram,
portanto, desde logo reduzidas, em virtude desta escassez de meios humanos.
Mas também o tipo de relacionamento institucional entre o aparelho político-
administrativo periférico da coroa e as estruturas político-administrativas que
lhe estavam subordinadas dificultava uma estratégia centralizadora. De facto, e
como já antes dissemos, as relações entre o centro e a periferia do sistema
oficialato existentes no sistema político moderno não podem ser descritas,
salvo porventura em domínios excecionais como a milícia e as finanças, através
do modelo que hoje designamos por relação hierárquica. O facto de a
competência (ou jurisdição) do funcionário ser, no domínio da teoria do ofício
do direito comum872, quase absolutamente garantida contra intromissões,
872 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit, V.3; José Manuel Subtil, “Governo e
202
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
203
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
humana.
876 1822-1888: Ancient Law: Its Connection with the Early History of Society, and Its Relation to Modern
Ideas, 1861
877 Aqui, o status designa a perspetiva em que assenta a discussão de uma questão do estatuto das
pessoas, e não propriamente esses estatutos. Este sentido de status, como base de uma discussão, fora
204
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
879 cf. Bartolomé Clavero, Tantos estados […], cit., max. 36.
205
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
segundo o direito romano, não como pessoa, mas antes como coisa", escreve Justus
Hermann Vulteius880. Era o caso dos escravos.
§ 644. Tal era a sociedade de estados (Ständesgesellschaft, società per ceti),
característica do Antigo Regime e que antecede a atual sociedade de indivíduos.
§ 645. Entre os juristas, a designação "estado" (status) foi frequentemente
substituída pela de privilégio (ou privilégio geral, pois o privilégio, ou direito particular
(quasi privata lex), era o meio pelo qual se afastava a regra geral, adaptando a norma
a situações particulares (v. cap. 2.5.5).
§ 646. Neste sentido lato (ou vulgar, como se dizia), os estados seriam
infinitos, pois eram inumeráveis as distinções que o direito fazia entre as pessoas.
Embora o direito romano considerasse apenas três estados: libertatis, civitatis e familae
e, por força dessa tradição literária, muitas das exposições do direito das pessoas
obedecessem a esta tripartição, os autores advertiam que, para além desta distinção,
haveria muitas mais a considerar, pois existiam muitos grupos de pessoas com um
conjunto especial de direitos e de deveres.
§ 647. Por outro lado, o estado autonomizava-se das pessoas físicas, pois, na
verdade, todas os entes tinham uma certa situação – função, estatuto - na ordem do
mundo. Ao criar o mundo, Deus criara a ordem. E a ordem consiste justamente
numa unidade simbiótica; numa trama articulada de relações mútuas entre
entidades, pelas quais umas dependem, de diversos modos e reciprocamente, de
outras. Neste sentido, todas elas, sem distinção de inteligentes ou brutos, de seres
animados ou inanimados, disponibilizavam "utilidades" e exerciam as "faculdades"
de gozo inerentes à sua situação, ao seu "estado". Por outras palavras, todas as
entidades que integravam a ordem da Criação tinham direitos e deveres umas em
relação às outras. A extensão desses deveres e obrigações dependia da posição de
cada entidade na ordem do mundo (status), sendo alheia à circunstância de disporem
ou não de entendimento, de serem pessoas ou de serem coisas, no sentido mais
corrente das palavras. Assim, para a tradição do direito comum, o universo dos
titulares de direito não era um universo de pessoas, no sentido comum da palavra,
mas antes um universo de "estados" (status).
§ 648. O que fica dito já permite entender que, ao tratar dos sujeitos da
política o do direito, o ponto de partida não há-de ser constituído pelos indivíduos
(i.e. os seres dotados de identidade física e racional), mas antes pelas condições
(status "estados"). Ou seja, pelas posições relativas que as criaturas ocupam na
ordem da Criação, de que fazem parte.
§ 649. Esta diferente conceção do universo dos titulares de direitos tem uma
dupla consequência.
§ 650. Desde logo, não permite uma rigorosa distinção entre sujeitos e objetos
do direito; distinção gémea da contraposição entre "homens" - dotados do uso da
razão, a quem caberiam, em exclusivo, os direitos e as obrigações - e "coisas",
privadas de capacidade racional e que ocupariam, também exclusivamente, a
posição de objetos desses direitos e dessas obrigações (v. cap. 4.1.4). Pelo contrário.
Direitos e obrigações poderiam caber, indistintamente, a homens e a outras
entidades que não têm (ou já não têm) essa qualidade. E, na verdade, as fontes
880 Citado por Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., I. 170.
206
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
romanas estendiam o “direito” às relações entre animais e até entre as feras ("O
direito natural é aquilo que a natureza ensinou a todos os animais. De facto, este
direito não é próprio do género humano, mas antes comum a todos os animais que
nascem na terra e nos mares, mesmo às aves", Ulpiano, D. 1,1,1,3). Domingo de
Soto (1494-1560), uma das figuras de proa da teologia moral e jurídica da Segunda
Escolástica ibérica, aborda expressamente esta questão do âmbito dos sujeitos de
direito. Ou seja, se só os homens são titulares de direito, ou se, pelo contrário,
também os animais e mesmo as coisas se podem reclamar de pretensões jurídicas:
"Pode efetivamente afirmar-se - escreve no seu Tractatus de iustitia et de iure, 1586 -
que, a seu modo, também os animais brutos têm domínio (i.e. propriedade) sobre a
erva [...] e até parece que a rainha das abelhas tem também domínio [i.e. poder
político] sobre seu enxame [...]. E entre as feras, parece que é o ferocíssimo leão
que domina os restantes animais, tal como o gavião parece que exerce domínio
sobre as infelizes aves. Outro tanto se pode dizer dos céus inanimados, os quais
têm domínio sobre este mundo sublunar, derramando sobre ele o calor e a força
com que se sustenta e desenvolve"881 (IV,1,2, pg. 284 col. 1). Deve dizer-se que
Soto acabava por recusar a opinião de juristas e teólogos insignes que tinham
ampliado a animais e coisas o campo do domínio político e do domínio jurídico (ou
propriedade). Mas fá-lo respeitosamente (bona venia dixerim [permito-me dizer]),
como se de uma opinião teoricamente respeitável e provável se tratasse. Insistir
neste caráter universal da ordem e nesta ideia de que tudo pode ter direitos sobre
tudo, de que tudo pode estar obrigado a tudo, parece uma peça importante para a
compreensão mais profunda da maneira medieval e moderna de ver e avaliar o
mundo e de se comportar nele. A partir deste modelo mental - absolutamente
oposto ao de hoje -, muitas instituições, normas e comportamentos tornam-se
esperados e óbvios. E, com isso, a sociedade moderna deixa de oferecer muitas
surpresas. De facto, esta ideia de uma ordem universal, na qual as coisas também
têm pretensões umas em relação às outras, ou mesmo em relação às pessoas,
legitimava uma série enorme de situações frequentes na sociedade de Antigo
Regime, em que direitos e obrigações acabam por caber a entidades que não eram
homens, como animais, espíritos e até cores882.
§ 651. Por outro lado, nesta conceção total da ordem, quebra-se a identidade
entre as pessoas e os substratos físicos dos corpos individuais. A pessoa passa a ser
uma criação do direito e não uma realidade da natureza. Os juristas exprimem este
caráter não empírico da personalidade de várias formas, tirando daqui
consequências normativas.
§ 652. As pessoas, dizem os juristas, são criações (ficções, feituras) do direito,
que nada têm a ver com a realidade dos factos (i.e. com o senso comum acerca da
personificação dos factos): o pai e o filho são a mesma pessoa, mas isto apenas para
o direito e não segundo os factos (“Pater & filius una & eadem persona censentur
quoad ea, quae sunt iuris civilis, non quoad ea quae facti sunt” 883). Daí que o direito
881 Domingo de Soto, De iustitia et de iure, Salmanticae, 1556 (ed. cons. ed. facsimilada, bilingue, a
cargo de P. Venancio Diego Carro, O.P. Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1968), 4, 1, 2, pg.
284 col. 1
882 Cf. António Manuel Hespanha, “As cores […], cit..
883 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n.12; Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v.
“Persona”, n. 1421.
207
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
possa: (i) fazer coincidir mais do que uma pessoa no mesmo substrato corpóreo 884;
(ii) unir dois ou mais corpos físicos na mesma pessoa 885); (iii) criar pessoas sem
qualquer substrato físico (como a alma); (iv) como personificar animais ou mesmo
seres inanimados.
§ 653. Eis alguns casos que documentam esta capacidade poiética do discurso
do direito para criar titulares de estados ou qualidades de direito.
§ 654. O direito podia atribuir personalidade (e estado), desde logo, a seres
sobrenaturais, como Deus, que, nesta medida, é titular de direitos juridicamente
protegidos886, tanto no domínio civil como no penal 887, ainda que o seu exercício e
defesa coubessem aos seus vigários na terra (o Papa, a Igreja, os reis). Também os
santos e os anjos podiam ser titulares de situações jurídicas, como a propriedade de
bens ou a titularidade de cargos. Conhecido é o exemplo de Santo António, titular,
em Portugal, de um posto de oficial num regimento do Algarve, com os
correspondentes direitos, designadamente ao soldo. Titular de direitos podia ser,
também, a alma (de pessoa morta), a quem se faziam frequentemente
deixas testamentárias (por exemplo, rendas com as quais se pagassem missas pela
sua salvação) 888. A instituição da alma como herdeiro só foi proibida em Portugal
em 1769. Quando Álvaro Valasco 889 considerava "incivilis et ridicula" a decisão de
alguns tribunais de aceitar a nomeação da própria alma para as segunda e terceira
vidas de um "prazo de vidas" (enfiteuse transmissível aos herdeiros por umas tantas
vidas, v. cap. 4.3.3), o que lhe repugnava não era que a alma pudesse ser enfiteuta,
mas antes que, sendo a alma imortal, se prejudicasse o senhorio, por nunca poder
recuperar o bem emprazado. Só neste sentido o alma era uma "pessoa minus
idonea" (ibid. n. 6).
§ 655. Desprovidos, também, de qualquer substrato físico, no sentido daquilo
que o senso comum exige para que se possa falar de pessoa, estavam outros
titulares de direitos, como o nascituro ou o defunto. O nascituro, além de ter
direitos pessoais protegidos (pela punição do aborto 890), era também titular de
direitos patrimoniais, como o direito a alimentos e à proteção das suas expectativas
sucessórias, situação a que se referia o brocardo "nasciturus pro jam natus habetur,
quoties de commodo ejus agitur" (o nascituro tem-se por já nascido em tudo o que
respeite aos seus interesses). Quanto ao defunto, além de ser passível de punição
884 “Persona una duplici jure considerari potest”, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs.
8, n. 21; obs. 27, n. 18; Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Persona”, 1421.
885 “Vir & uxor una persona reputantur”, Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Persona”,
1421; Melchior Phebo, Decisiones […], cit., dec.16, n. 4; “Filius fictione juris est una, & eadem persona
cum patre”, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n.5; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit.,
pt. 1. dec. 108, n.1.
886 Domingo de Soto, De iustitia et de iure […], cit., liv. 4, qu. 2, art. 2.
887 Cf. g. a criminalização de pecados, que corresponde à tutela pelo direito dos deveres para com
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 193, n. 6, Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Persona”, n.
1422.
889 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 193, n. 1 ss..
890 Sobre a punição do aborto no direito moderno, Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, 9,
14.
208
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
891 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], vol. 3, pg. 67, n. 11 ss..
892 Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], ibid.; José Joaquim Caetano Pereira e
Sousa, Classes dos crimes por ordem systematica, Lisboa, 2, 2, 1, 1, 6.
893 Cf. Manuel de Almeida e Sousa, Notas a Melo, cit., 1, 11.
209
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
896 Cf. Domingo de Soto, De iustitia et de iure […], cit., liv. 4, qu. 1, sect. 2, pg. 283. Barthélemy
personali).
898 Sobre os títulos de escravização, v. João Baptista Fragoso, Regimen christianae, cit., [1641],
Parte 1, cap. 8; António Cardoso do Amaral, Liebr […], cit., v. “Servitus”, ns. 50 ss. (De servitute mere
personali).
899 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 60.
900 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 61.
210
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
da mãe (“seguia o ventre”) tinha origem no direito romano (D. 1,5, De statu
hominum, 24). O texto romano referia-se, não à questão do status, mas à da
propriedade do filho de dois escravos de donos diferentes. Isto explica que a regra
contrariasse um outro princípio segundo o qual era o pai que determinava a
qualidade do filho, dada a prevalência genética do macho sobre a fémea. Foi
recebido no direito português, embora logo as leis visigodas (Liber judicum, 10,1,17)
tivessem corrigido esse princípio, dividindo a propriedade do nascido pelos dois
senhores. Em Portugal, este regime tinha exceções. Assim, era doutrina comum que
o filho de mãe escrava e do dono da mãe adquiria a liberdade (e direito sucessórios)
com a morte do pai, por uma presunção de manumissão tácita 901. No séc. XVIII,
isto tinha que ser combinado com as disposições da lei do ventre livre, de
16.1.1773, que considerou livre o filho de escrava, esposa ou concubina do pai 902.
§ 664. Um outro título da servidão civil era a guerra, de acordo com o direito
romano e das gentes. A teologia moral cristã viria exigir, suplementarmente, que a
guerra fosse justa. Já antes vimos o principal da teoria da guerra justa, da qual
resultava ser justa, em geral, a guerra defensiva e, em casos limitados, a guerra
ofensiva (v. § 521 ss.).903. Era nestes termos que se legitimava a guerra contra “os
sarracenos e turcos”, por parte daqueles que sofreram as suas ocupações e injúrias,
ou por parte dos seus herdeiros904. A definição de quem eram estes “sarracenos e
turcos” que se tinham apropriado de terras ou bens cristãos era questão mais
complicada, que explicava a reescrita da história no sentido de demonstrar um
domínio primordial dos cristãos sobre terras agora nas mãos de muçulmanos 905.
Em contrapartida, era evidentemente injusta a guerra motivada apenas pela
ambição de “ampliação do império, a glória ou comodidade próprias” 906. Como,
por direito natural, os vencedores podiam escravizar os vencidos em guerra justa,
ficava circunscrito o âmbito no qual se podiam fazer escravos por direito da guerra.
Outros autores simplificam o conceito de guerra justa, considerando como tal toda
a guerra movida por ordem do Papa, imperador ou príncipe que não reconhecesse
superior907. Isto equivalia a substituir um requisito substancial por um requisito
formal, sendo um indício das pretensões progressivamente absolutas dos poderes
temporais.
§ 665. Nada disto valia, porém, entre cristãos, pois existiria um costume
prescrito segundo o qual os cristãos não reduziam cristãos 908 vencidos à
901 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “servus”, n. 1762 e 1764, citando as opiniões
de Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 12, n. 11-13; 1764, António de Sousa de
Macedo, Decisiones […], cit., dec. 40.
902 Quanto aos nascidos antes, transmitiam a escravidão por duas gerações (a filhos e netos), mas
não para além disso, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 1, 4.
903 Era neste plano que se legitimava a guerra contra “os sarracenos e turcos”, por parte daqueles
que sofreram as suas ocupações e injúrias (Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 435
A/B).
904 Na falta destes, podia ser feita pelo Papa ou por aqueles em quem ele delegasse, Luís de
906 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 435 C.
907 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 52.
211
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
909 Cf. Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, 158.1 E; ibid. 158.2 A; Bento Pereira,
opinião sobre o estado dos mouros; usa a prova histórica, remetendo para a Historia […], § 66.
911 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1760 (“os de Tunis, capturados pelos nossos,
são escravos”).
912 Cf. a censura de Manuel de Almeida e Sousa (em Notas de uso […], na nota ao lugar respetivo
de Pascoal de Melo) a essa tentativa de estender a todos os “mouros” a referência das Ordenações a
mouros forros.
913 O postlimínio consistia na restituição de direitos civis a quem os tivesse perdido por cativeiro
ou por decisão de um magistrado estrangeiro ocupante. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Servitus”, n. 52. Por não ficarem escravos, os cristãos não podiam ser forçados a pagar resgate a
cristãos, pois não ficam escravos, ibid. n. 52. Também cristão cativados por sarracenos não ficavam
escravos por direito, pois a guerra dos sarracenos era injusta, ibid. n. 53; Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis, 1, 11, 7-8; Ibid. 2, 1, 6.
914 O dono recebia um resgate simbólico, que a doutrina estimava em 12 soldos, desde que
pusesse o escravo à venda no prazo de três meses sobre a data da aquisição, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 59.
915 Anterior regimento em Manuel Lopes Ferreira, Practica criminal […], cit., t. 3, cap. 33.
212
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
917 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 158 C a160 C.
918 D.48, 19, De poenis, 29; C.6.22. Qui facere testamentum possunt vel non possunt, 8.
919 Tal é a opinião de Bento Pereira, nos meados do séc. XVII (em Promptuarium…, cit., n. 1763,
citando António Gama, Decisiones …, cit., [1578], dec. 362, n. 2. Cf. ainda Domingos Antunes
Portugal, Tractatus de donationibus […], liv. 3, cap. 15, n. 60; cap. 30, n. 8.
920 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 1, 11.
921 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 180A.
923 Segundo alguns autores, a ingratidão era também uma causa de escravização, pois o liberto
ingrato em relação aos seu antigo dono recaía na escravidão, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Servitus”, n. 54.
213
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
mesmos e da sua liberdade, da qual podiam dispor 924; a única restrição que se punha
era a de a venda poder ser feita levianamente, quer quanto às circunstâncias, quer
quanto ao preço925. A conclusão de Molina era arriscada, pois pressupunha a
disponibilidade plena de bens pessoais fundamentais, como a liberdade (ou, por
paralelismo, a vida). E, por isso, este ponto de vista era discutido 926. No entanto, a
prática estaria documentada nas Escrituras 927, sendo também aceite pelo direito
romano; em ambos se permitia ainda a venda dos filhos in potestate pelos pais928. Ou
seja, era uma prática recebida – onde o tivesse sido - pelo direito civil. Já onde o
direito civil não a tivesse recebido expressamente, não valeria, dado o princípio da
liberdade natural dos homens. Esta última restrição não deixa de ter interesse, pois
obrigaria à prova concreta da admissão da venda de si mesmo, exigindo
averiguações concretas das situações, de direito e de facto. Era, seguramente, o caso
do Reino, onde tais contratos não estavam permitidos (Ord. fil.4,42). António
Cardoso do Amaral considerava que tal prática não estava em uso, pelo menos
entre as pessoas bem nascidas929. No Ultramar, dependeria daquilo que se provasse
serem os usos locais.
§ 670. Onde o estado de escravo era mais duvidoso, mesmo apenas no plano
doutrinal, era justamente no ultramar. Primeiro, porque era incerto se a guerra
contra nativos, que se desenrolava paralelamente à evangelização, conduzia ou não
à escravidão. Por um lado, n todas as guerras eram justas; e, para além disso,
poderia haver nativos cristãos, que, no rigor da doutrina, não se podiam tornar
escravos. Depois, porque a admissão da escravatura penal nativa dependia de um
juízo prudencial e casuístico, uma vez que eram diferentes os costumes dos
diversos povos quanto à admissão dos contratos de alienação da liberdade.
§ 671. Combinando a doutrina com a caracterização das situações, Molina
formulava algumas regras gerais.
§ 672. A primeira era a de que, se os escravos provinham de territórios onde
havia guerra justa e tivessem sido adquiridos no tempo dela, se presumia que eram
justos escravos; o mesmo se diria tendo cessado a guerra, mas não havendo rumor
de que aí se fizessem escravos injustamente, pois se presumia que eram os cativos
de guerra ou filhos deles 930. A questão complicava-se com a da caracterização da
guerra como justa ou injusta, tema sobre que Molina apresenta uma extensa
casuística 931. A opinião de Molina sobre as guerras entre os africanos era muito
924 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 160 D.
925 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 160 D-161 C. Cf. também disp. 33.
926 Também pela legitimidade da alienação da liberdade, João Baptista Fragoso, Regimen […], cit.,
p. 1, cap. 8. disp. 21, §§ 1-7; divergentes: Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit., qu. 37,
n. 9; Francisco de Caldas Pereira e Castro, Tractatus de emptione […], cit., cap. 30, n. 36).
927 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 160 D. Noé amaldiçoou o seu filho
929 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 55 e 56.
930 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 178D-179A.
931 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 185 B, concluindo, como regra geral
que, sendo duvidosas as questões sobre a justiça das guerras, era lícito a um terceiro comprar coisas
tomadas por qualquer das partes. No caso de guerras injusta de ambas partes, movidas pela cobiça e
falta de vontade de fazer a paz, como acontecia em muitas guerras dos infiéis e dos bárbaros, podiam
214
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
comprar-se os cativos de guerra (ibid. col. 186 D). Isto porque como que se teria gerado um pacto mútuo
de cativar os vencidos, que obrigava os beligerantes e aproveitava a terceiros (Luís de Molina, Tractatus
[…], cit., tract. 2, d. 104, col. 187 B). “Talvez esta decisão – conclui Molina ironicamente - não deixe
de sossegar as consciências daqueles que compram escravos na Guiné superior e na Cafreria” (Luís de
Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 187 D).
932 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 180 D
933 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 182 B.
934 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 183 E.
935 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 184 A.
936 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 183 C.
215
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
937 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 182 E/183 A.
938 Cf. Rafael Ruiz, Francisco de Vitória e a liberdade dos índios americanos, cit.; na época, v.g. João
Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p. 3, liv. 10, disp. 22, § 1 ss..
939 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 1, 10.
941 “Ignoro em absoluto com que direito e a que título. Bem sei que o comércio, a agricultura, a
indústria, as minas de ouro e outras atividades lucrativas destas regiões só podem ser vantajosamente
exercidas com o emprego desses homens rudes; mas uma coisa é utilizar o seu trabalho e serviço, e
outra tê-los como escravos e em verdadeira propriedade. Será para desejar que, em assunto tão grave,
se harmonizassem as razões da humanidade e as razões civis” (cita Montesquieu, Smith, de Felice,
Schwartz, Raynal), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 1, 12 nota). Sobre o ambiente jurídico da
época quanto à escravatura, Cristina Nogueira da Silva, “Escravos e direitos fundamentais no
pensamento constitucional e político de oitocentos”, em Africana Studia. Revista Internacional de Estudos
Africanos, nº 14(2010).
942 As ações de liberdade eram ações prejudiciais destinadas à declaração do status libertatis do autor.
Pela actio contraria, o autor reclamava a declaração do estado desfavorável do réu. Cf. cap. 7.1.3.1).
943 "Servi pro nullis habentur, & cum illis nulla actio, vel obligatio civilis esse potest", escreve
Bento Pereira no seu Promptuarium […], citando autores representativos (v. "Servi"); cf. Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 150, n. 2 ss..
944 Sobre o estatuto jurídico dos escravos em Roma, v. W. W. Buckland, The Roman law of slavery.
The condition of the slave in private law from Augustus to Justinian, Cambridge, Cambridge U.P, 1908
(http://pt.scribd.com/doc/24531929/Buckland-Roman-Law-of-Slavery). Para o Brasil, Waldomiro
Lourenço da Silva Júnior, “Alforria, liberdade e cidadania: o problema da fundamentação legal da
manumissão no Antigo Regime ibérico”, em Revista de Indias, 73.258(2013), 431-458
(http://revistadeindias.revistas.csic.es/index.php/revistadeindias/article/viewArticle/930, 30.08.2013);
216
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Arno Wehling & Maria José Wehling, “O escravo na justiça do Antigo Regime: o Tribunal da Relação
do Rio de Janeiro”, Arquipélago, 2ª série, 3, 119-139 Também, Mariana Armond Dias Paes, “O
estatuto jurídico dos escravos na civilística brasileira”, diss. UFMG, Belo Horizonte, 2010, em
http://www.academia.edu/388464/O_estatuto_juridico_dos_escravos_na_civilistica_brasileira (direito
dos escravos); Kátia Lorena Novais Almeida, “Da prática costumeira à alforria legal”, em Politeia, v.
7.1(2007), 163-186 2007 (http://periodicos.uesb.br/index.php/politeia/article/viewFile/227/245,
30.08.2013).
945 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 6, n. 6.
946 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 6, n. 1. Ele e quem o encobrisse
estavam sujeitos às ações do furto, pelo dano e pela pena, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Servitus”, n. 70 (v. cap. 8.2.6.2).
947 A questão era a de saber se um escravo podia ser ordenado sem consentimento do dono. A
Igreja via-se confrontada com a contradição entre a liberdade da fé e os direitos do dono do escravo à
sua exploração, pois a entrada no estado eclesiástico privaria o dono dos serviços do escravo; cf. R. H.
Helmholz, The spirit of classical canon law […], cit., chap. 3. Na doutrina portuguesa moderna, a opinião
mais comum era a de que o escravo não podia ser ordenado (diácono ou sacerdote) sem a autorização
do dono; se o fosse, o sacramento era válido, mas devia ser deposto, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 67.
948 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 77.
Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1760, citando António da Gama, Decisiones […], cit., [1578], dec.
115, n. 1.
951 Gaius, Institutiones, 4, 78: “78. Sed si filius patri aut servus domino noxam commiserit, nulla
actio nascitur. Nulla enim omnino inter me et eum, qui in potestate mea est, obligatio nasci potest;
ideoque et si in alienam potestatem pervenerit aut sui iuris esse coeperit, neque cum ipso neque cum eo,
cuius nunc in potestate est, agi potest”.
217
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
pecúlio e isto bastava a terceiros contraentes, a quem eram dados meios processuais
para exigir supletivamente do dono o cumprimento das obrigações do escravo 952.
Com base no pecúlio, o escravo podia conseguir um pé de meia para desenvolver
uma atividade lucrativa – por exemplo, alugando outros escravos - ou economizar
para comprar a sua liberdade. A figura dos chamados “escravos a ganho”, comum
no Brasil, permitia aos senhores tirar partido do trabalho e serviços de escravos
excedentários, pondo-os a servir como carregadores, aguadeiros ou mesmo
prostitutas. Mas, porque a actio de peculio permitia a limitação da responsabilidade do
senhor ao montante do pecúlio, o escravo a ganho ou negociante constituíam
formas de envolvimento comercial do senhor com responsabilidade limitada e, por
isso, eram apreciadas em negócios de algum risco.
§ 679. No plano pessoal, o escravo podia receber livremente os sacramentos e
contrair matrimónio sem o consentimento do dono. Se este não tivesse mostrado
opor-se ao casamento, não podia mesmo vender o escravo para longe, de tal modo
que a mulher, sendo escrava, não pudesse satisfazer o débito conjugal 953. Não pode
ser instituído herdeiro, nem nomeado legatário954, a não ser sob a condição de vir a
adquirir a liberdade955.
§ 680. No plano processual, os escravos careciam de legitimidade processual
ativa e passiva na generalidade das causas civis. Nem sequer podiam ser
testemunhas, pois eram infames956. Nas causas civis patrimoniais apenas o senhor o
podia defender, pelo interesse patrimonial que tinha no desfecho da ação; mas
quem era condenado era o escravo957. Mas podiam estar em juízo nas ações de
liberdade958. Nas causas espirituais e nas causas relativas a relações pessoais do
matrimónio (por exemplo, pedido da mulher), os escravos eram capazes 959. No
foro criminal, podiam ser acusados de todos os crimes e sofrer todas as penas,
salvo as patrimoniais, pois não tinham bens960. Concretamente, contra eles podia
ser posta a actio furti, com a qual o senhor reclamava ser ressarcido pelo furto que o
escravo fugitivo tinha feito da sua própria liberdade961; já a reivindicatio, pelo qual o
952 Nomeadamente por meio de uma actio de peculio (ou de in rem verso), que limitava a
responsabilidade do dono ao montante do pecúlio, com isto constituindo um meio de limitação da
responsabilidade do devedor.
953 Se, porém, a mulher fosse livre, não se dava esta limitação, devendo ela acompanhá-lo para
onde ele fosse mandado; se o dono colaborou com o escravo que se fazia passar por livre para casar
com mulher livre, entendia-se – como castigo – que o dono tinha querido manumitir o escravo, cf.
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 74.
954 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 65.
955 O dono, porém, não podia apor esta condição em relação a um escravo seu, mas apenas a um
de outrem; se o escravo fosse seu, a instituição como herdeiro era entendida como manumissão, cf.
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 62.
956 Por isso que era infame também não podia ser juiz, advogado ou procurador, nem exercer
ofícios civis, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 76.
957 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 72-73.
958 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 73, n.1; António Cardoso do Amaral,
960 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 71.
961 Pois se entendia que, ao fugir, o escravo cometia um furto de si, Bento Pereira, Promptuarium
218
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
senhor pedia a entrega do seu escravo era posta contra o seu possuidor ilegítimo. O
direito punia duramente o escravo que tivesse dormido com a ama, mandando-o
chicotear e queimar962.
§ 681. Os poderes do senhor sobre o escravo não eram ilimitados. Como
todos os poderes jurídicos, eles estavam limitados por um “uso honesto”, ou seja,
conforme à natureza das coisas. O facto de o escravo ser uma criatura humana
impedia que ele fosse objeto de práticas desproporcionadamente cruéis. Já no
direito romano, matar um escravo não era apenas um delito que apenas gerava uma
obrigação de indemnizar o dano (como destruir uma coisa). Era um crime (v.
D.47,2,61). Assim, a Lei das XII Tábuas dava uma ação contra quem tivesse
quebrado um osso a um escravo (D.47,2,36). Em princípio, caíam nesta categoria
de atos criminosos todos os atos de violência que se afastassem da intenção de
corrigir e emendar (animus corrigendi vel emendandi)963, atentando contra os bons
costumes (bonos mores)964. Contra os bons costumes era, também, induzir uma
escrava à prostituição965. Se o agressor não fosse o dono, havia, tal como em
relação a animais domésticos, ações para o possuidor ou dono do escravo
reclamarem a punição de injúrias feitas a escravos. Era o caso da actio legis Aquiliae,
dada contra quem matasse ou ferisse um escravo ilegitimamente, i.e. sem ser em
legítima defesa ou por ser encontrado em adultério ou semelhante (D.9,2,11,7; Cf.
cap. 8.2.6.1). Em Portugal, isto era recebido, fornecendo a cobertura jurídica para
um princípio cristão de caridade e piedade966. Assim, entendia-se que o dono podia
castigar e prender, mas não matar ou infligir deformidades corporais. A Igreja devia
entregar aos seus donos os escravos que se acoitassem a ela com medo de sevícias,
embora obrigando os donos a jurar que não os tratariam com excessos 967. O
impacto destas limitações na prática seria pequeno, porventura menor ainda do que
os limites existentes ao exercício do poder doméstico sobre mulher, filhos e
criados. Por isso, as cartas régias de 20.3.1688 e de 13.3.1688, que obrigavam os
senhores que maltratassem os escravos a vendê-los, foram revogadas pouco depois
(23.2.1689), deixando de novo os castigos ao arbítrio do bonus pater famílias, a ser
avaliado pelos tribunais, de acordo com os hábitos estabelecidos. Nos sécs. XVIII e
XIX, a justiça – influenciada por um ambiente mais sensível aos argumentos da
piedade e da crença na humanidade –, a justiça passa a aceitar acusações de maus
tratos contra senhores de escravos, postas por estes ou por terceiros, os quais
podiam terminar pela concessão da liberdade aos escravos maltratados 968.
962 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 78; já a escrava que tivesse
dormido com o amo não era punida, se este não fosse casado. Pelo contrário, se se mantivesse como
sua concubina até à morte dele, ganhava a liberdade, a não ser que o amo fosse casado, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 79; v. “De sacramento matrimonii”, n. 66.
963 D.47.10.15.38.
964 Cf. W. W. Buckland, The Roman law of slavery. […], cit., maxime, p. 29 ss..
965 Cf. W. W. Buckland, The Roman law of slavery [...], cit., 75 ss.
966 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 69.
967 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 69.
968 Tratava-se da ampliação do princípio que dava a liberdade aos escravos expostos ou privados de
alimentos. Cf. Silvia Hunold Lara, Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. p. 364-365; Id. “Legislação sobre escravos africanos na
América portuguesa”, em José Andrés-Gallego (coord.), Nuevas aportaciones à la historia jurídica de
Iberoamérica, Madrid, Fundación Histórica Talavera, 2000. p. 198-199 (CD-rom); Priscila de
Lima, “Direitos de escravos: maus-tratos e jusnaturalismo em petições de liberdade (América
219
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
portuguesa, segunda metade do século XVIII e início do XIX)”, em Histórica – Revista Eletrônica do
Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 42 (jun. 2010), 1-10.
969 Sobre isto, cf. em geral, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 57;
Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., dec. 194. Sobre a manumissão romana, síntese em
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0062:entry=manumissio-harpers;
http://www.ancientworlds.net/aw/Post/882461;
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Manumissio.html. Para
a prática brasileira, destaque para Waldomiro Lourenço da Silva Júnior, “Alforria, liberdade e
cidadania: o problema da fundamentação legal da manumissão no Antigo Regime ibérico”, em Revista de
Indias, 73.258(2013), 431-458
(http://revistadeindias.revistas.csic.es/index.php/revistadeindias/article/viewArticle/930, 30.08.2013).
970 Gaius, Institutiones, 1, 17; Inst. Just. 1, 1, 5, 1.
971 Na doutrina portuguesa, a manumissão podia ser concedida perante duas ou três testemunhas,
Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1067 (cita Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 168, n.3).
972 Cf. em geral, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec. 186.
973 Cf. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 67.
974 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1763, citando António da Gama, Decisiones […],
220
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
depois que for forro, cometer contra quem o forrou alguma ingratidão pessoal, em
sua presença ou em ausência, quer seja verbal, quer de feito e real, poderá esse
patrono revogar a liberdade que deu a esse liberto, e reduzi-lo à servidão em que
antes estava”). A manumissão feita em fraude dos credores pelo amo insolvente
podia ser anulada976.
§ 685. Uma vez manumitido, o escravo passava à situação de liberto 977 e o
senhor à de patrono978. A situação de liberto acarretava a obrigação de respeitar o
patrono, que se exprimia de formas muito diversas, de acordo com os costumes e a
opinião comum (Ord. fil.4,63). Podia incluir sinais externos de consideração e
homenagem, a necessidade de autorização para praticar certos atos, a prestação de
serviços ou de auxílio, etc.. Estava, por isso, na origem de uma relação clientelar
socialmente muito relevante, tanto pelo poder social que atribuía aos ex-senhores,
como pelo facto de permitir atribuir a particulares uma modalidade importante de
controlo social. O patrono, em contrapartida, devia proteger e aconselhar o liberto.
A quebra das obrigações do liberto podia acarretar o seu retorno à situação de
escravo. Qualquer que tenha sido o impacto prático desta consequência, ela não
deixava de constituir um eficaz meio de pressão sobre os libertos para respeitarem
as suas obrigações para com os senhores.
§ 686. Além da manumissão, o escravo ficava livre se fosse entregue na roda
dos expostos ou o senhor o abandonasse (derelictio), nomeadamente, pondo-o fora
de casa ou negando-lhe a alimentação ou o tratamento, estando doente979. O
abandono não se presumia, pois era contra a regra de senso comum de que
ninguém abandona as suas coisas. E, por isso, devia deduzir-se de circunstâncias
que indiciassem fortemente a intenção de abrir mão do escravo. Requeria-se, além
disso, que o escravo abandonado se gerisse a si mesmo como livre e só depois que
isso se provasse por um período de tempo relevante era considerado livre. Em
contrapartida, o escravo doente a quem o senhor recusasse o tratamento ficava
imediatamente livre. Alguns autores propõem a mesma solução para a escrava que
o dono abandonasse mandando-a cuidar de si, o que se entendia ser um
incitamento à prostituição980.
§ 687. Finalmente, a liberdade adquiria-se por usucapião, se um escravo
vivesse como livre, de boa fé (i.e. ignorando a sua condição servil), durante vinte
anos.
3.1.1.3 Servos adscritícios e criados.
§ 688. As Ordenações recusavam expressamente a existência de servos
adscritícios (Ord. fil.4,42), e a doutrina interpretava as situações em que alguém
estava obrigado a certos cultivos em determinada terra como de origem contratual e
976 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 66.
977 No direito romano: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/ Roman/Texts
/secondary/SMIGRA*/Libertus.html; http://www.ancientlibrary.com/smith-dgra/ 0712.html.
978 No direito romano: http://penelope.uchicago.edu/ Thayer/E/Roman/Texts
/secondary/SMIGRA*/Patronus.html; http://www.ancientlibrary.com/smith-dgra/0885.html.
979 O dono poderia reaver o escravo, pagando as despesas de alimentos e de cura. Cf. António
221
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
sempre temporárias981.
3.1.1.4 Outras fidelidades domésticas.
§ 689. Era assim quanto aos criados, ligados ao dominus por uma relação que
excedia em muito a de uma relação contratual (v. cap. 6.9.2.2.3, maxime § 1785 ss.),
aparecendo envolvida no mundo das fidelidades domésticas. Não é que o direito
português moderno ainda mantivesse a adscrição (cf. Ord. fil.4,28). Mas as relações
entre o senhor e os servos desenvolviam-se no ambiente da família patriarcal (da
"casa") que criava, de parte a parte, laços não contratuais.
§ 690. De facto, as limitações ao estatuto jurídico dos criados decorriam
sobretudo da sua pertença ao mundo doméstico.
§ 691. Desde logo, "criados" (famuli, "família") eram, tradicionalmente, aqueles
que viviam com o senhor "a bem fazer", ou seja, pelo comer e dormir. Eram quase
apenas estes que as Ord. man. (4,19) consideravam, não lhes reconhecendo (como,
de resto, acontecia com o direito comum) direito a reclamarem uma soldada.
Apesar da inversão verificada com as Ord. fil.- que passam a reconhecer um direito
geral a um salário e refletem o advento de um mundo (urbano ?) muito mais
expandido de relações mercenárias de trabalho (cf. 4, 32 ss.) -, a doutrina continua a
resistir a integrar as relações domésticas de trabalho no "mercado do trabalho" e
distingue os criados domésticos, segundo o modelo tradicional dos trabalhadores
mercenários externos982 - cujo direito ao salário entende estar dependente de uma
longa série de decisões da lei ou dos patrões 983 (v. cap. 6.9.2.2.3, maxime § 1785 ss.).
Os laços de vinculação pessoal - que se traduziam, nomeadamente, num muito
débil direito ao salário (ou, pura e simplesmente, na sua ausência) e na necessidade
de licença do senhor para abandonar a casa - existiam também no caso dos criados
dos cortesãos e nos "acostados", ou seja, daqueles que tivessem recebido do senhor
algum benefício 984. Apesar de Melo Freire (um individualista) considerar estas leis
"feudalizantes" e caídas em desuso985, Lobão (um tradicionalista) censura-o
asperamente por isso, continuando a propor um modelo patriarcal das relações
entre senhores e criados 986, em que os criados se dissolviam no seio da família
governada despoticamente pelo pater, em cuja pessoa quase que se integravam. Um
sinal deste mesmo sentimento de uma íntima comunhão entre senhor e criado era
constituída pelas isenções de que gozavam os criados de eclesiásticos e nobres (Ord.
984 V. Ord. fil.4, 30: casamento, cavalo, armas, dinheiro ou outro qualquer galardão. Os criados
dos estudantes, estavam obrigados a servir apenas pela roupa e calçado; os músicos e cantores, apenas
pela comida (João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p.3, liv.10, d.21, 5); o mesmo valia para as
criadas das monjas, pois se entendia que o eram com o intuito de ingressarem no convento (Silva, 1731,
4, ad 4, 29, pr. n. 28), para os aprendizes (ibid. 30) e para os menores de sete anos, que serviam "pela
criação" Ord. fil.4, 31, 8).
985 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], 2, 1, 16, in fine.
986 Lobão invoca, significativamente, o direito dos Estados alemães que, como se sabe,
conservaram até muito tarde o regime de servidão e de adscrição.
222
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
fil. 2, 25 e 58) e o facto comum de se pedirem ao rei mercês para os seus criados 987.
§ 692. Também não eram escravos os pobres ociosos, compelidos ao trabalho
pelos magistrados (Ord. af.4,34; ou Ord. fil.1,88,13-17) ou os órfãos dados por
soldada, a quem, por isso, era devido salário (Ord. fil.1,88,13-18)988 989. Nem os
condenados, mesmo às penas mais vis, como as galés e trabalhos públicos. Apesar
disso, o seu status libertatis aparecia muito comprimido.
3.1.2 Naturais.
§ 693. O conceito de cidadania (status civitatis) traduzia, no direito romano, a
qualidade daquele que gozava da plenitude do direito da cidade. Como, para o
direito comum, o termo civitas era aplicado a qualquer comunidade política que não
reconhecia superior (qui superior non recognoscit), o conceito tornava-se aplicável ao
reino, um território sujeito à jurisdição suprema do rei 990.
§ 694. Na Europa da primeira época moderna a naturalidade tinha substituído
a cidadania como conceito chave quanto aos laços de pertença política991. A
naturalidade representava a pertença natural a uma comunidade, originada no
nascimento ou numa residência continuada. Esta conceção não voluntarista,
natural, dos laços políticos estava consagrada na referência que nas Siete Partidas se
fazia ao señorio natural, um laço político que ligava os súbditos ao senhor da terra em
tinham nascido, criando para todos uma pátria comum (patria communis),
expressamente definida como a sujeição a uma jurisdição comum (i.e. a uma
declaração do direito que valia para todos)992 e, como base disto, uma natureza
comum (tierra natural, naturalidad) que era fonte de amores recíprocos e de deveres
987 Cf. em geral, sobre o tema, António da Natividade, Fr. (O.S.A.), Stromata oeconomica […], cit.,
op. 12.
988 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, I. 16.
989 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, i, 14 e 15.
990 Cf. António Manuel Hespanha, “L’espace politique dans l’Ancien Régime”, em Estudos em
homenagem aos Profs. Manuel Paulo Merêa e Guilherme Braga da Cruz, Coimbra, Faculdade de Direito, 1984,
1-58; versão castelhana em ID.La Gracia del derecho, Madrid, Taurus, 85-120; sobre as unidades
territoriais, v. António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan [...], cit., 352 s..
991 Sobre naturalidade e cidadania: Tamar Herzog, Defining Nations: Immigrants and Citizens in Early
Modern Spain and Spanish America. New Haven, Yale U. P. 2003; ID.“Early Modern Spanish Citizenship
in the Old and the New World”, em John Smolenski (ed.). New World Orders, Philadelphia, University
of Pennsylvania, 2005; Id.“Municipal Citizenship and Empire: Communal Definition in Eighteenth-
Century Spain and Spanish America”, em Julius Kirshner and Laurent Mayali (eds.). Privileges and Rights
of Citizenship. Law and the Juridical Construction of Civil Society, Berkeley, The Robbins Collection, Studies
in Comparative Legal History, 2002; François-Xavier Guerra, “Identidad y soberanía: una relación
compleja”, em Id. (ed.), Las Revoluciones Hispánicas: Independencias Americanas Y Liberalismo Español,
Madrid, Editorial Complutense. 1995, 207-235; Id. “L’État et les comunes: comment inventer un
empire?”, em Nuevos mundos / Mundo nuevo (electronic journal), publ. Fevereiro 2005, em
http://nuevomundo.revues.org/document625.html [2005.11.1]. Para o Brasil, Maria Fernanda Bicalho,
“O que significava ser cidadão nos tempos coloniais”, in Marta Abreu & Rachel Soihet (ed.). Ensino de
história. Conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003, 139-151. Para a África
Portuguesa (e também Brasil), nos finais do Antigo Regime, Cristina Nogueira da Silva,
Constitucionalismo e Império. A cidadania no Ultramar português, Coimbra, Almedina, 2009, maxime, cap. 11.
992 Cf. Siete Partidas, 2, tits. 1-20 (v. http://books.google.pt/books?id=MVB-
TzR2uFEC&pg=PA310&lpg=PA310&dq=siete+partidas+se%C3%B1orio+natural&source=bl&ots=e
EC8T4mDGk&sig=Iv1qu1w3HgrVRO65xevjxef4UY0&hl=pt-
PT&sa=10&ei=6LsfUPXvOJCyiQfBsYCQBw&ved=0CF8Q6AEwBg#v=onepage&q=senor%20natur
al&f=false). Estabelecendo uma relação entre o nascimento numa terra e a capacidade para a fazer
frutificar e assentar nela uma comunidade política bem organizada.
223
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
comuns.
§ 695. A fixação da naturalidade, como ligação natural ao território de um
reino, dependia dos conceitos jurídicos que caracterizavam politicamente o espaço.
§ 696. Nos discursos doutrinais portugueses que se referem à caracterização
política do espaço, aparecem os conceitos de “Reino”, “províncias”, “conquistas”.
As “conquistas” do ultramar (tal como estavam aparentemente definidas na
titulação dos reis portugueses) eram consideradas como províncias do reino 993 no
que respeita ao estatuto político e jurídico dos seus habitantes, sem que houvesse
qualquer diferença estrutural quanto ao direito que se lhes aplicava 994. O reino
compunha-se, por isso, do território metropolitano e do colonial (províncias,
conquistas)995. Esta indistinção territorial significa que quem quer que mantivesse
uma pertença enraizada em relação a qualquer zona do território do reino era,
indistintamente, um natural português. Por todo o espaço colonial havia usos de
falar que distinguiam “filhos da terra” ou “naturais” de “reinóis” (na Índia, ainda,
de “descendentes”). Mas estas categorias, por muito impacto social que tivessem,
em geral não tinham significados jurídicos.
§ 697. O vocabulário relativo ao espaço conhecia ainda distinções que podiam
ganhar sentidos jurídicos. A cidade (civitas ou urbs) opunha-se à aldeia (pagus, vicus,
villa), ao campo (rus), à floresta (sylva), com tal oposição se referindo a distância
entre a civilidade / civilização e a selvajaria (de sylva) (v. cap. 3.1.2.2). A linguagem
política identificava a cidade (civitas) com uma comunidade perfeita autossuficiente e
“polida” (v. cap. 2.4.1.1). Estas distinções projetavam-se sobre os respetivos
moradores: os da cidade eram civis, urbanos, polidos, tudo adjetivos derivados dos
nomes da cidade. Os das aldeias eram “pagãos” (pagani), “vilãos” (vilani), “rústicos”
(rustici) ou “selvagens” (sylvestri, hominess in sylva). Estes nomes tinham, como se verá,
reflexos no discurso jurídico.
§ 698. A naturalidade (naturalitas) era, portanto, a plena pertença a uma
comunidade política plena (i.e. que não reconhecesse superior, qui superiorem non
agnoscat), assente no laço natural de amor que ligava o povo, entre si e ao seu senhor
natural, cujo tribunal reconheciam como fonte suprema de justiça política (patria
993 Manuel Alvares Pegas, Commentaria […], cit, tomo 12, ad 2, 55; Melchior Febo, Decisiones
[…], p.1, dec. 67, n. 11; p. 2, dec. 109, n. 22; p. 2, dec. 18. Ainda no séc. XVIII se distinguia, embora
apenas simbolicamente, naturais de Portugal e naturais dos reinos dos Algarves, dizendo-se que a sua
naturalidade tinha sido uma recompensa por serviços prestados (cf. L. 4.2.1771, § 4). Pelo contrário,
era comum a doutrina de que não havia nenhuma diferença entre o reino e as conquistas (Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., p. 1, cap. 15; Francisco Coelho de Sousa Sampaio,
Prelecções de direito pátrio [...], cit., p. 3, t. 55, § 3).
994 Havia, naturalmente, direito de aplicação restrita a um lugar, mas isso não era estabelecido em
vincere), em que as magistraturas ordinárias de Roma eram substituídas por chefes militares
extraordinários (proconsules, governadores). Embora a palavra “governador” tenha mantido até tarde esta
conotação de magistrado extraordinário com poderes discricionários (“governadores militares” ou,
simplesmente, governadores), a palavra província perdeu esse sentido no Portugal metropolitano, onde
as províncias tinham um sentido apenas corográfico995. No ultramar, porém, “província” convivia com
“conquista”, ambas remetendo para a ideia (de facto, sem tradução institucional, na maior parte dos
casos) de um governo extraordinário. Observe-se que, na Igreja, a província era um território
dependente de uma arquidiocese metropolitana ou do provincial de uma ordem regular, sendo também
usada para designar zonas de administração eclesiástica no ultramar.
224
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
996 Era raramente estendido às categorias intermédias, como latini e peregrini; em contrapartido, era
est spatium munitum et armatum iurisdictione” (Baldus, Commentaria ad Libri feudorum, 2, 56, rubr. n.2).
998 Manuel Álvares Pegas, Commentaria, [...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 5, n. 15: "nati fuerint in
225
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1002 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 1, n. 9; o autor não
concorda, invocando a opinião de Bártolo, que se deveria aplicar nos termos de Ord. fil.3, 64.
1003 Sem expatriação, não se poderia renunciar à naturalidade, Manuel Álvares Pegas, Commentaria
1005 “Civis enim efficiatur baptismum”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12,
ad Ord. fil. 2, 55, ns. 5-8, pp. 449 ss.. O mesmo acontecia com a manumissão e emancipação.
226
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1006 Sobre a oposição entre saber e rusticidade na literatura jurídica moderna, cf. António Manuel
Hespanha, "Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique", cit; versão portuguesa,
periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/download/../13797. Sobre o tema, em geral, A. Murray (1978),
Reason and Society in the middle ages, cit..
1007 José Viriato Capela e Henrique Matos (dir.), As freguesias do distrito de Viseu nas Memórias
paroquiais de 1758. Memórias, história e património, Braga, ed. José Viriato Capela, 2010, 193.
1008 Jeronimo Castillo de Bobadilla, Politica para corregidores y señores de Vasallos, Madrid, 1597;
227
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 712. Mais tarde, quando os europeus tomaram contacto com o que eles
consideraram ser culturas inferiores, estas imagens da rusticidade e dos seus efeitos
jurídicos ganharam um novo campo de aplicação, para descrever as populações
indígenas das colónias. Nos escritos de juristas letrados ou pretensões de saber
direito, os indígenas e os colonos pobres e iletrados eram descritos como brutos,
simples ou rudes, manipulados por procuradores e rábulas interesseiros e também
ignorantes, cujo saber se esgotava nuns brocardos jurídicos mal entendidos, e
governadas por magistrados incompetentes, despóticos e parciais. A rusticidade
extrema era a das “nações bárbaras”, cujos costumes selvagens (canibalismo,
anarquia politica, promiscuidade sexual) permitiam que lhes fosse movida uma
guerra sem quartel, destruindo as suas comunidades, ignorando o seu direito ou
confiscando a sua propriedade.
3.1.2.3 O relevo jurídico da naturalidade.
§ 713. A distinção entre naturais e estrangeiros era relevante para determinar a
pertença à comunidade política e jurídica, pois o direito aplicável e a jurisdição
competente dependiam, desde logo, do estatuto pessoal (princípio da personalidade
do direito) Por isso, os naturais eram governados pelo seu Senhor natural, de acordo
com o direito da sua terra natural; no caso, o direito português, ou doutrinal (ius
commune] ou constante das leis, praxes judiciais e costumes do reino (ius proprium
regni) 1009. A partir do séc. XVI, a distinção ganhou uma nova importância, por
causa da divisão do mundo pela bula Inter coetera, de 1493, e pelo Tratado de
Tordesilhas (1494), com os quais os naturais de Portugal e de Castela adquiriram o
direito exclusivo de atuar nas conquistas dos respetivos reinos. Ou, quando os reis
de Espanha ascenderam ao trono de Portugal, pelo facto de terem jurado,
expressamente, no pacto de Tomar de 1579, o princípio do indigenato: os ofícios,
benefícios, bens da coroa e jurisdições portugueses só poderem ser atribuídos a
naturais de Portugal 1010. Não admira, portanto, que as definições de “natural” desta
época destacassem esta capacidade para exercer os cargos da república ("quis
dicatur civis originarius alicujus civitatis, ut sit capax omnium dignitatum solitarum
concedere originarius" [diz-se cidadão originário de uma cidade, como capaz de
todas as dignidades que se costumam conceder a originários] 1011). No séc. XVIII, o
conteúdo da condição de natural mantinha-se idêntica. Pascoal de Melo considera
que os direitos dos cidadãos são: recorrer ao rei por súplica ou pedindo a sua
“ajuda” (Ord. fil.2,1,9,11; CL 18.8.1769, § 2), pedir as garantias da sua “segurança”
[cartas de seguro] (Ord. fil.5,128), exercer os ofícios da república, de acordo com o
princípio do indigenato (L. 15.7.1671), ser provido nos benefícios eclesiásticos (Ord.
fil.2,13,1), ser beneficiado com bens da coroa do reino (Ord. fil.2,35,pr), pedir
mercês régias (Regº 16.1.1671).
§ 714. A definição de naturais permitia a extensão automática do direito
1010 Porventura, foi esta a razão para incluir nas Ordenações Filipinas um novo título (Ord. fil.2, 55,
“Das pessoas, que devem ser havidas por naturais destes Reinos”), aparentemente copiado das
Ordenanzas reales de Castela, Liv. 1, Tit. 3, Lei 19).
1011 Manuel Álvares Pegas, Commentaria, [...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 1, n. 14.
228
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1012 Apesar de nomeados pelo rei, os juizes de fora eram verdadeiras justiças locais, autónomos em
relação à coroa, gozando de uma esfera particular de jurisdição e decidindo com base nos padrões locais
de julgamento. Em todo o caso, em virtude mais da sua formação letrada e da sua relativa autonomia
em face dos jogos locais de poder do que do facto da sua nomeação régia, era frequente – no Reino ou
no ultramar – que eles reagissem aos usos localmente instituídos. Cf. para um caso típico no ultramar,
Maria Filomena Coelho A justiça d’Além-Mar. Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco, Recife, Fundação
Joaquim Nabuco, 2009.
1013 Cf. Domingos Antunes Portugal Tractatus de donationibus [...], cit., p. 1, cap. 15; Francisco
Valasco de Gouveia, Justa acclamação do serenissimo rey de Portugal D. João o 4, Lisboa, Lourenço de
Anveres, 1644
(books.google.pt/books/about/Justa_acclamação_do_serenissimo_rey_de.html?id=k3QIAAAAQAAJ
&redir_esc=y, 30.08.2013), p. 2, punct. 1; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2,
56, gl. 1, 9 ss.. A ordenação tinha como fonte as Ordenanzas reales de Castela, 1, 3, 19.
1014 O direito comum exigia 10 anos para mostrar a intenção de morar.
1015 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2, 56, gl. 6.
1017 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2, 56, gl. 2, n. 7.
1018 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 1, n. 8.
229
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1023 Cf. Tamar Herzog, Defining nations. Immigrants and citizens […], cit., 4 ss..
1024 António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, [...], cit., p. 203 ss..
230
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1025 Excluindo os que se tinham rendido e celebrado um tratado de paz (“mouros de pazes”).
1026 Era o caso dos “índios bravos”: v. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, [...],
cit., p. 292 ss..
1027 Cf. Stefano Vinci, “The legal status of foreigners in Europe between medieval and modern
ages”, em http://www.academia.edu/1849781/the_legal_status_of_foreigners_in_europe_between_
medieval_and_modern_ages.
1028 A acomodação do princípio da territorialidade do direito com o da personalidade da aplicação
do direito foi tentada pela teoria estatutária (séc. XIV). Assim, os contratos e testamentos reger-se-iam
pelo direito do local da sua celebração (lex actus); o processo, pelo direito do foro (lex fori); o estatuto
pessoal, pelo direito do do interessado; a situação jurídica de imóveis, pelo direito da sua localização
(lex rei sitae); os atos exprimindo o poder político (v.g. punição, fiscalidade, administração, etc.) estavam
sujeitos ao direito do senhor sob cujo poder fossem praticados. Estas soluções podem ser resumidas na
fórmula de que o alcance de aplicação das normas está ligado ao alcance do poder de quem as edita:
assim, no caso de bens imóveis, coincide com o território, no caso de pessoas, coincide com o
universo dos súbditos. Novamente, uma enorme atenção ao plano dos factos, que se traduz na adoção
de soluções casuísticas e na recusa de esquemas rígidos, abstratos e imobilistas.
1029 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 2, 8-11.
1030 Cf. Maria Carla Faria Araújo, Direito português e populações indígenas: Macau, 1846-1927, cit.;
se queixa do parallelo, que faz dos indios com os cavallos, de não conceder aos homens pretos maior dignidade, que a de
Reis do Rozario, e de asseverar, que o Brasil ainda agora está engatinhando e crê provar o contrario de tudo isso. Por
J.J. do C.M. Rio de Janeiro: Impressão Nacional, 1821: "Eu tenho tranzitado por algumas d’essas
231
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
direito nativo era tido em conta para ratificar a situação dos indígenas ou mesmo
para julgar causas mistas entre indígenas e colonos1032. Assim, João Baptista
Fragoso1033, discutia a validade dos casamentos entre africanos e índios brasileiros
de acordo com os seus próprios direitos, desde que estivessem de acordo com o
direito natural; o que correspondia a uma doutrina jurídica assente desde o séc.
XVI, sobre a inviolabilidade das instituições dos indígenas sul-americanos1034.
3.1.5 Nobres.
§ 725. "Nobre" e "nobreza" são termos pouco usados nas fontes jurídicas
portuguesas da primeira época moderna. Em contrapartida, o seu oposto, “peão”, é
frequente1035. Mais para os finais da época, começa a desenhar-se a criação de uma
categoria comum de “nobres”, agrupando as várias categorias anteriores de pessoas
não plebeias1036.
§ 726. Assim, o aparecimento da categoria de nobre parece ser a receção pela
literatura jurídica portuguesa de uma oposição bipolar que estruturava a literatura
italiana de direito comum - nobiles-non nobiles [ignobiles], sanior et melior pars-vilior et peius
pars) – inspirada no direito romano (D.50,16,238), embora tanto o direito
justinianeu como a literatura religiosa ou clássica profana conhecessem um leque
maior de categorias das pessoas baseadas na sua virtus.
§ 727. As Siete partidas (2,21,2), por sua vez, adotam uma classificação tripartida
de “los tres estados porque Dios quiso que se mantuviese el mundo": defensores,
oradores, labradores. Embora, quando se tratava de explicar as qualidades requeridas
àqueles a quem tocava a defesa da terra natural, adotassem uma classificação
bipartida - "cavaleiros" ou "nobles omes" e os outros. A importância das Partidas -
que constituem uma fonte de referência para a doutrina hispânica, sobretudo
castelhana, sobre a nobreza durante as épocas medieval e moderna - é, portanto, a
de ter fixado uma classificação social bipartida e de, quanto ao conceito de nobreza,
ter optado, decisivamente, por um critério linhagista.
§ 728. A progressiva criação da arqui-categoria "nobreza" permitia referir, de
Aldêias, e Villas, onde prezidem esses Juizes Brancos e Indios, que Vm. figura, que os Juizes brancos
conduzem os Indios, como o Cavalleiro conduz o cavallo pelas redeas: perdoar-me há Vm. a liberdade
de assegurar-lhe, que está mal informado d’esses factos. Os Juizes n’essas Villas são de facto hum
Branco, e hum Indio; servem por semanas alternadas, com a diferença, que o Indio só conhece, e
despacha verbalmente diferenças dos seus Indios, ou destes com algum Branco, Preto, ou Pardo; com
as decizões deste Juiz nada tem o Juiz Branco, assim como o Indio senão embaraça nas decizões
daquele, o qual conhece dos feitos contenziosos, e discussões forences, e he para ver, e admirar, que
o Juiz Indio sem revolver Bartallos, Nem Acursios, quasi sempre julga com Justiça, retidão, e
equidade, quando o Juiz Branco enredado nos intricados trocicollos da manhoza chicana raras vezes
acerta; por mais que para isso se desvelle, quando se desvela” (p. 7).
1032 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, [...], cit., p. 298 ss.; Hespanha
(2001a), António Manuel, “Luís de Molina e a escravização dos negros”, Análise Social¸157(2001), 937-
990.
1033 João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p. 640 ss. (Disp. 22: De conjugio Indorum, § 4, De
reliquis quae spectant ad matrimonia inter infideles jure naturae, & an inter eos vera sint ?”).
1034 Cf. Anthony Pagden, The fall of the natural man […], cit..
1036 Cf. António Manuel Hespanha, “A nobreza nos tratados jurídicos dos séculos XVI a XVIII”,
cit.; José Antonio Guillén Berrendero, “Honor and service. Álvaro Ferreira de Vera and the idea of
nobility in the Portugal of the Habsburgs”, cit..
232
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
forma sintética, todos os grupos jurídicos privilegiados que ocorriam nas fontes
portuguesas, atribuindo-lhes, como mínimo, o conjunto de privilégios gozado pelo
grau mais inferior (como "privilegiado", "vereador", "escrivão da câmara") 1037. De
tal modo que, dizendo, em geral, que alguém era nobre, se dizia que gozava, pelo
menos, do estatuto da mais modesta das categorias particulares de pessoas
privilegiadas previstas na lei.
§ 729. A que estatuto se referia, então, a categoria genérica da nobreza ? Em
primeiro lugar, a princípios de direito comum, por vezes bastante vagos, como o
que media a punição das injúrias pela categoria dos ofendidos (cf. Ord. fil.5,16,1); o
que reservava o governo ou os lugares militares de distinção aos nobres; ou,
sobretudo, os que outorgavam “nobreza”, sem mais acrescentar, a certos ofícios ou
funções ou que exigiam a qualidade de “nobre” para o desempenho de certas
funções. Referia-se, em seguida, a normas que falavam de plebeus – por exemplo,
as cartas de foral que criavam certos impostos -, e que implicavam, portanto, a
existência de um grupo de não plebeus, privilegiados ou honrados. Para o efeito
destes últimos textos, ser nobre era não ser plebeu, como notavam os juristas dos
finais do séc. XVI, ao dizer que a prova decisiva em direito quanto ao estado de
nobreza não era a prova da nobreza, mas apenas a de que não se era plebeu, i.e. que
se tinha algum privilégio1038.
§ 730. Nos finais do séc. XVIII, este conceito genérico de nobreza importava
para 1039:
determinar o âmbito de aplicação das normas de direito comum que
estabeleciam privilégios genéricos para os nobres ou que exigiam nobreza
para o desempenho de certas funções;
determinar quem pagava certos impostos que o foral impusesse sobre os
plebeus 1040;
definir quem podia aceder a hábitos das ordens militares que exigissem a
nobreza;
estabelecer o âmbito das isenções em relação às fintas e encargos pessoais
dos concelhos, tais como servir de tesoureiro ou levar presos, etc. (Ord.
fil.1,66,42) 1041;
isentar de penas vis ou infames (forca, chicote, galés) ou estabelecer um
1040 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, ar. 68 (fidalgos e nobres não pagam oitavo);
Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. I. aresto 65 (nobres não pagam jugada, nem "outras coisas, que
pagão os piães"). No comentário de Manuel Álvares Pegas, a Ord. fil. 2, 33 (“Das jugadas”) transcrevem-
se muitas decisões judiciais sobre este ponto (Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9, ad
2, 33, rucr. cap. 24, maxime ns. 204 ss.).
1041"Fidalgos, cavaleiros e escudeiros de linhagem ou de criação, pessoas de maior qualidade que
as anteriores [doutores, licenciados, bacharéis em teologia, direito ou medicina, que forem feitos por
exame em estudo geral, juízes, vereadores, procuradores e tesoureiros dos concelhos], pobres de
esmola e outros privilegiados".
233
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1042 Não devem ser enforcados, mas decapitados, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I. dec. 18,
ns. 2/6 (fonte de direito comum: Bártolo in l. capitalium, D. de poenis). Devem ser menos punidos tanto
na imposição da pena como na execução, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I. dec. 18, ns. 3. V. Ord.
fil.5, 25; 5, 120. São escusos de prisão ("presos em ferros": Ord. fil.5, 120): fidalgos (de solar ou
assentados nos livros), desembargadores, doutores em leis ou em medicina, juízes formados (mas não
os ordinários, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 14), cavaleiros fidalgos, ou confirmados, e
de ordens militares, escrivães da fazenda e câmara. São escusos de pena vil (açoites, baraço e pregão:
Ord. fil.5, 138): escudeiros, moços da estrebaria real (ou de dignitários até conde, conselheiro e
prelado), pajens de fidalgos assentados, vereadores e seus filhos, procuradores dos concelhos, mestres
e pilotos de navios reais de gávea ou de quaisquer navios de mais de cem tonéis, amos ou colaços de
desembargadores ou de cavaleiros de linhagem, pessoas que tenham cavalo, mercadores de mais de
100 000 reis. Estes privilégios não funcionam no caso de crime de lesa-majestade, divina ou humana
(Ord. fil.5, 1 ss.), erro de ofício, falência fraudulenta (v. Ord. fil.5, 66).
1043 Ord. fil.4, 92, 1 (decisão de 1620, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I. dec. 106).
1044 É Bártolo (in alleg. lege prima, C. de dignitat.) que distingue entre nobreza teológica (cf. S. Tomás,
Summa theol. 1a.2ae, qu. 110, correspondente ao estado de graça), nobreza natural e nobreza política.
1045 Citado por Juan Arce de Otalora, Summa nobilitatis Hispanicae & immunitatis regiorum tributorum
geral, entende-se não se podia renunciar à nobreza, mesmo por juramento. Porque, ao fazê-lo,
atentar-se-ia contra a ordem política e injuriar-se-ia toda o estado a que se pertencia. Do mesmo modo,
234
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
o clérigo não podia renunciar ao seu estado. Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. I. liv. 3,
disp. 6, n. 154; tal como o natural não podia decidir deixar de o ser.
1047 Juan Otalora, Summa nobilitatis Hispanicae et immunitatis regiorum tributorum causas […], cit., p. 16.
1049 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p.2, dec. 73, n. 12.; Manuel Álvares Pegas, Commentaria
[...], tomo 3, ad Ord. fil.1, 24, gl. 1, n. 7. Cf. ainda, "nobilitas est qualitas extrinseca, cum a principio
omnes aequalis conditionis homines estiterint", Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, d. 106, n. 4.
1050 Cf. Juan Otalora, Summam nobilitatis Hispaniae […], cit., p. 16.v..
1051 Segundo Aristóteles, é virtude de antiga riqueza (Polit. 4, 8) ou dignidade dos antepassados
(Rhetor. 15); mas agora, a nobreza induz-se do príncipe; tal é a opinião de João Baptista Fragoso,
Regimen […], p. I. liv.3, disp. 6, pg. 316, n. 132.
1052 João Baptista Fragoso, Regimen […], p. 1, liv.3, disp. 6, pg. 316, n. 131
235
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
como Deus, ele seria a verdadeira causa eficiente da nobreza: "do mesmo modo
que junto de Deus é nobre quem Deus pela sua graça faz grato ao mesmo Deus,
assim no mundo é nobre quem o príncipe, por lei ou pela sua graça, faz grato ou
nobre"1053. Por isso, o arbítrio do príncipe não teria limites nem seria sindicável nas
suas razões. Uma ilustração: apesar do facto de a nobreza que decora um doutor se
fundar na sua ciência, o príncipe poderia criá-los sem qualquer formalidade, apenas
pelo facto de lhes chamar doutores, tal como, na milícia, ele enobrecia um soldado,
chamando-lhe cavaleiro 1054.
§ 740. Em Portugal, o caráter constitutivo da graça régia na outorga da
nobreza era muito clara para os juristas, apesar de não constar da lista de regalia da
Ordenação,2,26. Por um lado, as Ordenações não lidavam, como se viu, com a
categoria genérica da "nobreza", mas antes com categorias particulares, ligadas a
distinções outorgadas pelo rei 1055. Por outro lado, estas categorias eram bastante
arbitrárias, parecendo não conterem qualquer referência a uma classificação
"natural" ou linhagística.
§ 741. "A nobreza pertence apenas ao rei, sendo uma superioridade real; e a
nobreza surge de concessão régia ou de privilégio" (nobilitas ad solum Regem pertinet,
& est superioritatis regalis: & nobilitas inducitur ex regis concessione, seu privilegio)", afirmam
Jorge de Cabedo, escrevendo nos finais do séc. XVI 1056, e Melchior Febo, um
pouco mais tarde 1057. João Baptista Fragoso, por sua vez, filia esta prerrogativa
régia no próprio exemplo de Deus, ao criar os anjos como seres excelentes e ao
atribuir-lhes uma hierarquia; de Deus teria passado aos reis deste mundo, a começar
pelos do Antigo Testamento (Esther, I. 6; Macabeus, 1) 1058. Entre esta nobreza dativa
e a nobreza generativa não existiria nenhuma diferença (ibid. n. 138). António Gama
é ainda mais decisivo: ninguém adquiria a nobreza por si mesmo, mas apenas pela
dignidade do ofício ou pela concessão real (nemo acquiritur nobilitatem a seipso, sed a
dignitate oficii, vel concessione regis)1059.
§ 742. Esta concessão da nobreza pelo príncipe seria tácita em relação aos que
estivessem a seu lado, os seus “colaterais” 1060. Também o fazia, chamando alguém
1053 Cf. Bártolo, citado por Juan de Otalora, Summa […], cit., fl. 17 v.
1054 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 143/41.
1055 Cf. g. todas as categorias de fidalgos, cavaleiros e escudeiros da Casa Real (mais tarde, damas
do Paço), fidalgos de cota de armas, [i.e. fidalgos a que o rei concedera cartas de brasão], cavaleiros das
ordens militares, desembargadores, juízes, vereadores, capitães de navios do rei. Exceção, no sentido
de uma nobreza obtida "espontaneamente" (i.e. sem intervenção régia), eram os fidalgos de solar (que
não se sabia, agora, ao certo o que fossem, não faltando quem os equiparasse aos senhores de terras;
logo, de novo, as "criaturas" régias), os mercadores de grosso trato e os capitães de navios de alto
bordo.
1056 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 1.
1058 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. I. liv. 3, disp. 6, n. 137.
1060 "Adhaerentes lateri principis, & ei servientes in officio aliquo sunt nobilis", Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 4; Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1. dec. 106, n. 38: apesar
de uma opinião isolada de Ripa de que as parteiras da rainha seriam duquesas, acha duvidoso que se
possa dar tal dignidade sem lei expressa. Esta nobreza colateral não se estendia, no entanto, aos que
exerciam ofícios mecânicos (como cozinheiros, ucheiros, moços de estrebaria, etc.).
236
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1061 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., I. liv. 3, disp. 6, n. 157-161.
1062 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., I. liv.3, disp. 6, pg. 316, n. 133.
1063 "Grande jurisdição tem o tempo sobre a estima, & e reputação da nobreza", escreve João
Pinto Ribeiro ( “Sobre os títulos de nobreza de Portugal e seus privilégios”, em João Pinto Ribeiro,
Obras varias, Lisboa, 1730).
1064 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 106, n. 35.
1065 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 198.
1066 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, cit., dec. 106, n. 35; “Nobilitas causatur ex communi
opinio”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., 2, dec. 73, n. 5; “Nobilior maior est, quo antiquor”,
António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 21. Cf. ainda, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1,
dec. 14 (questão julgada em Aveiro em 1614: era costume, em Aveiro, que apenas relevasse, para
isenção de oitavo, a nobreza originária; o costume não foi reconhecido pela Relação que decidiu que
bastava a reputação e a vida segundo a lei da nobreza).
1067 "Em todas as coisas bem regidas, & governadas, ha de haver esta ordem: que isto é o que a
natureza principalmente em si contem", Álvaro Ferreira de Vera, Origem da nobreza [...], cit., 3.
1068 "[A nobreza] é uma qualidade concedida por qualquer principe aquelle, que a merece, ou porque
descende de pessoas, que a mereceram por serviços feitos à Republica, assi em armas, como em letras;
ou por se aver aventajado dos mais em qualquer memorável exercício", Álvaro Ferreira de Vera, Origem
da nobreza [...], cit., 5; embora o A. afirme que "os reis são os que concedem essencialmente a nobreza e
fidalguia" (ibid. 6) as causas eficientes destas são a virtude e a linhagem, sendo o rei apenas a causa
formal (ibid. ).
237
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1069 "É que a virtude paterna transmitida aos filhos não só os obriga à sua imitação, mas ainda os
provoca e estimula [a obrar virtuosamente]", Juan Otalora, Summa nobilitatis Hispaniae […], cit., fl. 16.
1070 "Nobilitas generis est qualitas sive dignitas promanans ex splendore claris sanguinis a
parentibus trahens originem, & et in filios naturales, ac legitimos per carnem continuata" (sublinha-se a
diferença em relação à definição de Ortalora, pois aqui não restringe a transmissão da nobreza aos filhos
legítimos).
1071 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv.3, disp. 6, pg. 316, n. 134
1072 Cita Baldo, in l. nobiliores, C. de commerc. & mercat. (C.4, 63), onde diz que existem três espécies
de nobreza: da estirpe, da virtude, da estirpe e virtude, que seria a verdadeira nobreza; cf. também,
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 6, ad 1. 74, gl. 2, n. 11.
1073 “Nobilitas gentilitia est, quae provenit ex nobili genere, & familia, nomine, & insigniis, seu
armis decorata [i.e. ornada pela carta de armas] quod in nostro regno fidalguia vocatur”, Manuel Álvares
Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1. 24, gl. 1, n. 9.
1074 A nobreza originária (i.e. de origem) deve ser sempre preferida (v. Ord. fil.1, 96, 2). Só esta é
admitida na confraria da Misericórdia [de Aveiro], Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, ns.
11/12.
238
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1075 “Nobilitas et gloria patris in filios transit. Memoria patris conservatur in filiis. Filius et pater
una persona censetur”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 36, n. 14. “Nobilitas transit in
posteros in infinitum”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 5. Se é de considerar o
momento da conceção ou o do nascimento, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 106, ns.
19/20. Em contrapartida, “An nobilitas filii ascendit ad parentum” [se a nobreza do filho se transmite,
para cima, ao pai], Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 154.
1076 “Nobilitas ex parte matris de jure lusitano consideratur (& quid de iure commune)”, Jorge de
1078 Cf. Bartolomé, Chasseneuz (Bartholomaei Chassanaei), Catalogus gloriae mundi […], cit., p. 8,
maxime cons. 7 ss.. Toda a obre é muito interessante para o imaginário da honra, seus sinais (heráldica),
seus graus, suas fontes, etc..
1079 Além da concessão direta da nobreza, concessão de título ou ofício que exigissem nobreza
(“nobilitas causatur ex titulo (comitatus, ducatus, baroniae) & hoc est quod vocamus ‘de solar’", Jorge
de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 6).
1080 Era o caso da nobreza dos bascos.
1081Aristóteles, De anima, 1; Polit. 4, 4. Fontes jurídicas: João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit.,
p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 149); “Scientia homines nobiles facit”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...],
cit., tomo 4, ad 1, 35, gl. 8, n. 3; “unde bachelaureatus nobilitate fruitur”, Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], cit., tomo 7, ad 1, 90, gl. 4, n. 9.
1082 Nihil aliud est quam inveterate divitiae”, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, n.
8; “[est] acquisita ex propria industria, vel divitiis”, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, n.
20.
239
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1083 “Nobilitas plerumque consistit in divitiis”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73,
7. Sobre o tema, v. Álvaro Ferreira de Vera, Origem da nobreza [...], cit., 49 ss..
1085 Falso testemunho, ocultação de bens em fraude dos credores, falência (pois os falidos são
ladrões públicos, Ord. fil.5, 66), falta de cumprimento dos deveres de rendeiros reais relapsos (Ord. fil.2,
53), João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 164.
1086 Exercício de arte mecânica (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, ad 2, 60,
gl. 1, n. 6); mas a agricultura não prejudica a nobreza (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit.,
tomo 12, ad 2, 60, gl. 1, ns. 7/8). A nobreza perde-se pelo exercício por si do comércio, salvo costume
em contrário (Álvaro Valasco, Allegationes […], all. 13, ns. 217/233); “officium vile [quod] nullam
habet affinitatem cum nobilitate”, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 163;
em Espanha, todavia, não perdiam todos os privilégios, como, por exemplo, o de não pagarem
impostos, ibid. n. 168.
1087 Jorge de Cabedo Decisiones [...], cit., p.2, dec. 73, n. 14.
1088 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 15; Manuel Álvares Pegas, Commentaria
1090“Per immemorabile possessionem, illustratas armas, & insignias nobilium, nobilitas probatur”,
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1, 24, gl. 1, n. 16. Sobre a importância dos
nomes e títulos, v. João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de nobreza…”, cit., per totum.
1091 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1, 24, gl. 1, n. 16.
240
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1092 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I. d. 106, n. 34; cf. também João de Carvalho, Novus et
241
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1100 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 108; Manuel Álvares Pegas, Commentaria
1103 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 105; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
1105 "Não se sabe o que são; parece serem nobres notórios, com solar", João Baptista Fragoso,
Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 173. Sobre o tema, cf. João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de
nobreza…”, cit., 125 ss..
1106 Cf. João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de nobreza…”, cit., 130 ss..
1107 (= cavaleiros), Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 14, ad I. 1, n. 54. Fragoso
diz que eram os que tinham armas concedidas pelo rei de armas. Opunham-se aos cavaleiros simples ou
cavaleiros de ordenanças (João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 146; cf.
ainda, Álvaro Valasco, Allegationes [….], cit., all. 13, ns. 4/11; João Pinto Ribeiro, Sobre os títulos de
nobreza, 128 s. 136 ss.).
1108 De acordo com o Regimento de 1572, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 10;
nobreza…”, cit., 138 ss. Segundo Manuel Alvares Pegas, escrevendo na segunda metade do séc. XVII,
haveria quatro espécies: (i) os que tinham foro de escudeiros da Casa Real dado pelo rei (v. Ord. fil.1, 65,
30); (ii) os que tinham foro na Casa Real por carta especial (só tinham os privilégios desta) (Ord. fil.2, 45,
38); (iii) os criados ou escudeiros de fidalgos (v. Ord. fil.2, 45, 38; 5, 139, pr.); (iv) os escudeiros de
linhagem (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 14, ad 1, 66, n. 102). Segundo Melchior
Febo, os escudeiros não costumavam ser nobres; o título era usualmente dado a plebeus e mecânicos e
filhos de plebeus, nomeadamente quando iam à India em serviço do rei (Melchior Febo, Decisiones [...],
cit., p. 1, dec. 106, n. 38).
1110 Eram equiparados a cavaleiros confirmados; tinham os mesmos privilégios dos bispos, abades
beneditinos e fidalgos (Ord. fil.5, 120); cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p. 1. liv. 3, disp. 6,
n. 144/5; João de Carvalho, Novus et methodicus tractatus […], cit., n. 265. Os filhos dos doutores
estavam incluídos, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 161 (ou 162 noutras edições), n. 4/5;
os doutores jubilados ou eméritos eram equiparados a condes, n. 6.
1111 Havia dúvida sobre a sua nobreza, n. 7; mas, segundo a jurisprudência palatina, o
entendimento comum era o de estavam equiparados aos nobres pelo menos para alguns efeitos legais
(maxime, necessidade de legitimação dos filhos), Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 11 (ou
12), n. 8; João de Carvalho, Novus et methodicus tractatus […], n. 278. Sobre os bacharéis, ibid. 284 (era
discutido).
1112 Quanto aos advogados, eram equiparados aos cavaleiros (L. qui advocati, Cod. advocat divers. jur.
C.2, 7), segundo decisão da Casa da Suplicação (pelo menos para os efeitos da Ord. fil.3, 59), Melchior
Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 161 (ou 162 noutras edições), n. 9. Quanto aos médicos, apesar de
dificuldades com textos do direito romano que os referiam como exercendo um ofício vil, era certo e
julgado na Casa da Suplicação (decisão de 1595) que gozavam dos mesmos privilégios que os doutores
em teologia e direito, mesmo que não fossem doutorados, ns. 15/16; mas devia distinguir-se entre a
medicina especulativa e a cirúrgica, sendo esta mecânica, ns. 18/19; o boticário era nobre (Melchior
242
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
juiz 1113mercador 1114, com um regime de privilégios e isenções que decorria mais do
direito comum do que do direito régio1115.
3.1.5.4 Efeitos da nobreza.
§ 759. Constituindo uma disposição espiritual, a nobreza consistia numa
inclinação do espírito para certas virtudes1116, nomeadamente, para as mais
necessárias ao exercício da autoridade (magnanimitatem, magnificentiam, affabilitatem,
docilitatem, industriam politicam). Esta disposição interior provocava a aptidão dos
nobres para realizar grandes empresas (ex nobilibus nobiles res procreantur1117). Era
precisamente esta capacidade que recomendava os nobres para os cargos de
governo1118 e que justificava que os seus serviços fossem mais remunerados1119.
§ 760. Para além destes efeitos gerais do estado de nobreza, a lei atribuía aos
nobres certos privilégios particulares, de natureza fiscal, civil, processual e penal,
Febo, Decisiones [...], cit., 1619, I. ar. 65). Quanto aos notários, foi julgado frequentemente na Casa da
Suplicação (Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 161 (ou 162 noutras edições), n. 22), com
base em textos do direito romano que os declaravam servos públicos. que exerciam um ofício vil, não
adquirindo, antes perdendo, a nobreza. Mas Melchior Febo, Decisiones [...], cit., contrariava este ponto
de vista: o notário era um servo público, não porque fosse escravo e carecesse de personalidade, mas
porque servia um múnus público, sendo obrigado a prestar serviço a qualquer pessoa do povo; neste
sentido, seriam servos públicos todos os que servissem os ofícios da república. Opina, por isso, que o
cargo não tirava a nobreza, embora não a desse, como vira frequentemente julgado, ns. 20-28. No
mesmo sentido, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1, 23, gl. 1, n. 4 ss.. Sobre os
pintores, entendia-se, nos finais do séc. XVI, que o costume da pátria os incluía entre os mecânicos,
apesar de alguns privilégios de nobreza, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 113. Sobre
estas categorias, também João de Carvalho, Novus et methodicus tractatus […], cit., 278 ss..
1113 A nobreza do juiz depende do costume do lugar; em geral, só os juízes de vilas notáveis (mas
não os das terras pequenas ou os de vintena) - e os seus filhos - são considerados nobres (Melchior
Febo, Decisiones [...], cit., I. ar. 124; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 3, 14).
1114 São nobres para efeito de escusarem de pena vil (Ord. fil.5, 139), se exercem a mercancia de
forma nobre (L. nobilibus, cod. commerciis, & mercaturis). Em todo o caso, a questão era controversa,
devendo observar-se o costume da pátria, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., 1, dec. 161 (ou 162
noutras edições), n. 29 s..
1115 Sobre todas estas categorias no direito dos finais do séc. XVIII, quando já ofereciam dúvidas
de interpretação por estarem em desuso, v.: Sobre “senhores de pendão e caldeira”, Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, 2, iii, iii; sobre “infanções”, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, ii, iv; sobre
“vassalos”, senhores das terras e “acontiados”, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 5 e 2, 5, 9;
sobre duques, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 6; sobre marqueses e condes, 2, 3, 7; sobre
viscondes e barões, 2, 3, 8; sobre “grandes” (incluindo aqui os duques e seus filhos, o Grão-prior do
Crato, os arcebispos e bispos, os cónegos da Patriarcal e os titulares), 2, 3, 9; sobre fidalgos da casa
real, 2, 3, 10; sobre os cavaleiros das ordens militares, 2, 3, 13; sobre a nobreza de letras (nobreza civil):
desembargadores, magistrados e professores das Faculdades jurídicas, 2, 3, 14.
1116 Sobre os vícios e virtudes dos nobres, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 4,
ad 1, 35, gl. 4, n. 4; tomo 6, ad 1, 74, gl. 2, ns. 7-12; "politici, & urbani, ac bene morati; nobilitati
omnes virtutes famulentur, maxime magnanimitas, & magnificentia, docilitas, & affabilitas" (João
Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 136 in fin.). Também teriam defeitos típicos
(ingrati, illiberales, libidini dediti, ibid. n. 135).
1117 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad I. 24, gl. 1, n. 8.
1118 “Praeferendi sunt ad honores, & magistratibus, & dignitates (saeculares et spirituales)”, Jorge
de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 7; “nobiles, & non ignobiles sunt eligendi ad
gubernationes, & officia publica reipublicae”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad
1, 1, gl. 5, n. 4; “Caeteribus paris anteponendi”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n.
7.
1119 “Maioribus gratiis, beneficiis, & privilegiis munerandi sunt nobiles, & magnates, quam
inferioris gradus homines”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad 2, 45, gl. 2, n. 1.
243
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
em geral já referidos.
3.1.6 Plebeus e outros estados.
§ 761. Com a tendência que se verifica, desde o séc. XVII, para o alargamento
da nobreza, na qual se vai incluindo, como categoria mais baixa, o próprio “estado
do meio”, o estatuto de plebeu tende a ser equiparado ao dos que exercem ofícios
assalariados e ao dos artífices (ou seja, os que exercem artes não liberais, mechanici,
mecânicos). É esta a lição de Pascoal de Melo que faz questão de afirmar
expressamente que os agricultores (que não dessem dias a outrem, entenda-se) eram
nobres1120.
§ 762. Em face das Ordenações, que estabelecem regimes jurídicos (embora de
detalhe) para certas categorias de pessoas, pode dizer-se que o direito português
previa outros estados. Seria o caso dos moedeiros (Ord. fil.2,62), dos bombardeiros,
dos desembargadores (Ord. fil.2,59), dos rendeiros das rendas reais (Ord. fil.2,63).
3.1.7 Pessoas miseráveis.
§ 763. As pessoas ditas miseráveis – órfãos, viúvas honestas, regulares das
ordens mendicantes, freiras e outras que o juiz, segundo o seu arbítrio, considerasse
como tais1121 - tinham um estado próprio, que lhes permitia, designadamente,
podiam escolher o juiz – da corte, da comarca ou da terra (Ord. fil.3,5,3) -,
obrigando a outra parte a vir a esse foro.
§ 764. Manuel Álvares Pegas ensaia uma enumeração das pessoas que cabiam
nesta categoria, baseada na literatura jurídica da época.
§ 765. Segundo ele, seriam miseráveis – em geral, “aqueles cuja natureza nos
move a compadecermo-nos em virtude da injustiça que a sorte lhes fez” 1122. De
onde fossem considerados como tais os cativos e os recém-libertados das cadeias
(n. 42); os estranhos ao lugar e os recém-chegados (n. 43); os doentes (n. 44); as
comunidades religiosas, os hospitais e os mosteiros (n. 45) 1123, os agricultores (n.
46), as meretrizes (n. 47), os expostos (n. 47), os velhos (n. 48), os mercadores em
viagem (n. 48/49), os viajantes carecidos de meios de sustento (n. 51), aqueles que
não têm com que se vestir (n. 51), os que têm várias filhas casadoiras a quem
devam dote (n. 53), os que foram privados de todos os seus bens por sentença (n.
54)1124.
1123 Nestes casos, a ideia que funcionava era, tanto a da existência de votos de pobreza, como a
das necessidades dos doentes ou dos monges. Mas também a de uma diminuição da capacidade jurídica
das comunidades, que se manifestam noutras situações. O mesmo autor refere uma pretensão das
monjas de S. Bernardo de Tavira de serem miseráveis, num processo contra Mateus Gonçalves
Rendeiro, em 1665 (Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses practicabiles […], tomo 2, cap. 11, n.
106); realmente, as Ordenações “concediam o privilégio a todas as monjas, enquanto miseráveis, e isto
quer sejam ricas, quer tenham jurisdição” (ibid. ).; no entanto, Pegas julga de excluir as que têm
jurisdição, restringindo-o às comunidades das ordens mendicantes, que não têm bens (enumerando as
de S. Francisco, S. Domingos, Santo Agostinho, Carmelitas e Jesuítas) (ibid. ).
1124 V. Ord. fil.3, 5, 3.
244
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1125 O tratado peninsular mais completo sobre o estatuto dos pobres é o de Gabriel Alvarez de
Velasco, De privilegiis pauperum et miserabilium personarum […], cit.. Cf. ainda, Gaspar de Baeza, Prima pars
Tractatus de inope debitore […], cit.. Para Portugal, Bento Gil, Tractatus de jure, et privilegiis honestatis in duo
diviginti articulos […], cit.
1126 A frase seguinte, num tom pré-proudhoniano, quase considerava as desigualdades da
propriedade como um roubo (de uso): “Daí que S. Basílio diga […] O que se passa é que tu escondes o
245
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 771. Mais tarde e mais próximo, Domingo de Soto elaborará sobre este
ponto1127, concluindo que, se um direito à esmola não estava formalmente
garantido, esta falha legal relacionava-se primordialmente com um aspeto técnico: o
facto de que, quer o supérfluo dos ricos, quer o necessário aos pobres, ter que ser
acertado por uma decisão prudencial (de um tribunal, porventura) 1128,
determinando o que era o supérfluo e o necessário de cada um dos ricos e dos
pobres, respetivamente. Isto tornaria o direito dos pobres em algo de meramente
virtual. Foi por isso que, mais tarde, haveria de ser introduzida uma nova política da
pobreza que dava a autoridades públicas o poder de tomar a seu cargo o auxílio aos
pobres, de acordo com critérios objetivos e gerais (“pobres merecedores”).
§ 772. Neste momento, ocorre salientar dois traços principais.
§ 773. Em primeiro lugar, que a teologia europeia tradicional – e, com ela, o
direito – atribuía aos pobres reais direitos de partilhar os recursos criados pela
providência divina, pelo menos na medida das suas extrema necessidade e caráter
supérfluo dos bens disponíveis. A concessão destes direitos incluía o
reconhecimento do direito de autoapropriarão, mesmo por furto nos casos
extremos. Embora não tivesse chegado a configurar um verdadeiro dever de dar
esmola. Este último passo só é dado – e posto a cargo dos poderes públicos – com
regimentos urbanos dos finais do séc. XVI, antecipando o que virá a acontecer com
o atual Estado-Providência (ou de Bem-Estar, Wohlfahrtsstaat)1129.
§ 774. Para além disso, o direito estabelecia uma especial proteção dos pobres
e outras pessoas miseráveis, concedendo-lhes privilégios de foro, que lhes
permitiam avocar as causas em que interviessem para o tribunal da corte, tal como
acontecia com os desembargadores 1130. Isto porque, “inspirando a natureza a
piedade pelo seu abandono pela fortuna” (ibid. n. 42, pg. 182), se entendia que a
grandeza de alma (magnanimitas) do rei lhes criaria uma situação mais favorável
nesses tribunais. Esta vantagem – que, realmente, podia representar apenas alguma
comodidade ou mesmo apenas uma distinção simbólica, obrigando a outra parte a
prescindir do seu foro e a ter que propor a ação no foro da parte privilegiada –
fazia, apesar de tudo, com que a qualidade de pobre fosse artificialmente procurada;
como acontecia com os pais de muitas filhas nobres, que tinham obrigação de
dotar 1131.
§ 775. No entanto, a pobreza podia facilmente transbordar os limites da
ordem social, sobretudo nume época de fome e miséria endémicas, assumindo
pão que mata a fome dos pobres; que tu deitas fora o vestido do homem nu, que tu atiras para o lixo os
sapatos do descalço, que tu enterraste o dinheiro daquele que precisava; e que, deste modo, tu cometes
uma injúria [um ato ilícito] em relação a todos os que podias ajudar”. Santo Ambrósio expressa-se do
mesmo modo (ibid. ).
1127 Com detalhes, sobre as posições de Domingo de Soto, António Manuel Hespanha, Imbecillitas
1129 Cf. detalhes em António Manuel Hespanha, Imbecillitas […], cit., cap. 8.
1130 Cf. para Portugal, Ord. 3, 5, 3: comentário extenso em Manuel Alvares Pegas, Commentaria da
Ordinationes [...], tom. 13, ad dicta Ord. p. 181 ss.; Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs. 52,
n. 1.
1131 Cf. Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses practicabiles [...], cit., tomo 2, cap. 11, n. 106 (p.
828).
246
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
formas de logro 1132 ou mesmo violência individual ou coletiva. Daí que os pobres
comecem a ser hierarquizados quanto aos seus méritos para receberem esmolas. Se
compulsarmos juristas do séc. XVII – por exemplo, Manuel Álvares Pegas 1133 -
vemos como estes méritos realmente não se relacionavam com a miséria ou
pobreza (inopia, paupertas), mas com características que indiciavam a sua maior ou
menor conformidade com os padrões da ordem. Assim, no caso de terem que se
escolher os pobres a contemplar com um legado testamentário “a favor dos
pobres”, deveriam ser escolhidos os mais pobres, mas também os mais nobres,
começando pelos “parentes [do falecido], os da mesma cidade ou paróquia” 1134, os
religiosos (ibid. ns. 10-3). Ao mesmo tempo, incapacidades jurídicas indignificadoras
vão-se acumulando sobre os pobres
§ 776. A idoneidade dos pobres para testemunharem com verdade é posta em
causa, a menos que gozassem de fama comprovadamente boa e o rico contra quem
testemunhassem a tivesse, pelo contrário, má. Não é que fossem necessariamente
desonestos; porém, “podia-se suspeitar que aceitassem facilmente dinheiro para se
deixarem corromper” 1135. Outros 1136, embora considerassem as fraquezas dos
estados de riqueza e de pobreza, acabavam por se inclinar, no momento de
decidirem a quem atribuir posições sociais de destaque, pelos ricos: contra os
pobres estaria que a sua vida está privada de atividade intelectual (n. 20) ("tenues, et
exhausti sunt"); contra os ricos, o facto de que a riqueza raramente seria irmã da
virtude, para além da sua tendência para a preguiça. Porém, entre os dois extremos,
escolhe a riqueza, pela tranquilidade de espírito que dá (n. 21); além de que, nos
tempos que corriam, não se reputaria ninguém de digno de honra senão os ricos (n.
21), pela sua influência, reputação e esplendor. Manuel Álvares Pegas abunda
também neste elogio da riqueza e suspeição da pobreza; as riquezas conservam a
retidão e favorecem a nobreza 1137, pois tal dignidade torna-se sórdida sem a
abundância (ibid. n. 2); daí a utilidade da riqueza para a República e para os
cidadãos: manter a igualdade; fazer temer a torpeza; permitir viver dos seus bens,
com esplendor; manter o brilho, decoro e honra das famílias (m. 19) e, com isto, a
riqueza cria ou induz a nobreza 1138; ao passo que os pobres facilmente se
corrompem e, por isso, tornam-se suspeitos (n. 19).
§ 777. Em suma, o estatuto bem aventurado dos pobres cede cada vez mais
perante o esplendor social e político da riqueza, cada vez mais aliada à
honorabilidade e à nobreza. O mundo dos pobres é, progressivamente, não este,
mas o Outro.
§ 778. Por outro lado, assistimos a uma concentração no Estado de políticas
1132 Citando o poeta Juvenal, Manuel Álvares Pegas considera que “os pobres são capazes de
todos os ludíbrios”, pelo que devem ser afastados de todos os cargos de autoridade (Commentaria ad
Ordinationes [...], cit., Tom. I. ad tit. 1, 1, gl. 20, ns.12 a 15 (p. 179).
1133 Nos seus Commentaria ad Ordinationes [...], cit., tom. 4, ad 1, 62, § 16, gl. 23, ns. 10 ss. e nas
1136 Cf. g. António de Sousa de Macedo, Perfectus doctor […], 1643, c. 7. “Divitiae”.
1137 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad. 1, 1, gl. 19, n. 7.
247
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1139 Rui Gonçalves, Dos privilegios e praerogativas que ho genero feminino tem por direito
comum & ordenações do Reyno […], cit..
1140 Sobre o estatuto da mulher no direito comum, v. por todos, Helmut Coing, Europäisches
248
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
neque tangere sacra vasa [...], neque potest accedere ad altare [...] neque potest praedicare, neque publice
docere, quamvis sit docta, & sancta, quoniam hoc est officium sacerdotale" (António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mulier", n. 2).
249
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1145 A opinião é comum. Cf. em Portugal, Álvaro Valasco, Decisiones […], dec. 120, n. 3; 157, n.
8; António da Gama Pereira, Decisiones […], dec. 337, n. 2; António Cardoso do Amaral, Liber […],
cit., s. v. “Mulier", n. 4.
1146 Manuel A. Pegas, Commentaria […], tomo 11, cap. 69, n. 3 ss.; Jorge de Cabedo, Decisiones
[…], p. 1. dec. 208; já nas sucessões de bens indiferentes (como os bens alodiais ou enfitêuticos), o
varão não deve preferir a mulher (António Gama, Decisiones […], dec. 194, n.3; Álvaro Valasco,
Decisiones […], cit., cons. 157, n. 7.
1147 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], cit., De apelativa, s.v. "Filius", n. 61.
1149 Codex, tit. de mulieribus in quo loco munero sexui congruentia vel honores adgnoscunt, C,
10.64.
250
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
julgar e dar sentenças. À mulher não é proibido julgar e ter jurisdição por causa da
capacidade, mas por causa da honestidade [...] não porque careça de juízo, mas
porque foi recebido que não exerça ofícios civis" 1150.
§ 791. Mesmo que esta tradição literária, fundamentalmente judaica, da
indignidade das mulheres pudesse ser cancelada, restava ainda a tradição, essa
predominantemente clássica, da sua fraqueza e fragilidade.
§ 792. Os juristas eram unânimes em considerar que as mulheres careciam das
capacidades suficientes para se regerem por si só. "As mulheres, em razão da
ignorância, equiparam-se às crianças", escrevia Pegas 1151, recolhendo uma opinião
comum. "O seu engenho é móvel [...] a sua disposição vária e mutável, como diz o
poeta, presumindo-se que se deixam facilmente mover com carícias", continuava
Pegas 1152. Daí que já o direito romano lhes tivesse proibido, pelo
Senatusconsultum Velleianum, dar fianças, para evitar que cedessem às manobras
de sedução dos devedores 1153. Seriam naturalmente ignorantes, como os meninos e
os rústicos, não sendo de presumir que conhecessem o direito 1154. Daí que a Glosa
enumerasse os casos em que essa ignorância lhes valia como escusa 1155. António da
Gama, discutindo um caso concreto de instituição de um morgado por uma mulher
e perguntando-se se seria relevante averiguar da intenção da instituidora quanto à
ordem sucessória observa que a pobre mulherzinha (muliercula), como qualquer
mulher, não podia entender as ficções e subtilidades do direito1156.
§ 793. Por tudo isto, as mulheres tinham de estar sujeitas à tutela de
alguém 1157. Antes do casamento, estavam sob a patria potestas do seu pai. Depois,
estavam como pupilas debaixo da curatela do marido. De qualquer modo, "por
causa da fragilidade do sexo e da sua pior condição [...] não se devem intrometer
nas reuniões dos homens" 1158; não podiam ser fiadoras (Ord. fil.4,61); não podiam
ser testemunhas nos testamentos (Ord. fil.4, 76); nos delitos eram castigadas mais
brandamente.
§ 794. Esta fragilidade do sexo (imbecillitas sexi) faziam com que, nas mulheres,
tudo se perdesse: a família, o estado 1159, o nome, a memória. "A mulher chefe de
família é o fim da família", concluía Tomé Valasco 1160.
1153 Cf. D. 16, 1; C.4, 29, Ord. fil. 4, 61; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 138, n. 23.
1154 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., 138, n. 24 (embora devam consultar peritos em
direito).
1155 Gl. in l. fin Cod. de juris et facti ignorantia, C.1, 18.
1156 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 307, n. 3 (“quaequidem mulier fictiones iuris
1159 "A mulher filha de nobre, ao casar com plebeu, perde a dignidade nobre", António Cardoso
do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Mulier", n. 27. Esta "ductilidade" da mulher também lhe permitia
aproveitar a nobreza do marido (C.12, 1, 13; Manuel A. Pegas, Commentaria […], tomo 7, ad 1, 90,
gl.18, n. 1).
1160 Tomé Valasco, Allegationes […], all. 29, n. 10; Manuel A. Pegas, Commentaria […], tomo 11,
ad 2, 35, cap. 181, per totum ("A linha masculina é a linha que começa num varão e neles se continua
sem qualquer mulher ou interposição de seus descendentes [...] A linha feminina é a que começa na
251
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 795. Esta era uma das razões que, a mais da sua menor dignidade, leva a
excluir as mulheres da sucessão em que o sucessor ou a lei tivessem tido em vista a
conservação dos laços familiares que então mais contavam - os laços agnatícios 1161.
Isso acontece, frequentemente, nos bens vinculados à memória da família, como os
morgados e, em Portugal, é estabelecido, em geral, para os bens da coroa.
§ 796. A pré-compreensão do feminino de que o direito parte contém também
referências à perversidade das mulheres, que seriam mais lascivas e depravadas. Por
isso, o estado de pureza era, nas mulheres, sempre precário e instável, sujeito a mil
atentados e desejos. S. Cipriano, um outro látego do género feminino, avisa da
evanescência da virgindade: "pode-se desflorar com a vista; mesmo a mulher
incorrupta pode não ser virgem. Pois o dormir com homem, a conversa, os beijos,
contém muito de criminoso e impúdico" (Decreto, II, C. 27, qu. I. c. 4; fonte, S.
Cipriano, ad Pomponium). À imodéstia nos enfeites e nos trajos se refere S.
Agostinho: "Pintar-se com pigmentos, de modo a parecer ou mais rosada ou mais
branca, é uma falácia adulterina.. Pois sem dúvida os seus maridos não se deixam
enganar por ela. E apenas a eles pertence decidir se as suas mulheres se enfeitem,
segundo a permissão (venia) deles e não segundo o poder (imperium) delas. É que os
verdadeiros ornamentos são [...] os bons costumes" 1162.
§ 797. Quanto à feitiçaria, um cânone conciliar do séc. IX, incorporado no
Decreto de Graciano, manda reprimir duramente as mulheres que se dediquem a
sondar o sobrenatural por meio de práticas demoníacas. "Também não é de omitir -
diz-se - que algumas mulheres celeradas, reconvertidas a Satanás e seduzidas pelas
ilusões e fantasmas dos demónios, creem e confessam que cavalgavam de noite
aquelas bestas, com Diana, deusa pagã, ou com Herodíades, e uma enorme
multidão de mulheres, viajando no silêncio da noite por muitas terras distantes,
obedecendo ao seu império e dedicando certas noites ao seu serviço [...] E o
próprio Satanás se transfigura em anjo da luz para se apossar da mente dessas
mulherzinhas [...]" (Decreto, pt. 2, C. 26, q. 5, c. 12). E esta prevenção especial
acompanha a prática inquisitorial, que mantém uma particular atenção aos
sortilégios e feitiços das mulheres.
§ 798. O remédio contra estes defeitos das mulheres era uma constante
vigilância sobre os seus costumes e um seu rigoroso confinamento ao mundo
doméstico. Era isto que se predicava sob a regra do pudor e honestidade das
mulheres. A honestidade seria, de facto, "a virtude moral oposta à lascívia" 1163. De
alguma maneira, é a virtude que consiste em usar do sexo segundo a reta razão da
mulher [...] e divide-se em duas espécies, uma sob o ponto de vista do princípio, se começa em mulher,
pois todos os que descendem dela se dizem ser de linha feminina, embora sejam varões, pois procedem
daquela primeira mulher como estirpe [...] Outra é a linha feminina que se compõem só de mulheres sem
qualquer mistura de varão. A mulher que é chefe da sua família também é o seu fim, pois, em primeiro
lugar, a linha masculina extinguiu-se no pai, não se transmite à filha, antes nela terminando, e não se
continua nos seus herdeiros, que se dizem de linha feminina e se consideram de outra familia e
agnação").
1161 Agostinho Barbosa, Tractatus varii. De appellativa […], s. v. "Filius", n. 61; Jorge de Cabedo,
1163 Bento Gil [Benedictus Aegidius], Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art. proem. n.
2.
252
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
natureza 1164.
Os direitos e deveres que dela decorrem seriam, assim, de direito
natural, impondo-se às obrigações civis ou políticas, e mesmo às ordens expressas
do príncipe 1165. O primeiro preceito da honestidade feminina era que a mulher não
se misturasse com os homens 1166. "A mulher - escreve António Cardoso do
Amaral 1167- não deve advogar nem procurar em juízo a favor de causas alheias. É
incompatível com o pudor do sexo que se meta em negócios alheios ou importune
desavergonhadamente os magistrados". Daí que ela não pudesse ser juiz ou ocupar
cargos que a obrigassem a privar com homens - a não ser que, pela sua dignidade
ou idade, o pudor não corresse riscos nessa privança 1168; não pudesse ser obrigada
a ir ao tribunal, como juiz 1169 ou procurador (Ord. fil.3,47; V, 124, 16); nem a ser
testemunha 1170; não pudesse ser metida em cárceres públicos, mesmo que de
mulheres 1171; não devesse meter-se em questões alheias, nem sequer para acusar
crimes públicos 1172.
§ 799. Embora muitas destas restrições fossem apresentadas pelos autores
como honras devidas ao estado de mulher, se nos perguntamos pelos seus
fundamentos, encontramos sempre a virtude da honestidade. E, buscando a
arqueologia desta virtude quando predicada do género feminino, chegaremos
rapidamente ao seu oposto, a natural lascívia das mulheres. Nelas, a honestidade é
uma virtude contra a natureza, um improvável freio da recta razão que procurava
compensar a violência das pulsões do desejo e a debilidade da vontade natural para
resistir a elas.
§ 800. Esta imagem da mulher, latente nos textos do direito comum europeu,
projetava-se sobre os direitos dos vários reinos. Neles ganhava, eventualmente,
refrações próprias, que decorriam de tradições culturais particulares. Era o que se
passava com o direito português que, como se pôde ver das indicações de fontes
que foram sendo dadas, recebera a generalidade das regras de direito comum 1173.
§ 801. Onde se verifica alguma especialidade do direito pátrio quanto ao
estatuto da mulher era no regime de comunhão geral de bens, considerado como
costume geral do reino (Ord. fil.4,46/47) - embora sujeito a progressiva usura pelo
1164 Daí que honestidade não se confunda com virgindade, pois realmente a honestidade não
impede o coito em geral, mas apenas o "desonesto" (Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis
[…], cit., art. proem. n.2).
1165 Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art. 2. ns. 2 ss..
1166 Sextum, II, 2 (não convém que se passeiem ou participem em reuniões de homens e, por isso,
1168 Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art 2, n. 6.
1169 Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art 2, n. 1 (Ord. fil.3, 47; 5, 124, 16;
Nueva recop.3, 9, 7: "porque no seria cosa guisada, que estuviese entre la muchedumbre de los hombres,
librando los pleytos".
1170 Digesto, 12, 2, 15. Ord. fil. I. 78, 3. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit... s.v. "Mulier",
n. 52. Esta isenção é atenuada no caso de mulheres desonestas ou plebeias (Bento Gil, Tractatus de iure,
et privilegiis honestatis […], art 2, n. 15)
1171 Porque sempre existe o carcereiro (Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], art 3,
n. 2); se tiver que ser encarcerada, deve sê-lo em mosteiro de mulheres. Para Portugal, v. Ord. fil.2, 31,
4; 4, 76, ult.
1172 D, 3, 1, 1, 2; 48, 2; Decreto, C. 5, 3, 1-3, Bento Gil, Tractatus […], cit., art. 2, n. 12.
1173 Para o Brasil, Jeannie da Silva Menezes, Sem embargo de ser fêmea […]. cit.
253
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
regime de dote e arras, de direito comum 1174 – e que limitava mais os poderes de
disposição patrimonial da mulher. "O marido e a mulher - escreve Jorge de Cabedo
no início do séc. XVII 1175 - possuem os dois os bens e são como que sócios na
casa divina e humana (cf. Ord. Man.4,17)".
3.1.9 Menores.
3.1.9.1 A natureza dos menores.
§ 802. A hierarquização da sociedade decorre, lembremo-lo, de uma ordem
natural das coisas. Nela, o homem ocupava o primeiro lugar, acima dos animais e,
depois, das plantas e dos seres inanimados. Portanto, uma humanização deficiente
aproximaria o homem do escalão inferior, ou seja, das bestas. Com o pecado
original, essa radiosa humanidade primitiva teria decaído também. As crianças, mais
próximas dessa origem pecaminosa, iriam iniciar – apoiadas pelo batismo – uma via
longa de remissão desse pecado e de aquisição dos traços de uma humanidade
plena. Até lá, ou partilhavam de traços de animalidade ou recordavam o impacto
desse pecado que estava na sua origem.
§ 803. É esta a chave para se entender o estatuto cultural dos menores na
sociedade de Antigo Regime 1176.
§ 804. Em relação a estas pessoas desprovidas de uma plena capacidade de agir
de acordo com as capacidades intelectuais dos homens - a inteligência, a razão, mas,
sobretudo, a prudência -, e feridas à nascença do pecado da sua origem (pecado
original), o sentido comum de Antigo Regime é muito pouco generoso. Mesmo
quando se trata das crianças, nem a sua fragilidade nem a solicitude e o carinho que
hoje se entende inspirarem as eximia a juízos muito negativos sobre a sua
inumanidade e perversão.
§ 805. Como as crianças constituem um padrão - e uma metáfora - para avaliar
outras situações de humanidade diminuída, o que se diz das crianças diz-se, por
extensão, dos rústicos, dos nativos, dos dementes e dos velhos. Daí o interesse do
imaginário jurídico acerca delas.
§ 806. No base da fraqueza dos menores está, sempre, a insuficiência do juízo.
Isto prejudicava o conhecimento e avaliação das situações e impedia, portanto, a
prudência na gestão da vida e dos negócios. Nos primeiros anos, a esta deficiência
da razão juntava-se a deficiência da fala, deficiência esta que alguns prolongavam
até à puberdade, já que a fala humana haveria de ser a do homem adulto, com
articulação grossa e firme, tal como forte e firme haveria de ser o entendimento. É
o costumado acopular – que também se encontra a propósito da avaliação da
1174 Cf. cap. 3.3.1. É provável que a frequência de cada um dos regimes dependesse dos estratos
sociais; aparentemente, o regime de dote e arras era mais comum nos grupos nobres. As camadas
populares, com poucos bens de família ("troncais", "de avoengo"), pouco ciosas dos valores
linhagísticos e recorrendo menos ao direito letrado e escrito, usariam o costume da comunhão,
inicialmente mais comum no Sul, mas depois (a partir de Ord. Man.4, 7) recebido como costume geral
do reino.
1175 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., I. dec. 106, n. 1.
1176 Sobre a história da criança, v. Ph. Ariès, L'Enfant et la vie familiale sous l'Ancien Regime, Paris,
Seuil, 1973; Lloyd de Mause, (ed.), The History of Childhood, New York: Psychohistory Press, 1974;
Colin Heywood, History of Childhood: Children and Childhood in the West from Medieval to Modern Times, Polity
Press, 2001.
254
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
capacidade dos rústicos, dos nativos e na de alguns dementes – entre reta razão e
discurso fluente.
§ 807. Mas a razão, ou equilíbrio, é também um freio aos extremos das paixões
animais – da ira, da luxúria, da volúpia. E, por isso, a falta de siso dos menores
explicava que, neles, a animalidade tendesse a vir ao de cima e a aproximar-se das
bestas, nos seus impulsos caprichosos e imoderados. Daí que os menores fossem
volúveis, desorientados e imprudentes.
§ 808. Alguns atos, de natureza muito pessoal – como os esponsais, o
casamento e a eleição para dignidades e ofícios de cuja dada ou apresentação (para
estes conceitos, v. cap. 2.6.5) fossem titulares –, eram-lhes permitidos, já que eles
dependeriam sobretudo de escolhas dirigidas por afetos pessoalíssimos, situados,
digamos, abaixo da razão. Mas já tudo quanto tinha a ver com a sabedoria no agir
(com a prudência) lhes era rigorosamente vedado, mesmo se intimamente ligado
com atos que lhes eram permitidos. Assim, no casamento, podiam escolher o
parceiro, mas já não podiam gerir os bens.
§ 809. Todo este regime de interdições se prolongava até aos 25 anos, altura
em que, de roldão com a capacidade para ser juiz e julgar os outros, se recebia toda
a cópia de direitos. Numa época de vidas curtas, isto significava que, durante cerca
de metade do tempo de vida, não se tinha, do ponto de vista jurídico, capacidade
para viver autonomamente. Mesmo se – de acordo com múltiplos testemunhos – a
vida profissional, civil e militar, pudesse começar muito cedo.
3.1.9.2 As idades: infantes, impúberes e púberes.
§ 810. Paulo Zacchia († 1659), um dos mais célebres médicos legistas da época
moderna, autoridade para toda a medicina legal até aos inícios do século XIX,
disserta longamente sobre a menoridade e a sua relevância para direito 1177. Começa
com a averiguação das fases dessa idade.
§ 811. A primeira delas era a meninice ou puerícia (pueritia, impubertas).
§ 812. Dentro dela, a sua primeira fase seria a da infância que, na melhor
opinião, seria aquela em que "o menino não pode falar" 1178 (in+fans). Contava-se a
partir do dia do nascimento - já que a maioria dos juristas não considerava que o
feto pudesse ser tido como um ser animado 1179 - e durava, também na melhor
opinião, até aos sete anos. Os menores de sete anos (infantes) careceriam totalmente
da razão, sendo equiparados aos loucos furiosos. Não responderiam por nenhuns
atos, nem sequer poderiam fazer testamento. Isto, mesmo que tivessem juízo
superior ao normal para a sua idade, já que "não gozam de qualquer prudência,
mesmo que nos seus atos pareçam ter alguma" 1180.
§ 813. Saídos da infância, os meninos tinham ainda que passar o marco da
puberdade. Antes disso, tinham a condição de impúberes.
§ 814. Sobre a capacidade dos meninos (pueri impuberes), a opinião comum era a
de que "embora com o progresso da idade a inteligência do homem se
aperfeiçoasse, de tal modo que quanto mais velho fosse o homem, mais perfeita se
255
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1187 Uma tradição médica que durou até ao séc. XVIII (ainda bem documentada no Dictionnaire
256
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tinha uma conotação de passividade que não se adequava ao papel ativo do varão
no casamento (“mulher núbil, mas não varão núbil, a não ser de modo
inapropriado, pois se pode dizer que a mulher é noiva, mas não o homem […], já
que ao dizer que a esposa celebrou noivado, como que estamos dizendo que foi
posta a servir”1189). A Glosa distinguia três tipos puberdade: a plena, aos catorze
anos; a mais plena, aos dezassete; e a pleníssima, aos dezoito. Por outro lado, havia
quem prolongasse a puberdade até aos vinte e cinco anos, atendendo à constituição
tanto do corpo como da alma, "pois uma e outro sempre se aperfeiçoam alguma
coisa até àquele termo”1190.
3.1.9.3 O direito dos menores.
§ 817. No plano jurídico, as disposições acerca da idade da puberdade
variavam. Para adotar, o direito romano (D.1,7, De adoptionibus et emancipatioinibus;
I.1,11, De adoptionibus, 4) estabelecia a idade de 18 anos para os homens e 14 para as
mulheres; o mesmo para interpretar o alcance de uma doação ou legado temporário
que devesse terminar “na puberdade” e para aceitar procurações. Para casar, o
direito estabelecia uma idade adequada do ponto de vista das finalidades do
casamento, elegendo como decisivo o critério da capacidade de gerar. Esta era
indiciada pela penugem púbica, mas importava modificações corporais mais
decisivas.
§ 818. Em Portugal, os juristas fixavam a puberdade feminina nos doze
anos1191 e a dos homens mais tarde: nos catorze anos (Ord. fil.4,104,6)1192. O caráter
estrito da doutrina canónica sobre casamento – impondo-lhe como fim quase
exclusivo a reprodução - resumia praticamente a questão da puberdade à questão da
fertilidade. Isto explica que, do ponto de vista da capacidade jurídica, os menores
púberes, para a generalidade dos negócios jurídicos, pouco mais capazes fossem do
que os impúberes. Perguntando-se acerca da capacidade racional destes
adolescentes e, consequentemente, da sua aptidão para gerir autonomamente os
seus negócios, Zacchia constatava que as leis não lhes permitiam gerir nada a seu
arbítrio, antes lhes assinando tutores 1193, pois "pouco resistem às paixões, estando
sujeitos a ímpetos voluptuosos irracionais de que não podem ser afastados pela
razão”1194. E, por isso, mesmo quando casados, “não podem administrar as suas
coisas, pois o conselho da sua idade é frágil e menos firme, não sendo suficiente
para evitar muitos enganos e insídias a que estão sujeitos aqueles que administram
o homem, requer menos espaço do que este para que a sua perfeição íntegra seja conseguida, pois a
perfeição do homem é sem dúvida maior; correspondendo à perfeição ou imperfeição o aumento ou
diminuição do tempo das idades (...); na verdade, parece que a mulher cresce mais depressa, começa a
gerar mais depressa, e envelhece mais depressa do que o homem: a sua imperfeição provém do seu
menor calor e, por isso, embora este desapareça mais cedo, também cresce mais prontamente (...);
mas, como disse, não é apenas por causa da sua imperfeição, mas também por causa da humidade das
suas temperaturas e da própria moleza do corpo, que a mulher cresce mais rapidamente do que o
homem; pois as menores dimensões do corpo fazem com que este mais facil e precocemente se
expanda, como testemunha Galeno”, Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, ns. 53-59.
1192 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 13, 1 ss..
257
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
bens”1195.
§ 819. A puberdade não equivalia à maioridade e, assim, só tendo vinte e cinco
anos (dezoito, sendo mulheres) é que os menores podiam pedir ao rei a sua
emancipação, desde que provassem capacidade e suficiência para a administração
patrimonial (Ord. fil.3,42)1196. Era também a partir dessa idade que deixavam de
gozar do privilégio de pedir a rescisão dos atos que os prejudicassem, mesmo que
praticados pelo tutor (restitutio in integrum [ob aetatem]) dentro de um prazo de 4 anos
(Ord. fil.3,411197).
§ 820. Também o exercício de cargos públicos lhes estava vedado até aos 25
anos (Ord. fil.1,94), tal como a faculdade de advogar em juízo (Ord. fil.1,48, 3 e 20), a
menos que tivessem um título universitário1198.
§ 821. Onde o direito dignificava mais os menores – atribuindo-lhes uma
responsabilidade que permitia a censura e o castigo – era no domínio dos delitos
civis (indemnização de danos) ou penais (punição). Aí, o direito comum
considerava-os juridicamente aptos, pois eram capazes de intenção, logo desde a
puberdade1199. O direito pátrio considerava-os responsáveis a partir dos vinte anos,
impondo-lhes a mesma pena dos maiores; entre os dezassete e os vinte anos,
atenuava a pena segundo arbítrio do julgador; e só os isentava da pena ordinária se
tivessem menos de dezassete anos (Ord. fil.5,19,1; 5,36; 5,135), sendo a pena capital.
Não o sendo, mandava aplicar o direito romano (I, 4,1, De obligat. quae ex delicto
nascuntur, 18).
§ 822. A grande exceção da incapacidade dos menores era, como se viu, a do
casamento, que os menores podiam celebrar a partir da idade nupcial de 16 ou 14
anos, consoante fossem machos ou fêmeas.
§ 823. A incapacidade dos menores era suprida pela direção do pai ou, caso
este tivesse falecido ou fosse incapaz, de um tutor (v. cap. 3.3.2). Se os menores não
tivessem família, eram colocados sob a proteção dos juízes dos órfãos, que lhes
atribuíam um. Os poderes do tutor eram de mera administração, tendo que jurar
bem administrar, dar fiança, prestar contas e responder por danos dolosos ou
culposos para o património do menor.
3.1.9.4 Os quase menores, os maiores e os quase maiores.
§ 824. Como se disse, o imaginário dos menores, estes seres imperfeitos mas
perfeccionáveis se submetidos à direção ou disciplina, foi estendido eficientemente
os prejudiquem (restitutio in integrum [ob aetatem], com efeitos ex tunc). Outros lugares: Ord. fil.4, 87, 3
(aceitação de herança); Ord. fil.4, 79, 2 (prescrição); Ord. fil.96, 21 (partilhas). Sobre a diferença entre a
ação ordinária de nulidade, fundada em causas gerais de nulidade, substancial ou de forma (com efeitos
ex nunc), e o pedido extraordinário de rescisão (restitutio in integrum) por causa da idade (com efeitos ex
tunc), v. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 13, 8, rubr. p. 643 ss. (com
muitos detalhes sobre os requisitos e efeitos desta rescisão). Cf. também cap. 7.1.3.
1198 Mas podiam aceitar procurações extrajudiciais (Ord. fil.3, 9, 5), a partir da idade plena, segundo
258
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1200 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 30: os contratos entre encarcerados devem ser
rescindidos.
1201 Fontes em Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 13, 9 rubr. p.
661; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tom. 15, ad Ord. 3, 41, 17.
1202 V. Ord. fil.4, 29 ss..
1203 Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., ad. Ord. fil. 4, 29, 33.
1204 Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., ad. Ord. fil. 4, 29, n. 1 s..
259
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1205 Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., ibid. ns. 30/31, 33.
1206 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., 2, 12, § 7, n. 1.
1207 Ou seja, voltando a citar Coelho da Rocha, “enquanto às circunstâncias ou estado das
pessoas, a quem competem os direitos, ou obrigações (jura personarum)” (Instituições […], cit., 1, § 47).
1208 “Et probatur quando testes dicant memoriam non habuisse ordinatam” [prova-se quando se
diz que não têm uma memória com ordem], Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12,
ad 1, 50, cap. 6, t. 4, n. 95, p. 251.
1209 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], ibid. n. 94.
260
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
vazias”1210; que “iam pelas praças, atirando pedras”1211; que “andam pelas ruas,
lançando berros”1212; que “quando estão doentes, proíbem que se chame o médico,
e se recusam a tomar os remédios para a cura” 1213.
§ 832. Passemos aos estados que se aproximavam da demência.
§ 833. A bebedice era um pecado, um pecado grave e mortal. No plano do
direito, produzia um estado equiparado ao do demente: “Além disso, como o ébrio
– citando Cícero – raramente vê o sol no Ocidente, mas ainda mais raramente no
Oriente, nada nele se pode dizer razoável, nem a vontade, nem o bom conselho na
gestão da vida [...] e por isso é equiparado ao morto e ao doido furioso [...] pois a
bebedice não é outra coisa senão uma loucura voluntária [...] de onde Platão dizer
que não apenas o velho se faz menino, mas também o ébrio [...] E assim, como
escreveu Vives, embebedar-se é perder as faculdades e o senso, sair do poder da
razão e do juízo da cabeça, de onde se diz que o homem se transforma numa rês ou
numa pedra. E fala sem saber o que diz, pelo que se conduz a si e aos seus para
graves males”1214.
§ 834. Depois, os surdos-mudos. O direito romano classificava os surdos-
mudos como doentes perpétuos, daí se equiparando os surdos-mudos de
nascimento aos dementes. Subjacente, porém, parece estar algo mais profundo,
sobre a relação entre a razão e a fala. Essa mesma relação que assimilava a selvajaria
à falta de uma linguagem articulada (barbari), no fundo porque supunha que existia
um nexo indissociável entre razão e comunicação, do qual decorreria, não apenas a
insensatez dos surdos-mudos, como a selvajaria dos homens isolados na floresta
(homo in sylva, silvícola, selvagem), isolados nas aldeias (paganus, aldeanus), no campo
(rusticus) ou nos vales isolados 1215, impossibilitados de comunicarem. Em
contrapartida, outros deficientes físicos feridos de ainda mais reduzida capacidade
de observação – como os cegos – podiam não estar sujeitos a tutela (ibid. 192). Já
“o surdo-mudo de nascimento não podia testar. Ainda que tivesse bom
entendimento, e exprimisse a sua vontade por sinais; porque não podia ter ideia
bastante sobre o que fosse instituir herdeiro e fazer testamento; e porque a
declaração da vontade por palavras pronunciadas ou escritas era solenidade
essencial dos testamentos” (ibid.). De novo, testemunhando a estreita relação entre
a fala e a razão: “o que está gravemente enfermo e mesmo já moribundo e
balbuciante, pode fazer testamento se puder ainda pronunciar as palavras
inteligivelmente: pois ainda então se presume estar em seu juízo” (ibid. 185).
3.1.10.1 Os estados próximos da demência: velhos, doentes, pródigos e
falidos.
§ 835. Mas a variedade de estados continua. E, com ela, o desfile das
adequadas especialidades, algumas envolvendo incapacitações.
1214 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus regiis [….], cit., liv. 3, cap. 15, n. 27.
1215 Onde ainda Fodéré tinha identificado uma propensão ao cretinismo. Nele, também, a relação
entre pobreza intelectual e ruralismo (cf. François-Emmanuel Fodéré, Les lois éclairés[...], cit., I. 64).
261
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 836. A velhice (senectuto) era uma das sete idades do homem1216, em que as
pessoas viam diminuídas as suas capacidades vitais (“est imminutio animal a
tempore contingens”1217), perdendo o corpo os seus calor e humidade iniciais e
começando a ser dominado por humores frios e secos 1218. Nela, as pessoas perdiam
a capacidade de gerar1219, o seu vigor físico e mental. Não se tratava de uma doença,
pois era uma situação natural e que não se afastava da normalidade 1220. E, por isso,
aos velhos não aproveitavam os privilégios dos doentes. O seu início situava-se por
volta dos cinquenta anos, embora variasse de pessoa para pessoa e, por isso,
devesse ser arbitrado pelo juiz1221. O seu termo ocorria pelos setenta anos, variando
também com as pessoas e dependendo também do arbítrio do julgador. Depois dos
setenta, a velhice era chamada decrepitude (decrepitas)1222, caracterizada por uma
deterioração mais evidente das capacidades físicas e das faculdades mentais. O
corpo ficava trémulo, a vista perdia a agudeza, a voz perdia a segurança, a memória
enfraquecia, o sentido de orientação vacilava.
§ 837. Do ponto de vista jurídico, a velhice trazia consigo algumas vantagens.
Entre elas avulta a preferência para o provimento em dignidades1223, a escusa de
tutela e de encargos (ofícios) públicos1224, a proibição de ser posto a tormentos ou a
atenuação das penas1225.
§ 838. Outras categorias assimiladas à velhice eram a dos doentes (ibid. pg.
185)1226, a quem, sendo incuráveis, se impede a administração de seus bens e se
pode dar curador de bens; a das pessoas miseráveis, compreendendo religiosos
mendicantes, pobres, doentes, cegos, aleijados, peregrinos, a quem se faculta o gozo
da restituição in integrum (possibilidade de anular os atos jurídicos que lhes causassem
prejuízo) (ibid. 193); a dos presos, feridos de algumas incapacidades, mas também
protegidos por alguns privilégios.
§ 839. Depois, a dos pródigos, que mantinham com os doidos uma
proximidade de estatuto. Por muito sugestivo que isso fosse, a incapacitação dos
pródigos não decorria do “individualismo proprietário” liberal. Ela vinha já do
Antigo Regime, envolvendo então uma delicada questão de contra distinção entre a
prodigalidade, que era um vício, e a liberalidade, que era uma virtude. O direito
romano já previra a nomeação de tutores para os pródigos. As Ordenações (Ord.
fil.4,103,6) previam a sujeição a tutor daquele que “como pródigo,
1219 Entendia-se que o homem as perdia aos sessenta anos e a mulher, com a perda dos fluxos
menstruais, aos 50 anos, Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 58.
1220 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, ns. 62-76.
1221 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, De aetatibus, qu. 9, ns, 30, 35, 36.
1224 Por opinião comum, a partir dos 70 anos, apenas. Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De
aetatibus, qu. 9, n. 42
1225 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 2.
1226 A doença devia ser provada por quem a invocasse e podia configurar um estado de necessidade
que justifique a ofensa de bens alheios (Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Infirmitas”).
262
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1227 “Prodigus est, qui neque tempus, neque fluem expensarum habet, sed bona sua dilapidando
profundit”, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., 2, ad 2, 12, 9.
1228 “Seu qui sermone quidem videtur sapiens, sed factis est insapiens”, Manuel de Almeida e
prodigalitati nullus”, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., ibid..
1232 “Certe prodigalitati, re imminuta, et fractis opibus, nullus restat fundus; ex his colligitur
prodigalitatem esse depravationem mentis pronœ in effusionem proprie substantiae, rationis et judiciis
profugam famam contemptricem, in consulate cujusdam animi impotentiae feralem postum”, Manuel
de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., 2, ad 2. tit. 12, § 9
1233 Ao pródigo alguns doutores equiparavam, para o fim de se lhe dever dar curador, o “bêbado
continuo [...] e o jogador continuo, e taful”, Lobão, Notas […] Melo [...], cit., 2, ad 2. tit. 12, § 9, nº.
8. Sobre o conceito de prodigalidade, v. ainda Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 12, 9.
1234 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado encyclopedico, pratico e critico sobre as execuções […],
cit., §§ 188/189.
263
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
264
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1239 António da Natividade, Stromata oeconomica […], IV, cap. 3, n. 8, pg. 111.
1240 Sobre o concílio de Trento: http://www.storiadeldiritto.org/ uploads/5/9/4/8/5948821/
garlati_2011_famiglia.pdf
1241 Conc. Trident. sess. 24, cap. 1, nº 7. Cf. já no direito romano, D. 23.1, De sponsalibus; D.50, 17
da vontade de cassar..
1243 A definição do casamento como um sacramento (causativum gratiae unitivae, causador da graça
265
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1247 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 3.
1248 Mateus, 5, 32 (“Mas eu digo que todo aquele que se divorciar de sua mulher, exceto por
imoralidade sexual, faz que ela se torne adúltera, e quem se casar com a mulher divorciada estará
cometendo adultério”); Santo Agostinho interpretava o texto como proibindo a dissolução, mas outros
teólogos tinham opinião contrária.
1249 “Bimestre”, v. Conc. Trento, sess. 24, cap. 6.
1250 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “De sacramento matrimonii”, n. 31.
1251 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 5 e 6.
Aliás, o casamento seria clandestino, o que implicava nulidade e penas canónicas arbitrárias, aplicadas
pelo juiz eclesiástico, cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento
matrimonii”, ns. 11 e 12.
1252 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium quoad libertatem”. Em todo o
caso, a ordenação Ord. fil. 4, 88, 1 privava da legítima a filha que tivesse casado sem autorização do pai.
Mas Gabriel Pereira de Castro, embora achasse que esta consequência era de direito civil e canónico,
ponderava que estas leis civis que introduziam entraves ao casamento eram feitas mais para atemorizar
do que para serem aplicadas (cf. Decisiones […], cit., dec. 10, ns. 1 e 2). V. adiante, cap. 3.2.4.
1253 Cf Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 40.
1254 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 64, a
não ser que, depois de conhecida a condição servil, houvesse cópula carnal, pois isso valia como um
novo consenso. Sobre o tema, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 61.
266
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1255 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 64.
1256 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 63 e
65.
1257 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 39.
Tende para exigir que haja protesto da ameaça anterior ao casamento. Também, Diogo Marchão
Themudo, Decisiones […], cit, dec. 58 (medo de morte, prisão, estupro ou infâmia).
1258 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 4.
1259 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 44.
1260 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 33.
Alguma doutrina não admitia qualquer dispensa, fundada no caráter natural ou divino das normas que
estabeleciam os impedimentos, ibid, n. 33.
1261 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 34.
1262 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 34. O
1264 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 54.
267
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1265 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 60 e
61. A idade mínima para casar por palavras de futuro (esponsais) eram os 7 anos. Os esponsais
obrigavam até que, sobrevinda a idade núbil, fossem confirmados quebrados, Antonio Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 62.
1266 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 71
1267 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 72.
1268 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 59.
1269 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 68 e
74.
1270 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 48.
1271 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 50.
1272 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 55 (não
incluía a mãe do adotado, talvez para permitir o casamento do adotante com ela).
1273 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 51 (se
alguém se casa com Berta, depois não pode casar com parenta sua até ao 4º grau).
268
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1274 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 53.
1275 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 57.
1276 Só havia tempos proibidos para os casamentos solenes: do advento até a epifania, da 4ª feira
de cinzes até à oitava da Páscoa, Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento
matrimonii”, n. 73.
1277 Podia ser dispensado, mas requeria normalmente certas condições, como a educação católica
dos filhos.
1278 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 13 e
15.
1279 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 7 e 9.
1280 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 16
1281 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 58; Cf.
1283 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 35.
1284 Tanto mais “que haveria mulheres – escreve Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“De sacramento matrimonii”, n. 18 - que se queriam separar dos maridos para poderem viver
luxuriosamente”.
269
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1285 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 19,
1287 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 70.
1288 O juiz eclesiástico inquiria sumariamente das sevícias, sem citação das partes (sine strepitu et
figura iudicii), mandando a mulher para casa de outra mulher honesta, onde pudesse viver segura,
Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 29.
1289 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 26.
1290 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 30.
1291 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sponsalia”: Bento Pereira, Promptuarium
270
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
casar no futuro. Ao passo que o casamento gerava uma situação (status) permanente
e indissolúvel, os esponsais geravam apenas um impedimento impediente de novo
casamento - não podendo quaisquer dos desposados contrair casamento, antes de
dissolvido o laço esponsalício – e uma obrigação da casar. Esta podia ser dissolvida
por consenso entre os nubentes ou por decisão do tribunal (eclesiástico), embora a
sua violação unilateral importasse penas espirituais (a excomunhão, tendo este
regime evoluído para outros mais complacentes, por volta do séc. XVIII) e
temporais (multas, indemnização do outro nubente, prisão 1294). Todavia, teve que
haver um equilíbrio entre o cumprimento forçado desta obrigação e o princípio da
liberdade de casar. No sentido de forçar o cumprimento iam os interesses do
preterido e da sua família, pois a recusa de casar correspondia a um desrespeito
grave, mesmo a uma injúria, que comprometia a honra. Mas militava no sentido
inverso o caráter pessoal e livre do casamento. Daí que a Igreja aconselhasse os
seus juízes a procurarem soluções consensuais para estes diferendos e que os
práticos – sobretudo depois da lei de 6.10.1784 - aconselhassem as partes a apor
nos contratos de esponsais uma cláusula penal, definindo o valor da indemnização a
pagar no caso de se faltar à promessa, o que facilitaria os acordos 1295. À medida que
se foi restabelecendo o princípio de que a validade do casamento estava
dependente, não apenas do consenso dos nubentes, mas também da autorização
dos pais (v. cap. § 894), foi-se requerendo que estes interviessem também nos
esponsais, dando o seu assentimento. Suplementarmente, podia ser necessária a
autorização do rei, para certas categorias de pessoas, como os donatários de bens da
coroa1296.
3.2.3 Marido e mulher.
§ 872. A primeira das consequências do casamento era a obrigação, para os
dois cônjuges, de se entregarem um ao outro, gerando uma unidade em que ambos
se convertiam em carne de uma só carne ("Erunt duo in una caro" [serão os dois
uma só carne], Genesis, 2). Esta união mística dos amantes já ocorria pelo facto
mesmo do amor que, de acordo com a análise psicológica dos sentimentos
empreendida pela escolástica, fazia com que a coisa amada se incorporasse no
próprio amante 1297. Com o casamento, esta unificação dos amantes ganhava
contornos físicos, pois os cônjuges ficavam - passados dois meses de reflexão, o
bimester, em que nenhum deles podia ser forçado à consumação carnal do
casamento 1298 - a dever um ao outro a entrega corporal (traditio corporis), tornando-
se tal entrega moral e juridicamente exigível (debitum conjugale)1299.
1294 Nomeadamente, de a quebra da promessa ter sido acompanhada de coabitação ou cópula com
1297 Cf. S. Tomás de Aquino, Sum. theol. 1a.2ae, qu. 37, p. 267.2.
1298 O bimester tinha como finalidade permitir a qualquer dos cônjuges uma última reflexão sobre o
ingresso no estado religioso. Mas, subsidiariamente, destinava-se a aumentar, pela espera, o desejo de
consumação (Antonio San Jose, Compendium […], cit., tract. 34, II, n. 110).
1299 As limitações ao dever de entrega eram poucas: doença sexual transmissível, demência,
embriaguez, pendência de divórcio, incapacidade da mulher para dar à luz filhos vivos (mas não já
perigo de parto difícil). Algumas destas causas de inexigibilidade do débito conjugal cessavam sempre
que a recusa causasse perigo de desavença ou de incontinência (e, logo, pecado) do outro cônjuge
(Antonio San Jose, Compendium […], cit., tract. 34, II, n. 135 ss.). Fora destes casos, a exigência de
271
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
relações sexuais tinha que se conformar, como se verá, àquilo que era considerado como um "uso
honesto" do casamento (Antonio San Jose, Compendium […], cit., ibid.; Francisco Larraga, Promptuario
[…], cit., tract. 9, 8).
1300 Segundo a teologia moral da época, as finalidades do casamento eram: (i) a procriação e
educação da prole; (ii) a mútua fidelidade e sociedade nas coisas domésticas; (iii) a comunhão espiritual
dos cônjuges e (iv) - objetivo consequente à queda do género humano, pelo pecado original - o remédio
contra a concupiscência.
1301 "Copula [vel osculi, amplexus, tactus vel delectatio memoriae] ex sola delectatione [...] habet
finem indebitum" (a cópula, beijos, abraços, afagos ou o deleite pelas recordações que visem apenas o
prazer têm um fim indevido), Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, n. 149 e 156 ss..
1302 Sobre a gestualidade sexual, v. Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, ns. 158
ss.: condenação de todas as posições sexuais diferentes daquela que veio a ser conhecida como a
"posição do missionário" (amantes deitados, voltados um para o outro, com o homem por cima). Tal
opção não era arbitrária, mas antes justificada com argumentos ligados à natureza e finalidade do coito
humano: na verdade, esta posição seria a que melhor garantiria a fecundação, denotava a superioridade
do homem e, pondo os amantes de frente um para o outro, realçava a dimensão espiritual do ato.
1303 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, ns. 158/160.
1304 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, 163.
1305 Durante a menstruação, a gravidez e o puerpério (Antonio de San Jose, Compendium [...],
cit., tract. 34, ns. 150-153), durante a Quaresma e dias santos de guarda (ibid. 150).
1306 Em lugar público ou sagrado (salva necessitate ...); o mesmo valia para as carícias (Antonio de San
272
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1307 Sobre o adultério da mulher e do marido, Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis […], cit.,
10, 2 ss..
1308 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 10, 2.
1309 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 7, 6.
1310 Cf. Antonio da Natividade, Stromata […], cit, op. 4, c. 3, n. 2/3, pg. 110. Existem algumas
limitações a este princípio, consubstanciadas em direitos dos filhos (v.g. "alimentos", dotes, bens
integrados em pecúlios próprios), da mulher (v.g. "alimentos" ou reparação de "injúrias"), dos criados
(v.g. "soldadas") e, até, dos escravos (v.g. a vindicação da "liberdade" ou reparação de "injúrias"),
oponíveis judicialmente ao pater.
1311 Cf. em geral, António da Natividade, Stromata [...], cit., op. 9.
1312 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d.1, 3, 36/40.
273
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1313 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d.1, 3, 36/40
1314 Com limitações: a esposa do rei não tinha a dignidade real sugerida em textos do direito
romano (isenção de obediência às leis; regalia), embora pudesse gozar de estatutos especiais, como os
previstos na lei portuguesa para a jurisdições da rainha (Ord. fil. 2, 45; leis sobre a Casa das Rainhas:
10.2.1642; 10.1.1643; v. http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4164777), ou para uma proteção penal
especial. Também o marido da rainha podia não se tornar rei se não cumprisse os requisitos
estabelecidos nas Leis Fundamentais do reino (em Portugal, ter o casal pelo menos um filho varão).
1315 Institutiones iuris civilis, cit., 2, 5, 8.
1316 Os filhos de matrimónios desiguais seguiam a condição do pai, Jorge de Cabedo, Decisiones
que o adultério mútuo e recíproco não se pode compensar, pois "a impudícia na mulher é muito mais
detestável do que no homem", ibid. 3, liv.3, d.4, 2, n.41. É também esta desigualdade, do amor, do
ciúme e da dor que faz com que o marido não seja punido (no secular, pois, no espiritual, sempre
incorre em pecado mortal) se matar a mulher colhida em flagrante de adultério (desde que mate também
o seu parceiro) (Ord. fil.5, 38, pr.; comentário, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, liv.1, d.1, 3,
63).
274
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
mulher 1318.
O que decorria do facto de se considerar como meramente passivo e
recipiente o papel da mulher na gestação, na qual se limitava a contribuir com a
matéria bruta a que o homem daria a forma. Esta hierarquização devia tornar-se
visível na própria gestualidade do ato sexual. De facto, seria contra natura o coito
"praticado de pé, sentado ou em posição invertida, estando o homem por baixo e a
mulher por cima" 1319. Numa palavra, a própria expressão dos corpos devia
evidenciar a posição dominante do homem.
§ 884. A subordinação da esposa manifestava-se, depois, no plano dos atos
externos, de natureza pessoal e patrimonial. Estava sujeita ao poder do seu
marido 1320, o que se traduzia numa faculdade generalizada de a dirigir 1321, de a
defender e sustentar 1322 e de a corrigir moderadamente 1323, embora isto incluísse a
morte pelo marido quando surpreendida em flagrante de adultério (Ord. fil.5,38,pr.;
este direito não se estendia ao pai). Deste poder de correção estava privada a
mulher. Ao explicar porque é que a mulher não podia, ao contrário do marido,
abandonar o marido adúltero (a não ser no caso de "correr o risco de perversão ou
de incorrer em pecado"), um moralista de seiscentos explica que "à mulher não
compete a correção do homem, como a este compete a correção daquela, pois o
marido é a cabeça da mulher e não o contrário" 1324. No plano processual, a mulher
não podia estar em juízo sem a autorização do marido, salvo em casos excecionais
(v. cap. 7.1.7.1 e 7.1.7.2), como para obter a revogação da alienação de imóveis feita
pelo marido sem seu consentimento (Ord. fil.4,48,2) ou para revogar doações do
marido à concubina (Ord. fil.4,66).
§ 885. Este imaginário dos sentimentos familiares constitui o eixo da
economia moral da família de Antigo Regime e do seu estatuto institucional. As
suas grandes linhas - naturalidade, preferência dos laços generativos (agnatícios, de
"parentesco") aos laços conjugais (cognatícios, "de afinidade"), organicidade e
unidade da família, sob a égide do pater - estão predeterminados por esta
antropologia do amor familiar e modelam também as relações entre pais, filhos e
restante parentela.
1318 "O matrimónio só se consuma pela cópula, pela qual os cônjuges se tornam numa só carne, o
que não se verifica sem a emissão de sémen pelo homem [...]”, Antonio de San Jose, Compendium [...],
cit., tract. 34, II, n. 121.
1319 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, II, n. 158.
1320 Sobre a sua natureza jurídica, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 7, 2. A inferioridade
da mulher quanto ao poder sobre os filhos do casal decorre, como reconhecem os juristas na segunda
metade do séc. XVIII, de respeitos que têm mais a ver com os mutáveis costumes das nações do que
com a natureza do casamento (v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 4, 6).
1321 Administrando os seus bens com bastante liberdade (Ord. fil.4, 48; 60; 64; 66; cf. Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 7, 4 e respetivas notas de Lobão); representando-a em juízo (Ord. fil.3,
47).
1322 V. Ord. fil.4, 103, 1; à mulher e às suas criadas, mesmo para além das forças do dote (João
que, em Portugal, mais nas classes populares do que nas elevadas, o castigo frequentemente
degenerava em sevícias, por causa das quais quotidianamente se afadigavam os juízes (Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, 2, 7, 2).
1324 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, II, n. 151.
275
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3.2.4 Filhos.
§ 886. Natural era o amor entre os esposos. Mas natural era também a sua
primordial ordenação em relação à procriação. Daí que, contrariamente a algumas
tradições “contratualistas” que vinham do direito romano, o elemento estruturante
da sociedade familiar fosse o facto natural da geração.
§ 887. Assim, filhos eram, antes de mais, os que o eram pelo sangue,
independente de terem nascido na constância do casamento 1325. Isto é
particularmente verdade em Portugal, onde (contra a regra do direito comum), os
filhos naturais de plebeus estavam equiparados aos legítimos, pelo menos no plano
sucessório (Ord. fil.4,92). Já os dos nobres, embora adquirissem a qualidade nobre
do pai e tivessem direito a alimentos, careciam da legitimação régia para herdar (v.
cap. 5.3.1.1). Mas quanto à principal obrigação dos pais - o sustento e educação -
filhos eram todos, os legítimos, os ilegítimos e até, com alguma limitação 1326, os
espúrios (i.e. aqueles cujos pais não eram nem poderiam ser casados, por existir
entre eles algum impedimento não relevável [impedimento dirimente, v. cap. 3.2.1],
como o estado clerical ou um prévio casamento com outrem) 1327.
§ 888. A qualidade de filho provava-se, principalmente, pelo tratamento como
filho (tractatus filiationis). A doutrina considerava que esta prova era muito difícil, já
que se baseava sempre em conjeturas e presunções. Todavia, a criação, a educação,
o dote, com a fama pública de serem pai e filho, eram indícios muito fortes 1328.
Insuficiente era o facto de o pai confessar a paternidade ou chamar de “filho”. A
prova de que o pai dormia com a mãe ao tempo da conceção podia ser destruída
pela alegação de que ela convivia com vários homens (exceptio plurium)1329.
§ 889. Se todo o grupo familiar estava ligado por deveres recíprocos, os mais
estritos eram, porém, os deveres entre pais e filhos, cuja naturalidade e profundeza
excederiam, inclusivamente, a dos deveres entre os cônjuges 1330.
§ 890. Os principais deveres do paterfamilias para com os filhos correspondiam
às suas obrigações naturais: (i) o de os educar, espiritualmente1331, moralmente1332 e
1325 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Filius”; Bento Pereira, Promptuarium
[…], cit., s. v. “Filius …”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 4 a 6.
1326 No caso dos filhos legítimos e naturais, os alimentos eram devidos de acordo com a qualidade
e possibilidades do pai; nos espúrios apenas segunda a sua necessidade (ut fame non pereant), João Baptista
Fragoso, Regimen […], cit., p. 3, p. 153 (o A. afasta-se desta opinião, que seria a recebida, sendo
favorável à plena equiparação entre todos).
1327 Para além dos naturais, filhos eram ainda os que tivessem sido objeto de adoção, nos termos
de institutos que vinham do direito romano, onde tinham tido grande difusão. Cf. João Baptista
Fragoso, Regimen […], cit., p. 3, liv.1, d. 2, 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 5, 9; a
adoção, por ser uma graça "contra direito" devia ser autorizada pelo rei (i.e. pelo Desembargo do Paço,
Ord. fil.1, 3, 1).
1328 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 76, n. 6 e ss.; Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,
1330 Cf. Antonio da Natividade, Stromata [...], cit., op. 5, per totum.
1331 Cf. sobre o seu conteúdo (doutrina sagrada; pelo menos, o credo, o decálogo, o padre-nosso
e os principais mistérios da fé (João Baptista Fragoso, Regimen [...]. cit., p. 3, liv.1, d.1, 6, pg. 21 s.).
Também, Antonio da Natividade, Stromata [...], cit., op. 10).
1332 João Baptista Fragoso, Regimen [...]. cit., p. 3, liv.1, d.1, 4, n. 52, pg. 15 (sobre a moralidade
das filhas).
276
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1333 V. Ord. fil.4, 97, 7; v. também, sobre o alcance desta obrigação paterna, João Baptista Fragoso,
Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d.1, 6, ns. 96 ss. (em Portugal, seria costume dever o pai custear os
estudos e livros universitários do filho, mesmo que não concordasse com eles). Tudo isto limitado,
naturalmente, pela condição familiar e pelas posses do pai. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), no
Tratado das acções recíprocas […], cit., 47 ss. entende que os pais nobres estão obrigados a pagar os estudos
até ao grau de bacharel ou de doutor ( 48).
1334 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, liv.1, d.2, 1; Antonio da Natividade, Stromata [...],
Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), no Tratado das acções recíprocas […], cit., 56.
1336 Cf. António da Natividade, Stromata [...], cit., op. 5.
1337 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, l liv.1, d.2, 8, ns, 226/227, p. 65; e liv.2, d.3, 2,
n. 44, p. 86.
1338 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, liv.1, p.1, d.1, 2, n.21.
1339 Em contrapartida, o pai podia castigar os filhos desobedientes, embora - tal como no caso da
mulher - nos limites de uma moderata domestica correctio, não lhes causando feridas, mutilações ou a morte.
277
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1340 Cf. anedotas sobre o tema em "Descrição de Lisboa [...]. 1730", Castelo Branco Chaves (org.),
mas o sentido geral da teologia moral da Segunda Escolástica, dominada pelos jesuítas, era, de facto,
liberalizador quanto a este ponto.
1343 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, II, n. 71.
1345 Pois, além da deserdação das filhas, nos termos aí consignados, cominava ainda a deserdação
278
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
dos filhos, qualquer que fosse a sua idade (!), que se casassem, fosse com quem fosse, indigno ou
digno, sem consentimento dos pais (Collecção chronologica dos assentos.. ass. 282).
1346 Cf. v.g. as leis abolindo a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos, 25.5.1773 e
15.12.1774; e o dec. contra os "puritanos" de 1768.
1347 Para mais detalhes, v. o meu artigo "Carne de uma só carne” […]”, cit..
1348 Mesmo a morte do pai, não era suficiente para atribuir ao filho uma plena capacidade,
colocando o filho alieni iuris (i.e. sujeito ao pátrio poder) sob a patria potestas do avô ou, na falta deste, de
um tutor ou curador, sendo menor ou incapaz.
1349 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., 3, liv.2, d. 3, 3, ns. 1 ss. [sobre o termo do
poder paternal] e 82 a 114 [sobre este último ponto]; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,
5, 21.
1350 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 5, 22.
1351Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 72, n. 3 (os filhos que se casam saem do
poder paternal segundo o estilo de Portugal, de Castela e da Galiza); Tomé Valasco, Allegationes [...],
cit., alleg. 29, 25 ss..
1352 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Emancipatio”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
279
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1354 Cf. Tomé Valasco, Allegationes [...], cit., alleg. 29, n. 18; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p.
1, dec. 80, n. 4,
1355 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 72, n. 1. Sobre a carta de emancipação,
qualidade de filho -, extinguia-se pela emancipação, mas não por carta de suprimento de idade (venia
aetatis). Cf. ainda Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 5, 24: davam-se no caso de
incapacidade do pai ou ao órfão (causa cognita e com idade mínima de 20 anos nos homens e 18 nas
mulheres, v. Ord. fil.3, 42, pr; Reg. Des. Paço, § 13; alv. 24.7.1713).
1357 Cf. Tomé Valasco, Allegationes [...], cit., alleg. 29, 39 a 41 e 46.
1358 C.8 De patria potestate, 46; I. De patria potestate, 1, 9; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis
2, 5, 27.
280
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1360 Embora tal uso atribuísse ao primogénito uma certa "preeminência e dignidade", João Baptista
histórica […], cit., 681 s.; para Portugal, ibid. 694 ss..
1362 Daí que, em geral, se excluíssem as mulheres da sucessão dos morgados, dada a sua
incapacidade para transmitir o nome: "a família aumenta pelos varões em dignidade e honra e destrói-se
e extingue-se pela mulheres; e por isso se diz que as mulheres são o fim da família" (Miguel de Reinoso,
Observationes [...], cit., ob. 14, ns. 9/11).
1363 Ord. fil.4, 100, 5; Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, II, 4.
origem "hispânica" da instituição (em Portugal, L. 15.9.1557; Ord. fil.100, 4; em Castela, Leis de Toro
[1535] e Nova rec.V, 7.). Para Castela, v. Bartolomé Clavero, Mayorazgo. Propriedad feudal en Castilla. 1369-
1836, Madrid, Siglo XXI, 1989.
1366 Gaetano Filangieri, Scienza della legislazione, 1780, I.18, 10; cf. para a discussão, Lobão,
281
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
sujeitos aos poderes do mesmo paterfamilias1368. Num sentido um pouco mais vasto,
designa os agnados.
§ 912. A fonte da maior parte da doutrina moderna quanto à definição é
Gaius: “as personas unidas por parentesco do sexo masculino: por exemplo, o
irmão nascido do mesmo pai, o filho ou o neto do mesmo, igualmente o tio
paterno e o filho do tio paterno e o neto do mesmo. Em contrapartida, aqueles que
estão unidos por parentesco do sexo feminino não são agnados, tendo outra
designação, de acordo com o direito natural, a de cognados. Assim, portanto, entre
o tio materno e o filho da irmã, não há agnação, mas cognação. Igualmente, o filho
da tia paterna ou materna não é meu agnado, mas cognado e reciprocamente e eu
estou unido a eles pelo mesmo direito, já que os que nascem seguem a família do
pai e não a da mãe1369. Também se podia dizer que era constituída por todos os que
tinham saído da mesma casa1370. Sammuel Coceius, já no período iluminista,
sintetiza do seguinte modo os direitos dos agnados:- "Deste estado da família
decorrem vários direitos. Assim, 1º, todos os privilégios que aderem à família,
também pertencem aos agnados, do mesmo modo que o uso do nome e dos
brasões, etc.; 2º, as injúrias feitas à família podem ser vingadas também por eles, 3º,
os membros da família devem defender aqueles que não o podem fazer, pois nisto
consiste a tutela legítima"1371). A família agnatícia era juridicamente relevante até ao
6º grau1372, pela linha masculina, incluindo os adotados 1373. Tudo isto tinha
correspondente no direito português1374. Esta conceção de família, fundada em
princípios de sujeição política e linhagísticos - e a que era sensível, sobretudo, o
grupo nobiliárquico - correspondia, basicamente, ao conceito de linhagem.
§ 913. Em sentido mais lato ainda - que era o do direito canónico 1375, depois
recebido, para certos efeitos, pelo direito civil – a família abarca todas as pessoas
1368 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, iv.iii-v, em que se define família como um
conjunto de várias pessoas que estão sob o poder de uma só, sujeitas tanto pela natureza como pelo
direito.
1369 “Sunt autem agnati per virilis sexus personas cognatione iuncti, quasi a patre cognati, veluti
frater eodem patre natus, fratis filius reposve ex eo, item patruus et patrui filius et nepos ex eo. At hi,
qui per femini sexus personas cognatione coniunguntur, non sunt agnati, sed alias naturali iure cognati.
Itaque inter avunculum et sororis filium non agnatio est, sed cognatio. Item amitae, materterae filius
non est mihi agnatus, sed cognatus, et invicem scilicet ego illi eodem iure coniungor, quia qui
nascuntur patris non matris familiam secuntur”. Gaio, Institutiones, 1, 156.
1370 D.50, 16 Ulp. De verborum significatione, 195, § 2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,
4, 5.
1371 Samuel Cocceius, Iustitiae naturalis et romanae novum systema, cit., liv. 3.cap.4, sect.5, § 170 (p. 93
da ed. 1762).
1372 Os graus eram contados por gerações. Por direito civil, subia-se por um ramo da árvore da
família de um parente até ao ascendente comum e descia-se, por outro ramo, deste para o outro
parente. Por direito canónico, só se contava um dos ramos, o mais extenso.
1373 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 7, 26. Cf. para os agnati e cognati em Roma,
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Cognati.html.
1374 Dever de auxílio mútuo (v. Ord. fil.5, 124, 9), direitos sucessórios (Ord. fil.4, 90, 94, pr. 96),
direito de reagirem judicialmente contra a usurpação de armas e apelidos (Manuel Álvares Pegas,
Tractatus de inclusione […], cit., V, c. 116).
1375 O direito canónico alargava ainda a noção de família - e alguns dos correspondentes deveres -
aos pais espirituais, condição que se adquiria pelo batismo, confissão e crisma, além de englobar
também os tutores e os mestres (João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p. 3, liv. 1, d. 1, 4, n. 50).
282
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ligadas pela geração (agnados) ou pela afinidade (cognados). A família cognatícia era,
por isso, o conjunto de pessoas, varões ou fêmeas, que estavam unidas pelo
parentesco consanguíneo ou natural, ou seja, por procriação e nascimento.
Compunha-se de um tronco comum e de duas linhas, a descendente (os que
descendem uns dos outros) e a colateral, ou seja os que não descendem uns dos
outros, mas que têm um ascendente comum (como os irmãos). Como a sujeição ao
pater era irrelevante, a família cognatícia incluía as linhas femininas.
§ 914. Num sentido ainda mais vasto, família representa o conjunto de todos
os que estão ligados entre si por laços generativos (de sangue) ou por afinidade
(casamento). O conceito é usado, mas não tem relevância jurídica. Nem tinha a ver
o conceito de família alargada, como comunidade de vida e de bens de todos os
irmãos e descendentes que se pensa poder ter existido em comunidades rurais,
favorecida pela existência de baldios e pastos comuns e pelo sistema de
encabeçamento da enfiteuse. As Ordenações (Ord. fil.4,44,1) previam este tipo de
sociedade universal; mas ela não pertencia, claramente, ao universo com que os
juristas letrados lidavam. Os mais tardios, consideravam-na extravagante e
exótica 1376; os mais antigos pouca atenção lhe dedicavam (aparte o caso da
comunhão geral de bens entre os cônjuges, que era o regime matrimonial "segundo
o costume do reino", Ord. fil.4,46,pr.; 951377).
§ 915. "Família" era, então, uma palavra de contornos muito vastos, nela se
incluindo agnados e cognados, mas ainda criados, escravos e, até, os bens 1378. "La
gente que vive en una casa debaxo del mando del señor della", eis como definia
família o Dicionario de lengua castellana, da Real Academia de Historia (1732),
invocando as Part. VII, tit. 33, l. 6: "Por esta palabra familia se entiende el señor de
ella, e su muger, e todos los que viven so el, sobre quien ha mandamiento, assi
como los fijos e los servientes e otros criados, ca familia es dicha aquella en que
viven mas de dos homes al mandamiento del señor". Mas acrescentava, em
entradas seguintes, outras aceções: "numero dos criados de alguém, ainda que não
vivam dentro da casa"; "a descendência, ascendência, ou parentela de alguma
pessoa"; "o corpo de alguma religião ou comunidade"; "o agregado de todos os
criados ou domésticos do rei"; fazendo ainda equiparar "familiar" a amigo 1379.
3.2.6 Criados.
§ 916. Em relação a toda esta universalidade valiam os princípios inicialmente
enunciados, nomeadamente o da unidade sob a hegemonia do pater, ao qual
incumbiam direitos-deveres sobre os membros e as coisas da família.
1376 "Confesso que nunca vi provada claramente, nem julgada no foro tal sociedade universal tacita
com effeitos de expressa, nem tão pouco jámais vi escriptura de sociedade universal expressa", escreve
Lobão (Tratado das acções recíprocas […], cit., 789); mas não deixa de expor uma série de regras sobre as
partilhas de sociedades de amanho comum das terras paternas, constituídas, nomeadamente em meios
rústicos, entre irmãos, com suas mulheres e filhos (cf. 777 e ss.; no caso de os irmão serem "nobres",
785).
1377 Mas diferente de uma sociedade familiar universal, Álvaro Valasco, De partitionibus […], cit.,
cap. 5, n. 8.
1378 Na expressão [actio] familiae erciscundae (ação para dividir a família), a palavra significava,
obviamente, os bens. Alguns estendem os deveres familiares até ao ponto de abrangerem o dever de ser
útil aos vizinhos (Antonio da Natividade, Stromata […], cit., op. V, cap. 13.).
1379 Sobre o conceito de família v. ainda, Nuno Monteiro, "Os sistemas familiares", cit., 279; e,
283
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 917. Era assim quanto aos criados, ligados ao dominus por uma relação que
excedia em muito a de um simples mercenariato, aparecendo envolvida no mundo
das fidelidades domésticas. Não é que o direito português ainda conhecesse a
adscrição (cf. Ord. fil.4,28). Mas as relações entre do senhor e os servos
desenvolviam-se no ambiente da família patriarcal (da "casa") que criava, de parte a
parte, laços muito variados.
§ 918. Desde logo, "criados" (famuli, "família") eram, tradicionalmente, aqueles
que viviam com o senhor "a bem fazer", ou seja, pelo comer e dormir (v. 3.1.1.3 e
3.1.1.4; § 961).
3.2.7 A expansão do modelo familiar.
§ 919. Muito do imaginário e dos esquemas de pensamento a que acabamos de
nos referir transvazavam largamente o domínio das relações domésticas, aplicando-
se, nomeadamente, ao âmbito da república.
§ 920. Como se diz na época, "sendo a casa a primeira comunidade, as leis
mais necessárias são as do governo da casa"1380; e sendo, além disso, a família o
fundamento da república, o regime (ou governo) da casa é também o fundamento
do regime da cidade. Este tópico dos contactos entre "casa" e "república" - e,
consequentemente, entre a "oeconomia", ou disciplina das coisas da família, e a
"política", ou disciplina das coisas públicas 1381 -, a que a historiografia tem dado
muito destaque 1382, explica a legitimação patriarcal do governo da república, em
vigor durante quase todo o Antigo Regime, bem como o uso da metáfora do
casamento e da filiação para descrever e dar conteúdo às relações entre o príncipe e
a república e entre o rei e os súbditos. E constitui também a chave para a
compreensão, num plano eminentemente político, de uma grande parte da literatura
que, aparentemente, se dirige apenas ao governo doméstico.
§ 921. Zona de expansão do modelo doméstico era também o domínio das
relações internas à comunidade eclesiástica. Não só a Igreja (v. cap. 2.4.4) era
concebida como uma grande família, dirigida por um pai espiritual (Cristo ou o seu
vigário, o Papa [note-se o radical da palavra]) e regida, antes de tudo, pelas regras
do amor familiar (fraterna disciplina, fraterna correctio), como as particulares
comunidades eclesiásticas obedeciam ao modelo familiar. Às congregações
religiosas chamavam-se "casas"; os seus chefes eram "abades" (palavra que significa
"pai") ou "abadessas" (ou "madres"), a quem os religiosos deviam obediência filial.
Os religiosos eram, entre si, "frades" (fratres, irmãos) ou sorores (sorores, irmãs).
Sobre eles impendiam incapacidades e deveres típicos dos filhos família. A
disciplina interna da comunidade era - sobretudo nas congregações femininas em
que as madres não dispunham de jurisdição, por serem mulheres - concebida como
uma disciplina doméstica, competindo aos superiores os poderes de que os pais
dispunham em relação aos filhos. Ao séquito de um dignitário eclesiástico (um
bispo, um cardeal), chamava-se a sua “família”. Os agentes / informadores do
[…]”;“Disciplina rei familiariae”: a economia […]; António Manuel Hespanha, "Justiça e administração
entre o Antigo Regime e a revolução" […]; Cesare Mozzarelli (ed.), "Famiglia" del príncipe […].
284
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
285
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
286
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado das acções recíprocas […], cit., p. 22 (este mais restritivo quanto aos
deveres dos filhos).
1392 Nos seus vários tipos de castrense, quasi castrense, adventício e profecticio, enumerados por ordem
decrescente de poderes de disposição dos filhos; cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1,
d. 2, § 8, ns. 229 ss. (p. 66); Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado das acções recíprocas […], cit.,
cap. 13. Sobre a capacidade para testarem, doarem e se obrigarem, João Baptista Fragoso, Regimen [...],
cit., p. 3, liv.1, d. 2, § 8, ns. 236 ss.; p. 3, liv.1, d.2, §§ 9 e 10.
1393 A não ser nos casos previstos em Ord. fil.4, 98: se o pai lhes doasse o usufruto que tinha nesses
bens; se algo lhes fosse dado ou deixado com a condição de o pai não ter o usufruto; se o pai não queria
que o filho aceitasse a doação dos bens adventícios; se lhes fosse deixado apenas o usufruto de certos
bens; se os bens tivessem sido doados pelo rei; nas coisas herdadas, conjuntamente com o pai, de
irmão ou irmã, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d. 2, § 8, n. 230.
1394 De qualquer modo, não podiam administrar esses bens senão em benefício do pai, não os
podendo tão pouco vender sem licença do pai, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d.
2, § 8, n. 231
287
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1395 Não assim no direito castelhano, Lei 5ª de Toro, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p.
menores (impuberes) tinham a capacidade dos menores: em geral, eram incapazes, a não ser se próximos
da maioridade, caso em que ficavam obrigados naturalmente: não podiam ser acionados, mas se
cumprissem, não podiam repetir o que tivessem pago (obligatio naturalis).
1397 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 1, 8; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),
1399 V. Ord. fil.4, 46. Assim, Álvaro Valasco é de opinião que, segundo o direito português, tudo
entra na comunhão, salvo se os nubentes convencionarem o contrário (Álvaro Valasco, Decisiones [...],
cit., cons. 175, n. 3; Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1225).
1400 Se Melchior Febo, Decisiones [...], cit., defendia que o regime de bens não se podia mudar
(Decisiones […], dec. 170, n. 16), outros tinham a opinião contrária (cf. Bento Pereira, Promptuarium
[…], v. “Matrimonium”, n. 1221).
288
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1401 Cf. síntese, em Loredana Garlati, “La famiglia tra passato e presente”, em
www.storiadeldiritto.org/uploads/5/9/4/8/5948821/garlati_2011_famiglia.pdf.
1402 Cf. Gabriel Pereira da Castro, Decisiones […], dec. 53, n. 4. 4. Por isso, no matrimónio in
forma iuris contractum, os legados e doações não se comunicavam, n. 6, mas apenas os seus frutos, n. 13.
Cf. sobre o regime de bens do direito comum http://www.solofrastorica.it/campanilematrim.htm
1403 Álvaro Valasco, Consultationes […], cit., cons. 175, n. 2.
1404 Um exemplo: a opinião de Álvaro Valasco de que as leis de Espanha sobre a comunicação aos
dois cônjuges dos bens adquiridos na constância do matrimónio corrigiriam o direito canónico e, por
isso, seriam odiosas (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103, ns. 5-6).
1405 Cf. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], tract. 2, disp. 422-423, 433-434, 476;
Fernão Rebelo, De obligationibus iustitiae […], p. 2, liv. 6; Manuel Barbosa, Remissiones […], ad 4, 46;
Álvaro Valasco, Praxis partitionum […], cap. 4.
289
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1409 Não já de um casamento apenas aparentemente válido (casamento putativo), ainda que os
cônjuges não soubessem da causa da sua nulidade (i.e. estivessem de boa fé) (Ord. fil. 4, 46, 1).
1410 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1210 (não é necessária
escritura, provando-se por testemunhas). Em todo o caso, valia a regra geral da exigência de escritura
pública para negócios sobre imóveis (Ord. fil.3, 59).
1411 Em sentido diferente: António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 124; Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 137, n.8 (refere a opinião mas não concorda). Cf. Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis [...], cit., 2, 8, 9.
1412 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1221 (remete para Melchior
contrário do que se passa no direito de Castela] (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103; Bento
Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1228). Esta decisão de Cabedo parece implicar
que o disposto em Ord. fil.4, 95, 1 (em que se excluíam do inventário e partilha os bens da coroa e outros
bens de nomeação) apenas dizia respeito aos casamentos em regime dotal.
290
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1414 Assim, a cláusula "que se partam os adquiridos quer se adquiram por título oneroso, quer
lucrativo" era supérflua, Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1220, 1221.
Cf. Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, cit., cap. 5, ns. 9 e 14.
1415 Cita Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, cit., cap. 5, ns. 9 e 14.
1416 Além do caso da bínuba quinquagenária, de que se falará, havia uma única situação em que a
qualidade dos cônjuges excluía a comunhão: a do casamento de escrava com livre, em que a escrava que
casasse não beneficiava da comunhão de bens, Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v.
“Matrimonium”, n. 1228 (também Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1. dec. 150, n. 1).
1417 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 166, n. 7. Sobre a comunicação das rendas de
ofícios, em geral, v. a cons. 166. n. 5; Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Matrimonium”, n.
1219.
1418 No casamento por dote e arras, as dívidas nunca se comunicam (Ord. fil.4, 95, 4). Cf. Pascoal
entravam na comunhão os bens que não se podiam alienar, o que parece corresponder ao rigor
conceitual de inalienabilidade: bens de morgado, domínio direto de bens enfitêuticos, bens da coroa
(abonando-se com Ord. fil.4, 95, 1), embora se comunicassem os seus frutos, bem como as despesas e
benfeitoria feitas neles (Ord. fil.4, 97, 24). Porém, Álvaro Valasco é expresso em sentido inverso (Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103). A indecisão proviria da frequente generalização das soluções de
direito comum ao direito particular da comunhão reinícola, até porque nos grupos sociais de elite – em
que bens de nomeação eram frequentes – se praticava, sobretudo, o regime dotal.
291
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
por troca de bens próprios de cada cônjuge ou por força dos rendimentos desses
bens próprios. Por sua vez, no direito comum, como havia patrimónios autónomos
dentro da massa dos bens da família (como o dote), era importante saber por força
de que bens ou rendimentos se adquiria um novo bem, pois este devia entrar no
património por conta do qual fora adquirido1420. Como no estilo da literatura
jurídica de então, as citações aparecem descontextualizadas, é frequente encontrar
declarações gerais de que certos bens não se comunicavam 1421, quando no texto
original elas diziam respeito à situação no direito castelhano de comunhão de
adquiridos ou ao direito comum de autonomia do dote. É importante realçar como
estas confusões promoviam as soluções de direito comum e de direito castelhano,
uma e outra mais favoráveis à extensão do direito de disposição patrimonial livre do
marido, pois tendiam a incluir nos bens próprios do marido as novas aquisições, já
que se presumia terem sido feitas por conta dos seus bens e do seu trabalho.
§ 952. Para a generalidade dos autores mais antigos, a comunicação dos bens
apenas se verificava na constância do matrimónio. Depois de separação por sevícias
ou adultério, tendo cessado a comunhão de corpos, cessaria também a comunhão
de bens, pelo que os bens adquiridos depois de separação seriam próprios de cada
cônjuge. Todavia, não já por causa da natureza da situação matrimonial, mas como
pena, o cônjuge culpado da separação continuava a comunicar os bens 1422. Pascoal
de Melo iria ter uma opinião diferente, mais apegada ao conceito de casamento e de
comunhão, defendendo a continuação da comunicação dos bens, já que a separação
não punha fim ao estado de casado, apenas o suspendendo. Em contrapartida,
rejeitava que a comunicação atingisse apenas o cônjuge culpado, como se fosse uma
pena, pois esta pena não estava prevista na lei, algo que, agora, começava a ser um
princípio jurídico muito relevante.
§ 953. Mesmo no caso de segundas núpcias, em que a comunhão podia
prejudicar os filhos do primeiro matrimónio, dar-se-ia a comunhão de bens, só
estando garantida aos filhos do casamento anterior a sua legítima nos bens do pai
1420 Atento o direito comum (v. Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit., tract. 2,
disp. 422-423, 433-434, 476; Rebelo, p. 2, liv. 6), os bens adquiridos na constância do matrimónio
eram do adquirente quando claramente se constatasse que tinham sido adquiridos com coisas ou
dinheiro seus. Presumia-se que os adquiridos pela mulher tinham sido adquiridos por força dos bens do
marido (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103, ns. 3-4.
1421 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 170, ns. 35-37, 45) afirma que, embora houvesse
pacto de comunhão, este pacto não se estendia às heranças, sobretudo à dos pais, pois os bens
herdados por testamento ou ab intestato não pertenciam à sociedade (íbid. n. 51); mas este é, por ventura,
o regime do direito castelhano, não o das Ordenações (v. António da Gama, Decisiones […], cit., dec.
358 (a cláusula de comunhão compreendia todos os bens que os cônjuges adquirissem por herança dos
seus parentes). Gabriel Pereira de Castro (Decisiones […], cit., dec. 50, n. 7), afirmava que podia alienar
os bens aquele que os adquirira; isto seria verdade, mas apenas para os bens próprios de cada cônjuge,
nos regimes em que eles existissem, o que não era o caso da comunhão geral portuguesa. António da
Gama afirmava que, quando se desse a separação, os bens adquiridos por qualquer dos cônjuges não
entravam na partilha (Decisiones […], cit., dec. 357, n. 1), o que só era verdade no regime do direito
comum. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 115, n. 30), dizia que nem o ofício nem os seus frutos
eram comunicados, mas pensando nos regimes do direito comum, eventualmente no castelhano. Bento
Pereira (Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1233) refere a opinião de que as dívidas contraídas
antes do casamento eram pagas apenas pelos bens do devedor, a menos que fossem contraídas em
razão do futuro casamento, o que era o regime do direito comum (e do dote), mas não o da comunhão
portuguesa. Há muito mais exemplos.
1422 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 357.
292
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ou mãe 1423.
Fazia exceção o regime de bens das segundas núpcias de viúva de mais
de 50 anos, em que só se comunicavam os bens adquiridos, por se admitir que os
seus herdeiros não deviam ser prejudicados por um casamento tão
extemporâneo1424 (“bínuba quinquagenária”, Ord. fil.4,105).
§ 954. Como os bens eram comuns, nenhum dos cônjuges podia praticar em
relação aos mais importantes deles - os imóveis - atos de disposição sem
autorização do outro (Ord. fil.4,48,pr.). Tais atos eram nulos, podendo o cônjuge
que não tivesse dado a autorização pedir a anulação da alienação e reivindicar de
terceiro a coisa alienada. Como a esposa não podia ir a juízo sem autorização do
marido, carecia dela para propor estas ações, embora o juiz pudesse substituir-se ao
marido no caso de este não dar autorização (Ord. fil.3,47,4). Todas as intervenções
judiciais relativas a direitos sobre imóveis do casal seguiam a mesma regra do duplo
consentimento1425.
§ 955. Constituída esta comunhão de bens, vinha ao de cima o lugar de
direção do marido como chefe da família.
§ 956. Na verdade, pertencia ao marido, como cabeça (caput) e principal
(prínceps) da família, a administração dos bens. Era neste sentido que Melchior Febo
dizia que o domínio da mulher sobre os bens comuns era um domínio apenas
virtual (in habitu) e não efetivo (in actu)1426, concluindo daí que o marido era o
verdadeiro proprietário dos bens, podendo dispor deles, salvo no caso de intuito
fraudulento contra o património familiar1427. Comum era, porém, outra opinião,
que distinguia proprietário e administrador. A mulher era companheira (socia) e não
escrava do marido, pelo que o direito reconhecia a necessidade da sua intervenção
nos atos mais importantes de disposição do património, suscetíveis de o prejudicar
mais gravemente. Isto acontecia com a alienação de imóveis (na qual se
compreendia a venda, a doação, o aforamento, a hipoteca, e os arrendamentos de
longo prazo: Ord. fil. 4,48) ou de móveis de maior valor (Ord. fil.4,64) e com a
garantia pessoal de obrigações de outrem (fiança: Ord. fil.4,60), a qual colocava o
património do casal na situação de responder por dívidas de outrem (Ord. fil.4,60;
64; 66)1428. Já quanto aos imóveis, podiam ser alienados apenas pelo marido, desde
que o negócio não fosse claramente prejudicial ao casal. A alienação sem
consentimento era nula, perdendo o comprador o preço (Ord. fil.4,60 e 64). O
consentimento da mulher tinha que ser expresso 1429.
1423 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 8, 2. Este regime terminou com a CL
1427 Melchior Febo, Decisiones […], dec. 115, ns. 8-10, 34.
1428 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 7, 4. Bento Pereira, Promptuarium […], cit.,
s. v. “Matrimonium”, n. 1229 ss. (poderes de alienação); ibid. 1218; Jorge de Cabedo, Decisiones […],
cit., p. 1. dec. 109, n.1 (doação de imóveis); Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 55, ns.
1-2 (doação do usufruto).
1429 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s.v. “Matrimonium”, n. 1229.
293
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1430 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec. 106; Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec.
9.
1431 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 8, 19.
1432 Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1230; António da Gama, Decisiones
[…], cit., dec. 357, n. 2.
1433 O “divortium” separa quanto ao thoro (toro, cama), mas não quanto ao vínculo, Bento
1436 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1244 ss..
1439 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1225; Melchior Febo,
parafernais profetícios (entregues pelo pai à filha e que a ele deviam retornar, dissolvido o matrimónio)
ou adventícios (adquiridos de outra forma pela mulher) tinha-se tornado obsoleta pelo facto de a filha
adquirir a maioridade (e, logo, a titularidade dos seus bens) com o casamento.
294
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1441 Uma lógica idêntica “de sustento” tinha o dote espiritual, com que o pai devia beneficiar as
1443 Cf. a indicação de autores de uma e outra opinião em Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,
cons. 150, ns. 14-17 e 23.
1444 “Matrimonium non debet esse sine dote”, escreve Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec.
145, n. 10.
1445 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 31, n. 15 (o juramento de casar, sem
1447 “Mulier nubes simpliciter secundum consuetudinem regni videtur bona sua in dotem dare, nisi
sit quinquagenaria, & filios habeat primi matrimonii. Quia tunc solum videtur dare in dotem tertiam
suorum bonorum”, Antonio da Gama, Decisiones […], cit., dec. 320, n. 3. (Bento Pereira,
Promptuarium […], n. 489).
1448 Alguns autores entendiam que o dote das filhas naturais podia ser menor; mas outros,
fundados em que a obrigação de dotar era de direito natural e que, perante este, todos os filhos eram
iguais, recusam a discriminação dos ilegítimos (cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9,
6).
1449 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 471
1451 Recaía também sobre a mãe (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 7).
1452 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, ad t. 9, 8, rubr. p. 460.
1453 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, ad t. 9, 5 e 6, rubr. p. 451.
1454 As causas de deserdação justificam a não dotação (Bento Pereira, Promptuarium […], n. 483).
1456 Detalhes: Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, ad. tit. 9, 7, rubr.
p. 457.
295
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 963. O dote constituía-se por um pacto (Ord. fil.4,46,pr.)1457. Este pacto dotal
era irrevogável, mesmo nos casos de ingratidão da filha 1458. Não era exigida uma
forma especial, mas devia ser expresso, pois os bens levados pela mulher para o
casamento presumiam-se parafrenais. No entanto, tinham que se respeitar as
formalidades requeridas pelas Ordenações, em função da natureza dos bens (por
exemplo, escritura pública: Ord. fil.3,59, pr.; casos especiais, 11, 12 e 15).
§ 964. Era questão discutida a de definir o âmbito dos bens dotais. Para uns,
todos os bens que a mulher trazia para o casamento eram dotais, salvo cláusula no
pacto do dote que considerasse alguns como parafernais. Era a opinião de Jorge de
Cabedo e de Pegas1459, nomeadamente, que invocavam o texto da Ordenação 1460.
Neste caso, como bens parafernais ficariam apenas os que a mulher tivesse
adquirido depois de casada. Para outros, pelo contrário, seriam parafernais todos os
bens não incluídos expressamente do dote. A primeira opinião era mais favorável à
mulher, pois alargava a proteção dotal a mais bens1461.
§ 965. Bens dotais podiam ser quaisquer bens que estivessem no comércio e
que, portanto, fossem idóneos para prover ao sustento da família: bens móveis ou
imóveis, usufrutos, juros e tenças, bens recebidos em enfiteuse 1462 e mesmo as
expectativas de ofícios ou de sucessão de morgados 1463. Eram ainda dotais os bens
adquiridos com dinheiro dotal, se isto estivesse convencionada ou fosse
expressamente declarado no ato de compra. Com autorização (dispensa) do
Desembargo do Paço (Regimento, artº 40), os bens do dote podiam trocar-se por
outros, que ficavam com a mesma natureza. O crescimento dos bens dotais, pelos
seus frutos e boa administração, passava a integrar o dote se isso tivesse sido
convencionado1464; aliás, pertencia ao marido.
§ 966. O montante do dote esteve sujeito a limites, uns de direito civil e outros
de direito de polícia. Os limites de direito civil decorriam da sua natureza – que era
a de assegurar o sustento da família, num nível adequado (côngruo com) à condição
social dos nubentes (medida, sobretudo, pela condição da noiva) 1465 - e da
necessidade de garantir as legítimas dos outros filhos. Por isso, o dote devia ser
1457 Havia outros pactos pré-nupciais ou esponsalícios: a dação para casamento, as arras, o pacto
1459 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 183, n. 3; Antonio de Sousa de Macedo,
Decisiones [...], cit., dec. 21; Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses […], cit., vol. 3, cap. 36, n. 53.
1460 “Bona dotalia censetur omnia, quae mulier, seu uxor, secum attulit si per contractum dotis
nupsit”; Ord. fil.4, 47, pr.: "todos os bens que a mulher trouxer em seu dote, quando casa por contrato,
e não por costume do Reino").
1461 Será a solução adotada pelo Code civil, arts. 1540 e 1541.
1463 Pascoal de Melo exceptuava dos bens que podiam constituir o dote os morgados, desde que
não fosse respeitada a ordem de sucessão prevista na sua instituição, os bens da coroa sem autorização
do rei (Ord. fil.2, 35, 18) e os bens enfitêuticos, sem autorização do senhorio direto (Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., ii, 9, 11). A razão era a da sua inalienabilidade – pelo que não podiam ser
dados à esposa. Esta última restrição não aparece nos autores mais antigos, alguns dos quais defendem
explicitamente o contrário.
1464 A doutrina dividia-se.
1465 Sobre a congruidade do dote, com indicação da doutrina anterior, Lobão, Notas a Melo […],
296
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
côngruo e não ofender as legítimas dos outros filhos 1466, estando limitado à legítima
da filha dotada mais aquela massa de bens de que os pais podiam dispor livremente
– a terça ou quota disponível (v. Ord. fil.4,97,3; cap. 5.2)1467. A partir de meados do
séc. XVIII, surgem leis pragmáticas impondo limites aos dotes, que se tinham
tornado excessivos, pondo em risco a solvabilidade das grandes casas 1468.
§ 967. O dote era, em princípio, dado por conta da legítima da filha dotada 1469,
devendo os bens dotais vir à colação e ser computados para estabelecer as quotas
hereditárias dos vários filhos.
§ 968. Os bens dotais, que ficavam na propriedade da mulher 1470, eram
administrados pelo marido tendo em vista as suas finalidades1471. Daí que, mesmo
por meio de atos de mera administração não devessem ser usados para outros fins,
como o pagamento de dívidas e satisfação de obrigações de qualquer dos cônjuges
anteriores ou não relacionadas com o matrimónio. Os poderes do marido eram os
de um administrador. Por isso, em princípio, não devia poder alienar os bens do
casal, sem consentimento da mulher. Mas o regime dotal era ainda mais estrito, pois
o dote estava protegido contra a dissipação para outro fim que não fosse o do
sustento do casal, ainda que com o consentimento de ambos os cônjuges 1472. Na
verdade, o direito romano proibia a alienação de bens dotais, por qualquer dos
cônjuges, ainda que com o consentimento do outro, dando à mulher uma ação para
os reivindicar1473, no caso de o marido os alienar. Como havia a prática de as
mulheres se obrigarem a não pedir a anulação das alienações destes bens, os juristas
medievais mais antigos discutiram muito se este juramento seria válido. Para evitar
que as mulheres violassem os tais pactos jurados (e, na verdade, para proteger os
maridos que violassem a interdição de vender bens dotais sem consentimento das
1466 Por isso, os bens doados em dote deviam ser trazidos à colação (Ord. fil.4, 97, 1; v. cap. 5.6),
elites portuguesa e castelhana eram comuns, as questões da aplicação do direito castelhano ou português
dos dotes a esses casamentos era importante, surgindo com frequência na doutrina. A opinião mais
seguida era a de que se aplicavam as normas de conflito da teoria do direito comum (teoria estatutária).
Assim, dava-se preferência ao direito do lugar da celebração do ato, que normalmente coincidia com o
da residência da noiva. O dote devia ser trazido à herança para se calcular o montante da legítima e para
ser imputado à legítima da filha dotada (collatio dotis).
1468 Em 1645, os dotes das mulheres nobres foi limitado a 12.000 cruzados (Alv. 14.8.1645). Uma
lei de 17.8.1761, reduziu drasticamente os dotes das filhas de nobres com mais de 3 contos anuais de
renda (a um enxoval de roupa branca de valor não superior a 4.000 cruzados), sendo ainda abolida a
legítima das filhas. Mas um decreto de D. Maria, de 17.7.1778, restabeleceu a legítima, bem como a
liberdade de dotar, embora com respeito pelas legítimas dos outros filhos; limitando também as arras a
8.000 cruzados (v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 13).
1469 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 482.
1470 "Dominium mariti circa res dotales dicitur immaginarium, uxoris autem verum et proprium"
1473 O direito romano clássico proibira a alienação dos bens dotais pelo marido, concedendo à
esposa uma ação de reivindicação para os recuperar; mas Justiniano alargara esta proibição às mulheres,
para as proteger da sua fraqueza perante a influência do cônjuge (cf. C. De rei uxoriae actione, 15; I. 4, 6,
12). Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 150, ns. 14-17 e 23. Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis [...], cit., 2, 9, !4. Porém, a sua troca podia ser permitida, como graça régia, pelo
Desembargo do Paço, Reg. Des. Paço, § 40.
297
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
mulheres), Bonifácio VIII, pela bula Licet (VI. 2.11.2.), proibiu os juízes seculares de
admitirem as reivindicationes de bens dotais, inutilizando as proibições do direito
romano e as ações concedidas às esposas dotadas e deixando o marido livre para
alienar os bens dotais sem receio da reação das mulheres 1474. Porém, nos praxistas
portugueses dominava a opinião de que os bens eram inalienáveis por qualquer dos
cônjuges, ainda que com o consentimento do outro. Álvaro Valasco justifica esta
opinião principalmente com a natureza pública do interesse que presidira à
instituição do dote e, subsidiariamente, com a debilidade da mulher perante a
influência do marido. Isto levava a que se devesse afastar o direito comum, tanto
mais que o direito romano, em si mesmo, também promovia a intangibilidade dos
bens dotais. Nisso convinha a ordenação Ord. fil.4,48, apesar de estar redigida de
forma genérica. Embora uma corrente minoritária limitasse esta regra ao caso de a
mulher ter jurado não atacar as alienações do marido, havia um argumento
suplementar contra a validade de juramentos de não reivindicar: a proibição dos
pactos jurados pelas Ordenações (Ord. fil.4,73: “Que não se façam contratos, nem
distrates, com juramento promissório, ou de boa fé”). Lobão informa, porém, que
o Desembargo do Paço costumava dispensar essa proibição. Outra forma de tentar
remover a proteção aos bens dotais era reconhecer a validade das alienações feitas
pelos dois cônjuges, ocultando a natureza dotal dos bens. Neste ponto, a doutrina
dividia-se1475. Uns consideravam que a venda era nula, dada a natureza pública do
interesse pela conservação do dote e o facto de a ordenação Ord. fil.4,48 não excluir
da proibição estas alienações fraudulentas. Outros, pelo contrário, consideravam
que a validade da venda era uma espécie de punição para a fraude da mulher, que
calara a natureza dotal dos bens alienados, além de argumentarem com o interesse
do comprador na manutenção do negócio. A questão manteve-se indecisa1476. No
conjunto das polémicas em torno da capacidade do marido para vender os bens
dotais nota-se o conflito entre um regime de proteção do património familiar,
vinculado a um interesse superior de conservação das famílias, e um regime
favorável ao predomínio absoluto da vontade e interesses do marido que, na
verdade, descaracterizava bastante o modelo dotal.
§ 969. Para se entender bem a dimensão social desta questão, é bom
considerar a conjuntura social dos sécs XVII e XVIII ibéricos. Para uma elite
altamente endividada por uma economia de reputação, em que as despesas
sumptuárias e de status eram indispensáveis para obter mercês e rendas, a
necessidade de capital fresco em cada geração era crucial. Os bens de raiz da casa,
ou já tinham sido vendidos e penhorados ou eram de morgado, inalienáveis e
1474 Seguindo a lógica, perversa, de não induzir ao perjúrio as mulheres que tivessem jurado não
reclamar os bens dotais, por exigência dos maridos; o que era frequente. Para lhes salvar a alma, tirava-
se-lhe os bens …
1475 Sobre as discussões doutrinais, com os argumentos de um lado e de outro, Álvaro Valasco,
Que alinha pela opinião favorável a alienação dos bens dotais, num discurso carregado de misogenia:
“Não ha mulher que ignore quaes são os seus bens dotaes, nem tal ignorancia se pode presumir num
sexo avaro por natureza, e aferrado aos seus bens [...] Huma vez que vende os que sabe serem dotaes,
illude, e engana ao comprador, supprimindo-lhe a verdade [...]. A Lei a presume por isso dolosa, e
incursa no crime de stelionato [...]. A conservação dos dotes não nos merece as ideas dos romanos; nem
o favor publico, que interessa nessa conservação [...] he tão forçoso que autorize um crime tal [...]".
298
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1477 Nota-se em Pascoal de Melo um velada antipatia em relação a este regime do dote, talvez por
1479 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 128, n.4.
1480 “Duvidouse se os bens dotais se podiam obrigar em fianças sobre rendas da fazenda delRey
consentindo a mulher nessa hipoteca ? Determinouse que nem de consentimento da molher se podia
fazer a dita obrigaçam, e estando feita execuçam por parte delRey nos tais bens, se ouve por nula” (em
Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 506).
1481 Sobre o regime dos “crescimentos” ou frutos do dote e das despesas com ele feitas pelo
marido administrador, v. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., Notas, 2, 9,
24, rubr. p. 506 ss. (a regra geral era a de que se deduziam as despesas necessárias ou úteis).
1482 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 502; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...],
cit., 2, 9.21; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9, 21.
1483 Se o dote excedesse legítima, o pai podia incluir no pacto dotal uma cláusula reversiva,
dispondo que os bens voltassem a ele. Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...],
cit., 2, 9, 22, p. 499 ss.. O mesmo podiam fazer outros dotantes.
299
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1484 Cf. Lei de 20.06.1774, que estabeleceu a solução de uma hipoteca tácita a favor da mulher,
adultério. Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit.9, 23, rubr. p. 505.
Muitos autores não exigiam a acusação formal por parte do marido, bastando outra forma de reação por
parte deste (expulsão da mulher, queixas públicas) que mostrasse que ele não consentia no adultério.
1486 V. Ord. fil.5, 38, 2.
1487 Alguns autores pretendiam que se devia presumir que os bens da mulher eram parafernais e
não dotais (Baldus Consilia, Cons. 69). Cf. Christian Gottfried Leiser, Ius georgicum de praediis, von
Landgüthern, liv. 1, cap. 34 (De praedis paraphrenalibus), n. 16-17:
books.google.com.br/books?id=S7NFAAAAcAAJ&pg=PA174&lpg=PA174&dq=bona+paraphernalia
&source=bl&ots=M9pLdzVd9Y&sig=fnWUHY2FnAJgMbZ0vzKxnFWDY_8&hl=pt-
BR&sa=10&ei=mSBbUpy2E4urkQe46oC4Aw&ved=0CFQQ6AEwBTgy#v=onepage&q=bona%20pa
raphernalia&f=false).
1488 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9, 15, rubr. p. 484,
distinguindo várias hipóteses de uso do dinheiro da venda, em geral subsumíveis à regra geral de que os
bens vendidos são bens da mulher, pelo que o produto da venda deve ser destinado a satisfazer
interesses seus e não alheios.
1489 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 77, n.3; Domingos Antunes Portugal, De
300
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1490 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9, 15, rubr. p. 484
ss..
1491 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 14. Podia, porém, alienar os móveis, a
301
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3.3.1.3 As arras.
§ 981. Anexo à generalidade – mas não a todos, necessariamente, pois a
fixação de arras era facultativa1495 - dos pactos de dote estava o pacto de arras.
§ 982. As arras1496 não eram, no direito português, o mesmo que no direito
comum, em que, nas palavras de Álvaro Valasco 1497, “as arras eram aquilo que é
dado pelos que celebram esponsais em sinal ou penhor de um matrimónio futuro,
para a firmeza e segurança de que o celebrarão”. Daí que, tal como em outros
contratos, a falta de cumprimento da promessa implicasse a perda das arras ou a
sua restituição em dobro. Em Portugal, as arras eram tidas como uma espécie das
doações para casamento (donationes ob matrimonium, donationes matrimonii causa)1498. A
explicação das arras era discutida. Parecia a muitos que provinha da instituição
germana da “compra do corpo da mulher” (emptio puellae) ou do privilégio de a
desflorar (Morgengabe, prima pro nocte datum). No séc. XVII, isto parecia a Valasco
ridículo, além de incoerente com o facto de se prometerem também a viúvas,
preferindo a opinião de que se tratava, ou de uma soma oferecida em homenagem à
honra, honestidade ou nobreza da mulher, ou de uma contrapartida do dote, ou de
uma forma de o marido garantir uma vida abastada e honesta à mulher,
nomeadamente no caso de viuvez (ibid. n.4). A questão não era apenas histórica,
pois podia ter relevo dogmático: assim, o saber se o não pagamento, total ou
parcial, do dote, autorizava a repetição das arras, ou de uma sua parte. Como a
doutrina tendia a responder afirmativamente a esta questão1499, a ideia de que as
arras eram o equivalente do dote ganhava força. Porém, a desproporção –
estabelecida na lei (em Portugal, Ord. fil.4,47) – entre dote e arras parecia inutilizar
esta ideia, dando força à de que se tratava antes de uma retribuição da honestidade
e lustre da mulher (propter matrimonium, pudicitiam vel honorem), ou mesmo de uma
manifestação de reconhecimento por um dote vultuoso 1500.
§ 983. As arras eram constituídas por pacto, mas não podiam exceder a terça
do dote (Ord. fil.4,47,1)1501, para não se prejudicar os filhos de anteriores
casamentos1502.
§ 984. Na constância do matrimónio, os bens de arras eram da mulher,
embora administrados pelo marido e, dissolvido aquele, retornavam ao marido ou
seus herdeiros.
3.3.1.4 As doações entre os cônjuges.
1498 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 9, 37, rubr..
1500 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 3, ns. 5-7. Neste caso de dotes vultuosos, bem
como no caso de a mulher ter um estatuto social muito superior ao marido, as arras poder-se-iam
mesmo instituir, excecionalmente, depois do casamento (ibid. ns. 2 e ss.).
1501 Em Castela, a décima parte, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 64.
1502 Cf. ainda o decreto de 17.7.1778, que apenas permitia estas liberalidade a fidalgos,
estabelecendo para elas um limite de 8.000 cruzados.
302
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1503 D.24.1.1 (Ulpianus libro 32 ad Sabinum): “Moribus apud nos receptum est, ne inter virum et
uxorem donationes valerent. Hoc autem receptum est, ne mutuo amore invicem spoliarentur
donationibus non temperantes, sed profusa erga se facilitate”; (D.24.1.2, Paulus libro septimo ad Sabinum):
“Ne cesset eis studium liberos potius educendi. Sextus Caecilius et illam causam adiciebat, quia saepe
futurum esset, ut discuterentur matrimonia, si non donaret is qui posset, atque ea ratione eventurum,
ut venalicia essent matrimonia”. (D.24.1.3, Ulpianus libro 32 ad Sabinum): “pr. Haec ratio et oratione
imperatoris nostri Antonini Augusti electa est: nam ita ait: “Maiores nostri inter virum et uxorem
donationes prohibuerunt, amorem honestum solis animis aestimantes, famae etiam coniunctorum
consulentes, ne concordia pretio conciliari viderentur neve melior in paupertatem incideret, deterior
ditior fieret”. Cf. também: C.5, 16.
1504 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 10; Manuel de Almeida e Sousa
(Lobão), Notas […] Melo [...], cit., ao mesmo título, p. 538 ss..
1505 Além disso, deviam ser confirmadas pelo rei, caso ultrapassassem certa soma, nos termos
família). Daí que fosse frequente que, não havendo filhos, a mulher doasse os bens a seu marido, em
virtude da solidariedade conjugal. Havendo filhos do casal, esta doação não fazia sentido.
1507 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 10, sec. II a 4, p. 542 ss
1508 Por exemplo, cuidando dele numa doença grave ou administrando os bens comuns ou os bens
303
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
da comunhão para o regime dotal, ou deste para aquela, um dos cônjuges podia
perder património próprio para o outro. Nestes casos, a alteração do regime de
bens era revogável por qualquer dos cônjuges até à sua morte, como se se tratasse
de uma doação.
§ 989. Pascoal de Melo1510, por influência de autores alemães do usus modernus,
autonomiza o regime dos bens esponsalícios, bens entregues à mulher para seus
pequenos gastos e para o seu sustento na viuvez (apanágio, alimentos, alfinetes).
Para outros, são apenas bens doados, que seguem o regime geral das doações entre
cônjuges1511.
3.3.2 Tutelas e curatelas.
§ 990. Relacionado com as relações patrimoniais na família estavam as tutelas
e as curatelas, que estabeleciam mecanismos de supervisão sobre pessoas atingidas
por diminuições da sua capacidade jurídica (capitis deminutiones), mas que não
pudessem contar com a guia e supervisão paternas.
3.3.2.1 Das tutelas.
§ 991. A sociedade de Antigo Regime era uma sociedade de vidas breves, pois
era curta a expectativa de vida. O estado de orfandade era frequente e suscitava o
cuidado do poder. Por isso é que os reis colocavam frequentemente os órfãos e as
viúvas sob a especial proteção da respublica, criando magistrados especialmente
incumbidos de cuidar dos seus interesses e regulando a sua tutela.
§ 992. A tutela era, por isso, o dever que a república impunha a alguma pessoa
- chamada tutor (ou "guardador", nos textos portugueses mais antigos e nas
Partidas) - de fazer as vezes do pai falecido ou incapaz no cuidado dos filhos,
provendo a sua educação, sustento e administração dos seus bens 1512. Trata-se, por
isso, de um encargo público, semelhante a um ofício (D. 40,15,2,1: "publicam
tutelam"), pelo que devia ser providenciado e supervisionado por um magistrado
("juiz dos órfãos") e, em princípio, não admitia escusas 1513. A tutela devia ser
atribuída (datio tutelae), de acordo com o direito da natureza, aos parentes
consanguíneos dos órfãos, pois eram tidos como partilhando a mesma carne e o
mesmo corpo. Esse era o fundamento da tutela legítima e do regime do seu
deferimento.
§ 993. A principal fonte de direito romano era I.1,201514. As principais fontes
potest [...] et est triplex nma alia est legitima, alia testamentaria, alia dativa”, António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, n. 1.
1513 "... officum publicum est administrare tutelam, qua propter datur invitus", António Cardoso
maiore parte tribunorum plebis tutor ex lege Atilia, in provinciis vero a praesidibus provinciarum ex
lege Iulia et Titia"; "4. Sed hoc iure utimur, ut Romae quidem praefectus urbis vel praetor secundum
suam iurisdictionem, in provinciis autem praesides ex inquisitione tutores crearent, vel magistratus
iussu praesidum, si non sint magnae pupilli facultates."; "6: Impuberes autem in tutela esse naturali iure
conveniens est, ut is qui perfectae aetatis non sit alterius tutela regatur”. “7: Cum igitur pupillorum
pupillarumque tutores negotia gerunt, post pubertatem tutelae iudicio rationem reddunt".
304
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1515 Principal literatura portuguesa: Simão de Oliveira da Costa, De munere provisori […], cit.; Diogo
Guerreiro Camacho de Aboim, De munere judicis orphanorum […], 1cit.; António de Paiva e Pona,
Addicçoens à orphanologia pratica […], cit.
1516 v. Ord. fil.1, 88, 6; Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 30.
1518 Por direito comum, a tutela não podia recair em mulheres ("... est tamen officium virile, quo
mulier fungi non potest", António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, n. 5). No
entanto, excetuavam-se a mãe e a avó, ibid. n. 6.
1519 Se o valor dos bens ultrapassasse certa quantia, a confirmação da tutela materna devia ser feita
305
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
bem como os inimigos do pupilo1521. Os admitidos deviam, além disso, ser capazes
de administrar efetiva e competentemente os bens do menor, o que prejudicava a
capacidade dos filhos-família e dos ausentes. Não eram aponíveis termos na
instituição da tutela; mas já se admitiam condições, desde que possíveis 1522.
§ 1000. Os tutores, salvo os dados pelo pai e mãe ou os dados oficiosamente
pelo juiz, deviam prestar fiança pelos bens que iriam administrar, exceto se
possuíssem bens que garantissem suficientemente os pupilos contra os seus atos de
má gestão (Ord. fil.4,102,5).1523.
§ 1001. Os juristas diziam que as atribuições do tutor (officum tutoris) diziam
respeito à autoridade sobre o pupilo e à administração dos seus bens 1524. Na sua
autoridade cabia a confirmação dos atos do pupilo (D.26,8, De auctorite et consensu
tutorum; e I.1,21, De auctoritate tutorum, I.1,21); na administração, o governo da pessoa
e bens do pupilo: a sua educação, conforme as suas posses e a tradição da família, a
sua defesa (nomeadamente, judicial: Ord. fil.1,88 per totum; Ord. fil.3,41,8), e a
administração prudente dos seus bens, como a faria um bom pai de família. As
Ordenações exigiam, porém, a confirmação do juiz dos órfãos para os atos de maior
importância, como as vendas, os empréstimos de dinheiro, o reconhecimento de
dívidas, os esponsais e o casamento (Ord. fil.1,81, max. 29)1525. Os tutores deviam
prestar contas, periodicamente, da sua administração e eram responsáveis pelos
danos causados nos bens dos menores, por dolo ou negligência (Ord. fil.3,41; tal
como os seus fiadores, Ord. fil.4,102,5)1526, podendo ser removido da tutela por
isso1527. Os seus bens ficavam obrigados à reparação dos prejuízos causados aos
pupilos1528.
§ 1002. Como a tutela era um encargo público, estavam reguladas as causas de
escusa: eram escusos os pais de 5 ou mais filhos, os desembargadores, os
administradores de rendas reais, os de mais de 70 anos, os doentes incapazes de
administrar os seus próprios bens, os nobres e os doutores, bem como todos a
quem esse privilégio fosse especialmente concedido (Ord. fil.4,104)1529.
§ 1003. A tutela extinguia-se quando o pupilo atingia a maioridade. Para além
disso, extinguia-se por condição aposta na tutela dativa, pelo decurso do prazo de
1523 Todos careciam de confirmação do juiz e de alguma inquirição sobre a sua suficiência. A
sequência de atos prévios à entrada na administração dos bens do pupilo era: (i) mandato do juiz; (ii)
inventário; (iii) juramento do tutor; (iv) prestação de fiança; (v) juramento de zelar bem o património do
pupilo.
1524 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 11, 15.
1525 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, ns. 16-22; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 2, 11, 15. Sobre os juízes dos órfãos, António Vanguerve Cabral, Pratica
judicial [...], cit., p. 1, cap. 48. V. Ord. fil.1, 88 (principalmente inventário e cura dos seus bens).
1526 Por culpa grave ou leve e até por caso fortuito, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit.,
s. v. “Tutela”, n. 13.
1527 Os juízes dos órfãos respondiam por culpas na supervisão das tutelas, Ord. fil.1, 88, 3; ibid. §§
7, 16, 18 e 24.
1528 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, n. 7.
1529 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, ns. 28 ss..
306
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
dois anos no qual os estranhos eram obrigados a assumi-la (Ord. fil.4,102,9), por
incapacidade superveniente do tutor, e por outras causas semelhantes 1530 1531.
3.3.2.2 Das curatelas.
§ 1004. À tutela dos menores púberes (nos rapazes, mais de 14 anos; nas
raparigas, mais de 12 anos) era dado o nome de curatela. A distinção terminológica
vinha do direito romano, mas não se refletia em diferenças de regime, quando dizia
respeito a órfãos.
§ 1005. A curatela só era uma figura autónoma quando se dava a não órfãos que
fossem incapazes.
§ 1006. Assim, existia para os dementes (furiosos, "sandeus", desassisados,
desmemoriados) (Ord. fil.1,103), embora estes pudessem administrar os seus bens
nos intervalos lúcidos (Ord. fil.1,103,3; v. cap. 3.1.10). O regime estendia-se aos
surdos e aos mudos; mas não aos cegos, que, embora não vissem, eram capazes da
faculdade de comunicar1532. A curatela era legítima e recaía sobre os parentes mais
próximos, por ordem de grau; nos casados, cabia à esposa 1533.
§ 1007. A curatela também existia para os pródigos, ou seja, para aqueles que
delapidassem sem razão o seu património (Ord. fil.4,103,6: "desrazoadamente gasta,
e destrói a sua fazenda"; v. cap. 3.1.10.1), desde que assim fosse judicialmente
declarados1534 (sobre o jogador, Ord. fil.5,66,7). A viúva pródiga tinha um regime
especial, que se traduzia em que não lhe era dado um curador, em honra de seu
falecido marido e de sua linhagem, mas se devia comunicar esse facto ao rei (Ord.
fil.4,107)1535.
§ 1008. Aos ausentes e cativos com paradeiro desconhecido era dado um
curador pelo juiz dos órfãos, pelo provedor da comarca ou pelo Desembargo do
Paço, consoante a importância dos bens (Ord. fil.1,90; 1,60; Regimento do
Desembargo do Paço, § 50).
§ 1009. À herança jacente sobre que impendia litígio podia o juiz da causa dar
um curador1536. O mesmo acontecia com a massa falida 1537 e com a igreja vacante.
Também ao filho no ventre da mãe podia ser dado um curador, que cuidasse do
seu património futuro, no caso de ele vir a nascer1538.
1535 Este regime procurava combinar dois aspetos da proteção da honra do marido falecido: por
um lado, evitar que a conduta desregrada da sua viúva ofendesse a sua memória; mas, por outro, não
pôr nas mãos de um estranho a autoridade que ele em vida tinha sobre a mulher.
1536 Cf. Manual de Almeida e Sousa (Lobão), Notas [...] a Melo, 2, 12, 12, sec. 2, p. 631.
1537 Cf. Manual de Almeida e Sousa (Lobão), Notas [...] a Melo, 2, 12, 12, sec. 3, p. 633.
1538 Cf. Manual de Almeida e Sousa (Lobão), Notas [...] a Melo, 2, 12, 12, sec. 4, p. 634.
307
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
308
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1539 Cf. I.1, 2, 12: “12. Omne autem ius, quo utimur, vel ad personas pertinet vel ad res vel ad
actiones. ac prius de personis videamus. Nam parum est ius nosse, si personae, quarum causa statutum
est, ignorentur”. Corresponde a I. 8, das Institutiones Gaii (http://www.thelatinlibrary.com/
gaius1.html#8).
1540 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Res”, n. 1.
1541 Inst. Gaii, 3, 89 : “ Et prius videamus de his, quae ex contractu nascuntur. Harum autem
quattuor genera sunt: aut enim re contrahitur obligatio aut uerbis aut litteris aut consensu” (primeiro
vejamos aquelas [obrigações] que nascem de contrato. Destas, há quatro géneros. Pois a obrigação ou se
cria pela situação (pela coisa, re), ou por palavras, ou por escritos, ou por consenso).
1542 Exemplar na minha biblioteca; na anotação a Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3, 1,
1. O texto manuscrito deve ser dos meados da década de 1830, pois contém referências a legislação de
1834.
309
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
modelos da Institutiones. Esse sentido mais restrito é dado por exclusão (“No
sentido jurídico toma-se cousa por tudo aquillo que não he pessoa nem ação”, pg. 2
vº), embora acabe por resultar numa equiparação de coisa a todo quanto se
relaciona com a fruição de uma utilidade, tendo, por isso, um reflexo patrimonial
(“e por isso entende-se por cousa tudo aquilo que he distinto de pessoas e acções e
que nos pode prestar alguma utilidade.// Tomada pois neste sentido significa os
bens que constituem o nosso património e assim compreende os direitos e ações
por que estas também pertencem ao património e nos são uteis. Isto se prova da L.
41, De verb. signif. [D.50,16] e L. de Junho de 1774, § 27, que manda que não tendo o
devedor mais bens se executem as suas ações cativas, donde he certo que estas
constituem parte do seu património”, pg. 2 vº)1543.
§ 1015. É claro que, se se adotasse este conceito alargado de coisas, mal se
compreendia a existência de um tratamento separado das ações no livro terceiro.
Pascoal de Melo nota isto e esclarece que, no seu manual, toma as ações não como
coisas incorpóreas, mas como meios de prosseguir em juízo os direitos de cada um
e que é apenas neste sentido que as ações constituíam um assunto autónomo 1544.
Este esclarecimento também parece significativo de um deslocamento das ações do
centro do direito para uma lugar “adjetivo”: as ações tendem a perder a sua
autonomia de coisas que têm um sentido (patrimonial) próprio (deixam de ser
“direitos substantivos”), para serem encaradas apenas como meios de realizar
vantagens patrimoniais (“direitos adjetivos”) (v. cap. 7.1.2).
4.1.2 A “coisifcação” das relações sociais e políticas.
§ 1016. A literatura mais antiga1545 documenta a quase universalidade do
conceito de coisa. Ela compreenderia uma série de institutos com significado
patrimonial, como direitos e ações, tanto sobre imóveis como sobre móveis (n. 9), a
herança (n. 2), o dinheiro (n. 4), os escravos (n. 5); a farinha, os frutos, o vinho e
coisas semelhantes (i.e. os frutos, ns. 6 e 7). Mas coisas são ainda os factos (“Facta
quoque continentur”, n. 3), as partes das coisas (n. 8), ou mesmo as pessoas (livres)
de um mosteiro, enquanto sujeitas a alguma jurisdição ou poder (n. 10).
§ 1017. Em suma, o direito comum atribui generosamente o estatuto de coisas
e assimilava o regime que titulava os direito sobre elas a direitos que hoje se
configuram como pretensões em relação a pessoas, nomeadamente: (i) os direitos
políticos (ou iurisdictio, regalia, direitos feudais, direitos tributários); (ii) os benefícios
e ofícios; (iii) o direito de eleger, nomear ou apresentar (um magistrado, um
beneficiado ou um oficial). Tudo isto equivaleu a conceber, ao lado de direitos reais
sobre coisas materiais (como na propriedade ou no usufruto), direitos reais sobre
direitos (como, por exemplo, no caso de se invocar a posse de direitos a receber um
1543 Corresponde à noção de Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 1, 1 (“quaecumque
oposto: “He porém de advertir que aqui as ações não se tomam como cousas incorpóreas, porque neste
sentido pertencem ao 3º objecto do direito, mas se toma(m) como meios de prosseguir em juízo aquilo
que nos pertence” (corresponde ao texto final do § 1, mas traduzido ao contrário “sed tanquam
medium jus nostrum in judicio prossequendi … et hoc sensu ad tertium juris objectum referentur”, Inst.
3, 1, 1”.
1545 Usamos, como exemplo, Agostinho Barbosa, Tractatus varii […]. Appellativa. cit., s.v. ”Res”.
310
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1546 Como, neste último caso, não existe um substrato material sobre que o direito real se exerça,
a posse é feita equivaler a um uso longo de exercer o direito sobre que a posse incide; cf. Helmut Coing,
Europäisches Privatrecht […], cit., I. 343.
311
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1547 Sobre os meios de defesa próprios do direito real no período do direito comum, v. cap. 2.5.6;
1549 “Res de facili revertitur ad suam naturam” , Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.. cons. 112, n.
31; “Varietate temporum variatur res”, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 3, n. 15.
1550 V. Ord. fil.3, 47, pr.
312
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
incompatíveis entre si, de acordo com o ponto de vista a partir do qual fossem
encaradas pelo direito: coisas tanto podiam ser o todo como cada uma das suas
partes1551: uma cabra podia ser parte de uma coisa - o rebanho -, uma coisa em si
mesma, ou outra coisa em si mesma, mas com características diferentes, depois de
morta1552.
§ 1025. Este universo incerto e flutuante das coisas jurídicas abrangia, porém,
muito mais do que objetos externos do mundo empírico. Isto já se verificou na
definição dada por António Cardoso do Amaral. A inclusão de pessoas entre as
coisas suscita alguns comentários.
4.1.4 Pessoas e coisas.
§ 1026. Como vimos, as pessoas não estavam fora do universo das coisas (v. §
650). Mesmo no sentido mais estrito de que também as pessoas podiam
proporcionar utilidades integráveis num património.
§ 1027. O caso mais evidente – mas não o único – de encarar pessoas como
fontes de utilidades patrimoniais (como coisas) era o dos escravos.
§ 1028. A questão de saber se os homens podiam ser objeto de relações
jurídicas confundia-se com a questão da legitimidade da escravatura. Para os juristas
do direito comum, a escravatura não era natural, pois, por natureza, todos os
homens nasciam livres1553. Mas, como explicava S. Tomás, que uma coisa seja
natural pode querer dizer apenas que, sem que intercedesse uma causa suplementar,
essa coisa tinha, por defeito, certo estatuto ou qualidades, pelo que se presumia,
salvo prova em contrário, que esse fosse o seu estatuto. Era neste sentido que
também se dizia que um prédio era naturalmente livre ou alodial, sendo necessário
fazer a prova de que sobre ele recaísse algum ónus (v.g. fosse tributário ou
enfitêutico)1554. Não obstante, ou por causa do pecado original ou por razões
ligadas à conveniência da vida em sociedade, o direito humano criara a escravatura,
tomando uns homens “coisas” de outros1555,1556.
§ 1029. Porém, a coisificação de pessoas ultrapassava a questão da escravatura,
pois certas utilidades integradas num património eram constituídas por factos
pessoais, por concretas ações humanas. As obrigações de trabalhar, de obedecer, de
1551 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], Appellativa […], cit., s.v. “Res”, n. 8.
1552 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Res”, addtio (“res eadem potest
secundum diversos respectos diverso jure censeri”; ed. Conimbricae, Franciscum de Olyveira, 1740, II,
363.2.
1553 D.1, 5, 4; S. Tomás, Summa Theol. 1a.2ae, qu. 94, 5 ad 3.
1554 “Res omnia praesumitur libera, nisi probetur tributaria”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s.v. “Res”, n. 4; adição ao anterior, ed. Conimbricae, Franciscum de Oliveira, II, p. 363 col.
2.
1555 Os teólogos dizem que esta “coisificação” dos homens só se dá secundum corpus, pois a
liberdade se mantém sempre secundum mentem (S. Tomás, Summa theologica, 2-2, qu. 104, 5c ad 2). Esta
distinção, que ocorre nos canonistas a propósito de outras assuntos, parece ter sido fundamental para
uma redefinição da distinção entre as pessoas - providas de uma dimensão interna, inatingível por atos
externos - e as coisas - reduzidas à sua dimensão exterior e sensitiva. Cf. R. H. Helmholz, The spirit of
classical canon law […], cit., 76 (escravos e gado [chattel]).
1556 Alguns teólogos juristas consideram a escravatura, em certos casos, como um instituto de
direito natural, ligando-a a uma desigualdade natural dos homens, dos quais uns teriam engenho para
mandar e outros, em contrapartida, mais robustez física, para servir (cf. v. g. Domingo de Soto,
Tractatus [...], cit., IV, 2, 2).
313
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
se sujeitar ao mando, à jurisdição à direção são exemplos dessas coisas que são
factos de pessoas. Por isso se dizia que a coisa mosteiro 1557 compreendia o
conglomerado de poderes sobre as coisas e as pessoas – trabalhadores, criados,
foreiros, súbditos jurisdicionais, monges - desse mosteiro.
§ 1030. Esta como que indistinção entre pessoas e coisas correspondia a uma
visão do mundo típica do período medieval e primo-moderno. Na mundividência
da época, os homens e as mulheres, os restantes seres vivos e os seres inanimados
integravam-se diferentemente na ordem da Criação. Cada qual tinha aí um lugar e,
decerto, o lugar do homem era mais nobre do que o das restantes criaturas. Mas,
vistas as coisas de outro ponto de vista, o que existia era uma pluralidade de
condições ou estatutos naturais das criaturas, que fixavam os direitos e os deveres
de cada uma delas – desde os anjos à mais humilde das florzinhas - e que não
permitiam distinções qualitativas decisivas (como a distinção radical entre pessoas e
coisas), tanto mais que, mesmo a máxima função de servir a Deus, era
desempenhada, de acordo com palavras das Escrituras, tantos pelos anjos e
arcanjos como pelos humildes lírios dos campos (Mateus,6,28) ou pelas pedras da
calçada (Lucas,19,40). Pessoas, animais, plantas e seres inanimados eram, em certo
sentido, todos criaturas, comandadas por uma ordem natural da criação. Só a
hipervalorização da capacidade humana de entender e de se auto determinar, típica
do racionalismo e voluntarismo modernos, é que traçará fronteiras decisivas entre o
mundo dos homens e o mundo dos seres inanimados, atribuindo aos primeiros a
prerrogativa de criar intencionalmente efeitos de direito e negando essa capacidade
aos segundos. O pensamento jurídico dos grandes mestres do direito comum
estava, assim, dominado pela ideia de uma grande ordem universal, da qual faziam
parte homens e coisas, cooperando uns e outros, de acordo com as respetivas
naturezas, numa estrutura finalista orientada para o bem comum. Nesta ordem,
tudo tinha uma função, uma utilidade. As coisas tinham-nas também. E estas
funções encaixavam-se umas nas outras, serviam-se mutuamente, numa hierarquia
de bens, terrenos ou sobrenaturais, que se rematava no sumo bem sobrenatural que
era o louvor de Deus.
§ 1031. A esta ordem natural das utilidades (utilidades de pessoas, utilidades de
corpos, utilidades de coisas) correspondia, da parte dos beneficiários dessas
utilidades, uma ordem de “necessidades” (affectiones, amores) que criava nos usuários
uma inclinação para as disfrutar. Se essas inclinações eram conformes à razão
mereciam o reconhecimento do direito. A estes “desejos racionais”, a estas
faculdades legítimas de gozo, chamava o direito domínio. O domínio era, portanto,
“o poder ou a faculdade reconhecido a alguém de se apoderar das coisas, pondo-as
à sua disposição e uso lícito, segundo as leis estabelecidas conforme à razão” 1558. As
situações reais reconhecidas e protegidas pelo direito reproduziam, assim, a ordem
das utilidades e os estímulos de gozo que esta ordem despertava nos sujeitos.
§ 1032. Neste universo ordenado das necessidades e das utilidades, as coisas
não eram essencialmente diferentes das pessoas. Algumas coisas necessitavam de
outras (v. g. os animais do pasto, o prédio dominante, do prédio serviente [v. cap.
4.3.4), algumas pessoas necessitavam de outras (v. g. o senhor dos vassalos),
1557 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […] Appellativa […], s.v. “Res”, n. 10.
1558 cf. Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 1, 1 [280].
314
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
quartum et quintum Codicis libras cammentaria, cit., por Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., 96. De Paolo
Grossi é ainda a inspiração que aqui se acolhe quanto à ontologia das coisas no direito comum: Paolo
Grossi, Il dominio e le cose, cit..
1562 Este dramatismo está hoje a recuar. Por um lado, alguns filósofos e antropólogos (v.g. Bruno
Latour) têm identificado a distinção dramática entre pessoas e coisas, nomeadamente no campo do
direito e da política, como uma imagem da modernidade ocidental (v. A. M. Hespanha, “Até que ponto
é moderno o direito da modernidade ?”, cit.). Por outro lado, os movimentos de defesa dos animais
conseguiram introduzir (em 281.2015) no próprio Code civil – o texto emblemático que distinguira
definitivamente a categoria de sujeito e de objeto de direitos - o conceito de animais como seres
sensíveis, embora sujeitos ao regime das coisas (“des êtres vivants doués de sensibilité (…) soumis au
régime des biens”.
315
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
fosse ela a natureza das relações entre umas e outras (v.g. ius in re, ius ad rem). Não
havia elementos sempre determinantes e elementos apenas determinados. Tudo
pode aparecer inserido de certa forma numa relação jurídica objetiva, dada pela
natureza. Neste sentido, a distinção entre pessoas e coisas era mais temática do que
ontológica: algum direito tratava de pessoas, outro trataria de coisas e outro, ainda,
de atos jurídicos. Assim se explicando a sistematização tripartida, que não passava,
então, de uma organização meramente temática (e não ontológica).
4.1.5 Da multiplicidade de utilidades à universalização da propriedade.
§ 1036. O texto antes citado de Domingo de Soto inclui, entre as modalidades
de domínio, a própria jurisdição, ou seja, o poder político; era daqui que decorria a
dificuldade de distinguir o público do privado, os direitos patrimoniais dos direitos
senhoriais, que caracteriza a ordem jurídica de Antigo Regime 1563.
§ 1037. Mas o domínio não era apenas uma figura tendencialmente universal,
mas ainda naturalmente multiforme. Na verdade, cada coisa tinha as suas formas
naturais de ser usada, as suas utilidades, e a cada uma destas correspondia uma
faculdade de apropriação dela pelos homens, um “domínio” potencial. Esta
cosmovisão levava, portanto, à admissão de tantas formas de domínio -
eventualmente repartidas por tantos sujeitos - quantas as faculdades de gozo das
coisas. E, de facto, os juristas medievais começaram a distinguir tipos de domínios,
correspondentes a tipos de uso das coisas, chegando a enumerar vinte e três, desde
os domínios que tutelavam usos dirigidos a fins sobrenaturais (v. g. o domínio
“beatífico”, “gratífico”, “evangélico”) até aos que correspondiam às várias
utilidades temporais (domínio “direto”, “útil”, “feudal”, “usufruto”, “uso”,
“hipoteca”, “servidão”, etc.). Rigorosamente, o domínio, como modelo de relação
do homem com coisas, não tinha como objeto a coisa, mas uma sua utilidade. O
domínio não era a coisa, mas a (pluriforme) relação de uso com ela 1564. Dizendo de
outra forma, que realça a extensão do conceito de coisa, coisa não era uma entidade
material, mas antes cada uma das suas possíveis utilizações.
§ 1038. Entre as várias modalidades de domínio não existe, sequer, uma
hierarquia, pois todos os usos das coisas e as utilidades delas colhidas se encaixam,
cada qual à sua maneira, na ordem do universo. Propriedade eminente, direito de
usufruto, usufruto limitado, tudo são formas de domínio, cada qual
correspondendo a uma utilidade específica e, no seu âmbito (i. e. no plano do gozo
dessa utilidade), plena e autónoma. Do ponto de vista do gozo das respetivas
1563 Sobre o tema, António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador [...]”, cit., 52 ss.; Jesús
Vallejo, Ruda equidade […], cit., 1992, 141 ss. com muitos textos impressivos (“E esta equiparação da
jurisdição ao domínio prova-se assim: o príncipe tem toda a jurisdição e por isto se diz senhor [dominus]
de todo o mundo” (Bártolo, cit., p. 149). O domínio do príncipe (e restantes magistrados) sobre os seus
súbditos e sobre as coisas existentes no seu território era descrito como um dominium quoad iurisdictionem,
ou seja, um domínio dirigido a uma certa fruição (jurisdicional), como os outros domínios (v. g. o utile)
se dirigiam a fruições diferentes (v. g. a fruição económica). Mais tarde, maxime com Hugo Grócio (1583-
1645) fixa-se a expressão “domínio eminente”. Só quando o domínio passa a ser considerado como um
poder absoluto é que a ideia de um “domínio político” se toma paradoxal, pois não poderiam existir
dois domínios sobre as mesmas coisas. Em Portugal, o poder tributário ainda é filiado no domínio
eminente por Pascoal de Meio ( Institutiones iuris civilis, cit., 1, 4, 7); mas tal conceito já é criticado por
António Ribeiro dos Santos e problematizado por Lobão.
1564 Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 1, 1 [280].
316
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Segunda Escolástica (nomeadamente, Domingo de Soto) nega, também esta conclusão, legitimando,
com base no direito natural, a propriedade que os infiéis – e, concretamente, os povos “encontrados” -
tinham sobre as suas terras e coisas (Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 2, 1 [287]).
1568 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], cit., Axioma CXCIX. “Res”, ns. 1 a 3.
317
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
casos, dizia-se desde S. Tomás1569, que o domínio não apenas se confundia com o
uso, mas que ambos eram, para além disso, inseparáveis. Sob o impulso desta
polémica, que atingiu proporções político-eclesiásticas extremas1570, surgiu a ideia
de que o verdadeiro domínio não consistiria num uso fáctico, material, das coisas,
mas antes numa disposição meramente subjetiva. Como escreve Paolo Grossi, “O
homem é proprietário, não porque tenha concretamente coisas na sua posse, mas
porque quer ser proprietário delas, porque tem em relação a elas uma vontade
apropriativa; aquele que não tem nada (nihil habens) pode ser dono de tudo
(omnibus dominans) se se lhe atribuir a vontade correspondente1571.
§ 1042. Esta subtileza permitia resolver, como logo se vê, o problema da
pobreza dos franciscanos, mas teria também consequências profundíssimas no
destino futuro do discurso sobre os homens e as coisas, da sua regulamentação
jurídica e das medidas políticas tomadas acerca disso. Enfim, o que se prenuncia a
partir de agora - embora a evolução ainda vá levar muitos séculos a consumar-se - é
uma conceção do domínio como afirmação de uma vontade dos sujeitos sobre os
objetos.
4.1.6 O modelo proprietário das relações dos homens com as coisas.
§ 1043. Na raiz desta nova conceção do domínio estava a definição do homem
como ser livre e senhor dos seus atos, que necessitava de se projetar no mundo
externo das coisas para realizar essa liberdade e cumprir o seu destino (“ (...) os
homens, pela sua própria natureza e direito, começaram a ser donos das suas ações
para, com esta liberdade, servirem o Criador”, Domingo de Soto). Assim, o
domínio sobre as coisas aparecia como um prolongamento do domínio sobre si
próprio, o ter tornava-se num mero ato de vontade do sujeito que se afirmava como
dono de uma coisa1572, a propriedade era um outro nome da liberdade, desse poder
expansivo de afirmação do sujeito. O domínio adquiria uma dimensão puramente
subjetiva, escapando completamente ao império das coisas. Estas, as suas utilidades
concretas e as modalidades concretas do seu gozo, não influíam em nada a natureza
do domínio, que passava a ser uma faculdade puramente volitiva de gozo abstrato.
Quem diz “abstrato”, diz tendencialmente ilimitado. Nesta conceção, falar de um
direito de propriedade era falar do complexo virtual de todas as utilidades de uma
coisa e dos poderes de uso correspondentes; era falar da síntese de todos os
poderes que, em abstrato, um sujeito podia exercer sobre as coisas em geral 1573; era
falar da forma perfeita de o homem se relacionar com as coisas. Antes, a
propriedade “livre”, não limitada, era apernas a forma originária de ter coisas (“res
omnia praesumitur libera, nisi probetur tributaria” 1574. Estabelecida por natureza,
ela não implicava que os homens, por motivos legítimos e vantajosos, tivessem
1572 Manifestações desta nova dissociação entre o domínio e o uso são, por um lado, o avarento
(que é dono, mas não usa) e, no outro polo, justamente os mendicantes (que usam, mas não são
donos).
1573 Paolo Grossi, “Tradizione e modelli [...], cit., 200 ss.
318
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1575 Daí que só possam ser sujeitos de domínio os seres dotados de entendimento e livre arbítrio; o
que exclui que se possa falar de propriedade na titularidade de coisas ou de animais, como antes se
admitia (cf. Domingo de Soto, Tractatus […], cit, p. 284).
1576 Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., 169.
1578 “Undinge”, absurdo, é como Thibaut (em 1817) classificará a ideia de um domínio dividido
(cf. P. Grossi, “Tradizione e modelli nella sistemazione post-unitaria della proprietà”, cit., 201 ss).
1579 Embora hoje em crise, nomeadamente após receção pelo mesmo código da noção de “seres
319
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
direito de gozar e dispor das coisas da forma mais absoluta, desde que não se faça
delas um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos”. Este texto constitui um
emblema do conceito moderno (individualista, burguês, capitalista) da propriedade,
sobretudo porque nele se costuma destacar o carácter absoluto e pleno dos poderes
do proprietário. Na época em que esta máxima foi cunhada, as suas palavras não
tinham ainda as intenções que depois vieram a adquirir. Assim, o termo “absoluto”
não apontava para a autorização de “um qualquer, arbitrário, associal, uso das
coisas”, típico de uma conceção liberal, pura e dura, da propriedade. Visava antes
negar a existência de qualquer direito eminente, feudal ou estadual, que limitasse os
poderes do proprietário. Mas, logo no início do século XIX, a doutrina jurídica
francesa transformou esta definição num dos dogmas do liberalismo, colocando-a
ao lado da divisa de J. Bentham, Liberty and property, no topo da ideologia
“proprietária” ou “individualismo possessivo” 1580.
§ 1050. Este modelo “proprietário” apresenta os seguintes traços estruturais.
§ 1051. A propriedade era um direito absoluto, no sentido (que era o originário
do Code) de que não estava sujeito a limites externos, pelo que o seu exercício não
dependia de condicionamentos ou autorizações. No momento em que foi
introduzida no Code civil, esta referência ao carácter absoluto da propriedade
implicava a abolição de uma série de ónus, fiscais, feudais ou comunitários, que
impendiam sobre a terra. Mas iria também justificar a antipatia por todas as formas
de limitação ou condicionamento da liberdade de dispor exclusivamente das coisas,
anteriormente conhecidas, quer de natureza privada (v. g. as formas de comunhão e
de indivisão, os vínculos, a necessidade de autorização ou outorga para alienar, os
direitos de preferência, os laudémios), quer de natureza pública (v. g. os regimes de
licenciamento administrativo da transmissão ou oneração do solo, os
condicionamentos públicos da venda, como os monopólios ou estancos, os regimes
de amortização, etc.). Propriedade absoluta era, assim, a propriedade não partilhada,
aquela que não reconhecesse qualquer dominium eminens ou directum exterior. Era a
propriedade franca, que obedece à regra natural da “liberdade natural da
propriedade”1581.
§ 1052. A propriedade era um direito pleno, ou seja, continha em si todas as
faculdades de ação que o seu titular pudesse desenvolver em relação à coisa,
incluindo a sua destruição económica ou física. Isto significava, em primeiro lugar,
que o direito de propriedade não se destinava a garantir a funcionalidade económica
das coisas, não visava refletir, no campo do direito, as utilidades possíveis das
coisas, antes possibilitando exercícios a-funcionais, como o não cultivo de uma
terra ou a destruição de uma coisa1582.
1580 A expressão é de C.B. Macpherson (Property, mainstream and critical positions, Toronto, 1978).
Eco da divisa de J. Bentham, em Portugal, Vicente José Cardoso da Costa, Que he o Codigo civil, cit.,
73, 96 ss..
1581 Cf. Manuel Fernandes Thomaz, Observações sobre o discurso que escreveu Manoel d'Almeida e Sousa em
favor dos direitos dominicaes […], cit., 80/81; José Homem Correia Teles, Digesto portuguez [...], cit., I. 117
(n. 743); sobre o pretenso direito eminente do Estado, v. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas
[…] a Melo […], cit., 3, 64.
1582 Daí a antipatia da generalidade dos autores desta época pela obrigatoriedade de cultivar as
terras, frequente nas leis agrárias anteriores (cf. José Acúrsio das Neves, Memória sobre os meios de melhorar
a industria […], cit., 24 ss.: “é viciosa toda a lei que faz violência ao proprietário, ou ao lavrador sobre o
320
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
uso do seu prédio, ou sobre o seu modo de cultura”). Já os teóricos iluministas apostavam na estrita
regulamentação da produção agrícola (cf. António Henriques da Silveira, “Sobre a agricultura e
população da província do Alentejo”, cit.; Prophyrio Hermeterio Homem de Carvalho, Primeiras linhas
de direito agrario […], cit.).
1583 Manuel António Coelho da Rocha, Instituições […], cit., I. 319 (§ 402), 709 e 716.
1584 Correia Teles (José Homem Correia Teles, Digesto portuguez [...], cit., I. § 741 ainda inclui no
direito de propriedade os direitos de jurisdição. Mas as servidões pessoais (personae servir rei) tinham sido
ou estavam a ser abolidas: a servidão doméstica, fora-o em 1771 (alvs. 16.1 e 19.9, completados pelos
de 16.1.1773 e 10.3.1800); as servidões pessoais a favor de prédios tinham sido abolidas como direitos
banais pela lei de 24.7.1846 (retomando a sua extinção em 1824). Cf. Manuel António Coelho da Rocha,
Instituições […], cit., I. §§ 524 e 587; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] a Melo […], cit.,
3, 437, 442-443.
1585 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 2, 1.
1587 D.1.8.1: “Gaius libro secundo institutionum. pr. Summa rerum divisio in duos articulos
deducitur: nam aliae sunt divini iuris, aliae humani. Divini iuris sunt veluti res sacrae et religiosae.
Sanctae quoque res, veluti muri et portae, quodammodo divini iuris sunt. Quod autem divini iuris est,
id nullius in bonis est: id vero, quod humani iuris est, plerumque alicuius in bonis est, potest autem et
nullius in bonis esse: nam res hereditariae, antequam aliquis heres existat, nullius in bonis sunt. Hae
autem res, quae humani iuris sunt, aut publicae aut privatae. Quae publicae sunt, nullius in bonis esse
creduntur, ipsius enim universitatis esse creduntur: privatae autem sunt, quae singulorum sunt. 1.
Quaedam praeterea res corporales sunt, quaedam incorporales. Corporales hae sunt, quae tangi
possunt, veluti fundus homo vestis aurum argentum et denique aliae res innumerabiles: incorporales
sunt, quae tangi non possunt, qualia sunt ea, quae in iure consistunt, sicut hereditas, usus fructus,
obligationes quoquo modo contractae. Nec ad rem pertinet, quod in hereditate res corporales
321
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
divisão suprema das coisas era entre as de direito divino e as de direito humano. As
primeiras podiam ser sagradas, apenas religiosas ou santas. As segundas estavam
geralmente no património de alguém, mas excecionalmente, podiam não ser de
ninguém (nullius in bonis), no sentido mais rigoroso da expressão (res nullius), ou
apenas no sentido de que não eram de nenhum particular, embora pertencessem a
uma entidade pública ou universidade.
§ 1057. Com base noutro critério, distinguia entre coisas corpóreas,
sensorialmente percebíveis, e incorpóreas, que consistiam em direitos, como a
herança, o usufruto ou as obrigações, apesar de estes dizerem respeito a coisas
corpóreas.
§ 1058. Muitas destas distinções do direito romano clássico tinham perdido
muito do seu sentido um milénio depois. No entanto, os juristas do direito comum,
mantiveram esta matriz de divisão das coisas.
4.2.1 Coisas sagradas, religiosas e santas.
§ 1059. Embora notando que os romanos tomavam as palavras noutra aceção,
os juristas do direito comum mantiveram o conceito de coisas de direito divino e,
dentro delas, a distinção entre as coisas sagradas, as religiosas e as santas.
§ 1060. As coisas sagradas eram aquelas que tivessem sido consagradas por
meio da bênção do bispo ou seu delegado (quando pudesse delegar a bênção) para
o serviço sagrado. Era o caso dos altares, dos vasos sagrados, das imagens benzidas
e de outras alfaias dedicadas ao culto. Próximas das sagradas estavam aquelas coisas
(por alguns chamadas coisas eclesiásticas) que não eram aplicadas diretamente ao
culto, mas a usos apenas relacionados com este, como é o caso dos ornamentos dos
templos ou das vestes dos oficiais de culto.
§ 1061. As coisas religiosas eram aquelas santificadas pelo facto de aí estarem
sepultadas pessoas. Entre as coisas religiosas avultavam os cemitérios, consagrados
para sepultura dos crentes1588, embora também objeto de um especial licenciamento
dos poderes temporais, por razões sanitárias ou urbanísticas, que se foram
tornando progressivamente mais exigentes 1589.
§ 1062. As coisas santas eram aquelas que, sendo profanas, eram consideradas
invioláveis, estando a sua ofensa castigada por lei. Os exemplos mais comuns eram
os das portas e muros das cidades.
§ 1063. A relevância jurídica destas categorias era a de que as coisas sagradas
eram consideradas como de ninguém (de nenhum património, rei nullius bonis)1590,
continentur: nam et fructus, qui ex fundo percipiuntur, corporales sunt, et id quod ex aliqua
obligatione nobis debetur plerumque corporale est, veluti fundus homo pecunia: nam ipsum ius
successionis et ipsum ius utendi fruendi et ipsum ius obligationis incorporale est. Eodem numero sunt et
iura praediorum urbanorum et rusticorum, quae etiam servitutes vocantur”
1588 Em Portugal, os ritos fúnebres eram regulados pelo ritual romano (Paulo V, 1605-1621).
1589 Ao poder temporal cabia a polícia funerária, atentos os interesses da república (fixação do
lugar dos cemitérios, negação de sepultura; v.g. aos sodomitas, Ord. fil.5, 113), a correção de abusos
dos párocos quanto ao custo dos funerais; na segunda metade do séc. XVIII, começam a ser referidas
exigências relativas à saúde, nomeadamente para condenar os enterramentos nas igrejas. Cf. Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 1, 6 e 7.
1590 Cf. adiante; Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., 2, 1, 7; Pascoal de Melo,
322
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
por estarem destinadas a Deus, ficando sob a guarda e administração dos ministros
da Igreja, como seus "procuradores, mas não senhores” 1591. Quanto às coisas
eclesiásticas não consagradas, o seu regime seria menos rigoroso quanto à
possibilidade de as transacionar. De facto, até ao séc. XI, os bispos podiam alienar
as coisas da Igreja1592. As reformas disciplinares do séc. XII restringiram muito esta
faculdade. No direito comum tardio, entendia-se esta proibição como geral, embora
pudesse haver exceções, que cobriam uma casuística extensa: venda por grande
necessidade, venda de coisas sagradas integradas noutras que não o eram (v.g. a
capela de uma casa), venda de coisas sagradas já estragadas ou destruídas, venda a
outra igreja ou entidade eclesiástica, venda para comprar outras coisas melhores,
venda para remir cativos ou libertar presos 1593. Fosse como fosse, a avaliação de
tudo isto devia ser feita pelo ordinário da diocese 1594. Para mais, como a Igreja,
enquanto collegium ou universitas, era equiparada ao menor 1595, as suas alienações
deviam ser confirmadas pelo seu protetor, o príncipe 1596. Esta proibição de
comércio de coisas sagradas e eclesiásticas constava de Ord. fil.2,241597. O âmbito de
aplicação desta norma era, no entanto, controverso, já que no texto se falava em
prata e ornamentos. Alguma doutrina considerava esta intromissão régia na
disposição de coisas eclesiásticas como contrária à liberdade da Igreja e restringia,
por isso, o seu alcance a coisas móveis de metais preciosos, até porque a razão da
lei seria a proibição de vendas clandestinas de bens eclesiásticos, em prejuízo da
Igreja1598, cessando, por isso, na alienação de imóveis ou de objetos que não se
pudessem ocultar tão facilmente como estas peças preciosas.
§ 1064. O conceito de coisas religiosas permitia tratar do direito das sepulturas
e dos cemitérios
§ 1065. O conceito de coisas santas, com o conteúdo que tinha no direito
romano (coisas consagradas aos mais elevados serviços da cidade, como as
muralhas e suas portas, os paços dos supremos magistrados), desaparecera com o
desaparecimento dessa religião cívica que caraterizava a república romana. No
entanto, a ideia de uma especial dignidade dessas coisas votadas à preservação da
república e do seu regime mantinha-se. Sagradas eram as portas e muralhas das
cidades, por isso sendo obrigatório para qualquer cidadão defendê-las, ao mesmo
tempo que era proibido ofendê-las, construindo mais alto do que elas, apoiando
nelas casas particulares ou encostando-lhe escadas, escalando-as ou prejudicando de
qualquer forma a sua função defensiva1599. Sagradas eram também as leis e os
1596 C.1, 2 De sacrossantis ecclesiis et rebus et privilegiis earum, l. 14; Novelas, 7 e 120; v. Ord. fil. 2, 24
(“que se não possa comprar, nem receber em penhor prata, & ornamentos das Igrejas”)..
1597 Sobre este texto, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 8, ad Ord.2, 24, Luis de
323
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1603 Em sentido estrito, a praebenda ou canonica portio era aquela parte que se tomava da massa dos
bens e proventos dos eclesiásticos e se dava a cada um como parte sua (Andrea Vallensis, Paratitla […],
cit., p. 442, n. 1); mas que, embora se prestasse pelos bens da Igreja, não se prestava em razão do
ofício divino, mas em razão de trabalho temporal.
1604 A primeira referência no C.I.C. reporta-se ao Concílio de Mogúncia (ano de 813) (Decr. Greg.
324
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1605 Manuel Gonçalves Teles, Commentaria […], cit, III, tit. 5, “ De praebendis … ”, n. 12.
1606 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 54
1607 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit., II, 90, § 62 ss..
1608 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit., II, 92, § 66; Andrea Vallensis, Paratitla [...],
cit., III, 5, 1, n. 7.
325
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1609 De facto, os ofícios monacais (ou manuais) eram dados e tirados ad nutum (à discrição); o
conteúdo das suas atribuições também dependia em absoluto do concedente, João Baptista Fragoso,
Regimen […], cit., II, 854, § 12.
1610 Sobre este tema, v. v.g. Andrea Vallensis, Paratitla […], cit., III, 5, 2, p. 444; mais recentes,
Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit., II, 93, §§ 69 ss.; Bernardino Joaquim da Silva Carneiro,
Elementos de Direito Eclesiástico […], cit., 121 ss
1611 Sobre as eleições e os requisitos dos eleitos, v. Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit.,
1613 Dado que esta reserva prejudicava os direitos dos patronos, havia quem restringisse
fortemente o âmbito da reserva pontifícia, não a admitindo nos benefícios em padroado leigo, nos
obtidos onerosamente, nos benefícios das ordens militares (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],
cit., tomo 9, ad Ord. 2, 35, c. 117, ns. 149 ss.). Além de que a reserva pontifícia não existia nos
benefícios regulares ou manuais das ordens (cf. ibid. tomo 11, ad 2, 35, c. 117, ns. 35 e 36).
1614 Franz Xavier Gmeineri, Paratitla […], cit., II, § 127. Nos benefícios de padroado eclesiástico,
a Santa Sé gozava de oito meses de reserva, ficando para os padroeiros apenas os meses de Março,
Junho, Setembro e Dezembro (Conc. Tridentini, sess. 24, cap. 18).
1615 Andrea Vallensis, Paratitla […], cit., III, 7, § 2, p. 451 ss..
326
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1080. Por outro lado, o direito de provimento dos bispos podia estar ainda
limitado por direitos de apresentação (i.e. de proposta de nomes) que competissem
aos eventuais patronos do benefício, nos termos do direito de padroado (v. infra).
§ 1081. No sentido de manter os ofícios e benefícios livres para serem
concedidos, no momento da vacatura, estava proibida a promessa de concessão de
ofícios não vagos (cartas de expectativas). O Concílio de Trento (sess. 24, de reform.
cap. 19) sublinhou ainda mais esta proibição, no âmbito de uma política de
ampliação da liberdade de colação que incluía também a introdução de restrições
aos direitos de padroado (v. infra).
§ 1082. O sistema beneficial baseava-se, como se viu, na conjunção entre um
ofício ou função eclesiástica, com a correspondente atribuição de poderes ou
jurisdições, e um benefício ou renda.
§ 1083. No plano dos poderes conferidos pelos benefícios, por vezes eles
correspondiam a uma certa primazia ou preeminência jurisdicional, nomeadamente
nos atos litúrgicos ou capitulares ("no coro ou no capítulo"); falava-se, nestes casos,
de uma dignidade. Em contrapartida, se esta primazia era meramente honorífica, não
comportando qualquer jurisdição (i.e. não se unindo a qualquer ofício, como um
lugar honorífico no coro, procissões ou sufrágios), falava-se de uma simples pessoa
(personatus). No caso de esta primazia se limitar à perceção de um rendimento,
falava-se de uma prebenda ou conezia 1616. Finalmente, se os poderes conferidos
fossem de mera administração, sem jurisdição ou dignidade, como no caso dos
sacristães, porteiros guardas ouzeladores, tratava-se de um mero ofício.
§ 1084. Neste modelo administrativo, ao desempenho de uma função
correspondia sempre a perceção de uma renda, de um "benefício". Na verdade, os
ofícios eclesiásticos nunca eram conferidos sem rendas (sem titulum [ou causa de
possuir]). A razão seria tanto a justiça (“é justo que quem vive para o altar, viva
também do altar”) como a necessidade de evitar que surjam “clérigos vagos e
acéfalos”1617. Apesar de contraditória com a lógica inicial do instituto, a situação
inversa de existirem benefícios sem a correspondente função podia verificar-se,
nomeadamente por esta se ter entretanto extinto, permanecendo a titularidade dos
rendimentos. Assim, ofício e benefício passaram a constituir sinónimos, designando a
mesma coisa, embora sob perspetivas diferentes. Mas, no mundo semântico da
administração eclesiástica, a designação de benefício (que remete para uma
perspetiva patrimonial) suplanta francamente a de ofício (que remete para uma
perspetiva funcional ou ministerial), embora a lógica institucional hesite entre uma e
outra visão.
§ 1085. Por um lado, a ligação essencial do benefício a uma função subjacente,
a um ministerium, de natureza espiritual, tinha como consequência a obrigatoriedade
da residência no lugar do benefício, a fim de poder desempenhar presencialmente
1616 Falava-se de pensão ou porção a respeito de uma prestação periódica imposta sobre o
rendimento de certo benefício pelo titular da sua colação (i.e. por aquele a quem competia prover esse
benefício) a favor de uma pessoa eclesiástica ou leiga (cf. Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado
prático compendiario das pensões eclesiásticas […], cit., 21 ss.). As pensões podiam ser impostas pelo Papa,
pelos bispos, pelos grão-mestres das ordens militares e pelos reis (como grão-mestres ou padroeiros).
Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pensio”, n. 2 ss..
1617 Cf. Manuel Gonçalves Teles, Commentaria [...], cit., p. 116, n. 13. Se o bispo ordenasse
clérigos sem titulum tinha que lhes prestar alimentos dos seus bens, ibid. p. 118.
327
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1618 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 9. Este é um dos grande
temas do Concílio de Trento em matéria beneficial: cortar com os abusos de beneficiados ausentes (cf.
obrigações do beneficiado: residência assídua, Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, 156 §
200; Trento: sess. 23, cap. 1). No entanto, a prática continuou a ser bastante permissiva, admitindo,
nomeadamente, a falta de residência nos benefícios sem cura de almas (António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., “Beneficium”, n. 63).
1619 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 17.
1620 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, 92, § 66. Já no caso das simples prebendas
(v. supra) não milita esta razão, pelo que podem ser auferidas por leigos.
1621 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 164.
1623 O benefício curado exige 25 anos e ordem clerical; os outros exigem pelo menos 14 anos
(Trento, sess. 23, c. 6 de reformat). Sobre os requisitos pessoais para ter benefícios, v. João Baptista
Fragoso, Regimen [...], cit., II, 663, § 2, ns. 4 ss..
1624 cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 9.
1625 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 8. Em contrapartida,
João Baptista Fragoso (Regimen [...], cit., II, 663, § 2, ns. 4/5.) defendia que o bispo podia conceder
ofícios a seus consanguíneos idóneos, desde que o não fizesse com escândalo; apenas não lhes podendo
conceder os ofícios renunciados em suas mãos por outrem, n. 2.
328
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
nos benefícios que fossem apresentados por patronos laicos 1626; mas, de qualquer
modo, exigia-se que o apresentado fosse digno (embora não o mais digno), em
termos de virtude (mais do que em termos de nascimento 1627). Em todo o caso, o
princípio de que o ofício eclesiástico tinha uma natureza espiritual, devendo ser
exercido pelo mais digno e meritório, e de que a concessão do correspondente
benefício era um ato gratuito e liberal fazia com que qualquer motivação
interesseira ou qualquer pacto acerca da concessão fossem arguíveis de simonia (i.e.
o pecado que consistia na venda de função espiritual). Pelo que os critérios
objetivos do mérito sempre foram muito mais exigentes na colação dos benefícios
eclesiásticos do que na concessão dos ofícios ou mercês da república.
§ 1087. Em contrapartida, uma visão patrimonialista do benefício tendia a
considerá-lo como uma mera renda, semelhante a tantas outras existentes no
mundo medieval e moderno, incidindo sobre certos bens , E, daí, que se
concebesse a existência de benefícios sem ofício subjacente (prebendas ou
conezias) ou a venda de benefícios (entendidos como meros réditos temporais 1628)
como isenta do perigo de simonia. Admitida a venda (ou a troca), aceitava-se
também a renúncia a favor de outrem, embora autorizada pelo colator apostólico.
Entendendo-se mesmo que este não podia conceder o benefício a outrem 1629. Tais
renúncias eram muitos vulgares.
§ 1088. Numa lógica puramente patrimonial, também se entendia que o
concedente do benefício pudesse reservar para si uma porção do rendimento, a
título de pensão. Isto foi frequente até ao Concílio de Trento, o qual, seguindo a
lógica espiritualista, proibiu estas pensões, a não ser que ficassem votadas a fins
também espirituais (como, v.g. a reparação da igreja do padroado)1630. Mas, mesmo
depois, não só se admitia que o fundador de uma igreja reservasse uma pensão
sobre os bens doados1631, como se manteve a prática de, em certos benefícios, se
exigir, no momento da confirmação, o pagamento de uma soma equivalente a
metade do rendimento anual (meia anata). Daí que, perante a generalidade da prática,
a doutrina preferisse fixar limites às pensões, estabelecendo a regra de que estas não
deviam ser de tal modo pesadas que o beneficiado não se pudesse sustentar
comodamente, observando os preceitos de uma vida honesta e de hospitalidade; em
geral, a pensão não deveria exceder a terça parte dos frutos do benefício 1632.
4.2.1.1.2 Padroados.
§ 1089. O direito de padroado1633 competia a quem tivesse fundado ou dotado
tirada pelo deão da capela real (Jorge de Cabedo, De patronatibus […], cit., c. 19, n. 1, p. 69).
1627 Discutindo a questão de se nos ofícios seculares ou eclesiásticos eram de preferir os nobres,
Manuel Gonçalves Teles, Commentaria [...], cit., p. 167, n. 4 (não são de preferir os nobres pois não é a
nobreza do nascimento mas das virtudes e da vida honesta que tornam o servidor grato e idóneo para
Deus; para o governo da Igreja devem ser eleitos não os nobres pela carne mas os humildes e pobres, n.
4).; apoia-se em S. Tomás, De regim. principum. liv. 4, cap. 15.
1628 Andrea Vallensis, Paratitla [...], cit., liv. 3, tit. 5, § 1, n. 5.
1629 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, v. “Beneficium”, n. 46.
1630 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, 172 s..
1631 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, “Pensio”, n. 6.
1632 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, “Pensio”, n. 8/9.
1633 Decretum, 2, p. C. 16, qu. 7, c. 33: “O mosteiro ou oratório instituído canonicamente não
329
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
uma igreja em quantia apreciável (“jus patronatus est jus honorificum, onerosum, &
utile, alicui competens in ecclesia, pro eo, quo de diocesani consensu ecclesiam
contraxit, fundavit vel donavit1634). Incluía, entre outras coisas, o direito de
apresentar pessoa idónea para um benefício vago (v. § 428 ss.). 1635.
§ 1090. Embora a prática anterior fosse diferente e mais permissiva, o Concílio
de Trento procurou restringir o direito de padroado, limitando a sua concessão aos
casos de fundação ou dotação substancial de uma igreja ou capela. Em todo o caso,
continua a admitir-se, embora relutantemente, que o Papa, usando do seu poder
absoluto (i.e. superior ao direito), pudesse conceder padroados (de vi potestatis de
camera) a quem não tivesse fundado igrejas1636. Simultaneamente, estabelecem-se
condições mais rigorosas para a prova do direito de padroado, exigindo documento
autêntico ou posse imemorial, com única ressalva dos padroados imperiais ou
régios, para os quais se continuavam a admitir todas as provas admitidas em
direito 1637.
deve ser tirado do domínio do instituidor contra a sua vontade, devendo-se permitir-lhe que o
encomende ao presbítero que quiser para a celebração dos ofício sagrados, com o consentimento do
bispo da diocese”. Cf. também Decretais, 3, 38 (“De iure patronatus”). Sobre o padroado, v. Bento
Cardoso Osório, Praxis de patronatu regio […], cit.; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Ius patronatus”; Jorge de Cabedo, De patronatibus [...], cit.; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., II,
689, § 7; Andrea Vallensis, Paratitla […], cit., ad III, 38; Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit.,
II, 136 ss..
1634 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius Patronatus”, n. 1.
1635 Sobre o padroado v. os respetivos artigos do Dicionário de História de Portugal, Porto, Iniciativas
Editoriais, 1961 e Dicionário Ilustrado de História de Portugal, 1985, bem como as indicações contidas em
Ana Mouta de Faria, “Função da carreira eclesiástica na organização do tecido social do Antigo
Regime”, cit., Joaquim de Carvalho & José Pedro Paiva e J. P. Matos, “A diocese de Coimbra no
século XVIII […]”, cit.. Literatura antiga, Jorge de Cabedo, De patronatibus [...], cit.; Bento Cardoso
Osório, Praxis de patronatu [...], cit.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 5, 19;
Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 217; e José J. Lopes Praça, Estudos sobre o
padroado portuguez [...], cit.. Lista dos padroados da Ordem de Cristo (“as cinquenta comendas do
Padroado”), em Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., c. 18, n. 1. Formalidades e fórmulas de
apresentação, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., cap. 19. Sentenças sobre casos de apresentação de
beneficiados pelos reitores das Igrejas do padroado real, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit.,
tomo 13, p. 67 ss.. Depois de ter sido objecto de discussões nas Cortes vintistas, os padroados (salvo o
da Coroa) foram abolidos pelo dec. de 5.8.1833, reservando ao governo a apresentação dos benefícios
eclesiásticos (cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 236).
1636 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., p. 139.
1637 Concílio de Trento, "Padroado", sess. 25, cap. 9: "Assim como não é justo prejudicar os
legítimos direitos de padroado e violar as pias vontades dos fiéis quanto à sua instituição, também não é
de permitir que, debaixo desta aparência, se coloquem os benefícios da Igreja em servidão, o que
muitos fazem de forma impúdica. Assim, para que se observe em tudo um equilíbrio devido, o Santo
Sínodo reconhece como título do padroado a fundação ou a doação que se demonstre provada por
documento autêntico e outras provas requeridas por direito; ou também por múltiplas apresentações por
tempo antiquíssimo que exceda a memória dos homens ou de outro modo equivalente, segundo a
disposição do direito. No entanto, naquelas pessoas, comunidades ou universidades nas quais aquele
direito as mais das vezes costuma ser obtido sobretudo por usurpação, exigese uma prova mais plena e
exata como título verdadeiro. Nem a posse imemorial lhes valerá senão quando, além de outras coisas
necessárias, se provarem apresentações, continuadas, e pelo espaço não inferior a cinquenta anos, e
sortidas de efeito. Todos os restantes padroados nos benefícios, tanto seculares, como regulares, ou
paroquiais, ou dignidades, ou quaisquer outros benefícios, em catedral, ou igreja colegiada, ou
privilégios concedidos, tanto com efeito de padroado como qualquer outro direito de nomear, eleger
ou apresentar para quando vaguem, são totalmente revogados, sendo tida como nula qualquer posse
deles, exceto os padroados sobre igrejas catedrais e outros que pertençam ao imperador ou aos reis ou
330
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
possuidores de reinos, bem como outras entidades sublimes e príncipes supremos que tenham nos seus
domínios direitos imperiais; assim como os concedidos em favor de estudos gerais. Assim, os benefícios
são concedidos como livres pelos seus colatores, tendo as provisões destes pleno efeito”.
1638 Cf. Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 138, § 160.
1639 Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu […], res. 1, ns. 7/11.
331
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1641 Decr. Greg. IX, III, 38, 24 e 29; Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 140, §
163.
1642Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 145, § 177.
1643António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, nota p. 695 col. 1.
1644 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, n. 30.
1645 Tal é a opinião de Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 144, § 173.
1647 Sobre padroados e comendas, comentadas, em António Manuel Hespanha, “Os bens
eclesiásticos […]”, cit..
1648 Commendare é depositar, D. 50, 16, 186.
332
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
comendador [...] Mas hoje estas comendas (ou beneficia commendatae) justificam-se
mais pelos réditos que dão do que pelo bem da cura de almas” 1650.
§ 1100. Em Espanha, foi este, além disso, o sistema de distribuição das terras
das Américas pelos colonos. O comendador foi originariamente um encarregado
temporário da administração de um território, com a perceção dos respetivos
tributos e as jurisdições espiritual e secular correspondentes, enquanto estas não se
provessem definitivamente os respetivos ofícios. Mas esta ideia de precariedade foi-
se obliterando progressivamente. Solorzano Pereira, que trata longamente da
instituição da encomienda, pela qual se distribuíram aos colonizadores as terras das
Américas, define ainda a comenda como o recebimento de “alguma coisa em
guarda ou depósito, amparo e proteção” 1651. Mas também já lhe acrescenta a outra
dimensão patrimonial, mais próxima da realidade prática da época, ao defini-la
como o “direito de perceber os tributos dos índios, conferido por mercê” (ibid. III,
3, 2 ss.). Na verdade, como refere, estas nomeações “não davam nem conferiam
título algum ao que servia o benefício, só o constituindo como seu depositário,
guardador ou administrador por certo tempo e por causa de evidente utilidade da
Igreja; mas com a faculdade de que pudesse gozar e dispor dos frutos, como se
fosse um beneficiado” (ibid. IV, cap. 15, 5 ss.).
§ 1101. Em Portugal1652, a comenda era definida como um “benefício de coisa
imóvel, retida a propriedade no concedente, de modo a que o usufruto passe para o
aceitante em virtude da fidelidade deste”1653. Discutia-se a sua natureza beneficial,
sendo dominante a opinião de que não se tratava de benefícios eclesiásticos, já que
o múnus que estava subjacente à perceção de frutos nada tinha de espiritual,
consistindo na obrigação de fazer a guerra aos infiéis1654. Era aos párocos das
igrejas da comenda que competiam todas as funções espirituais, para o que lhes era
atribuída uma certa pensão (ou “cota”) extraída dos frutos e rendimentos da
comenda, de que os comendadores eram meros administradores (ibid. n. 22).
§ 1102. Estavam atribuídos em comendas os benefícios, jurisdições e rendas das
ordens militares. Com a integração dos mestrados das Ordens na Coroa, esta torna-
se padroeira destas comendas1655. O rei, como mestre, apresenta a comenda (que
não é um benefício) e o comendador apresenta um vigário perpétuo ou reitor que
provê os benefícios1656. Aí, os comendadores repartiam com os curas (ou vigários
perpétuos) os réditos eclesiásticos, de acordo com o disposto na carta de
concessão1657. Frequentemente, os comendadores tinham os frutos das igrejas e os
cit..
Lourenço Pires de Carvalho, Enucleationes [...], cit., II, p. 10, n. 7.
1653
1655 Cf. lista das comendas de Cristo do padroado da coroa (“as cinquenta comendas do
padroado”), em Jorge de Cabedo, Praxis de patronatu […], cit., cap. 18, n. 1 (p. 66).
1656 Jorge de Cabedo, Praxis de patronatu […], cit., cap. 18, n. 2 a 5; Bento Cardoso Osório diz
que “os reitores das igrejas do padroado real, nas quais foram constituídas comendas, continuam a
apresentar os curas e demais benefícios, como antes” (Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu […],
p. 91, n.1; p. 106, n. 4). Cf. diploma sobre a repartição das apresentações dos benefícios das comendas
e seus rendimentos entre comendadores e reitores em Osório, ibid. p. 93.
1657 Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu […], cit., p. 90, n. 2
333
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
regularum. Rem in bonis nostris habere intellegimur, quotiens possidentes exceptionem aut amittentes ad
reciperandam eam actionem habemus”).
1663 O mar litoral, quanto à jurisdição, era público. Cf. Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum
[...], cit., ad 2, 1, § 1, n. 1 (o mar largo era comum por natureza e insuscetível de apropriação
jurisdicional, embora houvesse pretensões ao domínio jurisdicional do Mar Adriático pelos venezianos,
do Mar Báltico, pelos prussianos, do Mar do Norte, pelos ingleses e, mais tarde, do mar oceano pelos
portugueses e espanhóis).
334
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ocupada e sem prejuízo do uso dos outros 1664. Era o que acontecia com as praias do
mar, em que todos podiam lançar redes ou edificar, desde que não prejudicassem o
direito dos outros1665. Em todo o caso, entendia-se que o domínio privado sobre
estas coisas era de difícil aquisição, apenas se podendo usucapir por posse
imemorial1666. E, fosse como fosse, este domínio estava sempre limitado pela
natureza pública destes bens. Pois os rios, os portos, as margens ribeirinhas
(ribeiras, ripae), estavam abertas ao uso público de todos e cada um – usos como
aportar barcos, amarrá-los às árvores, secar as redes -, mesmo que estivessem no
domínio de alguém; ou seja, apesar da eventual propriedade particular das
margens1667, o seu uso era público1668.
§ 1108. A diferença entre coisas comuns de todos e coisas públicas era que as
comuns satisfaziam o uso indistinto tanto dos homens quanto dos restantes
animais, ao passo que os usos das coisas públicas exigiam capacidades que só os
homens tinham, como pescar ou navegar. Pelo direito das gentes fora instituído nas
coisas públicas um certo domínio (nomeadamente, jurisdicional), de modo a que
essas fossem reservadas aos povos de uma certa circunscrição (comunidade ou
universidade) territorial, de modo a assegurar o uso comum de todos os
habitantes1669. Isso não acontecia nas coisas comuns em sentido absoluto, pois
nestas não havia nenhuma espécie de domínio de uma comunidade particular,
sendo antes absolutamente comuns de todos 1670, independentemente da terra a que
pertencessem, e não podendo sequer ser atribuídas ao primeiro ocupante
(aomcontrário do que acontecia com as coisas públicas)1671.
§ 1109. Os rios podiam ser públicos e privados. Os públicos eram os perenes,
sempre correntes e navegáveis. Privados, eram os que secavam e não se prestavam
à navegação1672. Os privados, por sua vez, diferiam dos próprios, pois este nasciam
no terreno de uma pessoa, correndo apenas por ele. Os rios públicos pertenciam
aos reis por cujo território corriam. O seu uso era público, sendo, por isso, lícito a
sazonal das cheias, e o litoral do mar (litora marium), que variava diariamente com as marés. Este último
não era de ninguém, embora pudesse ser tutelado pelo príncipe; as ribeiras dos rios eram dos donos dos
prédios limítrofes, Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 2, ib. n. 4.
1668 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 2, ns.1 e 2.
1671 Cf. D.1, 8, 4: “Marcianus libro tertio institutionum. pr. Nemo igitur ad litus maris accedere
prohibetur piscandi causa, dum tamen ullius et aedificiis et monumentis abstineatur, quia non sunt iuris
gentium sicut et mare: idque et divus pius piscatoribus formianis et capenatis rescripsit. 1. Sed flumina
paene omnia et portus publica sunt.”; 1.8.5, Gaius libro secundo rerum cottidianarum sive aureorum.
pr. Riparum usus publicus est iure gentium sicut ipsius fluminis. Itaque navem ad eas appellere, funes ex
arboribus ibi natis religare, retia siccare et ex mare reducere, onus aliquid in his reponere cuilibet
liberum est, sicuti per ipsum flumen navigare. Sed proprietas illorum est, quorum praediis haerent: qua
de causa arbores quoque in his natae eorundem sunt. 1. In mare piscantibus liberum est casam in litore
ponere, in qua se recipiant”. V. Ord. fil. 2, 26, 9/10.
1672 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n. 6.
335
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
todos pescar neles1673. Esta conclusão tinha algumas limitações: (i) não era válida
quando o direito de pescar tivesse sido vendido pela cidade ou pelo príncipe,
instituindo um monopólio de pescarias1674; (ii) só se aplicava aos rios públicos; (iii)
não valia se as pescarias tivessem sido adquiridas por particular por prescrição
imemorial, pois este era o tempo de prescrição dos lugares públicos 1675.
§ 1110. Nos rios públicos não se podiam construir azenhas (molendinae) ou
outros edifícios que impedissem o uso público ou a navegação (tal como nas vias
públicas), a não ser com licença do príncipe 1676. Mas, se neles já houvesse azenhas,
outros podiam-nas construir, a não ser que os donos das primeiras tivessem obtido
o privilégio de ser os únicos, ou se esse fosse o costume do lugar 1677.
§ 1111. Já nos rios privados e próprios, só o dono podia pescar 1678.
§ 1112. A distinção entre coisas comuns de todos, coisas públicas, coisas de
uma universidade e coisas particulares foi recebida na doutrina jurídica moderna,
embora com sentidos que não eram os do direito romano e estavam sujeitos a
indecisas polémicas doutrinais.
§ 1113. Na classificação romana, a questão subjacente relacionava-se - como se
refere expressamente no texto das Institutiones – com a questão de saber se as coisas
- em função das utilidades que se satisfaziam com elas - estavam ou podiam estar
no património de um particular ou não. A maior parte das coisas estavam, ou
podiam estar, no património de alguém. Porém, às vezes isto não acontecia quando
certas coisas eram insuscetíveis de apropriação privada. Era o caso, em geral, das
coisas sagradas; mas também o das coisas das universidades, da república ou de
entes coletivos, porque prosseguiam utilidades coletivas1679.
§ 1114. No direito comum, retém-se algo do sentido da classificação das
Institutiones, ligada à oposição entre a natureza pública ou privada das coisas. Com
alguma alteração no sentido da palavra república. No sentido estrito do direito
comum, república era apenas a capital do império ou de um reino que não
reconhecesse superior, sendo privados os restantes burgos e cidades 1680. Mas, em
sentido amplo, o termo aplicava-se também a qualquer cidade em que houvesse
administração da justiça por juízes (e restantes oficiais) próprios, quer estes fossem
instituídos pelo rei ou pelo povo. E, assim, as coisas deputadas para uso da
república – no sentido mais estrito, ou no sentido mais amplo - eram públicas, não
podendo ser vendidas, dadas, doadas ou obrigadas, sob pena de nulidade absoluta
1673 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, ns. 7 a 9; v. Ord. fil.2, 26, 8.
1674 Que tivesse adquirido este direito de alienar por prescrição imemorial, Joannis Oynotomi, In
quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n.10.
1675 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n. 10.
1676 Mas nos privados e próprios, os donos podiam construir livremente, ainda que prejudicassem
tivesse o direito de obrigar os súbditos a ir ao seu moinho não podia proibi-los de ir a um feito de novo,
Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n. 15.
1678 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n. 11.
336
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
(nullius momenti)1681. Públicos eram, neste sentido, os palácios reais, mas também as
casas em que se administrava a justiça1682
§ 1115. Outras classificações das coisas (dos bens) no direito comum eram,
porém, suscitadas por outras preocupações. O conceito de bens do rei (regalia)
surgiu, na esteira de uma constituição de Frederico II – inserida nos Libri
feudorum1683 e transposta para as Ordenações, Ord. fil. 2,26, Dos direitos reais 1684 -
para designar os bens que, pela sua natureza (ou seja, segundo a constituição
tradicional do reino), pertenciam ao rei e que, por isso, ou não podiam sair do seu
património ou só saíam dele por um ato de disposição do rei. Subsidiariamente, o
conceito servia para interpretar atos jurídicos, nomeadamente doações régias. Já
com o conceito de bens da coroa (bona regiae coronae), se queriam identificar os bens
que, por pertencerem à coroa do reino, de que o rei era apenas um administrador,
não podiam ser dela separados a título definitivo, mas apenas a título precário e
temporário. No âmbito dos bens do rei, outras distinções existiam, correspondentes
a designações usadas na lei ou na doutrina - reguengos, bens fiscais, bens dominiais
do rei, sesmarias1685 (v. cap 2.4.3.3.2).
§ 1116. Já com o conceito de bens alodiais se queria significar os bens que, pela
natureza da sua função, pertenciam naturalmente a um património privado. Os
bens - ou coisas - presumiam-se alodiais, porque a relação entre os homens e os
seus bens compreenderia, originariamente, todas as faculdades de uso e de
disposição; embora, depois disso, se tivessem introduzido outros modelos de
pertença patrimonial.
§ 1117. São estas grelhas de classificação que vão ser aplicadas às situações
concretas existentes na prática, situações essas que tinham tido origem nas
circunstâncias da história e na sua leitura através de categorias jurídicas de várias
procedências e desenhos jurídicos diferentes dos do direito romano.
§ 1118. A distinção entre bens públicos e privados permanece, mas a sua
relevância esbate-se perante a necessidade de classificar de forma mais fina a
situação, quer a dos bens públicos, quer a dos bens privados.
4.2.2.2 Coisas públicas ou do rei (regalia).
navigabilia et ex quibus fiunt navigabilia, portus, riparica, vectigalia, quae vulgo dicuntir telonia,
moneta, multarum poenarumque compendia, bona vacantia et quae ut ab indignis, legibus auferentur,
nisi quae specialiter quibusdam concedentur; et bona contrahensium incestas nuptias, condemnatorum
et proscriptorum [...]; angariarum, perangariarum, et plaustrorum et navium praestationes, et
extraordinaria collatio ad felicissimam regulis numinis expeditionem, potestas constituendorum
magistratum ad iustitiam expediendam; argentariae et palatia in civitatibus consuetis; piscationum reditus
& salinarum, et bona committentium crimen majestatis, dimidium thesauri in loco Caesaris inventi,
non data opera, vel loco religioso; si data opera, totum ad eum pertineat”; interpretação e comentário,
Philipus Ernestus Bertram, De genuino sensu ac valore constituionis Friderici I. Imp. II. F. 56, Halae
Magdeburgicae, Io. Friderici et Frid. Augusti Grunertorum, 1765); outro conceito importado do direito
feudal era o de alódio (ou bens alodiais), Libr. feud. 2, 54.
1684 Onde, no fundamental, se reproduz a lista dos regalia do direito feudal lombardo.
337
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1686 Em geral sobre a evolução (sobretudo medieval) do conceito de regalia. H. Thieme, “Die
Funktion der Regalien”, em Z. d. Savigny-St. Germ. A. 62(1942) 57 ss.; I. Ott, “Der Regalienbegriff im 12
Jahrhundert”, em Z. d. Savigny St. Kan. A. 66(1945) 234 ss.; G. Astuti, La formazione della stato mudemo in
Italia, l, Torino 1967, 50. Para o conceito de "direitos reais" no período iluminista, em Portugal,
António Ribeiro dos Santos, papéis sobre "direitos reais", em cods.. Bib. Nac. Lisboa, 4670, 4677.
1687 Corresponde a Ord. af. 2, 24. Existem outras enumerações. Cf. António Manuel Hespanha,
imemorialem debentur”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, ad. 2, 26, rubr.. gl. 1, n. 5.
1690 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, ad 2, 26, rubr. gl. 1, n. 4..
1692 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9 ad Ord. 2, 28, ad rubr. n. 87; Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., I. 2, c. I. n. 16; Jorge de Cabedo, Decisiones […],
dec. 42, n. 3.
1693 Como criar magistrados, capitães, cunhar moeda, legitimar ilegítimos.
1694 Enumeração e regime: Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3,
cap. 1 (tributos); cap. 2 (Angarias e perangarias [serviços dos vassalos]); caps. 3 e 4 (ruas e estradas); cap.
5 (moinhos); cap. 6 (portos); cap. 7 (ilhas); cap. 8 (coisas comuns); cap. 9 (caça e pesca); cap. 10
(palácios); cap. 11 (sal); cap. 12 (veios e minas), cap. 13 (tesouros); cap. 14 (bens vagos); cap. 15
(heranças ab intestato).
1695 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9, ad Ord. fil.2.28, ad rubr. n. 87;
“non est quies sine armis, nec arma sine stipendiis, nec stipendia sine tributis habere possunt”;
338
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
acolhendo outra definição, os regalia minora "dizem apenas respeito aos proventos fiscais e aos frutos
patrimoniais" (Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., t. I. l. 2, c. I. n. 19).
1696 Por isso se dizia, reforçando ainda mais essa indisponibilidade pelo rei, que as terças dos
concelhos e das multas agrárias ou coimas (prov. 18.11, 1577, alv. 18.1.1613) eram “dos povos” e não
dos reis (v. Ord. fil.2, 28, 2), sendo este apenas o seu administrador (cf. sobre a sua arrecadação, Ord.
fil.1, 70, 3).
1697 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 ad Ord.2, 28, ad rubr. n. 87.
1698 V. Ord. fil. 2, 16, proibindo que entidades isentas adquiram bens nos reguengos.
1699 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria as Ordinationes […], cit., ad Ord. fil.4, 43, pr. ns. 3 e 4
(“quia regulariter quidquid est intra fines territorii praesumitur esse illius, cujus est territorium”).
1700 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria as Ordinationes […], ad Ord. fil.4, 43, pr. n. 5 (abona-se
de Cabdeo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 112 (“De agris desertis”), n. 3; e Álvaro Valasco, Tractatus de
jure emphyteutico […], cit., qu 8, n. 38.
339
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1702 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 ad Ord.2, 28, ad rubr. n. 89.
1703 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 ad Ord.2, 28, ad rubr. n. 90.
1704 O que fosse isto, v. Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 ad Ord.2, 28,
340
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1128. O que dava unidade a esta categoria de bens do rei era a sua vinculação
ao sustento do estado real e às funções que lhe eram inerentes, desde o exercício da
mais elevada jurisdição até ao governo corrente do reino ou mesmo ao simples
mantimento da casa do rei1705. É esta referência ao rei que lhes dava a todos uma
presumível natureza pública. Mas essa natureza não conduz a uma unificação do
seu regime, nomeadamente quanto ao sentido e modalidades da sua alienação ou
concessão a particulares. A possibilidade da sua concessão estava antes relacionada
com o tipo de titularidade que o rei detinha sobre eles. Se os tinha como
administrador da coroa, ou de certas finalidades destes bens, os seus poderes de
concessão eram restritos. Se os detinha como “senhor universal”, podia geri-los
com a liberdade próxima de um particular.
4.2.2.3 Bens da coroa.
§ 1129. Uma outra categoria das coisas públicas, presente na doutrina
portuguesa era a de bens da coroa 1706, usada na Lei Mental1707 (v. cap. 2.4.3.5). A
definição de bens da coroa também suscitava nos autores a complicadíssima
questão da classificação do património régio. Nela confluám diversos tópicos
doutrinais, além de que as classificações variavam consoante o seu objetivo
dogmático (v.g. definição dos direitos inalienáveis da coroa1708, dos direitos
prescritíveis1709, ou dos direitos concedidos por doação genérica) (v. cap. 2.4.3.6).
§ 1130. Na perspetiva da Lei mental, o autores distinguem, normalmente, (i) o
património “privado” do príncipe, constituído por aqueles bens que ele possuía antes
de ser rei e (ii) o património público ou da coroa, neste se distinguindo (ii a) o património
fiscal, que compreende os reguengos, as sesmarias, os bens dos confiscados e, em
geral, todos os bens não (ou ainda não) incorporados expressamente na coroa do
1705 Não era licito que o rei usasse e fruísse dos bens púbicos senão para ocorrer às necessidades
comuns e ao bem da República, v. Domingues A. Portugal. De donationibus […], cit., liv. II, cap. IV.
1706 António Manuel Hespanha, História das instituições, cit., pp. 286/287.
1707 A Lei Mental, com as declarações e interpretações a que foi sujeita, foi incorporada nas Ord.
Man. 2, 17, donde passou para as seguintes (Ord. fil. 2, 35). Comentários à Lei Mental, muito úteis para
a sua interpretação no séc. XVII, em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomos 10 e 11.
1708 Cf. v.g. a classificação de Domingos A. Portugal, De donationibus [...], cit., p. 2, c. I. n. 15.
1709 Cf. v.g. a classificação de Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, p. 308; Jorge de
341
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
reino, e (ii b) o património da coroa do reino. Este último era constituído: (ii b 1) pelos
direitos reais (enumerados, v.g. em Ord. Af. II, 24, Ord. Man. II, 15, Reg. Faz. cap.
127 e Ord. fil. II, 26) e pelos tributos (bens da coroa do reino "por natureza"); e (ii b
2) pelos bens expressamente incorporados na coroa por meio do seu registo nos
livros dos próprios da coroa do Arquivo Régio 1710.
Património Privado
Património fiscal
Património Público Direitos reais
Património da coroa Tributos
Bens incorporados
1710 Formalidades em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t.. 10, p. 16, n.8.
1711 Commentaria, tomo 10, pg 13, n.l; t. 2, pg.2.
1712 Domingos Antunes Portugal, De donationibus [...], cit., t. 2, p. 3, c. 43.
1714 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 13, n. 2. Ainda na época iluminista,
quando a distinção "público-privado" já renascia, a distinção é tida por despicienda, Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., I, 36.
1715 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, lac. cit., ns. 5 ss.
342
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1716 Como teria acontecido com D. Duarte, a quem a prodigalidade de seu pai teria deixado rei
“das estradas de Portugal”. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, ns. 13 e 14:
“Rex non potest alienare bona Coronae … quod bona Regni non sunt própria ipsius Regis, imo sunt
illius dignitatis regalis; et non tamtum illa bona Coronae alienare non potest, sed debet revocare alienata
[…] Rex tamen bene poterit facere modicas donationes de bonis Coronae […], non tamen ita largiter,
ut magis videatur prodigalitas, quam benevolentia”.
1717 Cf. sobre o regime das doações de bens da coroa, António Manuel Hespanha, História das
instituições […], cit., 382 ss.; Id. As vésperas […], cit., 402 ss..
1718 A própria doutrina era hesitante e cheia de modulações e adversativas, como se pode ver desta
síntese: “Rex potius debet habere ratum factum sui praedecessoris, quam invalidum, si aliquod
praejudiciale non continerat, quoniam beneficium Principis debet esse permanens, et non debet
recipere diminutionem […] Non tamen ita, quod ad hoc obligetur vi coactiva, sed vi directiva; quoniam
unus Rex, seu Princeps, non imponuit legem alteri successori”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s.v. “Rex”, n. 15.
1719 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., c. 167, n. 5; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p. 2,
dec. 1 ss. (maxime dec. 19, n. I ss.); Domingos Antunes Portugal, De donationibus […], cit., p. 2, c. 7, n.
25 (baseado na piedade que o rei deve votar às decisões dos seus maiores e na regra "corona nunquam
moritur"); Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad 2, 45, 12, gl. 14, ns. 4 e 5 (pg.
167), Fontes: Ord. fil. 2, 35 e 2, 38. Cf. sobre o assunto, António Manuel Hespanha, As vésperas […],
cit., 408 ss..
343
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1720 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 12, ad 2, 45, 12, gl. 14, ns. 4 e 5 (pg. 167).
1721 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 403 ss..
1722 L. Praeterea, dos Lib. feud. 2, 55, pr./1; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 1,
p. 424, nº 8. A indivisibilidade do reino era o tópico inspirador: “Regnum debet esse unicum, & non est
dividendum, quoniam si Regnum dividatur, cito destruetur, et unicus prínceps in eo esse debet”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, 12.
1723 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 11, pg. 41, n. 2.
1724 Alguma jurisprudência dos sécs. XVI e XVII alargava o princípio da indivisibilidade à sucessão
nos reguengos (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 11, c. 20, pg. 40; Jorge de Cabedo,
Decisiones […], cit., p. 2, dec. 27, n. 5.
1725 A solução proposta era a do direito feudal e também a do direito castelhano dos morgados (lei
40 de Toro). Contra, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 109, n. 55, invocando
apenas a razão dogmática de que nos feudos não se dava a representação. A solução será adotada por D.
João IV - a pedido das cortes de 1641 (cap. 27 da nobreza e 26 do clero); cf. capítulos gerais, pp. 55, 76
e 8]. Sobre a divisibilidade dos feudos no direito comum (nomeadamente, sobre a distinção entre
feudos divisíveis e indivisíveis, ou per modum maioratus), Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit.,
tomo 11, pg. 59 e pg. 105, n. 3.
344
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1140. Desde logo - como aliás a própria lei previa (Ord. man. 2,17,23) - o rei
podia dispensar a sua aplicação. Mas, além disso, o âmbito de aplicação da Lei
mental não abrangia, zonas extensas da liberalidade régia. De facto, não estavam
sujeitas à lei: (i) as concessões de bens de reguengos ou de sesmarias, as concessões
em enfiteuse de quaisquer bens da coroa (mesmo de bens da coroa em sentido
estrito, embora esta hipótese não fosse comum), ou as suas concessões para fins
não nobres (isto é, para povoamento ou cultivo, ad habitandum ou ad excolendum) 1726;
(ii) as doações de bens das ordens militares 1727; (iii) as doações feitas à Igreja, pois os
bens da coroa perdiam então a sua natureza e tornavam-se bens eclesiásticos,
amortizando-se no donatário1728. Alguns autores defendiam mesmo a opinião - que
poderia tirar todo o alcance prático à lei - de que não estavam sujeitas à lei mental
as doações remuneratórias de serviços; mas esta opinião nunca se tornou
dominante1729.
4.2.2.4 Reguengos.
§ 1141. As terras da coroa do reino eram concedidas, como vimos, visando a
contrapartida de serviços nobres, como o auxílio e o conselho (auxilium et consilium).
A sua concessão estava sujeita ao regime especial da Lei Mental (v. cap. 2.4.3.5).
§ 1142. Para além destas, havia as terras que o rei detinha enquanto privado e
de que dispunha de acordo com as regras do direito comum, entre vivos ou por
morte, como qualquer privado.
§ 1143. Sobravam ainda as terras reguengas ou reguengos, a que se referem as
Ordenações nos títulos 2,30, 2,31, 2,16, 2,17, 2,22 e 2,331730. Eram referidas nas
Ordenações para atribuir aos seus moradores o privilégio de não estarem sujeitos aos
encargos dos concelhos, para proibir que os privilegiados (clérigos, fidalgos e
cavaleiros) aí adquirissem bens, para sujeitar as terras reguengueiras ao tributo das
jugadas e para estabelecer algumas peculiaridades das concessões de terras
reguengueiras.
§ 1144. Os reguengos eram os bens que pertenciam ao príncipe como tal, em
razão do seu império e principado1731 e que, no reinado de D. Pedro I, tinham sido
registados nos livros “dos próprios” (tombo dos bens particulares do rei). Claro
que desde aí o rei tinha adquirido outros bens que, com algum que não tivesse sido
então tombado, constituíam os bens puramente patrimoniais do rei (cf. § 1142).
Sobre esses bens, o rei tinha reservado um tributo em sinal de reconhecimento de
1726 Ord. man. 11, 17, 6; para a interpretação, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10,
1728 As doações de bens da coroa feitas à igreja tinham importantes especialidades: uma delas era
esta de não estarem sujeitas à Lei Mental (nem a confirmação, v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria
[…], cit., t. 12, p. 132, n. 9); daí que se não encontre registo dessas doações nas confirmações gerais
ou nas listas de donatários da coroa. Outra era a de não poderem ser impugnadas por excessivas ou por
lesivas, não estando assim sujeitas às restrições que a doutrina fazia às doações régias (cf. para este
último ponto, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, c. 35, p. 258 ss.).
1729 Cf. a discussão em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 402, n. 5; este autor
não adere à posição mais radical, restringindo a doutrina ao caso de doação feita a não súbdito, pois os
serviços do súbdito eram devidos e, logo, as doações não seriam remuneratórias.
1730 Cf. ainda Ord. fil.2, 18, 6 e 2, 22.
1731 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 8, ad 2, 16 gl. 1, ns. 1 e 2.
345
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1732 V. Ord. fil.2, 33. Sobre a sua origem e correspondência com tributos de direito comum, v.
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 33, rubr. n. 1 a 4. A doutrina moderna
discutia se as jugadas eram um tributo ou uma prestação contratual. Gabriel Pereira de Castro e Álvaro
Valasco, nos seus tratados sobre a enfiteuse, inclinavam-se para a natureza tributária, mas Manuel
Álvares Pegas discordava deles, preferindo a natureza contratual, estribado em indícios literais (v.g. Ord.
fil.2, 27, 2 fala em “contrato”), v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 33, rubr.
n. 6. A jugada incidia sobre as produções em trigo, milho, vinho e linho (Ord. fil.2, 33, pr.; ou noutros
frutos expressamente referidos no foral, v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad
Ord. fil.2, 33, pr. c. 10, n. 23), sendo a sua taxa de um oitavo (salvo diferente disposição do foral, Pegas,
ibid. n. 25), sem dedução das despesas de cultivo (v. Pegas, ibid. cap. 18, n. 90-91). Era um tributo geral,
devido por todos, mesmo pelos privilegiados, salvo privilégio ou isenção expressa no foral, registado
nos livros de jugadas (v. Pegas, ibid. cap 24, n. 119). Por lei de que resultou a Ord. fil.2, 29, D. Manuel I
teria revogado privilégios antigos de fidalgos, cavaleiros (Pegas, ibid. n. 143), subsistindo apenas uma
isenção bastante restrita e condicionada da Igreja (Ord. fil.2, 22, v. Pegas, ibid. ns. 145 e 146). As jugadas
incidiam, portanto, sobre clérigos, cónegos e bispos, (Ord. fil.18, 6; comentário, Pegas, ibid. n. 183 ss.
max 187 e 189); comendadores (ibid. n. 201; vereadores, juízes, oficiais dos concelhos (ibid. n. 203;
juízes de altos tribunais (ibid. n. 204); Hospitais (ibid. 218); bens das capelas (ibid. n. 231); confrarias (ibid.
n. 232); colégios e universidades (ibid. n. 233). Em todo o caso, era comum que os forais isentassem das
jugadas os “cavaleiros”, o que fornecia uma boa base para disputar sobre a obrigatoriedade de as pagar
(v. Pegas, ibid. ns. 213 ss. e 247 ss.: moedeiros, bombardeiros, desembargadores e seus colonos,
cavaleiros isentos pelas cartas de forali, ibid. n. 257 ss. sempre com muitas decisões judiciais). Como era
um ónus real, transmitia-se com a coisa, mesmo que o adquirente fosse privilegiado, v. Pegas, ibid. c.
24, ns. 120 ss.; 140 ss.) e atribuía ao rei ou donatário um privilégio executivo em relação a outros
credores (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ibid. cap. 6, n. 18). As jugadas eram
pagas pelos colonos (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ibid. ns. 19 e 202).
1733 Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici, cit., qu. 13, n. 1,
346
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
reguengueiros, que pagam tributos a algum castelo e seu alcaide, e que não pagam
imposto ou cânon ao príncipe, e que não foram considerados neste assunto
[...]”1734.
§ 1146. Poucas destas terras reguengueiras – como, de resto, as terras
patrimoniais do rei – eram exploradas diretamente ou cedidas a título de
arrendamento. Quando o eram, a sua administração era assegurada pelos
almoxarifes e seus oficiais: os almoxarifes do reino ou de almoxarifados
especiais1735. Quando doadas, as terras jugadeiras ficavam no domínio pleno (ou
alodial) do possuidor, sem comisso, laudémio ou necessidade de licença do príncipe
para alienar, a não ser que tivesse havido pacto em contrário 1736. Então, podiam ser
vendidas, aforadas, dadas em censo, integradas em capela ou morgado1737, sendo as
suas rendas igualmente administradas pelos almoxarifados respetivos. Se a jugada
não fosse paga, o jugadeiro não caía em comisso, como aconteceria se fosse um
foreiro. Se não fosse cultivada, a jugada não era devida, pois supunha uma colheita.
Mas o prédio podia ser retirado ao seu dono e dado em sesmaria a quem o quisesse
cultivar1738.
§ 1147. Mas o rei também podia dar terras reguengas em enfiteuse, ou impor-
lhe um censo. Porém, a criação de uma segunda imposição – neste caso, o foro ao
rei - sobre a mesma terra libertava-a do pagamento da jugada. Não porém, se a terra
jugadeira fosse dada em enfiteuse pelo seu possuidor, pois nesse caso não se
verificavam as razões para que a jugada deixasse de se pagar 1739.
4.2.2.5 A concessão de coisas públicas.
§ 1148. A concessão de bens da coroa é tratada a propósito dos bens da coroa
do reinos (v. cap. 2.4.3.5) e do contrato de doação (v. cap. 6.9.2.1.2).
§ 1149. O regime de concessão de ofícios foi referido no capítulo a estes
dedicado (v. cap. 2.6.5.1).
§ 1150. A concessão de mercês é referida a propósito do contrato de doação (v.
cap. 6.9.2.1.1).
§ 1151. A concessão de terras sem jurisdição foi tratada no cap. 4.2.2.4. Uma
modalidade especial (as sesmarias) será tratada de seguida.
4.2.2.6 Sesmarias.
§ 1152. A figura fora inspirada pelo direito romano (agri deserti: C. 11.62. De
fundis patrimonialibus et saltuensibus et emphyteuticis et eorum conductoribus;
C.11,58; De censibus et censitoribus et peraequatoribus et inspectoribus,7,2),
1734 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 30, rubr. ns. 3 e 4, p.330.
1735 Cf. Ordenações da fazenda, de 17.10.1516, em José Roberto Monteiro de Campos Coelho e
Sousa (org.), Systema […], cit.; António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 116, 214.
1736 V. Ord. fil.2, 17; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 33, rubr. cap. 4,
1738 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 33, rubr. cap. 5, n. 17..
1739 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 33, rubr, ns. 234 a 239. As
razões eram que o rei (neste caso, por meio de um colono seu) não devia pagar impostos a si mesmo e
de que uma coisa não devia pagar dois tributos (tal como acontecia na sisa, que não era paga pelas
vendas de coisas do rei), embora pudesse pagar duas prestações privadas.
347
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1740
Arq. Hist. Mun. Coimbra /Pergaminhos Avulsos, nº 29. [fl. 1] V. https://www.cm-
coimbra.pt/index.php?option=com_docman; http://www.silb.cchla.ufrn.br/downloads/tabelmon.pdf.
Fontes doutrinais: Mauro Luís de Lima, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae, (ex liv. 4, 36 [usque
4, 79, 3]) ad perficiendum operam ab Emmanuel Gonçalves da Silva, I (e único), Olisipone, Francisco Luis
Ameno, 1761; Álvaro Valasco, Tractatus de iure emphyteutico […], cit., qu. 8, ns. 34 ss.; Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., 2 p. dec. 112, n. 4; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit, 1, 7, 3 e 4; 3, 1,
8; Historia […], § 61.Manuel de Almeida e Sous (Lobão), Notas […] a Melo […], cit., 1, ad 1, 7, 3 e 4,
p. 231; 3, ad 3, 1, 8 p. 63;
1741 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, pr. ns. 3 a 5.
1742 Terras tributárias ou fiscais, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112, n. 1;
Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 3 a 41). Assim se entende a
observação de Manuel Álvares Pegas de que uma terra jugadeira podia ser dada em sesmaria, caso não
fosse cultivada (“Si terra, ex qua jugata solvenda esset, non colatur, et praemissa notificatione dominus
non parverit, alteri in perpetuum titulo, vulgo sesamria concedi potest”), Comentaria […], cit., tomo 9
ad Ord. fil. 2, 33, gl. 1, cap.5, n. 17.
1743 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112, n. 3, Mauro Luís de Lima, Commentaria
348
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1747 Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil. 4, 43, pr. n.6; Idem. ad Ord. fil. 4, 43, 9,
n. 5; Idem, ad Ord. fil.4, 43, 12, n. 1; abona-se em Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112
(“De agris desertis”), ns. 2 e 3; Idem. p. 1, aresto 46; Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […],
cit., qu 8, n. 38 a 42; Francisco de Caldas Pereira e Castro, Analyticus commentarius sive ad typum instrumenti
emptionis […], cit., cap. 21, n. 6). Ord. fil.4, 43, 12, Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., Ord.
fil.4, 43, 12, ns. 2 a 4. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit..
1748 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p.1, ar. 46.
1749 V. Ord. fil.4, 43, 9; Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap.
43, n. 90; Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 9, ns. 1 e 2; Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., p. 1, aresto 46. Aos vizinhos competia uma ação de dano contra os concessionários,
Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 12, n. 2.
1750 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 11, ns. 1 a 4: cada é um
árbitro das suas coisas, desde que disponha delas de acordo com as leis e os bons costumes; sobre
tentativas de fraude à lei, Ord. fil.4, 43, 8.
1751 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 15, n. 6.
349
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1752 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 6, ns. 1 e 2; lembra Ord. fil.1,
1754 A falta de citação originava a nulidade do processo subsequente (Mauro Luís de Lima,
Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 1, ns. 1 a 3; ad Ord. fil.4, 43, 2).
1755 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., da Ord. fil.4, 43, 4, ns. 4 e 5.
1756 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 3 ns. 1 e 2; ad Ord. fil.4, 43, 4,
ns. 1 e 2.
1757 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 3, n. 3.
1758 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 5, n. 3.
1760 Bibl.: Erivaldo Fagundes Neves, "Sesmarias em Portugal e no Brasil", Politeia. História e
sociedade, 1.1(2001) 111-139; Marcia Mota, Nas fronteiras do poder. Conflitos de terras e direito agrário no Brasil
de meados do séc. XIX, Rio de Janeiro, Vício de Leitura, 1998; Laura Beck Varela, Das Sesmarias à
Propriedade Moderna, Rio de Janeiro: Renovar, 2005; Carmen Alveal, Converting Land into Property in the
Portuguese Atlantic World, 16th-18th Century. Tese (Doutoramento em História) – Johns Hopkins
University, 2007; Rafael Chambouleyron e Karl-Heinz Arenz, Anais do IV Encontro Internacional de
História Colonial. Vol. 2. Terra e império: os direitos de propriedade na América portuguesa em perspectiva comparada,
Belém, Açaí, 2014. Projeto de publicação de cartas de sesmaria:
350
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/demarcacao-de-territorio.
1761 “Universitas collectio plurium hominum, uno nomine specialiter eis deputato, ut est
universitas civiumn, vel scholarum … collegium pistorium, sartorum et aliorum artificium, qui possunt
habere res communes, nemora, pascua, piscinas, salinas, vectigalia, et aliam item pecuniam in aerario
seu arcam communem, et hae dicuntur res universitatis, quae non sunt singulorum separatim, sed
omnium et universirum de universitate usibus & conjunctim destinatae”, Joannis Oynotomi, In quatuor
institutionum [...], cit., ad 2, 1, 6, n. 1.
1762 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 6, n. 2.
condenada e não tivesse bens, era obrigada a lançar uma coleta sobre os seus membros, ibid. n. 4. Por
outro lado, a coletividade não ficava obrigada por dívida contraída pelo seu administrador a não ser que
tivesse atribuído um especial mandato para tal ao administrador ou que a soma mutuada fosse gasta em
utilidade comum, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, nº 39.
1764 As coisas deputadas para uso da república não podiam ser vendidas, doadas ou obrigadas, sob
pena de nulidade nullius momenti, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 40.
351
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
ou, pelo menos, deu uma nova forma jurídica a antiquíssimos modelos sociais de utilização da terra. A
primeira categoria de terras dentro dos alfozes concelhio é a das terras atribuídas a título individual,
perpétuo e hereditário aos seus habitantes, mediante certas contraprestações contidas no foral. Eram
terras de propriedade alodial sujeitas apenas a ónus tributários (terrae de ius privatum salvo canone). Outra
categoria era a das terras pertencentes à coroa e que esta tinha reservado para si depois da constituição
do concelho. Eram os reguengos do concelho, sujeitos aos regimes dos reguengos em geral, e cujos
moradores gozavam de determinados privilégios em relação aos deveres dos vizinhos para com o
concelho (Ord. fil.2, 30 e 31). Cf. António Manuel Hespanha, História das instituições […], cit., 137.
1768 Sobre as modalidades sociais, políticas e jurídicas da gestão dos bens comuns dos concelhos,
v. Laureano M. Rubio Perez, “El regimen comunal y la gestión del común en el noroeste de la Peninsula
Iberica, siglos XV-XIX” em http://congresonoroiberico.com/documentos/20121105%20-
%20LAUREANO%20M.%20RUBIO%20-%20ponencia.pdf.; María José Pérez Álvarez & Laureano M.
Rubio Pérez, “Familia y comunidad rural. Modelos agrarios, colectivismo social y comportamientos
familiares en la provincia de León durante la edad moderna”, em
http://revistas.usal.es/index.php/Studia_Historica/article/view/shhmo201436177222
352
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1769 V. Ord. fil.4, 43, 12 e 15; 1, 66, 17. Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 112; p.
1, ar. 46.
1770 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., 2, 1, 7.
1771 O abandono de uma coisa (derelictio) supunha não apenas um ato físico – de largar o bem, de
deixcar de o usar (abjectio) - mas ainda a intenção de abandonar (o animus derelinquendi). Os exemplos mais
comuns eram o abandono de animais ou o lançamento ao mar da carga de um navio, para o salvar (cf.
D.14, 2 14.2. De lege Rodia [Rhodia] de iactu). Se faltava a intenção de abandonar, como no caso de uma
coisa perdida, a propriedade não se extinguia, devendo o achador entregar a coisa ao dono, se
soubesse de quem era, ou anunciar publicamente (por pregão ou comunicação às autoridades) o achado.
Se o dono não aparecesse, a coisa devia ser entregue aos pobres e não apropriada pelo achador (salvo se
este mesmo fosse pobre, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 20). Além disso,
o achador não podia usucapir a coisa (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 19),
nem sequer pedir alvíssaras pela sua entrega ao dono (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Res”, n. 22).
1772 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 21.
1774 “Regnum quod detinetur a faucibus Turcarum, Maurorum, aut quorumcumque infidelium,
potest a quocumque recuperari; & optimum, & justum bellum est illud, quod movetur contra infideles,
& inimicos nostrae fidei Catholicae, & quicumque redemerit, aut recuperaverit, consequetur plenum
dominium illius […]” António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, 18.
1775 Inst. Gaii, 2, 69.
353
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1776 Distinguia-se da compropriedade porque nesta cada um podia dispor da sua parte, embora não
do todo.
1777 Salvo para pagamento de dívidas da herança, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Res”, n. 17. Em Portugal, a carta de Lei de 9 de Setembro de 1769, § 1, distinguiu entre bens
hereditários e adquiridos, identificando os primeiros com bens de família que não podiam ser deixados a
estranhos havendo familiares até ao 4º grau de direito canónico, embora não definisse uns e outros.
Essa lei foi revogada por D. de 17.7.1778 (cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 1, 10).
1778 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, ns. 7 a 10.
1780 Que se distinguiam dos direitos às coisas (iura ad rem), que consistiam em obrigações de uma
pessoa em relação a outra referente a coisas. Sobre esta sistematização, Arnold Vinius, In quattor libros
Institutionum […], cit., 2, 1, 11, 1.
1781 “Possessio est ius quoddam, quo aliquis rem corporalem vere in potestate habet, et dicitur
corporalis rei detentio a pedum positione, quoniam sola corporalia possidentur, incorporalia vero non
possidentur, sed quasi, et quasi traduntur per potentiam, & usum; incorporalia enim non possunt
corporaliter aprhendi, sicut sunt iura et servitutes, & ideo non possidentur”, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.1.
354
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
poder sobre uma coisa corpórea, designando a detenção da coisa corpórea a partir
de imposição dos pés”1782. O autor segue explicando, com base em textos
medievais, sobretudo canonistas, que as coisas incorporais – como os direitos e as
servidões -, por não poderem ser apreendidas fisicamente, não podiam ser objeto
de posse, mas apenas de como que de uma posse (quasi possessio). Esta vinculação
materialista da posse – que caracterizaria também os direitos germânicos –
contrastava com a extensão do conceito a essas situações de detenção de coisas
imateriais desprovidas de uma entidade corporal.
§ 1177. A compatibilização entre o lado material da posse, a sua ligação a uma
situação de poder de facto sobre um corpo, e o seu lado desmaterializado, que
autorizava a falar de quase que uma detenção de um direito, faziam-na os juristas ao
distinguir a posse natural e a posse civil, na esteira de um texto do Código de
Justiniano1783. Dando-lhe, porém, uma pequena volta. A posse natural não seria a
posse sobre coisas materiais, mas a posse que se traduzia em atos materiais,
externos, de uso (corpus possessionis). Enquanto que a posse civil não seria a que se
exercia sobre coisas imateriais, mas antes aquela que se traduzia numa disposição
puramente interna, a intenção de possuir a coisa para si mesmo ou em nome
próprio (animus possidendi), a qual produzia efeitos também imateriais de direito,
ligados a uma intenção de deter1784. Ambas podiam coexistir. Mas podia ocorrer
que se distribuíssem por titulares diferentes. O exemplo típico era o da enfiteuse
(da enfeudação, do usufruto), em que o senhor direto detinha a posse civil da coisa,
sem qualquer tradução fáctica (por isso, falava-se da nua propriedade), e o enfiteuta
(colono, feudatário, usufrutuário) detinha os poderes palpáveis de usar a coisa, a sua
posse útil1785.
§ 1178. A distinção, cuja construção foi laboriosa, tinha alguns pontos fracos.
Um deles era que algum conteúdo interno era necessário para distinguir a posse da
mera detenção de uma coisa, como a do arrendatário, do depositário, do guarda. É
que estes, satisfazendo o aspeto externo da situação de posse, não tinham a
intenção interna de possuir em nome próprio, agindo como possuidores em nome
alheio, simples detentores1786. E, por isso, a sua detenção material da coisa – a mera
detenção - não se considerava como posse nem conduzia a nenhuma das
consequências desta (nomeadamente, usucapião, proteção judicial por remédios
possessórios).
§ 1179. Esta distinção refletia-se nas formas de adquirir e de perder a posse. A
posse natural adquiria-se por atos humanos externos relativamente a uma coisa:
usá-la (abrir e fechar as suas portas, deter as suas chaves, cultivá-la), exercer os
direitos correspondentes (receber os proventos de uma coisa, de um direito ou de
um cargo), exibir por atos externos uma qualidade (v.g. a de filho, a de nobre). E
perdia-se ou pelo abandono da coisa possuída ou pelo consentimento de atos
1782 D.41.2 De adquirenda vel amittenda possessione, 1: Paulus libro 54 ad edictum.”Pr. Possessio
appellata est, ut et Labeo ait, a sedibus/pedibus (?) quasi positio, quia naturaliter tenetur ab eo qui ei
insistit, quam Graeci katoxyn dicunt”.
1783 7.32.10. “Imperator Constantinus. Nemo ambigit possessionis duplicem esse rationem, aliam quae
1785 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, ns. 4-5.
355
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
externos de uso exercidos por outros e incompatíveis com o próprio uso 1787. Ou
seja, tudo se passava no plano dos comportamentos fácticos. Já a posse civil,
consistindo apenas numa intenção e num efeito de direito correspondente, embora
exigisse um ato inicial que exprimisse a intenção de possuir (animus possidendi)1788,
não precisava de outros factos externos subsequentes, extinguindo-se quando
desaparecesse a tal intenção de possuir 1789. Porém, o fim da posse civil podia
também ser traduzida por um ato expresso de renúncia ou transferência da
posse1790. Tal era o caso de um contrato de cedência da posse, como a venda, a
troca, a doação ou o constituto possessorio, cláusula (ou pacto) pelo qual se
convencionava que a posse da coisa vendida mudasse de natureza por mero efeito
do contrato (v.g. de posse em nome próprio a mera detenção em nome de outrem)
independentemente de um ato material de transferência 1791. De qualquer modo,
tudo (quase tudo, fora o ato inicial de manifestação do animus possidendi) se passava
no plano do direito.
§ 1180. Outra consequência da distinção entre posse natural e civil era que,
sendo a posse natural uma situação de facto, podia ser adquirida por incapazes de
atos jurídicos a favor daqueles que fossem a sua cabeça, em termos de direito (os
filhos, mesmo se crianças, em relação ao pater; os escravos, em relação aos donos).
A aquisição da posse civil já era mais exigente, pois baseava-se numa intenção
reconhecida como válida pelo direito e, por isso, não podia ser protagonizada por
incapazes1792. Podia, porém, ser adquirida por pessoa diferente do possuidor, nos
casos em que alguém atuava em nome e a favor de outrem (como o procurador, o
gestor de negócios, o amigo, o colono ou o inquilino) 1793.
§ 1181. Também se relacionava com o peso da ideia de que a posse consistia
em atos materiais a tese de que a posse do defunto não se transmitia aos herdeiros,
ao contrário do que acontecia com o domínio. Isto porque o domínio era um
direito, que sobrevivia à morte do seu titular, enquanto que a posse seria uma
situação de detenção de facto, exigindo apreensão e exercício atual, que terminava
com a morte do titular1794. Apesar desta tese não ser unânime1795, ainda nos finais
simples passagem do tempo sem uso externo, pois este não era exigido para este tipo de posse, nem
implicava o desaparecimento da intenção de possuir, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Possessio”, n.11.
1790 Tal como a posse natural, a posse civil extinguia-se pelo perecimento da coisa ou de
desapropriação por decisão do príncipe, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 2, 7.
1791 Por exemplo, venda de uma coisa, com sua retenção pelo vendedor, mas agora como
arrendatário; ou compra de uma coisa pelo locatário, que assim passava a possuidor em nome próprio.
Cf. um caso em Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 106, per totam.
1792 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, ns. 8-9.
1794 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 13; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis
[...], cit., 3, 2, 6.
1795 A Glosa estabelecia a transmissão da posse aos filhos, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
356
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
cit., s. v. “Possessio”, n.16; mas não, em geral, aos herdeiros (v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
cons. 126, 2 a 4). Em sentido contrário, para além de Valasco, Melchior Febo, Decisiones […], dec.
118, n. 18.
1796 Neste ponto, a questão era a da preferência dos filhos de filhos (direito de representação) aos
irmãos, questão muito debatida na vigência da Lei mental (v. cap. 5.4.6) e só decidida, pela concessão
do direito de representação, no reinado de D. João IV (cortes de 1641), cf. António Manuel Hespanha,
As vésperas […], cit., 405.
1797 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 1.
1798 Porém, Valasco achava que a posse do marido aproveitava à mulher que vivesse com ele,
Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 180, n. 5. Mas aqui o argumento era o da comunhão do casal.
1799 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 4.
1800 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 10.
1801 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 12.
1802 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 11; ao contrário do que acontecia em
Castela para os morgadios (Lei de Toro, 45). No direito feudal, a posse do feudatário não se continuava
nos filhos (“Possessio in feudis existens in patre non continuatur in filio”, Álvaro Valasco, Decisiones
[...], cit., cons. 126, n. 14).
1803 “Quasi possessio consanguinitatis ad omnes descendentes transit”, Gabriel Pereira de Castro,
357
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1804 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 11 a 15.
1805 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 16 e 17.
1806 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 35 ss..
1807 O caso mais nítido de uma servidão que se exercia sem a prática de qualquer ato era o das
servidões prediais negativas, em que o direito era o de que o dono do prédio serviente se abstivesse de
certos usos (não construir mais alto, altius non tollendo; suportar as águas pluviais do prédio dominante;
não abrir janelas ou frestas sobre este) (v. cap. 4.3.7).
1808 “In pari causa potior est condtio possidentis”, Jorge Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec.
121.
1809 Por isso, mesmo o possuidor injusto (mas não o violento) tinha que ser ouvido antes de lhe
ser tirada a posse, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.. cons. 191, n. 2 a 4.
1810 Por isso é que ninguém podia por-se na posse de uma coisa por sua exclusiva iniciativa (“sua
authoritate”), tendo sempre que recorrer a um magistrado, invocando melhor direito do que o do
possuidor atual.
1811 Um só ato basta para adquirir a quasi possessio, Jorge Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec.
61; para provar a posse de uma renda anual bastava provar que se tinha recebido uma, Miguel de
Reinoso, Observationes […], cit., obs. 62, ns. 9-10; o direito de apresentar provava-se por uma
apresentação, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 62, 42.
358
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
propriedade é que exigia uma prova mais substancial ou mais constante. Em alguns
casos, como na prova da posse de benefícios eclesiásticos, exigia-se a exibição de
um título com alguma aparência de validade (“título colorido”, titulus coloratus vel
putativus1812). Para além disso, era preciso provar que a posse era pública (e não
escondida, clam), pacífica e em nome próprio. O ser pacífica excluía a posse obtida
por esbulho violento (vi armata), ou mesmo apenas aquela que fosse obtida por
decisão – de um magistrado ou do príncipe – sem que o anterior possuidor fosse
ouvido1813.
§ 1185. O ser em nome próprio excluía, em princípio, os meros detentores 1814.
Mas não faltava quem entendesse que, mesmo estes deviam ser protegidos 1815,
justamente considerando o interesse público na manutenção do que estava
estabelecido.
§ 1186. A predominância do elemento material sobre o elemento intencional
explicava que a intenção de possuir se presumisse 1816.
§ 1187. A posse traduzia um direito de uso de uma coisa ou direito. Nesse
sentido representava um valor patrimonial. No reino, como regra geral, o valor da
posse equivaleria a metade do da propriedade 1817.
§ 1188. Porém, para além de constituir este valor, a posse tinha outros efeitos.
§ 1189. O primeiro era de gerar, em certas circunstâncias, responsabilidade pelo
perecimento ou deterioração da coisa perante o seu proprietário. Era o caso do
possuidor de má fé – i.e. que sabia que a sua posse não era conforme ao direito
(iniusta possessio), conhecendo os vícios de que ela padecia1818 – o qual devia entregar
a coisa intacta ao proprietário, no caso de ele a reclamar, respondendo pela sua
destruição ou deterioração, culposa ou casual 1819, e pelos seus frutos1820, e sendo,
1812 Como era o provimento de um benefício eclesiástico por um superior, como o bispo, mesmo
1815 O possuidor atual não podia ser esbulhado da posse, mesmo que fosse um simples detentor,
Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 213 n. 11. Só que devia chamar à demanda em que defendia a
sua posse a pessoa em nome da qual possuía (v. Ord. fil. 3, 45, 10); António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Possessio”, n.39.
1816 “Possidendi voluntas praesumitur im dubio”, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit.,
1818 Possuidor de boa fé era o que julgava que a coisa era sua, por erro de facto ou de direito; de
má fé o que sabia que ela não o era, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, ns.
28-29. Se a questão da propriedade da coisa fosse levada a juízo, o possuidor tornava-se de mé fé depois
da litis contestatio, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.30.
1819 Respondia pela (sua) culpa nos prejuízos da coisa, mas também pelo caso fortuito, António
ainda a colher, se acaso o tivesse. Deviam ser deduzidas as despesas feitas, porque a restituição dos
frutos sempre se entendia como autorizando a retenção das despesas, António Cardoso do Amaral,
359
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1822 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.36.
1823 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”30-33. Mas apenas os gastos
necessários ou úteis, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.34.
1824 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.24.
1828 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.40.
360
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1829 Como atos de graça, as cartas tuitivas deviam ser pedidas ao Desembargo do Paço, cf. Ord.
fil.3, 3, 6; Reg. Des. Paço, 118; v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 2, ad Ord. fil.2, 3,
6, gl. 11, n. 7-8;.
1830 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76.
1831 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 2, ad Ord. fil. 1, 3, gl. 11, n. 1.
1832 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 2. Sobretudo quando a posse de um
1834 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 3-5. Também Manuel Álvares Pegas,
Commentaria […], cit.. tomo 2, ad Ord. fil.1, 3, 6, gl. 11, n. 17 ss. Como se tratava de uma medida de
graça, não se ouviam as partes, ibid. n. 15.
1835 Posse em virtude de contrato de comodato, depósito, locação ou de custódia; posse por
361
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
que significava provar um facto que gerasse esse efeito de direito 1836. Porém, as
cartas tuitivas davam-se mesmo para proteger a mera detenção, pois o seu fim era o
de evitar violências1837.
§ 1199. As cartas eram passadas ou contra certa pessoa, que ficava proibida de
perturbar a posse, ou genericamente contra eventuais tentativas de espólio 1838
§ 1200. Os remédios possessórios podiam ser conservatórios (de manutenção
da posse, retinendae possessionis, como o interdicto uti possidetis) ou restitutórios (de
restituição da posse, restituendae possessionis, como os interditos unde vi e vi armata, ou
a actio spolii)1839.
§ 1201. Em todos estes remédios possessórios, a causa era, segundo o direito
comum, sumária, sem publicação das provas, nem das testemunhas. Em Portugal,
porém, Valasco testemunhava a prática de não se proceder sumariamente, antes por
processo ordinário, dando origem a largas demandas sobre questões de posse.
Segundo ele, esta prática era errada, pois aqui ainda não se tratava da substancia da
causa, que haveria de ser discutida numa ação sobre a questão da propriedade (ou
causa petitoria, petitorium). Daí que também no pedido das cartas tuitivas se devesse
agir sumariamente, pois elas eram concedidas sem prejuízo do direito de domínio e
de posse1840.
4.3.2 O domínio.
§ 1202. O domínio era de direito das gentes1841,embora as formas de o adquirir
fossem estabelecidas pelo direito civil1842.
§ 1203. O domínio era correntemente definido como o direito (ou faculdade
jurídica) de usar, dispor, de forma perfeita (ou seja, por qualquer forma), de uma
coisa, apenas com as limitações impostas pelo direito (com a extensão que a palavra
então tinha) ou por convenção.
4.3.2.1 Os modos de adquirir o domínio.
§ 1204. O domínio adquiria-se por vários modos, de que se tratará a seguir.
Segundo o direito comum, adquiria-se por natureza (direito natural ou direito das
gentes). E, de acordo com o direito civil, e observados os seus requisitos, adquiria-
se pela própria autoridade do direito civil 1843, que estabelecera a aquisição do
1839 Que se refletem em Ord. fil. 4, 58. Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 2, ad
Ord. fil. 1, 3, 6. 11, n. 7 a 10. Cf. ainda Ord. fil. 3, 40 (“o que nega estar em posse da cousa que lhe
demandam”); 3, 68 (“que em feito de força nova se proceda sumariamente sem ordem de Juízo"); 4, 58
(“dos que tomam forçosamente a posse da cousa que outrem possui”).
1840 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 16. Também na causa de sequestro, em
que se entregava uma coisa litigiosa a alguém, por se temer rixa sobre a sua posse, se usava o processo
sumário, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 17.
1841 E não por direito divino, já que a propriedade não dependia da fé do proprietário. Cf.
interessante discussão, que aborda este aspeto, sobre o direito dos cristãos aos bens dos infiéis, a
propósito do saque da conquista de Túnis, em 1535, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 335
(uma escrava reclama, em 1575, a sua liberdade, por ter sido injustamente cativada).
1842 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dominium”, n. 1
362
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
domínio por usucapião1844, por aluvião, por especificação, por confusão 1845, por
convenção (doação, troca, venda, mutuo) acompanhada de tradição1846, por
adjudicação judicial. Adquiria-se, ainda, por autoridade do príncipe, que podia tirar
a um e dar ao outro, havendo justa causa. Também os modos de extinção do
domínio serão tratados adiante.
§ 1205. Os modos de adquirir o domínio podiam ser de direito das gentes ou de
direito civil. Basicamente, esta era a distinção mais clara que surgia nas fontes
romanas1847. Outras distinções são aí menos claras, bem como certas distinções,
que só aparecem mais tarde, como formas originárias e derivadas de aquisição do
domínio, ou certas categorias como a acessão (accessio) ou a especificação
(specificatio), termos que não ocorrem nas fontes. Se quiséssemos estar mais
próximos das distinções que subjazem aos diversos regimes previstos nas fontes,
distinguiríamos o regime de apropriação de coias de ninguém, o da apropriação de
coisas novas, o da apropriação de coisas de outrem ou o da confusão ou mistura de
coisas.
4.3.2.1.1 Ocupação (occupatio).
§ 1206. A ocupação era o primeiro modo de adquirir o domínio, segundo o
direito das gentes. A ele se referem os §§ 12 a 16 do Livro 2,1 De rerum divisione das
Institutiones de Justiniano, relativos à captura de animais terrestres (ferae), de peixes,
de abelhas e de aves.
§ 1207. A caça e a pesca visavam a apropriação de animais bravios que, na sua
liberdade natural, não eram de ninguém1848. Pela apreensão física, as presas
tornavam-se do caçador, ainda que apanhadas em terreno de outrem 1849. Mas
também perdiam esse estatuto se fossem de novo soltas (I. 2,1,12) ou se, apenas
feridas, conseguissem fugir. Isto era singular na ocupação, pois a coisa ocupada, por
regra, ficava definitivamente do ocupante.
1844 Note-se que o domínio não se perdia por não uso ou por prescrição extintiva, porque era
perpétuo por natureza, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, d. 208, n. 8; também por isto, mão
se tinha domínio quando se gozasse de um direito revogável sobre uma coisa, Miguel de Reinoso,
Observationes […], cit., obs. 6, n.18, 36.
1845 Se duas coisas se misturassem a ponto de formarem uma nova coisa indivisível, esta ficava a
ser dos proprietários das antigas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 18.
1846 Esta era a regra geral: a aquisição do domínio pressupunha a tradição, não bastando a simples
convenção e respetivo título, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dominium”, n. 4;
Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs, 19, n. 1. Porém, aquele que transferisse a coisa, tinha
que ter sobre ela os direitos que transmitia (“tradens rem alicui non potest illi plus transferre dominii
quam illud quod habet in re”), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dominium”, n. 5.
1847 Cf. I.2, 1, 11: “Singulorum autem hominum multis modis res fiunt: quarundam enim rerum
dominium nanciscimur iure naturali, quod, sicut diximus, appellatur ius gentium, quarundam iure
civili. commodius est itaque a vetustiore iure incipere”.
1848 Também eram de ninguém as coisas sagradas e as públicas, mas estas não podiam ser
ocupadas. O mesmo se diga das coisas da herança jacente, que também não eram de ninguém até à
aceitação da herança, Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2, 1, 12, n. 2.
1849 Os donos podiam proibir a entrada nos seus prédios para caçar. A contravenção originava uma
actio iniuriarum, para pedir indemnização por danos, mas não mudava a natureza selvagem do animal e,
logo, a sua ocupação pelo caçador, Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2, 1, 12, n
3. Podia haver costumes locais de as pescarias ou as caçadas (ou parte delas) serem dos donos dos
prédios onde ocorressem. Cf. alv. De 1.6.1776, autorizando a prisão dos caçadores intrusos em quintas
muradas enquanto não tivessem pago os danos causados-
363
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 1208. Podia haver limitações de direito civil à caça e à pesca1850, tal como
havia direitos senhoriais reservando para o rei1851e para os senhores certos animais,
aves ou peixes1852. Mas, como a ocupação era um instituto de direito das gentes, as
proibições de caçar ou pescar, podendo dar origem a sanções não impediam a
ocupação, já que o direito civil não mudava a natureza selvagem dos animais1853.
Mais complicado era o caso de certos animais que, embora algo domesticados
(mansuefactae), nunca se fixavam num sítio, pois nunca perdiam a sua liberdade
natural, como as abelhas, os pavões, as pombas e os veados. As Institutiones
consideravam-nos como selvagens, podendo ser ocupados, a menos que já
estivessem no costume de ir e voltar1854. Mas o direito português obrigava o
achador a apregoar o achamento de animais destes durante algum tempo até os
considerar de novo ocupados1855.
4.3.2.1.2 Conquista.
§ 1209. Também as coisas – móveis e imóveis, - que se tomavam aos inimigos
eram consideradas pelo direito das gentes como ocupadas. Os próprios inimigos
podiam ser escravizados (v. cap. 3.1.1.1)1856. Como as guerras eram públicas, no
sentido de que eram feitas pelos povos ou seus príncipes, como chefes dos
exércitos, e como os soldados faziam a guerra em nome deste, as presas de guerra
pertenciam ao príncipe, que as podia, depois, dar ou ceder; para alguns, porém, esta
publicização não tinha lugar nas coisas móveis e semoventes (animais), que ficavam
ao soldado que as tomasse 1857. A Ord. fil. 2,32,1 entregava ao primeiro ocupante os
navios inimigos ou corsários naufragados. Mas esta ordenação foi revogada pela lei
de 13.12. 1713, que entregou estes despojos à fazenda régia.
4.3.2.1.3 Achamento.
§ 1210. Segundo o direito natural, era ainda suscetível de ocupação pelo
achador aquilo que fosse objeto de achamento (inventio), quer nunca tivesse sido de
ninguém, quer se já o tivesse sido (tesouros e coisas abandonadas 1858)1859. Assim,
podia ser ocupado o que se encontrasse nas praias, por ser um produto do mar
(lapilli, gemmae, margaritae, conchyliae). Já as minas e veios de metal eram do rei, pelo
1850 V. Ord. fil.5, 88 e 91. Uma lei de 1.7.1776 proibiu aos plebeus a caça na Estremadura. Uma lei
de 12.4.1612 proibiu a caça com espingarda; outra, de 23.2.1624, restringiu a caça às perdizes. Segundo
o direito canónico, os clérigos não podiam caçar, para não se distraírem do culto divino. Cf. o
Regimento do Monteiro-mor e o do Juiz das Coutadas em José Roberto Monteiro de Campos Coelho e
Sousa (org.), Systema […], cit., vol. II; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 13, ad Ord.
fil.3, 5, p. 154.
1851 Cf, Ord. fil. 2, 26, 14, rendas das pescarias. A baleia e os peixes maiores eram chamados
“peixes reais”, não podendo ser tomados pelos que os apanhassem, antes pertencendo à fazenda real
(Regimento da Fazenda Real, cap. 94 do, foral de Setúbal).
1852 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2, 1, 12, ns. 2 e 3; 13, n. 3.
1854 I. 2, 1, 14-15. Já as galinhas (coelhos, ovelhas e cabras domésticos) eram tidas como
domésticas (mansuetae), I.2, 1, 16. A sua apreensão por outrem dava origem a uma actio furti.
1855 V. Ord. fil. 5, 62, 3 e 3, 94.
1859 I. 2, 1, 18.
364
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que não podiam ser ocupados1860 ou apropriados pelo achador; ao qual, no entanto,
podiam ser concedidos per mercê régia1861.
§ 1211. As coisas achadas que já tivessem sido de alguém pertenciam ao seu
antigo dono, devendo ser-lhes entregues, sendo conhecido do achador, sem pedido
de alvíssaras pelo achamento1862. Não conhecendo o dono, o achador devia
apregoar o achamento e, se ninguém aparecesse, dar as coisas aos pobres (cf. §
1171). As Ordenações referem especialmente o achamento de coisas provenientes de
naufrágios, assegurando a propriedade delas aos seus donos originários (cf. Ord.
fil.2,32). A ocupação por achamento supunha um ato físico de tomada ou ingresso,
mas mantinha-se mesmo que esse elemento físico deixasse de existir (ao contrário
do que acontecia nos animais selvagens)1863.
§ 1212. O achamento de tesouros – coleções de bens preciosos encontrados,
cujo dono não era conhecido1864 - tinha um regime especial. Se o tesouro tivesse
sido encontrado em terreno próprio ou terreno sagrado, ou se tivesse sido objeto
de uma busca intencional em terra de outrem, pertenceria ao ocupante; mas tendo
sido achado fortuitamente em terreno de outrem, o achador tinha que o repartir
com o dono do terreno ou com o fisco (cf. I.2,139; V. C. 10.15. De thesauris). Este
era também o regime do direito comum e das Siete Partidas (III, 28, 45). O direito
português foi restringindo progressivamente os direitos do achador. As Ord. af.
(2,7,5) reservavam a terça para o rei, sendo o tesouro achado em terreno do
achador; ou, no caso de o achado se dar em terreno do rei ou em lugar público,
atribuíam ao rei dois terços. As Ordenações filipinas declaravam serem do rei “todos
os bens vagos, a que não he achado senhor certo” (Ord. fil. 2,26,16 e 17)1865. No
entanto, a doutrina hesitava em enquadrar os tesouros nesta disposição, preferindo
aplicar o regime do direito comum1866.
4.3.2.1.4 Aquisição dos frutos.
§ 1213. Os frutos ou o locatário das coisas seguiam a situação da coisa, sendo
do seu proprietário (perceção, percepto). No entanto, se a coisa estivesse possuída,
de boa fé, por um não proprietário (maxime, por um não proprietário, como o
usufrutuário ou o locatário), este fazia seus os frutos1867. A justificação era o
contrato que lhe atribuía a posse da coisa, a consideração da boa fé da posse ou a
compensação pelo trabalho de cultivo e manutenção da coisa1868. Também o
1864 Cf. D.41, 1, 31, 1 ("vetus quædam depositio pecuniæ, cujus non extat memoria, ut jam
dominum non habeat"; Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 7, n. 1. Cf. também
Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 39.
1865 Cf. C.10.15. De thesauris.
1866 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., p. 3, cap. 13, n. 91; Jorge
onerosa e posse gratuita, entre frutos naturais e industriais, percebidos e pendentes. Pascoal de Melo
(em Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 3, 9) discute esta questão brevemente.
1868 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 35 (v. I. , 2, 1, 35; D. 22, 1, 45 e
D.41, 1, 48).
365
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
usufrutuário1869 se apropriava dos frutos das coisas alheias por ele usufruídas.
§ 1214. Nos frutos do gado incluíam-se, além do leite e da lã, as crias, tudo se
tornando do possuidor de boa fé ou do usufrutuário por direito natural. Não assim,
porém, as crias das escravas, cujos filhos eram do proprietário, pois seria absurdo
que uma pessoa pudesse ser considerada como fruto, já que os frutos foram criados
para os homens1870. A ideia de que um recém-nascido de uma escrava não podia ser
um fruto seria de origem estoica, relacionando-se com um conceito de dignidade
humana. O jurista Ulpiano1871, porém, justificava a solução num plano mais técnico:
os frutos da escrava seriam os seus serviços, não os seus partos, pois não eram
compradas para parir, mas para servir com o seu trabalho (“quia ancillae non ad
hoc comparantur ut pariant, sed ut serviant”).
4.3.2.1.5 Acessão natural (accessio naturalis).
§ 1215. Por direito das gentes também acediam ao prédio, incorporando-se no
património do seu dono, as coisas que por aluvião lhe acrescessem, por mudança
nas margens1872, por arrastamento pela força das águas – v.g. de uma árvore -1873 ou
por surgimento de ilhas1874. A este modo de adquirir chamou-se, na tradição
romanística, accessio naturalis1875.
§ 1216. Diferente era o aluvião (alluvio1876), que era aquilo que os rios
acrescentavam paulatinamente a um prédio e que ficava incorporado neste por
direito das gentes.
4.3.2.1.6 Acessão por facto humano ou industrial (accessio artificialis vel
industrialis).
§ 1217. Apropriação de coisa de outrem por facto humano1877 dava-se quando
duas coisas (de donos diferentes) eram unidas de forma tão indissociável que uma
(a coisa secundária) se torna parte de outra (a principal), não se podendo dizer que
1869 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 16.
1870 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 11, n. 4; I. 2.1.19 (e comentário de
Vinnius). Incluíam-se aqui os filhos das escravas, pois, tais como as crias dos animais, tinham sida
como que vísceras da mãe; Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 37, 1.
1871 V D.5.3 De hereditatis petitione, 27.
1872 Cf. Inst Gaii, 2, 70. Caso mais relevante era o da mudança de curso do rio, em que, sendo o rio
privado, o antigo leito ficava a pertencer aos donos dos prédios antes ribeirinhos. Sendo o rio público,
o novo leito tinha a mesma natureza, mas o antigo perdia-a, Arnold Vinnius, In quattor libros
Institutionum [...], cit., 2, 1, 23.
1873 Neste caso, excecionalmente, o antigo proprietário, sendo identificável, mantinha os seus
direitos.
1874 Distinguia-se o aparecimento de ilhas no mar - fenómeno raro, que ficavam públicas do
senhor do reino adjacente (v. Ord. fil.2, 26, 8) ou de ninguém e então sujeitas ao regime da ocupação - do
de ilhas nos rios - mais frequente, regido pela regra da acessão (se as ilhas ficavam no meio do rio,
confrontando prédios de ambas as margens, seriam compropriedade dos donos dos prédios fronteiros;
outros juristas pensavam que isto só ocorria se o rio não fosse público, pois se o fosse, as novas ilhas
também o eram, Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 22).
1875 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 20.
1877 Accessio não é um termo romano; os juristas romanos designam a accessio como um modo
366
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
surgia uma coisa nova, mas antes que se juntava uma coisa acessória à principal. O
dono da coisa principal tornava-se dono da secundária (“per praevalentiam alienam
rem trahit meam”, D.6,1,23,4) 1878. A identificação da coisa considerada principal
podia ser duvidosa. O solo era-o, com certeza, relativamente a plantas (plantatio:
cultivos, plantios, árvores1879) ou construções fixas (aedificatio1880, superficies solo cedit).
§ 1218. Outros exemplos famosos eram o da escrita em relação ao pergaminho,
nos livros, em que o suporte era considerado o principal, e os da tecelagem
(textura), da tinturaria (tintura)1881, da ornamentação (decoratio), da cobertura de
fémeas (seminatio). Em todos estes casos, a substância junta acedia ao principal e era
apropriada pelo dono deste. Diferente era o caso da pintura de um quadro, em que
a pintura era considerada a parte determinante à qual aderia o suporte (tabula; tabula
picturae cedit)1882. Se a hierarquia não se conseguisse estabelecer, as coisas
confundidas ficavam comuns1883.
§ 1219. Quando alguém perdia para outro a propriedade (por acessão ou por
especificação [v. a seguir]) tinha direito a ser indemnizado pelo valor da
propriedade perdida (por meio de expedientes diversos) 1884.
4.3.2.1.7 Especificação (specificatio).
§ 1220. A especificação (specificatio) era um termo criado pelos juristas
medievais, a partir de rem (speciem) novam facere, locução que aparece nas fontes
romanas1885. Dava-se quando se fazia uma coisa nova a partir de outra coisa. Isto
podia acontecer por fusão intencional de coisas diferentes [novam speciem faciendo]; ou
por aplicação de trabalho e indústria a um material alheio já existente, de modo a
transformá-lo irreversivelmente numa coisa nova 1886).
§ 1221. Se a reversão fosse impossível, se se tivesse agido em nome próprio
(por e para si1887) e de boa fé (pensando o artífice que o material era seu)1888, o
fabricante fazia-se proprietário da coisa, devendo, porém, indemnizar o verdadeiro
dono do material pelo seu valor. Se, pelo contrário, a reversão era possível 1889, a
coisa continuava a pertencer ao proprietário original, mas o fabricante tinha direito
1878 “Quando duas coisas, qualquer delas podendo subsistir por si, são de tal forma unidas que
façam parte do mesmo corpo […], a parte inferior sempre cede à parte mais importante (praestantior)”,
Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 26, n. 2). Esta importância podia avaliar-se
pelo tamanho. Se o tamanho era igual, decidia o preço.
1879 Cf. § 1.Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 31-32.
1880 O que edifica em solo próprio com materiais alheios fica dono do edifício, Arnold Vinnius, In
quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 29. O que edifica em solo alheio não adquire o edifício, Arnold
Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 30
1881 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 21, 1, 33 e 2, 1, 26.
1882 Cf. Gaius, II.73; cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 34.
1886 Inst. Gaii, 2.29. Fabrico de vinho feito de uvas alheias, de azeite com azeitonas alheias, de
mulsum ou hidromel (misturando vinho e mel), de um móvel, de uma casa, de um navio, de um vaso
de barro cozido.
1887 Se não trabalhava para si, mas como empregado de outrem, eventualmente do dono do
367
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
368
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1893 Vinho com vinho, prata com prata, dinheiro com dinheiro.
1894 Se duas coisas se misturassem a ponto de formarem uma nova coisa indivisível, esta ficava a
ser dos proprietários das antigas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res” 18.
1895 Cf. D..41, 1, 7, 8; D.46, 3, 78; D.6, 1, 3, 2D.6, 1, 5.
1897 “Gaius libro septimo ad edictum provinciale. Servitutes praediorum confunduntur, si idem
utriusque praedii dominus esse coeperit” (D.8, 6 Quemadmodum servitutes amittuntur, 1).
1898 Cf. I.2, 1 De rerum divisione, 40; Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2,
terra, cortar um ramo de árvore, pegar nas chaves, abrir e fechar uma porta, indicar com o dedo).
369
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
justificasse este comportamento (compra, doação, troca) 1900, pois não se presumia
que alguém entregasse a outrem as suas coisas sem uma causa, nem que ela fosse
apenas a de que as queria dar.
§ 1232. O transmitente tinha que ser dono1901, pois não podia transmitir direitos
quem não os tivesse1902, e não estar enganado sobre a causa da transmissão.
§ 1233. A exigência da tradição justificava-se para reforçar a segurança do
comércio jurídico, estando consagrada quer nas fontes romanistas 1903, quer no
direito português1904. Porém, no direito português não se requeria qualquer
cerimonial de tradição1905, nem sequer a elaboração de escritura, salvo nos casos
expressamente indicados na lei1906.
4.3.2.1.10 Usucapião (usucapio) ou prescrição (praescriptio) aquisitiva.
§ 1234. Para além dos modos de adquirir de direito natural ou das gentes, o
direito civil estabelecera outros, uns de aquisição de uma universalidade de bens,
como a herança (v. cap. 5.2.11), outros de bens determinados, como a usucapião, a
doação (v. cap. 6.9.2.1.1) ou os legados (v. cap. 5.2.14), entre outros.
§ 1235. A prescrição podia incidir sobre coisas e sobre direitos, quer para os
adquirir, quer para os extinguir pela mera passagem do tempo. O seu impacto no
direito comum era enorme, pois era através dela que se constituía ou se extinguia
uma quantidade imensa de relações e situações jurídicas. Com poucas exceções (v.
adiante), quase tudo se podia ganhar e perder por meio de uma posse duradoura,
pacífica e pública. A prescrição era a transcrição no direito da passagem do tempo,
que fazia e desfazia a natureza das coisas. Embora respondendo negativamente,
alguns juristas colocavam mesmo a questão de saber se os pecados deixavam de o
ser por prescrição, ou seja, por um uso continuado de os praticar ou por uma
prática continuada (da Igreja, da comunidade) de não os ter como tal 1907.
§ 1236. A usucapião (usucapio) era definida como uma forma de aquisição de
direitos sobre uma coisa, fundada na passagem do tempo fixado na lei e
estabelecido para punir os negligentes e certificar a situação das coisas, evitando os
litígios1908. Os juristas entendiam que ela se equiparava a um pacto, tendo uma
1900 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 40, n. 1 a 5.; cita o jurista Paulus
(D.41, 1 41.1 De adquirendo rerum domínio, 31, pr.); “Nunquam nuda traditio transfert dominium, sed ita
si venditio aut alia justa causa praecesserit, propter quam traditio secuta sit”, Arnold Vinnius, In quattor
libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 5.
1901 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 40, 4-5.
1902 Por isso, o possuidor de boa fé não podia transmitir senão a posse, mas não a propriedade.
1903 C.2, 3 De pactis, 20: "traditionibus et usucapionibus dominia rerum non ex nudis pactis
transferentur". Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 2.
1904 Embora apenas indiretamente: Ord. fil.4, 7, pr. e 2: "o que primeiro que houver a entrega d'ella
ramo.
1906 V. Ord. fil.4, 19, pr. (contratos necessários para a substância ou validade da transação); Ord. fil.3,
59 (para a prova).
1907 “Não pode considerar que por prescrição deixe de ser pecado o que a Igreja declarou ser
370
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
v. “Praescriptio”, n. 80.
1909 “Tantumdem illa tribuunt, quantum pactum, habet vim contractus", António da Gama,
[...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 1-2. Cf. I.2, 6;, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 3,
11 e 3.4.1.
1911 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 30 e 34.
1913 Cf. 50.16.109: “Bonae fidei emptor esse videtur, qui ignoravit eam rem alienam esse, aut
putavit eum qui vendidit ius vendendi habere, puta procuratorem aut tutorem esse”.
1914 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 12.
1915 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 14.
1916 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 14.
1917 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 13.
371
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1918 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 125, n. 11.
1919 Cf. Decretales, 2, 26 De praescritionibus, caps. 5 e 20. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Praescriptio”, n. 4.
1920 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 11 (“nem que durasse
mil anos”).
1921 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 16-17.
propriedade da coisa (mesmo naquilo que era reservado ao príncipe), cf. António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 19 (também. Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […],
cit., qu. 8, n. 36).
1923 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 18.
1924 As soluções jurídicas deviam tender para a salvação das almas (in salutem animae), cf. António
1926 Ord. fil.4, 3, 1; Ord. fil. 4, 79, pr (in fine); Ord. fil. 2, 53, 5. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris
372
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tinham que ser provados pelo possuidor 1929. Para mais, entendia-se que, se faltasse
o título, mas se houvesse posse contínua e de boa fé, a coisa acabava por se
transferir para o possuidor, não por usucapião, mas por se extinguir por prescrição
a ação do proprietário para reivindicar a coisa.
§ 1247. Nas servidões e direitos incorporais não era preciso título 1930.
4.3.2.1.10.3 Posse contínua.
§ 1248. A prescrição exigia a continuação da posse por um certo lapso de
tempo, variável, de acordo com as situações.
§ 1249. Pelo direito comum, os prazos da prescrição ordinária 1931 eram de 3
anos para os móveis, ou de 10 anos para os imóveis, entre presentes (i.e. habitando
o mesmo lugar) 1932 ou de 20 anos entre ausentes1933. A prescrição das servidões
tinha alguma especialidade, dado que elas podiam consistir num fazer ou num não
fazer, com caráter contínuo ou descontínuo. Assim, as servidões contínuas - de
passagem, de aqueduto, de pescar - seguiam a regra geral1934. Para a aquisição das
servidões descontínuas, porém, era preciso tempo imemorial, se não existisse
título1935; para a sua caducidade, eram precisos 20 anos (entre presentes ou
ausentes).
§ 1250. A prescrição extintiva do direito a intentar ações reais equivalia à
usucapião e tinha os mesmos prazos 1936.. As ações pessoais visando reclamar coisas
prescreviam em 30 anos mesmo prazo. O mesmo acontecia com as prestações
anuais ou mensais1937.
§ 1251. Havia, depois, prazos especiais de prescrição para certas situações e
com efeitos diversos. A de longuíssimo tempo era a de 30 ou 40 anos, a prescrição
centenária a de 100 anos, a prescrição imemorial era aquela que se traduzia numa
posse imemorial (cujo início já não era lembrado, cujus memoria non exstat) 1938.
§ 1252. A prescrição de longuíssimo tempo (de 30 ou 40 anos) existia para os
casos previstos no direito comum 1939. A prescrição de 40 anos com título valia
tanto como a imemorial1940.
1932 Presentes eram os que viviam na mesma cidade; outros ampliavam aos da mesma comarca,
l. un..
1934 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 76.
1935 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 73; com titulo, tempo
1, Ord. fil.4, 79. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 10.
1937 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, 35.
1938 V. Ord. fil. 1, 62, 51: “por tanto tempo que a memoria dos homens não he em contrario”; cf.
coisa dada em penhor ao credor penhoratício Ord. fil.4, 3, 1: entre presentes, 30 anos; entre ausentes, 40
anos.
1940 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 35.
373
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1941 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 163, n. 3; Miguel de Reinoso, Observationes [...],
cit., obs. 16, ns. 14 ss. ou obs. 65, n. 23 (esta “observação” incide toda ela sobre a prescrição
imemorial).
1942 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 141, ns. 7 e 8.
1943 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, ns. 1-2.
1944 Cf. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 20 e 21. Segundo
Álvaro Valasco, nos termos do direito comum, a prescrição imemorial podia ser alegada contra os bens
reservados para o príncipe e contra os bens particulares da coroa, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
dec. 120, n. 20.
1945 V. Ord. fil.1, 62, 51. Cf. porém, a lei de 13.8.1770, que requeria título.
1946 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 334, ns 1 ss. Presumia-se a boa fé do patrão,
se pagasse os salários por ecónomo ou feitor, António da Gama, Decisiones [...], cit., 34, n. 8.
1947 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 25: “Sine possessione usucapio contingere non
potest”. Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 6, n. 2; assim, um leigo que usasse
cobrar dízimos, nunca prescrevia, pois a sua posse não podia ser validada pelo direito canónico,
Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 23.
1948 Nem mesmo a favor do sucessor do espoliador, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
1950 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 34.
1951 O domínio direto (que é civil, e não exige corpus) não prescrevia a favor do colono, cf.
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 33; o enfiteuta não podia
prescrever contra o senhor se o reconhecesse como tal, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 192,
n. 2
1952 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 41.
1953 Nem para constituir direitos ou situações que o direito não permitia; por isso, não se podia
contrair matrimónio ilícito por prescrição, de forma a torná-lo lícito (v.g. passando por cima de
impedimentos), cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 31.
1954 A colonia (arrendamento rural) prescrevia provando o não pagamento da renda por 30 ou 40
sem expulsão do colono, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 192, ns. 7-8; a regra só tinha lugar
nos colonos de prédios rústicos, porque no de urbanos tratava-se de inquilinato, Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 192, n. 11 e cons. 157, n. 35.
374
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
isso, capacidade civil. Em alguns casos, a posse do escravo, do filius famílias ou dos
menores podia valer como título de aquisição para o dono ou pater1955. O herdeiro
herdava a posse com a mesma qualidade (v.g. boa ou má fé) da do de cujus1956.
§ 1258. De igual modo, a prescrição não podia correr em relação a coisas que,
por direito, não pudessem ser possuídas por particulares 1957. Ou que - por força de
lei, cânone ou vontade do testador – não pudessem ser alienadas1958. O caso dos
morgadios era interessante. Como o administrador do morgado não podia alienar,
prejudicando o casco de bens que tinha sido vinculado, a prescrição (e apenas a de
40 anos) só prejudicava aquele contra quem prescreveu, mas não os seus
sucessores, cujos direitos tinham sido fixados na instituição do morgado 1959.
§ 1259. A prova da posse fazia-se pelos meios comuns de prova (v. cap.
7.1.9.5). Na prescrição imemorial, a prova fazia-se por fama e de outiva1960.
4.3.2.1.10.5 Coisas imprescritíveis.
§ 1260. A prescrição não corria contra coisas que não pudessem ser adquiridas
por particulares, como já vimos1961 (v. cap. 4.2.1 a 4.2.3).
§ 1261. Assim, a prescrição não corria nas coisas fora do comércio, nas sagradas
ou religiosas, nas públicas ou que estão na posse de alguma cidade, como também
não corria quanto a homem livre ou escravo fugitivo 1962.
§ 1262. Quanto às coisas públicas, a questão da prescrição tornou-se um tópico
crítico, pois, numa época em que os registos eram raros, a titularidade de poderes
públicos ou jurisdicionais era, muito frequentemente, apenas a posse de exercer
esses direitos ou cobrar esses impostos.
§ 1263. Em geral, a prescrição - salvo, para alguns e apenas em alguns casos, a
centenária e a imemorial1963 - não podia correr contra os direitos supremos do
imperador ou do rei que não reconhecesse superior, nem contra o papa, pois
ninguém podia deixar de reconhecer a sua respetiva superioridade 1964. Ou seja,
ninguém se podia apropriar, por qualquer modo incluindo a prescrição, daquilo que
estava reservado aos reis em sinal de reconhecimento do seu poder de jurisdição,
nem podia invocar o direito prescrito de se eximir à sua obediência 1965.
usucaptos caducavam com a chegada de um novo administrador, que recuperava o morgadio na sua
condição originária.
1960 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 79.
1961 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 9: “Gaius libro quarto ad edictum provinciale.
Usucapionem recipiunt maxime res corporales, exceptis rebus sacris, sanctis, publicis populi Romani et
civitatium, item liberis hominibus”.
1962 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 30.
1963 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 20 e 21.
1964 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 23.
1965 “Iurisdictionalia & concernentiam iurisdictionem non praescribantur in hoc regno, etiam per
tempus immemoriale, licet aliud de iure communi atento”, Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit.,
375
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 1264. Embora, atento o direito comum, houvesse uma certa flutuação nesta
imprescritibilidade das regalia majora1966, no direito português era claro que elas não
podem ser usucaptas. Assim, no direito português, um senhor não podia usucapir o
direito de última apelação para o príncipe, embora isso fosse admitido por alguns
autores de direito comum1967.
§ 1265. Também o direito de criar ofícios não se adquiria por prescrição1968 (v.
cap. 2.4.3.5).
§ 1266. Do mesmo modo, nenhum senhor da terra ou castelo podia adquirir
jurisdição régia pelo simples decurso do tempo 1969, sendo obrigado a mostrar cartas
de concessão ou doação1970. Também os limites territoriais dos espaços
jurisdicionais não prescreviam 1971.
§ 1267. Não corria também para adquirir direitos sobre a via pública, como pôr
passadiço ou latada avançada sobre ela, a não ser que houvesse esse costume,
"como acontece – lembra António Cardoso do Amaral - no concelho de Ruivães,
onde eu nasci, todas as ruas são cobertas de videiras sobre latadas de madeira, na
parte de cima, de modo a não impedir a servidão"1972. Nem tão pouco corria
prescrição de longo tempo em relação a aqueduto público destinado ao uso da
cidade1973.
§ 1268. Também os bens do rei estavam protegidos contra a sua usucapião por
particulares. Os patrimoniais e fiscais só prescreviam a favor de particulares por
prescrição de 40 anos; os regalia majora e minora, os bens que continham jurisdição,
os impostos, nunca se extinguiam por prescrição a favor dos súbditos 1974. Mas
extinguiam-se por prescrição de 30 anos os direitos de cobrar prestações (forais)
anuais ou mensais1975. Relativamente a estes direitos “de foral”, como as jugadas ou
censos “domaniais”1976, alguns defendiam que a prescrição aquisitiva (usucapião)
imemorial corria a favor dos senhores, mosteiros ou concelhos1977, como forma de
obter prestações deste tipo1978. Mas, normalmente, referiam-se apenas a uma posse
imemorial já na altura em que os forais tinham sido reformados por D. Manuel.
obs. 65, n. 29. Pelo direito do reino, não podiam prescrever (ser usucaptos) nem a as jurisdições, nem
os direitos reais, nem o padroado régio, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 65, ns 1 a 3.
A não ser em virtude de privilégio pois o príncipe teria uma intentio fundata em relação a tudo aquilo que
pertencesse à jurisdição real, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 24.
1966 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 120, n. 20 e 21.
1967 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 40, n. 13.
1968 Pois nas coisas relativas à superioridade do império ou aos tributos não há prescrição nem
1971 Não prescrevem os termos das paróquias ou das dioceses, cf. António Cardoso do Amaral,
1973 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 37.
1974 Cf. v. Ord. fil.2, 27, 1; cf. António C. do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 44.
1975 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, 35.
1976 I.e. devidos ao senhor, não ao proprietário (como os foros enfitêuticos). V. Ord. fil. 2, 27, 1.
1977 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 67.
376
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1979 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 38 e 43.
1980 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 27 e 66.
1981 Ou vice versa, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 22.
1982 “Praescriptio dormit dum pupillaris aetas durat, nisi emens a pupillo putet illum esse
maiorem”, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 60. Por exemplo,
nas coisas vendidas por menores sem autorização do tutor, a prescrição a favor do comprador não
corria enquanto durasse a menoridade, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Praescriptio”, n. 61. As Ordenações excetuavam a prescrição por tempo longuíssimo: Ord. fil.4, 79, 2;
Ord. fil.3, 41, 6..
1983 Não corria contra os bens dotais constante matrimonio, pois a mulher não tinha capacidade para
agir por si, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 64.
1984 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 56.
1985 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 65.
1986 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 55.
1987 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 59.
1988 Cf. exemplos em Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 4, 14: Com efeito, a
acusação criminal prescrevia por 20 anos, Ord. fil.1, 84, 23; a querela (cf. v. cap. 8.1.6.3) devia ser
apresentada ao juiz dentro de 1 ano, Ord. fil.5, 2, 4 e 117; a apelação (cf. v. cap. 8.1.6.4.23) devia ser
interposta dentro de 10 dia (Ord. fil.3, 70) e prosseguida no juízo superior dentro de 6 meses (Ord. fil.3,
70, 3 e 4); a exceção non numeratae pecuniae (de dinheiro não recebido) devia ser oposta dentro de 60 dias
(Ord. fil. 4, 51); os herdeiros não tinham que prestar contas aos testamenteiros passados 25 anos (Ord.
fil.1, 62, 8 e 22); os salários dos escrivães e tabeliães prescreviam 3 meses depois de dada a sentença (Ord.
fil. 1, 70, 19; e 1, 8); só dentro de ano e dia se podia acionar por damno infecto (por dano causado) e pelo
interdito quod vi aut clam (por dano violento ou oculto), Ord. fil.1, 68, 25); a mulher só podia demandar o
seu estuprador até 1 ano depois de deixarem de ter relações (Ord. fil. 5, 23, 2); a acão de nulidade
prescrevia por 40 anos; a de lesão enorme, por 30; Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 82, n. 7.
377
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
1989 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 47 e 48.
1990 A interrupção natural aproveitava a todos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Praescriptio”, n. 77. A civil, só aproveitava àquele contra aquele contra quem a prescrição era
invocada, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 78.
1991 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 5; “Gaius libro 21 ad edictum provinciale
Naturaliter interrumpitur possessio, cum quis de possessione vi deicitur vel alicui res eripitur. Quo casu
non adversus eum tantum, qui eripit, interrumpitur possessio, sed adversus omnes. Nec eo casu
quicquam interest, is qui usurpaverit dominus sit nec ne: ac ne illud quidem interest, pro suo quisque
possideat an ex lucrativa causa”. Cf. António C. do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 48.
1992 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 63, n. 8.
1993 Cf. D.41.3.2. cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 78. Para
378
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
1996 V. Virpi Mäkine, Property Rights in the Late Medieval Discussion on Franciscan Poverty, cit..
1997 V. Ugo Nicolini, La proprieta, il principe e l'espropriazione per pubblica utilita […]: U. Nicolini,
“Espropriazione per pubblica utilità”, cit..
1998 Quem alugasse a sua casa para prostituição, perdia-a (Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],
2000 Que incomodariam sobretudo os advogados e os estudantes, que eram perturbados nos seus
estudos, nomeadamente pelos artesãos (ex. os que usam de martelos e malhos, como os latoeiros),
Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., ad 1, 22, glos. 5, n. 16. Refere uma sentença de 1660 a
favor de um advogado.
2001 “Mulher que publicamente se prostitui e vende o corpo, não a que por amor ou espírito de
serviço [!] aceita alguns homens”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 3, ad 1, 22,
glos. 5, n. 11. A “Lei dos julgadores dos Bairros de Lisboa” regulava o exercício da prostituição
(transcrita em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 5, ad 1, 65, gl. 17, e tomo 3, ad 1,
22, gl. 6).
2002 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., ad 1, 22, glos. 5, n. 9.
379
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2005 V. Ord. fil.4, 107, pr.início. Do mesmo tipo eram outros institutos que limitavam ou
condicionavam o direito de propriedade: prescrição por parte de terceiros, expropriação, insinuação das
doações, solenidades dos contratos e testamentos.
2006 Cf. Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., II, 11, n. 4.
2007 “Dominus (iurisdictinis) est ille qui dominium iuste, & legitime acquisivt in iusto bello, aut per
legitimam succesionmem, sive per consensum seu electionem populi habentis potestatem eligendi
dominum, aut per institutionem principis vel aligius superior habendi iurisdictionem & potestatem
eligendi dominum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dominium”, n. 1.
2008 A palavra “propriedade” era usada para designar a nua propriedade. Arnold Vinnius, In quattor
“Dominium”, n. 2.
2010 Cf Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., II, 11, n. 4. Esta distinção entre
dominium directum e utile ocorria nos bens feudais e na enfiteuse. Em Portugal, entendia-se que não havia
bens feudais (apesar de Ord. fil.5, 6, 16-17), v. cap. 2.4.3.5.
2011 “Dominus tenetur corrigere quemcumque de familia sua”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Dominium”, n. 5; “potest servum suum castigare”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Dominium”, n. 6.
2012 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 244, n. 1. Mas podia haver comproprietários,
in rem (utilis) concedida pelo pretor para tutela dos possuidores de boa fé com um título que acreditavam
ser válido, v. cap. 7.1.3.2.
380
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1282. O proprietário podia reivindicar a sua coisa em juízo por ações reais 2014,
que incidiam sobre a coisa, independentemente de quem a possuísse 2015. E também
defendê-la extrajudicialmente (mesmo pela força, desde que imediatamente e
quando não fosse possível recorrer ao auxilio do juiz, Ord. fil. 4, 58, 2).
4.3.3 A enfiteuse.
§ 1283. Francisco Caldas Pereira de Castro, 1543-1597, porventura o mais
destacado dos juristas que trataram extensamente da enfiteuse nos finais do séc.
XVI destacava, a propósito de uma discussão de que falaremos, o caráter
emblemático da enfiteuse quanto aos modos de possuir e transmitir os bens. O
reino de Portugal seria uma única e imensa enfiteuse. Ter terras era ter concedidos
certos rendimentos anuais, mas não a possibilidade de dispor delas, por morte e em
vida. Era assim que se possuíam os morgados, as capelas, os bens da coroa, os bens
emprazados, os bens censíticos. Era assim que o rei tinha a maior partes das suas
terras, mesmo as terras jurisdicionais e até o reino. Era assim que os senhores
jurisdicionais tinham as terras da coroa dos reinos. Era assim que os bispos, as
mitras e os abades dos mosteiros tinham as terras da Igreja. Era assim que os
oficiais tinham os ofícios, de disposição limitada pela graça do rei e pelos direitos
dos filhos. Era assim que os lavradores tinham as suas herdades, tomadas de rendas
por vidas ou longo tempo. Quase como meros administradores, a quem tinha sido
concedido um domínio útil, mas não um pleno poder de disposição, que estava
noutrém (a coroa do reino, a Igreja, as famílias, os senhores diretos) 2016. A fortuna
eram, na verdade, constituída por rendas, mas não por bens.
§ 1284. Esta constituição social (e jurídica) da terra tinha alguns traços
estruturais: a precariedade da concessão, a indisponibilidade por vida ou por morte
e a indivisibilidade. E isto gerava um habitus social correspondente: a dependência
em relação ao concedente, um poderoso ou protetor de quem se esperava
liberalidade e constância; a inculcação de um modelo de sociedade em que os
indivíduos contavam menos do que as entidade transindividuais (a família, a Igreja,
a Coroa) e em que os laços de solidariedade que estas entidades causavam se
projetava na vinculação e indivisão do seu património dos particulares.
§ 1285. Não era que tudo fosse enfiteuse, mas que quase tudo se usava e se
transmitia como se o fosse. O que restava, os bens de que se pudesse dispor
2014 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, 23. A reivindicação era um
elemento típico e indispensável do domínio. Quem não dispusesse dela não era proprietário. Mas, em
contrapartida, quem não fosse proprietário não a podia usar. Cf.. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
172, n. 12.
2015 Podia reivindicar a coisa própria de qualquer possuidor a quem tivesse sido entregue sem ser
em nome do proprietário, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 23; mesmo que
o possuidor a tivesse, entretanto, dado em penhor, já que o proprietário não era afetado por atos de
disposição praticados por terceiros (res inter alia acta gesta non nocet nec prodest), António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, ns. 24-25 (exceções à regra).
2016 “Se considerarmos tanto os bens temporais como eclesiásticos, o que é este reino senão uma
única e universal enfiteuse ? Nos reinos de Portugal quase todas as propriedades (possessiones), como
capelas, morgados, igrejas, bens da coroa, são vinculadas (addictae). Tiradas estas, apenas fica uma
porção exígua. O que são os proventos e rendimentos das capelas, dos morgados, das igrejas, ou dos
bens da coroa, senão várias e inumeráveis concessões enfitêuticas ? O quê, senão benefícios de
senhores [úteis, enfiteutas], distribuídos a várias pessoas ? O quê, senão um número frequentíssimo de
enfiteuses ?”, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus, de renovatione emphyteutica [...], cit., qu.
11, n. 21.
381
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2017 Do grego εημύτευσις, proveniente do verbo έμφυτεύω, plantar; daí “lugar para plantar e fazer
frutificar”.
2018 De placitum, aprazimento, gosto, graça.
2019 “Contractus meliorationis, seu datio, per quam utile dominium rei immobilis transfertur in
perpetuum, vel ad tempus, pro quo solvitur aliquid reale, per tempora constituta, directo domino, in
recognitione dominii”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 1; Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 1. Fontes legais e doutrinais: D.6.3 Si ager vectigalis, id est
emphyteuticarius, petatur; C.4.66. De emphyteutico iure (também, C.11.62 a 65); Ord. af.4, 78-80, Ord. man.4,
63-65; Ord. fil.4, 36 a 41; Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit., pt. 1, qu. 1; Francisco
Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., qu. 1 e ss.; Francisco Pinheiro, De censu et emphyteusi,
cit., pt. 2, disp. 1; Manuel Barbosa, Remissiones […], cit, ad Ord. fil. 4, 36 ss.; Luís de Molina, Tractatus
de iustitia […], cit., tract. 2, disps. 10, 444 a 447, 472-473; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit.,
pt. 3, disp. 9, ns. 1 a 5 e 7; Mauro Luís de Lima, Commentaria […], cit., ad Ord. fil. 4, 36 e ss..
2020 “Non censetur emphyteuticus contractus quando in eo non fuit adjecta clausula, quod fundus
nun potest vendi irrequisito domino, & absque eo quod laudemium illi solvatur”, Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 153, n. 1.
2021 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 2.
2022 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 16; Pascoal de Melo,
(“E porque os taes bens, segundo a natureza dos foros, não se hão de partir, e hão de :andar em uma
só pessoa”).
382
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2024 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 24.
2025 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 78.
2026 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 18.
2027 O que havia, portanto, era divisão ideal, apenas para calcular o valor da parte que competiria
a cada herdeiro e pela qual ele teria de ser indemnizado pelo cabecel.
2028 Sem direito de preferência do senhorio direto, nem laudémio, pois a venda não fora decidida
pelos herdeiros, mas pelo direito; cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 53, ns. 1 a 3; Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., [...], cit., pt. 1, dec. 107, n. 1 ss.; António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 24.
2029 V, Ord. fil.4, 37, pr. ("herdade, vinha, casa, olival ou outra possessão de foro").
2030 V. Ord. fil.4, 38, pr. e 1; mesmo que no pacto estivesse permitida a venda sem consentimento
2032 Antes de tudo, nestas condições não naturais do contrato, valia o pacto, desde que não se
subvertesse totalmente a substância do instituto, por contrariar algum dos seus elementos naturais,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 14; Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis [...], cit., 3, 11, 3.
383
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2036 Cf. no entanto, Ord. fil.4, 38-39, que parece referir-se também à locação de longo tempo. Cf.
2038 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 3; Pascoal de Melo,
384
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2039 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 153, ns. 1-2; todavia, em sentido
contrário, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 37, n. 10: se a pensão corresponde aos
frutos, presume-se que se trata de arrendamento (colonia); quando ela é módica, como costuma ser nos
casos de censo e de enfiteuse, presume-se que se trata de enfiteuse.
2040 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 11, Nota.
2041 De modo a autorizar o uso do argumento ab emphyteusi ad feudum e vice versa. Cf. Álvaro
2043 Cf. Siete Partidas, 4, 25-26, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 5-6.
2045 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 6 nota. Sobre a distinção entre
feudos e doações dos bens da coroa, v. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ps. 407-409.
O carácter não feudal das concessões de bens da coroa fora enfaticamente declarado (nas Ord. man. 2,
17, 2). Com este princípio, obtinham-se alguns resultados práticos. O primeiro deles era o de distinguir
as obrigações dos donatários das dos feudatários. Na verdade, o serviço feudal tinha um carácter
pessoal, mas limitado aos termos do pacto de enfeudação. Em contrapartida, entendia-se que os
serviços dos donatários, embora também de natureza pessoal, eram ilimitados, consubstanciados numa
promessa genérica de obediência (Ord. man.2, 17, 3). Eles serviriam enquanto vassalos naturais, sem
limitações na guerra defensiva e até ao limite daquilo que pudessem (tantum intra vires) na guerra ofensiva.
O segundo era o de estabelecer o carácter em princípio temporário da doação de bens da coroa, contra
o carácter perpétuo da concessão feudal. O terceiro era o de sublinhar o carácter indivisível dos bens da
coroa (Ord. man. 2, 17, 2; 2, 14; 2, 25) contraposta à natureza em princípio divisível da concessão feudal,
só afastada no caso de concessões que contivessem dignidades ou em que o pacto fixasse o contrário.
Finalmente, a última consequência da distinção entre feudo e doação régia era a de que os feudos se
regulavam pelo direito feudal, contido nos Libri feudorum, nomeadamente quanto à interpretação e
integração das suas cláusulas, enquanto que as doações régias se regiam pelo direito pátrio, legislado ou
consuetudinário, embora o direito feudal vigore como direito subsidiário.
385
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2046 Cf. Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici [...], cit., qu. 34; Pascoal de Melo,
2048 Cf. C.1.2. De sacrosanctis ecclesiis et de rebus et privilegiis earum, 14 e 17; Decretais, 3, 13
2050 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 12.
2051 Cf. Novelas 7, pr. e Novelas 120 cap. 5; Ord. fil.4, 19, pr.; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.,
pt. 1, dec. 13, n.4; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 28.
2052 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 23.
2053Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 22; se se concedesse
por mais, era reduzida a 3 vidas, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 72, n. 2. Para as
modificações pombalinas, v. CL de 9.9.1769, § 26.
2054 V. Ord. fil.1, 62, 48 e Ord. fil.2, 1, 6, que se permitia às comunidades eclesiásticas adquirir
386
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2055 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 7; Pascoal de Melo,
“Emphyteusis”, n. 13. Com a legislação pombalina, a enfiteuse temporária passou a ter que ser por 3
vidas (CL. 3.11.1757); antes podia ser dada pela vida do enfiteuta ou por 10 anos (v. Ord. fil.4, 38-39).
2057 Para designar a enfiteuse perpétua usavam-se os nomes de fateusim, aforamento, enfatiota.
2058 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 276, n. 3; no sentido da perpetuidade, Pascoal
2060 Para as fórmulas que indiciavam cada modelo, Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici [...],
cit., qu. 4, n. 8; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 8.
2061 Cf. v. Ord. fil.4, 38, ult..
2062 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 21.
2063 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 20.
387
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2064 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 22.
2065 Considerava-se primogénito o filho mais velho que o fosse ao tempo do falecimento do
enfiteuta, devendo esse ser preferido ao neto filho do filho mais velho que faleceu em vida de seu pai,
Ord. fil.4, 36, 2. Para comparação com idêntica questão na sucessão dos morgados, v. cap. 5.4.6
2066 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 23.
2067 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 24.
2068 V. Ord. fil. 4, 37, 2; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 25.
2069 As mulheres eram admitidas à enfiteuse, mesmo à eclesiástica, António Cardoso do Amaral,
2073 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 334, ns. 19 a 21; António da Gama, Decisiones
388
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
de vocação dos filhos naturais, espúrios ou incestuosos dependiam dos seus direitos
sucessórios (v. cap. 5.3.1.1), pois nela eram chamados enquanto herdeiros. Já na
enfiteuse profana ex pacto et providentia, fosse ela familiar ou de nomeação, a vocação
de bastardos, espúrios ou incestuosos dependia do teor das cláusulas do pacto. Em
geral, os filhos naturais podiam ser chamados, estando compreendidos na
designação geral de “filhos”2074. Esta palavra incluiria também os espúrios e os
incestuosos, o mesmo acontecendo no caso de nomeação livre; mas a opinião não
era unânime2075. Quanto aos filhos de segundo matrimónio, o seu direito à vocação
com os filhos do primeiro, dependeria do costume da região2076
4.3.3.5 Que coisas se podiam aforar.
§ 1316. Podiam ser dados em enfiteuse coisas imóveis ou unidas ao solo, que
estivessem no comércio2077, nomeadamente prédios, rústicos e urbanos, cultivados
ou incultos2078. Eram “coisas pegadas ao solo” as casas ou barracas de madeira, as
árvores, os moinhos de água ou de vento. Os tributos ou rendas perpétuos ou a
mais de 10 anos eram imóveis, podendo ser aforados2079, mas não se podiam aforar
os direitos e ações reais, os bens da coroa e os de morgado 2080. Uma lei de
25.7.1766 estabeleceu que os bens comuns dos concelhos só pudessem ser
emprazados com autorização do Desembargo do Paço.
4.3.3.6 Como se constituía e como se provava.
§ 1317. A enfiteuse constituía-se por contrato (de enfiteuse) ou por testamento.
A vontade do concedente constante do ato de instituição devia ser rigorosamente
observada (ad unguem), sendo de atender enquanto não contrariasse a natureza do
instituto2081. A escritura em tabelião não era um requisito substancial da enfiteuse,
servindo apenas para a sua prova (exceto na enfiteuse eclesiástica, que requeria
instrumento escrito2082). Daí que a enfiteuse se pudesse constituir por prescrição,
[...], cit., dec. 149, n.4; Ibidem, dec. 377, n. 6; Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 4.
Alguma doutrina admitia, porém, que sendo de livre nomeação, se pudessem nomear os filhos naturais
(Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec.161, n. 8).
2074 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 147, ns. 1 a 13, invocando, Ord. man.4, 62, 4 (a
que corresponde Ord. fil.4, 36, 4). Cf. porém, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 334. n. 7, em
que estende ao direito civil o desfavor canónico em relação aos bastardos.
2075 “Embora os espúrios sejam incapazes para ser nomeados para a enfiteuse eclesiástica, podem
ser expressamente chamados pelo concedente ou pelo enfiteuta a que for concedida a faculdade de
nomear livremente quem quiser” (Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 6). Porém, “a
concessão geral de nomear para enfiteuse não inclui espúrios e incestuosos” (António da Gama,
Decisiones [...], cit., dec. 377, n. 6).
2076 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 233, n. 9.
2077 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 11; Pascoal de Melo,
2080 Porque não podiam ser alienados, levando a que o senhorio perdesse os laudémios, v. Ord.
fil.2, 35, 25; Ord. fil.4, 41; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 26.
Porém, estas interdições cessavam por licença do rei, Ord. fil.2, 35, 25; Regimento do Desembargo do
Paço, ns. 39-40.
2081 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 14.
389
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2083 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 33; Gabriel Pereira
de Castro, Decisiones […], dec. 37, n. 8; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 127, n. 1 (presume
a existência de título); o pagamento do cânon por 10 anos já bastava para presumir a existência de uma
enfiteuse temporária, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 33.
Correspondentemente, o não pagamento de pensão por 40 anos extinguia a enfiteuse, consolidando os
dois domínios no colono, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 149, n. 5.
2084 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, ns. 7 e 8. Porém, o
senhorio tinha que pedir a declaração do comisso; também podia optar por pedir o cânon em atraso e a
indemnização pela mora: ibid. n. 9 podia optar pelo pedido de indemnização pelo dano, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 9.
2085 Cf. Novela 120, cap. 8.
2086 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 17.
2087 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 12.
2088 A designação de útil dada ao domínio do foreiro parece expressiva, porque contém uma
referência à utilidade que o colono retirava do prédio. Porém, a designação provém do facto de os seus
direitos sobre a coisa não serem tutelados por uma ação direta (a reivindicatio), mas por uma ação útil,
uma vez que a ação direta pressupunha o domínio direto, que ele não tinha.
2089 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 35.
2091 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 92.
390
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
senhorio, que devia poder evitar uma alienação que o prejudicasse 2092, devendo
pagar o laudémio ao senhorio2093. O direito do senhorio de aprovar a alienação e de
receber o respetivo laudémio não existia no caso de alienações forçadas, como: as
feitas por mandato do juiz2094; as alienações de parcelas feitas pelos herdeiros ao
herdeiro encabeçado; ou a alienação que tinha que ser feita no caso de os herdeiros
não concordarem com o encabeçamento2095. No caso de o domínio útil ter sido
concedido pelo pai como dote de filha, uma vez que ele estava obrigado a dotar, a
alienação não era considerada como voluntária e, por isso, não dependia de
autorização do senhorio direto nem pagava laudémio 2096.
§ 1322. A doutrina ponderava que, na realidade, o senhorio direto não tinha um
direito a autorizar a alienação. Mas apenas a ser informado dela, para poder exercer
o seu direito de preferência. E que, por tanto, o foreiro apenas tinha que notificar o
senhorio da alienação e do preço por que a fazia. Perante esta notificação, o
senhorio, ou preferia, ou não, consoante lhe parecesse aceitável ou não o novo
colono. Se não preferisse e nada dissesse no prazo de dois meses, a venda ficava
firme e era-lhe devido o laudémio2097. Logo, uma aprovação formal da aceitação
pelo senhorio do novo foreiro não seria precisa. A falta de notificação e tradição da
coisa para o adquirente2098 causava a queda em comisso – o que importava a
caducidade da enfiteuse, se o senhorio assim quisesse – bem como a nulidade da
venda2099.
§ 1323. O enfiteuta não tinha direito a ser ressarcido do valor das benfeitorias
correntes, desde que necessárias ou úteis, por ele feitas no prédio, no caso de a
enfiteuse terminar (cf. cap. 4.3.4, sobre a colonia). De facto, estas benfeitorias
tinham sido feitas em coisa própria e correspondiam ao seu dever de a manter.
Podia, porém, ser indemnizado de benfeitorias importantes e extraordinárias, que
correspondessem a melhoramentos mais do que normais e correntes.
§ 1324. O colono dispunha de uma ação real útil (utilis actio in rem, no direito
romano, a actio vectigalis, D. 39, 2, 15, 26) para pedir a coisa a quem usurpasse o seu
uso, mesmo ao senhorio direto (cf. D.6,3,1,2). Gozava ainda de ações e interditos
possessórios para proteger o seu domínio.
§ 1325. Tinha o dever de pagar os tributos que recaíssem sobre a coisa
(nomeadamente, a jugada, v. cap. 4.2.2.4, § 200), de não a deteriorar e suportar os
danos que a atingissem.
4.3.3.9 Direitos do senhorio.
2092 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 15. O prejuízo podia decorrer da
menor fiabilidade ou competência agrícola do novo foreiro; mas também de ele ser uma pessoa
poderosa, de quem fosse difícil exigir o pagamento do cânone, cf. Melchior Febo, Decisiones […], dec.
167, n. 19.
2093 V. Ord. fil.4, 38, pr; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 5.
2096 V. Ord. fil.4, 37, 2. Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 113, ns. 1 ss..; Pascoal de
2098 Era necessária a tradição do bem, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Emphyteusis”, n. 6. O comisso podia ser pedido pelo senhorio num prazo de 5 anos, cf. íbid..
2099 V. Ord. fil.4, 38, 1. Ord. fil.4, 38, 1.
391
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2100 O direito ao foro era tutelado por uma ação contra os sucessivos foreiros, v. Ord. fil.4, 36, 5.
Na enfiteuse eclesiástica, mas não na profana, o senhorio gozava de uma hipoteca tácita sobre a coisa
aforada.
2101 V. Ord. fil.4, 40.
2102 Uma pensão grande induzia a que se tratava de um arrendamento e não de uma enfiteuse, e
vice versa, Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs. 59, ns. 9 e 11.
2103 Cf. Cf. Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs. 59, n. 7. Ao contrário do que
acontecia no censo, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 34 e 35.
Se a esterilidade fosse grande, o foro devia ser reduzido equitativamente, v. Manuel Barbosa,
Remissiones […], ad Ord. fil.. 4, 39, n. 18; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Emphyteusis”, n. 34-35.
2104 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 257, n. 1.
2105 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 13
2106 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 37.
2107 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 17.
392
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2109 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 119, ns. 4 e ss.; v. ns. 7, 11 e 13;
outros diziam que operava ipso iure, mas com a cláusula tácita si dominus voluerit, v. Miguel de Reinoso,
Observationum […], obs. 59, ns. 1 ss.. Nesta última opinião se poderia fundar o direito do senhor de se
reapropriar da coisa por autoridade própria (i.e. sem recurso ao tribunal), no caso de comisso; direito
que se hesita em reconhecer, v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 173, n. 9.
2110 Cf. António da António da Gama, Decisiones [...], cit., Decisiones [...], cit., dec. 17; Ibidem, dec.
147, ns. 1 e 5 (“agros per limites dividens, arbores fructiferas extirpans”); mas não arrancando oliveiras
que produzissem pouco, ou substituindo umas árvores por outras ou por vinha (Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 50, ns. 5 e 6.
2111 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv.1, qu. 8, n. 1 ss.; Pascoal de
2113 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 30.
2114 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 31.
393
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
do favor libertatis, pois a condição de propriedade livre (ou plena) seria a condição
natural a que os bens regressariam se findasse o direito que comprimia o direito de
propriedade. A prática, no entanto, seria diversa, presumindo-se o direito do foreiro
à renovação, pelo que era frequente incluir no pacto uma cláusula expressa de não
renovação, estabelecendo que o senhorio receberia os bens livres no fim do prazo
da concessão. Esta cláusula, para uns, seria válida e representaria uma renúncia do
foreiro a pedir a renovação. Para outros, porém, seria nula ou ineficaz 2115.
§ 1336. Em 1610, António Cardoso do Amaral descreve em termos dramáticos
a situação social e política – que, para ele, afetaria a paz e justiça na República - que
decorria desta indecisão. “Há tanta malícia no nosso tempo quanto aos contratos
de enfiteuse – escreve ele2116 - que quase ninguém trata de pedir a renovação dentro
do ano, nem depois disso, para que os contratos de enfiteuse se tornem confusos.
De onde os senhorios diretos, as igrejas e os conventos, sofram hoje grande
prejuízo por causa da opinião de alguns dos juristas portugueses que afirmam, sem
fundamento de direito, que o senhor direto é obrigado a renovar a enfiteuse apesar
da renovação não ser pedida no prazo de um ano a partir da extinção das vidas e
também apesar de no contrato de investidura se estabelecer que, acabadas estas
vidas, os bens enfitêuticos regressassem ao dono livres, sem exceção ou
controvérsia de opinião. E, principalmente, não faltaram juízes que assim julgaram.
Queira Deus que a sua alma não esteja no inferno pelos prejuízos que hoje sofrem
a Igreja e os senhores diretos”. E continua2117, rebatendo as razões alegadas por
estes juristas subversivos, à testa dos quais colocava Álvaro Valasco, um especialista
respeitado e seguido em matéria de enfiteuse, sobre que publicara um tratado, em
1569: “Nem é uma razão adequada a de estes juristas portugueses que dizem que a
república sucumbiria totalmente se se negasse a renovação aos descendentes ou
herdeiros do último enfiteuta [...] como diz Valasco (cons. 123, n. 1 2118), pois penso
que mais sucumbirá a república se não se observar o direito, pois a mesma
república é sustentada tanto pelas armas como pelas leis [...] o juiz inferior, posto
pelo Supremo Pontífice ou pelo Príncipe, é o guardião das leis e não deve governar-
se pelo seu senso [...] e a razão natural não consente que se tire o direito do
senhorio direto para o dar ao enfiteuta [...], não devendo [o senhorio] ser dele
privado, por um interesse particular [do enfiteuta]”.
§ 1337. Realmente, o tema da renovação da enfiteuse tornara-se numa
momentosa questão polémica, sobre a qual os autores divergiam.
§ 1338. Álvaro Valasco era o jurista a quem Amaral imputava a liderança da
corrente favorável à renovação obrigatória dos prazos. Na sua monografia sobre a
enfiteuse, publicada em 1569, todavia, Valasco pouco se refere à renovação da
enfiteuse. E, quando o faz2119, apenas segue a opinião de Bártolo sobre a
2115 Haveria decisões da Casa da Suplicação nesse sentido, embora houvesse quem considerasse
esta cláusula como nula ou ineficaz (Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 123, n. 13, e outros),
posição a que outros negavam qualquer fundamento jurídico, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 15.
2116 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 31.
2119 Cf. Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici [...], cit., qu. 2, n. 7.
394
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2120 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, n. 19.
2121 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 1, n. 1.
2122 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, pg. 56 ss. (da ed.
original).
2123 Que deviam ser renovados aos filhos dos que morressem na guerra. V. Ord. Man. 2, 17, 12;
Ord. fil.2, 35, 2.A doutrina que estende a obrigatoriedade geral da confirmação da doação é, portanto,
uma extensão do preceito legal, por identidade de razão, equiparando os serviços não militares à morte
na guerra.
2124 Cita decisão inédita da Casa da Suplicação de 1576 relativa a emprazamento de armazéns
régios, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, n. 3.
2125 Discussão, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, ns. 5 ss..
2126 Cita duas decisões, em sentido oposto, de António da Gama: no sentido de não reconhecer o
direito à renovação, dec. 41, n.6; em sentido contrário, dec. 326, n. 8; e refere que havia decisões dos
tribunais da corte que negavam a obrigação de renovar.
395
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2127 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 14
2128 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 18.
2129 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21: ”ainda que
esta opinião seja verdadeira por direito estrito, parece que é mais equitativa e mais útil à república a
opinião contrária, apesar do referido pacto que exclui de todo o benefício salubérrimo e utilíssimo da
renovação da enfiteuse. Tanto por aquilo que antes dissemos na qu. 8 ad fin. como também porque a
renovação da enfiteuse diz respeito ao direito e autoridade públicos, a que não se pode renunciar por
pacto [...]. É que o “edito” [opinião doutrinal destinada a aperfeiçoar o direito estrito] da renovação da
enfiteuse, à imagem do edito do pretor, que sempre olhou as coisas na perspetiva de uma equidade
suprema, foi promulgado e recebido pelos costumes dos povos em todas as províncias e reinos que
pertencem ao império e religião cristãos”.
2130 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21: “Parece que
entre nós, tida em conta a autoridade e a utilidade, já foi progressivamente introduzido o direito
público de conceder e de renovar [a enfiteuse]. Porque se, por causa desta convenção e pacto
perniciosos à República, abolirmos este direito, subverter-se-ia aquela equidade da renovação
(sepultando a justiça natural e civil) que recomenda que, findas as vidas, a enfiteuse seja renovada aos
descendentes e agnados mais próximos”.
2131 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21.
396
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2132 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21.
2133 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 31: “Disto se
segue a dúvida frequente de saber se a promessa jurada de não renovar a enfiteuse finda, por extinção
da terceira vida tira o benefício do filho ou dos descendentes do último possuidor, Francisco Caldas
Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., qu. 11, n. 23. Existem em alguns mosteiros, alguns estatutos
particulares, mesmo jurados, e também em algumas igrejas catedrais, pelos quais é proibido que os
bens enfitêuticos voltem aos concedentes, sendo estes obrigados a renovar aos descendentes ou
herdeiros do último possuidor. E a resolução é que estatutos ou promessas de não renovar não se
observem e que não se impeça o benefício da renovação, pois, como a renovação diz respeito a um
interesse público e como do estatuto e promessa de não renovar resulte proibido um ato principalmente
em favor do interesse público, eles [estatutos e promessas] não podem ficar mais firmes pelo juramento
[...], cit., o que corresponde a uma opinião comum [...]”
2134 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 5, n. 1 ss. (maxime,
ns. 11 e 12).
2135 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 22.
397
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 1344. Jorge de Cabedo, que publica, em 1602, logo a seguir à reforma das
Ordenações, sustenta uma opinião recuada, pelo menos quanto à enfiteuse
eclesiástica. Os mosteiros eram obrigados a renovar a enfiteuse, findas as vidas 2136.
Mas isto só acontecia, não por um direito à renovação, mas como uma solução de
equidade no caso de ter havido melhorias que fosse justo compensar, princípio que
ocorreria tanto na enfiteuse eclesiástica como na profana, quer fosse dada em três
vidas, quer por certo prazo2137. Por outro lado, a instituição eclesiástica só podia
negar a renovação, se provasse a sua pobreza 2138.
§ 1345. Nas suas Decisiones (publicadas postumamente, em 1605), que
seguramente tiveram maior difusão do que o Tractatus e às quais se deve referir
António Cardoso do Amaral, Álvaro Valasco pronunciava-se pelo dever do
senhorio de renovar o emprazamento aos sucessores do último enfiteuta 2139, apenas
admitindo que ele pudesse reter o prazo por necessidade superveniente (que tinha
que ser provada)2140. Em todo o caso, a tutela do direito dos sucessores do enfiteuta
era apenas prudente, pois não se lhes concedia uma ação real para recuperar os
bens, mas apenas uma ação pessoal para serem indemnizados pelos prejuízos que
decorriam da não renovação2141. Porventura, isto já era um motivo bastante para
desincentivar a não renovação.
§ 1346. No fim da primeira década do séc. XVII (1621), Gabriel Pereira de
Castro faz o ponto da situação, já então francamente favorável à obrigatoriedade de
renovação dos prazos. Segundo ele, já se reconhecia nessa época aos filhos e
descendentes do enfiteuta um direito legal – ou seja, segundo o direito estrito, e não
apenas segundo a equidade – à renovação, o que provaria que “a equidade acerca da
concessão, renovação e legado de prazos obriga a muita coisa contrária ao rigor do
direito [refere-se ao direito sobre a obrigatoriedade de cumprir as cláusulas
pactadas, neste caso a de não renovação]” 2142. Inicialmente, a renovação obrigatória
só teria sido admitida se tivesse havido benfeitorias. Porém, com o tempo, tinha-se
fixado a opinião de que bastava que não tivesse havido deterioração da coisa. Por
sua vez, a eficácia da cláusula de não renovação tinha perdido progressivamente
terreno2143. Esta nova corrente doutrinária e jurisprudencial fora-se formando
pouco a pouco, tornando-se finalmente pacífica a opinião de que enfiteuse se podia
renovar, debaixo das cláusulas do título originário 2144, chegando ao ponto de se
opinar que a renovação devia ser declarada oficiosamente pelo juiz 2145. Num outro
2136 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 203 (discutindo principalmente o direito à
2138 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 203, ns. 1 e 2.
2139 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 157, ns. 1 ss.. No Tractatus, o assunto é tratado
2142 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, n. 1.
2143 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, n. 2.
2144 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, ns. 3 e 4
2145 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, n. 5. Havia uma ação pessoal para
a exigir, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., qu. 20.
398
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2146 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 31, n. 4.
2147 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 161, n. 36.
2148 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 26.
2149 Principal bibliografia sobre a enfiteuse em Portugal e no “império português”: Luís Cabral de
Moncada, A reserva hereditária no direito peninsular e português, 1, Coimbra, França & Arménio, 1916;
Mário Júlio de Almeida Costa, Origem da enfiteuse no direito português, Coimbra, Coimbra Editora, 1957;
Margarida Durães, “Herdeiros e não herdeiros: nupcialidade e celibato no contexto da propriedade
enfiteuta”, Revista de história económica e social, 21(1987), ps. 49 ss.; Ramon Villares (1988) “Los foros de
Galícia: Algunos problemas y comparaciones (Galicia, Portugal y Valencia)”, em Ler História, 12(1988);
Joel Mata, “Práticas da enfiteuse em Portugal nos séculos XIV-XVI”, em Lusíada. Direito, Porto,
3.1(2011), em http://www.cepesepublicacoes.pt/portal/pt/obras/praticas-da-enfiteuse-em-portugal-
nos-seculos-xiv-xvi. Sobre os prazos do Zambeze: Alexandre Lobato, Colonização senhorial da Zambézia e
outros estudos, Lisboa, J.I.U. 1962. Allen Isaacman, Mozambique: the africanization of a European Institution.
The Zambezi Prazos. 1750-1902, Madison, The University of Wisconsin Press, 1972; M.D.D. Newitt,
Portuguese settlement on the Zambesi, London, Longman, 1973; Eugénia Rodrigues, Portugueses e Africanos
nos Rios de Sena. Os prazos da Coroa nos séculos XVII e XVIII, Universidade Nova de Lisboa, Dissertação
de Doutoramento em História, 2002.
2150 Cf. “Census est quoddam ius recipiendi aliquam pensionem precuniariam, aut alteriur rei,
utilis in annum, aut mensem, seu aliud tempus, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Census”, n. 1.
2151 Como que um pagamento de uma soma em reconhecimento de sujeição, António Cardoso do
399
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 1351. Situações em que um prédio pagasse uma pensão a alguém era muito
comum, podendo ter as mais diversas origens. Ou se tratava de um tributo em sinal
de reconhecimento de jurisdição, ou de uma forma de lembrar um antigo domínio,
ou de uma expressão de gratidão de um donatário. Ou, por fim, de uma forma de
remunerar um empréstimo.
§ 1352. O direito comum tardio conhecia a figura do censo, sobretudo pela
regulamentação que o instituto tinha tido no direito canónico, depois de várias
bulas papais (de Martinho V, de Calisto III e de Pio V) que procuravam impedir
que, sob capa de tais contratos fundiários, se encobrissem usuras. Os autores
distinguiam duas espécies típicas de censo, o censo reservativo e o censo
constitutivo ou consignativo2152: “o censo constitui-se, em primeiro lugar, quando
alguém transmita a outrem um bem seu, com todo o domínio direto e útil, mas
com o ónus de que o que o recebe fique obrigado a um certo censo todos os anos
[censo reservativo]. Em segundo lugar quando se compra de outrem um censo
anual sobre a coisa do vendedor que transmite ao compardor apenas o seu domínio
directo, ficando com o domínio útil], prometendo o vendedor pagar um censo
anual, obrigando e hipotecando a coisa [o domínio útil da] a esse censo [censo
constitutivo ou consignativo]2153.
§ 1353. Muito frequentemente estes contratos encobriam negócios usurários,
pelos quais alguém emprestava capital a outrem - sob a forma da entrega do bem
(censo reservativo) ou do preço por que comprava a renda (censo constitutivo) –
contra o pagamento de um juro – sob a forma de uma pensão a pagar pelo bem
transmitido pelo mutuante ao mutuário (censo reservativo) ou por um bem retido
pelo mutuário, mas adstrito ao pagamento da pensão ao mutuante (censo
consignativo). Este caráter suspeito dos censos levou a que houvesse sucessivas
intervenções legislativas dos papas (Martinho V, Calisto III) sobre estes negócios,
de modo a precaver que eles servissem para encobrir usuras,
§ 1354. A última delas foi um motu proprio de Pio V, de 15692154, recebido
geralmente nas ordens jurídicas temporais 2155, em que se estabeleciam uma série de
preceitos destinados a assegurar que se tratava apenas de um negócio de auxílio a
pessoas que necessitassem de constituir uma renda perpétua a seu favor, mediante
uma retribuição adequada (“ad sublevandas quotidianas pauperum et maxime
negociantium necessitates et ut possit quilibet sibi providere de pecuniis […]”,
dominium directum et utile cum onere quod acciptens rem teneatur solvere certum censum singulis
annis. Secundo modo emendo ab alio annuum censuum super re venditoris, et venditor promittit
solvere annuum censum et obligando et hypotecando rem certam pro ipso annuo censu”, definição de
Follerio (final do séc. XVI, citado por E. Bussi, La formazione dei dogmi […], cit., v. 2, 126).
2154 V. texto em António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 2.
2155 Mesmo nos territórios não sujeitos ao papa, em virtude do critério do pecado, pois o regime
da constituição pontifícia se destinava a definir e a evitar os censos inquinados pelo pecado da usura,
limitando-se a declarar o direito natural e divino António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Census”, n. 19. Sobre o tema, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 133; Manuel de Almeida e
Sousa (Lobão), Tratado práticos dos censos […], cit., cap. II, §§ 15 ss..
400
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
como refere Follerio, no passo antes citado). De acordo com este novo regime 2156,
o censo tinha que incidir sobre uma coisa certa, imóvel (ou tida juridicamente como
tal), transmitida por um certo preço, justo e em dinheiro contado, podendo a
pensão ser remida pelo que se obrigara a pagá-lo2157.
§ 1355. A constituição do censo tinha, portanto, que ser feita sobre coisa
imóvel certa2158, não podendo ser constituída sobre uma pessoa 2159, sem que
houvesse uma coisa onerada com o pagamento da pensão. Não se podia constituir
senão em coisa própria e livre; não em coisa enfitêutica, feudal, regalenga
(jugadeira), hipotecada2160 ou vinculada2161. Se o bem não fosse próprio ou livre, o
censuário podia acionar o que tinha prometido o censo pelos danos ou mesmo com
a actio furti2162
§ 1356. A constituição da renda tinha que ser feita por um preço justo, pois um
preço baixo equivalia a uma renda (ou juro) alta, ou seja, a um contrato usurário 2163.
Para facilitar a avaliação, a pensão tinha que consistir numa quantidade certa, sob
pena de se considerar usurária, embora pudesse ser de diversos géneros (dinheiro,
cereais, vinho, azeite, aves) 2164. A justeza do preço de uma renda não tinha
necessariamente a ver com a comparação entre a renda constituída e a
produtividade de prédio2165, mas com o custo do capital numa certa zona; e, por
isso, tinha que se aferir pelos costumes do lugar 2166. Em Portugal, os juros tinham
sido limitados por várias leis (de 13.1.1615, 23.5.1698, 16.1.1773 e 4.8.1773. A
justeza do preço dos censos era avaliada de acordo com elas, mas também de
acordo com a duração do censo. Assim, com base em autores teólogos e juristas
seiscentistas, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão) estabelece os seguintes preços
para os censos: os censos perpétuos irremíveis deviam ser comprados à razão de 30
por 1 (juro de 3,3 %)2167; os perpétuos remíveis, a 20 por 1 (5 %); os de duas vidas,
a 12 por 1 (8, 3 %); os em uma vida, a 10 por 1 (10 %)2168.
§ 1357. O censo podia ser constituído por doação ou testamento, além de se
poder adquirir por usucapião de 40 anos 2169.
2156 Que, no entanto, não se aplicava aos censos já constituídos, António Cardoso do Amaral,
2158 Até ao motu proprio de Pio V, o censo podia ser constituído sobre todos os bens, António
2160 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 17.
2162 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 17.
2163 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 18.
2164 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 21.
2165 No entanto, se o bem se tornasse estéril ou a sua produção decaísse muito, o censo era
correspondentemente afetado, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 2 e 26;
Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 58, ns. 1 a 6.
2166 Cf. Diogo Marchão Temudo, Decisiones […], cit., dec. 85, n. 2. A menos que o por lei do
príncipe se fixasse a razão do censo (como acontecia em Portugal, em que o juro era fixado em 5 %)..
2167 Ou seja, comprava-se por 30 uma pensão perpétua de 1, o que correspondia a um juro anual
de 3, 3 %.
2168 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado pratico e compendiario dos censos […], §§ 40 ss..
2169 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, ns. 15 e 22.
401
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2173 Cf. No sentido afirmativo, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 11;
2176 V.g. se o censo tivesse sido vendido por 100, podia ser remido um quarto dele por 25,
cit., v. 2, 133.
2178 O colono tinha o dever de pagar ao dono do chão, prestações periódicas, calculadas em
metade de certos produtos, pois podiam não ser todos atingido (“meias” ou “demídia).
2179 Bibliografia sobre a história contemporânea do instituto: João Lizardo (org.), Caseiros e senhorios
402
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
nos finais do séc. XX na Madeira. O processo de extinção da colonia, Porto, Afrontamento, 2009.
2180 No século XVIII, foram tomadas medidas legislativas para reduzir os foros enfitêuticos pagos
no Algarve, por se considerar que estes eram leoninos, causando ao colono uma lesão enorme, ao
exceder aquilo que era, na altura, uma remuneração normal (e, então, legal) do capital (5 %) (alvarás
de 15.9.1776 e de 16.1.1773). Assim como se começou a propor, na doutrina jurídica, que o cálculo das
rendas que consistiam numa quota parte dos frutos, fosse feito sobre o produto líquido (o produit net dos
fisiocratas franceses), deduzidas as despesas. Realmente, segundo a visão contratualista das cessões
agrárias, a desproporção das vantagens dos dois contraentes criava uma situação abusiva ou leonina que,
racional e livremente, não poderia ter sido querida. Cf. António Manuel Hespanha, O jurista e o legislador
na construção da propriedade burguesa, versão polic. Lisboa, 1980, 80 pp. (https://drive.google.com/file/d/
0BxG11aEdnDQ2bndBeGRNRFJ6WFk/view?usp=sharing); versão abreviada (sem aparato crítico
completo), Análise social, 61-62(1980), 211-236, nota 33.
2181 Bibliografia sobre a história da colonia: Jorge de Freitas Branco, Camponeses da Madeira. As bases
materiais do quotidiano do arquipélago (1750-1900), Lisboa, Dom Quixote, 1987; Nelson Veríssimo,
Relações de poder na sociedade madeirense do século XVII, Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura,
1999; Benedita Câmara, “The Portuguese Civil Code and the colonia tenancy contract in Madeira
(1867–1967)”, Continuity and Change, 21.2(2006), pp 213‐233 (em http://www.researchgate.net
/publication/231871653_The_Portuguese_Civil_Code_and_the_colonia_tenancy_contract_in_Madeira
_%2818671967%29; ou http://www.isnie.org/ISNIE06/ Papers06/ 03.1/camara.doc;); Benedita
Câmara, "Colonia contract of Madeira was not classified as emphyteusis by the Portuguese civil code
(1867). The new legal framework allowed long term cooperation between agents?".ou “O contrato de
colonia: ambiguidade entre a parceria e a enfiteuse? Que mudou no relacionamento entre o senhorio e o
colono após 1867?”, comunicação ao XXIII Seminari d'Història Econòmica i Social. Les pràctiques
emfitèutiques a l'època moderna i contemporània. Una perspectiva comparada, Universitat de Girona,
403
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
quando evitassem a ruina ou esterilidade da coisa (cuidar da saúde ou vestido dos escravos,
encanamento de rio ou defesa das margens, restauro de casas velhas, reposição de árvores mortas,
construção ou reparo de cercas, semeaduras, recuperação ou defesa judicial da coisa, Manuel Álvares
Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad. 1, proem, gl. 43, n. 60 ss.), úteis, quando valorizavam a
coisa, embora a sua não realização não a deteriorasse (ibid. tomo 1, ad. 1, proem, gl. 43, n. 81-82),
dirigidas à produção e perceção dos frutos (como as semeaduras, cultivos e colheitas, ibid. ad. 1,
proem, gl. 43, n. 94; tom. 7, ad 1, 87, gl. 24, ns. 3 ss.) e voluptuárias as que apenas adornavam, mas
não aumentavam os frutos, (como a pintura de casas, a construção de jardins, ibid. tomo 1, ad. 1,
proem, gl. 43, n. 91). A regra geral era a de que as benfeitorias eram de quem as tinha feito (melioramenta
illius sunt, qui fecit, cum ad meliorantem pertineant, ibid. tomo, 1, ad. 1, proem, gl. 43, n. 3; ou seus
herdeiros, ibid. ad. 1, proem, gl. 43, ns. 4 e 5). O melhorante tinha sempre o direito de ser ressarcido
pelo dono da coisa, gozando para isso de uma ação pessoal e por vezes, de ação real e direito de
retenção (ibid. ad. 1, proem, gl. 43, ns. 90 ss.); no caso das benfeitorias voluptuárias podia retirá-las se
isso fosse possível sem deterioração da coisa. Especificamente para o caso da enfiteuse, v. Manuel
Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad proem. gl. 43, n. 132; para o arrendamento, ibid. n.
135. Nestes termos, não se vê bem qual seria a especificidade da colonia, salvo porventura a
configuração do direito às benfeitorias como um direito real, acionável por uma ação real.
404
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2183 Por exemplo, no v. “Colonus” do índice de Solano do Vale a Pegas, remete-se para “caseiros”
405
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
confisco, foi utilizado mesmo quanto à abolição da escravatura (ou seja, submissão
do valor da liberdade pessoal ao da propriedade). A outra via de reação foi a de
disfarçar rendas com origem nas relações sociais de tipo feudal em relações de
natureza contratual, ou seja, produto das vontades “livres” dos foreiros.
§ 1370. A compropriedade, a enfiteuse, a parceria – ou seja, todas as formas
imperfeitas de propriedade – passaram a ser tidas como prejudiciais. O Código Civil
de 1867 não incluiu a colonia entre as formas de propriedade imperfeita artº 2189 e,
com isto, tê-la-á abolido tacitamente, sujeitando ao regime da enfiteuse (artº 1689)
ss.as situações até aí tidas como de colonia2184.
4.3.6 As situações agrárias. Quadro sinótico.
§ 1371. Reunimos num quadro a caraterização simplificada das várias situações
reais.
Tipo Duração Foro Laudémio Comisso Indivisão Domínio Tributo Dízima
Herdades Perpétua Não Não Não Não Pleno Não Sim
Jugadeiras Perpétua Não Não Não Não Pleno Sim Sim
Enfiteuse Convenção Sim Sim Sim Sim Dividido Não Sim
Pleno
Censos Convenção Sim Não Não Não Não Sim
onerado
Perpétua
Sesmarias Não Não Não Não Não Não Sim
condicional
Dividido
Colonias Convenção Sim Não Não Não Não Não
precário
Servidão Perpétuo Não Não Não Sim - Não Não
Usufruto e
Perpétuo Não Não Não Sim Dividido Não Não
Uso
4.3.7 As servidões.
§ 1372. No direito romano justinianeu, as servidões – como a herança e o
usufruto - eram consideradas como coisas incorporais, que consistiam num
direito2185 sobre coisa de outrem2186.
2184 O DL 47 937, de 15.09.67 (art.º1, n.º1), proibiu, para o futuro, a celebração de contratos de
colonia, reconhecendo, porém, os contratos celebrados até à sua entrada em vigor, que continuariam
regidos pelo direito costumeiro e pelos usos locais, o que quer dizer que se mantinham os chamados os
direitos reais menores, ou seja, os direitos reais do colono sobre as melhoras, que continuaram a poder
ser transmitidos quer inter vivos, quer mortis causa. Mantendo-se também os direitos do senhorio à
dimidia, à autorização das melhoras e à expulsão do colono.
2185 Cf. “Incorporales autem sunt [res] quae tangi non possunt, qualia sunt ea quae in iure
consistunt: sicut hereditas, usus fructus, obligationes quoquo modo contractae. nec ad rem pertinet
quod in hereditate res corporales continentur: nam et fructus qui ex fundo percipiuntur corporales sunt,
et id quod ex aliqua obligatione nobis debetur plerumque corporale est, veluti fundus, homo, pecunia:
nam ipsum ius hereditatis et ipsum ius utendifruendi et ipsum ius obligationis incorporale est. 3. Eodem
numero sunt iura praediorum urbanorum et rusticorum, quae et servitutes vocantur”, I.2, 2
2186 Cf. Giuseppe Grosso, Luigi Raggi, Manlio Udina, “Servitù”, em Enciclopedia Italiana (1936),
406
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1373. O conceito era tão vasto que nele podiam caber a jurisdição sobre uma
coisa2187, o direito a serviços pessoais (serviços relativos a uma pessoa, servidões
pessoais) ou o direito a comodidades úteis ao uso de uma coisa de que se fosse
proprietário (servidões relativas a uma coisa, servidões reais) 2188.
§ 1374. As servidões pessoais eram direitos que recaíam sobre uma coisa alheia
relativos a serviços pessoais a prestar ao titular pelo proprietário dessa coisa. Tais
serviços podiam ser muito variados: prestar-lhe certos dias de trabalho, fazer-lhe
carretos de bens, permitir o pasto dos seus rebanhos 2189, permitir a exploração por
outrem de pedreiras no seu prédio2190, obrigar os habitantes de um lugar a moer os
cereais num certo moinho, ou a cozer pão num certo forno 2191.
§ 1375. As servidões reais eram devidas a uma coisa (um prédio, o prédio
dominante), consistindo no direito a vantagens no seu uso proporcionadas pela
limitação das faculdades de uso do prédio serviente. Havia limitações “naturais” ao
uso dos prédios, seja em função da utilidade pública, seja em benefício de prédios
vizinhos. Essas limitações constavam de normas de regulamentação urbanística 2192
ou de disciplina das relações de vizinhança urbana, em Portugal a cargo dos
almotacés2193, ou da natureza e disposição dos terrenos. Porém, estas limitações de
uso não constituíam servidões, pois estas necessitavam de um facto humano
constitutivo2194. O prédio superior tinha, por natureza, o direito de fazer correr as
águas da chuva ou de veios subterrâneos para o prédio inferior, sem que o dono
deste o pudesse impedir. Os seus donos podiam construir “até ao céu”,
prejudicando o sol e as vistas dos prédios vizinhos, cuja utilidade podia ficar
limitada por isso2195. Tal como podiam tapar o ar e vento aos vizinhos com muros
de que necessitassem. Porém, como a natureza das eiras era a de ter vento para
separar o grão da palha, os prédios em que estivessem tinham por natureza o
direito a manter essa aragem, a benefício da agricultura, ainda que isso importasse
uma limitação ao uso dos prédios confinantes 2196. O mesmo acontecia com as
algumas figuras jurídicas”, Revista da Ordem dos Advogados, 69.1-2 (2009), pp. 73-107; Ricardo Lopes,
“O direito de propriedade e as relações de vizinhança”, Scientia Iuridica, 13 (1954), pp. 478-495.
2187 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 18 (“as servidões mistas
servidão real, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 17.
2190 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 43.
nesse sentido, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. ns. 46 e 47. Pascoal de
Melo refere a obrigação dos habitantes de terras do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra de fazer as suas
moendas nos moinhos do mosteiro, ou dos vizinhos de Tomar e de Setúbal de usar formos senhoriais;
ou ainda a obrigavam de morar e de cultivar que impendia sobre certos moradores dos reguengos (v.
Ord. fil.2, 17), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13, 2.
2192 V. Ord. fil.1, 68, 18 a 21.
2195 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 34. Mas já não se
poderiam tapar as vistas do mar, do céu, do curso do rio (o A. que era da Ruivães, invoca, enlevado,
as vistas do Douro e do Tejo. “sicut est fluvius Durius, vicinus meus, quia Durius vocatur eo quod per
dura saxa delabitur, aut Tagus” …, cf. ibid. n. 35) ou o sol que aquecia o terraço, ibid..
2196 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 33.
407
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2197 “[…] de modo a ver os seus segredos, as moças ou as freiras [que habitassem o prédio
vizinho], pois isso não se pode fazer em desrespeito de outrem”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Servitus”, n. ns. 36 e 38.
2198 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., dec. 125, n. 12.
2200 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 10.
2202 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 2. Os prédios podiam ser
prédio ou pessoa.
2205 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 11.
2206 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, ns. 6 e 7.
408
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2207 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 13.
2208 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, ns. 14 a 17. Algumas
servidões, embora consistindo em atos descontínuos, supunham uma intenção contínua de uso. Era o
caso do usufruto ou da jurisdição. Seriam servidões mistas, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Servitus”, n. 18.
2209 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 22.
2210 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 19.
2211 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 20.
2212 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 23. Nos prédios urbanos
requeria-se que o dono do prédio serviente fizesse oposição ativa ao exercício da servidão, ibid. ns. 23,
26 e 39.
2213 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 24; a servidão devida a
prédio da Igreja só se perdia por não uso de 40 anos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Servitus”, n. 25.
2214 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 5.
2216 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria […], cit.; refere-se ao usufruto, mas este era uma
409
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2218 D.7, 1, 8 De usu et habitatione, 1: “Constituitur etiam nudus usus, id est sine fructu […]”.
2219 Cf. I.2, 1, 38; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13.
2220 Cf. “Usufructus pars dominii reputantur”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo
2224 Cf. D.7.5. De usu fructu earum rerum, quae usu consumuntur vel minuuntur; cf. Pascoal de Melo,
2228 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13, 5
2229; Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad 1, 87, gl. 8, n. 74 a 88. (com as
limitações da regra); ou nos bens dos escravos, ibid. n. 89. Outros casos menos relevantes de
constituição de usufruto legal: (i) a favor do pai ou a mãe que, havendo filhos do primeiro matrimónio,
contraiu segundas núpcias, nos bens que herdar ab intestato de filho já falecido (Ord. fil.4, 91, 2 e 4); (ii) à
bínuba quinquagenária, existindo filhos do primeiro matrimónio, nos bens que já tinha ou adquiriu
depois do segundo casamento (Ord. fil.4, 105); (iii) pelo alv. 17.8.1761, § 7, à viúva fidalga na décima
parte dos bens da herança ou património do marido, incluindo morgados e bens da coroa, v. Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13, 5.
2230 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., pt. 3, c. 23, n. 12..
410
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2231 Cf. “Quidquid personale est”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad 2,
35, cap. 38, n. 22; ib. tomo 2, ad 1, 3, gl. 96, cap. 4. n. 83. No entanto, distinguia-se a inalienabilidade
do usufruto da alienabilidade das suas comodidades (cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs.
73, n. 8); por isso, a comodidade dos frutos podia ser vendida pelo usufrutuário, Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 66, ns. 23 e 24.
2232 Cf. Perde-se pelo não uso, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad 2, 35,
2234 I.2, 4, 3: “Finitur autem usus fructus morte fructuarii et duabus capitis deminutionibus,
maxima et media, et non utendo per modum et tempus. quae omnia nostra statuit constitutio. item
finitur usus fructus, si domino proprietatis ab usufructuario cedatur (nam extraneo cedendo nibil agitur):
vel ex contrario si fructuarius proprietatem rei adquisierit, quae res consolidatio appellatur. eo amplius
constat, si aedes incendio consumptae fuerint vel etiam terrae motu aut vitio suo corruerint, extingui
usum fructum et ne areae quidem usum fructum deberi”.
2235 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13, 9; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),
411
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2237 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3, 13, 10.
2238 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit.3, 13, 10.
2239 Cf. Privilégios dos pastores serranos de passarem os seus gados para o Campo de Ourique,
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad reg. Des. Paço, cap. 89, in fine.
2240 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, ad 2, 35, cap. 268, n. 4. Salvo
autorização régia por um ato puro de graça, que não era sequer da competência do Desembargo do
Paço, como fora julgado sobre a alienação de pastos comuns a favor das freiras de S. Bernardo de
Portalegre, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, ad 2, 35, cap. 268, n. 2. O uso dos
pastos era regulado nos forais e vigiado pelos juízes do verde ou pelos funcionários do concelho. Cf.
decreto de 1612 mandando restituir à Câmara do Crato pastos e ervagens, matos e ramas do seu termo,
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad regim. Senatus Palat. cap. 96, n. 1 (toda a
contenda, até ao n.32); sobre os direitos dos povos das várias aldeias do concelho de Alcobaça a
madeiras, montados e pastos nas matas, ibid. tomo 9, ad 2, 27, gl. 3, n. 61.Sobre os montados de
Campo de Ourique, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.. 225, reg. 19.1.1699, JJAS, pg.
424; o gado que usava os pastos deste campo estava sujeito a um imposto que consistia numa pequena
percentagem das cabeças de gado (“monta”); v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9,
ad 2, 26, gl. 16, n. 40; Sobre bens patrimoniais do rei deste tipo (lezírias, pauis, montados, matas,
montarias, pinhais), António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.. 225 ss..
412
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
5 As sucessões.
§ 1397. A sucessão era um outro meio de se adquirirem coisas, a título universal
(como na herança) ou a título particular (como nos legados). A sucessão podia ser
deferida de acordo com a vontade do falecido (de cujus, de cujus sucessione agitur,
expressa num testamento, ou pela lei, caso este faltasse.
5.1 Fontes do regime sucessório no direito comum.
§ 1398. No direito sucessório de direito comum confluem tradições jurídicas
muito diferentes.
§ 1399. Por um lado, a tradição jurídica romanista, ela mesmo produto de uma
longa evolução. Os textos do Digesto reportam-se a uma fase mais antiga, em que a
sucessão era, principalmente, dominada pela preocupação de garantir a substituição
política e jurídica do de cujus, a qual era feita por um ato solene e público de
instituição de herdeiro (inicialmente perante os comícios reunidos), o testamento.
Esta fase publicista e formalista é temperada pelo direito pretório que, sem apagar
alguns dos traços anteriores, introduz uma nova dimensão na sucessão, a de dar
destino ao património do falecido, admitindo à sucessão outros seus familiares,
segundo uma ordem que se supunha seria a dos seus afetos: os ascendentes, os
parentes consanguíneos, e o cônjuge (v. cap. 3.2.5. Embora o sistema sucessório
romano fosse bastante igualitário no que respeita ao género, sobre ele pesava
fortemente a estrutura jurídica da família, com as suas distinções entre casamento
cum manu (em que a mulher estava submetida ao poder marido, como se fosse uma
filha, também para efeitos sucessórios) e casamento sine manu (em que a mulher não
dependia do marido, nem era uma sua parenta “política”, tendo por isso diminutos
direitos sucessórios). Justiniano reformou profundamente o direito sucessório
clássico, em constituições posteriores à elaboração das Institutiones e do Digesto ( as
Novelas 115 e 118). Aí, muitas das antigas distinções desapareceram ou foram
atenuadas, daí resultando um direito sucessório ainda centrado no testamento,
basicamente como expressão formal de uma vontade do testador, muito pouco
limitada, de dispor dos seus bens para depois da morte 2241.
§ 1400. Outra tradição era a dos direitos locais, nomeadamente de origem
germânica, implantados nos reinos e cidades alto-medievais. Aí dominava um
sistema sucessório estabelecido pela natureza ou pelos deuses, que limitava muito a
vontade do de cuius, distribuindo os bens, de acordo com a sua diferente natureza
(feudais, de família, adquiridos, do lado paterno, do lado materno), pelos
herdeiros2242.
§ 1401. Por fim, a tradição do direito canónico, que encarava o testamento
como um complemento do sacramento da confissão, tendo como fim principal
tomar disposições para a salvação da alma, como fazer legados pios (ad pias causas),
mandar rezar missas pela alma ou mesmo apenas declarar a sua fé e pedir perdão a
Deus. Por isso, o direito canónico quase apenas se preocupou com estes
testamentos piedosos, procurando discipliná-los2243, supervisionar a sua feitura2244,
2241 Cf. entre muitas sínteses, a de Álvaro d’Ors, Derecho privado romano, §§ 288 ss.. Em suporte
413
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2248 Na legislação pombalina, há exemplos destas leis que limitam a disposição dos bens para fora
do círculo dos parentes mais próximos, ou a sua dissipação em legados (carta de lei de L. 9.9.1769,
revogada pelo Dec. 17.7.1778).
2249 Um bom exemplo destas perplexidades é Pascoal de Melo, nas suas Institutiones iuris civilis (3, 5),
cuja versão do regime sucessório está longe de refletir fielmente a doutrina dos sécs. XVI e XVII.
414
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2253 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 2. Havia exceções. A
mais importante era a do testamento de causas piedosas (ad pias causas), provindo do direito canónico,
que validava testamentos sem instituição de herdeiro,
2254 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5.
2256 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 5; Pascoal de Melo,
2258 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 45.
415
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Como formalidades2261, exigia cinco testemunhas, por direito pátrio (Ord. fil.4,80),
sete por direito comum2262, todas maiores de 14 anos, varões2263, livres, que
soubessem assinar e que não estivessem por lei impedidas de o ser 2264. As
testemunhas deviam ser rogadas, ou seja, convocadas especialmente para isso2265. O
testamento devia ser assinado pelo testador ou por alguém por si, que declarasse a
qualidade com que assinava (Ord. fil.4,80,pr.). A doutrina explicava a importância
deste formalismo pelo facto de o ato de testar pressupor grande ponderação de
juízo e de vontade2266.
§ 1411. Nos finais do séc. XVIII, e para simplificar os requisitos formais dos
testamentos, que os praxistas tinham complicado, a doutrina insiste em que a regra
mais importante para a validade do testamento era a de que apenas se requeriam as
formalidades expressamente contidas nas palavras das Ordenações 2267. A
preocupação com a simplificação das formalidades do testamento já vinha do
direito canónico, que supria algumas delas no caso de testamento feito perante o
pároco; mas esta simplificação, muito favorável à Igreja, não a admitia o direito
racionalista, tendencialmente laicizante.
§ 1412. Estas formalidades gerais dos testamentos tabeliónicos eram
dispensadas em certos casos especiais2268. Nos testamentos feitos nas aldeias, onde
normalmente houvesse pouca gente, bastariam três testemunhas (cinco por direito
comum) Ord. man.4,76,ult. (que não passou para as Ord. fil.). A razão de ser da
exceção era a pequenez do lugar, não a rusticidade das pessoas (mas isto era
discutido) 2269. Em tempo de peste, também bastavam três testemunhas, conforme
o direito comum e a praxe corrente em todos os tribunais em Portugal 2270. Os
2261 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 81, ns. 1 e 2.
2262 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, ns. 26 e 40.
2263 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, 27; as mulheres sendo
excluídas propter fragilitatem sexus. Pelo direito canónico, eram, porém, admitidas segundo alguns
autores; outros entendiam, no entanto que isto só acontecia nos testamentos ad pias causas. Eram
admitidas nos codicilos, ibid..
2264 Podiam ser testemunha as pessoas que não estivessem expressamente proibidas, Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 11. Estavam-no as mulheres, exceto nos testamentos feitos
ao tempo da morte (Ord. fil. 4, 80, 4), os impúberes, os furiosos, os mudos, os surdos, os cegos, os
pródigos, os herdeiro, seus filhos, pai e irmãos não emancipados (mas podiam ser testemunhas a mãe,
o avô, os irmãos emancipados, os criados e os legatários, Ord. fil.4, 85. 85); v. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit.3, 5, 11-12; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Testamentum”, n. 28. O monge não podia escrever testamento com deixas a um mosteiro; uma CL de
25 de Junho de 1766 proibia deixas ao que escreveu e seus familiares; mas foi revogada, Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 12.
2265 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 31 (“presente e
rogado”); esta exigência não existia nos testamentos nuncupativos, nem nos militares, em que bastavam
duas ou três testemunhas, de qualquer modo presentes (ibid. n. 46; cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...],
cit., cons. 104, dedicada aos testamentos militares).
2266 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 83, n. 2.
2267 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 6.nota.
2268 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 15.
2269 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 8, n. 5 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
cons. 117, ns. 2 e 3 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 39.
2270 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 42; formalidades,
416
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
testamentos feitos pelos pais aos seus filhos também valiam apenas com a
assinatura do pai e de duas testemunhas desta assinatura 2271.
§ 1413. O testamento aberto era feito pelo testador, ou por um particular a seu
rogo2272, e igualmente assinado por cinco testemunhas, varões, maiores de 14 anos
e livres. Era subscrito pelo testador e por aquele que escreveu o testamento, que era
tido como tabelião. Ao contrário do testamento tabeliónico, cujo conteúdo fazia fé
por ser escrito por um oficial público, este devia ser lido diante das testemunhas,
antes de estas o assinarem, para que elas pudessem atestar a autenticidade do seu
conteúdo2273.
§ 1414. O testamento cerrado ou místico era escrito e fechado pelo testador, ou
por outrem a seu mandado, e entregue pelo testador, na presença de cinco
testemunhas varões, maiores de 14 anos e livres, ao tabelião, que lhe perguntava
perante elas se o testamento era seu; se o testador dissesse que sim, o tabelião fazia
um instrumento de aprovação, apenso ao testador e assinado pelo testador e pelas
cinco testemunhas2274.
§ 1415. O testamento nuncupativo era uma declaração oral do testador acerca
da sucessão dos seus bens. Pelo direito justinianeu, era admitido em geral, embora
com a exigência de mais testemunhas, como um testamento de direito civil2275. Nas
Ordenações filipinas, a sua validade aparecia condicionada ao facto de ter sido feito na
iminência da morte e de o testador não se restabelecer2276. A generalidade da
doutrina continuava, porém, a entender que se podia testar nuncupativamente em
qualquer altura, embora as testemunhas devessem, neste caso, ser todas homens,
segundo o regime geral do direito comum 2277. Neste caso, o testamento valia para
sempre, isto é, enquanto não fosse revogado 2278. Como as suas exigências formais
eram menores, a doutrina entendia que se os testamentos não pudessem valer
como escritos, por falta de forma, valeriam como nuncupativo, se tivessem forma
bastante para tal, já que a substância do testamento era a declaração de vontade do
testador e sua prova2279.
§ 1416. Próximo do testamento estava o codicilo, originariamente uma
declaração sobre a sucessão dos bens, complementar a um testamento e, por isso,
2271 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 41; valeria como
codicilo, presumindo-se que continha cláusula codiciliar, Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all.. 61,
ns. 26-27; formalidades, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 32, n. 1.
2272 Não podia ser um herdeiro aí instituído, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Testamentum”, n. 78.
2273 V. Ord. fil.4, 80, 3; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 7.
2274 V. Ord. fil. 4, 80, 1-2.; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”,
n. 51.
2275 Cf. I.2, 10, 14 – “Sed haec quidem de testamentis quae in scriptis conficiuntur. si quis autem
voluerit sine scriptis ordinare iure civili testamentum, septem testibus adhibitis et sua voluntate coram
eis nuncupata, sciat hoc perfectissimum testamentum iure civili firmunque constitutum”.
2276 Atenuava-se o formalismo, pois apenas se exigiam perante seis testemunhas, homens ou
mulheres. V. Ord. fil. 4, 80, 3. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 9. A doutrina
também entendia que não se exigia a rogatio das testemunhas.
2277 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 9.
2278 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., a Ord. fil. 4, 80, 3; António Cardoso do Amaral,
417
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2280 V. Ord. fil. 4, 86; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, ns. 32
a 36, 47 e 55.
2281 António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 126, n. 4; sobre esta cláusula, Melchior Febo,
Decisiones [...], cit., dec. 13, n. 34, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 56 e 57.
2282 E, segundo alguma doutrina, pelos cavaleiros das ordens militares e, segundo opinião ainda
mais problemática, pelos clérigos e pelos doutores, v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
3, 5, 15.
2283 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 46; Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 104, toda ela (com referência aos testamentos feitos em nau militar ou nas
fortalezas da Índia); Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 15.
2284 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, 43. Dispensava-se a rogatio,
2286 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 96, n. 60.
2287 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 67, per totam, especialmente ns. 1, 6 e 7 (Bento
das Decretais) nunca teria sido recebida pelas leis ou costumes de Portugal, Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 17.
418
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
formalidades. Em princípio, esta era a lei do lugar em que o testamento era feito.
Assim, os testamentos de portugueses nas terras “dos mouros” deviam ser feitos
segundo o costume do lugar ou, não sendo este conhecido, segundo o ius gentium
(duas testemunhas); as formalidades dos testamentos feitos no mar eram reguladas
pelo direito do porto a que o mar fosse adjacente (ou pelo ius gentium se este fosse
desconhecido)2289; os testamentos feitos em nau portuguesa eram considerados
testamentos militares; os testamentos de estrangeiros em Portugal obedeciam ao
direito português. Em qualquer dos casos, tinha que se atender à lei do lugar da
situação dos bens imóveis deixados, pois era por esta que se definia a validade das
cláusulas testamentárias a eles relativas (statutum unius regni non extenditur ad bona sita
extra territorium statuentium)2290.
§ 1421. Também o testamento dos cônjuges entre si - feito, como se dizia, “de
mão comum”, no qual eles mutuamente se instituíam herdeiros - não era um
testamento privilegiado, visto que requeria as solenidades ordinárias. A sua
especialidade provinha de um regime algo especial quanto à revogação. Qualquer
um dos cônjuges podia, em princípio, revogar a sua parte sem o conhecimento do
outro, visto que, na realidade, os testamentos eram dois, sendo lícito a cada um
mudar de intenção. Em todo o caso, havia quem entendesse que, nomeadamente se
figurasse no testamento uma cláusula proibindo a revogação, havia um
condicionamento da deixa de um pela deixa do outro, uma espécie de instituição
sinalagmática, que impediria a revogação unilateral. Esta opinião, contudo, não era
comum, optando a doutrina pela regra geral da revogabilidade das deixas
testamentárias2291.
5.2.3 Requisitos substanciais do testamento.
§ 1422. Para além destas solenidades externas, condicionavam a validade do
testamento certas circunstâncias substanciais, relativas à vontade do testador, como
essência do testamento2292. Estas circunstâncias tinham que ver com a capacidade
testamentária ativa, com a possibilidade de querer e de saber o que se queria, com a
liberdade de decisão do testador e com o requisito de instituição de herdeiro ou de
deserdação expressa, que fora herdado da fase mais antiga do direito romano 2293.
§ 1423. A capacidade testamentária ativa2294 era recusada2295 ao furioso e afins
(salvo nos intervalos lúcidos)2296, aos impúberes2297, ao pródigo (declarado
2289 Nos limites das navegações portuguesas, vigorava o direito português, Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 182 n. n. 17; mas podia aplicar-se o direito especial dos testamentos feitos em
lugar ermo (Ord. man. 4, 76, ult.), ibid. n. 18.
2290 Sobre estes casos, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 182, ns. 2 a 19..
2291 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 182, n. 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis
[...], cit., 3, 5, 18. Note-se que o testamento conjunto dos dois cônjuges, escrito pelo marido, e em que
eles se instituem mutuamente herdeiros era nulo na parte da instituição do marido, porque o herdeiro
não podia escrever o testamento, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n.
79. Sobre os testamentos em mão comum dos cônjuges, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit.,
“Testamentum”, n. 1870.
2292 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 19.
2293 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 19.
2294 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 6 ss..
2296 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 7 (mentecapto,
fatuus, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 97, ns. 1 ss.). Sucediam, não os herdeiros ab
419
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
intestato do furioso, mas os herdeiros ab intestato do testador, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Haereditas”, n. 5.
2297 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 10: 14 anos nos
2299 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, ns. 8 e 9. Os cegos
podiam testar, mas exigia-se um número maior de testemunhas: sete ou oito testemunhas, além do
notário, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 24.
2300 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 11. Só podia dispor
dos bens castrenses ou quase castrenses. V. Ord. fil.4, 81, 3; Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 29,
ns. 114 ss..
2301 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 16.
2302 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 13: degredados,
cárcere perpétuo, morte natural (embora a prática, segundo diz, fosse a de deixar o condenado fazer
testamento antes da execução, se não houvesse confisco dos bens). Aos que fossem feitos prisioneiros
pelo inimigo aplicava-se o regime romano do postlimínio. Pascoal de Melo afasta estas causas de
incapacidade testamentária (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 21).
2303 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 14.
2304 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 15.
2305 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 18.
2306 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 21.
2307 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 22.
2308 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 21.
2309 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 16; António da
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 16, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,
5, 24. Logicamente, este testamento não podia ser revogado depois dos votos. Discutia-se se a entrada
em religião rompia o testamento quando fosse imprevista no momento da feitura deste e acompanhada
da intenção de plena dedicação à vida religiosa, cf. ibid..
2311 V. Ord. fil.2, 18, 5. Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 95, ns. 19-21; Álvaro
Valasco, Decisiones […], cit., cons. 74, n. 13; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 23.
O testamento regia-se pelo direito canónico, quanto às formalidades (duas testemunhas, perante o
pároco). Para valer no foro secular, tinha que obedecer às formalidades do direito civil; cf. Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 74; Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 7, n. 30.
420
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2312 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 90; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
Sobre os testamentos régios, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 27 (podiam testar os
seus bens particulares, com as formalidades ordinárias).
2314 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 25.
2315 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 28.
2316 V. Ord. fil. 4, 84, pr. e § 3, ns. 1, 2 e 3; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
annulatur, quando blandiciae habent admistum dolum, vel sunt admitxtae mine, aut verbera … Idem
est dicendum, si intervenient preces importunae, vel seduxio uxoris per mariti suasiones”); Manuel
Barbosa, Remissiones […], cit., à Ord. liv. 4, 84.
2318 Os pactos sucessórios ou eram de sucedendo ou de non sucedendo. Pelo pacto de sucedendo
convencionava-se que alguém fosse instituído herdeiro por outro; pelo de non sucedendo, alguém se
obrigava a renunciar a uma certa herança futura (Ord. fil. 4, 70, com fonte nos direitos justinianeu e
canónico). Para os juristas jusracionalistas, estes pactos eram tendencialmente válidos. Havia ainda o
pacto acerca de herança de pessoa viva, que era considerado imoral, pois se entendia fazia perigar a
vida dessa pessoa (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 164, per totam).
2319 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 49.
421
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2320 I.2.20 De legatis, 34: “Ante heredis institutionem inutiliter antea legabatur, scilicet quia
testamenta vim ex institutione heredum accipiunt et ob id velutii caput atque fundamentum intellegitur
totius testamenti heredis instituto”. Para os juristas jusracionalistas, esta regra devia-se a uma superstição
dos romanos, sem um suporte racional; v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 68, n. 2; Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 29.
2321 “A instituição de herdeiro não é da essência do testamento”, afirma enfaticamente Pascoal de
Melo ( Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 29), abonando-se nos autores do usus modernus.
2322 Usava-se a palavra hereus (hereo) para designar o herdeiro, mas também o proprietário alodial
(hereu ou hereo).
2323 Os incapazes de serem herdeiros eram: os religiosos regulares (Ord. fil.4, 81, 3 e 4; poderiam,
no entanto, receber uma renda vitalícia para alimentos, além de legados), os proscritos ou
desnaturalizados, os hereges (Ord. fil.5, 1, pr.), os apóstatas (Ord. fil.4, 81), os filhos e netos de
condenados por lesa-majestade (Ord. fil.5, 6, 13; mas não as filhas), os clérigos instituídos por outros
clérigos (Ord. fil.2, 18, 7), os colégios e corpos, quer seculares, quer eclesiásticos, de mão morta (cf.
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 5, 31, sendo a doutrina anterior mais permissiva,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 18), os cativos (que se presumiam
mortos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 52). Os mentecaptos e os
pródigos podiam ser instituídos, mediante aceitação do curador (cf. António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 21). A capacidade hereditária era referida ao momento do deferimento
da herança, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 37; no direito romano, a aferição era
mais complicada, abrangendo vários momentos e isto reflete-se ainda na doutrina do direito comum (cf.
Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 63, n. 4).
2324 Note-se que o testamento que instituísse um espúrio podia ser querelado por um herdeiro
por um dec. de 17.7.1778) limitou o direito de ser instituído herdeiro a quem fosse parente agnado do
testador até ao 4º grau.
2326 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 19.
2327 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 96; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 32. O legado ciente de coisa alheia obrigava o herdeiro a adquirir
essa coisa a entrega-la ao legatário, cf. ibid. n. 98; o testador não revogava o legado penhorando ou
hipotecando a coisa, apenas obrigando o herdeiro a levantar o ónus; mas entendia-se que a alienação da
coisa legada correspondia à revogação do legado, cf. ibid. n. 103.
422
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2328 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 34. Mas a doutrina admitia a instituição
da esposa, com a condição de não voltar a casar (Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 87, n. 15).
2329 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 36.
2330 O testamento que excluísse os nascituros era nulo (“in quo praeteritus venter, hoc est proles in
ventre, est nullius momenti”), Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 124, n. 44. No testamento em
que se tivesse preterido um filho póstumo, caíam as instituições de herdeiro, mas mantinham-se os
legados se o testador sabia que a mulher estava prenha, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Testamentum”, n. 60.
2331 V. Ord. fil. 4, 82, 1 e 5; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”,
n. 62; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 38 3. Todavia, não era necessária a
instituição especial dos filhos quando o pai dispunha da terça em favor de um dos filhos, porquanto se
entendia que com este facto ele não preteria os outros, mas os instituía a todos quanto ao restante, Ord.
fil.4, 82; cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], dec. 78, n. 1.
2332 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 64. Esta exceção
não era pacífica (Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 88, ns. 2, 4 e 6).
2333 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 65.
2335 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 43.
423
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2339 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 126, ns. 4 ss.; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
424
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2341 Encontram-se exemplos como: tratar o seu cadáver de forma ímpia (por exemplo, deitando-o
ao mar), desobrigar o testamenteiro da prestação de contas, fazer alguém herdeiro com a condição de
este doar os bens a um filho espúrio do testador, como forma de contornar a proibição de instituir
herdeiros os filhos espúrios, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 10.
2342 “Plenior quam in donationibus et contractibus”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Testamentum”, n. 75.
2343 “Ex verissimile et quae sunt verisimilia in ultimis voluntatibus”, António da Gama, Decisiones
videtur se conformare cum jure communi”, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 206, n. 26.
2345 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 17, obs. 6 ss. (“publice interest [est]
2348 E não pela petição dos bens contra o testamento (bonorum possessio contra tabulas), nem pela
querela de testamento inoficioso, que ambas supunham um testamento válido. Estas distinções quanto
às ações disponíveis perderam o interesse no direito comum tardio, que não obrigava a indicar o nome
da ação (v. 7.1.3).
2349 Aquele que ingressava numa ordem religiosa não sofria uma diminuição da capacidade jurídica
e, por isso, o testamento por ele feito antes de professar não se tornava roto; cf. Álvaro Valasco, Praxis
partitionum […], cit., cap. 16, n. 17.
425
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2350 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 59; ou legitimação
de um natural ou espúrio, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 73.
2351 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 66-69 (“voluntas
testatoris est deambulatoria usquem ad extremum vitae exitum”). A doutrina obrigava, no entanto, a
que, se o primeiro testamento contivesse essa cláusula (ou fosse garantido mediante a invocação do
credo, do padre nosso ou de fórmula religiosa semelhante (“nisi in eo scribantur articuli fidei auto ratio
dominica vel similia “), o testamento revogatório o referisse expressamente (“não obstante tal
testamento e tais palavras”). Cf. ainda, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 209, n. 2.
2352 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 70.
2353 Nos irmãos apenas no caso da sua preterição por pessoa infame a dos irmãos, só em certos
casos, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 90.
2354 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 165, ns. 2 ss..
2355 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 54. Mas, se fosse instituído um herdeiro
incapaz ou que morresse antes do testador, e outro fosse instituído para o “resto da herança” este
herdava tudo, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 17
2356 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 51.
2357 Cf. I.2, 14, 4: “neque enim idem ex parte testatus et ex parte intestatus decedere potest”.
2358 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 6, 23.
2359 Cf. v.g. Álvaro Valasco, De partitionibus […], cap. 17. n. 31.
426
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2360 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Testamentum”, ns. 1931 ss..
2361 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 105.
2362 V. Ord. fil.1, 62, 23; cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., pt. 1, cap. 49 (Juízo
dos resíduos e das capelas; causas pias, cumprimento dos legados pios e bens dos ausentes); Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 6, 14 e 16.
2363 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 107; sobre o regime das
2367 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 14; Álvaro Valasco,
4.
2369 Pascoal de Melo já dá esta distinção como supérflua, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis
[...], cit., 3, 6, 4.
427
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
sobre bem que lhe pertencesse2370 (por “se agir como herdeiro”2371). A herança
podia ser aceite puramente ou sob condição (v.g. se for solvável). Também podia
ser aceite no todo ou apenas em parte, pois não fora recebida no direito português
a regra romana nemo pro parte testatus et pro parte intestatus decedere potest 2372. Os
incapazes aceitavam a herança pelos seus representantes; o filho família podia
aceitar por si, pedindo antes autorização ao pai 2373. O prazo para aceitar a herança
era marcado pelo juiz a pedido dos credores. Decorrido o prazo, a herança tinha-se
como repudiada, quando pedida pelo herdeiro substituto; por aceite, quando pedida
pelos credores ou legatários2374.
§ 1452. A herança não aceite era devolvida ao herdeiro legítimo seguinte, não
passando aos herdeiros do herdeiro que não a aceitara, pois nunca tinha sido dele.
Salvo se este não a tivesse aceitado por alguma dúvida em que fosse justo dar um
tempo de reflexão e, entretanto, tivesse morrido. Sucedia o contrário se o herdeiro
fosse haeres sui, pois aí não era necessária a aceitação, ficando então a herança, não
aceite nem repudiada, para os filhos e, falecidos estes, para os seus herdeiros 2375. O
herdeiro podia repudiar a herança, mas não depois de a ter aceitado 2376.
5.2.13 A situação jurídica do herdeiro.
§ 1453. Uma vez aceite, a representação da pessoa do defunto passava para o
herdeiro2377, que respondia pelo património hereditário, tanto nas vantagens como
nos inconvenientes. Assim, podia usar dos direitos do defunto em vez dele, desde
que não fossem direitos pessoais e, por isso, intransmissíveis; competiam-lhe todas
as ações do defunto, desde que a natureza da ação o permitisse; sendo haeres sui
aproveitava a posse do de cuius2378; substituía o defunto nas suas posições
contratuais2379; respondia, em princípio, pelas dívidas, pelos legados e pelas
despesas do funeral, na parte correspondente à quota da herança que, como
herdeiro, lhe coubesse (responsabilidade parciária) 2380 2381; devia cumprir as dívidas
de alimentos do de cujus2382; embora não respondesse pelos delitos do defunto,
respondia pelos danos que decorrem desses delitos 2383 e por aquilo em que eles o
2374 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 6, 10; sobre o tempo para aceitar e
2376 V. Ord. fil.4, 87. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 49..
2378Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 15; por ser como que a
pessoas do de cuius; já o herdeiro estranho não aproveitava a posse do falecido (Álvaro Valasco, Decisiones
[...], cit., cons. 126, ns. 2 e 3) (v. cap. 4.3.1).
2379 Era obrigado a manter o locatário, o que não acontecia com o legatário (que herdava as coisas
e não a posição jurídica do testador), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”,
n. 14.
2380 No caso das dívidas ao fisco, a responsabilidade era agravada, v. Ord. fil.2, 52, 5.
2381 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, ns. 25 a 28.
2382 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 28, ns. 7 e 11.
2383 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 23, n. 4.
428
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tivessem beneficiado. Para além disso, tinha que cumprir as instruções do defunto,
a não ser que tivesse justa causa para não o fazer 2384.
§ 1454. Os herdeiro ficavam obrigados plenamente pelas dívidas da herança.
Podiam, porém, requerer o benefício de inventário 2385, possibilidade introduzida
por Justiniano de o herdeiro limitar a responsabilidade pelas dívidas dela ao
montante de ¾ dos bens herdados (reservando para si a quarta Falcidia)2386. Os
juristas jusracionalistas, em contrapartida, defendiam que o herdeiro nunca
respondia ultra vires hereditatis, pelo que o pedido de inventário seria apenas uma
cautela recomendada pela prudência, sobretudo porque, no foro, ainda dominava a
anterior doutrina da responsabilização plena do herdeiro pelas dívidas da
herança2387. Já os legatários não respondiam pelas dívidas do defunto.
§ 1455. O inventário da herança era obrigatório para os que administrassem
bens alheios e sempre que houvesse filhos menores ou herdeiros incapazes. Era da
competência oficiosa do juiz dos órfãos e, no caso de herdeiros incapazes, dos
juízes ordinários (Ord. fil.. 1,78,7; 1,79,13; 1,88,8).
5.2.14 Os legados.
§ 1456. O direito pátrio que regulava os legados era, basicamente, o direito
comum, que já influenciara muito o direito testamentário das Siete Partidas (v. Part.
VI, tit. 9)2388.
§ 1457. A regra era a plena liberdade de fazer legados, salva a quota dos
herdeiros forçosos2389. Podiam fazer legados os que podiam testar e recebê-los os
que podiam receber heranças2390. Os legados mantinham-se, apesar da preterição
dos herdeiros ou deserdação sem causa, ou mesmo que no testamento não se
nomeasse herdeiro (testamento destituto), mas não no caso de nulidade do
testamento por falta de forma 2391. Já os legados a pessoas que morressem antes do
testador, mas depois do testamento, eram tidos como não escritas2392. Frequentes
eram os legado de causas pias consistindo em deixas a bem da alma do testador (em
louvor de Deus ou dos santos, para a salvação da alma, à Igreja ou lugar pio, aos
pobres, a bem de lugares públicos, como pontes, fontes, caminhos, etc.) 2393. O
2384 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, ns. 23, 40 e 41.
2385 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 35.
2386 Pedia-se no prazo de 30 dias a partir da notícia da instituição do herdeiro. A lei Falcidia datava
de 41 a. C.
2387 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 6, 9-10. Informa que, de qualquer modo, a
praxe dos inventários era pouco rigorosa (cita Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 52.
2388 Fontes doutrinais, Bento Pereira, Promptuarium iuridicum [...], cit., ns. 990 a 1011.
2390 Embora não pudesse instituir os filhos espúrios como herdeiros, podia fazer-lhes legados a
título de alimentos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 3. Se não
pudessem ser tidos como tal, esses legados ficavam para o fisco, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “legatum”, n. 18.Também valia o legado feito a um religioso, pois se entendia que se
destinava a alimentos ou a atos de culto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Legatum”,
n. 4.
2391 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, ns, 5 e 29.
2392 Ficando os bens legados para os herdeiros instituídos, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
429
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
legado torpe ou instituído com palavras insultuosas não valia (cf. ibid. v. “Legatum”,
n. 32).
§ 1458. O legado incluía os crescimentos da coisa (mesmo a casa que se
construiu sobre o solo legado)2394 e as coisas acessórias (casa com o seu aido); água
com os seus cano; servidões; loja com os seus débitos, crédito e mercadorias2395.
§ 1459. O legado condicional só era devido, cumprida a condição2396. A
condição impossível, imoral ou contra a lei tinha-se por não escrita, valendo o
legado como firme2397. O legado com a condição de nunca ser alienado, equivalia a
um fideicomisso familiar, em que os bens ficavam perpetuamente na família do
legatário2398.
§ 1460. Independentemente da revogação do testamento, eram tidos como
revogados os legados feitos a pessoa em relação à qual se tivesse gerado uma
inimizade superveniente ou que tivesse vindo a caluniar o testador (por exemplo,
instaurando contra ele uma ação sobre o seu status2399). O legado extinguia-se
perecendo a coisa legada; mas não se o testador tivesse vendido a coisa, caso em
que o herdeiro ficava obrigado pelo seu valor2400. O legado de uma coisa alheia,
obrigava o herdeiro pelo preço2401.
§ 1461. O legado podia ser repudiado; no caso de legado condicional ou a
tempo, só se estivesse realizada a condição ou cumprido o tempo 2402. Tal como os
bens instituídos a favor de herdeiros que não aceitassem ou não pudessem aceitar a
herança, os legados repudiados ficavam para o herdeiro, em virtude do direito de
acrescer2403.
§ 1462. Na interpretação dos legados deviam usar-se os sentidos da linguagem
corrente2404.
§ 1463. Os legados podiam ser pedidos por ação de reivindicação ao herdeiro
que tivesse aceitado a herança. No foro português, costumava usar-se o meio mais
expedito da assignação de 10 dias2405.
2394 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 41.
2395 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, ns. 47 a 49.
2396 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7, 15.
2397 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 25. Vale a condição de a
viúva permanecer viúva, mas não a condição geral de não casar ou de guardar virgindade, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 28. Porém, Pascoal de Melo é de opinião
diversa: a condição impossível ou o uso de expressões injuriosas para o legatário invalidariam o legado
(tal como acontecia na instituição de herdeiro), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7,
14.
2398 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 64.
2399 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 30.
2400 A menos que o herdeiro provasse a intenção de revogar o legado, cf. António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, ns. 35-36; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7,
17.
2401 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 59.
2402 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 22; contra, Pascoal de
2404 Regras de interpretação, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7, 9 a 12.
2405 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 10; Pascoal de Melo,
430
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
5.2.15 Os fideicomissos.
§ 1464. O direito justinianeu equipara aos legados os fideicomissos 2406. A
matéria dos fideicomissos era considerada como difícil, entre os juristas do direito
comum. Mas, ao mesmo tempo, tinha-se tornado num ponto de direito de grande
interesse, porque, já desde a época romana que os fideicomissos se tinham tornado
num instituto muito usado, quer para contornar proibições do direito testamentário
quando à disposição dos bens, quer para impedir que os bens saíssem de uma
família aquando das heranças.
§ 1465. No direito português, a centralidade dos fideicomissos era bastante
menor, sobretudo porque o instituto dos morgados (v. cap. 5.4), permitia atingir o
segundo fim.
§ 1466. Um fideicomisso (de fide comissum, entregue à confiança) era a instituição
pelo testador de um herdeiro ou legatário (fiduciário), com o pedido formal (“rogo,
volo, fidei tuae committo”) de que transmitisse por morte (restituere) os bens da
herança (ou apenas alguns especificamente designados)2407 a outrem
(fideicomissário)2408. Podia ser instituído por testamento, mas também por codicilo
e mesmo por contrato inter vivos (v.g. doação)2409. O fideicomisso de família
perpétuo – em que se designava como fideicomissário uma pessoa e os seus
descendentes, ou em que se incluía uma condição de que os bens não pudessem ser
alienados - permitia justamente que os bens se mantivessem na família para sempre
e correspondia, por isso, a um morgadio, em que a sucessão se deferia pela ordem
sucessória ab intestato2410. O direito justinianeu impedia que o fideicomisso de
família durasse mais do que quatro gerações; mas o direito comum aboliu esta
limitação e permitiu que este tipo de fideicomissos fosse constituído por ato entre
vivos; a partir daí, ele tornou-se na forma típica de garantir a preservação do
património das famílias abastadas ou com preocupações linhagísticas. Manteve-se
assim até muito tarde (na Alemanha, até 1938), tal como aconteceu com o
morgadio, em Portugal
5.3 A sucessão legítima ab intestato ou legítima.
§ 1467. A sucessão que se deferia de acordo com a lei era chamada legítima 2411.
hereditatibus.
2407 O herdeiro fideicomissário tinha que ficar sempre com, pelo menos, ¼ dos bens (quarta
trebellianica). Esta correspondia à quarta falcidia, que limitava a obrigação do herdeiro de responder pelas
dívidas da herança a uma quarta parte. O senatusconsultum Trebellianum estendeu este regime às obrigações
do herdeiro fiduciário de restituir a herança aos fideicomissários.
2408 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 135, n. 2.
2410 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 206, n. 25. Normalmente, continha uma
431
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
civil. Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 2 ss..
2414 Por justa causa, podia ser tirada, Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...],
cit., liv. 3, cap. 18, ns. 7 e 8. Mas, de resto, tinha que ser respeitada, nem o príncipe a podendo
dispensar, ibid. ns. 9-10. Havia uma certa intermutabilidade ou compensação entre legítima e alimentos,
o que autorizava o pai que instituísse um morgado que privava os filhos segundos das suas legítimas a
substituí-las por alimentos, ibid. liv. 3, cap. 18, n. 8.
2415 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 8, 2, com referência à nova
mundividência quanto à apropriação das coisas.
2416 Por meio de um decreto de entrega da posse dos bens a filhos que não fossem herdeiros
segundo o ius civile: bonorum possessio unde liberi (contra tabulas), Domingos Antunes Portugal, Tractatus de
donationibus [...], cit., liv. 3, cap.18, n.13.
2417 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 43. Sobre
a sucessão romana, confrontada com a hebraica, Francesco Lucrezi, La successione intestate […], cit..
2418 V. Ord. fil.4, 96. O direito português como que assume implicitamente a ordem sucessória do
“Haereditas”, ns. 1 e 2.
432
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
D.38, 17; C.6, 57). Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18,
n. 21.
2423 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 23.
2424 Tratamento exaustivo das legitimações em Manuel Álvares Manuel Álvares Pegas, Commentaria
[...], cit., Commentaria […], cit., tom. 2, ad Ord. fil.1, 3, 1, gl. 4 (ps. 6-93); A legitimação pelo príncipe,
Jorge de Cabedo, Decisiones […], pt. 2, dec. 69, per totam.
2425 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 52.
2426 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 31.
2427 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 35.
2428 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 47.
2429 V. Ord. fil.4, 91, 92, 1 e 3, que Portugal entendia dever ser entendido neste sentido.
2430 Cf. 4, 49, 1 e 3. Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap.
18, n. 39. Podiam também ser incluídos, por testamento, na linha de sucessão de morgados.
2431 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 40 (não
433
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
explicava pelo facto de os netos herdarem por direito de representação do pai, cujo
estado assumiam2432.
§ 1475. O direito português acolhia o regime do direito comum, mas apenas
para os nobres. O filho natural de nobre não herdava 2433. Mas, se fosse plebeu
sucedia com os outros filhos legítimos2434. Daí que, no direito pátrio, todas as
restrições sucessórias dos filhos naturais só valiam para o caso de filhos de
nobres2435. Estes direitos sucessórios aproveitavam também aos filhos tidos de
escrava própria ou alheia2436.
§ 1476. Os filhos espúrios eram, em sentido genérico, os filhos de pai incógnito
(“cui pater est populus, non habet ille patrem”) 2437. Em sentido estrito, eram os que
provinham de pais que, por direito canónico, não se pudessem casar. Não tinham
direitos sucessórios ab instestato, por qualquer dos direitos2438. Para além disso, não
podiam ser instituídos herdeiros, nem receber nada dos bens dos pais, por
testamento ou contrato lucrativo2439. Estas restrições estendiam aos seus
descendentes, mesmo legítimos2440; no entanto, os espúrios podiam ser legitimados
e, com isso, obter direitos sucessórios plenos. Este era um dos casos em que a
legitimação podia ter interesse, do ponto de vista sucessório, para um plebeu.
§ 1477. Os filhos de “de coito danado” eram aqueles que provinham de relação,
não apenas proibida pelo direito, mas punida, como os filhos de relações
incestuosas, os filhos de clérigos de ordens maiores, os filhos de concubina mantida
no domicílio conjugal2441. Nem sequer podiam ser legitimados por graça régia, pois
não se podia apagar o pecado2442. Estavam privados de direitos sucessórios em
relação ao pai2443, mas sucediam à mãe, tendo até direito à legítima 2444. Porém, se a
2432 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 49-50.
2433 V. Ord. fil.4, 91, 1.
2434 Ord. fil.4, 92; cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18,
ns. 33 e 49.
2435 Um investido em ordens era tido como cavaleiro, pelo que o seu filho natural não sucedia,
18, n. 34. Que também podiam suceder na administração de um morgado; cf. Miguel de Reinoso,
Observationes […], cit., obs. 33, n. 1 ss..
2437 “Et ideo quasi nati incerto patre spurii solent appellari”, Domingos Antunes Portugal,
Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 65. Outras designações: “filhos das ervas”, “filhos
das malvas”, “filhos de Deus”, “filho das ervas e neto das águas correntes”, “filhos da silveira, “filhos
do palheiro”; “filhos bravos”; “filhos do boto” (norte de Brasil); "filhos do vento" (África colonial
portuguesa); hervoeira significava prostituta (cf. António Amaro das Neves, "Filhos das ervas: a
ilegitimidade no Norte de Guimarães (séculos XVI-XVIII)". Guimarães, NEPS - Universidade do
Minho, 2001 (https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/209/1/FilErvasAAN.PDF).
2438 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 65-66.
2439 Mas podiam receber do avô, que não era parte na infâmia do seu nascimento, Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 67 e 87).
2440 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 67.
2441 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 84.
2442 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 97.
434
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
discutido se herdavam dos colaterais ou consanguíneos da mãe; a opinião afirmativa era a mais comum,
Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 87.
2445 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 84-85.
2446 O direito romano distinguia a adoção de filhos famílias de outrem da adrogação de sui iuris.
2447 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 99-100.
2448 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 108.
2449 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.1, 3, gl. 5, n. 7.
2450 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 108-111
2452 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 2, ad Ord. fil. 1, 3, gl. 5 (p. 93); Jorge de
Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 70, n. 4 (em desuso); Domingos Antunes Portugal, Tractatus de
donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 106 (as leis não caducariam e ele próprio já teria visto adoções).
2453 Nov. 118, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 3;
representação do filho pelo neto e a representação de um colateral pelos seus filhos. Nesta último caso,
porém, a divisão da herança fazia-se por cabeças, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus
[...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 46-48.
2455 A reserva de uma parte da herança para os descendentes (para a família) não é de origem
romana, mas antes germana. O direito romano conhecia a reserva de uma parte (quarta parte) da
herança para o herdeiro, mas apenas em relação às dívidas da herança (quarta falcidia). Cf. Rafael M.
Carnicero Giménez de Azcárate.. “La preterición de herederos en el Derecho común y en el Derecho
aragonés.”, Cuadernos "Lacruz Berdejo", http://www.derecho-
aragones.net/cuadernos/document.php?id=170.
2456 Havia uma vasta casuística sobre os ónus que podiam ou não recair sobre as legítimas.
435
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2457 A collatio bonorum (aportação de bens) era a junção de uma massa de bens a outra, a fim de se
efetuarem cálculos. Para este efeito, o valor dos bens doados em vida pelo testador a seus filhos (ou os
dotes dados às filhas) eram adicionados ao dos bens da herança, para se calcularem as legítimas e a
quota disponível, e depois imputados à parte que cabia ao filho respetivo (D.37, 6; C.6, 20).
2458 Cf. I.2, 18; C.3, 29. As condições desta redução eram discutias, pois também se tinha que ter
em conta as legítimas expectativas dos donatários. Era considerado decisivo o caráter gratuito da doação
e a intenção de prejudicar os herdeiros ou, pelo menos, a leviandade do doador quanto a isto. Discutia-
se ainda o momento relevante para efetuar o cálculo da legítima, se o tempo da doação ou antes o
tempo da morte do doador.
2459 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 3 e 4.
2460 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., 2, dec. 34, n.9.
2461 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 6-8.
2462 Of , 4, 91, 1; CF. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19,
n. 11.
2463 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap.19, n. 14-40.
436
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2464 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 11 e 41.
2465 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 43.
2466 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 45.
2467 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 49-51.
2468 V. Ord. fil.4, 45. Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap.
19, ns. 55 e 56; Pasccoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 8, 18. As causas de divórcio e de
separação (quoad thorum et cohabitationem) eram o adultério (mesmo sem consumação carnal), as sevícias,
o crime em que houvesse perigo da alma do outro cônjuge, ibid. liv. 3, cap. 19, ns. 53-57.
2469 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 58.
2471 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, caps. 14, 15 e 20.
Apesar de alguma doutrina no sentido afirmativo, os colégios ou universidades não eram herdeiros
legítimos dos seus membros, substituindo o fisco, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus
[...], cit., liv. 3, cap. 20, n. 37. Assim, a Igreja ou os mosteiros não herdavam os bens dos eclesiásticos
(Ord. fil.2, 18, 7), a não ser que estes os tivessem recebido em razão do seu ofício. O direito dos espólios
(i.e. reclamação pela Igreja dos bens dos clérigos) não fora recebido (CL. 9.9.1609), nem tão pouco a
lutuosa, tomada pela Igreja dos bens (ou parte deles) dos párocos falecidos sem testamento (portio
canonica). Os senhores das terras também não eram herdeiros em vez do fisco, pois esta regalia não se
lhes transmitia.
2472 V. Ord. fil.1, 89, 1; cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Haereditas”, n. 4.
2473 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 60.
437
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
5.4 Os morgados.
5.4.1 Noção
§ 1488. Os morgados eram conjuntos de bens cuja transmissão por morte
obedecia a uma ordem sucessória estabelecida, para sempre, pelo instituidor no
documento de instituição, diferente da ordem de sucessão legítima (v. cap. 5.3).
Neste sentido, tratava-se de uma ordem sucessória especial ou privilegiada, que
afastava (dispensava) para sempre a lei geral relativa à ordem sucessória. Este foi o
pretexto para, no séc. XVIII, se exigir a autorização do rei – a quem competia
exclusivamente dispensar a lei – para a constituição de morgados. Porém, antes
dessa época, admitia-se a livre instituição de morgados, como uma emanação da
liberdade de disposição dos seus bens. A não ser que isso violasse os direitos de
sucessores obrigatórios (heredes sui), como os filhos (v. 5.3.1.1); era o caso de a
instituição do morgado ofender as legítimas dos filhos. Nestes casos, requeria-se,
sim, a autorização do rei.
§ 1489. O morgado era definido como o direito de suceder nos bens que
tivessem sido deixados com a condição de ficarem unidos perpetuamente na
família, deferindo-se ao herdeiro primogénito mais próximo 2474. A ordem
sucessória estabelecida pelo instituidor podia não ser a primogenitural; mas então
não se devia chamar propriamente de morgado2475.
§ 1490. Assim, as características estruturais dos bens de morgado eram a sua
indivisibilidade, a inalienabilidade e a vinculação à família.
§ 1491. A finalidade dos morgados era a conservação da memória da família 2476
por meio da permanência de certos bens que o instituidor considerara nucleares na
posse perpétua de parentes seus. Daí que se falasse em vínculos, para destacar esta
vinculação dos bens a uma família. Ter isto em conta era importante na
interpretação das regras de sucessão estabelecidas, pois elas deviam favorecer e não
prejudicar esta finalidade2477.
§ 1492. A origem dos modelos institucionais que integram o núcleo do instituto
podem ter provindo da ideia bíblica de primogenitura e da ideia germânica de
propriedade familiar indivisível (in gesamten Hand).
§ 1493. As figuras próximas dos morgados eram as capelas e os fideicomissos
(v. cap. 5.2.15)2478.
2474 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 1: “ius succedendi in
bonis, ea lege relictis, ut in família perpetuo conserventur, & deferantur proximiori primogenito, per
ordinem succesivum”; esta definição era de Luís de Molina, o autor ibérico mais citado nesta matéria,
por causa do seu tratado De primogeniorum hispanorum origine ac natura, 1573. Em Portugal, fez autoridade
o Tractatus de exclusione, inclusione, successione et erectione maioratus, de Manuel Alvares Pegas, 1685. Antes a
questão foram tratada por quase todos os decisionistas dos sécs. XVI e XVII.
2475 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 1.
2476 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 133, ns. 1-3.
2477 Ibid.; daí que se pudesse presumir não ser da vontade do instituidor chamar à sucessão alguém
em que a família se extinguisse, como uma mulher ou um clérigo (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.,
pt. 1, dec. 133, n. 3).
2478 A principal diferença era a de que os fideicomissos não incluíam a cláusula da indivisibilidade e
438
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
capelas) pois era obrigatório o envio à Torre do Tombo de um exemplar da sua instituição: (i) instituição
de Morgados e capelas. 1422/ 1852. 30 liv. Portugal, Torre do Tombo, Morgados e Capelas (col.); (ii)
sentenças relativas a Morgados e Capelas. 1414 / 1860. 24 liv. Portugal, Torre do Tombo, Morgados e
Capelas (col.); (iii) registos vinculares. 149 proc. Portugal, Torre do Tombo, Morgados e Capelas (col.)
(v. http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4223346). Aí há também pareceres jurídicos sobre este
disputadíssimo tema: Parecer sobre “as benfeitorias feitas em bens de morgado”, por Francisco
Carneiro. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv. 8, f. 403; Parecer sobre “a obrigação que
tem o sucessor no morgado de pagar as dívidas de seu pai”. Portugal, Torre do Tombo, Armário
Jesuítico, liv. 8, f. 407; Parecer sobre “se uma pessoa que largou o morgado a seu filho em vida com
obrigação de pagar as dívidas, e se fez religioso pode estar seguro na consciência”. Portugal, Torre do
Tombo, Armário Jesuítico, liv. 8, f. 409; Parecer “sobre se um perde ‘ipso facto’ o Morgado do
Algarve faltando as condições dele”, 1636-07-10. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv.
14, f. 409; Parecer “sobre o Morgado de João Esmeraldo acerca da exclusão de bastardos e outras
dúvidas”, 1638-02-28. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv. 14, f. 452; Parecer “sobre o
suceder em outro morgado fêmea filha do último possuidor”, relativo a D. Leonor, filha de Afonso de
Torres, 1638-03-10. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv. 14, f. 454; “Testamento do
doutor Gabriel Pereira de Castro, que fala na capela de Sacavém e vincula o morgado que tomou na sua
terça a fazenda da Beira Ninães, Frazão e outros”, 1632-10-14. Portugal, Torre do Tombo, Cartório
dos Jesuítas, mç. 23, n.º 125 (v. Documentação sobre morgados: http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-
virtuais-2/extincao-dos-morgados-e-capelas/)..
2482 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 132, n. 16 (por costume, podia introduzir-se
alguma qualidade ou requisito na sucessão de morgados numa família; Gabriel Pereira de Castro,
Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 8 (o modo de suceder num morgado fixava-se por um costume de 40
anos).
2483 A lei de 3.8.1770 deixa de permitir aos instituidor afastar-se das regras de sucessão
439
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
irregulares.
§ 1497. A legislação pombalina, nomeadamente a lei de 3 de Agosto de 1770,
alterou profundamente a disciplina dos morgados, no sentido de dificultar a sua
constituição, de a sujeitar a licença régia e de reduzir a liberdade do instituidor na
aposição de cláusulas sucessórias ou outras, limitando a ordem de sucessão à
estabelecida na lei2484.
5.4.2 Instituidor e instituição.
§ 1498. A instituição de morgados (e, também, capelas) era, por regra, livre.
Podiam-nos instituir leigos ou clérigos2485, nobres ou plebeus, varões ou mulheres,
ao abrigo da sua liberdade de testar. Algumas restrições provinham, não da
qualidade das pessoas, mas da situação dos bens – que deviam ser de livre
disposição - ou de direitos que os onerassem, como os direitos sucessórios dos
herdeiros necessários2486.
§ 1499. Os morgados (e capelas) instituíam-se tipicamente por testamento, mas
também podiam criar-se por contrato – por exemplo, doações2487, contratos dotais
- de que resultassem condições perpétuas relativas à indivisibilidade e
inalienabilidade dos bens. Como se exigia a intenção de vincular, o uso, mesmo
longo, de transmitir os bens com as condições típicas dos morgados não era um
título constitutivo. Todavia, fazia presumir uma instituição antiga. Realmente, a
escritura não era um requisito essencial 2488, pelo que os morgados se podiam provar
por confissão2489, testemunhas, fama por espaço de longo tempo, uso continuado e
prescrito de transmissão obedecendo a uma ordem sucessória típica dos morgados
(masculinidade, proximidade, família)2490.
2484 Legislação ulterior relevante: [Carta de Lei por que Vossa Magestade […] ocorrrendo aos
abusos que se introduziram nas instituições dos morgados […] ha por bem dar as providencias
competentes [...] determinando a qualidade de pessoas e rendimento competente para a fundação de
morgados; excluindo [...] as clausulas contradictorias, exquisitas e prejudiciais […] e reduzindo-os todos
à natureza de morgados regulares [...]”, [Lisboa], Regia Officina Typografica, [1770]; Alvará com força
de ley sobre a posse dos morgados: de 9 de Novembro de 1754, Lisboa, Chancelaria Mor da Corte e do
Reino, 1754; “Carta de lei pela qual ficam desde já abolidos todos os morgados e capelas atualmente
existentes no continente do reino, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas e declarados alodiais os
bens de que se compõem”, em Diário de Lisboa: folha oficial do Governo Português. N.º 111 (1863 maio 20),
pg. 1519; Decreto pelo qual serão abolidos todos os morgados e capelas, cujo rendimento líquido não
chegar a duzentos mil reis. Portugal, Torre do Tombo, Biblioteca, Collecção de Decretos e regulamentos
publicados durante o governo da Regência do Reino estabelecida na Ilha Terceira, Lisboa, Imprensa Nacional, 1836
(1832 abril 4), ps. 19-22.
2485 Mesmo com os bens que lhe tenham sido doados intuitu ecclesiae (a favor da Igreja), pois por
costume geral estes bens eram considerados como suscetíveis de ser doados ou deixados em testamento
(constituíam o chamado espólio, v. Ord. fil.2, 18, 7), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Maioratus”, n. 2. Em Portugal, porém, um clérigo não podia instituir morgado nem capela a favor de
outro clérigo com bens por ele comprados, sem licença do rei ( Ord. fil.2, 18, 5). Isto relacionava-se com
a política régia de contenção da propriedade eclesiástica.
2486 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 2.
2487 Por exemplo, uma doação para constituição de dote ou uma doação régia bens da coroa
2489 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 22, ns. 20-21.
2490 Era morgado se se tivesse deferido a sucessão pela forma de morgado por mais de 40 anos,
440
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2491 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 82, ns. 3 a 7.
2492 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 82, n. 6.
2493 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 8; Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., dec. 120, ns. 9 e 10 a 17. Por que palavras se considerava estar a instituir-se um
morgado, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 143.
2495 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 5.
2496 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 6-7.
2497 Cf. Henrique da António da Gama, Decisiones [...], cit., Barros, História […], cit., vol. 8, 267,
279.
2498 Já no direito seiscentista português, os direitos dos filhos eram acautelados: a livre instituição
441
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
modo como se entendesse o equilíbrio justo entre a "igualdade natural dos filhos",
a "política de reputação das famílias" e a "política da república". A primeira, hostil
aos morgados; a segunda buscando-os como meio de adquirir ou manter o lustre
social; a terceira, procurando combinar as vantagens fiscais e económicas da
circulação dos bens com a existência de uma nobreza poderosa em volta do trono
§ 1504. Já no séc. XVI, Luís de Molina exigia que a autorização régia para
instituir morgados em prejuízo dos restantes filhos apenas fosse concedida no caso
de o instituidor ser nobre ou de qualidade e riqueza2499. Pois as famílias de humilde
ou obscura origem nada teriam a perpetuar, antes procurando nos morgados um
meio de, confundindo a natureza, se insinuarem entre os nobres 2500. Esta "política
das famílias" devia ser corrente, pois Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),
justificando as medidas restritivas tomadas no tempo de Pombal, fala de "huma
geral mania de instituir vinculos em predios de ridiculos rendimentos" (ibid. 14),
apesar das limitações que alguma doutrina (não dominante no foro) tendia a
introduzir.
§ 1505. É apenas com as leis de 3.8. e 9.9.1770 que a "política da república"
impôs às "políticas das famílias" um equilibrado respeito pelos "direitos naturais de
todos os filhos à herança", concretizando as condições (quanto à qualidade das
pessoas e quanto à importância dos bens vinculados) juridicamente necessárias,
para que os morgados anteriores subsistissem ou outros novos se pudessem
instituir 2501.
5.4.3 Bens de morgado.
§ 1506. Os bens (ou direitos) incluídos num morgado deveriam estar em
condições de ser sujeitos às condições inerentes à sua perpétua vinculação a uma
família. Daí que se não pudessem constituir morgados sobre direitos obrigacionais
(iura ad rem) ou direitos reais (iura in re) temporários (como os do colono de uma
enfiteuse de duração limitada2502), ou seja sobre bens de que o instituidor não
só se admitia pelas forças da quota disponível ("terça"); no caso de a instituição se fazer em prejuízo da
quota legitimária dos filhos, carecia-se de um ato de graça do rei (por intermédio do seu tribunal de
graça, o Desembargo do Paço), por se tratar de uma derrogação dos direitos dos filhos (Manuel Álvares
Pegas, Tractatus de exclusione […], cap. 3, ns. 1 e 2).
2499 Luís de Molina, De primogeniorum hispanorum, liv. 1, cap. 14, n. 8.
2500 Cf. Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, 1, cap. 9, n. 12 e
literatura aí citada.
2501 Cf. comentário detalhado em Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 3, 9 e Manuel de Almeida
e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, 1, cap. 9, ns. 13 ss.; 3 (maxime, sobre as categorias
admitidas de nobreza, 6 ss.; sobre as qualidades dos comerciantes, agricultores [não os da pequena
agricultura ao norte do Tejo, mas os da grande agricultura do Alentejo] e letrados que podiam instituir
morgados, v. 13 e 16). A legislação pombalina alargava ainda a necessidade de licença régia a toda e
qualquer instituição de morgado (ibid. n. 13) e reduzia a uma única (a da Ord. fil.4, 100) a fórmula de
sucessão nos morgados (ibid. n. 10). Esta última disposição implicava, v.g. a revogação da legislação
anterior que impedia a união de morgados, a exclusão ou prejuízo das mulheres da sucessão nos
vínculos, a exclusão de cristãos-novos. Note-se, em todo o caso, como a interpretação que Lobão faz
desta última regra (ao admitir substituições fideicomissárias complementares à vocação sucessória
estabelecida na lei, nos termos da Ord. fil.4, 87) lhe tira muito do seu alcance, v. Manuel de Almeida e
Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, 1, cap. 9, 15 ss..
2502 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 214, ns. 3, 10 e 11. Mesmo em relação a bens
enfitêuticos perpétuos, a vinculação exigia a autorização do senhorio direto, pois este ficaria privado de
receber o laudémio, já que os bens vinculados eram inalienáveis, Melchior Febo, Decisiones [...], cit.,
442
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
dec. 5 (que refere uma decisão da Casa da Suplicação no sentido da impossibilidade de vincular o
domínio útil, mesmo que perpétuo, dec. n. 4); mas havia opiniões contrárias: Gabriel Pereira de Castro,
Decisiones [...], cit., dec. 26, n. 2; Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses […], cap. 9, n. 30. Mas na
prática esta vinculação fazia-se, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 26, n. 7.
2503 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 3.
2504 Cf. Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 62, ns. 8 a 10. No caso de se deixar íntegra a
legítima, não se carecia de autorização do rei (v. Ord. fil.4, 82), Melchior Febo, Decisiones [...], cit.,
dec.212.
2505 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 5, n. 12-13 (); António da Gama,
Decisiones [...], cit., dec. 218, n. 4. n. 25; discutindo os requisitos do consentimento, Melchior Febo,
Decisiones [...], cit., dec. 112.
2506 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 5, n. 1.
2507 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 208, ns. 1 ss.. Gabriel Pereira de Castro
apenas dá preferência à linha masculina quando as mulheres tivessem sido excluídas: Gabriel Pereira de
Castro, Decisiones [...], cit.; dec. 50, ns. 1 a 3 (quando as mulheres não são excluídas, o filho de filha
mais velha exclui o filho de filho mais novo; mas quando as mulheres são excluídas, o filho de varão
mais novo prefere o de filha mais velha).
2508 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 59, ns. 1 e 3. Chamando-se
ascendentes, incluía-se a mãe, ibid. n. 5
443
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
ventura por analogia com o que a Lei Mental dispunha para os bens da coroa 2509.
§ 1510. As Ordenações filipinas reforçam um pouco a masculinidade da sucessão
dos morgados (aproximando-a da sucessão nos bens da coroa), pois a preterição
das mulheres por varões do mesmo grau passa a fazer parte do regime supletivo
então estabelecido ( Ord. fil.4,100,1), sendo, por isso, o regime aplicável sempre que
a paridade entre varão e fémea, concorrendo no mesmo grau, não fosse
expressamente estabelecida pelo instituidor2510. Em todo o caso, a sucessão
feminina continuou a poder ser estabelecida e até se presumia nos morgados
instituídos por mulheres2511. De qualquer modo, estando verificada a sucessão
numa mulher, esta não era prejudicada pela superveniência de varões 2512.
§ 1511. Nos morgados que incluíssem bens que tivessem anexa jurisdição,
como era o caso dos bens da coroa, ou que contivessem alguma obrigação que não
pudesse recair em mulher, os filhos preferiam as filhas 2513, como estava
expressamente estipulado na Lei Mental ( Ord. fil.2,35,4).
§ 1512. Os clérigos não estavam, por via de regra, excluídos da sucessão nos
morgados. Alguns autores negavam que pudessem suceder em morgados com
dignidade e jurisdição anexas, pois não podiam exercer cargos seculares nem
exercer jurisdições temporais, quer pelo direito canónico, quer pelo direito pátrio (
Ord. fil.2,35,10)2514. Mas essa não era a opinião mais generalizada, que afirmava que,
sucedendo, podiam delegar a jurisdição num delegado ou exercê-la pessoalmente,
desde que não aplicassem por si penas que infundissem sangue (morte ou
mutilação)2515.
§ 1513. Mais duvidosa era a sucessão de monge, como consanguíneo mais
próximo.
§ 1514. Uns respondiam afirmativamente; mas a melhor opinião parecia ser a
contrária, pois a sucessão de uma pessoa monástica prejudicava a finalidade básica
dos morgados, que era a continuação da família e da sua memória 2516. Havia quem
distinguisse o caso de monge que podia suceder para a comunidade daquele que era
incapaz de suceder, mesmo para esta, estando morto para o mundo. Neste último
2509 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 337, n. 1: foi definido em muitos casos no
senado que o filho mais novo deve preferir-se à filha mais velha, embora antigamente prevalecesse uma
opinião contrária.
2510 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., dec. 208, n. 6; Melchior Febo, Decisiones […], cit.,
dec. 192, n. 3.
2511 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 33, n. 15. Um exemplo: Catarina
Fernandes instituiu um morgado em 1471 e chamou em primeiro lugar a sua irmã e depois a filha que
dela nascesse. António da António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307.
2512 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 208, n. 8.
2513 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 337, n. 14.
2514 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 16.
2515 Por isso, podia-se ser bispo e conde ao mesmo tempo, delegando-se a jurisdição que não se
pudesse exercer pessoalmente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 16
(citando Gomez e Molina); a interpretação era duvidosa, tratando-se de bens da coroa, em face de Ord.
fil.2, 35, 10; mas a acumulação do bispado de Coimbra com o condado de Arganil mostra que a
dificuldade não era insanável.
2516 António da Gama regista as duas opiniões, preferindo a segunda: António da Gama, Decisiones
444
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
caso, o monge não poderia suceder no morgado. No primeiro caso, sim, pois
poderia o mosteiro assumir a sucessão e as obrigações eventualmente estabelecidas
pelo instituidor. Mas não deixava de ser problemático que esta sucessão garantisse a
finalidade do instituidor de manter a memória da família2517. De qualquer modo, os
instituidores de morgado ou de capela podiam apor a condição de que um mosteiro
não sucedesse2518.
§ 1515. No caso de morgados jurisdicionais, a estas dificuldades ainda se
acrescentavam as das sucessões de eclesiásticos em morgados com dignidades ou
jurisdições anexas. E, de facto, não existia o costume de monges sucederem neste
tipo de morgados2519. Os cavaleiros de Cristo, Santiago, São Bento de Aviz,
Calatrava e Alcântara, apesar de serem verdadeiros clérigos, com os três votos,
tinham por costume adquirido o direito de sucederem em morgados, patrimoniais
ou jurisdicionais2520.
§ 1516. Por vezes, os instituidores estipulavam que não sucedessem pessoas que
não pudessem contrair casamento e fazer desaparecer a família (loucos, surdos-
mudos, cegos, ou cavaleiros de ordens militares obrigados ao celibato). Nesse caso,
respeitava-se a vontade do instituidor2521.
§ 1517. Outras dúvidas diziam respeito aos direitos sucessórios dos filhos
naturais. A regra era a de que isto dependia da fórmula da instituição, que podia
admitir ou excluir a linha bastarda2522. Na dúvida, entendia-se que os filhos naturais
tinham os mesmos direitos do que os legítimos, pelo menos nos plebeus, pois era
isso que acontecia na sucessão dos bens em geral (Ord. fil.4,92)2523. Mas havia
autores que, recolhendo uma tradição textual que remontava às Siete Partidas2524, ou
tendo em vista, possivelmente, o caso de nobres, cujos filhos naturais tinham
menos direitos hereditários do que os legítimos (v. 3.2.4), ou, ainda, refletindo o
regime de sucessão dos bens da coroa2525, defendiam que, segundo a regra
(regulariter), os filhos naturais não sucediam nos morgados 2526. Depois da lei de 1575
que esteve na origem do tit. Ord. fil.4,100, a tese da exclusão dos bastardos podia
argumentar com o texto da Ordenação 4,100, pr. (“filho, ou neto, ou descendentes
legítimos”) e tornou-se dominante.
§ 1518. Diferentes da incapacidade genérica de serem chamados a suceder eram
as incapacidades concretas de um determinado sucessor. Que fosse furioso natural
2517 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 17.
2518 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 137, n. 30..
2519 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 17.
2520 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 18.
2521 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 18.
2523 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 33 (sim, n. 11); obs. 53, n. 21 (mas não
espúrios, porque a memória do instituidor não se conservava nos espúrios, ibid. obs. 53, n. 29); foi
julgado no Senado que não se podiam instituir naturais ou bastardos em prejuízo dos legítimos, ibid.
obs. 58, n. 30.
2524 Siete Partidas, 2, 15, 2: Lei de Toro, 40; Nueva Recopil. 5, 7, 11. A lei de 3.8.1770 adota esta
orientação casticista.
2525 V. Ord. fil.2, 35, 1: “filho legítimo barão maior”.
445
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2527 A loucura por acidente superveniente não incapacitava para a sucessão, pois se entendia que o
nascido são podia administrar o morgado por um curador, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Maioratus”, n. 13.
2528 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 13.
2529 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 14. Se fosse são de juízo
e delegasse o exercício da jurisdição, podia suceder. O cego podia suceder em todos os morgados,
embora devesse exercer a jurisdição por interposta pessoa, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Maioratus”, n. 15.
2530 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 11 (e 12).
2532 Por isso, podia suceder mesmo quem repudiasse a herança, António da Gama, Decisiones [...],
2535 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 174, n. 16. Pascoal de Melo, opina que eram
as leis da sucessão da coroa que se aplicavam nos morgados, na falta de disposições do instituidor (
Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 9, 3).
2536 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 121, n. 2.
446
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2540 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 184, n. 1 (diffamatio, ns. 4 a 9; dissipação de
[...], cit., dec. 16, ns. 5 a 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], 3, 9, 16;. Todos invocando
Ord. fil.4, 100, pr..
2542 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 9, 17.
2544 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 5. Esta regra tinha limitações (v.g. Gabriel
Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 48, n. 5: a mãe preferia o irmão) e, como todas, podia ser
447
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
[...], cit., dec. 39, n. 1. Em síntese, no primeiro, só eram chamados os parentes por via masculina e no
segundo também eram chamados os parentes por via feminina.
2547 V. Ord. fil.4, 100, 2: “o parente mais chegado ao último possuidor, sendo do sangue do
instituidor”; Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 59, n. 7, Manuel Álvares Pegas,
Tractatus de inclusione et exclusione maioratus […], cit., t. 2, cap. 9, ns. 89, 130, 438-440, 707. Como
sempre, o instituidor podia afastar este limite, embora isto chocasse com a natureza dos morgados,
fazendo supor que se tratava antes de um fideicomisso.
2548 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., 193, ns. 1 a 4. O sucessor devia ser da prole do
instituidor, não bastando ser o parente mais próximo do possuidor, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
cons. 123, n. 7.
2549 Cf. síntese: a mulher mais velha preferia ao irmão mais novo, se o contrário não estivesse
disposto; mas também se julgou de modo inverso, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 129, n.
1.
2550 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 14, n. 4.
2551 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 122, ns. 1 e 2.
448
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2552 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 174, n. 5; Melchior Febo, Decisiones [...], cit.,
2554 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 5 (sempre se têm por chamados
os mais velhos).
2555 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, n. 24. Se os filhos fossem gémeos e
não se soubesse qual tinha nascido primeiro, o pai decidia; na falta de decisão, dividia-se o morgado, se
se pudesse dividir; se não, decidia o juiz, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Maioratus”, n. 20.
2556 Cf. cortes de 1641 (cap. 27 da nobreza e 26 do clero); cf. capítulos gerais, pp. 55, 76 e 81. Cf.
2558 Porém, Ord. fil.2, 35, 2 abria uma exceção para os filhos pré-falecidos na guerra, caso em que
449
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2561 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 109, n. 2 (de que palavras se inferia, ns. 3 a 7);
existia plena liberdade de escolha, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1. dec. 143, n. 1.
2562 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 109, n. 8.
2563 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 25, n. 1.
2564 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 1. Exemplo, Jorge de Cabedo,
2566 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 25, n. 7.
2567 Portanto, tio paterno (patruus) do neto por via primogenitural. A questão podia formular-se em
termos mais gerais: a concorrência entre o neto, filho de um filho pré-falecido, e um filho nascido
depois deste, mas que tivesse sobrevivido ao pai.
2568 No mesmo sentido tinham decidido as Siete Partidas, (2, 15, 2), ao tratar da sucessão régia, e a
450
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2571 Este argumento era tido como irrelevante pelos defensores dos direitos do filho segundo, pois
o direito estrangeiro (aliás variável, pois o de Nápoles favoreceria o filho segundo) não se aplicaria em
Portugal, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 22.
2572 No seu Tractatus de regni successione, cit..
2573 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 2 e n. 14 a 16.
2574 Invocam-se textos de direito romano relativos à divisão de coisa comum, às partilhas e à
2576 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 12.
2578 Transcrito em Ord. man. 2, 17, 1 (depois, em Ord. fil.2, 35, 1).
2579 A decisão refere mais sentenças relativas à sucessão de bens da coroa doados aos Menezes,
conde de Cantanhede, e aos Faria, alcaides-mores de Palmela, em que se decidiu a favor do filho
segundo, justamente com base na letra das Ordenações.
451
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
defendiam os direitos do neto, faziam uma distinção subtil entre a sucessão nos bens – que nunca se
dera no filho pré-falecido e que, portanto, este não podia transmitir ao seu filho – e o direito a suceder
neles. Esse direito tinha-o ele, estando incorporado no seu património, tendo-o transmitido por morte
a seu filho, n. 7 (“non ex vi transmissionis, quia cum hereditas viventes [scl. patris] non sit delata, non
potest transmiti, sed ex vi repraesentatione, n. 10: também, n. 12).
2583 Como acontecera no testamento de D. Dinis, de D. João I, e no contrato de casamento de D.
Afonso (V) com D. Joana, a Excelente Senhora, cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n.
23. A regra de sucessão do reino foi discutida, nessa altura por Manuel da Costa, no seu citado tratado
acerca da sucessão do reino [In celeberrimas iuris Cesarei leges, & paragraphos Commentarii, & de maoiratu
bonorum patrimonialium, et de regni successione [...]], e por Álvaro Valasco (Decisiones […], cit., cons. 167, ns.
16 a 19 [discute se a sucessão do reino se defere pela ordem de sucessão dos morgados ou não,
concluindo ser mais provável a resposta negativa), e será regulada pelo alv. 9.9.1641 e pela L. 12.4.1698.
Em 1632, são publicadas as alegadas atas das cortes de Lamego, que estabeleceriam o seguinte sobre a
ordem de sucessão: “[…]Viva o Senhor Rei Dom Afonso, e possua o Reino. Se tiver filhos varões
vivam e tenham o Reino, de modo que não seja necessário torná-los a fazer Reis de novo. Deste modo
sucederão. Por morte do pai herdará o filho, depois o neto, então o filho do neto, e finalmente os
filhos dos filhos, em todos os séculos para sempre. Se o primeiro filho do Rei morrer em vida de seu
pai, o segundo será Rei, e este se falecer o terceiro, e se o terceiro, o quarto, e os mais que se
seguirem por este modo. Se o Rei falecer sem filhos, em caso que tenha irmão, possuirá o Reino em
sua vida, mas quando morrer não será Rei seu filho, sem primeiro o fazerem os Bispos, os
procuradores, e os nobres da Corte do Rei. Se o fizerem Rei será Rei e se o não elegerem, não reinará.
Disse depois Lourenço Viegas Procurador do Rei, aos outros procuradores: ‘Diz o Rei, se quereis que
entrem as filhas na herança do Reino, e se quereis fazer leis no que lhes toca?’. E depois que altercaram
por muitas horas, vieram a concluir, e disseram: “Também as filhas do senhor Rei são de sua
descendência, e assim queremos que sucedam no Reino, e que sobre isto se façam leis”, e os Bispos e
nobres fizeram as leis nesta forma. Se o Rei de Portugal não tiver filho varão, e tiver filha, ela será a
Rainha tanto que o Rei morrer; porem será deste modo, não casará se não com Português nobre, e este
tal se não chamará Rei, se não depois que tiver da Rainha filho varão. E quando for nas Cortes, ou
autos públicos, o marido da Rainha irá da parte esquerda, e não porá em sua cabeça a Coroa do Reino.
Dure esta lei para sempre, que a primeira filha do Rei nunca case senão com português, para que o
Reino não venha a estranhos, e se casar com Príncipe estrangeiro, não herde pelo mesmo caso; porque
nunca queremos que nosso Reino saia fora das mãos dos Portugueses, que com seu valor nos fizeram
Rei sem ajuda alheia, mostrando nisto sua fortaleza, e derramando seu sangue. Estas são as leis da
herança de nosso Reino, e leu-as Alberto Chanceler do senhor Rei a todos, e disseram, boas são,
justas são, queremos que valham por nos, e por nossos descendentes, que depois vierem”.
452
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2584 Como acontecera em alguns dos casos relatados por António da Gama (como os do barão do
2588 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 23, ns. 1 a 4.
2589 Cita as Leis de Toro, n. 40; Nueva rec. 5, 7, 5); cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit.,
obs. 24, ns. 1 e 2; obs. 25, ns. 3 a 6; também, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 192, ns. 20 a 23
(direito inglês, francês e espanhol).
2590 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, n. 3-10.
453
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2591 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, ns. 13 e 14.
2592 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, ns. 17 a 19.
2593 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 9; Álvaro Valasco,
Decisiones […], cit., cons. 121, n. 6; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 107, n. 2; Gabriel
Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 116, ns. 1 a 3.
2594 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons, 116, n. 5; é senhor de pleno direito, Álvaro
2596 Os sucessores de morgado constituído por contrato não se tornavam donos dos bens senão
por tradição, aliás tinham apenas uma ação ex contratu, ineficaz em relação a terceiros que possuíssem
bens do morgado, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 194, n. 11.
2597 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 194, ns. 7 ss.; 59; sim, em Castela, n. 21; mas
454
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
(v. 7.1.3).
§ 1557. Era investido neste direito por força do pacto de instituição aquando da
morte do anterior possuidor, sem necessidade de qualquer outro título ou
mandado2600, podendo entrar nos bens do morgado por iniciativa própria 2601. Antes
mesmo de tomar posse do morgado, podia pedir providências cautelares no caso de
delapidação dos bens e ser garantido com uma caução, fiança ou uma proibição de
alienação dirigida ao atual possuidor2602.
§ 1558. Mais do que a conceituação da posição do possuidor interessava a
determinação dos seus poderes. Era certo que ele não podia dividir os bens, assim
como não podia aliená-los2603, salvo para a redenção do sucessor do morgado se
caísse cativo e não pudesse ser resgatado apenas com os frutos do morgado 2604.
Também era admitida a venda para pagar dívidas ou despesas feitas para a
conservação dos bens, embora isto com limitações. De facto, cada possuidor era
obrigado a conservar e melhorar os bens. Isto devia ser feito por força dos
rendimentos do morgado, pelo que cada possuidor não estava, em princípio,
obrigado aos filhos do antecessor pelas despesas úteis por este feitas, em gastos de
conservação ou em lides judiciais2605. Alguns autores distinguem consoante as
despesas eram pequenas ou grandes.
§ 1559. A permuta, como alienação, também estava, em princípio, proibida 2606
§ 1560. Também estava impedido de outros atos que implicassem disposição
perpétua. Tal era o caso da constituição de um usufruto 2607, de hipoteca2608, da
imposição de um censo perpétuo2609, do arrendamento por longo tempo2610. O caso
2599 Realmente, nesta época, a distinção era meramente académica, dado que estas classificações
herdeiro legítimo, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, n. 108, 1 ss. (a propósito do esbulho:
Ord. fil. 4, 58).
2601 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 26 a 28.
2602 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 28.
2603 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, ns. 21-23; Bento Pereira,
cit., pt. 1, dec. 111, ns. 2 e 5; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 27. A
questão era indecisa, dependendo de complicada casuística: Jorge de Cabedo, porém, defende o
contrário (o possuidor ficaria obrigado pelas dívidas do antecessor em utilidade do morgado, podendo
aceitar a sucessão a benefício de inventário Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2. dec. 110, ns. 4 e
6).
2606 Admitia-se a permuta com licença do rei, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec.
176, n. 1, de acordo com a regra geral sobre os poderes do rei de dispensar a lei. Em todo o caso,
como estavam em causa os direitos dos sucessores seguintes, requeria-se a autorização destes, ibid. n. 2,
também de acordo com a regra de que nem o rei podia ofender direitos adquiridos. As coisa recebidas
em troca ficam com a natureza de bens vinculados, ibid. n. 3.
2607 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 73, ns. 1 a 7; mas podia ceder
temporariamente os frutos, Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 73, n. 10.
2608 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 5.
2610 O sucessor não estava obrigado a manter o colono de arrendamento por tempo longo feito
pelo seu predecessor, pois tal arrendamento equivalia a alienação, António Cardoso do Amaral, Liber
455
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Gama, Decisiones [...], cit., dec. 192, n. 3; este autor refere uma sentença favorável ao aforamento em
três vidas, mas discorda da decisão (António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 16), requerendo, pelo
menos, autorização do rei, disposição do instituidor ou sentença, ibid. dec. 192, n. 3.
2612 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., dec. 70, ns. 28, 39 e 48.
2613 Até 3 vidas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 25.; Miguel de
2615 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 133, n. 16; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
Cons. 184, n. 13; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 24.
2616 Prescrição aquisitiva da liberdade, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 132 n. 20; ibid.
cons. 167, n. 17; Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec.52, n. 1.
2617 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons 130, n. 18 ss..
2618 Cf. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure [...], cit., disp. 576; Bento Pereira, Promptuarium
[...], cit., ns. 136-141; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 10, 1 ss..
2619 Assim, como nas capelas não estava em causa a memória da família, na falta de sucessores
parentes do instituidor, o rei devia nomear administrador, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec.
193, dec. 288.(cita sentença antiga de desembargadores, neste sentido, ibid. dec. 280, n. 2).
456
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2620 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 1 (“Capella dicitur cum certa
instituição que dos bens os defuntos fizeram, for conteudo que os administradores, ou possuidores,
dos ditos bens cumpram certas missas, ou encargos, e o mais que renderem hajam para si, ou que os
instituidores lhes deixaram os ditos bens com certos encargos de missas, ou de outras obras pias. E se
nas instituições for conteudo, que os administradores hajam certa coisa ou certa quantia das rendas,
que os bens renderem, assim como o terço, quarto, ou quinto, e o que sobejar se gaste em Missas, ou
outras obras pias. Em este caso, declaramos não ser morgado, senão capela” ( Ord. fil.1, 62, 53).
2622 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 68, ns. 18 ss; Melchior Febo, Decisiones [...],
cit., dec 119, ns. 9 ss.; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 96, n. 1.
2623 Em todo o caso, não era válida a instituição de capela, em que fossem chamados à
administração igreja, mosteiro, religiosos ou clérigos, Manuel Mendes de Castro, Practica [...], cit., t. 2,
liv. 1, cap. 11, n. 94.
2624 As capelas fundadas por D. Afonso IV na Igreja de Lisboa (“capelas de D. Afonso IV”), com
obs. 7; como se procedia no caso de os rendimentos serem insuficientes para os ónus, Ord. fil.1, 62, 55.
457
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
ibid2626.
5.6 Partilhas e colações.
§ 1568. Uma vez aceite a herança e sendo vários os herdeiros, havia que
proceder à partilha dos bens, concretizando as partes alíquotas a que cada herdeiro
tinha direito. Como alguns dos herdeiros (herdeiros necessários, herdeiros do seu,
heredes sui) podiam ter direitos “naturais” sobre uma quota da herança (as legítimas),
havia também que calcular essa parte e saber se algumas das liberalidades do de
cujus, feitas em vida ou no testamento, violavam este seu dever de respeitar as
legítimas dos herdeiros necessários (i.e. se eram contrárias a esses deveres, ou
inoficiosas), a fim de serem reduzidas aos seus limites. Era disto que se tratava nas
partilhas e colações2627
§ 1569. A partilha fazia-se ou extrajudicialmente, por acordo entre os herdeiros,
reduzido a escrito se isso fosse obrigatório2628, ou por meio de partidores
(avaliadores, partidores, escolhidos pelas partes, pela câmara do lugar pelo juiz, Ord.
fil.3,17,2), ou judicialmente (Ord. fil.4,96,18). O próprio testador podia proceder, em
vida, à partilha, para prevenir futuros dissídios2629. A divisão feita amigavelmente
entre os filhos em vida do de cujus podia ser revogada até à morte deste 2630. Mas a
que fosse feita por contrato entre pais e filhos emancipados não podia ser revogada,
de acordo com a regra de que as partilhas feitas não se desfaziam2631.
§ 1570. A partilha judicial efetuava-se, no direito romano, por meio da actio
familiae erciscundae, uma espécie de reivindicatio posta à disposição dos herdeiros
legítimos ou testamentários, com título, para reclamar de um herdeiro a divisão da
herança2632. Distinguia-se da ação de petição da herança, logicamente anterior, que
era dada a um herdeiro com título para ser reconhecido como tal por alguém que
lhe negava essa qualidade, nomeadamente, um possuidor sem título dos bens
hereditários2633. Uma e outra fundavam-se no facto de que o herdeiro tinha um
direito real sobre a herança, uma vez esta aceite por ele. Em pouco se distinguiam
da reivindicação2634. Uma lei de D. Afonso IV, depois inserida nas Ordenações,
importara para o direito pátrio o núcleo do regime da tradição romanística2635.
17.7.1778 suspendeu, até à promulgação do Novo Código, os §§ 18, 19, 20 e 21 da referida lei, que
dispunham sobre a extinção das instituições vinculares insignificantes, e da abolição ou redução dos
encargos pios, permitindo novas instituições apenas se o Rei as autorizasse, § 8.
2627 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”; Bento Pereira, Promptuarium
[...], cit., vs. “Collationes”, “Divisio”, “Partitio”; Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum, inter
haeredes, […], cit.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12.
2628 O que acontecia se o valor da herança excedesse certa quantia (Ord. fil.3, 59).
2629 Cf. Álvaro Valasco, Praxis partitionibus […], cit., cap. 20, 3.
2630 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 127, ns. 1-2.
2631 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 127, ns.4-5 e 7.
2632 Cf. D.10.2 Familiae erciscundae; C.3.36 Familiae erciscundae. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones
2634 Não se pedia coisa certa e determinada, mas uma universalidade; prescreviam por 30 anos,
como ações pessoais, e não por um ano, como a reivindicatio, uma ação real.
2635 Ord. af. 4, 107, Ord. man.4, 77, Ord. fil.4, 96; v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
3, 12, 2.
458
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1571. Qualquer herdeiro podia propor a ação de partilhas, devendo ser todos
citados. A partilha era pedida ao que estivesse na posse dos bens hereditários
(cabeça de casal, frequentemente, o cônjuge sobrevivo ou um dos filhos
herdeiros2636).
§ 1572. O possuidor da herança devia fazer o inventário da herança, dentro de
30 dias a contar do falecimento2637. Nele se descreviam todos os bens imóveis,
móveis e dívidas, e seus valores avaliados por louvados 2638. As coisas alheias na
posse do de cujus (comodadas, depositadas, recebidas em penhor) deviam ser
descritas como tal, indicando o título a que estavam na herança 2639. Coisas alheias
eram também os bens vinculados, pois não entravam na herança nem neles se
sucedia iure hereditario, mas por uma vocação especial (v. 5.4)2640. Daí que não
devessem entrar no inventário, a não ser para as declarar estranhas à sucessão, nem
deveriam ser trazidas à colação (v. a seguir).
§ 1573. Os legados não se partiam, pois o seu destino tinha sido estipulado pelo
testador. A partilha também podia resultar de uma divisão feita informalmente
pelos filhos e mantida por longo tempo2641. As despesas pendentes imputavam-se
ao acervo comum e dele se deduziam: funeral, pagamento de soldadas, alimentos
em dívida, arras não pagas. Também os frutos pendentes eram imputados ao
comum2642.
§ 1574. Os quinhões eram feitos pelo juiz e atribuídos por ordem sua 2643. Havia
coisas que não admitiam divisão, ou pela própria natureza ou por disposição do
direito. À primeira categoria pertenciam as materialmente indivisíveis e todas as que
se destruiriam com a divisão (como o escravo, o cavalo, o lagar, o moinho). À
segunda categoria pertenciam as ações e os direitos incorpóreos (como as
servidões2644, dívidas e créditos). Neste caso, as coisas deviam ser atribuídas a um
dos herdeiros, que compensava os outros pelo valor da quota que lhes pertencesse
(das tornas); também podiam permanecer em comunhão, vender-se ou arrendar-se,
distribuindo-se pelos herdeiros uma quota do rendimento 2645. Também a enfiteuse
hereditária ou familiar não se dividia, devendo ser encabeçada num dos herdeiros
(v. 4.3.3).
§ 1575. A distribuição natural da herança entre os filhos era a igualitária 2646,
embora se admitisse que o de cujus quisesse introduzir diferenças entre os herdeiros,
2636 Cf. v. Ord. fil.4, 95, pr.; Ord. fil.4, 96, 9; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12,
5.
2637 Havendo menores de 25 anos, o inventário devia ser feito pelo juiz dos órfãos (Ord. fil.1, 88,
4).
2638 V. Ord. fil.1, 88, 5.
2639 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 11.
2640 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 96, ns. 4-5; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 9.
2641 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 320, n. 5.
2643 V. Ord. fil.4, 96, 2, Ord. fil.4, 96, 6. Na partilha extrajudicial dominava uma regra que era tida
como sendo a mais equitativa: dividia o mais forte e escolhia o mais fraco.
2644 O seu exercício pode ser dividido.
2645 V. Ord. fil.4, 96, 5; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 8.
2646 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 21.
459
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
favorecendo uns mais do que os outros, ainda em vida, por partilha por ele feita;
ou, depois da morte, por especiais legados feitos no testamento, ressalvada sempre
a parte que cada um tinha forçosamente que ter na herança (legítima). Isso fazia
com que se devessem levar em conta, no momento da partilha, as liberalidades
feitas ainda em vida pelo pai aos filhos, para determinar duas coisas. A primeira era
saber se a doação em vida era apenas um adiantamento da parte que o filho teria na
herança ou era antes uma liberalidade especial que cumulava ao quinhão
hereditário. Ou seja, se a doação era por conta da legítima ou antes por conta da
quota disponível. A outra questão era a de saber se, tratando-se de uma liberalidade
extra feita pelo pai a um dos filhos, ela cabia na quota disponível (na terça) de que o
pai podia livremente dispor ou se, pelo contrário, ofendia a legítima dos outros
filhos. Para isto serviam as colações.
§ 1576. A colação2647 era a apresentação pelos filhos à herança das coisas ou
rendas recebidas do pai por doações em vida 2648, para serem calculadas as legítimas
de todos os filhos e verificado se estas doações as ofendiam 2649.
§ 1577. Só os herdeiros que tinham legítimas (os herdeiros forçosos) é que
tinham que trazer as doações à colação2650. Por isso, esta obrigação não impendia
sobre herdeiros que não os filhos 2651 (ascendentes, outros parentes, estranhos,
filhos bastardos não legitimados de nobres 2652). Como também não impendia sobre
os filhos que recusassem a herança (e que, portanto, não eram herdeiros) 2653.
§ 1578. Depois, estes filhos só tinham que trazer à colação os bens que
tivessem recebido dos pais como liberalidade; ou seja, os bens que os pais lhes
tivessem doado por força da quota disponível, como liberalidade adicional. Esta
liberalidade não se presumia, antes se partindo do princípio de que as doações em
vida eram antecipações daquilo que os filhos iriam herdar. E, por isso, as doações
tinham que ser trazidas à colação, para serem calculadas e, eventualmente,
reduzidas2654; mesmo que o de cujus declarasse que queria beneficiar o filho e tornar
essa doação definitiva, pois ele nunca poderia prejudicar a legítima dos outros 2655.
§ 1579. Em contrapartida, não tinham que ser conferidas (trazidas à colação) as
dádivas que correspondessem ao cumprimento de deveres parentais 2656, pois não se
2647 A palavra colação tinha dois significados em direito: esta, de trazer bens à herança (collatio
bonorum), e a de provimento (provisio) num ofício eclesiástico, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 2 [a 19]).
2648 Também o ofício comprado para o filho tinha que ser trazido à colação, António Cardoso do
2650 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 22.
2651 Ou netos que representassem um filho pré-morto ou que tivessem recebido doações de seu
avô, que pudessem ser reputadas como adiantamentos da herança do pai, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., n. 29..
2652 V. Ord. fil.4, 97, pr..
2653 Cf, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, n. 43.
2654 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, n. 24.
2655 Noutros direitos, as doações aos filhos podiam ser definitivas, por não haver garantia de
legítima, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 28.
2656 Como as despesas, com comida, criação, vestes e educação, tudo proporcionado ao estado
da família. Nomeadamente, cabiam aqui, as vestes quotidianas, mas não as de festa ou as joias, as
460
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tratava de liberalidades. Nem tão pouco eram conferidos os bens que fizessem
parte de pecúlios que os filhos tivessem ganhado com o próprio trabalho (como os
pecúlios adventício, castrense e quase castrense)2657 ou que o filho tivesse recebido
de outrem que não o pai (v.g. as doações régias)2658. Já o pecúlio profectício,
pertencente ao pai, mas sob administração do filho, devia ser conferido2659.
§ 1580. Como já se disse, o morgado não vinha à colação, porque não fazia
parte da herança. Por outro lado, não podia ser instituído em prejuízo das legítimas
dos filhos ou, a menos que isso tivesse sido validado por licença régia (v. 5.4)2660.
§ 1581. Se as liberalidades trazidas à colação, avaliadas no momento da morte,
excedessem a quota disponível e ofendessem a legítima dos outros filhos, eram
consideradas excessivas ou inoficiosas (v. Ord. fil. 4,97,4 n. 13) e reduzidas ou
anuladas2661.
§ 1582. À partilha seguia-se a entrada em posse, que não era adiada pelos
eventuais recursos2662. Uma vez feitas, as partilhas não podiam rescindir-se, a não
ser em casos muito contados (erro, lesão enorme). Mas podiam ser reformadas ex
aequo et bono2663.
despesas com estudos (se o filho foi preguiçoso e não obteve aproveitamento, as despesas deviam vir à
colação), o ensino de ofício e as despesas com viagens, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Collatio”, cit., n. 25, 32-33, 38; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 12. Os dotes de
matrimónios espirituais ou carnais eram da obrigação dos pais e, logo, não vinham à colação (Ord. fil.4,
97, pr.), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 31. O mesmo com as
quantias pagas para livrar o filho da cadeia ou para pagar os delitos por ele cometidos, António Cardoso
do Amaral, Liber [...], cit., n. 36.
2657 Grosso modo, bens recebidos de terceiros intuitu personae, bens adquiridos em ofício ou
profissão, bens adquiridos na milícia, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”,
cit., n. 40-41. Se o pai fosse rico e o filho indolente, presumia-se que os bens que administrava eram do
pai; o contrário, se o pai fosse pobre e o filho trabalhador. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., n. 26 e 27. Cf. 3.2.4.
2658 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 30.
2659 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 25-26.
2660 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 96, ns. 4-5.
2661 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 13.
2662 V. Ord. fil.4, 96, 22; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 14.
2663 V. Ord. fil.4, 96, 18. Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 168, n. 2 (“Hodie per legem
extravagantem non rescinduntur”); Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 14-15.
461
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
462
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
6 As obrigações.
6.1 Introdução.
§ 1584. As “obrigações” tiveram uma autonomização mais problemática como
uma das divisões principais do direito (ao lado das “pessoas”, das “coisas” e das
“ações”). Nas Instituições de Justiniano, a matéria das obrigações ocupa os título I.3,
13 a I.4, 5, dividindo-se assim por dois livros, mas sendo anunciada como uma das
divisões do direito civil (“Nunc transeamus ad obligationes […]”)2664. No entanto,
esta matéria nem corresponde ao título ou epígrafe de nenhum dos quatro livros,
nem aparece na conhecida classificação das partes do direito (pessoas, coisas e
ações) 2665. Por isso, no direito comum tardio suscita sempre esse problema da
relação das obrigações com as “partes” do direito.
§ 1585. Um dos autores que discute a questão longamente é Arnold
Vinnius2666. Na anterior tradição romanística, as obrigações eram incluídas em
alguma das três partes referidas no Digesto. A tradição mais antiga, em que se
incluiria um dos autores das Instituições de Justiniano, Teófilo, e o grande Acúrsio,
incluía as obrigações na parte das ações, solução insinuada por ventura pela ordem
dos títulos das Instituições, em que o tratamento das obrigações antecede
imediatamente o das ações, sendo como que um seu proémio. No plano
argumentativo, Vinnius justificava esta precedência das obrigações em relação às
ações pela ideia de que as obrigações eram a causa das ações e como que “as suas
mães”2667. Uma tradição mais moderna, que Vinnius identificava com Hermann
Vulteius (1565-1634; Commentarius in Institutiones iuris civilis, 1598), considerava que
as obrigações pertenciam ao direito das pessoas, como sua inerência ou extensão 2668.
Vinnius tão pouco ousou autonomizar a matéria das obrigações, antes a incluindo
na parte das coisas, como um dos tipos de vínculos que as ligavam às pessoas, neste
caso um direito a elas (ad rem), enquanto no caso do vínculo tratado propriamente
no livro das coisas se trataria de um direito sobre elas (in re).
§ 1586. Esta menor visibilidade das obrigações no plano da taxonomia jurídica
2664 Segue: “[…] Obligatio est iuris vinculum, quo necessitate adstringimur alicuius solvendae rei,
“Gaius libro primo institutionum, Omne ius quo utimur vel ad personas pertinet vel ad res vel ad actiones”;
isto não aparece nas Institutiones de Justiniano, embora se lhe aluda implicitamente (em I.1, 3, pr. I.2, 1,
pr. e I.4, 1, pr.). No entanto, estas estão divididas em quatro livros, e não em três, e esta divisão não é
consistente com a sistematização em pessoas, coisas e ações. O livro II é heterogéneo e a matéria
alegadamente das ações (nas quais estariam incluídas as obrigações) está dividida, com critério pouco
aparente, pelos livros 3 e 4 (em I.4, 1, pr.. sugere-se que nos títulos do livro 3 se trata das obrigações ex
contrato e nos do livro 4 das que provêm de delito; mas nem isto se observa).
2666 No seu Commentarius às Instituições (Commentarius in quatuor libros Institutiononum […], cit., ad 3,
direitos sobre as coisas (in rebus), na medida em que estes se estabelecem na sequência de direitos às
coisas (ad res), que correspondem a obrigações (ibid. ad I.3, 14, n.2).
2668 Vinnius observa que isto pode ser dito de institutos como o uso ou o usufruto, que a doutrina
incluía pacificamente na parte das coisas, além de que os direitos e deveres das obrigações não variariam
com o estado das pessoas e, por isso, não caberiam em direitos definidos como “quod persona assistit
quatenus persona est, id est jus, quisque in civitate sensetur propter statu et qualitatem personae suae”
(ibid. ad 3, 14, n.2)..
463
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2669 “1. Omnium autem obligationum summa divisio in duo genera deducitur: namque aut civiles
sunt aut praetoriae. civiles sunt, quae aut legibus constitutae aut certe iure civili comprobatae sunt.
praetoriae sunt, quas praetor ex sua iurisdictione constituit, quae etiam honorariae vocantur. 2. Sequens
divisio in quattuor species deducitur: aut enim ex contractu sunt aut quasi ex contractu aut ex maleficio
aut quasi ex maleficio. prius est, ut de his quae ex contractu sunt dispiciamus. harum aeque quattuor
species sunt : aut enim re contrahuntur aut verbis aut litteris aut consensu. de quibus singulis
dispiciamus”, I.3, 13, 1.
2670 Ou seja, fontes das obrigações, capacidade obrigacional, objeto das obrigações,
cumprimento e incumprimento, transmissão e extinção das obrigações.
2671 A oposição entre estes dois conceitos de obrigação foi magistralmente desenhada por Michel
Villey (“Préface historique à l'étude des notions de contrat", em Archives de philosophie du droit, 13(1968),
1-11), que destaca de que modo a ideia dominante até ao jusracionalismo foi a de que a fonte das
obrigações residia em tipos objetivos de relacionamento entre as pessoas, pouco modeláveis pela
vontade das partes. O individualismo jusracionalistas (sobretudo dos filósofos e dos moralistas, não dos
464
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
direito justinianeu2673, tinha sido reforçada pela posição dos canonistas de que o
cumprimento de uma promessa era também exigível no plano teológico, como
forma de evitar o pecado da mentira. Mas ainda permaneciam muitos vestígios de
outros fundamentos – digamos, objetivos - da obrigação, bem como da ideia de que
estes mesmos dados objetivos – de natureza, de justiça – podiam limitar a
capacidade vinculativa das promessas. Ou seja, permanecia muito de um conceito
pluralista das fontes da obrigação, não se tendo ainda verificado a consolidação do
consensualismo que caraterizará o direito jusracionalista 2674.
§ 1590. Na doutrina portuguesa seiscentista, o conceito de “obligatio” não
despertava grande entusiasmo2675.
§ 1591. Quem lhe dedica um pouco mais de atenção é António Cardoso do
Amaral que, no respetivo verbete2676, aborda muito brevemente alguns pontos
dispersos sobre a capacidade para se obrigar e sobre os requisitos do objeto da
obrigação, antecedidos por algumas notas sobre as questões conceituais mais gerais.
§ 1592. A obrigação era aí definida como um vínculo de direito que obrigava
necessariamente (necessitate) a dar ou a fazer algo a alguém2677.
§ 1593. A “necessidade” deste vínculo podia provir, ou apenas da natureza, ou
apenas do direito positivo, ou de uma coisa e outra.
§ 1594. As obrigações que provinham apenas da natureza (obrigações meramente
naturais) vinculavam porque, tendo o obrigado consentido na obrigação, a equidade
natural (ou razão natural e da gentes2678) obrigava cada um a cumprir as suas
promessas2679. Mesmo aqui, o que era “natural” não era a liberdade da vontade, mas
o cumprimento das promessas: expressa uma vontade, a equidade ou razão naturais
obrigavam a que se cumprisse. Mas continuava a haver coisas que não se podiam
juristas), não apenas instalou uma nova conceção voluntarista da obrigação, como releu e reinterpretou
a esta luz os textos anteriores.
2672 Cf. Emílio Bussi, La formazione dei dogmi di diritto privato nel diritto commune (diritti reali e diritti di
obligazione), cit., (vol. 2); Reinhard Zimmermann, The law of obligations […], cit.; Raffaele Volante, “I
giuristi e il contrato”, em Trecanni.it (2012) (http://www.treccani.it/enciclopedia/i-giuristi-e-il-
contratto_%28Il_Contributo_italiano_alla_storia_del_Pensiero:_Diritto%29/) (glosadores); Andrea
Massironi, Nell'officina dell'interprete. La qualificazione del contratto nel diritto comune […], cit., (comentadores
e pós-comentadores).
2673 Cf. Lihong Zhang, Contratti innominati nel diritto romano […], cit..
2674 Que alguns entendem ter sido decisivamente preparado pela Segunda Escolástica. Cf. neste
sentido, Wim Decock, Theologians and Contract Law: […], cit., numa narrativa que tende a valorizar os
germes voluntaristas e “liberais” da doutrina jurídica moderna das obrigações e dos contratos.
2675 Cf. a magreza das referências a “obligatio” em Bento Pereira, Promptuarium […], cit;
Agostinho Barbosa, Repertorium […], cit., s. v. “Obligatio”; António Cardoso do Amaral, Liber […],
cit., s. v. “Obligatio”; ou no índice de Manuel Álvares Pegas (v. Manuel Solano do Vale, Index […], cit.,
s. v. “obligatio”).
2676 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit..
2677 “Vinculum iuris quo necessitate astringimur ad alinquem dandum vel faciendum”, António
465
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2680 I.e. havia objetos impossíveis que invalidavam a obrigação (ad impossibilita nemo cogitur; D.50, 17,
135: [Ulpianus] “Ea, quae dari impossibilia sunt vel quae in rerum natura non sunt, pro non adiectis
habentur”), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 10.
2681 De pacto ou promessa torpe não surge nenhuma obrigação, António Cardoso do Amaral,
persistat, quo era tempore contractus”, pelo que a obrigação não valia para uma circunstância nova e
não pensada, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 12.
2683 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 14.
2684 A mesma sistematização aparece em S. Tomás, Summa theol. 2a.2ae. qu. 106, arts. 4 a 6.
2685 “Secundam est obligatio naturalis, aque causatur solum instinctu naturae, propter servitia, seu
benefitia, & ita naturaliter obligamur benefacere benefacienti nobis”, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., n. 2.
2686 “Quod mihi prodest, & tibi non nocet, teneris facere”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria
2688 Este senatusconsulto (27 a.C, ) proibia os menores de pedirem dinheiro emprestado (mútuo).
466
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
mesmo devedor2689.
§ 1597. Até que ponto é que o direito civil acolhia estas consequências da
equidade ou razão natural, atribuindo aos credores uma ação ? Ou seja, que relação
havia entre as obrigações naturais e as obrigações civis ?
§ 1598. Do primeiro grupo de obrigações naturais, umas eram corroboradas
pelo direito civil, dando lugar a uma ação, como no caso de uma convenção
prevista pelo direito positivo (legitima conventio)2690. Outras não tinham este amparo
do direito civil, não dispondo portanto o credor de uma ação para fazer cumprir a
obrigação2691.
§ 1599. As obrigações naturais do segundo grupo (as que provinham do
benefício e da gratidão) nem seriam rigorosamente jurídicas, pois o seu fundamento
era esse “instinto da natureza”, mas nem sequer a equidade ou razão natural ou das
gentes. Tratamos delas a propósito do estatuto jurídico dos atos gratuitos ou
liberais, aí se vendo que elas geram, não rigorosamente um débito (e uma obligatio),
mas um quasi-debitum (e uma quasi obligatio ou obligatio antidoralis). A estas obrigações
chamava-se antidorais ou remuneratórias, sendo geradas, não por uma convenção,
mas pelo próprio facto do benefício, em virtude de um impulso natural que
obrigava à gratidão e à remuneração. Como obrigação natural, este vínculo obrigava
todas as pessoas capazes de razão, independentemente do seu estado (mesmo os
escravos ), que tivessem recebido um favor ou benefício: uma doação, a liberdade,
etc.. Ao passo que as obrigações civis não obrigavam senão pessoas capazes de
vontade, estas recaíam sobre capazes e incapazes, todos eles sensíveis aos instintos
naturais. Por vezes, o vínculo antidoral seria tão forte que daria origem a uma ação
para exigir a prestação remuneratória (“dava ação”). O exemplo mais notável, no
direito comum, era o da retribuição, por meio de mercês, dos serviços prestados
pelos vassalos. Outras vezes, a obrigação antidoral apenas tinha como efeito
impedir o concedente de retirar a concessão (como se ela fosse gratuita ou
indevida), tornando a doação (”remuneratória”) irrevogável pelo doador. Ideia que
também se aplicava no contexto das doações feitas em remuneração de serviços,
nomeadamente pelos reis.
§ 1600. Excecionalmente, havia, em contrapartida, obrigações que apenas
obrigavam por direito civil, não gozando de qualquer obrigatoriedade no plano da
razão ou dos instintos naturais. Era o caso de alguém ter contraído uma obrigação
formalmente válida perante o direito, mas que se justificava perante a equidade ou
2689 António Cardoso do Amaral, Liber […]¸ v. “Obligatio”, n. 6-8; Arnold Vinnius,
Commentarium […], cit., ad I. 3, 14, n. 8, pg. 696 in cap.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...],
cit., 4, 1, 5. Outras obrigações do mesmo tipo eram as que impendiam sobre o testamenteiro de um
testamento nulo por falta de forma quanto ao cumprimento das disposições testamentárias (Arnold
Vinnius, Commentarium […], cit., ad 3, 14, n.8); ou a de pagar as dívidas de jogo (v. António Cardoso
do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Ludus”, n. 4)
2690 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 2.
2691 Os exemplos destes últimos casos relacionavam-se os dois com obrigações criadas por pactos
que, na tradição do direito romano, não davam origem a ações de direito civil (actiones legis), mas apenas
– quando muito – a exceções (D. 2, 14 De pactis, 1). Era o caso de se apor a um contrato um pacto pelo
qual o credor não pudesse reclamar o crédito em juízo (pacto de non petendo), ficando o credor obrigado
apenas naturalmente a não chamar o devedor a juízo (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n.
2); ou o caso de alguém se ter obrigado ao pagamento de certa quantia por um pacto nu (António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 2).
467
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
os afetos naturais2692.
§ 1601. Todavia, o mais comum eram as tais obrigações naturais corroboradas
pelo direito civil – tanto naturais como civis -, surgidas quando alguém se tivesse
obrigado tendo capacidade para isso e fazendo-o com as solenidades exigidas pelo
direito. Ficando então vinculado juridicamente e sujeito aos meios de
constrangimento do direito (nomeadamente, a uma ação). Esta obrigação perante o
direito civil fazia-se por contrato (ex contractu), por delito (ex delicto), por uma
situação que o direito tratava como contrato (ex quasi contractu) ou como delito (ex
quasi delicto)2693.
§ 1602. Compreendendo uma gama tão vasta de vínculos, difícil era que a
obrigação suscitasse uma teoria geral, como a que veio a aparecer mais tarde. Já nas
Institutiones, de Justiniano, o parentesco dos temas tratados nos preceitos dos títulos
dedicados às obrigações é prejudicado pelas divisões destas em espécies (re, verbis,
litteris, consensu) com um regime jurídico muito diferente2694. No citado verbete
“Obligatio”, António Cardoso do Amaral apenas consegue reunir, neste âmbito
genérico, duas regras sobre capacidade obrigacional 2695, e menos de meia dúzia
sobre termo e mora das obrigações2696. O resto dos temas gerais seriam tratados
noutros verbetes (contractus2697, debitum) ou sob os nomes dos vários contratos
(emptio venditio, locatio conductio, societas, mandatus, commodatum, depositum, etc.).
6.3 A ascensão do consensualismo.
§ 1603. Entre estes temas tratados por António Cardoso do Amaral no verbete
“obligatio” não estão o das condições da eficácia jurídica da vontade. Isso também
torna ainda problemático que o consensualismo fosse o eixo principal da
dogmáticas das obrigações. De facto, se o assentimento comum (consenso) era um
elemento importante neste domínio, igualmente importantes eram outros
elementos que podiam fundamentar o vínculo obrigacional ou limitar a eficácia do
consenso e que também eles apareciam muito em destaque no universo textual tido
como referência para a dogmática jurídica moderna 2698. Entre estes elementos
contam-se: (i) a observância de fórmulas e rituais, como na stipulatio; (ii) a justiça
substancial das promessas, como o estabelecimento de um preço justo; (iii) a
consideração de cláusulas substanciais ou naturais de cada tipo contratual
(substantialia e naturalia contractus); (iv) a naturalidade de certos instintos como a
gratidão; (v) uma certa lógica material das situações (como a entrega de um objeto a
outrem, na expetativa de o receber de volta, a gestão de negócios de outrem); (vi) a
2692 O exemplo é o de alguém que, na expectativa de um futuro recebimento que acabou por não
ter lugar, fez um documento em que declarou ter recebido, comprometendo-se a pagar, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 4.
2693 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., ns. 5 e 6.
2695 Dos escravos, quanto às obrigações naturais, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n.
10; dos escravos e filhos família quanto às obrigações civis, ibid. n. 21.
2696 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., ns. 15 a 18.
2697 O próprio Digesto continha um texto que incitava à equiparação entre obrigação e contrato:
D.5, 1, 20: [Paulus], “Omnem obligationem pro contractu habendam existimandum est, ut ubicumque
aliquis obligetur, et contrahi videatur […]”.
2698 Nomeadamente, o texto das Institutiones, 3, 13 a 3, 27.
468
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
produção de danos, não por dolo, mas com culpa grosseira. Nada disto tinha a ver
com a vontade; muitas vezes, contrariaria mesmo a vontade. Mas tinha como
consequência gerar obrigações) (v. cap. 6.6).
§ 1604. Fosse como fosse, a vontade de se obrigar havia de ser válida
(“livremente consentida”, cf. Ord. fil.3,34,1;Ord. fil.4,71) ou seja, isenta de vícios da
vontade, como o erro, o dolo ou a coação 2699. Os celebrantes haviam de ter
suficientes mens et memoria2700. A simples perturbação do espírito, como a causa pela
ira momentânea, prejudicava a sua validade2701.
§ 1605. Assim, na maior parte dos tipos obrigacionais – as que derivavam de
pactos e contratos - o consentimento - e, portanto, a vontade - eram elementos
realmente constituintes e isto foi provocando uma progressiva relacionação da
obrigação com a vontade (consensualismo) que teve consequência dogmáticas2702,
desde logo a de que apenas se podiam obrigar os que podiam consentir e dispor das
suas coisas. O que excluía os menores sem consentimento dos tutores 2703 e os
restantes incapazes2704. Em contrapartida, o princípio da vontade admitia como
válidas as obrigações entre pais e filhos, ao contrário do que acontecia no direito
romano (por aí se entender que constituíam a mesma pessoa).
6.4 Os vícios da vontade.
§ 1606. A averiguação das condições psicológicas da formação da vontade não
tinha, no direito comum, a centralidade que hoje tem quando se trata de determinar
a validade dos atos jurídicos de uma pessoa. Isto era uma consequência do facto de
os efeitos jurídicos dos atos das pessoas tenderem a ser considerados como algo
que estava determinado objetivamente, por efeito direto da natureza das coisas ou
da realização de alguma formalidade ou ritual. Este formalismo, que era típico do
direito romano mais antigo, foi sendo progressivamente substituído pela ideia de
que os efeitos dos atos das pessoas decorriam de terem sido queridos por elas. Por
isso, tornou-se progressivamente mais importante averiguar como se tinha formado
essa vontade, se por um processo psicológico natural ou, pelo contrário, por um
processo viciado por ocorrências que impediam que se falasse de uma vontade,
como acontecia quando alguém decidia sob o efeito da ignorância (ignorantia, error),
de um engano (dolus), de uma ameaça (metus). Estas circunstâncias patológicas
constituíam vícios da vontade. Uma circunstância contígua a estas era a de alguém
ter querido certos efeitos mas, para defraudar alguma proibição ou impossibilidade
jurídica, ter declarado querer outros (simulatio, fraus); aqui, não tinha ocorrido
2699 Os vícios da vontade são tratados em António Cardoso do Amaral (Liber […], cit.)
pontualmente nos verbetes gerais de “Obligatio” e “Contractus” ou, sobretudo, sob os respetivos
nomes (error, dolus-fraus, metus). Em Pascoal de Melo, a propósito dos contratos comerciais, no livro I
das Institutiones (1, 8, 5 ss.).
2700 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 15.
2701 “Contractus calore iracundiae celebratus non valet”, a não ser que confirmado, excetuava-se
um contrato a favor de causas piedosas, que valia, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Contractus”, cit., 25
2702 Sobre a ascensão do consensualismo ou voluntarismo, i.e. da ideia de que a fonte das
obrigações é a vontade, v. Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., 405 ss..
2703 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 13, 5; 2, 4, 14.
469
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
nenhum vício de vontade, mas existia uma discrepância entre a vontade explícita,
declarada, e a vontade real, ocultada.
§ 1607. Não admira, em face desta eficácia apenas lateral da vontade na
produção de efeitos de direito, que não encontremos no direito comum uma teoria
unitária dos hoje chamados vícios de vontade, nem sequer um “lugar” único para
tratar do tema. Cada negócio jurídico era afetado diferentemente por várias
circunstâncias2705. Também não admira que o “vício” não consistisse apenas numa
malformação puramente psicológica, digamos, da vontade, mas incluísse alguns
elementos “morais”. Não se tratava apenas de que certa vontade se tivesse formado
em virtude de uma circunstância anormal (um erro, uma ameaça externa), mas
também de que ela se devesse a um comportamento intelectual inadequado, como
o descuido, a leviandade, a omissão de um dever de indagação ou de reflexão.
Finalmente, a diferente relevância da vontade na produção de efeitos jurídicos
explica a diversidade dos efeitos jurídicos dos diversos vícios de vontade em cada
negócio. Nuns – os mais formais, considerados como descendentes dos negócios
“de direito estrito” (stricti iuris) -, certos vícios de vontade, como a ignorância, eram
menos relevantes; noutros – menos formais, descendentes dos negócios contraídos
sob a égide da “boa fé” (bonae fidei) – esses mesmos vícios relevavam. Nuns caos,
davam lugar à dissolução do negócio (restitutio in integram)2706. Noutros apenas
punham à disposição da parte cuja vontade fosse imperfeita uma exceptio, para
inutilizar a actio da outra parte. No ius commune mais tardio, caída que fora a
distinção entre negócios de direito estrito e de boa fé e não sendo mais usado o
processo romano com os seus ritos, fórmulas e expedientes, esta diversidade de
regimes passou a fazer muito menos sentido do que a construção de uma teoria
geral dos vícios de vontade2707. Mas esta tardou muito em surgir, continuando a
matéria a ser tratada dispersamente e com recurso às antigas distinções romanistas.
6.4.1 A ignorância ou erro.
§ 1608. O defeito menos grave da vontade era a ignorância (ignorantia),
relevante, do ponto de vista do direito, em dois contextos. Um era o da vontade
negocial, em que a invocação da ignorância (desculpável) podia favorecer aquele
que tivesse concordado com algo que não queria, pelo que o erro tinha efeitos
positivos (in bona parte). Um outro era o da responsabilidade por danos, em que a
ignorância (também desculpável) podia excluir a imputação da culpa ao agente
causador.
§ 1609. A atual dogmática jurídica prefere falar de erro a falar de ignorância,
2705 Cf. Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], I. 413. Na origem deste regime variável de
ineficácia dos negócios jurídicos estava o direito romano, em que, por exemplo, os chamados vícios de
vontade são tratados de forma dispersa e com consequências diversas, que vão desde a nulidade ipso iure
(originando a denegação da ação), à dissolução por uma restitutio in integrum ou à inutilização da actio do
credor por uma exceptio. A sede textual nas fontes também é dispersa. No Digesto, a ignorância é tratada
em D.22, 6, De ignorantia iuris et facti; o dolo, em D.4.3 De dolo malo; a cocção em D.4, 2, Quod metus
causa gestum erit.
2706 Sobre a distinção entre contratos de direito estrito e contratos de boa fé, v. adiante cap. 6.9.2.
2707 Em que o erro, o dolo, a coação e, porventura, a simulação fossem tratadas conjuntamente.
470
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
exigindo, por isso, um conhecimento positivo mas falso para invalidar a vontade
negocial. O direito comum falava antes de ignorância, bastando-se com um puro
desconhecimento2708.
§ 1610. O juízo sobre o estado de ignorância incorporava não apenas uma
constatação de que alguém não sabia algo – o simples desconhecimento (nescientia) -
, mas ainda um juízo de valor sobre esse estado de desconhecimento. A ignorância
era o desconhecimento de algo que se devia conhecer. A literatura jurídica 2709
distinguia, na verdade, entre: (i) o mero desconhecimento (nescientia, nescire), que
tanto podia prejudicar o que não sabia, se este devia saber (in mala parte)2710, como
protegê-lo (in bona parte), se ele não devia saber2711; (ii) a ignorância, que era um
desconhecimento indevido2712, que afetava negativamente (desfavoravelmente, in
mala parte) a situação do que não sabia, impedindo-o de alegar essa ignorância e
valer-se dela como escusa; (iii); o erro, um estado de conhecimento, mas
equivocado2713; (iv) a hesitação (titubatio), uma incapacidade de se decidir entre dois
conhecimentos diferentes ou contraditórios2714.
§ 1611. De um ponto de vista consensualista, a ignorância devia levar à
nulidade do negócio, visto não se poder dizer que consentia quem ignorava ou
laborava em erro. Esta era uma das leituras possíveis de um texto muito conhecido
do Digesto (D.2,14,1,32715), em que se dizia que não havia um pacto sem uma
convenção (i.e. sem uma “reunião” [con+venire] de vontades: “[…] nullum esse
contractum, nullam obligationem, quae non habeat in se conventionem, sive re sive
verbis fiat […]”) e que, sem uma intenção comum, não se podia falar de convenção
(“[…] ita et qui ex diversis animi motibus in unum consentiunt […]”. A
generalidade da afirmação de que um contrato e uma obrigação não podiam valer
sem consenso é, porém, muito simplificadora, porque o mesmo texto logo
acrescenta que o tal consentimento prévio podia consistir em palavras (verbis), mas
também no recebimento de uma coisa que devesse ser restituída (re)2716. Embora se
2708 “Julgava algo que não era assim” (e.g. “Julgava que o objeto era do vendedor, que as moedas
eram autênticas, que a noiva era virgem”) vs. “Não julgava nem sabia nada”. O primeiro requisito para
poder invocar o erro é mais exigente do que o segundo.
2709 Cf. v.g. António de Nebrija, Vocabularium […], cit., Cf. “Ignorare”.
2710 Neste caso, não podia invocar o desconhecimento, para se escusar. Equivalia à ignorância em
sentido estrito.
2711 Neste caso, podia invocar o desconhecimento.
2712 “Ignorantia proprie est ignorare illud, quod quis tenetur scire”, António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 1 (de direito divino, natural, canónico e civil).
2713 “Error autem est cum aliud est quam credat”, Antonio de Nebrija, Vocabularium […], v.
“Ignorare”.
2714 “Diversa vel contraria scire videor, nec alicui eorum magis animum aplico”, António de
transigendique causa consentiunt qui inter se agunt: nam sicuti convenire dicuntur qui ex diversis locis in
unum locum colliguntur et veniunt, ita et qui ex diversis animi motibus in unum consentiunt, id est in
unam sententiam decurrunt. Adeo autem conventionis nomen generale est, ut eleganter dicat pedius
nullum esse contractum, nullam obligationem, quae non habeat in se conventionem, sive re sive verbis
fiat: nam et stipulatio, quae verbis fit, nisi habeat consensum, nulla est”.
2716 Outros textos do Digesto de sentido consensualista: D.44, 7, 55; D.50, 17, 116 (refere-se à
força e ao temor (pr.: “Nihil consensui tam contrarium est, qui ac bonae fidei iudicia sustinet, quam vis
atque metus”) e ao erro (n. 2: “Non videntur qui errant consentire”).
471
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2717 Na esteira de textos romanos: D.5, 1, 2, pr. (erro sobre a jurisdição do juiz); D.44, 7, 57;
2719 Como o seu estado, as suas qualidades, sempre que essenciais para o objeto do contrato (v.g.
2721 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 2-3 (mas já relevava se o
erro tivesse sido provocado por outrem: “dolum tamen bene excusat”, ibid. ).
2722 A não ser que o estatuto fosse conforme ao direito comum, ibid..
2723 Por estarem longe de casa e não terem notícias da terra (a fonte para esta inclusão dos soldados
entre os ignorantes protegidos é D.22, 6, 9, 1); mas era duvidoso que pudessem invocar a ignorância
do direito natural, comum a todos os seres humanos.
2724 “Ubi non datur malicia, est parcendum rustici simplicitati”, António Cardoso do Amaral,
2726 O mesmo se pode dizer da ignorância de direito. Só que esta, salvo nos casos excecionais
472
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
comum das pessoas da sua qualidade sabia 2728; também não relevava; e (iii) a
ignorância provável ou invencível, comum e geral, de coisas que normalmente não
era preciso saber, mesmo pelos que fossem cuidadosos e diligentes; esta, sim,
relevante como escusa. Mais grave ainda do que ignorância fingida era o erro
intencional ou fraude, em que se simulava querer uma coisa, quando na verdade se
queria outra, para enganar o declaratário (quem não podia doar, dizia que vendia;
quem não podia prestar fiança, declarava que devia2729).
§ 1615. Determinar, nos casos concretos, se tinha havido ignorância e de que
grau, era matéria de prova. Considerava-se provável e presumível a ignorância
acerca de facto alheio, a não ser que fosse público e muitas vezes tratado;
improvável, a que versasse algo que a maior parte das pessoas sabia ou facto
próprio e não muito antigo2730. Havia uma maior exigência – e, portanto, uma mais
vasta irrelevância do erro como escusa - se o que se enganou devesse averiguar
melhor, em razão do seu ofício, tal como acontecia com quem devesse aprovar
alguém para ordens, ofício ou benefício, quanto às qualidades dos candidatos 2731.
Como facto interno da consciência, o estado de ignorância podia provar-se por
juramento do que a invocasse, entendendo-se que a recusa em jurar presumia o
conhecimento2732.
§ 1616. Em todos os casos em que, segundo os anteriores critérios, a ignorância
fosse relevante, funcionava porém a regra de que ela não seria de atender nos
contratos de direito estrito ou sempre que a sua invocação originasse um lucro para
quem a tivesse invocado2733. Verifica-se, assim, a já referida limitação do princípio
da vontade por razões jurídicas objetivas: apesar de uma vontade sã não ter
existido, havia outras razões – substanciais ou formais – para que o negócio
subsistisse. Mais tarde, os autores jusracionalistas irão procurar acomodar a
proteção do contraente ignorante com a dos outros contraentes, evitando que estes
vissem prejudicadas as suas expectativas negociais por um erro alheio, mesmo que
desculpável2734.
§ 1617. À medida que o direito se foi desformalizando e que se foram tornando
obsoletas as distinções entre as convenções com base nas suas formalidades (v.g.
contratos de direito estrito e contratos de boa fé), ou se foi deixando de usar a
ordem processual romana e caindo em desuso os seus institutos 2735, as
consequências da ignorância começaram a estar cada vez mais ligadas ao modo
como ela afetava a vontade e a apontar para a nulidade. Porém, as antigas distinções
não deixavam de ser recordadas e de influenciar a solução dos casos. Ao mesmo
tempo que se acrescentaram, no último direito comum racionalista, formas de
compensar o declaratário pelos prejuízos que lhe pudessem advir da relevância do
2728 “Est illa qua quis ignorat illud quod omnes suae qualitatis scire solent, et facile poterat, sed
scire non curavit”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 7.
2729 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. "Dolus et fraus", n. 16.
2735 Cf. g. alternativas processuais que tinham a mesma consequência processual de inutilização da
473
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
erro.
6.4.2 O dolo.
§ 1618. O dolo podia ser descrito como um erro provocado por uma
artimanha, falsidade ou maquinação de outrem destinada a enganar (“omnis
calliditas, falsitas, et machinatio adhibita ad alterum circunveniendum, fallendum &
decipiendum, cum aliud simulatur, & aliud agitur”)2736. Embora em todos os
contratos cada parte tentasse favorecer os seus interesses, encarecendo a sua
prestação e desmerecendo a da outra parte, e sempre houvesse, neste sentido
genérico, algum intuito de influenciar o outro contraente 2737). Tal como no erro,
entendia-se que não se podia falar, aqui, em consentimento, pelo que o dolo podia
ser invocado pelo enganado para invalidar o contrato 2738.
§ 1619. Em princípio, o dolo tornava nulos ipso iure2739 os contratos, pelo menos
os menos formais (i.e. os “de boa fé”, no sentido romano), desde que a manobra
dolosa incidisse sobre a decisão de contratar, e não apenas se se quisesse enganar
quanto a uma cláusula, v.g. o preço2740. No dolo, o regime de invalidação do
contrato era mais agressivo, pois não havia que acautelar tanto o interesse da outra
parte, já que, normalmente, esta conhecia o vício da vontade da vítima, pois fora ela
que o causara, com as suas artimanhas. No entanto, como no erro, esta linha geral
de orientação podia sofrer desmentidos. Desde logo, a vítima podia ter interesse em
manter o contrato e, por isso, querer que ele valesse 2741. Por outro lado, o dolo
podia ser de terceiro, caso em que, ainda que tivesse dado causa ao contrato, não
impedia que este valesse2742. Também nos contratos mais formais (i.e. “de direito
estrito”), o dolo não os anulava ipso iure, dando apenas direito a uma exceptio2743. O
dolo não relevava, ainda, nos contratos em que se aceitavam bens espirituais, pois
não se podia entender ter sido enganado aquele que, no fim de contas, tenha
querido o melhor dos fins2744.
§ 1620. O dolo, como intenção de enganar, podia ocorrer nos contratos, nos
testamentos e na feitura das leis ou na sua interpretação, respetivamente sobre o
legislador e sobre o intérprete, quando alguém induzia a promulgar certa lei 2745 ou a
2736 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Dolus et fraus”, n. 1. Fontes romanas:
D.4, 3, De dolo malo; D.44, 4, De exceptio doli. A definição latina é do jurista romano Labeo, em D.4, 3,
1, 2). No direito português, v. Ord. fil. 3, 34, 1; 3, 59, 25.
2737 Falava-se, então, de dolus bonus (D.4, 3, 1, 3).
2740 Também se discutia se o dolo dava origem a uma ação (para pedir a nulidade do contrato) ou
se apenas podia fundar uma exceção (para inutilizar a ação a pedir o cumprimento), António Cardoso
do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, ns. 18 e 21.
2741 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, n. 2
2742 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, n. 4 ss..
2743 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, n. 7; v. “Contractus”,
ns. 18 e 21.
2744 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 19.
2745 Por exemplo, dando ao legislador informações falsas (obreptio) ou subtraindo-lhe informações
verdadeiras (subreptio). Neste caso, o vício era arguível não apenas pelo enganado, mas por qualquer
pessoa que fosse prejudicada por aquela lei.
474
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2746 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, n. 13.
2747 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, 10.
2748 Agostinho Barbosa, Repertorium […], v. “Fraus”. No caso da fraude, ou simulação, uma
em Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, per totam; Fernando Rebelo, Opus de
obligationibus iustitiae [...], cit., pt. 2, liv. 2, qu. 6, sect. 1. No direito português, Ord. fil. 4, 71 (e
respetivo comentário de Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad. cit., ordenação).
2750 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 1: “Quaedam machinatio, per quam
2752 Simulam uma venda ou doação, apenas para agradar a terceiro; ou para defraudar os credores
do vendedor/doador.
2753 Quero dar uma fiança, mas coobrigo-me como devedor principal. Quero contrair uma usura,
2755 Ex.: 1. Uma coisa por outra; 2. Uma pessoa por outra; 3. um contrato por outro; 4. um modo
por outro; 5. um nome por outro; 6. um tempo por outro, 7. uma quantidade por outra, 8. um facto
por outro, 9. um lugar por outro, 10. um sinal por outro, 11. um juramento por outro. Cf. Álvaro
Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 12.
2756 No caso da fraude, ou simulação, a proximidade de sangue ou amizade entre os conluiados
(parentes, domésticos, criados), v. Agostinho Barbosa, Repertorium […], cit., s. v. “Fraus”; Melchior
Febo, Decisiones […], I. dec. 37, n. 3.
2757 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, ns. 16 a 24.
2758 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 30; além de ser pecado, como mentira
475
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
exceptio (ob fraudem creditoris) 2759. No caso de não haver prejuízo de terceiros 2760, o
contrato simulado era, em princípio, válido 2761, a não ser que o negócio escondido
fosse contra o direito2762 ou imoral (turpis)2763.
6.4.4 A coação.
§ 1625. A coação consistia numa ansiedade ou tremor do espírito provocado
por uma ameaça (mina) de mal presente ou futuro2764. O padrão para avaliar as
seriedade e gravidade da ameaça – e, portanto, a sua relevância para este efeito de
rescindir um negócio jurídico - era o de uma pessoa “constante” (vir/mulier
constans)2765. O simples temor reverencial, habitual no contexto das relações
domésticas (entre marido e mulher ou entre patrono e libertos), as ameaças de
brincadeira, as improváveis ou aquelas que não poderiam ser levadas a cabo, não
eram relevantes2766. Por outro lado, o sofrimento com que se ameaçava tinha que
ser grande, implicando a morte ou tortura física (cruciatum salutis, aut corporis)2767, a
liberdade ou a perda de todos os bens ou da maior parte deles 2768. Finalmente, a
ameaça devia ser injusta, ou seja, o mal não podia ser um direito de quem
ameaçava, como se alguém fosse ameaçado pela autoridade eclesiástica competente
com uma excomunhão que tivesse merecido em virtude do seu comportamento ou,
pelo seu credor, ou com a execução de uma dívida que tivesse contraído. Nestes
casos, bem se podia dizer que o coacto se deveria queixar de si mesmo, pois se
tinha posto numa situação de fragilidade2769. A doutrina referia, como exemplos, o
caso do devedor que era ameaçado com a cobrança da dívida ou da liberta que era
ameaçada pelo patrono de ser reescravizada se não lhe desse algo que tinha
prometido; mas notava também que não era este o caso do adúltero ou ladrão
apanhado em flagrante e ameaçado de morte pelo marido ou dono das coisas, já
2760 Era o caso de contratos simulados feitos para escapar a uma ameaça ou apenas para ostentação
(honoris causa: ex. fingir fazer uma doação vultuosa ou dar um grande dote, apenas para presumir
riqueza), Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 11.
2761 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, ns. 5 e 6. Entre as partes, sendo válido o
negócio que realmente queriam, era este que valia, convertendo-se um contrato no outro; sendo
inválido o negócio escondido, valia o simulado, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154,
n. 3.
2762 Uma proibição legal, como a proibição de as mulheres prestarem fiança, ou de os filhos
família contraírem empréstimos em dinheiro; uma consequência fiscal, como a fraude sobre o preço nos
impostos calculados sobre o valor da coisa alienada (sisas, dízimas).
2763 Na verdade, o contrato simulado para prejudicar terceiro caía nesta categoria.
2764 “Metus est instantis, vel futuri periculi trepidatio mentis”. Diferia da violência efetiva, ,
dec. 250, n. 3; todavia, o medo reverencial chegava para rescindir um negócio em que ocorresse uma
lesão enorme, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 3.
2767 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 250, n. 3.
476
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2774 O coacto devia protestar das ameaças perante o juiz ou perante homens bons; mesmo que este
protesto não fosse feito, ainda por medo de que isso chegasse ao conhecimento de quem ameaçava, a
apelação deveria ser recebida, provada a ameaça por testemunhas, António Cardoso do Amaral, Liber
[…], cit., s. v. “Metus”, n. 6.
2775 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 14.
2777 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 30, ns. 9-10: “Contractus metus gesti
validi sunt”.
2778 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 8.
2780 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 8.
2782 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., “Metus”, n. 9; António da Gama, Decisiones
477
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
casadas, estariam tão sujeitas a ameaças dos maridos que este estado de coagidas era
considerado como permanente2783, como uma extensão provável do temor
reverencial que deviam ao seu “pai político” e que incluía o dever de suportar as
suas ameaças e os seus ralhos 2784. Ainda no âmbito do mundo doméstico, aparecem
os patronos a coagir os libertos – as fontes falam mais de libertas, por razões que se
imaginam facilmente -, forçando-os a dar-lhes coisas ou a prestar-lhes serviços e
favores. No foro, o juiz ameaçava as partes com a prisão, nomeadamente se
ousassem recorrer dos seus atos. E as partes, assustadas, sentiam medo de sequer
protestar, perante homens bons, da violência que se lhes fazia. Os poderosos
atemorizavam as testemunhas e os seus adversários mais fracos, forçando-as à
transação ou à desistência da lide ou a não recorrer de sentenças desfavoráveis. Os
clérigos ameaçavam os leigos com a excomunhão, tanto quando ela se justificava
como quando isso não acontecia. A violência era tão endémica que a coação,
embora não se presumisse, era mais facilmente provada, exigindo-se menos
testemunhos e aceitando-se a sua habitualidade em certos casos (como na família).
Se o direito formal fosse efetivo, muitos negócios sucumbiriam perante a rescisão
por coação.
6.4.5 A renúncia à invocação dos “vícios da vontade”.
§ 1632. A prática encontrou formas de diminuir a incerteza negocial causada
pela possibilidade de invocar estas circunstâncias que afetavam a validade dos
contratos. Tais eram as cláusulas de renúncia, pelas quais, no próprio contrato as
partes (ou apenas uma delas), se comprometiam a não usar dos seus direitos de
invocar vícios de vontade. Estas cláusulas cabiam na figura geral de renúncia a
direitos
§ 1633. A renúncia era uma desistência consciente 2785 de um direito próprio2786.
Era um pacto estrito, que só incluía aqueles direitos que estivessem expressamente
enumerados, e, por isso, de interpretação restritiva 2787. Daqui decorria que só se
podia renunciar a direitos próprios e quando a renúncia não causasse prejuízos a
terceiros2788 e que não era possível fazer renúncias gerais a direitos que não se
soubesse ter ou a direitos futuros ou eventuais 2789.
[…], cit., dec. 346, n. 1 (as mulheres, mesmo as constantes, são mais fáceis de coagir a contratar ou a
rescindir contratos).
2783 Pressupunha-se que a ameaça do marido dura enquanto durar o matrimónio, António da
2788 “Renunciare potest unusquisque iuri suo sine incommodo alterius”, António Cardoso do
herança futura. Sobre a renúncia à invocação de casos fortuitos futuros que afetassem o cumprimento
dos contratos: não se podia renunciar aos casos fortuitos em geral; mas podia renunciar-se à eficácia de
casos fortuitos de tipo especificado, e então a renúncia valeria em relação a esses ou a casos menos
478
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
relevantes, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Renunciatio”, n. 47, e 48. Cf. ainda
ibid. v. “Contractus”, ns. 10 e 11.
2790 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Renunciatio”, ns. 18 e 30.; mesmo assim,
aquele que renunciasse a todas as exceções e proteção legal não era prejudicado em relação aos direitos
que não soubesse ter.
2791 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Renunciatio”, n. 42; era nula, Álvaro
da lesão (“de jure regio renunciatio laesionis non valebit”, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […],
cit., dec. 65, n. 2).
2795 Sobre o ritualismo do direito mais antigo, v. Everardo Otto (1685-1756), De jurisprudentia
2797 Salvo no caso de o terceiro ser mandatário ou procurador. Diferente do procurador era o
479
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
apenas pela vontade dos homens. Era o que acontecia no batismo e no casamento,
que, por isso, não se podiam dissolver2799.
§ 1637. Finalmente, a centralidade da vontade na génese das obrigações levava a
que a dogmática dos pactos fosse central no âmbito da dogmática das obrigações.
6.6 Limites do consensualismo: possibilidade e licitude.
§ 1638. Recordemos que havia, no entanto, elementos que condicionavam a
validade dos negócios que não se relacionavam com a vontade das partes.
§ 1639. Assim, o objeto da obrigação tinha que poder ser querido e querido
licitamente. Daí que não pudesse ser impossível2800 ou ilícito (Ord. fil.4,70,3)2801. Por
isso, não valiam - nem sequer no espiritual - os pactos contra o que a lei
determinasse por razões de ordem pública [“favorem publicum vel publicam
utilitatem”], nem que contivessem torpeza§ 1. ou intenção de prejudicar outrem.
Era o que acontecia com o pacto no sentido de que algo que a lei estabelecesse
como delito não fosse considerado como tal, pois tal pacto convidaria a
delinquir2802. Também os pactos contra os bons costumes não obrigavam, nem no
espiritual2803. Um exemplo era o dos pactos sobre a sucessão futura (i.e. sobre
herança de pessoa viva) eram considerados imorais, a menos que o autor da
sucessão consentisse neles2804. Outro era o do pacto ou contrato que importasse
lesão enorme, ou seja, em que o preço fosse inferior a metade ou superior ao dobro
do justo valor da coisa2805. Também a cláusula ou pacto de quota litis, pelos quais se
convencionava que a retribuição do mandato judicial seria uma quota do que se
ganhasse na ação2806 não obrigava.
6.7 As cláusulas acessórias dos contratos.
§ 1640. Existiam cláusulas que podiam ou não figurar num contrato,
condicionando a sua eficácia ou estabelecendo uma certa maneira de o cumprir.
Não eram cláusulas necessárias, como as referentes às partes ou ao objeto
contratuais, mas acessórias. As cláusulas acessórias típicas eram as condições, o
termo e o modo, que se definem adiante.
§ 1641. Não se encontra, na doutrina do direito comum, um tratamento geral
convenções sobre condições indisponíveis, como a liberdade; e, por isso, a obrigação de trabalho
perpétuo não era válida, pois equivalia à sujeição de um homem que nasceu livre à escravidão. Porém,
valia a obrigação de servir para sempre numa igreja ou hospital, pois a obrigação de servir a Deus não
seria escravidão, antes libertação (ibid. n. 9).
2802 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 24.
2803 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 104, n. 6 (“contractus contra bonos mores in
21-22.
2805 Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs. 30, n. 23 (“Laesio enormissima annulat
contractum”).
2806 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 37.
480
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
destas figuras, como hoje acontece na teoria geral dos contratos ou, até, dos
negócios jurídicos. Elas eram tratadas a propósito dos atos, negócios ou contratos,
em que apareciam mais frequentemente. A condição costumava ser tratada no
regime da instituição de herdeiro, eventualmente da doação e compra e venda. O
termo era tratado a propósito dos termos ou prazos processuais. O modo era
referido de forma dispersa ou não era sequer autonomizado; às vezes era abordado
juntamente com a condição, da qual se aproximava.
§ 1642. Autonomiza-se aqui a condição, como uma figura geral, porque, de
todos estas cláusulas acessórias, é a que merece mais atenção da doutrina.
6.7.1 A condição.
§ 1643. A condição (conditio) era um evento futuro que suspendia o ato jurídico
até que a condição fosse realizada2807. Esta definição corresponde à condição
suspensiva, que era a única reconhecida pelo direito romano clássico (como, aliás,
pelo common law)2808. Porém, o direito romano justinianeu veio a admitir também a
condição resolutiva, verificada a qual, o contrato se dissolvia. A construção da
condição resolutiva era artificiosa, valendo-se de uma ficção para conseguir repor as
coisas na situação original, se a condição não fosse realizada. Desdobrava-se o
negócio condicional num negócio puro (i.e. sem condição) e ficcionava-se um
negócio inverso em que a anterior condição resolutiva aparecia como suspensiva.
Assim: a venda condicional (resolutiva) “A venda a B o escravo Pamphilum sob a
condição de lhe ser pago até certa data” transformava-se numa venda pura “A
venda a B o escravo Pamphilum” a que se juntava o negócio condicional
(suspensivo) “B doa a A o escravo Pamphilum sob a condição de B não o ter pago
a A até certa data”. Alternativamente, aplicava-se aos negócios sob condição
resolutiva o mesmo artifício usado para obrigar à restituição um beneficiário que
não cumprisse uma condição negativa. As condições negativas “Dou a A se A não
casar” apenas se podiam realizar com a morte do beneficiário do negócio, pois só
então se sabia que ele não fizera aquilo que estava proibido pela condição. Todavia,
isto tirava quaisquer efeitos úteis ao benefício. Por isso, a partir do séc. I a.C, os
negócios sujeitos a uma condição negativa eram logo feitos válidos como se fossem
puros, devendo porém os beneficiários prestar uma garantia (por meio de uma
stipulatio) de que restituiriam os bens no caso de incumprirem a condição não fazer.
Era a chamada cautio Muciana, que passou a aplicar-se também aos casos de
condição resolutiva. Como a condição resolutiva justinianeia se baseava na ficção
jurídica de um pacto acessório que compensava o negócio condicional, a doutrina
de direito comum quase que tratava apenas da condição suspensiva2809.
2807 “Conditio promissionis, seu contractus est futurus eventus in quam actus suspenditur donec
conditio eveniat”, cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 2
2808 Cf. D.De verborum obligatione, D.45.01, 85, 7 (“Quicumque sub condicione obligatus curaverit,
ne condicio exsisteret, nihilo minus obligatur”). Cf. Daniele Berardi, L’avveramento fittizio della condizione,
2012, tese de doutoramento na Università degli studi di Padova (http://paduaresearch. Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit..unipd.it/2780/1/tesi_pdf.pdf, 26.02.2014).
2809 A condição negativa só se realizava quando se tornasse impossível (v. António da Gama,
Decisiones […], cit., dec. 160, n. 4); nomeadamente pela morte daquele de quem dependia a sua
realização (v. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., 112, n. 1) e dec. 316, n.1; a de não ter
filhos, admitia-se que se desse como cumprida quando não fosse verosímil que os viesse a ter, António
da Gama, Decisiones […], cit., dec. 160, n. 4.
481
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 1644. Nos negócios condicionais, era a realização integral 2810 da condição que
disparava a existência do contrato. Assim, antes de se cumprir a condição da venda,
a coisa não era do comprador, nem este a podia reclamar com uma reivindicatio2811.
Também no casamento, o contrato não surtia efeito enquanto a condição não fosse
cumprida e, por isso. nenhum dos cônjuges podia ser obrigado a consumá-lo
pendente conditione2812.
§ 1645. A condição devia cumprir-se nos exatos termos e pessoas2813. Podia
consistir em facto de quem a apôs, daquele a quem a sua realização interessa, ou de
terceiro.
§ 1646. Todos os negócios que resultem de um ato de vontade podiam ser
condicionados2814.
§ 1647. Porém, a condição impossível, ilícita ou torpe 2815 invalidava qualquer
contrato, tanto de boa-fé, como de direito estrito; aposta a um legado ou
testamento não os viciava, mas tinha-se como não escrita; aposta na instituição de
herdeiro também se tinha como não escrita2816.
§ 1648. O mesmo acontecia no matrimónio, valendo o acordo dos nubentes
como puro; mas se fosse contrária aos fins do casamento 2817 e os dois cônjuges nela
tivessem consentido, invalidava o matrimónio por não se poder dizer que houvera
acordo em realizar o ato com os seus fins inquebrantáveis2818. Ainda relativamente
ao casamento, não era lícito apor em qualquer negócio, nomeadamente em doação
ou deixa testamentária, a condição de o beneficiário casar, ou casar com certa
pessoa, porque se entendia que isso limitava a liberdade essencial à decisão
matrimonial2819.
2813 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 9. Por isso, na realização da
condição, é relevante a pessoa que a realizava (Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 59,
n. 8). Mas, em princípio, podia passar para os herdeiros de quem a deveria ter realizado, se não fora o
seu falecimento (António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 16; Melchior Febo,
Decisiones […], cit., dec. 83, n. 6; Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 171, nº 9).
2814 Em tudo se admitem ónus e condições, Álvaro Valasco, Decisiones […], cons. 27, n. 9; para as
doações, Jorge de Cabedo, Decisiones […], pt. 2, dec. 31, n. 1. No direito romano, havia atos que não
sofriam condição (actus legitimi), como a datio tutoris, mancipatio, in iure cessio, etc..
2815 A doutrina estende este regime às condições contrárias a lei do príncipe, estatuto, cânones ou
bons costumes; tal condição seria desonesta (contra a natureza) ou ridícula (António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 24; “leis e bons costumes”, amplia Melchior Febo,
Decisiones […], dec. 121, n. 10).
2816 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, ns. 19, 20 e 24.
2819 “As condições que repugnam à liberdade do matrimónio são proibidas”, escrevia Jorge de
Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 31; por isso, o legado à filha com a condição de casar com
certa pessoa seria de rejeitar (António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 314 n. 3); mas se aquele que
devia realizar a condição, casando, se casou sem saber da condição, o negócio valia, António da Gama
Decisiones […], cit., dec. 125 n. 1. Já a condição de não casar, valia apenas no já casado, quanto a
casamentos futuros, depois de morto o cônjuge atual (Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit.,
dec. 112, n. 1.
482
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2823 “Dou-te isto, mas obrigas-te a fazer aquilo”; e não “Dou-te isto, se fizeres aquilo”. Sobre a
do dia designado, este recebesse uma melhor oferta; lex commissoria: a coisa voltava à disponibilidade do
vendedor se o comprador não pagasse dentro de certo prazo
2825 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Obligatio”, n. 17/18 (“quod sine die
naturaliter veluti solutione aut cum res in stipulationem deducta sine culpa promissoris in rebus humanis
esse desiit: civiliter veluti acceptilatione vel cum in eandem personam ius stipulantis promittentisque
devenit” (D.46.3.107; v. ainda D.46, 2 a 8.
2827 Adolf Berger, Enciclopedic dictionary […], cit., s. v. “Solutio”; D.46, 3; C.8, 42.
2830 “Confusio est cum debitor et creditor una persona fit” (cf. D.46, 3, 75); um caso especial era o
da extinção das servidões por confusão dos prédio serviente e dominante num mesmo dono (“servitutes
praediorum confunduntur, si idem utriusque praedii dominus esse coeperit”, D.8, 6, 1.
2831 D.44, 1, De exceptionibus praescriptionibus et praeiudiciis; C.8, 35, De exceptionibus sive praescriptionibus.
483
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2833 “Solutio est traditio illius quod debetur & liberatio ab obligatione”, António Cardoso do
2836 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. ns. 2 e 3. Porém, livrava o
pagamento feito, por ignorância, ao possuidor, mesmo de má fé, ou ao usurpador, ibid. n. 5. Também
valia o pagamento a um procurador cuja procuração tivesse sido revogada, mas sem o conhecimento do
devedor, ibid. n. 8; mas não ao procurador sem poderes.
2837 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 12 (salvo em caso de justa
causa.Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 47, n.5. O tempo de pagamento de obrigações em
géneros agrícolas costumava ser o das colheitas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Solutio”, n. 21.
2838 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, ns. 13 e 14; Álvaro Valasco,
existir. Então, tinha que se encontrar o seu equivalente no momento do pagamento, António Cardoso
do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 15, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 374, n.
2. A equivalência podia fazer-se pela razão entre moedas antigas e novas ao tempo do contrato, se se
tivesse tido em vista o género de moeda, ou ao tempo do pagamento, se apenas se considerara o valor
delas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. ns. 19 e 20.
2840 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 24.
2841 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 27.
484
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
dava-se “quando não se faz aquilo que se devia fazer no tempo devido, ou no dia
da interpelação [nas obrigações sem prazo estipulado para o cumprimento 2842]”2843.
O principal efeito da mora era o de obrigar o devedor a pagar juros (interesses) desde
o momento da mora até ao do pagamento, a menos que tivesse uma justa causa
para não pagar, que pudesse alegar como exceção2844. Outro efeito era o da
inversão do risco (periculum), que passava a correr pelo devedor em mora 2845.
6.9 As obrigações contratuais (ex contractu).
6.9.1 Os pactos e os contratos.
§ 1660. Um pacto era o acordo entre duas ou mais pessoas em dar ou fazer algo
que todas quisessem2846.
§ 1661. No direito romano mais antigo, o pacto era uma convenção informal,
sem nome, causa ou forma jurídica, contraposta às convenções contratuais que,
pelo contrário, tinham um nome e uma forma determinada. Esta distinção, que não
se mantivera sequer no direito romano mais tardio 2847, não tinha sido plenamente
recebida pelo direito comum.
§ 1662. Neste, em parte por influência do “consensualismo” do direito
canónico2848, em parte pela progressiva atenuação do formalismo do direito romano
clássico, a distinção entre pacto e contrato torna-se incerta. Por um lado, mantém-
se presente a distinção, que aparece nas fontes romanas, mas, por outro lado, as
formas contratuais romanas deixam de se usar ou perdem relevância para
determinar o valor e regime das convenções. Quando se chega ao direito comum
tardio, o que prevalece é o uso da noção de pacto como noção geral (nomen generale),
distinguindo, no seu seio, as convenções mais formais, perfeitas ou principais
(pactos vestidos, pacta vestita) das menos formais, imperfeitas ou acessórias (pactos
nus, nuda pacta).
2842 “Quod sine die debetur, statim debetur” (o que é devido sem uma data para pagar é devido de
imediato).
2843 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Mora”, n. 1.
2844
Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Mora”, n. 2 (uma exceção que afastava
a mora era o débito não estar acertado (liquidado), ibid. n. 5).
2845 “Damna sunt reficienda ei qui ob moram debitoris passus est”.
2846 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […]¸cit., s. v. “Pactum”; Pascoal de Melo, Institutiones
naturalis est. Quid enim tam congruum fidei humanae, quam ea quae inter eos placuerunt servare? 1.
Pactum autem a pactione dicitur (inde etiam pacis nomen appellatum est). 2. Et est pactio duorum
pluriumve in idem placitum et consensus. 3. Conventionis verbum generale est ad omnia pertinens, de
quibus negotii contrahendi transigendique causa consentiunt qui inter se agunt: nam sicuti convenire
dicuntur qui ex diversis locis in unum locum colliguntur et veniunt, ita et qui ex diversis animi motibus
in unum consentiunt, id est in unam sententiam decurrunt. Adeo autem conventionis nomen generale
est, ut eleganter dicat pedius nullum esse contractum, nullam obligationem, quae non habeat in se
conventionem, sive re sive verbis fiat: nam et stipulatio, quae verbis fit, nisi habeat consensum, nulla
est. 4. Sed conventionum pleraeque in aliud nomen transeunt: veluti in emptionem, in locationem, in
pignus vel in stipulationem”.
2848 “[…] Os pactos baseados na equidade geram ação, obrigação e exceção por direito canónico,
pois o direito natural e divino [em que se fundava o direito canónico] obriga a cumprir aquele que
prometeu algo”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 6. Sobre o
reconhecimento da eficácia vinculativa dos pactos, v. Wim Decock, Theologians and Contract Law: […],
cit..
485
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
consensu”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, ns. 1-2.
2852 “Pactum vestitum dicitur multis modis, aliquando enim vestitur verbis, puta per stipulationem
praecedente interrogatione, secuta responsdione, […] aliquando vestitur litteris […] aliquando consensi,
ut contractibus, qui solo consensu perficiuntur […] aliquando cohaerentia contractus, puta vendo tibi
domum eo pacto, ut ibi inhabitem per annum […] aliquando interventu rei, veluti promisi tibi aliquid
dare, ut tu aliqui mihi dares, au faceres et simulae dedi”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit.,
s. v. “Pactum”, n. 4. Os juristas romanos arrumavam os contratos de acordo com esta tipologia das
formas de exprimir o consenso da seguinte forma: Por consenso: emptio venditio, locatio conductio,
mandatum, societas. Por entrega de uma coisa: mutuum, depositum, commodatum, pignus; Por recitação de
palavras: stipulatio, dotis dictio, iurata promissio liberti. Por um escrito: obligatio litteris contracta.
2853 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 12.
2854 As circunstâncias (res), que aqui funcionam como sinais de uma vontade de contratar, podem
também gerar diretamente uma obrigação não fundada na vontade (ex quasi contratu). Era o caso da
gestão de negócios sem mandato, que gerava obrigações para o gestor e para o dono do negócio, tal
como a tutela ou curatela voluntárias (v. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.
“Contractus”, n. 3).
486
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
pacto diz-se nu” (n. 5)2855. Feita esta distinção (a partir da causa eficiente), distingue
de novo, agora a partir do regime jurídico de cada espécie (a partir da causa final):
“O pacto nu, segundo o direito civil [direito estrito] não gera uma obrigação, mas
apenas uma exceção […], enquanto que os pactos baseados na equidade, por direito
canónico, geram ação, obrigação e exceção, pois o direito natural e divino obriga
aquele que prometeu cumprir algo […]” ( n. 6). Daí que, por direito civil, os pactos
apenas geravam meios de defesa contra ações da outra parte (exceptiones), enquanto
que os contratos geravam ações.
§ 1667. A partir daqui, já se perfila a distinção – sempre imprecisa e variável –
que tendeu a prevalecer no direito comum entre “pacto” e “contrato”. O contrato
era um acordo autónomo ou principal, revestido de alguma forma, que gerava
automaticamente um meio jurídico para fazer cumprir as obrigações que dele
decorriam. Equivalia a um pacto vestido. O pacto, pelo contrário era um acordo
absolutamente informal ou a que faltava algo2856 para ser imediatamente exequível
em direito e que, por isso, não gerava uma ação, embora pudesse ser usado como
fundamento de um meio de defesa (exceptio). Equivalia a um pacto nu.
§ 1668. O contrato era, deste ponto de vista, a categoria juridicamente mais
solene, definitiva, com um regime jurídico mais preciso e com uma garantia judicial
mais completa. No seu âmbito, os juristas seiscentistas continuam ainda a fazer
distinções provenientes do direito romano, mas com um alcance prático cada vez
menor.
§ 1669. A que tinha tradições textuais mais importantes era a que distinguia
contratos nominados de inominados.
§ 1670. Uns contratos seriam “nominados” – i.e. tinham um nome, gerando
automaticamente (eo ipso quod sunt in esse producti ) uma ação civil [actio legis]
específica, prevista na lei das XII Tábuas 2857. A ação tinha um nome determinado e
importava regime processual específico. a qual tinha esse nome (compra e venda
[emptio, venditio], arrendamento [locatio, conductio], sociedade [societas], mandato
[mandatum]). Como produziam automaticamente uma ação, faziam efeito imediato,
não sendo possível o arrependimento (poenitentia)2858
§ 1671. Os contratos diziam-se inominados porque não tinham nome próprio
(um conteúdo e regime fixados pelo direito), correspondendo o seu conteúdo à
vontade das partes: do ut des, do ut facias, facio ut facias, facio ut des2859. As pretensões
jurídicas que deles decorriam também podiam ser várias: aquele que cumpriu a sua
2855 “Pactum nudum est illud quod est in mentis, & puris finibus (intenções) conventionibus, sine
aliquo vestiemnto, puta promitto tibi dare centum, sine aliqua interrogatione praecedente, nec litteris,
nec aliquo supra relatis, & tu consentis, tunc dicitur pactum nudum”, António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 5.
2856 Por exemplo, o acordo definitivo de algum dos intervenientes.
2857 Estes contratos davam imediatamente lugar à ação, pois o seu regime estava inequivocamente
fixado por lei, quer quanto ao pedido, quer quanto à causa de pedir (ou seja, a lei fixava a fórmula da
ação, nas estando nem no arbítrio das partes, nem no do juiz. Cf. D.2, 14, 7, 1. Cf. António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 6. Como nesta fase do direito comum, a petição inicial
(libelo) não tinha que indicar o nome da ação, este automatismo deixava de existir e, portanto, a
distinção entre contratos nominados e inominados tornou-se irrelevante.
2858 Ao contrário do que acontecia nos inominados, cf. António Cardoso do Amaral, Liber […],
487
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
parte podia agir contra o adversário para que cumprisse o que prometera; ou podia
repetir o que tivesse prestado em cumprimento da sua obrigação; ou podia pedir
uma indemnização (id quod interest, em função da descrição dos factos feita no
libelo) (v. cap. 7.1.9.2). O seu regime, embora se pudesse aproximar do de algum
dos contratos nominados era o que mais conviesse à situação que gerara o
contrato2860. Não geravam uma ação enquanto não se produzisse a causa, ou seja,
enquanto não se verificava a prestação por uma das partes 2861
§ 1672. Outra distinção, na época moderna de pouca monta (ou nenhuma), era
feita entre contratos de boa fé, expressão justinianeia que se aplicava aos contratos
que davam origem a ações e boa fé (actiones bonae fidei) (v. cap. 7.1.3). Pertenciam a
esta categoria os contratos consensuais e os contratos reais (ex re, com exceção do
mutuum): (emptio, venditio, locatio conductio, negotiorum gestio, mandatum, depositum societas,
tutela, comodatum, pignus, familiae erciscundae, os contratos praescriptis verbis, permutatio,
hereditatis petitio). Os contratos reais geravam ações de direito estrito (stricti iuris)
(stipulatio, mutuum, arbitrium, etc.)2862 2863.
§ 1673. Estas classificações dos contratos, como estavam frequentemente
dependentes da natureza e classificação dos meios processuais usados para os
garantir, perderam muita da sua relevância quando desapareceu o sistema
processual romano, com as suas oposições entre ações civis e pretórias, ações de
boa fé e de direito estrito. Ora, na época moderna, tudo isto tinha desaparecido.
Em Portugal, as Ordenações tinham estabelecido que do libelo não tinha que constar
o nome da ação, mas apenas o pedido e os seus fundamentos (v. cap. 7.1.3). Não
obstante, a referência a estas classificações e a sua análise continua a ser
regularmente feita. evidenciando uma permanência de objetos discursivos sem
referente na prática do direito, ou mesmo disfuncionais em relação a ela.
§ 1674. Podia convencionar-se que, no futuro, se haveria de convencionar
(pactos de contrahendo, contratos promessas), mas as simples tratativas ou
conversações que antecedessem os pactos não eram elas mesmas consideradas
pactos, pelo que a quebra de negociações não constituía em responsabilidades pela
não realização do negócio2864. Concluído o pacto, estavam criadas as respetivas
obrigações2865.
§ 1675. Os pactos, tal como os contratos, tinham que ser cumpridos (pacta sunt
servanda) pontualmente (i.e. ponto por ponto, rigorosamente). Nos pactos, mais
exclusivamente dependentes da vontade do que os contratos, esta era o principal
critério de cumprimento, como se vê na teoria da interpretação, em que a
averiguação da vontade era o essencial, sobrepondo-se aos elementos literais das
2860 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, ns. 4-5.
2861 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 6.
2862 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 7.
2863 No período final do direito comum, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
declarará, coerentemente, todas estas distinções como inúteis ( Institutiones iuris civilis […], cit., 4, 2, 1-
2).
2864 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 7.
2865 O constitutum, pacto em que alguém prometia cumprir obrigação própria já assumida, era
inútil. O constitutum in alieno era, de facto, uma fiança, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
4, 2, 8.
488
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2866 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 12: “Magis celebratur
voluntate contrahensium, quam verbis, et ideo magis inspicitur voluntas, quam conceptio verborum”.
Cf. ainda Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 41, n. 23; Melchior Febo, Decisiones […], cit.,
dec. 185, n. 18.
2867 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 38.
2868 “Os contraentes sempre se limitam nos seus contratos às leis que regulam esses contratos”,
Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 16, n. 18; “os contratos são interpretados segundo o costume
do reino”, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 75, n. 3.
2869 Cf. g. Agostinho Barbosa, Remissiones doctorum de dictionibus et clausulis in utroque iure contentis,
Romae, Bartholomaei Zannette, 1621; ou Tractatus varii [...] Clausulae usufrequentes [...], cit...
2870 “Contractus est observandus secundam formam, & substantiam ipsius contractus, nec possit
aliquis eorum contrahensium ultra formam contractus aliquid agere [...] semper enim substantialia
contractus sunt attendenda [...] illum tamen, quod venit ex natura conractus, habetur pro cauto [...]”,
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 17.
2871 “Unde dicitur pactum rumpit leges, contractus autem dat leges”, António Cardoso do Amaral,
ns. 17-18. Não já no caso de a contradição apenas envolver cláusulas acidentais (António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 27). Também se dizia que o pacto feito contra a substância
do contrato não valia, exceto no caso de apenas contrariar cláusulas acidentais do ponto de vista dessa
substância, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 27.
2873 Cf. v.g. a clausula rebus sic stantibus. Em todas as convenções se pressupunha a existência de uma
cláusula tácita de que elas valeriam apenas se se mantivessem as condições existentes ao momento da
celebração, pois não teria sido prevista a uma alteração das circunstâncias (condição tácita “eodem statu
persistere res, quam erat tempore contractus, cum casus superveniens, non esset dictum nec
cogitatum”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Obligatio”, n. 11).
2874 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 5; sobre “id quod interest”,
Raffaele Volante, “Id quod interest. Il risarcimento in equivalente nel diritto comune”, Diritto libero,
2012, em
http://www.academia.edu/3440582/Id_quod_interest._Il_risarcimento_in_equivalente_nel_diritto_co
mune, em 10.2.2014.
489
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Mesmo o príncipe. A questão foi muito abordada pela doutrina do direito comum
tardio, que se interrogava sobre se o príncipe, liberto da obediência às leis civis2875,
não estaria também desobrigado de cumprir os contratos 2876. A resposta dominante
era a de que estava vinculado aos contratos, dado o fundamento natural, e não
político ou civil, da obrigação de cumprir as convenções; pelo que o príncipe ficava
obrigado pelo direito natural, de cuja obediência não estava liberto 2877. Apenas no
caso de o contrato causar um enorme prejuízo para a coroa, como cabeça da
república2878, por uma causa superveniente e não previsível no momento da sua
celebração, é que o príncipe poderia rescindir ou não cumprir um contrato por si
firmado.
§ 1679. Uma forma específica de pacto, com importância no âmbito de um
litígio, era a transação2879, pela qual se convencionava decidir uma questão duvidosa,
dando, retendo ou prometendo algo. Também a transação estava sujeita às
limitações dos pactos, nomeadamente quanto à disponibilidade do objeto 2880 e
quanto à sua licitude2881. A transação era de interpretação estrita, podendo ser
anulada por lesão (Ord. fil.4,13,6). Como não era uma decisão do juiz, mas das
partes, não se podia apelar dela (Ord. fil. 3,78)2882.
6.9.2 As espécies de pactos e contratos.
§ 1680. Passemos em revista o fundamental dos vários contratos nominados,
para os quais havia uma tradição dogmática específica.
§ 1681. Na ordem, seguimos o agrupamento feito, já nos finais do séc. XVIII,
por Pascoal de Melo2883.
§ 1682. Numa primeira categoria agruparemos os contratos beneficiais, pelos
quais se estipula que alguém dê ou faça a outrem uma certa coisa, sem se estipular
uma contrapartida para esse ato. A categoria compreendia a doação, à qual se
equiparavam, em certos aspetos, o mútuo, o comodato, o precário, o depósito e o
mandato2884
2875 Limitando o alcance do princípio, António Manuel Hespanha, As vésperas […], p. 480 ss..
2876 Discussão: Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 120 ns. 7-14; Miguel de Reinoso,
Observationes […], cit., obs. 57, ns. 3-5. Sobre o tema dos limites contratuais e legais ao poder do
príncipe, v. em síntese, António Manuel Hespanha, As vésperas […], p. 480 ss. max.p. 481 e nota 18.
2877 Cf. v.g. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], dec. 120, ns. 1-3.
2879 D. 2, 15, De transactionibus; Ord. fil. 3, 78, 1; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
4, 2, 9.
2880 Algumas limitações na transação (para proteger de si mesma a parte transigente), Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 11, 1. Nos processos crime, podia-se transigir quanto aos
danos ou à retaliação privada (direito de denunciar ou de acusar), mas não quanto à punição pública,
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 13 (v. Ord. fil. 1, 3, 9).
2881 Discutia-se se a transação sobre o adultério, em que o marido ofendido desistisse da acusação,
era ou não imoral e ilícita, por equivaler a proxenetismo (ceder a mulher em troco de uma quantia). A
doutrina mais tardia (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 14, citando Chr.
Thomasius) considerava o negócio honesto.
2882 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 15.
490
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1683. Um contrato beneficial era aquele que consistia numa ação a favor de
outrem, fundada no bem querer. Em sentido mais estrito designava aquilo que se
dava por amor ou benquerença. A particular natureza dos contratos beneficiais
relacionava-se justamente com este caráter gratuito e benévolo, o qual estabelecia
para eles certas regras específicas: (1) não tinha sentido avaliar a igualdade das
prestações; (2) só se lhes aplicavam as suas regras específicas quando o seu
cumprimento fosse voluntário, já não quando fosse exigido judicialmente; (3)
tratando-se de liberalidades, não deviam trazer prejuízos não suportáveis para o
benfeitor, pelo que este podia revogar o benefício no caso de necessidade grave e
imprevista; (4) careciam de acordo do beneficiário, nomeadamente pelas obrigações
que originavam, embora não no plano estritamente jurídico, a mais importante das
quais era o dever de gratidão, com as suas sequelas 2885.
6.9.2.1 Os contratos gratuitos.
6.9.2.1.1 A doação.
§ 1684. Começamos pela doação.
§ 1685. A doação era um dos contratos que melhor revelava as crenças
implícitas acerca da ordem do mundo. Haveria uma ordem do mundo, em que as
pessoas e as coisas estavam ordenadas entre si. Essa ordem do mundo era estável,
até certo ponto, indisponível. A sua alteração era excecional e, por vezes
impossível. Cada um tinha as suas coisas (ius suum) e o direito protegeria esse
quinhão primordial (patrimonium). As alterações da ordem patrimonial eram
possíveis, por meio da atos como que mágicos, como a recitação de palavras ou a
celebração de rituais, como acontecera com a celebração de contratos no direito
mais antigo, ou por meio da vontade, pactando, como acontecia no direito mais
moderno. Porém, estas alterações tinham que ter uma causa (causa eficiente), como a
razão que levou o doador a doar, ou causa final, como o objetivo do doador ao doar -
, inscrita na própria ordem da natureza. Essa causa era, no fundo, uma tendência
natural para manter o equilíbrio entre os patrimónios. De tudo isto decorria que a
doação simples, espontânea, arbitrária e incausada, puramente liberal, era possível,
mas excecional, pelo que, ocorrendo, devia ser verificado se o ânimo de doar – i.e.
sem ser para recompensar ou na perspetiva de um retorno futuro - existira mesmo
ou fora apenas induzido por manobras torpes para distorcer a vontade. Se se
concluísse que essa vontade de dar tinha existido, ela era respeitada pelo direito,
embora sujeita a limitações quanto à pessoa do donatário, quanto a expectativas de
terceiros relativas ao património do doador e quanto ao objeto doado. Se essa
vontade de dar tivesse afinal uma causa natural, como o sentimento de gratidão
pelo que o donatário, antes, tinha feito em benefício do doador, a doação era,
afinal, um movimento natural de restauração do equilíbrio patrimonial. O donatário
era recompensado por um anterior benefício feito ao agora doador, restaurando-se,
assim, um equilíbrio primordial entre os dois. E, assim, a doação impunha-se no
plano do direito e também no plano de uma ordem natural anterior, reportada a
equilíbrios patrimoniais originais e a sentimentos que visavam a sua reposição
(gratitudo). Por isso, estas doações com uma causa (ob benemerita), ou remuneratórias,
impunham-se ao próprio direito estrito, valendo e sendo, pelo menos parcialmente,
eficazes, mesmo quando este direito tendesse a não as reconhecer. Este modelo
491
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2886 D. 39, 5 De donationibus, 15, 2. Fontes: D.39, 5; I. 2, 7; C.8, 53-56; Ord. fil. 4, 62 a 66. Sobre
o regime de direito romano, Gordon Campbell, A compendium of Roman law […], 63 ss.. Muito
interessante sobre os “enigmas jurídicos” da doação, com referências aos planos não estritamente
jurídicos do tema, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos […], cit., 9 ss.. Sobre a liberalidade no direito
comum, v. António Manuel Hespanha, “ Les autres raisons de la politique. L’économie de la grâce “,
cit.; Bartolomé Clavero, Antidora [...], cit..
2887 Os juristas opunham, por vezes, a datio (dação), pura e gratuita, à donatio (doação), causada
utriusque personae, & quantitas dati” [para se saber se se trata de uma doação simples ou de outro
contrato próximo, como o mútuo ou o comodato], António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.
“Donatio”, n. 47.
2889 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 4.
2890 Sobre as donationes ob benemerita, v. Miguel de Reinoso, Observationes […], dec. 31 ss.: se são
verdadeiras doações, ibid. ns. 1-2; “in dubio censetur remuneratoria”, ibid. n. 3.
2891 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 5. Já no direito romano a
doação em sentido próprio era a doação gratuita: D.39, 5, 1, pr.: “Ulpianus […] propter nullam aliam
causam facit., quam ut liberalitatem et munificentiam exerceat […] Haec proprie donatio applelatur”.
2892 “Non dicitur tantum gratus qui tantum reddit quantum accepit”, Bento Pereira, Promptuarium
[...], cit., s. v. “Donatio”, n. 450; Miguel de Reinoso, Obervationes […], cit., obs. 31, n. 16; v. também
492
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
os serviços devidos ao pai (ao marido, ao patrono, ao rei, acrescentam alguns 2893),
justamente porque são devidos em face de anteriores atos de cuidado ou de proteção,
não constituíam doações nem geravam naquele que é servido um sentimento de
gratidão que o obrigasse a voltar a beneficiar os filhos, a mulher, os libertos ou os
súbditos2894. O mesmo se diga da doação pela qual o pai instituía um dote a favor
da filha (ou que prestava os alimentos devidos aos filhos): não era um ato
verdadeiramente beneficial, antes correspondendo ao cumprimento de um dos
deveres dos pais.
§ 1689. A doação simples era válida, embora limitadamente, pois a mera
liberalidade cedia perante expectativas fundadas ou direitos estabelecidos 2895. Por
isso, tendo uma certa importância, a sua motivação tinha que ser averiguada pelo
rei. As Ordenações (Ord. fil. 4,62) dispunham que as doações de valor superior a 300
cruzados2896, tinham que ser averiguadas e confirmadas pelo Desembargo do Paço,
como tribunal colateral ao rei, num processo que se chamava de insinuação 2897. A
este regime estavam também sujeitas doações de menor soma, mas que, juntas,
excedessem os ditos valores (para evitar a fraude à lei) 2898. Na insinuação se
averiguava se a vontade de doar era sã, isenta de vícios (as Ordenações falam de
“induzimento, arte, engano, medo, prisão, ou outro algum conluio“, sendo este
conluio, tipicamente, a simulação para prejudicar herdeiros ou credores) que a
invalidassem 2899, e também se a doação não teria alguma causa não expressa (como
remunerar serviços anteriores ou futuros, constituir um dote, beneficiar o outro
cônjuge, instituir um pecúlio para um filho, fazer uma deixa por morte 2900, efetuar
um pagamento2901)2902 que mudasse a natureza do contrato.
uma contia, estes eram obrigados a servir o rei. Por isso, os seus serviços não eram benefícios feitos ao
rei e, logo, este não tinha que os remunerar. De onde as doações régias seriam doações simples e não
remuneratórias. Esta linha de argumentação não era a dominante.
2894 Miguel de Reinoso, Observationes […], obs. 31, n. 4 (toda a decisão é importante).
2895 Como, por exemplo, as legítimas dos filhos ou de outros herdeiros necessários. Por isso, não
53, 36, 3). Cf. António de Nebrija, Vocabularium […], cit., s. v. “Insinuatio”: “scriptura publica facta in
praesentia publicarum personarum”. Sobre o seu regime no direito comum tardio, em Portugal, Bento
Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Donatio”, n. 462 ss.; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],
tom. 2, ad Ord. fil.1, 3, gl. 6 (p. 94).
2898 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 10.
2899 Para exigir a repetição da coisa doada, o doador dispunha da condictio indebiti, António Cardoso
do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, ns. 39 e 59. Mas existia também uma exceptio (ob errorem)
para o doador se defender de uma ação em que se pedisse o cumprimento da doação. A repetição não
tinha lugar se o doador estivesse obrigado a dar por uma obrigação de direito natural (de gratidão). Daí
que quem tivesse doado por uma causa equivocada não poderia repetir se houvesse uma outra
verdadeira causa para doar, ainda que apenas de direito natural.
2900 A doação mortis causa equivalia à deixa testamentária, mas devia ser aceite pelo donatário
(D.39.6, de mortis causa donationibus, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n.
38.
2901 Donatio remuneratoria, donatio dotis, donatio inter virum et uxorem, donatio peculii, donatio mortis causa,
donatio/datio in soluto.
2902 A nomeação para administrador de morgado ou cabecel de um prazo não era uma doação
493
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2904 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1. dec. 135, n. 6; António da Gama, Decisiones [...],
cit., dec. 120, n. 1; António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 11.
2905 Desde que o benefício não excedesse o merecimento, António da Gama, Decisiones […], cit.,
forma, devia, por isso revestir a do testamento: 5 testemunhas, 2 no caso de ser feita a filho, António
Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 10. Em geral, a escritura de doação devia
conter os nomes de doador e donatário e a descrição precisa da coisa doada, António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., n. 36.
2907 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 3.
2908 Por exemplo, as doações entre pessoas que não pudessem fazer doações entre si (v. abaixo)
2909 As doações ob causam ou as remuneratórias não eram revogadas pelo nascimento de filhos (C,
8, 55, 8, que deu Ord. fil.4, 65), Melchior Febo, Decisiones […], dec 86, 2 ss..
2910 A doação que tivesse uma causa não era revogável por ingratidão, nem carecia de insinuação,
Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 449, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 163, n. 3.
2911 Nas doações entre pessoas proibidas de doar, a declaração dos merecimentos que se
compensariam com ela não bastava para as validar, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 184, n. 20;
ou dec. 31, n. 20: “Senatus saepe judicavuit non sufficere assertionem meritorum etiam inter personas
non prohibitas donare, si donatio summam a lege taxatam excedant, sed necessarium esse meritorum
probationem, ut si aequivaleant rei donatae, sustineatur donatio, se vero donatio excedat merita, in eo
excessu vitietur”. Para que as doações se digam remuneratórias os benefícios recebidos deviam ser
provados, bem como a sua equivalência com o bem doado (quanto ao excesso, a doação diz-se simples
494
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1693. Podiam doar as pessoas que podiam contratar ou que podiam dispor
dos bens2912. Assim, como os pais e os filhos in potestate eram tidos como sendo a
mesma pessoa2913 e, por isso, não podiam contratar entre si, também não podiam
fazer-se mutuamente doações. Embora o pai pudesse constituir pecúlios aos filhos
ou sustentar os seus estudos e isto, por vezes, fosse chamado de doação, realmente
eram atos unilaterais de disposição dos seus bens (v. cap. 3.2.4). Não podiam doar –
de acordo com princípios comuns a todos os contratos - o furioso, o demente e
outros semelhantes, o menor de 15 anos sem autorização do tutor, o filho-familias,
sem autorização do pai, a não ser pelas forças do pecúlio de que tivesse
administração2914; o mesmo quanto ao religioso ou ao monge sem autoridade do
superior2915.
§ 1694. Quanto à causa da doação (os merecimentos que ela remunerava), para
além de – nas doações remuneratórias - dever ser proporcionada ao bem doado,
sob pena de o excesso deste ser considerado como doação simples ou absoluta,
devia ser possível, lícita e honesta. As doações feitas por uma causa (i.e. a razão de
ser ou finalidade) impossível, de direito ou de facto, eram válidas, se o doador
soubesse dessa impossibilidade, pois se entendia que, se sabia, estava a querer doar
de forma pura ou incondicional2916. Não assim se desconhecesse a impossibilidade
ou se ela fosse superveniente, caso em que a doação seria anulável. O mesmo
acontecia se a causa fosse futura e não se verificasse ou se verificasse por facto
independente da vontade do donatário (“doo para que faças certa coisa e não o
fizeste ou o fizeste [isso foi feito] por outra razão”) 2917.
§ 1695. A imoralidade ou torpeza da causa invalidava a doação. Assim, podiam
ser anuladas (e também revogadas) as doações feitas em fraude dos credores 2918, as
doações feita por homem casado à sua concubina (mas não já por homem
solteiro)2919 ou as doações com finalidades desonestas ou criminosas 2920. Este era o
e revogável), v. Bento Pereira, Promptuarium […], n. 449, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 86,
n. 11. Também António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 8.
2912 Em contrapartida, estavam vedadas aos que não podiam dispor dos bens doados, ou por não
serem donos deles, ou por não poderem dispor dos seus bens, Não se podia doar coisa alheia ou que
tivesse sido confiscada; o usufrutuário não podia doar a plena propriedade; o prelado ou regedor de uma
igreja não podia fazer doações por força dos bens de uma igreja (salvo se isso fosse o costume do lugar);
v. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, ns. 19-23. Mas o patrono poderia doar
bens do padroado sem autorização do bispo (v. ibid. n. 28.
2913 Cf. cap. 3.2.4.
2914 Castrense ou quase castrense, proveniente de exercício das armas ou de outro ofício público,
benefício ou dignidade.
2915 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, ns. 17-18. O credor podia doar
o crédito, tal como um dizimeiro podia doar as dízimas a que tivesse direito, pois se tratava de coisas
que estavam no seu património (ibid. ns. 23 e 27).
2916 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 56.
2919 Doação feita à concubina por homem solteiro, vale, António Cardoso do Amaral, Liber […],
cit., s. v. “Donatio”, n. 16 e, por isso, o doador não pode repetir o doado, António da Gama,
Decisiones [...], cit., dec. 223, n. 3.
2920 “Datum ob turpem causam, non repetitur, & ex utraque parte extat turpis causa, in pari enim
causa turpitudinis, melior est conditio possidentis […]. Si tamen sit turpiendo ex parte accipientis
tantum repetitur, quod fuit datum, ab illo qui dedit […]. Non tamen si turpituto sit a parte dantios, vel
utraque parte”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 51.
495
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
caso de doações feitas a um oficial para obter um favor contrário aos seus deveres
de ofício (como livrar alguém da tropa, preferir um candidato a um lugar, julgar
num certo sentido, nomeadamente contra direito) 2921. Nestes casos, distinguia-se o
crime de corrupção da validade da doação. O crime verificava-se sempre, quer por
parte do doador, quer por parte do donatário, por causa da peita de um oficial
público. Se o que se pedia era a decisão que correspondia ao que o direito
estabelecia, o doador podia repetir o que doara, pois o donatário não lhe faria
nenhum obséquio em decidir a seu favor e, logo, faltava a causa para doar. Porém,
se o que se pedia era contra o direito, a doação era válida, não podendo o doador
repetir, “pois houvera torpeza de um e de outro lado”, embora o donatário devesse
ser punido mais duramente e indemnizar aquele que fora prejudicado pela sua
decisão ilícita e perder para o fisco a coisa doada 2922. O regime que acaba de ser
referido correspondia à regra geral de que a doação com causa torpe não era
anulável se havia intenção imoral apenas por parte do doador, mas não do
donatário.
§ 1696. Podia ser doado tudo o que estivesse no comércio. Discutia-se a
possibilidade de doar todos os bens, tendendo-se a responder que não2923, tanto por
configurar um ato de prodigalidade, como por induzir a supor que se tratava de
uma doação simulada, para sonegar o património e defraudar interesses protegidos
de terceiros, nomeadamente de credores2924. Os que admitiam uma doação com
este âmbito convertiam-na ou numa doação da herança (com o conteúdo que esta
viesse a ter2925) ou numa doação apenas dos bens presentes 2926. Fosse como fosse,
os credores gozavam sempre de uma actio pauliana para anular a doação enquanto os
prejudicasse2927. Nem as doações de todos os bens feitas à igreja ou por causas
piedosas escapavam a este regime de invalidade, no caso de ofenderem as legítimas
dos filhos (mesmo supervenientes) ou os direitos dos credores; embora se
considerasse que não pecavam por liberalidade excessiva (prodigalidade), sobretudo
2921 As fontes doutrinais usadas referem-se, como exemplo, ao oficial militar encarregado de
recrutamento, ao juiz, ao notário, ao corredor das folhas (i.e. aquele que verificava os antecedentes
criminais de uma pessoa).
2922 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 52-53.
2923“An donatio omnium bonorum reservato usufructo valeat ? Pro utraque parte quaestionis est
opinio, sed neagtiva communior”, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Donatio”, ns. 455-456;
António da Gama, Decisiones [...], cit., d. 348, n. 3.
2924Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Donatio”, n. 457, Miguel de Reinoso, Decisiones
[...], cit., obs. 41, per totam, maxime ns. 1-3, 4 ss..
2925 Como o donatário não era herdeiro não ficava obrigado a pagar as dívidas, cf. Miguel de
Reinoso, Decisiones [...], cit., obs. 42, per totam, maxime, n. 2 ss..
2926 Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit., 41, ns. 8 e 16; António Cardoso do Amaral, Liber
fraus”). A ação pauliana era um expediente geral para proteger os direitos dos credores à garantia
constituída pelo património do devedor (v. António Cardoso do Amaral, Liber […], “Donatio”, cit., n.
85: “cum aes alienum totum patrimonium respiciat”). Em todo o caso, não era concedida contra bens
doados ob benemerita, porque estes, à sua maneira, também eram devidos e até preferencialmente (já que
estes credores naturais a quem tivessem sido doados bens nem sequer entravam em concurso com os
credores civis, antes os preferiam, por não serem obrigados a restituir os bens). Cf. ainda Álvaro
Valasco Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 188, n. 12 (os credores não podem revogar uma
doação onerosa que os defraude).
496
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
se fossem feitas com a reserva do usufruto, pois nunca se daria de mais a Deus ou
para a salvação da alma2928.
§ 1697. Ainda que não se tratasse de doações de todos os bens, o montante das
doações podia importar a sua invalidade, sempre que fossem inoficiosas, ou seja,
que, pela sua importância (avaliada na altura da abertura da herança 2929),
comprometessem as legítimas dos filhos2930. Os filhos prejudicados dispunham de
uma ação (querela inofficiosae donationis) para obter a sua revogação, mesmo que se
tratasse de doações remuneratórias 2931. No direito comum, a querela inofficiosae
donationis só aproveitava aos filhos legítimos. No direito régio, aproveitava também
aos filhos naturais de plebeu2932. As doações feitas a um filho eram imputadas na
sua legítima e também podiam ser inoficiosas, se ofendessem as legítimas dos
outros2933.
§ 1698. As doações eram passíveis de condições ou de pactos anexos que
condicionassem a sua eficácia. Tais condições ou pactos, na verdade, não faziam
mais do que explicitar a causa que, não sendo realizada, invalidaria a doação. Tal
como se disse quanto à causa, as condições tinham também que ser possíveis, lícitas
e morais2934. Se a condição não fosse satisfeita pelo donatário (v.g. prestação de
alimentos), caía a doação, tendo o doador uma reivindicação contra o donatário2935.
§ 1699. A doação podia, também, conter um termo (ad tempus)2936.
§ 1700. O contrato não tinha uma forma prescrita (Ord. fil.4,62,1), a não ser
quando tivessem por objeto algo cuja transferência exigisse escritura pública (Ord.
fil. 3,25 e 30; 4,10 e 19). As doações mortis causa requeriam a forma dos testamentos
(D. 39.6, de mortis causa donationibus, 38).
§ 1701. O contrato de doação perfazia-se pela tradição da coisa ou pela
aceitação do donatário2937; no caso de doação com retenção do usufruto dizia-se
que a coisa se transferia “por ficção”2938.
§ 1702. A revogação da doação era autorizada ou pela superveniência de
filhos2939, já que se presumia que isso teria sido relevante na decisão do doador, ou
2928Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 465, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 240,
2930 Sobre o seu regime, no direito comum, castelhano e português, Bento Pereira, Promptuarium
[...], cit., s. v. “Donatio”, n. 460; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 188, ns 1-2.
2931 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 188, n. 5.
2932 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 94, ns. 7-8 e 15
2933 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, ns. 84, 87.
2935 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 32; a condição de não
alienar ou de não alienar senão a certa pessoa, tornava nulas as vendas supervenientes feitas pelo
donatário, pois se tinha vendido uma coisa que não se tinha recebido, por falta de realização da
condição e, consequentemente, de consumação da doação, v. António Cardoso do Amaral, Liber […],
cit., s. v. “Donatio”, n. 33; a doação de um ofício para quando vagasse pela primeira vez consome-se se
o donatário não o aceitasse dessa vez, cf. ibid. n. 35.
2936 António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Donatio”, cit., n. 45.
2939 Legítimos, naturais, mas não espúrios, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.
“Donatio”, n. 43.
497
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2940 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, ns. 39-40. A decisão de revogar
a doação devia ser tomada no prazo de 5 anos sobre os atos de ingratidão, ibid. n. 40. A ingratidão não
podia ser invocada pelos herdeiros do doador, mas podia sê-lo pela sua mãe.
2941 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 41. Sobre as doações
para casamento (propter nuptias) e as doações de dote (donationes dotis), v. a secção sobre os regimes de
bens do casamento. Sobre os seus regimes, como doações, v. ibid. ns. 63 ss..
2942 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 68.
2943 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 388 ss..
2944 Cf. depois, Ord. Man. 2, 17 (“queremos que nom sejam avidas por terras feudaes, nem ajam
natura de Feudo”).
2945 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 408 ss..
498
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
2946 Cf. com mais detalhes, António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 402 ss..
2947 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […}, cit., s. v. “Donatio”, n. 466; Jorge de Cabedo,
Decisiones […], cit., p. 2, dec. 5, n.3.
2948 De acordo com a ordem especial de sucessão nos bens da coroa, prevista na Lei Mental. Sobre
o problema geral da sucessão nos benefícios, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 31, ns. 5-6.
2949 As doações podiam ser de três tipos: por uma vida, pela vida do concedente, ou
perpetuamente, v. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 5, n. 2 ss.; sobre a prática das
confirmações de doações régias, v. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 408 ss..
2950 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p.2, dec. 95, 12 ss.; p.2, dec. 75, ns. 5 ss. (v. 13:
compensados pela ideia de que a causa se presumia (“in revocatione Principi causa praesumenda est”,
ibid. n. 7).
2952 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 8.
2953 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Donatio”, cit., n. 38.
499
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
2955 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […] De clausulis […], cit., clausulae 41 e 59, n. 1; Domingos
2957 “Commodatum est gratuita concessio alicuius rei, facta specialem usum & cum tempore
definito tacite vel expresse (commodo tibi equum ad eundem Romam, librum ad transcribendum)”. Na
falta de especificação do uso ou do tempo, tratava-se de um precário António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, 1. Cf. também Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3,
4.
500
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
de uma casa para morar, v. cap. 4.3.9); mas não já sobre coisas que se consumissem
pelo uso, a não ser que estas não fossem para usar, mas apenas para ostentação 2958.
A coisa emprestada devia pertencer ao comodante 2959. Se o fim da cedência da coisa
constasse do contrato, o uso para outro fim configurava furto de uso, gozando
então o comodante de uma actio furtiva para recuperar a coisa, mesmo antes de
decorrido o prazo2960. Não devia haver qualquer retribuição pelo uso da coisa, aliás
tratar-se-ia de locação2961
§ 1714. O comodato era irrevogável antes de se cumprir o prazo ou realizar a
finalidade para que se fizera a cedência2962, ao contrário do que acontecia no
precário, livremente revogável, pois não se convencionava a finalidade da cedência,
nem um prazo para a restituição2963. Morrendo o comodante ou o comodatário, o
contrato transferia-se para os herdeiros2964.
§ 1715. Como era cedida uma coisa determinada para certo fim, o comodante
devia informar o comodatário dos vícios da coisa 2965. O comodatário era obrigado
às despesas necessárias e normais de manutenção da coisa 2966.
§ 1716. Existia alguma especificidade nestes contratos relativamente a saber
sobre quem recaía o dano da coisa. Em regra, o dano recaía sobre o dono da coisa
(res suo domino perit; Ord. fil.4,50,pr e 4,53,1), salvo convenção em contrário. Na
verdade, o domínio da coisa não passava para o comodatário, continuando o
comodante a ser o dono dela. O dano doloso responsabilizava aquele que tivesse
tido a intenção de o causar. Mas o facto de uma das partes obter os benefícios
gratuitamente fazia com que respondesse tanto pelo dano doloso como também
pelo culposo, mesmo que a culpa fosse levíssima (Ord. fil.53,2)2967, pois o negócio
tinha sido gratuito para si. Já se o comodato tivesse sido contratado também em
proveito do comodante, a responsabilidade do comodatário reduzia-se, pois já não
se tratava de um negócio gratuito, ou totalmente gratuito, para ele 2968. No precário e
depósito, em que o emprestador podia revogar livremente o contrato se entendesse
2958 Como o empréstimo de dinheiro apenas para que o comodatário ostentasse riqueza. Neste
caso, embora a restituição não tivesse que ser a das mesmas moedas, mas apenas da mesma soma, as
moedas não eram consumidas, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, 4.
2959 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, 6.
2965 Respondendo pelos prejuízos caso soubesse dos vícios e não os comunicando ao comodatário,
sua recuperação no caso de fuga (António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”,
n. 15).
2967 As distinções da culpa em grave, leve e levíssima (lata, levis, levissima) eram de direito romano.
A calibragem da culpa originava, porém, grandes incertezas doutrinais (v. cap. 8.1.4.2).
2968 Exemplo de comodatos com os quais o comodante tinha benefícios: o empréstimo de roupas
para o comodatário ir visitar o comodante, em que lucrava a reputação do comodante (neste caso, o
comodatário respondia apenas por dolo e culpa grave); empréstimo de baixela para receber um amigo
comum em casa do comodatário (este responde por dolo e culpa, como na venda. locação, etc.). Cf.
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 13. Cf. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 4, 4, v.
501
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
que a coisa corria riscos na mão daquele que detinha a coisa emprestada, este
último apenas respondia por dolo. O comodatário apenas respondia por caso
fortuito em três casos: se tivesse tido culpa na geração do caso fortuito, se isso
tivesse sido pactado, ou se estivesse em mora2969. Ou seja, o comodatário não
respondia pela deterioração ou perecimento da coisa cedida se lhe tivesse dado o
uso contratado e se ela se tivesse deteriorado sem culpa sua 2970. Diferentemente no
caso de mútuo, pois o mutuário adquiria o domínio da soma mutuada e, por isso,
recaía sobre ele o prejuízo da perda fortuita, em obediência ao princípio de que
recai sobre cada um o prejuízo da perda das próprias coisas (res suo domino perit)2971.
§ 1717. Se a coisa se tivesse perdido, sendo o comodatário responsável de
acordo com as regras anteriores, estava obrigado a restituir o seu valor
(aestimationem)2972.
6.9.2.1.4 O mútuo.
§ 1718. Outro contrato gratuito era o mútuo, um contrato gratuito que “fazia
do meu teu”, como explicavam os autores a partir de um ingénuo argumento
etimológico (“meum”+”tuum”). Constava de uma cedência gratuita e por certo
tempo, de uma quantidade de coisas fungíveis, ou seja, que se especificassem
apenas por conta, peso ou medida - o que incluía a moeda, mas também cereais,
vinho, azeite, metais, lenha, etc. - ou que se consumisse pelo uso (Ord. fil.4,50)2973.
Como contrato gratuito, o mútuo não dava origem ao pagamento de uma
contraprestação pelo uso da coisa (usuras); se o devedor restituísse algo mais
(crescimento) do que o emprestado (principal), então o contrato transformava-se
num de mútuo oneroso ou usura2974, salvo se esse acréscimo correspondesse aos
juros de mora, que compensavam a dilação do pagamento.
§ 1719. No direito romano, o mútuo era sobretudo tratado a propósito do
senac. Macedoniano, que proibia os empréstimos de dinheiro a filhos-família,
concedendo-lhes uma exceptio para inutilizar a condictio (actio mutui) do credor. Os
filhos não eram, por isso, obrigados a pagar e, se pagassem voluntariamente,
dispunham de uma condictio (indebiti) para recuperarem o que tinham pago, pois,
nestas circunstâncias, o mútuo não gerava nem obrigação civil, nem natural 2975. A
proteção dos filhos era tão forte que se entendia que eles nem sequer ficavam
obrigados por terem jurado cumprir2976. Não valia, no entanto, para os filhos que
2969 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 16.
2970 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 14.
2971 “Commodatarius non possidet rem comodatam, sed semper dominium remanere apud
commodantem […]”; já no mútuo, embora o mutuário adquirisse o domínio das coisas, elas não
pereciam, porque “as coisas genéricas nunca se perdem” (“mutuarius consequitur dominium pecuniae
mutuae, & obligatur in genere [genus nunquam perit]: perdeu aquelas moedas, mas restitui outras]”,
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, ns. 16-17.
2972 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 5.
2973 “Mutuum est quod aliqui praestatur ut tempore reddat”, António de Nebrija, Vocabularium
[…], cit., v. Mutuum”. V. também Manuel Barbosa, Remissiones […], ad Ord. fil. 4, 50. Fontes romanas:
D.12.1 De rebus creditis si certum petetur et de condictione; C.4, 1, De rebus creditis, e C.4, 2, Si certum petatur.
2974 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit, 1, 8, 14-15.
2975 Cf.. Manuel Barbosa, Remissiones […], ad Ord. fil. 4, 50, n. 3-4. Normalmente, o mútuo gerava
502
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
suscipitur, pacto seu spe praecedente”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n.
1.
2978 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 2.
2980 “Non est usura recipere aliquid ultra sortem principalem, gratia oblatum a debitore, cum
tamen creditor sine spe illius mutuasset. Considerata tamen quantitate donati, & paupertate, seu
liberalitate debitoris donantis. Si autem mutuans haberet mentem depravatam sperando aliquid a
debitores usuram commiteret”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 1.
2981 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 4.
2982 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 6 (“hoc tamen non habet
locum in foetu ancillarum, quamvis in foetu pecudum locum habeat”). Cf. a discussão de outros casos
(vender uma coisa por preço superior ao da compra, n. 8; comprar com obrigação de retrovender, ns.
9-10) nos números seguintes.
2983 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 15.
503
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
[…], cit., s. v. “Usura”, 18), ou os que tivessem essa fama pública (ibid. n. 19, onde se discorre sobre a
prova da usura). O crime era de foro misto, podendo ser conhecido por uma e outra jurisdição (ibid. n.
20).
2987 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 16.
2988 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 21-22.
2989 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 13.
2991 Sobre contratos de comerciantes em Portugal nas épocas medieval e moderna, v. Filipe
deducto capitali […]”, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 47, n. 28.
504
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
comerciante, que acrescentava, por si mesma, valor às coisas2993. Por isso, qualquer
dilação no pagamento de uma compra a um comerciante interrompesse esse fluxo
de criação de valor, impedindo-o de realizar lucros. Por isso, o juro exigido pela
espera do pagamento era como que uma indemnização (tantundem) ao
credor/comerciante pelo que ele poderia ter ganho se tivesse recebido o dinheiro
antes2994 (“lucro cessante”2995). Daí que a prova que era preciso fazer para se
justificar o juro era a de que aquele comerciante concreto, se tivesse tido aquele
dinheiro nas mãos, teria comprado coisas que, naquelas circunstâncias de mercado,
teriam dado certo lucro2996. Ou seja, o lucro – e, logo, o juro - não se podia estimar
em abstrato nem fixar-se numa quantia certa, pois variava com o tempo e o
lugar2997.
§ 1728. Nestes termos – apesar de tudo, limitados –, o dinheiro dado, entre
comerciantes, sob certo juro, “à rezam de juro”, não constituía usura reprovada2998.
§ 1729. Outro negócio próprio dos comerciantes e em que também se
verificava algum excesso entre a quantia a pagar e a quantia originalmente devida
era o contrato de câmbio.
§ 1730. O contrato de câmbio2999 era o contrato pelo qual alguém se
comprometia a fazer pagar a outrem, em lugar diferente, uma certa quantia, dando
uma correspondente ordem de pagamento expressa num escrito formal (carta ou
letra de câmbio).
§ 1731. Originariamente, o contrato de câmbio destinava-se a resolver o
problema da distância entre o devedor e o credor, bem como, eventualmente, o da
diversidade de moedas. Para isto, o devedor (“sacador”, “passador”, scribens) dava
uma ordem (“saque”) a um seu correspondente numa praça estrangeira (“sacado”),
pelo qual este deveria pagar certa soma, à vista 3000, num certo prazo ou numa data
fixada na letra, ao credor do devedor designado na letra (“tomador”, “cobrador”,
recipeins). A ordem devia ser aceite pelo sacado (“aceite”). O beneficiário da letra
podia, por sua vez, ceder a terceiros os seus direitos de receber aquela quantia, por
meio de uma transferência de crédito, escrita sobre a letra, a que se chamava
“endosso” (ou “pertence”). Uma vez aceite a ordem pelo sacado, este ficava a ser o
primeiro responsável pelo pagamento, liberando/exonerando o sacador. Não se
verificando o aceite, o tomador devia denunciar formalmente este facto mediante
2993 A análise clássica da figura do comerciante é a de Werner Sombart (1863-1941): Der moderne
Kapitalismus. Historisch-systematische Darstellung des gesamteuropäischen Wirtschaftslebens von seinen Anfängen bis zur
Gegenwart, 1916, reed. München, DTV, 1987; Luxus und Kapitalismus, München, Duncker &
Humblot, 1922.
2994 António da Gama, Decisiones […], cit., 110.
2995 Distinção entre dano emergente e lucro cessante em Miguel de Reinoso, Observationes […], cit.,
dec. 110, n. 18-19. Também era natural que se mantivesse nas ocorrências seguintes de uma feira,
Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 2.
2998 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 3.
505
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3001 O sacador ficava obrigado até ao aceite, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec.
126, n. 4-5. Na falta de aceite, o sacador ficava obrigado, Melchior Febo, Decisiones […], dec. 207.
3002 Melchior Febo, Decisiones […], dec. 217, n.6. Sobre o processamento das letras das praças do
norte da Europa (Holanda), Roma e do reino, ilhas e Brasil, “Estilos mercantis da Praça de Lisboa, e
Reyno de Portugal”, em Manuel Solano do Vale, Index […], cit., vol. 3, v. Mercatura, p. 271 ss.);
Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 4, ad. Ord. fil. 1, 51, gl. 4, cap. 4.
3003 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 336, n. 1.
3004 Melchior Febo, Decisiones […], dec. 203, n. 7; dec. 208, ns. 7-8.
3007 D.43.26, de precario, 1; C.8, 9, De precario et de Salviano interdicto; António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., s. v. “Precarium”, ns. 1 e 3; Álvaro Valasco, Tractatus de iure emphyteutico […], cit., p. 1,
qu. 34; Luís de Molina, Tractatus de iustitia […], cit., tract. 2, disp. 294 e 298; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 4, 2, 7.
3008 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 2, 7.
3009 Por isto se distinguia da doação que só excecionalmente podia ser revogada. Não se podia
506
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
convencionar a não revogabilidade do precário, por isso ser contra a natureza do contrato, António
Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Precarium”, n. 3.
3010 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Precarium”, ns. 3-4.
3014 “Depositum est illud quod custodiendum alicui datur, ut suscipiens, restituatur illammet rem,
quam susceperit”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 1. Fonte
romana: D.16, 3 Depositi vel contra; fonte de direito português: Ord. fil. 4, 49, 1. Bibl.: Luís de Molina,
Tractatus de iustitia […], tract. 2, disps. 522-527; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., 404 ss.; Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 8.
3015 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 1.
3017 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 406; chamava-se negócio fiduciário.
3018 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 3; s. v. “Sequestratio”;
tumulto; como medida de segurança da coisa (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 9).
3020 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 12.
507
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
irregulares3021.
§ 1741. Também a mulher ou as filhas podiam ser objeto de depósito, o que era
frequente na pendência de uma ação de separação, por exemplo por sevícias 3022.
§ 1742. O depositário tinha as coisas apenas para a sua guarda e não para as
usar; se as usasse contra a vontade do depositário, era obrigado pelo depósito (actio
depositi) e pelo furto (actio furti)3023. Devia restituir a coisa, quando pedida, não
gozando do direito de retenção (v.g. para ser reembolsado de despesas necessárias
feitas com a coisa)3024, nem podendo invocar nenhuma circunstância para se eximir
à restituição (v.g. a compensação)3025, já que o escrito de depósito tinha o valor de
título executivo a favor do depositante 3026. Nada podia alegar para impedir a
exibição e entrega, nem compensação, nem despesas. Esta obrigação estrita de
imediata restituição ainda podia ser reforçada pela inserção no contrato da clausula
depositaria, pela qual as partes convencionavam que não se ouvisse o depositário em
juízo antes de entregar a coisa ao depositante, embora fosse frequente que o
depositário obtivesse uma dispensa régia, para poder alegar em juízo antes de
efetuar a restituição3027. A falta de entrega originava a prisão do réu3028.
§ 1743. O depósito fazia-se, em regra, por comodidade do depositante. Este
facto, combinado com a circunstância de a propriedade da coisa depositada ficar no
depositante, ditava as regras da responsabilidade pela deterioração ou perda da
coisa. O depositário, simples possuidor gratuito, só respondia pelo dolo ou a culpa
grave (lata)3029. Já responderia também por culpa leve: se tivesse sido remunerado
ou se tivesse tirado vantagens do depósito, se isso tivesse sido convencionado, ou
se estava em mora3030. Se o contrato aproveitasse aos dois, o depositário respondia
por dolo e culpa, mesmo leve 3031. Se as coisas (v.g. trigo, vinho ou azeite) corressem
o risco de se deteriorar ou de se perderem (morrerem, no caso de animais), o
depositário devia comunicar ao juiz que receava pela corrupção ou morte; este,
tendo averiguado a situação (causa cognita), podia decidir da venda das coisas antes
que se estragassem ou perecessem, desobrigando-se o depositário pela restituição
do que obtivera na venda. De outro modo, seria responsável (por culpa) pelo valor
(aestimatio) das coisas3032.
3024 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 13.
3025 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], dec. 89, ns. 2 a 5; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p.1,
d.62
3026 A causa de depósito era sumária (Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 404; Álvaro
3030 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 6. Mas não já se a
coisa também se perdesse ainda que estivesse no depositante António Cardoso do Amaral, Liber […],
cit., s. v. “Depositum”, n. 7.
3031 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 8.
508
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
6.9.2.1.9 O mandato.
§ 1744. O mandato era outro contrato gratuito, pelo qual alguém cometia a
outrem a administração de um negócio seu 3033. Um exemplo notável é o do
mandato judicial, passado a advogados ou a outros procuradores judiciais e
extrajudiciais3034 3035.
§ 1745. O mandato devia ser cumprido segundo as instruções do mandante,
sem míngua nem excesso, mas podendo cumprir-se por forma equivalente. Era de
interpretação estrita, não se estendendo a casos não expressos, Aquilo que fosse
feito para além do que fora mandado era nulo e inexistente 3036. No âmbito das
instruções dadas, o mandatário devia desincumbir-se com cuidado e prudência, aliás
devia indemnizar pelos danos culposos que, se o mandato fosse gratuito, seriam
apenas os provenientes de culpa grave. O incumprimento doloso gerava infâmia,
pois correspondia a uma quebra intencional das instruções do dono do negócio.
Aquela margem de arbítrio que cada um tem em relação às suas coisas extinguia-se
se se tratava de coisas de outrem3037.
§ 1746. Podiam passar procurações ou mandatos todos os que pudessem
administrar os seus bens. Não podiam ser mandatários os menores de 25 anos, os
infames e os poderosos (Ord. fil.1,48, 19 ss.). O mandato especial exigia escritura
pública (Ord. fil.3,29), salvo no caso de mandantes nobres, para os quais bastava
escrito particular.
§ 1747. O mandato podia ser livremente revogado, enquanto as instruções não
tivessem começado a ser executadas (re integra), se o mandato fosse da exclusiva
utilidade do mandante, pois se também fosse da utilidade do mandatário (mandato
imperfeito) só podia ser revogado com o consentimento deste (Ord. fil.3,27;
1,48,9)3038. O mandato especial derrogava o mandato geral anterior3039. Sendo uma
comissão pessoal, o mandato cessava por morte do mandante, embora os efeitos
dos atos já realizados pelo mandatário se mantivessem 3040. No caso do mandato
3033 “Mandatum dicitur quando aliquis ad satisfactionem suae voluntatis aliquid imponit alicui, &
fit ad commodum mandantis, nam si esset ad utilitatem illius, cui mandatum commititur, non
dicerentur tunc mandatum, sed persuasio”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.
“Depositum”, n. 1; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 10.
3034 Sobre os advogados (C, 2, 7, De advocatis diversorum judiciorum; Ord. fil. 1, 48). Em Portugal,
tinham que ter uma licenciatura de cinco anos em Leis ou Cânones e fazer exame na Casa da Suplicação
(Ord. fil. 1, 48, 1). Na Casa do Porto e nas restantes cidades e vilas do reino eram admitidos por provisão
do Governador, corregedores e juízes, sem prévio exame (Ord. fil. 1, 48, 2-3). Os não letrados eram
admitidos a advogar por meio de uma licença ou provisão do Desembargo do Paço. Os advogados,
como mandatários, eram responsáveis por dolo, culpa ou ignorância ( Ord. fil. 1, 48, 10 e 17; Bento Gil,
Directorium […], cit.. Não venciam salário, mas honorários (v. Ord. fil. 1, 92; ordenação que estava em
desuso no séc. XVIII, em que o que pediam podia ser corrigido pelo prudente arbítrio do juiz, levando
em conta o valor da causa, a perícia demonstrada e o uso do foro). Era proibida a quota litis (Ord. fil. 1,
92, 11. Os procuradores (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 11) podiam ser judiciais ou
extrajudiciais.
3035 Cf. A terminologia jurídica usava também a palavra mandante no sentido do que mandava
outrem praticar um crime, v. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, ns. 2-6.
3036 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mandatum”, ns. 7-8.
3038 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mandatum”, n. 11.
3039 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mandatum”, n. 14.
3040 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mandatum”, n. 10.
509
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3041 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 12.
3042 “Permutatio est praestatio unius rei certae, pro altera certa [...] et est verbum generale
pertinens ad omnem contractum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Permutatio”, n.
1.
3043 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 4.
3045 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Permutatio”, n. 9: “solus consensus,
510
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3049 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n.; Ord. fil.4, 122.
3051 “Quaedam alienatio, qua dominium, & possessio rei venditae transfertur, per traditionem
ipsius dominii, vel si non est dominus vere, & realiter, usucapiendi conditio, tranfertur in ementem
soluto pretio”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 1. Nas coisas
“móveis” (nec mancipi, scl. menos importantes), dava imediatamente origem a uma ação para pedir a
coisa; nas coisas “imóveis” (mancipi, scl. mais importantes) punha o comprador na situação de poder
adquirir a coisa por usucapião e de usar a actio publiciana.
3052 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 125; Tomé Valasco, Allegationes […], all.
28, n. 48.
511
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
comércio com não cidadãos. Produzia efeitos tanto reais como meramente
obrigacionais. Quanto aos efeitos reais, dava origem a uma ação pretória, a actio
publiciana, para reclamar a coisa vendida de vendedor ou de um terceiro; esta ação
ficcionava que o comprador tinha a posse e que tinha transcorrido o tempo
necessário para a usucapião a favor dele; além disso, que gozava ainda de uma
replicatio doli para opor à exceptio iusti dominii eventualmente oposta pelo vendedor
que mantivesse a coisa consigo3053. Quanto a efeitos obrigacionais, gerava uma
ação – actio empti, inicialmente concedida, não pelo direito civil, mas apenas pelo
pretor peregrino, nos quadros do ius gentium3054 -, a favor do comprador para
obrigar o vendedor a indemnizá-lo pelo que correspondesse (id quod interest) aos
danos produzidos pelo incumprimento do contrato (ou vice-versa: actio venditi).
§ 1754. Com os progressos do consensualismo, a doutrina da segunda metade
do séc. XVIII começou a defender que nem a tradição da coisa nem o pagamento
do preço eram da essência do contrato. Para os racionalistas-consensualistas, a
venda perfazia-se pelo mero consenso, mesmo quando a coisa permanecesse na
posse do vendedor. Daí que o incumprimento dos deveres de entrega da coisa e de
pagamento do preço não anulassem a venda, mas gerassem ações visando o seu
efetivo cumprimento (actio empti, actio venditi).
§ 1755. A natureza consensual do contrato, para além de permitir – ainda que
com os limites da natureza do contrato – pactos modificativos do regime ordinário
da compra e venda, exigia que o contrato fosse livre. Excecionalmente, admitia-se
que se fosse obrigado a vender, por razões de interesse público (expropriação)3055;
mas já não se considerava necessário o consentimento de familiares na venda dos
bens de avoenga3056. Podiam comprar e vender todos os que podiam dispor dos
seus bens3057. Porém, o vendedor apenas podia vender coisas suas, de que pudesse
dispor, de acordo com o princípio de que ninguém podia transferir para outrem
mais do que aqueles direitos que tivesse 3058. Daqui decorriam várias consequências
(cf. D.19.1.1, pr.: “Ulpianus libro 28 ad Sabinum. Si res vendita non tradatur, in id quod interest agitur,
hoc est quod rem habere interest emptoris: hoc autem interdum pretium egreditur, si pluris interest,
quam res valet vel empta est”).
3055 Pode-se obrigar à venda, perante carestia ou extrema necessidade da república, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 78; v. Ord. fil. 4, 11. O príncipe podia
obrigar a vender, mesmo a preço mais baixo do que se comprou, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...],
cit., p. 2, dec. 94, n. 4 ss.. Por provisão régia também se podia obrigar alguém a vender a favor de
conventos, para que tivessem habitações mais cómodas e decentes, Jorge de Cabedo, Decisiones [...],
cit., p.1, dec. 105, ns. 1 a 5; o mesmo para melhorar uma igreja (v.g. venda de servidão altius non tollendi,
permitindo à igreja ultrapassar a altura de edifícios vizinhos). Mais tarde, estabelecem-se casos de venda
forçada da propriedade ou de servidões no interesse dos prédios confinantes ou encravados que
carecessem de serventia (alvs. 9.7.1773 e 14.10.1773, Dec. 17.7.1778). Estas vendas forçadas deviam
respeitar o justo preço, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 105 (per totam); também, em
geral, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 22, n. 1 ss..
3056 Ord. fil.4, 11, pr..
3057 Exceção: salvo juízes e oficiais não perpétuos, na área da sua circunscrição: Ord. fil.4, 15.
3058 “Nemo potest plus iuris in alienum transferre quam ipse habet in re vendita”, António
512
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
práticas: a venda de coisa comum não valia a não ser na parte do vendedor 3059; não
valia a venda pelo marido de coisas imóveis da mulher3060, o mesmo acontecendo
da venda pelo pai das coisas dos filhos 3061. Em alguns casos, porém, o não dono
podia vender: tal era o caso da venda de coisa do menor com mandato do juiz ou
da venda de bens do devedor feita pelo executor judicial3062. Por vezes havia
inabilidades relativas: o pai não podia vender aos filhos que estivessem sob o seu
pátrio poder, pois se tratava de um negócio como que consigo mesmo; em geral,
qualquer venda feita a um filho carecia do consentimento dos outros, mas, neste
caso, por suspeita de esconder uma doação que prejudicasse as legítimas destes
últimos3063.
§ 1756. Como a coisa devia pertencer ao vendedor, este respondia pela
legitimidade dos seus direitos sobre ela perante o comprador de boa fé 3064 (garantia
da evicção)3065. A evicção era da natureza do contrato de compra e venda3066, não
podendo o comprador renunciar a esta proteção3067. Por isso, sendo a coisa vendida
reclamada por outro como seu dono (ou seu enfiteuta ou seu credor
hipotecário3068), o comprador3069 devia denunciar este facto ao vendedor3070, para
lhe ser concedida uma ação de evictione, pelo preço pago e pelas despesas que tivesse
tido que fazer na manutenção ou melhoramento necessário da coisa comprada
(deduzidos os frutos recebidos3071), ou uma ação quanti minori para poder repetir
uma parte do preço correspondente à desvalorização da coisa proveniente dos ónus
omitidos pelo vendedor3072. Porém, esta garantia – bem como a possibilidade de
3059 Nem prejudicava o sócio, a não ser pela usucapião do comprador de boa fé, que atingia a
coisa por inteiro, uma vez que a usucapião era indivisível (“nemo pro parte usucapire potest”), António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 14. Nas sociedades de comerciantes,
porém, um podia vender mais do que a sua parte, se se entendesse que isso cabia nos seus poderes de
gestão (v.g. se os sócios comerciassem cada um em seu lugar ou se as coisas vendidas fossem as que
faziam parte do negócio, rei venales).
3060 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 64 (Ord. fil.4, 48).
3061 O filho pode pedir a revogação António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-
venditio”, n. 65.
3062 Em ambos os casos, as vendas deviam ser feitas em leilão (subhasta), para garantir as melhores
condições de preço; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, ns. 40-41.
Sobre a venda por leilão, v. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Venditio”, nº 2008; também v.
“Subhastatio”.
3063 Ord. fil.4, 12; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 66;
3066 Mas também existia na troca ou na enfiteuse, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Emptio-venditio”, n. 23.
3067 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 21.
3068 Nestes casos, entendia-se que existiam direitos reais que comprimiam o direito de propriedade
do vendedor e que, portanto, faziam com que a coisa vendida não fosse integralmente sua, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 24.
3069 Ou o credor, no caso da dação em pagamento, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Emptio-venditio”, n. 24.
3070 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 21; no caso da
venda judicial, o obrigado à evicção era o devedor, dono do património a ser vendido, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 25.
3071 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 26.
3072 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 59-60.
513
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3073 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 10. A usucapião
da integralidade da coisa também era possível a favor do adquirente de boa-fé de uma coisa sobre que
recaísse um ónus (v.g. pensão, servidão, fideicomisso), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Emptio-venditio”, n. 7.
3074 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 5.
3075 E, sendo a coisa roubada, o comprador que o soubesse ficava suspeito de participação no
3077 Não estavam no comércio: as coisas sagradas e as espirituais António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 2 (v. também António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Emptio-venditio”, n. 73); as que estivessem reservadas para o uso da República (deputatae usui
reipublicae, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 74). Também as
coisas públicas ou as comuns a todos estavam fora do comércio.
3078 Ord. fil.4, 10.
3079 Assim, a venda de uma renda anual por uma vida era lícita, Melchior Febo, Decisiones […],
cit., dec. 201, n. 14. A doutrina considerava que a venda do usufruto correspondia a uma locação,
Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 75, n.10.
3080 Ord. fil. 4, 14.
3081 Ord. fil.1, 80, 20; 1, 96; v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 8, 22, 24 e 25.
3082 Sobre a compra e venda de escravos: Luís de Molina, De iustitia […], cit., liv. 2, disps. 336-
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 44. Mas se alguém tomasse um homem
livre e o vendesse incorria em pena de morte, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Emptio-venditio”, n. 45.
3084 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 50.
514
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3089 O conceito de fundus instructus servia para designar a universalidade de coisas que aparelhavam
3092 Havendo acordo do senhorio. Este era o uso, embora, por direito rigoroso, a venda não
devesse exceder a vida do vendedor, v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-
venditio”, n. 76.
3093 Ord. fil. 4, 22.
3094 Podia, no entanto, ser deixado a arbítrio de terceiro (Ord. fil. 4, 1, 1; 4, 2, pr.).
3096 Sobre o preço, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1990; João Baptista Fragoso, Regimen
[…], p. 1, liv. 7, disp. 19, §§ 2-3); Ord. fil. 4, 20 (preço do trigo). “Iustum pretium ex communi
aestimatione hominum consensum”, v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 43, 1 (mas toda a
decisão é sobre o tema); seriam justos os preços do mercado ao tempo do contrato (ibid. n. 2), os
fixados em leilão (Melchior Febo, dec. 201, ns. 18-19) ou os taxados (Jorge de Cabedo, Decisiones [...],
cit., p. 2, dec. 92; v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., 44, n. 1 ss.; por exemplo, o preço do peixe,
fixado pelos almotacés, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1992); o preço justo era um padrão
geral, que não tinha em consideração o preço de custo daquela coisa ou as despesas que ela deu (Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 43, n. 6 ss.).
3097 Sempre que fosse inferior a metade, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Emptio-venditio”, n. 59.
3098 Ord. fil. 4, 13, 1; C.4, 44 De rescindenda venditione, 2.
3101 Por se entender que havia dolo do contraente lesante, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
515
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
natural e, por isso, era irrenunciável e invocável durante 15 anos 3102, levando à
nulidade do contrato3103.
§ 1761. A compra e venda podia ser acompanhada de pactos adicionais 3104,
desde que estes não fossem contra a natureza do contrato. Entre estes, o pacto de
espera do preço, muito comum na compra de géneros agrícolas, a pagar quando se
verificasse uma receita do lavrador (venda na feira ou venda da próxima
colheita)3105; o pacto de retrovendendo, pelo qual o comprador se comprometia a
devolver a coisa comprada e a receber de novo o preço por ele pago 3106; a addictio in
diem, que permitia ao vendedor a adjudicação da coisa a outrem no caso de este
cobrir a oferta do comprador inicial até um certo dia; o pacto comissório (lex
commssoria), que autorizava o vendedor à rescisão do contrato e à recuperação da
coisa se o preço não fosse pago dentre de certo prazo 3107; pacto de protimense (de
prelação), que dava ao vendedor (ou a terceiro) o direito de preferir, preço por
preço, na revenda da coisa 3108; o pacto de venda a contento, consistindo numa
3103 Ord. fil.4, 13, ult. com a consequente restituição dos frutos da coisa desde o momento da
perfeição do contrato. Pascoal de Melo preferia um regime restritivo da relevância da lesão, limitado à
rescisão do contrato com efeitos ex nunc (somente a partir da invocação da lesão); mas reconhecia que
essa não era a tendência do foro (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 17).
3104 Ord. fil.4, 4, pr.. Alguma doutrina limitava a validade destes pactos a 30 anos, v. António da
frequentemente negócios usurários. O prestamista ficava com uma coisa daquele que necessitava de
dinheiro, até que ele pudesse pagar, lucrando, ou com os frutos da coisa ou com a diferença para
menos entre a quantia emprestada (o preço pago) e o valor real da coisa, com a qual ficaria se o devedor
não a pedisse de volta (v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 53)
ou com a diferença para mais entre o preço (simulado) que tivesse sido (falsamente) declarado, mais alto
do que a soma efetivamente dada pelo comprador ao vendedor, e que era o que o vendedor teria que
devolver ao comprador (v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n.
57). Cf. exemplo de pacto de venda de terra de trigo por 200 cruzados, podendo o vendedor desfazer a
venda e recobrar o preço durante 5 anos, mas não antes de dois anos; os juros eram os frutos, ou a
diferença entre o preço pago pelo comprador e o valor da terra daí a 5 anos (Álvaro Valasco, Decisiones
[...], cit., cons. 41); se o preço fosse inferior num quarto do valor seria usura (António da Gama,
Decisiones […], cit., dec. 82). Presumia-se que se tratava de um contrato usurário se o comprador fosse
usurário habitual, v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 53. Pelo
direito do reino (Ord. fil. 4, 4, 1) a venda a retro com diminuição do preço presumia-se usurária; esta
ordenação era contrária ao direito comum, pois este era mais exigente, requerendo três circunstâncias:
preço (simulado) inferior ao preço justo, pacto de reversão e compra por usurário habitual; por isso,
esta ordenação só se deveria observava no foro secular, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Emptio-venditio”, n. 53-56; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 154, n. 34. Se a venda não
fosse usurária, o vendedor que pudesse reverter a venda gozava de uma reivindicativo (também contra
terceiro a quem a coisa tivesse sido vendida, v. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 15,
n. 6), logo que restituísse o preço, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-
venditio”, ns. 53 e 56. Sendo usurária, o vendedor mantinha sempre a possibilidade de reivindicar a
coisa, pois, como o contrato era nulo, teria mantido sempre a propriedade dela (Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons 70, ns. 8-9).
3107 Ord. fil.4, 5, 3; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 58.
516
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
cláusula de rescisão caso a coisa não agradasse ao comprador 3109; o pacto de que o
comprador não pagasse as pensões devidas e já vencidas que onerassem o
prédio3110; o pacto constitutum, pelo qual o vendedor vendia com uma obrigação para
o comprador (por exemplo, manter os arrendatários do prédio vendido) 3111. Todos
estes pactos vinculavam, devendo ser cumpridos, sempre que não contrariassem a
natureza do contrato3112.
§ 1762. Como o contrato era consensual, o documento escrito não era da
substância do contrato3113. No entanto, as Ordenações exigiam a escritura pública
para que se pudesse provar a aquisição de bens móveis de valor superior a 60 000
reis e de bens imóveis que valessem mais de 4 000 reis 3114. Como esta ordenação
era contrária ao direito comum, só se aplicava no foro secular 3115.
§ 1763. O erro substancial3116 anulava a venda.
§ 1764. O contrato podia ser anulado, invocando coação ou dolo, por mero
acordo antes da perfeição do contrato3117. A venda com intenção dolosa ou
fraudulenta do comprador era nula, não podendo o comprador sequer adquirir a
coisa por usucapião, nem mesmo de longo tempo 3118; o contrário, se dolo e fraude
tivessem sido do vendedor3119. A venda feita em fraude dos credores valia, mas
podia ser revogada a pedido destes 3120. A venda feita em fraude da república não
valia, perdendo o comprador de má-fé a coisa e o preço3121.
§ 1765. O regime do contrato de compra e venda decorria, em grande parte, do
que se entendia ser o momento da perfeição do contrato. Se se entendesse que o
contrato apenas se efetivava pela transferência mútua da coisa (traditio) e do preço,
o risco e as utilidades da coisa corriam pelo vendedor – como dono da coisa -
enquanto a entrega não se desse. Mas, feita a entrega, ainda que o preço estivesse
por pagar (como nas vendas com espera de preço), o risco, tal como os cómodos,
3109 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 51; normalmente
a rescisão devia ocorrer num prazo fixado; se o prazo não estivesse expresso, valia por 60 dias.
3110 Mas não as futuras, porque isso equivaleria a vender o prédio livre, quando ele era onerado (v.
3112 Tal seria o caso de um pacto que autorizasse qualquer dos contraentes a rescindir livremente o
contrato (v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 59-60); ou aquele
que condicionasse a validade do negócio ao arbítrio de um dos contraentes (a venda sob condição do
outro querer, si volueris, é nula, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 222, n. 6; v. Ord. fil.4, 1, 1).
3113 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 37. Cf. porém,
3115 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 37.
3116 Isto é, sobre circunstâncias que levariam a não vender ou não comprar e não apenas a não
vender ou a não naquelas condições, v.g. erro sobre a identidade e as qualidades decisivas da coisa
vendida; mas não já sobre o preço, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-
venditio”, n. 12.
3117 V. Ord. fil.4, 2, 3; Ord. fil.4, 19, 1.
3120 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, ns. 8, 62.
3121 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, ns. 43, 62.
517
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
corriam pelo comprador, apesar de este não ter ainda pago 3122. Se se entendia que o
contrato ficava perfeito no momento da convenção, ainda que a coisa vendida se
mantivesse na posse do vendedor (consensualismo), tanto o risco como as
comodidades da coisa (nomeadamente, os seus frutos) eram do comprador, como
novo dono3123. As soluções para que apontava a doutrina seiscentista e setecentista
eram mais frequentemente coerentes com a ideia de que a perfeição correspondia
ao momento da entrega3124. Rescindido o negócio (por exemplo, por lesão apenas
enorme; ou por erro), o comprador tinha direito aos frutos que colhera na
pendência, bem como a indemnização pelas despesas necessárias e úteis feitas na
manutenção da coisa e seu melhoramento 3125.
§ 1766. O vendedor garantia o comprador, quer quanto à propriedade da coisa,
quer quanto às suas qualidades. Assim, era obrigado pela evicção ou seja, no caso
de um terceiro reclamar a coisa vendida alegando que ela era sua. E também pelos
de vícios ocultos (isto é, não visíveis nem comunicados pelo vendedor 3126) da coisa,
como as doenças ou manhas dos animais (animais doentes, fémeas estéreis, cavalos
assustadiços, bois bravos3127), caso em que tinha que aceitar a devolução da coisa e
a restituição do preço ou respondia por uma ação (actio redhibitoria) pela diminuição
do preço equivalente ao defeito3128. No direito romano, a ação redibitória era uma
ação pretória, cujo fundamento era a falsidade ou omissão dolosa quanto aos
vícios3129. O réu era condenado naquilo em que o comprador tivesse sido
prejudicado (quanti minoris ou id quod interest)3130. O comprador podia ainda usar a
actio ex empto, para reclamar do vendedor doloso o preço pago por uma coisa
defeituosa. No período do direito comum, de que aqui se trata, estas distinções
eram irrelevantes, porque o autor não tinha que indicar no libelo o nome da ação
(cf. 7.1.9.2); em todo o caso, a doutrina continua a discutir o nome da ação,
nomeadamente porque elas tinham diferentes prazos para serem intentadas (a actio
ex empto só prescrevia depois de 30 anos; mas as ações pretórias - actio redhibitoria e
quanti minoris - prescreviam muito antes, 6 meses ou um ano) 3131. A
3122 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, ns. 38-39.
3123 V. Ord. fil.4, 8; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 16.
3124 Por exemplo, Jorge de Cabedo defendia que, se se vendesse uma coisa por medida (por
exemplo, vinho; mas também uma área de terreno), o risco corria pelo vendedor, até à medição e
especificação, Jorge de Cabedo, Decisiones [...]. p. 1, dec. 102, n. 2; também António da Gama,
Decisiones […], cit., dec. 211, n. 3.
3125 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 161.
3126 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 61. Presumia-se que
o comprador ignorava as obrigações da coisa, se não fossem expressamente anunciadas pelo vendedor,
Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 115, n. 33. Mas se o comprador cientemente comprasse uma
coisa onerada (v.g. fiduciária) não podia acionar o vendedor pelo prejuízo (id quod interest), António da
Gama, Decisiones […], cit., dec. 20, n. 1.
3127 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 2007 (v. “Venditio quoad evictionem”). Sobre se
o escravo que está fugido dá lugar a evicção, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 41,
n. 1.
3128 Ord. fil.4, 17.
3129 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 74 (per totam).
3130 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 74, ns. 19 a 24.
3131 v. Nunzia Donadio, “Qualità promesse e qualità essenziali della res vendita: il diverso limite tra
la responsabilità per reticentia e quella per dicta promissave nel ‘diritto edilizio’ o nel ius civile”,
http://www.teoriaestoriadeldirittoprivato.com/index.php?com=statics&option=index&cID=129)].
518
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3132 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., decs. 74, 29-30.
3133 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 16.
3134 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, ns. 17-18 (o mesmo na
enfiteuse e no arrendamento de longo tempo [locatio longi temporis, em que se entendia que também havia
uma transmissão de uma parte do domínio, como na enfiteuse]); mas, segundo a melhor opinião, não
no arrendamento de pouco tempo, pois, in puncto iuris, o locador não transferia o domínio para o
locatário, ficando sempre o domínio no locador, pelo que a segunda locação era feita a domino, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 17). Na venda do senhorio útil da
enfiteuse, havia ainda que considerar em qual das vendas tinha o senhor consentido, preferindo esta,
como primeiro critério, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 18.
3135 Mas o vendedor respondia sempre pela frustração (id quod interest) da venda que não pudesse
espera de preço, passado o prazo para pagar, o vendedor podia pedir o preço ou a coisa, ibid..
3137 Quanto às sisas: Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Venditio”, n. 2021; também v.
“Gabella”. Contratos de que se pagavam sisas, v. Artigos das sisas, de 27.9.1476 (em José Roberto […]
Soisa, Systema […], cit., vol. 1, cit., pp. 205); António de Sousa de Macedo, Decisiones […], cit., decs.
72-73.
3138 Nos arrendamentos rústicos.
3139 Nos arrendamentos urbanos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio
conductio”, n. 32.
3140 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 1. O contrato fora,
originariamente, de direito das gentes, não formal e de boa-fé (António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 10).
519
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
coisas locadas, mas outras do mesmo género 3141. Por outro lado, como se entendia
que a cedência do uso da coisa por mais de dez anos correspondia à transferência
do domínio (útil), a locação por período superior a 10 anos equivalia a um contrato
enfitêutico, em que se dividia o domínio e se cedia o domínio útil ao locatário,
retendo o locador o domínio direto3142. Também se entendia que a cedência em que
a renda consistisse numa parte dos frutos (“parceria”) devia ser tratada como
contrato de sociedade e não como locação 3143.
§ 1771. O objeto da locação podiam ser coisas móveis3144 ou imóveis3145, mas
também serviços (locação de serviços, locatio conductio operarum)3146 e direitos3147. As
servidões reais (res servit rei) não se podiam arrendar porque eram inseparáveis do
prédio servido; mas, arrendado este, elas eram transferidas para o locatário.
§ 1772. Podiam locar-se todas as coisas que se podiam vender, pois se tratava
de contratos similares3148. Tratando-se de locação de serviços, estes tinham que ser
lícitos e honestos.
§ 1773. Valia na locação a regra de que ninguém podia transferir para outrem
mais direitos do que os que tivesse. E, por isso, bispo ou beneficiado não podiam
arrendar perpetuamente ou por longo tempo 3149 os bens, rendimentos, ou direitos
de uma igreja ou mosteiro3150; também a locação feita pelo usufrutuário se extinguia
com a sua morte3151. Já o herdeiro do locatário podia suceder-lhe na locação3152.
§ 1774. Embora a locação incidisse sobre um objeto certo, havia coisas que
eram universalidades reais, de tal modo que locada a coisa principal se entendiam
locadas as coisas ou utilidades anexas. A concretização deste princípio dependia, no
entanto, do convencionado, bem como de usos locais. Assim, a doutrina
portuguesa entendia que, arrendado um terreno, não eram arrendadas as árvores aí
existentes3153; mas, em contrapartida, o arrendatário podia vender pedras e barro,
ordenação Ord. fil.4, 69 proibia estes contratos, decerto por suspeita de serem usurários).
3145 O atual arrendamento.
3147 Por exemplo, o arrendamento de ofícios (serventias de ofícios) ou o direito de cobrar tributos
3149 Dez anos ou mais, porque o arrendamento de longo tempo (locatio longi temporis) – ou
renovável de modo a ultrapassar este período (cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Locatio conductio”, n. 9) - equivalia à alienação do domínio útil, sendo que a alienação não cabia nos
poderes de um administrador, como o bispo em relação aos bens da igreja.
3150 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, ns. 7-8.
3151 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 5. O mesmo
acontecia com a morte do administrador do morgado e do donatário de bens da coroa, Álvaro Valasco,
Decisiones […], cit., cons. 186, n. 13.
3152 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 5.
3153 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 26.
520
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
pelo menos até um limite não abusivo, estimado por um homem bom3154.
§ 1775. O arrendamento era consensual, exceto se a renda excedesse a soma de
30 000 moedas, caso em que carecia de escritura pública3155. A entrega das chaves
efetivava a tradição3156.
§ 1776. O locador ficava obrigado pelos danos (id quod interest) causados por
vícios ocultos da coisa locada de que tivesse ou devesse ter conhecimento e de que,
portanto, devesse notificar o locatário. Assim, o locador de vasilhas ficava
obrigado a satisfazer pelos danos se o vinho tivesse azedado ou o azeite vertido por
defeito das pipas ou dos cântaros. Mas as fontes doutrinais atenuam a
responsabilidade do locador no caso de arrendamento de uma pastagem em que
houvesse ervas venenosas, apenas obrigando a não cobrar a renda3157.
§ 1777. O locatário, por seu turno, era obrigado à restituição pontual e integral
da coisa, não podendo sequer pôr em causa a propriedade do locador sem efetuar a
prévia devolução3158. Portanto, não a podia alienar (v.g. vender ou penhorar, pois
não tinha propriedade sobre ela), embora a pudesse arrendar para igual uso, se
outra coisa não tivesse sido estipulada3159. Quanto aos danos, o locatário era
responsável pela deterioração dolosa ou danosa da coisa, mas não por culpa
levíssima ou por caso fortuito3160. Assim, se o colono colhesse, ainda verdes, os
frutos que de outro modo seriam colhidos pelo locador depois do termo do
contrato, responderia pelo dano; o mesmo, se deixasse de cultivar o prédio, com
prejuízo deste3161.
§ 1778. Sendo vários os locatários de uma mesma coisa, cada um respondia por
uma parte alíquota das obrigações contratuais (responsabilidade conjunta) 3162.
§ 1779. O arrendatário podia reclamar do senhorio as despesas necessárias e
úteis feitas no prédio, gozando do direito de retenção da coisa locada até ser
indemnizado3163.
§ 1780. Como não detinha a posse em nome próprio, mas em nome do
proprietário locador, nem o colono nem o inquilino podiam adquirir a coisa locada
por usucapião (a não ser que se tivesse invertido o título de posse – i.e. modificada
razão jurídica pela qual o possuidor detinha a coisa)3164; um caso de inversão do
título de posse decorria do pagamento da renda por um período longo, o que
3154 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 93, n. 1.
3155 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., 1088.
3156 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., 1094.
3157 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 12.
3158 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 15; Ord. fil. 4, 54,
3.
3159 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 14.
3160 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 13.
3161 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 18.
3162 “Unusquisque et non unus pro alio”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
521
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
gerava a presunção de que a terra não estava arrendada mas dada em enfiteuse3165.
§ 1781. A renovação da locação fazia-se tacitamente, se o locatário continuasse
na posse da coisa3166, com conhecimento do dono, depois de findo o prazo 3167.
§ 1782. O arrendatário podia ser despejado antes do termo do contrato apenas
nos quatro seguintes casos: (1) se o locador tivesse uma necessidade superveniente
e inesperada de habitar a casa arrendada3168; (2) se a casa arrendada passasse a
ameaçar ruína, a ponto de carecer de reparação indispensável 3169; (3) se o locatário,
inesperadamente3170, usasse a coisa de modo a que esta sofresse deterioração (física
ou de valor)3171; (4) se, no caso de arrendamento por mais de cinco anos 3172, o
arrendatário não tivesse pago a renda durante dois anos ou, sendo o arrendamento
por menos tempo, se não a pagasse pontualmente. A doutrina acrescentava a estes
casos enumerados na lei, mais uns quantos extraídos de princípios gerais. Tal eram
os casos em que o locador adquirisse um estado que exigisse morada mais digna
(v.g. de cavaleiro, de doutor, de advogado, de presbítero), em que um filho ou filha
casassem, em que a casa em que habitava ameaçasse ruína, em que a guerra ou a
peste obrigassem o senhorio a deixar a sua casa3173 3174. Mas ainda (Barbosa, cit. n.
12) se na casa ocorriam situações que assustassem os vizinhos (v.g. almas penadas
ou zaragatas, tetris imaginibus vel tumultis). Devia ser dado algum tempo ao inquilino
para se realojar (Barbosa, cit. n. 11).
§ 1783. Também o locatário podia, em alguns casos, pôr termo ao contrato ou
reduzir a renda. Em geral, o contrato de locação era rescindido a favor do locatário
se este não pudesse tirar partido da utilidade da coisa, por razões que lhe não
fossem imputáveis3175. Os exemplos habituais nas fontes são o não uso de uma casa
3165 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 19.
3166 No caso da prestação de serviços, se os serviços continuassem a ser prestados ao seu tomador,
com conhecimento deste.
3167 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 17; com base em
Ord. fil.4, 23, a doutrina entendia que, no arrendamento de casas, se dava a renovação tácita do
contrato; o que era o contrário da regra de direito comum (v. Gabriel Pereira da Castro, Decisiones […],
cit., dec. 98, n. 2). Sobre o aluguer de casas, Ord. fil.4, 23-24.
3168 Por exemplo, se casasse. Só se aplicava ao arrendamento de casas, mas não de prédios
rústicos (Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 4, n.7). Mas entendia-se não valer nas
casas arrendadas a estudantes (Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 24, n.7).
3169 Neste caso, o arrendatário devia ser readmitido depois das obras.
3170 Manuel Barbosa seguia a opinião de que não podiam ser despejados os estudantes que
metessem prostitutas nas casas arrendadas, porque isso não seria nem novo nem inusitado (Manuel
Barbosa, Remissiones [...], cit., v. 4, ad Ord. fil.4, 24, n. 5), a não ser que se pusesse em risco a honra do
senhorio ou o sossego dos vizinhos.
3171 Exemplos das fontes: meter na casa arrendada mulheres de má vida ou ladrões, meter porcos
nas eiras, cortar árvores, não fazer reparos ou colheitas nos tempos devidos. Nestes casos, o locatário
responderia ainda pelos danos causados.
3172 Jorge de Cabedo diz que, nos arrendamentos eclesiásticos, o despejo era legítimo se o
arrendatário falhasse dois anos de renda; nos temporais, só com três rendas anuais em falta. Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 92 n. 4.
3173 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 20.
3174 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 24, 8-9.
3175 Se a culpa do não uso fosse do locador, este ainda tinha que indemnizar o locatário pelo dano,
522
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3176 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 21.
3177 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, ns. 22-22. A remissão
ou redução da renda devia ser pedida antes da colheita, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Locatio conductio”, n. 22.
3178 V. Ord. fil.4, 27, 1.
3180 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 27, n.3.
3182 Salvo no caso de colono da igreja, que devia ser mantido, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,
3184 Salvo se outra coisa tivesse sido convencionada (“arrendo enquanto não venda”). No
arrendamento de longo tempo, a venda não prejudicava o domínio útil, que se entendia ter sido
transferido para o locatário, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n.
27. Também a venda em hasta pública não poria termo aos arrendamentos preexistentes (Bento Pereira,
Promptuarium [...], cit., 1094; Miguel de Reinoso, Observationes […], obs. 35, ns. 2-3).
3185 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 76.
523
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
filhos e enteados, dos que viviam por favor no âmbito da casa) ou era prestado
como uma troca de favores entre vizinhos (facio ut facias, facio quia fecistis).
§ 1786. Assim, nem toda a prestação de serviços dava direito a uma
recompensa: os meninos só tinham direito a ser pagos depois dos catorze anos
completos (Ord. fil.4,31,8)3187; os aprendizes não tinham que ser pagos pelo trabalho
prestado3188; os criados de estudantes a quem tivesse sido dado tempo para estudar
não venciam salário3189; as moças recolhidas em conventos e que aí trabalhassem
não eram remuneradas3190; os criados admitidos sem necessidade do patrão e
apenas por instâncias deles próprios não ganhavam salário até que o patrão tirasse
deles algum proveito3191; os cantores, músicos, contadores de histórias, lutadores,
bobos, que se exibiam para divertir o senhor, não tinham salário, a menos que isso
fosse convencionado, bastando que se lhes desse de comer, cama e roupa 3192; os
enteados apenas deviam vencer metade dos salários prestados a seus padrastos ou
madrastas, pois a outra metade corresponderia a deveres domésticos3193; não se
deviam salários a quem não costumasse fazer trabalho mercenário 3194.
§ 1787. Dos que trabalhavam para outros, a situação mais dura era a dos criados
domésticos. A própria terminologia (“servo(a)”, “servir”) aproximava a situação
dos criados da dos escravos. Enquanto que o trabalhador diferenciado, cujo
trabalho supunha o domínio (mestria) de uma arte, era designado pela palavras
“artífice” ou “mestre”, o trabalhador indiferenciado era o “mecânico” (mechanicus)
ou “obreiro” (operarius). Mas o criado doméstico era o servo, próximo do escravo.
De facto, no latim, a palavra servus (ou famulus) designava uns e outros, assim como
a palavra dominus era usada tanto para o dono (proprietário) como para o senhor
(patrão). Embora as Ordenações garantissem a liberdade de trabalhar (Ord.
fil.4,28)3195, a lei e a doutrina estabeleciam regras bastante draconianas sobre os
deveres dos criados quanto ao cumprimento dos seus deveres de serviço. Uma
delas era a de que os criados mecânicos tomados por certos anos, se fugissem,
servissem outros tantos anos, se o senhor assim quisesse 3196. Também era proibido
por lei o trabalho sem paga (Ord. fil.4,29). Mas a ordenação bastava-se com um
3187 Ord. fil. 4, 31, 8; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 n. 162, n. 5. As moças ganhavam a
aos autores, o tema dos criados dos estudantes – que por vezes também eram estudantes – era bastante
tratado pela doutrina, com expressa referência aos costumes de Coimbra: em Coimbra, os criados
(estudantes) dos estudantes tinham direito a ficar com o calçado que os patrões lhes dessem, Manuel
Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad 4, 29, pr..
3190 Melchior Febo, Decisiones […], cit., p. 1, aresto 49.
3193 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 32; Miguel de Reinoso, Observationes […], cit.,
tanto tempo, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil. 4, 28.
3196 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., dec. 155, n. 2.
524
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3197 Valiam aqui os princípios da lesão, pelo que o contrato podia ser anulado se o salário fosse
inferior a metade do salário justo, ou o patrão acionado pelo que faltava (Cf. Manuel Barbosa,
Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil. 4, 31, 9, n. 3).
3198 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil. 4, 19, 1, n. 4.
3199 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil. 4, 31, 10-11.
3200 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 27, ns. 7-8.
3201 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Salarium”, ns. 2 e 7. Sobre os tempos e
condições dos pagamentos de salários, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, per totam.
3202 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Salarium”, n. 3, Jorge de Cabedo,
3204 Sobre a ordem de pagamento dos tesoureiros régios, António de Sousa de Macedo, Decisiones
[…], cit., dec. 79; se os assentamentos eram de salários; se se podiam prejudicar os salários assentados
por novos assentamentos, ibid. decs. 84, 85, 87.
3205 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, ns. 3-4.
3207 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Salarium”, n. 10; mas não dependia do
êxito da cura, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 245, ns. 1-2 e 5; devia tratar os
pobres de graça, ibid. n. 4.
3208 A não ser que o trabalhador prestasse, nessas circunstâncias, os serviços a outrem, António
3210 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 dec. 8, n. 30. Já o desembargador, segundo o
525
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3211 Os oficiais públicos podiam ser removidos por faltas, perdendo os respetivos salários, Jorge
3213 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, n. 9 (“non stetit per eum quominus ad
solvere, si certo faciat sibi deberi, & debitum in rei veritate sit liquidum, & via iustitiae non potest
recuperare, vel quia deficiunt probationes, vel quia expendet magis, quam sibi debetur de salario,
potest cum bona conscientia suum salarium recuperare de bonis domini, veluti ea oculte, et sine
scandalo auferendo resoluit [...] etiam elapso trienio posse tuta conscientia hoc facere”, Manuel Barbosa,
Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 32, n. 3.
3217 Só valia para criados, mas não para os que servissem a outro título, Gabriel Pereira de Castro,
Decisiones […], cit., dec. 46, 2 ss.; não valia se o prazo fosse interrompido, se se tivessem feito contas
ou se o pagamento tivesse sido prometido por escrito [tratava-se apenas de uma presunção de
pagamento], ibid. ns. 4 ss..
3218 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 dec. 167, n. 6.
3219 Estes teriam uma hipoteca tácita sobre a soma paga, com direito de prelação, Gabriel Pereira
plures, ob commodiorem usum et uberiorem quaestum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
526
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
s. v. “Societas", n. 1 (fonte: D. 17, 2, Pro socio; Ord. fil.4, 44); “a sociedade é um contrato de obrigações
recíprocas pelas quais todos se obrigam por facto de um”, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec,
198, n. 3.
3221 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 3.
3222 “Societas rei turpis non obligat”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 32-33. V.
libertar-se se a sociedade fosse instituída no seu interesse (mas não no da alma do testador); a sociedade
perpétua não era válida, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 8.
3224 V. Ord. fil.. 4, 44, 5 a 8. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 6. Se saísse, respondia
pelos prejuízos causados aos outros, não ficando estes, por sua vez, obrigado a repartir com ele os
lucros, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 7.
3225 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 98, per totam.
3226 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 98. Se a sociedade era de todos os bens, a regra
era, porém, a de uma responsabilização da sociedade por todos os atos não exclusivamente pessoais de
cada sócio.
3227 V. Ord. fil.4, 44, 9; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 9.
3228 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 4. Mas, opina António da
Gama (Decisiones […], cit., dec. 253, n. 1), quando houvesse um sócio capitalista não se podia
convencionar que o risco do dinheiro não recaísse sobre ele.
3229 “Universitas nihil aliud est nisi singuli homines qui ibi sunt”, dispunha a Glosa ordinária
527
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
o de que cada sócio, sem o consentimento (expresso ou tácito) dos outros, apenas
podia dispor da sua parte no casco dos bens sociais (res communis)3230, embora se
entendesse que podia dispor por inteiro dos produtos com os quais a sociedade
comerciava (rei venales)3231. Correspondentemente, cada sócio não podia acionar o
devedor da sociedade senão pela sua parte, a não ser que fosse procurador do
consócio3232. Nem podia, da mesma forma, ser acionado um só sócio pelo conjunto
das obrigações da sociedade, se todos possuíam pro indiviso3233.
§ 1800. Esta regra da responsabilidade conjunta tinha exceções. Assim, se os
sócios gerissem um negócio estando cada um em seu lugar, cada um decidia in
solidum e era responsável também in solidum, sendo como que procurador dos
outros3234; o mesmo acontecia se tivessem dividido o negócio por ramos 3235. A
mesma regra da solidariedade valia nos banqueiros, cambistas e prestamistas 3236.
Também os que eram sócios na administração de coisas públicas (ou no exercício
da tutela) respondiam in solidum perante a república, mas não perante privados 3237.
§ 1801. Eram imputáveis à sociedade as negociações em que todos os sócios
(Glossa ad D.3, 4, 7, 1). Porém, o direito justinianeu já continha alguns traços que antecipavam a
personalidade coletiva: Digesto, 3, 4, Quod cuiuscumque, 7, 1 e 2 – “si quid universitati debetur
singulis non debetur, nec quod debet universitas singuli debent; in decurionibus vel aliis universitatibus
nihil refert, utrum omnes iidem maneant vel omnes mutati sint”. A personalidade coletiva é, no
entanto, sobretudo promovida pelo direito canónico, a partir da ideia de “corpo místico”, aplicada a
igrejas, mosteiros, abadias, paróquias, confrarias, que assim ganhavam a possibilidade de ser
proprietárias, devedoras, credoras, herdeiras; em suma, de serem titulares de direitos e deveres, como
as pessoas físicas (“collegium in causa universitatis fingatur una persona”), embora se chamasse a
atenção para o caráter ficcional do conceito (“proprie non est persona: tamen hoc est fictum positum
pro vero, sicut ponimus nos iuristae”).
3230 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 15. “Socii mercatores
exercentes unum traficum seu apothecam non obligantur in solidum, sed pro rata nisi consuetudo locit
fit in contrarium”, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 143, n. 4, numa consulta que trata dos
vários aspetos da questão dos poderes e responsabilidade dos sócios (v. também a sua consulta n. 98,
per totam). Casuística: podia arrendar casa ou prédio comum, ainda que com oposição do consócio, se
se costumava arrendar, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", cit., n. 16; o
mesmo quanto ao cultivo de prédio comum, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 18.
3231 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 13. Porém, o fisco,
sendo sócio, podia dispor de toda a coisa comum por privilégio especial, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 14.
3232 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 21.
3233 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 22. Isto valia mesmo para
os sócios gerentes que não fossem procuradores dos outros, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Societas", n. 23. Também os sócios de um navio comandado por um terceiro (patrão,
capitão) respondiam cada um pela sua parte, ibid. n. 25; mas os sócios de um negócio gerido por um
feitor, responderiam in solidum (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. n. 7).
3234 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 26; Álvaro Valasco, Decisiones
“Societas", cit., n. 26
3236 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 143, n. 5.
3237 Mas se um pagasse´, tinha ação contra os outros, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Societas", cit., ns. 27-28, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 98, ns. 7 ss.; a questão dos
poderes e capacidade judicial, ativa e passiva, dos sócios é tratada em Álvaro Valasco, Decisiones [...],
cit., cons. 143 (“An et quando ex pluribus mercatoribus sociis unius funditii, possit agere in solidum
contra debitores ejusdem negotiationibus, seu funditii; et an et quando unus ex sociis rem societatis
alienare, & valeat alienatio”.
528
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3238 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 12.
3239 V. Ord. fil.4, 10 e 11. Por exemplo, as despesas com viagens devem ser pagas do acervo social,
António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 110, n. 2
3240 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 10. Os sócios estavam
obrigados a ser tão diligentes nas coisas comuns como nas próprias, ibid. n. 5.
3241 Exceto as despesas delituais ou culposas dos sócios, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons.
118, n. 5 ss.
3242 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 11; porém, António da
Gama (Decisiones […], cit., dec. 253, n. 1-2) era de opinião que cada sócio respondia pela negligência e
pelo risco das coisas que gerisse).
3243 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 20.
3244 V. Ord. fil.4, 44, 4. Este caráter “pessoal” da sociedade fazia parte da natureza do contrato. Por
isso é que uma decisão da Casa da Suplicação julgou que a sociedade não continuava nos herdeiros,
mesmo que os sócios originários tivessem disposto o contrário, v. Melchior Febo, Decisiones […], dec.
198, n. 1. Esta regra não valia nas sociedades de contratadores de impostos, ibid, ns. 19-20; 46 a 51.
3245 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 35.
3246 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 35.
sponsionibus mercatorum […]; Miguel B. Salon, Controversiae de iustitia, et iure, atque de contractibus, et
commerciis humanis licitis ac illicitis: […], cit., Historiografia: Carlos Petit, “Del usus mercatorvm al uso de
comercio. Notas y textos sobre la costumbre mercantil”, cit..
3248 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 21.
3249 Fontes: D.22, 1 e 2; C.4, 32-33, Decretales, 5, 19; Sextum, 5, 5; e Clementinae, 5, 5; Part. 1, 6, 46;
529
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
Ord. fil. 4, 67. Fontes doutrinais: São Tomás, Summa theologica, 2a.2ae, qu.78; Petrus Santerna (Pedro de
Santarém), Tractatus de assecurationibus et sponsionibus mercatorum […], cit.; Luís de Molina, Tractatus de
iustitia et de iure […], cit., tract. 2. disp. 303 ss.; Fernão Rebelo, Opus de obligationibus iustitiae, religionis et
charitatis [...], cit., p. 2, liv. 8; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 22. Sobre o tratado
de seguros de Pedro de Santarém, Moses Benzabat Amzalak, “O Tratado de Seguros de Pedro de
Santarém”, Anais da Universidade Técnica de Lisboa. Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, vol.
26, t. 2 (1958).
3250 O segurador ficava obrigado pelo seu valor se ele se perdesse totalmente (mas já não se apenas
se danificasse, salvando-se a querena ou corpo da nave, carina manente, corpore exstante), Gabriel Pereira
de Castro, Decisiones […], cit., dec. 56, n. 6 e 7.
3251 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons 64, n. 8; presumia-se que não tinha notícia,
sobretudo se o transporte se fazia para paragens longínquas, salvo se intermediasse entre o perecimento
e o seguro um tempo tal que permitisse a chegada de algum aviso, ibid. n. 10; também António da
Gama, Decisiones […], cit., dec. 181, n.1.
3252 Em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 5, ad. Ord. fil. 1, 51, gl. 4.
3253 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 56, ns. 1-3, 8.
3254 Miguel B. Salon, Controversiae de iustitia, et iure, atque de contractibus, et commerciis humanis licitis ac
illicitis: […], cit.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 23.
530
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3255 Ord. fil.4, 67, 6; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 23.
3256 S. Tomas, Summa […], 2a.2ae, qu. 168, art.3.
3257 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, 1.
3260 Levando o devedor a pagar com coisas suas, como joias ou roupas,
3261 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, ns. 4 e 6. Esta prerrogativa
de repetir prescrevia por 50 anos; subsidiariamente, o fisco podia pedir a repetição a seu favor da
quantia perdida ao jogo, para a aplicar a bem da utilidade pública, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones
[...], cit., dec. 88, n. 1. O pai e o senhor podiam repetir somas perdidas pelo escravo ou pelo filho,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, 5.
3262 Nem que tivesse havido um compromisso de pagar o que se perdera Gabriel Pereira de Castro,
531
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3267 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, n. 4. Embora esta não fosse a
3271 V. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure, tom. 2, tract. 2, de contractibus, disp. 109.
3273 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 26; D.18, 1 De contrahenda emptione, 8, § 1.
3274 Salvo, claro, se a não produção da coisa lhe fosse imputável por dolo ou culpa, segundo os
princípios gerais.
532
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
6.9.2.3.1 A fiança.
§ 1821. A garantia das obrigações tinha uma longa e conturbada história no
direito romano3275, onde tinha evoluído de uma coobrigação do fiador a par com o
devedor3276 para uma obrigação autónoma do fiador, constante de um pacto3277 que
se acrescentava ao do devedor principal. Neste pacto, o garante obrigava-se ao
mesmo que o devedor e com as mesmas condições, vinculando os seus herdeiros.
Na época pós clássica e justinianeia, estavam estabelecidos os traços gerais que
encontraremos no direito comum, nomeadamente: o caráter acessório da garantia,
que a limitava aos termos e condições da obrigação principal3278; o caráter solidário,
que permitia pedir a cada garante a totalidade da dívida3279; o caráter subsidiário,
que colocava o fiador como um obrigado de último recurso 3280.
§ 1822. Para a doutrina do ius commune tardio, fiador (fideiussor) era o que garantia
uma obrigação alheia, mesmo que natural, por uma convenção suplementar, aposta
ao mesmo tempo ou depois da promessa inicial3281. Segundo a etimologia
(comprometida com a dogmática) destes juristas, fideiussio viria de “ordem assente
na boa-fé”3282). O fiador recomendaria ao credor a aceitação da obrigação do
devedor principal, comprometendo-se perante a deusa Fides a assumir os riscos
dessa recomendação. Nesta estrutura imaginada, a fideiussio estava estruturalmente
próxima de outras formas de responsabilização por ordens, como o mandato ou a
responsabilização do pater pelos negócios que tivesse cometido a filhos ou escravos
(actiones quod iussum).
§ 1823. O seu regime jurídico assentava nos princípios estabelecidos pelo
direito romano pós clássico e justinianeu (acessoriedade, solidariedade,
subsidiariedade), que em geral se mantinham.
§ 1824. A obrigação do fiador era uma obrigação acessória, não apenas no
sentido de que provinha de uma convenção que se acrescentava à da constituição
da dívida original, mas também no sentido de que não subsistia sem a obrigação
principal, nem em termos mais gravosos do que esta 3283. Isto queria dizer várias
3275 Os conceitos centrais são os de satisdatio (no direito mais antigo) e intercessio, género de que a
mesma coisa e se obrigavam como co-devedores (co-rei). Sobre a evolução do direito romano das
garantias, v. Ernst Levy, Sponsio, Fidepromissio, Fideiussio: Einige Grundfragen zum Römischen
Burgschaftsrechte, reimpr. Nabu Press 2013; Reinhard Zimmermann, The Law of Obligations: Roman cit., p.
118 ss..
3277 "Quod Maevius mihi debet, id fide tua iubes ?". "Fideiubeo". Este pacto não consistia num
juramento formal como a sponsio, mas antes numa promessa sob invocação da deusa Fides e, por isso,
acessível a não romanos.
3278 "Horum [scl. fideiussorum] obligatio accessio est principalis obligationis", Inst. Gaii, 3, 126. O
adjetivo accessorius, porém, foi criado pelos glosadores ("in accessione... id est in accessoria obligatione").
3279 "[...] inter sponsores [...] lex Appuleia quondam societatem introduxit", Inst Gaii, 3, 122.
3280 C.8, 40, 28). ("[creditor] veniat primum ad eum qui [...] debitum, [...] contraxit" (beneficium
Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 28. Fonte: D.45, 1 de verborum obligationibus, 1, 4.
3282 “Fideiussor dicitur a bona fide iubendo”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Fideiussio”, n. 1.
3283 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 131, n. 12 (a fiança é uma convenção acessória,
nunca principal).
533
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3284 A obrigação do fiador era exigível pelo credor. E também era exigível a obrigação do menor ou
escravo de restituir ao fiador o que ele tivesse pago (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Fideiussio”, ns. 4 e 5).
3285 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, ns. 2 a 5.
3286 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 20.
3287 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 132, ns. 15-16.
3288 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 6. Ou seja, se garantisse
3290 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 7; Gabriel Pereira de
Castro, Decisiones [...], cit., dec. 17, n. 15. Mas não pode usar de uma restitutio in integrum ob aetatem, que
competisse ao devedor menor (cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 6).
3291 Este fora o regime originário da fiança no direito romano, pois o garante ou se obrigava na
mesma promessa com o devedor ou assumia para si tudo aquilo que ele devesse. Isto também
correspondia ao interesse do credor, pois ele não podia facilmente saber quantos eram os fiadores, de
modo a poder acioná-los pro rata.
3292 Para isso, o fiador podia obrigar o credor a transferir para ele as ações que tivesse contra o
devedor, para exigir deste o principal e os juros, com as eventuais garantias reais que tivesse, v. Bento
Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 677; Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 180, ns. 6 e 9. Outros
autores atribuem ao fiador uma ação de mandato contra o devedor principal, que, assim, era equiparado
ao mandante nas obrigações que este tinha de ressarcir o mandatário pelas despesas que este tivesse tido
em função do mandato (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.. p. 1, d. 122, n. 1); outos, preferiam falar
de uma ação semelhante à do gestor de negócios (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3,
38).
3293 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 14.
534
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3294 E modificavam neste ponto o que antes estava estabelecido nas Afonsinas (Ord. af.4, 54); cf.
principal ou contra o fiador. Mas isto originava um risco, em virtude da regra processual de que não
podia haver duas ações sobre a mesma obrigação (non bis in idem). Como as obrigações do devedor
principal e do fiador ou eram a mesma (unus actus) ou versavam sobre o mesmo, a ação contra um (desde
que ultrapassasse a fase da litis contestatio) precludia a ação contra o outro.
3296 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 15; António da Gama,
Decisiones [...], cit., dec. 379, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 28.
3297 Conforme fora julgado na Casa da Suplicação, segundo Melchior Febo, Decisiones […], cit.,
dec. 180, n. 8.
3298 V. Ord. fil.4, 59, pr.; Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], a esta Ord. n. 3; Manuel Álvares
se a obrigação principal fosse inexigível, como no caso das obrigações naturais (Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 28).
3300 V. Ord. fil.4, 59, 2; Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec 185, n. 1; António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 16. Também não aproveitava a quem negasse
dolosamente ser fiador (Ord. fil.4, 59, 1).
3301 Conforme Ord. fil. 3, 49, 2.
3302 Segundo Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 28.
3303 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 8; Álvaro Valasco,
535
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3309 V. Ord. fil.4, 61, 6 e 9-10; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n.
9.
3310 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 10. Já o fiador leigo de
clérigo deveria responder perante o foro secular, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Fideiussio”, n. 11.
3311 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 18, n. 2.
3316 Não era, de todo, obrigado a cumprir, como fiador, obrigações torpes ou imorais, António
3318 Cf. I.3, 16. De duobus reis stipulandi et promittendi; Ord. fil.4, 59, 4; Pascoal de Melo, Institutiones
536
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3320 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 24; Pascoal de Melo,
mau conselho e, se tivesse aceitado dinheiro do devedor para o abonar, era obrigado pelo actio furtiva,
cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Creditor”, n. 15.
3322 Para as relações entre o mandante-fiador e o mandatário-devedor principal existiam as ações
3324 A doutrina designava este tipo de fianças por fideiussio in sisti, isto é, garantia de que alguém
comparece (sisto, sistere, stiti, statum, estar [de pé], aparecer; cf. to stand, stehen).
3325 Realmente, com a primeira apresentação, Melchior Febo, Decisiones […], cit., 194, n. 12;
mesmo que se tivesse comprometido a comparecer as vezes que fosse preciso, o fiador livrava-se com
uma primeira apresentação perante aquele juiz ou tribunal, ibid. 19.
3326 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 131, n. 6.
3327 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 109, n.3.
3328 Era idóneo quem tinha bens imóveis (ou móveis que não pudessem ser facilmente sonegados,
como um rebanho, um estabelecimento na praça) suficientes para cobrir a dívida, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 31.
3329 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 29.
3330 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, ns. 29 ss..
537
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
difíceis de trazer a juízo ou de executar nos seus bens, não eram suficientes como
fiadores3331; o fiador devia ser da mesma província que o réu 3332; podia reformar-se
a fiança, pedindo novo fiador, se o inicial se tivesse tornado não idóneo 3333.
6.9.2.3.2 O penhor e a hipoteca.
§ 1838. O penhor ou contrato penhoratício era um pacto acessório pelo qual
era designada uma coisa especial ou todos os bens em geral para que o credor sobre
eles tivesse direitos preferenciais de execução de modo a aumentar a segurança de
que uma obrigação (principal) seria cumprida 3334. Como pacto acessório,
pressupunha a existência do pacto principal, dando origem a uma ação3335 (actio
pigneraticia ou hypothecaria) que ficava na disponibilidade do credor, a par da ação que
lhe competisse em razão do crédito principal (actio personalis).
§ 1839. A distinção entre penhor e hipoteca relacionava-se com o facto de a
coisa dada em garantia passar (penhor) ou não (hipoteca) para a posse do
credor3336. Independentemente da tradição da coisa, o credor adquiria um direito
real sobre ela, que lhe permitia persegui-la mesmo nas mãos de um terceiro, embora
não fosse título bastante para adquirir por usucapião a coisa empenhada 3337. A coisa
empenhada transitava para o credor com todos os seus ónus 3338.
§ 1840. A constituição deste direito real, que se limitava a dar ao credor direitos
especiais de execução, não era aparente. Quando a coisa era entregue ao credor, ele
passava a possui-la e isso era um sinal, embora ambíguo ( pois não era aparente o
título de posse) de que a propriedade plena já não estava no seu dono originário, o
devedor, e isso poderia alertar quem a quisesse adquirir. Mas se a coisa nem sequer
era entregue, como aconteceria frequentemente nas coisas imóveis, o direito real de
garantia do credor ficava oculto, podendo ocasionar uma incómoda surpresa para
quem adquirisse do devedor o bem sujeito a penhor. Este foi um contínuo
problema das hipotecas, origem de uma certa instabilidade no mercado fundiário,
que só virá a ser resolvido com a criação do registo predial, já no séc. XIX 3339.
3331 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 31.
3332 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec 17, n.1.
3333 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 32.
3334 “Est accessorium quoddam inductum ad maiorem securitates actus alterius, seu obligationis
principalis, actu principali manente in sua natura”, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 61,
n. 4; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 1)
3335 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., 61, ns. 5 e 7.
3336 I.4, 6 De actionibus, 7; D.20, 1 De pignoribus, 17;“Pignus dicitur a pugno, quoniam res, quae
pignori dantur manu traduntur, et proprie constituitur in re mobili improprie tamen in re immobili [...]
pignus transit ad creditorem, hypotheca vero non transit, sed nuda convencione remanet obligata”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 1
3337 Um terceiro podia adquiri-la por usucapião; mas, claro, onerada com o penhor, António
3339 Ainda em 1845, Manuel António Coelho da Rocha (Instituições […], II, Nota DD ao § 633) se
queixava da complexidade do direito das hipotecas, nomeadamente por causa do caráter obscuro dos
direitos que elas geravam, bem como da incerteza na precedência dos créditos hipotecários no concurso
de credores. “Este artigo é dos mais importantes da jurisprudência, não só pelos grandes interesses, que
continuamente se debatem em taes questões, como pela influencia, que a legislação relativa a estes
objectos exerce sobre o gyro dos capitaes, e por tanto sobre o crédito e economia publica”.
538
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3340 “Hypotheca habere ius in re, et potest rem ipsam prosequi, in quemcumque transeat
possessorem”, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 61, n. 8; v. Ord. fil.4, 3, pr.; 10, 1
3341 Para além da actio pignoratitia, o credor gozava ainda de outras ações que competissem ao
possuidor legítimo de uma coisa, como a actio furtiva, para recuperar uma coisa penhorada que lhe
tivesse sido roubada, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 21.
3342 Cf. I. 4, 6 De actionibus, 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 1.
3343 No direito germânico o domínio transmitia-se, pelo que o penhor era semelhante a uma venda
3346 Cf. CL. 20.6.1774; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 5;
construção ou reparação de navio para fábrica de navio; v. CL. 20.6.1774; cf. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 10.
3349 Ord. fil.2, 52, 5 a 7.
539
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3354 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 63, n. 4.
3358 Seguidamente, usa-se a palavra penhor para designar genericamente qualquer das duas
garantias reais.
3359 O penhor geral compreendia todas as coisas existentes no momento da convenção
3361 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 23, n. 4.
3362 Ord. fil.4, 9, pr.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 4.
3363 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 23, ns. 1 e 2; Pascoal de Melo,
540
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3364 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 4; era punido com o exílio
s. v. “Pignus”, n. 3.
3366 Sim nas servidões pessoais, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 2.
3367 Ainda que a mulher consentisse, António Cardoso Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n.
2.
3368 V. Ord. fil.3, 86, 23; "Determinou-se que o leito de um cavaleiro fidalgo não era dos bens do
seu uso, e que se fizesse penhora nelle, e isso porque foi achado sem estar nele a cama”, Melchior
Febo, Decisiones […], cit., p. 1. ar. 64.
3369 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 11.
3371 Porém, a doutrina admitia-a no caso de o dono a autorizar, António da Gama, Decisiones [...],
3373 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 13, 11.
3374 Mas valia se o penhor fosse estabelecido por lei, cf. António da Gama, Decisiones [...], cit.,
dec. 319.
3375 V. Ord. fil.1, 88, 25 e 26; Ord. fil.3, 41 e 42; Ord. fil.4, 102 e 103.
3377 Ord. fil.4, 10, 3, 3; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 199, n. 2.
3378 V. Ord. fil.4, 10, 1. A actio hypothecaria substituíra, no direito romano, as ações Serviana e Quasi
Serviana. A primeira era dada ao senhorio de um prédio rústico, para pedir as coisas que, expressa ou
541
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
tacitamente, garantiam a renda; a segunda era dada ao credor para pedir a coisa penhorada (I. 4.6 De
actionibus, 7).
3379 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 99, n. 3 a 5.
3380 Mas então perde a qualidade de credor privilegiado, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
3382 Entre os credores simples, tinha prioridade o primeiro que tivesse cobrado, desde que não
tivesse usado de violência na cobrança, pois se entendia que nenhum deles podia ser prejudicado pela
negligência dos outros, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Creditor”, n. 19.
3383 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 6.
3384 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 23, ns. 1 e 2.
3385 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 6 e 26 (“A hipoteca geral
anterior prefere à hipoteca especial posterior, pois, quando vários concorrem com títulos diversos, o
primeiro no tempo é o primeiro no direito”); Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 107, n. 1.
3386 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Creditor, n. 17. Porém, a CL de
3388 Manuel Mendes de Castro, Remissiones […], cit., liv. 3, p. 2, cap. 21, n. 178 e p. 1, liv. 3, cap. 21,
n. 78.
3389 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,14.
3390 Entre os do mesmo tipo, vigorava a anterior regra da prioridade temporal, Pascoal de Melo,
542
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3391 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,4,13. Entre os penhores legais, preferia o mais
3394 “Non una vice, videlicet ‘Solve, solve, iterum solve’” [a não apenas uma vez, como “Paga, paga,
I. 2,8 Quibus alienare licet, 1); receção do direito português, em Ord. fil.3,78,7).
3396 Ord. fil. 4,57; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 199; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
3398 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, ns. 13-14; de outro modo, a
venda era nula António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 199, n.1.
3399 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,19. Um exemplo de pacto impossível era o
de que a coisa não fosse vendida a favor do credor, pelo que, sendo aposto, tinha que ser reduzido.
543
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
pagasse a dívida garantida dentro de certo prazo (Ord. fil.4,56)3400. Mas não se podia
apor o chamado pactum commisorium (pacto comissório), convencionando a pura
entrega da coisa ao credor, se a dívida não fosse paga, porque isto podia prejudicar
uma avaliação justa da coisa e configuraria, normalmente, um negócio usurário,
pois, por regra, a coisa valia mais do que o montante garantido 3401.
§ 1859. Enquanto se mantivesse o penhor, o credor penhoratício respondia
danos ou perda por culpa e dolo, mas não pelo risco 3402.
§ 1860. O penhor terminava3403 com o pagamento da dívida3404, com a
desistência do credor (por remissão ou por resgate pelo devedor) 3405, com o fim do
prazo por que fora constituído, com a perda da coisa imputável ao credor, com a
venda da coisa pelo credor3406 ou pelo devedor com o conhecimento do credor3407.
Também se extinguia por caducidade3408.
§ 1861. O penhor era também, como se disse, uma das fases da execução
judicial – penhora (v. cap. 7.1.11).
6.10 Os quase contratos. Introdução.
§ 1862. Depois de tratar das obrigações contratuais (v. cap. 6.8), as Instituições de
Justiniano (I.3,27) agrupam um conjunto de obrigações que nem se fundam num
contrato nem num delito3409, mas antes de circunstâncias semelhantes a uma ou
outra destas categorias de contrato. Na obra de Gaius esta ideia de quase contrato
não aparecia, arrumando-se as obrigações que não provinham nem de contrato
nem de delito sob a rubrica nas “obrigações que provém de várias tipos de causas”
(obligationes ex variis causarum figuris 3410), dizendo-se que provinham do própria direito
que as criava em função de certas circunstâncias do caso. Porém, um texto de
Ulpianus já explica a existência destas obrigações por convenções implícitas,
3400 Podia convencionar-se a venda por justo preço a arbitrar pelo juiz ou homem bom, decorrido
torpe e injusto); cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,19.
3402 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 16. Por exemplo, os danos
causados pela tinha (salitre) nas paredes da casa ou a magreza das ovelhas causada pela fome imputam-se
ao credor a quem as coisas tivessem sido entregues, “quia sua culpa pereunt”; responde tanto pelo dano
como pelo interesse, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 17.
3403 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,4,20.
3404 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 23.
3405 Mas a entrega do penhor ao devedor, antes do pagamento da dívida, não induzia renúncia,
antes apenas uma entrega precária, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Creditor” 22.
3406 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 5
3407 Equivalia à remissão, ficando o devedor com uma exceção (interventionis) contra a ação
penhoratícia do credor António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, ns. 9 e 10.
3408 O direito do credor sem a posse (hypothecaria) prescrevia em trinta anos contra estranho e
quarenta contra o devedor, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 25.
3409 I. 3, 27 De obligationibus quasi ex contractu: “Post genera contractuum enumerata dispiciamus
etiam de his obligationibus, quae non proprie quidem ex contractu nasci intelleguntur, sed tamen, quia
non ex maleficio substantiam capiunt, quasi ex contractu nasci videntur”. As obrigações ex delicto e ex
quasi delicto são tratadas em I.4 e 5.
3410 D.44.7.1. Gaius libro secundo aureorum, pr. Obligationes aut ex contractu nascuntur aut ex
544
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3411 “2.14.1. Ulpianus libro quarto ad edictum. pr. Huius edicti aequitas naturalis est. Quid enim tam
congruum fidei humanae, quam ea quae inter eos placuerunt servare? […] 3. Conventionis verbum
generale est ad omnia pertinens, de quibus negotii contrahendi transigendique causa consentiunt qui
inter se agunt: nam sicuti convenire dicuntur qui ex diversis locis in unum locum colliguntur et veniunt,
ita et qui ex diversis animi motibus in unum consentiunt, id est in unam sententiam decurrunt. Adeo
autem conventionis nomen generale est, ut eleganter dicat Pedius nullum esse contractum, nullam
obligationem, quae non habeat in se conventionem, sive re sive verbis fiat: nam et stipulatio, quae verbis
fit, nisi habeat consensum, nulla est.”
3412 Cf. Helmut Coing, Europäisches […], v. 1, 394/5.
545
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3415 D.3.5 De negotiis gestis; C.2.18. De negotiis gestis; Ord. fil.3,6,4; I. 3, 27 De obligat. ex quasi contractus, 1;
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,2,2; H. Coing, Europäisches […], v. 1, 497 ss.
3416 Negócio é um trabalho, o contrário de ócio (negatur otium, sine otio), António Cardoso do
3419 I. 3, 27 De obligationibus ex quasi contractu, 2; Ord. fil.3,6,4,2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
546
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “ Naufragium”, ns. 3-4 (a ação dava-se contra o mestre da nau, tendo este
regresso contra os proprietários dos bens transportados). Cf. Helmut Coing, Europäisches […], 1, 497.
3426 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,7.
3427 I. 3,27 De oblig ex quasi contractu; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,7.
3430 D.12,6 De condictione indebiti, 1: “1. Et quidem si quis indebitum ignorans solvit, per hanc
actionem condicere potest: sed si sciens se non debere solvit, cessat repetitivo”; I. 3, 27 De oblig. quae ex
quasi contract. 6); Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,10.
547
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3431 I,3,27,7: "7. Ex quibusdam tamen causis repeti non potest, quod per errorem non debitum
solutum sit […] tantummodo in his legatis et fideicommissis quae sacrosanctis ecclesiis, ceterisque
venerabilibus locis quae religionis vel pietatis intuitu honorificantur, derelicta sunt, quae si indebita
solvantur non repetuntur”.
3432 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,10; Helmut Coing, Europäisches […], v. 1, 494.
3433 Por exemplo, julgar-se válido um contrato, que todavia era nulo.
3434 V. D.22,6 De juris et facti ignorantia, 2. V. aplicação à condictio indebiti em C.1,18,10: “Cum quis ius
ignorans indebitam pecuniam persolverit, cessat repetitio. Per ignorantiam enim facti tantum
repetitionem indebiti soluti competere tibi notum est.”.
3435 A obrigação de restituir uma coisa, recebida para certo fim que não se verificou é obrigado a
devolvê-la ou pela condictio, ou pela ação do contrato [v.g. actio commodati], ou pela ação praescriptis verbis,
ou por uma ação in factum concepta.
3436 Discutia-se sobre se o cliente podia pedir à prostituta o que lhe tivesse pago. Ulpiano, no
Digesto (D. 12,5 De condictione ob turpem vel iniustam causam,4,3) entendia que não, pois ela, embora se
dedicasse a atividades torpes, não as contratava torpemente justamente porque era essa a sua profissão.
No direito romano, não se podia repetir o que se desse à concubina ou à meretriz registada perante os
edis, pois essas relações não eram ilícitas. Mas o parente mais próximo prejudicado podia repetir, pois o
concubinato e a prostituição estavam proibidas aos cristãos, e o terceiro não tinha que ser castigado pelo
delito de quem tinha pago à concubina ou prostituta.
3437 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,11;; H. Coing, Europäisches […], vol. 1, 495.
3439 O vendedor podia chamar a juízo (“louvar”) aquele de quem tivesse adquirido a coisa, para que
548
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3440 “Transeamus nunc ad obligationes, quae ex delicto nascuntur, veluti si quis furtum fecerit,
bona rapuerit, damnum dederit, iniuriam commiserit: quarum omnium rerum uno genere consistit
obligatio, dum ex contractu obligationes intres genera diducantur, sicut supra exposuimus” (Gaii
Institiones, 3, 182; idem, D.44,7,4).
3441 Cf. D.9,2,1.
animada ou inanimada (D.9.2.2, Gaius libro septimo ad edictum provinciale, pr. Lege Aquilia capite primo
cavetur: ‘Ut qui servum servamve alienum alienamve quadrupedem vel pecudem iniuria occiderit, quanti
id in eo anno plurimi fuit, tantum aes dare domino damnas esto’").
3443 I.4,3 De lege Aquilia, 9.
3444 D. 9, 2, 44 pr. Ulp. 42 ad Sab.: “in lege Aquilia et levissima culpa venit”.
549
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3445 Síntese, com o trânsito para o direito comum e mais moderno, H. Coing, Europäisches […], §
100, p. 503-518
3446 Corolários desta evolução era a transmissibilidade do dever de indemnizar aos herdeiros e a
de crimine cognoscit, quam vult sententiam ferre, vel graviorem vel leviorem, ita tamen ut in utroque
moderationem non excedat”.
3448 Decretum, II, causa XII, qu. 2, c. 11, § 1.
3449 “ Qui facit quod lex permittit nulli facit damnum nec iniuriam ”, António Cardoso do Amaral,
550
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3450 A distinção entre delitos penais e delitos civis não correspondia à que era feita entre delitos
penais públicos e delitos penais privados, pois esta relacionava-se com a capacidade para acusar
judicialmente: no primeiro caso, a acusação competia a qualquer pessoa do povo; no segundo, só à parte
lesada; no direito canónico todos os delitos penais eram públicos, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Delictum” 1.
3451 “Damnum, sive damnatio a demptio sive diminutio patrimonii”, António Cardoso do Amaral,
causam damni dedit, si non adhibuit diligentiam, quam debuit, aut dabat operam rei illicitae”, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 3; Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...],
cit., 7,2; 7,9.
3453 “Damnum tenetur satisfacere ille, cuius culpa, imperitia, aut ope, datum est damnum, pro illo
quod fecit, aut ex illo quod fuit secutum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”,
n. 4.
3454 Cf. Locupletari nemo debet cum jactura aliena, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Damnum”, n. 12.
3455 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 8.
3456 Cf Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 35, ns. 5 a 7.
3457 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 35, per totam.
551
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
ainda, nos casos em que os danos tivessem sido causados pelo próprio prejudicado
ou por sua culpa (negligência)3459.
§ 1887. Pelo contrário, os danos culposos ou dolosos geravam deveres de
indemnização: v.g. ferimentos em animal doméstico ou bravio (que costumasse
voltar), ou a deterioração de coisa de outrem3460.
§ 1888. O tratamento indistinto dos aspetos penais e indemnizatórios
provocava incertezas quanto à relevância da intenção má (dolo), exigível para os
aspetos penais (v. cap. 8.2.6.1), mas eventualmente dispensável para os aspetos civis
de indemnizar pelo prejuízo. Em geral, a doutrina dizia, como se disse, que o dano
não era apenas causado por uma prática intencional, mas ainda pela culpa ou
imperícia que causou ou deu ocasião a um dano. Alguma regras particulares,
embora formuladas na perspetiva da punição penal, cabiam neste princípio geral: a
pessoa irada ou embriagada era responsável, embora devesse ser punida mais
levemente se a ira lhe fazia perder ou diminuir a razão 3461; o furioso e a criança na
fase da infância eram irresponsáveis3462; o bêbedo era punido quando a bebedeira
lhe tirasse o entendimento, embora a pena devesse ser reduzida, até ao ponto de
não dever ser punido se estivesse bêbado sem culpa 3463.
§ 1889. Porém, havia regras relativas aos delitos penais que não se aplicavam
aos delitos civis: por exemplo, a de que a simples intenção, desde que exteriorizada,
era punível, ainda que não se seguisse a concretização 3464. Ou, pelo contrário, havia
regras que só se aplicavam à indemnização civil: por exemplo, a de que se podia
punir sem culpa o proprietário de casa superior pelos danos causados na
inferior3465. Esta relativa indistinção entre responsabilização penal e civil também se
projetava sobre o âmbito da responsabilidade civil. As Ordenações previam
expressamente que se aceitasse querela e se abrisse devassa se alguém cortasse
árvores (Ord. fil.1,65,32) ou danificasse horta ou pomar (Ord. fil.5,117)3466. Se se
punha a questão se saber se estas disposições eram extensíveis à destruição de uma
semeadura, a resposta da doutrina era negativa, pois a lei penal não se podia
estender por analogia3467. Mas, porventura, isto só dizia respeito à punição pública,
mas não à indemnização de danos.
3459 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 5 (o que alguém sofre por
própria culpa não deve ser imputado a outros, embora não se presuma que alguém danifique as suas
próprias coisas).
3460 Por exemplo, a mistura de algo no óleo ou azeite, causando a sua deterioração, António
3462 “Cum non habeant intellectum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”,
n. 46.
3463 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 47.
3464 A intenção no delito penal era punida ainda que não se seguisse a consequência; a menos que a
intenção não tivesse nenhuma manifestação externa (proposita in mente retenta; conatus deductus in actum
exteriorem proximum e immediatum), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 55.
3465 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 39.
3466 Aqui havia também uma componente pública, que justificava a criminalização do
comportamento.
3467 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 2, Aresto 60. Sobre as regras de interpretação e
552
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3468 O causador direto do dano não ficava isento de responsabilidade se, antes de praticar os atos,
estivesse consciente do seu caráter ilícito e danoso, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Damnum”, n. 9.
3469 Se a ordem para causar dano provinha de alguém com poder de mando (imperium), o inferior
ficava excuso, nos crimes leves (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 38); nos
mais graves, eram ambos responsabilizados, porque ninguém tinha que obedecer forçosa e
invariavelmente àquele que tivesse direito de dar ordens (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Delictum”, n. 38).
3470 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 54 (a pena que impende sobre
vários, se paga por um liberta todos se visa apenas o interesse do que a recebe [isto é, se é uma pena
civil]).
3471 Os delitos dos pais não oneravam os filhos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 33; os delitos extinguiam-se com a morte do delinquente, ibid. n. 34; a exceção era o
crime de heresia, punido também com a confiscação dos bens, que afetava os herdeiros, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 34
3472 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 71, n.3; António Cardoso do Amaral, Liber
3474 Exs. em Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...], cit., 11, 6.
553
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
tratamento médico incompetente que lese o doente; os estragos nos bens dos
hóspedes causados por criados da estalagem. A fonte legal da responsabilidade de
indemnizar, nestes casos, provinha de títulos das Institutiones, que se consideravam
recebidos, até pela referência expressa das Ordenações a quase malefícios (Ord.
fil,4,76,5).
§ 1894. O dano podia ser causado por homem livre, escravo, animal ou coisa 3475
(v.g. uma telha que caísse do telhado, um barco levado pela corrente, uma casa que
pegasse fogo à vizinha).
§ 1895. Quanto ao montante do dano, havia relutância em admitir que ele
pudesse abranger mais do que os prejuízos causados na coisa ou no capital (danos
emergentes), excluindo-se que se tivesse que indemnizar pelos eventuais lucros, se a
coisa ou capital não se tivessem perdido3476. A exceção era a de dano causado a
comerciante, que empregasse usualmente a coisa deteriorada ou perdida num giro
comercial determinado e cujos proventos pudessem ser estimados 3477. Nesse caso,
haveria lugar a uma indemnização pelos lucros cessantes. O mesmo acontecia, mas
como castigo pela malícia do lesante, no caso de danos causados com intenção
(dolus malus)3478. Em geral, portanto, podia dizer-se que o montante do dano não
incluía senão os prejuízos que consistissem numa diminuição efetiva do património
(“perdas e danos”)3479, não se computando como tal um seu aumento apenas
previsível3480.
§ 1896. Havia duas ações que decorriam da produção do dano, uma criminal,
ou seja, para a aplicação de uma pena corporal ou pecuniária a favor do fisco, e
outra civil, relativa ao interesse e reintegração da coisa 3481. Apesar de, no direito
português, o nome das ações não ter que ser indicado na petição inicial e, portanto,
todas as ações fossem baseadas na descrição dos factos e na formulação do pedido,
a doutrina ainda recordava a variedade de ações que o direito romano foi
sucessivamente conhecendo para obrigar à indemnização de danos. A esta
diversidade não correspondiam, no entanto, consequências processuais
significativas3482. As Ordenações continham uma série de crimes de dano, causados
por homens livres3483 por escravos e por animais3484. Porém, estes preceitos, todos
eles no âmbito do livro V, sobre crimes e penas, contemplam quase só a pena
criminal. Para fazer valer a indemnização por danos, não se usava de nenhuma das
ações existentes no direito romano3485, que não tinham sido recebidas no foro
3479 “Demptio sive diminutio patrimonium”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
non erat radicatum, sed erat quaerendum, non dicitur, tunc damnum pati, dum non est quaesitum”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 1.
3481 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 169, n. 17.
3485 Actio (directa, utilis ou in factum) ex lege Aquilia (danos causados livre dolosamente); actio noxalis
554
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
português, mas antes se recorria a uma ação inominada, em que com fundamento
na situação que causara o dano, se pedia aquilo em que se estimava a sua
compensação.
§ 1897. O dano provava-se pelos meios usuais de prova; se tivesse sido
praticado com violência, provava-se por juramento da vítima3486.
§ 1898. Como delito penal, o dano prescrevia no prazo de 20 anos, segundo o
direito civil, sendo imprescritível pelo direito canónico.
(danos causados por escravo ou animal); actio de pauperie, actio de pascu (idem); actio iniuriarum (civilis).
3486 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum” 7.
555
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
7 As ações.
7.1 O sentido social e político do direito processual do reino.
§ 1899. O processo vinha regulado no livro 3 das Ordenações e, para as
especialidades do processo criminal, no livro 5 (Ord. fil.5,117 ss.).
Complementarmente, as chamadas “reformas da justiça” – modificaram alguma
coisa ao disposto nas Ordenações. Só a última, de 6.12.16123487, não foi incorporada
nas Ordenações, por ter sido posterior à sua promulgação.
§ 1900. Embora a doutrina processualista portuguesa de Antigo Regime esteja
continuamente a citar as fontes de direito comum, o processo é uma das matérias
em que havia particularidades importantes no direito pátrio.
§ 1901. Em 1736, Mateus Homem Leitão publicou uma obra com pretensões, a
que deu o título de Sobre o direito português3488, em que tratava de três matérias
“difíceis e quotidianas” que, a seu ver, caracterizavam o direito particular do reino.
Todas elas eram de direito processual – os agravos, as cartas de seguro e as
devassas – e, realmente, marcaram muito a prática do direito, o seu impacto social e
a distribuição de poder que por ele era feito.
§ 1902. Segundo este autor, a combinação destas três peculiaridades do direito
português tornavam os processos mais longos e mais incertos, contribuindo para o
descrédito da justiça. Nós acrescentamos que esses mesmos institutos aumentavam
muito o poder dos juízes ou, generalizando, o poder das figuras que dominavam o
foro – juízes, advogados, assessores, escrivães.
§ 1903. Os agravos alargaram enormemente as possibilidades de recurso em
relação àquilo que era o sistema romano de litigar, permitindo recorrer de
praticamente todos os atos do processo, por vezes com efeitos suspensivos,
enredando a lide em discussões intermináveis sobre matérias jurídicas obscuras. É
difícil encontrar um instituto processual que mais tenha contribuído para aumentar
a litigiosidade e prolongar as demandas, um traço que leigos e juristas, já na época,
davam como característico do direito português. Por isso, a generosidade de
recurso, somada à incerteza do direito e das jurisdições, tornava os processos numa
meada de expedientes, de que os advogados – porventura mais do que as partes –
se aproveitavam e que os escrivães – porventura mais do que os juízes – ou
propiciavam ou impediam, conforme os seus interesses.
§ 1904. Esta difusão e alongamento dos processos judiciais, além de
prejudicarem a efetividade da condenação, promoveram muito o poder social dos
juristas e dos funcionários que dominassem o desenrolar da lide.
§ 1905. As cartas de seguro (Ord. fil.1,58,40), outra novidade do direito processual
português, permitiam aos réus evitar a prisão depois da acusação, mantendo-se
3487 Cf. texto e comentário em António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, no fim do
volume, onde também se pode ver uma lei sobre matérias de Justiça, de 26.6.1696.
3488 Mateus Homem Leitão, De jure lusitano tomus primus in tres utiles tractatus divisus. 1. De gravaminibus;
556
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
livres até à sentença final. Talvez uma forma de um aparelho judicial débil se
acomodar à realidade da sua debilidade, coonestando, deste modo, a
impossibilidade de assegurar mais eficazmente a comparência em juízo, jogando na
cooperação do próprio acusado, ligado por uma promessa de vir a tribunal. Fosse
como fosse, a carta de seguro protegia os acusados e foi apresentada pela doutrina
iluminista (e alguma anterior) como uma notável, mas prejudicial, particularidade do
direito do reino.
§ 1906. As devassas eram averiguações ordenadas oficiosamente e dirigidas
pelos juízes numa lista vasta de crimes (Ord. fil.1,65,31), a fim de combater o crime
e expulsar do seu território os homens malvados (facinorosos) (cf. Ord. fil.1,58,5-15 e
31). Proibidas as devassas gerais (Ord. fil.1,65,31), consideradas prejudiciais e fonte
de insegurança e abusos, as Ordenações cometiam aos juízes uma larga competência
para inquirir oficiosamente de certos crimes. Esta especialidade do direito pátrio
também era uma fonte singular de poder para os juízes, letrados ou leigos, pois
colocava as populações perante uma ameaça permanente de perseguição criminal,
uma vez que a iniciativa de devassar dependia do arbítrio dos magistrados.
§ 1907. Que acontecia aos processos de devassa (particular ou especial) em que
não sobrevinha querela de parte ? Na maior parte dos casos, acabavam sem
acusação particular (querela) e extinguiam-se. No séc. XVIII e início de XIX, numa
zona remota do interior beirão (Montemuro), dos processos iniciados por devassa,
apenas em cerca de 1/3 havia querela de parte. Ao notar que, no livro de registo
das querelas, só se tinham registado 18, entre 1720 e 1834, um corregedor, na
correição do pequeníssimo concelho de Cabril de Ester, observa: "por este andar
temos livro enquanto durar o mundo” 3489. Apenas 14 % dos autos iniciados eram
finalmente julgados por um juiz ordinário; 13% eram decididos pelo corregedor,
quando ia em inspeção; 20% destes chegavam à Relação do Porto que,
normalmente, decidia de forma mais branda3490. Mas, entretanto, a querela
atemorizara e inquietara as pessoas, assinalando-lhes a dependência em que se
encontravam em relação à gente do tribunal. E o processo, prolongando-se no
tempo e em segredo de justiça, constituía um monstro adormecido que ameaçava
continuamente reanimar-se.
§ 1908. Já nos inícios do séc. XIX, logo depois da Revolução, o despotismo do
“tribunal” continuava a ser apontado como um dos males do país: “Os Advogados
passavam por melhores, quando excogitavam mais pontinhos[…]; a chicana era a
molla real dos processos. O Escrivão só olhava aos meios de fazer mais pingue o
officio, e tanto, que chegarão a passar por synonimos entre a Plebe Escrivão, e
Ladrão. O Julgador hora complicado com muitos negócios, hora com o seu socego,
hora com …, demorava o despacho dos autos, que se cobrião de pó na conclusão,
tempos, e tempos”3491.
3489 Anabela Ramos, Violência justiça em terras de Montemor. 1718-1820, Viseu Palimagem Editora,
1998, nota 67; acrescenta, a propósito de outro livro de registos que indiciava a arbitrariedade na
condução do processo: “Neste livro acho muito assentos de em aberto sem procedimento algum contra
os culpados", p. 98.
3490 Anabela Ramos, Violência […], cit., p. 108.
3491 Vicente Nunes Cardoso, “Advogado em Chaves”, “Projecto de hum Systema de Regulamento
para o Processo Civil de Primeira Instancia, por …”, em O Cidadão Literato. Periodico moral, e politico, nº I.
vol. I. 1 de Janeiro de 1821, 2 ss. (https://bdigital.sib.uc.pt/bg4/UCBG-misc365-nr5854/UCBG-
misc365-nr5854_item1/P23.html).
557
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3492 Institutiones juris […] criminalis, Prefácio “Aos estudantes …”, último parágrafo
3493 Pedro Paula Filho, O Bacharelismo Brasileiro. Da Colônia a República, Campinas, 1997.
3494 Victor Nunes Lela, Coronelismo, enxada e voto. O município e o regime representativo no Brasil,
558
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
como que fórmulas mágicas para obter um efeito. Tal como as obrigações, estavam
relacionadas com palavras, declarações e comportamentos típicos fortemente
ritualizados. A sua eficácia não se relacionava com a existência ou não de um direito
prévio, mas apenas com a recitação rigorosa da fórmula cumprimento rigoroso do
ritual, o qual propiciava a produção do efeito. Na sistematização das ações
sobrelevavam estes aspetos formais. A grande partição das ações assentava na sua
forma. Nomeadamente, no facto de a sua concessão se basear na ocorrência das
precisas condições estabelecidas na lei (das Doze Tábuas) (legis actiones, ações da lei)
ou antes, como aconteceria mais tarde, de ter sido ordenada pelo magistrado, por
consideração de oportunidade (utilitas, aequitas), apesar de não se verificarem os
pressupostos legais para a sua concessão, nomeadamente, a falta de um título ou
negócio formais exigidos pela lei (actiones praetoriae, ações do pretor).
§ 1913. A escolha de actiones como epígrafe da terceira parte da sistematização
de Gaius-Justinianus traduz esta ideia de que as ações eram institutos jurídicos que
tinham o princípio em si mesmos, num ato fundador da lei que as concedia. E não,
como mais tarde se considerará, expedientes processuais para dar realidade a algo
que lhes subjazia – um direito, um contrato, um delito. As ações eram formais e
não causais, no sentido de que nelas não se tinha que identificar a causa da
pretensão do autor, mas apenas que cumprir os requisitos formais que a lei exigia
para que a ação pudesse ser concedida. Por isso, o que era indispensável na fórmula
era a designação do nome da ação que se pedia (intentio) e não tanto a descrição da
situação de facto que fundaria a pretensão (demonstratio), a qual só se tornava
necessária quando a intentio (o pedido) era incerta3496, e justamente para precisar o
pedido.
§ 1914. A diluição deste formalismo inicia-se na fase clássica do direito romano,
ainda antes da lex Aebutia de formulis (c. 150 a.C.), e teve várias consequências.
§ 1915. A primeira foi a de enfraquecer a ideia de que o fundamento da ação
Institutiones iuris civilis, 2_formulas. Indicações bibliográficas para desenvolvimentos: Max Kaser, Direito
privado romano, tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle, Lisboa, Fundação. Calouste
Gulbenkian,1999; id. Das römische Zivilprozessrecht. Handbuch der Altertumswissenschaft. Abteilung 10:
Rechtsgeschichte des Altertums. Vol. 3.4. München 1996; outra bibliografia -
http://books.google.com.br/books?id=iklePELtR6QC&pg=PA791&lpg=PA791&dq=procedura+civil
e+romana&source=bl&ots=OhY-CyzP0n&sig=IhN7mLyTLoP0NDQFjaXnDwPXc90&hl=pt-
PT&sa=10&ei=X9WLUfGDE4z89gSf8oCQAg&redir_esc=y#v=onepage&q=procedura%20civile%20
romana&f=false.
3496 Gai Institutiones, 4.39. Partes autem formularum hae sunt: demonstratio, intentio, adiudicatio,
condemnatio. 4.40. Demonstratio est ea pars formulae, quae principio ideo inseritur, ut demonstretur
res, de qua agitur [aquela parte da fórmula, por isso inserida no início, em que se descreve aquilo por que
se age em juízo], velut haec pars formulae: quod Aulus Agerius Numerio Negidio hominem vendidit,
item haec: quod Aulus Agerius <apud> Numerium Negidium hominem deposuit. 4.41. Intentio est ea
pars formulae, qua actor desiderium suum concludit [aquela parte da fórmula em que o autor indica a
sua pretensão] velut haec pars formulae: Si paret Numerium Negidium Aulo Agerio sestertium x milia
dare oportere; item haec: Quidquid paret Numerium Negidium Aulo Agerio dare facere <oportere>;
item haec: Si paret hominem ex iure quiritium Auli Agerii esse. 4.42. Adiudicatio est ea pars formulae,
qua permittitur iudici rem alicui ex litigatoribus adiudicare, uelut si inter coheredes familiae erciscundae
agatur aut inter socios communi diuidundo aut inter vicinos finium regundorum. nam illic ita est:
Quantvm adiudicari oportet, iudex, Titio adiudicato. 4.43. Condemnatio est ea pars formulae, qua iudici
condemnandi absolvendiue potestas permittitur, velut haec pars formulae: Iudex, Numerium Negidium
Aulo Agerio sestertium x milia condemna. si non paret, absolve; item haec: Iudex, N. Negidium A.
Agerio dumtaxat x milia condemnato. si non paret, absolvito; item haec: Iudex, N. Negidium A. Agerio
condemnato et reliqua, ut non adiciatur dumtaxat.
559
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
estava numa certa liturgia de atos ou de palavras, permitindo assim que emergisse a
ideia de que o fundamento da ação era a vontade, o consentimento, o pacto ou o
contrato, a relação jurídica subjacente, que se tornava na “substância” do direito
(direito substantivo), reduzindo o plano processual a um aspeto apenas adjetivo 3497.
Com isto, na sistematização temática do direito proposta por Gaius, a pré-história
da ação ganha protagonismo: genéticos passam a ser o contrato e o delito que estão
na origem das pretensões do autor. Então a epígrafe dos “terceiros livros” das
Institutiones passa a ser, não a ação, mas a obrigação ou, como em A. Vinnius, a
obrigação e o delito, o que leva à divisão do livro 3 em dois. Em Melo Freire, mais
limitadamente, mantém-se a unidade do “terceiro livro”, mas as obrigações ganham
primazia sobre as ações, sendo tratadas em primeiro lugar.
§ 1916. Em segundo lugar, a decadência do formalismo fez com que a
explicitação do nome da ação no libelo (intentio) se tornasse quase irrelevante,
cedendo a primazia a uma descrição substancial da matéria de facto que gerara a
pretensão do autor3498. A determinação do modelo de ação que se pedia passou a
ser secundário, podendo cumular-se ou usar-se alternativamente ações, desde que
isso contribuísse melhor para a satisfação do desiderato do autor. Nesse sentido,
todas as ações passaram a ser modeladas pela factualidade, pela situação em que
surgia a demanda, correspondendo àquilo que no processo romano clássico se
chamava actiones in factum conceptae. Em contrapartida, as ações formais, com nome e
modelos fixos (actiones legis), tendem a desaparecer. Em Portugal, as Ordenações (Ord.
fil.3,1,13) dispensam a nomeação do nome da ação no libelo, substituindo-a por
uma descrição suficiente dos factos em que se baseava a pretensão do autor.
§ 1917. Depois, a desformalização e desritualização do processo fomentou uma
exposição menos atomística das formas de processo, cada qual ligada a uma ação
particular, o que culminou na identificação de princípios gerais comuns a todas as
ações. No seu Tratado da forma dos libelos (1549)3499, uma obra confessadamente
prática, Gregório Martins Caminha trata uma por uma as ações, tais como vinham
enumeradas nas Institutiones de Justiniano, sem se abalançar a uma visão de conjunto
que salientasse traços comuns ou princípios gerais3500. Mas João Martins da Costa
(15--/16--), que anota copiosamente a mesma obra c. de 50 anos depois (1610), já
tenta libertar-se desta descrição atomística de cada ação (libelo) para tentar
3497 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,VI,26: “todas as obrigações derivam do
consenso e não de palavras orais ou escritas”. Cf. também a nota ao texto. Num outro passo, ao
justificar que o livro 4, cujo tema tradicional eram as ações, incluísse as obrigações e até começasse por
estas, pondera que as obrigações são “como que as mães das ações” (“Prefácio” ao Livro 4).
3498 Modelo que o direito romano clássico conhecia, mas apenas para um certo tipo de ações, as
1549; o A. foi corregedor em Cabo Verde, de 1560-1562). Nova edição, com anotações de João Martins
da Costa, a partir da ed. de 1610; ed. de 1764, p. 3 (http://bibdigital.fd.uc.pt/H-D-22-11/H-D-22-
11_item2/H-D-22-11_PDF/H-D-22-11_PDF_01-C-R0120/H-D-22-11.pdf, 2013.8.12; foi sendo
reeditado até 1824).
3500 O mesmo faz Manuel Mendes de Castro, na sua célebre Practica lusitana […], cit., no seu livro 4
(De actionibus, et quae in unaquaque earum de stylo requirantur), embora comece o livro por dizer que muitas
das distinções tradicionais das ações se tinham tornado escusadas na prática, pois o nome da ação não
tinha que se exprimir no libelo. A fórmula das ações hoje não é necessária, bastando a exposição dos
factos que fundavam o pedido (Ord. fil.3,63, fin.); e, de facto, no livro 3 (Practica saecularis. De modo, et
forma procedendi in causis civilibus, p. 77-139), adota uma exposição geral da ordem e atos do processo.
560
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
identificar princípios gerais comuns a todas ou, pelo menos, a um grupo delas.
Segundo ele (Adnotatio I. ns. 1 e 2), os juízes discretos e os advogados conhecedores
mais antigos costumavam examinar diligentemente a forma dos libelos e a
qualidade da ação proposta, justamente porque a sentença se formaria de acordo
com o teor do libelo, conforme a Ordenação - (lib. 3, tit. 66, § 2: "Conforme ao libelo").
Em contrapartida, os juristas “mais modernos”, teriam mostrado “de forma
elegante” que “mais do que descer aos particulares dos libelos, convém antecipar
algumas coisas a partir de proposições universais, pois, na verdade, os progressos
de todas as disciplinas são deduzidos corretamente a partir de preceitos gerais. As
coisas gerais ou universais são sem dúvida o fundamento de todas as especialidades
e necessárias ao conhecimento das coisas individuais”. “E assim – acrescenta (n. 2)
-, para o esclarecimento de todos os libelos, é de observar, em geral” uma série de
definições e regras gerais3501.
§ 1918. Por fim, a desformalização do processo trouxe para primeiro plano
outros elementos da ação, nomeadamente o seu objetivo – obter uma coisa, obrigar
a um comportamento (pagamento, prestação de coisa ou de facto) -, o seu
destinatário, os seus requisitos (por exemplo, quanto a prova). São estes elementos
que vão passar a constituir os critérios de agrupamento das ações em géneros,
embora subsistam ainda resíduos das classificações antigas (v.g. a distinção entre
ações diretas e ações úteis, entre ações de direito estrito e ações de equidade, entre
ações civis e ações pretórias). Porém, à medida que ganhava relevo a finalidade da
ação, as distinções formais iam, progressivamente, sendo consideradas como
irrelevantes.
§ 1919. Com este progressivo processo de desformalização do processo, nesta
fase tardia do direito comum muito pouco restava já dos elementos puramente
rituais do processo romano.
§ 1920. Um resíduo das ações sujeitas a ritos (neste caso, ao rito da escrita) era a
ação chirografica, concedida para fazer valer as reclamações fundadas numa escritura
pública, sempre que a essa fosse reconhecido o valor de título executório direto.
Neste caso, para exigir os direitos constantes da escritura, bastava apresentá-la, sem
necessidade de outra demonstração (demonstratio) do direito3502. A causa da
pretensão era a mera existência de um documento e não qualquer situação de facto
anterior a este. Em Portugal, porém, a escritura pública não tinha esse valor
executório, dando apenas lugar a uma ação chamada assinação de dez dias, em que,
citado o devedor e apresentada a escritura, ao devedor era dado um prazo de 10
dias para provar o pagamento ou opor e provar as exceções disponíveis, algumas
das quais se podiam relacionar, não com o título executivo, mas com a causa
substancial que o antecedia. A assinação de 10 dias garantia também as obrigações
constantes de outros “títulos executivos”3503: letras de câmbio3504, livros dos
pretium erit; enim vero omnis disciplinae progressus a generalibus praeceptis recte deducitur [...] ubi
eleganter exornat noviores. Generalia quippe, seu universalia sunt veluti cujusque artis fundamenta ad
omnium speciarum, atque individuorum congnitionem omnino necessaria. 2. Igitur ad evidentiam
omnium libellorum generaliter observandum est [...].”.
3502 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,27.
3503 A assinação de 10 dias não era uma ação executiva e, por isso, estes escritos que a autorizavam
não eram verdadeiros títulos executivos (v. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv.
3,21,10, n. 57; Alexandre Caetano Gomes, Dissertações […], Diss. 6 a Ord. fil. 3,25.
561
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3504 Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 76; Melchior Febo, Decisiones […], cit., p. 1, Aresto 37.
3505 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,28.
3506 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,29 (desde que a obrigação não passasse de
3508 Em contrapartida, havia penas arbitrárias, sempre que no estabelecimento de um crime não se
562
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
563
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
acabamos referimos.
§ 1929. Em Manuel Mendes de Castro3509, o tratamento das ações segue uma
ordem menos atenta a uma classificação por objeto ou finalidade do que à estrutura
romana do processo e às suas categorias.
§ 1930. Primeiro trata das ações civis (actiones legis) pessoais (dirigidas contra
alguém individualizado), enumerando a condictio (c. 1)3510 e a actio furtiva (ou actio furti,
c. 1)3511. Depois, trata das ações civis reais (dirigidas a quem quer que estivesse em
certa situação objetiva relacionada com uma coisa), enumerando a reivindicatio
(c.2.1)3512, as actiones confessoria ou negatoria (c. 2.2)3513. Finalmente, trata das ações
civis mistas (c. 3), como a actio familiae erciscundae (c. 3.1)3514, a actio communi dividundi
(c. 3.2)3515, a actio finium regundorum (c. 3.3)3516.
§ 1931. Seguidamente, Castro trata das ações pretórias, de que refere a
revocatoria (c. 4.1.)3517, as Clavisiana e Fabiana3518, a Serviana hypothecaria (e
pignoratitia) (c. 4.2)3519 e outras ações pessoais pretórias (v. cap. 6.9.2.3.2), que
alargaram a responsabilidade do pagamento a outros que não o devedor originário,
ou porque estas pessoas se obrigaram a isso (por meio de um pacto, constitutum,
donde actio de pecunia constituta), ou porque mandaram outrem obrigar-se (actio
quod iussu), ou porque tinham entregue a outrem um conjunto de bens para que
este os gerisse (actio institutoria, exercitoria 3520, c. 6.2; actio de peculio, c. 6.13521),
comprado a coisa.
3512 Pela qual se pedia a entrega de uma coisa com fundamento num direito de propriedade
de outro direito incorporal, como o de cobrar décimas, de apresentar, de eleger) e que prometesse
abster-se de o perturbar; na negatoria pedia-se que o réu negasse ser titular do direito com fundamento no
qual perturba a propriedade do autor.
3514 Para dividir a herança, a pedido de um co-herdeiro, testamentário ou abintestado.
3515 Para pedir a divisão de coisa comum, por um dos comproprietários ou sócios.
3516 Para pedir a marcação ou remarcação das extremas de um prédio, em relação aos confinantes,
terceiros adquirentes o prédio e as coisas que lá estivessem (invecta et illata) ou os frutos produzidos, nos
casos de incumprimento da dívida garantida. Também se usava para pedir os frutos que se encontrassem
no prédio arrendado, como compensação das rendas em dívida, pois o colono ou arrendatário só
adquiria os frutos uma vez paga a renda. A actio quasi serviana era uma extensão da actio serviana a todos os
bens - rústicos ou não - arrendados ou hipotecados.
3520 Dadas contra aquele que constitui um estabelecimento (taberna, negotium; actio institutoria) ou
contra o dono do navio (actio exercitoria), pelas obrigações contraídas pelo administrador do
estabelecimento ou patrão do navio e relacionadas com o exercício do negócio.
3521 Dava-se contra o pai, pelas obrigações contraídas pelo filho no âmbito da gestão dos bens que
564
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ou porque tinham adquirido algo que não lhes era devido e que deviam reembolsar
ao seu dono (actio de in rem verso), ou porque tinham uma qualidade (ou estavam
numa situação) que criava responsabilidades (a de pai do devedor, actio adjectitiae
qualitatis).
§ 1932. Depois de uma referência às ações praetoriae praejudiciales (praetoriae quae
ad poenam competunt, c. 7) que visavam apenas uma declaração e não uma
condenação3522, tratava das ações de boa fé (actiones bonae fidei, c. 8.1), quase todas
decorrentes de contratos não (completamente) tutelados pelo ius civile. Refere a actio
ex empto (§ 1)3523, a evictio (§ 2)3524, a actio redhibitoria (§ 3)3525, a actio ex vendito (§ 5)3526,
a actio locati, conducti (§ 6)3527, a actio pro socio (§ 7)3528, a actio depositi (§ 8)3529, a actio
mutui (§ 9)3530, a actio commodati (§ 10)3531, a actio mandati (§ 11)3532, a actio negotiorum
gestorum (§ 12)3533, as actiones tutellae (§ 13)3534, a actio petitionis hereditatis (§ 14)3535, a
actio pro dote (§ 15)3536 e ação de rescisão de contrato sinalagmático por lesão.
§ 1933. Seguidamente, trata das actiones arbitrariae personales in rem scriptis (c. 9),
destinadas a impedir ações legítimas fundadas em contratos nulos: actio quod metus
causa (§ 1)3537; actio ex dolo (§ 2)3538. E, por fim, trata de algumas ações sumárias e de
interditos: actio ad exhibendum (§ 3)3539, interdictos (c. 10) possessórios3540. Fechava (c.
3525 Dada ao comprador de uma coisa defeituosa (veluti si vendatur domus, quae habet phantasmata [!!!],
vel qua habet malos vicinos) para resolver o contrato recuperando o preço (ou reduzir este: actio quanti
minoris, n. 4).
3526 Inversa à actio ex empto, para obter o pagamento do preço.
3527 Competia ao dono da coisa para ser indemnizado dos danos causados pelo locatário à coisa
(móvel, imóvel, trabalho) locada ou para obter a sua restituição findo o tempo do contrato; ou para
pedir o uso convencionado da coisa locada (D.19,2).
3528 Para um sócio obter do outro aquilo que lhe competisse segundo o contrato ou segundo a
depósito (contraria).
3530 Para reclamar as prestações recíprocas de um contrato de empréstimo de dinheiro.
3533 Para exigir o cumprimento das obrigações – de prestar contas, de pagar as despesas - que a boa
fé criava sempre que alguém gerisse um negócio de outrem sem mandato (I. 3.27, 1; D.3, 5, 1, 3).
3534 Do pupilo contra o tutor para que prestasse contas (directa) ou para que o tutor exigisse do
que a possui.
3536 Para o genro pedir o dote ao sogro que consentiu no casamento, embora o dote não tivesse
sido prometido.
3537 Para que aquele sobre quem foi exercida coação se liberte da obrigação
(http://eprints.ru.ac.za/988/1/Metus.pdf).
3538 Para libertar das promessas aquele que foi enganado.
3539 Ação sumária dada ao proprietário, ao possuidor ou a alguém que tivesse interesse nisso para
que qualquer posse nova, que não pudesse coexistir com a antiga, era clandestina ou viciada; uti possidetis
- ordem para manter uma posse pacífica e pública (nec vi nec clam nec precario), que tivesse sido perturbada;
565
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
11) com as ações que provinham de malefícios: actio iniuriarum (§ 1)3541; actio legis
Aquiliae (§ 2)3542; actio noxalis3543.
§ 1934. Mais tarde, a ordem das exposições da matérias das ações terá mais em
conta o conteúdo da ação – aquilo que se pede – do que estas categorias formais
legadas pela história do processo romano. Assim, Pascoal de Melo já simplifica e
substancializa bastante a ordem expositiva. Para ele, são apenas quatro os tipos de
ações: (i) ações sobre o estado das pessoas (ou prejudiciais), (ii) ações em que se
reclamam (de qualquer pessoa que seja) coisas (reais, reivindicationes), (iii) ações em
que se reclamam direitos a certa(s) pessoa(s) (pessoais, in personam, condictiones
[reclamações]), (iv) acções mistas, participando das duas últimas categorias (Ord. fil.
3,15)3544.
§ 1935. É destes grupos que se trata em seguida. Mas o que é certo é que a
memória dos modelos romanos e do seu formalismo continuou a pesar sobre a
dogmática processual, sobrecarregando-a de nomes, de modelos, de formalidades e
de distinções que já não estavam em uso na prática.
7.1.3.1 As ações prejudiciais.
§ 1936. As ações prejudicais, relativas ao estado das pessoas, serviam para
reivindicar um dos três tipos de “estado” reconhecidos pelo direito civil: de
liberdade, de cidadania (ou civil, civitatis) e de família. Embora o estado não fosse
uma “coisa”, há uma certa semelhança entre estas ações e as ações reais, pois umas
e outras tinham uma eficácia geral, em relação a todos (erga omnes), e não apenas em
relação à pessoa de quem se reclamava o reconhecimento do estado 3545. Entre as
ações do primeiro tipo contam-se as ações de liberdade, frequentes nas regiões
onde a escravatura era corrente, e que serviam para o alegado escravo requerer a
liberdade contra o seu senhor 3546. As ações sobre o estado civil compreendiam a
reclamação/o reconhecimento, não apenas da qualidade de cidadão, mas também
de outras situações civis relevantes numa sociedade de estados (qualidade de
cidadão ou de vizinho3547, titularidade de ofício, de dignidade ou de privilégio). As
ações sobre o estado de família visavam o reconhecimento de um estado familiar
(de filho [actio de partu agnoscendo], de titular de direito a alimentos, de outra qualidade
ou estado relativo à família)3548.
adipiscendae hereditatis - ordem para que o herdeiro já reconhecido como tal adquirisse a posse da herança
vacante:
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Interdictum.html,
14.08.2013.
3541 Pedia uma certa soma como compensação do dano (damnum) causado por injúria (ato ilícito:
"quod non jure factum est, hoc est contra jus,” D.9, 2, 5.1;
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0063:id=injuria-cn) ao injuriado.
3542 Pedia uma indemnização pelo dano causado por morte ou ferida infligidos culposamente ao
autor.
3543 Ação dada ao injuriado contra o dono ou pai do escravo ou filho injuriante. No caso de dano
566
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3549 Cf. Anotação (Adnot. II) de João Martins da Costa a Caminha, Tratado da forma dos libelos, ed.
1764, p. 5. Fontes: Ord. fil. 4,10 ("se hum homem demandasse a outro alguma cousa, dizendo ser sua").
3550 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3,1,12.
3551 I.4 De actionibus,6,1; D.6,1 De rei vindicatione; C.3,32.. V. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,
cit., 4,6,10.
3552 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 4,6,10.
3554 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado […], cit., ed. 1764, “Libello sobre a acção revogatória
pelos bens, que o devedor alheou em prejuízo do credor” e Annot. V (p. 11 ss.).
3555 D.42,8 Quae in fraudem creditorum, 9 e 10.
567
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
devedor como se fossem o devedor e a alienação fraudulenta não tivesse tido lugar.
Em alternativa, podia usar-se uma ação pessoal contra o devedor, para anular todos
os atos em que tivesse diminuído o seu património – alienando bens ou perdoando
dívidas - em fraude dos credores, com a cumplicidade dos terceiros beneficiados.
§ 1942. Um outro caso de ação real com fundamento num direito que não era a
propriedade plena era a ação publiciana, que se usava no caso de o autor ter um
direito sobre a coisa a reivindicar que não era ainda a propriedade – por exemplo,
era seu possuidor em condições suficientes para a adquirir por usucapião 3556. O
autor tinha que provar a posse, a sua duração, o justo título. O demandado podia
opor, por exceção, uma posse melhor.
§ 1943. Como o direito à herança era considerado como quase propriedade, o
herdeiro (legitimo, testamentário ou pactício3557) ou o legatário também podiam
usar de uma ação real para pedir a herança contra alegados sucessores e,
assessoriamente, para serem reconhecidos como sucessores válidos – a ação de
petição da herança3558. O réu podia defender-se com exceções relativas à invalidade
ou revogação do testamento ou da cláusula testamentária ou quanto à legitimidade
sucessória do autor. Uma forma especial de petição de herança era a querela de
testamento inoficioso em que se pedia a herança contra um pretenso sucessor
testamentário beneficiado por uma cláusula testamentária inválida 3559. Semelhante
era a querela de doação inoficiosa.
§ 1944. Reais eram ainda as ações em que o dono do prédio dominante
(servido) reclamava o reconhecimento de uma servidão, real ou pessoal (serviços;
v.g. direitos banais), a favor desse prédio (ação confessória). Ou em que aquele de
que se pretendia a servidão exigia do dono do prédio dominante o reconhecimento
da não existência da servidão (ação negatória) 3560 3561. Aqui, o fundamento era um
direito real não pleno, pelo que a reivindicação, em sentido estrito, não poderia ser
usada. O fundamento da ação negatória era também um direito real – a presumida
plenitude da propriedade (ou liberdade natural dos prédios) -, que ficaria
prejudicada pela existência de uma servidão passiva. Como se tratava de ações reais,
pressupunham que a servidão já estava constituída (por usucapião, contrato,
testamento). As exceções a esta ação relacionam-se com nulidades no título de
constituição da servidão, como a sua extinção, a sua desnecessidade, o seu caráter
excessivo ou, simplesmente, a não existência da servidão no momento da ação.
Caso a servidão não existisse, sendo apenas pedida a sua constituição, a ação a usar
era antes uma ação pessoal (v. cap. 4.3.7).
§ 1945. Equiparada à propriedade plena era o direito do marido sobre os bens
dotais na constância do matrimónio. Assim, estes podiam ser por ele
reivindicados3562.
3560 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., ed. 1764, Libelo na ação
confessória para pedir serventia, p. 6; Libelo na acção negatória para pedir serventia, p. 9.
3561 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,17.
3562 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,12. Excecionalmente, a reivindicação cabia à
568
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 1946. Outra ação real era a ação hipotecária, pela qual os credores
hipotecários pediam ao devedor ou a terceiros possuidores das coisas dadas em
hipoteca, o pagamento da dívida ou a entrega dessas coisas (Ord. fil.4,3) 3563. As
exceções oponíveis baseavam-se ou em circunstâncias relacionadas com a validade
ou permanência da dívida ou com o caráter subsidiário da garantia hipotecária, que
exigia que, antes de ser acionada, se esgotasse o património do devedor, como
garantia comum dos credores (privilégio de excussão prévia). Note-se que a ação do
devedor para obter de volta as coisas penhoradas, uma vez paga a dívida, era uma
ação pessoal, o que é consistente com a ideia de que o direito do credor sobre elas
era um verdadeiro direito real, tutelado por uma ação real.
§ 1947. Também no caso de o autor não-ser titular da propriedade plena, como
nos casos de domínio dividido (v.g. a enfiteuse), não estariam reunidas as condições
para usar da reivindicação direta, mas apenas da útil 3564. Esta aproveitava a qualquer
dos titulares do domínio dividido. No caso da enfiteuse, por exemplo, qualquer dos
donos (senhorios) podia reivindicar o senhorio de que não estivesse em posse, se
entendesse pertencer-lhe (o senhorio direto podia reivindicar o domínio útil e o
foreiro o senhorio direto). Havia quem entendesse que esta distinção era inútil, pois
as ações úteis apenas existiam devido a especialidades do sistema processual
romano e, na prática, tinham os mesmos efeitos.
§ 1948. Uma ação relacionada com a reivindicação era a de mera exibição da
coisa (ad exhibendum). O seu interesse era pequeno, já que se podia pedir a exibição
na petição da ação reivindicatória3565, embora houvesse casos em que o interesse
em que a coisa fosse exibida era autónomo (v.g. para exercer a opção ou escolha
entre várias coisas, quando se tivesse essa faculdade).
7.1.3.3 As ações pessoais.
§ 1949. Uma outra categoria de ações era a das ações pessoais.
§ 1950. As ações pessoais nasciam de uma obrigação pessoal, por sua vez
originada num facto lícito – contrato ou quase contrato - ou ilícito – delito ou
quase delito – embora esta enumeração de fundamentos da ação deixasse de fora
algumas causas de pedir3566.
§ 1951. A ação geral para pedir o cumprimento de um pacto era a actio ex
pacto3567. As exceções que lhe podiam ser opostas estavam relacionadas com factos
que afetassem a validade do contrato – como a invocação de erro, simulação, dolo,
coação -, a impossibilidade ou imoralidade da promessa -, o defeito de forma, a não
verificação de uma condição aposta no pacto (v.g. si nupseris, se casares) –, a
cessação da causa de dever – como o pagamento, a prescrição extintiva, a
verificação de uma condição resolutiva, etc..
§ 1952. Se a causa do débito era um contrato, a ação para o exigir era a ação
relativa a esse contrato (ação de mútuo, de escambo ou troca, de locação de obras,
569
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
570
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
571
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
contrato)3576. Este interdito não protegia apenas coisas imóveis, mas também coisas
móveis e incorporais como a jurisdição, a honra ou qualquer outro direito 3577. Na
prática foi introduzida a ação de esbulho, para reintegrar na posse aquele que
tivesse sido objeto de esbulho (força nova)3578. Ambos os expedientes processuais
eram sumários, bastando a narração dos factos.
§ 1963. O prazo para a sua instauração era de ano e dia3579.
§ 1964. O interdito adipisciendae possessionis destinava-se a pedir a entrega da
posse dos bens da herança, sempre que esta estivesse na posse de outrem que não o
testamenteiro3580. O possuidor podia opor todas as exceções que invalidassem a
sucessão (v.g. não falecimento do de cujus) ou o título sucessório (nulidade do
testamento ou cláusula testamentária, falta de qualidade de sucessor por parte do
autor), bem como a não pertença do bem à herança.
§ 1965. Havia outros interditos. Destacam-se, pela sua frequência na prática, os
que visavam acautelar a disciplina jurídica das edificações urbanas, disciplina que
decorria ou de regulamentações camarárias ou dos direitos dos prédios vizinhos
(direitos à luz e sol, às vistas, à privacidade, à proteção contra as chuvas que caiam
dos beirados vizinhos). O interdito de denunciação de obra nova (operis novi
nuntiatio)3581 pedia que o juiz intimasse o que estava a construir um edifício para
parar a obra enquanto não se provasse que tinha o direito de construir por não
haver impedimentos públicos (edilícios) ou particulares (nomeadamente,
impedimentos por direitos dos vizinhos). Este interdito só podia ser intentado
durante a obra, sendo substituído por um outro, este para pedir a demolição de
construção feita às escondidas ou usando de violência sobre o possível denunciante
(quod aut vi aut clam3582), se a obra já tivesse terminado. O edificante podia continuar
a obra se prestasse caução para garantir que a demoliria caso fosse considerada
contra o direito3583.
7.1.4 Conclusão.
§ 1966. As ações tratadas por Pascoal de Melo correspondem às referidas por
Manuel Mendes de Castro ou por Gregório Martins Caminha. Já estes, que ainda se
acomodavam à ordem romana de exposição, notavam como o tratamento da
matéria processual segundo os nomes e classes do direito romano se tinha tornado
artificial no foro . Com o desuso do formalismo processual romano - que obrigava
a indicar, na petição inicial (libelo) o tipo de ação que se pedia -, o meio processual
que o tribunal iria desencadear passou a decorrer apenas da própria narração dos
factos feita pelo autor na petição. Se lermos as fórmulas de libelo de Caminha,
verificamos que elas nada contêm sobre os meios de direito para satisfazer o autor,
apenas descrevendo os factos e enunciando a pretensão do autor. Nesse sentido,
3580 Cf. Manuel Mendes de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., 4, cap. 10, n. 3.
3581 D.39, 1, 12; Ord. fil. 1,66, 23 e 25; 3, 78, 4. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,33.
3583 V. L. de 24.7.1713.
572
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
todas as ações eram modeladas pelos factos (todas eram in factum conceptae). E,
assim, os dados de facto alegados podiam desencadear várias ações
cumulativamente, que se desenrolariam à medida que a averiguação mais detalhada
e certa dos factos se fosse verificando3584. Era o chamado concurso de ações, que se
ia simplificando com o apuramento dos factos e a verificação da insubsistência de
algumas delas. O processo deixara de ter uma espessura e dinamismo próprios, em
que um rito processual gerava “magicamente” um resultado material; passando,
progressivamente, a constituir um meio instrumental, adjetivo, para efetivar
pretensões tuteladas pelo direito (substantivo).
7.1.5 Os elementos do processo.
§ 1967. Independentemente dos modelos tradicionais a que obedeciam os
meios processuais (ações, interditos), a forma de discutir juridicamente uma causa e
de a decidir – o juízo 3585, a palavra que então designava o que hoje chamamos de
processo - tinha certos elementos comuns, algo que parecia corresponder a uma
ordem natural de processar uma pretensão jurídica. Foi sobre esta ideia que se
construiu a noção de que existia um processo ordinário (ou comum) e uma teoria
unificada do processo3586.
§ 1968. No clássico Vocabularium iuris (1559), de Antonio de Nebrija, registam-
se vários sentidos da palavra “juízo” (iudicium), sendo o correspondente ao que nos
interessa o seguinte: “instância ou ordem de discutir uma causa em direito, perante
o juiz […] É um ato legal de três pessoas, ou seja, o juiz, o autor e o réu, incidindo
sobre a mesma questão e sobre o mesmo juízo” (“instantia vel ordinatione causae
discutendae in iure coram iudicem […] Est actus legitimus trium personarum,
scilicet iudicis, actoris, & rei, super eadem quaestione aut super eodem iudicium
contractus”), v. “iudicium”). Cerca de um século depois, um dicionarista português
famoso define o juízo “como que a posição jurídica, na qual é discutida a justiça [de
uma situação] por aquele que tem jurisdição” (“Dicitur iudicium quasi iuris status,
quo discutitur justitia ab illo, qui habet iurisdictionem [...]”)3587. Já na segunda
metade do séc. XVIII, a definição é similar: “a discussão jurídica de uma causa e a
sua decisão feita por juiz competente” 3588. Os juízos eram classificados segundo as
causas, as pessoas dos litigantes, e os modos de litigar, sendo, por isso, cíveis ou criminais,
eclesiásticos ou seculares, ordinários ou sumários.
§ 1969. Os elementos necessários de qualquer juízo eram: (i) uma certa ordem
processual, pela qual se decidia o modo de discutir; (ii) um juiz competente; (iii)
autores e réus3589.
7.1.6 A ordem do processo.
§ 1970. A ordem processual podia ser de direito natural, válida para todas as
causas, estabelecendo tudo aquilo que, por natureza, devesse fazer parte de uma
controvérsia jurídica. A ordem processual civil compreendia, para além disto, as
573
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3590 Para a ordem judiciária romana justinianeia, que veio substituir o agere per formulas, v. Nov. 53,
c. 3; Nov. 112, c. 2 e 3. Mais influente no processo medieval e moderno foi a ordem processual do
direito canónico, contida nas Decretais (l. II). Cf. as leis pelas quais são recebidos em Portugal e
sucessivamente modificados os modelos processuais do direito comum (L. 21.7.1310, L. 15.9.1352, em
Ord. af. 3,20; Ord. man. 3, 15; L. 5.7.1526, Leis extravagantes de Duarte Nunes de Leão; Ord. fil. 3,20).
3591 V. Ord. fil. 5,117 ss..
3592 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., Acções sumárias, p. 1, cap. 5, n. 2 ss.;
3594 Clem.5,11,2: “Saepe contingit causas committimus, & in earum aliquibus simpliciter & de
plano, ac sine strepitu, & figura iudicii procedi mandamus: de quorum significatione verborum a multis
contenditur, & qualiter procedi debeat dubitatur. Nos autem dubitationem hujusmodi (quantum nobis
est possibile) desidere cupoientes hac in perpetuum validatura constitutione sancimus, ut iudex, cui
taliter causam committimus, necessario libellum non exigat, litis contestationem non postulet, tempore
etiam feriarum ob necessitates hominum indultarum a iure, procedere valeat: amputet dilationum
materiam, litem quantum poterit faciat breviorem, exceptiones, appelationes dilatorias & frustratorias
repellendo: partium advocatorum & procuratorum contentiones & iurgia, testisque superfluam
574
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
multitudinem refraenando. Non sic tamen iudex litem abbreviet, quin probationes necessariae, &
defensiones legitimae admittantur. Citationem vero ac praestationem iuramenti de calumnia vel malicia,
sive de veritate dicenda, ne veritatis occultetur, per commissionem hujusmodi intelligimus non excludi.
Verum quia iuxta petitionis formam pronuntiatio sequi debet, pro parte agentis, et etiam rei, si quid
petere voluerit, est in ipso litis exordio petitio facienda, sive in scriptis, sive verbo, actis tamen continuo
(ut super quibus positiones & articuli formari debeant, possit haberi plenbior certitudo, & ut fiat
deffinitio clarior) inferenda. Et quia positiones ad faciliorem expeditionem litium propteer partium
confessiones & articulos ad clariorem probationem usus longaevus in causis admisit. Nos usum
hujusmodi observari volentes, statuimus, ut iudex sic deputatus a nobis (nisi aliud de partium voluntate
procedat) ad dandum simul utrosque terminum dare possit, & ad exhibendam omnia acta & munimenta
quibus partes uti volunt in causa post dationem articulorum diem certam, quandocunque sibi videbitur,
valeat assignare: eo salvo, quo ubi remissionem fieri contingeret, pro testibus producentis possint etiam
instrumenta produci, assignatione hujusmodi non obstante. Interrogabit etiam partes, sive ad earum
instantiam, sive ex officio ubicunque hoc aequitas suaderit. Sententiam vero deffinitivam (citatis ad id
licet non peremptorie partibus) in scriptis, & (prout magis sibi placuerit) stans, vel sedens proferat: etiam
(si ei videbitur) conclusione non facta, prout ex petitione, & probatione, & aliis actitatis in causa fuerit
faciendum. Quae omnia etiam in illius casibus, in quibus per aliam contitutionem nostram, vel alias
procedi potest simpliciter & de plano, ac sine strepitu & figura iudicii, volumus observari. Si tamen in
praemissis casibus solemnis ordo iudiciarius in toto vel parte non contradicentibus partibus observetur,
non erit processus propter hoc irritus, nec etiam irritandus. Data Avinione 13 Kalen. Decembris,
Pontificatus nostri anno secundo. FINIS” (http://digital.library.ucla.edu/canonlaw /librarian?
ITEMPAGE=CJC3&PREV).
3595 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 1, c. 2.
575
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 1979. O autor devia limitar-se a pedir aquilo que era autorizado pelo direito,
embora o conteúdo deste fosse sempre controverso. Por isso, a petição claramente
abusiva – pelo seu montante, por antecipação no tempo, ou por não se ter realizado
a condição a que a dívida estava sujeita - era penalizada, podendo implicar a
condenação agravada nas custas (singela ou agravada, v.g. dobro ou “tresdobro”,
i.e. três vezes)3597. Um outro meio de limitar a litigância excessiva era obrigar o
autor a prestar caução pelas custas, a pedido do réu (Ord. fil.3,20,6).
7.1.7.2 O réu.
§ 1980. O segundo elemento do processo era o réu, aquele de quem se exigia
um comportamento3598.
§ 1981. A capacidade processual passiva abrangia todos os que podiam
administrar os seus bens. Como o direito de defesa era considerado um direito
natural, a incapacidade passiva era mais restrita do que a ativa; e, assim, os
excomungados (Ord. fil.3,49) e os banidos (Ord. fil.5,126,7) podiam estar em juízo
para se defenderem.
7.1.7.3 O juiz (competente).
§ 1982. Finalmente, o juiz era o magistrado ou homem bom 3599 constituído por
autoridade pública no poder de julgar uma ação (v. cap. 2.6). Como era um
magistrado da república, o seu comportamento devia exprimir disponibilidade para
com todos, mas, ao mesmo tempo, uma gravidade e serenidade que excluíam a
excessiva familiaridade e a leviandade de gestos e postura 3600.
§ 1983. O juiz dispunha de competências que não dependiam de pedido das
partes (ex offcio) e que correspondiam àquilo que se chamava o seu officium nobile: dar
ordem ao processo, averiguar a verdade, administrar a justiça. Daqui decorria que
devesse interrogar os litigantes e testemunhas no que fosse relevante para a causa,
rejeitar os pedidos não pertinentes ou formulados de forma obscura, recusar
testemunhas inábeis, não permitir alegações contra o direito ou feitas de maneira
conflituosa, não permitir manobras dilatórias. Para além disso, tinha que julgar
estudar a causa (Ord. fil.3,66,pr.), em conformidade com o direito (Ord. fil.1,5,4) e
com os factos que estivessem nos autos (Ord. fil. ibid.). Podia ainda suprir ex officio
deficiências formais do processo. A pedido das partes, i.e. no exercício do seu
officium mercenarium, o juiz podia praticar todos os atos que fossem reclamados pelo
interesse de um só dos contendores. E, assim, tratando-se de atos deste tipo, só os
podia praticar sendo requerido 3601. Vigorava quanto a estes atos, em pleno, o
princípio do acusatório, que considerava os atos processuais como expedientes
exclusivamente na disposição das partes.
§ 1984. Os juízes podiam ser ordinários ou delegados.
§ 1985. Os juízes ordinários eram os que detinham uma jurisdição ordinária ou
própria, sendo esta a que tivesse sido conferida, pelo povo, por costume ou
3601 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,22, com exemplos.
576
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3605 Cf. cap. 2.3. Enumeração dos juízes (jurisdições) em Portugal, Manuel Mendes de Castro,
3610 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,30. Cf. cap2.3.
577
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
mesmo processo e pela mesma causa, o réu pede algo contra o autor (non ego in te sed
tu contra me)3611.
§ 1990. Estas regras de determinação do foro competente podiam ser afastadas
por privilégios de foro. Estes podiam ser em razão da causa ou em razão da pessoa.
Os primeiros prevaleciam sobre os segundos.
§ 1991. Na sociedade de ordens de Antigo Regime, os privilégios pessoais eram
inúmeros, estabelecendo foros especiais para certos estados. Na prática, era
impossível enumerá-los exaustivamente, sendo também muito controversa a sua
ordem hierárquica. Isto era uma das causas da confusão jurisdicional, contra a qual,
no séc. XVIII, reagem os juristas iluministas. Em Portugal, Pascoal de Melo
escreve: “[…] segundo eu posso entender, nada mais funesto se pode conceber
para a República que este privilégio do foro, pois, além de as demandas se
tornarem imortais, difíceis e complicadas, por se costumarem pôr infinitas
dúvidas sobre a competência de tal privilégio, que coisa há, pergunto, mais
alheia às razões da justiça e humanidade do que fazer vir de longe à Corte, os
agricultores, artífices, etc.? E sobretudo a requerimento dos mais poderosos que
aí moram, e aí desfrutam de muita autoridade e abundam em muitas
riquezas?”3612.
§ 1992. Causas privilegiadas eram: as “meramente eclesiásticas”, que incidiam
sobre matérias espirituais (Ord. fil.2,20,pr.); as da almotaçaria, que pertenciam à
jurisdição dos almotacés (Ord. fil.2,1,20); as do fisco (Ord. fil.1,9-10; 3,5,5); e as que,
por determinação do rei, geral (lei) ou especial (privilégio), fossem cometidas a
certo juiz.
§ 1993. Em Portugal, tinham ainda privilégio de foro, nas ações em que fossem
autores, nomeadamente: (i) os clérigos3613; (ii) os cavaleiros das ordens militares 3614 -
nas causas criminais, pois nas cíveis seguiam o foro comum 3615; (iii) os cavaleiros de
Malta, em todas as causas3616; (iv) os soldados, nas causas crime (só após os alvs.
24.10.1764 e 14.2.1772, sobre a jurisdição do Conselho de Guerra); (v) os
estudantes da Universidade de Coimbra (Ord. fil.3,12,1). Gozavam de foro
privilegiado, como autores ou como réus: (i) os moedeiros (Ord. fil.2,62, Alv.
25.5.1733); (ii) os desembargadores (Ord. fil.1,1,8,6; 2, 59,10-13; 3, 5, pr.); (iii) os
juízes deputados, oficiais e tesoureiros do Tribunal da Bula da Cruzada3617; (iv) os
menores órfãos de pai, as viúvas, as mulheres (honestas) e as pessoas miseráveis
(Ord. fil.3,5,3 e 5), que podiam escolher ou o juiz ordinário do lugar, ou o
Corregedor do Cível da Casa do Porto, como juiz das auções novas (Ord. fil.3,39,5), ou
3611 Cf. Cassiano Malacarne, “A reconventio: uma exceção canônica ao privilégio do foro eclesiástico
3613 Em que casos respondiam perante os juízos seculares, cap. 77. Competência dos tribunais
seculares sobre eclesiásticos (Ord. fil..2,1; comentário em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit.,
tom. 8, ad Ord. fil.2,1); António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 77. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 1,30,2.
3614 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3,48.
578
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3618 A lei também podia restringir o privilégio em certas situações; por exemplo, não o concedendo
à viúva que fosse donatária de bens da coroa (Ord. fil. 2,35,5), ou que tivesse renunciado ao privilégio.
3619 Cf. António Manuel Hespanha, “O Poder Eclesiástico. Aspectos Institucionais”, em José
Mattoso (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). v. 4. cit.; José Pedro Paiva, Os bispos de
Portugal e do Império (1495-1777), cit.; Patricia Ferreira dos Santos, Carentes de justiça, cit.; Pollyanna
Gouveia Mendonça, Parochos imperfeitos: Justiça eclesiástica e desvios do clero no Maranhão colonial, cit., max. p. 43
ss..
3620 Que, no entanto, viu a sua impressão suspensa por ordem régia, até que se expurgasse de
matérias que ofendiam as pretensões jurisdicionais do rei (v. alv.de 20.5.1622, no início). Em 1640, a
obra é incluída no Index, como acontece, no Index romano, com todas as obras de cariz regalista.
3621 Patricia Ferreira dos Santos, Carentes de justiça: juízes seculares e eclesiásticos […], cit., p. 71 ss..
3622 Cf. sobre os juízos eclesiásticos, Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib.
2); Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, caps. 50 ss..
3623 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (= liv. 2).
3624 Sobre eles, Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, caps. 56 a 74.
3625 Cf. Conc. Trento, sess. 6, De reformat. cap. 5; sess. 14, cap. 2; Manuel Mendes de Castro, Practica
lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 1; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 8, disp. 18.
3626 Oficiais subalternos eram o promotor, o escrivão da câmara, o notário apostólico, o
579
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
distribuidor, o inquiridor, o contador, os meirinhos, com funções semelhantes aos seus correspondentes
nos tribunais seculares. Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 54.
3627 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 52, ns. 3 a 5 (o vigário geral faz
tribunal com o bispo e é juiz ordinário). Atribuições dos vigários gerais, ibid. cap. 53.
3628 “Vicarius generalis venit sub nomie ordinarii”, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv.
8, disp. 10, § 4, n. 4; no entanto, “potest omnia quae episcopus, exceptis iis quae sunt ordinis
episcopalis”, ibid. n. 6; sobre os limites das suas competências jurisdicionais, ibid. n. 15.
3629 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 3, n. 2.
3630 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 52, n. 6.
3631 Cf. Conc. Trento, sess. 24, De reformat. cap. 20; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […]
3633 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 2, n. 7; João
580
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3638 Cf. para a da Bahia (criada em 1676), Regimento do Auditório Eclesiástico, do Arcebispado da Bahia,
metrópole do Brasil e da sua Relação, e Oficiais da Justiça Eclesiástica, e mais cousas que tocam ao bom Governo do dito
Arcebispado, ordenado pelo Ilustríssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, São Paulo, Typographia 2 de
dezembro, 1853, p. 5-148.
3639 Tratava-se de um recurso extraordinário (súplica, de terceira instância), teoricamente dirigido
ao Papa, mas julgado por este seu legado. Cf. cap. 1, § 6, n. 15; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p.
2, liv. 4, disp. 10; António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 79.
3640 António Manuel Hespanha, “O Poder Eclesiástico. Aspectos Institucionais”, em, José Mattoso
(dir.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807), v. 4. cit., 288; Graça Salgado (coord.). Fiscais e
meirinhos […], cit.. 119-120.
3641 V. http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4335877.
3642 A não ser no caso em que estes fossem negligentes, conforme as disposições do Conc. Trento,
sess. 24, De reformat, cap. 20; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, §
6, n. 15.
3643 Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit., de 1647); Gabriel Pereira de
Castro, De manu regia tractatus […], cit., de 1622-1625; António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit.,
p. 1, c. 78; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,34.
3644 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cit., cap.1, § 3; Jorge de
581
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3646 Cf. decisão de 1617, em Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1,
§ 3, n. 9.
3647 As causas cíveis em que fosse parte um cavaleiro-comendador eram da competência do
3649 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 4.
3650 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, § 8; Ord. fil. 2,2.
3651 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, 8, n. 18.
3653 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, § 6; João Baptista
Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 5, disp. 13. Regimentos em 15.3.1570, 10.6.1620, 3.10.1630,
22.10.1640, 1.9.1774. Sobre ele, José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci, História Geral
da Inquisição Portuguesa, 1536-1821 […], cit..
3654 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,3,10-11.
582
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3655 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Advocatus”; cf. Jerónimo da Silva Araújo, Perfectus
3657 Sobre todos estes intervenientes, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.
“Oppositio”, n. 8: “Uma pessoa pode opor-se a outrem por três razões: ou para remover aquele que
iniciou a causa, ou para o assistir, ou para impedir a sentença de execução”; Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis, cit., 4,8.
3658 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Iudicium”, n. 3.
3659 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 5, d. 14, n. 1, p. 709, 1; Manuel Gonçalves da
porém, não constituía título executivo, pois os árbitros não tinham império, tendo que ser executada
pelo juiz ordinário (ibid. p. 1, p. 712, ns. 14 ss.; Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., vol. 1,
ad Ord. fil. 3,16,2, p. 29).
3661 Ord. fil.1,6,12; 1,37,pr.; 3,16,pr..
3662 Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., vol. 1, ad Ord. fil.3,16,ns. 7/8; João Baptista
583
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3664 Sobre a ordem judicial nas causas crime. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.
1, cap. 32.
3665 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 1; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
descobrem os crimes”).
3667 Pena que tinha se não cumprisse a deprecada, Ord. fil. 5,119,4.
584
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3669 Cf. Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses practicabiles, cit., pt. 1, cap. 2, p. 64.
3670 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,9,15.
3671 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 81.
3672 Sobre o tempo da citação, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,9,19. Sobre quem pode
fazer a citação, ibid. 20, 21. Sobre a citação da mais alta nobreza, “por carta de câmera”, ibid. 22.
3673 Os juízes pedâneos, os vereadores e os almotacés não eram considerados como verdadeiros
magistrados, pois apenas exerceriam uma jurisdição económica. Cf. Melchior Febo, Decisiones […], p. 2;
Aresto 19, n. 2.
3674 Nos feitos crimes não era necessária licença régia, podendo eles ser citados perante o
Corregedor do Crime da Corte, sendo suspensos do ofício (Ord. fil. 3,6, 5; 1, 7, 6; 1, 100; 3, 9); cf. Jorge
de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1. dec. 209.
3675 Ou seja, do período em que a pendência daquela causa impedia que fosse proposta outra
idêntica, com os mesmos autores, réus, pedido e causa de pedir, ou que fosse alterado o estado jurídico
585
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
da coisa em litígio. A litispendência também marcava o período de vigência dos acordos feitos pelas
partes para valerem enquanto a questão fosse litigiosa, Decretais, 2, 16; Clementinas, 2, 5; Sexto, 2, 8, Ut liti
pendente nihil innovetur; Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Lis”, n. 1083.
3676 Manuel Mendes de Castro, Practica […], cit., liv. 3, c. 2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,
3678 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,10, II, nota: “Diz-se que o libelo tem três partes: a
narração dos factos, a causa da conclusão e a própria conclusão. A isto chamam não sem razão silogismo
jurídico […]. Por exemplo na ação de compra: tudo quanto constitui a substância do libelo se encontra
neste silogismo. [1] Aquele que compra e a quem a coisa comprada é entregue deve pagar o preço
convencionado. Eis a premissa maior, que contém a narração dos factos. [2] Titius num certo dia
comprou tal coisa, que lhe foi entregue. Eis a premissa menor, cujo fundamento é a causa especial do
devido [do pedido]. [3] Portanto, é obrigado a pagar o preço convencionado”.
586
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
obra, muitas vezes reeditada, Tractado da forma dos libellos e da forma das allegações
iudiciaes e forma de proceder no iuizo secular e ecclesiastico e da forma dos contractos com suas
glosas e cotas de dereito (1549).
§ 2026. Embora pudesse ser clarificado até à pronúncia da sentença, o libelo
não podia ser alterado (por exemplo, mudando o pedido ou nomeando outro réu)
depois da litiscontestação. O libelo devia ser escrito, exceto nas causas sumárias, em
que o escrivão ia anotando os elementos relevantes, a partir da exposição oral do
autor.
§ 2027. Juntamente com o libelo, o autor devia juntar os instrumentos em que a
pretensão se fundava (v.g. a escritura pública ou os livros de contas dos
mercadores, Ord. fil.3,20 a 23), sob pena de absolvição de instância. O mesmo valia
para o réu, ao contestar o libelo ou ao aduzir um meio de defesa (exceção).
§ 2028. Ao oferecimento do libelo seguia-se a oposição de exceções (Ord.
fil.3,20), visando inutilizar a ação. Podiam consistir: (i) na oposição de uma exceção
que inutilizasse o pedido (exceção perentória, Ord. fil.3,20,15), a que o autor devia
responder num prazo de 10 dias ou (ii) na oposição de uma exceção que apenas
diferisse para mais tarde a obrigatoriedade de satisfazer o pedido ou alegasse a
incompetência do foro (exceção dilatória).
7.1.9.3 Contestação da lide.
§ 2029. Na contestação da lide, o réu respondia à substância do pedido do
autor, opondo exceções perentórias dirigidas a inutilizar a sua pretensão (como
sentença anterior a seu favor, transação, pagamento, prescrição) ou aceitava o
pedido do autor3679. Avaliadas os pontos de vista de cada uma das partes (no libelo
e nas réplicas do réu), ficavam fixos – e jurados por ambas as partes - os termos do
litígio, constituindo-se – na litis contestatio - como que o seu resumo essencial, a sua
pedra de fecho ou fundamento (lapis angularis et fundamentum judicii)3680, de acordo
com o qual se desenvolveria a atividade do juiz, na segunda fase do processo.
§ 2030. Por direito comum, a contestação da lide continuou a ser considerada
como um ato essencial, que dava conta da petição do autor e da reação do réu,
sobretudo nas causas criminais3681. Esta reação do réu era tão indispensável como o
libelo do autor. Por isso, a lide deve ser contestada, sob pena de nulidade. Se o réu
nada dissesse, a lide não podia ser dada por contestada, pois se exigia uma
declaração expressa dele.
§ 2031. Mas, na verdade, esta fase perdia a dramaticidade que tinha no direito
romano, porque a causa continuava a correr diante do mesmo juiz, não transitando
3679 V. Ord. fil. 3,20,5; 5,124,pr.. Fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado […], cit., Adnot. 40-
41; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., 3, cap.. 10; Manuel Antonio Monteiro {…] da
Costa Franco, Tractado practico jurídico civel, e criminal […], cit, pt. 1, cap. un. n. 20 (pg. 4); Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 49, 12.
3680 No processo romano, a litis contestatio era um momento importantíssimo, em que culminava a
fase in iure, fixando-se o programa processual da fase apud iudicem. Discutidos os aspetos jurídicos perante
o pretor (na petição inicial e nas exceções, fixava-se aquilo que estava em causa e que teria que ser
averiguado e provado pelo juiz.
3681 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Lis”, n. n. 6 (“a litis contestatio é a
narração do negócio principal, feita por um e por outro, feita a narrativa seguida de resposta, ou
negando ou confessando” [est negocii principalis hinc inde [de um lado e de outro] apud iudicem facta
narratio, & subsecuta responsio, sive negando sive confitendo]).
587
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3682 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Lis”, n. 11.
3683 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Lis”, n. 12.
3684 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Lis”, ns. 14 a 25.
3686 Ord. fil. 3,20, ss.; Manuel Mendes de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 3;
3689 Sobre a competência para conhecer destas exceções, Pascoal de Melo, Institutiones iuris
civilis,4,13.
3690 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 3, c. 3.
3691 A declinatio fori alegava a incompetência do tribunal em que ação fora intentada e indicava outro
como competente; se aceite ou não contestada dava lugar à prorrogatio jurisdictionis, ou seja, a atribuição da
competência a um tribunal diferente do indicado no libelo.
588
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
589
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3694 Daí a razão de ser da oposição dos juristas à regra da suficiência do testemunho único (e
590
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
todavia, como o facto duvidoso em litígio tem que acabar por ser certo e provado,
há necessariamente que definir na vida civil um modo certo de prova que se
aproxime o mais possível da verdade no consenso geral das pessoas; para tal efeito,
deve admitir-se em juízo esta certeza e prova plena, parecendo que o juiz deve
manter aquela que se pode e costuma admitir pelo consenso das pessoas; tal é a que
se faz por instrumentos públicos ou testemunhas acima de toda a dúvida. As
presunções de direito são havidas como prova verdadeira e perfeita, se não forem
elididas por outras provas, e é de harmonia com elas que se deve pronunciar a
sentença. Pelo contrário, as presunções dos homens as chamadas provas
semiplenas nem fazem prova perfeita e fé plena se não se apoiarem noutros
elementos, nem tornam o juiz tão seguro de que pode julgar por elas”3696.
§ 2046. Esta convicção do juiz não era, porém, um facto puramente
psicológico, mas antes uma hermenêutica do senso comum. Senso comum que
incorporava valores e visões do mundo. Isto ficava claro nas regras heurísticas
quanto ao valor relativo de provas de sentido contrário. Por exemplo, a fé das
testemunhas aferia-se pela sua dignidade, nobreza, riqueza ou outra qualidade
externa; a testemunha de visu devia ser preferida a outra (Ord. fil. 1,86,1); o
testemunho imediato valia mais do que o mediato (de outiva, de ouvir dizer,
embora este, na verdade, correspondesse ao testemunho de uma série de pessoas
que sucessivamente abonavam algo que tradicionalmente era tido como
verdade3697); em coisas antigas, a outiva era tida como mais natural e mais credível;
a fama pública e os rumores eram relevantes, embora constituíssem apenas um
indício; o documento escrito tendia a provar mais do que o testemunho3698. A esta
hierarquização estão subjacentes representações culturais sobre a fiabilidade dos
sentidos, bem como - na valorização da fama – uma certa ideia acerca das relações
entre parecer e ser característica das sociedades tradicionais: aquilo que é geral e
continuamente tido como verdadeiro vai criando verdade jurídica e, mesmo,
realidade substancial (a tradição gera natureza).
7.1.9.5.1 As presunções.
§ 2047. Um primeiro meio de prova era a invocação de presunções, uma
espécie de prova automática, que não exigia a atuação das partes.
§ 2048. As presunções eram, segundo a doutrina da época, conjeturas
verosímeis, induzidas a partir de sinais (“do próprio âmago da situação de facto”,
escreve Pascoal de Melo), de acordo com a natureza das coisas ou com o que
acontece o mais das vezes (id quod plerumque accidit) e assumidas com o fim de provar
uma coisa 3699.
§ 2049. As presunções podiam ser estabelecidas ou pelo direito (praesumptiones
iuris) ou pelos homens (praesumptionis hominis), pelo conhecimento comum que têm
da ordem do mundo - da natureza das coisas (tem que se provar o anormal, o
monstro, o inaudito), daquilo que acontece o mais das vezes (tem que se provar o
3699 “Conjecturae ex signo verisimill ad probandum assumptae”, J. Voigt, Com. ad Pand, lib. 22, tit.
31, nota 14; Cf. Guido Donatuti, Le praesumptiones iuris in diritto romano, Perugia, Tipografia G. Guerra,
1930.
591
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3700 As presunções assentavam num saber prático, ou arte; daí que estas presunções se chamem
3703 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 12, § 1; Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis,4,17.
3704 Pascoal de Melo discorda: Institutiones iuris civilis,4,17,2.
3705 Mas não se fosse pais, filhos, irmãos, sogros e genros daquele contra quem depunham (D.22,5
De testibus, 4).
592
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3711 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Instrumentum”; Bento Pereira,
593
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3712 Nome do tabelião data, assinatura das partes (Ord. fil. 178,4; 4,19,1; 5,117, 6), transcrição nos
protocolos ou livros de notas. As escrituras eram distribuídas entre os tabeliães das terras pelos
distribuidores, tanto para garantir a sua imparcialidade, como para distribuir equitativamente os réditos
notarias (emolumentos). Os livros de notas, onde se transcreviam e assinavam os atos notariais, também
se chamavam “protocolos” (etimologicamente, primeira página de um livro de folhas coladas). Os
tabeliães deviam arquivá-los e manter o seu arquivo, Ord. fil.. 1,78,5.
3713 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,8.
3714 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,13; também, dubitativo, Álvaro Valasco,
3716 As coisas tornavam-se notórias por constarem de instrumento público [“Notoriae dicuntur res
per publicum instrumentum”], afirma Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 27.
3717 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,12.
594
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
7.1.9.8 O juramento.
§ 2060. Uma outra forma de prova era o juramento 3719, ou seja, uma declaração
solene, invocando a vingança de Deus ou dos santos, a saúde do jurante ou de
entes queridos3720, para o caso de ela não ser verdadeira (juramento assertório) ou
de não vir a ser cumprida pelo jurante (juramento promissório). O juramento das
testemunhas pertence a esta categoria, sem grandes especificidades. Havia ainda o
juramento estimatório, em que o autor declarava o valor objetivo ou estimativo da
coisa pedida (Ord. fil. 3,86,16) ou roubada (juramento zenoniano, Ord. fil. 3,52,5).
§ 2061. Além de meio de prova, o juramento podia ser um expediente
processual destinado a resolver uma demanda. Tal era o caso do juramento
assertório, feito por uma das partes, desafiada pela outra para que o fizesse3721. A
parte que provocava a outra ao juramento - por não ter provas ou preferir não as
usar - comprometia-se a aceitar o resultado do juramento, fosse ele qual fosse.
Tornava-se obrigatório se o desafio fosse feito perante o juiz e deferido por este,
constituindo uma forma frequente de abreviar a demanda. Por meio do juramento,
também se podia decidir uma causa em que as provas das partes se equilibrassem.
Era o caso do juramento purgatório, em que o juiz ordenava ao réu, a pedido do
autor, que jurasse a exceção (ou seja, a sua tese), mas apenas no caso de só haver
uma prova semiplena da ação (ou seja, da tese do autor) (Ord. fil. 3,52, pr.; Decretais,
2,24. De jurejurando).
§ 2062. A parte a quem se deferia o julgamento podia devolver à outra parte o
dever de jurar, comprometendo-se a aceitar o resultado. Este jogo de provocações
cruzadas ao juramento refletia dificuldades de prova. A solução era, então, a de uma
das partes se entregar à honra ou piedade do adversário, aceitando a sua palavra,
num ou noutro sentido.
§ 2063. O juramento de calúnia3722 não dizia respeito ao objeto da ação, mas ao
estado de espírito dos litigantes, que nele juravam litigar por estarem convencidos
de que tinham razão (Ord. fil. 3,43; N. Nov. 49, tit. De jurejuramdo propter calumniam).
A consequência da violação deste juramento - obrigatório -, feito antes da
contestação da lide, era a perda da ação pelo autor ou a condenação do réu,
conforme aquele que o violasse3723).
7.1.9.9 A confissão.
§ 2064. A rainha das provas era a confissão 3724, ou admissão pelo réu daquilo
que o autor pretendia (“manifestatio proprium actum coram judicem
competentem”3725). Podia ser autêntica, consistindo numa declaração do réu, ou ficta,
induzida pelo direito, a partir de certos factos, como a contumácia, o silêncio do
réu, a recusa em prestar juramento. Era judicial ou extrajudicial, conforme fosse
3722 Calúnia era agir (estar em juízo) de má fé, i.e. sabendo que não se tinha razão.
3725 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Confessio. De confessione iudiciali, &
extraiudiciali”.
595
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
extraiudiciali”, n. 5.
3729 “Confessio judicialis habet tantam efficatiam, ut superet omnem probationem, factam per
testes, et etiam per instrumentum probans contrarium, quia nula est maior probatio quam oris confessio,
& dicitur plenissima probatio”, Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Confessio. De
confessione iudiciali, & extraiudiciali”, n. 15.
3730 Ibid. n. 17.
596
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3732 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Delictum”, n. 56: "hoc enim genus
tormentorum in nostra Lusitania, & alibi, est crudele, et terribile, ita ut non sit maius suplicium, praeter
mortem, et nonulli moriuntur in torturis quo propter etiam de iure sit expositum, quod sit ad eruendam
veritatem, est gravis poena, quae dari debebat pro gravi delicto, si clarissime fuit probatum […] si non
probatur delictum clarissime, non videbatur mihi esse ratio, quod talis poena infligeretur, sed alia extra
ordinaria in dubio, enim sanctius est nocentem impunitum relinqueree, quam innocentem condemnare”.
3733 António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 52, n. 2.
3734 Ord. fil.5,6,29; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], p. 2, liv. 5, § 8, ns. 89-90;
António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p.. 3, cap 23, n. 15
3735 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], p. 2, liv. 5, cap 1, § 8, ns. 91-98, António
Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, cap 23, 20; indícios claros e provados, ibid. p. 3, cap 23,
n. 18; dois cúmplices, uma testemunha e outros indícios, ibid. p. 3, cap 23, n. 28.
3736 O menor e mulher prenha não podiam ser postos a tormento; nem o nobre, o constituído em
dignidade, ou o doutor, António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, cap 23, n. 17.
3737 Pelo corregedor do crime da corte, Ord. fil.1,7,17 (propunha ao Regedor da Casa da Suplicação
e este nomeava dois desembargadores para presidir ao auto); das perguntas que se deviam fazer ao réu
sem tormentos, António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 53 n. 1 ss. e cap. 54.
3738 Quando se podiam repetir, Ord. fil.5,134, 1 Sobre os exames médicos que se deviam fazer nas
feridas e nódoas e inchaços, por médicos ajuramentados, havendo-os, ou cirurgiões e barbeiro (refere-se
também a exames post mortem), António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 54.
3739 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 52, n. 3.
3740 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, cap 23, n. 31.
3741 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p.. 3, cap 23, n. 29; e não, como
3743 Cf. António Cardoso do Amaral. Liber […], cit., s. v. “Assessor”. Embora Amaral os refira
597
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
isso. Não respondia senão por erros dolosos (Ord. fil. 1,65,93744).
§ 2077. A sentença devia ser fundada no direito vigente (Ord. fil. 1,5,4), ser dada
segundo as provas constantes dos autos (Ord. fil. 3,66,pr.), ser conforme ao libelo
(Ord. fil. 3,66,1), condenar em quantia certa, condenar o vencido em custas, ser
motivada (Ord. fil. 3,66,7), ser escrita pelo juiz (Ord. fil. 1,1,13) e ser publicada (Ord.
fil. 3,19,1; 3,66,6). O juiz podia revogar a sua sentença, acolhendo embargos, ou
esclarecê-la (cf. Ord. fil. 3,66,6).
§ 2078. Sendo a sentença da competência de um tribunal coletivo, a exposição
da causa e a redação do projeto de sentença cabia a um relator. Os outros juízes da
causa votavam, por ordem inversa da idade e da antiguidade, para evitar a
ascendência dos mais velhos, mas também para os colocar numa posição de melhor
avaliar os votos anteriores. A decisão final era tomada por contagem de votos (vota
3745
numerantur, non ponderantur ; Ord. fil. 1,1,13), não havendo voto de qualidade do
presidente (voto de Minerva); assim, em caso de empate (raro, pois o número dos
juízes devia ser ímpar, Ord. fil. 1,1,7), o réu devia ser absolvido3746.
§ 2079. Caso julgado ou coisa julgada dizia-se da decisão do juiz que se tornava
irrevogável, por não terem sido usados os expedientes de recurso disponíveis ou
por estes se terem esgotado. Depois de passada em julgado, a sentença tornava-se
definitiva, não podendo ser suspensa, revogada ou anulada, nem invocando a
salvação da República.
§ 2080. Excecionalmente, algumas sentenças nunca passavam em julgado. Este
era caso das sentenças nulas, como as preferidas contra direito ou contra os casos
julgados, das fundadas em testemunhos ou provas falsas, ou das sentenças
proferidas por juiz peitado ou incompetente. Não passavam, ainda, em julgado as
sentenças criminais condenatórias. Assim, era sempre possível impugná-las.
§ 2081. Também não passavam julgado as decisões meramente interlocutórias,
conforme se disse, pelo que podiam ser recorridas durante toda a lide. Outras, por
se terem fundado numa verdade apenas provável, podiam ser sempre recorridas
com fundamento em prova em contrário. Era o caso das sentenças baseadas no
juramentados supletório ou no juízo técnico de médicos, cirurgiões, parteiras,
agrimensores, sobre matérias da sua arte3747.
§ 2082. Os efeitos do caso julgado restringiam-se às partes no processo, não
como letrados, em Portugal estes assessores não tinham, frequentemente, graus universitários (já que a
avaliação da sua perícia “tota in conscientia judicis relinquit”, ibid. n.2); eram habituais nos pequenos
concelhos; v. Anabela Ramos, Violência e Justiça em terras do Montemuro (1708-1820). Viseu, Palimage
Editores, 1998. Frequentemente, eram advogados, embora não os da causa (ibid. n. 6). Os assessores
deviam ser pagos pelos juízes; em terras pequenas e pequenas causas, a situação era propícia a que os
juízes recompensassem os advogados-assessores com um tratamento favorável noutras causas por eles
patrocinadas.
3744 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 26; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, ar. 15.
3745 O tópico mais corrente era o inverso: vota non numerantur sed ponderantur; no caso de tribunais
coletivos, supunha-se que a qualidade dos votos era igual, pelo que decisiva era a contagem.
3746 Sobre a redução das sentenças, Ord. fil. 1,1, 8, Ass. 29.4.1659, Jorge de Cabedo, Decisiones […],
cit., p. 1. dec. 7.
3747 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 4,21,15.
598
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
599
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3756 No caso de ter havido dolo do devedor na ocultação ou venda dos bens, ou atraso, por dolo
ou culpa sua, na execução a prisão podia ocorrer mesmo antes do trânsito em julgado da sentença
condenatória (Ord. fil. 4,76,pr.). Também no caso de dívidas resultantes de delitos ou quase delitos, a
prisão era automática (Ord. fil. 4,76,5).
3757 Sobre o regime de direito romano e sua evolução, António Menezes Cordeiro, Perspectivas […].
600
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ordenação fora revogada para os casos em que não tivesse havido dolo ou culpa do
devedor no prejuízo dos credores3759.
§ 2092. A preferência dos credores nas execuções estava regulada pelas regras
do concurso de credores estabelecidas nas Ordenações (Ord. fil. 2,52). O princípio
geral era o de que preferiam os credores mais antigos, embora também fosse
relevante o tipo de sentença condenatória, preferindo aquelas que tinham feito um
exame mais profundo do caso sobre as mais sumárias3760.
7.1.12 As execuções fiscais.
§ 2093. As execuções fiscais tinham algumas especialidades, que as tornavam
mais rigorosas, a favor deste credor privilegiado que era o fisco 3761.
§ 2094. O privilégio do fisco consistia, antes de tudo, em ter juízes espaciais
para julgar as suas causas, mesmo na fase executiva (“Juízes dos feitos da fazenda”)
e funcionários também especiais para fazer a execução dos bens (“Sacadores” e
“porteiros”, Ord. fil. 2,52)3762. Porém, este privilégio não importava uma ordem
processual distinta da das execuções comuns, nomeadamente quanto aos princípios
básicos do processo de execução (citação ou audição do credor, princípio da
excussão prévia do devedor principal, etc.) 3763. Era isto que levava a doutrina a
afirmar que o fisco gozava do mesmo direito do que os restantes credores 3764.
§ 2095. Outra questão era a da graduação do fisco entre os restantes credores.
A jurisprudência corrente opinava que o fisco tinha privilégios no concurso de
credores, um dos pontos-chave do direito da insolvência. Neste ponto, a
hierarquização dos credores fazia-se, como se disse, pela ordem da nomeação dos
bens à penhora. No entanto, a doutrina tinha estabelecido, desde o séc. XIII, que o
fisco gozava de uma “hipoteca tácita” sobre os bens dos devedores e que “nos
tributos e coletas, o fisco era anterior, preferindo a todos os credores do devedor”,
mesmo à mulher que reclamasse os bens dotais. Por isso, o fisco só era preterido
pelos credores que reclamassem despesas por eles feitas necessárias para a
conservação da coisa e pelos credores hipotecários mais antigos 3765. Este regime de
3759 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,22,18. Funda-se na Carta de Lei de 10.6.1774 e numa
procede nas execuções da fazenda real”. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,22,18.
3762 V. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.3, cap. 10, n. 1.
3763 A base textual era, Ord. fil. 2,52,6 "guardar-se-ha na dita arrematação toda a solenidade, que se
deve guardar nas execuções, que se fazem pelas dívidas de quaesquer outras pessoas particulares" (cf.
Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad 2,52,6 gl.8:
3764 V. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad 2,52,6, gl. 8, ns.16 a 19.
3765 “[…] quod pro tributibus seu collectis Fiscus est anterior, & praefertur omnibus debitoris
creditoribus, qui Fisco anteriores esse non possunt, cum tributorum praestatio omnem contractumetiam
temporis antiquitate praecedat […] tardit enim contra dotem, non vero contra creditores, qui in
necessitariam rei consevationem impenderunt”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit, tomo 12,
ad. 2,52,4, gl. 6, p. 377/378. O princípio abrangia ainda os serviços militares e as sisas. Mas não as
dízimas eclesiásticas devidas ao rei, enquanto mestre das ordens militares; no ultramar, Antonio
Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, caps. 10 e 14. A base textual era D.20, 2, In quibus causis
pign. vel hypoth. tacite contrahitur; D.49, 14, De jure fisci; C.10, 1 De iure fisci, 1; C.8.14. In quibus causis pignus
tacite contrahitur. No direito português, usava-se Ord. fil. 2,52,4, com uma interpretação forçada (“ …
façam as penhoras, e execuções primeiro nos bens …”, ibid. n.1 fin. p. 378).
601
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3766 Muitas sentenças sobre o tema em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 12, ad. Ord.
2,52.
Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,22, 19.
3767
Que, já antes, era admitido por direito, Regimento da Fazenda, cap. 173, António Vanguerve
3768
sub bono Principe”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 12, ad. Ord. 2,35, cap. 30.
602
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
próprios senhores ou seus ouvidores. Mas esta jurisdição senhorial de recurso nunca constituía uma
última instância. E foi extinta pela CL de 19.7.1790, o que transformou as relações na única instância de
recurso ordinário.
3773 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 19; Pascoal de Melo, Institutiones iuris
civilis,4,23,1.
3774 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23,6.
603
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3775 Dizia-se da posição das varas dos juízes, quando usavam do seu poder de jurisdição: “de vara
alçada”
3776 Sobre as alçadas dos juízos em Portugal, Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.
3, cap. 9.
3777 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 40.
3778 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 2, caps. 1 e segs..
3779 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23,12.
604
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
superior, para quem transitara o processo (primeiro, por traslado, depois [CL
18.8.1747], os próprios autos). Suspensa a sentença, a causa retornava ao estado em
que estava na contestação da lide, abrindo-se de novo a admissão de exceções e a
alegação e prova de razões sobre a nova matéria (Ord. fil. 3,83).
§ 2112. O tribunal de recurso podia confirmar ou reformar, no todo ou em
parte, a sentença recorrida, mesmo para além do pedido do recorrente.
§ 2113. Decidido o recurso, a sentença voltava ao juiz inferior para ser
executada. Nos recursos por apelação, o vencido era condenado nas custas das duas
instâncias; nos agravos, apenas nas da primeira instância (Ord. fil. 3,68,1).
§ 2114. As sentenças nulas ipso jure eram revogadas sem necessidade de recurso
(Ord. fil. 3,75; D. 49,8 Quae sententiae sine adpellatione rescindantur), por meio de uma
"querela de nulidade" intentada perante o juiz inferior ou o superior num prazo de
30 anos.
7.1.15.1 O agravo.
§ 2115. Para a generalidade dos casos em que não fosse possível a apelação, o
direito pátrio previa outra forma de recurso – o recurso de agravo. Este instituto
era uma das singularidades do direito pátrio em confronto com o direito
comum3781.
§ 2116. Os agravos alargavam a possibilidade de recurso em dois sentidos.
§ 2117. Por um lado permitiam a interposição de recurso de decisões de certos
juízes inferiores, das quais não se podia apelar. A origem da distinção das duas
formas de recurso está no facto de o direito romano não permitir a apelação de
certos juízos nem das decisões interlocutórias, ao passo que o direito canónico
concedia recursos com maior generosidade. Daí que, no direito pátrio, se tenha
usado a figura do agravo para permitir recursos em casos em que a apelação não era
possível se se seguisse a tradição mais rigorosa do direito romano. Assim, admitiu-
se o agravo das decisões da Casa do Cível, dos Corregedores da Corte e de outros
magistrados superiores, de quem não se podia apelar (Ord. fil. 1,6,pr.; Ord. fil.
3,20,28; Ord. fil. 3,84 [prazos e regulamentação]). Estes agravos – chamados
ordinários - eram muito semelhantes, no seu processo e efeitos, às apelações.
Porém, diferiam quanto aos efeitos suspensivos, já que só suspendiam a sentença
por seis meses (Ord. fil. 3,84,ult. e 73,5,1), ou por dois anos no Brasil (Alvará de
5.12.1801).
§ 2118. Em segundo lugar, possibilitavam o recurso de decisões não
determinantes do resultado final da causa, ao admitir os agravos das decisões
interlocutórias de todos os juízes (agravo por petição ou instrumento)3782. Usava-se
o agravo por petição quando o juiz superior estava dentro de 5 léguas; o agravo por
instrumento, quando estava mais longe (Ord. fil.. 1, 7, 16; 1,9, pr.; 1,58,25)3783. Em
rigor, isto só era possível no caso de as decisões processuais afetarem a sentença
3781 Cf. Mendes Mendes de Castro, Practica Lusitana […], cit., liv. 2, cap. 19; Antonio Vanguerve
Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 2, c. 48 (agravos ordinários); Mateus Homem Leitão, De jure Lusitano
[...], cit., qu. 6, n. 4; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,23.
3782 Ord. fil. 3,20, 46; fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado [...] cum adnotationes de João
605
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3784 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,25.por Mateus Homem Leitão, De jure
3786 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Sententia quoad revisionem”; Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 51; Tomé Valasco, Allegationes […], all. 90.
3787 Ord. fil. 3,75, pr.; 3, 87, 1; Gregório Martins Caminha, Tratado [...], cit., ed. 1746, p. 126.
3788 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,28; Gregório Martins Caminha, Tratado […],
cit., ed. 1764, annot. LVI (com formulário e notas); Ignacio Pereira de Sousa, Tractatus de revisionibus, cit.,
caps. 65 e ss. Mendes de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], Liv. 3, cap. 20.); Álvaro
Valasco, Decisiones […], cit., pt. 1, cons. 6; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p. 1. dec. 13.
3789 Sobre a distinção, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 51, n. 9 ss.. Na prática, os
principais casos de revista de graça especialíssima eram a extinção do prazo em quaisquer causas e, nas
causas criminais, a denegação da licença para a revista ou a proibição da faculdade de dispensar (CL
3.11.1768; v. para o período anterior, Jorge de Cabedo. Decisiones […], p. 2, Arest. 42. e Ignatio Pereira
de Sousa, Tractatus de revisionibus, cit., cap. 17, com muitos exemplos de revista nas causas criminais.
3790 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], p. 1. dec. 51; Ignacio Pereira Sousa, De revisionibus […], cit.,
cap. 7.
3791 Dois anos, no caso de revistas da Relação de Goa (Tomé Valasco, Allegationes, cit., all. 90, n. 10-
12).
606
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3792 Cf. sobre outras formalidades, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23,28.
3793 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23, 29; este recurso não era admitido, porém, em
relação às decisões do Conselho Geral do Santo Ofício, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […] cit.,
tomo 3, ad Ord. fil.1,9,12, n. 621; Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione, p. I. cap. II, §
5, n. 5.
3794 Sobre este instituto, cf. Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia […], cit.; Francisco
607
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
8 Crimes e penas.
8.1 A dogmática penal.
§ 2126. O direito penal é um ramo mais tardio e mais pobre da dogmática do
direito comum.
§ 2127. No próprio direito romano, as questões penais foram sempre tratadas
fora da ordem judiciária ordinária, ou por tribunais especiais de natureza política
(quaestiones perpetuae) ou por magistrados agindo como que administrativamente,
segundo um trâmite processual especial, a que se chamava a extra ordinem cognitio3795,
que se tornou no único processamento para estas questões no ano 342 da nossa
Era3796. O facto de esta forma de cognição extraordinária conceder um extenso
espaço ao arbítrio do juiz3797 ainda atrasou mais a fixação de princípios dogmáticos
nesta área. Isto explica que a dogmática penal fosse tão subsidiária da dogmática do
direito privado e a teoria do crimen (como delictum publicum) tão dependente da teoria
do delictum (privatum). Esta pobreza das fontes romanísticas relativamente a um
conceito autónomo de crime e de direito criminal explica também que o direito
penal fosse uma disciplina tardia na evolução do direito comum 3798, sendo os seus
inícios datáveis do séc. XVI (principalmente com Tiberio Deciano; mas também
com Giovanni Menochio, Julio Claro, Antonio Matteus, Prospero Farinaccio) 3799.
3795 A cognitio extra ordinem constituía um rito processual muito diferente do da ordo iudiciaria do
processo per formulas, seguida pelos pretores urbanos (aquela que os juristas clássicos tinham em vista nos
seus escritos e que constituía, por isso, a referência fundamental do direito romano). Era um processo
escrito, dirigido por um magistrado, que, instado por uma acusação (libellus) ou oficiosamente,
investigava (inquiria, inquisitio) os factos denunciados e julgava os seus autores.
3796 Cf. C.2,57,1. Na fase mais arcaica do direito romano, segundo parece, um crime era uma
3798 Síntese muito informada, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, A categoria da punibilidade […],
cit., 1, 64 ss.
3799 Cf. Mario Sbriccoli, “Lex delictum facit., Tiberio Deciani e la criminalística italiana nella fase
608
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
8.1.1 O delito.
§ 2128. Delito era, no direito romano e no direito comum, uma categoria geral
que compreendia a prática de um ato proibido pelo direito, com isso ofendendo
bens privados ou bens públicos. A proximidade entre delito e crime explicava que
um comportamento pudesse caber nas duas categorias e dar origem, ao mesmo
tempo, a uma pena destinada a castigar a ofensa pública (ad vindictam) e a outra
dirigida à compensação dos danos privados 3800.
§ 2129. Embora se note uma grande indeterminação no uso das expressões
“delito” e “crime”, delito era a categoria mais geral: todos os crimes eram delitos,
mas nem todos os delitos eram crimes. Na verdade, a palavra crime apontava para a
violação de um bem público fundamental. Tomé Valasco era de opinião de que
seriam delitos públicos os crimes de falso e todos aqueles em que fosse imposta
uma pena pelo menos de açoites ou de degredo por certo tempo. Do ponto de vista
processual, o caráter público do bem ofendido explicava que os crimes e delitos
públicos tivessem um regime processual especial, marcado pelo conhecimento
oficioso-inquisitório da matéria3801, e pudessem ser levados a tribunal por uma
acusação feita por qualquer pessoa, enquanto que o julgamento dos delitos privados
dependia da acusação e da parte lesada3802. A dogmática de direito canónico
equiparava o delito ao pecado e, por isso, considerava todos os delitos como
públicos3803.
§ 2130. Apareciam nos autores outras classificações do delito, estas relacionadas
com a natureza do ato praticado. Falava-se em delitos leves, que se cometiam sem
dolo ou que tinham pouca gravidade e que se deviam julgar de forma simples e sem
grandes formalidades (simpliciter et de plano); em delitos graves (gravia), os cometidos
com intenção (dolose), que traziam grande prejuízo a um particular ou à República e
nos quais se devia agir com severidade; e em delitos gravíssimos ou atrozes, pela
gravidade e qualidade, nos quais se aplicava a pena capital3804. Havia autores que
falavam de delitos maus por natureza (como o furto, o estupro e a blasfémia), nos
quais se devia presumir que o autor tinha agido com intenção má (dolus malus)3805.
§ 2131. Os delitos eram considerados como atos maus (ex sua natura), praticados
por homens maus3806. A utilidade pública exigia a sua punição, devendo os juízes
estar atentos à sua vigilância e punição célere, sem o que ficaria comprometida a
paz da república3807. A maldade dos atos e dos criminosos aparecia como ligada à
natureza e não a uma declaração da lei do príncipe, que não podia fazer do bem mal
nem do mal bem3808. Nas fontes doutrinais portuguesas usadas, a criminalização
3800 “Ex delicto oritur duplex actio, altera criminalis ad poenam corporalem, vel pecuniariam, altera
civilis in factum ad interesse & persecutionem rei”, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 169, n. 17.
3801 Modelo: D.48,18 De quaestionibus.
3803 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” n. 1. Sobre a teoria criminal do
direito canónico, v. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, A catategoria da punibilidade […], cit., p. 70 ss..
3804 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” ns. 10 e 20.
3806 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 4 e 5.
3807 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 9 e 13.
3808 Que a vontade do príncipe não podia mudar a natureza criminal dos comportamentos
explicava que um crime cometido a mando do príncipe não deixasse de o ser (“Delinquens iussu illius,
609
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
dos atos maus e a punição dos que os praticassem obedecia ainda a um modelo
tradicional do direito penal, não aparecendo especialmente cometida ao direito
régio – à lei; antes se deixando entender que a criminalização de comportamentos
competia à comunidade, que expressaria de muitas formas a sua sensibilidade
acerca da maldade desses comportamentos.
§ 2132. Os atos maus deviam ser castigados. Esse castigo era a pena criminal –
de natureza diferente da pena civil (v.. cap. 6.11) - que, por isso tinha uma natureza
pessoal. Consequência desta natureza pessoal da pena era a sua
intransmissibilidade3809 - aos filhos, ao cônjuge, aos herdeiros -, embora esta regra
tivesse exceções, provenientes de uma ideia de alastramento da maldade aos
próximos, mas, sobretudo, de uma simples consequência lógica da pena. Assim, nos
crimes de heresia ou de lesa majestade, punidos também com confisco, as
consequências patrimoniais recaíam naturalmente sobre os herdeiros, que ficavam
privados da herança3810. Nos casos de coautoria ou de cumplicidade, todos os
implicados eram puníveis, porque aqui não se tratava de estender a
responsabilidade penal a outrem, mas de responsabilizar todos os criminosos. O
mesmo no caso da punibilidade do mandante 3811. No entanto, as leis podiam
determinar, em certos casos, que as penas (por exemplo, a infâmia) se continuassem
nos descendentes até certa geração; nesses casos, entendia-se que as mulheres – que
entravam apenas “politicamente” nas famílias daqueles com quem casavam -
escapassem a essa mancha3812.
§ 2133. Este caráter pessoal da censura e da pena criminais explicava também
que a pena não devesse prejudicar terceiros cujos patrimónios fossem
administrados pelo delinquente. Por isso, os delitos dos prelados não prejudicavam
a Igreja, os dos tutores não prejudicavam os pupilos, os dos pais não prejudicavam
os filhos3813.
8.1.2 A ilicitude e tipicidade.
§ 2134. Para haver delito, o comportamento do agente tinha que ser contrário
ao direito. E, acrescentavam os autores - afirmando uma regra que não era
específica do direito penal mas que aqui aparecia como um princípio muito
importante -, ao direito expresso. Isto explica que só houvesse um delito se existisse
um comportamento proibido pelo direito ou, pondo as coisas de outro modo,
explicava que não houvesse delito nem contrariedade (iniuria) com o direito quando
uma norma jurídica3814 expressa permitisse tal comportamento3815. No delito penal,
qui habet ius imperandi, excusatur in eo, quod iure fit, & in levibus delictis, quoniam in gravibus non
excusantur […] quia in gravibus delictis nullus tenetur obedire illi, qui habet ius imperandi”, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 38).
3809 Cf. “Actio qui tendit ad vindictam non transit in haeredes”, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones
3811 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 27 (a pena estendia-se ao
3813 A não ser nos tais casos em que a natureza da pena os prejudicasse como herdeiros, António
exemplo, as normas contidas do Corpus iuris (muitas das quais nem eram originariamente leis).
610
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
que atinge bens de todos, ainda é preciso que o direito proteja expressamente estes
bens, declarando também expressamente como crimes a sua violação (tipicidade).
Os corolários desta regra refletem-se nas proibições da aplicação analógica da
norma penal incriminatória3816 e da sua interpretação extensiva 3817.
§ 2135. Tem sido realçado pela historiografia mais recente que esta exigência de
criminalização expressa das condutas não equivale ao princípio da legalidade
estabelecido no séc. XIX. Neste, a exigência de que o crime esteja previsto
expressamente na lei representa uma garantia para o cidadão, pois se entende a lei
como a forma cidadã de estabelecer o direito. Em contrapartida, no direito anterior
a exigência de que o comportamento delitivo estivesse expressamente previsto na
lei servia para indiciar a suma gravidade do desrespeito do criminoso pelo direito da
comunidade3818.
§ 2136. No entanto, havia aberturas para a extensão da lei penal. Por um lado,
considerava-se que a analogia ou similitude das situações podia corresponder a uma
identidade dos motivos racionais para as punir, pelo que, em certos casos, se devia
aplicar a um caso o tratamento penal que o direito previa para outro em que as
razões subjacentes à decisão fossem as mesmas, pois, verdadeiramente, não se
tratava de casos análogos, mas antes racionalmente dos mesmos 3819.
§ 2137. Menos subtis eram outras das exceções à regra da não extensibilidade
da incriminação. Assim, entendia-se que esta não teria lugar se o interesse da
república requeresse que se estendesse a incriminação, para que os delitos fossem
mais completamente punidos3820, ou se o favorecimento da Igreja ou da fé
requeressem o mesmo3821.
8.1.3 A imputabilidade penal: menores, furiosos, bêbados e irados.
§ 2138. Como o delito implica um castigo, não comete delito quem não deva
ser castigado, por carência absoluta de inteligência dos seus atos (cum non habeant
intellectum)3822. Esse é o caso dos loucos (furiosi) (v. cap. 3.1.10) e das crianças até ao
termo da infância (v. cap. 3.1.9). Quanto aos outros (bêbados, pessoas perturbadas
pela ira), o direito era bastante exigente. Responsabilizava o bêbado, desde que a
bebedeira não lhe trastornasse a mente, embora o punisse mais levemente ou, até, o
3815 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Damnum”, n. 8 (“Qui facit quod lex
permittit nulli facit damnum nec iniuriam”). Muito mais escuso estava da responsabilidade penal quem
atua por imperativo da lei, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 87, n. 12.
3816 Miguel de Reinoso, Obervationes [...], cit., 73, n. 28 (“Poena a lege imposita in uno casu non
1, dec. 72 n. 11. António Cardoso do Amaral é um pouco mais restritivo, exigindo que a razão esteja
expressa na lei; só nesses casos seria claro que “ex mente legis comprehenduntur omnes casus etiam
poenales, in quibus concurrit illa omnimoda ratio”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Poena”, ns. 25 e 26.
3820 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 21.
3821 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, ns. 22-24.
3822 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 46.
611
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3823 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 46 e 47.
3824 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 44
3825 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 1.
3826 “[…] Quando erat suus inimicus, & contra te habebam rancorem, & ex proposito te percussit”,
ambulabas cum aliquo, tanquam amicus et domus eius eras, & illum de retro persusistis, sive sub colore
animicitiae aliquod delictum contra illum commisisti”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 2.
3828 “[…] ex proposito, qui animo deliberato aliquod delictum commisit”, António Cardoso do
ferrumn, venitur, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 2. Os delinquentes
irados não deixavam de ser condenados, a menos que tivessem perdido o juízo, caso em que seriam
punidos mais levemente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 45.
3830 Um facto, um dito, um escrito, um conselho (cf. D.48,19,16,pr.); mas não um simples
3832 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 54.
612
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
mantém-se. Começava por afirmar que “a intenção (affectus) é punida nos delitos,
apesar de não se seguirem os efeitos” (“tamen in delictis punitur, quamvis non
sequatur effectus [...]”, embora não com a pena ordinária, mas com uma
extraordinária. O que se requeria era um ato exterior a partir do qual essa intenção
se deduzisse. Se este ato não existia, “o delinquente não deve ser punido no foro
exterior, pois a intenção, como ato interior, não é punida a não ser no tribunal
divino”. De novo, a oscilação entre a ideia da impunibilidade, no foro temporal,
dos atos interiores por uma razão de princípio e a sua impunibilidade pela
impossibilidade de provar o que se passasse apenas na consciência. A tentativa
(conatus), em que uma intenção se exteriorizava em atos próximos e imediatos,
embora não conduzindo ao resultado projetado, era um destes casos em que a
disposição interior se podia provar e, por isso, em que devia haver uma punição
dirigida à disposição interior do agente (para castigar a malícia e prevenir que ela
gerasse novas tentativas de delinquir3833), embora também dirigida ao mundo
exterior (evitar o mau exemplo3834). A tentativa era punida ela mesma como crime,
com a pena ordinária que a lei tivesse especificamente previsto para o caso (a
menos, no entanto, que o delinquente por sua espontânea vontade desistisse do
intento e se arrependesse antes de consumar o delito) 3835.
§ 2142. Eram punidos os delitos cometidos por brincadeira ou por tontice 3836.
8.1.4.2 Culpa.
§ 2143. No direito romano3837, havia quatro categorias de delitos (malefícios
que causavam danos), individualizados como tal nas Institutiones: o furto e a rapina,
ambos ofendendo o direito de propriedade; a injúria [i.e. “quod non iure fit”, Inst.
Gaii, 3, 223], ofendendo a integridade física ou moral de alguém; e um complexo de
danos causados por uma ofensa não dolosa (damnum iniuria datum), cuja reparação
estava prevista na Lex Aquilia de damnis (c. 286 a.C. D. 9, 2, 1, 1 ou nas suas
extensões pretorianas (originariamente, morte de escravo ou de animal de outrem;
dano a coisa de outrem, animada ou inanimada). Nestes casos, a responsabilidade
pela indemnização baseava-se não apenas no dolo, mas também na culpa. Porém, a
culpa não consistia na imputação subjetiva do facto ao autor, em termos de uma
censura (pelo menos, por falta de cuidado), podendo bastar uma imputação
objetiva: o dano verificara-se por facto do autor (“in lege aquilia et levissima culpa
venit”, D. 9, 2, 44 pr.). Nestes últimos casos, havia responsabilidade sem culpa,
como no caso do guarda (custos), do empregador pelo facto dos seus empregados,
do estalajadeiro, do estabulador, do barqueiro, sempre que se comportassem de
forma não esperada; o mesmo se passava na produção de danos causados pelo
arremesso de objetos líquidos ou sólidos, ou por coisas apoiadas ou suspensas de
3833 Neste caso em que a intenção se podia provar, por ter sido suficientemente exteriorizada; cf.
“Malicia hominis non est indulgendum sed potius obviandum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Delictum”, n. 7.
3834 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 48 (refere-se aos
3836 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 6 e 9 (“qui fuit stultus in culpa
bona rapuerit, damnum dederit, iniuriam commiserit […]” (Inst. Gaii, 3, 182).
613
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3838 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 39.
3839 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 74, n. 4.
3840 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 38.
3841 De qualquer modo, algumas das penas civis – quando a pena se correspondia a um múltiplo do
3844 “Pois não se pode dizer sem culpa quem se mete em coisa alheia, embora não deva ser punido
com a pena ordinária”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” 3.
614
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
8.1.5 Punibilidade.
§ 2148. Os delitos puniam-se tantas vezes quantas se repetissem, embora cada
um apenas uma vez (non bis in idem)3845 3846. Havia, porém casos em que os crimes
não deviam ser punidos. Por um lado, se tivessem prescrito; o que, pelo direito civil
(mas não pelo direito canónico), ocorria no caso de não ter havido denúncia
(accusatio, libellum oblatio) por mais de 20 anos3847. Por outro lado, a punição estava
dependente do juízo sobre se os seus efeitos não eram piores do que a não punição.
Assim, se o escândalo da divulgação do delito fosse mais grave do que a não
punição, o delito devia ficar por punir, salvo se constituísse pecado mortal 3848. Por
fim, certos crimes pelo direito comum correspondiam a ações lícitas, em certas
circunstâncias, pelo direito natural. Tal era o caso do furto em estado de
necessidade: embora fosse crime, obrigando a restituição logo que possível, não
devia ser punido, por corresponder a um direito natural (v. cap. 8.2.6.2).
§ 2149. A responsabilidade penal extinguia-se com a morte do delinquente 3849;
por isso, os delitos dos pais em geral não oneravam os filhos 3850. A
responsabilidade criminal também era extinta pela prescrição, por vinte anos,
segundo o direito civil. Pelo direito canónico, os crimes nunca prescreviam 3851.
8.1.6 O processo e a prova.
§ 2150. Ao tratar da ordem do processo (cf. 7.1.9), já se aludiu à ordem
processual crime3852. Esta começava pela denúncia, podia requerer acusação (libelo)
de parte (nos crimes particulares)3853, continha alguma especialidade no relativo à
prova3854, nomeadamente quanto a presunções3855 e uso da tortura3856.
3845 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 12 e 14; Diogo Marchão
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” 15. Na reincidência não se tratava de condenação pelo mesmo
crime, mas por outro da mesma natureza, pelo que o resultado era antes o agravamento da pena (v.g. a
condenação num segundo furto levava à forca, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 16).
3847 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 35. A denúncia era a forma
3849 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 34; não no caso de heresia,
3852 Sobre a ordem judicial nas causas crime, António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.
1, cap. 32.
3853 Nos crimes particulares, a falta de acusação particular extinguia a lide; nos crimes públicos,
podia levar à atenuação da pena, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 27.
3854 Para se aplicar a pena ordinária, os crimes deviam provar-se por provas meridianas, e não por
mera fama ou testemunhas crédulas. Na dúvida, seria melhor deixar de punir um culpado do que punir
um inocente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” 25.
3855 Os crimes presumiam-se nos homens notoriamente maus. Mas presumia-se a inocência nas
pessoas constituídas em dignidade, nas pessoas de letras ou nas pessoas de idade (desde que tivessem
sido maduros e honestos quando jovens), cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 6.
3856 O direito comum permitia o uso da tortura, “mas este género dos tormentos, em Portugal e
615
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
noutros lugares, é cruel e terrível, de tal forma que não existe um suplício maior, a não ser a morte,
morrendo alguns na tortura”. Por isso, a tortura só se devia usar nos crimes graves, desde que houvesse
indícios ou uma só testemunha e não se dispusesse de outro meio para descobrir a verdade, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” n. 56.
3857 Sobre a história do processo penal, v. Giorgia Alessi, Il processo penale […], cit..
3858 Anabela Ramos, Violência e justiça em terras de Montemor. 1718-1820, cit.. Também: Irene
616
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Vaquinhas, Violência, justiça e sociedade rural: os campos de Coimbra, Montemor-o-Velho e Penacova de 1858 a
1918, cit., tese policop.
3859 "Neste livro acho muito assentos em aberto sem procedimento algum contra os culpados
[…]", censura um Corregedor dos finais do séc. XVIII, na correição dos pequenos concelhos de Cabril e
Parada de Ester (p. 98). A A. diz que, pelas suas contas, isto se passava em mais de 10 % dos registos de
abertura de querelas (ibid. 98, 101).
3860 Segundo a mesma obra 80 em 114 juízes têm assessor (p. 93). Notando que os assessores -
muitos deles, possivelmente, antigos estudantes de Coimbra com cursos incompletos (cf. Joana
Estorninho de Almeida [….] cit.) - abundavam por aqui.
3861 Cf. § 2185
3863 Cf. Mateus Homem Leitão, De jure lusitano […], cit., “Praefatio” ao livro 3.
617
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3864 Paolo Napoli, "La visita pastoral: un laboratorio de la normatividad administrativa", cit.; José
Pedro Paiva, "As visitas pastorais", cit.; Id."Inquisição e visitas pastorais. Dois mecanismos
complementares de controle social", cit.; Literatura de época: Mateus Soares, Practica e ordem pera os
visitadores dos bispados […], cit.; Lucas de Andrade, Visita geral que deve fazer um prelado no seu bispado, […],
cit..
618
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3865 No estudo que se tem citado sobre Montemuro, dos réus querelados, 49 % são absolvidos, 10
3867 Fontes doutrinais: Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit.; Manuel
contrária de direito comum, se o criminoso fugisse para outro território e jurisdição e aí fosse preso, a
prisão valia (Ord. fil.1,73,7); mas se aí estabelecesse domicílio, devia ser o juiz desse território a ordenar a
prisão, por precatória, ibid. n. 43.
3869 Sobre privilégios, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal […], cit., c. 1, n. 8.
3870 Os eclesiásticos sem superior no Reino respondiam perante o foro secular, para evitar a
619
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3872 Alv. 14.12.1562; Diogo Guerreiro Camacho de Aboim, Opusculum de privilegiis familiarium
3874 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, n. 8.
3875 Detalhes, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 10.
3876 Detalhes, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 10
3877 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 8, nota final.
620
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3878 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 8, nota final.
3879 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 12 nota 2; também c. 39,
§ 296 ss..
3880 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 2, § 18 e notas.
3881 Devassas dos corregedores (ou Ouvidores com poderes de correição): Ord. fil.1,58,31.
3882 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c.3; Mateus Homem Leitão, De
jure lusitano: Tractatus tertius: De Inquisitionibus, cit., III, qu. 21; José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de
processo criminal, cit., c. 21, § 22
3883 O mesmo acontecia com os que o rei extraordinariamente ordenasse averiguar; cf. Jorge de
233,856 gramas); o arrátel correspondia à libra, lira, arrátel. O valor real do arrátel flutuou durante a
621
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
idade média, até que foi fixado por D. Manuel I em uma libra (libra ibérica). A libra tinha 20 soldos ou
dinheiros.
3885 Ord. fil.1,65,31.
3886 Cf. Mateus Homem Leitão, De jure Lusitano, cit., III, “Praefatio”.
3887 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 3, § 32 a 37; em certos casos,
3890 Sobre a formula da querela, Gregorio Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], p. 82
ss.).
3891 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 4, § 43; Manuel Mendes de
622
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
8.1.6.4.4 A pronúncia.
§ 2181. A existência do facto delituoso provava-se pelo corpo de delito, no qual
assentava todo o processo. Este extraía-se da observação, nos crimes que deixassem
sinais, por conjeturas estabelecidas na lei e por depoimentos de testemunhas.
§ 2182. Uma vez estabelecido o facto, restava relacioná-lo com um agente,
indiciando este, ou seja, reunindo indícios 3893 que permitissem, com alguma
verosimilhança avaliada pelo arbítrio do juiz, imputar o crime àquele réu.
§ 2183. Tendo-se reunido indícios bastantes, segundo o prudente arbítrio do
juiz, para pronunciar o réu, seguia-se a pronúncia, um despacho do juiz que
declarava o réu suspeito de delito, "pondo-o no número dos culpados" 3894. Deste
despacho o réu podia interpor agravo (de injusta pronúncia); e da despronúncia,
poderia haver apelação da parte queixosa, pois a despronúncia era como uma
decisão definitiva.
8.1.6.4.5 Prisão, segurança, fiança, sequestro.
§ 2184. A pronúncia podia levar à prisão do réu ou à sua saída em liberdade
como “seguro”. A prisão tinha lugar nos casos de delitos a que correspondesse
pena corporal ou aflitiva (Ord. fil.5,117,187-19; Ord. fil.5,119), por se recear a fuga
do réu. Era ordenada por mandato do juiz (Ord. fil.5,75), com indicação da culpa
formada (Ord. fil.5,117). Mas podiam ser presos sem culpa formada os réus
apanhados em flagrante delito, quando o crime fosse capital3895. Se os réus se
acoitassem em Igreja (adro, cemitério, mosteiro) gozavam de imunidade (Ord.
fil.2,5) exceto nos casos em que a imunidade não era aceite3896.
§ 2185. A prisão não tinha lugar no caso de seguro 3897, ou seja, da “segurança”
do réu em liberdade, contra promessa judicial deste de que compareceria a
julgamento. No pedido da carta de seguro, o réu podia negar o crime (negativa, Ord.
fil.5,35; 5, 38; 5, 127,8) ou confessando-o mas invocando a legítima defesa
(confessativa). As cartas de seguro (ou cartas tuitivas) 3898, que permitiam ao réu
continuar solto até à conclusão da causa, eram normalmente concedidas pelos
corregedores das comarcas (ou ouvidores com poder de correição) ou pelos
corregedores do crime das Relações, cabendo agravo da sua recusa, exceto nos
crimes considerados graves3899. Caducavam se o réu quebrasse a sua promessa e
não comparece em tribunal.
§ 2186. Os réus nobres (fidalgos, desembargadores, cavaleiros, doutores,
escrivães régios e suas mulheres ou viúvas) 3900 também tinham o privilégio de
homenagem, ou seja, de evitar a prisão em cárcere público, salvo no caso de crimes
3893 Sobre a qualidade e probabilidade dos indícios, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo
3895 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 8, § 62.
3896 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., c. 1, § 2; José J. Pereira e Sousa, Primeiras
3898 Fórmulas, Gregório Martins Caminha & João Martins da Costa, Tratado da forma dos libelos […] e
allegações judiciais (ed. 1764), p. 132 s.; António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 2, c. 47.
3899 Listagem, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c.9, § 69.
3900 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 10, § 75.
623
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3901 v. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 11, § 81 nota
3902 Regimento do Desembargo do Paço, § 24; Ord. fil.5,131,1.
3903 Crimes em que não havia lugar a fiança, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo
3906 (v) Contestação; (vi) contrariedade; (vii) réplica; (viii) tréplica; (ix) provas; (x) publicação; (xi)
624
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
queixoso estar ausente, era citado por carta citatória, sabendo-se onde estava, ou
por editais. No caso de estar fora do Reino (este incluía as ilhas adjacentes)
prescindia-se da citação, seguindo a causa por parte da justiça, se o crime fosse
público (Ord. fil.5,124,9).
8.1.6.4.8 Libelo de Acusação
§ 2195. Seguia-se a apresentação do libelo escrito3908, em que o autor
apresentava o pedido, indicava o seu fundamento, narrava circunstanciadamente o
facto e concluía3909. Na falta de libelo, o acusador era "lançado da acusação" e a
causa prosseguia por parte da justiça, sendo pública (mas o acusador podia manter-
se na causa, como "ajudador da justiça", com as prerrogativas do promotor, Ord.
fil.1,15,26)3910. Recebido o libelo, o juiz mandava apregoá-lo e convidava o réu a
contraditá-lo3911. Não comparecendo o réu, procedia-se contra ele à revelia (Ord. fil.
5, 126, pr. e 13912).
8.1.6.4.9 Exceções
§ 2196. Antes da contestação da lide (contradita, contrariedade), o réu podia
deduzir exceções, ou dilatórias3913ou perentórias3914. Do não recebimento das
exceções podia-se agravar nos autos do processo (Ord. fil. 3,20,9 e 15)3915. Se o réu
não conseguisse diferir ou extinguir a causa por meio das exceções, devia contestar
o libelo.
8.1.6.4.10 Contestação da lide (contradita).
§ 2197. A contestação (da lide, litiscontestatio) fixava a demanda, excluindo novas
exceções e tornando-a pronta para o conhecimento do juiz. Nesta fase, o réu
contrariava, por artigos, o libelo, negando a acusação ou admitindo-a
parcialmente3916.
8.1.6.4.11 Réplica do Autor e tréplica do réu
§ 2198. Recebida a contradita, também articulada (Ord. fil.5,124, pr. e 1)3917, o
autor devia replicar, impugnando a contradita (Ord. fil. 5, 124, pr. e 3), podendo o
réu treplicar, com o que se encerrava o contraditório.
§ 2199. Seguia-se a notificação às partes de um prazo para indicar a prova
(ordinariamente, de vinte dias, Ord. fil.3,54; 5,124,2), apontando os artigos sobre
3908 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 4, libellus accusationis; José J.
3911 Fórmulas: Gregório Martins Caminha & João Martins da Costa, Tratado da forma dos libelos […] e
3914 Prescrição e caso julgado. Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana, cit., liv. 5, c. 1, § 5, n.
60; fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 103 ss..
3915 Fórmulas: Gregorio Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 108.
3916 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 89 s..
3917 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 6, ns. 62 e 63.
625
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3918 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 94.
3919 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 95.
3920 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 7.
3921 Esta fundava-se naquilo que acontecia o mais das vezes ou em que a maioria convinha, sendo
esta bastante para condenar em pena ordinária, se ficasse estabelecida por prova perfeita.
3922 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 24.
3923 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 8, n. 89
626
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
8.1.6.4.14 Tormentos
§ 2210. O réu podia ser posto a tormentos 3924 nos crimes graves (crimes
punidos com a morte natural, ass. Rel. Porto, 16.8.1661) para que dissesse a
verdade. O uso do tormento requeria corpo delito e indícios suficientes segundo a
decisão arbitrária do juiz (de que se devia apelar por parte de justiça, Ord.
fil.5,122,3). Não podiam ser postos a tormentos os loucos, os velhos, as grávidas, os
soldados, os vereadores, os nobres e os menores de 14 anos3925.
§ 2211. A confissão só era válida se feita depois de terminados os tormentos.
8.1.6.4.15 Documentos.
§ 2212. Os documentos podiam ser públicos, fazendo prova plena se não
fossem arguidos de falsidade (Ord. fil.3,60,3) ou particulares, só a fazendo sendo
reconhecidos pelo réu (D,22.04, C,04.21; Ord. fil.3,25,9). Podiam ser originais ou
traslados.
8.1.6.4.16 Testemunhas.
§ 2213. As testemunhas faziam prova plena quando fossem capazes
(absolutamente: Ord. fil.3,56; Ord. fil.4,85, pr.; Ord. fil. 3,56; ou relativamente: Ord.
fil.3,56), em número legítimo (2 ou 3, Ord. fil.1,78,4; D,22.5; C.4,20), juradas,
concordes, fidedignas, circunstanciadas e concludentes. Não faziam prova plena os
testemunhos defeituosos, prestados por amor (familiares, domésticos, amigos
íntimos, advogados, interessados, sócios de crime3926), ódio (inimigos e seus
parentes) 3927, os dos infames (sem fama, banidos, meretrizes, ébrios, falidos de má
fé, jogadores; mas não os dos pobres) e os dos menores 3928. Estas testemunhas
podiam ser recusadas ou contraditadas (Ord. fil.3,58,5; 5,124,4).
§ 2214. Os depoimentos das testemunhas eram avaliados pelo juiz segundo o
seu prudente arbítrio; mereciam pouco crédito as testemunhas crédulas, de ouvir
dizer, contraditórias, inseguras, circunstanciais e espontâneas 3929.
§ 2215. As testemunhas podiam ser confrontadas entre si, com o réu ou com os
corréus (acareação, de "pôr cara a cara").
8.1.6.4.17 Perguntas ao réu
§ 2216. O juiz podia, em qualquer momento da causa, fazer perguntas ao réu
(Ord. fil.3,32,1-3)3930. As perguntas deviam ser feitas de modo leal, sem insinuações
de resposta, sem dolo, violência ou falsas promessas, sem juramento. O termo de
perguntas e respostas devia ser assinado pelo réu (Ord. fil.1,79,30; 5,117,11). A
recusa a responder equivalia à confissão.
3924 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv.5. c.1, § 8.
3925 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 28, §208.
3926 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 26.
3928 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c.26, n. 186 e notas.
3929 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit..c.26, § 187 e notas.
3930 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., c. 1, § 3; Manuel Lopes Ferreira, Pratica
627
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
8.1.6.4.18 Alegações
§ 2217. Uma vez terminado prazo das provas, estas eram publicadas, para
conhecimento das partes (Ord. fil.3,62,1; 5,124,5-8)3931.
§ 2218. Reunidas as provas e juntas aos autos, era dada vista destes às partes,
para fazerem as respetivas alegações de facto e de direito (Ord. fil.3,20,42)3932. Feitas
estas, o processo ficava concluso ao juiz, para decisão, pela sentença final ou
definitiva.
8.1.6.4.19 Defesa.
§ 2219. A defesa do réu podia ser interposta em qualquer momento da causa
(Ord. fil.5,144,8), mesmo depois da conclusão do processo 3933, sendo
irrenunciável3934. Os artigos da defesa deviam ser provados. Como defesa, o réu
podia invocar falta de corpo delito, falhas na acusação, irregularidade da confissão,
ou causas de exclusão do delito, como a falta de intenção ou a legítima defesa.
8.1.6.4.20 Sentença.
§ 2220. Conclusos os autos, o juiz dava a sentença.
§ 2221. A sentença3935 devia basear-se na matéria que constava dos autos
(judicata secundum allegata et probata) e não na ciência ou consciência do juiz (Ord. fil.
3,66,pr.; D,1.18,6,1). Devia, por outro lado, ser conforme à lei, não contrariar outra
sentença passada em julgado, não ser dada por peita ou por provas falsas; aliás,
seria nula (Ord. fil.5,138,pr.)3936.
§ 2222. Nos casos capitais3937, as sentenças deviam ser dadas em relação, por
seis juízes, incluindo o relator, carecendo de quatro votos a favor (Ord. fil.1,1,6)3938.
Neste caso, só eram passíveis de agravo (mas não de apelação, segundo as regras
gerais)3939. Nos casos não capitais, eram dadas pelos juízes ordinários das terras,
com apelação para os ouvidores das apelações crime das Relações (Ord. fil.1,11,pr.;
1,68,83940).
§ 2223. A condenação devia ser certa quanto à pena, ordinária ou arbitrária. No
caso de penas arbitrárias essa fixação fazia-se inteiramente por arbítrio (= avaliação
concreta) do juiz. O juiz devia apelar por parte da justiça (Ord. fil.5,122; para os
3931 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 97.
3932 Fórmulas em Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 97
3933 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c.33, § 238. Pode
inclusivamente apresentar provas, uma singularidade fundada no direito comum e não proibida pelas
Ordenações (Ord. fil.5,124,7, ibid. nota).
3934 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv.5. c. 1, § 5.
3935 Fórmula em Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 98.
3936 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 242.
3937 Incluem penas de açoutes ou mais graves; e de degredo por mais de 5 anos.
3938 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], p. 1, ar. 253; João Martins da Costa, Domus Supplicationis styli,
supremique Senatus consulta […], letra C, p. 191; letra S, p. 216. Percebe-se, assim, que a decisão final não
discriminava a opinião de um ou de outro desembargador, funcionando como a opinião da Casa da
Suplicação e adquirindo autoridade como tal Melchior Febo, Decisiones […], p. 1, dec 106.
3939 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 250.
3940 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 251, nota 4.
628
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
3941 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 242, nota 3.
3942 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 36, §267.
3943 Outros juízos competentes, Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 9;
José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit.. c. 37, § 281 nota. Fórmulas: Gregório
Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 100.
3944 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 37, § 273.
3945 Fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 102 ss..
3946 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 36,§ 281 (com indicação de
629
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
estabelecesse a pena para ele, o juiz podia impor uma qualquer, corporal ou
pecuniária (poena arbitraria)3948. Esta indeterminação – que não correspondia à
arbitrariedade irrestrita - obrigava à formulação de princípios gerais que guiassem o
juiz, como o da adequação da pena ao crime 3949, ou outros baseados na finalidade
geral das penas3950 ou no tempero da justiça com a misericórdia3951.
§ 2231. Para além disto, o direito considerava uma vasta série de circunstâncias
que atenuavam ou agravavam a pena ordinária, em função do grau de certeza acerca
da responsabilidade do réu3952 ou de circunstâncias subjetivas3953 e objetivas3954. Por
meio delas, os juízes adequavam a medida punitiva abstrata ao caso concreto.
§ 2232. Estabelecida a pena e julgado o réu, o rei gozava de uma ampla
faculdade de perdão, a que já nos referimos e que constituía um dos traços
estruturais do sistema punitivo do direito comum.
§ 2233. Um dos tratamentos mais completos do regime do perdão na doutrina
portuguesa é o de Domingos Antunes Portugal 3955, onde se discutem os requisitos
a que devia obedecer a sua concessão. Em primeiro lugar, é destacada a sua
natureza de regalia (mesmo de regalia maiora ou quae ossibus principis adhaerent) 3956 3957.
Em segundo lugar, indica-se a necessidade de uma justa causa para a sua concessão,
jurisdição régia não podem decidir arbitrariamente as penas que impõem”, Jorge de Cabedo, Decisiones
[...], cit., p. 2, dec. 60, n. 6.
3948 Cf. D.48,19,13: 48.19.13: “Hodie licet ei, qui extra ordinem de crimine cognoscit, quam vult
sententiam ferre, vel graviorem vel leviorem, ita tamen ut in utroque moderationem non excedat”. No
direito canónico, Decreto, II, causa XII, qu. 2, c. 11; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 30.
3949 Nas penas “civis”, a medida da pena era o dano (damnum, id quod interest, interesse). Mas algumas
continham um elemento de punição, que explicava que a pena pudesse ser um múltiplo do dano (penas
de simples, duplum, triplum e quadruplum, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 13).
3950 Nomeadamente, o fim da prevenção geral (“a pena não deve ser muito leve, pois serve de
exemplo e de ameaça”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 46).
3951 Era muito importante a invocação da misericórdia como contrapeso da justiça (cf. António
Manuel Hespanha, "Da 'iustitia' à 'disciplina' […]”, cit.; “juiz deve ser benigno nas causas leves e
rigoroso nas causas graves”, embora com aliquo temperamentum benignitatis, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 19).
3952 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 25.
3953 “Magis tamen puniuntur delicta in una persona quam in alia, quoniam debant attendi sexus, &
locus delicti, & tempus, & locus delicti”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n.
10. Por exemplo, ser da família do réu podia implicar uma pena mais leniente (v.g. no crime de
recetação), pois os sentimentos familiares podiam atenuar a culpa, ibid. v. “Delictum”, n. 44. § 1. A regra
de que ao mais digno se devia aplicar uma pena mais pesada afIora frequentemente nas fontes romanas e
canónicas. Baldo (§ si quis vero usu temerario do tit. II, 53, de pace tenenda dos Libri feudorum) distinguirá: “ou
pela nobreza se aumenta a qualidade do delito, sendo o nobre mais punido; ou pela nobreza não se
aumenta a qualidade do delito e então o nobre é mais punido do que o plebeu se se tratar de pena
pecuniária; mas, tratando-se de pena corporal, o plebeu é mais punido”.
3954 Os delitos cometidos na Igreja ou na presença da Santa Eucaristia deviam ser punidos de
forma gravíssima, com pena capital ou desterro, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 11. A pena podia ser agravada pela reincidência (preserverantia), ibid. v. “Delictum”, ns. 15
e 16. (v. Ord. fil. 5,60,3).
3955 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit..
3956 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatusde donationibus [...], cit., pt. 2, c. 18, p. 264 ss..
3957 Logo, insuscetível de doação (ns. 1-5; o príncipe podia, no entanto, cometer a certos
magistrados a instrução dos processos de perdão, v. Ord. fil. 1, 3; Regimento do Desembargo do Paço, §18).
630
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
embora se adiante que “justa, et magna causa est principis voluntas” (uma justa e
grande causa é a mera vontade do príncipe) (n. 11); em terceiro lugar, aponta-se a
necessidade de precedência do perdão de parte (Ord. fil.1 3, 9; III, 29), embora se
excetuassem os casos em que o perdão fosse concedido pro bono pacis (para pacificar
[uma “rixa velha”, por exemplo]) ou em que o príncipe usasse, com justa causa, a
sua potestas absoluta, n. 40 ss. max. n. 47) 3958.
§ 2234. A doutrina atestava uma prática de perdão mais permissiva do que o
faziam supor as determinações legais e, mesmo, doutrinais. Manuel Barbosa
informa que era estilo comutar as penas sem o perdão de parte, decorrido um terço
do seu cumprimento (está a referir-se, decerto, ao degredo). E que, embora Jorge
de Cabedo aconselhasse em sentido contrário, se perdoavam mesmo os crimes
mais graves, recordando casos ocorridos na sua terra, de perdão de penas capitais,
sem perdão de parte: “eu próprio vi, no entanto, perdoar a pena capital a um nobre
de Guimarães, sem perdão de parte, e ouvi dizer que o mesmo acontecera a um
certo homem de Monção, mas para isto deve ocorrer grave causa, pois o príncipe
não pode facilmente perdoar contra o direito da parte lesada 3959.
8.1.6.5.1 Execução.
§ 2235. Admitidos ou recusados eventuais recursos3960 e passada a sentença em
julgado, era dada execução à pena3961. A execução era ordenada pelo juiz que dava a
sentença, devendo ser pública. 3962.
8.1.6.5.2 Extinção da causa.
§ 2236. O processo criminal extinguia-se nos casos que excluíam a punibilidade
- prescrição do crime (em regra, de 20 anos, Ord. fil.1,84,23; 1,96,2), falecimento do
delinquente ou do acusador, perdão do príncipe 3963.
8.1.6.6 Processo sumário
§ 2237. O processo sumário era aquele em que as formalidades ordinárias não
eram observadas, seguindo-se a "ordem natural" dirigida ao conhecimento do delito
3958 “Princeps potest delictorum poenas delinquentibus remittere & indulgere”, Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 75, n. 2. O perdão régio pressupunha o perdão das partes, ibid. 3 a 5; porém,
em Portugal, era de estilo que o degredo fosse comutado em desterro sem licença das partes, ibid. 6.
Domingos Antunes Portugal referia ainda que, em Portugal, o rei não costumava perdoar os crimes mais
atrozes, mesmo com o perdão de parte (n. 48); que os criminosos reincidentes não costumavam ser
perdoados; e que o rei podia perdoar contra o pagamento de certa quantia (Reg. Desemb. Paço, §§ 21 e 23;
n. 124). O regime da concessão do perdão fora modificado por este regimento (de 27.7.1582), num
sentido mais rigorista. Sobre o regime do perdão, v. além do comentário de Manuel Álvares Pegas a este
regimento (Comentaria […], cit., tomo 7, ad Ord. fil.1,3,8 ss. e ad Reg. Sen. Pal. caps. 19 a 21; Jorge de
Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 1, dec. 75. V. ainda Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.
3, cap.30.
3959 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones doctorum […], cit., ad 1, 3, 9, n. 2 [pg. 8]. No mesmo sentido,
Manuel Mendes de Castro, Practica Lusitana […], cit., pt. 2, liv.1. c. 2, n. 19 ss. [pgs. 13/14]; justificando a
praxe “ob delinquentis merito, & beneficio in rem publicam” [por mérito do delinquente e em benefício
do interesse da república] invocando o direito comum: D.49, 16, 5, 8.
3960 Fórmulas, Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 117 ss..
3961 Sobre penas honestas e vis, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 38,
§ 282 nota.
3962 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 3, cap. 23. Lugares de suplício de
penas corporais.
3963 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 42.
631
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
e do seu autor3964.
§ 2238. Procedia-se sumariamente nos casos de crimes graves (homicídios e
roubo de estrada processados nas relações, resistência, desafio, contrabando de
cereais, crimes capitais agravados) processados nas relações (Ord. fil.1,1,6). Além
destes, nos casos de réus presos há mais de três meses e nos processados no foro
militar, no Juízo dos contrabandos, no dos falidos e no juízo de residência 3965.
§ 2239. Sumários eram ainda os processos aquando das visitas mensais do
Regedor da Justiça aos cárceres de Lisboa3966, os processos por injúrias não atrozes
e as decisões sobre cauções de termos de bem viver (cauções prestadas para
prevenir crimes entre vizinhos, Ord. fil.1,65,26; 3,78,5; 5,128,pr.).
§ 2240. O processo começava pela audição do réu, marcando-se um breve
termo para a sua defesa. Prescindia-se de citação de parte e de testemunhas
judiciais. Faziam-se os autos conclusos, sendo a sentença dada por seis juízes,
havendo quatro votos conformes. O réu tinha 24 horas para embargar a sentença.
8.1.7 A pena.
§ 2241. A pena era o castigo do delito3967. Em sentido genérico, o conceito
compreendia tanto as penas corporais, como as pecuniárias, tanto as que visavam
compensar o dano (“civis”) como as que castigavam os malefícios (“criminais”).
Mas, em sentido estrito, penas eram somente as corporais aflitivas – ou sejam, as
destinadas a fazer sofrer o corpo 3968, tanto as capitais (último suplício,
desnaturalização [degredo, amissio civitatis] e perda da liberdade), como as não
capitais3969.
§ 2242. O fim da pena (“criminal”) era o de favorecer o bem estar da república,
para que esta se conservasse em paz e os bons pudessem viver tranquilamente entre
os maus3970.
§ 2243. A pena devia ser adequada (comensurata) à gravidade do delito e à
culpa3971. Esta dupla adequação entende-se melhor se se entender a gravidade do
delito, não de um ponto de vista objetivo (a gravidade do mal causado), mas de um
ponto de vista subjetivo (a gravidade moral da maldade que esteve na sua origem).
3964 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 41.
3965 Sobre ele, v. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv.5,c.5; José J. Pereira e
Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 41,§ 307 nota.
3966 Cf. João Martins da Costa, Domus Supplicationis styli, supremique Senatus consulta […], cit., Adn. 2,
n. 42; José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 41, § 315 nota.
3967 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 1.
3968 As penas corporais não aflitivas eram aquelas que incidiam sobre o corpo, mas como meio de
produzir um valor (por exemplo, a escravização a favor do prejudicado, se in nexum dare), nos casos em
que o corpo do devedor funcionava como uma extensão do seu património..
3969 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 2.
3970 “[…] ut in Republica sit quies, & boni inter malos tranquille et quiete vivant, et hominum
malitiam reprimatur, quoniam per legem nemo benefacere cogitur, sed male agere prohibetur", António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 29; “Delicta punienda ut delinquens metu poena
arctantus et emendientur a suis criminibus, et alii metu aliorum pertimescat commitere alia facinora”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” 8.
3971 Cf. Miguel de Reinoso, Decisiones […], dec. 59, n. 16, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.. I. dec.
632
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 2244. As penas em sentido estrito eram odiosas, pelo que tinham que estar
previstas no direito. Pelo contrário, as penas “civis” dependiam do arbítrio do
juiz3972. Em todo o caso, esta previsão da pena pelo direito não equivalia ao
moderno princípio da legalidade, pois existiam penas consuetudinárias (“quando in
similibus delictis est consuetudo, ut certa poena imponatur”) e penas arbitrárias,
que dependiam do arbítrio do juiz quando o direito estabelecia uma pena sem
especificar a sua natureza3973. No domínio das penas “civis”, as partes podiam
convencionar, mesmo extrajudicialmente, o montante da pena de um
comportamento ilícito (iniuria); mas isto era impossível no caso de crimes3974.
§ 2245. As penas canónicas (poenae canonicae) eram a degradação e consequente
deferimento da causa para o tribunal secular; a privação perpétua de ofício,
benefício ou honra, perpétua ou temporária; a expulsão do mosteiro; a demissão ou
suspensão do benefício, a excomunhão e a privação de comunhão 3975.
§ 2246. As penas de direito civil (poenae legales) podiam ser penas capitais (morte
natural ou civil3976 e degredo) ou não capitais (penas pecuniárias, castigos
corporais).
8.2 O sistema axiológico do direito penal de Antigo Regime
§ 2247. O objetivo deste capítulo é o de descrever os principais tipos penais do
ius commune tardio, agrupando-os em função daqueles que parecem ser os valores
protegidos pela proteção penal, tal como os juristas letrados os entendiam.
§ 2248. O crime é produzido por uma prática social de censura, discriminação e
de marginalização, prática mutável e obedecendo a lógicas sociais muito complexa.
Sobre os resultados desta primeira atividade de constituição dos “objetos criminais”
projeta-se uma segunda grelha de classificação, esta doutrinal, produzida pelo
discurso jurídico penal. Este redefine os “crimes vividos”, construindo novos
conceitos (“tipos penais”), e organiza e inter-relaciona estes últimos em grandes
categorias, referidas a certos valores (religião, vida, segurança, propriedade).
§ 2249. Na descrição que se segue, tomaremos como base as grandes categorias
definidas, já nos finais do século XVIII, por Pascoal de Melo, com o cuidado de
estar atento à reconfiguração dos valores a proteger e da função penal na cultura
iluminista3977.
8.2.1 Crimes contra a ordem religiosa.
§ 2250. Foi apenas nas Ordenações filipinas (1604) que os “crimes religiosos”
apareceram agrupados. Nas Manuelinas (1521), estes tipos penais ainda surgiam
3972 “Non habent locum, nisi in casibus a iure expressis [...] omnes casus poenales sunt stricti iuris,
in illis nulla fit extensio, & potius sunt restringnedi, quam ampliandi”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Poena”, n. 18; cf. também, ibid. n. 2.
3973 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 6; n. 45 (o arbitrium do juiz não
deveria estender-se até à aplicação da pena de morte, segundo a melhor – mas não unânime - doutrina).
3974 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 14.
3976 Aqui se incluía a pena de galés, o degredo perpétuo (de mais de dez anos, Melchior Febo,
Decisiones […], dec. 156, n. 6 ss.; mas não o inferior ou o desterro), a condenação à condição de carrasco,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 4.
3977 Sobre as ideias penalistas de Pascoal de Melo, v. António Manuel Hespanha, "Le projet de
633
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
8.2.1.1 Heresia
§ 2251. A heresia3980 tinha uma longa tradição textual no direito comum, em
textos de direito romano (v. C.1,5) ou em textos de direito canónico. No direito
peninsular, ela aparece na legislação desde o início do século XIII 3981.
§ 2252. Distinguia-se a ofensa à religião católica feita por um batizado ou por
um não batizado. Tal distinção tinha sentido, na medida em que a heresia, como
violação da ortodoxia, não podia recair senão num crente. No entanto, a extensão
do conceito aos não crentes tinha uma antiga tradição no direito português (lei de
3.1.1416, baseada num costume anterior e num texto do Corpus iur. Canon.: Sextum,
5, 13).
§ 2253. Nas suas grandes linhas, era o seguinte o regime da heresia segundo o
direito comum.
§ 2254. A heresia era, sobretudo, um delito “da vontade” (de eleição) 3982 e não
“do entendimento”. Embora fosse definida como um “erro”, ela só era punida
quando com o erro concorressem a firmeza do ânimo e a pertinácia no errar3983.
Por isso, não era herege o que reconhecia o seu erro e estava disposto a emendar-
se3984. Os que abjurassem (não sendo relapsos), não eram enviados para o tribunal
3978 Sobre este tribunal, José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci, História Geral da Inquisição Portuguesa
[…], cit..
3979 Cf. Col. cronol. lega. (J.J.A.S.), vol. respetivo; sobre a competência do Santo Ofício, em Portugal
e em geral, João Baptista Fragoso, Regimen […], p. 2, liv. 5. disp. 13 per totam.
3980 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […],cit., ad Ord. fil. 5,1; fontes de direito canónico, Decreto, 23,
qu.7; 24,q.3.
3981 Cf. lei de 1211, lei 3; Livro das leis e posturas, 10/11; Partidas, 7, 26, pr. e ss.
3983 “Eligit disciplinam, quam putat esse meliorem, & intelligit scripturam aliter, quam sensus
634
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
secular, mas postos em cárcere perpétuo, para penitência, ou enviados para as galés
por tempo arbitrário. Eram, além disso, obrigados a usar um traje especial,
sambenito (saccum benedictum), em sinal do seu crime e da sua penitência pública 3985.
§ 2255. O erro herético devia incidir sobre um artigo de fé ou um sacramento
da Igreja3986. Os livros dos heréticos eram condenados, independentemente de
terem erros, por causa da heresia do seu autor 3987.
§ 2256. A heresia era, em princípio, um delito de batizados, ou seja, de pessoas
pertencentes ao grémio da Igreja, pois só então estavam sob a disciplina desta, da
qual a disciplina temporal se entende como subsidiária 3988. O direito distinguia a
heresia da apostasia e da infidelidade. A segunda só excecionalmente era punida. A
terceira não era, em geral, punida. O estatuto penal destes comportamentos
religiosos reflete uma situação de pluralismo religioso. Na verdade, o que se punia
não era a diversidade de religião, mas a violação da ortodoxia pelos que
permaneciam no seio da Igreja. Nem a Igreja se arrogava o direito de punir os não
crentes, nem o poder temporal considerava o pluralismo religioso incompatível
com a unidade política da sociedade. Estas oposições ir-se-ão esbatendo, à medida
que se vai estabelecendo a ideia de “religião do reino” (cujus regio eius religio [Siga-se a
religião daquele de quem é a região]), segundo a qual a violação do princípio da
unidade religiosa equivalia ao crime de lesa majestade. O que voltava ao grémio
católico mas recaía na heresia era relapso e via agravada a sua condição
(nomeadamente, não podendo voltar a arrepender-se)3989.
§ 2257. Só era punida a heresia manifesta, mas não já a cometida “nullo signo
oris aut facti” (sem sinal de palavra ou de facto), pois a Igreja não julgaria coisas
ocultas3990.
§ 2258. A heresia era um delito cujo conhecimento competia aos tribunais da
Igreja. Mas como estes não podiam aplicar penas de sangue, deviam entregar ao
braço secular os réus a punir corporalmente (Decretais, v. 13, 1; 15, 1), embora
esconjurando os juízes a que não aplicassem penas de sangue. Segundo uma
opinião comum em Portugal no século XV, o juiz secular a quem se recorria não
devia reapreciar o processo, mas apenas limitar-se a aplicar a pena; mas as Ordenações
afonsinas e manuelinas prescreviam um papel mais interveniente do juiz secular, na
esteira de uma opinião de Bártolo3991. No séc. XVII, a doutrina volta a limitar as
atribuições do tribunal secular, que devia aplicar prontamente a sentença
condenatória sem a apreciar
3985 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus, n. 38.
3986 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 2.
3987 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus” n. 34.
3988 No entanto, um cânone do Sextum (V, 13) prevê a punição dos judeus convertidos ao
cristianismo e novamente tomados ao judaísmo. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Haereticus”, n. 7.
3989 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 36. Típico, o casos dos
judeus que se reconciliavam com o cristianismo, mas voltavam a judaizar (ibid. n. 33).
3990 Os pensamentos não expressos, ainda que abomináveis, não eram heresia. Bater na imagem de
Cristo ou deitar ao chão a eucaristia era apenas um forte indício de heresia, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 18.
3991 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haeresia”, n. 16.
635
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
3992 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, ns. 1 a 11.
3993 O confisco dava-se a favor do fisco secular, precedendo sentença do juizo eclesiastico (no caso
português, da Inquisição), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus” 12; âmbito do
confisco, v. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.5,1,pr. a 4.
3994 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad rubr. n. 3.
3995 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 25.
3998 Primeiro, os tribunais dos bispos; depois, os juízes delgados do papa (inquisidores); mais tarde,
os tribunais régios especializados. Os bispos mantinham com estes uma jurisdição cumulativa, devendo
haver colaboração entre as duas jurisdições, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Haereticus”, ns. 14 e 15.
3999 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, ns. 42 ss.
4000 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 14.
4001 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, ns. 41 e 48.
4003 Do grego apostasis, composto de apo, que significa afastamento, e stasis, estar, estado.
4004 Fontes jurídicas: Decreto, cap. 2, qu. 7; cap. 11, qu. 7; Decretais, Cf. 9, de apostat. C.1,7, de
apostat.; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Apostasia”; Manuel Barbosa, Remissiones [...],
cit., ad Ord. fil. 5,1, n. 6.
4005 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Apostasia”, ns. 1, 2.
636
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
mera desobediência por qualquer outra razão. Neste último caso, o apóstata era
punido com a perda de ofício eclesiástico e com a excomunhão 4006. A
desobediência a outro superior eclesiástico podia consistir em atitudes muito
diversas. Típicas eram o abandono da qualidade eclesiástica (eventualmente, para se
amancebar), ou o abandono de hábito regular 4007. Nestes últimos casos, a pena era a
excomunhão, a infâmia, a perda do estado eclesiástico, a remoção de ofício
eclesiástico e, para os regulares, a sujeição a suplícios (não cruentos: v.g. jejuns) e
prisão eclesiástica, para incentivar à obediência4008. O apóstata que cometesse atos
graves contra a fé estava sujeito a confisco (por direito civil, apenas se não tivesse
filhos ou descendentes)4009.
§ 2263. O que mais importa destacar, na ulterior evolução histórica deste
campo penal é que, com a secularização do direito, que se nota na segunda metade
do século XVIII, o regime destes crimes passa a ser fundado na ofensa feita, não à
religião verdadeira, mas à religião estabelecida e à ordem social de que esta faz parte.
Neste sentido, não interessava, por um lado, que a religião estabelecida fosse
verdadeira4010; e, por outro, qualquer crime contra a ordem social podia ser
considerado como crime religioso. Pascoal de Melo chega a definir como
antirreligiosos todos os atos que atentem contra os bons costumes, as leis divinas,
as naturais e até as civis4011.
§ 2264. Assim, a heresia tornava-se, antes de tudo, num “crime público civil,
pois se entendia que todo aquele que ofendesse ou desprezasse a religião pública
destruía os mais fortes vínculos sociais” 4012, originando “infinitas desordens,
tumultos e perturbações, que a mesma sociedade deve acautelar” 4013). Daí que a
punição civil deste crime não considerasse os aspetos espirituais, pois “os homens
não foram postos para vingar as ofensas feitas a Deus” (ibid.) e, por isso, a
gravidade do crime não fosse avaliada pela magnitude espiritual ou teológica das
ofensas, mas pela medida das perturbações sociais provocadas (v. g. sedições ou
criação de partidos religiosos), pelo escândalo causado 4014 ou pelo mal real
provocado4015.
mulher, era suspeito de heresia. Não era considerado apóstata o clérigo menor que abandonasse o estado
eclesiástico.
4009 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Apostasia”, n. 10.
4010 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 2, 1 “[...] a Nação, a qual dificilmente se
pode conceber sem alguma religião, verdadeira ou falsa”; critica ao ateísmo dos livres-pensadores, ibid. 2,
8).
4011 “Todos os delitos podem ser chamados eclesiásticos, estando sujeitos, no foro da consciência,
à punição da Igreja, às penitências, censuras e penas canónicas”, Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis,
cit., II, 2.
4012 Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 2, 4.
4015 Cf. g. os feiticeiros não são punidos senão pela malícia e sofrimentos físicos a que as
beberagens derem causa, Pascoal de Melo, Codigo criminal [...], cit., 9495; os perjúrios, pelos prejuízos
provocados a terceiros, ibid. 7,1.
637
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4016 Isto é, da definição das condutas que integram certo tipo penal e a que, portanto, corresponde
4018 Cf. Regimento do Santo Officio da Inquisição dos Reinos de Portugal […] (1774), cit..
4020 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, ns. 2 a 6.
4021 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, n. 18.
4024 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, ns. 11 e 14.
638
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
§ 2270. O direito do reino não previa um tipo conjunto e autónomo para este
crime. Mas várias das suas modalidades aparecem tipificadas ao longo do livro V
das Ordenações (v.g. Ord. fil.5,15). O sacrilégio era punido, de direito comum, com a
pena de excomunhão ou com pena arbitrária, cumulativamente com a pena
correspondente a outro crime conjuntamente cometido 4025.
§ 2271. Era crime de foro misto, seguindo a regra da prevenção4026.
§ 2272. Próximo do crime de sacrilégio estava o de simonia, também específico
do direito canónico (como pecado e como crime)4027, e que consistia na vontade ou
desejo de vender ou comprar uma coisa (bem, direito ou jurisdição) espiritual. Nela
se incluía a venda de ofícios eclesiásticos, o seu provimento em troca de dinheiro, e
outros comportamentos que consistissem na patrimonialização de prerrogativas
eclesiásticas4028.
8.2.1.3 Blasfémia.
§ 2273. A blasfémia4029 era o insulto a Deus, à Virgem ou aos santos ou a
destruição ou desrespeito às suas imagens. A punição da blasfémia tem também
uma longa tradição jurídica4030. Na Península, as Partidas (VII, 28) estabeleciam um
sistema hierarquizado, que se comunicará às fontes ulteriores. Esta hierarquização
verifica-se, em primeiro lugar, quanto ao autor da blasfémia (“quanto mas honrado,
e mejor lugar tiene, tanto peor es el yerro”), estabelecendo-se uma gradação que ia
de rico homem a “otro ome de los menores”4031. No plano do destinatário da
ofensa, distinguia-se entre ofensa a Deus, à Virgem e aos santos. Distinguia-se
ainda entre a blasfémia por palavras e a blasfémia por atos (v. g. cuspir na cruz ou
feri-la com pedra ou faca).
§ 2274. Em Portugal, uma lei de 6.7.1315 (Ord. af. 5,99,1) aplicava aos que
blasfemassem contra Deus ou contra a Virgem a pena de corte da língua e morte
pelo fogo. Nas Ordenações (Ord. af. tit. cit. Ord. man. 5,34 e Ord. fil. 5,2) retomavam-
se, nos seus traços gerais, as distinções das Partidas4032.
§ 2275. A blasfémia era punida com multa, açoites ou pena ordinária, de acordo
com a gravidade da ofensa ou com o estado da pessoa. Em princípio, eram
inimputáveis deste crime, os bêbados, os menores, as mulheres e os rústicos 4033. Se
não contivesse heresia, a blasfémia era um crime de misto foro4034.
§ 2276. Neste sistema de tipificação e de punição, que se manterá até ao
iluminismo, os traços mais interessantes são os seguintes:
4025 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, n. 9 e 18.
4026 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, n. 15.
4027 Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 13, n. 141 ss..
4028 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Simonia”, n. 1 ss.. Fontes: Decretais, 5,3;
4032 Sobre os blasfemos, Ord. fil.5,2; e seu comentário por Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad
Ord. fil.5,2, proem. n. 2; penas de direito comum e próprio de vários reinos, ibid. n. 3.
4033 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.5,2, ns. 5 ss..
639
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4035 Tradição textual: Dec. Grat. II, C. 26, qu. 1, C. 1 (“os feitiços são aquelas artes pelas quais, sob a
capa de uma religião fingida, se chamam os santos, se usa da ciência da adivinhação ou se promete uma
qualquer visão do futuro”; a definição é de Santo Isidoro de Sevilha, Ethim. 8, c. 9); C.9, 18; Partidas, 7,
23), Ord. afons. 5,42; Ord. man. 5, 33; Ord. fil. 5,3 3. A feitiçaria era um crime de foro misto, punido com
penas eclesiásticas e civis. V. Ord. fil. 5,3; Decr. 24, qu. 5. Literatura; António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Sortilegium"; Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,3; João Baptista Fragoso,
Regimen [...], cit., p. 1, I. lI, p. 161 (dec. 4, § 6).
4036 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad 5,3,2, ns. 3 a 5. Mas não a astronomia (ibid. ).
4037 Adivinhar em espelho, água, cristal ou coisa luzente, cabeça de homem morto, animal, ou na
palma da mão de menino ou mulher virgem; encantamentos; feitiços de amor; beberagens. Permitidos
são a astronomia e os encantamentos benéficos (tirar demónios, desfazer nuvens de granizo, matar
gafanhotos ou pulgões). Uma lei de 22.3.1499 (v. Ord. man. 5, 33) acrescenta-lhes práticas
especificamente portuguesas (v. g. benzer com espada que tivesse passado três vezes o Douro e Minho).
640
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Ord. fil.5,13 (v. o respetivo comentário de Manuel Barbosa, Remissiones […], cit.). A sodomia desaparece
de alguns códigos do séc. XIX, não por a prática deixar de ser crime, mas justamente com o argumento
de que dele nem falar se devia (o exemplo mais conhecido é o do Code penal francês de 1805).
4041 “Sodomia est turpitudo contra naturalem ordinem, et seminatio, ex qua generatio sequi non
potest, et dicitur peccatum nefandum, quasi de eo loqui non posset”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Sodomia”, n. 1; v. também, com detalhes interessantes, António Gomez, Opus […] super
legibus Tauri [.], cit., ad 1,80, ns. 33 ss..
4042 “Primo modo, si foemina agit cum foemina mediante aliquo instrumento materiali; et relatum
est mihi quod iste casus jam continguit de facto in quibusdam monialibus qui fuerunt comnbustae [...]
Secundum modo, si foemina agit cum alia foemina sine aliquo instrumento: nam secundum medicus &
naturales, foeminae inter se coire possunt delectando", António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.],
cit., ad 1,80, n. 40.
4043 "[...] Si foemina habet accesum viro tanquam agens: puta si ipsa ascendit supra virum"
(Antonio Gomes, Opus […] super legibus Tauri [.], cit., ad 1,80, n. 34); ou “si quis habet accessum ad alium
non per vas exterius, sed intra crura vel in alia parte corporis, vel manibus abutendo, et semen
emitendo", ibid. n. 35.
641
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4044 "[…] Fecisse foramen in terra, & ibi coire & emittere semen, ac si cum foemina coirent",
4046 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sodomia”, ns. 5 ss..
4047 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sodomia”, n. 5; António Gomez, Opus
4049 "[...] Aconteceu, de facto, nesta cidade de Salamanca, em que um certo marido, frígido e
impotente, tentou corromper a mulher por meio de um pau fabricado por ele para isso; a mesma gritou
e vieram os vizinhos, e ele foi preso pelo juiz [...], cit., mas como o delito apenas foi tentado, puniram-no
na pena de açoites, com aquele instrumento de madeira pendurado ao pescoço, e na de desterro [...] o
mesmo acontecendo na cidade de Córdova, em que um marido, na noite de núpcias, julgando ser
impotente, quiz corromper a mulher da mesma forma [...]”, António Gomez, Opus […] super legibus Tauri
[…], cit., ad 1, 80, n. 40.
4050 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad 5,13, princ..
4053 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sodomia”, n. 10.
4055 Sobre o impensado das obrigações sexuais dos cônjuges, cf. supra.
642
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4056 “O adultério comete-se na mulher casada, sendo o seu nome assim composto a partir de
“parto concebido com outro”, D.48, 5, 34, 1. Consequentemente, o adultério apenas podia ser cometido
pela mulher casada e pelo seu amante, já não por homem casado com mulher solteira. Nem por mulher
casada de mau porte.
4057 A doutrina estabelecia uma complicada casuística das relações amorosas que configuravam o
adultério, bem como dos factos que o indiciavam. Neste último plano, os juristas eram bastante estritos,
não se contentando alguns sequer com o facto de os amantes serem encontrados na cama, sozinhos e
despidos (solus cum sola, nudus cum nuda). Com este rigor probatório que se encontra também noutros
crimes sexuais (v. g. bestialidade e sodomia, António Gomez, Opus […] super legibus Tauri […], cit., ad 1,
80, n. 33 ss.) - procurava-se decerto limitar a perseguição penal destes atos. Mas outros, mais rigoristas,
consideravam já como adulterinos os atos preparatórios do coito, como a troca de beijos e abraços
(“veluti mutuis amplexibus, & osculis”, Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.5,38,2).
4058 Jaime de Corelia, Pratica de confessionario, cit., p. 66, ns. 1-2.
4060 Ord. fil. v. 28, pr. (concubina “teúda e manteúda” no domicílio conjugal).
643
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
permitido pelo direito romano (D. 25, 7 De concubinis), tendo sido proibido apenas
pelo direito canónico. Embora, de acordo com o “critério do pecado“ (formulado
pela doutrina medieval acerca da hierarquia entre os dois direitos e recolhido em
Ord. fil. 3, 64), tal proibição devesse ter passado para o direito civil, o certo é que a
nossa lei só punia o concubinato de homem casado e, ainda assim, só no caso de
decorrer com escândalo público e, sobretudo, com dissipação, a favor da
concubina, do património familiar4061. Tão pouco eram punidos o “coito vago” e o
meretrício.
§ 2296. Apesar deste tom um tanto laxista da legislação - pelo menos, em
relação à sexualidade masculina - desenvolvia-se, paralelamente, uma política sexual
mais repressiva, amparada, sobretudo, pelo aparelho disciplinar da Igreja. De facto,
nas visitações, os bispos deviam inquirir dos casos de concubinato e barregania,
procedendo contra eles criminalmente, nos termos do direito canónico (cf. Ord. fil.
2,1,13). Por influência destas visitações, surge legislação que comete aos
magistrados seculares o encargo de devassar sobre os “pecados públicos“4062 e,
segundo Pascoal de Melo, juízes “moralistas” chegavam a punir o adultério
“simples” (de homens casados com mulher solteira)4063. É justamente contra este
rigorismo - que perturbava, muitas vezes, a ordem familiar estabelecida, levantando
suspeitas falsas ou importunas - que reage a legislação pombalina 4064 e, em geral,
toda a doutrina iluminista.
§ 2297. No projeto de Codigo criminal, de Pascoal de Melo (tit. XI) acolhia-se
uma conceção totalmente diferente da ordem sexual, recebendo-se, em geral, a
conceção canónica de adultério, como violação da fidelidade conjugal; com isto,
passava a punir-se, tanto o adultério do marido, como o da mulher, embora com
penas diferentes, adequadas à diferente natureza do sexo segundo o “pensar geral
da nação” (mas, afinal, mais duras para a mulher) (cf. 6 e “Provas”, pp. 33-34). A
punição do adultério tendia a libertar-se da primazia dos interesses político-
familiares (i. e. de defesa da legitimidade dos filhos da mulher casada). Agora que a
natureza contratual do casamento começava a ser destacada, tornava-se decisiva a
fidelidade, como manifestação do respeito pela palavra dada (pacta sunt servanda). Ao
mesmo tempo, o Estado chamava a si a defesa de uma certa ordem sexual, até aí
mantida pelo direito canónico. Com isto se anunciava o puritanismo da sociedade
burguesa, que identificava a sexualidade permitida com a sexualidade entre os
cônjuges, embora admitisse, como válvula de escape, uma promiscuidade sexual
policiada e “exterior” à sociedade oficial, proporcionada pela prostituição 4065.
8.2.2.3 Estupro.
§ 2298. O regime penal do estupro confirma o modelo de valorização da
sexualidade a que nos vimos referindo.
4061 Isto acontecia quando o marido sustentasse a concubina (Ord. fil. 5,28, pr.), mas já não quando
ele “tivesse o hábito da promiscuidade carnal” (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Concubinatus”, p. 218, col. 1).
4062 Cf. alvs. 25.12.1608, ns.21 e 22.
4065 O “coito vago” ou o “meretrício” não eram punidos no projecto de Código de Pascoal de
Melo, embora fossem sujeitos a medidas de polícia (Proj. cod. crim. 11, 3).
644
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4066 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Stuprum”, ns. 11-12.
4067 Alguns autores introduziam ainda outras restrições à sexualidade inter volentes: as ordens
clericais, certas relações político-sociais (v. g. entre ama e escravo ou criado, entre tutor e tutelada, etc.), a
diversidade de religião, bem como aquilo que era considerado como a natureza do sexo (sobre este
último ponto, v. António Gomez, Opus […] super legibus Tauri […], cit., ad 1, 80, ns. 5 ss.).
4068 Mesmo no matrimónio, a castidade era a virtude máxima, pecando venialmente o marido “que
só por causa do prazer e voluptuosidade tenha trato com a mulher”, António Gomez, Opus […] super
legibus Tauri […], cit., ad 1, 80, n. 3.
4069 As Ord. fil. tipificavam em títulos sucessivos várias situações de relações sexuais ilícitas: infiel
com cristã e cristão com infiel (t. 14), coito com freiras (que era uma forma de sacrilégio, tit. 15), com
mulher da corte, virgem, viúva honesta ou escrava branca (tit. 16), com parenta (tit. 17), coito forçado
(tit. 18), coito de oficial com mulher da sua jurisdição (tit. 20), coito com órfã ou menor a cargo (tit. 21),
coito forçado com mulher virgem in patria potestate (tit. 22), coito consentido com virgem ou viúva
honesta (tit. 23), coito (ou casamento) com parenta, criada ou escrava da pessoa com quem vive (tit. 24),
coito com mulher casada (tit. 25 e 26).
645
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
penas aplicadas em função da idade das mulheres. Afinal, reforça-se a proteção dos
interesses familiares, mesmo com o sacrifício da ordem “moral”. Tal é, também, a
orientação do projeto de Pascoal de Melo (tit. XII) que, porém, descriminaliza o
estupro de donzela com quinze anos feitos (XII,10).
8.2.3 Os crimes contra a ordem política.
§ 2302. Nos crimes contra a ordem política incluem-se a lesa-majestade e a
violência.
8.2.3.1 Lesa-majestade.
§ 2303. O tratamento penal da lesa-majestade remonta a dois títulos do Corpus
iuris civilis, D. 48,4 ad legem Juliam de magestatis, e C. 9, 8, id.. Nestes textos, a
configuração do crime era pronunciadamente estatalista: o crime era definido como
um delito contra o povo romano e a sua segurança. Esta tradição fora recolhida no
Cód. visigótico (2,1,8), no direito canónico4070 e, mais tarde, nas Partidas (VII, 2)4071.
§ 2304. É justamente nas Partidas que surge uma segunda tradição textual,
bastante importante para o direito português, em que o crime de lesa-majestade é
integrado no delito mais geral de traição, este despido de qualquer conotação
estatalista e feito equivaler a uma ofensa praticada com falsidade e vileza (VII,2,20).
Em todo o caso, o texto distingue a lesa-majestade ou traição (contra o rei, ou seu
senhorio, ou contra o bem comum da terra) do aleive (contra qualquer outro
homem).
§ 2305. No direito português, a primeira providência legislativa sobre a lesa-
majestade aparece com D. Afonso II (cf. Ord. af. 5,2), numa lei em que a traição
aparece confundida, quer com a aleivosia, quer com a heresia: “[...] a saber, se os
davanditos trabalharam em nossa morte, ou de nosso filho, ou de nossos parentes
achegados, os quais temos que são parte do nosso corpo, ou em morte de seu
senhor, ou hereges [...]” (Ord. af. 5,2,1).
§ 2306. As Partidas influenciam decisivamente as Ord. af. bem como o conceito
aí subjacente de poder e de delito político. Terminada a enumeração dos casos de
lesa-majestade, o texto afonsino passa - aplicando-lhe um regime punitivo
semelhante - para um crime que, embora se não chame “traição” ou “aleive”,
corresponde ao ato aleivoso ou traiçoeiro típico, ou seja, o ato daqueles que
cometem alguma ofensa contra seu amigo ou senhor, com traição ou aleivosia (n.
22). O traço mais característico do regime das Ord. af. é justamente esta não
autonomização da ofensa feita ao rei em relação a outras ofensas praticadas
aleivosamente contra uma pessoa comum. Dir-se-ia que, na escala de valores que
subjaz à fixação do tipo penal, o vínculo entre súbdito e rei se não distingue
fundamentalmente do vínculo entre o homem e Deus, entre o vassalo e o seu
senhor, entre o amigo e o seu amigo e, mesmo (como se comprovaria por outros
textos, mesmo posteriores, que aproximam o traidor do parricida), entre o filho e o
pai. Com isto, é toda uma matriz de compreensão dos vínculos políticos que se
646
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4075 Pascoal de Melo, Codigo criminal intentado por (..), cit., “Provas”, 36/37.
647
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
a punir, nesta sede, a sedição, o tumulto, a resistência aos magistrados, delitos que,
nas Ordenações, eram punidos noutros títulos (tits. 44 a 51).
8.2.3.2 Os crimes contra a ordem pública - a violência
§ 2310. A punição da violência tinha uma longa tradição textual4076. No direito
romano, as leges Plautia de vi (c. 65 a.C) e Julia de vi (17 a.C.), criaram ações criminais
(quaestiones) para o julgamento dos crimes de violência contra a comunidade política
(vis publica), tais como organização de bandos, ocultação de armas, sedição
[perturbação do exercício de funções públicas], constrangimento a magistrados e
senadores; bem como para o julgamento dos crimes de vis privata, atos que
conturbassem o funcionamento dos juízos privados ou que consistissem em
violência contra particulares (autodefesa arbitrária, sequestro, estupro). Para os
delitos de vis publica, previa-se a pena de morte ou de exílio e para os de vis privata a
expropriação dos bens (publicatio bonorum). A lex Julia de Annona, c. de 50 a.C.
criminalizava o açambarcamento.
§ 2311. A tradição medieval portuguesa da punição da violência é constituída
por leis recolhidas nas Ordenação afonsinas (cf. Ord. af. 5,35; 45; 50; 66; 76 e 77; 95 a
97; 106). Ao lado desta tradição legislativa, existia também uma tradição letrada 4077
que adaptava a casuística das fontes romanas ao contexto político-social medieval,
dando um novo relevo aos tipos penais que atentavam contra a política régia de
instauração de uma paz do rei, como a proscrição da violência nos juízos, repressão
de violência dos clérigos, dos senhores e dos oficiais (sobretudo “fiscais”),
regulamentação das tréguas e pazes. Em suma, o rei, como fonte da justiça (i. e. do
equilíbrio da ordem social “natural”), impõe a sua paz; ou seja, proíbe qualquer
ofensa desta ordem, sobretudo por meios violentos graves.
§ 2312. No século XVI, Jacques Cujas define a violência pública como “aquela
que, contra o direito, se exerce contra as pessoas públicas, que detêm império e
poder”. Ou seja, a violência toma-se mais grave, não já quando se manifesta pelo
uso das armas, mas quando é “sediciosa”, isto é, dirigida contra um magistrado 4078.
Também nas Ordenações manuelinas e filipinas, a violência tende a ser, sobretudo, a
ofensa de pessoas públicas - nomeadamente, ofensas ao corpo ou honra dos
magistrados (cf. Ord. af. 5,91;104; Ord. man. 5,36;75; Ord. fil. 5,48 a 51).
§ 2313. Porém, as Ordenações previam, genericamente, a usurpação violenta
(roubo) de uma coisa privada (Ord. fil.5,61). No caso de a coisa valer mais de mil
réis, esta ofensa do património privado era considerada como um crime e punida
com a morte. Mas, se a coisa valesse menos, a usurpação era tratada como furto,
sendo punida com as penas privadas do furto (restituição no quádruplo ou no
duplo, a favor do dono da coisa). Também os assaltos de noite ou em estradas eram
punidos como crime, merecendo pena capital ou degredo perpétuo para o Brasil,
consoante o valor da coisa. Outras violências contra pessoas privadas eram tratadas
noutros contextos - v. g. a violação e o estupro, no dos crimes sexuais; a usurpação
violenta de posse, no dos meios processuais de tutela da posse.
§ 2314. Um grupo importante de crimes de violência pública era constituído
648
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4079 Cf. chamar por outrem que não Elrei, Ord. fil.5,44; assuada, Ord. fil.5,45; trazer consigo homens
“escudados” (salvo em tempo de guerra), Ord. fil.4,47; e respetivos comentários de Manuel Barbosa.
4080 V. Ord. fil.5,49 e respetivo comentário de Manuel Barbosa. Podia-se, porém, resistir ao juiz
incompetente ou que não observasse o processo, ou ao juiz não exibisse os sinais do seu poder (a “vara
alçada”), Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.5,49, n. 3.
4081 V. Ord. fil.5,50 e respetivo comentário de Manuel Barbosa. Aplicava-se também aos oficiais de
fazenda, mas não aos advogados, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.5,50, n. 4.
4082 V. Ord. fil.5,51 e respetivo comentário de Manuel Barbosa.
4083 V. Ord. fil.5,50 e respetivo comentário de Manuel Barbosa. Não se aplicava à mulher que tira o
marido da cadeia, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad pr. n. 1. Discutia-se se incluía o caso de a
prisão ser notoriamente injusta e não haver meio de justiça para a obviar, Manuel Barbosa, Remissiones
[...], cit., ad pr. n. 2; ad 3, n. 3. Sobre os duelos ou desafios, Ord. fil.5,43.
4084 Cf. D.47, 10 De iniuriis et famosis libellis.
4085 Não eram indemnizáveis senão os danos morais, mesmo no caso da ofensa corporal, pois os
danos físicos não poderiam ser objeto de avaliação, já que o corpo de um homem livre não tinha preço
(in hominis liberi corpore nulla corporis aestimatio fieri potest; cf. D.9,3; max. D.9,3,7; I.1,6,7 [liberdade]).
649
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
qualificados com o termo técnico de iniuria. Havia dois tipos de actio iniuriarum; uma
legitima (ex lege XII tabularum, 8,3-4), outra honoraria, introduzida pelo pretor. Esta
última era concedida para todos os atos ilícitos, contrários aos costumes
tradicionais romanos (adversus bonos mores), que acarretavam lesões físicas ou morais
a uma pessoa (no sentido de que comprometiam a honra e a reputação desta). A lex
Cornelia de iniuriis (81 a.C.) sujeitou a pena pública (criminal, quaestiones perpetuae) os
tipos mais graves de iniuria, sobretudo as lesões pessoais. Na época clássica, foram
introduzidos tipos de injúria que atentavam contra a honra do ofendido: convicium
(insulto em público); ne quid infamandi causa fiat ("que não se faça nada com intuito
de desonrar outra pessoa"); adtemptata pudicitia (atentado ao pudor e bons costumes
sobretudo de mulheres casadas e de menores).
§ 2317. Estes traços do regime do direito romano pesaram sobre o direito
medieval4086 e moderno.
§ 2318. A doutrina do direito comum tardio definia a injúria, em sentido lato,
como aquilo que era feito contra o direito; mas, em sentido estrito, como uma
afronta injusta, cometida por atos, palavras ou escritos, com o intuito de difamar
outrem4087. Consoante a sua gravidade, a injúria podia ser: (i) atroz, como a feita em
público ou perante pessoa investida de dignidade (magistrado, eclesiástico), a feita
por pessoa humilde a pessoa nobre, por filho aos pais, pelo liberto ao patrono, pelo
escravo ao senhor4088; (ii) a enorme ou gravíssima, como bater com a mão ou com
chicote, dar bofetadas, ou mesmo apenas levantar a mão para alguém; (iii) leve,
como qualquer outro tipo de afronta, nomeadamente chamar nomes (ladrão,
bastardo, herege)4089.
§ 2319. A injúria podia ser considerada do ponto de vista penal (quatenus
maleficium) ou do ponto de vista civil, como facto que causa danos 4090. A primeira
dava azo a uma ação criminal, a segunda a uma ação civil de ressarcimento de
danos. O direito comum seguia uma construção “privatista”, ao classificar as
injúrias como um delito privado, sujeito, antes de tudo, a uma ação civil (e não
penal), visando uma indemnização ao ofendido. Na prática, o móbil de muitas
acções de injúria era, decerto, o interesse económico. Mas, na imagética dos textos,
a actio iniuriarum não prosseguia recompensas pecuniárias, pois “a honra não se
paga”. As fórmulas de estimação da indemnização constituíam então prodígios de
retórica que visam avaliar [...] o inavaliável - “antes queria ter perdido ou não ter
ganho tal soma do que ter sofrido esta injúria”4091. Por outro lado, a honra deixou
de ser, nesta sociedade fortemente corporativa, um bem puramente individual, pois
existiam grupos de pessoas de tal modo ligadas que a ofensa feita a uma se refletia
no património moral das outras. É o que se passa com a comunidade doméstica 4092;
mas a doutrina tinha identificado outros grupos do mesmo tipo.
§ 2320. As Ordenações portuguesas não se ocupavam expressamente das injúrias
4089 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, ns. 2, 3 e 14.
4090 Cf. Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all 16, ns. 7 a 10.
4091 Cf. por todos, António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], cit., ch. 4, n. 7.
650
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4097 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 11.
4098 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 14 e 15.
4099 Só no caso de injúria atroz ou quando a ofensa ao escravo ofendesse também o dono.
4100 Porém, a mulher não podia tirar desforço judicial de injúrias feitas ao marido.
4101 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 6. As injúrias verbais
4104 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 20.
4105 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 71, n. 11.
651
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4109 O clérigo, porém, nem neste caso podia matar para defender bens temporais António Cardoso
4111 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.5,35,pr. n. 19 ("salvo se nelle excedeu a
temperança", no modo, no tempo e na causa). O que fosse a defesa “temperada” dava lugar a uma larga
casuística (ibid. ns. 20 ss.).
4112 Era o caso daquele que matasse por ter sido chamado de traidor, judeu ou cornudo, v. Manuel
morto, sendo, todavia, o assassino punido com uma pena mais branda, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 10.
4114 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 10.
4115 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 10; Manuel Barbosa,
652
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
abortiva a mulher prenha, depois de o feto ter alma (animatus esse), o que acontecia
nos machos depois de 40 dias a partir da conceção e nas fêmeas após 80 dias. Antes
disso, o aborto era punido mais levemente, com pena arbitrária 4116.
§ 2332. A venda de veneno também era considerada como homicídio, e a morte
pela administração de veneno como homicídio e injúria atroz 4117. O mesmo aleive
que a morte por envenenamento tinha a morte por arremeço de seta ou disparo de
bala, a tal ponto que já era punido como homicida, embora com pena arbitrária, o
que perseguisse alguém com armas deste tipo, independentemente de consumar o
crime4118.
§ 2333. Equivalia ainda ao homicídio a produção de feridas de que o ofendido,
embora tivesse sobrevivido, nunca tivesse convalescido, embora se levassem em
consideração causas posteriores – doença, descuido ou imperícia do médico no
tratamento das feridas4119.
§ 2334. Mais grave do que o homicídio era o assassínio, tipificado à parte4120. O
assassínio era o homicídio praticado (por infiéis, diz António Cardoso do Amaral) a
troco de dinheiro ou outra recompensa. Neste caso, eram punidos os assassinos, os
mandantes e os cúmplices, quer se tivesse seguido a morte ou não 4121. A
qualificação dos assassinos como infiéis fazia com que eles fossem considerados
como fora de lei (sacer), podendo ser mortos ou desapropriados dos seus bens por
qualquer pessoa, nem sequer podendo recorrer à imunidade da Igreja 4122. A pena
era a capital4123, mesmo que a morte não se seguisse. Esta atrocidade do assassínio
justificava ainda que bastasse uma prova apenas provável 4124.
§ 2335. O homicídio voluntário requeria dolo (ou seja, vontade deliberada).
Existiam ainda o homicídio por casualidade (não voluntário), o que ocorria para
além da vontade do agente (ou preter-intencional)4125 e o necessário, ou seja, o que
se justificava por o homicida ter tido a necessidade de matar o ofendido (legítima
defesa)4126. Neste último caso, era discutido quando é que essa necessidade ocorria,
nomeadamente, se era necessária a defesa quando o agente podia ter evitado o
crime, fugindo. A doutrina entendia que a possibilidade de fuga só era relevante
4116 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 22. Ministrar poção
4119 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 18; Manuel Barbosa,
4121 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Assassinium”, ns. 1 e 2.
4122 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Assassinium”, ns. 3 e 4. O clérigo
4125 Ou seja, caso a morte não tivesse sido querida, resultando porém dos ferimentos. Em
contrapartida, se a morte tivesse sido querida, mas não tivesse sobrevindo, o autor era punido por
injúrias, devendo indemnizar o ofendido dos dias de trabalho que este perdeu por causa dos ferimentos,
bem como das despesas de tratamento, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”,
n. 20.
4126 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Assassinium”, ns. 4, 5 e 6.
653
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
quando ela pudesse ter lugar sem quebra do decoro, pois a quebra da honra
equivalia à perda da vida4127. Assim, no caso de militares e pessoas nobres, para
quem a fuga seria indecorosa, existiria sempre legítima defesa 4128.
§ 2336. A exigência de dolo fazia com que os homicídios perpetrados por
menores na infância (v. cap. 3.1.9) ou por loucos furiosos (v. cap. 3.1.10) não
fossem punidos4129. Em alguns casos, podiam ser punidos homicídios não
intencionais: o pai respondia pela morte do filho devida a abandono recusa de
alimentos4130; aquele que levava a cabo um ato ilícito ou que não agisse com a
diligência necessária respondia pelo homicídio casual4131; quem montasse um cavalo
buccadurus (bravo) e matasse alguém respondia pelo acidente 4132; o médico que
causou a morte do doente por negligência ou imperícia4133.
§ 2337. Se vários tivessem causados feridas, só era punido com a pena ordinária
o autor da ferida mortal, sendo os outros punidos só com penas extraordinárias4134.
§ 2338. A doutrina considerava que o homicídio podia ser cometido por ação
(facto), aconselhamento (consilio) ou ordem (mandato). O incitamento genérico ao
homicídio era punido, embora com uma pena arbitrária mais branda 4135.
§ 2339. No homicídio, a tentativa (conatus), deduzida de factos externos e não
apenas de uma presumida intenção interior, era punida, embora não com a pena
ordinária, de acordo com a regra dolus pro facto accipitur (cf. D.48,7,pr.). Há autores,
no entanto, que defendem a punição da tentativa com a pena ordinária pela
natureza atroz do crime, que autorizava a punição com a pena ordinária desde que a
intenção pudesse ser deduzida de atos exteriores4136.
§ 2340. Por direito civil, a pena do homicídio era a morte, por decapitação (para
os nobres) ou enforcamento (para plebeus), acompanhada de confisco, se o autor
não tivesse descendentes ou ascendentes até à terceira geração4137. Por direito
canónico, incapacitava para receber a ordem ou benefícios, e sujeitava a pena de
prisão em mosteiro por 5 a 7 anos (em pena perpétua, no caso de homicídio de
4127 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 5 (“periculum famae
4129 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 31; sobre o bêbado,
Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,35,pr. ns. 1 ss. (aqui, também, referências sobre a
punição das pessoas que tivessem prestado serviços à república ou dos especialistas insignes numa arte).
4130 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 17.
4131 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 11.
4132 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 13, mas não já o que
fazia corridas a cavalo num lugar em que isso era habitual e matasse outro que se tivesse metido à frente,
ibid. n. 13 (“nulla culpa, nulla poena”).
4133 Mas não o era com a pena ordinária, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Homicidium”, n. 19; Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,35, n. 17.
4134 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium” 19. Se não se pudesse
determinar qual a ferida fatal ou quem a infligira, eram todos punidos com pena extraordinária, ibid.;
Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,35, n. 2.
4135 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 14.
4137 A mulher, em contrapartida, conservava o dote, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Homicidium”, n. 24.
654
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4138 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 23 e 28.
4139 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 25.
4140 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 29.
4141 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 36, ns. 5 a 11.
4142 Para a doutrina dominante, dar bofetadas constituía uma injúria atroz, que dava lugar a uma
pena que podia ir até à de morte, “de acordo com o estado da pessoa que comete a injúria e do da que a
recebe” (António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], ad cap. 4, n. 5).
4143 A base textual era uma já citada lei do Digesto D, 9,3,7 – “cicatrix autem aut deformitas nulla
fit aestimatio quia liberum corpus nullat recipit aestimationem” (a cicatriz ou deformidade não é objeto
de avaliação pois ao corpo de um homem livre não pode ser dado preço). A doutrina do direito comum
introduzia uma exceção a este princípio: devia avaliar-se a cicatriz ou deformidade causada a uma
rapariga solteira, aos escravos (e aos animais), pois nestes casos a integridade física tinha um valor
económico (v. António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], III, ch. 4, n. 12). No entanto, a doutrina
mais moderna (Zasius, Covarrubias, Farinaccius, Antonio Gomez) tendia a valorizar, por meio de
expedientes dogmáticos rebuscados, as consequências físicas das injúrias corporais.
655
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
relevantes: a intenção do agente (v.g. ferir a soldo, Ord. fil. 5,35,3), o local da ferida
(v.g. a face, Ord. fil. 5,35,7), o lugar do delito (v.g. o palácio real, Ord. fil. 5,39,2), a
arma utilizada (v.g. as armas de arremeço, Ord. fil. 5,35,4), a qualidade do ofendido
(v.g. o pai, o oficial, o companheiro de prisão, Ord. fil. 5,41,1; 6,25; 35,6). Em
contrapartida, a gravidade física ou fisiológica das feridas não interessava para a
fixação da pena civil4144. O que confirma o que já se disse sobre a imagem implícita
do corpo na antropologia cultural medieval e moderna: os critérios da valorização
das ofensas - e, portanto, dos valores corporais atingidos - não se relacionam com
uma conceção fisiológico-funcional do corpo, mas, antes, com várias hierarquias
simbólicas sobrepostas, umas provindas dos usos culturais do corpo, outras de
antigas tradições textuais (como, v.g. a da especial punição das ofensas feitas com
arma de arremesso, que provém das Decretais, 5,15, De sagitariis).
8.2.5 Crimes contra a verdade.
§ 2346. Os crimes de falso tipificavam, desde a época romana, os atentados
contra a verdade das coisas, cometidos intencionalmente para causar prejuízo a
outrem. Esta ideia base mantém-se na época moderna. António Gomez define o
crime de falsidade como “delictum publicum, quod committitur quando quis
sciente et dolose mutat substantiam veritatis in praeiudicium alterius” 4145.
§ 2347. Tratava-se, na conceção da época, de um crime gravíssimo. Isto
compreende-se bem a partir de duas considerações.
§ 2348. A primeira é a de que a sociedade medieval e moderna não dispunha de
meios muito eficientes de garantir a autenticidade de certas coisas em que, em
contrapartida, a ordem social repousava fortemente. A falsificação de documentos
era fácil, mas a sociedade estava assente na fiabilidade deles. O estado das pessoas
não era objeto de registos públicos, mas a sociedade assentava na divisão das
pessoas em estados. A própria identidade das pessoas estava apenas baseada na
afirmação do próprio e na sua credibilidade social. As moedas podiam ser
facilmente falsificadas, no metal que continham ou no seu peso. Mas a economia
estava cada vez mais dependente da mediação de uma moeda com valor garantido.
§ 2349. A segunda consideração é acerca do valor que as aparências ganham
numa sociedade, como esta, desprovida de processos muito eficientes de averiguar
e garantir a natureza das coisas. Nomeadamente, faltavam registos públicos a que se
pudesse recorrer com facilidade. Nesta situação, tudo o que se sabia acerca das
4144 Na doutrina do direito comum, encontravam-se referências à vulneris magnitudo, como critério
fontes são D.48,10,3, que contempla a falsificação de testamento, de documentos, de moeda, o uso de
nome falso, a venda da justiça, a venda dupla da mesma coisa, o parto suposto, a redação de
documentos que não correspondem à vontade das partes. Cf. ainda, Partidas, VIl,7.
656
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
pessoas, das situações e das coisas decorria de aparência sociais compartilhadas. Daí
a importância de situações de facto que fossem aceites pelo consenso de todos. Era
por isso que o facto material da posse pacífica e pública constituía a forma
excelente de legitimar situações como a titularidade de uma coisa (“posse”) ou de
um estatuto social (“posse de estado”). Isto era consistente com uma imagem então
corrente que identificava a aparência com a essência, a forma com a matéria, a
tradição com a natureza, o significante com o significado, o nome com a coisa ou
com a pessoa. A verdade – ou seja, a correspondência entre o que as coisas
pareciam ser e aquilo que elas eram – tinha, assim, uma marca ontológica; tinha a
ver com o modo como o mundo era. Para além de ser um fator central da ordem
estabelecida.
§ 2350. Atentar contra a verdade era, por isso, atentar contra a ordem do
mundo e contra a ligação, que se cria ontológica, entre o parecer e o ser. Ou seja ,
tratava-se de um crime muito gravede, equiparável à quebra da fé, à impiedade.
Como ofensa feita a Deus – antes de ofender a confiança dos outros homens -,
4146
devia ser punido com rigor equiparado . Tanto mais que a fiabilidade nesses sinais
que representavam as coisas (os documentos, as moedas) estava protegida por
símbolos da divindade neles inscritos, como a cruz que figurava nas moedas ou
com que se subscreviam ou se dava fé pública aos documentos. Tratava-se de um
crime público, pois ofendia a qualquer um e, por isso, qualquer um podia denunciá-
4147
lo ou acusar, independentemente de ter sofrido um prejuízo específico com ele .
O dano, aqui, era essa ofensa grave à verdade que distinguia o crime de falso da
simples mentira ou fraude que apenas ofendesse interesses particulares, e cuja
reparação podia ser efetuada por uma indemnização, pedida por uma ação civil de
4148
danos. Pelo contrário, o crime de falso era um crime público
§ 2351. A principal fonte era o título D. 48,10, de lege Cornelia de falsis et de senato
consulto Liboniano, fonte da maior parte da doutrina e legislação medieval e moderna
sobre o tema. A Novela 73, uma constituição de Justiniano de 538, ocupava-se
4149
também da falsidade, mas referindo-se sobretudo à falsificação de documentos .
As Partidas (VII,7) seguiam de perto a casuística e tipificação que dominava o titulo
do Digesto, apesar de bastante mais libertas da temática da falsificação do
4146 Morte pelo fogo, infâmia (cf. o nobre perde a nobreza pelo crime de falsidade, Tomé Valasco,
Allegationes […], all 13, n. 33). A perda da nobreza tinha uma natureza espelhada: como a honra (honor,
honestas) era o conhecimento e amor da ordem do mundo, quem atentava contra a verdade mostrava não
conhecer nem amar essa ordem.
4147 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 1.
4148 Como era um crime, o falso exigia dolo (cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad 5,54, ad,
pr, ns. 3 e 4). À medida que esta especificidade criminal se for esbatendo, o falso começa a ser
aproximado de outras formas de mentira ou fraude, que apenas causam prejuízo a outrem, como o
estelionato, i.e. a alteração ou supressão da verdade em fraude de outrem; cf. a criminalização genérica
em Ord. fil.5,65, “Dos bulrões e inlicitadores, e dos que se levantam com fazenda alheia”, punidos com a
reparação do dano, mais um terço de pena, degredo ou poena arbitrária, excluindo a morte; cf. Pascoal
de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 5, § 1, aproximando o estelionato do crime de falso.
4149 Nov. 73: “De instrumentorum cautela et fide, et primum de deposito et mutuo et aliis
documentis private quidem scriptis habentibus autem testes, et de non habentibus testes, et de
instrumentis publice confectis, et de collationibus manus propriae scripturae, et de expositis instrumentis
ab illitteratis aut paucas litteras scientibus, et de ex non scripto contractibus, et de contractibus usque ad
unam auri libram, et de contractibus qui in auris fiunt, et ut in documentis et contractibus futuris locum
habeat lex”.
657
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
testamento que dominava esse título. As Ord. fil. dedicavam aos crimes de falso os
tits. 52 a 58..
8.2.5.1 Falsificação de cartas do papa, do imperador ou do rei.
§ 2352. O subtipo mais grave destes crimes de falso era o da falsificação de
cartas do papa e do imperador, a que se equiparava o rei. Por direito comum, quem
falsificasse estes documentos – ou quebrasse os selos, ou os rasurasse de modo a
que afetasse a sua parte substancial – ficava excomungado e era punido de pena
arbitrária, que em regra era, sendo homem livre, o degredo (deportatio) e o confisco,
desde que não houvesse ascendentes ou descendentes até ao terceiro grau;
4150
tratando-se de escravo, a morte . Se fosse clérigo, perdia o ofício ou benefício,
bem como o estatuto eclesiástico, sendo entregue aos tribunais seculares para ser
4151 4152
punido como leigo . Estas penas estavam também contidas na Bula da Ceia . As
Ord. fil. adotavam basicamente o regime de direito comum (cf. Ord. fil.5,52; 5,58).
§ 2353. A falsificação das cartas de juízes dos tribunais superiores ou mesmo de
juízes inferiores era equiparada à anterior, mas podia punir-se com pena
4153
arbitrária . A falsificação por clérigo de cartas de juiz apostólico delegado ou do
bispo era punida pelo direito comum com a perda das ordens, ofícios e benefícios e
4154
prisão em mosteiro . Quando falsificasse carta ou selo do imperador ou rei, perdia
4155
as ordens, era marcado com ferrete e desterrado para fora do episcopado .
§ 2354. O uso ou apresentação de documentos públicos falsos era punido com
a perda do ofício ou benefício, embora quem os tivesse apresentado não os tivesse
falsificado. O que os invocasse apenas se livraria se denunciasse o falsário ou o
citasse para que confessasse a falsificação. A simples posse de documentos públicos
4156
falsos não era crime . Saber se era necessária a consciência, por parte do
apresentante, de que os documentos eram falsos era questão discutida. A
generalidade exigia a consciência disso e mesmo que a ciência da falsidade fosse
provada com claridade meridiana, não bastando indícios nem uma “presunção
4157
violenta”, que apenas seria aceitável nas causas civis . Alguma doutrina, porém,
defendia que a alegação de que o apresentador não sabia que os documentos eram
4158
falsos não lhe aproveitava, pois teria o dever de os examinar . O documento não
4159
valia, mas fazia fé contra quem o tinha apresentado .
§ 2355. Os documentos podiam também ser falsificados por quem legalmente
4153 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 4 e 6. V. Ord. fil.5,52.
4154 Esta pena de prisão em mosteiro estaria a cair em desuso, v. António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 9 e 10. O que falsificasse cartas de cabido era suspenso do ofício ou
benefício até que merecesse perdão, ibid. n. 11.
4155 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 7
4156 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 12.
4157 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 14. Cf. Manuel Barbosa,
Remissiones […], cit., ad 5,53; Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri. ad lega. 83, n. 6.
4158 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. ibid..
658
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4163 Por sua vez, o juramento era definido como “pedido, dirigido formalmente ou virtualmente a
Deus para que servisse como testemunha para confirmar a verdade daquilo que se afirmava ou se
prometia, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Juramentum”, n. 36 ss.; João Baptista
Fragoso, Regimen […], p. 630, n. 115.
4164 Manuel Barbosa, Remissiones […] ad. Ord. fil. 5,54, n. 7.
4165 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri ad lega. 83, n. 7. Em geral, Pascoal de Melo,
4167 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri, ad lega. 83, n. 9.
659
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4168
indemnização do prejuízo, acrescida de pena arbitrária . Para além disso, o
4169
testemunho declarado falso não valia em juízo .
§ 2358. Por direito estrito, o falso testemunho não abrangia o das mulheres, dos
4170
rústico e dos idiotas , por supor um discernimento para distinguir a verdade do
erro que faltaria a estas pessoas. O falso testemunho não podia ser perdoado nem
pela parte nem pelo rei (v. Ord. fil.5,54,2)
8.2.5.3 Falsificação de moeda.
§ 2359. A falsificação de moeda podia ser de três tipos: cunhagem ilegal,
4171
falsificação da liga metálica ou cerceamento das moedas .
§ 2360. A cunhagem ilegal era a feita por qualquer pessoa que não tivesse esse
direito que, por direito comum, era um direito real dos maiores (regalia major),
inalienável da pessoa do rei ou que apenas se podia adquirir por concessão ou por
prescrição imemorial. Daí que a falsificação de moeda constituísse uma espécie da
4172
lesa-majestade . De mais a mais, em qualquer das suas formas, implicava a
profanação de símbolos divinos ou régios cunhados nas moedas (cruz, efígie ou
escudo de armas do rei). A pena para qualquer dos crimes era, por direito comum, a
4173
mesma: pena capital , confisco, perda da casa em que se tivesse feito a falsificação.
Punia-se igualmente a falsificação de moeda de entidade inferior ao rei, que tivesse
4174
direito de cunhagem .
§ 2361. O cerceamento de moeda tinha as mesmas penas, por direito comum.
Mas, as Ord. fil. estabeleciam a pena de morte para quem cerceasse moeda num
valor superior a 1000 reis/maravedis punido com a morte; em quantia menor, seria
4175
deportado ,
§ 2362. Passar moeda falsa ou adulterada cientemente punia-se com a pena da
4168 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri. ad lega. 83, n. 10; hoje, pena arbitraria, ibid. ad lega.
83, n. 13.
4169 A este propósito António Gomez narra um litígio que teve em Salamanca com um colega
(Gabriel de Velasco), a propósito do concurso para uma cátedra, decidido por votação de um grupo de
1000 colegas e alunos dos concorrentes. Um deles terá declarado falsamente que fora aluno de António
Gomez, sendo contado na eleição o seu voto contra este. Mais tarde, tendo sido condenado à morte por
outra razão, confessa o falso testemunho, ao passar pela casa de Gomez, no seu caminho para a forca.
4170 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad 5,54, in pr. n. 1; nem o do homem probo, pois se
4173 No tempo dos romanos, sendo o falsário um homem livre, era condenado às feras (ad bestias);
sendo escravo, à morte. Com o desaparecimento dos espetáculos circenses, a condenação às feras fora
substituída pela condenação às galés, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 19;
Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri, ad l. 83, ns. 3 e 4. Em França, o que falsificasse moeda régia era
morto em água a ferver ou pelo fogo, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 18.
4174 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 17; a casa onde se fizesse
moeda falsa era confiscada, ainda que fosse de terceiro, a menos que este o ignorasse ou fosse viúva ou
menor, ibid.
4175 V. Ord. fil.5,12,3 e 4. Os que desfizessem (fundissem) moeda perdiam metade da soma e eram
degredados por 10 anos para Africa, Ord. fil.5,12,5). Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Falsarius”, n. 19.
660
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4176
Lex cornelia de falsis, que era o degredo (deportatio) e o confisco de todos os bens ; a
4177
mesma pena se usava em Espanha . O clérigo perdia as ordens, ofícios ou
benefícios e era condenado a cárcere perpétuo em mosteiro (pois a pena de morte
para civis equivalia à prisão perpétua nos eclesiásticos). Na prática portuguesa, o
delito era punido com a morte, sendo o réu um leigo ou, sendo eclesiástico, com
4178 4179
degredo para Africa . O réu livrava-se, denunciando o falsificador .
8.2.5.4 Falsificação de pesos e medidas.
§ 2363. A falsificação de medidas ou de pesos, além de constituir um pecado
4180
mortal e obrigar à indemnização dos danos causados pela fraude , era punida com
pena arbitrária pelo direito comum. As Ord. fil. estabeleciam a condenação no duplo
do dano e o degredo para as ilhas. O uso de medidas falsificadas (ou não
contrastadas) estava previsto nas Ord. fil.5,58, sendo punido com a morte, se o
prejuízo fosse superior a 1000 rs. e, sendo menor, com degredo perpétuo para o
Brasil, a mesma pena do furto.
8.2.5.5 Simulação ou ocultação de partos.
§ 2364. A simulação de partos ou a ocultação da gravidez e do parto, bem
como a afirmação pela mãe de que o marido não era o pai do seu filho constituíam
os comportamentos que integravam a noção de “parto suposto”, prevista em
C.9,22 Lex Cornelia de falsis, 1, e em Ord. fil. 5,55. Por direito comum, a pena era a de
4181
deportação, no caso de mulher livre, ou a morte, caso de escrava . Pelo direito
4182
português, o parto suposto era punido com o degredo perpétuo para o Brasil .
8.2.5.6 Uso de nomes falsos, estatutos jurídicos, brasões, trajos
estatutários, falsos.
§ 2365. Todos estes comportamentos, em que se usava um nome ou
4183
identificativo falso para enganar ou prejudicar pessoas , configuravam a mesma
alteração da ordem do mundo, no que respeita à identidade e estatuto das pessoas.
4184 4185
A simulação do nome e do estado – incluindo o uso de brasões ou de títulos
falsos, o envergar de trajos que indicassem um estado (como o clerical, o de
4186
cavaleiro de ordens militares, o de mulher ) criavam expetativas sociais falsas,
mas, sobretudo, baralhavam as hierarquias naturais entre as pessoas. O nome
também podia ser alterado apenas para iludir a responsabilidade contratual, como
4176 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 20.
4177 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad lega. 83, n. 5.
4178 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 21.
4179 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad lega. 83, n. 5,
4180 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 22.
4181 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad lega. 83, n. 13.
4183 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […]. ad lega. 83, n. 11.
4184 V. Ord. fil.5,92. A mudança de nome poda ser legal, C.9.25 De mutatione nominis; Ord. fil.5,92.
4185 O registo dos brasões estava a cargo do Rei de Armas Portugal, criado por D. João II.
4186 V. Ord. fil.5,35 (uso de trajos de outro sexo), Ord. fil.5,93 (uso de trajos estatutários a que não se
661
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4187
quando se usavam nomes falsos nos contratos . Mas este era o tipo de
comportamento menos caraterístico do crime de falso.
§ 2366. A pena era arbitrária, para poder cobrir um conjunto de situações muito
variadas
8.2.5.7 Adulteração de coisas.
§ 2367. As mesmas penas da falsificação de medidas eram aplicadas aos que
corrompessem alimentos – deitando água no vinho, vinho novo no vinho velho,
água ou terra nos cereais – ou que enganassem na sua qualidade – v.g. pondo as
4188 4189
maçãs maiores no cimo do cesto -, falsificassem remédios , etc.. Algo
semelhante era engastar pedras falsas numa jóia (v. Ord. fil.5,56) ou mudar as
4190
extremas dos prédios .
§ 2368. A descrição falsa de uma coisa não configurava, em si mesma, um crime
4191
de falso, pois não modificava a natureza dessa coisa .
8.2.5.8 A extensão do conceito de falso. O estelionato.
§ 2369. No séc. XVIII, o conceito de crime de falso tende a alargar-se a todos
os casos de alteração ou supressão da verdade levada a cabo com intenção de
prejudicar outrém. A intenção de prejudicar outro sobreleva sobre a intenção de
alterar aspetos fundamentais da ordem do mundo. Isto permitia aproximar do
antigo crime de falso outras situações em que alterando ou suprimindo a verdade se
causavam prejuízos a terceiros.
§ 2370. Deste tipo eram os comportamentos que caíam no âmbito do
4192
estelionato, uma designação genérica para todo o tipo de fraude nos negócios ,
4193
prevista em Ord. fil.5,65 e punida com pena arbitrária. Num ambiente propício à
liberdade negocial, como era já o final do séc. XVIII, a tendência foi a de restringir
o âmbito deste crime, pois ele comprometeria a liberdade negocial e o direito de
4194
propriedade .
4187 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad l. 83, n. 11.
4188 V. Ord. fil.5,57 a 59.
4189 V. Ord. fil.5,57.
4190 Cf. D. 47.21 De termino moto. A Ord. fil.5,67 fixava a pena em dois anos de degredo para a
África.
4191 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 23.
4192 No direito romano, o estelionato andava ligado à ideia de causar prejuízo mediante fraude. Não
era um crime público, nem dava automaticamente lugar a uma ação penal (D.47,20,2: “Poena autem
stellionatus nulla legitima est, cum nec legitimum crimen sit”); v. A. Berger, Encyclopedic Dictionary …, cit.,
s. v. “Stellionatus”.
4193 O título é significativamente seguido pelo relativo à falência fraudulenta; v. v. Tomé Valasco,
Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis […], cit., 5, 6 (açambarcamento): “Com tantos impedimentos
das Ordenações citadas quase se proíbe inteiramente, ou pelo menos restringe-se para além do justo, o
negócio de géneros; por isso, essas leis mais coarctam o abastecimento e promovem mais a carestia que
a abundância; além disso, opõem-se à propriedade dos cidadãos e à liberdade de comércio. Se estas duas
coisas fossem prudente e devidamente harmonizadas e adequadas ao interesse público, facilmente
podíamos dispensar as leis mencionadas”.
662
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4195 Cf. D. 5,1,15,1: “Iudex tunc litem suam facere intellegitur cum dolo malo in fraudem legis
sententiam dixerit (dolo malo autem videtur hoc facere si evidens arguatur eius gratia vel inimicitia vel
etiam sordes ut veram aestimationem litis praestare cogatur”. Cf. também Inst. Gaii, 4.52. Sobre o tema,
v. Álvaro d’Ors, “Litem suam facere”, em Studia et documenta storiae iuris, 48(1982), pp. 368-394);
Francesca Lamberti, “Riflessini in tema di ‘Litem suam Facere’”, em Labeo, 36 (1990), pp. 218-266; Jaime
Meira do Nascimento Junior, “Considerações acerca do ‘Iudex qui litem suam fecit’”, em Revista da
Faculdade de Direito USP, 96(Jan.-Dez. 2001), pp. 103-118; Matteo Giusto,” Per una storia del litem suam
facere”, Roma, Pontificia Universitas Lateranensis, 2005 (v. síntese em Matteo Giusto, “Per una storia
del litem suam facere”, em Studia et documenta storiae iuris, 71(2005) 457-476; Riccardo Fercia, “Litem
suam facere da Adriano ai Severi”, em http://dirittoestoria.it/10/Tradizione-Romana/Fercia-Litem-
suam-facere-Adriano-Severi.htm; (outra bibliografia:
http://www1.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_ju
diciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1677-
065x/v8n15n16/A_responsabilidade_civil_do_Juiz_no_direito_romano.pdf).
4196 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus […], rub. 9, an. 8, n. 6; sobre o tema, Gabriele
Fornasari e Nicola Demetrio Luisi, "La corruzione: profili storici, attuali, europei e sovranazionali",
Milano, CEDAM, 2003; sobretudo, Carlo Venturini, “La corruzione: complessità dell’esperienza
romanística”, pp. 5-36; e Diego Quaglione, “’Delinquens in officio’. Spunti dal diritto comune”, 27-56.
663
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4197 Sobre a centralidade da observância das normas deontológicas dos juízes numa época de
standards jurídicos aberto e flexíveis, como no ius commune, v. Carlos Garriga, “La recusación judicial: del
derecho indiano al derecho mexicano, em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/1/133/12.pdf; id,
“Orden jurídico y poder político en el antiguo régimen”, em http://www.
istor.cide.edu/archivos/num_16/dossier1.pdf; Carlos Garriga y Marta Lorente, "El juiz y la ley: la
motivación de las sentencias (Castlilla, 1489 - Espanha, 1855)”, em Anuario de la Facultad de Derecho de la
Universidad Autónoma de Madrid, 1 (1997), p. 97-142 ( http://www.uam.es/
otros/afduam/pdf/1/garriga_lorente.pdf). Sobre o regime disciplinar dos magistrados no período
constitucional, Maria Julia Solla Sastre, La discreta práctica de la disciplina […], cit..
4198 “[…] E he por direito a sentença nenhuma […]quando foi dada contra direito expresso […] ou
outra coisa semelhante, que seja contra nossas Ordenações, ou contra direito expresso” (Ord. fil. 3,75, pr.
in fine).
4199 Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 88 ss. maxime, n. 104.
4200 Uma dessas especialidades era a de que a ocupação de jurisdição devia consubstanciar-se em
mais de um ato jurisdicional e em inequívoco sinal de que o usurpador reclamava para si a jurisdição
664
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
regimentos podia ser objeto de sindicância. Tanto mais que, ao tomar posse dos
4201
seus ofícios, tinham jurado guardar as leis do rei . Para além do julgamento contra
direito, a usurpação do ofício de julgar podia ter lugar de várias formas; denegação
da justiça, exceder os prazos de proceder, não perseguição de crimes, etc..
§ 2380. Julgar de forma imprudente, omitindo ou seguindo de forma
descuidada as regras do saber jurídico (jurisprudência), era também uma forma de
exercício ilegítimo da jurisdição. A imprudência era considerada como próxima da
intenção de julgar mal, como um quase delito, que criava para o juiz a obrigação de
4202 4203
indemnizar as partes : “Judicis negligentia dolus est, seu proxima dolo [...] Sed
4204
qui per dolum male judicat, litem suam facit, & ad totale partis interesse tenetur” .
§ 2381. Sendo grave, a negligência equiparava-se à intenção de julgar
4205 4206
injustamente , ao dolo, e dava origem a pecado mortal e a crime, devendo ser
incluída nos comportamentos que os magistrados encarregues de supervisionar os
4207
juízes deviam averiguar . A sua pena, por direito comum, era a mesma pena dos
4208
que falseassem documentos .
§ 2382. Já o julgamento errado por imperícia, ou falta de conhecimentos
técnicos para julgar tinha consequências menos drástica. É certo que a ignorância
4209
daqueles que deviam saber era um pecado e que, em direito, a imperícia equivalia
à culpa. Por isso, a sentença dada por um juiz ignorante obrigava à reparação civil
do dano. Mas não era geralmente aceite que a mera ignorância bastasse para
4210
configurar o crime de usurpação da justiça .
§ 2383. Ainda menos grave do que a imperícia era o erro involuntário de
direito, por deficiência de raciocínio ou interpretação; na opinião mais provável,
4211
nem sequer obrigava a indemnização . A menos que o erro fosse motivado por
uma atitude intelectual imprudente, como perfilhar uma opinião contrária à
geralmente seguida. Na verdade, a opinião comum e a lei constituíam os padrões
comuns de julgamento, dos quais não seria sensato apartar-se. Alguns chegavam a
opinar que a sentença dada contra a opinião comum devia ser considerada
régia (exercendo-a em nome próprio, usando sinais externos desse exercício [v.g. erigindo forcas]),
Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 94 e 95.
4201 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 111.
4202 Cf.Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 18, 19 e 26: refere a
constituição do código que equiparava a negligência dos juízes a usurpação da justiça (C. de pactis, 29:
“Omnes itaque iudices [...] pedaneos [...] compromissarios [...] arbitros electos [...] scituros quod si
nglexerint, etiam litem suam facere intelligantur”). A negligencia seria pior do que a imperícia, porque o
negligente omitia o que devia fazer, enquanto que o ignorante apenas fazia o que ignorava; embora
houvesse culpa nos dois, a do imprudente seria maior, ibid. n. 23.
4203 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n. 20.
4204 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n..21.
4206 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n. 24.
4207 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns.26 e 33.
4208 Cf. Antonio Gomez, Opus […] ad leges Tauri […], cit., l. 83, n.10.
4210 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 35 e 37. Em todo o caso,
o que tivesse condenado à morte por imperícia devia ser condenado, embora em pena arbitrária.
4211 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 42 a 44.
665
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4212
absolutamente nula, tal como o era a dada contra a lei , fazendo incorrer no crime
4213
de usurpação da justiça e no dever de indemnização da parte prejudicada .
Outros, porém, eram mais comedidos, argumentando que o juiz, ao julgar, era livre
e que, por isso, podia desviar-se da opinião comum, embora apenas quando a isso
4214
obrigasse uma evidente razoabilidade .
4215
§ 2384. Mais graves eram os casos em que o juiz (por extensão, o oficial )
violava os seus deveres funcionais para obter uma vantagem, nomeadamente de
ordem económica. Era o que se passava na prevaricação.
8.2.5.9.2 A prevaricação.
§ 2385. Em sentido genérico, a prevaricação abrangia todos os
comportamentos de todos os que se afastavam dos deveres do ofício
(estalajadeiros, médicos, soldados). Em sentido estrito, “era uma espécie de crime
de falsidade, que cometem não só os acusadores, que traindo a causa, ajudam à
absolvição do réu, mas também os que de qualquer modo não cumprem o seu
dever e agem com dolo mau para favorecerem alguém, o que se pode dar com os
advogados, procuradores, juízes, etc.”, escreve Melo Freire, citando o Digesto
(D.47,15 De praevaricatione, 1). Originalmente, a prevaricação contemplava,
sobretudo, o acusador que se conluiava com o acusado para que este fosse
absolvido ou o advogado que se conluiava com a outra parte, prejudicando o seu
constituinte. O direito comum compreendia, porém, sob esta epígrafe toda a falta
aos deveres de ofício por parte de oficiais públicos, violando os seus deveres de
imparcialidade, julgando ou decidindo com a intenção de favorecer ilegitimamente
uma das partes. Nas leis, as modalidades de prevaricação aparecem frequentemente
dispersas, como violação dos deveres particulares de cada ofício.
§ 2386. Apesar das estritas normas deontológicas dos oficiais, este crime era,
segundo as fontes literárias e mesmo jurídicas, frequentíssimo. Para isso contribuía
a complacência doutrinal perante as faltas dos oficiais, categoria profissional de que
estavam próximos os autores de tratados sobre o direito que se lhes aplicava. Para
nos darmos conta das multiplicidade de situações em que a conduta inadequada dos
oficiais era juridicamente justificada pela doutrina basta ler o capítulo em que
Antonio Garcia Mastrillo enumera as situações em que a culpa de oficiais por erros
4216
de ofício deveria ser afastada pelos juízes sindicantes .
4212 “Communis opinionis sequendae convenientia seu etiam obligatio urget; ut dixerint multi,
sententiam contra communem latam, pariter atque si contra legem lata foret, mullius esse momenti”,
Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n. 49.
4213 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n.49.
4214 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 51 a 53.
4215 Esta extensão baseia-se no facto de que o exercício do poder era considerado como exercício
da jurisdição.
4216 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 2 a 7; e, sobretudo,
cap. 10. A razão desta proteção dos oficiais era a presunção da sua honestidade, a sua defesa contra
calúnias e a preservação da sua autoridade social. § 1. A sindicância era um processo de inspeção dos
juízes, a cargo de um magistrado régio. O sindicante devia inquirir de todos os comportamentos
criminosos do juiz, por obrigação de ofício ou a instância de partes (ibid. cap. 8, n. 1). No entanto, a
doutrina aconselhava o juiz sindicante a “fazer o mínimo, em relação aos oficiais inquiridos”,
nomeadamente quanto a comportamentos apenas negligentes ou de culpa leve (ibid. n. 3; mais
detalhadamente, todo o cap. 10).
666
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4217 Cf. Gabriel Alvarez de Velasco, Judex perfectus […], rubr. 9, adn. 1 a 13 (per totam); Antonio
Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, maxime ns. 11 a 17; 35 e 36; 38 a 50.
4218 Cf. D.48,11 (D.48.11.3: “Lege Iulia repetundarum tenetur, qui, cum aliquam potestatem
haberet, pecuniam ob iudicandum vel non iudicandum decernendumve acceperit:”; 48.11.4 “Vel quo
magis aut minus quid ex officio suo faceret”), C.9,27 e C.7,49).
4219 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8 53 e 54 (prometer
4222 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 24 a 29 (v. ainda ns.
33 e 52).
4223 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 14 a 20.
4224 Cf. Antonio Gomez, Opus […] ad leges Tauri, cit., l. 83, n.10.
4225 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil. 5,71.
667
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4226 Eram ainda contempladas outras situações de possível favorecimento de oficiais; empréstimos,
4228 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 62 a 70.
4229 Crime de peculato: D. 48,13 Ad legem Iuliam peculatus et de sacrilegis et de residuis (“1. Lege Iulia
peculatus cavetur, ne quis ex pecunia sacra religiosa publicave auferat neve intercipiat neve in rem suam
vertat neve faciat, quo quis auferat intercipiat vel in rem suam vertat, nisi cui utique lege licebit: […] 3.
Peculatus poena aquae et ignis interdictionem, in quam hodie successit deportatio, continet”); C. 9.28.
De crimine peculatos (“Imperatores Theodosius, Arcadius, Honorius. Iudices, qui tempore administrationis
publicas pecunias subtraxerunt, lege Iulia peculatus obnoxii sunt et capitali animadversioni eos subdi
iubemus: his nihilo minus, qui ministerium eis ad hoc adhibuerunt vel qui subtracta ab his scientes
susceperunt, eadem poena percellendis”).
4230 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 67, 71-73, 75 e 76..
4231 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 86.
668
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4232 Esta publicização já se notava em textos romanos pós-clássicos, sobretudo para ofensas
penas estabelecidas (Ord. fil.5,75; v. Ord. fil.1,65,32) para a destruição de pomares e hortas. Julgou-se que
“nam se podia estender a dano de semeada, & que só tinha lugar na perda ou dano de pomar, ou horta,
por ser ley penal, que se não estende” (Melchior Febo, Decisiones […], cit., Ar. 80).
4234 Como dizem as Partidas (7, 14,17): “tomar [...] la cosa furtada [...] pechar quatro tanto como
aquello que valia [...] Otrosi deven os judgadores [...] escarmentar os furtadores publicamente com
feridas de açotes”.
4235 A intenção de causar danos - ou a omissão das cautelas normalmente exigidas para os evitar -
era necessária, o que excluía a indemnização por danos inevitáveis (damnum fatale).
4236 Ou seja, contra direito, causado por uma ação que o ofensor não podia juridicamente praticar.
4237 O pater tinha uma ação relativamente aos danos causados ao filho sob o seu poder paternal.
669
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 2402. Tratava-se, por isso, de um delito privado, perseguível por uma ação
apenas na disponibilidade do lesado e visando satisfazer unicamente os seus
interesses privados.
§ 2403. Os juristas modernos mantiveram, no fundamental, este regime. Para
eles, o dano (damnum) era também definido como uma diminuição do património
ou perda de alguma vantagem ou comodidade, a que se equiparava a privação de
um lucro já garantido (ou radicatum) 4239. O prejuízo podia relacionar-se com
escravos, animais domésticos ou mesmo bravios que costumassem voltar (abelhas,
pombas, pavões) ou coisas inanimadas que se fossem destruídas ou adulteradas 4240.
§ 2404. O que procedesse licitamente não causava iniuria4241, a menos que a sua
ação visasse intencionalmente causar danos a terceiro4242 ou omitisse as cautelas
adequadas a evitá-los4243. Mas era injúria não respeitar servidões negativas 4244
adquiridas por terceiro ou prejudicar uma fonte pública 4245. Já o comportamento
danoso ilícito originava responsabilidade4246.
§ 2405. O patrão ou dono respondiam por danos causados por criados,
escravos ou animais seus4247. Um caso especial era o do capitão ou mestre de nave,
que respondia pelos danos que esta causasse, ao ser levada pelas correntes ou pelos
ventos4248.
§ 2406. O dano e seu montante provavam-se por juramento do prejudicado4249.
§ 2407. No direito pátrio português, os únicos casos em que os danos eram
considerados como crime eram a destruição de horta ou pomar (Ord. fil.5,75,1), o
fogo posto (Ord. fil..5, 86) e os danos causados por gados (Ord. fil.5,87). Destes
casos excecionais e insuscetíveis de extensão analógica4250 emergia uma ação pública
e uma pena pública (açoites, degredo).
8.2.6.2 Furto.
§ 2408. O direito romano considerava furto a subtração de uma coisa de
outrem, com a intenção de realizar um lucro ilícito pela sua posse (furtum ipsius rei)
4239 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, cit., ns. 1 e 2.
4240 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 6.
4241 “Nemo iniuria facit qui iure suo utitur” (ninguém que usa do seu direito comete um ilícito): cf.
D.47.10, De iniuriis et famosis libellis, 13,1). Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Damnum”, n. 8; por exemplo, abrindo um poço no seu terreno (a mais de 5 pés da extrema).
4242 Por exemplo, abrir um poço em terreno seu, mas com a intenção de secar ou prejudicar um
poço do vizinho.
4243 Devia satisfazer o dano aquele que por Acão com culpa ou imperícia deu origem, direta ou
4245 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 35, ns. 4 a 9.
4247 Cf. A menos que o criado causador do dano tivesse sido avisado pelo lesado, António Cardoso
4249 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 7. Mas mantinha-se a
670
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
ou pelo seu uso (furtum usus)4251. O furto dava origem a ações civis de restituição da
coisa ou de indemnização pelo dano (condictio furtiva, reivindicatio4252) e a uma ação
penal (actio furti), visando a condenação numa pena privada, a favor do dono da
coisa. Esta pena estava fixada pelo direito pretório, inspirado em leis da fase final
da República. Para o furto manifesto (ou seja, aquele em que o ladrão era apanhado
em flagrante) a pena era do quádruplo; para o não manifesto, do duplo (Gaius,
Institutiones, 3,190). Estas ações cabiam ao proprietário ou também a quem
possuísse a coisa por um título contratual (como depositário, como credor
hipotecário, como arrendatário, como usufrutuário); e dirigiam-se contra o ladrão
ou contra os seus herdeiros. Já a ação penal, que era infamante, dirigia-se apenas
contra o ladrão. Ou seja, tratava-se de delitos privados, pois mesmo a sanção penal
destinava-se ao proprietário da coisa furtada. Para além de que as ações apenas
competiam ao lesado.
§ 2409. O direito romano distinguia ainda o furto violento (rapina, vi bona
rapta)4253, que considerava como uma forma agravada de furto de coisas móveis 4254.
Dava origem a uma ação de vi bonorum raptorum ou a uma ação crime ex lege Julia de vi
privata. Mas as penas, que eram as do furto manifestum, também se destinavam ao
ofendido4255.
§ 2410. Os juristas modernos receberam a tradição romanística do instituto 4256.
Definiram o furto como a subtração de uma coisa alheia contra a vontade do seu
dono, deslocando-a (subtrahere) do lugar onde estava, com a intenção de usurpar o
seu uso ou posse4257.
§ 2411. Por direito comum, requeria-se a efetiva subtração da coisa, não
bastando atos preparatórios, como arrombar as portas ou cavar em terreno alheio,
sem levar nada daí. Mas o direito pátrio português criminalizava autonomamente
alguns destes atos4258.
§ 2412. A subtração da coisa era o seu transporte para outro lugar. Porque os
imóveis não se podem deslocar (subtrair), não havia furto de coisas imóveis. Mas o
furto podia cometer-se nos seus frutos (árvores, lápidas, cal 4259). Era a subtração
raptorum.
4254 A ocupação violenta de imóveis configurava outro delito: a vis ou violência (D.47,8,2,1). No
nosso direito, a usurpação violenta era punida com a morte, açoites ou degredo, consoante o valor da
coisa e a qualidade das pessoas (Ord. fil.5,61).
4255 Cf. Alessandro Doveri, Istituzioni di diritto romano, Firenze, 1866 (rist.), vol. 2, §§ 466-470 (furto),
§§ 471-2 (rapina); Cesare Sanfilippo, Istituzioni di diritto romano, 10ª ed. 2002, Saveria Mannelli,
Rubbettino, p. 316.
4256 Tradição intermédia: Decretum, p. 2, caus. 14, qu. 5 e 6; p. 2, caus. 33, qu. 3; Decretais, tit. De
furtiis; Siete Partidas, 7,14,1. Fundamentos jurídicos e teológicos, Luís de Molina, De iustitia et de iure […],
cit., tract. 2, disp. 681 a 693.
4257 “Contrectatio fraudulenta rei alienae invito domino, animo retinendi rem furatam, usum seu
possessionem”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 1; “motio de loco ad
locum est substantia”, ibid. n. 2
4258 Entrar em casa fechada para roubar, Ord. fil.5,60; arrombar portas, ainda que não se roubasse
671
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4260 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 54.
4261 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 9.
4262 Mas não já o que se negasse a entregá-la ao dono António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
4264 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 17.
4265 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 18.
4266 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 38; v. Ord. fil.5,62 (sobre a
não entrega de escravos, aves e outras coisas achadas). Não cometia furto o que guardasse em caso
animal alheio, não sabendo quem era o dono António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”,
n. 52; mas sim, se retivesse preso animal selvagem daqueles que voltam ao redil, ibid. n. 53.
4267 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 43 (v. Ord. fil. 5,62-63).
4268 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 10.
4269 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 11.
4270 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 33.
4271 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 48.
4272 Sobre o conceito, que era o do direito romano, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Furtum”, n. 28.
4273 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 9.
4274 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 20.
672
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4275 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 21.
4276 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 22.
4277 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 47.
4278 Se eram vários os ladrões, ficavam, no cível, obrigados solidariamente, sendo cada um
responsável pela indemnização de todo o furto. Mas, criminalmente, cada um era punido com a sua pena
de furto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 25.
4279 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 23; excetua o caso do alfaiate
que emprestou as coisas que lhe tinham sido dadas para arranjar.
4280 Mas não encobria quem apenas não denunciasse. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
furtada era considerado ladrão, se tivesse má fama, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord.
fil.5,60,5, n. 7.
4282 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 46.
4283 Mesmo se o furto não fosse um delito, como o de filho ao pai, aconselhar a praticá-lo era
punido como tal. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 6 e 8.
4284 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 24.
4285 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 40 (punição capital). A
mesma pena para o que assinou instrumento alheio [furto do nome]; ibid. n. 41. Também o furto da
liberdade (v.g. rapto de escrava não meretriz) era punido com a morte, António Cardoso do Amaral, ibid.
n. 42; o mesmo para o que comprasse ou furtasse homem livre, ibid. n. 49.
673
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4289 O furto na Igreja com violação das portas ou muros dava lugar a excomunhão. Sem isto, era
sacrilégio, mas a excomunhão não tinha lugar ipso facto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Furtum”, n. 30 e 31. Por serem excomungados, estes ladrões não podiam ser sepultados na Igreja,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 51.
4290 O marco era uma unidade de medida de massa, que correspondia a 1/2 arrátel (= 229.5 /
233,856 gramas); o arrátel correspondia à libra, ou lira. O valor real do arrátel flutuou durante a idade
média, até que foi fixado por D. Manuel em uma libra (libra ibérica). A libra tinha 20 soldos ou
dinheiros. Sobre a denominação e valor das moedas, Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.
4,21, ns. 8 ss..
4291 Sobre as penas do furto em direitos próximos, v. Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 13,
ns. 77-9.
4292 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 35.
4293 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 50.
4294 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 50.
674
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4295 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 15.
4296 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 27.
4297 As Ord. af. constituem a primeira grande codificação do direito penal europeu, na época
675
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
direito penal se caracteriza, mais do que por uma presença, por uma ausência.
Vejamos como e porquê.
§ 2436. Comecemos por aspetos ligados à efetivação positiva, por assim dizer, da
ordem real.
§ 2437. Com esta se relaciona, desde logo, a questão da capacidade que os
juristas têm, no sistema do ius commune, de estabelecer autonomamente o direito. No
entanto, como esta questão nos irá sobretudo interessar num ulterior momento,
deixemo-la por agora. Fixemo-nos, para já, no grau de aplicação prática da ordem
penal legal.
§ 2438. Os dispositivos de efetivação da ordem penal, tal como vinha na lei,
careciam de eficiência. Primeiro, pela multiplicidade de jurisdições (v. cap.
7.1.7.3)4299, origem de conflitos de competência - descritos por muitas fontes como
intermináveis -, que dilatavam os processos e favoreciam fugas de castigo. Depois,
pelas delongas processuais - de que todas as fontes nos dão conta 4300-, combinadas
com o regime generoso de “livramento” dos arguidos (v. cap. 8.1.6, 8.1.6.4).
Finalmente, pelos condicionalismos de aplicação das penas.
§ 2439. Condicionalismos de dois tipos. De natureza política, isto é,
relacionados com o modo como a política penal da coroa se integrava numa
política mais global de disciplina régia; ou de natureza prática, relacionada com as
limitações dos meios institucionais, logísticos e humanos na disponibilidade da
coroa. Comecemos por estes últimos e, no final, concluiremos com os primeiros.
§ 2440. Tomemos para exemplo a pena de degredo. Quando aplicada para o
ultramar, ela obrigava a espera, por vezes durante meses ou anos, de barcos para o
local do exílio 4301; o réu ficava preso à ordem da justiça, nas cadeias dos tribunais
de apelação, tentando um eventual livramento, aquando das visitas do Regedor da
Justiça. De qualquer modo, uma vez executada a deportação, faltavam os meios de
controlo que impedissem a fuga do degredado do lugar para onde tinha sido
mandado.
§ 2441. As mesmas dificuldades existiam nas medidas, preventivas ou penais,
que exigissem meios logísticos de que a administração da justiça carecia. Era o que
se passava com a prisão - de resto, raramente aplicada como pena -, que obrigava à
existência de cárceres seguros, à organização de operações onerosas de transporte
de presos (as odiadas levas de presos), à disponibilidade de meios de sustento dos
Angola”, “para o Brasil”), embora conheça decisões de degredo “para Bissau”, “para Cacheu”, “para a
ilha do Príncipe”, “para o Maranhão”.
677
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
4302 Embora, no séc. XVIII, a Inquisição, para onde estes criminosos eram remetidos pelos juízos
4305 Por exemplo. As Ord. punem a bigamia com a morte (Ord. fil. 5,19); no entanto, uma fonte dos
finais do séc. XVIII informa que “hoje, entre nós esta pena raramente se pode praticar, pois os
Inquisidores da depravação herética, que conhecem deste crime pelo direito de prevenção [pois se
tratava de um delito de misto foro], punem os réus com penas de açoites, de desterro temporário e, por
vezes, com penas de galés [Repertorio das ordenações e leis do reino de Portugal, Coimbra, Na Real Imprensa da
Universidade, 1795, v. “Pena de morte”, IV, 27(a)]. A mesma fonte, [(I, 443(d)] refere que um réu
condenado à morte natural na primeira instância por tomar pela força os bens do devedor viu, em
embargos, essa pena comutada em morte civil (degredo).
4306 Francisco Freire de Melo, Discurso sobre os delictos e as penas e qual foi a sua proporção nas differentes
epocas da nossa jurisprudência, cit, p. 50. Outra fonte (D. Luís da Cunha, Testamento político […], Lisboa, 1820,
p. 27) refere que era ponto de honra dos mordomos da Misericórdia que “no seu ano fosse inútil a
forca”, “piedade” que o autor censura, exprimindo uma sensibilidade típica das ideias de disciplina do
despotismo esclarecido.
4307 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 156, ns. 5-10; Manuel Barbosa, Remissiones doctorum […],
678
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
cit., ad Ord. fil. 5,18,3, n, 10 [p. 298]; Domingos Antunes Portugal, De donationibus […], liv. 2, c 25, n.
53/5.
4308 Sobre esta discussão, com exposição e crítica dos diferentes argumentos, v. Repertório às
Torre do Tombo, Armário 5, Maço 7; agradeço a Elena Burgoa o ter-me enviado esta referência).
679
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
que, num rol dos detidos da cadeia de Lisboa nos finais do séc. XVII 4311, não são
mais aplicados do que a pena capital. Na mesma fonte, a marca é usada em dois
casos, um de roubo e outro de furto, cumprindo a conhecida funções de registo
criminal no próprio corpo do delinquente, nomeadamente nos crimes em que era
relevante, para a medida da pena, saber se o criminoso era reincidente ou não 4312.
Os açoites, por sua vez, aparecem em três casos – um de entrada violenta em casa
de mulher branca e dois de furto. O cortamento de membro nunca aparece 4313.
§ 2445. Em vista disto, o leque das penas praticadas no plano do sistema
punitivo régio ficava afinal muito reduzido e, sobretudo, carecido de medidas
penais intermédias. Como a mais grave, embora quase apenas virtual, a pena de
morte; mas, sobretudo, o degredo, com todas as dificuldades de aplicação - e
consequente falta de credibilidade - a que nos referimos. Na base, as penas de
açoites - inaplicáveis a nobres e, em geral, aparentemente pouco usadas, pelo menos
a partir dos fins do século XVII - e as penas pecuniárias.
8.3.4 A economia da Graça: perdão, comutação e livramento.
§ 2446. Assim, e ao contrário do que muitas vezes se pensa, a punição no
sistema penal efetivamente praticado pela justiça real do Antigo Regime - pelo
menos até ao advento do despotismo iluminado - não era nem muito efetiva, nem
sequer muito aparente ou teatral. Os malefícios ou se pagavam com dinheiro, ou
com um degredo de duvidosa efetividade e, muitas vezes, não excessivamente
prejudicial para o condenado. Ou, eventualmente, com um longo e duro
encarceramento “preventivo”.
§ 2447. Ou seja, mais do que em fonte de uma justiça efetiva ou quotidiana, o
rei constitui-se em dispensador de uma justiça apenas - e, acrescente-se, cada vez
mais - virtual. Independentemente dos mecanismos de graça e da atenuação
casuística das penas, que estudaremos a seguir, o rigor das leis - visível na legislação
quatrocentista e quinhentista (a legislação manuelina tende a agravar o rigor e
crueldade" da punição) - fora sendo temperado com estilos de punir cada vez mais
brandos.
§ 2448. Passemos, agora, ao polo oposto da punição: o perdão ou, mais em
geral, as medidas que, na prática, traduziam a outra face da intervenção régia em
matéria penal - o exercício da Graça.
§ 2449. Tem sido posto em evidência o caráter massivo do perdão na prática
penal da monarquia corporativa 4314. E tem sido mesmo destacado que o exercício
continuado do perdão destruía o seu caráter imprevisto e gracioso e o transformara,
pelo menos para certos crimes, num estilo e, com isto, num expediente de rotina.
4311 Cf. António Manuel Hespanha, “Da ‘iustitia’ à ‘disciplina’ […]”, cit..
4312 No furto, a treincidência era duramente punida, pois o furto triplum era equivalente ao furtum
magnum; daí que se estabelecesse a marcação dos ladrões no primeiro furto com um L ou um P,
consoante a condenação fosse feita em Lisboa ou no Porto. Mas o segundo já com uma forca, pré-
anunciando o que poderia acontecer num eventual terceiro (Lei da Reformação da Justiça, de 6.12.1612,
§ 20. No entanto, a marca já não se usava nos finais do séc. XVIII (v. Joaquim José Pereira e Sousa,
Classes dos […], cit., 1, § 22, nota 35).
4313 “Há muito que estão entre nós em desuso”, Joaquim J. C. Pereira e Sousa, Classes dos crimes
680
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4315 Cf. sobre o tema, largamente, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3:
“principem pastoris nomen, imperioque adornat, et sic nomen imperi superbum pastoris nomine
dulcescit: quasi dicat imperare populo, ac pascere populo idem esse […] ex quo manifestum est
clementiam, mansuetudinem, & misericordiam maxime competere in principibus, atque illorum vices
tenetibus”, n. 37 [pg. 22], com fonte na Sagrada Escritura e em Santo Ambrósio; “magis decere
principem amari, quam metui” (ibid. n. 44).
4316 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3, n. 42-42, 52, in fine, p. 53 e 60-62.
Na literatura clássica, estabelecera-se uma larga polémica com os estoicos, para quem a clementia em
relação aos criminosos equivalia à licença. Mais tarde, penalistas iluministas reagirão, de novo, contra o
perdão, com idêntico fundamento.
4317 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3, n. 53.
4318 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3, n. 57.
4319 Sobre os alvarás de fiança, v. por todos, Sobre as cartas de segurança, seu regime e espécies,
além das fontes legais, v. por todos, Manuel Mendes de Castro, Pratica lusitana […], cit., pt. 1, liv. 5, c. 1,
app. II, n. 19 [pg. 172] e pt. 2, liv. 5, c. 1, app. II ([pg. 255]; Mateus Homem Leitão, De jure Lusitano in tres
tractatus. […], cit.; para além dos comentários de Manuel Barbosa e de Manuel Álvares Pegas ao
parágrafo do regimento do Desembargo do Paço (com ulteriores indicações de literatura sobre o tema.
681
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
dos presos à ordem da Casa da Suplicação, a que já nos temos referido, quase
metade (mais exatamente, 48%) daqueles de que se sabe o destino saem soltos por
perdão, fiança ou, eventualmente, por falta de culpas; e, em relação a muitos outros,
“corria livramento” pelos meios ordinários.
§ 2452. Além das cartas de fiança e dos alvarás de fiança, existiam ainda as
cartas de seguro (securitatis ou assecurationis litterae), passadas pelos corregedores e
outros juízes, que garantiam o acusado contra a prisão até à conclusão da causa4320.
Do relevo prático deste instituto na criação de um clima de permissividade criminal
diz-nos o testemunho de Manuel Mendes de Castro: “Digo-te que em nenhuma
outra parte estão em uso senão neste reino, embora este costume português pareça
um pouco alucinado […] se o meu juízo vale algo, penso que seria melhor aboli-las
completamente […]” 4321.
§ 2453. Esta situação de permissividade era incentivada pelo poder. Um
influente valido de D. João V recomendava rispidamente ao Desembargador Inácio
da Costa Quintela: “Sua Majestade manda advertir V. M. que as leis são feitas com
muito vagar e sossego, e nunca devem ser executadas com aceleração: e que nos
casos crime sempre ameaçam mais do que na realidade mandam […], porque o
legislador é mais empenhado na conservação dos súbditos do que no castigo da
Justiça, e não quer que os ministros procurem achar nas leis mais rigor do que elas
impõem”4322.
§ 2454. Concluindo. Pelos expedientes de graça realizava-se o outro aspeto da
inculcação ideológica da ordem real. Se ao ameaçar punir (mas punindo,
efetivamente, muito pouco), o rei se afirmava como justiceiro, dando realização a
um tópico ideológico essencial no sistema medieval e moderno de legitimação do
poder; ao perdoar, ele cumpria um outro traço da sua imagem - desta vez como
pastor e como pai -, essencial também à legitimação. A mesma mão que ameaçava
com castigos impiedosos prodigalizava, chegando ao momento, as medidas de
graça. Por esta dialética do terror e da clemência, o rei constituía-se, ao mesmo
tempo, em senhor da Justiça e mediador da Graça. Se investia no temor, não
investia menos no amor. Tal como Deus ele desdobrava-se na figura do Pai
justiceiro e do Filho doce e amável.
§ 2455. Assim, o perdão e outras medidas de graça, longe de contrariarem os
esforços de construção positiva (pela ameaça) da ordem régia, corroboram esses
esforços, num plano complementar, pois esta ordem combinada da Disciplina e da
Graça constitui o instrumento e a ocasião pelos quais se afirma ideológica e
simbolicamente, em dois dos seus traços decisivos - summum ius, summa clementia -, o
poder real. Da parte dos súbditos, este modelo de legitimação do poder cria um
eficaz habitus de obediência, tecido, ao mesmo tempo, com os laços do temor e do
amor. Teme-se a ira regis; mas, até à consumação do castigo, não se desespera da sua
misericórdia. Antes e depois da prática do crime, nunca se quebram os laços (de um
4320 Ord. fil. 5,124 a 129; Alv. 21.1.1564 (em Duarte Nunes de Leão, Leis extravagantes […]); Alv. 6-
12-1612, §§ 3-4; Ord. fil. 5, 128; um outro tipo de garantia, ainda mais genérica – a segurança real.
4321 Manuel Mendes de Castro, Pratica lusitana […], cit., pt. 1, liv.5. cap. 1. app. III.
4322 Francisco Freire de Melo, Discurso sobre os delitos […], p. 9. A censura reportava-se à condenação
à morte de um moço que roubara coisas numa Igreja (cf. Alexandre de Gusmão, Collecção de vários escritos
inéditos […], Porto 1841, 31).
682
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
tipo ou de outro) com o poder. Até ao fim, o rei nunca deixa de estar no horizonte
de quem prevarica; que, se antes não se deixou impressionar pelas suas ameaças, se
lhe submete, agora, na esperança do perdão. Trata-se afinal de um modelo de
exercício do poder coercitivo que evita, até à consumação final da punição, a
“desesperança” dos súbditos em relação ao poder; e que, por isso mesmo, tem uma
capacidade quase ilimitada de prolongar (ou reiterar) a obediência e o consenso,
fazendo economia dos meios violentos de realizar uma disciplina não consentida.
§ 2456. Em comunidades em que os meios duros de exercício do poder eram
escassos, modelos que garantissem ao máximo as condições de um exercício
consentido do poder eram fortemente funcionais.
§ 2457. Tudo combinado - no plano da estratégia punitiva, do funcionamento
do perdão ou do livramento e da escala de penas efetivamente aplicável e aplicada -,
o resultado era o de um sistema real/oficial de punição pouco orientado para a
aplicação de castigos e, finalmente, pouco crível neste plano. O controlo dos
comportamentos e a correspondente manutenção da ordem social só se verificava
porque, na verdade, ela repousava sobre mecanismos de constrangimento situados
num plano diferente do da ordem penal real.
§ 2458. A disciplina social baseava-se, de facto, mais em mecanismos
quotidianos e periféricos de controlo, ao nível das ordens políticas infra estaduais -
a família, a Igreja, a pequena comunidade 4323. Neste conjunto, a disciplina penal
real visava, sobretudo, uma função política - a da defesa da supremacia simbólica
do rei, enquanto titular supremo do poder punitivo e do correspondente poder de
agraciar.
§ 2459. Para isto, nem era preciso punir todos os dias, nem sequer punir
estrategicamente do ponto de vista dos interesses de disciplina da vida social (i. e.
punir os atentados mais graves ao convívio social). Disto se encarregavam usando
tecnologias disciplinares diversas, os níveis infrarreais de ordenação. À justiça real
bastava intervir o suficiente para lembrar a todos que, lá no alto, meio adormecida
mas sempre latente, estava a suprema punitiva protestas do rei. Tal como o Supremo
Juiz, o rei devolvia aos equilíbrios naturais da sociedade o encargo de instauração da
ordem social.
§ 2460. Por outro lado, para se fazer lembrar e reconhecer, para manter a carga
simbólica necessária à legitimação do seu poder, o rei dispõe de uma paleta
multímoda de mecanismos de intervenção. Pode decerto punir; mas pode também
agraciar, assegurar ou livrar em fiança; como pode, finalmente, mandar prender.
Pode optar, isto é, tanto pelo meio desgastante da crueza, como pelo meio
económico do perdão. Ao fazer uma coisa ou outra, o príncipe afirma-se na
plenitude do seu poder e no cabal exercício das suas funções. Pois - segundo uma
conhecida máxima do início do Digesto - a realização da justiça (leia-se, da
disciplina social) exige uma estratégia plural, em que, ao lado do medo das penas,
figuram os prémios e as exortações (non solum metu poenarumn, verum etiam premiorum
quoque exhortatione, D. 1,1,1,1.) [não só pelo medo das penas, mas também pela
exortação por meio de prémios].
4323 Sobre os poderes punitivos destas ordens infrarreais: sobre o poder punitivo do pater, João
Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, disp. 1, 4 n.º 89 e III, disp. 3, §. 2; sobre o poder punitivo da
Igreja, cf. o vol. 2 da mesma obra, per totum.
683
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.
§ 2461. Sem se ter em conta esta dupla eficiência do poder, entende-se mal esta
natureza aperentemente contraditória do direito penal de Antigo Regime.
684
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
9 Epílogo.
§ 2462. Sugeri na introdução que a visão jurídica do mundo que acaba de ser
descrita seria típica da Europa “latina”, com isto querendo significar o corpus
literário dos juristas italianos, ibéricos e, em parte, franceses, da primeira época
moderna. Tenho consciência do arriscado da afirmação e, por isso, vou tentar
esclarecê-la um pouco mais.
§ 2463. Não creio, desde logo, que se possa dizer que haja (ou alguma vez
houvesse) algo como um “espírito latino” (ou “do Sul”), relacionado com
condições étnicas ou mesológicas. Nem mesmo uma “cultura latina”, dotada de
uma identidade independente de contextos vários. Nem o contexto religioso – a
Europa “católica” – parece poder explicar os traços comuns desta visão do mundo
partilhada pelos juristas modernos. Como disse no respetivo capítulo (v. caps. 2.5.1
ss.), a cultura jurídica desta época não é uma cultura integrista, em que o direito
religioso se projete implacavelmente sobre os direitos temporais. A Natureza tem o
seu espaço independente da Graça, o que aponta para um proto-laicismo que
autonomizava o direito e as instituições (a propriedade, a validade dos pactos, o
senhorio político) dos dados da fé.
§ 2464. Parece, por isso, mais prudente limitarmo-nos a constatar que a
identidade “do Sul” é antes uma identidade induzida por um círculo de
comunicação – ou um corpus literário - partilhada por estes juristas, incorporado
num arquivo textual comum, que progressivamente se diferencia de outros
universos de referências dogmáticas, como os dos juristas ingleses e, depois, dos
juristas holandeses e alemães. Como já dissemos (v. cap. 1.1.5), o arquivo de
referências dos juristas modernos de que tratámos era esmagadoramente
constituído por textos italianos e ibéricos, estando dele ausentes os textos dos
juristas do Norte. A cisão religiosa da Europa vem ainda sublinhar esta fronteira,
pois o “Norte” passa a ser anglicano, luterano ou calvinista. Porém, não parece que
a origem da divisão seja esta. Mesmo antes, os juristas do “Sul” citavam e discutiam
os seus pares do “Sul”, até porque o corpo literário do Centro e do Norte tinha
uma expressão muito mais reduzida. Foi este habitus literário que se cristalizou nos
livros impressos a partir da segunda metade do séc. XVI, saídos de prelos italianos,
ibéricos, do sul de França e da borda ocidental do Império, onde se imprimiam
indistintamente os autores que formaram as gerações seguintes de juristas desta
Europa do Sul. Estava, assim, instalado um sistema industrial de reprodução
dogmática, que propõe a visão do mundo e do direito que foi comum a estes
autores, estabelecendo um paradigma conceitual e um estilo de discutir.
§ 2465. Neste paradigma, o legado do direito comum clássico era muito
importante. Nele pesava fortemente uma conceção naturalista da sociedade e uma
representação corporativa do poder. A primeira desvalorizando muito os elementos
voluntaristas ou arbitrários do direito; a segunda, subordinando indivíduos a
“estados” (corpora).
§ 2466. É claro que o séc. XVI, com a emergência de monarquias e principados
mais auto-suficientes e mais afirmativos das suas prerrogativas políticas e com
alguma emergência de sentimentos de autonomia pessoal, fazem com que apareçam
novos elementos de sensibilidade jurídica.
§ 2467. Esta necessidade de descrever um novo contexto em que começam a
avultar entes políticos unificadores dotados pelo direito próprio de novas e
exclusivas prerrogativas institucionais, leva os juristas a valorizar o estatuto dos
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
4324 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia […], cit..
687
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
688
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
10 Bibliografia citada.
A. Murray, Reason and Society in the middle ages, potestate episcopi tripartita descriptio, Lugduni,
Oxford, [s.n.], 1978. Laurentii Durant , 1623 (Lugduni, 1724:
Adolf Berger, Encyclopedic dicitionary of Roman Pars. 1-2:
Law, reimpr. Clark-New Jersey, The https://books.google.pt/books?id=gsJF
Lawbook Exchange, 2004. […] AAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=p
(http://books.google.pt/books/about/E t-
ncyclopedic_Dictionary_of_Roman_Law. PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0
html?id=iklePELtR6QC&redir_esc=y). #v=onepage&q&f=false; Pars 3:
Adriano Prosperi, Tribunali della coscienza. https://books.google.pt/books?id=lsJFA
Inquisitori, confessori, missionari, Torino, AAAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
Einaudi, 1996. PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0
Agostinho Barbosa, 1589-1649, Remissiones #v=onepage&q&f=false).
Doctorum, qui varia loca Concilii Tridentini Agostinho Barbosa, 1590-1649, De officio, et
incidenter tractarunt, Lugduni, Horatii potestate parochi, Romae, Guillelmi
Cardon, 1619 Facciotti, 1632 (1647:
(http://books.google.pt/books?id=ZD9 http://catalog.hathitrust.org/Record/009
AAAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl= 305888).
pt- Agostinho Barbosa, 1590-1649, Tractatus de
BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0 foro ecclesiastico universo, Lugduni, Laurentii
#v=onepage&q&f=false) Durand, 1634.
Agostinho Barbosa, 1589-1649, Repertorium Aires Pinhel, 1512-1562, Ad Rub. et L. secun. C.
juris civilis et canonici […], Lugduni, Petri de rescindenda venditione commentarii,
Borde et Joan. & Petri Arnaud, 1689 (v. Salmanticae, Mathias Gastius,
http://books.google.es/books?id=W3Ke 1573,(http://books.google.com.br/books
9NLF9wAC&printsec=frontcover&hl=it ?id=hIK9IRuInM4C&hl=pt-
&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v PT&source=gbs_similarbooks).
=onepage&q&f=false, 25.2.2014). Albert Silbert, “O feudalismo português e a
Agostinho Barbosa, 1589-1649, Tractatus varii, sua abolição”, comunic. de 1968, em
Lugduni, Anisson & Posuel, 1718 Albert Silbert, Do Portugal do Antigo Regime
(http://books.google.pt/books/about/T ao Portugal do Antigo Regime, Lisboa,
ractatus_Varii.html?id=rqVFAAAAcAAJ Horizonte, 1977, pp. 79-101.
&redir_esc=y). Alejandro Agüero, “El testimonio procesal y
Agostinho Barbosa, 1590-1649, Collectanea la administración de justicia penal en la
doctorum, qui in suis operibus varia loca concilio periferia de la Monarquía Católica, siglos
Tridentini tractarunt, Lugduni, Laurentii XVII y XVIII”, Revista de fontes, 1(2014)
Durand, 1634 (ed. 1686: (http://www.revistadefontes.unifesp.br/e
https://books.google.pt/books?id=ntZL l-testimonio-procesal-y-la-administracion-
AAAAcAAJ&pg=PA505&dq=Collectane de-justicia-penal-en-la-periferia-de-la-
a+doctorum,+qui+in+suis+operibus+va monarquia-catolica-siglos-xvii-y-xviii/).
ria+loca+concilio+Tridentini+tractarunt Alejandro Cañeque, “The Political and
&hl=pt- Institutional History of Colonial Spanish
PT&sa=X&ei=nbYBVbLLFsPtUsiahOg America”, History Compass, 11/4 (2013),
D&ved=0CCIQ6wEwAA#v=onepage& 280–291.
q=Collectanea%20doctorum%2C%20qui Alejandro Guzman Brito, “Sobre la historia de
%20in%20suis%20operibus%20varia%20 las nociones de derecho común y
loca%20concilio%20Tridentini%20tractar dereecho própio”, em Bernardino Bravo
unt&f=false). Lira, Derecho común y derecho próprio en el
Agostinho Barbosa, 1590-1649, De canonicis Nuevo Mundo, Santiago de Chile, Editorial
aliis quae inferioribus beneficiariis Cathedralium, Jurídica de Chile, 1989.
et collegiatorum ecclesiarum […], Lugduni, Alexandre Caetano Gomes (1705-?),
Laurentii Durand, 1634 (1640: Dissertações juridicas sobre a intelligencia de
https://books.google.pt/books?id=QYd algumas ordenaçoẽs do reyno que por supplemento
CAAAAcAAJ&printsec=frontcover&hl= ao Manual Pratico […], Lisboa, Officina de
pt- Domingos Gonçalves, 1756.
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0 Alexandre Caetano Gomes (1705-?), Manual
#v=onepage&q&f=false) practico judicial, civel e criminal em que se
Agostinho Barbosa, 1590-1649, De officio, et descrevem recopiladamente os modos de processar
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
690
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
691
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
daZXtfvEC&printsec=frontcover&dq=g (http://www.almanack.usp.br/neste_nu
omez+tauri&hl=pt-PT&sa=X&ei=- mero/index.asp?numero=5.
xN6VMqMGO- António Manuel Hespanha, "Le projet de
9iQL92IDgAw&ved=0CDMQ6AEwAw Code pénal portugais de 1786. Un essai
#v=onepage&q=gomez%20tauri&f=fals d'analyse structurelle", La “Leopoldina”.
e). Criminalità e giustizia criminale nelle riforme del
António Henriques da Silveira, “Sobre a Settecento europeo (a cura di Luigi
agricultura e população da província do Berlingueri), vol. 11, Milano, Giuffrè,
Alentejo”, em Memorias economicas da 1990, ps. 387-447
Academia Real das Sciencias de Lisboa, António Manuel Hespanha, "L'espace
Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1, politique dans l'ancien régime", em
41-123. Estudos em homenagem aos Profs. Manuel
António Joaquim de Gouvea Pinto, 1777- Paulo Merêa e Guilherme Braga da Cruz,
1833, Manual de appellacoes, e aggravos, ou, Coimbra, Por ordem da Universidade,
deduccao systematica dos principios mais solidos, 1984, 58 pp..
e recessarios, relativos a sua materia, António Manuel Hespanha, "Porque é que
fundamentada nas leis deste reino […], Lisboa, existe e em que é que consiste um direito
Simão Thaddeo Ferreira, 1813. colonial brasileiro", Quaderni fiorentini per la
António Luiz de Sousa Henriques Seco, Storia del pensiero giuridico moderno, 35(2006),
Memorias do tempo passado e presente [...], 59-81.
Coimbra, Imprensa da António Manuel Hespanha, "Représentation
Universidade,1880. dogmatique et projets de pouvoir. Les
António Manuel Hespanha (org.), Justiça e outils conceptuels des juristes du ius
litigiosidade: história e prospectiva, Lisboa, commune dans le domaine de
Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. l'administration", in E.-V. Heyen (ed.),
António Manuel Hespanha (org.). “Nova Wissenschaft und Recht der Verwaltung seit dem
História Militar de Portugal – séculos Ancien Régime, Frankfurt/Main, Vitt.
XVI-XVII”, em Manuel Themudo Barata Klostermann, 1984, ps. 1-28; versão
(org.), Nova História Militar Portuguesa, vol. portuguesa, in Estudos em homenagem
II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2003. do Prof. Doutor António Arruda Ferrer
António Manuel Hespanha e Ângela Barreto Correia, Coimbra, Por ordem da
Xavier, “A Representação da Sociedade e Universidade, 1989, ps. 3-42.
do Poder”, em A. M. Hespanha (org.), O António Manuel Hespanha, "Savants et
Antigo Regime - 1620-1810, Lisboa, Círculo rustiques. La violence douce de la raison
de Leitores, 1993. juridique", Ius commune, 10(1983) 1-48;
António Manuel Hespanha, "’Carne de uma versão portuguesa, “As fronteiras do
só carne’. Para uma compreensão dos poder. O mundo dos rústicos”, Revista
fundamentos histórico antropológicos da Seqüência, nº 51(dez. 2005); ps. 47-105
família na época moderna", em Análise (https://drive.google.com/drive/#folder
social 123/124.1(1993), ps. 951-974. s/0BxG11aEdnDQ2M1Y2WnYzYmtjbF
António Manuel Hespanha, “Será que somos U).
modernos ? A propósito de um livro António Manuel Hespanha, (org.), “Lei e
sobre o modelo pré-moderno da justiça: história e prospectiva de um
política”, in Suely de Almeida, Gian Carlo paradigma”, in António Manuel
de Melo Silva, Marília Ribeiro (orgs.), Hespanha (org.), Justiça e litigiosidade:
Cultura e sociabilidades no mundo Atlântico, história e prospectiva, Lisboa, Fundação
Recife, Editora Universitária, UFPE, Calouste Gulbenkian, 1993. pp. 5-58.
2012, p. 35-42. António Manuel Hespanha, “ Les autres
António Manuel Hespanha, "Da 'iustitia' à raisons de la politique. L'économie de la
'disciplina'. Textos, poder e política penal grâce ”, em J.-F. Schaub (ed.), Recherches
no Antigo Regime", in Anuario de história sur l'histoire de l'État dans le monde ibérique
del derecho español (Madrid, 1988); versão (15e.-20e. siècles), Paris, Presses de l'École
portuguesa, in Estudos em homenagem do Normale Supérieure, 1993, 67-86.
Prof. Eduardo Correia, Coimbra, Faculdade António Manuel Hespanha, “’Res est misera
de Direito de Coimbra, 1989. Versão ubi jus est vagum et incertum’. The legal
resumida in F. Tomás y Valiente et al. construction of materiality”, em
Sexo barroco y otras transgresiones publicação.
premodernas, Madrid, Alianza, 1990, ps. António Manuel Hespanha, “A "Restauração"
175-186. portuguesa nos capítulos das cortes de
António Manuel Hespanha, "Depois do Lisboa de 1641”, Penélope. Fazer e desfazer a
Leviathan”, em Almanack Braziliense, nº 5 história,1993, pp.29-60.
(2007) – revista eletrónica António Manuel Hespanha, “A nobreza nos
692
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
693
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
de hoje, Coimbra, Almedina, 2009 (2ª ed. reges et facere’. Dos tratados como fundamento do
reel.; reimpr. 2014). império dos portugueses no Oriente. Estudo de
António Manuel Hespanha, O jurista e o história do direito internacional e do direito
legislador na construção da propriedade burguesa, português, Lisboa, Fundação Oriente, 1998.
versão polic. Lisboa, 1980, 80 pp. Arno dal Ri Júnior, “Entre lesa-majestade e
(https://drive.google.com/file/d/0BxG1 lesa-república. a transfiguração do crime
1aEdnDQ2bndBeGRNRFJ6WFk/view? político no iluminismo”, Revista Seqüência,
usp=sharing); versão abreviada (sem nº 51(dez. 2005), ps. 107-140
aparato crítico completo), Análise social, (https://periodicos.ufsc.br/index.php/se
61-62(1980), 211-236. quencia/article/viewFile/15173/13798).
António Manuel Hespanha, Panorama da Arnold Vinnius, 1588-1657, In quattor libros
história institucional e jurídica de Macau, Institutionum imperialium commentarius,
Macau, Fundação Macau, 1995 (edição Amstelodami, Apud Ludovicum &
em chinês, Ye Shi Peng, Ao Mem Fa Zhi Danielem Elzevirios, 1642 (várias edições
Shi Gai Lun), Macau, Fundação Macau, on line, em Google books; ed. usada,
1996. Antuerpiae, Henricum & Cornelium
António Manuel Hespanha, Poder e instituições Verdussen, 1721).
na Europa do Antigo Regime, Lisboa, August Pauly, & Georg Wissowa,
Gulbenkian, 1984, 541 pp. prefácio e Realencyclopädie der Classischen
seleção de textos. Altertumswissenschaft, 1852-1980 (muitos
António Manuel Hespanha, Poder e Instituições volumes em
no Antigo Regime. Guia de Estudo, Lisboa, http://archive.org/search.php?query=Pa
Cosmos, 1992. uly-
António Maria Castelo Branco de Assis Wissowa%20AND%20mediatype%3Atex
Teixeira, “O Tratado de Morgados, de ts).
Manuel Álvares Pegas, uma fonte Baldus de Ubaldis, 1327-1400, Commentaria in
histórica esquecida”, em Estudos em primam et secundam partem ff. veteris, cum
homenagem ao Prof. Doutor Raul Ventura, novis […], Lyon, François Fradin impensis
coord. de José de Oliveira Ascensão, Aymon de La Porte, 1524 (existem vários
Coimbra Editora, 2003,1 1195-1281. volumes disponíveis on-line).
António Mendes Arouca, 1610-1680, Barthelemy Chassaneux, 1480-1541, Catalogus
Adnotationes practicae ad librum fere primum Gloriae mundi, Laudes, honores, excellentias
Pandectarum Juris Civilis [...], cit. […]
Ulyssipone, 1701-1702. (http://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=uc
António Menezes Cordeiro, Perspectivas m.5315925081;page=root;view=image;siz
evolutivas do direito da insolvência, Coimbra, e=100;seq=9, Lugduni, Dionysium de
Almedina, 2013. Harsy, 1529; Oxford, Reprinted in the
António Ribeiro dos Santos, 1745-1818, De New Boldleian Library, 1959).
sacerdotio et imperio […], Olissipone, Typ. Bartolomé Clavero, “Gracia y Derecho entre
Regia, 1770. Localización, Recepción y Globalización
António Ribeiro dos Santos, 1745-1818, Notas (Lectura Coral de las Vísperas
ao plano do Novo Codigo […], Coimbra, Constitucionales de António Hespanha)”,
Imprensa da Universidade, 1844. em Quaderni fiorentini per la Storia del Diritto
António Vanguerve Cabral, 17??-?, Epílogo Privado Moderno, 41.1(2012), 675-763.
jurídico de varios casos civeis, e crimes [...] Bartolomé Clavero, Antidora. Antropología
decididos a mayor parte delles no Supremo católica de la economía moderna, Milano,
Tribunal da Corte [...], Primeira parte [e Giuffrè Editore, 1991.
única], Lisboa Occidental, Antonio Bartolomé Clavero, Mayorazgo. Propriedade
Pedrozo Galram, 1729 feudal en Castilla, 1369-1836, Madrid, Siglo
(http://bibdigital.fd.uc.pt/H-E-3-7/H-E- XXI, 1974 (nova ed. remodelada, 1989).
3-7_item2/H-E-3-7_PDF/H-E-3- Bartolomé Clavero, Tantas personas como estados.
7_PDF_01-C-R0120/H-E-3-7.pdf). Por uma antropologia política da história
António Vanguerve Cabral, 17??-?, Pratica europea, Madrid, Tecnos, 1986.
judicial, muyto util, e necessaria para os que Bartolomé Clavero,“’Lex Regni Vicinioris’.
principiaõ os officios de julgar, e advogar e para Indicio de España en Portugal”, pp. 287-
todos os que solicitaõ causas nos Auditorios de 297, in Boletim da Faculdade de Direito
hum, e outro foro [...] com a nova reformação da (Universidade de Coimbra), 58.1(1982),
justiça.[...], Coimbra, Na Officina de pp. 539-598.
Antonio Simoens Ferreira, 1730 Bartolomeu Coelho Neves Rebelo, ?-1783,
(http://bibdigital.fd.uc.pt/H-E-3- Discurso sobre a inutilidade dos esponsaes dos
7/rosto.html). filhos celebrados sem consentimento dos Pais em
António Vasconcelos de Saldanha, ‘Vincere que se mostra ser elle de direito divino, natural,
694
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
das gentes, canonico, patrio e civil de todos os Portugal no começo do século XIV”, em
povos da Europa e se mostra offensiva de todos http://www.revistas.ufg.br/index.php/O
estes direitos a doutrina dos jesuitas, que psis/article/view/18355/12830#.UaydK
propunhão huma illimitada liberdade a este EDvuuI.
respeito […], Lisboa, Na Off. de Francisco Castelo Branco Chaves (org.), O Portugal de D.
Sabino dos Santos, 1773 (em João V visto por três forasteiros, Lisboa,
http://almamater.uc.pt/referencias.asp?f Biblioteca Nacional, 1989.
=BDUC&i=01000100&t=REBELO%2 Catarina Madeira-Santos, & Ana Paula
C%20BARTOLOMEU%20COELHO% Tavares, A apropriação da escrita pelos
20NEVES%2C%20FL.1773). africanos, Lisboa, IICT, 2006.
Bento Cardoso Osório, 1665-?, Praxis de Catarina Madeira-Santos, & Jean-Frédéric
patronatu regio et saeculari [...], Josephi Schaub, “Histoires impériales et
Antonio da Sylva, 1726 (em coloniales d’Ancien Régime. Un regard
http://books.google.co.uk/books?id=X sur l’État moderne ”, em Michel de
VKFwibabTkC&printsec=frontcover&hl Fornel et Emmanuel Désveaux (coord.),
=zh- Faire des sciences sociales-Généraliser, Paris,
CN&source=gbs_ge_summary_r&cad=0 Editions de l'EHESS, 2012.
#v=onepage&q&f=false). Catarina Madeira-Santos, “Écrire le pouvoir
Bento Gil [Benedictus Aegidius], 15??-1623, en Angola Les archives ndembu (XVIIe-
Tractatus de jure, et privilegiis honestatis in duo XXe siècles)”, Annales. Économies. Sociétés.
diviginti articulos distributus quibus universum Civilisations, 2009.4.
pertinet, explicatur, Olyssipone, apud Catarina Madeira-Santos, “Entre deux droits,
Petrum Craesbeeck, 1618 (1620, les Lumières en Angola (1750-v. 1800)”,
http://books.google.pt/books?id=U3xD Annales. Économies. Sociétés. Civilisations,
AAAAcAAJ&hl=pt- 2005.4, 817-848.
PT&source=gbs_similarbooks). Catarina Madeira-Santos, “Goa é a Chave de
Bento Pereira, S.J. 1606-1681, Promptuarium Toda a Índia”. Perfil Político da Capital
juridicum quod scilicet in promptu exhibebit rite do Estado da Índia. (1505-1570), Lisboa,
ac diligenter quaerentibus omnes resolutiones circa CNCDP, 1999.
universum jus Pontificiu[m], Imperiale, ac Catarina Madeira-Santos, « Esclavage africain
Regium, secundum quod in tribunalibus et traite atlantique confrontés:
Lusitaniae causaer decidi solent. […], transactions langagières et juridiques, (à
Ulysippone, Typographia Dominici propos du tribunal de mucanos dans
Carneiro, 1664 (http://purl.pt/21955). l’Angola des XVIIe et XVIIIe
Bernardino Joaquim da Silva Carneiro, siècles)”, Brésil(S). Sciences Humaines et
Elementos de direito ecclesiástico portuguez e seu Sociales, 1(2014), 127-148.
respetivo processo, Coimbra, Imprensa da Cesare Mozzarelli (ed.), "Famiglia" del principe e
Universidade, 1896 (2ª ed.) famiglia aristocratica, Roma, Bulzoni, 1988,
(http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investiga 2 vols..
cao/1488.pdf). Cesare Sanfilippo, Istituzioni di diritto romano,
Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Soveria Mannelli, Rubbetino Editore,
Meneses (orgs.), Epistemologias do Sul, São 2002, 10ª ed..
Paulo, Editora Cortez, 2010. Charles Loyseau, 1566-1627, Les cinq livres du
Carlos Ferreira de Almeida, Contratos III. droict des offices, Chateaudun, Abel
Contratos de liberalidade, de cooperação e de l'Angelier, 1610
risco, Coimbra, Almedina, 2012. (http://books.google.pt/books?id=fwpeI
Carlos Francisco Moura, “Macau e o comércio 8BJQ5kC&printsec=frontcover&dq=Cha
português com a China e o Japão nos rles+Loyseau+offices&hl=pt-
séculos XVI e XVII. As viagens da China PT&sa=X&ei=tmARVKHBHo3T7Aaix
e do Japão — a nau do trato — as 4HwAg&ved=0CDMQ6AEwAg#v=one
galeotas”, Boletim do Instituto Luis de page&q=Charles%20Loyseau%20offices
Camões, 7.1(1973), pp. 5-35. &f=false)
Carlos Petit, “Del usus mercatorum al uso de Charles R. Boxer, Portuguese Society in the Tropics,
comercio. Notas y textos sobre la The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia,
costumbre mercantil”, Revista da Faculdade and Luanda, 1510-1800. Madison,
de Direito - UFPR, Curitiba, n. 48(2008), 7- Wisc.Univ. Press, 1965.
38. Codigo Philippino, ou, Ordenações e leis do Reino de
Carmo de Souza, Legal system in Goa, Goa, Portugal. Recopiladas por mandado d'El-Rey D.
Agnelo d'Souza, 1995. Philippe I, Lisboa, Pedro Craesbeck, 1603
Cassiano Malacarne, “A reconventio: uma (http://arquivodigital-
exceção canônica ao privilégio do foro 7cv.blogspot.com/2011/09/ordenacos-e-
eclesiástico e sua regulamentação em leis-do-reino-de-portugal.html)ed. de
695
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
696
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
697
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
698
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
699
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
700
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
701
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
702
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
703
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
705
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
706
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
707
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
AAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl= http://purl.pt/17359).
pt- Manuel Paulo Merêa, “Bosquejo histórico do
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0 recurso de revista”, Boletim do Ministério da
#v=onepage&q&f=false). Justiça, 1(1948), 71-81.
Manuel Gonçalves da Silva, 16??-1748, Manuel Paulo Merêa, “Génese da “Lei
Commentaria ad Ordinationes Regni Mental” (algumas notas)”, Bol. Fac. Dir.
Portugalliae, Ulyssipone Occidentali, 1731 Coimbra, 10(1926-1928) 1-15
(1, Manuel Paulo Merêa, “Um relatório notável”,
http://books.google.com/books?id=Rk Bol. Fac. Direito de Coimbra, 20(1949), 268-
Xq5G4gyaAC&pg=PP24&lpg=PP24&dq 290.
=Emmanuelis+Gon%C3%A7alves+da+ Manuel Severim de Faria, 1584.1656,
Sylva+jurisconsulti+Lusitani&source=bl “Discurso III”, em Noticias de Portugal,
&ots=v4_yMjuA3c&sig=kwUmaJryKsR Lisboa, Officina de Antonio Isidoro da
_pEfmYf7x2hq0Sc8&hl=pt- Fonseca, 1791
PT&sa=X&ei=E4aEVJnQGILKoASI8Y (http://purl.pt/698/3/#/6).
C4Aw&ved=0CIABEOgBMA4#v=onep Manuel Themudo da Fonseca, ?-1652,
age&q=Emmanuelis%20Gon%C3%A7al Decisiones et quaestiones senatus archiepiscopalis
ves%20da%20Sylva%20jurisconsulti%20 metropol. Olysipon, regni Portugaliae ex
Lusitani&f=false; 2, gravissimorum patrum responsis collectae, tam in
http://books.google.pt/books?id=gkx7w iudicio ordinario quam apostolico, Ulysipone,
4ToZ3gC&printsec=frontcover&hl=pt- Ex Officina Dominici Lopez Rosa, 1643
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0 (1688, vol 1,
#v=onepage&q&f=false; 3, http://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=uc
http://books.google.pt/books?id=Qp- m.5320263481;view=1up;seq=1; 1688,
lqdMbeXUC&printsec=frontcover&hl=p Vol 2,
t- catalog.hathitrust.org/Record/009292119
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0 ).
#v=onepage&q&f=false;). Marcello Caetano, “Recepção e execução dos
Manuel Gonçalves Teles, Commentaria perpetua decretos do Concílio de Trento em
in singulos textus quinque librorum decretalium, Portugal”, Bol. Fac. Dir. Lisboa 19(1965),
Lugduni, Anisson & Posuel, 1693 7-87..
(http://reader.digitale- Marcello Caetano, História do direito português
sammlungen.de/en/fs1/object/display/b [1140-1495], Lisboa, Verbo, 1985.
sb10628865_00003.html). Marco Antonio Correa Collares, “Tito Lívio e
Manuel Lopes Ferreira, ?-?, Direcção para os a construção do estrangeiro em sua Ab
syndicantes tirarem as residencias aos ministros Urb Condita Libri”, Revista Eletrônica
da jurisdição real, e aos seus officiaes, Lisboa, Antiguidade Clássica, nº 4/ Semestre
Officina Ferreiriana, 1733. 2/2009, 116-127.
Manuel Lopes Ferreira, ?-?, Pratica criminal Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes da
expendida na forma da praxe observada neste formação administrativa do Brasil, Rio de
Reyno de Portugal; e illustrada com muitas Janeiro, Instituto Histórico e Geográfico
Ordenações, Leys extravagantes, Regimentos e Brasileiro, Conselho Federal de Cultura,
Doutores […], Lisboa, Officina Ferreiriana, 1972.
1731-1733, 3 vols.. Maria Beatriz Nizza da Silva, Ser nobre na
Manuel Mendes de Castro, 15??-16??, Practica colônia, São Paulo, UNESP, 2005
lusitana, advocatis, judicibus, utroque foro (http://books.google.com.br/books?id=
quotidie versantibus admodum utilis, & bmOekh8sWgQC&printsec=frontcover
necessaria, in quinque libros divisa, cum &hl=pt-
ducentibus, et quadraginta novissimis Senatus BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0
Decisionibus, et centum contra cautellis, #v=onepage&q&f=false).
Olysipone, Georgium Rodericum, 1619 Maria Carla Faria Araújo, Direito português e
(http://purl.pt/17304, 2013.08.12). populações indígenas: Macau, 1846-1927,
Manuel Mendes de Castro, 15??-16??, diss. Mestrado, ICS-UL, Lisboa, 2000.
Repertorio das Ordenações do Reyno de Portugal Maria de Fátima Gouvêa, “Poder político e
recopiladas com as Remissoens dos Doutores administração na afirmação do complexo
todos do Reyno, que as declaraõ, atlântico português (1645-1809)”, J.
& concordia das Leys de partida de Castella, Fragoso, Mª F. Bicalho e M. Fª. Gouvêa
Lisboa, J. Rodrigues, 1604 (1608, (org.), O Antigo Regime nos Trópicos. A
http://books.google.pt/books?id=wP81 dinâmica imperial portuguesa (sécs XVI-
UjiFWq8C&printsec=frontcover&hl=it& XVIII), Rio de Janeiro, Civilização
source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=o Brasileira, 2001, p. 285-315.
nepage&q&f=false; 1623, Maria do Rosário Themudo Barata de
708
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Azevedo Cruz, As Regências na Menoridade Mary del Priore, História das crianças no Brasil.
de D. Sebastião. Elementos para uma História São Paulo, Contexto, 1999.
Estrutural, 2 Vols. Lisboa, Imprensa Massimo Meccarelli, Arbitrium. Un aspetto
Nacional-Casa da Moeda, 1992. sistematico degli ordinamenti giuridici in età di
Maria Fernanda Bicalho, “Conquista, mercês e diritto comune, Milano, A. Giuffrè, 1998.
poder local, a nobreza da terra na Mateus Homem Leitão, De jure lusitano tomus
América portuguesa e a cultura política primus in tres utiles tractatus divisus. 1. De
do Antigo Regime”, Almanack brasiliense, gravaminibus; 2. De securitatibus; 3. De
2(2005) (= inquisitionibus, Emmanuelis de Carvalho,
http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo 1645, 3 tomos
.php?pid=S1808- (https://bdigital.sib.uc.pt/bg1/UCBG-4-
81392005000200002&script=sci_arttext, A-25-2-5/UCBG-4-A-25-2-
2012.08.07). 5_item1/index.html). Tradução
Maria Fernanda Bicalho, “O que significava portuguesa (Lisboa, Fundação Calouste
ser cidadão nos tempos coloniais”, in Gulbenkian, 2009).
Marta Abreu & Rachel Soihet (ed.). Mateus Soares, Practica e ordem pera os visitadores
Ensino de história. Conceitos, temáticas e dos bispados, na qual se decidem muitas questões
metodologia, Rio de Janeiro, Casa da assi en causas civis como criminais, pertencentes
Palavra, 2003, 139-151. aos Avogados, no foro ecclesiastico e secular,
Maria Fernanda Bicalho, João Fragoso, et alii, Lisboa, Jorge Rodriguez, 1602.
O Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica Mattheus Gribaldo Mopha, 1505-1564, De
imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), Rio methodo ac ratione studendi libri tres, Lugduni,
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001. apud Antonium Vincentium, 1541
Maria Julia Solla Sastre, La discreta práctica de la (http://catalog.hathitrust.org/Record/00
disciplina. La construcción de las categorias de la 9319850).
responsabilidade judicial en España, 1834- Mauro Luís de Lima, ?-?, Commentaria as
1870, Madrid, Congreso de Diputados, Oidinationes Regni Portugalliae […]
2011. continuando, sciliciet ex li. 4, tit. 36 ad
Mário Júlio de Almeida e Costa, Raízes do censo perficiendum opus Commentariorum ab
consignativo. Para a história do crédito medieval Ammanuele Gonçalves da Silva […]
português, Coimbra, Coimbra Editora, editor, usque ad. Tit. 35 lib. 4 […],
1961. Olissipone, Francisco Ludovici Ameno,
Mario Losano, Sistema e struttura nel diritto, I: 1761.
Dalle origini alla Scuola Storica, Giappichelli, Max Kaser, “Ius publicum” und “Ius
Torino 1968 (trad. port. Sistema e privatum”, em Zeit. der Savigny Stiftung.
estrutura no direito. I. Das origens à Röm. Abt. 116(1986).
Escola Historica, S. Paulo, Martins Max Kaser, Das römische
Fontes, 2008), maxime, 9 ss.. Zivilprozessrecht, “Handbuch der
Mario Sbriccoli, Crimen Laesae Maiestatis. Il Altertumswissenschaft”. Abteilung 10:
problema del reato politico alle soglie della Rechtsgeschichte des Altertums. Vol. 3.4.
scienza penalistica moderna, Milano, Giuffrè, München, C. H. Beck, 1966.
1974. Max Kaser, Direito privado romano, tradução de
Mario Sbricolli, Per la storia del pensiero giuridico Samuel Rodrigues e Ferdinand
moderno, Milano, Giuffrè, 2009. Hämmerle, Lisboa, Fundação. Calouste
Marius Giurba, 1565-1649, Repetitiones de Gulbenkian), Lisboa, 1999.
successione feudorum inter ascendentes et Melchior (ou Melchior) Febo (Phaebus), 15??-
descendentes masculos, ad capit. 118 regis et 1632, Decisiones senatus regni Lusitaniæ,
imperat. Caroli V, Lugduni, Messanae, Olysippone, Petrus Crasbeeck, 1619-
Francisci Bianco, 1635 1625, tomos 1 (até dec. 101) e 2 (de dec.
(http://catalog.hathitrust.org/Record/00 102 a decñ 219).
9291533). Melquíades Andrés (dir.), Historia de la teologia
Marti Koskenniemi, “Ius gentium and the española, Madrid, Fundación Universitaria
birth of modernity”, em Luigi Nuzzo & Espafiola, 1983, 2 vols.
Milos Vec (orgs.), Constructiong International Michel Villey, La formation de la pensée juridique
Law. The birth of a Discipline, Frankfurt, moderne, Paris, Sirey, 1968; PUF, 2005.
Vittorio Klostermann, 2012, 3-24. Miguel B. Salon, 15?-16?, Controversiae de
Martim de Albuquerque, “Política, moral e iustitia, et iure, atque de contractibus, et
direito”, Estudos de cultura portuguesa, commerciis humanis licitis ac illicitis: In
Lisboa, Imprensa Nacional,1 1985. disputationem, Venetiis, Baretium, 1608
Martim de Albuquerque, O poder político no (http://books.google.pt/books?id=ICHq
Renascimento português, Lisboa, Verbo, 2012 eAWPmn4C&pg=RA6-
(reimpressão da versão inicial, de 1968). PT136&lpg=RA6-
709
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
710
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0 ge&q=petrus%20santerna%20assecuratio
#v=onepage&q&f=false. nibus&f=false).
Pascoal José de Melo Freire, 1738-1798, Codigo Philippe Ariès, L’enfant et la vie sous lAncien
criminal intentado por, Coimbra, Imprensa Régime, Paris, Seuil, 1973.
da Universidade, 1844 Pietro Costa, Iurisdictio: Semantica del potere
(http://bibdigital.fd.uc.pt/C-16- politico nel pubblicistica medievale (1100–
8/rosto.html). 1433), Milano, Giuffrè, 1969; reed. com
Pascoal [José] de Melo [Freire dos Reis], 1738- textos de comentário, 2002.
1798, Institutiones Iuris Civilis Lusitani, Pietro Costa, Lo Stato immaginario. Metafore e
Coimbra, Typ. regalis Academiae paradigmi nella cultura giuridica fra Ottocento e
scientiarum, 1789 (1 e Novecento, Milano, Giuffrè, 1986.
2:http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investig Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz, “Os
acao/7835.pdf; 3 e 4, processos da Igreja: documentos do
http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigac Tribunal Episcopal enquanto fonte
ao/7703.pdf). Versão portuguesa (de histórica”, Revista de fontes, 1(2014)
Miguel Pinto de Menezes): (http://www.revistadefontes.unifesp.br/
http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigac os-processos-da-igreja-documentos-do-
ao/1563.pdf. tribunal-episcopal-enquanto-fonte-
Pascoal [José] de Melo [Freire dos Reis], 1738- historica/.
1798, Institutiones Iuris Criminalis Lusitani, Pollyanna Gouveia Mendonça, Parochos
Coimbra, Typ. regalis Academiae imperfeitos: Justiça eclesiástica e desvios do clero
scientiarum, 1794. Versão portuguesa (de no Maranhão colonial, Diss. dout. Univ.
Miguel Pinto de Menezes): Federal Fluminense,
http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigac http://www.historia.uff.br/stricto/td/13
ao/1012.pdf. 11.pdf.
Patricia Ferreira dos Santos, Carentes de justiça: Prophyrio Hermeterio Homem de Carvalho,
juízes seculares e eclesiásticos na "confusão de Primeiras linhas de direito agrario, n'este reino,
latrocínios" em Minas Gerais (1748-1793), Lisboa, Imprensa Regia, 1815.
Diss. doutor. Faculdade de Filosofia, Prospero Farinaccius (1554-1618), Praxis, et
Letras e Ciências Humanas, Univ. São theoricae criminalis amplissimae : pars quidem
Paulo, 2013 quarta : ast operum criminalium pars quinta
(http://www.teses.usp.br/teses/disponiv [...], Francofurto, Collegio Paltheniano,
eis/8/8138/tde-02042013-113902/pt- 1605 (incompleto:
br.php), http://books.google.com/books?id=zWe
Paul Girard, Histoire de l’organisation judiciaire des UXKOuPk8C&hl=pt-
romains, Paris, A. Rousseau, 1901 PT&source=gbs_navlinks_s).
(https://archive.org/details/histoiredelor R. H. Helmholz, The spirit of classical canon law,
ga00giragoog). Athens and London,The University of
Pedro Cardim, “O governo e a administracão Georgia, 2010, 1996 (paperback, 2010).
do Brasil sob os Habsburgo e os Rafael Ruiz, Francisco de Vitória e a liberdade dos
primeiros Bragança”, Hispania. Revista del índios americanos, EDIPUCRS-Instituto de
Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio,
Madrid, vol. LXIV/i, no 216 (Enero- Porto Alegre-São Paulo, 2002.
Abril 2004) pp. 117-156. Raffaele Volante, “I giuristi e il contrato”, em
Pedro Cardim, Portugal unido y separado. Felipe Trecanni.it (2012)
II, la unión de territorios y el debate sobre (http://www.treccani.it/enciclopedia/i-
lacondición política del reino de Portugal, giuristi-e-il-
Valladolid, Universidad de Valladolid / contratto_%28Il_Contributo_italiano_all
Cátedra “Felipe II”, 2014. a_storia_del_Pensiero:_Diritto%29/).
Pedro Paula Filho, O bacharelismo brasileiro. Da Recopilacion delas leyes destos reynos hecha por
Colônia a República, Campinas, 1997. mandado [...] del Rey don Philippe segundo [...],
Peter V. Zyma, Textsoziologie. Eine kritische Alcala de Henares : en casa de Andres de
Einführung, Stuttgart, Metzler, 1980. Angulo, 1569,
Petrus Santerna (Pedro de Santarém), 14??- http://bibliotecadigital.jcyl.es/i18n/cons
15??, Tractatus de assecurationibus et ulta/registro.cmd?id=8419 (Repertorio:
sponsionibus mercatorum, Antuerpiae, http://books.google.pt/books?id=Jhqqg
Gerardum Spelmannum, 1554 5XE7c4C&printsec=frontcover&dq=nue
(http://books.google.pt/books?id=7BU6 va+recopilacion&hl=pt-
AAAAcAAJ&printsec=frontcover&dq= PT&sa=X&ei=sr03VJKKEYPIsATXgo
petrus+santerna+assecurationibus&hl=it LYAw&ved=0CCkQ6AEwAQ#v=onep
&sa=10&ei=GH8pU_GgHsGrhQeKtIG age&q=nueva%20recopilacion&f=false ).
QCg&ved=0CDMQ6AEwAQ#v=onepa Regime[n]to e ordenações da fazenda, Lixboa, em
711
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
712
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
713
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
714
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
11 Índices
Indice temático
715
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
717
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
719
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Filhos legitimados, 431 Guerra justa, 164, 166, 210 Infanções, 240
Filhos legítimos, 385 Guerras nativas, 213 Infantes, 254
Filhos legítimos (sucessão Haeredes extranei, 425 Ingratidão, 567
dos), 431 Haeredes sui, 425 Ingratidão (dos filhos), 421
Filhos naturais (sucessão Haeredes sui et necessarii, 430 Inimigos (hostes), 229
nos morgados), 443 Herança, 404, 425, 569 Injúria (e fiança), 535
Filhos póstumos, 431 Herança jacente, 306, 361 Injúrias, 646
Fisco, 598 Herdades (do rei), 337 Inoficioso (legado,
Fisco (como herdeiro), 435 Herdeiro (instituição de), doação), 459
Fontes de direito, 145 413, 420 Inquirição "aos costumes",
Força maior, 549 Herdeiro (obrigações do), 590
Força maior (damnum 544 Inquirição "de costumes",
fatale), 665 Herdeiros forçosos, 430 590
Força nova. Consulte Herdeiros forçosos, 427 Inquiridores, 56, 590
Esbulho, ação de esbulho Herdeiros forçosos, 433 Insinuação das doações,
Formalidades das Herdeiros forçosos, 458 491
obrigações, 477 Heresia, 501, 631 Insinuação das doações,
Fornos, 337 Hereus (hereo), 420 301
Foro competente, 574 Hesitação (titubatio), 469 Instituições indígenas,
Foro eclesiástico, 128, 576 Homenagem, 620 legitimidade das, 165
Foro misto, 129, 502, 576 Homicídio, 648 Institutiones, 6, 15
Foros do Algarve, 400 Honras (indivisibilidade), Institutiones Iustiniani
Fraterna (charitativa) 439 (sistematização), 461
compositio, correctio, 131 Hospital de Todos os Intentio fundata, 133
Fraude, 473 Santos, 145 Intercessio, 533
Fraude dos credores, 219, Id quod interest, 508 Interdição de água e fogo,
493, 494, 515 Idade núbil, 265 649
Freguesia, 139 Idolatria, 164 Interdição de uso da água
Frutos, 363 Ignorância, 468, 482 e do fogo, 664
Frutos extantes e Ignorância (de facto e de Interdicta, 310
pendentes, 512 direito), 545 Interdicta recuperandae
Fuga, 650 Ignorância da lei, 155 possessionis, 568
Funcionários (dos Igreja, 117 Interdicta retinendae
concelhos), 55 Igreja (conceito de), 118 possessionis, 568
Fundata intentio, 324 Igreja (direitos da), 148 Interdictum. Consulte
Fundus instructus, 512 Igualdade (dos côjuges), Interdito, interditos
Funerais, 320 272 Interdictum adipisciendae
Furto, 665, 667 Ilicitude, 607 possessionis, 569
Furto de uso, 498, 505 Iluminismo, 6, 168, 560, Interdito unde vi, 568
Furto violento (roubo, 575, 621, 630, 637, 640, Interdito uti possidetis, 568
rapina), 667 644, 652, 676 Interditos, 568
Garantia correal, 534 Impedimentos, 265 Interditos possessórios,
Garantia das obrigações, Imperícia (do juiz), 661 162, 358, 407, 568
530 Império (graus), 38 Interlocutária. Consulte
Generosidade, 490 Império (moderno), 40 Sentença interlocutória
Gestão de negócios, 543 Império português, 41 Interlocutória, 600,
Governador, 223 Imperium, 38, 40 Consulte Sentença
Governo dos não Imperium e Império, 40 interlocutória
europeus, 165 Ímpeto (impetus), 609 Interlocutória mera, 602
Governo económico, 62, Impúberes, 621 Interpretação
67 Imputabilidade (penal), (testamento), 423
Governo político, 68 608 Interpretação textual, 170
Graça, 66, 118, 394, 501, In diem addictio, 481 Interpretação usual, 170,
677 In nexum dare, 547 171
Grandes, 242 Incitamento, 650 Inventário, 427, 456
Gratidão, 464 Incorporação (nos bens da Ira, 609, 647
Gratidão (dever de), 275 coroa), 99 Irregularidades canónicas,
Graus (de parentesco), 445 Indissolubilidade, 264 121
Graus (de parentesco), 435 Individualismo, 439 Isentos, 136
Guerra (como título de Indivídualismo, 681 Iudicium, 42, 65
escravização), 210 Indivisibilidade, 341 Iura ad rem, 352
720
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Iura rusticorum, 226, Consulte Jusracionalismo, 462, 471, longuíssimo tempo, 371
Rústicos 560 Lotarias, 530
Iurisdictio, 21 Jusracionalistas, 510 Louvados ou avaliadores,
iurisdictio ecclesiastica Justiça, 63 457
adventicia, 129 Justiça (centralidade da), Lucro, 502
iurisdictio ecclesiastica 35 Lucros cessantes, 548, 551
essentialis, 128 Justiça e poder político, 35 Lutuosa, 143, 435
Ius ad rem, 309 Justo preço, 513 Lutuosas, 140
Ius in re, 309 Laudémio, 379, 388, 390 Magistrados (deontologia),
Ius publicum (alcance), 47 Legados, 427 660
Jogo, 305 Legados pios, 411, 416 Magistrados e oficiais (dos
Jogo (contrato de), 528 Legis actiones, 556 concelhos), 53
Judeus, 211 Legítima, 433 Magistraturas ordinárias e
Jugadas, 79, 337, 343 Legítima defesa, 648 delegadas, 198
Jugadas (isenções), 343 Lei, 155 Maiores, 258
Jugadas (livros de), 343 Lei (Santo Isidoro de Malefício, 543
Juiz (Officium mercenarium), Sevilha), 152 Mamposteiros dos cativos,
573 Lei declaratória, 451 211
Juiz (officium nobile), 573 Lei Mental, 94, 248, 341, Mancipatio, 509
Juiz (poder discricionário), Consulte Senhorios Mandato, 506
555 Lesa-majestade, 387, 642 Manumissão (e
Juiz competente, 573 Lesão, 513 naturalidade), 225
Juiz das Três Ordens Lesão enorme, 400, 474, Manumissão tácita, 210
Militares, 578 478 Marca de ferro quente, 676
Juiz dos feitos da coroa da Lesão enorme (sociedade), Margens, 333
Casa da Suplicaçâo, 136 525 Masculinidade, 108, 110,
Juiz dos órfãos, 427 Letra de câmbio. Consulte 441
Juízes (corrupção), 181 Câmbio Masculinidade (morgados),
Juízes (dos concelhos), 55 Letras de câmbio, 591 446
Juízes de fora, 61, 62, 71 Lex Aquilia de damnis, 610 Massa falida, 306
Juízes delegados, 574 Lex commissoria, 481 Matos maninhos, 337
Juízes ordinários, 59, 573 Lex Rhodia de jactu, 544 Matrimónio. Consulte
Juízo, 570 Lezírias e pauis, 80 Casamento
Juízo (ordem de), 580 Libella famosa (escritos Matrimonium ratum et
Julgamento contra direito, difamatórios), 647 consumatum, 268
661 Libelo (processo criminal), Maus tratos (como causa
Juntas, 68 621 de separação), 268
Juramento, 393, 464, 500, Libelo ou petição inicial, Meação ou dimidia, 400
591, 655 583 Mecânicos, 242
Juramento de calúnia, 619 Liberal, 490 Médico (responsabilidade),
Jurisdição (avocação), 574 Liberalidade, 464 649, 650
Jurisdição (conceito), 36 Liberdade, 150 Médicos, 241
Jurisdição (graus), 39 Liberto, 219 Meia anata, 327
Jurisdição (senhorial), 96, Libertos, 215 Meninos (pueri impuberes),
107 Linha, 445 254
Jurisdição (teoria da), 35 Linha transversal, 439 Menores, 286, 609
Jurisdição Linhagem, 110, 236 Menores (capacidade
compromissória, 580 Linhas familiares, 281 jurídica), 256
Jurisdição delegada, 44, Linhas paterna e materna, Menores (crianças), 252
174, 198 434 Menores (responsabilidade
Jurisdição dos concelhos, Litem suam facere, 659 penal), 257
53 Livros de contas, 591 Menoridade, 265
Jurisdição intermédia, 601 Livros jurídicos, 9, 12 Mesa da Consciência e
Jurisdição ordinária, 43 Locação, 381, 517 Ordens, 89, 130
Jurisdição ordinária e Locação (e parceira, Mesas de justiça, 136
delegada, 43 sociedade), 517 Ministerium, 175, 325
Jurisdição prorrogada, 574 Locação de obras ou Miseráveis, 243
Jurisdição voluntária, 131 serviços, 521 Misericórdia de Lisboa,
Jurisdictio quasi delegata, Locação de serviços, locatio 145
580 conductio operarum, 518 Missionação, 166
Juristas (poder social), 553 Locupletamento à custa Mistura (commixtio), 366
Juros, 399, 501 alheia, 546 Mitra, 136
721
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
723
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
725
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
726
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
Índice sistemático.
1 Introdução. 3
1.1 Apresentação. 3
1.1.1 “Uma sociedade construída sobre o direito”. 3
1.1.2 Como reconstruir o direito antigo ? 5
1.1.3 Uma tradição jurídica, na Europa ? 6
1.1.4 Pluralidade de direitos, pluralidade de tradições. 7
1.1.5 A tradição livresca do direito comum tardio da Europa do Sul. 8
1.1.6 Um direito doutrinal. 11
1.1.7 O impacto social do direito letrado. 12
1.1.8 Que ordem expositiva ? 14
1.1.9 Os vários níveis da “descrição”. 16
1.1.10 A “contextualização”. 18
1.1.11 O aparato crítico e os instrumentos de leitura. 19
1.1.12 O modelo corporativo do direito e do poder. 20
1.1.13 Conclusão. 24
1.2 Abreviaturas. 25
1.3 Indicações sobre fontes. 27
1.3.1 Sistematização e forma de citação do Corpus Iuris Civilis. 27
1.3.2 Sistematização e sistemas de citação do Corpus Iuris Canonicis. 27
1.3.3 Fontes de história jurídica on-line. 28
2 As jurisdições e o direito. 35
2.1 A ideia de jurisdição. 36
2.2 Espécies e graus. 37
2.2.1 O legado da ideia de imperium. 40
2.3 Jurisdição ordinária e delegada. 43
2.3.1 O público e o privado. 45
2.4 A jurisdição dos concelhos, da coroa e da Igreja. 50
2.4.1 Os concelhos. 50
2.4.1.1 Os fundamentos doutrinais da autonomia de governo das comunidades territoriais 50
2.4.1.2 Posturas, costumes locais e lei 52
2.4.1.3 Jurisdição concelhia e jurisdição senhorial. 53
2.4.1.4 Magistrados e oficiais dos concelhos. 53
2.4.1.5 Dimensões do autogoverno 59
2.4.1.6 O controlo do centro. 60
2.4.1.7 O poder municipal nos fins do Antigo Regime 61
2.4.2 A administração da Coroa. 64
2.4.2.1 O modelo jurisdicionalista do poder. 64
2.4.2.1.1 A Justiça. 64
2.4.2.1.2 A Graça. 66
2.4.2.1.3 O governo económico. 67
2.4.2.1.4 O governo político. 69
2.4.2.2 Administração periférica da coroa 71
2.4.2.2.1 Os oficiais de justiça. 72
2.4.2.2.1.1 Os juízes de fora. 72
2.4.2.2.1.2 Os corregedores. 73
2.4.2.2.1.3 Os provedores. 76
2.4.2.2.2 Os oficiais da fazenda. 78
2.4.2.2.3 Os oficiais da milícia. 80
2.4.2.2.4 Administração dos próprios da coros da coroa 80
2.4.2.3 A administração central 82
2.4.2.3.1 Casa Real. 82
2.4.2.3.2 Secretários. 83
2.4.2.3.3 Conselho de Estado. 84
2.4.2.3.4 Conselho de Portugal. 85
2.4.2.3.5 Desembargo do Paço. 85
2.4.2.3.6 Casas da Suplicação e do Cível. 86
727
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
734