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António Manuel Hespanha

Como os juristas viam o mundo. 1550-1750.


Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos, ações e crimes

2015
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Este livro constitui uma descrição do direito comum europeu, tal


como ele vigorou em Portugal dos meados do séc. XVI aos meados
do séc. XVIII. Tratava-se de uma sofisticada construção de juristas
letrados, a partir da qual se estabeleciam regras para a vida de todos
os dias. Mas também de uma imagem consistente do homem e da
sociedade. A sociedade da Europa latina assentou duradouramente
sobre este modelo de vida, com o qual se media a si mesma e passou,
desde esta altura, a medir também outras sociedades do mundo.

O livro foi escrito a pensar nos investigadores de história geral e nos


arquivistas, cujas dúvidas, ao lidar com as figuras do discurso dos
juristas, não tem sido adequadamente respondidas. Que lhes seja útil
e que outros também o possam aproveitar.

António Manuel Hespanha (n. 1945) é historiador e jurista, com obra


nas áreas da história moderna e contemporânea e da teoria do direito.

Copyright © by António Manuel Hespanha

Como os juristas viam o mundo. 1550-1750. Direitos, estados, pessoas, coisas, contratos,
ações e crimes
Edição impressa:
ISBN-13: 978-1508797524
ISBN-10: 1508797528

Lisboa 2015

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

1 Introdução.
1.1 Apresentação.
1.1.1 “Uma sociedade construída sobre o direito”.
§ 1. Será útil para a historiografia geral ter em conta as leituras jurídicas da
sociedade, neste caso da sociedade da primeira época moderna ? Este livro parte de
uma profunda convicção de que sim. Tradicionalmente, em contrapartida, os
historiadores tendem a achar que não, sobretudo porque acham que o direito lida
com formas e formalidades, ao passo que a história deve tratar do estofo e miolo
das relações humanas. Na minha opinião, esta ideia tem pouco de correto e, por
isso, pensei que era útil propor aos historiadores este desafio de, por uma vez,
olharem o mundo da forma como os juristas o faziam.
§ 2. Certamente que a visão jurisdicista do mundo corresponde a uma
construção intelectual. O mundo dos juristas, mais do que “O Mundo”, é o seu
mundo, embora eles tendam a crer piamente que fora desse seu mundo não há mais
mundo (quod non est in libris non est in mundo). Isto não tem nada de singular. Passa-se
com os economistas, com os matemáticos e os físicos, com os médicos, e também
com os poetas. Todos criam muito mais do que descrevem e todos têm a tendência
para desvalorizar esses momentos fundamentalmente criadores das suas versões do
mundo. Os historiadores – que, também eles, criam o passado à medida que o
contam –aspiram a encontrar, na sua pureza original, na sua verdade em bruto, as
coisas “como elas realmente se passaram” e frequentemente desconfiam destas
narrativas em segunda mão, sobretudo se elas são muito senhoras de si. E as dos
juristas, de facto, são arrogantemente autossuficientes, envolvendo a sociedade
numa armadura de conceitos e de fórmulas que explicam tudo e se explicam a si
mesmos. No entanto – afastada que for a antipatia que tais certezas pomposas nos
suscitam -, estas construções intelectuais não apenas revelam bastante bem aspetos
muito importantes do funcionamento das sociedades, como nos dizem muito
acerca da própria lógica com a qual constroem as suas imagens do mundo. Com o
rigor analítico do seu saber – comparando, definindo, distinguindo, e prosseguindo
nisto até à exaustão - os juristas fornecem minuciosos planos de pormenor da
organização e do funcionamento da sociedade. E, depois, ao discutir e justificar as
suas conclusões, revelam o universo de pontos de vista, de argumentos e de razões
que podiam convencer os seus contemporâneos. Ou seja, os juristas descrevem
muito detalhadamente o mundo e muito exaustivamente as razões que movem o
mundo; o seu mundo, claro, e as suas razões para o movimento do mundo. Porém,
como o seu saber é organizado para intervir, como é um saber prático, como visa
dirigir comportamentos, e dirigi-los pelo convencimento, as suas proposições e as
suas razões têm que suscitar os consensos, propondo coisas possíveis, se possível
agradáveis, baseadas em razões prováveis. O enraizamento da visão jurídica do
mundo pressupõe este contínuo trânsito entre a “cultura” de um grupo e a
“natureza” de todos, estas permanentes apropriação cultural da “natureza” e
“naturalização da cultura”1.

1 Abordei estes temas, do ponto de vista da história do direito, em Cultura jurídica europeia […],

cit., maxime, cap. 2; na teoria do direito, em O caleidoscópio do direito […], cit., caps. 1.1. e 11.4.

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§ 3. Um colega informático com quem trabalhei, há anos, em projetos de


construção de sistemas periciais na área do direito costumava dizer que o direito era
o software das sociedades. A afirmação parecia-me exagerada, sobretudo se se
considerasse que o direito era apenas a lei. Mas havia aí bastante de verdade. Se
conhecermos o direito, em toda a complexidade dos seus diversos níveis e
interações internas, podemos perceber razoavelmente bem o rumo que as coisas
tomam no mundo da vida. Percebemos, pelo menos, a regra, aquilo que acontece o
mais das vezes (id quod plerumque accidit). Que acontece porque uma norma jurídica o
impõe, que acontece porque queremos evitar essa imposição, ou que acontece
porque o direito nos foi criando quadros mentais que nos levam a fazer de certa
forma os cálculos de vida ou a agir e a reagir segundo certos padrões.
§ 4. Nem se julgue que isto é específico dos nossos Estados de direito.
Noutras épocas da cultura europeia esta conformação da interação social pelo saber
dos juristas foi, porventura, ainda mais forte, porque o direito compreendia então
esferas normativas que hoje já lhe escapam, como a religião, a moral, a prudentia, a
virtude. Claro que há os transgressores, ou mesmo uma cultura da transgressão.
Mas, mesmo estes, por regra, procuram uma causa regular de justificação, uma versão
alternativa do direito. E os juristas – que têm um horror à rebeldia pura ou ao mero
arbítrio – são muito generosos em formular normas que isentam de outras normas.
No mundo que vamos descrever neste livro, para além das normas excecionais, da
correção do direito estrito pela equidade e pela graça, da derrogação de uma norma
pelo costume de fazer as coisas de outro modo, encontraremos a dispensa da lei
que, num caso particular, permitia que, legalmente, se não cumprisse a lei. O direito
estava, assim, por todo o lado, prevendo, disciplinando, regulando, enquadrando a
indisciplina, orientando o olhar, propondo nomes para as coisas, educando a
avaliação. Uma “sociedade construída sobre o direito”, tal como escreveu Aaron
Gurevič (Categories of Medieval culture, 1985).
§ 5. Por outro lado, tal como acontece com todos os especialistas, os juristas
viam coisas lá só deles, mas que acabavam por indiciar questões que tocavam a
todos, mas de que nem todos se apercebiam. Ao escrever este livro, verifiquei que,
para os juristas portugueses dos finais do séc. XVI, havia uma questão dramática
relativa ao equilíbrio e continuidade da sociedade portuguesa. A “questão da
independência” ? A crise do império oriental ? A “ameaça judaica” ? Não. A mais
viva polémica entre os grandes juristas da época – em que eles perdem a habitual
compostura e se ameaçam mutuamente com o Inferno – era … a renovação da
enfiteuse. Este tema, que não tem interessado por demais os historiadores da
sociedade e do poder, era descrito por estes especialistas no estudo e decisão das
grandes tensões da comunidade como uma questão crítica, em que a sociedade
podia soçobrar. Uma delas explica que, vistas bem as coisas, a sociedade portuguesa
era uma grande e única enfiteuse, pois todos os bens e rendimentos eram
concessões de outrem, dependentes de renovação; e, por isso, tudo o que dissesse
respeito à renovação da enfiteuse afetava todo o tecido social, não só porque os
prazos eram muito comuns, mas também porque a sua estrutura era semelhante à
de muitas outras cedências precárias de bens e direitos. Tudo quanto afetasse a
estabilidade das expetativas de foreiros afetava, pela semelhança estrutural da
questão, todo o tecido social. Outros discordavam, realçando antes os interesses
dos senhorios concedentes em disporem livremente dos seus bens. Mas os seus
argumentos também evidenciavam a suprema importância da questão.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Provavelmente, sem o estudo desta discussão – que encerra aspetos bastantes


técnicos -, a valorização adequada desta tensão política e social não seria possível. E
o mesmo acontecerá com outras questões sociais encobertas por detrás de
discussões aparentemente livrescas e formalistas dos juristas letrados
1.1.2 Como reconstruir o direito antigo ?
§ 6. Este uso do direito como fonte de informação sobre as sociedades
modernas debate-se, porém, com a dificuldade de que, sendo o direito um domínio
carregado de tecnicismos, os historiadores não juristas costumam encontrar-se de
mãos vazias para entender as fontes jurídicas. Nas mais das vezes, procuram livros
de direito atual para colmatarem os seus défices de informação. O que – já lá
voltarei – é o pior dos remedeios, pois os leva a aprisionar o passado nas categorias
do direito de hoje. Aos meus alunos ou aos meus orientandos costumo indicar
alguns remédios para isto. Aconselhava-lhes a leitura das Institutiones iuris de Pascoal
de Melo2; ou então, as anotações a elas, de Lobão 3. Mas este recurso também
coloca delicados problemas de anacronismo.
§ 7. Pascoal de Melo era um assumido reformista, sem grande respeito pelos
juristas portugueses que tinham escrito antes dele. Frequentemente, a versão que dá
do direito português difere completamente do que antes dele constituía a opinião
comum. E, por isso, não pode ser tomado como uma fonte segura para o direito
anterior, nem porventura mesmo para o direito doutrinário mais praticado na
segunda metade do séc. XVIII. Destacava muito o direito do reino (direito
“municipal”, como preferia chamar-lhe), sobretudo para sublinhar que o direito
comum não era universal, mas apenas um desenvolvimernto de um outro direito
municipal, o romano. Como também dava muito mais força à ideia de que a
tradição devia ser filtrado pela razão. O seu tratamento do direito sucessório pode
servir de exemplo deste seu forte pendor para a subversão da tradição. Aí, ele
afasta-se da doutrina comum até então, ao defender o primado da ordem sucessória
natural, baseada nos sentimentos de amor e de piedade, sobre a disposição
sucessória voluntária, reduzindo o testamento a uma forma subsidiária de dispor
dos bens. Porém, havendo disposição testamentária, defende o primado da vontade
do testador sobre as formalidades “supersticiosas” dos romanos (necessidade de
instituição de herdeiro e de deserdação expressa). Por seu lado, o desfavor do
direito canónico e da validade (simplificada) das deixas piedosas rompe com a
tradição canonística de privilegiar os “testamento eclesiástico” e as deixas a favor da
alma. No direito processual, nota-se o mesmo corte: afasta o sistema romano (e do
direito comum clássico) de ações processuais tipificadas, com regimes processuais
específicos (quanto ao libelo, aos prazos, à prova, aos efeitos), com base no
princípio de direito pátrio de que, no libelo, não se tinha que indicar o nome da
ação, mas apenas expressar o que se pedia (pedido) e com que fundamento (causa

2 Pascoal [José] de Melo [Freire dos Reis], 1738-1798, Institutiones iuris civilis lusitani, Coimbra,

Typ. regalis Academiae scientiarum, 1789 (1 e 2:http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/7835.pdf;


3 e 4, http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/7703.pdf). Versão portuguesa (de Miguel Pinto de
Menezes): http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1563.pdf; Id. Institutiones iuris criminalis lusitani,
Coimbra, Typ. Regalis Academiae scientiarum, 1794. Versão portuguesa (de Miguel Pinto de Menezes):
http://www.fd.unl.pt/Anexos/Investigacao/1012.pdf.
3 Manuel de Almeida e Sousa (de Lobão), 1744-1817, Notas de uso practico, e criticas, addições,

illustrações e remissões [a Mello], Lisboa, Imprensa Nacional, 1818.

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de pedir). Escolhemos estes dois exemplos, por não serem tão evidentes como a
completa autonomização do direito público ou do direito criminal, mais
frequentemente referida. Mas este estilo de renovação, de reforma e de recusa do
direito anterior encontra-se por toda a sua obra. Lobão, muito mais conservador e
apegado à jurisprudência tradicional, pode compensar um tanto o reformismo de
Pascoal. Mas também não deixa de adaptar à sua cultura jurídica e à sua
mundividência a lição dos antigos juristas.
1.1.3 Uma tradição jurídica, na Europa ?
§ 8. Estas ilusões acerca da tradição, que aqui conto desta forma breve e
apenas exemplificativa, são, afinal, a manifestação, no plano da prática da
investigação, de um conhecido problema teórico: a crítica da ideia de continuidade. A
confiança nas categorias jurídicas do presente ou a necessidade de as justificar
levaram a crer que a história do direito ocidental se podia descrever como um
processo contínuo de construção da dogmática de hoje, em que os conceitos
estruturantes atuais ou sempre tinham existido ou se tinham progressivamente
desenvolvido. Com isto, o direito atual poderia reivindicar-se de uma história, se
não de dois mil anos, pelo menos de um milénio 4.
§ 9. No entanto, houve, ao menos, esta rutura a que agora me refiro, a do
iluminismo jurídico. Podemos avaliar a sua dimensão desde logo pelo novo estilo
de livros jurídicos que trouxe para primeiro plano, as Institutiones ou manuais
elementares5, de que as de Pascoal de Melo são um magnífico exemplo. Trata-se de
livros totalmente distintos dos anteriores livros jurídicos. Para começar, no formato
(in octavo) e no volume (apenas umas poucas centenas de páginas pouco densas).
Depois, na estrutura do discurso, organizado e argumentado de forma sistemática,
com os títulos a começar por uma definição, cujos elementos se iam analisando em
sucessivos parágrafos. Finalmente, no conteúdo, pautado por uma atitude
frequentemente problematizadora das fontes de autoridade e crítica em relação ao
direito estabelecido. Para justificar a rutura com o direito vigente, usa-se às vezes a
retórica da necessidade de retorno às fontes, ou a um mítico direito romano
clássico ou aos autores renascentistas, que já o tinham procurado. Mas, noutros
contextos, mesmo este direito exemplar é apresentado como produto de possíveis
superstições. Apesar de os compêndios serem a exceção nos primeiros anos da
reforma, eles apareceram na generalidade das cadeiras “sintéticas”, que eram as
centrais na formação dos estudantes, e com isto moldaram a cultura jurídica das
gerações vindouras. O direito – tal como os livros jurídicos – nunca mais serão o
que tinham sido. O “romanismo” do séc. XIX – visível tanto na pandectística
como na doutrina francesa posterior à codificação – têm muito pouco a ver com o
“romanismo” dos juristas do direito comum.
§ 10. A rutura iluminista é, portanto, um primeiro óbice a que se fale de uma
tradição jurídica na Europa. Realmente, esta não foi a única rutura que perturbou a
linearidade do tempo jurídico ocidental. Apesar da discrição com que isso aparece

4 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia […], cit., maxime 3.5 e 3.6.
5 Cf. sobre este género literário: Klaus Luig, “Institutionslehrbücher des nationalen Rechts im 17.
und 18. Jahrhundert”, Ius commune, 3(1970) - http://data.rg.mpg.de/iuscommune/ic03_luig.pdf;
Johannes-Michael Scholz, “Penser les Institutes hispano-romaines”, Quaderni fiorentini per la storia del
direito moderno, 8(1979), 137-178 (http://www.centropgm.unifi.it/quaderni/13/letture.pdf);

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

nas fontes, a “receção” do direito romano fora também uma rutura, marcada por
uma extensa descontinuidade no enquadramento das práticas sociais pelo direito e
seu saber. Os magistrados medievais já não eram os magistrados romanos, nem os
bizantinos. O processo já não se estruturava como no tempo dos pretores. Os
contratos já não estavam condicionados pelos formalismos do direito clássico. A
família ou o testamento obedeciam a outras lógicas. A punição dos crimes já não
obedecia às peculiaridades do processo – quase extrajurídico – dos romanos. Os
juristas continuavam a referir-se aos institutos, aos magistrados, às peripécias
processuais do direito romano clássico, que encontravam no textos do Digesto,
mas o sentido das suas reflexões já não era o de encontrar soluções normativas.
Justamente, um outro problema metodológico do trabalho do historiador é o de
saber o que estavam estes juristas a fazer quando se perdiam em divagações e
distinções ligadas a institutos jurídicos que já não existiam6: estavam presos a
antigas rotinas textuais ?; ocupavam-se de investimentos meramente simbólicos,
que demonstrariam a sua erudição e o seu saber ?; construíam estratégias de
ampliação do campo de indeterminação do direito e, com isso, aumentavam a
importância social dos juristas, como decisores dos litígios ?; preparavam distinções
e desenvolvimentos dogmáticos ?
§ 11. Mesmo depois da reforma dos estudos de Coimbra, a tradição jurídica
letrada luso-brasileira não se unificou completamente, pois é possível identificar, ao
lado de uma fileira de juristas que aceitam globalmente a reforma iluminista e a
combinam, depois, com as inovações do Code civil francês de 1794 (como Melo
Freire e Coelho da Rocha), uma outra que permanece mais fiel à tradição da
praxística, combinada com a influência do conservador código prussiano de 1794
(como Rocha Peniz, Lobão, Correia Teles e Teixeira de Abreu).
1.1.4 Pluralidade de direitos, pluralidade de tradições.
§ 12. Se suspendermos a visão de uma tradição jurídica ocidental, muitos
direitos e muitas tradições aparecerão no espaço europeu. Desde logo, as tradições
dos direitos locais não letrados, a que já o jurista Odofredo, no séc. XIII, se referia
como chocantemente alheias ao espírito do direito dos académicos (“escritos por
burros”, Odofredo, In Dig. Vet. I. 3 de leg. et senatuscons.). Por outro, as tradições
jurídicas reinícolas que, partindo embora do direito comum, incorporavam fontes
importantes do direito dos reinos, como o Liber judicum, as Siete Partidas, as
Ordenações portuguesas ou as Leis de Toro. Ou ainda as tradições de julgar de um
tribunal superior, como o alegado direito anglo-saxão a que se referia a tradição
jurisprudencial inglesa; ou como os estilos da Casa da Suplicação ou das diversas
relações portuguesas, nomeadamente quando este estilo tivesse sido objeto de
recolha, de tratamento doutrinal e de publicação, como aconteceu com o estilo da
Casa da Suplicação, tratado por Manuel Mendes de Castro7 ou João Martins da

6 O que levanta uma questão a montante: o que é “existir”, para uma norma ou um princípio

jurídico? Num certo sentido, estes institutos ou figuras dogmáticas romanos a que os juristas europeus
continuam a referir-se existem, embora não como normas que se aplicassem na prática (em que prática
é que não se aplicavam ? não, decerto, na prática discursiva, pois continuavam a ser figuras do discurso
dos juristas …).
7 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana, advocatis, judicibus, utroque foro quotidie versantibus […],

cit..

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Costa8. Abaixo destas tradições jurídicas à medida das realidades políticas oficiais
dos reinos, as tradições dos direitos “populares”, nomeadamente das comunidades
marginais ao mundo do direito oficial e letrado, a que os contemporâneos
chamavam de “direito dos rústicos” (iura rusticorum)9 e de que ainda falaremos.
§ 13. Em suma, a ideia de uma tradição jurídica europeia, se pode fazer algum
sentido no âmbito de uma história mundial do direito, dificulta a visão de muitos
elementos de diferenciação que são necessários para contar uma história do direito
ocidental. Para além das vantagens historiográficas de rigor, o sublinhar da
pluralidade de tradições jurídicas (nomeadamente, na Europa) evita que a história
do direito europeu se oriente no sentido de legitimar uma política de unificação
(globalização) do direito privado europeu com base numa alegada tradição jurídica
comum10.
1.1.5 A tradição livresca do direito comum tardio da Europa do Sul.
§ 14. Este meu projeto de escrever uma espécie de “manual” da fase epigonal
do direito comum da Europa sul-ocidental transformou em perplexidades concretas
algumas das dificuldades metodológicas que eu já tinha identificado em abstrato.
Contarei, de seguida, como foi que certas questões teóricas me apareceram agora
sob a forma de indecisões de método.
§ 15. O objetivo do meu projeto era, como disse, o de facultar um panorama
do direito tal como ele aparece na literatura jurídica portuguesa anterior ao
iluminismo, tal como era presumivelmente aplicado nos tribunais e tal como era
vivido pela generalidade das pessoas. Dada a pluralidade de tradições jurídicas na
história do direito europeu e, por isso, a pluralidade de esferas em que elas se
desenvolvem e às quais se referem, é preciso definir o âmbito de validade deste
direito de que me vou ocupar.
§ 16. Parece importante salientar, desde já, que me refiro a um direito culto, a
um direito de uma elite de juristas letrados. A doutrina jurídica que lhe corresponde
está muito estreitamente dependente da doutrina do direito comum continental
europeu (ius commune), essa imponente massa doutrinal e dogmática que dominava a
cultura jurídica das faculdades de direito e dos tribunais letrados na Europa
Ocidental. Lendo as referências dos escritores portugueses constata-se que, no
universo desta tradição literária, estavam muito presentes os autores italianos dos
sécs. XII a XIV e os que, mais recentemente, tinham escrito sobre direito no
ambiente das universidades e dos tribunais das grandes monarquias do Sul da
Europa, nomeadamente da Espanha, de Portugal, dos Estados papais e, bastante
menos, da França. Os autores alemães rarissimamente aparecem e, ainda menos, os

8 João Martins da Costa, Styli, supremique Senatus consulta […], cit..


9 V. Bartolomé Clavero, “Gracia y Derecho entre Localización, Recepción y Globalización […]”,
em que critica um meu possível fascínio pela tradição jurídica letrada); v. em todo o caso, a minha
Cultura jurídica europeia [cit.], maxime 7.2.6 a 7.2.11, onde levo em conta os seus reparos
10 Cf. Reinhard Zimmermann, Roman law, contemporary law, European law. The civilian tradition today,

Oxford University Press, 2001. Sobre o tema, mas sem intenções atualistas tão claras, Peter Stein,
Roman Law in European History, Cambridge University Press. 1999. Crítica:Tommaso Pavone, “A Critical
Review of Reinhard Zimmerman’s Roman Law, Contemporary Law”, 2014, in
http://tommasopavone.yolasite.com/resources/Zimmerman-Roman%20Law, %20Contemporary%
20Law, %20European%20Law%20%28Critical%20Review%29.pdf.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ingleses. Não ignorando que existiam diferenças regionais nesta doutrina jurídica,
ela apresentava-se, no seu conjunto, como um património comum e
individualizador das duas grandes penínsulas da Europa ocidental e, parcialmente,
também do reino de França. Em termos culturais, este território correspondia ao da
Europa católica pós-tridentina, simplificando, da Europa do Sul.
§ 17. Para caraterizar com mais rigor este universo literário de referência,
recorri a um breve estudo estatístico de há uns anos acerca das citações de um
tratado sobre as especificidades que o autor considerou como as mais notáveis do
direito português11. Entre os autores aí mais citados aparecem os principais
decisionistas portugueses de seiscentos (nomeadamente, Álvaro Valasco, Jorge de
Cabedo e Melchior Febo), o comentarista Manuel Barbosa, os grandes tratados
monográficos italianos da viragem dos sécs. XVI para XVII (Prospero Farinacio,
Giulio Claro, Roberto Maranta, Giacomo Menochio), a par com Bártolo. Num
gráfico, o conjunto dos autores citados, ventilados pela nação do autor citado e o
século da sua morte 12, evolui assim:
100%
90%
80%
70% Espanhóis
60%
Italianos
50%
40% Portugueses
30%
Outros (sobretudo,
20% franceses)
10%
0%
Séc. XV % Séc. XVI % Séc. XVII % S. XV-XVII
%

§ 18. Deduzo deste breve exame que o universo de referências dogmáticas


deste direito de que me ocupo é o universo de livros jurídicos impressos no Sul da
Europa na segunda metade do séc. XVI e na primeira do séc. XVII: os últimos dos
comentadores e os pós-comentadores italianos, os mais importantes juristas
castelhanos, catalães, napolitanos e romanos, alguns franceses e praticamente
nenhuns alemães ou norte-europeus. Embora Bártolo e Baldo (bem como os mais
clássicos dos seus mestres ou contemporâneos) ainda sejam muito citados, o
aparecimento da imprensa jurídica na viragem do séc. XV para o XVI tinha
mudado a face do arquivo textual dos juristas. Claramente, os “modernos” tinham
varrido as gerações anteriores de “autoridades”. O novo mundo da edição jurídica

António Manuel Hespanha, “Direito moderno e intertextualidade. […]”, cit..


11

Escolhemos a data da morte porque, ao utilizar o século como intervalo, esta é a mais próxima
12

do momento da grande divulgação da sua obra.

9
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era agora povoado de autores profissionalmente ativos nas universidade e nos


tribunais superiores dos principados modernos, autores de coleções de consilia ou de
decisiones. Os novos repositórios do saber jurídico são agora os grandes tratados
enciclopédicos como os dos cardeais Domenico Toschi (Conclusionum practicae, 1605
a 1608) e Giambattista de Luca (Theatrum iustitiae et veritatis, 1669-77) ou, no
ambiente ibérico, os tratados de justiça e do direito, de Domingo de Soto, Luís de
Molina, ou as obras congéneres de Francisco Suarez, Fernão Rebelo ou Baptista
Fragoso, para além dos juristas “dicionaristas”, como o português Agostinho
Barbosa.
§ 19. É de presumir que a literatura citada muito raramente fosse toda ela
efetivamente compulsada pelos juristas ou pelos juízes. Guias dos estudos jurídicos
para esta época13 dão indicações sobre os livros que um jurista devia ter à mão. E as
suas listas são muito mais curtas do que a daquilo que aparece citado. Os livros
eram caros, de difícil transporte e relativamente frágeis. Era normal que não
estivessem em todas as bibliotecas de juristas, mesmo nas daqueles que escreviam.
É certo que muitos deles (na verdade quase todos) estavam ligados a instituições
com boas livrarias, como os colégios universitários ou os grandes tribunais da corte.
Mas é muito provável que, na sua busca de “autoridades”, usassem obras de
referência, como os repertórios, os vocabulários ou os dicionários. Ou que
reproduzissem as citações doutrinais que encontravam em obras de uso mais
comum, como, no caso português, os comentários impressos às Ordenações14 ou as
recolhas de decisões dos altos tribunais do reino, publicadas entre o séc. XVI e os
meados do séc. XVII15. Como o estilo discursivo usado na época se estruturava a
partir de tópicos – ou seja, curtos textos que traduziam sucinta e expressivamente,
uma ideia apoiada por uma “autoridade”-, esta leitura fragmentada (pouco
arrazoada) das obras era suficiente para a generalidade das discussões jurídicas.
Uma discussão longa de um tema, cuja fundamentação exigisse a leitura de um livro
ou de um largo capítulo, raramente aparece.
§ 20. É justamente este estilo de trabalho dos juristas seiscentistas que sugere
e facilita a elaboração de um livro como este. Numa primeira aproximação, é
possível partir também de repertórios, de coleções de decisões e de comentários às
Ordenações. O embaraço que então surge é o de como passar desta narrativa
atomizada para um corpo expositivo articulado. Mas a essa cruz já me referirei.
Num caso ou noutro, haverá que buscar algum complemento em obras
monográficas. Se se trata de prerrogativas régias ou da sua doação dificilmente se
passará sem ter que se recorrer ao tratado de Domingos Antunes Portugal sobre as
doações régias; se se trata de ações e de processo, não se passará sem consultar a

13 No contexto dos livros usados em Portugal, Francisco Bermúdez de Pedraza, 1576-1655, Arte

legal para estudiar la Iurisprudencia, cit.; António de Sousa de Macedo, 1606-1682, Perfectus doctor in
quacumque scientia maxime in iure canonico & civili. […], cit., 1643; Jerónimo da Silva Araújo, Perfectus
advocatus, hoc est, tractatus de patronis, sive advocatis, theologicus, juridicus, historicus, et poeticus […], cit..
14 Nomeadamente, o de Manuel Barbosa, Remissiones doctorum ad contractus, ultimas voluntates, et

delicta spectantes in librum quartum, et quintum […], cit.; o de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana
[…], cit.; ou o de Manuel Álvares Pegas, Commentaria ad Ordinationes […], cit, este último já
monumental, mas cujo uso era facilitado pela existência de um índice que, só por si, já bastaria para
colher muitas referências: Manuel Álvares Solano do Vale, Index generalis […], cit..
15 Cf. Gustavo Cabral, Os decisionistas portugueses entre o direito comum e o direito pátrio, São Paulo,

Faculdade de Direito da USP, 2013.

10
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Practica de Manuel Mendes de Castro; ao descrever o direito criminal será quase


obrigatório consultar o comentário às leis de Toro de António Gomez. E, para
questões mais substanciosas de teoria, de filosofia ou de teologia do direito, os
tratados enciclopédicos de Luís de Molina ou de Baptista Fragoso são sempre
muito prestantes. Foi o que fiz. Com um plano expositivo na cabeça e um razoável
conhecimentos das sedes materiae e dos institutos-chave, lancei mão sobretudo de
dois repertórios: o Liber utilissimus […]¸ de António Cardoso do Amaral (1610), já
com algum princípio de estruturação sistemática nas suas entradas, mais encostado
ao direito comum (e, sobretudo, ao direito canónico) do que ao direito do reino; e o
Promptuarium juridicum, de Bento Pereira (1644), mais rico em referências ao direito
praticado nos grandes tribunais e à literatura decisionista que o analisava.
Subsidiariamente, usei os dicionários de Agostinho Barbosa (os Tractati varii, de
1631, e o Repertorium juris civilis et canonici, de 1689). Essas foram as portas de entrada
em literatura mais monográfica, por vezes necessária.
§ 21. Ter começado por esta literatura permitiu-me, creio eu, fazer o mesmo
que faziam os juristas da época. E, com isso, encontrar algo de muito próximo
daquilo que eles encontravam. Numa obra deste género, em que queremos dar
conta do direito mais praticado e não de alguma subtileza mais singular, procurar
usar os métodos usuais dos utilizadores da literatura estudada presumivelmente
ajuda a identificar o direito que efetivamente vigorava na esmagadora maioria das
situações.
§ 22. Com os meios que hoje temos, o trabalho destes materiais torna-se,
porém, mais fácil e mais produtivo do que o era há quatrocentos anos. As
referências para as fontes são facilmente identificadas e conferidas, pois essas
fontes estão hoje quase todas on-line, o mesmo acontecendo com quase toda a
bibliografia citada. A ocorrência de conceitos ou expressões técnicas deteta-se com
os motores de busca hoje correntes. Tirei partido de tudo isso para enriquecer o
meu corpus literário: procurei dar indicações precisas de fontes e de lugares, converti
os antigos modelos de citar nos hoje usados, citei frequentemente nas próprias
palavras, traduzindo do latim quando isso fosse muito necessário, mas deixando
frequentemente o texto original para colher o saber original e habituar ao latim.
1.1.6 Um direito doutrinal.
§ 23. Um outro esclarecimento refere-se ao facto de que a ordem jurídica que
vou descrever não era um conjunto de leis, mas um corpo de doutrina. Isto
surpreenderá muito os leitores para quem o direito seja a lei. Como explicarei, isso
não se passa, de forma nenhuma, com a ordem jurídica moderna, em que a
presença cada vez mais frequente da lei, produto da vontade do rei, não atribuía a
esta legislação real quase nenhum protagonismo. Mesmo em campos como o
direito penal, normalmente vistos como muito dependentes da vontade reguladora
dos reis, as leis apenas concretizavam aspetos de detalhe que a doutrina tinha
deixado imprecisos. Havia crimes sem lei e, ainda mais, penas sem lei (dependentes,
portanto, do arbítrio do julgador, o arbitrium iudicis). Se lermos, por exemplo, o
comentário de António Gomez às leis de Toro, logo verificamos que, apesar de ele
o organizar segundo a ordem dessas leis, toda a substância do seu trabalho está na
determinação do regime doutrinal dos crimes e das penas, como estava estabelecido
pela literatura do direito comum. E é isso que faz com que esta doutrina seja
seguida por cima das fronteiras dos reinos. Noutros casos, procurar direito legal é
mesmo inútil, porque ele não existe. Como se verá, as referências do principal da

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doutrina dos contratos é apenas doutrina, com remissões mais ou menos forçadas
para um direito romano que já não correspondia em quase nada – senão em frases e
brocardos - à dogmática jurídica moderna. E, por isso mesmo, é muito útil que uma
descrição do direito da época moderna coloque esta doutrina do direito – que
assusta pela sua magnitude e pela sua natureza aparentemente hermética – ao
alcance dos historiadores sem formação jurídica (e, também, dos juristas sem
formação histórica). Já agora, também os apressados tradutores que confundem law
com lei, dar-se-ão conta, se tiverem paciência para ler o livro, do disparate a que o
anglicismo conduz.
1.1.7 O impacto social do direito letrado.
§ 24. Ainda sobre o âmbito do direito aqui descrito. Este direito vigorava nos
livros, claro está. E, por isso, modelava a cabeça de quem os lia – professores da
universidade, estudantes, juízes e advogados letrados. Eventualmente seriam lidos
em diagonal por alguns escrivães e procuradores com poucos estudos jurídicos,
talvez apenas com estudos preparatórios para a universidade, ou mesmo apenas
sabendo ler e escrever. Este mundo era muito restrito, do ponto de vista social.
Social e politicamente, era o mundo de uma certa elite que frequentava livros.
Geograficamente, era um mundo quase exclusivamente urbano. No entanto, este
saber possuía certos trunfos para se disseminar.
§ 25. Por um lado, era um direito vazado num discurso feito de – como se
diria hoje – sound bytes, de brocardos, curtas frases que condensavam
expressivamente uma regra, que ficavam no ouvido, e que se tornavam num
instrumento muito acessível e eficaz também na comunicação oral. Mesmo que não
se fosse capaz de reproduzir toda a argumentação que levava à conclusão, ou que
não se pudesse identificar a fonte da sua autoridade, o brocardo valia pela sua
expressividade e por ser comumente aceite. Estes átomos do discurso letrado
colonizavam, assim, como vírus a comunicação fora do círculo restrito dos leitores
de livros, tal como as breves jaculatórias e os versículos disseminavam entre os
crentes o saber religioso contido nos livros santos. Um pouco mais extensas do que
os brocardos eram as fórmulas ou cláusulas, com as quais os notários formalizavam
nos documentos escritos a descrição de situações ou vontade das partes, de modo a
que elas pudessem valer em direito. Também aqui, este saber formular estava bem
longe de conter o saber jurídico. Muitos escrivães não saberiam dar conta do
porquê de descrever as coisas assim, com aquelas formulações quase sagradas. As
partes, muito menos. Mas estas formas estereotipadas de escrever iam embebendo
o discurso vulgar e insinuando o saber técnico que estava por detrás delas.
§ 26. Por outro lado, o suporte escrito garantia a esta literatura uma enorme
difusão espacial. Embora os livros de direito desta época – normalmente
volumosos in folio - não fossem muito transportáveis, nem o material de que eram
feitos fosse muito resistente a certos climas e a muitas pragas, o certo é que
encontramos livros de direito nas periferias, não apenas do reino, mas ainda do
império16. Isto garantia o conhecimento da tradição jurídica letrada nos confins

16 Cf. sobre bibliotecas de juristas, Nuno Camarinhas, “Bibliotecas particulares de magistrados no

século XVIII”, cit.; no “império”, Álvaro de Araújo Antunes, Espelho de cem faces […], cit.; alguns
dados sobre uma região “de fronteira”: Ivan Furmann, Cultura jurídica e transição entre colônia e império: a
experiência da ouvidoria de Paranaguá e Curitiba, cit..

12
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mais afastados, mesmo independentemente de aí existiram juristas. O livro era um


comunicador autónomo, valendo pelo conteúdo ou mesmo apenas pelo seu aspeto
grave e misterioso17. De alguma forma, a distância, a raridade e o hermetismo ainda
redobrava a sua eficácia comunicativa. A ideia de que toda a realidade e todo o
saber relevante estavam nos livros era expresso também num brocardo: quod non est
in libris (ou in actis, nos laudos processuais) non est in mundo”. Os juristas têm os
livros e os papéis como atributos caraterísticos. E, nesses livros e nesses papéis,
com os quais eles enchem os baús-estantes que costumavam acompanhar nas
viagens os juízes de fora e corregedores -, é este direito erudito que está contido e
que, por isso, viaja com eles. Uma escrita em latim, é certo. Mas então, porventura
mais do que hoje, o latim apenas velava a compreensão dos textos. As curtas frases
de que o discurso jurídico era feito traduziam-se com facilidade, tanto mais que o
vernáculo fora assimilando muitas palavras originariamente técnicas. Mas a sua
vestimenta latina ainda dava mais autoridade ao conteúdo, aproximando o direito
dos saberes religiosos.
§ 27. De qualquer modo, o direito de aqui trato não era todo o direito da
sociedade moderna. Nas periferias (não necessariamente em sentido apenas
espacial) do centro e nas periferias dos impérios existiam muitos outros direitos,
que esta literatura erudita claramente procura desvalorizar – nomeadamente sob a
etiqueta de “direito dos rústicos”18 ou, eventualmente sob a etiqueta um pouco
mais respeitosa de “direitos próprios” - e que, por isso, tendem a ser ignorados pela
historiografia jurídica. Periferias do centro eram, por exemplo, os pequenos
concelhos do interior de Portugal, providos apenas de juízes ordinários (ou “pela
Ordenação”), frequentemente analfabetos (v. § 711), aconselhados por assessores
também de poucas letras, tipicamente os próprios escrivães ou procuradores, os
rábulas e pequenos advogados de província, com magros conhecimentos de direito
culto. Nessas terras do fim do mundo, as visitas de magistrados letrados eram
muito esparsas e de curta duração. O corregedor ouvia as queixas que ousassem
exprimir-se, manuseava os registos dos escrivães, avocava uma ou outra causa, mas
não perturbava muito as quotidianas dinâmicas jurídicas locais. Em todo o caso,
deixava alusões ao direito letrado, recomendava o uso das Ordenações, puniria um ou
outro desrespeito mais abusivo do direito real e, com isto, recordava que um outro
direito existia, o qual, na pior das hipóteses, podia descer sobre a vida destas
modestas comunidades. Se não estava presente, o Leviathan jurídico era uma ameaça
impendente. Periferias do império eram, por exemplo, os sertões brasileiros,
semelhantes, na sua vida jurídica, àquelas zonas extremas do império espanhol tão
bem descritas recentemente por Alejandro Agüero19, onde este direito letrado
chegava pelas mesmas mediações de juristas de poucas letras, estudantes
fracassados de direito, práticos de escrita que também exercitavam nas
escrivaninhas dos tribunais locais.

17 Isto explica a existência de bibliotecas jurídicas “de aparato”, em que a desproporção entre o

número e tipo de livros e as virtualidade locais da sua utilização é evidente. Cf. Álvaro de Araújo
Antunes, Espelho de cem faces […], cit..
18 Cf. António Manuel Hespanha, "Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique",

cit..
19 Alejandro Agüero, “El testimonio procesal y la administración de justicia penal en la periferia de

la Monarquía Católica, siglos XVII y XVIII”, cit..

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1.1.8 Que ordem expositiva ?


§ 28. Passando a questões mais concretas. Elaborar uma descrição geral de
uma ordem jurídica exige muito mais do que colecionar pequenas notas sobre
institutos isolados uns dos outros. Importa dar às matérias um seguimento que
pareça lógico, respeitando proximidades e distâncias entre as matérias. Aqui é que
surgem os grande problemas quando se está a descrever um direito diferente do
nosso. Porque, ao descrever, se está, de facto, a ordenar, a estabelecer sequências, a
marcar as tais proximidades e distâncias, de acordo com padrões de ordem que são
os do narrador. E, com isto, a impor-se a compreensão que temos hoje do
ordenamento jurídico àquela que foi a dos que o viveram. A ousar redefinir, por
sobre o ombro dos autores-fonte, aquilo que pode ser inter-relacionado ou, pelo
contrário, não tem sentido que o seja. Tive que enfrentar essa questão, logo desde o
início.
§ 29. A tentação era grande de organizar a exposição segunda aquela ordem
que nos é familiar, a da pandectística alemã (parte geral, obrigações, direito reais,
família e sucessões); outros já o fizeram20. Porém - mesmo descontando os
problemas que iria ter ao querer incluir na descrição os temas daquilo a que hoje
chamamos direito público -, esta sistematização não teria nada a ver com a
organização das exposições gerais feitas na época, que sugeriam lógicas de
encadeamento muito diferentes, com as suas consequências na proximidade ou
distância entre figuras e institutos. Na verdade, também os antigos juristas
oscilaram bastante nos modos de organizar a descrição do direito 21. Eles próprios
tinham encontrado nas suas fontes sugestões diversas. A ordem de organização das
Institutiones não era a mesma do Digesto e esta também não era a antiga ordem do
Edictum do pretor que terá organizado os comentários dos juristas clássicos22. As
fontes de direito canónico (nomeadamente as Decretais e o Sexto) sugeriram novos
planos expositivos, a que se somaram ainda o das Partidas e, entre nós, o das
Ordenações. Realmente, o sistema “tripartido” de Gaio-Justiniano (pessoas, coisas,
ações) tinha as suas inconsistências. Desde logo, não dividia o direito em três
partes, mas em quatro (i. Justiça e direito. Pessoas. ii. Coisas; testamentos iii.
Herança; obrigações ex contratu. iv. Obrigações ex delicto; ações). Depois, a sua lógica
não era clara para os juristas modernos, que tinham dificuldades em explicar
algumas das suas opções. Quando esta ordem expositiva começa a parecer lógica,
isso deve-se ao facto de que se pressupunha que distinguir pessoas, coisas e ações
(ou obrigações) correspondia a identificar os elementos estruturais da relação
jurídica (sujeitos, objetos, vínculo relacional). Porém, originariamente, parece que a
sistematização era meramente “temática” e não “estrutural” 23. Não antecipava uma
sistematização derivada de uma análise estrutural do direito (sujeitos, objeto, relação

20 Por exemplo, Helmut Coing, Europäisches Privatrecht, Vol. 1: Älteres Gemeines Recht (1500–1800),

cit.. Trad. castelhana de António Pérez Martin, Derecho privado europeu […], Madrid, Fundación Cultural
del Notariado, 1996.
21 Sobre a ordem expositiva na tradição jurídica europeia ocidental, v. Mario Losano, Sistema e

struttura nel diritto, I: Dalle origini alla Scuola Storica, Giappichelli, Torino 1968 (trad. port. Sistema e estrutura
no direito. I. Das origens à Escola Historica, S. Paulo, Martins Fontes, 2008), maxime, 9 ss..
22 Reconstituição do Edictum: Otto Lenel (1849-1935), Edictum Perpetuum, 1883.

23 Ou seja, direito que tratava de pessoas, direito que tratava de coisas, direito que tratava de

ações ou obrigações.

14
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

jurídica). Era antes uma organização por temas (como os índices temáticos, por
oposição aos sistemáticos), racionalmente inconsistente, mesmo com a tripartição
anunciada. Isso não chocava os juristas de então porque, apesar da lógica
“sistemática” da literatura “elementar” ou “institucional”, não se tinha em vista
uma exposição demonstrativa, ordenada a definitione e desenvolvida ex genere et
diferentia. Assim, os juristas seiscentistas, como em geral não se preocupavam com
uma exposição sistemática das matérias, escapavam a esta indecisão, ou seguindo a
“ordem legal” (i.e. a dos livros e títulos da compilação de referência para eles) ou
desistindo de uma exposição sistemática e optando por descrições sob a forma de
dicionários. Sistemáticas são as exposições dos grandes teólogos juristas ibéricos do
séc. XVI. Mas elas mesmas não têm nem raízes nem ecos na literatura jurídica mais
quotidiana e, por isso, deviam parecer algo estranhas ou rebuscadas aos juristas
comuns.
§ 30. Perante estas hesitações e dificuldades, acabei por optar por um plano
expositivo próximo do das Institutiones, por ter uma raiz forte nos textos, desde logo
nos comentários a esse livro do Corpus iuris civilis. E, depois, por ter sido o primeiro
modelo a ser usado pelos juristas da época moderna que tentaram descrições gerais
do direito24. O modelo das Institutiones não é, porém, muito consistente para nós –
nem o foi para os juristas que o usaram na época moderna -, sinal de que alberga
lógicas expositivas do passado que ainda faziam sentido para os juristas pós-
clássicos ou bizantinos, mas que já pareciam bizarras para os juristas setecentistas
(como Arnold Vinnius, por exemplo, que tenta, no entanto, justificar as
incongruências). Para além disso, a ordem das instituições não permitiria incluir as
questões dogmáticas sobre fontes de direito (a não ser como uma espécie de
proémio ao livro I) ou as questões de direito penal, a menos que se inserissem na
sequência da secção dedicada às obrigações que nascem de delitos. Tivemos,
portanto, que improvisar um pouco, seguindo sempre a arrumação que nos parecia
ser mais sugerida pela literatura jurídica moderna. O que me agradou nesta
arqueologia da ordem – a que, em todo o caso, não prestei tanta atenção como o
tema merece, porque isso desviaria a intenção desta obra – foi chegar a resultados
que, sendo consistentes com as fontes, quebrem as evidências de hoje acerca de
como falar do direito e como expor ordenadamente as suas matérias. É justamente
nesses momentos em que as fontes nos surpreendem e nos propõem vizinhanças e
relações temáticas insuspeitadas que nos damos conta do caráter situado e arbitrário
da nossa maneira de encadear as matérias jurídicas e, por detrás disso, do nosso
modelo implícito de ordem do direito. Pensei então nos juristas com deficiente
formação histórica e em como lhes fará bem pôr aqui à prova as suas construções e
categorias pretensamente perenes.
§ 31. No âmbito de cada instituto, é difícil escapar ao método geométrico,
que começa pela definição e pela regra, como proposições breves (“regula est, quae
rem quae est breviter enarrat”, D.50,17,1), nas quais como que se contém já toda a
natureza da coisa. Em todo o caso, convém ter presente que este não era, para os
juristas antigos, um método tão evidente ou tão garantidamente eficaz como hoje
nos parece. Um texto do Digesto alerta para isso: “omnis definitio in iure civili
periculosa est: parum est enim, ut non subverti possit” [no direito da cidade, toda a
definição é perigosa, pois é raro que não possa ser desmentida] (D. 50.17.202). Mas,

24 Sobre o modelo das Institutiones v. as obras citadas de Klaus Luig e J.-M. Scholz.

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sobretudo, não era um modo geralmente usado de expor o regime de um instituto


jurídico. Se folhearmos, por exemplo, o Promptuarium iuridicum, de Bento Pereira
(1664)25 verificaremos que as entradas são concebidas como um repositório pouco
“ordenado” de curtos textos que tratam daquele tema, com uma sequência lógica
ou sistemática mínima dentro de cada entrada (por exemplo, quoad essentiam et
qualitates, quoad species, quoad valorem, quoad formam). Raramente o primeiro texto é
uma definição de que os seguintes sejam desenvolvimentos. Isto acontece mais
frequentemente no Liber utilissimus, de António Cardoso do Amaral (1610)26, em
que a abertura da entrada é, quase sempre, uma definição, seguindo-se uma divisão
ex genere et differentia, com alguma sequência “lógica”. Ou seja, o fio do raciocínio na
exposição de uma matéria não era o nosso. Mateus Gribaldo Mopha27 descreve-o
da seguinte forma: 1) praemitto, 2) scindo, 3) summo, 4) casumque figuro, 5) perlego, 6) do
causas, 7) connoto, 8) et obiicio28. No início, não estava uma definição, da qual se
procedesse dedutivamente, mas um texto de autoridade que havia que explicar,
também (mas não apenas) com definições e deduções. No fim, um espaço para
discutir opiniões divergentes, deixando claro que a estrutura do discurso apontava
para um outro “regime de verdade”: problemático, não axiomático.
§ 32. Neste conflito de ordenações, o índice temático – que é uma espécie de
dicionário, ordenado arbitrariamente pela ordem alfabética – pode ser um recurso
para encontrar os temas, mas não é, seguramente, uma via para os compreender
como membros de um conjunto logicamente coerente.
1.1.9 Os vários níveis da “descrição”.
§ 33. Apresentei este livro, inicialmente, como uma descrição. E, antes do
mais, foi isso que tive em vista, porque creio que um livro destes – que ponha à
disposição do leitor uma descrição precisa e clara dos institutos jurídicos – é muito
útil para os historiadores, hoje que a história do direito está cada vez presente nas
suas narrativas. No entanto, tentei que fosse uma descrição densa, tendo em conta
os vários níveis de sentido, mesmo aqueles que estão tão profundamente
enraizados que são normalmente tidos como assentes e nem sequer aparecem
explicitamente.
§ 34. A busca destas “pré-compreensões” permite, desde logo, entender os
institutos jurídicos do passado naquilo em que o seu regime jurídico parece

25 Bento Pereira, S.J. 1606-1681, Promptuarium juridicum quod scilicet in promptu exhibebit rite ac diligenter

quaerentibus omnes resolutiones circa universum jus Pontificiu[m], Imperiale, ac Regium, secundum quod in tribunalibus
Lusitaniae causaer decidi solent […], cit..
26 António Cardoso do Amaral, 15??-16??, Liber utilissimus iudicibus et advocatis, cit..

27 De methodo ac ratione studendi libri tres, Lugduni, apud Antonium Vincentium, 1541.

28 Nela se contêm todas as operações anteriormente descritas: 1) introdução à análise do texto

considerado, primeira interpretação literal; 2) divisão do texto nas suas partes lógicas, com a definição
de cada uma das figuras aí referidas e sua concatenação lógica, através das noções dialéticas de género,
espécie, etc.; 3) com base nesta ordenação lógica, re-elaboração sistemática do texto; 4) enunciação de
casos paralelos, de exemplos, de precedentes judiciais; 5) leitura "completa" do texto, i.e. leitura do
texto à luz do contexto lógico e institucional construído nos estádios anteriores; 6) indicação da natureza
do instituto (causa material), das suas características distintivas (causa formal), da sua razão de ser
(causa eficiente) e das suas finalidades (causa final); 7) ulteriores observações, indicação de regras gerais
(brocarda) e de opiniões de juristas célebres (dicta); 8) objeções à interpretação proposta, denotando o
caráter dialético das opiniões sobre problemas jurídicos, e réplicas, com larga utilização do instrumental
da dialética aristotélico escolástica.

16
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

estranho do ponto de vista do imaginário que hoje temos deles. Um exemplo é o


do regime hostil e restritivo das doações no direito moderno. Na verdade, a doação
era implicitamente considerada como um ato subversivo da ordem. Haveria uma
ordem do mundo, em que as pessoas e as coisas estavam ordenadas entre si. Essa
ordem do mundo era estável e, até certo ponto, indisponível. A sua alteração era
excecional e, por vezes impossível. Cada um tinha as suas coisas (ius suum) e o
direito protegeria esse quinhão primordial (patrimonium). As alterações da ordem
patrimonial eram possíveis, mas excecionais e sempre carecendo de uma causa. Daí
que uma liberalidade fosse sempre subversiva da ordem estabelecida, suspeita de
invalidade e estivesse sujeita a um atento escrutínio pelo direito. Mesmo se, nesta
época, as causas para dar fossem muito mais alargadas do que hoje geralmente se
entende serem. Este modelo ontológico parece explicar os traços do regime jurídico
da doação, nomeadamente, o instituto da insinuação, as proibições de doar, a
eficácia natural e civil das doações remuneratórias, as quais, ou eram válidas mesmo
no caso em que doações puramente liberais não o seriam ou, mais radicalmente,
eram consideradas como o cumprimento (pagamento) de contratos não beneficiais.
§ 35. Este procura das lógicas submersas ou ocultas dos institutos jurídicos é
também muito interessante para quem tenha em vista revelar o modo como esses
pressupostos hoje escondidos ainda deformam a dogmática jurídica atual. O caso
do discurso jurídico sobre as mulheres é um bom exemplo de como a cultura
jurídica de hoje (no direito letrado ou no direito da vida quotidiana) ainda é
marcada por uma argumentação baseada num entendimento do feminino que hoje
já não ousa exprimir-se, mas que aparece completamente argumentado e
institucionalizado nos juristas do direito comum.
§ 36. Finalmente, explicitar as “pré-compreensões” perdidas do saber jurídico
do passado alerta-nos para o facto de que também o nosso saber jurídico está
assente em lógicas que, num futuro mais ou menos próximo, se irão perder e deixar
de valer como fundamento das soluções. No passado antevemos, por isso, o futuro
das nossas certezas.
§ 37. Comecei por tentar identificar esses níveis submergidos de sentido que
dessem uma significação global do instituto. Porém, tive sempre muito presente
que estava a lidar com uma tradição histórica, marcada por ruturas,
descontinuidades e sobreposição de matrizes culturais que inevitavelmente
rompiam essa coerência da regulação de uma situação da vida. Isto, hoje, é quase
sempre notado e tido como um obstáculo importante a uma construção harmónica
dos institutos jurídicos. Porém, não perturbava muito os juristas anteriores à
pandectística, que tinham uma conceção tópica, e não sistemática, da sua arte e que,
por isso, lidavam bem com a coexistência de pontos de vista divergentes, limitando-
se a alinhá-los como opiniões diversas ou a encaixá-los tranquilamente uns nos
outros como regras e exceções (limita … amplia). Antes do séc. XVIII, raros são os
autores que contextualizam as opiniões divergentes com o acaso de contextos
diversos da história do direito. Mantive, na descrição, esta estrutura aberta da
dogmática de cada instituto, embora tenha procurado relacionar as divergências
com filões doutrinais ou culturais diferentes que afloram no arquivo textual dos
juristas modernos (a tradição do direito romano clássico, o filão justinianeu, o
contributo da canonística, etc.). Este foi o maior desafio do meu trabalho e a sua
principal fonte de prazer. Entender as razões das fraturas na construção jurídica de
então. Mas o que consegui fazer, procurando não exagerar nesta tentativa de
arqueologia do sentido e manter-me no limite daquilo que a letra dos textos podia
17
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provar, ficou quase sempre muito aquém daquilo que seria necessário para
identificar as raízes das “inconsistências” dogmáticas da doutrina jurídica moderna.
Seja como for, a identificação de alguns tópicos orientadores de cada instituto pode
ser uma ferramenta útil para o historiador que procure perceber a lógica (ou as
lógicas) que estavam pro detrás da valorização e regulação das situações jurídicas.
1.1.10 A “contextualização”.
§ 38. Muitos dirão que, lidando apenas com a literatura jurídica, vão fazer
falta os “contextos”.
§ 39. Desde logo, há necessidade de esclarecer de que contextos se está a
falar. Continuo muito convencido de que, tratando-se de contextualizar textos, os
contextos mais relevantes são … outros textos. Isto sobretudo porque os textos são
elaborados a partir de arquivos de elementos textuais: a língua, os argumentos, as
estratégias de argumentação, as conclusões já validadas antes, os conceitos. Estes
são os materiais com que se constrói um texto novo. E com os quais, portanto, as
“ideias” e os “interesses” se têm que vestir para que se possa falar deles no texto.
Então, o primeiro contexto a ter em conta nos textos é o seu contexto textual ou
intertexto. Isto significa que partimos da ideia de que a fonte mais imediata do
sentido de um texto é a das representações a partir das quais se interiorizou o
“mundo exterior”29. A primeira manifestação deste contexto textual é a tradição
literária em que as narrativas analisadas se inserem, incorporando tanto os
elementos de conteúdo como os elementos relativos ao suporte (a chamada
“bibliografia material”30).
§ 40. Esta perspetiva do contexto, aqui valorizada, visa reagir contra várias
formas de mecanicismo objetivista que tendem a explicar a ação humana apenas ou
predominantemente a partir de um jogo de determinantes puramente externas,

29 Desenvolvi a ideia numa versão anterior de Cultura jurídica europeia (Florianópolis, 2006), cap.

3.2.4: “Insistimos, pelo contrário, em que as práticas de que a história se ocupa são práticas de homens,
de alguma forma decorrentes de atos de cognição, de afetividade, de avaliação e de volição. Em
qualquer destes níveis da atividade mental pressuposta pela ação se encontram momentos irredutíveis de
escolha, em que os agentes constroem versões do mundo exterior, as avaliam, optam entre formas
alternativas de reação, representam os resultados e antecipam as consequências futuras. Todas estas
operações pertencem à esfera do mundo interior. São operações irredutivelmente intelectuais, baseadas
em representações construídas pelo agente, eventualmente a partir de estímulos (de muito variada
natureza) recebidos do exterior. No entanto, estes são reprocessados por mecanismos puramente
intelectuais, constituídos por utensílios mentais como grelhas de apreensão e de classificação, sistemas
de valores, processos de inferência, baterias de exemplos, modelos típicos de ação, etc. Enfim, tudo
representações. Quando, por exemplo, Karl Polanyi insiste no carácter "antropologicamente
embebido" do mercado não está a salientar outra coisa senão que as "leis do mercado" não constituem
lógicas de comportamento forçoso, decorrentes ou de uma lógica das coisas ou de uma razão
económica, mas modelos de ação que se fundam sobre sistemas de crenças e de valores situados numa
cultura determinada (de uma época, de um grupo social) […]; que o mundo não pode ser apreendido
senão como um texto 29 e que, portanto, a relação entre "realidade" e representação tem que ser
necessariamente entendida como uma forma de comunicação intertextual; que está apenas a insistir nesta
ideia de que todo o contexto da ação humana, ao qual esta ação necessariamente responde, é algo que
já passou por uma fase de atribuição de sentido 29. A realidade, ao ser apreendida como contexto de
ação humana, foi consumida pela representação.”. Remeti então para a ideia de pan-textualidade (Cf.
Peter Zyma, Textsoziologie. Eine kritische Einführung, Stuttgart, Metzler, 1980, cap. "Gesellschaft als
Text").
30 Cf. D. F. McKenzie, Bibliography and the Sociology of Texts: The Panizzi Lectures 1985, London, The

British Library, 1986

18
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

sejam elas as necessidades fisiológicas, as leis do mercado, os ritmos dos preços, as


curvas de natalidade, as estruturas de produção, os interesses, as tensões sociais. Na
perspetiva que aqui valorizo, tudo isto é relevante, certamente; mas tudo isto apenas
chega ao texto através da mediação discursiva e enquadrado pelos
constrangimentos da comunicação textual.
§ 41. Isto parece-me ser assim em geral, Mas avulta ainda mais quando
lidamos com o saber dos juristas. Já antes nos referimos à confiança que os juristas
têm no seu saber, ao qual de bom grado sacrificam os saberes dos outros, mas
mesmo noções de senso comum acerca de como é o mundo. No seu discurso,
encontramos, lado a lado, coisas empíricas e objetos cuja realidade ocorre apenas
no plano das ficções que o seu discurso permite – pessoas “fabricadas” (personae
fictae), coisas imateriais, direitos incomensuráveis (ab inferos ad coelum), pessoas que
são coisas e coisas que podem ser pessoas. Têm conceitos próprios e definitivos
para as coisas mais incontroversas da vida quotidiana – nascimento, morte,
ausência, honra, valor, interesse e dano. Realmente, constroem um mundo à parte a
partir do qual validam o seu saber e justificam as suas opções. Este mundo tem que
ter alguma relação com o mundo da vida – já o dissemos -, porque o discurso dos
juristas é orientado para a ação. E o discurso do direito está equipado com não
poucos canais através dos quais este ambiente externo irrita e remodela a sua
gramática. Porém, os argumentos do interesse, da utilidade, da conveniência, nunca
aparecem no discurso dos juristas sem uma tradução “em termos de direito”. Em
termos puros, como meras conveniências da vida, são juridicamente irrelevantes.
Por isso é que, num estudo como este, a nossa atenção tem que estar desperta para
causalidade interna aos textos, tanto como para os mecanismos que a tornam
sensível às mutações do ambiente não textual.
§ 42. Esta ideia que tenho da maneira mais adequada de contextualizar os
discursos explica a atenção que darei à identificação das fontes textuais e à história
da tradição literária de cada ponto, incluindo a história das palavras e dos conceitos
jurídicos, mas também a dos textos ou dos livros sobre o tema. Neste livro, esta
preocupação com a contextualização interna tem reflexos limitados, dado o caráter
sinótico da descrição. Mas aponta-se uma linha de orientação.
§ 43. Quanto à contextualização mais tradicional, referida à história dos
contextos sociais e políticos dos institutos jurídicos, ela não deixa de ser apontada,
mas sempre avaliando de que modo é que ela é recebida na tradução jurídica do
mundo que estes juristas construíam e com a qual trabalhavam.
1.1.11 O aparato crítico e os instrumentos de leitura.
§ 44. Pretendo que este livro seja útil. Por isso, abundo nas referências
cruzadas, tendo numerado os parágrafos para tornar essas referências mais exatas.
Estruturei a exposição miudamente, de modo a que o índice sistemático seja fino e
permita encontrar mesmo os detalhes. A busca por palavras, na edição eletrónica,
ou o recurso ao índice temático permite buscas ainda mais finas.
§ 45. No aparato crítico, procurei ser abundante na referências de fontes, mas
não tive uma preocupação tão sistemática de indicar bibliografia secundária sobre
cada instituto. Isso ampliaria muito as referências do texto, além de que, hoje em
dia, essas referências podem ser encontradas com muita facilidade usando a internet.
Num caso ou noutro, de acordo com sensibilidades de momento, cito alguma
monografia. Quanto às fontes, procurei ser preciso nas citações. Usei as edições
que tive à mão e que me pareceram mais úteis. Por isso, cito, não pelas páginas (isto
19
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.

ocorrerá eventualmente, mas apenas quando só há uma edição), mas pela


organização interna da obra (livro, capítulo, parágrafo, número, etc.). Sempre que a
obra esteja on-line (o que é cada vez mais frequente), indico o site.
§ 46. O mito da tradição, no que ele implica de redução da história a uma
narrativa linear e orientada para a justificação do presente, é um dos fatores mais
importantes de falsificação da história da cultura jurídica. Daí que muitas questões
de teoria da história jurídica tenham que ser explicitadas para que uma exposição do
direito do passado não o reduza a uma antecipação do direito de hoje. Mas não
basta afixar isto num programa teórico. É preciso que esta preocupação se traduza,
depois, em cautelas metodológicas concretas. Afastando evidências
contemporâneas sobre o quadro das fontes de direito31, temos que procurar eleger
como campo de observação aqueles universos normativos sobre que trabalhavam
os juristas da época. Recusando a facilidade de contar a história de acordo com os
nossos enredos, temos que buscar o fio de discurso que encontramos subjacente à
literatura de então. Evitando uma leitura atualizadora dos textos, temos que
respeitar os seus sentidos embebidos, mesmo os mais profundos, por muito
estranhos que sejam ao que hoje consideramos sensato na maneira de pensar o
direito. Arriscando o desconforto de desvalorizar a nossa “razão jurídica”, temos
que reconhecer que o discurso mais antigo sobre o direito era sustentado por um
regime de verdade mais flexível, que se contentava com a verosimilhança ou com a
probabilidade. Com isto, não estaremos apenas a fazer melhor história do direito.
Mas ainda a contribuir para uma reflexão dos juristas sobre os limites do seu saber.
1.1.12 O modelo corporativo do direito e do poder.
§ 47. Os fundamentos interpretativos deste livro continuam a ser, no
essencial, baseados no “modelo corporativo”, que descrevi no meu livro (e tese de
doutoramento) As vésperas do Leviathan [...], cit. de 1976. O livro foi objeto de
recensões 32 e foi tido em conta e analisado em textos de âmbito mais vasto 33.
Paolo Grossi publicou, entretanto, o seu livro de descrição global da ordem jurídica
medieval, que esclareceu a arquitetura geral desse sistema de poder 34. Entretanto,
uma análise político-jurídica centrada na dispersão do poder foi ganhando espaços,
culminando por ser aplicada … mesmo à França 35.

31 Para uma crítica do elenco estabelecido de fontes de direito, v. o meu livro Pluralismo e direito

democrático, São Paulo, Annablume, 2013.


32 Ius commune, 1990, 433-435 (R. Rowland); The Journal of Modern History, 63.4(1991) 801-802 (B.

Clavero); The American Historical Review, 97.1(1992) 221-222 (C. A. Hanson); The journal of modern history,
67.(1995) 758-759 (Julius Kirchner); Latin American Review, 31.1(1996) 113-134; Ann. Econ. Soc. Civ.
46.2(1991), 502-505 (J. F. Schaub).
33 Jean-Frédéric Schaub, “La penisola iberica nei secoli XVI e XVII: la questione dello Stato”,

Studi Storici, anno 36(1995, gennaio-marzo); Id. ”L’histoire politique sans I’État: mutations et
reformulations”, Historia a debate, 3(1993), 217-235; Id. "Le temps et l'État: vers un nouveau régime
historiographique de l'ancien régime français", Quad. fior. st. pens. giur. mod. 25(1996) 127-182; Angelo
Torre, “Percorsi della pratica. 1966-1995”, Studi storici, 1995, 799-829 (mais crítico); Roberto Bizzochi,
“Storia debile, storia forte”, Storia, 1996, 93-114
34 Paolo Grossi, L’ordine giuridico mediovale, Bari, Laterza, 1995.

35 Jean-Frédéric Schaub, La France espagnole: Les racines hispaniques de l'absolutisme français, Paris,

Seuil, 2003. Nota-se, sobretudo nos historiadores mais atentos ao legado das ideias políticas
renascentistas – nomeadamente, à tradição dos “políticos”, oriunda de Maquiavel -, uma tendência
para revalorizar o papel dos príncipes e das coroas. Para além de constituir o natural ricochete da

20
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 48. Os espaços ultramarinos, sem distinções de maior, ainda se abriam mais


a esta dispersão de jurisdições. Por um lado, a distância, o isolamento e as
solidariedades que estes geram, faziam nascer aí corpos suplementares –
municípios, ayuntamientos com os seus cabildos, comunidades nativas autónomas,
senzalas de povos deslocados, novas guildas profissionais ou novas corporações
territoriais. A própria Igreja não escapava a este movimento de cissiparidade, que
autonomizava congregações, que desenhava comunidades de fiéis, que florescia em
irmandades. Ao passo que o mundo doméstico se reforçava em fazendas,
engenhos, encomiendas, mesclando os núcleos familiares de sangue com parentescos
políticos (peões, gaúchos, escravos, libertos, criaturas, apaniguados, jagunços).
Também este mundo gozava de liberdades corporativas, que, a seu tempo, se
haviam de fazer ouvir (tal como na metrópole) contra as intromissões do centro
(como acontece nas colónias americanas da Inglaterra), ou que hão-de procurar
encontrar o seu lugar nas primeiras ordens constitucionais, aparentemente liberais,
mas também profundamente permeáveis à re-institucionalização das realidade
corporativas coloniais. Assim, a imagem de centralização ainda é mais desajustada
quando aplicada ao império ultramarino. No caso português, alguns módulos
(Timor, Macau, costa oriental da África) viveram em estado de quase total
autonomia até ao séc. XIX. Mas mesmo a Índia, que era objeto de um controlo
tornado muito remoto pelos nove meses que demorava a comunicação com a
metrópole. Apesar de, como já se sugeriu, a teoria da ação política relativa ao
ultramar fosse algo mais permissiva. Por um lado, tendeu-se, por vezes, a ver nas
“conquistas” algo semelhante a um património do rei, que ele administraria como
coisa sua – administratio domestica, segundo as flexíveis normas da oeconomia). Por
outro lado, nestes territórios de fronteira e de guerra viva, tendiam a predominar os
padrões de uma administração militar, baseada na extraordinaria potestas. Nada porém
que, segundo cremos, possa justificar a subversão dos modelos corporativos do
governo, caracterizados pela periferização do poder e pela ausência de um poder
central assimilável ao Estado que virá depois.
§ 49. A historiografia anglo-saxónica – que tem sido, em geral, pouco sensível
aos desenvolvimentos da historiografia ibérica e italiana sobre as instituições
políticas e jurídicas da época moderna – desperta finalmente para a centralidade do
“modelo corporativo” na interpretação da história do mundo colonial. Um livro
recente de Lauren Benton e Richard Ross explora as diversas dimensões do direito
e do poder nos espaços coloniais, destacando a centralidade do conceito de
iurisdictio na compreensão do modelo político moderno, tal como se vinha
assumindo na Europa, desde os finais dos anos setenta. Por sua vez, um vigoroso
artigo de Alejandro Cañeque explica os atrasos e perplexidades da história política
colonial pela insuficiente atenção que é dada, nos estudos de história colonial, a
uma história institucional liberta do paradigma estadualista36. Todavia, esta rutura

insistência na importância dos poderes periféricos, esta tendência explica-se por uma especial
valorização da política quinhentista italiana e de alguns “ republicanos ” do resto do continente (França.
Inglaterra). No plano prático-institucional, esta tentativa de trazer de novo o Estado para o primeiro
plano (bringing the State back in) defronta-se com dificuldades de prova.
36 Lauren Bentos & Richard J. Ross (eds.), Legal Pluralism and Empires, 1500–1850, New York,

NYU Press, 2013 (comentário: Antonio Manuel Hespanha, “The Legal Patchwork of Empires”, Rechts
Geschichte. Zeitschrift des Max-Planck-Instituts für europäische Rechtsgeschichte, 22(2014), 303-314; Alejandro
Cañeque, “The Political and Institutional History of Colonial Spanish America”, History Compass, 11/4
(2013), 280–291 (https://www.academia.edu/5670467/The_Political_and_Institutional_ History_

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coperniciana da história colonial já estava muito clara na obra de alguns


historiadores norte-americanas, com destaque para Tamar Herzog 37.
§ 50. O mais interessante, nesta avaliação contraditória, é que – tal como
acontece na América Latina ou mesmo na América do Norte – é depois das ruturas
revolucionárias que se vê ainda mais claramente a vitalidade destes poderes, agora
em luta contra a afirmação dos novos Estados pós-coloniais. Em muitos casos, isto
conduz a uma pulverização das unidades políticas coloniais (e não por causa da
força centrípeta das comunidades nativas, mas pela força desagregadora dos cabildos
municipais dominados pelas elites coloniais). A ponto de se falar, no processo de
constituição das identidades nacionais latino-americanas, de uma transição da
vecindad para a ciudadanía38. Mas não é menos significativa – como vem notando a
melhor historiografia constitucional latino-americana (Bartolomé Clavero, Marta
Lorente, Carlos Garriga, António Aninno, François-Xavier Guerra, Annick
Lampière) – a extraordinário supervivência da Constituição de Cádis na América
Latina, a mesma que não resistiu mais de três anos na metrópole. Isto não pode ser
separado (como tem sido notado) da sua permeabilidade à estrutura corporativa,
ainda mais arcaica, das sociedades latino-americanas. Porém, mesmo o pensamento
político das primeiras décadas da Revolução norte-americana está tingido deste
corporativismo. Também aí, o que dispara a revolta é a ofensa pelo Coroa de
direitos particulares, de indivíduos e de corpos. Isto traduz-se no próprio texto de
algumas das primeiras constituições (como a da Virgínia), em que a influência de
William Blackstone, ele mesmo um jurista inglês tradicionalista, transparece com
alguma frequência. A família segue sendo um corpo político (que integra filhos,
criados e escravos) e são-no também as nações índias. E, na verdade, a revolta com
que a Coroa se confronta é uma revolta de corpos (as colónias, com as suas
assembleias) e pouco de indivíduos. O debate que se seguirá entre federalistas e
republicanos continua a traduzir a mesma preocupação com a distribuição de
poder. Bartolomé Clavero, nomeadamente, fez a demonstração deste aspeto ao
estudar a secção I da Constituição da Virgínia (de 29.08.1776) (“ That all men are
by nature equally free and independent and have certain inherent rights, of which,
when they enter into a state of society, they cannot, by any compact, deprive or
divest their posterity; namely, the enjoyment of life and liberty, with the means of
acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining happiness and
safety”). Segundo ele, apesar da aparente clareza das palavras utilizadas - dir-se-ia,
da familiaridade e banalidade de expressões como “all men” - seria necessário
mergulhar nas fontes textuais, nomeadamente nos Commentaries on the laws of
England, de William Blackstone (Oxford, 1765), ou no Le droit des gens ou principes de
la loi naturelle, de E. de Vattel (Londres, 1758). Isso cortaria de forma absoluta a
continuidade entre o sentido originário do texto e toda a tradição que,
ulteriormente, o virá a reivindicar. Pois, inserida na economia da obra de W.

of_Colonial_Spanish_America).
37 Tamar Herzog já incorporava as mais recentes novidades da historiografia jurídica e institucional

europeia, desde o seu livro sobre a audiência de Quito (Upholding justice. Society, State, and the Penal System
in Quito (1650-1750), cit.).
38 Principalmente, em Tamar Herzog, Defining nations. Immigrants and citizens in early modern Spain and

Spanish America […], cit.; agora, convergente, Tamar Herzog, Frontiers of Possession. Spain and Portugal in
Europe and the Americas, cit..

22
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Blackstone, a referência a “all men” relacionar-se-ia, não com as liberdades


individuais, mas com as liberdades corporativas da commom law de então, o qual
excluía, desde logo, a liberdade dos criados (submetidos ao patrão; cf. Blackstone,1
cap. 14), a liberdade das esposas (submetidas aos maridos, cf. Blackstone,1 cap. 15):
a liberdade dos filhos (submetidos aos pais, cf. Blackstone,1 cap. 16), a liberdade
dos órfãos ou do os a “incapazes” (submetidos aos tutores, cf. Blackstone,1 cap.
17); apenas se retinha da ideia da liberdade dos sujeitos aquilo que era funcional em
relação às reivindicações das comunidades coloniais - elas mesmas
corporativamente imaginadas como “pessoas” [persons, corporations] - em relação à
Coroa britânica.
§ 51. Esse é o sentido mais forte do texto que publiquei no livro dirigido por
João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa, O Antigo Regime
nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa (sécs. XVI-XVIII), Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 200139. A própria produção teórica brasileira já abordara o
tema, nomeadamente nos livros de António Carlos Volkmer 40. Mas, naturalmente,
que há prestigiados autores, nomeadamente no Brasil, que não partilharam este
ponto de vista e que o expressaram de forma enfática41.
§ 52. Apesar desta longa continuidade de vitalidade corporativa no ultramar –
nomeadamente no ultramar americano (e, até, norte-americano; embora, aí, as
próprias matrizes europeias já levassem consigo fortes elementos desagregadores
do corporativismo – individualismo, republicanismo moderno, contratualismo) – é
claro que se notou no ultramar, desde Macau ao Brasil, o impacto da política da
disciplina. Mas, antes dos meados do séc. XVIII 42, o modelo corporativo não é

39 Cf. A. M. Hespanha, “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos

correntes”, em Maria Fernanda Bicalho, João Fragoso, et alii, O Antigo Regime nos trópicos. A dinâmica
imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), cit., 163-188; nesse volume, ainda, interessantes contribuições
para uma nova história da administração colonial brasileira: Maria Hebe Mattos, “A escravidão moderna
nos quadros do império português: o Antigo Regime em perspetival Atlântica”, 141-161; Maria
Fernanda Bicalho, “As câmaras e o governo do Imperio”, 189-221; Maria de Fátima Gouvêa, “Poder
político e administração na afirmação do complexo atlântico português (1645-1809)”, 285-316. Cf.
também, sobre o tema, Pedro Cardim, “O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os
primeiros Bragança”, Hispania. Revista del Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, Madrid, vol. 64/1,
nº 216 (Enero-Abril 2004), pp. 117-156; Alexandre Martins Viana, Antigo Regime no Brasil. Soberania,
justiça, graça e fisco (1643-1713), Editora Prisma, 2014.
40 Antonio Carlos Wolkmer, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma Nova Cultura do Direito,

São Paulo, Alfa-Ômega, 1994; Idem, “Pluralidade Jurídica na América Luso-Hispânica”, em Antonio
Carlos Wolkmer (org.) Direito e Justiça na América Indígena: Da Conquista à Colonização, Porto Alegre,
Livraria do Advogado, 1998. ps. 75/93. A que eu juntaria, pelo parentesco entre direito periférico e
direito informal, o estimulante estudo de Keith S. Rosen, “The Jeito: Brazil's Institutional Bypass of the
Formal Legal System and Its Developmental Implications”, cit..
41 V. Laura de Melo e Souza, O sol e a sombra: política e administração na América portuguesa do século

XVIII, 2006. Em jeito de resposta, António Manuel Hespanha, “Depois do Leviathan”, cit.; mais
recentemente, avaliando a questão, Francisco Carlos Cosentino, "Uma leitura de António Manuel
Hespanha", em Cultura histórica & património, 2.1(2013), 72-88; e, de um ponto de vista também
divergente do que aqui expresso, José Jobson de Andrade Arruda, “Modalidades imperiais e
capitalismo comercial: um confronto histórico-conceitual”, comunicação apresentada ao Segundo
Congresso Latino Americano de História Econômica (Fevereiro 2010).
42 Sobre esta rutura - já destacada em Ângela Barreto Xavier e António Manuel Hespanha, “A

Representação da Sociedade e do Poder”, cit., v. Alexandre Martins Viana, “Algumas implicações de


‘Moderno’ em ‘Estado Moderno’”, cit.; Id. “‘Absolutismo’: Os limites de uso de um conceito liberal”,
cit., e Andréa Slemian, “A primeira das virtudes: justiça e reformismo ilustrado na América portuguesa
face à espanhola”, cit..

23
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superado, nem como projeto, nem como prática. A questão mantem-se em aberto;
sendo certo que tem implicações profundas para a história colonial. Neste plano,
creio que os pontos de vista defendidos neste livro fazem mais justiça à capacidade
de ação política dos grupos coloniais, abundantemente documentada nas fontes.
1.1.13 Conclusão.
§ 53. Um livro destes faz-se mais facilmente depois de um largo percurso
pela história do direito, da sociedade e da cultura da época moderna. Escrevendo
para diversos públicos de historiadores fiz quatro décadas de peregrinações que me
levaram a estudar muitos aspetos das sociedades modernas, com especial destaque
para a portuguesa e para algumas das que habitavam o chamado império português.
Ao escrever este livro, dei-me conta de como ainda havia muitos espaços temáticos
não trilhados. Apesar disso, tecer conjuntamente o que sabia facilitou-me a tarefa
de explorar o que faltava saber. Parece-me que o quadro geral – que procurei não
sobrecarregar de referências que não adiantassem muito à compreensão global ou
que abrissem para relacionamentos ainda pouco sedimentados – enriquece a
compreensão da sociedade portuguesa e das sua projeções no além-mar. O próprio
quadro das sociedades meridionais da Europa Ocidental parece-me que pode
ganhar mais nitidez, pois o direito constitui um dos cimentos que, justamente
nestes séculos, lhe dá uma certa unidade, por cima dos despiques entre as grandes
monarquias. Por outro lado, o direito é seguramente um dos fatores de uma
diferenciação com a outra Europa- a do centro e do norte - que também se torna
mais nítida e mais ampla por esta altura e que, segundo creio, está na origem das
incompreensões mútuas dos nossos dias. Admito que obras como esta contribuam
para uma revalorização historiográfica das culturas da Europa do Sul, hoje a
caminho de se tornarem em cultura subalternas e exóticas, com o seu quê de
subversivo em relação às alegadas racionalidade, funcionalismo, sensatez e
universalidade das “culturas do norte”. Neste sentido, este livro estaria a contribuir
para uma reabilitação de modelos de conhecer, de valorizar e de ordenar, diferentes
dos que aparentemente (de facto, só aparentemente …) se vão estabelecendo
globalmente. Justamente por descrever uma espécie de paleo-epistemologia do Sul,
numa altura em que ela se consolidava numa literatura erudita poderosa e se
expandia para fora da Europa. Esse esplendor será breve, uma espécie de fogacho
de história. Mas, combinado com outras epistemologias ainda mais “a Sul” 43, terá
contribuído para estas alternativas culturais que tanto irritam os que aspiram a um
mundo padronizado. Não entendo este meu trabalho como uma empresa de
militância cívica ou cultural; no entanto, não me contraria nada se ele puder ter
algum préstimo desmistificador nas lutas civilizacionais dos nossos dias.
§ 54. Agradeço, por fim, aos que, na fase final de escrita, me ajudaram a
esclarecer dúvidas, me deram informações bibliográficas ou me fizeram leituras
críticas de partes do livro. Envolvo-os a todos num abraço fraterno.

43 Cf. Boaventura de Sousa Santos, Maria Paula Meneses (orgs.), Epistemologias do Sul, cit..

24
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

1.2 Abreviaturas.
António Delgado da Silva, Collecção da Legislação
Portugueza desde a última Compilação das Ordenações,
A.D.S. Lisboa, Typografia Maigrense, 1829, em
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verobra.php?id_
obra=73
adn. adnotatio
alv. alvará
ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo
ar. aresto
ass. assento
av. aviso
BNL Biblioteca Nacional de Lisboa
C. Código de Justiniano
c. cânone, causa
C.J.Can. Corpus iuris canonici
C.J.Civ. Corpus iuris civilis
C.L. carta de lei
C.R. carta régia
cf. confira
Clem. Clementinas
col. coluna
cons. consultatio
D. Digesto
dec. decisio
decr. decreto
Decretales Decretais de Gregório IX
Decretum Decreto de Graciano
disp. disputatio
dist. distinctio
Extr. Comm. Extravagantes comuns
Extr. Joh. Extravagantes de João XXI
fin. final
gl. glosa
I. Instituições de Justiniano
i.e. id est, isto é
ibid. ibidem
id. idem
in cap. in caput, no início.

25
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Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 2 ao texto que deverá aparecer aqui.

José Justino de Andrade e Silva, Collecção chronológica de


legislação de legislação portugueza (1603-1711), Lisboa,
J.J.A.S. 1854-1859
(http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verobra.php?id_
obra=63).
l. lei
liv. livro
ms. manuscrito
N. Nov. Novelas, Novela
n. número
obs. Observatio
Ord. af. Ordenações afonsinas
Ord. man. Ordenações manuelinas
Ord. fil. Ordenações filipinas
Part. [Siete] Partidas
per totu(a)m no todo
pg. (ou p.) página
pr. principium ou proemium
prov. provisão
pt. parte
punct. punctum
qu. Quaestio
reg. regimento
resp. respectivo/a
rubr. rubrica
s. v. no verbete
scl. scilicet, isto é
sess. sessão
Sex. Sextum (Liber)
t. tomo
tract. Tractatus
v. vide, ver (veja)
v.g. verbi gratia, por exemplo
vol. volume

26
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

1.3 Indicações sobre fontes.


1.3.1 Sistematização e forma de citação do Corpus Iuris Civilis.
Instituições (533 d.C.) - 4 livros (personae, Código (534 d. C.) - 12 livros 46:
res, obligationes, actiones):
divididos títulos, estes em constituições
divididos em títulos e estes, por vezes, em ou leis e estas, por vezes, em parágrafos;
parágrafos;
citação: C[odex Iustinianit.], [liv.] 9, [tit.]
citação: I[nst.], [liv.] 1, [tit.] 10, [parag.] 7, [constituição] 5, [parag.] 1 47;
pr[oemium] 44;
cit. antiga: (Cod. Iust.), l[ex]. 1, Si quis
cit. antiga: (Inst.), l[ex]. pr. De nuptiis 45. imperatori maledixerit.
Digesto (ou Pandectas) (533 d.C.) - 50 Novelas (534-565 d.C.):
livros 48: divididas em constituições ou leis;
divididos em títulos (salvo os livros 30 a a mais importante das colecções
32, De legatis et fideicommissis), estes em medievais de novelas é o Liber
fragmentos (ou “leis”) e estes, por vezes, Authenticum, composto por 134 novelas
em parágrafos; latinas.
citação: D. 2,1,3: D[ig.], [liv.] 2, [tit.] 1,
[frag.] 3, [parag.] - (frag. não dividido em
parágr.);
citação antiga: l. Imperium 49, ff 50 De
iurisdictione 51; D. 1,1,10,1: D[ig.], [liv.] 1,
[tit.] 1, [frag.] 10, [parag.] 1 (frag. dividido
em parágr.);
citação antiga: l. Iustitia, ff De iustitia et
de iure; D. 31,6: D[ig.], [liv.] 31, [frag.] 6,
[parag.] - (livro não dividido em
títulos 52);
citação antiga: l. grege, ff De legatis et
fideicommissis.

1.3.2 Sistematização e sistemas de citação do Corpus Iuris Canonicis.


Decretum (c. 1140). Decretales (Decretais) (1234) - 5 livros.
divisão: divididas em títulos e capítulos.
1ª parte - 101 distinctiones; citação: c. [nº do capítulo], X (ou in X), nº
2ª parte - 36 causae, divididas em do tit. ou suas primeiras palavras.
quaestiones; ex.: c. 1, X, V, 7 (= c. 1, in X, De

44 O proemium ou principium é, de facto o primeiro parágrafo. O parágrafo 1 é, portanto, o segundo

na ordem do texto.
45 De nuptiis é a epígrafe do tít. 10 do livro 1 das Institutiones.

46 Na Idade Média, os três últimos livros do Código eram frequentemente agrupados nos
chamados tres libri, formando, juntamente com outras fontes menores (Institutiones, Authenticum e Libri
feudorum) o Volumen parvum (livrinho).
47 Como antes se disse, o parágrafo 1 é, de facto, o segundo na ordem do texto.

48 Na Idade Média, o Digesto aparecia dividido em Digestum Vetum (livs. 1-24, 3, 2); Digestum novum

(livs. 39-50) e Digestum Infortiatum (livs. 24, 3, 3-38).


49 Primeira palavra da “lei”.

50 O nome grego do Digesto começava pela letra  (pi) que, manuscrita se assemelhava a dois f. E

foi assim que os copistas medievais a copiaram.


51 Epígrafe do título.

52 E fragmento não dividido em parágrafos.

27
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3ª parte (De consecratione) - 5 haereticis)


distinctiones.
citação: Sextum (= Liber sextum Decretalium) (1298)
1ª parte - c. [nº do cânone], d. [nº da dist.] - 5 livros.
ex.: c. 13, d. XXXVIII dividido em títulos e capítulos.
2ª parte - c. [nº do cânone], C. [nº da citação: igual ao anterior, sendo a sigla VI
causa], q. [nº da quaestio] ou in VI
ex.: c. 8, C. XII, q. 2
3ª parte (De consecratione) e 2ª parte, Clementinas (Clementis V constitutiones)
Tractatus De poenitentia. - c. [nº do (1314) - 5 livros.
cânone], d. [nº da dist.], De cons. (ou De divididas em títulos e capítulos.
poen.). citação: igual ao anterior, sendo a sigla
ex.: c. 46, d. 1, De poen. Clem. ou in Clem.
citação antiga: a indicação dos números
dos cânones, distinctiones ou quaestiones Extravagantes de João XXII (1234).
é substituída pela das suas primeiras divididas em títulos; sigla - Extrav.
palavras, o que obriga a recorrer a índices Iohann. XXII
que acompanham as edições.
Extravagantes comuns (séc. XV).
divididas em títulos; sigla - Extrav.
Comm.

1.3.3 Fontes de história jurídica on-line.


Direito romano Corpus iuris Corpus iuris civilis - http://droitromain.upmf-
civilis grenoble.fr/ (muito prático, contendo muitas
outras importantes fontes de direito romano);
(ed. Krueger et al); http://www.hs-
augsburg.de/~harsch/Chronologia/Lspost06
/Iustinianus/ius_intr.html (Bibliotheca
Augustana, Augsburg);
http://www.archive.org/details/corpusiurisci
vil03krueuoft; http://www.digital-
collections.de/index.html?c=autoren_index&l
=en&ab=Iustinianus+%26lt%3BImperium+
Byzantinum%2C+Imperator%2C+I.%26gt%
3B (Bayerische Staatsbibliothek);
Trad. francesa: (Portail Numérique d'Histoire
du Droit) -
http://www.histoiredudroit.fr/corpus_iuris_c
ivilis.html
Trad. ingl.:
http://www.iuscivile.com/materials/digest/re
ceived.shtml (correcções).
Guia de traduções de fonts jurídicas romanas:
http://libguides.bodleian.ox.ac.uk/content.ph
p?pid=286813&sid=2366763
(Índice e Esteban Daoiz, Iuris ciuilis septimus tomus
reportório) continens absolutissimum indicem et summam [do
Corpus Iuris Civilis e da Glosa Ordinária],
Venetiis, 1610 (PDF) -
http://books.google.com.br/books?id=ddCw
TCJ2ZLwC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT#v=onepage&q&f=false
Institutiones Gaii https://archive.org/stream/gaiinstitutiones00
gaiuuoft#page/n5/mode/2up
Codex Codex Theodosianus - http://webu2.upmf-
theodosianus grenoble.fr/Haiti/Cours/Ak/Codex_Theod.h

28
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

tm
Direito canónico Corpus iuris C.J.Can. (pesquisável por palavra) -
canonici http://digital.library.ucla.edu/canonlaw/ ou
http://digital.library.ucla.edu/canonlaw/toc.h
tml;
http://web.colby.edu/canonlaw/tag/gregory-
ix/;
https://archive.org/details/corpusjuriscanon0
0cath;
Decreto de Graciano:
http://geschichte.digitale-
sammlungen.de/decretum-
gratiani/online/angebot
Decretais de Gregório IX:
http://books.google.pt/books?id=YXE8AA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
http://www.lex.unict.it/liber/accedi.asp;
http://books.google.pt/books?id=ktk9AAAA
cAAJ&hl=pt-
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http://purl.pt/24947/3/#/18;
Extravagantes de João XXIII::
http://biblelight.net/Extravagantes.htm
Biblia cum http://lollardsociety.org/?page_id=409
Glossa ordinaria http://www.arsedendi.org/?page_id=26
Direito comum Glosadores e Glossa ordinaria: http://www.jura.uni-
comentadores muenchen.de/fakultaet/lehrstuehle/lepsius/li
nkliste/linkliste_1.html;
Bártolo: várias obras disponíveis em
http://books.google.pt/books
Baldo: várias obras disponíveis em
http://books.google.pt/books
Direito ibérico Forum judicum Cod. Recesvindianus (Liber iudicum):
medieval (= Codex http://libro.uca.edu/vcode/visigoths.htm
reicesvindianus) (trad. inglesa);
http://www.documentacatholicaomnia.eu/03
d/0506-
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http://pt.scribd.com/doc/25252840/Fuero-
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Historica); http://www.mgh.de/dmgh/ (idem).
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Partidas [...], Partida Primera, Madrid, Imprenta Real,
1807
(http://books.google.pt/books?id=xKoKAA
AAQAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false); II (Partidas segunda e
terceira)
(http://books.google.pt/books?id=8F9HAA
AAYAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
29
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PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false);
http://books.google.pt/books?id=WhNaAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false); III (Partidas quarta,
quinta, sexta e sétima)
(http://books.google.pt/books?id=p7aI__5n
9cYC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false)
El fuero Real I, Madrid, Pantaleon Aznar, 1781, I
(https://books.google.pt/books?id=fz0_AAA
AcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false); II
(https://books.google.pt/books?id=bd9GFv6
DCAkC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false); III (Partidas 4 a 7)
Direito português Portugalliae http://pt.scribd.com/doc/25252840/Fuero-
monumenta Juzgo-Parte-3-Forum-Judicum-Latin ;
historica http://purl.pt/12270
Colleccão de livros http://purl.pt/307.
ineditos da
historia
portugueza dos
reinados de D.
Dinis. D. Afonso
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D. Fernando,
vols. V/VI
Legislação Ordenações [Ed. S. Vicente de Fora (maior)]:
portuguesa de filipinas 1:
Antigo Regime https://books.google.pt/books?id=13pFAAA
AcAAJ&pg=PA351&lpg=PA351&dq=regime
nto+do+Desembargo+do+Pa%C3%A7o&so
urce=bl&ots=ZmGKHo-
47Z&sig=_YjEfCnqsEHD_J9Oo4DenkacZ9
k&hl=pt-
PT&sa=X&ei=M7GvVJqHGMesU7LOgagF
&redir_esc=y#v=onepage&q=regimento%20
do%20Desembargo%20do%20Pa%C3%A7o
&f=false;
2:
https://books.google.pt/books?id=xHdFAA
AAcAAJ&dq=regimento%20do%20Desemba
rgo%20do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks;
3:
https://books.google.pt/books?id=yHdFAA
AAcAAJ&dq=regimento%20do%20Desemba
rgo%20do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks;
4:
https://books.google.pt/books?id=NnpFAA
AAcAAJ&dq=regimento%20do%20Desemba
rgo%20do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
30
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

PT&source=gbs_similarbooks;
5:
https://books.google.pt/books?id=N3pFAA
AAcAAJ&dq=regimento%20do%20Desemba
rgo%20do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks
[Cândido Mendes de Almeida]:
1 a 5:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/
242733;
[Colecção de legislação antiga e moderna.
Ordenações filipinas]:
1:
https://books.google.pt/books?id=4aRFAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
2:
https://books.google.pt/books?id=gq9RAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
3-4:
https://books.google.pt/books?id=WV5OA
AAAYAAJ&dq=regimento%20do%20Desem
bargo%20do%20Pa%C3%A7o&hl=pt-
PT&source=gbs_similarbooks
[Colecção de legislação antiga e moderna. Leis
extravagantes]:
1 (LL.AA. 1603-1656):
https://books.google.pt/books?id=MK9RAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
2 (LL.AA. 1657-1750):
https://books.google.pt/books?id=SK9RAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
3 (LL.AA. 1750-1756):
https://books.google.pt/books?id=gq9RAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
4 (LL.AA. 1757-1761):
https://books.google.pt/books?id=ea9RAAA
AcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
5 (DD. 1603-1750):
https://books.google.pt/books?id=gq9RAA
AAcAAJ&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=
onepage&q&f=false;
Legislação http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/;
portuguesa de http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.
31
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Antigo Regime php?id_parte=84&id_obra=65;


http://legislacaoregia.parlamento.pt/Pesquisa
/?q=juristas&f=geral&ts=1
Regimento do Desembargo do Paço, de 17.5.1591,
anexo a Ordenações filipinas, Livro I (existem
outros Regimentos, de 27.6.1582 e
30.10.1641), comentado por Manuel A.Pegas,
Commentaria […], cit. tom. 7, ps. 553 e ss.).
Legislação (em http://net.fd.ul.pt/legis/
PDF) de 1820
a 1910.
Legislação José Justino de Andrade e Silva Collecção
régia (1603- Chronologica da Legislação Portugueza (1603-
1711) 1711), (http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)
Legislação Joaquim Inácio de Freitas, Collecção Chronologica
régia de Leis Extravagantes, Posteriores à Nova
Compilação das Ordenações do Reino, 1819 (1603-
1761), “Collecção de legislação Antiga e
Moderna”
(http://iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/apresentacao.
php
Legislação António Delgado da Silva, Collecção da
régia (1750- Legislação Portugueza, 1828 (em
1820) http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/
Legislação João Pedro Ribeiro, Indice Chronologico Remissivo
régia da Legislação Portugueza Posterior à Publicação do
(sumários) Codigo Filippino com hum Appendice, 1805 (em
(1603-1805) http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)
Legislação Duarte Nunes de Leão, Leis Extravagantes e
régia (1521- Repertório das Ordenações, 1569 (em
1603) http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)
Legislação Livro das Leis e Posturas, sec. XV (em
régia (sécs. http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)
XIV e XV)
Direito judicial Assentos Collecção Chronologica dos Assentos das Casas da
Supplicação e do Civel, 1791 (em
http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/)
Direito Doutrina “Biblioteca digital” – doutrina jurídica
contemporâneo portuguesa do sec. XIX (c. de 800 títulos):
http://www.fd.unl.pt/ConteudosAreas.asp?A
rea=BibliotecaDigital
Doutrina Visconde de Santarém, Memórias e Alguns
Documentos para a História e Teoria das Côrtes
Geraes, Lisboa, 1924
Cortes e http://debates.parlamento.pt/?pid=mc
Parlamentos -
Cortes e
Parlamentos
Cortes e http://debates.parlamento.pt/?pid=r1
Parlamentos -
Diários do
Congresso da
República
(1911-1926)
Cortes e http://debates.parlamento.pt/?pid=r2
Parlamentos -
32
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Diárioss da
Assembleia
Nacional e
Câmara
Corporativa
Direito brasileiro Doutrina Civilística brasileira-
contemporâneo http://www.civilistica.com.br/link0201.html
Digesto brasileiro ou extracto e commentario
das ordebnações e leis posteriores até ao anno
de 1842, Rio de Janeiro, E. e H. Laemmert,
1843.
Geral Recursos http://cluster4.lib.berkeley.edu:8080/ERF/se
eletrónicos rvlet/ERFmain?cmd=searchSub&subjectId=
(Direito) 75&resTypeId=12
Grandes Biblioteca digital da Faculdade de Direito da
acervos Universidade de Coimbra: Doutrina jurídica
digitalizados dos sécs. XVI-XIX – c. uma centena de obras
(geralmente em PDF):
http://bibdigital.fd.uc.pt/website/autor/c1.ht
m
Biblioteca digital da Fac. Dir. da UNL:
http://fd.unl.pt
Biblioteca Ger. da Univ. de Coimbra: http://
almamater.uc.pt/index.asp?f=BGUCD
Biblioteca Nacional de Lisboa:
http://purl.pt/index/geral/PT/index.html
Bilbioteca Virtual Miguel de Cervantes:
http://www.cervantesvirtual.com/
Brasiliana – USP:
http://www.brasiliana.usp.br/
Gallica – Bibliothèque numérique de la
Bibliothèque Nationale de France:
http://gallica.bnf.fr/ -
Liberty Library of Constitutional Classics:
http://www.constitution.org/liberlib.htm:
http://www.constitution.org/liberlib.htm
Library of Congress (USA):
http://www.loc.gov/library/libarch-
digital.html
The online Library of liberty:
http://oll.libertyfund.org/?option=com_stati
cxt&Itemid=27
Universidade de São Paulo: acervo de obras
digitalizadas: http://www.obrasraras.usp.br/
University of California (Berkeley) - Literatura
jurídica medieval e moderna:
http://www.law.berkeley.edu/library/robbins
/overview_collection.html
Hathi Trust Digital Library -
http://www.hathitrust.org/
The Online Book Page -
http://onlinebooks.library.upenn.edu/search.
html

33
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34
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

2 As jurisdições e o direito.
§ 55. Iniciar esta exposição pela teoria da jurisdição pode parecer estranho, de
tal modo hoje ligamos a jurisdição à atividade de julgar, um sector muito particular
do exercício do poder, em que apenas se aplicam a casos concretos normas de
comportamento já estabelecidas, na generalidade, pelo legislador. Como adiante se
explicará, não era essa a maneira de ver as coisas na sociedade medieval e moderna.
Não apenas a jurisdição não era considerada como uma simples tarefa de aplicação
de um direito já estabelecido a casos concretos, como esta realização concreta do
direito era tida como a primeira manifestação da ordem política. Por isso, a
jurisdição era o exercício do poder, governar era julgar e o juiz – no sentido
alargado daquele que estabelece a ordem nos casos concretos da vida - era a figura
central da política. Cristo era juiz e os juízes terrenais imitavam essa função divina
de governo53.
§ 56. Realmente, esta ideia da centralidade da justiça e do ato de julgar na
instituição e manutenção da ordem brotava de uma conceção mais geral sobre a
ordem do mundo e da vida. De facto, a imagem da vida é, nestes tempos, se não a
imagem de um grande processo universal (que culminava num grande juízo, o Juízo
Final), pelo menos a imagem de uma sequência de atos “judiciais”, em que
impulsos opostos tentam ganhar reciprocamente a primazia perante um juiz que
julga dos seus méritos (a consciência). "Juízo", "foro da consciência", “acusação”,
“defesa”, “culpa” e mais algumas expressões colhidas do mundo judicial ajudam a
descrever estes processos psicológicos e morais de decisão que preenchem a vida
das pessoas: "Em primeiro lugar – escreve o jurista teólogo João Baptista Fragoso54
-, encontramos a nossa consciência, que de quando em quando faz as vezes e o
ofício do juiz e, por isso, se as ações praticadas são retas, absolve e defende a
vontade, enquanto autora delas, e se são más, a acusa e censura [...] Outras vezes, a
consciência faz as vezes de testemunha, depondo tanto contra nós como a nosso
favor [...]. Do mesmo modo, também faz as vezes de Deus, o verdadeiro Juiz [...]".
Foro da consciência, tribunais dos costumes, pleitos de amores, tantos são os
exemplos que nos oferecem as fontes literárias acerca desta matriz judiciária de
apreensão do real e da assimilação do governo a uma cadeia de decisões judiciais.
§ 57. Estes capítulos iniciais, sobre as teorias da jurisdição, das fontes de
direito e dos oficiais e magistrados, são, por isso, as sedes da reflexão dos juristas
medievais e modernos sobre o poder político. Do qual falam com os conceitos e
figuras discursivas que são próprios do seu saber – iurisdictio, imperium, potestas,
officium, magistratus – e não com aqueles com que nós hoje usamos para o mesmo
efeito – soberania, poder político, etc.. Isto cria-nos a impressão de que estão a falar
de tecnicidades do direito e do processo, de questões de detalhe sobre a
competência dos magistrados ou sobre a maneira de processar as lides. Porém, se
se olhar para além das palavras usadas, os temas que estão a ser discutidos são

53 É o que sugere Gabriel Álvares de Valasco, no seu tratado Judex Perfectus seu de Judice Perfecto

Christo Iesu, 1662. Sobre a centralidade da justiça na representação medieval e moderna do poder, v.
António Manuel Hespanha, “Justiça e administração …”, cit., (inspirado na ideia central de Pietro
Costa, Iurisdictio […], cit.).
54 Cf. Regimen […], pt. 1, p. 469, ns. 41 e 42.

35
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muito mais gerais e fundamentais: eles estão a falar do poder de uns sobre os
outros e das modalidades do seu exercício.
2.1 A ideia de jurisdição.
§ 58. Para Bártolo - que continua a valer, no ius commune tardio, como texto
de referência - o sentido genérico de jurisdição era – como sugeria a própria palavra
(dictio iuris) – o “poder introduzido pela autoridade pública, que compreende a
faculdade de dizer o direito e de estatuir a equidade 55 56. Desde a obra clássica de
Pietro Costa, Iurisdictio: Semantica del potere politico nella pubblicistica medievale (1100 –
1433), de 1969, que se vem salientando que a palavra jurisdição (iurisdictio) exprimia
aquilo que era considerado como o núcleo da função política: julgar e ser julgado.
Pois o ato de julgar comportava, não apenas o momento decisiva da determinação
do direito de cada um, mas ainda a obrigatoriedade de as partes obedecerem àquilo
que o juiz declarasse acerca daquela situação jurídica. No ato de julgar, o direito – a
formalização da ordem política - era declarado e feito cumprir. Por isso é que a
instituição da jurisdição era um ato supremo da comunidade política, pelo qual ela
atribuía a alguém a função de realizar a ordem, fazendo leis, punindo os
contraventores, mas sobretudo, determinando qual era o equilíbrio estabelecido
pela república para cada caso concreto.
§ 59. A identificação da função de julgar como o momento nuclear em que o
poder político se exerce teve o condão de evidenciar a dispersão dos polos de
poder na sociedade europeia pré-contemporânea e, consequentemente, o
artificialismo de um modelo centralizado do poder, como aquele que foi
introduzido pela teoria política estadualista do séc. XIX, mas que não era o da
teoria política e jurídica desses dias57. Por outro lado, tem-se salientado que este
momento de determinação periférica e contextualizada da ordem não pode ser tido
como um assunto meramente privado, que apenas disciplina as relações entre as
partes do litígio, pois este é decidido segundo critérios que são tidos como
“públicos”, ou seja, fixados pela comunidade, para além de que a solução
encontrada se incorpora no direito e serve de padrão para outras decisões. Esta
perspetiva da centralidade do momento jurisdicional promoveu, a partir da década
de 197058, uma profunda revisão da história política e institucional da Europa

55 Cf. Bártolo, Opera […] omnia. Dig Vet, Venetiis, 1590


(http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false), ad 1. 2, Rubr: “Arbor
iurisdictionum”, pg. 44 v.. Sobre a arbor iurisdcitionum de Bártolo e a relação dos tipos de jurisdição com
as de juristas anteriores, v. Jesus Vallejo, “Power hierarchies …”, pg. 19 e n. 39.
56 “Iurisdictio in genere sumpta [est] potestas de publico intoducta, cum necessitate iuris dicendi,

& equitatem statuendae … Et dicitur iurisdictio a iuris, & dictio, quod est potestas […] sic dicitur
iurisdictio quasi iuris potestas”, ibid. a.
57 Sobretudo no Sul da Europa, a teoria política dominante não foi até meados do séc. XVIII

(pelo menos) o “estadualismo” de Jean Bodin e dos “políticos” (a maior parte deles, com as suas obras
no Index librorum prohibitorum), mas o “corporativismo” da política católica – de autores como o Cardeal
Belarmino (1542-1621) e Francisco Suarez (1548-1617), vulgarizados pelos grandes jus-enciclopedistas
dos finais do séc. XVI (v.g. Domenico Toschi) -, insistindo na natureza compósita dos corpos políticos
e, por isso, no caráter limitado dos poderes do Estado (do príncipe).
58 Cf. Lauren Benton and Richard J. Ross (eds.), Legal Pluralism and Empires, 1500-1850, New

York, NYU Press, 2013: “The study of jurisdictional politics does not depend on a general definition of
‘law.’ Nor does it require distinctions between ’state‘ and ’non state‘ law. The jurisdictional claims of a

36
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

moderna, constituindo (mas uns quarenta anos depois) uma das propostas fortes
para a renovação da história colonial norte-americana.
§ 60. A definição de jurisdição que ocorre nas fontes de direito comum diz
respeito a este âmbito muito inclusivo de governo da cidade e corresponde ao que
acaba de se dizer: “a jurisdição é o poder público de conhecer causas e de as julgar,
que não existe com base no consentimento dos particulares, mas apenas daquele
que tem autoridade púbica, seja ele o príncipe, ou o povo”59. Por vezes, este poder
esgota-se numa ordem, pura e simples, como que alheia ao direito, como no caso
de o poder de reprimir os homens maus (prima gladii potestas contra facinorosos homines),
da competência exclusiva de quem não responde senão perante o povo; outras
vezes, assume a forma de uma declaração genérica do direito, como quando se
fazem leis (potestas statutaria vel legislativa); mais frequentemente, exprime-se num
julgamento em que, a pedido das partes, o juiz declara qual é o direito naquele caso.
Aqui, confluem o interesse público na certificação jurídica da situação e os
interesses privados contrapostos das partes. O juiz satisfazia um e outros, ou
desempenhando o seu officium nobile, ao promover oficiosamente os atos necessários
à satisfação do interesse público, ou correspondendo aos pedidos das partes no
âmbito do seu officium mercenarium de satisfazer os interesses destas (§ 548). Seja
como for, qualquer ato de jurisdição implicava algum poder de dar ordens ou de
constranger, quanto mais não fosse a autoridade mínima (modica coertio) que faz com
que os atos judiciais sejam reconhecidos e obedecidos pelas partes. Daí que, se
podia haver ordens que não estavam precedidas de uma averiguação jurídica (merum
imperium), não podia, em contrapartida, haver atos judiciais sem que o magistrado
não tivesse algum poder de mandar (imperium qui inest iurisdictioni)60.
2.2 Espécies e graus.
§ 61. Esta relação entre iurisdictio e imperium foi uma matéria muito trabalhada
pelos primeiros glosadores, a propósito da “árvore das jurisdições” (arbor
iurisdictionum), gravura muito frequente nos comentários ao título 2.1. De iurisdictione,
do Digesto, que continha os textos sobre a jurisdição e sobre o império nos quais
se baseia a dogmática do ius commune sobre este tema61. Bártolo refere-se a estas
classificações e graduações da jurisdição na sequência do seu comentário a texto.
§ 62. Segundo ele, império62 era a jurisdição que se exercia através do “ofício

wide range of authorities, from a guild or merchant ship captain to a conquistador or trading company,
can be analysed without they being defined neatly as public or private” (p. 6).
59 “Jurisdictio est publica de causis cognoscendi, et judicandi potestas, quae non privatorum

consensu datur, sed eo tantum, qui habet publicam auctoritatem, sive sit princeps, sive populus”,
Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 12.
60 Sobre este assunto, bem como sobre os temas tratados nos capítulos seguintes, v. António

Manuel Hespanha, “Justiça e administração […]”, cit., maxime, ps. 151 ss..
61 D.2.1.1, Ulpianus libro primo regularum: “Ius dicentis officium latissimum est: nam et bonorum

possessionem dare potest et in possessionem mittere, pupillis non habentibus tutores constituere,
iudices litigantibus dare; D.2.1.3, Ulpianus libro secundo de officio questoris: Imperium aut merum aut mixtum
est. Merum est imperium habere gladii potestatem ad animadvertendum facinorosos homines, quod
etiam potestas appellatur. Mixtum est imperium, cui etiam iurisdictio inest, quod in danda bonorum
possessione consistit. Iurisdictio est etiam iudicis dandi licentia”.
62 “Imperium, est iurisdictio, quae officio iudiciis nobili exercetur, et ponitur in deffinitione

iurisdictione pro genere, & verba officium nobili, ponuntur ad differentiam iurisdictionis simplicis,
quae exercetur officio iudicis mercenario … Et dicitur imperium, quia ex imperio, authoritate iudicis
procedit, et non ex aliquo iure, quod resideat apud partem” (ibid. b).

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nobre” do juiz, em que este agia em nome do povo – ou do magistrado superior


numa república (imperador, rei, supremo órgão de governo de uma cidade que não
reconhecesse superior) - e por causa da utilidade pública. Distinguia-se da jurisdição
em sentido específico, que se exercia por meio do ofício mercenário do juiz, em
que este agia a requerimento das partes que tivessem algum direito a requerer que
ele agisse.
§ 63. Por sua vez, o império dividir-se-ia – continua Bártolo - em império
simples (merum) e império misto (mixtum).
§ 64. O primeiro era aquele que o juiz exercia oficiosamente (pelo seu ofício
nobre), por iniciativa própria ou com base numa simples denúncia (accusatio), em
vista exclusivamente (puramente, meramente) da utilidade pública. Segundo
Bártolo, tinha seis graus63. O império máximo (maximum) era o que continha
faculdade de fazer leis, de reunir concílios gerais, prerrogativa exclusiva dos papas 64,
de tornar públicos os bens dos condenados. O maior (maius) incluía o poder de
condenar à morte ou de tirar a vida (gladii potestas). O grande (magnus) consistia na
imposição de pena que comportasse a expulsão da cidade (degredo, deportação,
deportatio). O pequeno (parvum) permitia desterrar (relegare) e açoitar ou aplicar outra
pena corporal aflitiva. O menor (minus) permitia a coerção módica (modica coertio)
que competia a qualquer magistrado, para conduzir a lide judicial ou, por exemplo,
para conhecer de crimes leves e impor-lhes penas. O mínimo (minimum) continha a
faculdade de impor multas.
§ 65. O império misto era o poder que o magistrado tinha de atuar por sua
iniciativa (de exercer o seu “oficio nobre”) tendo em vista interesses privados 65.
Dizia-se misto por conter uma parte de império (atuação por iniciativa própria) e
uma parte de jurisdição (satisfação de interesses privados) 66. Continha cinco graus67.
O império misto máximo (maximum) era o que competia ao Príncipe, relativo à
utilidade pública suprema ou a atos livres e voluntários (atos de graça) dirigidos a
um particular68. O maior (maius) consistia no poder, exclusivo do príncipe, para
conhecer dos recursos contra uma sentença proferida por um juiz de quem não se
pudesse apelar. O império misto grande (magnum) consistia na faculdade de
conhecer daquelas causas que exigiam uma ordem do juiz baseada num
conhecimento pleno da substância da questão (plena cognitio), tal como as restitutiones

63 Alguns autores contavam apenas quatro graus, juntando o maius ao magnum e o minus ao parvum.

Cf. ibid. c.-i.


64 Por analogia, incluía o poder de reunir cortes gerais (parlamentum), a que corresponderia a

faculdade de ter tribunais curiais coletivos (senatus).


65 “Mixtum imperium est, quod officio iudicis nobili exercetur, privatam rescipiens utilitatem …

Et dicitur mixtum, quasi ex diversis constitutum, scilicet ex império & iurisdictione … Imperio partem,
eo quod officio iudicis nobili expeditur. Capit autem a iurisdictione partem, quia privatam utilitatem
respicit., Et nota quod illud dicitur mixtum, quod participat de duobus”, ibid. k.
66 O império diz respeito à utilidade pública e exerce-se pelo ofício nobre do juiz, que ele

desempenha oficiosamente (ou por acusação). A jurisdição (dizer o direito numa causa concreta) diz
respeito à utilidade dos particulares e exerce-se pelo ofício mercenário do juiz), ibid. 1, 2, 1 (de iur. omn.
iud.); 1, 3, 5: Os atos de mero império provêm apenas da autoridade do juiz, sem que haja qualquer
autoridade das partes para os exigir.
67 Ibid. l. q..

68 Compreendia os atos de graça, como a concessão de privilégios, a nomeação para ofícios ou

benefícios, as legitimações, os perdões, etc..

38
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

in integrum, as missiones in possessionem ex secundo decreto, a expulsão da posse. O império


misto pequeno (parvum) era a faculdade de decidir causas que exigissem um
conhecimento pleno da situação, mas que apenas declarassem o direito, sem dar
qualquer ordem, como pôr na posse de bens atribuída por direito, notificar alguém
para entrar na posse ex secundo decreto, etc.. O império misto menor (minus) consistia
na faculdade de decidir uma causa sumariamente. O império misto mínimo
(minimum) era o que incluía a resolução das causas sem o seu conhecimento, como
ratificar manumissões e emancipações.
§ 66. A jurisdição simples era aquela que o juiz exercia a pedido das partes
pelo ofício do juiz mercenário, em vista da utilidade privada69. Também ela tinha
graus, que a doutrina dominante computava em seis, que espelhavam os do
império. A máxima (maxima) respeitava a questões “árduas” e de natureza
importante, como as ações de estado (status), que punham em causa a fama das
pessoas (questões famosas)70. A jurisdição maior (maior) envolvia a decisão de
causas civis em que a condenação podia dar lugar a punição in corpore (como a
prisão por dívidas). A jurisdição grande (magna) permitia julgar causas de mais de
trezentos áureos, não podendo ser delegada. A pequena jurisdição (parva) incluía o
conhecimento de causas até trezentos áureos, podendo ser sempre delegada. A
menor (minor) e a mínima (minima) não estavam definidas pelo direito, dependendo
do arbítrio do juiz.
§ 67. Nesta mistura de jurisdição e império, havia atos em que sobrelevava o
império - como nos decretos ordenando estipulações pretórias ou entrega de bens;
noutros, a componente jurisdicional (privada, digamos) era maior do que a imperial
– como na nomeação de juízes/árbitros ou no uso da modica coertio inerente ao
exercício da jurisdição.
§ 68. Estas graduações do império eram sobretudo escolásticas, embora
pudessem servir para interpretar textos das fontes romanas sobre o âmbito da
jurisdição de um magistrado. Que decorressem das fontes romanas, nem sempre
era claro. Por vezes, como que obedeciam a uma espécie de simetria: por exemplo,
os graus da jurisdição parece que deviam corresponder, no nome e no número, aos
do império, o que explica que de alguns deles se dissesse explicitamente que não
estavam definidos pelo direito71. Por isso, as classificações das espécies e graus de
jurisdição foram variando bastante nos primeiros juristas do direito comum72; na
época a que nos referimos, a base de reflexão é a “árvore de jurisdições” da glosa
acursiana ou a de Bártolo; mas as incertezas dogmáticas anteriores continuavam a
suscitar perplexidades, como se a matéria fosse um mar encapelado, onde mesmo
os mais peritos poderiam naufragar73. Por isso, o que sobrevive na literatura mais
comum é apenas aquela parte da dogmática que parecia mais consensual e que era

69 Ibid. r.
70 Ibid. s.
71 O texto de Bártolo também avisa que certos poderes podiam caber em dois graus diferentes,

conforme a perspetiva em que fossem encarados. Assim, a tortura podia ser pena, e então, pertencia
ao mero império; mas se servisse como meio de obter uma prova, já pertencia à jurisdição. A mesma
ambiguidade existia com a prisão, com a modica coertio e com a excomunhão, ibid. z.
72 Cf. Jesus Vallejo, “Power hierarchies …”, cit..

73 “In iurisdictione pelago nemo versatus est, qui naufragium non fecerit” (Domingos Antunes

Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 1).

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mais necessária para resolver questões práticas, como a da interpretação das


doações régias de jurisdição74, a da determinação dos poderes de certos magistrados
(v. cap. § 548) ou a da possibilidade de um magistrado delegar a sua jurisdição
noutro.
§ 69. Este facto de os juristas se ocuparem de classificações que não
encontravam correspondência no direito, nem no direito vigente na sua época, nem
mesmo no direito de referência (direito romano), levanta a questão de saber o que
explica a continuada atenção que estas categorias suscitaram e os efeitos discursivos
que tiveram. Pode pensar-se que, quaisquer que tenham sido os motivos da sua
contínua evocação, este escalonamento dos poderes dos magistrados favorecia uma
imagem hierarquizada dos aparelhos políticos, desde o máximo ao mínimo, e que
isto facilitava uma ordenação dos magistrados em pirâmide, clarificando a sua
hierarquia e dependências mútuas. E que, combinando esta ordenação em árvore
com outras distinções (como a que diferenciava a jurisdição ordinária da jurisdição
delegada), este tratamento dogmático da iurisdictio viria a permitir que as
magistraturas e jurisdições de origem régia, no futuro, crescessem e se ramificassem
mais do que as de origem tradicional (cf. § 82)75.
2.2.1 O legado da ideia de imperium.
§ 70. É oportuno notar, neste momento um sentido nuclear ligado à palavra
imperium que talvez seja determinante para entender a sua ulterior semântica no
vocabulário político da Europa.
§ 71. A palavra imperium76 usou-se, no mais antigo vocabulário institucional
romano, para evocar o poder daqueles magistrados que, nas fases constituintes da
comunidade política, exerceram o poder, estabelecendo, como que arbitrariamente,
as regras da vida em comum (reis, cônsules). Ou a quem, mais tarde, o povo tivesse
dado esse poder constituinte (-reconstituinte). O seu poder estava fora da ordem
(extraordinaria potestas). Outros magistrados administravam sectorialmente essa
ordem (tinham uma simples potestas). Outros ainda – referimo-nos aos pretores -
combinavam o poder de declarar a ordem (iurisdictio) e, eventualmente, de a

74 Domingos A. Portugal avisa, cautamente, que, naquele mar imenso, só vai tratar da matéria da

jurisdição que se relaciona com as doações régias (Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 1).
Sobre doações régias de jurisdições e direitos reais, cap. 6.9.2.1.2. Exemplo de uso em matéria de
interpretação de doações: concedido o castelo, com a sua jurisdição, entende-se concedido o mero e
misto império (Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 13). Outras
regras de interpretação – restritivas dos poderes doados - decorriam sobretudo do direito pátrio,
nomeadamente da legislação quatrocentista. V.g.: só vêm nas doações aquelas coisas que são
explicitamente referidas (Ord. fil.2, 45, 7; 12, 14 e 156); a doação de jurisdições, como exorbitante do
direito comum, é de restringir e não de ampliar, Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […],
cit., liv. 3, cap. 44, n. 4; doado o castelo. não se entende doada a jurisdição, pois são coisas separadas,
ibid. ns. 5-8; a jurisdição não se adquire por prescrição, nem sequer imemorial, ibid. n. 17; a concessão
de jurisdições sempre se entende ser feita cumulativamente, ibid. n. 33). Note-se que a exigência de um
ato público (cláusula expressa em doação régia) para que uma jurisdição se transfira é consistente com a
definição publicística de jurisdição (de publico introducta), sempre presente na dogmática do direito
comum.
75 Cf. António Manuel Hespanha, “Représentation dogmatique …”, cit.; com objeções, Jesus

Vallejo, “Power hierarchies …”, cit..


76 Sobre a aceção de potestas e imperium no mais antigo vocabulário político romano, v. o artigo

“Imperium”, na Pauly-Wissowa, Realencyclopädie der Classischen Altertumswissenschaft […], cit., vol. 9.2; de
onde basicamente recolhi o que se diz no texto.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

modificar para melhor a realizar nos casos concretos. Mas dispunham também de
imperium para dar ordens que forçassem as partes a criar condições novas de
aplicação do direito. Ou seja, imperium parece evocar o exercício de um poder que
não está condicionado por uma constituição (pelo direito, como constituição), ou
porque não há constituição77 ou porque ela está a ser estabelecida justamente pela
vontade do magistrado imperial. Nas “cidades” (ou reinos), que correspondiam a
comunidades naturais, isso apenas aconteceria na sua fase primordial ou
constituinte (v. cap. 2.4.1.1); em momentos ulteriores, o governo consistia em
declarar e cumprir esse direito imanente à vida coletiva, tendo, por isso, um caráter
jurisdicional. Nas unidades políticas “artificiais”, agregados de múltiplas e diversas
comunidades naturais, essa constituição imanente não existia e, por isso, o governo
tinha que provir de ordens de quem tinha o poder de comandar. Isto acontecia,
tipicamente na guerra e nos períodos que se seguiam à conquista, em que a ordem
do vencedor e do conquistador eram o produto da vontade de um magistrado com
poderes imperiais (imperator, proconsul).
§ 72. Concluindo, imperium conotava inorganicidade ou heterogeneidade
constitucional da unidade política, arbitrariedade do mando, voluntarismo do
poder, disponibilidade dos laços políticos, predomínio da oportunidade. Embora
este poder imperial superior experimentasse também as dificuldades que decorriam
de, no interior do “império”, existirem comunidades organizadas cuja autonomia e
autorregulação era prudente respeitar, por razões de oportunidade e de economia
de poder. Era isto que acontecia nas províncias do império romano, em que a s
comunidades de colonos se organizavam naturalmente em cidades (constituídas à
semelhança de Roma) e em nações estrangeiras reconhecidas pelo poder romano
(nationes foederatae), que apenas caía sem limitações sobre os elementos políticos
inabsorvíveis (hostes). De qualquer modo, visto do ponto de vista do seu topo, o
poder era imperial.
§ 73. Esta era a situação nos impérios compósitos da idade moderna. O
império era constituído por “conquistas”, cuja identidade política não era pura e
simplesmente ignorada ou apagada, mas cujo reconhecimento era juridicamente
livre, apenas obedecendo às possibilidades da conjuntura. E nele existiam também
comunidades de colonos que, pelo convívio, naturalmente se constituíam em
réplicas das comunidades naturais da metrópole.
§ 74. Esta é também a lógica político-institucional do “império” português.
Nos meados do séc. XVII, o jurista e conselheiro do rei João Pinto Ribeiro
sublinhava esta estrutura compósita das conquistas portuguesas: "Vencidos [os reis
do Oriente], não os despojavam dos reinos e senhorios que possuíam. Ou os
deixavam neles com toda a majestade real, impondo-lhes algum tributo, por razão
da guerra, ou restituíam o reino a algum rei amigo a que injustamente estava
usurpado. Mostraram os nossos capitães o ânimo livre e desinteressado com que
procediam nas terras descobertas ou vencidas. A nenhuma mudaram seu antigo
nome, a nenhuma o deram de uma cidade ou província de Portugal [...]. Nunca os
sereníssimos reis de Portugal se intitularam de alguma província sujeita, se não foi a
da Guiné e do senhorio do comércio”78. Isto fazia com que o poder imperial do rei

77Como na guerra; e, por isso, o imperium é a autoridade típica dos magistrados militares.
78“Desengano ao parecer enganoso que deu a El-Rey de Castella Filipe IV certo ministro contra
Portugal”, 1645 (cit., António Vasconcelos de Saldanha, Vincere reges et facere […], cit., 184)..

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tivesse que se acomodar com aqueles outros que a oportunidade tinha levado a
reconhecer.
§ 75. Esta pluralidade de prerrogativas políticas (iurisdictiones) reivindicada
pelos reis de Portugal79 (mas também de Espanha80) estava expressa no seu longo
título, que enumerava uma série de referencias políticas heterogéneas, cada qual
remetendo para diferentes direitos sobre diferentes comunidades ou diferentes
territórios. Por vezes estas referências remetiam para modelos conhecidos e de
conteúdos precisos (por exemplo, “rei”), por vezes para uma situação genérica e
vaga de senhorio (“Senhor da Guiné”), por vezes para um domínio impreciso
(“Senhor da conquista, da navegação e do comércio”) sobre territórios bastante
indeterminados (“Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”). No fim, a partícula “etc.”
permitia cobrir outras virtuais reivindicações políticas 81.
§ 76. Em todo o caso, o reconhecimento desta multiplicidade de poderes não
tirava ao poder do rei de Portugal o seu caráter imperial, permitindo-lhe adequar o
governo à frequentemente referida “mobilidade” das coisas do ultramar. Por isso,
as magistraturas delegadas (v. cap. 2.3) ou extraordinárias eram mais frequentes e
mais centrais no governo do império. As atribuições e competências eram mais
casuísticas e conjunturais. Os princípios gerais mais frequentemente substituídos
por normas pragmáticas (“pragmáticas”, leis orientadas para objetivos práticos,
ligados às necessidades da ação política). O julgamento (iudicium), como processo
ponderado e argumentado de decisão (v. cap. 7.1.5), capitulava mais
frequentemente perante o alvitre. O governo comissarial consistia numa atividade
mais levemente regulada, sobretudo dependente da mobilidade das situações. A
política ganhava por isso tonalidades maquiavélicas, de exploração das conjunturas
e de aproveitamento de uma vasta gama de relações e de oportunidades políticas.
Mas, paradoxalmente, esta atomização do modelo de decisão, em vez de constituir
um fator de generalização e de homogeneização da política, ainda multiplicava o
casuísmo e a contextualização do governo.
§ 77. Por outro lado, o caráter artificial desta composição que era o império
tornava necessária uma política de promoção da unidade, de que o projeto da
“União de Armas” contido no Grande Memorial (1624) do Conde Duque de Olivares
é um exemplo extremo (e, por isso, fracassado) 82. Eram mobilizadas categorias

79 “Pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África,

Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.”.
Sobre a titulação dos reis de Portugal, António Vasconcelos de Saldanha, Vincere reges et facere […], cit.,
178, 288 ss..
80 “Pela Graça de Deus, Rei de Castela, de Leão, de Aragão, das Duas Sicílias, de Jerusalém, [de

Portugal, ] de Navarra, de Granada, de Toledo, de Valência, da Galiza, de Maiorca, de Sevilha, da


Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcia, de Jáen, dos Algarves, de Algeciras, de Gibraltar, das
Ilhas de Canária, das Índias Orientais e Ocidentais, Ilhas e Terra Firme do Mar-Oceano, Conde de
Barcelona, Senhor da Biscaia e de Molina, Duque de Atenas e de Neopátria, Conde de Rossilhão e da
Cerdanha, Marquês de Oristano e de Gociano, Arquiduque de Áustria, Duque da Borgonha, do
Brabante e de Milão, Conde de Habsburgo, da Flandres e do Tirol, etc.”.
81 Estas cláusulas vagas eram frequentes nas descrições ou reclamações de direitos e de jurisdições.

Nas doações régias, concediam-se terras com “todas as suas entradas e saídas”, significando direitos
potenciais sobre espaços vizinhos.
82 “Tenga V. Majd. Por el negocio más importante de su Monarquía el hacerse rey de España;

quiero decir, señor, que no se contente V. Majd con ser rey de Portugal, de Aragón, de Valencia,
conde de Barcelona, sino que trabaje y piense con consejo maduro y secreto por reducir estos reinos de

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

discursivas para exprimir esta ideia centralista. Catolicidade (catolicidad) –


significando universalidade – era um destes tópicos; monarquia – significando o
governo de um só – era outra. Combinando as duas, surgia a ideia de Monarquia
Católica, essa entidade política unificada que explicava como a multiplicidade das
entidades políticas que subsistiam no universo politico tinham que convergir para
uma unidade harmónica, para manifestçaõ da qual existiam também símbolos no
tesouro iconográfico da época, como, por exemplo, a romã.
§ 78. O fracasso final do projeto de Olivares – que realçava a ideia de uma
naturalidade comum, de uma pátria de todos, de um príncipe partilhado, de um só
exército e de um só tesouro – tornou, porém, claro que a ideia de um senhorio
comum funcionava bastante bem no plano eclesiástico 83, mas ainda não podia ser
transferido da Igreja para as comunidades seculares.
2.3 Jurisdição ordinária e delegada.
§ 79. Outra importante distinção dogmática que permaneceu no direito
comum tardio foi a contraposição entre jurisdição ordinária e delegada, um ponto
importante para se determinar se um magistrado podia ou não delegar as suas
atribuições noutro84. Também importante, no plano da explicação histórica, pelas
virtualidades que o conceito de jurisdição delegada criou à expansão da jurisdição
real.
§ 80. A jurisdição ordinária provinha diretamente da titularidade de um ofício
ordinário (v.g. iudex ordinarius) que contivesse poder próprio (jurisdição). Era, por
isso, um poder originário, que decorria do próprio estatuto (suo iure) do cargo tal
como estava fixado pelo direito, fosse este o costume ou a lei do príncipe. Por isso,
a jurisdição ordinária continha atribuições gerais, a serem exercidas sobre um tipo
abstrato de questões, no âmbito de uma comunidade política ou território. Já a
jurisdição delegada provinha de um ato de vontade de um magistrado delegante,
não residindo originariamente no magistrado delegado, que apenas as obtinha por
direito de outro (alieno iure)85. Certas espécies de jurisdição não podiam ser
delegadas. Desde logo, a jurisdição máxima (merum imperium maximum, prima gladii
potestas), que apenas competia ao príncipe e não podia ser dele separado (pois
“aderia aos seus ossos”), nem mesmo por delegações especiais86. Mais em geral,

que se compone España al estilo y leyes de Castilla, sin ninguna diferencia […]”, John H. Elliott and
José F. de la Peña, Memoriales y cartas del Conde Duque de Olivares […], cit., 1, pg. 96.
83 Mesmo aqui, é importante descontar alguns mitos do alegado centralismo gregoriano; v.
However, on the myths of ecclesiastical Gregorian centralism, Leandro Duarte Lust, Colunas de São
Pedro […], cit.; Amedeo de Vincentiis, “La sopravvivenza come potere […]”, cit..
84 Se um magistrado cometia a realização de atos jurisdicionais a um não magistrado, falava-se em

mandatio iurisdictionis (e iurisdictio mandata).


85 D.1, 21 De officio eius, cui mandata est iurisdictio.

86 Cf. Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 14. Parece que a

delegação especialíssima de poderes destes não estava totalmente excluída, embora apenas naqueles
casos em que existisse um fortíssimo laço de confiança pública no magistrado delegado. Em Roma,
certos poderes imperiais foram concedidos especialmente a certos magistrados, de muita confiança
politica, como o prefeito do pretório e da cidade, os procônsules e os pretores (governadores) das
províncias, de tal modo que o império não lhes competia por causa da jurisdição do seu ofício, mas por
uma especial concessão, Domingos A. Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 44, n. 15.
Esta será a fonte inspiradora da delegação de poderes dos vice-reis e, em menor grau, dos
governadores de províncias.

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também o mero império não era delegável, apenas competindo aos magistrados
ordinários, ou seja, a quem a república tivesse entregado diretamente essas
atribuições por lei (originariamente, na época romana mais antiga, a lex de imperio,
mais tarde as leis ordinárias, por fim, as leis reais); por isso, atribuições como o
julgamento de causas criminais ou o exercício de atos de mando no decurso dos
processos87 não podiam ser exercidas por juízes delegados. Como a delegação era
um ato pessoal, fundado na confiança entre delegante e delegado, ela não podia ser
estendida por subdelegação (subdelegatio iurisdictionis), nem por extensão a outros atos
ou situações por acordo das partes (prorrogatio iurisdictionis). Do mesmo modo que se
extinguia pela morte ou substituição no cargo do delegante. Enfim, a jurisdição
delegada era uma forma pontual e precária de conferir poder, por oposição aos
poderes conferidos estável e genericamente aos magistrados ordinários.
§ 81. O rigor desta separação entre jurisdição ordinária e delegada atenua-se
muito com o impacto dos poderes imperial e real sobre a doutrina do direito.
Desde os primeiros glosadores que se afirmava, por um lado, que o delegado do
príncipe podia subdelegar, o que já permitia a expansão (ramificação) da jurisdição
delegada. Por outro lado, também cedo se começou a defender que a lei do príncipe
podia ser tida como fonte de jurisdição ordinária. Isto permitia que a lei régia
criasse magistraturas ordinárias, dotadas de jurisdição ordinária 88. Era isto que
explicava que o senhor das terras, a quem, nos termos da lei, fossem concedidas
jurisdições, fosse juiz ordinário, podendo delegar as suas atribuições (num ouvidor).
Também lhes podia ser concedido o poder de castigar os crimes (coercitio delictorum)
pois esse poder coercivo fazia parte da jurisdição (mixtum imperium)89 e esta era
concedível, embora apenas por doação expressa 90.
§ 82. Uma advertência final sobre a relevância deste quadro dogmático na
expansão das estruturas administrativas das épocas medieval e moderna. A ideia de
que a jurisdição era um poder de governo estabelecido pela comunidade e atribuído
a magistrados ordinários fazia com que a máquina político-administrativa estivesse
firmemente ancorada na tradição. As magistraturas eram as que eram e os seus
poderes também. A extensão deste aparelho apenas podia ocorrer, precária e
pontualmente, por meio da delegação, com todas as limitações que esta tinha. O
reconhecimento da lei do rei como uma nova fonte de legitimidade das jurisdições
e magistraturas, bem como o reconhecimento de que os delegados do rei são
magistrados ordinários, pelo menos para o efeito de poderem subdelegar, rompem
estas barreiras e vão permitir que, ao lado da anquilosada estrutura política
tradicional, surja uma nova estrutura, que pode crescer e crescer rapidamente (Cf.
adiante § 544.)91.

87 V.g. decretos de entrega de bens (missiones in possessionem).


88 Cf. v.g. Ord. fil.2, 35 e 2, 45.
89 “Mixtum imperium jure proprio magistratui competit, quia jurisdictioni adhaeret et inest, et est

conjunctum cum jurisdictione, ita ut ab ea separari nequeat”, Domingos A. Portugal, Tractatus de


donationibus […], cit., liv.3, cap. 44, n. 16.
90 “Quatenus vero respicit coercionem delictorum concedi potest speciali donatione”, Domingos

A. Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv.3, cap. 44, n. 14.


91 António Manuel Hespanha, “Représentations […]”, cit..

44
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

2.3.1 O público e o privado.


§ 83. Um frequente anacronismo é o de procurar no direito romano ou na
tradição dogmática do direito comum as raízes da distinção contemporânea entre
direito público e direito privado. Por isso, vale a pena abordar esse tema depois de
se ter exposto a dogmática da jurisdição.
§ 84. A distinção entre direito público e direito privado figurava no Corpus
iuris civilis92. O Digesto incluía um texto de Ulpiano que afirma que há dois pontos
de vista (positiones) acerca do estudo do direito (“Huius studii […]”), a do direito
público e a do direito privado. O direito público considera o equilíbrio das coisas
de Roma, enquanto que o privado considera a utilidade dos particulares, pois
algumas utilidades são públicas e outras privadas. Continua indicando os institutos
que formam o direito público: as coisas sagradas, os sacerdotes e os magistrados
(“Huius studii duae sunt positiones, publicum et privatum. Publicum ius est quod
ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem: sunt enim
quaedam publice utilia, quaedam privatim. Publicum ius in sacris, in sacerdotibus,
in magistratibus consistit”, D.1,1,1,2) [Há duas perspetivas desta matéria de estudo.
O direito público é o que respeita ao equilíbrio das coisas de Roma, o privado o
relativo à utilidade dos particulares, pois, na verdade, há utilidades públicas e outras
particulares. O direito público consiste no relativa às coisas sagradas, aos sacerdotes
e aos magistrados93]. As Institutiones recolheram este texto (v. I.1,1,3), mas omitiram
a referência ao conteúdo do direito público, provavelmente porque o âmbito do
direito público (ou da perspetiva pública do direito) era mais vasta.
§ 85. Por detrás do significado da palavra “público” nestes textos jurídicos
estava o seu sentido – já contido na etimologia: de populicus, populus - de algo que se
relacionava com todos os cidadãos, com o povo. Em alguns casos, os juristas
usavam a palavra puramente com este seu sentido corrente, como quando falavam
de fama pública ou de coisa pública. Outras vezes, o sentido era mais elaborado,
pois incluía a referência às consequências dessa relacionação com o povo. Assim, a
pessoa pública era aquela que tinha alguma autoridade aos olhos do povo 94;
documento público era o que gozava de uma confiança geral, por ser elaborado por
um oficial público; pública era a instituição que não podia ser modificada por um
pacto dos privados em virtude de ter sido estabelecida em função de um interesse
de todos.

92 Síntese sobre a distinção no direito romano: Max Kaser, “’Ius publicum’ und ‘Ius privatum’”,

cit.. Sobre a tradição da distinção na tradição romanística: Francesco Calasso, “Ius publicum e ius
privatum nel diritto comune classico”, cit.; G. Chévrier, “Les critères de la distinction du droit privé et
du droit public dans la pensée savante médiévale”, cit.; Dieter Wyduckel, Ius publicum […], cit.; Paolo
Cappelinni, “Privato e pubblico [diritto intermedio]”, cit.; J. W. F. Allison, A Historical and
Comparative Perspective on English Public Law […], cit.; Gérard Giordanengo, “De l'usage du droit privé et
du droit public au Moyen Âge” […], cit.; Italo Birocchi, “La distinzione, ‘ius publicum/ius privatum’ nella
dottrina della scuola culta […]”, cit.; Gabor Hamza, “The classification into branches of modern legal
systems and roman law traditions”, cit.; Aloys Winterling, Politics and Society in Imperial Rome […], cit.;
Juan Manuel Blanch Nougués & Carmen Palomo Pinel, “Ius publicum y ius privatum en la experiencia
histórica del derecho. Un ejemplo insólito en las distinciones de Bártolo expuestas a través de
esquemas”, em Revista General de Derecho Romano, 18(2012).
93 Prefiro uma tradução muito ao pé da letra, para evitar a atração para formulações que
favoreçam a assimilação com os conceitos de hoje.
94 Cf. I.1, 21: “defensores civitatum (una cum eiusdem civitatis religiosissimo antistite vel apud alias

publicas personas) vel magistratus”.

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§ 86. Este âmbito do significado de público fazia com que a distinção entre
direito público e direito privado contida nos dois textos referidos não fosse tão
clara como mais tarde pareceu ser à doutrina oitocentista do direito público. As
dificuldades de uma distinção substancial e cortante começavam pela ambiguidade
da palavra positiones, um termo usado na teoria retórica com um sentido técnico, que
parece remeter mais para uma atitude, um ponto de vista, uma perspetiva, um
aspeto, uma matéria de estudo (Huius studi […]) do que para uma distinção
substancial entre duas partes do direito. Depois, a claridade da distinção sofreu com
as incertezas do conteúdo de cada uma das categorias. O texto do Digesto
enumerava as questões que integrariam o direito público: coisas sagradas,
sacerdotes e magistrados. Mas o certo é que outros textos do Digesto indicavam
como sendo de direito público matérias que não diziam respeito nem às coisas
sagradas, nem aos sacerdotes, nem aos magistrados; como o testamento 95, as
tutelas96, os dotes97, as coisas afetas ao uso de todos os cidadãos98, as ações
criminais99, bem como todas aquelas normas jurídicas que não podiam ser
modificadas por pactos entre privados100.
§ 87. Em suma, os juristas romanos parece que não tinham construído um
conceito de direito público como um direito regendo as especiais relações entre a
república e os cidadãos, regulado por princípios sistemicamente opostos aos que
regulavam as relações entre cidadãos101. Nem tinham também desenvolvido
conceitos e figuras próprias e específicas desta parte do direito. A sua construção
dogmática alicerçava-se em figuras que hoje designaríamos de direito privado. As
questões que hoje chamaríamos de direito público - como a propriedade pública, os
poderes dos magistrados e as suas limitações, o direito ligado à religião, o
tratamento jurídico específico do interesse público – não ocupavam os juristas,
porque pareciam mais relacionadas com a mutável oportunidade em situações
concretas do que com princípios jurídicos permanentes 102, desses que derivariam da
natureza das coisas. Daí, talvez, que o texto citado de Ulpiano só em relação ao
direito privado afirme que ele pode ser colhido de preceitos de direito natural 103.
§ 88. O Digesto, ao recolher a doutrina jurídica anterior, assumia essa mesma

95 Cf. D. 28, 1, 3.
96 Cf. I, 1, 25: “nam et tutelam et curam placuit publicum munus esse”.
97 Que os tornavam inalienáveis, mesmo com o consentimento da mulher (C.5, 13 De rei uxoriae

actione, 15; I. 4, 6, 12).


98 E que, por isso, não podiam ser objeto de transação entre particulares (I, 3, 19: “2. Idem iuris

est, si rem sacram aut religiosam, quam humani iuris esse credebat, vel publicam, quae usibus populi
perpetuo exposita sit […] dari quis stipuletur […] sed protinus inutilis est”).
99 Cf. I, 4, 18: “Publica iudicia neque per actiones ordinantur nec omnino quidquam simile habent

ceteris iudiciis de quibus locuti sumus, magnaque diversitas est eorum et in instituendis et in exercendis.
1. Publica autem dicta sunt, quod cuivis ex populo exsecutio eorum plerumque datur”.
100 Cf. D.50, 17, 45, 1.

101 O conceito mais próximo disto era o de imperium.

102 Cícero justifica desta forma o facto de Quintus Mucius Sacevola se recusar a dar pareceres

sobre questões de direito público (Cicero, Pro Balbo, 19, 45), citado por J. W. F. Allison, A Continental
Distinction in the Common Law: A Historical and Comparative[…], pg. 110.
103 D.1, 1, 1, 2: “[…] Privatum ius tripertitum est: collectum etenim est ex naturalibus praeceptis

aut gentium aut civilibus”.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

desvalorização do “direito público”, que nele não ocupa uma posição relevante 104.
Em contrapartida, no Código – e, sobretudo, nos seus últimos três livros (livros 10,
11, 12) ou, na designação medieval, Tres libri –, é que se iriam concentrar os temas
que, no futuro, constituirão o direito público. Os glosadores mantiveram esta ideia
de indistinção substancial entre direito público e privado, explicando a ocorrência
da oposição público-privado nos textos apenas como uma questão de método de
ensino, relacionada justamente com o facto de, na codificação justinianeia, as
matérias de direito público e de direito privado terem sedes diferentes
(respetivamente, os Tres libri e o Digesto)105. Embora Bártolo e Paulo de Castro
tivessem sugerido uma distinção categorial e mutuamente exclusiva entre as duas
partes do direito, como mundos dogmáticos distintos, dominados por interesses
contrapostos – o público e o privado -, isto não foi seguido pelos juristas que
escreveram depois. Baldo é típico nesta prudência em distinguir de forma nítida o
direito privado do público com recurso ao critério dos interesses prosseguidos por
um ou pelo outro. Na distinção, tudo seria apenas uma questão de grau: “illud est
publicum quod continet publicum bonum principaliter et per prius” 106. Também na
hierarquização dos interesses a ponderar, a utilidade principal (utilitas principalis), que
devia ser atendida, nem sempre era a pública, decorrendo a decisão sobre qual ela
fosse das circunstâncias do caso 107. Em contrapartida, a qualidade pública de uma
das partes da relação jurídica não era invocada como critério distintivo, pelo menos
principal.
§ 89. A noção de ius publicum funciona então como um tópico que pode servir
para justificar um feixe diverso de soluções jurídicas. Serve, por exemplo:
§ 90. (i) para justificar uma especial (mas não exclusiva nem mesmo decisiva)
relevância do interesse da comunidade, que justificaria a derrogação de algum
princípio de direito ou a ineficácia da vontade de particulares (por exemplo, de se
escusarem de serem tutores, v. cap. 3.3.2.1); v.g. suspendendo a eficácia da vontade
das partes em certas circunstâncias em que se manifestava um especial interesse de
todos.
§ 91. (ii) para justificar a inapropriabilidade por particulares de certas coisas
relacionadas com interesses comuns (v. cap. 4.2.2);
§ 92. (iii) para justificar as atribuições dos magistrados, nomeadamente
daquelas que eles exercem oficiosamente, sem carecer de um pedido das partes
(potestas a publico introducta […]); v.g. legitimando a coerção penal (“gladii
potestats ad animadvertendum facinorosos homines”), a imposição fiscal (“ius
fiscale dicitur ius publicum”, Cujacius) (v. cap. 2.2).
§ 93. Ou seja, perante certas questões cuja solução não era consistente com
os princípios do direito comum – os tais que decorriam do direito natural ou das
gentes ou do sistema do direito civil comum –, a invocação da utilidade pública, do

104 Cf. J. W. F. Allison, A Continental Distinction in the Common Law: A Historical and Comparative […],

cit., 109 ss. (com referência aos pressupostos filosóficos da distinção).


105 Cf. Gabor Hamza, “The classification into branches of modern legal systems and roman law

traditions”, cit., III (p. 450).


106 J. W. F. Allison, A Historical and Comparative Perspective on English Public Law […], cit., pg. 113.

Boa síntese da doutrina medieval sobre o tema em Gérard Giordanengo, “De l'usage du droit privé et
du droit public au Moyen Âge”, cit., pg. 3 ss..
107 Cf. Gérard Giordanengo, “De l'usage du droit privé et du droit public au Moyen Âge”, cit., 3.

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direito que se ocupava do estado da coisa pública, podia explicar essa


particularidade ou excecionalidade da solução. Mas, no fundo, a invocação do
“público” não era estruturalmente diferente de outros lugares (loci) argumentativos
– como a equidade, a utilitas, a excecional proteção devida a uma pessoa (favor) - que
explicavam porque é que certos casos exigiam que se afastassem os princípios do
direito civil. Por outro lado, a natureza “pública” de um caso não era o único
argumento que podia justificar a especialidade da sua solução (por exemplo, a sua
mais forte sujeição à autoridade de um magistrado), pois isso podia explicar-se, por
exemplo, pela especial natureza dos poderes desse magistrado (o seu imperium, a sua
extraordinaria potestas).
§ 94. Porém, esta sensibilidade a algumas questões que irão ser resolvidas
com a criação de uma dogmática específica para o direito público não leva ainda a
uma summa divisio do direito que justifique a quebra da sua unidade dogmática e se
reflita na ordem da exposição 108.
§ 95. Nos juristas portugueses dos sécs. XVI e XVII, a atenção pelo conceito
de direito público é diminuta e limita-se a recordar os pontos de vista do direito
comum clássico. A ideia de que o direito público tem autonomia dogmática – que
se manifesta nos juristas franceses da época e que será um tópico central no
discurso publicista de Pascoal de Melo – não aflora.
§ 96. Melchior Febo trata do assunto numa decisão 109, adotando a prudência
que caraterizara os medievais em relação à possibilidade de uma distinção rigorosa
entre direito público e direito privado. A discussão, que é interessante, versava a
natureza pública ou privada de um contrato feito pelo rei. Partindo da distinção
escolástica acerca das causas, Febo dizia que o decisivo não era quem tinha
celebrado o contrato – a sua causa eficiente -, mas a finalidade visada com ele – a
sua causa material110. O critério de distinção entre público e privado, em matéria de
natureza das coisas ou dos contratos, era, para ele, o tipo de interesses protegido.
Porém, esse critério nunca permitiria uma classificação nítida, porque todo o direito
visaria simultaneamente a satisfação de interesses públicos e privados, apenas se
podendo estabelecer uma gradação da hierarquia entre eles nos objetivos de cada
norma. Umas normas visavam principalmente (ou diretamente) o interesse público,
e por isso constituíam direito público, outras principalmente interesses particulares,
sendo portanto de direito privado111. Porém, em todas as normas havia algo de
interesse público; mesmo na regulação dos pactos, o respeito da confiança era de
direito das gentes e, por isso, ia para além do mero interesse particular dos
contraentes112. A dificuldade da distinção fazia com que Febo acrescentasse uma
terceira categoria de direito, o direito misto, no qual incluía o que regulava as ações
penais, em que se prosseguiam, ao mesmo tempo, o interesse público em punir e o

108 O direito público não cabe, por exemplo, na sistematização tripartida das matérias jurídicas

(pessoas, coisas e ações).


109 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114.

110 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114, ns. 2 e 3.

111 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114, n. 15 (“Tunc versatur ius publicum quemquam

ratio principaliter tendit ad bonum commune”.


112Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114, n. 26.

48
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

interesse privado em indemnizar os danos 113.


§ 97. Este critério de distinção servia para fundamentar a inderrogabilidade
do direito público por pactos dos particulares 114, bem como a impossibilidade de
renunciar a um direito ou faculdade que tivesse sido concedida a um particular por
razões de interesse público115. E de pouco mais servia a ideia de direito público.
Agostinho Barbosa, nos seus tratados sobre lugares comuns 116, ignora a palavra
público, quer como substantivo (appelativum), quer como argumento (locus
communis)117.
§ 98. Só a partir dos finais do séc. XVII, aparecem na literatura jurídica
europeia obras explicitamente intituladas de Institutiones iuris publici118. Doravante, o
direito público já não é apenas um tópico, casuisticamente invocado para motivar
uma decisão, mas um sistema dogmático, dotado de princípios e definições
próprias, que também passa a merecer uma exposição à parte, caraterizado por
regular as relações entre os detentores de um poder público e os particulares.
§ 99. Em Portugal, o culminar desse processo de emergência do direito
público manifesta-se com a obra de Pascoal de Melo.
§ 100. Como os novos Estatutos da Universidade de Coimbra explicavam, os
princípios de direito representavam "a applicação, accomodação, e extensão, que
dos principios geraes do mesmo Direito Publico universal tem feito os Supremos
Legisladores da Monarquia Portugueza, para satisfazerem nestes Reinos, e nos seus
Domínios aos importantíssimos fins da mesma Legislação Universal da
Natureza”119. Pascoal de Melo reconhece isso mesmo. Abre o Livro I das suas
Institutiones iuris civilis lusitani com o reconhecimento da autonomia e primazia do
direito público sobre o privado120, prosseguindo com a descrição dos direitos do

113 “Ius vel est publicum, vel privatum, vel mixtum. Publicum est quod directe pertinet ad statum

regni, vel respublicae; privatum est quod pertinat ad statum privatum uniuscusque; mixtum utrumque
includit, v.g. omnis quaestio criminalis habet ius mixtum, nempe publicum ex parte judicis punientis,
privatum ex parte partis damnum particulare subeuntis”, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 114,
ns. 8 a 12.
114 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Ius”, n. 3 (“Ius publicum non
derogatur pacto aliquorum privatorum, cum ad utilitatem communem expectet [...]”.
115 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Ius”, n. 5 (“Iuri suo privato, & suae

actioni, et exceptioni, & legum auxilio potest quicumque regulariter renunciare, cum id faciat sine
incommodo alterius, vel iuris publici”).
116 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], cit..

117 Sobre a literatura francesa contemporânea, cf. Italo Birocchi, “La distinzione, ‘ius publicum/ius

privatum' nella dottrina della scuola culta […]”, cit.


118 Ph. R. Vitriarius, Institutiones Iuris Publici Romano-Germanici, 1691; Johannes Friedrich Chardel,

Discursus de Primis Juris Publici Principiis: Occasione Hujus Studij Duae Sunt Positiones, 1711; Ignaz Schwartz,
Institutiones iuris publici universalis naturae et gentium, 1760.
119 Estatutos, 2, 6, 2, 4, pg. 454.

120 “Como o Direito Público ocupa o primeiro lugar na cidade também deve ser tratado em

primeiro lugar”, Prefácio aos estudantes; “Todo o direito e público, ou particular […] Ocupar-nos-
emos de um e outro, mas cumpre tratar primeiro do público que é sem dúvida a espécie mais nobre e
excelente do direito” (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 1, 1, 1); “O direito público
respeita à sociedade em geral, e determina os direitos dos Imperantes e dos cidadãos. O supremo
direito, no qual naturalmente se contem todos os mais, pertence ao Imperante, e por ele pode e deve
proteger a Nação e realizar todos os atos, sem os quais não se podem obter convenientemente a
segurança interna e externa dos cidadãos e a salvação do povo, que é a suprema lei” ( Institutiones iuris
civilis […], cit., 1, 1, 2).

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soberano e, brevissimamente, dos direitos dos súbditos. Trata-se de uma moldura


conceptual construída sobre a ideia de ume relação jurídica entre o soberano e os
súbditos. O elenco dos temas neste novo ramo do direito corresponde, em parte,
ao dos dois primeiros títulos das Instituições de Justiniano, que, por sua vez,
correspondem aos 22 títulos do Livro I do Digesto (fontes de direito, oficiais
públicos). Mas a autonomização destes temas num novo livro representa uma
modificação estrutural na maneira de conceber o direito público, não mais como
um agregado de temas próximos ou como uma partição meramente didática, mas
como um corpo sistemático orientado por princípios específicos em relação aos do
direito privado. Pascoal de Melo consegue uma correspondência temática entre o
seu livro de Direito público e os primeiros títulos das exposições tradicionais do
direito baseadas na estrutura das Institutiones e do Digestum por meio de uns
subterfúgios. Trata das fontes de direito a propósito do poder de legislar. E dos
magistrados e ofícios, a propósito do poder de criar magistrados. Segundo os
critérios de hoje, ficavam de fora algumas instituições, como o poder municipal e o
poder senhorial, que irão ser tratadas no livro II, Das pessoas.
§ 101. Esta autonomização do direito público torna-se comum entre os
professores contemporâneos de direito pátrio na Faculdade de Leis de Coimbra 121.
2.4 A jurisdição dos concelhos, da coroa e da Igreja.
2.4.1 Os concelhos.
2.4.1.1 Os fundamentos doutrinais da autonomia de governo das
comunidades territoriais
§ 102. A questão das relações entre o espaço e o poder fora objeto de reflexão
desde a Antiguidade. Aristóteles tinha relacionado o carácter dos homens com os
dados geográficos e climáticos; na Política, existiam também algumas sugestões
sobre esta interdependência entre as características do meio físico e o sistema
constitucional das cidades. Na Idade Média, por sua vez, imaginou-se uma relação
íntima entre os vínculos da natureza e os vínculos políticos. Por natureza, entendia-
se não apenas os laços familiares, mas também os laços que ligavam alguém ao
torrão que o vira nascer, à sua “pátria”. Isto explica a naturalidade com que era
aceite a ideia de que um grupo vivendo conjuntamente num território tivesse um
governo próprio e autónomo, que incluiria a capacidade de estabelecer as suas
próprias leis. “Os povos - tinha escrito Baldo122 - existem por direito das gentes [=
direito natural], pelo que o governo dos povos é de direito natural; mas este
governo não pode existir sem leis nem estatutos. Portanto, pelo mesmo facto de
que os povos existem, estes têm em si mesmos a capacidade de governo, tal como
qualquer animal se rege pelo seu espírito e alma”. Baldo tomava “povo” no sentido
geral de comunidade territorial, mesmo de âmbito menor do que o reino. Daqui
decorria que esta capacidade de se governar a si mesmo (iurisdictio) e de editar as

121 Objeto de ensino separado, logo no início do ensino de direito pátrio (Ms. 1824, 1988 e 1989

da Livraria do ANTT: "Systema de Direito Público de Portugal Feiro pelo D.or José Joaq. Vieira
Godinho, lente na Cadeira de Direito Pátrio na Univcrsidade de Coimbra, D.or na, Faculdadcs de
Cânones e Leis: Collegial do Real Colleção de S. Pedro na mesma Universdadc. etc. Escripta por seu
discípulo José Alvares da Fonseca e Costa no anno de 1777 e corregida no de 1778").
122 Citado por F. Calasso, Medioevo dei diritto, cit., 501.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

suas normas jurídicas próprias (iura propria, statuta) era geralmente atribuída a
qualquer comunidade humana com identidade territorial própria, desde a aldeia ao
reino (aldeias123, cidades124, comarcas125, províncias126). No espaço de um reino, esta
generosa atribuição de prerrogativas políticas colocava a questão de compatibilizar
a jurisdição dos corpos territoriais inferiores com a jurisdição real.
§ 103. Francisco Suarez no seu tratado sobre as leis127 aborda esta
compatibilização distinguindo dois tipos de comunidades, as perfeitas, que se bastavam
a si mesmas128, e as imperfeitas, que necessitavam do concurso de outras para o
desempenho das suas funções sociais. Só as primeiras disporiam de um poder
legislativo ilimitado (pleno). Quanto às segundas, o princípio geral era o de que
todas as comunidades territoriais “cidades” teriam capacidade de legislar (i.e. de
editar estatutos), desde que proporcionada ao âmbito da sua jurisdição (ou seja,
relativamente aos seus vizinhos, às coisas situadas no seu território, aos atos aí
praticados, aos crimes aí cometidos) e que respeitasse as competências legislativas
reservadas ao príncipe129. De qualquer modo, prossegue Suarez - agora em
polémica com a posição de Baldo antes citada no sentido da existência de uma
jurisdição natural em todos as comunidades territoriais -, os estatutos das cidades
que tenham reconhecido um superior e para ele tenham trespassado o seu poder
político originário necessitavam de aprovação do príncipe; aprovação que podia ser

123 Pagus ou villa era a povoação onde não havia nem governo nem tribunal próprio, ou seja, o

agregado desprovido de autonomia jurisdicional. Quanto muito, podia existir algum magistrado ou
oficial, com poderes delegados pelos magistrados da circunscrição político-administrativa em que se
inserisse. Em Portugal, aldeias eram os “casais”, “lugares” ou, mesmo, as freguesias (que apenas
tinham organização político-administrativa eclesiástica). No entanto, as Ordenações (Ord. fil.1, 65, 73/4)
previam a existência de juízes vintaneiros ou pedâneos, delegados dos juízes ordinários do concelho,
em aldeias maiores, com atribuições judiciais sobre causas de pouco valor.
124 As cidades eram as circunscrições com autonomia de governo. O direito conhecia uma

gradação entre elas, consoante o âmbito dessa autonomia (cf. António Manuel Hespanha, As vésperas
[…], ed. de 1986, cit., II.3). Na época moderna, o título de cidade era atribuído apenas a certos
aglomerados urbanos dotados de certa grandeza, definida por diversos critérios, dos quais se destacava
o ser sede de bispado (cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ed. de 1986, II.3). Em
termos mais gerais, porém, cidade era qualquer povoação com jurisdição separada, ou seja, com
autonomia de governo e de jurisdição; a que correspondia, no plano institucional, um órgão de governo
coletivo (em Portugal, uma câmara e juízes). Logo, o que a doutrina jurídica dizia, em geral, para as
civitates aplica-se, entre nós, aos concelhos (oppida, ou terras “com jurisdição separada”).
125 A comarca correspondia ao âmbito territorial da jurisdição de um corregedor (“correição”).

Rigorosamente, não compreendia as terras isentas de correição. Mas, na linguagem vulgar, a palavra
correição designava um território contínuo encabeçado pelo cabeça de correição (cujos limites
coincidiam com os da provedoria respetiva), ainda que dentro dele existissem terras senhoriais isentas
(António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ed. de 1986, II.3). Por extensão, também acontecia
chamar-se comarca às ouvidorias senhoriais.
126 A “província” era, em geral, a circunscrição atribuída à jurisdição de um magistrado. Em todo

o caso, o termo aplicava-se também a uma circunscrição com uma identidade apenas “natural”,
proveniente das características do ambiente físico e do temperamento das suas gentes. Em Portugal, as
províncias (Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e Algarve) não
tinham expressão institucional, salvo, a partir dos meados do séc. XVII, no domínio militar
(governadores [de armas] das províncias). Cf. sobre o conceito de província, António Manuel
Hespanha, As vésperas […], ed. de 1986, cit., II.3, sobre a sua identidade corográfica, Ana Cristina
Nogueira da Silva e A. M. Hespanha, “O quadro espacial” […], cit...
127 Tractatus de legibus […], cit..

128 E a que corresponderiam os reinos e aquelas cidades (como as repúblicas de Veneza, de

Génova, etc.) que não reconheciam superior (qui superiorem non recognoscunt).
129 Cf. Suarez, Tractatus de legibus […], cit., III, c. 9, n. 17.

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conferida caso a caso, por lei geral ou pelo uso e costume longamente praticados.
Como se vê, Suarez, contemporâneo das grandes monarquias da Época Moderna,
não pode já aceitar uma doutrina tão generosamente pluralista e descentralizadora
como a de Baldo; daí que exclua dos poderes de estatuição das comunidades as
matérias reservadas ao príncipe (regalia). Mas, sobretudo, que exija o acordo deste
para conferir validade aos estatutos locais. Em todo o caso, como se contenta com
um acordo tácito, indiciado por um uso longo e inveterado dos estatutos sem
oposição do príncipe, isto equivale a admitir que este tem que respeitar o direito
longamente usado nas comunidades locais, ou seja, a sua organização, os seus
costumes, os seus estatutos (v. cap. 2.5.6) 130.
2.4.1.2 Posturas, costumes locais e lei
§ 104. Em Portugal, todas estas questões foram tratadas pelos juristas. Porque,
apesar de não se conhecerem, aqui, pretensões de autonomia absoluta das cidades
(dos concelhos) em relação à coroa, o que é certo é que não eram raros os conflitos
em torno das prerrogativas da coroa e dos seus magistrados (nomeadamente, dos
corregedores) quanto aos ordenamentos jurídicos locais (posturas, costumes).
§ 105. Quanto à capacidade estatutária das cidades, a questão estava resolvida
nas próprias Ordenações. Na verdade, o tit. 1,66, pr. dispunha que competia aos
vereadores (à câmara) ter o “carrego de todo o regimento da terra [...], porque a
terra e os moradores dela possam bem viver”, especificando depois (§ 28 ss.) que
“proverão as posturas, vereações e costumes antigos da cidade, ou villa; e as que
virem são boas, segundo o tempo, façam-as guardar, e as outras emendar. E façam
de novo as que cumprir ao prol e bom regimento da terra”. Claro que se podia pôr
a questão (doutrinal) de saber se este poder estatutário era originário ou dependente
de concessão régia. Mas, fosse como fosse, ele estava estabelecido na lei, impondo-
se aos oficiais régios. De facto, as Ordenações também dispunham que “as posturas, e
vereações, que assim forem feitas [i. e. com audição da câmara, segundo um
processo estabelecido no § 28], o corregedor da comarca não lhas poderá revogar,
nem outro oficial ou desembargador nosso, antes as façam cumprir e guardar” (§
29). O rei, esse sim, poderia alterá-las se as julgasse inconvenientes, como podia
alterar a lei; por isso se determinava que os corregedores, no caso de depararem
com algumas posturas, “prejudiciaes ao povo e bem comum” dessem disso conta
ao rei, presumindo-se que ele escreveria à câmara insinuando a revogação delas, ou
mesmo que as revogaria ele próprio. O rei proveria pelo Desembargo do Paço, o
seu tribunal “de Graça”.
§ 106. Apesar deste reconhecimento da capacidade estatutária dos concelhos,
o direito continha certas regras limitativas. Por um lado, as posturas não poderiam
contemplar matérias cuja regulamentação estava reservada ao rei (regalia), como a
criação de monopólios (estancos) ou a imposição de tributos gerais. Por outro lado,
estando a capacidade de autogovemo dos concelhos ordenada ao bem particular da
terra, não poderiam estes editar normas de âmbito geral. Por fim, as posturas não
poderiam ofender direitos concedidos em geral, nem tomar ilícito o que, de outro
modo, fosse lícito131. É a partir destas regras que se estabelece a casuística daquilo

130 As mesmas restrições se notam quanto à questão de saber se o direito ou os estatutos locais

podem revogar a lei geral. Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.
131 Mas admitia-se que, obtido o acordo geral, nos termos prescritos nas Ordenações (Ord. fil.1, 66,

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

que as câmaras podiam ou não regular por postura 132. O carácter aparentemente
humilde dos temas regulados não nos deve iludir quanto à importância destas
normas nas comunidades locais. De facto, que há de mais decisivo para a vida de
comunidades agrárias do que essas questões de águas, de pastos, de regimentos dos
mercados e das atividades económicas de que tratam as posturas?
§ 107. Uma outra questão era a de saber se as posturas podiam contrariar a lei
geral. As Ordenações (Ord. fil.1,66,29) declaram nulas as posturas que “forem feitas,
não guardada a forma” nelas estabelecidas (i. e. as feridas de vício formal, quanto ao
seu processo de feitura: v. g, não votadas em câmara). Mas não estende o mesmo
princípio às que contradigam, na substância, o disposto na lei régia. Em todo o
caso, a doutrina interpretava esta disposição extensivamente, extraindo daqui o
princípio de que as posturas “não podiam contradizer as leis superiores”133. No
entanto, a ficção de que as posturas vigoravam com o acordo tácito do rei, uma vez
feitas com o concurso dos juízes locais, representantes do monarca, jogava neste
caso a favor do direito local, mesmo que este fosse contrário à lei geral. De facto, a
postura que contrariasse a lei era como que uma derrogação de uma norma geral
num âmbito local, feita com o acordo tácito do rei, mantendo com o direito do
reino a mesma relação que, em termos gerais, o direito próprio mantinha com o
direito comum-. O mesmo se podia dizer dos costumes.
2.4.1.3 Jurisdição concelhia e jurisdição senhorial.
§ 108. A jurisdição dos concelhos também se impunha à jurisdição dos
senhores das terras, donatários da coroa (v. a seguir, cap. 2.4.3). Como a jurisdição
local era dos concelho e não do rei, ele não a podia doar. Portanto, a jurisdição
senhorial sobre as terras cujo senhorio tivesse sido doado era apenas a faculdade de
o senhor (ou os seus ouvidores) conhecerem por apelação das decisões dos juízes
das terras, dando recurso, por sua vez, para o tribunal da corte134.
2.4.1.4 Magistrados e oficiais dos concelhos.
§ 109. Um outro aspeto do autogoverno era constituído pela autonomia
concelhia na escolha dos magistrados e oficiais locais, bem como pela forma
autónoma e plena com que estes desempenhavam as suas funções. Explicar uma e
outra coisa supõe, no entanto, uma breve descrição das magistraturas, órgãos e
ofícios dos concelhos.
§ 110. Podemos sistematizar os oficiais locais em várias categorias. A primeira
será a dos oficiais de governo. Deles fazem parte, desde logo, os oficiais de governo,
que integram a câmara concelhia.
§ 111. Comecemos pelos vereadores. De acordo com as Ordenações Filipinas (Ord.
fil.1,66), competia, em geral, aos vereadores “ter cargo de todo o regimento da terra,

28), se estabelecessem penas e multas, se proibisse ou obrigasse à venda, se estabelecessem regimes


obrigatórios de pasto, de rega, etc.. Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.
132 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 5 (ad Ord. fil.1, 66, 28), c. 4; João

Baptista Fragoso, Regimen […], 1, 1, 7, disp. 19, § 1.


133 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 5 (ad Ord. fil.1, 66, 28), c. 7, n. 2.

134 V. Ord. fil.2, 45, 50 e 3, 71; cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9 (ad Ord.

fil.2, 28, rubr), n. 82 ss. (p. 306). O princípio de que aos senhores cabia apenas a jurisdição de recurso
fora já estabelecido em Portugal por uma lei de 1372. Cf. sobre isto, António Manuel Hespanha,
História das instituições [...], cit., 283.

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e porque a terra, e os moradores della possão bem viver” (Ord. fil.1,66, pr.)135. Os
vereadores eram eleitos pelos homens bons do concelho pelo sistema dos pelouros
descrito nas Ordenações136, embora a prática se afastasse, por vezes, do sistema legal.
Basicamente, o sistema era o seguinte: seis “eleitores”, escolhidos de entre os mais
aptos pela elite local, elaborava uma lista das pessoas “que mais pertencentes lhes
parecerem para os carregos do concelho”137. Confrontadas as listas e apurados os
que mais votos tinham para cada magistratura ou ofício, os seus nomes eram
escritos numa nova lista (“pauta”) e tirados à sorte os conjuntos de magistrados ou
oficiais para o próximo triénio. Os não sorteados ficavam para os triénios seguintes,
até se esgotarem os nomes constantes da “pauta” (cf. Ord. fil.1,67). Como se vê,
este sistema garantia aos notáveis locais (meliores terrae, “gente da governança”) a
ocupação ou distribuição das magistraturas por apaniguados seus. Nalgumas terras,
normalmente nas mais importantes, a escolha final parece ter passado a ser,
frequentemente, feita na corte (Desembargo do Paço), para onde eram enviadas as
pautas138. Noutras terras vigoravam costumes locais diferentes. Noutras, ainda,
eram os senhores que nomeavam as justiças, embora esta faculdade carecesse de
doação régia expressa.
§ 112. Quer a escolha fosse local ou não, os vereadores e as “justiças” do
concelho, uma vez investidos, tinham uma área autónoma de competência prevista
na lei e garantida pelo direito contra a usurpação. E, na legislação e jurisprudência
seiscentista e setecentista, são frequentes as determinações no sentido de se
respeitar a autonomia desta área jurisdicional. Tais determinações dirigiam-se,
nomeadamente, aos corregedores ou aos poderosos locais, assim como - por
ocasião das guerras da Restauração e da consequente tendência para a militarização
da administração, pelo menos nas zonas de guerra - aos governadores de armas das
províncias. Mas também existem testemunhos de independência das câmaras em
relação aos donatários, inclusivamente àqueles que as nomeavam ou confirmavam.
§ 113. Os três139 vereadores, com os juízes e, eventualmente, com os mesteres,
formavam a câmara. Ao lado dos vereadores, e eleitos pelo mesmo sistema,
existiam os almotacés140, com competência especializada no domínio do

135 Competência que a lei (Ord. fil.1, 66), seguidamente, miudamente especifica, em atribuições do

domínio político (defesa das jurisdições do concelho, n. 13; elaboração ou modificação de posturas, n.
28 ss.); do domínio económico - no sentido alargado que a palavra tem na linguagem política moderna
(guarda e gestão dos bens do concelho, ns. 2, 6, 12; supervisão das obras do concelho, n. 24; fomento
da arborização, n. 26; garantia do abastecimento, n. 8; tabelamento dos preços e dos salários, n. 32 s.);
do domínio financeiro (decidir sobre despesas do concelho e fazê-las escriturar, propor aos
corregedores ou Desembargo do Paço o lançamento de fintas, gerir fundos especiais, ns. 35 ss. 40 ss.
44 ss.); do domínio judicial (julgar os feitos de almotaçaria e de injúrias verbais, n. 5). Para enumeração
exaustiva e comentário, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 5 (ad Ord. fil. 1, 66).
136 Ord. fil.1, 67. “Pelouros” eram bolinhas de cera nas quais se metia um papelinho com o nome

de um conjunto de juízes, vereadores, etc.


137 Ou seja, para juízes, para vereadores, para procurador, para tesoureiro, para escrivão da

câmara, para juiz e escrivão dos órfãos (onde fossem feitos por eleição) ou para quaisquer outros
oficiais que costumassem ser eleitos (Ord. fil.1, 67, pr.).
138 Sobre a evolução do sistema de eleições e justiças durante os séculos XVII e XVIII, Cf.

António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.


139 Nas terras mais pequenas era muito comum haver apenas dois vereadores (e um só juiz, em vez

de dois).
140 Ord. fil.1, 69.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

abastecimento e da regulamentação edilícia. Eleito era, ainda, o procurador do


concelho141, a quem competia agir em nome deste em juízo ou fora dele142.
§ 114. Estes ofícios concelhios eram “honorários”. Ou seja, desempenhados
por titulares eventuais (e não de carreira) escolhidos pelos povos e não
remunerados. O interesse do desempenho dos cargos estaria, então, no prestígio
que traziam. Mas também, num plano menos imaterial, nas possibilidades de,
usando da situação de preeminência social e política que eles garantiam, obter
vantagens económicas diversas143.
§ 115. A panóplia dos oficiais “políticos” do concelho (na aceção do termo na
Época Moderna) era completada com os escrivães da câmara e escrivães da
almotaçaria e com uma série de funcionários subalternos. Quanto ao escrivão da
câmara144, era o escrivão ordinário do concelho, encarregado de reduzir a escrito o
expediente da vereação. O escrivão da almotaçaria, por sua vez, era o funcionário
encarregado de escrever perante os almotacés, nomeadamente em matéria de
coimas e achadas, de almotaçaria, de pesos e medidas145.
§ 116. Um outro grupo de funcionários locais era o dos oficiais de justiça.
§ 117. Dele faziam parte, desde logo, os juízes, cujas funções146 ultrapassavam
aquilo que hoje se entende ser a função jurisdicional. De facto, para além das
funções de administração da justiça147, os juízes tinham atribuições no domínio da
manutenção da ordem148, da defesa da jurisdição real149, da contenção dos abusos
dos poderosos, da polícia (nomeadamente, das estalagens); das batidas aos lobos;
para além de deverem assistir os vereadores e almotacés 150 no exercício da sua
jurisdição especial em casos de injúrias a almotacés. A legislação extravagante vai
progressivamente confiar-lhes novas atribuições, nomeadamente aos juízes de fora,

141 Ord. fil.1, 69.


142 Ord. fil.1, 70, 2.
143 Sobre os tipos de vantagens auferidas pelos magistrados camarários, v. António Manuel
Hespanha, As vésperas [...], cit., II, 4.
144 Ord. fil.1, 71.

145 Dos restantes funcionários da administração concelhia ocorrentes nas fontes, referiremos,

como oficiais menores ou executivos, o meirinho do concelho, encarregado de fazer executar as


decisões dos órgãos dos concelhos e de fazer observar as posturas e regimentos locais; o porteiro do
concelho, encarregado das relações entre a câmara e o público ou outros órgãos; o tesoureiro do
concelho (Ord. fil.1, 70), encarregado de arrecadar as receitas do concelho e de efetuar as suas despesas;
os recebedores, cobradores, mordomos. Como oficiais especializados, os escrivães e almoxarifes das
achadas, que se encarregavam, em alguns concelhos, de parte das funções dos escrivães da almotaçaria
(escrivaninha do gado achado nos lugares e tempos defesos), os escrivães e recebedores das feiras -
provavelmente, ou oficiais encarregados de escreverem e receberem as taxas concelhias pagas pelos
feirantes, ou oficiais encarregados da escrituração e arrecadação das sisas (inclino-me para a primeira
hipótese) -, os oficiais das fontes (escrivães, mestres, olheiros) ou das obras (escrivães, meirinhos,
vedores).
146 Ord. fil.1, 68.

147 No domínio das funções jurisdicionais, competia aos juízes a jurisdição ordinária do concelho,

julgando definitivamente dentro das suas alçadas (valores destas: Ord. fil. I, 68, 4 ss.) e dando apelação e
agravo, daí para cima, para a Relação do distrito. Além do título das Ordenações que vimos citando, há
legislação avulsa sobre os juízes. A principal pode ser encontrada em Manuel Fernandes Thomaz,
Repertorio geral […], s.v. “juiz”.
148 Ord. fil.1, 68, ns. 3 ss. 13 a 15 e 39 ss..

149 Ibid. n. 16 ss..

150 Ibid. n. 23 ss.

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que, com os corregedores, são, em Portugal, os pivots periféricos da administração


real151.
§ 118. Os juízes podiam ser, como se sabe, oficiais honorários - não letrados,
eleitos pelos povos de acordo com o processo previsto nas Ordenações a que já nos
referimos, não remunerados - ou oficiais de carreira - letrados, e de nomeação régia.
No primeiro caso, estamos perante os juízes ordinários; no segundo, perante os
juízes de fora. Contrariamente a uma ideia corrente, as justiças de uma esmagadora
maioria dos concelhos eram, ainda nos séculos XVII e XVIII, justiças honorárias.
Nos meados do séc. XVII, havia 65 juízes de fora num total de mais de 850
concelhos de Portugal continental, o que corresponde a dizer que apenas 8% das
terras com jurisdição separada tinham justiças de carreira. Nos restantes concelhos
existiam os dois juízes da Ordenação, não letrados e honorários152 Durante a segunda
metade do século XVIII, o número dos juízes de fora aumenta, mas nunca
ultrapassando a quota de 20 %.
§ 119. Das estruturas do oficialato da justiça local faziam ainda parte, os
tabeliães e escrivães, os contadores, distribuidores e inquiridores e outros oficiais
menores (porteiros, carcereiros, etc.). A função dos tabeliães ou escrivães era a de
reduzir a escrito os atos jurídicos ou judiciais. As Ordenações distinguiam os tabeliães
das notas, encarregados de redigir os instrumentos jurídicos que carecessem de fé
pública (Ord. fil.1,78), e os tabeliães judiciais153, encarregados da redação dos atos
judiciais praticados perante os juízes locais (Ord.fil.1,79)154. Embora a maior parte
dos atos jurídicos não fosse reduzida a escrito155, os tabeliães desempenhavam,
neste mundo local, um importante papel de difusão de fórmulas e princípios (em
versão vulgarizada) da cultura jurídica local (v. 3.1.2.2). O mesmo papel de
mediação que, no domínio da cultura religiosa, era desempenhado pelos párocos.
Não admira, portanto, que as fontes da época os descrevam frequentemente como

151 Cf. por exemplo, a provisão de 13.1.1580, que os encarrega do lançamento das sisas; o

regimento de 23.1.1643 (art.º 10.°), que lhes comete a superintendência da cobrança do real de água; a
CR de 15.12.1644, que lhes comete a substituição dos provedores nas terras da rainha. No séc. XVIII,
com a intensificação da política de controlo da periferia, chovem sobre eles novos encargos: vigilância
do contrabando, da edição de panfletos satíricos, julgamento dos feitos da alfândega na falta de juiz
próprio, inspeção dos passaportes, arrecadação do subsídio literário, delegados locais do intendente de
polícia, julgamento dos feitos das coutadas, etc..
152 Um dos argumentos tradicionais das teses que descrevem o sistema político moderno como

“centralizado” é justamente o da substituição dos juízes ordinários por juízes de fora, de nomeação
régia. O que acaba de ser dito mostra até que ponto tais teses são, pelo menos neste particular,
infundadas. Para os finais do séc. XVIII, v. Nuno Gonçalo Monteiro, “As comunidades territoriais”,
cit., pg. 310.
153 O exercício da profissão estava sujeito a exame pelo Desembargo do Paço, destinado a
verificar “se bem escrevem, e bem leem, e se são pertencentes para os officios” (“Reg. dos
desembargadores do Paço”, no fim do liv. I das Ord. fil. n. 71), sendo-lhes passada carta pelo mesmo
tribunal (n. 56), embora o depósito do seu sinal público seja feito na relação do distrito (Ord. fil.1, 44; cf.
ainda, para as terras senhoriais, Ord. fil.2, 45, 16).
154 Uma ideia do tipo de atos praticados pelos tabeliães e notários e da frequência de cada um

destes tipos na época a que nos reportamos pode ser formada a partir da publicação Index das notas de
vários tabeliães de Lisboa entre os anos de 1580 e 1747, Lisboa 1931-1935, 4 vols.; ou em “lndice dos livros de
notas do escrivão Christovam d' Azevedo”, Boletim de trabalhos históricos. Arquivo Municipal Alfredo Pimenta,
18(1956), 188; 19(1957), 183; 23(1963) 1005; 24(1964) 100; 25(1965) 147.
155 Sobre o tema e suas consequências histórico-culturais, António Manuel Hespanha, As vésperas

[...], cit., 439 ss..

56
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

verdadeiros centros do poder institucional local, enquanto assessores dos juízes e


consultores jurídicos dos particulares. Os contadores (Ord. fil.1,91) são os oficiais
encarregados de contarem as custas dos processos. Os inquiridores (Ord. fil.1,86)
inquirem as testemunhas. Os distribuidores (Ord.fil.1,85), por sua vez, têm a função
de distribuir as escrituras ou os feitos entre os vários tabeliães do concelho, para
evitar que a concorrência entre eles promova formas de angariação de clientes
contrárias à deontologia e ao interesse geral. Trata-se, em todos os casos, de ofícios
de carreira, de tipo patrimonial (como os dos tabeliães) e de rendas exclusivamente
emolumentares. Apareciam, finalmente, outros oficiais subalternos das justiças
concelhias. Os carcereiros (Ord. fil.1,77) eram os mais frequentes. Mas, no mesmo
ramo de atividade, existiam também os levadores dos presos, encarregados do
transporte dos presos, nomeadamente para as cadeias comarcãs. Mais raros eram os
escrivães das aldeias e os escrivães dos testamentos, espécie de desdobramento dos
escrivães notariais e judiciais do concelho, com funções nas aldeias mais distantes
ou isoladas (v. Ord. fil.1,78,20).
§ 120. Relacionados com este mundo dos oficiais locais, os advogados, quer os
formados em Direito, quer os procuradores ou advogados do número (v. cap.
7.1.8), que, na linha dos antigos vozeiros medievais, asseguravam a representação
judiciária no processo judicial tradicional e não letrado 156. Do mesmo tipo eram os
chegadores das demandas ou avindores, cuja função era a de promover o acordo
entre as partes157.
§ 121. Um outro ramo do oficialato local, ainda próximo do anterior, é o dos
órfãos (v. cap. 3.3.2.1). As Ordenações dispunham, de facto, que em todas as terras
com mais de 400 vizinhos houvesse magistrados encarregues da cura dos interesses
dos órfãos, em homenagem à ideia de que ao poder competia a proteção daqueles
que, em virtude de uma diminuição da sua capacidade (capitis deminutio) ou de
condições sociais concretas, não estavam capacitados para assumir pessoalmente a
defesa dos seus interesse (incapazes, pessoas coletivas, pobres, viúvas, órfãos,
dementes, pródigos, ausentes e, até, defuntos) 158. O principal dos oficiais dos órfãos
era o juiz dos órfãos, eleito nos termos em que os eram os juízes ordinários. A ele
competia organizar o cadastro dos órfãos e vigiar a administração dos seus bens
pelos respetivos tutores (ns. 3 e 22), organizar os inventários de menores (n. 4 ss.),
prover quanto à criação, educação e casamento dos órfãos (n. 10 ss.) e julgar os
feitos cíveis em que fossem parte órfãos, dementes ou pródigos e os feitos sobre
inventários e partilhas em que houvesse menores (n. 46 ss.) 159. Auxiliares dos juízes
dos órfãos são os escrivães dos órfãos (Ord. fil.1,89) que deviam manter o registo
dos órfãos (n. 3), escrever nos inventários (n. 4), nos assentos das tutorias (n. 4),
nos contratos sobre bens dos órfãos até certa valia (n. 5).
§ 122. Passando para o domínio fiscal, encontramos, ainda nos quadros do
oficialato local, os ofícios das sisas. Os oficiais das sisas estão, em geral, previstos

156 V. Ord. fil. 1, 48. Cf. sobre estes últimos oficiais e sobre a apreciação que deles fazia a doutrina

erudita, Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..


157 Cf. o regimento que lhes foi dado em 20.1.1519, citado por José Anastácio de Figueiredo,

Synopsis chronologica, 1, 231/2.


158 Cf. para o nosso direito, os comentários de Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., t. 7

(ad I, 87), João Baptista Fragoso, Regimen […], pt. 1, liv. 6, disp. 15.
159 Dava apelação para a Relação do distrito (Ord. fil. 1, 88, 46).

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nos regimentos das sisas dos séculos XV e XVI 160. Em virtude do regime de
encabeçamento das sisas - pelo qual os concelhos (na verdade, apenas cerca de um
terço deles) tinha contratado com a coroa o lançamento e cobrança das sisas a
troco da prestação de uma quantia fixa anual (“cabeção das sisas”) - toda a atividade
de lançamento e de cobrança das sisas, bem como a própria atividade contenciosa
daqui decorrente, era da responsabilidade dos órgãos concelhios, que deviam
promover o processo de arrendamento, repartição e cobrança do tributo (Regimento
de 1572, c. 1 ss.), por intermédio de oficiais por eles apresentados 161. Na falta destes,
os agentes da administração ativa, no domínio das sisas, eram, portanto, os próprios
oficiais do concelho, recorrendo-se também às justiças concelhias para a execução
dos revéis no pagamento do tributo (Regimento de 1476, c. 31)162.
§ 123. Neste capítulo das sisas, o caso de Lisboa é particular. Aí, as sisas eram
cobradas em repartições especiais (“casas”, “Sete casas”) cada qual dedicada a
certos tipos de mercadoria. Do mesmo modo, os seus aparelhos administrativo-
burocráticos são também diferentes (e mais completos)163.
§ 124. Um último grupo de oficiais locais é constituído pelos oficiais militares.
§ 125. A organização das milícias locais, ou ordenanças, data dos finais do
século XVI (regimento de 10.12.1570)164. Aí se dispunha que, sob o comando
supremo do capitão-mor (normalmente, o alcaide-mor da terra), servisse a antiga
milícia concelhia, agora organizada em companhias de ordenança às ordens de
capitães, alferes e sargentos, eleitos pelos oficiais da câmara e gente da governança
(n. 1 ss.). Estamos, como se vê, perante uma organização militar - de resto pouco
efetiva antes das guerras da Restauração165 - de carácter miliciano, sujeita a oficiais

160 Artigos das sisas, de 27.9.1476 (em José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., vol. 1, cit., pp.

205); Regimento do encabeçamento das sisas de 5.6.1572 (ibid. 278 ss.). Sobre a problemática da data e edição
destes regimentos, José Anastácio de Figueiredo, Synopsis […], cit., tom. 1, 109 e 236 ss..
161 Para a escolha dos juízes das sisas cf. cap. 31 dos Artigos de 1476.

162 Detalhes suplementares em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4 e II.5 a).

163 Descrição detalhada em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.

164 Publicado em Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, pp. 264 ss. (com

diplomas complementares); José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., vol. 5, pp. 183 ss. (com outros
diplomas dos sécs. XVI, XVII e XVIII sobre a organização militar). Cf. também Mapa. Memória da
administração pública brasileira (http://linux.an.gov.br/mapa/?p=4768).
165 Logo nas cortes de Tomar de 1580, quer a nobreza, quer os povos, pedem a extinção dos

alardos e dos ofícios das ordenanças pelas “vexações” e “opressões” que traziam aos povos (cap. XXX
III do povo e XIII da nobreza). Também Manuel Severim de Faria recomendava a isenção de serviço
militar como um dos privilégios com os quais se podiam motivar os lavradores para aumentar as suas
culturas (cf. “Arbitrios pera a abundancia de pam em Portugal”, intr. e notas de Vitorino Magalhães
Godinho, em Rev. de hist. econ. e soc. 5(1980), 108). São as grandes reformas militares de D. João IV que
modificam radicalmente a organização honorária da milícia (Regimentos das ordenanças, retomando a
regulamentação sebástica, de 1642; criação da Junta dos Três Estados para o controlo financeiro e
logístico das tropas; decreto de 18.1.1643 e Regimento de 9.5.1654, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol.
respetivo; Regimento do Conselho de Guerra, de 22.12.1644 - cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria
[…], cit., tom. 12, pp. 279 ss. e Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.; Regimento das fronteiras, de
29.7.1645 - cf. José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., tom. 5, pp. 416 ss.; Regimento dos
governadores de armas de 1.1.1650 e de 1.6.1678 - fundamental que, com os que instituem o Conselho
de Guerra e a Junta dos Três Estados, cria uma estrutura permanente de comando e controlo financeiro
e logístico, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, 59; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit.,
tom. 12, pp. 284 ss.; José Roberto […] Soisa, Systema […], cit., tom. 5, pp. 180 ss. O carácter
revolucionário desta nova estrutura militar fica expresso nos problemas políticos e militares que causou e

58
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

honorários e em que as tropas locais não estavam integradas em qualquer cadeia


permanente e organizada de comando.
§ 126. Isto também valia quanto aos alcaides-mores dos castelos (cf. Ord.
fil.1,74), pois a sua importância efetiva decaíra muito com as novas conceções de
estratégia166.
2.4.1.5 Dimensões do autogoverno
§ 127. A amplitude do autogoverno dos concelhos mede-se também pelo grau
de autonomia do exercício das atribuições destes oficiais. Daí que importe fazer o
balanço da sua autonomia ou dependência institucional.
§ 128. Começando pelos juízes. Os juízes concelhios eram os juízes ordinários
na área concelhia. Isto quer dizer que lhes competia, em geral, a jurisdição sobre
todas as causas, excluídas apenas as que fossem da competência de um juiz especial
(como, v. g. o juiz dos órfãos ou o juiz das sisas). Esta jurisdição era exercida com
grande autonomia. De facto, não tinham que receber ordens de qualquer
magistrado régio (ou senhorial, no caso de terras de donatários), nomeadamente do
corregedor. Este apenas podia, em relação aos juízes, verificar se estes cumpriam os
seus regimentos, administrando a justiça honestamente e nos termos das Ordenações
(cf. Ord. fil. 1,58,1-6). Mas das sentenças dos juízes apenas se podia recorrer, nos
termos do direito, para as Relações respetivas, recurso que era obrigatório,
oficiosamente (“por parte da justiça”), nas causas crime de maior gravidade, que
não podiam, portanto, ser definitivamente sentenciadas a nível local. Isto quer dizer
que, em Portugal (ao contrário do que acontecia em Castela ou em França), as
justiças concelhias funcionavam (salvo no crime) de modo independente, com
recurso a magistrados eleitos localmente e jurisdicionalmente autónomos. E, como
a competência jurisdicional dos juízes superava amplamente as matérias
propriamente judiciais, tal autonomia de decisão era também o sinal de uma
autonomia jurisdicional de âmbito mais vasto.
§ 129. A autonomia dos concelhos na eleição dos seus magistrados é um outro
dos pontos que caracterizam a autonomia local, mas menos decisivo do que o
anterior. Na realidade, que as magistraturas concelhias fossem formalmente
nomeadas por uma entidade estranha ao concelho (em geral, o rei ou o senhor) não
diz grande coisa sobre onde residiam efetivamente os centros de decisão, nem
impedia que, depois de eleitas, estas gozem da ampla autonomia jurisdicional antes
mencionada, ficando desvinculadas da entidade que as tinha designado e, em
contrapartida, sujeitas ao controlo dos restantes órgãos concelhios 167.
§ 130. Um outro aspeto da autonomia da vida institucional local era o do
provimento dos ofícios municipais. Embora houvesse uma polémica sobre o
assunto, a doutrina dominante entendia que, ainda que a concessão dos ofícios
camarários pudesse ser do rei, as câmaras gozavam, em princípio, do privilégio de
os prover, privilégio que apenas podia ser revogado nos termos gerais (ou seja,

que levaram à extinção, em plena guerra, dos governadores de armas, a pedido dos povos (em
13.3.1654; cf. Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo).
166 Cf. António Manuel Hespanha (org.). “Nova História Militar de Portugal – séculos XVI-XVII”,

cit..
167 Cf. sobre este ponto, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.5.

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ocorrendo uma justa causa relacionada com a suprema utilidade pública) 168.
§ 131. Por último, um importante fator de autonomia ou dependência política
eram as finanças. Neste plano, a base da autonomia concelhia consistia em que o
concelho pudesse fazer frente aos seus gastos com recurso às receitas próprias.
Apesar de, durante os séculos XVII e XVIII, ter havido momentos de crise
financeira que atingiram também os concelhos, o certo é que as instituições
concelhias dispunham de uma capacidade de resistência à crise maior do que as da
administração central. Nestas, de facto, o volume dos gastos (com salário ou
mercês e despesas fixas de funcionamento) era relativamente grande e
incomprimível. Enquanto que, nos concelhos, como uma administração honorária
ou paga com emolumentos, as despesas fixas eram muito menores, pelo que o
aparelho político-administrativo se podia adaptar melhor aos períodos de
penúria169.
2.4.1.6 O controlo do centro.
§ 132. Existiam, é certo, vínculos institucionais que colocavam os concelhos
sob um certo controlo da coroa. Estes vínculos consubstanciavam-se na ação de
algumas das magistraturas da administração periférica da coroa, nomeadamente na
área do governo político, da justiça e da fazenda.
§ 133. No domínio do governo político, os concelhos estavam sujeitos à tutela
do Desembargo do Paço, que a exercia por intermédio dos corregedores (cf. Ord.
fil.1,58)170. Eram estes magistrados que superintendiam na administração política
dos concelhos, verificando se ela decorria de acordo com as leis e regimentos. Esta
superintendência decorria, no entanto, sob a forma de uma tutela externa e não de
um verdadeiro poder de direção; daí que os corregedores, se podiam verificar a
legalidade da administração do concelho, não podiam, no entanto, dar instruções
aos seus órgãos, nem tão pouco avocar as suas competências 171. Em face do que
acaba de ser dito, parece lícito concluir-se que a eficácia dos corregedores como
instrumentos de subordinação político-administrativa do reino era relativamente
modesta, pelo menos em confronto com outras experiências europeias de
constituição de níveis periféricos da administração régia. Experiências que, como
veremos, são a fonte de inspiração da nova política da administração inaugurada
nos meados do século XVIII (v. cap. 2.4.3)172.
§ 134. Outro instrumento régio de controlo da administração real eram os
provedores, encarregados de tutelar a cura dos órfãos e de outras entidades que o

168 Cf. alv. 28.2.1634 (JJAS). Detalhes em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.5 e
Cf. 3.V.
169 Nuno Gonçalo Monteiro, “As comunidades territoriais” […], cit., pp. 322 ss..; Luís Nuno

Rodrigues, “Um século de finanças municipais […]”, cit..


170 Cf. para mais detalhes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.5 c).

171 Salvo nos casos em que isto era permitido por lei, como, v.g. no caso da avocação das ações

judiciais em que fossem partes poderosos locais ou, em geral, em relação a qualquer ação, enquanto
estivesse na terra (Ord. fil.1, 58, 22-23).
172 Nas terras senhoriais isentas de correição, este controlo da coroa não tinha lugar. Nem os

ouvidores senhoriais aí assumiam as funções dos corregedores. Na verdade, entendia-se que apenas
tinha sido doado o privilégio de isenção de correição real, mas não o de os ouvidores senhoriais
exercitarem os poderes de correição.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

direito considerava feridas de incapacidade, de que o rei era um supremo protetor


(confrarias, capelas, hospitais, cativos, defuntos e ausentes) (cf. Ord. fil.1,62). Em
relação aos órgãos concelhios, tutelavam a atividade dos juízes dos órfãos (Ord.
fil.1,62,34/5); dos tabeliães, em matéria de “resíduos” i.e. de bens deixados por
morte para os quais não houvesse sucessor) (v. cap. 5.3.1.5); dos tesoureiros dos
concelhos em matéria de rendas concelhias (Ord. fil.1,62, 67 ss.); e dos restantes
oficiais concelhios em matéria de obras (cf. Ord.fil.1,62,71)173. Como contadores,
estavam encarregados da inspeção das finanças dos concelhos, nomeadamente para
garantir que estes pagavam à fazenda real a “terça de obras” (v. Ord. fil.1,62,67 ss.;
72 ss.).
§ 135. Tal como acontecia com os corregedores, as relações entre os diversos
níveis desta estrutura não eram, porém, de hierarquia administrativa (de “direção”),
mas antes de tutela, em que o funcionário de escalão superior se limita a controlar a
atividade do de escalão inferior por meio da reapreciação dos seus atos aquando de
recurso ou da inspeção ou residência.
§ 136. Também dos juízes de fora se poderia dizer - e efetivamente isso foi
dito - que desempenham a mesma função de controlo, tanto no plano do direito
como no do governo (já que eles presidiam à câmara). Não sublinharemos, no
entanto, este aspeto, pois o estatuto do juiz de fora é igual, no que respeita à sua
autonomia em relação a cadeias hierárquicas, ao do juiz ordinário, estando ambos
apenas sujeitos a um controlo indireto, ou através dos mecanismos do recurso, ou
através da sindicância periódica destinada apenas a verificar da observância das
obrigações impostas pelo regimento174. Também a tentativa de transformar os
juízes de fora em supervisores dos juízes eleitos das terras vizinhas não vingou até
muito tarde. D. João I ensaiara-o, com o argumento de que era provável que estes
últimos não “pudessem fazer direito”. Mas, face às reações, desiste do seu intento
(cf. Ord. af. 2,59,6). Durante o século XVIII, formou-se a prática de alguns juízes de
fora exercerem jurisdição sobre concelhos vizinhos menos importantes (concelhos
anexos ou “concelhinhos”), prática que é coonestada, para os casos em que
existisse, pelo alv. de 28.1.1785 (Coll. Chron. Leg. [A.D.S.], vol. respetivo.). Apesar
disso, o juiz de fora apenas de forma muito indireta servia o controlo dos poderes
periféricos pelo poder central.
2.4.1.7 O poder municipal nos fins do Antigo Regime
§ 137. O pombalismo175 significou, no plano do imaginário e das estratégias de
poder, a abertura – que depois se continuará no liberalismo político - de estratégias
de “racionalização” e de disciplina da sociedade e de centralização e estadualização
do poder. Ou seja, de construção de uma sociedade regida por normas abstratas,
visando o interesse geral e disciplinada por um poder único e exclusivo, de que
todos os outros eram meros reflexos ou manifestações. Foi por isso que, se, no
plano da organização social, se reagiu muito fortemente contra todas as formas de
“irracionalidade”, no plano da organização política, se e procurou exterminar todas

173 Cf. para mais detalhes sobre fontes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II. 4.
174 Sobre a residência (sindicância ou inspeção) dos juízes de fora e dos corregedores, feita por um
desembargador nomeado pelo rei, v. Ord. fil.1, 58, 31 ss.; 1, 60.
175 Cf. José Manuel Subtil, O Terramoto Político (1755-1759) - Memória e Poder […], cit..; também,

José Sebastião da Silva Dias, “O sentido político do pombalismo” […], cit..

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as manifestações de pluralismo político, reduzindo os anteriores polos políticos


(pelo menos os mais visíveis) a simples delegações do poder do centro.
§ 138. O poder municipal não constituía uma exceção.
§ 139. O modo negativo como se encarava a administração concelhia - movida
por interesses particulares, dominada pelo arbítrio e pelo irracionalismo, privada
das luzes das novas ciências da sociedade - está bem expresso, por exemplo, em
todos os preâmbulos legislativos onde se procede a reformas territoriais176 ou em
que se instituem juízes de fora. Num alvará de 4.2.1773, em que se cria um lugar de
juiz de fora, referem-se as perturbações, “que costumam nascer do governo de
juízes ordinários, e de magistrados naturais das mesmas terras, nos quais, além de
faltar a ciência do direito para a boa direção dos negócios, acrescem as paixões, que
costumam produzir o amor e o ódio, em grave dano do bem comum dos povos”.
Noutro, de 23.7.1766, em que se regula a administração dos baldios pelas câmaras,
denuncia-se a irracionalidade e egoísmo dos critérios utilizados, “repartindo-se
entre si, seus parentes e amigos, os vereadores, e mais pessoas que costumam andar
nas governanças, por foros e pensões muito diminutas; praticando estas lesivas
alienações debaixo de pretextos na aparência úteis, e na realidade nocivos ao
progresso, e aumento da lavoura, e criação dos gados, à subsistência dos povos, e
aos importantes objetos, a que foram aplicadas as rendas dos concelhos”. Num
outro (de 28.8.1766, em que se revoga a isenção de correição do couto do mosteiro
de Arouca), relatam-se de forma pitoresca os abusos dos poderosos e a
incompetência e dependência das justiças locais: “se acha administrada a justiça por
juízes ordinários, não só leigos; ficando os delitos mais graves sem a competente
satisfação por falta das precisas averiguações, e dos justos procedimentos; e nas
causas cíveis preterida toda a ordem do judicial; e as decisões dellas sujeitas às
paixões da afeição, ou ódio; mas ainda rústicos, que apenas sabem pôr o seu nome,
e por isso dirigidos pelos advogados, escrivães, e outros oficiais de justiça da vila,
que se têm coadonado com outras pessoas seculares, e eclesiásticas poderosas para
satisfazerem as suas paixões, e interesses; de sorte que por um abuso neles
inveterado de não observarem as leis, divinas, e humanas, nem obedecerem às
minhas justiças, se têm precipitado em tais atrocidades”.
§ 140. Se consultarmos a literatura reformista dos finais do século, o quadro
de críticas é ainda mais expressivo. “O governo económico de um povo - escrevia
um dos magistrados encarregados da reforma territorial, em 1795 177 - pede um
manejo muito delicado, cheio de diversas combinações, e de uma muito regulada
prudência, de que são incapazes (falo ordinariamente) os vereadores, e mais pessoas
de que se compõem as tais câmaras para se lhe abandonar a regalia de legislarem
sobre objectos de tanta importância. Uma semelhante liberdade, concedida pelas
nossas leis, é incompatível com o sistema de um governo monárquico, e própria
somente ou dos antigos povos livres das cidades hanseáticas ou dos cantões suíços,

176 Existem tentativas de micro-reformas territoriais durante todo o período pombalino, muitas

vezes relacionadas com planos de fomento económico (v.g. do Alto Douro e Trás-os-Montes duriense,
em 6.4.1759; Açores, em 2.8.1766; Algarve, em 18.2.1773). Só mais tarde, por volta de 1790, se projeta
uma reforma territorial geral (cf. Ana Cristina Nogueira da Silva, O Modelo Espacial do Estado Moderno
[…], cit.).
177 José de Abreu Bacelar Chichorro, Memoria economico-politica da província da Extremadura [1795],

cit., 101.

62
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

em que cada um deles goza da autoridade suprema; mas alheia e insuportável


dentro de uma nação polida, em que o rei é o único legislador”. E, depois destas
considerações em que se aponta aquilo com que o racionalismo e o estadualismo
emergentes não podiam contemporizar (irracionalidade administrativa, pluralismo
político), remata-se com uma proposta radical, mas muito característica: as câmaras
deveriam ficar, desde logo, privadas de toda a jurisdição, “reduzidas a simples
corpos representativos, aonde se debateriam os interesses públicos, económicos e
políticos, e os seus assentos seriam enviados ao magistrado territorial, a quem
tocaria a sua execução”178.
§ 141. Às críticas nem sequer escapavam os concelhos sujeitos a juízes de
fora179, o que prova aquilo que antes se disse sobre a incorreção que seria
considerar estes magistrados, com o estatuto que tinham, como instrumentos de
centralização do poder. Um outro publicista da mesma época, autor de uma
memória sobre a comarca de Leiria180, segue a mesma linha, censurando a
generosidade com que as leis e ordenações tinham atribuído às câmaras uma
jurisdição, nomeadamente uma capacidade de legislar, “mais própria para o governo
das cidades livres da Holanda ou dos cantões suíços, cada um dos quais tem o seu
poder legislativo, do que para Portugal, aonde não pode haver outro legislador que
não seja o mesmo soberano”. O projeto, aqui, é o de “incumbir S. Magestade a
direcção geral da Economia Publica a hum Ministro de Estado que por meio dos
intendentes provinciais faça observar, em todo o reino, as suas reais determinações
nesta matéria. Estes ministros poderiam ter nas diferentes vilas dos seus distritos
uns comissários ou subdelegados, que observando as suas instruções e cumprindo
as ordens dos soberanos, se não afastassem jamais do uniforme plano que tivesse
formado para o nosso governo interior. As câmaras ficariam sendo, então, o que
elas deveriam ser: uns corpos representativos da cidade ou vila, para requererem e
procurarem tudo o que pertencesse ao público”.
§ 142. Mas, mesmo reduzidas as câmaras a isto, o plano ainda lhes guardava
uma última gota de fel: “Os comissários, que seriam as pessoas mais inteligentes das
terras, passariam depois a camaristas, ou vereadores, já instruídos das intenções de
S. Majestade. As novas Luzes instruiriam os seus colegas; o povo conheceria, então,
os verdadeiros interesses. A nação inteira reuniria os seus esforços para o bem: ela
encheria de bençãos o monarca, autor da sua felicidade” 181. Em todo o caso, estes
ousados planos não terão execução antes das reformas liberais (de 1832). No
período pombalino e mariano, os progressos de facto institucionalizados acabam
por ser pequenos. São, é certo, criados muitos lugares de juízes de fora (cerca de 40
entre 1750 e 1800). São ensaiadas, como se disse, algumas reformas territoriais.
Proíbe-se que os vereadores mais velhos (“juízes pela Ordenação”) dos concelhos
em que há juízes de fora conheçam definitivamente das causas durante a ausência
deles, devendo esperar o seu regresso para que lhes seja posto termo (alv. 5.9.1774).
Em todo o caso, a providência de maior vulto é tomada em 1785 (alv. de 18.1),

178 Cf. ibid. 102.


179 Cf. ibid. 93.
180 Lourenço José dos Guimarães Moreira, “O espírito da economia política […] principalmente

em Leiria” […], cit.; v. ainda José V. Capela (org.), Política, administração, economia e finanças públicas
portuguesas (1750-1820) […], cit., 241-242.
181 Ibid. 28.

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quando se estabelece que os juízes ordinários dos concelhos sujeitos à tutela de um


juiz de fora não possam despachar os feitos, por si ou por assessores, antes
devendo mandá-los “aos juízes de fora, a qualquer das villas, em que existirem, para
os despacharem”, limitando-se a publicar as sentenças. Se efetivamente aplicada,
esta providência limitaria as atribuições dos juízes ordinários ao âmbito das decisões
de mera gestão burocrática e executiva do processo. Em contrapartida, uma
providência um pouco posterior, isenta os concelhos da suprema inspeção do
lntendente-Geral da Polícia, então criado e erigido em peça chave da polícia interior
do reino (aviso de 29.1.1798).
2.4.2 A administração da Coroa.
§ 143. A ação política requer a disponibilidade de meios: financeiros,
logísticos, institucionais, humanos, para não falar de outros habitualmente menos
notados, como os meios simbólicos (saberes, discursos, iconografias). O presente
capítulo visa justamente averiguar a estrutura de uns desses meios, os aparelhos
administrativos da coroa, quer da administração central (curial, palatina, cameral),
quer da administração periférica. Nele procuraremos distinguir os seus vários
ramos, o tipo de atividade político-social que levavam a cabo, as suas dependências.
Observaremos, depois, a importância quantitativa de cada ramo e as principais
assimetrias regionais182. Afinal, procuraremos fazer um balanço da influência do
funcionamento do aparelho político-administrativo no desenho do sistema do
poder.
2.4.2.1 O modelo jurisdicionalista do poder.
§ 144. A expressão “administração da coroa” corresponde, nesta sociedade de
poderes concorrentes que é a sociedade de Antigo Regime, à área de ação do poder
do príncipe.
§ 145. Esta área não é, como veremos, homogénea; mas a sua organização
interna também pouco tem a ver com as sistematizações - “por matérias” - que hoje
fazemos da atividade governativa. É certo que, já desde o século XVI, se podem
identificar grandes zonas de atuação dos agentes da coroa (nomeadamente, a
“justiça”, a “fazenda”, a “milícia”). Mas esta classificação, aparentemente temática,
não é mais do que o resultado de uma tipologia mais funda de atos de governo, que
decorre da imagem do rei (das imagens do rei) e das correspondentes
representações sobre a finalidade das suas atribuições e o modo de as levar a cabo.
Estas imagens constituem, para toda a Época Moderna, uma constante; mas a sua
combinação e hierarquização vão evoluindo, provocando novos entendimentos da
atividade governativa da coroa, alguns deles com tradução institucional, processual
e de pessoal político. É este complexo imaginário e as tipologias de organização e
processamento administrativos que lhe estão conexas que descreveremos nos
parágrafos seguintes.
2.4.2.1.1 A Justiça.
§ 146. É sabido, desde a clássica obra de E. Kantorowicz, que, no rei,

182 Para este efeito, socorremo-nos dos dados averiguados, para os meados do século XVII, no

meu trabalho As vésperas do Leviathan [...], cit., (alguns dos dados só foram publicados na ed. de autor,
de 1986).

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

coexistem vários corpos. Mas aplicam-se-lhe, também, várias imagens: a de senhor


da justiça e da paz, a de senhor da graça, a de chefe da casa (de grande ecónomo), a
de protetor da religião, a de cabeça da república e, como tal, de seu racionalizador e
disciplinador. Cada uma destas imagens lhe atribuía certas funções e lhe garantia
certas prerrogativas. Mas cada uma delas implicava tecnologias próprias de
governar: (i) formas de organização dos aparelhos de governo; (ii) técnicas de
processamento dos assuntos; (iii) categorias intelectuais de cálculo político; (iv)
perfis de agentes político-administrativos.
§ 147. Todas as fontes doutrinais medievais e da primeira época moderna nos
falarão da justiça como primeira atribuição do rei. Na verdade, e de acordo com a
teoria corporativa do poder e da sociedade, a função suprema do rei era “fazer
justiça” - i. e. garantir os equilíbrios sociais estabelecidos e tutelados pelo direito -,
do que decorreria automaticamente a paz183. A justiça era, portanto, não apenas
uma das áreas de governo, mas a sua área por excelência (remota iustitia, regna
latrocinia [abandonada a justiça, os reinos são organizações de ladrões], havia escrito
S. Agostinho, Civitas Dei. 4,4). Tal como no domínio da teoria escolástica das
virtudes ela desempenhava um lugar central, também na teoria tradicional do
governo a justiça era “a arte das artes e alma do governo” 184, o primeiro cuidado do
príncipe, que, para a realizar, deve atribuir a cada um - república ou particulares -
aquilo que lhe é devido185, respeitando, ademais, nessa atribuição, uma particular
metodologia organizacional, processual e intelectual que garantisse a ponderação
adequada dos vários pontos de vista.
§ 148. Esta conceção jurisdicionalista do poder 186 não se esgotava, no entanto,
na composição de conflitos de interesses (i.e. naquilo que nós hoje identificamos
com o “termo justiça”), integrando também algumas das prerrogativas que, nos
nossos dias, incluiríamos na “administração ativa”. O conceito chave era, para este
efeito, o de merum imperium, em que a doutrina do ius commune clássico (séculos XII-
XIV) incluía as atribuições que o juiz exercia oficiosamente tendo em vista a utilitas
publica (“ubicumque concernit et respicit publicam utilitatem”, Asinio, século XVII)
(v. caps. 2.1 e 2.2). Aqui se incluía, desde logo, o poder de editar leis (potestas leges
ferendi), a punição dos criminosos (ius gladii), o comando dos exércitos, a
expropriação por utilidade pública e o poder de impor tributos. Com a afirmação
progressiva de outras áreas de governo (nomeadamente, da “política”), algumas
destas atribuições passam a ser ligadas a outras imagens do rei e inseridas, portanto,
noutros modelos de ação política. Mas pode dizer-se que, até muito tarde, esta sua
vinculação ao modelo de agir jurisdicional não foi fundamentalmente abalada. E
isto explica muito do estatuto prático (nos planos institucional, ideológico e
pessoal) destas atividades políticas no Antigo Regime.
§ 149. Exercer o poder na área da justiça era, essencialmente, realizar um
“juízo” (iustum iudicium), ou seja, levar a cabo um processo regulado e metódico de
decisão, ouvidos todos os interessados, ponderados todos os argumentos e

183 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., V.2; também, António Manuel Hespanha,

“Justiça e administração entre o Antigo Regime e a Revolução”, cit., 137.


184 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, in proem. gl. 23, n. 2.

185 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, disp. 1, § 2, n. 18.

186 Sobre ela, António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a

Revolução”, cit., 95 ss.

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cumpridos todos os requisitos de competência e processuais estabelecidos (v. cap.


7.1.5). Neste sentido, iudicium opõe-se a arbitrium, tal como - no plano das
qualidades anímicas que estão no centro da atividade - a ratio (razão, ponderação) se
opõe à voluntas (impulso arbitrário). E, como o poder é essencialmente fazer justiça,
os meios do seu exercício devem ser, fundamentalmente, iudicia, i. e. juízos
proferidos pelas entidades competentes, de acordo com processos estabelecidos,
orientados por modelos de raciocínio adequados (rectae rationes) e cultivados,
sobretudo, por uma “arte de encontrar o equitativo”, a jurisprudentia. Não é, por
isso, de admirar que, até a meados do século XVIII, o exercício da política, mesmo
da “alta política”, estivesse embaraçado nos meandros da justiça e fosse coisa, antes
de tudo, de juristas. Pois, como escrevia, já na segunda metade do século XVII,
António de Sousa Macedo, “o fim ou objecto da jurisprudencia não he so a
decisam das demandas, como cuidam os imperitos, mas igualmente o Politico
decoro do governo na paz, as legitimas conveniencias da Republica na guerra, a
justa razão de Estado com os Estrangeiros, a decente soberania com os Vassalos, e
tudo quanto pertence à direcção do Príncipe perfeito” (Armonia politica […], 1651).
§ 150. A área da “justiça” é, assim, a área em que dominam os órgãos
ordinários de governo (“tribunais”, “conselhos”, “magistrados”, “oficiais”), com
competências bem estabelecidas na lei, obedecendo a um processo regulado de
formação da decisão, normalmente dominados por juristas que, na resolução das
questões, preferem as razões da justitia e da prudentia aos arbitria da oportunidade e
da conveniência.
2.4.2.1.2 A Graça.
§ 151. Potenciando a justiça está a Graça, que consiste na atribuição de um
bem que não competia por justiça, nem comutativa, nem distributiva (i e. que não
era, por qualquer forma, juridicamente devido)187. Tal como a graça divina não
destrói a natureza (antes a aperfeiçoa188), também a graça régia não subverte a
justiça (antes a completa). Era o que se passava com a dispensa do direito (quando,
por exemplo, se manda que não se aplique uma lei a certo caso concreto, quando se
declara maior um menor, quando se perdoa um crime ou, em geral, quando se
pratica qualquer dos atos de dispensa do direito previstos no regimento do
Desembargo do Paço); pois então o que se estava a realizar era uma forma suprema
de justiça, removendo a generalidade da norma em homenagem às peculiaridades
do caso e às suas particulares exigências de justiça 189. Apesar desta ligação entre a
graça e uma ordem objetiva superior do justo e de tudo o que daqui pode decorrer
quanto ao carácter não inteiramente gratuito dos atos de graça190, esta é,
fundamentalmente, um dom, dependente da liberalidade régia, na outorga do qual o

187 Cf. sobre o tema, António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime

e a Revolução”, cit., 140 ss.


188 S. Tomás, Summa theol.. 1a.2ae, qu. 112 1c.

189 Cf. S. Tomás, Summa theol, 1ª.2ae, qu. 88 10 ad 2; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., liv.

3, disp. 4, 11, 2, 32 [p. 418].


190 Cf. António Manuel Hespanha, “ Les autres raisons de la politique […] ”, cit.. Aí se explica

como existe, na economia moral das sociedades de Antigo Regime, uma “economia da graça” que gera
deveres de dar e deveres de retribuir. O que acaba por ter muita importância para a explicação de
mecanismos políticos práticos, como o regime das “mercês” em Portugal.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

rei nem é obrigado a ouvir senão a sua consciência, nem a obedecer a qualquer
formalidade ou “figura de juízo”. Pelo contrário, aqui, o sigilo da decisão é a regra
principal, já que as próprias Escrituras recomendavam que não se deixasse que uma
mão soubesse das liberalidades feitas pela outra. A “Graça” é, portanto, o mundo
do governo informal, orientado por deveres de consciência ou por deveres morais,
em que as decisões se tomam no círculo mais íntimo da atividade real (a “câmara”),
pela mão de “escrivães da puridade” [i.e. do segredo] ou “secretários” [idem]. No caso
português, algumas matérias “de graça” tinham um tratamento mais autónomo e
regulado. Era, desde logo, o caso (de fronteira) dos assuntos de graça em matéria de
justiça, que eram instruídos para decisão régia pelo Desembargo do Paço. E do
domínio particularmente sensível de assuntos que envolviam relações com o poder
eclesiástico, cuja decisão era preparada pela Mesa da Consciência e Ordens. As
restantes matérias de graça eram decididas informalmente pelos secretários do rei
(secretários da câmara, mais tarde, secretários de Estado), embora o
reconhecimento de um direito a mercês (“ação”) tenha progressivamente
aproximado a gestão da liberalidade régia das tecnologias organizativas da justiça,
com a sua consequente formalização191.
2.4.2.1.3 O governo económico.
§ 152. A terceira área de governo era a oeconomia , que correspondia à imagem
do rei como “chefe da casa”, marido da república e pai dos vassalos. A doutrina
moderna foi particularmente expressiva sobre esta proximidade entre governar a
cidade e governar a família192. A assimilação entre um e outro ofício era profunda e
de sentido não metafórico, autorizando, nomeadamente, que as regras do governo
doméstico valessem para o governo da cidade e que a literatura dirigida ao pai de
família (Hausväterliteratur) tivesse, afinal, uma intenção claramente política.
§ 153. “A casa dos príncipes - escreve Baptista Fragoso - é a cidade; a cidade
constitui o fim da casa. Por isso é preciso que aqueles que vão dirigir as coisas
públicas se exercitem antes nas coisas económicas ou domésticas” 193. O
característico deste governo doméstico era o facto de que, não existindo no interior
da família (tal como ela era entendida então) interesses contrapostos entre si ou
oponíveis aos do interesse familiar, faltava aqui a dualidade de interesses que
caracteriza as matérias de justiça e, por isso, a decisão decorria de considerações de
mera oportunidade. A gubernatio era, assim, uma expressão geral, aplicável a toda a
atividade decisória que apenas envolvesse a ponderação de vantagens (e não de
interesses protegidos), quer se aplicasse no âmbito da família (gubernatio filiorum et
uxoris), de uma “universidade” (gubernatio communitatem monialium, por exemplo) ou
da república (gubernatio reipublicae). Podia-se falar, assim, de uma potestas dominica,
sobre a própria família (potestas domestica, maritalis, patria), sobre os servos e escravos
(potestas despotica ou herilis), todas elas decorrentes do poder de administração
(administratio) do pater sobre a sua própria casa (potestas oeconomica). De resto, a
transposição do conceito de administratio do plano do governo económico para o
plano do governo político era facilitada pelo aparecimento da palavra, referida a

191 Cf. os vários “regimentos das mercês”, nomeadamente o de 19.1.1671, Col. Chron. Leg.
(J.J.A.S.), 186 ss..
192 Cf. António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a
Revolução”, cit., 142, e bibl. aí cit., sobretudo os trabalhos de Daniela Frigo.
193 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., liv. 1, “Proem.”, 7.

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atividades políticas, em dois títulos do Corpus iuris (D. 50, 8, De administratione rerum
ad civitates pertinentium; C. 11, 30, De administratione rerum publicarum), bem como pela
confusão entre autoridade e propriedade, entre regnum e domus, entre rex e pater, que
a episteme política medieval e moderna colhera dos textos de Aristóteles 194.
§ 154. No centro deste domínio da atividade do príncipe estavam os atos
relativos ao “governo económico” do reino, entendido como rei domesticae gubernatio
ou dispensatio domus, i.e. “administratio rei familiaris, quae consistit praesertim in
acquisitione, & conservatione pecuniae (administração da casa, ou das coisas
familiares, a qual consiste principalmente na aquisição e conservação do dinheiro)”.
Ou seja, a gestão dos bens e interesses da coroa. Isto englobava, desde logo, os atos
de gestão dos bens e rendas de que o rei era administrador. Em primeiro lugar, dos
bens e rendas da coroa do reino. Depois, dos bens e rendas afetados à corte e casa
real. Seguidamente, dos bens e rendas das casas anexas à real, como, em Portugal, a
Casa das Rainhas (na primeira metade do século XVI e depois de 1643), a Casa do
Infantado e a Casa de Bragança (depois de 1654). Depois, dos bens das ordens, de
que o rei era administrador a partir dos meados do século XVI. E, finalmente, dos
bens próprios da coroa, como os reguengos, as matas, as lezírias, etc. bem como
das capelas do padroado real195 (cf. caps. 2.4.3.3.2 e 4.2.2.2). Mas deste governo
“económico” - a que com o aproximar do estadualismo iluminista, se irá chamando
cada vez mais “político” - faziam ainda parte todos os atos necessários à realização
do bem estar geral do reino, nomeadamente, a garantia do seu abastecimento, pelo
controlo das importações e exportações, ou a sua “boa polícia” interior.
Manifestação curiosa deste poder de governo é o que se invoca, nas Ord. fil.2,3, para
justificar a punição pelo rei dos clérigos que o não tivessem sido suficientemente
pela jurisdição eclesiástica competente: “isto não por via de jurisdição, nem de
juízo, mas por usar bem de suas cousas, e afastar de si os malfeitores, e que não
houvessem delle sustentação, nem mercê”.
§ 155. Pertenciam, assim, ao governo económico todas aquelas decisões que,
por se deixarem circunscrever ao âmbito da casa do príncipe, podiam ser objeto de
avaliações de mera oportunidade. Neste sentido, a transposição para o plano da
república dos princípios e tecnologias de governo da “casa” constitui uma forma de
trânsito da típica administração jurisdicionalista das monarquias medievais e primo-
modernas para o governo “político” das monarquias da última fase do Antigo
Regime.
§ 156. Zona típica da informalidade, a oeconomia é-o também da reserva e do
recato (segredo) com que as coisas familiares devem ser tratadas. O critério de
decisão é, aqui, o da discricionariedade de um “prudente pai de família”, ao qual
cumpre adequar livremente os meios disponíveis à busca do sustento e
engrandecimento da casa. “Sustento” e “engrandecimento” devem ser objetivos
sublinhados neste momento, pois com eles se está a apontar para uma gestão que
não se limita a conservar, mas a prever, a prover e a promover; isto é, para uma

194 Nomeadamente da Economia doméstica - em que, entre as espécies do governo económico (i.e. da

casa [oikos]), se enumeram o governo real, dos delegados do rei, do Estado de homens livres e do
cidadão privado (cf. liv. II, cap. I).
195 Sobre as capelas da coroa, Joaquim Veríssimo Serrão, Livro das Igrejas e Capelas do padroado do reis

de Portugal […], cit..

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

administração ativa. Coisa que, não sendo novidade ao nível doméstico ou mesmo
da comunidade, o era ao nível do reino. O processamento dos assuntos é o da
gestão informal exercida diretamente ou por meio de agentes livremente escolhidos
e livremente descartáveis (juntas, comissários), agindo na discreção da “casa” a
coberto do segredo que, também nos assuntos familiares, deve ser a regra.
“Secretários”, “criados”, “validos”, “intendentes”, “juntas” são, por sua vez, os
suportes desta administração doméstica.
2.4.2.1.4 O governo político.
§ 157. A ideia de que, para além de guardião dos interesses particulares e de
chefe de família, o príncipe encarnava também, como sua cabeça, um interesse
superior de toda a república tem uma antiga tradição nas fontes jurídicas. Já os
glosadores tinham aproximado, no dito mnemónico de “Christus-fiscus”, esta ideia
de que, tal como Cristo, cabeça do corpo místico da Igreja, resumia em si a
comunidade dos fiéis e representava os seus interesses, assim o “fisco”, a pessoa
pública do príncipe, tinha legitimidade para impor o interesse da república, em
termos tais que perante ele cedessem os direitos dos particulares. A tradição jurídica
medieval partiu daqui para reconhecer ao príncipe uma extraordinaria potestas que lhe
permitiria derrogar o direito e violar direitos dos particulares “publica et magna
causa interveniente”. Mas, quando a nova geração de politólogos em que se inclui
Nicolau Maquiavel e Jean Bodin, começaram a falar de “razão de Estado” e de
“soberania”, isto é, de razões e poderes próprios da república, essencialmente
distintos das razões e poderes dos privados, começou também a surgir a ideia de
que o governo da polis podia exigir que o príncipe, ex officio [por sua iniciativa] e
figura iudicii non servata [não observadas as formalidades do juízo], editasse comandos
ad consequendam publicam utilitatem [para realizar a utilidade pública], livremente
avaliada pelo príncipe. Estamos chegados ao conceito de governo político e, a curto
prazo, ao de ius publicum, um especial ramo do direito em que, pela primeira vez, o
príncipe e os particulares passavam a ocupar lugares não equilibrados no iudicium196.
§ 158. Não se pode, contudo, dizer que o conceito de governo político fosse
muito popular na literatura moderna peninsular sobre o governo, sendo conhecida
a conta em que eram tidos os “políticos” e o estilo de governo que eles
propugnavam197. Apesar disso, há temas em que a invocação das prerrogativas
políticas do rei tinha tradição. O primeiro é, decerto, o da punição criminal. Outro
é o da regia protectio; para justificar o seu poder de castigar os clérigos, o rei não
podia invocar a sua jurisdição, pois a ela escapavam os eclesiásticos. Daí que fosse
obrigado a invocar um poder económico, ou mesmo político (cf. muito
impressivamente, Ord. fil.2,3). Progressivamente, o conceito de governo político
vai-se estendendo e abrangendo, sucessivamente, um domínio mais vasto. No
período iluminista, encontramo-lo já plenamente desenvolvido198. Considera-se,
então, que ele engloba todas as medidas necessárias à defesa externa e interna do
reino (“o príncipe deve oficiosa e ativamente [“pro sua virili parte”] libertar a cidade
dos seus inimigos internos e externos e fazer em tudo aquilo que julgue necessário,

196 Cf. António Manuel Hespanha, “Justiça e administração entre o Antigo Regime e a
Revolução”, cit., 144 s..
197 Cf. para Portugal, Martim de Albuquerque, “Política, moral e direito”, cit..

198 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 1, 1, 2.

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sem que nunca pudesse ser compelido a prestar contas disso”. Aqui se incluiria o
ius gladii, a potestas legislatoria, o ius fisci, o ius circa sacra, o ius asylii, a potestas circa
agriculturam, commercium et res nauticas, o ius militare. Mas, mesmo neste final do século
XVIII, não falta quem reaja contra esta extensão das prerrogativas régias a título de
poder camerario, arcano, absoluto199.
§ 159. Seja como for, os finais do Antigo Regime constituem uma época em
que, claramente, a imagem do príncipe como caput reipublicae, como pessoa
pública, se sobrepõe às restantes. E em que o governo assume as características de
uma atividade dirigida por razões específicas (as razões do Estado), tendente a
organizar a sociedade, impondo-lhe uma ordem e defendendo-a do caos originário.
Inaugura-se, por outras palavras, uma era de “disciplina”, de “administração ativa”,
com quadros legitimadores, métodos e agentes muito distintos dos da passiva
administração jurisdicionalista. Agora, o governo legitima-se, planificando reformas
e levando-as a cabo, mesmo contra os interesses estabelecidos. Carece-se de eficácia
e o controlo sobre os aparelhos administrativos é uma condição para isso. Daí que
a administração devesse ser transformada num instrumento racional e adequado,
liberto de todos os constrangimentos de tipo corporativo. Que os oficiais devessem
ser disciplináveis e livremente amovíveis, tal como se enfatiza na legislação
pombalina sobre os ofícios (nomeadamente, a lei de 23.11.1770). Que os
procedimentos administrativos não devessem ser cogentes para o soberano, e
muito menos utilizáveis pelos particulares para atrasar a ação reformadora (v.g. por
meio de embargos dos atos régios: cf. CR. 2.11.1627, alv. 16.2.1642, alv. 10.7.1644).
Que o segredo (arcana imperii) e a surpresa se tornassem um instrumento
indispensável de governo.
§ 160. Esta classificação das matérias de governo permanece
fundamentalmente válida como arrumação intelectual da atividade político-
administrativa até aos finais do Antigo Regime. Ainda em 1793, Francisco Coelho
de Sousa Sampaio classifica os tribunais em “de Graça, de Justiça, da Fazenda, de
Economia, e Commercio”200. Há que notar a completa autonomização da fazenda
em relação à economia, explicável pela existência, desde há muito, de órgãos nela
especializados (Vedores da Fazenda e, depois, Conselho da Fazenda) e o acrescento
do “comércio”, por razões idênticas (Junta do Comércio), a que acresce, aqui, o
enorme interesse pelo tema, sobretudo num reino que vivia substancialmente dele,
a partir do advento do mercantilismo201. Embora, no mesmo autor, já se note a
hegemonia da política e da economia sobre todas as restantes áreas, quando
escreve, numa frase de antologia: “He certo, que todos os Magistrados são
políticos, e Economicos; porque toda a administração da Justiça se dirige a
economisar [!] e civilisar os povos, e promover a segurança publica [!]” (ibid. 1, 191
n. a), pois por “polícia” entende “a auctoridade que os princepes tem para
estabelecerem e proverem os meios, e subsidios, que facilitem, e promovão a
observancia das suas Leis” (ibid.1 138) e considera, consequentemente, que “todos

199 Cf. António Ribeiro dos Santos, Notas ao plano do Novo Codigo, cit..
200 Prelecções de direito pátrio […], cit., 1, 191.
201 Noutros autores aparece o ramo da milícia, que este não considera por o julgar fora do âmbito

da sua obra (embora, de seguida, enumere os seus principais órgãos, cf. 1, 198 ss.). É de notar a
dificuldade que transparece na classificação da Mesa da Consciência (cf. 1, 196).

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

os magistrados ordinários do reino exercem algum ramo da Polícia, e Economia,


mesmo considerados na particular acepção” (ibid.1, 193).
§ 161. Claro que, neste contexto, a hierarquia dos atos de governo passa a ser
totalmente diferente. A justiça perde, naturalmente a primazia para o “direito
legislativo”, a que se seguem o “direito inspectivo”, o “direito de polícia”, o “direito
executivo” e o “direito de impor tributos” 202, numa pirâmide que vai do
estabelecimento abstrato da ordem à sua execução concreta e material 203.
§ 162. Num plano menos teórico e mais atento à realidade institucional, a
partir desta ideia de que tudo é governo político, uma classificação mais
caracterizadamente temática e institucional passou a impor-se e a explicar,
inclusivamente, uma maior especialização orgânica. Já se notou a autonomização da
“fazenda” em relação à “economia”. O mesmo se passou com o governo do
Ultramar que, depois de andar junto com o da fazenda, se autonomizou, primeiro e
por pouco tempo, em 1604 (a 1606) e, definitivamente, em 1642. Também os
assuntos de Estado - ou seja, fundamentalmente, as relações externas - se
separaram dos de justiça, com a criação do Conselho de Estado, em 1569, e, depois,
das respetivas Secretarias204. O mesmo se passando com os da Guerra, a partir de
1640. E, basicamente, foi esta a matriz de distribuição da matéria de governo que
presidiu ao elenco das Secretarias de Estado, até ao fim da monarquia: Reino,
Justiça, Fazenda, Guerra, Negócios Estrangeiros, Marinha e Ultramar.
2.4.2.2 Administração periférica da coroa
§ 163. Decisivo para a avaliação dos equilíbrios do aparelho político-
administrativo é, mais do que o estudo dos órgãos centrais da administração da
coroa, o estudo das suas extensões periféricas. Ou seja, dos prolongamentos pelos
quais a coroa entrava em contacto com as estruturas político-administrativas locais,
nomeadamente concelhias. O que acaba de ser dito representa uma certa inovação
em relação ao tratamento corrente desta questão dos equilíbrios do sistema do
poder, pois não é raro que se considere como sintoma decisivo do crescimento do
poder da coroa, o desenvolvimento dos conselhos e tribunais palatinos, sem curar
de avaliar os meios institucionais que estes teriam para, na periferia, conhecer,
controlar e dirigir os poderes políticos autónomos.
§ 164. As intenções de controlo da vida política e administrativa periférica
verificavam-se, fundamentalmente, nos três campos da atividade político-
administrativa dos sistemas de poder da época moderna: a justiça, a fazenda e a

202 Cf. o índice do voI. I da mesma obra.


203 Numa outra obra celebérrima, pouco anterior (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, liv. 1),
esta hierarquia já se manifestava, embora as matérias de polícia e de economia não obtivessem este
destaque. Polícia é definida, não como a atividade complexiva do Estado, mas por uma enumeração
das matérias aí incluídas (económicas, sumptuárias, funéreas, sanitárias, edilícias, criminais,
urbanísticas, educativas, de precedência e etiqueta, sobre vadios e mendigos, sobre colégios e
universidades (ibid. 1, cap. 10). Significativamente, os oficiais agrupados neste sector são todos os
magistrados locais que, no âmbito da polis, tinham estas atribuições como naturais. A única exceção é o
Intendente Geral de Polícia (criado em 25.6.1760), cujos choques com os magistrados políticos
tradicionais não deixam de ser referidos e lamentados (ibid. 1, 10, 23).
204 Os assuntos de Estado são definidos, no alv. de 29.11.1643, como “contratos, cazamentos,

alianças, instruções, avizos publicos, ou secretos, que se derem a quaisquer embaixadores,


comissarios, agentes, rezidentes, agentes, e quaisquer poessoas [...] que se despacharem dentro ou fora
do Reino, e negócios que forem da qualidade referida” (ANTT, ms. 2608).

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milícia.
2.4.2.2.1 Os oficiais de justiça.
§ 165. Neste domínio, a administração régia apoia-se sobre dois tipos de
funcionários, os juízes de fora e os corregedores.
2.4.2.2.1.1 Os juízes de fora.
§ 166. Os juízes de fora são, tal como os juízes eleitos, os magistrados
ordinários dos concelhos, tendo, em princípio, atribuições iguais 205. Porém, dada,
sobretudo, a formação letrada desta magistratura, a doutrina - e a própria lei -
estabeleciam alguma distinção entre uns e outros 206 e dos padrões oficiais e letrados
de julgamento. Embora também se pudesse dizer que, sendo estes juízes nomeados
pela coroa, se instituiriam, deste modo, laços mais apertados de dependência e
redes mais eficazes de comando entre os magistrados locais e a administração
central. Não sublinharemos no entanto, este segundo aspeto, pois o estatuto do juiz
de fora é igual ao do juiz da terra, no que respeita à sua autonomia em relação a
cadeias hierárquicas207. Dir-se-ia, até, que aos juízes de fora é garantida uma maior
autonomia do que aos juízes ordinários. Na verdade, algumas das normas das
Ordenações sobre o controlo das justiças locais pelos corregedores, não se aplicavam
aos juízes de fora, umas por disposição expressa da lei nesse sentido, outras por
entendimento doutrinal pacífico208. Por outro lado, entendia a doutrina que os
corregedores não podiam - fora dos casos expressamente previstos na lei 209 -
conhecer por ação nova ou avocar as causas das terras em que houvesse juiz de
fora, ao contrário do que acontecia com as causas dos juízes ordinários 210.

205 Sobre as origens e evolução dos juízes de fora, cf. António Manuel Hespanha, História das

instituições [...], cit., 254 s. e bibliografia aí citada. Sobre a sua jurisdição, v. Ord. fil.1, 65.
206 As principais diferenças do regime dos juízes de fora em relação aos juízes ordinários eleitos

são: (i) eram nomeados pelo rei, depois de aprovados no Desembargo do Paço (leitura de bacharéis: exame
pelos desembargadores da Casa da Suplicação, votação pela mesa do Desembargo do Paço, Reg. Des.
Paço, § 6); (ii) tinham, como adiante se dirá no texto, jurisdição privativa em relação aos corregedores;
(iii) tinham uma maior alçada, Ord. fil.1, 65, 6 e 7; (iv) usavam varas brancas, enquanto que os juízes da
terra as usavam vermelhas; (v) não eram inspecionados pelos corregedores. Sobre esta diferença de
regime, Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 5, ad Ord. fil.1, 65, rubr. n. 26. (p. 5).
207 Sobre a residência (sindicância ou inspeção) dos juízes de fora e dos corregedores, feita por um

desembargador nomeado pelo rei, v. Ord. fil.1, 6. Doutrina: por todos, Nicolau Coelho Landim, Nova,
et scientifica tractatio […] I. De syndicatu judicum […], cit..
208 Assim, não poderiam exercer em relação aos juízes de fora as atribuições de Ord. fil.1, 58, 5 e

34 (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 4, ad Ord. fil. 1, 58, gl. 10, n.º 1 [pg. 543] e
literatura aí citada).
209 Feitos em que fossem parte juízes, alcaides, procuradores, tabeliães, fidalgos, abades, priores

ou, em geral, quaisquer pessoas poderosas (Ord. fil. 1, 58, 22).


210 V. Ord. fil.1, 58, 23. e Reg. do Desembargo do Paço, § 45. Pegas vai mesmo ao ponto de

duvidar da possibilidade de o corregedor avocar os feitos do juiz de fora no âmbito do n. 22 (feitos de


poderosos); cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 4, ad I, 58, gl. 24 (p. 554) e a
literatura aí citada, nomeadamente Tomé Valasco, Allegationes […], all. 77, n. 9 ss.. A possibilidade de
o corregedor conhecer por ação nova as causas nas terras em que não houvesse juiz de fora tem origem
numa lei de 17.7.1527 em que, respondendo a um pedido dos povos no sentido de os corregedores não
avocarem as ações dos juízes das terras, o rei decide em contrário: “havendo respeito que nas outras
cidades villas e lugares de suas correições onde não houver juízes de fora se seguiria mais oppressão as
partes de os corregedores não conhecerem das auções novas pellos juízes não serem letrados e serem
naturais da terra e não poderem com tanta brevidade nem tão livremente fazer justiça nem o dereyto das

72
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 167. O facto de o juiz de fora ser um oficial estranho à terra fazia dele um
elemento descomprometido em relação às relações locais de poder e de influência.
É justamente isto o que se quer dizer quando, no discurso oficial, se referem as
vantagens que adviriam para a administração da justiça e para a pacificação das
terras da existência de um oficial de justiça forâneo e estranho aos “bandos” locais.
E não é raro que o frequentador das fontes da época, nomeadamente dos livros de
vereações das terras onde havia juízes de fora, encontre exemplos dos confrontos
entre estes e os grupos de pressão locais. Que o juiz de fora representava, de facto,
um elemento perturbador dos arranjos políticos locais, isso parece um facto. O que
já pode, porém, ser problematizado é que a sua ação revertesse politicamente a
favor do fortalecimento do poder da coroa. Pois em relação a este oficial letrado
podem aplicar-se as conclusões que R. Ajello tirou - na base do seu estudo sobre o
caso napolitano - para o oficialato togado meridional. Ou seja, a ausência de um
controlo efetivo sobre a sua atividade, quer por parte dos particulares, quer por
parte do poder, dado o carácter fortemente corporativo desse grupo de oficiais e o
facto de os mecanismos de controlo serem, eles próprios, movimentados pelos
membros do mesmo corpo. Como conclusão - sujeita à verificação por meio de
estudos monográficos baseados na análise das fontes locais -, dir-se-ia que mais do
que a longa mão do poder central, o juiz togado é um elemento de enfraquecimento
das estruturas locais que, se joga indiretamente a favor da coroa, reverte
imediatamente a favor do fortalecimento da rede burocrática de que juízes de fora,
corregedores e provedores fazem parte e que filtra toda a comunicação entre o
centro e a periferia e - pelo menos em tempo de paz - adquire, assim, o controlo de
mais um instrumento fundamental de governo - a informação sobre o país.
§ 168. Seja como for, há uma restrição fundamental ao relevo que a
historiografia tradicional tem dado à criação dos juízes de fora como fatores de
centralização, quer ao que acaba de ser dito quanto ao seu papel de fator de
dissolução da vida jurídica. Tal restrição relaciona-se com o número extremamente
reduzido das terras que tinham juiz de fora. Na verdade, a rede dos juízes de fora é
absolutamente insuficiente para que possa ter o impacto centralizador que a
historiografia corrente lhe atribui211.
2.4.2.2.1.2 Os corregedores.
§ 169. Um outro oficial da administração real periférica era o corregedor,
magistratura criada no século XIV, inicialmente com jurisdição apenas delegada ou
comissarial, abrangendo os assuntos e a área territorial contida na carta régia de
delegação212. No século XVII, os corregedores constituem já uma magistratura
ordinária, com uma competência contida em geral nas Ordenações (ou legislação
extravagante) e exercendo-se sobre um território determinado por providências
legais ou por usos bem estabelecidos. São nomeados pelo rei por períodos
trienais213.

partes lhe sera tambem guardado” (José Anastácio de Figueiredo, Synopsis chronologica, cit., 1, 328).
211 Cf. dados em António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 171 ss..

212 Sobre a origem e desenvolvimento desta magistratura, António Manuel Hespanha, História das

instituições [...], cit., 252 ss. e literatura aí citada.


213 Sobre os corregedores. Fonte legal: Ord. fil. 1, 58, além de outra legislação extravagante que

pode ser encontrada, em geral, em Manuel Fernandes Thomaz, Repertorio geral […], cit., s.v.
“corregedor”; doutrina: Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 4, ad Ord. fil.1, 58 (com

73
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§ 170. O principal núcleo das atribuições dos corregedores dizia respeito a


matérias de justiça. Neste domínio, competia-lhes inquirir das justiças locais (mas
não dos juízes de fora, ns. 5 e 34) e dos seus oficiais (n. 2 ss.), conhecer por ação
nova ou avocar os feitos em que, pelo poder das partes, os juízes se pudessem
sentir coactos (n. 22), avocar os feitos dos juízes ordinários no raio de duas léguas
(n. 23) 214, defender a jurisdição real e a ordem pública (n. 11, 15, 18,36 ss.),
inspecionar as prisões (n. 14), conhecer dos agravos das decisões interlocutórias das
justiças locais (n. 25), devassar sobre certos crimes graves (n. 32 ss.), dar cartas de
seguro (n. 40), conhecer dos agravos vindos das justiças senhoriais com
fundamento em negação de recurso (Ord.fil.2,45,28).
§ 171. No domínio político, competia-lhes tutelar em geral o governo dos
concelhos, verificando se as eleições dos juízes e oficiais dos concelhos se faziam na
forma da Ordenação (Ord. fil.1,58,4)215, autorizando fintas (até certa quantia, n. 43),
propondo ao rei a reforma de posturas (que, no entanto, não podem revogar por si,
n. 17), tutelando a administração financeira do concelho (n. 16).
§ 172. No domínio da polícia, deviam inquirir dos médicos, cirurgiões (Ord.
fil.1,58, n. 32) e de outros oficiais locais (que não estivessem sujeitos à inspeção dos
provedores ou contadores) (n. 34), promover a população (n. 42), curar do estado
das obras públicas da comarca (estradas, pontes, fontes, casas do concelho, picota,
etc. n. 43), promover o plantio de árvores (n. 46), inspecionar os castelos (n. 13),
vigiar o contrabando de ouro e prata, bem como de cereais panificáveis (n. 35).
§ 173. A circunscrição de exercício das competências dos corregedores eram
as comarcas. Algumas das antigas ouvidorias de ordens militares foram, na prática,
transformadas em comarcas com a incorporação da administração das ordens na
coroa. Já nos finais do Antigo Regime, a lei de 17.7.1790, ao extinguir as ouvidorias
senhoriais, dá origem à criação de uma série de novas comarcas216 217.
§ 174. O corregedor era, logo a seguir ao provedor e contador, o oficial mais
bem pago da administração real periférica, com uma renda anual cuja média para
todo o país é de cerca de 180 000 rs. variando relativamente pouco de comarca para
comarca. Cerca de 60% das suas rendas são constituídas por salários, o que, em
certa medida, dá a ideia da sua dependência em relação à coroa em termos reais.
§ 175. O carácter genérico das atribuições dos corregedores, fazia deles os
magistrados ordinários da administração real periférica. A sua competência apenas
cedia perante outros magistrados cuja competência fosse privativa 218. O facto de os

muitas indicações bibliográficas).


214 Sobre a interpretação deste preceito, Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3,

ad 1, 58, gl. 24 (p. 554).


215 A provisão de 12.8.1750 manda-os informar sobre as pessoas mais capazes de andar na

governança.
216 Cf. mapas em Ana Cristina Nogueira da Silva, O modelo espacial […], cit., 40; Nuno Gonçalo

Monteiro, “As comunidades territoriais”, cit., 313.


217 Sobre a graduação das comarcas, v. supra.

218 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 4, (ad Ord. fil.1, 58), gl. 12, n. 5 (p.

546). Privativa era, por exemplo, a competência dos provedores e contadores, pelo que os
corregedores não podiam, em princípio, intrometer-se em matérias de fazenda, a não ser quando a lei
expressamente o determinasse ou nas faltas do provedor (v. Ord. fil.1, 58, 10).

74
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

corregedores constituírem a magistratura ordinária ao nível da comarca, faz com


que seja em geral neles que confluam as atribuições da administração real periférica
não previstas nas Ordenações. Não apenas as criadas por legislação extravagante, mas
ainda as providências isoladas, cometidas caso a caso pelo rei ou pelos tribunais da
corte, nomeadamente pelo Desembargo do Paço, entidade com quem os
corregedores se correspondiam, a montante, nas matérias de governo. E, assim,
apesar da concorrência de provedores e contadores, os corregedores desempenham
o papel de “primeiros magistrados das comarcas”, para utilizar uma expressão
então corrente.
§ 176. Note-se, porém, que esta superintendência do corregedor sobre o
conjunto da vida político-administrativa da comarca se exerce, na maior parte dos
casos, sob a forma de tutela, e não sob a forma de um verdadeiro poder
hierárquico. Tanto em relação à atividade das câmaras, como à dos oficiais cuja
inspeção lhe competia, o corregedor apenas podia verificar se ela decorria de
acordo com os respetivos regimentos. Mas não podia, em contrapartida, dar-lhes
instruções ou substituir-se-lhes, salvo nos casos em que isto era permitido por lei
(como, por exemplo, a avocação das causas “dos poderosos”).
§ 177. Por outro lado, o impacto da ação dos corregedores fica muito
diminuído pelo facto, de este nunca ter abrangido duas áreas-chave - as finanças e a
milícia. Ao contrário do que aconteceu em França com os intendentes - cuja esfera
de ação abrangia a administração direta (e não apenas de controlo) em domínios
como o recrutamento militar, a administração da justiça, a repartição da “taille” e a
cobrança de outros impostos, a regulamentação da agricultura, etc. -, os
corregedores portugueses mantiveram-se sempre como uma magistratura
acantonada sobretudo nos domínios do controlo do funcionamento da justiça e da
tutela política dos concelhos. A razão desta modéstia relativa das funções dos
corregedores parece-me radicar num dado estrutural relacionado com o modelo
financeiro português. Enquanto que, em França, na Prússia e na Áustria, a coroa
dependia quase exclusivamente das receitas internas do reino e tinha, portanto, um
interesse vital em organizá-lo e o controlá-lo, em Portugal o grosso das receitas da
coroa vinha do ultramar ou das alfândegas. As receitas internas, em contrapartida,
quase não cresciam desde os meados do século XVI e eram cada vez menos
importantes no contexto orçamental global. A guerra da Restauração e a queda,
contemporânea, das receitas externas podia ter modificado a situação da
administração interna. Só que, em Portugal, o esforço de mobilização dos recursos
financeiros e militares internos foi canalizado por novas magistraturas
independentes dos corregedores. Na área fiscal, foram criados os administradores
do real d'água e os tesoureiros das décimas, quaisquer destes isentos da supervisão
do corregedor e sujeitos aos provedores e à Junta dos Três Estados. Na área militar,
a superintendência regional veio a caber aos governadores de armas das províncias.
§ 178. Em face do que acaba de ser dito, parece lícito concluir que a eficácia
dos corregedores como instrumentos de subordinação político-administrativa do
reino era relativamente modesta, pelo menos em confronto com outras
experiências europeias de constituição de níveis periféricos da administração régia.
Em contrapartida, é ainda aqui de realçar a importância que a existência desta
guarda avançada da administração letrada pode ter tido no reforço do papel político
da camada burocrática, sobretudo quando - como acontece na segunda metade do
século XVIII - o poder régio se começa a interessar por um conhecimento mais
detalhado do país, preparatório de um seu controlo mais efetivo. Então, os
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magistrados que, como corregedores, tinham calcorreado a província, aparecem no


primeiro plano, como detentores quase exclusivos de uma informação corográfica,
económica e política vital para a transformação da administração do reino.
§ 179. O corregedor dispunha dos oficiais auxiliares costumados. Escrivães,
contadores, distribuidores e inquiridores (sendo estes três ofícios exercidos
normalmente em acumulação), chanceleres, executores, caminheiros, meirinhos e
porteiros.
§ 180. Outro funcionário da administração real periférica - de difícil
classificação nos quadros da tríade de que partimos (justiça, fazenda, milícia) - era o
provedor.
2.4.2.2.1.3 Os provedores.
§ 181. Os provedores exerciam as suas atribuições em circunscrições - as
provedorias - em geral coincidentes com as comarcas219.
§ 182. Os provedores - que, normalmente, acumulavam as suas funções com
as de contador - tinham duas grandes áreas de competência. A primeira era a da
tutela dos interesses cujos titulares não estivessem em condições de os administrar
por si nem controlar a administração que deles fosse feita - defuntos, ausentes,
órfãos, cativos; mas também o de pessoas coletivas que, por razões teóricas ou
práticas, a eles devessem ser equiparados - confrarias, capelas, hospitais, concelhos.
A segunda era constituída pelas matérias de finanças220.
§ 183. No domínio dos resíduos, os provedores controlavam o cumprimento
das deixas testamentárias no que respeita a legados pios (Ord. fil.1,62,1). Para isso,
organizavam um rol dos testamentos (n. 4), tomavam as contas aos testamenteiros
(ns. 5, 10, 11), apuravam os resíduos dessas deixas, consignando-os ao resgate dos
cativos do bispado (ns. 7 e 9) (sobre o direito testamentário, v. cap. 5.2).
§ 184. No domínio dos órfãos, o provedor superintendia sobre a
administração da fazenda dos órfãos e sobre a atividade dos juízes dos órfãos (Ord.
fil.1,62,1, n. 28), em relação ao qual tinha jurisdição cumulativa (enquanto estivesse
na terra) e de quem recebia os agravos (n. 34), dando apelação para a jurisdição
competente (em princípio, a Relação da área, n. 34) (sobre o direito dos órfãos e
sua tutela, v. cap. 3.3.2).
§ 185. No campo da curatela dos ausentes, administrava os bens destes e
entregava-os a quem os reclamasse (Ord. fil.1,62,1, n. 38), dando apelação e agravo
para a justiça ordinária (ibid.).
§ 186. No que toca às capelas, hospitais, albergarias e gafarias, tutela a
administração dos que não sejam de fundação ou administração eclesiástica, nem
estejam sob proteção imediata do rei (n. 39 ss.) 221.

219 Cf. mapa das provedorias em Nuno Gonçalo Monteiro, “As comunidades territoriais”, cit.,
311.
220 Fonte legal: Ord. fil.1, 62; as atribuições dos provedores relativas a capelas, hospitais,
albergarias, confrarias, gafarias, obras, terças e resíduos estavam regulamentadas no regimento
manuelino de 27.9.1514 (em José Roberto R. M. C. Soisa, Systema dos regimentos reais […], 1783, 1, 37
ss.; sobre o qual, v. José Anastácio de Figueiredo, Synopsis chronologica, 1790, 1, 176 ss.) e na lei de
6.7.1596.
221 Estes últimos tinham eventualmente, jurisdições particulares - tal era o caso do Hospital de

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 187. No domínio da fazenda, compete aos provedores: (i) Quanto às contas


dos concelhos, verificar os livros de receitas e despesas dos escrivães e tomar-lhes
as contas (ns. 68-72), tomar as terças e entregá-las aos respetivos recebedores (ibid.),
cuidar do arrendamento das rendas reais e da cobrança das que não tenham sido
arrendadas (reg. de 17.10.1516, caps. 60 e 74 ss.), prover sobre os pagamentos a
fazer pelos almoxarifes (cap. 78), tomar as contas aos almoxarifes e aos recebedores
(cap. 81), julgar certas questões relativas ao arrendamento de rendas reais, dando
apelação e agravo para o Conselho da Fazenda, a quem também prestam contas
(caps. 85 e 149). (ii) Quanto a obras, prover na reparação das fortificações (n. 71);
lançar fintas para obras em igrejas até certo montante (n. 77). (iii) Quanto à defesa
dos direitos reais (v. cap. 4.2.2.2), fazer o tombo dos bens da coroa (Reg. de
17.10.1516, caps. 94/95), averiguar da legitimidade dos direitos reais, controlar o
direito a tenças (cf. D. 24.9.1623) e superintender na cobrança dos reais d'água (reg.
23.1.1643).
§ 188. Os provedores estavam, assim, integrados numa estrutura sectorial da
administração real bastante mais especializada do que aquela a que pertenciam os
anteriores magistrados, embora o conjunto das suas competências fosse bastante
variado. De qualquer modo, a importância política dessas competências era
bastante mais reduzida, embora ainda incluísse zonas como o controlo das contas
concelhias.
§ 189. Os rendimentos dos provedores eram os mais elevados de entre os
oficiais das comarcas, ultrapassando geralmente os dos corregedores. Cerca de 50%
eram constituídos por salários. Os rendimentos dos escrivães da provedoria são
também elevados (em média, cerca de 80 000 rs.), sendo quase integralmente de
natureza emolumentar, pois a parte salarial corresponde apenas à retribuição dos
processos em que são parte os resíduos (cf. Ord.fil.1,63,5).
§ 190. A montante, os provedores correspondiam-se com a Mesa da
Consciência e Ordens, para onde davam apelação em matéria de defuntos e
ausentes (cf. pr. 2.4.1727); em matéria de resíduos, com o Provedor-Mor das Obras
e Resíduos, para manifesto das entregas feitas aos mamposteiros dos cativos, ou
com a Casa da Suplicação, para efeito de apelação e agravo das decisões sobre
testamentaria (Ord. fil. 1,62,18 e 19) e, com esta última, nos feitos de órfãos (Ord.
fil.1,88,46); com o Desembargo do Paço, em matéria de supervisão das contas dos
concelhos (Ord. fil.1,62,65) e com o Conselho da Fazenda em assuntos relativos à
fazenda real (nomeadamente, arrendamento de rendas reais, contas dos almoxarifes,
etc.).
§ 191. A jusante, entravam em contacto com os juízes dos órfãos (Ord.
fil.1,62,34 e 35); com os tabeliães, que, em matéria de resíduos, lhes deviam fornecer
a lista dos testamentos; com os mamposteiros dos cativos, a quem entregavam as
somas destinadas aos cativos (Ord. fil.1,62,12 e 16); e com os almoxarifes, sobre
matérias de fazenda e de terças dos concelhos (Ord. fil.1,62,68).
§ 192. As relações entre os diversos níveis desta estrutura não eram, porém, de
tipo diferente daquelas que encontrámos no sector da justiça, pelo que não se pode
falar, em rigor, de relações de hierarquia político-administrativa, mas antes de

Todos-os-Santos, da Misericórdia de Lisboa, das Capelas de D. Afonso IV (em Estremoz, Torres


Vedras e Vieiros [Aviz]).

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relações de tutela, em que o funcionário de escalão superior se limita a controlar a


atividade do de escalão inferior através da reapreciação dos seus atos aquando de
recurso ou da inspeção ou residência.
§ 193. Desta estrutura administrativa faziam parte, além dos provedores,
outros-oficiais. Em primeiro lugar, os oficiais da provedoria - escrivães (Ord.
fil.1,63), chanceleres (Ord. fil. 1,62,80), porteiros (Ord. fil. 1,63). No domínio dos
resíduos, o funcionário principal, ao nível regional, é o mamposteiro dos cativos,
encarregado de arrecadar os bens ou valores consignados ao resgate dos cativos
penas, esmolas, resíduos ou deixas testamentárias. Nomeado pelo rei através da
Mesa da Consciência e Ordens, dependia desta para efeito de residência (§§41, 43,
48 do reg.), e do Corregedor da Corte, para efeitos de recurso (§5 do reg.). Existia
um por bispado, podendo cada um deles nomear mamposteiros menores nas terras
do bispado (§3 do reg.)222. Cada mamposteiro dispunha de um escrivão próprio (de
nomeação régia, §4 do reg.), de um solicitador ou procurador (§7 do reg. e Ord.
fil.1,64), de recebedores e de tesoureiros. Existiam ainda depositários dos resíduos,
encarregados de guardar os resíduos arrecadados pelo provedor (v.g. aos
testamenteiros negligentes, Ord. fil.1,62,12), enquanto este os não entregava ao
mamposteiro. No domínio dos órfãos, existiam os oficiais a que já nos referimos,
ao tratar do oficialato local. Aos oficiais do domínio da fazenda referir-nos-emos,
globalmente, de seguida, pois se trata de um outro ramo bastante diferenciado desta
administração periférica da coroa, que vimos brevemente descrevendo.
2.4.2.2.2 Os oficiais da fazenda.
§ 194. A fazenda constitui um domínio bem caracterizado da administração
real periférica223. Não apenas pela especificidade do seu objeto, mas ainda porque,
aqui, os laços de dependência são mais apertados, aproximando-se mais do modelo
da hierarquia administrativa em sentido próprio.
§ 195. Isto acontece, sobretudo, porque a construção dogmática tradicional do
ofício (v. cap. 2.6) não atingira esta zona, sendo aqui os cargos configurados como
comissões reais. Uma consequência deste diferente modelo da construção
dogmática dos ofícios consiste no facto de, nesta área, a inspeção e controlo dos
oficiais não obedecer ao modelo da “residência”, efetuando-se pelos modelos mais
efetivos da “instrução” e da “prestação de contas”, importados da administração
eclesiástica e mesmo da administração privada ou dominial 224. Outra consequência
diz respeito ao modelo de retribuição. Embora não tenham desaparecido as rendas
emolumentares, encontram-se aqui oficiais que dependem quase exclusivamente do
salário (v. g. almoxarifes, feitores, juízes das alfândegas). Já no caso dos escrivães, o

222 A redenção dos cativos era urna obra de misericórdia atribuída à Ordem da Santíssima

Trindade, por quem foi demitida à coroa em 1562 (cf. alv. de 10.3 desse mesmo ano). Regimento dos
mamposteiros de 11.5.1560, José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., vol. 5, 486 ss..
223 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 181 ss.. 212 ss..

224 Assim, os contadores vinham de dois em dois anos a Lisboa prestar contas ao Conselho da

Fazenda (Reg. 17.10.1516, cit., cap. 85); recebiam deste os cadernos de assentamentos por onde os
almoxarifes haviam de fazer os pagamentos e vigiavam o cumprimento das instruções neles contidas
(ibid. cap. 78); tomavam anualmente as contas aos almoxarifes (ibid. cap. 81), etc. Quanto a estes, além
de sujeitos a este controlo, deviam pedir instruções aos contadores, no caso de dúvida (ibid. cap. 116);
enquanto que, a jusante, exerciam uma idêntica atividade de inspeção e instrução sobre escrivães e
recebedores (v.g. ibid. cap. 104).

78
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

sistema emolumentar mantém-se, como também era de esperar.


§ 196. O oficial que assegurava a ligação entre a administração financeira
central e a correspondente administração periférica era o provedor, enquanto
contador225. A ele já nos referimos.
§ 197. Abaixo dele, como funcionário executivo da fazenda, estava o
almoxarife, cargo que resulta da integração de todas as funções de recebimento e
pagamento a nível local, antes do século XV dispersas por almoxarifes particulares
de cada ramo226. As suas funções eram: (i) receber as rendas dos rendeiros e as
quantias entregues aos recebedores das sisas ou dos direitos reais ou entradas nas
“távolas” (repartições de cobrança) dos vários tributos ou rendas (Reg. caps. 104,
111); (ii) pagar as despesas inscritas nas suas folhas (tenças, ordenados dos “filhos
da folha” - i.e. oficiais com salários assentados na folha daquela repartição -, etc.)
(Reg. caps. 106 ss.), arrecadando 1 % de cada despesa para obras pias (Reg. cap.
206); (iii) decidir, na falta do contador, dos feitos cíveis e crimes em que fossem
partes os rendeiros (Reg. cap. 149), dando apelação e agravo para o Conselho da
Fazenda.
§ 198. Dentro da administração da fazenda destacava-se, pela importância da
sua rede, a administração alfandegária, englobando as alfândegas (marítimas), os
portos secos (alfândegas terrestres) e os portos molhados (alfândegas fluviais da
raia), onde se cobravam as dízimas de entrada das mercadorias 227.
§ 199. O principal oficial das alfândegas era o feitor, que superintendia no
serviço de vigilância (fiscal) da fronteira, auxiliado pelos seus guardas (Reg. de 1688,
caps. 2 e 39). Além deste, existiam os juízes, que julgavam as causas relativas aos
direitos alfandegários e ainda aqueles em que fossem partes os oficiais da alfândega,
dando agravo e apelação para o provedor da comarca (L. 13.5.1693) ou para o
Conselho da Fazenda (Reg. cit. cap 48). Como oficiais auxiliares, existiam: os
escrivães da alfândega, que escreviam nos feitos dos respetivos juízes; os escrivães
das guias, que passavam as guias que deviam acompanhar as mercadorias cujo
despacho não fosse feito na alfândega de entrada, mas no lugar de venda (ibid. caps.
14, 18-20); os alcaides das sacas que, tal como os guardas da alfândega, vigiavam o
trânsito ilegal de mercadorias e o contrabando (“saca”); os escrivães dos anteriores;
os seladores das alfândegas, que selavam as mercadorias que pagavam direitos de
entrada, para permitir o controlo desse pagamento e evitar a dupla tributação; os
procuradores das alfândegas, que defendiam os interesses do fisco nas causas
relativas a direitos aduaneiros (esta competência podia também recair no feitor); os
almoxarifes e recebedores, que arrecadavam as rendas e efetuavam os pagamentos;
os porteiros, meirinhos, etc.228.

225 Lista das contadorias, em 1516: Santarém, Leiria, Alenquer, Setúbal, Évora, Beja, Coimbra,

Viseu, Guarda, Algarve, Porto, Guimarães, Moncorvo (Reg. 17.10.1516, cap. 34, em José M. C. C. e
Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., 1, 24). No século XVII, aparecem, a mais, as de Viana,
Esgueira, Lamego, Pinhel, Castelo Branco, Tomar, Estremoz e Ourique.
226 Fonte legal: Ordenações da fazenda, de 17.10.1516, em José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos

reais [...], cit., 1, 62 ss..


227 Rede aduaneira, v. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 216.

228 Sobre a alfândega de Lisboa, que tinha, como já se viu, uma organização particular, v. o Foral

da Alfândega de Lisboa, de 15.10.1587, em José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., 2,
1 ss. Comentário e decisões judiciais em Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 9, ad Ord.
fil.2, 26, §§ 9 e 20, 33; e, ainda, Ord. fil.2, 28, rubr..

79
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§ 200. O resto da administração fiscal e financeira era constituído por um


número relativamente elevado de oficiais especializados encarregados da cobrança
dos vários tributos. Destacamos, dentre estes, os oficiais das jugadas, tributo em
trigo, milho, vinho e linho que recaíam sobre certas terras (“terras jugadeiras”) 229 (v.
neste livro, cap. 4.2.2.4). O aparelho administrativo deste ramo era desigual,
consoante a importância do tributo nas várias regiões 230.
§ 201. Uma particularidade destes ofícios é o facto de parte das suas rendas
serem geralmente pagas em géneros, no que se aproximam dos ofícios da
administração dominial da coroa (dos pauis, lezírias, montados, etc.), pertencentes a
uma estrutura administrativa mais arcaica, porventura decalcada na administração
“obediencial” da igreja231, provinda da época em que as receitas da coroa eram
constituídas, principalmente, por rendas fundiárias e em que os modelos
administrativos vigentes na sua arrecadação eram os modelos da administração
dominial,
§ 202. Outros oficiais da administração fiscal-financeira são: os do consulado
ou “dos 3%”232 - escrivães, recebedores -, que aparecem em Lisboa, Caminha, Vila
do Conde, Aveiro, Buarcos, Setúbal, Lagos, Vila Nova de Portimão, Faro e Tavira;
os do direito do sal ou “direito novo” 233 - escrivães, feitores, recebedores - que
aparecem em Aveiro e Setúbal; os dos milheiros da sardinha de Setúbal; os do
estanco das cartas de jogar (meirinho - aparece em Santarém); os da moeda - das
casas da moeda de Lisboa e do Porto; os das almadravas; etc..
2.4.2.2.3 Os oficiais da milícia.
§ 203. Sobre a administração militar 234 dependente da coroa já foi dito o
principal. Salvo alguns pequenos núcleos de soldados pagos em pontos nevrálgicos
da defesa da costa, ela é inexistente antes das guerras da Restauração. Com exceção,
é claro, dos alcaides dos castelos (Ord. fil.1,74); mas, na época moderna, as
alcaidarias já eram postos mais honoríficos do que operacionais.
2.4.2.2.4 Administração dos próprios da coros da coroa
§ 204. Ao lado da administração periférica votada à cobrança dos tributos, a
coroa dispunha de outras estruturas administrativas votadas à administração dos
seus bens próprios; ou seja, daqueles bens de que os reis detinham o domínio a
partir do ato original de conquista ou por outro modo de aquisição (compra,

229 Sobre as jugadas - tributo sobre cuja aplicação havia muitas questões práticas, quer quanto às

terras por que era devido, quer quanto às isenções pessoais (v. Ord. fil.2, 33) - há uma vastíssima
literatura. Para a descrição sistemática, Francisco Coelho de Sousa Sampaio, Prelecções de direito pátrio
[…], cit., p. 102. Para a doutrina anterior: verdadeiro tratado sobre o tema, com muita jurisprudência,
regimento das jugadas de Santarém de 25.3.1559, foral novo e regimento das jugadas de Coimbra,
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 9, ad Ord. fil.2, 33, rubr. p. 357 ss.; Jorge de Cabedo,
Decisiones […], cit., pt. 1, dec. 188; pt. 2, dec. 64.
230 Os ofícios das sisas eram locais (v. supra). Em Lisboa, as sisas eram lançadas e cobradas nas

“casas de Lisboa”, sobre as quais, v. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.2.
231 Sobre este tipo administrativo, Cf. R. Durand, Le cartulaire du Baio-Ferrado du monastère de Grijó

(XI-XIII siècles), Paris, 1971, XLVII.


232 Sobre o consulado, v. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., II.4.

233 Reg. 20.5.1640, José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., vol. 5, 655 ss.

234 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […}, cit., 218 ss..

80
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

doação, troca, etc.)235.


§ 205. Se se destaca este ramo da administração não é tanto por se querer
insistir numa distinção que, ainda nesta época, é razoavelmente anacrónica - a
distinção entre direitos públicos da coroa e património privado do rei (v. cap.
4.2.2.2) - mas porque o regime destes funcionários tem traços específicos,
denotando um maior arcaísmo e uma maior proximidade, até na designação dos
oficiais, em relação às formas de administração do património régio em vigor na
idade média. Um traço, entre outros: o da existência frequente de salários em
géneros.
§ 206. Os principais ramos deste sector da administração dominial são os
seguintes.
§ 207. A administração das lezírias e pauis do Tejo, que cuidava do
arrendamento das lezírias e pauis reais de Albacetim, Ota, Rio Maior, Ribeira,
Asseca, Redinha, Malveira, Benavente, Muge, Salvaterra e Alcoelha e da polícia das
respetivas valas, marachões e tapadas236. Uma vez que não eram cultivadas
diretamente, as lezírias eram repartidas pelos lavradores que as quisessem arrendar
(Reg. das lezírias, n. 1; Reg. dos pauis, n. 1). Sobre os quais ficavam a impender certas
obrigações, quer quanto ao cultivo, quer quanto à conservação das obras de
irrigação e de hidráulica, quer ainda quanto ao aproveitamento de novas terras e
juncais (Reg. das lezírias, ns. 6 ss.; Reg. dos pauis, ns. 3 ss.). O principal oficial das
lezírias era o provedor e contador, que superintendia sobre o seu arrendamento e
polícia (Reg. das lezírias, n. 40). Abaixo dele, o almoxarife, com funções de
tesoureiro, de polícia e de justiça, competindo-lhe, neste último plano, conhecer de
todas as causas das lezírias e daquelas em que fossem partes os seus lavradores que
tinham, portanto, privilégio de foro (Reg. das lezírias, 41). Além destes, outros
oficiais menores - mestres das valas (Reg. das lezírias, n. 50), recebedores (ibid. n. 51),
guardadores (ibid. n. 54), alcaides (ibid. n. 56), etc..
§ 208. Importância semelhante têm os oficiais da administração dos montados
de Campo de Ourique, zona de pastagem pertencente à coroa onde vinham pastar
os gados do termo e, ainda, no Inverno, gados das comarcas do interior alentejano
e beirão237. A utilização dos pastos e da água (além da lenha e mato para os
pastores) obrigava ao pagamento de uma percentagem (normalmente, 1 %; para as
varas de porcos, 2%) das cabeças do rebanho (“monta”). Esta “monta” era feita em
data e lugar certo, todos os anos, sob a presidência do ouvidor dos montados,
auxiliado pelos seus oficiais - escrivães, meirinhos, procuradores (c. 6 do reg.). Nos
concelhos, havia os juízes do verde, que marcavam as coutadas de cada vizinho
(zonas em que a pastagem dos gados foreiros era vedada, c. 21 do reg.) e julgavam
as coimas; eram auxiliados pelos escrivães do verde (c. 23 do reg.).
§ 209. De âmbito geográfico mais geral era a administração das matas reais,

235 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 224 ss..
236 Reg. das lezírias de 24.11.1576, em José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., 2,
289 ss.; reg. dos pauis, ibid. 315 ss. O carácter real das lezírias decorria quer do direito comum, quer do
direito pátrio (Ord. fil.2, 26). No campo do Mondego, havia também um provedor dos marachões, com
os seus oficiais (Reg. 8.9.1606, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 9, ad Ord. fil.2, 33,
gl. 33, ou Col. Chron. Leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, 178.
237 Cf. Reg. de 19.1.1699, em Col. chron. leg. (J.J.A.S.), pg. 424.

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destinada a regular o desbaste da madeira e a impedir a caça furtiva 238. O território


do reino estava dividido em montarias ou coutadas, em cada uma das quais existia
um monteiro-mor ou juiz das coutadas, que superintendia na guarda das matas. O
julgamento dos feitos relativos a elas era da competência dos almoxarifes (no caso
das montarias) ou dos juízes das coutadas, que davam apelação e agravo para o
juízo do Monteiro-Mor da corte, integrado pelo Monteiro-Mor e por dois
desembargadores extravagantes da Casa da Suplicação (Reg. cit.. ps. 114 e 124).
§ 210. Próxima da anterior, a administração dos pinhais - nomeadamente, do
pinhal de Leiria -, regulamentada em 1597 (Reg.. 26.7)239, e destinada a fazer
observar as normas sobre aproveitamento da lenha e madeira.
2.4.2.3 A administração central
§ 211. Do ponto de vista do poder da coroa, o polo unificador de todos os
ramos da administração periférica anteriormente descritos devia ser constituído
pelos órgãos da administração central ou palatina. Dedicaremos, portanto, as
páginas seguintes à sua rápida descrição.
§ 212. Na corte - Casa Real, Tribunais da Corte e Casa do Cível -
encontramos, no século XVII, cerca de 600 oficiais 240. Número que, se bem que
corresponda apenas a cerca de 5% do conjunto dos oficiais do reino, revela um
assinalável desenvolvimento da administração central. As rendas (salários e
emolumentos) por eles recebidas ascendiam, na mesma época, a mais de 42 contos,
o que correspondia a cerca de 22% das rendas dos oficiais de todo o reino;
enquanto que os salários que lhes eram pagos (cerca de 24 contos no conjunto)
constituíam quase metade (39%) dos salários totais. Do ponto de vista tipológico,
também se verifica aqui uma grande exuberância, pois encontramos cerca de 220
categorias (ou designações) dos ofícios, o que corresponde a aproximadamente 1/3
das existentes para todo o reino. Tudo isto corroboraria um fenómeno de
“intensificação” da administração central comum às monarquias peninsulares, que
já foi salientado por anteriores análises (v.g. a de J. Vicens Vives).
§ 213. Os ofícios da corte constituem, no entanto, um conjunto bastante
heterogéneo, agrupado em organismos diversos, que descreveremos em seguida.
2.4.2.3.1 Casa Real.
§ 214. Existe, desde logo, o núcleo da Casa Real241. Ao lado dos oficiais
maiores da casa real - mordomo-mor, estribeiro-mor, aposentador-mor, camareiro-
mor, porteiro-mor, vedor, armeiro-mor, monteiro-mor, almotacé-mor (cf. Ord.
fil.1,18), correio-mor, cevadeiro-mor, provedor-mor das obras do paço, meirinho-
mor (Ord. fil.1,21) -, os ofícios da guarda, os físicos, cirurgiões e boticários, os
ofícios da cozinha e copa, os reis de armas e seus oficiais, os músicos e inúmeros

238 Cf. reg. 20.3.1605, em Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo A organização dos monteiros é

extinta em 1800 (alv. 21.3, §28).


239 Cf. A Arala Pinto, O pinhal do rei. Subsídios, Alcobaça, 1938-1939, 2 vols. Novo regimento em

25.7.1751 (em Col. Chron. Leg. (A.D.S.)).


240 Todos os seguintes elementos quantitativos podem ser conferidos em António Manuel

Hespanha, As vésperas […], cit., ps. 160 ss. (com quadros e gráficos).
241 Para indicações bibliográficas sobre a Casa Real e os seus oficiais, v. António Manuel
Hespanha, As vésperas […], cit., 228.

82
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

artífices.
2.4.2.3.2 Secretários.
§ 215. Os secretários (da câmara, de despacho, de Estado) apoiavam o rei nas
decisões correntes em matéria de graça e de governo 242. Constituem a sequência
dos oficiais que, desde a idade média, preparavam o despacho (ou “desembargo”)
do rei. Na segunda metade do século XVI, com o desenvolvimento da
administração sinodal, os secretários asseguram, frequentemente, a ligação entre o
rei e um dos conselhos palatinos (v.g. o secretário “de Estado”, com o Conselho de
Estado; o “da Índia”, com a repartição da Índia do Conselho da Fazenda ou,
enquanto este existiu (1604-1614), com o Conselho da Índia; o “da Fazenda”, com
o Conselho da Fazenda). Com D. João III e D. Sebastião aconteceu
frequentemente que um destes secretários ganhasse um ascendente no despacho
corrente (v.g. os Carneiros ou os Câmaras).
§ 216. Trata-se de um cargo com um regime institucional fluido, oscilando
entre o de simples auxiliares privados de despacho - oral ou escrito - do monarca e
o de ministros com competência para coordenar um ramo mais ou menos extenso
da administração. Em geral, coexistiam vários tipos de secretários (os “da câmara”,
os “dos conselhos”). A designação secretário “de Estado” apenas aparece durante o
domínio filipino, provavelmente por simpatia com a designação de idênticos
funcionários espanhóis.
§ 217. O número e designações dos secretários de Estado variou ao longo de
todo o século XVII e XVIII. Em 1604, eram quatro - negócios de Estado e Justiça;
matérias de Consciência e Ordens; negócios da Fazenda; petições e mercês -, cada
uma das quais correspondente, como se vê, à área de atribuições de um dos
conselhos do Paço; só a última era transversal, preparando o despacho de quaisquer
tipos de mercês. Em 1607, ficaram reduzidas a duas; mas em 1631 foi criada uma
nova secretaria “da Índia e Conquistas”. Estas secretarias funcionavam em Madrid;
em Lisboa, existiam também secretários dos vice-reis ou governadores, parecendo
que dois foram mais ou menos permanentes, o “de Estado” e o “das mercês”.
§ 218. Com D. João IV, atribuíram-se inicialmente todas as competências a
um só secretário, a que se chama “de Estado”, mas, logo em 1643 (alv. 29.11),
desdobrou-se esta secretaria em duas, a “de Estado” e a “das mercês e expediente”
(Reg. em http://purl.pt/24242), segundo uma repartição de competências
constante do mesmo alvará. Pelos finais do século XVII, criou-se a “secretaria da
assinatura”, encarregada do processamento da parte final dos diplomas régios.
§ 219. Em 1736 (alv. de 28.7243), foi reestruturada a orgânica das secretarias
(agora “secretarias de Estado”, criando três - a do Reino, a da Marinha e Ultramar e
a dos Negócios Estrangeiros e Guerra). Esta última é desdobrada em 1787. A da
Fazenda é criada em 1788 (dec. 15.12). Com isto, atinge-se a especialização da alta
administração central que encontramos nos finais do Antigo Regime e que presidirá
ainda, basicamente, à repartição dos ministérios no constitucionalismo monárquico.
A partir dos meados do século XVIII, aparece a figura do “ministro assistente ao

242 Cf. bibliografia em António Manuel Hespanha, História das instituições [...], cit., 342 e António

Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 243 ss..


243 Em Collecção de legislação extravagante […]. Leis e alvarás, 2, 458.

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despacho”, espécie de coordenador da ação dos restantes secretários244.


§ 220. Em 12.3.1663, dá-se regimento ao cargo de escrivão da puridade,
restabelecido a favor do valido do monarca, o Conde de Castelo Melhor, mas que
não lhe sobreviveu.
§ 221. O governo pelos secretários régios - do mesmo modo que o governo
por “juntas” eventuais, que se tomou habitual no período dos Áustria, tanto em
Portugal como em Espanha - desvalorizava os conselhos palatinos e corroía o seu
poder. Daí que fossem frequentes as pressões no sentido de exigir a intervenção
dos conselhos para a produção de atos executórios.
2.4.2.3.3 Conselho de Estado.
§ 222. Mais institucionalizado era o Conselho de Estado 245, criado pelo
Cardeal D. Henrique, ao tomar posse da regência, em 1562, para tratar de “assuntos
de Estado”, ou seja - tal como são definidos, no alv. de 29.11.1643 - “contratos,
cazamentos, alianças, instruções, avizos publicos, ou secretos, que se derem a
quaisquer embaixadores, comissarios, rezidentes, agentes, e quaisquer pessoas [...]
que se despacharem dentro ou fora do Reino, e negócios que forem da qualidade
referida” (A.N.T.T. ms. 2608).
§ 223. O seu primeiro regimento é já de 8.9.1569, de acordo com o qual o
conselho devia reunir três vezes por semana, despachando os assuntos que lhe
fossem propostos pelo rei ou nos quais os conselheiros acordassem, destacando-se
expressamente os assuntos da fazenda. Em 1624, dá-se-lhe novo regimento
(referido no de 1645), mandando-se reunir pelo menos duas vezes por semana. Ele
devia, nomeadamente, assessorar o vice-rei no despacho das matérias que cabiam
na sua alçada246. D. João IV dá-lhe novo regimento em 31.3.1645247, espaçando
ainda mais as reuniões (todas as segundas-feiras), mas encomendando aos seus
membros, como principais ministros do reino, a maior liberdade de opinião. Na sua
função de consulta, o Conselho de Estado sofria a concorrência de “juntas”
informais, como a “Junta noturna”, órgão restrito e quotidiano de consulta
instituído por D. Luísa de Gusmão, talvez inspirada pela Junta de la Noche formada
pelos principais validos de Filipe II.
§ 224. Com D. Pedro lI, o Conselho de Estado reúne-se regularmente
(semanalmente), embora, na sua função de conselho, fosse progressivamente
substituído pelo “Gabinete do rei”, constituído pela rainha, validos,
desembargadores e eclesiásticos. Esta tendência de transferir para um “gabinete” de
secretários as tarefas de conselho e de coordenação política acentua-se cada vez
mais. Por isso - e segundo Merêa -, a atividade do Conselho decaiu muito desde os
finais do reinado de D. João V. não havendo conselheiros em 1754. Pombal
reestruturou o Conselho em 1760 e nomeou cinco conselheiros; mas, não tendo
estes sido substituídos por morte, o Conselho estava de novo reduzido aos

244 Sobre a estrutura e funcionamento das secretarias de Estado no séc. XVIII, José Manuel Subtil,

“Governo e administração”, cit., 177 ss..


245 Cf. bibliografia e fontes em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 247 ss.

246 Reg. do Arquiduque Alberto, caps. 6 e 7; Reg. do Conde de Basto, de 18.7.1633, Col. chron. leg.

(J.J.A.S.), vol. respetivo, pg. 318 ss. art. 16.


247 José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., tomo 6, 472.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

secretários de Estado. Em 1796, D. Maria nomeou 14 conselheiros e deu aos


ministros de Estado a categoria de conselheiros natos (aviso de 4.7). Parece ter
deixado de reunir em 1801.
2.4.2.3.4 Conselho de Portugal.
§ 225. Um outro órgão de governo central foi o Conselho de Portugal 248.
§ 226. Constituía um dos privilégios oferecidos por Filipe II de Espanha às
cortes de Almeirim de 1579. Teve um regimento um 1586, alterado em 1602 e,
provavelmente, de novo por volta de 1633. Embora só agora comecem a ser feitos
estudos de detalhe sobre este órgão, a sua importância política parece ter sido
diminuta, ocupando-se sobretudo das trivialidades da administração, sendo os
assuntos de maior vulto remetidos ao Consejo de Estado. Na literatura memorialista
da época249, a discussão sobre as vantagens ou desvantagens da existência do
Conselho gira em torno da questão de saber se ele embaraça ou facilita o despacho
das pretensões dos requerentes portugueses. Em contrapartida, no horizonte nunca
aparece a sua ligação à questão da autonomia de governo portuguesa. Nestes
termos, a alternativa ao Conselho de Portugal, que esteve em prática por alguns
anos, de encaminhar diretamente os papéis de Lisboa do Vice-Rei para um
secretário (Fernão de Matos, Diogo Soares) podia apresentar vantagens, por
extinguir um dos passos do percurso burocrático.
§ 227. Em Lisboa, por sua vez, existiram, durante o período filipino,
governadores e vice-reis, com poderes constantes do regimento de cada um.
2.4.2.3.5 Desembargo do Paço.
§ 228. Para as “matérias de graça que tocassem à justiça” - de facto, a
generalidade dos assuntos relativos à administração civil do reino - existia o
Desembargo do Paço. Com ele se correspondiam os corregedores, quanto à
generalidade das suas atribuições. Por ele se despachavam também as decisões
finais sobre as “leituras de bacharéis”, que habilitavam para o desempenho das
magistraturas letradas (“lugares de letras”), as quais eram também despachadas por
este tribunal. Nele, finalmente, se confirmavam as eleições dos concelhos e os
respetivos oficiais. Mas a sua atividade de controlo raramente configurava uma
intervenção diretiva, antes se cifrando quase sempre num controlo de tipo
tutelar250.
§ 229. Segundo uma notícia coeva251, o seu serviço ocupava o presidente, 2
desembargadores, 7 escrivães (“Alentejo”, “Beira”, “Entre Douro e Minho”,
“Lisboa”, “Mesa, letrados e ofícios” e dois extravagantes), 1 médico, 1 cirurgião, 1
porteiro e 4 moços de recados. Setenta anos depois, a sua orgânica interna aparece,
no entanto, bastante alterada - aumenta para nove o número dos desembargadores,
reduzem-se a cinco as escrivaninhas (repartições ou secretarias) - “Justiça”, “Corte,
Estremadura e Ilhas”, “Beira”, “Alentejo”, “Minho e Trás-os-Montes” -, e aumenta

248 Cf. bibliografia e fontes em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 249 ss.
249 Cf. g. na Historia portugueza e de outras provincias do ocidente […], de Manuel Severim de Faria, cod.
241 B.N.L. “Fundo geral”.
250 Literatura, fontes e ulteriores desenvolvimentos em António Manuel Hespanha, As vésperas

[...], cit., 250 ss. Por último, com antecipações dos resultados de um importante trabalho de
investigação em curso, José Manuel Subtil, “Governo e administração […]”, cit., 163.
251 Cod. 11543 da B.N.L. fls. 168-170.

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o número de oficiais menores252.


2.4.2.3.6 Casas da Suplicação e do Cível.
§ 230. As Casas da Suplicação e do Cível constituíam o desdobramento do
tribunal da corte para as matérias de justiça 253.
§ 231. A sua competência era, em termos gerais, o julgamento em última
instância, dos pleitos judiciais. A Casa do Cível exercia esta competência nas
comarcas e ouvidorias de Entre Douro e Minho, de Trás-os-Montes, da Beira
(salvo Castelo Branco) e nas de Esgueira e Coimbra (da Estremadura). A Casa da
Suplicação nas restantes comarcas do reino (cf. Ord. fil.1,6,12), nas ilhas (durante
certo período sujeitas às relações do Brasil) 254, no ultramar (até à criação das
respetivas Relações) e quanto a certos juízos privilegiados e especiais. Esta
competência não era exercida indiscriminadamente por todos os desembargadores;
antes estava repartida por certos núcleos (cf. Ord. fil.1,6 ss.255), pois existiam vários
núcleos da Casa da Suplicação256.
§ 232. a) Os Desembargadores dos Agravos eram os julgadores dos agravos
das justiças de Lisboa ou de certos juízes de graduação mais elevada e, sobretudo,
dos agravos e apelações cíveis do distrito da Casa 257, conhecendo:
(i) os agravos cíveis vindos da Casa do Cível, bem como os agravos vindos de certos juízes da
Corte (corregedores da Corte) ou de juízos particulares (Juiz da Índia e da Mina, Conservador dos
Alemães, Conservadores das Universidades de Coimbra e Évora, Ord. fil.1,6,pr.);
(ii) os agravos cíveis (por instrumento de agravo ou cartas testemunháveis) vindos das justiças do
distrito da Casa (Ord. fil.1,6,4);
(iii) quaisquer agravos vindos das justiças da área de Lisboa (Ord. fil.1,6,6);
(iv) os agravos de decisões individuais, quer interlocutórias, quer definitivas, de qualquer
desembargador da Casa ou do corregedor dos feitos cíveis (ibid.7-9);
(v) as apelações cíveis de certos juízos especiais de Lisboa (juízes dos órfãos, ouvidor da alfândega,
provedor dos resíduos, conservador da moeda) ou das justiças do distrito da Casa (Ord. fil.1,6,12);
§ 233. b) Os Corregedores dos feitos crimes (para detalhes, Ord. fil.1,7), além
de exercerem, na Corte, as atribuições que competiam aos corregedores e, em
matéria crime, aos juízes das terras (ordinários ou de fora), eram os julgadores dos
agravos crime do distrito da Casa, julgando:
(i) as ações novas da Corte, em matéria crime (Ord. fil.1,7,pr. );

252 João Martins da Costa, Domus Suplicationis […], cit., III, 585. Para a segunda metade do século

XVIII, José Manuel Subtil, “Governo e administração”, cit..


253 Não existem monografias atualizadas sobre o tema, pelo que uma investigação de fundo teria

que começar pelos textos legais (para a Casa da Suplicação, Ord. fil. 1, 5-34; para a Casa do Cível, Ord.
fil. 1, 35-46; legislação extravagante abundante em Manuel Fernandes Thomaz, Reportorio geral […], s.v.
“Relação [...]”, “Casa da Suplicação”, “Casa do Cível”, “Desembargadores”) e pelos comentários
doutrinais: antes de todos, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomos 2 e 3 (v. os “estilos” da
Casa do Cível, em tomo 4, ps. 13 ss.), João Martins da Costa, Domus Supplicationis […], cit.. Literatura
secundária em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.. Com organigrama, José Manuel Subtil,
“Governo e administração”, pg. 170.
254 A Relação da Baía foi criada em 1609 (Regimento, 7.3.1609), extinta em 5.4.1626 e novamente

restabelecida em 1652 (Regimento em 12.9.1652). A Relação do Rio foi criada em 16.1.1751 (Regimento
em 13.10.1751).
255 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], ed. 1986, I, 330 ss..

256 Sobre a sua hierarquia simbólica, António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 228 ss..

257 Para detalhes, Ord. fil.1, 6.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

(ii) os agravos crime das justiças do distrito (Ord. fil.1,7,15);


No seu reino
(iii) os agravos crimes das justiças da área da Corte, não estando esta em Lisboa (pois então irão,
como vimos, aos desembargadores dos agravos) (Ord. fil.1,7,16);
§ 234. c) Os Corregedores dos feitos cíveis (para detalhes, Ord. fil.1,8) eram os
julgadores em primeira instância das ações cíveis da corte ou a elas avocadas, onde
exerciam ainda as funções dos corregedores, em matéria cível (ibid. pr.). Conheciam:
(i) as ações novas da Corte em matéria cível, dando agravo para os desembargadores dos agravos
(Ord. fil.1,8,l,pr. e 2);
(ii) as ações novas em que sejam partes os prelados isentos (Ord. fil.1,8,3);
(iii) as ações cíveis avocadas à Corte pelo rei (Ord. fil.1,8,5);
(iv) as ações cíveis dos que tiverem a Corte por foro privilegiado (órfãos, viúvas, pobres) (Ord.
fil.1,8,6);
(v) os agravos cíveis (por petição) das justiças da área da Corte, não sendo de Lisboa (pois neste
caso, eles vão aos desembargadores dos agravos, tal como no caso dos agravos por instrumento ou
carta testemunhável) (Ord. fil.1,8,9);
§ 235. d) Os Ouvidores do crime (para detalhes, Ord. fil.1,11) julgavam:
(i) as apelações crimes do distrito da Casa (Ord. fil.1,11,pr.);
§ 236. e) Os juízes dos feitos da Coroa (Ord. fil.1,9), julgavam:
(i) as ações novas de Lisboa ou da Corte relativas, direta ou indiretamente, à "posse ou
propriedade" de direitos da Coroa (Ord. fil.1, 9,pr.), ainda que esta não fosse parte nelas;
(ii) ações do mesmo tipo, vindas por apelação ou agravo das comarcas do distrito da Casa.
§ 237. f) O juiz dos feitos da Fazenda (Ord. fil.1,10) julgava:
(i) em geral, todas as ações (novas, por agravo ou por apelação), que dissessem respeito à Fazenda
(nomeadamente, cartas de ofícios, rendas reais, agravos de sentenças dos oficiais da Fazenda); a
fronteira com as atribuições próprias do Conselho da Fazenda era um tanto casuística. Como
norma geral, poderia dizer-se que os agravos ou apelações das sentenças dos oficiais da Fazenda
iam aos seus juízes da Casa da Suplicação, enquanto que as súplicas de outros atos iam ao
Conselho da Fazenda. A partir de 1608 (alvs. de 4.1 e de 27.1; cf. ainda alvo 23-12-1642258), os
juízes da Fazenda despachavam no Conselho da Fazenda e não na Casa da Suplicação.
(ii) as apelações e agravos das sentenças do provedor e oficiais da alfândega de Lisboa (Ord.
fil.1,10,9);
(iii) os feitos sobre injúrias feitas aos rendeiros ou recebedores de rendas reais, quer por ação nova,
quer por apelação (Ord. fil.1,10,12).
§ 238. Na Casa do Cível, existiam núcleos correspondentes 259.
2.4.2.3.7 Conselho da Fazenda.
§ 239. Um outro tribunal do Paço é o Conselho da Fazenda, tribunal criado
em 1591, na sequência da reforma filipina da administração superior da fazenda, e
em substituição dos anteriores vedores da fazenda, cujas atribuições herda 260.

258 Collecção chronologica de leis extravagantes [...], cit., 1, 77 e 485.


259 Cf. também José Manuel Subtil, “Governo e administração” […], cit.
260 Literatura e fontes em António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 236 ss. Dado o seu

paralelismo com a evolução portuguesa, ainda que manifestando uma sistemática precocidade, tem
interesse recordar os traços gerais da alta administração financeira castelhana. O Consejo de Hacienda
existia desde 1532, com atribuições e estrutura semelhantes ao português. A cobrança e administração
dos serviços (millones) votados em cortes corria pela Comissión de millones, criada por 1590, integrada no
Consejo em 1658, e correspondente, nas suas funções, à nossa Junta dos Três Estados. O reforço da via
governativa em matéria de fazenda leva à criação, desde 1714, de uma Secretaria de Estado e Despacho
especializada, marginalizando o respetivo conselho.

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Embora o cargo já existisse antes, o primeiro regimento conhecido dos vedores da


fazenda é o de 17.10.1516, integrado no conjunto dos Regimentos e ordenações da
Fazenda261. Aí se prevê a existência de três vedores, cada qual com o seu escrivão,
com competências repartidas entre si (cap. 26-29), dispondo de atribuições no
domínio da administração da fazenda real e da jurisdição, voluntária ou
contenciosa, relativa a assuntos da fazenda 262. O facto de os três vedores terem
competências delimitadas, superintendendo cada qual num pequeno núcleo de
funcionários, deve ter levado a uma quase completa independência de cada um. De
tal modo que, em 20.11.1591, Filipe I, constatando que, na prática, o que existia
eram três tribunais distintos, aplicou a este domínio da administração o regime
sinodal, integrando os três vedores num conselho, sujeito a um vedor presidente, ao
mesmo tempo que juntava aos vedores não letrados dois outros que o eram. Surgiu,
então, o Conselho da Fazenda, integrando um vedor-presidente, dois vedores não
letrados e outros dois letrados (Reg. 20.11.1591, Soisa,1 241-245).
§ 240. A promulgação das Ord. fil. (1603), que previam a existência de um Juiz
dos feitos da fazenda (ao lado do, já existente, Juiz dos feitos da coroa) na Casa da
Suplicação, vem tirar quase todas as atribuições de jurisdição contenciosa ao
Conselho da Fazenda, que passa para o Juiz dos feitos da fazenda da mesma Casa.
O grupo de pressão dos juristas impusera o princípio de que as matérias de justiça,
mesmo em questões da fazenda, deviam caber a tribunais de justiça. A solução era,
no entanto, gravosa para os interesses da fazenda real, que não apenas se via sujeita
à apreciação de juízes não especializados, como, sobretudo, era enleada no eficaz
sistema de defesa dos direitos dos particulares observado na ordem judicial comum.
Assim, os anos que se seguem, praticamente até aos meados do século XVII, são o
palco de um despique entre “financeiros” e juristas, de que são sintomas sucessivas
providências legislativas, a propósito da separação de competências quanto à
jurisdição contenciosa em matérias de fazenda entre a Casa da Suplicação e o
Conselho da Fazenda263.
§ 241. A tendência para governamentalizar a administração da fazenda 264,

261 José M. C. C. e Soisa, Systema dos regimentos reais [...], cit., 1, 1-49.
262 No domínio da administração, competia-lhes: arrecadar as rendas reais (cap. 3); administrar o
comércio ultramarino (incluindo as rendas da Madeira) e decidir sobre temas com ele conexos (como o
abastecimento, defesa e obras das conquistas), cap. 6; tomar as contas aos almoxarifes e contadores das
comarcas, bem como a outros oficiais que lhas devessem (vedores da fazenda do Algarve e do Porto,
contador-mor de Lisboa, recebedores e rendeiros), passando as respetivas cartas de quitação, caps. 6 e
30. ss:; administrar os bens próprios do rei (lezírias, paços, casas, armazéns, terecenas, fortalezas),
cap. 6; preparar a decisão real em todos os assuntos de graça que tocassem a fazenda, nomeadamente
tenças, ordenados, padrões, dada de jurisdições, etc. caps. 7, 9, 50, 51-54; dar condicionalmente -
por cartas de “se assim é” - rendas reais, caps. 11, 20; dar ofícios das sisas e direitos reais, caps. 21-33.
No domínio da jurisdição voluntária, cabia-lhes: arrendar e aforar propriedades (cap. 3); arrendar rendas
reais (caps. 3, 10, 52); despachar, por si ou por consulta ao rei, todas as cartas em matéria de fazenda
(cap. 5). No domínio da jurisdição contenciosa, estava-lhes atribuído o conhecimento: dos recursos
(eventualmente, de acções novas) em matéria de sisas, cap. 23; dos feitos em que fossem parte os
rendeiros de rendas da coroa, cap. 23; dos erros dos oficiais da fazenda, cap. 24; das apelações das
decisões de almoxarifes, recebedores e rendeiros, cap. 25; e, em geral, de “todas as cousas que
pertencem à nossa fazenda, & della dependerem por qualquer via que seja”, quer por ação nova, quer
por apelação, cap. 23.
263 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 236 ss.

264 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 239.

88
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

furtando-a ao controlo de um conselho, levou, durante o domínio dos Áustrias, à


tentativa da outorga da gestão financeira a Juntas várias. Mas o Conselho da
Fazenda mantém-se como órgão ordinário. Por 1641-1642, na sequência da
votação dos subsídios para a defesa do reino pelas cortes reunidas nesse ano 265,
cria-se a Junta dos Três Estados, encarregada de superintender ao lançamento e
cobrança das contribuições que integravam estes subsídios (décimas, real d'água,
novos direitos, tributo das caixas de açúcar, mais tarde, “usuais”). A Junta mantém-
se até aos finais do Antigo Regime (8.4.1813) 266.
§ 242. As próximas grandes modificações267do regime da alta administração da
fazenda só se verificam no tempo de Pombal, com a reforma de 22.12.1761268, que
unificou toda a administração não contenciosa da fazenda no Tesouro Real do
Reino ou Erário Régio, deixando para o Conselho da Fazenda apenas as atribuições
contenciosas, até que o alv. de 17.12.1790 (A.D.S. 629) une as duas instituições
numa só. Além de evidentes razões de ordem prática, subjaz às reformas josefina e
mariana a ideia iluminista da unidade do Estado, bem como a mais nítida inclusão
das questões da fazenda entre as matérias “de governo”, libertas de todas as peias
da administração jurisdicional269.
§ 243. O Conselho da Fazenda era, portanto, o órgão da corte que controlava
- por processos que ultrapassavam já, em muitos casos, a simples via do recurso -
uma extensa área administrativa - a Casa Real (através da sua Mordomia-mor), a
Casa dos Contos, a Contadoria-mor da Corte e Reino, a Casa da Moeda, as Casas
da Alfândega de Lisboa, a Casa da Índia e da Mina, os Armazéns da Guiné e da
Índia, as alfândegas e portos secos do reino, os contadores, os feitores régios e os
almoxarifados do reino, dos próprios e dos mestrados, etc.
§ 244. Em todo o caso, a própria organização da fazenda pública e da sua
contabilidade dificultavam este controlo pois vigorava a regra do pluralismo
orçamental e a da consignação de receitas a certas despesas, pelo que a fazenda se
repartia numa pluralidade de fundos dotados de grande autonomia e afetados a
certas finalidades ou despesas pré-fixadas. O que reduzia bastante o poder de
disposição deste órgão central270.
2.4.2.3.8 Mesa da Consciência e Ordens.
§ 245. Para as matérias tocantes à “consciência” e para o governo das ordens
militares de que o rei era grão-mestre - existia a Mesa da Consciência e Ordens271.
§ 246. A Mesa da Consciência é criada em fins de 1532 por D. João III com o
encargo de o aconselhar sobre os assuntos que “tocavam à obrigação da sua
consciência”. Parece ter funcionado sem regimento até 1558 (24.11). Novos
regimentos surgem em 1608: primeiro, o do Presidente da Mesa (12.8.1608); depois

265 Sobre elas, António Manuel Hespanha, “A "Restauração" portuguesa […]”, cit...
266 Fontes suplementares: António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 239.
267 Cf. lista dos seus oficiais, denotando algumas reformas internas, no reg. 29.12.1753 (Colecção de

legislação extravagante. Leis e Alvarás, tomo III, 188).


268 Colecção de legislação extravagante. Leis e Alvarás, tomo IV, 398-429.

269 Sobre esta última fase da alta administração financeira, v. José Manuel Subtil, “Governo e

administração […]”, cit., 171 ss. 181 s.


270 V António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 130 s.

271 Bibl. e fontes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 251 ss.

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(23.8), o da Mesa272. É-lhe atribuída a tutela da administração espiritual e temporal


das ordens militares (n. 16); a tutela das provedorias e mamposterias dos cativos (n.
16) e dos defuntos e ausentes (n. 16); o governo da Casa dos órfãos de Lisboa (n.
17); o provimento e governo das capelas de D. Afonso IV e D. Beatriz (n. 17); o
provimento das mercearias dos reis e infantes passados (n. 17); a administração do
Hospital das Caldas e de outros hospitais, gafarias e albergarias de proteção real (n.
17); a superintendência da administração da Universidade (n. 18); o provimento dos
ofícios relativos às repartições que tutelava, bem como dos das terras das ordens
(ns. 18 ss. e n. 26); o governo espiritual das conquistas (n. 23; correndo, entre 1604
e 1614, o seu governo temporal pelo Conselho da Índia, então criado); bem como,
em geral, todas as coisas que toquem à consciência do rei (n. 27). No domínio
contencioso, era tribunal de recurso nas matérias de foro privilegiado dos cavaleiros
das ordens (n. 10), bem como a instância por onde se passavam os perdões e cartas
de fiança dos privilegiados (ns. 43 ss.) ou se concediam autorizações para a
alienação ou sub-rogação dos bens das comendas (n. 42).
§ 247. As reformas do Erário régio promovidas por D. José I, a partir da lei de
22.12.1761, tendentes, sobretudo, à centralização da administração financeira,
levam a que, por alv. de 20.6.1774, se extingam os contos dependentes da Mesa,
quer quanto às rendas das Ordens, quer quanto às dos cativos, integrando-se tudo
no Erário273.
§ 248. Em 22.4.1808 cria-se uma Mesa da Consciência no Rio de Janeiro (cf.
também Aviso de 12.5.1809, sobre os ordenados dos seus membros).
§ 249. Embora tenha estado projetada a sua reforma nos finais do século
XVIII, a Mesa só foi extinta em 16.8.1833274.
2.4.2.3.9 Conselho da Índia e Conselho Ultramarino.
§ 250. As matérias de governo das conquistas correram, até 1604, pela Mesa
de Consciência. Então, reconhecendo-se a falta de um tribunal especializado para as
coisas “da Índia” (como existia em Espanha, desde 1524), é criado o Conselho da
Índia, a que se dá regimento em 25.7.1604 275. Nele eram tratadas, todas as matérias,
qualquer que fosse a sua natureza, relativas ao ultramar, tirando as Ilhas e Norte de
África, nomeadamente: provimento dos bispados, ofícios da justiça, guerra e
fazenda; despachos de parte vindos do ultramar; mercês de serviços do ultramar;
etc. O despacho de naus e armadas, bem como a administração das rendas do
ultramar, continuava, porém, a correr pelo Conselho da Fazenda, a fim de evitar a
pulverização da gestão financeira, objetivo que a coroa já então prosseguia.

272 O primeiro publicado em Collecção chronologica de legislação (J.J.A.S.), vol. respetivo, 228 ss.; o

segundo, na mesma Collecção […], vol. respetivo, 231 ss..


273 Collecção chronologica de legislação […] (A.D.S.), vol. respetivo, 776.

274 Relatório de Pascoal de Melo sobre a sua reforma, em Manuel Paulo Merêa, “Um relatório

notável” […], cit.. Sobre os seus funcionários, cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.,
253; José Manuel Subtil, “Governo e administração”, 169.
275 Collecção chronologica de legislação (J.J.A.S.), vol. respetivo, 87. Cf. para mais pormenores, António

Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 255 ss. (e bibl. aí citada). Sobre tipologia de despachos, v.
Marcello José Gomes Loureiro, “O Conselho Ultramarino e sua pauta: aspetos da comunicação política
da monarquia pluricontinental (1640-1668) – notas de pesquisa”,
http://nuevomundo.revues.org/65830.

90
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 251. A criação do Conselho da Índia deve ter provocado reações,


especialmente por parte dos deputados da Mesa da Consciência, que viam as suas
prerrogativas severamente restringidas. Assim, o novo conselho resiste apenas dez
anos, sendo extinto em 1614 e distribuídas as suas competências pela Mesa da
Consciência e pela repartição da Índia do Conselho da Fazenda; embora tenham
permanecido razões objetivas para a sua reconstituição. Com a Restauração,
restabelece-se o Conselho (agora, Conselho Ultramarino), a que é dado regimento
em 1642 [ou 1643 ?]276. Ao mesmo tempo, é extinta a repartição da Índia do
Conselho da Fazenda, cujo vedor passa a ser o presidente do novo Conselho,
assessorado por mais dois conselheiros de capa e espada e por um letrado. O novo
Conselho não recupera, porém, as atribuições espirituais relativas ao ultramar, que
continuam na Mesa da Consciência. No resto, o regimento corresponde ao de
1604, embora a competência do novo conselho em matéria de fazenda seja
porventura um pouco alargada.
§ 252. Em 28.7.1736277é criada, como já se viu, a Secretaria de Estado dos
Negócios da Marinha e Domínios ultramarinos, que faz a ligação entre o Conselho
e o rei e tende, progressivamente, a assumir as competências governativas do
Conselho278. Em 30.8.1833 o Conselho é extinto.
2.4.2.4 Conselho de Guerra.
§ 253. O governo militar do reino correu, durante a primeira metade do século
XVII, ou pelos órgãos normais de governo (nomeadamente, pelo que toca ao reino,
pelo Desembargo do Paço e secretarias régias, e, pelo que toca às conquistas, pelos
conselhos da Fazenda e da Índia), ou pelo Consejo de Guerra, de Madrid. A Guerra da
Restauração exigiu uma maior coordenação do governo militar. Assim, logo três
dias depois da revolução, em 11.12.1640, cria-se o Conselho de Guerra.
Dificuldades de funcionamento levam à sua reforma em 1643 (Reg. 22.12.1643). A
sua competência abrangia tudo o que se referia à defesa do reino, embora a
administração financeira da milícia competisse, como vimos, à Junta dos Três
Estados279. O Conselho dispunha ainda de competência disciplinar de última
instância sobre os militares. A jusante, correspondia-se com os governadores de
armas das províncias, criados na mesma altura. Com a criação da Secretaria de
Estado dos Negócios Estrangeiros e Guerra, em 1736, o Conselho de Guerra perde
bastante importância como órgão de governo, embora tenha mantido as suas
competências jurisdicionais e consultivas até à sua extinção em 1834.
2.4.2.5 Tribunais eclesiásticos.
§ 254. Finalmente, embora quase sem impacto nas matérias político-
administrativas internas, refiram-se dois outros tribunais, que tratavam de assuntos
da esfera religiosa: o Conselho Geral do Santo Ofício 280 e o Tribunal da Bula da

276 Reg. 14.7.1642 [ou 1643?], Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, 151; Collecção chronologica de leis

extravagantes [...]. Leis e alvarás, 1, 431.


277 Collecção chronologica de leis extravagantes [...]. Leis e alvarás, 2, 458.

278 Pelo alv. 16.6.1763, recebe a competência contenciosa do Conselho da Fazenda.

279 Col. Chron. Leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, pg. 10. Literatura e fontes, António Manuel
Hespanha, As vésperas [...], cit., 256 ss..
280 Sobre o Conselho Geral do Santo Ofício, v. José Pedro Paiva & Giuseppe Marcocci, História

da Inquisição Portuguesa, 1536-1821, cit..

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Cruzada (v. cap. 2.4.4.4)281.


§ 255. Estes órgãos da administração central dividiam entre si, como vimos, as
várias matérias do governo.
2.4.3 Jurisdição senhorial.
2.4.3.1 Introdução
§ 256. Tratar das jurisdições senhoriais implica tratar do chamado “poder
senhorial”282.
§ 257. A historiografia político-institucional tradicional desvalorizou, em regra,
a importância dos poderes senhoriais. Primeiro, pela resposta que dava à questão da
existência ou não de um regime “feudal” em Portugal. Depois, pela leitura que fazia
da legislação e da política da coroa em relação aos senhorios durante a Época
Moderna (i.e. grosso modo, a partir de D. João II).
§ 258. Comecemos por uma breve alusão à questão do “feudalismo” vs.
“senhorialismo”. A expressão “feudalismo” foi utilizada, ainda no século XVIII,
para descrever o sistema político português. Iluministas e liberais servem-se,
nomeadamente, dela (com do adjetivo “gótico”) para classificar aquilo que, no
plano político, consideravam contrário ao modelo político das nações “polidas e
iluminadas”. Pascoal de Melo, por exemplo, usa-a, com um tom fortemente
negativo, para classificar as prestações forais. Mas é no século XIX, na sequência da
obra do espanhol Francisco de Cárdenas (Ensayo sobre la historia da la propriedad
territorial en España, 1873-1875) e do ensaio de Alexandre Herculano, “Da existência
ou não do feudalismo nos reinos de Leão, Castela e Portugal” (Opúsculos), que o
debate se situa no campo historiográfico. Herculano e Gama Barros283, fundando-
se na não obrigatoriedade do serviço militar nobre, na não hereditariedade das
concessões de terras aos senhores, no uso excecional da palavra “feudo”, na
permanência de laços de vassalagem “geral” ligando todos os “naturais” do reino
diretamente ao rei e na consequente existência de direitos reais inseparáveis da
pessoa do rei (regalia majora), negavam a existência de feudalismo em Portugal. Já no
século XX, Paulo Merêa e Torquato de Sousa Soares aderiram a estes pontos de
vista, ficando estabelecida, entre nós, a opinião de que o modelo português (em
geral, ibérico) de organização política na Idade Média era específico - um modelo
“senhorial”, mas não “feudaI”. Deve notar-se que esta visão historiográfica se
adequava bem à ideologia dominante nos círculos conservadores portugueses dos
séculos XIX e XX, pois sublinhava um alegado papel unificador, regulador e
arbitral da coroa, semelhante ao que ela desempenhava no “cartismo” ou ao que

281 O Tribunal da Bula da Cruzada cobrava e administrava os rendimentos provenientes da Bula


da Cruzada, regularmente concedida aos soberanos portugueses a partir de Gregório XIV (bula Decens
esse videtur, de 6.4.1591), destinados à conservação e defesa dos fortes do norte de África. O tribunal foi
criado em 1591, tendo-se regulado pelo regimento do correspondente tribunal de Castela e por
disposições avulsas até 1634, data em que lhe é dado um regimento (reg. 10.5.1634, Collecção chronologica
de legislação (J.J.A.S. vol. respetivo, pg.10), que se mantém em vigor até ao século XIX. Os seus
comissários eram apresentados pelo Papa e nomeados pelo rei.
282 Para Portugal, o panorama mais recente do regime senhorial na Época Moderna é o dado por

Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades” (com indicações bibliográficas; v. outra
bibliografia em António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 380 ss.).
283 Em História da Administração Pública [...], tom. 1, ps. 162 ss..

92
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

cabia ao Estado, quer no modelo liberal, quer na conceção autoritária de Estado do


corporativismo. Estes pontos de vista contribuíram para disseminar a ideia da
reduzida relevância do poder senhorial no conjunto do sistema político português,
já na Idade Média, mas, sobretudo, na Época Moderna.
§ 259. Os anos sessenta do séc. XX são marcados, em Portugal, pela
historiografia marxista. Em 1963, Álvaro Cunhal publica um ensaio sobre história
medieval portuguesa284; aí, as especificidades do modelo jurídico são pouco
consideradas, defendendo-se, com base nos traços do modelo económico-social, o
carácter feudal da sociedade portuguesa medieval; apesar de clandestino até 1974,
este texto influencia a medievística subsequente (A. H. Oliveira Marques, Armando
de Castro, António Borges Coelho, e eu próprio). No plano dos mecanismos de
apropriação do produto económico, começa-se a realçar (por vezes com algum
exagero) o peso do quinhão senhorial 285. Mas, no plano jurídico-político, é só na
minha História das Instituições, em 1982, que, pela primeira vez, se trata com detalhe a
armadura jurídica dos senhorios e se ensaia um movimento de revalorização do
poder senhorial, enquanto componente do sistema político português da Época
Moderna286. Pouco depois, José Mattoso287 reavalia de forma nova a questão do
feudalismo na monarquia medieval, salientando a importância do modelo
ideológico feudal (fidelidade vassalática, par serviço-benefício, linhagem) na
organização interna dos grupos sociais dominantes. A importância destes valores
tem sido confirmado, para a Época Moderna, por investigações mais recentes, de
que se destacam as de Nuno Monteiro288.
§ 260. É este o pano de fundo, caracterizado por ingredientes teóricos e
ideológicos, que explica o evoluir das ideias sobre a importância do poder senhorial
na historiografia portuguesa. Noutro lugar 289, avaliei de forma mais detalhada os
argumentos em que se baseia a posição tradicional do declínio do regime senhorial
em Portugal a partir do século XV. Para aí remeto os leitores, aproveitando aqui
apenas a conclusão geral.
§ 261. É, porventura, no plano simbólico ou ideológico que a tese da
decadência do poder senhorial nos inícios da Época Moderna melhor se justifica.
Na verdade, a doutrina deste período - é certo que na esteira de tópicos anteriores -
atribui ao rei um papel central e eminente no seio do sistema do poder político. A
própria legislação estava impregnada deste conceito do poder real. Não apenas nas
suas fórmulas (que exprimem a superioridade, o senhorio eminente e o poder
“absoluto” do rei); mas também nos seus conteúdos, quando considera como
essencialmente reais certos direitos (Ord. fil.2,26), certos tratamentos (v.g. “Nosso

284 “La lutte de classes en Portugal à la fin du moyen âge”, Recherches internationales à la lumière du

marxisme, 37, (1963) pp. 93-122; trad. port. 1974.


285 E, consequentemente, a importância das lutas anti-senhoriais dos finais do Antigo Regime (cf.

Albert Silbert, “O feudalismo português e a sua abolição”, cit., ).


286 A inspiração teórica vinha de Max Weber e de Otto Brunner; mas levava-se também a cabo

uma revisão da teoria marxista, sublinhando a importância dos fatores não económicos na
caracterização dos modelos sociais, nomeadamente no “feudalismo tardio”. Cf. António Manuel
Hespanha, História das instituições [...], cit., 1, 92 ss.); desenvolvi muito o tema, acrescentando dados
empíricos, em As vésperas […], cit..
287 José Mattoso, Identificação de um país […], cit.1 47 ss.

288 Cf. como síntese, Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades”.

289 António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..

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Senhor”, Ord. fil.2,45,3), certas prerrogativas (v.g. nobilitar e conceder cartas de


brasão, Ord. fil.2,26; ter “relação” ou “decidir por acórdão”, Ord. fil.2,45,4; exercer a
correição, Ord. fil.2,45,8, etc.). Embora seja difícil encontrar uma destas
prerrogativas que não tenha sido dispensada em favor de algum senhor, não se
pode ignorar o seu papel na conformação de uma certa visão do poder.
§ 262. Porém, mesmo este plano simbólico também é mais complexo, pois ele
compreende também o papel aí reservado aos elementos nobiliárquicos e senhoriais
na exaltação do poder real. De facto, a ideologia moderna sempre estabeleceu uma
relação íntima entre a monarquia e os estratos senhoriais, como elementos
interdependentes, de tal modo que a força e prestígio da primeira repousava na
força e prestígio dos segundos. O casticismo e aristocratismo da sociedade barroca
peninsular reforçarão ainda o peso simbólico dos estamentos nobiliárquicos-
senhoriais290.
§ 263. Por muita atenção que o simbolismo mereça, como elemento
conformador das relações políticas, o que é certo é que o núcleo das relações
políticas se formaliza ao nível institucional. E, a este nível, os mecanismos
praticados do poder contradizem frequentemente, como veremos mais
detidamente, as mais rotundas das afirmações doutrinais.
§ 264. Concentremo-nos, por isso, nas questões institucionais, descrevendo os
traços mais característicos do regime jurídico e político dos senhorios.
Começaremos por definir o âmbito ou conteúdo dos poderes senhoriais.
Seguidamente, procuraremos averiguar a importância ou extensão - em termos
geográficos, demográficos, económicos, estratégicos - dos domínios senhoriais.
2.4.3.2 O regime político-jurídico dos senhorios.
§ 265. A caracterização dos senhorios portugueses da Época Moderna decorre
do regime jurídico da sua constituição, do seu âmbito e da sua transmissão.
§ 266. Nos seus aspetos jurídico-institucionais, o regime senhorial português
entronca numa antiga tradição de textos jurídicos, que se inicia nos Libri feodorum
[livros dos feudos], uma coletânea de direito feudal lombardo dos séculos XI e XII,
normalmente editada conjuntamente com o Código de Justiniano. Na Península, o
primeiro tratamento do direito dos feudos aparece nas Siete partidas (c. 1265, bem
conhecidas em Portugal no século XIV). Aí se define o feudo como “bien fecho
que el Senhor faze a algun ome, porque se torne su vassalo; e el faze omenaje del
ser leal” (Part. IV, 26)291. O passo seguinte fixa-se no foro de Espanha e na prática
castelhana das concessões feudais: a “terra” seria o correspondente ao “feudo de
câmara”, a concessão de uma prestação económica, livremente revogável; já a
“honra” seria o correspondente à concessão irrevogável (salvo o caso de falta grave
dos deveres do feudatário [comisso]) de bens de raiz. Ao contrário do que acontecia
no direito feudal comum, os vassalos castelhanos não estariam obrigados a serviços
concretos, especificados no pacto feudal, mas apenas a uma obrigação genérica de

290 Sobre estes aspetos, como elementos do complexo de mecanismos políticos da corte, António

Manuel Hespanha, “Une autre administration […]”, cit...


291 A definição dos feudistas era a seguinte: “o feudo é uma concessão livre e perpétua de uma

coisa imóvel, ou equivalente, com a transmissão do domínio útil, retendo a propriedade, com
prestação de fidelidade e exibição de serviços” (Curtius, Baldo).

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

serviço leal. Esta ideia da especialidade do regime vassalático peninsular fez curso.
S. Tomás (De rebuspublicis et principum institutione292) também a corrobora, afirmando
que, nas Espanhas, e principalmente em Castela, todos os principais vassalos do rei
se chamavam ricos-homens, pois o rei daria a cada barão uma quantia, de acordo
com os seus méritos, não tendo a maior parte deles jurisdições ou meios militares
que não os concedidos pelo rei. De onde decorreria a sua dependência,
nomeadamente económica, em relação a este. Não é líquido que esta imagem
literária de um regime senhorial mais dependente da coroa aqui do que no resto da
Europa correspondesse à situação real. Num mundo escasso em registos cuidados
das situações vividas, era fácil esta disseminação de imagens baseada unicamente na
autoridade dos textos em que apareciam. O que é certo é que ela se perpetuou,
nomeadamente nos textos legais e doutrinais portugueses dos finais da Idade Média
e da Época Moderna.
§ 267. Em Portugal, é a Lei Mental (Ord. man.2,17; Ord. fil.2,35) que fixa, desde
os inícios do século XV, o regime das concessões vassálicas, em termos bastante
próximos das concessões feudais do direito comum. Aplica-se apenas às concessões
com obrigações de serviço nobre, excluindo - tal como a doutrina do direito
comum - as concessões contra uma prestação económica (como as enfitêuticas, cf.
Ord. fil.2,35,7; v. cap. 4.3.3). Quanto ao serviço, adota o “costume de Espanha”
referido nas Partidas, estabelecendo (Ord. fil.2,35,3) que o donatário não seria
obrigado a “servir com certas lanças, como por feudo, porque [elRei] queria que
não fossem havidas por terras feudatárias, nem tivessem a natureza de feudo, mas
fosse obrigado a servir, quando por elle fosse mandado”. Quanto à devolução
sucessória, afastou-se o direito feudal lombardo compilado nos Libri feudorum, que
permitia a divisibilidade dos feudos, e adotou-se293 a solução da indivisibilidade e
primogenitura. Depois, consagrou-se a exclusão da linha feminina, em consonância,
também, com a solução das Partidas. A Lei Mental favoreceu, por fim, o princípio
de que os bens da coroa, embora doados, nunca perdessem essa natureza, não
podendo ser alienados pelos donatários sem licença régia Ord. fil.2,35,3). Pouco
depois, no tempo de D. João II, estabeleceu-se a regra de que as doações deviam
ser confirmadas, quer à morte do donatário, (confirmação por sucessão), quer por
morte do rei (confirmação de rei a rei). Dois outros títulos das Ordenações (Ord.
af.2,24; II, 40; Ord. man.2,15; 2,26; Ord. fil.2,26; 2,45) interessam à definição das
relações feudo-vassálicas na Época Moderna. O primeiro lista os direitos reais, ou
seja, os direitos próprios do rei (v. cap. 4.2.2.2); o segundo fixa o princípio de que
tais direitos, bem como as jurisdições, não podem ser tituladas senão por carta 294,
fixando, suplementarmente, algumas regras de interpretação destas cartas (v. cap.

292 Cf.
https://books.google.pt/books?id=iFg9AAAAcAAJ&pg=PA270&lpg=PA270&dq=De+rebuspublicis
+et+principum+institutione&source=bl&ots=49pZ4W-Ppt&sig=x2tetuVox5weej2vOgRyDhFn-
iA&hl=pt-PT&sa=X&ei=Mp-
3VPyeK4T_UL6KgdAJ&redir_esc=y#v=onepage&q=De%20rebuspublicis%20et%20principum%20in
stitutione&f=false.
293 Decerto por atracão exercida pelo regime da sucessão da coroa e do princípio aristotélico,

recebido pelo direito comum, bem como pelos direitos feudais franco e siciliano, de que “as dignidades
e jurisdições não se dividem”.
294 Excluindo, portanto, a possibilidade de aquisição por prescrição, admitida pelo direito
comum.

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6.9.2.1.2 )295.
§ 268. Na prática, a Lei Mental constituiu uma moldura jurídica muito
complacente, sendo frequentemente dispensada, no sentido de autorizar a sucessão
por linha feminina. Também a política de confirmações foi sempre generosa,
mesmo nos momentos de maior tensão política. À sua sombra, as casas nobres
puderam perpetuar-se (amparadas pelo princípio da indivisibilidade, por vezes
reforçado com a instituição de morgados dos bens da coroa).
§ 269. Todo este regime entrou em crise nos finais do século XVIII, embora
tal crise tivesse sido prenunciada pela política de centralização do poder. A lei de
19.7.1790 aboliu as justiças senhoriais e as isenções de correição; os restantes
direitos reais, nomeadamente, os direitos de foral e as banalidades, são abolidos na
sequência da revolução liberal.
§ 270. Vejamos, porém, mais detalhadamente, os traços mais característicos do
regime jurídico dos senhorios.
2.4.3.3 O que era um senhorio e qual o seu conteúdo institucional.
§ 271. Segundo uma definição da época, “chamam-se senhores aqueles que
estão constituídos em alguma dignidade ou poder; a quem foi concedida alguma
terra, jurisdição ou império; ou em relação aos quais o povo é súbdito” 296.
§ 272. Nesta definição, o elemento chave é poder ou os seus equivalentes na
linguagem jurídico-política da época - iurisdictio, imperium.
2.4.3.3.1 Jurisdição
§ 273. Por iurisdictio (jurisdição) entendia-se, como se disse, o “poder instituído
pela república de dizer o direito e decidir em equidade [enquanto pessoa
pública]”297. Quanto ao imperium, ele é definido como o “poder [de usar a espada]
para coagir os facínoras” 298. Aperfeiçoamentos conceituais sucessivos levaram a
que o imperium acabasse por ser sinónimo de poder de coerção de que um
magistrado pode usar oficiosamente, ou em vista da utilidade pública (merum
imperium) ou da utilidade de um particular (mixtum imperium) (v. acima cap. 2.1)299.

295 Sobre a Lei Mental, para além das sínteses de António Manuel Hespanha, História das instituições

[...], cit., 286 n. 526 e Marcello Caetano, História do direito português [1140-1495] cit., 513 ss. v. José
Anastácio de Figueiredo, Synopsis chronologica [...], cit.1, 26, 167, e João Pedro Ribeiro, Indice chronologico
[…], cit., 91, 110/111; Manuel Paulo Merêa, “Génese da “Lei Mental”, cit.; José Mattoso, Identificação
de um país, cit.. A Lei Mental, com as declarações e interpretações a que foi sujeita, pode ler-se em Ord.
man.2, 17, donde passou, pouco modificada, para as seguintes (Ord. fil.2, 35). Fontes doutrinais: Manuel
da Costa, In celeberrimas iuris Cesarei leges, & paragraphos Commentarii, & de maioratu bonorum patrimonialium,
et de regni successione [...], cit.; Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit.; Manuel
Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomos 10 e 11; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
liv. 2. Exemplos textuais, John Gilissen, Introdução histórica ao direito [...], cit., 193 ss..
296 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, ad Ord. fil.2, 45, rubr. gl. 1, n. 2.

297 Para Portugal, Cf. a definição estreitamente inspirada nesta, de Domingos Antunes Portugal

(Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 44, n. 12).


298 Cf. D.2, 1, 3 (note-se que o conceito de “espada” se foi desmaterializando, abarcando qualquer

tipo de coerção usada ex officio pelo magistrado).


299 É nestes termos que Domingos Antunes Portugal descreve o conteúdo dos dois conceitos: “O

mero império [...] consiste no poder supremo de gládio [...]. Assim, diz respeito à coerção dos
criminosos, como, por exemplo, à condenação ou deportação e a outras coisas relativas à punição dos
delitos e à composição dos litígios [...]. O misto império compete aos magistrados por direito próprio,

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 274. Em suma, senhor era quem dispunha de um poder ou jurisdição sobre


outrem conferido pela república. Tal era o uso da palavra segundo o direito feudal e
o direito comum300.
§ 275. O direito comum e feudal tendiam a conceber a jurisdição senhorial
como ordinária, i.e, decorrente da própria natureza política da sociedade. Os dados
específicos do direito português posterior à Lei Mental levavam, porém, a que os
nossos juristas realçassem, pelo contrário, o carácter delegado da jurisdição
senhorial, considerando os senhores como lugar-tenentes do rei301. No século
XVIII, quando se insiste ainda mais no primado (ou, mesmo, no carácter exclusivo)
do poder real em relação a todos os outros poderes, refere-se que era justamente
esse carácter delegado dos poderes dos senhores portugueses que levara D. Duarte
a sublinhar na Lei Mental o carácter não feudal das doações régias.
2.4.3.3.2 Direitos reais
§ 276. Para além das jurisdições, o rei podia também conceder direitos seus,
direitos reais (ou regalia) (v. cap. 4.2.2.2) Em rigor, isto não importava a aquisição
pelo donatário da qualidade de senhor. Mas apenas da de donatário. Estas distinções
exigem algumas precisões suplementares sobre o conceito de direitos reais.
§ 277. As fontes jurídicas dos direitos comum ou régio continham
enumerações dos direitos reais (regalia). Isso acontecia com o texto Quae sint regalia,
dos Liber feudorum, incorporados na versão medieval do Corpus iuris, e com as
Ordenações (Ord.fil.2,26; Regimento da fazenda de 1516, c. 237).
§ 278. Basta uma leitura do tit. 26 do livro 2 das Ordenações para nos darmos
conta do carácter heterogéneo dos direitos aqui considerados 302. Referem-se à
criação de magistrados e oficiais, de guerra e de justiça; à autorização de duelos; à
cunhagem de moeda; ao lançamento de pedidos, fintas e tributos; à exigência de
serviços na paz e na guerra303; ao domínio das estradas, dos portos 304, do mar

pois adere e está compreendido na jurisdição [...], por esta razão se dizendo misto, pois está misturado
com a jurisdição de tal modo que não se podem separar. E como nesta mistura umas vezes se salienta o
império e noutras a jurisdição, costuma-se falar de dois graus de misto império, no primeiro dos quais
se compreendem aquelas atribuições em que o império suplanta a jurisdição, como mandar fazer
estipulações pretórias ou entregar a posse [...], e no segundo aquelas em que a jurisdição suplanta o
império, como dar juízes aos litigantes” (Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit.,
13, c. 44, n. 16).
300 Senhor é Cristo, senhores são os reis ou os príncipes, senhor é o pater em sua casa em relação à

sua mulher, filhos e criados. Fora disto, a palavra não se devia usar em termos genéricos: “A ninguém
se deve chamar meu Senhor, ou Senhor meu, nem nosso Senhor, por serem estes títulos próprios de
Deus no Céu, e do Rei na terra, e assim aos Donatários da Coroa, e Senhores de terras, só se pode
escrever Senhor de tal terra, porque ainda que destas o seja, não é das pessoas” (escreve Manuel
Álvares Pegas). Cf. sobre a diferença entre rei e senhor e a explicação de porque é que os reis de
Portugal se intitulavam apenas “senhores” da Guiné, João de Barros, Décadas da Ásia […], cit., liv.1,
6, cap. I.
301 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, Ord. fil.2, 35, ns. 11 e 43.

302 Para uma detalhada explicação do conteúdo deste título, cf. por todos, o respetivo comentário

de Manuel Alvares Pegas (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad Ord. fil.2, 35, n. 1
ss.); também Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 42; ou Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42 ss..
303 Aqui se fundava o direito às terças dos concelhos, à expropriação por utilidade pública e à

requisição de bens pela mesma razão.


304 Por aqui se justificavam as décimas das alfândegas.

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adjacente e das suas ilhas305, bem como das salinas306 e das pescarias307; ao domínio
das minas308; à exigência de portagens e barcagens; ao domínio dos tesouros, dos
bens vagos (res nullius) ou que tivessem vagado309, dos bens dos condenados a
confisco e dos infames, bem como dos bens que o direito penal considerava
perdidos para a coroa; às heranças vacantes, etc. (v. cap. 5.3.1.5)310.
§ 279. No caso português, a listagem de Ord. fil.2,26 terminava por uma
cláusula geral - “e assim geralmente todo o encarrego assi real, como pessoal, ou
misto, que seja imposto pela lei, ou por costume longamente aprovado” (Ord.
fil.2,26,33). Os juristas311 procuravam substituir estas enumerações, incompletas,
por uma definição. E, assim, definiam os direitos reais como os direitos que
competem ao rei enquanto pessoa pública. Distinguiam, então, os direitos que os
particulares (ou o rei, enquanto particular) tinham uns em relação aos outros em
virtude de pactos, daqueles direitos que o rei tinha em relação aos vassalos por
imposição da lei ou costume. Estavam, em todo o caso, conscientes de que, no caso
destes últimos, não se tratava de uma categoria homogénea, pois uns procediam
“do supremo poder do rei”, outros de um “domínio universal” que este teria sobre
o reino, outros ainda do direito originário de conquista, outros, por fim, de pactos
antigos, da prescrição ou de costumes longamente usados. Alguns recordam a
distinção romana entre aerarium, património destinado à “defesa do estado da
república, sua dignidade e salvação”, e fiscum, votado às despesas pessoais ou
particulares do príncipe. Mas quase todos reconhecem que as classificações
romanas não tinham relevo prático-institucional.
2.4.3.3.3 As categorias dos bens e direitos do rei. Bens privados, fiscais e
da coroa.
§ 280. Jorge de Cabedo, escrevendo nos finais do século XVI312, dividia os
direitos reais em (i) uns que “procedem do supremo poder do príncipe, competindo

305 Aqui fundavam alguns a pretensão portuguesa e castelhana ao monopólio do comércio com o

ultramar.
306 Aqui se fundava o direito de pôr tributos no sal, bem como o domínio real das salinas,

salgados e sapais (que muitas vezes eram dadas em sesmaria, para secagem e cultivo, Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 53).
307 Aqui se fundavam as sisas do pescado e os impostos das almadravas.

308 Aqui se fundava a cobrança de quintos ou outros tributos sobre a mineração.

309 Caso típico é o das capelas ou morgados a que faltasse sucessor dentro da ordem de sucessão

definida pelo instituidor (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, 51, n. 3).
310 Destes direitos, os juristas distinguiam entre direitos reais reservados ao príncipe e aqueles que

ele podia transferir para outrem. Entre os primeiros contavam-se os sinais de supremo poder, como a
feitura de leis gerais, a reunião de cortes, a criação de magistraturas, a justiça suprema (nomeadamente
a revisão de sentença ou a justiça em última instância), o uso do poder extraordinário (potestas
extraordinaria) e a concessão de medidas de graça. Porém, alguns autores, na sequência da doutrina
feudalizante do direito comum, entendessem que o rei podia conceder estes direitos a vassalos, desde
que o não fizesse perpetuamente (cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 66), mais comum
era a opinião no sentido da sua inseparabilidade da pessoa do príncipe, “a cujos ossos adeririam”.
311 Cf. para Portugal, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42; Domingos Antunes

Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, caps. 41 e 43; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...],
cit., vol. 10, pg. 13; vol. 11, pg. 2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 4, 1 ss.; Francisco
C. S. Sampaio, Prelecções [...], cit., 3, 83.
312 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ao rei ou em razão da jurisdição ou do poder que tem” (aqui incluindo a criação de


capitães de terra e mar, de magistrados e de oficiais; a autorização de justas e
duelos; a cunhagem de moeda, Cabedo, ibid. dec. 42, n. 4); (ii) e outros que
“procedem do domínio universal do rei e lhe competem em razão de tal
domínio”313. Com esta classificação ex causa efficiente combina-se uma outra ex causa
finale, baseada nas finalidades para que tais direitos estavam atribuídos. Distinguia
então entre (i) os que “competem ao rei como senhor da coroa do reino, que são
desta e de que ele não é senão administrador, visando o sustento do estado da
coroa”314 e (ii) os que “o rei tem enquanto privado” 315 316.
§ 281. Domingos Antunes Portugal317 mantém, basicamente, a mesma
sistematização, opondo aos bens privados do rei os seus bens públicos, reais ou
fiscais. Depois de aproximar esta classificação da distinção romana entre aerarium e
fiscum e de salientar o seu carácter meramente académico, identifica os bens
públicos com os bens da coroa, salientando a inalienabilidade destes 318 e
enumerando as suas principais classes: cidades, vilas e castelos (n. 9 ss.), reguengos
(ns. 26-29), maninhos (n. 80), sesmarias (n. 91, remetendo para Ord. fil.4,43,13) e
outros (n. 93)319.
§ 282. A nitidez desta bipartição, que faria incluir nos bens da coroa todo o
património real é, no entanto, perturbada pelos dados legais, que se prendiam com
o regime especial (quanto à alienação, à indivisibilidade e às regras de sucessão)
introduzido pela Lei Mental (Ord. fil.2, 35). Por um lado, as ordenações em que está
transcrita a Lei Mental exigem a incorporação formal de certos bens nos “próprios
da coroa” (Ord. fil.2,36)320, de onde decorria que, se não fossem incorporados, não
seriam da coroa do reino e não estariam, portanto, sujeitos ao regime da Lei Mental.
Por outro lado, as mesmas Ordenações estabeleciam que certos bens - que, nesta
classificação de Portugal aparecem incluídos nos bens da coroa - não estavam

313 Inclui aqui os rios, as vias públicas, os tributos.


314 Incluem os pastos, defesas, montados, matas, baldios, coutadas, granjas e casas de que a
coroa tem o domínio direto ou útil.
315 Conforme diz, esta distinção inspirava-se nas Siete Partidas, 2, 17, 1.

316 Entre os primeiros, alguns seriam reservados ao rei, que não os poderia alienar (Jorge de

Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 42, n.5).


317 Domingos Antunes Portugal, Tractatus [...], cit., liv. 2, c. 41 ss.; e liv. 3, c. 43, 1 ss.. Pondera

que “hoje os príncipes não costumam ter erários distintos e todas as rendas se recolhem juntamente [...],
não se devendo estabelecer nenhuma diferença entre o erário público e o privado [...] esquecido o nome
de erário, se lhe substitui o de fisco, que entre nós e os castelhanos se diz câmara real [...]” (Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 43, n. 6). “Quanto ao foro - escreve
também (Manuel Álvares Pegas (Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, n. 2) - nada interessa se o
património do príncipe é privado ou público, nem mesmo quanto à possibilidade de ser protegido pelo
Juiz dos Feitos da Coroa”.
318 “Enquanto que o príncipe pode usar e abusar livremente das coisas que pertencem ao seu

património privado, aliená-las livremente [...] e transmiti-las aos herdeiros, ainda que não sucedam no
principado [...], cit., já aquelas coisas que não são do príncipe, mas da majestade ou coroa, não
transitam para os herdeiros e ficam sempre no império e principado, sendo apenas devidas aos que
sucedem no reino” ( liv. 3, c. 43, ns. 7-8).
319 Enumera as vias, rios, portos, ilhas, bens vagos, bens dos condenados e dos proscritos,

padroados, bens dos infames, multas e penas.


320 Ou seja, nos livros de tombo do património da coroa existentes na Torre do Tombo. Sobre a

incorporação, v. Ord. fil.2, 36; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 16, n. 8; Ord.
fil.2, 46; 2, 35, 22.

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sujeitos à Lei Mental, podendo ser alienados pelos donatários ou partilhados pelos
herdeiros destes, e estando sujeitos ao regime do direito comum. Tal era o caso dos
bens dados pelo rei em enfiteuse (que estavam isentos da Lei Mental, regendo-se
pelo regime normal da enfiteuse; cf. Ord. fil.2,35,7 e 4,41) e dos reguengos doados
em propriedade plena, gratuitamente ou com a obrigação de pagamento de alguma
pensão (que podiam ser livremente alienados, Ord. fil.2,17). Portugal, muito apegado
a uma classificação bipartida de longa tradição no direito comum, não cria uma
categoria específica para estes últimos bens, limitando-se a dizer que, embora sejam
da coroa do reino, não se regulam pela Lei Mental321.
§ 283. São estes grãos de areia que obrigam juristas seguintes a introduzir
alguma complexidade suplementar na classificação.
§ 284. Tratamento interessante é também o de Manuel Álvares Pegas, no seu
tratado sobre a Lei Mental, incluído nos tomos 10 e 11 do comentário às Ordenações.
§ 285. Manuel Álvares Pegas começa por distinguir, tal como o seu
contemporâneo Domingos Antines Portugal, entre património privado (“enquanto
pessoa orgânica”) e público (“enquanto rei, e a que chamam domínio da coroa e
cuja propriedade respeita à majestade e à coroa”) 322. No entanto, como ele
reconhece, as questões que se punham na prática diziam apenas respeito ao
património público e, dentro deste, à distinção entre bens da coroa do reino, a que
se aplicava a Lei Mental, e bens reais a que esta não se aplicava. Do que se tratava,
portanto, era de introduzir uma ulterior distinção no seio do património público do
príncipe, distinguindo entre “bens patrimoniais e reais dei Rei” e “bens da
coroa"323. E cita Diogo Marchão Themudo: “Ha uns bens da Coroa sujeitos à
disposição da Lei Mental; outros são bens da Coroa, patrimoniais, que não são
sujeitos à Lei Mental: os primeiros são aqueles que são bens da Coroa por sua
natureza, como jurisdições, direitos reais, tributos, e aqueles que pela sua real, ou
verbal incorporação, são bens da Coroa, e não do Fisco, nem do Príncipe […]. E
todos os mais por qualquer maneira advindos à Coroa, como Capelas, e Morgados,
prazos vacantes, que ainda que se chamem da Coroa, não são daqueles bens que
estão sujeitos à Lei Mental, ainda que sejam do Rei, e do seu Fisco como Rei,
porque somente o são as ditas Jurisdições, direitos reais e tributos, e o mais que
pela real, ou verbal incorporação são verdadeiramente da Coroa [...] inalienáveis e
indivisíveis, sujeitos à dita Lei Mental”324.
§ 286. Passando à enumeração dos bens da coroa, Manuel Álvares Pegas vai-

321 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 43, ns. 26 e 29;

Jorge de Cabedo já se deparara com este problema de os reguengos poderem ser divididos. Mas
considera de problemática legalidade - em face dos preceitos das Ordenações (Ord. fil.2, 35, 17-18) -
uma sentença recente que o admitia (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 27, n. 5).
322 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, ns. 1-2. No tomo anterior,

Pegas complica um pouco as coisas, justamente em face da necessidade de encontrar um lugar


adequado para certos bens que nem eram puramente privados, nem bens da coroa, no sentido da Lei
Mental: “Do património público do príncipe fazem parte várias espécies: bens fiscais, bens pertencentes
ao príncipe em reconhecimento e sinal de suprema dignidade, como os tributos e censos, os bens da
coroa e os reguengos” (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad Ord. fil.2 30, rubr, pg.
329).
323 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, n. 4.

324 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 18

100
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

os arrumando numa ou noutra categoria. Era claro que estavam sujeitos à Lei
Mental, as cidades, vilas e castelos325, os montes maninhos (ibid. n. 21), as jugadas
(ibid. n. 23), os direitos reais enumerados na Ord. fil.2,26, os foros, rendas e direitos
reais concedidos de juro e herdade (ibid. n. 24; cf. Ord. fil. 2,35,6), os padroados
(ibid. n. 25; cf. Ord. fil. 2,35,5), as jurisdições (ibid. n. 26), as alcaidarias (ibid. n. 31), as
décimas das ilhas (ibid. n. 34). Claramente isentos da Lei Mental – e, por isso,
livremente transmissíveis e divisíveis - estavam os bens vagos (ibid. n. 8), os bens
confiscados (ibid. n. 16), as sesmarias (ibid. n. 13), os ofícios (ibid. n. 30), os direitos
a desembargos régios ou as ações por serviços (ibid. n. 40)326.
2.4.3.3.4 A doutrina iluminista sobre o património régio.
§ 287. No texto, antes citado, de Diogo Marchão Themudo já se encontra in
nuce a distinção que mais tarde será feita por Pascoal de Melo Freire, ao contrapor,
no âmbito dos bens reais, os bens do erário público (ou da coroa do reino) aos
bens fiscais (dominiais ou reguengos). Pascoal de Melo327 procura aproximar-se da
distinção romana entre erário público (= bens da coroa) e fisco do príncipe (=
reguengos e direitos reais). Mas, nesta época de apogeu de uma conceção “pura” da
monarquia e de identificação do soberano com a própria república, este teórico do
absolutismo iluminado não deixa de pôr reticências à distinção, que está subjacente
aos conceitos romanos, entre “povo” (ou “república”) e príncipe, cada qual titular
do seu património público. E, assim, adverte que a distinção romana não costuma
existir de forma tão marcada nas monarquias puras, tal como também já entre os
romanos, na época do império e do dominado, se corrompera 328. Na verdade,
incorporando-se a república no monarca, os respetivos patrimónios fundiam-se
também, não sendo a distinção entre erário e fisco senão uma questão de palavras.
É isto que explica, quando esclarece que, na linguagem corrente, a distinção entre
bens da coroa e fiscais se baseava num uso da linguagem vulgar, que não no rigor
do direito. Na verdade, a palavra fisco era usada para designar os bens que tinham
vindo à coroa in malam partem (i. e. por motivos maus, como a punição de crimes e
indignidades), enquanto que se reservava a expressão “bens da coroa do reino” para
os bens incorporados por qualquer outra causa. E, assim, uns e outros deviam ser
considerados da mesma forma quanto ao seu regime jurídico.
§ 288. Aparentemente, o que Pascoal de Meio pretende é um alargamento do
regime dos bens da coroa a todos os bens fiscais, no âmbito de uma estratégia que
o leva também a considerar os ofícios como bens da coroa, sujeitos portanto às
normas da Lei Mental (nomeadamente quanto à necessidade de confirmação da sua
doação).
§ 289. Esta homogeneização dos direitos reais e a subjacente identificação
entre imperante e república, encontra-se, já sem quaisquer hipotecas à tradição
romana, em Francisco de Sousa Sampaio: “por direitos reais entendemos todos os
direitos, faculdades, ou possessões, que pertencem ao Sumo Imperante, como tal, e

325 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, pg. 14, n. 5.
326 Isto significa que estes direitos em relação à coroa podiam ser livremente transmitidos pelos
seus titulares (cf. em todo o caso, Ord. fil.4, 14).
327 Institutiones iuris civilis, cit., 1, 4, 1.

328 Institutiones iuris civilis, cit., 1, 4, 1.

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como representante da sociedade” 329. Nestes direitos se compreenderiam,


indistintamente, os direitos que lhe competiam em função da dignidade real, em
função da representação que tinham da sociedade (direitos majestáticos essenciais)
ou em função de quaisquer pactos ou costumes (direitos adventícios, maxime, bens
da coroa)330. Nos primeiros compreendiam-se os direitos inerentes à jurisdição
régia331 e os direitos que advêm ao rei como representante da sociedade 332. Nos
direitos adventícios (dominiais ou “da coroa”), compreendem-se já, sem qualquer
distinção, os bens “fiscais, reguengos, jugadeiros, e em geral todos os dominiais” 333.
A categoria de bens “do erário” é reservada para os tributos gerais e terças,
aplicados à satisfação das necessidades públicas (ibid.). O que se dá, portanto, é a
integração, na categoria única de “bens da coroa” de todos os bens e direitos reais;
com a única exceção daqueles que, por estarem votados à utilidade pública, têm
uma disponibilidade limitada, embora não deixem de ser do rei 334.
§ 290. Alguns anos depois, António Ribeiro dos Santos é ainda mais claro e
preciso ao ligar intimamente a ideia de direitos reais à ideia da unidade do poder ou
majestade. Daí que distinga, cuidadosamente, a nova da antiga conceção dos
direitos do rei: “direitos reaes ou majestaticos [...], ou são os direitos geraes, que
emanam da natureza da sociedade civil, e do supremo poder, que nella ha; ou são
os direitos particulares, que provém da constituição fundamental do reino” 335. Os
primeiros são definidos, a partir da própria ideia de majestade ou soberania (ibid. 5),
pelo direito público universal ou pelo direito público constitucional (i. e. pela
constituição fundamental do reino). Os segundos, que decorrem do “direito
público puramente civil”, englobam “os direitos feudais, fiscais e tributários que se
deviam aos príncipes, não tanto em razão da majestade, que por sua mesma
natureza necessariamente os exigisse, como de senhorio feudal” (ibid. 7). “Os
direitos majestáticos - acrescenta - são os que emanam da mesma natureza da
sociedade civil e são necessários, íntimos e essenciais à soberania e, como tais,
perpétuos e invariáveis. Pelo contrário entre os direitos reais ha muitos, que são
direitos, pelo assim dizer, adventicios, temporarios e variaveis” (ibid. 7). A confusão
entre um e outro tipo de regalia teria sido normal nos tratadistas anteriores336,
justamente porque lhes faltava esta nova noção da unidade do poder, de que agora
arranca a clareza da distinção337.

329 Prelecções […], 2, tits. 26 ss.


330 Prelecções […], 2, 26, 99, n. b.
331 Criação de magistrados, lançamento de tributos gerais, expropriações e requisições,
moedagem (Ord. fil. 2, 92).
332 Aqui se compreendiam, em geral, as rei nullius ou comuns: as coisas vagas, as estradas, as

rendas das pescarias, os portos de mar, os veios de metal, as presas (Ord. fil.2, 104).
333 ibid. 2, 26, 103, n. I.

334 Antes era costume dizer que eram dos povos.

335 Cf. António Ribeiro dos Santos, “Sobre os tributos”, manuscr. Bib. Nac. Lisboa, Fundo

Geral, cod. 4677, pg. 8.


336 Cf. António Ribeiro dos Santos, Notas ao plano do Novo Codigo […], “Direitos reais”, 8/9.

337 Também Pascoal de Melo os definia correspondentemente no titulo respetivo do Projecto do

Novo Código: “Ao soberano poder e majestade, que recebemos de Deos todo-poderoso, de reger e
governar nossos reinos e estados, estão inerentes certos direitos reaes ou magistérios, necessarios para
procurar e manter a felicidade e segurança publica dos mesmos reinos, estados e vassalo deles [...]”
(António Ribeiro dos Santos, Notas ao plano do Novo Codigo […], cit., “Direitos reais”, 13). Mas, como

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 291. Se os direitos reais decorrem da majestade, já se entende que, uns,


nunca possam ser separados da pessoa do rei 338; e que, outros, se presumam na sua
titularidade, salvo concessão expressa 339. E que, todos, ainda que concedidos, nunca
saíam, essencialmente, da esfera de prerrogativas do soberano. É o que explica
Pascoal de Melo nas lnstitutiones: “A jurisdição não é própria dos senhores, que
apenas a têm do rei; nisto se distinguem essencialmente as jurisdições régia e
feudal”340. Daqui decorre que a jurisdição apenas se possa exercer em nome do rei e
de acordo com o seu arbítrio e de tal modo que ele a possa limitar ou revogar
[...]”341. Por outro lado, defende-se agora, contra a doutrina anterior342, que o rei
pode sempre revogar as concessões destes poderes, mesmo feitas por contrato, pois
o regime da irrevogabilidade contratual de direito comum não vigora quando os
contratos têm por objeto direitos públicos e da coroa do reino.
2.4.3.4 Donatários e senhores
§ 292. Temos, portanto, que na categoria geral de donatários da coroa, cabiam
situações diversas, nem todas subsumíveis na categoria de senhorio. Assim, podia
haver:
§ 293. (i) Pessoas a quem o rei tinha concedido, em propriedade, bens não
incluídos nos bens da coroa (reguengos, lezírias, sesmarias, morgados, capelas);
eram proprietários plenos (ou alodiais), podendo livremente transmitir 343 a outrem,
inter vivos ou mortis causa, o domínio pleno ou domínio útil destes bens.
§ 294. (ii) Pessoas a quem o rei tinha concedido bens 344, contra o pagamento
de um foro, com finalidade de exploração agrícola (ad habitandum ou ad
excolendum)345; tratava-se de situações enfitêuticas normais, reguladas pelo direito
comum e não pela Lei Mental (cf. Ord. fil.2,35, 7; v. cap. 4.3.3).

nota Ribeiro dos Santos. não deixa de sucumbir perante a confusão comum aos tratadistas anteriores
entre direitos reais “naturais” e direitos reais “positivos”.
338 Enumeração das coisas que não podem ser doadas nem mesmo expressamente, em Institutiones

iuris civilis, cit.2, 3, 40, seguindo um critério casuístico e de raiz legislativa que Ribeiro dos Santos,
coerentemente, rejeita; v. António Ribeiro dos Santos, “Sobre os direitos reais”, manuscr. B.N.L, FG,
cod. 4677, pp. 21 ss..
339 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 42.

340 Cf. ibid. 2, 3, 40.

341 Ibid. 2, 3, 39 nota. E continua (dando uma nova interpretação à distinção entre concessões de

bens da coroa e concessões feudais): “por isso as palavras meri et mixti imperio, do direito romano, e altae
et bassae iurisdictionis, do direito feudal […] devem ser interpretadas segundo o espírito da nossa lei, e não
significam hoje outra coisa senão a doação da simples jurisdição”, Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
2, 3, 39 nota. Sobre isto, cf. também Francisco C. S. Sampaio, Prelecções [...], cit., III, t. 45, § 169 e
nota b.
342 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 41 nota, pg. 64, in fine, abona-se em

Jorge de Cabedo, Decisiones […] pt. 2, dec. 38, max. n. 6); mas esta decisão refere-se a uma coisa
diferente - a inalienabilidade, por doação ou contrato, de uma regalia majora, a correição.
343 Salvo no caso dos bens vinculados (morgados e capelas).

344 Estes bens são da coroa, mas não estão sujeitos ao regime especial de inalienabilidade e

indivisibilidade prescrito na Lei Mental (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, c.
28, pg. 62).
345 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 8, ad Ord. fil.2, 1, 16; tomo 10, ad Ord. fil.2,

35, rubr. c. 4 (p. 12 ss.); tomo 10, ad Ord. fil.2, 35, rubr. c. 39 (p. 301 ss.), max. ns. 32 e 54; tomo 10, c.
41, pg. 322 ss.; tomo 11, c. 29, pg. 62; Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit.,
pt. 2, c. 43, ns. 24 ss..

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§ 295. (iii) Pessoas a quem o rei tinha concedido bens da coroa (tais como
foros e outras rendas perpétuas, direitos de foral, monopólios, relegos, barcagens e
portagens, tributos, direitos de padroado); tratava-se, então, de donatários da coroa,
sujeitos ao regime estabelecido na Lei Mental.
§ 296. (iv) Donatários de jurisdições, comportando, nomeadamente, o poder
de julgar; tratava-se, aqui sim, de senhorios.
§ 297. (v) Donatários de bens das ordens militares; não sendo bens da coroa,
apesar da incorporação nesta da administração das ordens militares nos meados do
século XVI, discutia-se, ainda na segunda metade do século XVII, sobre se estavam
sujeitas à Lei Mental346. Já na segunda metade do século XVIII, entendia-se que as
comendas eram bens da coroa, sujeitos ao regime da Lei Mental 347. Por vezes, as
comendas continham, para além de dízimas e terças348, capitanias de castelos e
jurisdição civil e militar. Neste último caso, podiam ser consideradas como
senhorios.
§ 298. Como delegados ou vigários do rei, os senhores estavam, por direito
comum, sub-rogados nos seus poderes e direitos. Sempre, todavia, com a limitação
de que nunca poderiam exercer aqueles direitos reais inseparáveis da pessoa do rei,
a que acima nos referimos (regalia maiora, regalia quae ossibus principis adhaerent).
§ 299. Em todo o caso, o regime português dos senhorios continha limitações
maiores na aquisição, exercício e transmissão dos direitos senhoriais. É disto que se
tratará em seguida.
2.4.3.5 A constituição dos senhorios.
§ 300. Um dos pontos em que o direito pátrio se afastara do direito comum e
mesmo do direito dos reinos vizinhos da Hispania 349 fora o dos títulos de
constituição dos senhorios.
§ 301. Enquanto que o direito comum, refletindo o acentuado pluralismo
político do feudalismo da Europa central-ocidental, era muito favorável ao
alargamento do poder senhorial, o direito português, sobretudo a partir dos fins do
século XIV, tendia para uma acentuada parcimónia no que respeita aos títulos de
constituição de senhorios.
§ 302. A partir da Lei Mental, o princípio que, como vimos, vigorava nesta
matéria era o de que a aquisição de direitos reais ou de bens da coroa tinha que ser
titulada por um ato escrito e expresso (doação, sentença, inquirição), princípio que
se fundava no texto das Ordenações350.

346 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad. Ord. fil.2, 35, rubr. c. 41, ns. 33 ss.

(pg. 333). Também, com uma decisão, ibid. pg. 19.


347 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 47.

348 Referimo-nos, não às terças "dos concelhos”, mas às terças das dizimas eclesiásticas,
concedidas aos reis de Castela e de Portugal pelo Papa (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec.
63).
349 Quanto ao regime do direito comum acerca dos poderes senhoriais v. por todos, Domingos

Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, c. 45; também, Jorge de Cabedo, Decisiones
[...], cit., pt. 2, dec. 41, n. 7. Para um confronto entre o direito castelhano e o direito português quanto
a este tema, v. Bartolomé Clavero, Mayorazgo […], cit.
350 Ord. fil.2, 45; 2, 17.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 303. Este princípio comportava consequências várias.


§ 304. A primeira dizia respeito à admissibilidade da prescrição351 como título
aquisitivo de prerrogativas político-jurisdicionais.
§ 305. A opinião dominante na doutrina portuguesa era a da
imprescritibilidade contra a coroa dos direitos reais, jurisdições e bens da coroa.
Neste sentido militaria o texto expresso da lei352 353. O direito próprio afastar-se-ia,
deste modo, do direito comum, segundo o qual as jurisdições e regalia podiam, em
geral, ser adquiridas por prescrição centenária ou imemorial 354. O panorama
doutrinal (e, ainda mais, o jurisprudencial) não era, no entanto, líquido. Por um
lado, uma corrente minoritária defendia a prescritibilidade das jurisdições (mesmo
da correição) e direitos reais, embora requeresse a posse imemorial 355. Por outro
lado, há provas de que as posições “senhorialistas” desta corrente exerciam forte
influência na prática burocrática e jurisprudencial seiscentista e setecentista: em
decisões transcritas por Pegas relativas a títulos de direitos senhoriais, a posse ou
costume imemoriais são admitidos como título suficiente 356. Mesmo um procurador
da coroa tão cioso da defesa dos direitos e jurisdições reais como Tomé Pinheiro da
Veiga parece ter admitido a regra de que a posse imemorial supriria a doação ou
sentença como título de jurisdições ou regalias.
§ 306. A segunda consequência do princípio da doação expressa é a de que
nunca se podia entender que, perante doações genéricas (como, v.g. “doo a F. a
minha vila de N.” ou “doo a minha terra de N. com todos os direitos que aí tenha
ou possa ter”), aí sejam doados, automaticamente, os direitos reais ou as jurisdições.
Solução que, como se disse, contrariava a doutrina do direito comum clássico que
considerava, quer os direitos reais, quer as jurisdições como acessórios do território
(“a jurisdição adere ao território como a neblina sobre o lago”, iurisdictio cohaeret
territorio sicut nebula super paludem)357 e, logo, tacitamente doados com ele.
§ 307. A questão não ficava porém resolvida com o referido princípio, pois se
colocava o problema de saber que significado se devia atribuir a uma doação feita
nesses termos genéricos (que, diga-se de passagem, eram correntes no formulário

351 Sobre a prescrição, v. cap. 4.3.2.1.10.


352 Quanto à correição, Ord. fil.2, 45, 10 (que negava o valor a qualquer posse, nova ou antiga, e a
qualquer costume, ainda que imemorial); quanto aos direitos reais, Ord. fil.2, 45, 34 e 35 (que
condenavam e invalidavam para efeito de usucapião qualquer posse de cobrar direitos para além do foral
e sentença); e, em geral, Ord. fil.2, 45, 55 e 56 (que estabelecia a irrelevância de qualquer posse, uso ou
costume contrário à letra da ordenação que estabelecia o conteúdo dos direitos jurisdicionais dos
senhores).
353 Cf. neste sentido, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2. dec. 9, n. 2; ibid. dec. 12, n. 1 e

dec. 41 per totam; Álvaro Valasco, Quaestiones […], cit., qu. 8, n. 21 ss.; Manuel Barbosa, Remissiones
[…], cit., ad Ord. fil.2, 45, 10; Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 13, per totam; Manuel Mendes de
Castro, Practica […], cit., pt. 2. c. 37, n. 12; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., liv. 3, disp. 7,
n. 46 ss..
354 Cf. para o regime do direito comum, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...],

cit., liv. 3, c. 45.


355 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, pg. 130; Domingos Antunes

Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., pt. 2, c. 45 per totum; Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,
cons. 141, n. 4 ss.
356 Cf Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, pg. 149 ss, 158 ss..

357 Para a discussão da questão, v. por todos, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo

9 (ad Ord. fil.2, 28, rubr.), n. 77 ss..

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da chancelaria régia). A opinião comum dos juristas portugueses seiscentistas


distinguia diversas situações, de acordo com a fórmula utilizada na doação.
§ 308. Se esta fosse a da “doação de toda a jurisdição, com mero e misto
império”, dever-se-iam entender como doados todos os poderes necessários ao
governo da terra (jurisdição), bem como a dada dos ofícios, pois, nos quadros do
direito comum, isso implicaria a sub-rogação do senhor na posição jurídico-política
do concedente, salvo quanto àqueles poderes que fossem inerentes ao soberano,
como atributos do seu poder supremo ou regalia maiora (nas quais se incluía,
nomeadamente, a correição e o conhecimento definitivo das apelações e agravos).
§ 309. Se a fórmula utilizada na doação fosse a da doação da jurisdição, a
doutrina entendia, de acordo com os dados das Ordenações (Ord. fil.1,65; Ord. fil.2,
45), que fora doada a jurisdição para conhecer das apelações vindas das justiças da
terra, quer em matéria cível, quer em matéria crime. A solução do direito português
- que concordava com o direito castelhano, mas não com o direito comum, em que
a concessão da jurisdição conferiria poderes para julgar em primeira instância,
dando apelação para o príncipe - baseava-se no facto de a concessão da jurisdição
não poder prejudicar a autonomia jurisdicional das terras, reconhecida, como
vimos, pelo direito358.
§ 310. No caso de doação genérica dos direitos reais, a doutrina entendia que
se considerariam como doados aqueles direitos (contidos na carta de foral da terra)
que os reis normalmente concediam de forma genérica (mas não os que
rarissimamente eram concedidos por essa forma). O que remetia para uma
interpretação das doações de acordo com o estilo da chancelaria e dava origem a
uma detalhada casuística, que se pode encontrar nos comentaristas e decisionistas
da época, mas que não tem merecido muita atenção dos historiadores 359.
§ 311. Em conclusão, a despeito de todas as prevenções legais contra o
reconhecimento dos direitos senhoriais sem título constitutivo formal (doação,
sentença, inquirição), a doutrina dominante abria a porta à legitimação de situações
tituladas de forma menos rigorosa. Por um lado, enquanto admitia a eficácia da
prescrição imemorial como prova do título; depois, enquanto abria mão do
princípio de que as doações de jurisdições ou de direitos reais deviam ser expressas,
admitindo a sua concessão por fórmulas genéricas, que alguns dos autores tendiam
a interpretar de forma bastante generosa.
2.4.3.6 Conteúdo das doações
§ 312. A determinação do conteúdo das doações decorre já do que ficou dito
na secção anterior. Resta agora, particularizar um pouco mais. Fá-lo-emos,
considerando, caso por caso, as jurisdições ou direitos reais mais importantes ou
mais comummente incluídos nas doações.
§ 313. Comecemos pelas jurisdições.

358 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9 (ad Ord. fil.2, 28, rubr.), n. 82 ss. (p.
306).
359 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9 (ad Ord. fil.2, 28, rubr.), n. 85 ss.;

Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, d. 12, n. 4.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

2.4.3.6.1 Correição
§ 314. Nos termos da lei (Ord. fil.2,45,8 e 9), a correição não estava incluída
nas doações, a não ser que expressamente doada. No entanto, não faltam os casos
de doação da correição, quer durante o século XVI, quer durante o século XVII,
quer a senhorios eclesiásticos, quer a senhorios laicos.
§ 315. A isenção da correição tinha como efeito, pela negativa, proibir a
entrada do corregedor régio nas terras dos donatários e, pela positiva, sub-rogar o
ouvidor senhorial nas funções desse magistrado real. Assim, no caso de doação da
correição, os ouvidores senhoriais exercitariam todos os poderes dos corregedores,
incluídos os relativos ao conhecimento de feitos por ação nova ou por via de
agravo (Ord. fil.1,65, 22 ss.).
2.4.3.6.2 Apelações
§ 316. Como já vimos, a jurisdição senhorial é, em Portugal, uma jurisdição de
segunda instância, já que a de primeira instância pertence às justiças concelhias. O
conhecimento dos recursos das sentenças dos juízes das terras constitui, portanto, a
sua manifestação. Mas mesmo quanto aos recursos, as justiças senhoriais não
podiam, salva doação expressa - que é corrente em relação às principais casas
senhoriais -, conhecer dos agravos; pois estes deviam subir diretamente (“omisso
medio”) aos corregedores ou aos desembargadores dos agravos das Casas da
Suplicação ou do Cível (cf. infra)360.
§ 317. Das suas decisões, as justiças senhoriais têm que dar recurso para o
tribunal da corte. No caso de o título conter uma referência expressa à doação das
apelações ou dos agravos (normalmente, quando era doada uma coisa, era doada a
outra), o senhor ficava com o poder de conhecer dos agravos e, quanto aos feitos
cíveis, eles terminariam no ouvidor, não havendo possibilidade de recurso para a
corte361.
2.4.3.6.3 Jurisdição
§ 318. Como já se disse, a doação da jurisdição era dominada pelo princípio do
carácter intermédio da jurisdição senhorial, que ressalvava, para baixo, a jurisdição
dos juízes das terras e, para cima, o direito real de apelação (Ord. fil.2,45, 50 e 3,71).
A jurisdição senhorial era exercida ou pessoalmente pelo senhor ou pelos ouvidores
senhoriais, providos trienalmente. Devendo estes residir na terra de que são
ouvidores, com jurisdição sobre outras terras do mesmo senhor num raio de 5
léguas (Ord. fil.2,45, 32; 41 e 42). Por vezes, os senhores obtinham o privilégio de os
juízes de fora de terras próximas serem seus ouvidores, o que os dispensava de
pagar a um ouvidor próprio; outras vezes, obtinham licença para que o seu ouvidor
residisse na cidade mais próxima, onde a facilidade de recrutar pessoa competente
era maior.

360 A distinção entre apelação e agravos é, basicamente, a seguinte: as apelações são recursos

quanto à decisão de fundo; os agravos são recursos quanto a aspetos formais ou de processo. Cf. cap.
7.1.14.
361 Sobre as dúvidas quanto a este ponto, António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., n. III.

5. b).

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2.4.3.6.4 Dada das justiças.


§ 319. A dada (apresentação ou confirmação)362 das justiças das terras (juízes,
vereadores e restantes oficiais dos concelhos) não pertencia, em princípio aos
senhores, pois os concelhos tinham o direito da sua eleição, devendo a confirmação
ser feita pelo corregedor ou pelo Desembargo do Paço (Ord. fil.2,45,2). Em muitas
terras, porém, os senhores tinham o privilégio, por uso imemorial ou por doação,
de fazer, apresentar ou confirmar as justiças.
2.4.3.6.5 Dada dos ofícios.
§ 320. Os senhores não podiam, salva doação, dar os ofícios das suas terras,
nem sequer os dos encarregados de exercer a justiça senhorial (Ord. fil.2,45,3). Isto
decorria do carácter real do direito de criar ou prover os ofícios, que era
considerado sinal da suprema dignidade do rei (Ord. fil.2,26). Tal regra era geral e,
portanto, válida para a criação de juízes de fora (Ord. fil.2,45,13), de oficiais da
fazenda ou encarregados de conhecer dos direitos reais (Ord. fil.2,45,31), de oficiais
da milícia363, de meirinhos e alcaides (Ord. fil.2,45,14) e de tabeliães (Ord. fil.2 45,15).
Se a concessão da nomeação dos ofícios de fazenda ou dos direitos reais era muito
rara, a concessão da dos tabeliães e ofícios de justiça já era bastante comum. De
qualquer modo, para além de outras limitações, os donatários estavam impedidos
de vender ou arrendar os ofícios, pelo menos sem licença régia (cf. Ord. fil.2
45,1,95,pr.).
2.4.3.6.6 Foros, tributos e direitos reais.
§ 321. Aqui, a regra era a de que a sua doação genérica trespassaria para o
donatário aqueles foros, direitos e tributos que estavam contidos no foral, salvo os
que o rei não costumava doar 364. Remetia-se, portanto, para uma interpretação dos
termos genéricos da doação conforme ao estilo da chancelaria, o que obrigava a
uma averiguação casuística dos usos quanto à doação de cada uma das várias
categorias de direitos reais365.
2.4.3.7 Transmissão dos direitos senhoriais.
§ 322. A transmissão dos direitos senhoriais era, como se viu, regulada pela Lei
Mental, que estabelecia a forma de sucessão nos bens da coroa.
§ 323. A Lei Mental insere-se, como se viu, numa tradição jurídica europeia,
com precedentes próximos no direito das Partidas e com precedentes longínquos na
dogmática do ius commune (v. cap.). Todas as suas disposições (inalienabilidade,
vinculação, indivisibilidade, sucessão por primogenitura e varonia) se integram nos
modelos clássicos que esta literatura propôs às conjunturas sociais e políticas

362 São coisas diferentes. A “dada” consiste na nomeação definitiva pelo senhor. A “apresentação”

consiste na proposta de nomeação feita pelo senhor, mantendo-se a confirmação pelo corregedor ou
Desembargado do Paço. Na “confirmação”, mantém-se a escolha (ou “eleição”) pelo concelho,
substituindo-se o senhor ao corregedor ou Desembargo do Paço na ratificação da escolha.
363 Cf. Alv. 19.11.1631, em Col. Chron. Leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.

364 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, ad Ord. fil.2, 45, 34; Domingos

Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3. c. 43, n. 47 ss.; João Baptista Fragoso,
Regimen […], cit., liv. 1, disp. 7, n. 55 ss. (p. 349).
365 Para uma análise detalhada de cada tipo de direitos, v. António Manuel Hespanha, As vésperas

[...], cit., n. III.5.

108
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

europeias desde o século XII ao século XVIII. Modelos puramente teóricos, cuja
relação com a conjuntura sociopolítica era equívoca ou contraditória; modelos que,
porém, permanecem como “constrangimentos latentes” que sobre determinam as
estratégias políticas dos vários grupos sociais.
§ 324. Provavelmente, mais do que a resposta aos problemas da conjuntura
portuguesa da baixa Idade Média, a Lei Mental representa o produto das
representações que os juristas - dominados por esquemas categoriais próprios (e
socialmente aleatórios) - tinham dos problemas sociais do momento e do modo
mais correto de os resolver.
§ 325. Como já vimos brevemente, os princípios estabelecidos pela Lei Mental
para a transmissão dos direitos senhoriais eram vários.
§ 326. O primeiro era o da primogenitura e masculinidade: a sucessão deferia-
se obrigatoriamente, por linha masculina, ao filho mais velho do donatário. O que
implicava um certo tipo de indivisibilidade dos bens senhoriais por morte deste 366.
§ 327. A primogenitura parece expandir-se na área europeia a partir do século
XII, sobretudo nas sucessões nobres (v. § 908). Tem-se insistido no seu interesse
para a conservação do poder das famílias, maxime das grandes famílias; mas os
argumentos “sociais” não parecem suficientemente trabalhados, pois a maior parte
dos objetivos sociais da primogenitura eram assegurados pelo regime da indivisão
familiar, de resto tradicional nos direitos germânicos.
§ 328. A primogenitura acabava por ser, apenas, uma das formas de encabeçar
num só a totalidade dos bens, mantidos unidos pelo princípio da indivisibilidade.
§ 329. No sentido da indivisibilidade, destaca-se a permanência de certos
tópicos oriundos do discurso jurídico letrado, nomeadamente o princípio de que as
jurisdições e as dignidades não se dividem (dignitates et jurisdictiones non dividuntur).
Bem como a sua ilustração mais eminente, a da indivisibilidade da coroa, bem
estabelecida desde cedo e longamente justificada nas Partidas (2,15,2). Os costumes
feudais não eram, a este propósito, unânimes. O direito feudal lombardo
consagrava a divisibilidade (Lib. feudorum,1,8); mas o direito feudal franco ou o
siciliano consagravam a indivisibilidade.
§ 330. Em Portugal, o costume de não dividir os castelos e as honras - ou seja,
os bens que importavam o exercício de poder - é detestável desde os meados do
século XIII. Tanto quanto se pode saber pelos estudos existentes, o princípio da
sucessão indivisível e primogenitural desenvolveu-se a partir deste século,
sobretudo em dois domínios: (i) o da transmissão de bens com jurisdição anexa 367;
a fonte era, decerto, a lei Praeterea, dos Lib. feud. (2, 55, pr. e 1); (ii) o da transmissão
de bens cujas rendas estivessem vinculadas a certo objetivo unitário (capela,
hospital). Na segunda metade do século XIV, já era frequente assegurar a
indivisibilidade dos bens da coroa doados, ou por uma cláusula da doação ou pela

366 Note-se, de passagem, que existem dois tipos de indivisibilidade do património familiar. Um

deles é o da indivisibilidade que corresponde a um direito global de toda a família sobre os bens
(Gesamtvermögen, patrimónios em mão comum), em que todos os familiares são incluídos globalmente
na herança. Um outro é o da indivisibilidade em que os bens se concentram num dos herdeiros,
normalmente o primogénito e em que os restantes familiares são excluídos da herança. Apesar de se
tratar de dois tipos de devolução sucessória que conduzem à indivisão, têm significados estruturais
opostos (cf. John Gilissen, Introdução histórica ao direito [...], cit., 673 ss.).
367 Exemplos em Henrique da Gama Barros, História […], cit., vol. 8, 254-260.

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sua integração num morgado368.


§ 331. O argumento corrente para justificar o sistema era o da necessidade de
manter o poder das famílias369, no qual se apoiava o próprio poder da coroa 370.
Parece, no entanto, que este objetivo de evitar a usura do poder económico se
acompanhava de um objetivo de natureza simbólica. A adoção da indivisibilidade e
primogenitura tinham, antes de mais, o efeito de evocar o sistema linhagístico em
uso na sucessão da coroa e das dignidades. Por aí se explica, porventura, que a
doação de bens puramente patrimoniais (i.e. que não continham jurisdição nem
regalia: reguengos, sesmarias, armazéns, casas, em propriedade) não estivesse sujeita
à regra da indivisibilidade. A progressiva importância dos elementos simbólicos
ligados ao esquema primogenitural puro leva a que sectores nobiliárquicos (mas não
os juristas) insistam na exclusão da linha transversal - o que aumentava
significativamente o risco biológico da extinção da estirpe - e na consagração do
direito de representação em favor do neto, filho do primogénito pré-morto, que,
então, afastaria o secundogénito371.
§ 332. Do ponto de vista dos interesses da família, a sucessão linhagística
excluía da sucessão a parentela, nomeadamente os filhos segundos, enquanto que a
masculinidade excluía as mulheres. As tensões decorrentes desta severa restrição do
universo dos sucessores potenciais foram parcialmente absorvidas pela
generosidade com que o direito reconheceu os direitos a alimentos e o dote a favor
dos filhos e filhas (mesmo dos consanguíneos e naturais) excluídos da sucessão 372.
Estes eram compensados pelo pagamento de uma soma em dinheiro,
eventualmente obtida pelo empenhamento de bens da coroa; por bens
patrimoniais; pela obtenção de ofícios, de títulos ou mesmo de morgados ou novos
lotes de bens da coroa (eventualmente por doação, autorizada pelo rei, de certos
bens da coroa já possuídos); ou, finalmente, pela obtenção de uma situação
confortável na vida militar, eclesiástica ou universitária.
§ 333. Do ponto de vista da coroa, o reforço do modelo linhagístico também
apresentava riscos, pois fomentava a constituição de casas muito poderosas,
defendidas da usura das partilhas. Tanto mais que, nos bens da coroa, não existia
preceito paralelo àquele que proibia ou dificultava a acumulação de morgados (Ord.
fil. 4,100,5). E, na verdade, quase todas as grandes casas senhoriais acabam em
conflito (e subsequente confisco) com a coroa - Vila Real e anexas (século XVII),
Aveiro (século XVIII) ou, no século XV, a própria casa de Bragança.
§ 334. A fonte inspiradora do princípio da transmissão dos bens da coroa por
linha masculina pode encontrar-se ou num texto do Digesto (D. 50, 17,2 - que
excluía as mulheres das magistraturas e ofícios da cidade - ou numa lei dos Libri
feudorum (1, 8) que excluía as filhas da sucessão dos bens feudais, no caso de o
contrário não estar convencionado no pacto de investidura (cf. ainda 2, 9; 2, 30; 2,

368 Henrique da Gama Barros, História […], cit., vol. 8, 245, 270-271, 282.
369 Henrique da Gama Barros, História […], cit., vol. 8, 267, 279).
370 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, pg. 41, n. 2.

371 Sobre a questão, v. cap. 5.4.6. A solução vem a ser adotada por D. João IV, a pedido das

cortes de 1641 (cap. 27 da nobreza e 26 do clero); cf. Capítulos gerais, pp. 55, 76 e 81. Cf. António
Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5.
372 João Baptista Fragoso, Regimen […], liv. 3, pg. 149, ns. 46. Cf. cap. 5.3.1.1.

110
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

50; 4, 114). Também as Partidas excluíam a linha feminina na doação de terras. A


ideia que estava na base desta exclusão era a da incapacidade das mulheres para a
prestação dos serviços (militar ou de autoridade) que correspondiam à concessão
feudal (cf. § 767).
§ 335. A exclusão da linha feminina aumentava extraordinariamente o risco
biológico. Daí que pudesse ter representado uma eficaz medida de retorno dos bens
à coroa, sendo, consequentemente, visto com maus olhos pela nobreza que, ainda
em 1645, tenta sem êxito obter a sua revogação. O seu alcance só não foi grande
porque, na prática, a já referida política permissiva em matéria de confirmações lhe
introduzia sistemáticas derrogações.
§ 336. O segundo princípio estabelecido pela Lei Mental era o da
inalienabilidade dos bens da coroa, proibindo as suas alienações intervivos, salva
autorização régia373. Na prática, as alienações (nomeadamente, as compras e
vendas) eram frequentes, embora sempre autorizadas pelo rei374. Com a proibição
das alienações visava-se evitar as doações de donatários a seus criados e, assim, a
constituição de hierarquias feudais. O episódio da reação de D. João I às tentativas
do Condestável de doar terras aos que com ele serviam é sintomática do cuidado
posto pelos reis neste ponto.
§ 337. O terceiro princípio da Lei Mental era o do carácter não feudal das
concessões de bens da coroa (Ord. man.2,17,2). Com este princípio - sublinhado,
como já vimos, pela literatura da época (cf. supra) - obtinham-se alguns resultados
práticos. O primeiro deles era o de distinguir as obrigações dos donatários das dos
feudatários. Na verdade, o serviço feudal tinha um carácter pessoal, mas limitado
aos termos do pacto de enfeudação375. Em contrapartida, entendia-se que os
serviços dos donatários, embora também de natureza pessoal, eram ilimitados,
consubstanciados numa promessa genérica de obediência (Ord. man.2,17,3 - “e esta
nom sera por ser obrigado servir com certas lanças, porque queremos que nom
sejam avidas por terras feudaes, nem ajam natura de Feudo, mas ser obrigado a nos
servir, quando lho nós mandarmos376). Eles serviriam enquanto vassalos naturais,
sem limitações na guerra defensiva e tantum intra vires (apenas até ao limite do que
pudessem) na guerra ofensiva 377.

373 Proibição da venda, Ord. man.2, 17, 16; Ord. fil.2, 35, 19. Proibidas estavam também a
imposição de censo ou pacto de retrovender (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, c.
228, pg. 551) ou o emprazamento perpétuo, nas doações temporárias “enquanto for nossa mercê”,
Ord. man.2, 17, 22; Ord. fil.2, 35, 20). No entanto, podiam-se vender os frutos (ibid. pg. 548, c. 220) ou
arrendar por menos de 10 anos (ibid. pg. 556, c. 234), trocar por outros bens da coroa, com
autorização do rei (ibid. ) ou empenhar para pagamento de dote ou arras (Ord. man.2, 17, 17; Ord. fil.2,
35, 20).
374 Cf. exemplos em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., n. III.5.

375 O feudo podia ser simplex ou conditionatum, este último incluindo encargos ou cláusulas modais

(moderatio exercitii); outros feudistas distinguiam entre o feudum francum, livre de serviços, e o non francum,
obrigado a certo serviço (Baldo, Commentaria […], 1524, pg. 4, col. 2, n. 38; pg. 5, col.1 n. 53; João
Baptista Fragoso, Regimen […], liv. 3, disp. 8, n. 15); mas os feudistas tendiam a entender como natural
o carácter oneroso (cf (Mario Giurba, Repetitiones de successione feudorum […], cit., “Prael.”, ns. 31, 42
ss.).
376 A fonte é a C.R. de 8.4.1434 (Monumenta henricina, vol. 5, 9 ss..

377 Pascoal de Melo, cuja obra reflete a orientação centralizadora e anti senhorial dos finais do séc.

XVIII, considera que, sendo as doações de bens da coroa sempre remuneratórias de serviços, os
donatários estavam sempre obrigados a servir, mesmo em maior medida do que os outros cidadãos

111
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§ 338. O segundo resultado era o de vincar carácter em princípio temporário


da doação de bens da coroa, contra o carácter perpétuo da enfeudação.
§ 339. O terceiro resultado era o de que, em oposição à natureza em princípio
divisível do feudo, só afastada no caso de concessões que contivessem dignidades
ou em que o pacto fixasse o contrário, as doações de bens da coroa eram
indivisíveis, como já vimos (Ord. man.2,12; 14; 25).
§ 340. O quarto resultado, de acordo, pelo menos, com a interpretação dos
finais do Antigo Regime, era de que os poderes dos donatários não eram próprios,
mas delegados pelo rei que, por isso, os podia restringir e retomar 378.
§ 341. Um quinto resultado estabelecido pela Lei Mental era o de que os bens
da coroa, mesmo doados, nunca perdiam essa natureza nem se radicavam no
património do donatário, pelo que as doações careciam de confirmação periódica.
Mais do que possibilitar uma reapreciação da oportunidade da doação feita, a
confirmação tinha como objetivo verificar os requisitos da sucessão e provocar o
reconhecimento pelo donatário da autoridade real. Na verdade, cedo se consagrou a
opinião - feita equivaler pela doutrina a um dever deontológico do rei ou mesmo a
um costume do reino - de que o rei devia confirmar as doações dos seus
antecessores. O regime da confirmação era diferente consoante o donatário tivesse
tido os bens doados “em sua vida somente” ou “de juro e herdade”. No primeiro
caso, entendia a doutrina dominante que, morto o donatário, a doação não
aproveitava ao seu herdeiro por se tratar de uma concessio personalis. Pelo que a graça
a impetrar por este era, não a confirmação da anterior doação, mas a concessão de
uma nova doação. Àparte estas confirmações por sucessão, D. João II 379
introduzira o costume das confirmações de rei a rei, de acordo com o qual os
donatários deviam pedir a confirmação das suas doações no início do novo reinado.
O fundamento desta forma de confirmação seria o facto de o rei dever deixar o
reino íntegro ao seu sucessor 380.
§ 342. Finalmente, a última consequência da distinção entre feudo e doação
régia era a de que os feudos se regulavam pelo direito feudal, contido nos Libri
feudorum, nomeadamente quanto à interpretação e integração das suas cláusulas,
enquanto que as doações régias se regulavam pelo direito pátrio, legislado ou
consuetudinário, embora o direito feudal vigorasse como direito subsidiário 381.
2.4.3.8 A política da coroa quanto aos senhorios
§ 343. Um tópico recorrente nos juristas e politólogos da baixa Idade Média e
da Época Moderna era o do dever do príncipe de recompensar os serviços dos seus
vassalos. Dever a que corresponderia uma virtude, a da liberalidade, que distinguiria

(Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 28). É esta consideração que leva à criação, na
segunda metade do séc. XVIII, de um imposto sobre as rendas dos bens da coroa (“quinto dos
donatários”).
378 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 39.

379 Nas cortes de Évora de 1481, Garcia de Resende, Chronica [...], cap. 29.

380 Para detalhes, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5; doutrina dos finais do

séc. XVIII, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 32 ss..
381 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit..

112
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

os príncipes excelentes382. Isto explica o fundamental da política régia quanto às


doações de bens da coroa, bem como às suas confirmações.
§ 344. A conjuntura política das primeiras décadas do século XV fôra, de
resto, propícia à alienação de terras. D. João I e de D. Afonso V, pressionados pela
conjuntura política, alienaram uma boa parte do fundo territorial da coroa. D. João
I chegou a ter que comprar terras que antes doara a fim de poder beneficiar os seus
filhos. Nos reinados seguintes, a situação manteve-se estacionária. Nem foram
muitas as terras que regressaram à coroa, pois mesmo as das (poucas) casas extintas
foram doadas de novo; nem se doaram de novo terras que sempre tivessem sido da
coroa. Até porque, neste último caso, estas doações deparavam com a resistência
dos povos e dos concelhos que, muitas vezes, invocaram ou privilégios de serem
regalengos ou usos prescritos nesse sentido.
§ 345. Na segunda e terceira dinastias (e mesmo nos primeiros reinados da
quarta), a política de confirmação das doações de bens da coroa foi muito liberal.
De facto, não só foi muito frequente a concessão do privilégio de indicação de
sucessor fora dos limites impostos pela Lei Mental (“Carta para tirar as suas
doações fora da Lei Mental” 383), como era praxe invariável, quando os donatários
morriam sem sucessor válido à face da lei, confirmarem-se os seus senhorios em
parentes, por vezes um tanto longínquos. Desde o século XV, que os casos de
revogação de doações se justificaram sempre por faltas muito graves aos deveres do
donatário, nomeadamente por traição384. Durante os séculos XVI e XVII, a
confirmação régia verificou-se na esmagadora maioria dos casos, mesmo em
situações de extrema tensão política, como foram a crise de 1580 e a Restauração 385.
De resto, um dos artigos das capitulações de Tomar dava uma garantia de princípio
aos donatários em relação à confirmação dos bens da coroa, mesmo quando
faltassem sucessores legítimos à face da Lei Mental; embora, mais tarde 386, o rei
tenha restringido o alcance dessa garantia.
§ 346. Tudo isto confirma a asserção doutrinal de que havia no reino o
costume de os reis manterem as doações feitas pelos seus antecessores 387. Nas
cortes de 1641, a nobreza e clero pretenderam transformar esta prática liberal em
lei388. Mas o rei, reconhecendo embora a justeza do princípio da conservação das
casas nobres, respondeu de forma evasiva. Na segunda metade do século XVIII,
esta doutrina sobre as confirmações levou uma volta completa, no sentido de as
tornar livres e absolutamente dependentes da vontade do rei, como supremo juiz
dos méritos e serviços dos donatários 389.
§ 347. Em contrapartida, não era vulgar em Portugal a venda de senhorios. Os

382 Sobre a liberalidade régia, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..
383 Sentido desta dispensa, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 30.
384 Cf. exemplos em António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5. Regime da reversão à

coroa, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 31.


385 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., n. III.5.

386 Pela lei de 12.1.1587, na Collecção chronologica de [...] leis [...] delrey D. Sebastião, Coimbra 1819.

387 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cons. 167, n. 5; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2,

dec. I ss. (max. dec. 19, 1 ss.); Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., pt. 2, c. 7,
n. 25; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., t. 12, ad Ord. fil.2, 45, 12, gl. 14, ns. 4 e 5 (p. 167).
388 Cf. caps. 28 da nobreza e 16 do clero.

389 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 31 ss..

113
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exemplos que se nos deparam são, por isso, excecionais. No século XV, surgem-
nos, isso sim, casos de terras doadas como satisfação de dívidas da coroa. E, como
também era uma quase dívida a remuneração de serviços, esta proibição de venda
de senhorios e jurisdições podia ganhar contornos menos nítidos. No século XVII,
os Áustrias vendem algumas terras. Depois da Restauração, a ideia de realizar
dinheiro com a venda de senhorios não se perdeu. Num arbítrio de 1683, o rei é
aconselhado a procurar “pessoas que comprem jurisdições, logares, reguengos,
officios, capazes de se poderem vender“. De D. Pedro II, encontramos pelo menos
uma venda de terra.
§ 348. Esta situação de um país em que apenas cerca de um terço das terras é
da coroa fixa-se, assim, no decurso do século XV e permanece praticamente
inalterada - se não considerarmos a incorporação na coroa da administração das
terras das ordens militares, nos meados do século XVI - durante os sécs. XVI e
XVII. Isto não obstante a exortação de Filipe II, no seu testamento, aos seus
sucessores no sentido de não alienarem bens da coroa, exortação que era
acompanhada pela revogação de todas as doações por ele feitas; o seu sucessor
encarregou-se de as renovar e de lhes acrescentar algumas. Só na segunda metade
do século XVII, com a perda para a coroa de algumas casas senhoriais
(nomeadamente, a de Vila Real) e com a criação das Casas do Infantado e das
Rainhas, surgem outros domínios territoriais da família real que estabelecerão um
equilíbrio novo entre o poder territorial dos dinastas e o poder territorial dos
senhores. A integração do mestrado do Crato na Casa do Infantado, bem como a
extinção, durante o século XVIII, das casas da Feira, de Aveiro e da Atouguia
constituem pontos importantes, embora tardios, deste movimento de redução das
terras do reino ao senhorio real, movimento que culminará com a extinção das
jurisdições senhoriais pela lei de 13 de Julho de 1790390.
2.4.3.9 O regime senhorial nos últimos anos do Antigo Regime
§ 349. Os juristas portugueses dos finais do Antigo Regime eram fortemente
influenciados pela literatura política, social e jurídica que, por toda a Europa,
preparava profundas reformas na sociedade e no poder. Ideias-chaves desta
literatura eram a da exaltação da unidade do poder (i.e. o reforço da ideia
monárquica e “a construção do Estado”) e a da generalidade e abstração do direito
e da justiça, no seio de um processo (eventualmente correspondente a um projeto)
de racionalização global dos mecanismos sociais e políticos. Todas as formas de
particularismo político (jurídico ou judiciário), bem como todas as manifestações de
desigualdade e de “irracionalidade”, tornaram-se odiosas, embora com algumas se
tivesse que condescender para salvaguardar as formas de governo estabelecidas 391.
§ 350. O regime senhorial constituiu, para os juristas mais avançados da época,
uma dessas pedras de escândalo. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão)392 inicia um

390 Sobre a política senhorial da coroa durante o século, XVI a XVIII, v. António Manuel

Hespanha, As vésperas […], III.5; e Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades” (que
inclui cartografia dos domínios senhoriais).
391 Cf. sobre o impacto dos novos ideais, individualistas, contratualistas e racionalistas e as

tensões que provocava com as instituições estabelecidas, António Manuel Hespanha e Ângela Barreto
Xavier, “A Representação da Sociedade […]”, cit..
392 Trata-se de um jurista tendencialmente conservador, do ponto de vista social e político, autor

114
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

título das suas Notas a Melo (1814) dedicado aos direitos senhoriais com as seguintes
palavras: “Os Grandes do Reino, os Senhores Donatários de terras com jurisdição,
muitas vezes são fáceis em ampliar os seus Direitos, e terríveis aos seus vassalos, e
súbditos, e concorrendo com este espírito a prepotência deles, e de seus
obsequiosos Ministros, todo o Direito arma contra eles a sua presunção para se
julgar extorquido dos súbditos por força, e violência, qualquer Direito ou tributo de
que não mostrem justo título”393.
§ 351. Era este o espírito, de que também se encontram traços evidentes em
Pascoal de Melo, em Pereira e Sousa, em Francisco Coelho Sampaio, que explica a
insistência em dois tópicos que, se não são novos, são pelo menos expressos com
um vigor novo neste final do Antigo Regime.
§ 352. O primeiro é o da natureza graciosa, precária e revogável das doações
régias e da sua dependência em relação ao bem público, arbitrariamente avaliado
pelo monarca. Este princípio foi sobretudo invocado na segunda metade do século
XVIII, não tanto para efetivamente revogar doações, mas antes para justificar o
direito da coroa a extinguir ou reduzir certos direitos seus (nomeadamente,
tributários), mesmo que daí resultasse prejuízo para os donatários. Isto acontece,
por exemplo, com a lei de 4.2.1773, que extingue direitos de portagem. Suscitando
um donatário, em tribunal, a dúvida se ela teria lugar mesmo nas terras senhoriais,
pelo prejuízo que daí adviria aos donatários, a Casa da Suplicação determinou, por
assento, que sim, pois os bens da Coroa não perdiam, pela doação, a sua natureza e
“o Principe, doando, não fica ligado para não poder alterar a doação, quando
concorre o bem comum dos Povos, pois a sua graça é limitada com a reserva da
Alta Superioridade e Real Senhorio, que sem exceção tem em todos os que vivem
no continente dos seus domínios e debaixo da sua Real Protecção, para poder em
benefício do Estado e utilidade comum dos Vassalos, com a repulsa de qualquer
interesse particular, fazer nova Legislação que ligue a todos em geral sem
excepção”394.
§ 353. O segundo tópico era o do carácter limitado dos poderes senhoriais,
nomeadamente, a sua estrita dependência dos termos da carta de concessão,
caraterística que a doutrina iluminista realçará muito mais do que a anterior 395. Este
princípio é sobretudo afirmado em relação aos direitos reais contidos nos forais e
concedidos aos senhores por doações genéricas (cf. supra), afirmando enfaticamente
a doutrina de que não podiam ser cobrados senão os direitos expressamente
contidos na carta de foral e que não estivessem excluídos na carta de doação396.

de obras de defesa das posições senhoriais (Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Discurso […] sobre os
direitos dominicaes […], Lisboa, 1819; Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Discurso sobre a reforma dos
foraes[…], Lisboa, 1825).; cf. António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador […]”, cit..
393 Manuel de Almeida e Sousa, Notas […], cit., 2, 3, 17 e 18, rubr..

394 Ass. de 24.4.1778, Collecção chronologica dos Assentos da Casa da Suplicação e do Cível, Coimbra,

1817, 474. A frase provinha do preâmbulo do alv. de 29.9.1768, que limitava os privilégios da Colegiada
de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães. Em todo o caso, a lei de 19.7.1790, a que nos
referiremos, prevê uma reparação pelos prejuízos (“particulares”) causados aos donatários pela extinção
da jurisdição senhorial. O mesmo acontece com os projetos de reforma dos forais, dos inícios do séc.
XIX (cf. António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador {…]”, cit.).
395 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 39.

396 Cf. em sentido destoante, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Discurso […], cit., § 84; sobre

o tema, António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador {…]”, cit..

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§ 354. Em 19 de Julho de 1790, finalmente, é promulgada a “celebérrima


constituição” sobre os poderes senhoriais. Fundando-se na obscuridade e confusão
do regime jurídico dos senhorios e na necessidade de promover que o exercício da
justiça fosse igual e uniforme, esta lei:
§ 355. (a) Abolia as isenções de correição, por “prejudiciais aos donatários e
ruinosas aos povos” (art. III), e as respetivas ouvidorias isentas de correição (art.
IV); as anteriores ouvidorias, com privilégio de correição, das casas anexas à Casa
Real seriam transformadas em comarcas, postas sob a autoridade de corregedores
nomeados pela Rainha e pelos Infantes, com a jurisdição geral dos corregedores (cf.
Ord. fil.1,58; art. XXII);
§ 356. (b) Abolia as restantes ouvidorias (titulares de mera jurisdição
intermédia), estabelecendo um regime geral de apelação para as Relações (arts. V e
VI); no território das anteriores ouvidorias, sendo suficientes, criava comarcas (art.
VII); nos restantes, substituía os ouvidores, “se parecer necessário” (art. VIII), por
juízes de fora, “com graduação ou sem ela” 397, cabendo a sua apresentação ou
consulta aos donatários (art. XXXVIII); no caso de se manterem os juízes
ordinários, a sua nomeação caberia, em princípio, aos donatários (art. XXXIX).
§ 357. c) Extinguia os pequenos coutos (art. XL).
§ 358. d) Anunciava e promovia uma reforma territorial, “em benefício da
justiça, e comodidade dos vassalos” (art. IX-XI).
§ 359. O principal objetivo da lei era, como se dizia no seu preâmbulo,
promover que o exercício da justiça fosse igual e uniforme, ou, como glosava
Pascoal de Melo, “extinguir todos aqueles privilégios que, inventados com
incómodo dos cidadãos, tornam a administração da justiça difícil e desigual,
tomando assim todos os cidadãos em geral iguais e sujeitos, nesta parte, ao direito
comum”398.
§ 360. A consecução deste desiderato - típico do novo pathos universalizante e
racionalizante do pensamento político e jurídico iluminista - traduzia-se,
fundamentalmente, na abolição da justiça (em segunda instância) dos donatários,
devendo, daqui para o futuro, todos os recursos dos juízes das terras, ser
uniformemente dirigidos às relações do distrito 399. Além disto, uniformizava-se
ainda - qualquer que fosse o titular do direito de nomear ou apresentar
(“consultar”) os corregedores, juízes de fora ou juízes ordinários criados em
substituição dos antigos ouvidores - o estatuto (condições de provimento,
atribuições) de toda a magistratura, independentemente da qualidade real ou
senhorial das terras. Sendo a jurisdição dos donatários, em Portugal, uma jurisdição
de recurso, bem se pode dizer que a lei de 1790 punha fim a ela 400.

397 A “graduação” era a distinção de diversas categorias de magistrados régios: correição de

primeiro banco, correição ordinária, juiz de cabeça de comarca, juiz de primeira entrância.
398 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 3, 61.

399 Note-se que, no Algarve, funcionava uma Junta de Justiça, para onde se recorria (cf. Dec.

15.5.1790, Col. Chron. Leg. (A.D.S.), 605).


400 Pascoal de Melo não deixa de notar o carácter singular da faculdade genérica de apurar as pautas

e de nomear as justiças atribuídas aos donatários pela nova lei, por ser contrárias às Ordenações (Ord. fil.2,
45, 2 e 13; 1, 66, 30; 1, 67).

116
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 361. Têm-se dividido as opiniões sobre a importância desta lei401.


§ 362. Do ponto de vista da política do direito e da justiça402, ela tem uma
importância central, constituindo a manifestação legislativa sistemática do princípio,
tão destacado pelo pensamento político iluminista, de que a administração de toda a
justiça403 era inseparável da pessoa do rei, devendo ser, além disso, igualmente
aplicada a todos os cidadãos, sob a égide do direito, do processo e da ordem
judiciária comuns404. Escrevendo por esta altura405, Francisco de Sousa Sampaio
afirma enfaticamente que “Uma das partes integrantes do Sumo Império é a
judiciária (p. II, §61) [...] não pode por consequência separar-se esta parte judiciária
da pessoa do monarca sem alteração na forma da Monarquia [...]” 406. Daí que
Pascoal de Melo apelide a lei de 1790 de “celebérrima constituição”.
§ 363. Do ponto de vista estritamente jurídico (ou seja, independentemente
das modalidades da sua aplicação prática), a substituição dos ouvidores por
corregedores ou por juízes de fora também não era banal, pois além de pôr termo,
como vimos, à jurisdição senhorial, entregava a justiça a um magistrado
estatutariamente independente do senhor (ainda que apresentado por este),
enquanto que o ouvidor era um oficial senhorial, dispondo de competência apenas
delegada e, por isso, avocável pelo senhor (V. Ord. fil.2,52: o senhor pode conhecer
pessoalmente das causas, mesmo tendo ouvidor )..
§ 364. O que não se sabe ainda exatamente é qual o relevo prático, nos finais
do século XVIII, do exercício das jurisdições senhoriais. Se, como ultimamente foi
plausivelmente defendido407, a jurisdição senhorial integrava um conjunto de
dispositivos de domínio político das terras que facilitavam, nomeadamente, a
aquisição e consolidação de direitos de natureza patrimonial, não seria facto de
somenos a sua abolição. Mas só o estudo detalhado da grande massa documental
produzida na sequência desta lei - tanto sobre os aspetos de reforma territorial
como sobre as questões jurisdicionais provocadas pela sua entrada em vigor -
poderá fazer luz sobre o tema.
2.4.4 A Igreja.
2.4.4.1 A Igreja como sociedade eclesial
§ 365. A importância da Igreja como polo político autónomo é enorme na
Época Moderna.
§ 366. De facto, de todos os poderes que então coexistiam, a Igreja é o único
que se afirma com bastante eficácia desde os âmbitos mais humildes, quotidianos e

401 Cf. por último, Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades”, no sentido de

desvalorizar a sua importância prática.


402 E mesmo, tendo em conta a centralidade destes temas no pensamento político da época, do

imaginário político em geral


403 E não somente a justiça suprema, por via de recurso ordinário ou extraordinário, como antes

se defendia, nos quadros da teoria corporativa da sociedade e do poder.


404 Persistem diversas limitações a este principio, pois se mantêm, até ao fim do Antigo Regime,

jurisdições especiais (do clero, dos estrangeiros, dos militares, etc.).


405 As suas Preleções [...] foram impressas em 1793, mas devem ter sido escritas antes, pois a lei de

1790 ainda aí não vem referida.


406 Francisco C. S. Sampaio, Prelecções […], III, §69, nota b.

407 Nuno Gonçalo Monteiro, “Os concelhos e as comunidades”, cit..

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imediatos, como as famílias e as comunidades, até ao âmbito internacional, onde


convive, como poder supremo, com o Império, nos espaços políticos em que este é
reconhecido como poder temporal eminente408. De um extremo ao outro, a
influência normativa ou disciplinar da Igreja exerce-se continuamente. No plano da
ação individual, pela via da cura das almas, a cargo dos párocos, pregadores e
confessores. No plano da pequena comunidade, pela via da organização paroquial.
No plano corporativo, por meio das confrarias específicas de cada profissão. Nos
âmbitos territoriais intermédios, por meio da disciplina episcopal. Nos reinos, por
mecanismos tão diversificados como a relevância temporal do direito canónico ou
as formas tão estreitas de cooperação entre os “dois gládios”. No plano ecuménico,
pelo poder espiritual do Papa.
§ 367. Esta contínua presença da Igreja na organização política e institucional
do mundo terreno era ainda reforçada pela efetividade da administração eclesiástica,
muito mais implantada e capilar do que a administração secular.
§ 368. A dimensão externa, mundana, do poder espiritual da Igreja explica a
importância que os momentos jurisdicionais adquirem na teoria e na prática eclesial.
§ 369. Até ao século XIII, muito permanecia de uma conceção puramente
espiritual da Igreja, que a concebia como a congregação daqueles que estivessem
em união com Cristo, na graça de Deus (ecclesia triumphans), ou que por isso lutassem
(ecclesia militans)409. Mas esta união com Cristo, para além de ser potencialmente
universal (“católica”)410, dependia apenas de uma disposição interior, sendo, por
isso, externamente invisível. Os filhos da Igreja eram, então, inumeráveis e
externamente indistinguíveis. A enumeração que S. Tomás faz deles dá bem conta
disso411. Na verdade, Cristo era a cabeça de todos os homens (e de todos os anjos),
pelo que “o corpo da Igreja era constituído pelos homens que existiram desde o
princípio do mundo até ao seu fim” (ibid. “resp”.): tanto pelos que estavam de facto
(in actu) em estado de graça, como pelos que apenas podiam vir a estar (in potentia,
mesmo que, de facto, nunca o viessem a estar!). Até os infiéis eram potencialmente
membros da Igreja, pois podiam estar predestinados por Cristo para a salvação
(ibid. ad prim.). Mas, além dos homens, faziam ainda parte da Igreja os anjos e os
bem-aventurados (ibid. a. 4). Já se vê que, com esta extensão - e, sobretudo, com
esta indefinibilidade -, a Igreja não podia obter nenhuma tradução institucional.
§ 370. Do ponto de vista institucional, o que existiam eram as dignidades
eclesiásticas terrenas instituídas por Cristo, nomeadamente o Papa, a quem
competia dirigir uma parte da Igreja, a Igreja militante, constituída pelos homens
que, neste mundo, caminhavam para Cristo. Neste sentido, para fins institucionais e
disciplinares, mais do que a Igreja, interessavam os ofícios eclesiais instituídos (o
papado, o episcopado)412. A Igreja tendia a ser definida como o conjunto dos fiéis

408 O que, como se sabe, não existia em Portugal.


409 I. e. que estivessem a caminho - um caminho cheio de perigos e de quedas - da salvação (homines
viatores).
410 Dela estavam excluídos apenas os predestinados à condenação (cf. S. Tomás Summa theologica,

1a.2ae, qu. 8, a. 3, “resp.”, in fine).


411 Cf. Summa theologica, 1a.2ae, qu. 8, a. 3.

412 E, por isso, nos teólogos anteriores ao século XIV, a atenção prestada à Igreja, como corpo

institucional, é muito pequena; basta compulsar um índice temático da Summa theologica, de S. Tomás de

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

que estavam unidos misticamente a Cristo, por via de uma sua união formal ao seu
vigário na Terra, o Papa. Com isto, com a exigência desta comunhão visível com a
Igreja terrenal, a congregação dos crentes adquire uma dimensão externa: os
membros da Igreja podem ser identificados, contados, distinguidos dos que o não
eram; são formalmente admitidos (nomeadamente pelo batismo, como janua
Ecclesiae, “porta da Igreja”), e podem ser formalmente expulsos (pela excommunicatio,
excomunhão, privação da comunicação)413. E é isto que permite que à Igreja sejam
aplicados os quadros do pensamento político-institucional estabelecidos para as
outras comunidades (ou corpos) de homens.
§ 371. Esta jurisdicionalização da Igreja estava em marcha desde a Idade
Média. Mas, a partir da Reforma, a teologia polémica dos católicos contra a
“religião da interioridade”, contra o carácter fundamentalmente pessoal e interior
da fé e da salvação, proposta pelos luteranos, tinha incentivado a valorização das
dimensões visíveis e institucionais da Igreja, nomeadamente da ligação institucional
e jurisdicional ao Papa como único e indispensável sinal visível da comunhão com
Cristo e, logo, de pertença à Igreja.
§ 372. Em alguns teólogos mais exigentes e mais conhecedores da antiga
tradição teológica sobre a igreja, a complexidade originária do conceito de Igreja
ainda aflorava. Para Francisco Suarez (que ainda bebe, de muito perto, em S.
Tomás), a Igreja é “o corpo político e moral composto pelos homens que
professam a verdadeira fé de Cristo” (corpus quoddam politicum, seu morale ex hominibus
veram fidem Christi profitentibus compositum)414. Isto ainda se acentua quando, em
seguida, Suarez exclui do seu campo de reflexão a Igreja triunfante e declara
ocupar-se apenas da Igreja dos homens, no seu trânsito terrestre atual (Igreja
“militante”) (ibid.). Todavia, ainda entende a Igreja como excedendo aquela que
seria composta apenas pelos homens que se encontram em união (visível) com o

Aquino, em que as entradas relativas à Igreja são relativamente muito poucas (mesmo se considerarmos
que a obra ficou incompleta). Também os tratados teológicos De Ecclesia apenas começam a surgir nos
inícios do século XIV. Cf. sobre a eclesiologia em S. Tomás e na época seguinte, Otto Hermann Pesch,
Tomás de Aquino […], cit., 449 ss.
413 Tudo isto se relaciona, em todo o caso, com questões teológicas mais vastas, nomeadamente,

a da natureza da graça, dos sacramentos e, concretamente, do sacramento do batismo. Quanto a este


último ponto, uma conceção espiritualista da Igreja, “desmaterializava” o batismo, considerando que,
ao lado do batismo institucional (“pela água”, baptismum fluminis), existia um batismo espiritual que
consistia apenas na pura vontade (votum baptismi) - dirigida pela chama da graça (logo, baptismum flaminis,
batismo pela chama) - de se abrir à salvação (cf. S. Tomás, Suma theol. 1a.2ae, qu. 68, a. 2; qu. 69, a. 7;
bem como o texto de Santo Agostinho, aí citado [q. 68, a. 2, “sed contra”], falando da possibilidade
de um “sacramento invisível”). Em contrapartida, uma consideração jurisdicionalista da Igreja tendia a
reservar o carácter sacramental para o batismo institucional (baptismum fluminis): “um só Deus. uma só fé,
um só batismo; e assim, só o batismo fluminis é sacramento. O batismo flaminis, et sanguinis (i.e. pelo
martírio) não são sacramentos, chamando-se batismos porque substituem e fazem as vezes do batismo
fluminis quanto ao efeito, sempre que o sujeito não pode receber o sacramento do batismo in re (i.e. em si
mesmo)” (Francisco de Larraga, Promptuario de la theologia moral […], cit.1 tract. 2, § 1, pp. 47-48); esta
era a doutrina dominante depois de Trento (cf. sess. 7, can. 5); cf. Antonio de San Jose, Compendium
salmanticense […], cit., tract. 23, cap. unic. Quanto aos restantes sacramentos, o concílio de Trento
(sess. 7, can. 10) condenou a proposição de que qualquer fiel podia administrar os sacramentos, apesar
de, segundo os Evangelhos, Cristo ter dado a todos os homens o poder de batizar, de administrar a
eucaristia e de perdoar os pecados, (Mat. 28, 19; Luc.22, 19, João, 20, 23). Cf. v. g.. Sebastião de
Abreu, lnstitutio parochi [...], cit., liv. 9, sec. 12, n. 19 (p. 486).
414 Francisco Suarez, Opus de triplici virtute, fide, spe et char. […], cit., tract. I (“de fide”), disp. 9, n.

3.

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Vigário de Cristo (i.e. os “católicos”, no sentido comum da palavra), continuando a


defini-la em função de uma união espiritual com Cristo 415. Por isso, Suarez condena
conceções mais exclusivamente jurisdicionalistas que então já se faziam ouvir entre
os teólogos católicos que hipervalorizavam, na sequência de Trento, os aspetos
externos e visíveis da pertença à Igreja, como o reconhecimento e obediência ao
Papa, o batismo formal e a prática externa dos sacramentos e dos ritos da fé. Para
ele, ainda fazem parte da Igreja os excomungados e os cismáticos, os não batizados
que aspirem ao batismo (ibid. n. 13 ss. n. 17 ss.); mas não os que se acomodam à
disciplina externa da Igreja, mas sem fé (ibid. n. 23)416. Porém, já o Compendium
salmanticense de teologia moral417, obra típica da teologia vulgar da Contra-Reforma,
define a Igreja militante como a “congregação dos fiéis batizados, reunidos para
prestar culto a Deus, cuja cabeça invisível é Nosso Senhor Jesus Cristo nos céus, e a
visível o Sumo Pontífice na terra”418. Neste caso, nenhuma referência à fé como
vínculo à Igreja; em contrapartida, inclusão da referência ao batismo e à obediência
ao Papa419. Em obras ulteriores de teologia vulgar, este encerramento
jurisdicionalista da Igreja acentua-se ainda, identificando-se rigorosamente a Igreja
militante (da triunfante já quase não se fala) com os homens que reconhecem o
Papa e a ele obedecem420. Neste sentido, já pouco separa a Igreja de um senhorio,
ou seja, de uma república humana que reconhece o mesmo senhor e que está sujeita
à sua jurisdição421. O único traço distintivo passa a ser, apenas, a natureza especial
desta jurisdição que, ao contrário das jurisdições temporais, se ocupa de coisas
espirituais. Uma vez que operava neste plano diferente, a jurisdição eclesiástica
podia dirigir-se a homens que já estavam sob outras jurisdições e pretender, assim,
um domínio universal (“católico”)..
§ 373. Este progressivo encerramento da Igreja numa estrutura
institucionalmente fechada facilitava a instauração de mecanismos disciplinares
sobre os fiéis. Permitia à Igreja institucional identificar os seus “súbditos”, reclamar

415 “Nimirum omnes, qui fidem habent, ecclesia membra essent; vero qui illa carent extra
ecclesiam constitui”, ibid. n. 6.
416 Embora aqui pareça estar a pensar apenas nos que estão em fase de doutrinação para receberem

o batismo formal (catecúmenos) e não ao “homo nutritus in sylva” (selvagem) que recebeu o dom da
graça independentemente de qualquer contacto com a Igreja institucional.
417 António de San Jose, Compendium salmanticense [...], cit.. Trata-se de uma obra de vulgarização

teológica, organizada em perguntas e respostas e constituindo uma súmula do famoso “Curso


teológico” dos carmelitas descalços de Salamanca (Collegii salmanticensis fratrum discalceatorum [...] cursus
theologicus D. Thomae complectens, Segoviae, 1634-1637.
418 Tomo 2, tract. 41, § 2, n. 71.

419 Embora, em seguida, se matizasse um pouco, admitindo que os não batizados pudessem fazer

parte de uma Igreja invisível (o que, todavia, não lhes permitiria participar dos sacramentos); também
os hereges e cismáticos seriam membros de direito, mas não de facto, da Igreja.
420 Entre tantos exemplos, Cf. Sebastião de Abreu [jesuíta, professor de teologia na Universidade

de Évora], lnstitutio parochi seu speculum parochorum, Évora, 1700. Encontram-se estas definições no
comentário ao Credo (“Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica [...]”).
421 Note-se que o próprio poder papal se ia também temporalizando. Com o progresso da

conceção jurisdicionalista da Igreja e com a consequente e progressiva contaminação da teoria da Igreja


por uma teoria do Papado concebido à maneira de um poder temporal, o Papa tende a conceber-se,
cada vez mais, como um soberano entre os outros, perdendo a sua dimensão ecuménica e situando-se
ao mesmo nível dos outros soberanos, no palco da política mundana. Cf. sobre isto, o decisivo livro de
Paolo Prodi, Il sovrano pontifice [...], cit..

120
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

o monopólio da administração da graça (por meio dos sacramentos, “sinais de uma


coisa sagrada”, enquanto santifica os homens”), impor-lhes uma disciplina, puni-los
e, finalmente excluí-los. Esta “contabilização dos fiéis” (a que correspondia, no
fundo, uma contabilização da graça, que “aprisionava Deus” nas estruturas de
salvação institucionalmente definidas pela Igreja) traduzia-se, nomeadamente, no
arrolamento dos crentes, por ocasião da sua entrada na Igreja (registos de batismo)
e, depois, por ocasião da reparação periódica do vínculo da fé, mediante a confissão
dos pecados, a contrição, a absolvição (róis de confessados) e, finalmente, a
extrema unção. Com estes instrumentos, a Igreja controlava a entrada na Igreja e a
permanência nela. Com o controlo dos restantes sacramentos, por sua vez,
impedia-se que “Deus irrompesse anárquica e desordenadamente na história”, ou
seja, que os homens acreditassem que acontecimentos ocorridos fora do controlo
da Igreja pudessem ser instrumentos utilizados por Deus para dar sinal de si e para
salvar os homens.
§ 374. Em todo o caso, esta circunscrição dos fiéis a um número finito e
contado reduzia também as pretensões ecuménicas da Igreja no plano jurisdicional,
pois obrigava a reconhecer que quem estivesse fora do grémio dos fiéis escapava à
jurisdição da Igreja. Isto era claro com os pagãos, em relação aos quais a Igreja
apenas podia pretender a liberdade de anunciar o Evangelho 422. Mas era mais
discutido e mais difícil de aceitar em relação aos hereges e cismáticos, em relação
aos quais a Igreja pretendia levar a cabo uma política de reunião ou de submissão.
Daí que alguns teólogos afirmem que, embora fora da Igreja, os hereges estavam
sujeitos à sua tutela; porque, tal como o membro cortado do corpo, continuavam a
“pertencer” ao corpo de que foram membros 423.
2.4.4.2 Os clérigos
§ 375. Como todas as sociedades humanas, a Igreja era uma sociedade
ordenada e hierarquizada. A grande distinção entre os seus membros - uma
distinção que se foi tomando cada vez mais estruturante 424 - era a distinção entre
clérigos e leigos. Um famoso jurista quinhentista autor de uma obra de referência
estabelece aí a distinção nos seguintes termos: “Os leigos, que também se podem
dizer populares, são aqueles a quem é lícito possuir bens temporais, casar, advogar
causas e julgar. Os clérigos são aqueles que foram dedicados aos ofícios divinos e
aos quais convém preservar de todo o estrépito” 425.
§ 376. Já o Diccionario de autoridades, da Real Academia Espanhola (1726)
enfatizava mais um elemento formal ou externo da distinção, o de se ter recebido a
prima tonsura: “todo o que foi admitido pelo bispo e deputado juridicamente para o
serviço da Igreja, mediante a primeira tonsura, ainda que não tenha recebido outra
ordem superior”. E acrescentava, valorizando agora a imposição do sacramento da
ordem (ou ordenação)426, que “ordinariamente, entende-se como o clérigo secular
que tem ordens maiores” (s.v. “Clerigo”). Outros 427 destacam a hierarquia relativa

422 A questão torna-se candente com a expansão e a missionação.


423 Francisco Suarez, Opus de triplici virtute [...], cit., tract.1 disp. 9, n.23.
424 Até ao movimento de revalorização do estado laical com o concílio do Vaticano II.

425 Giovanni Paulo Lancelloti, lnstitutiones iuris canonici, cit.14.

426 E, dentro deste, a imposição de ordens maiores ou sacras (v. infra).

427 Como António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Clericus”.

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dos dois estados: “Do clérigo se diz que é um soldado espiritual [...] e apesar de ser
filho de um qualquer artífice ou ínfimo plebeu, enquanto clérigo consagrado a
Deus, é maior e superior aos soldados deste mundo, mesmo que príncipes e reis
seculares” (n. 1).
§ 377. A definição do estado clerical não era apenas importante para marcar as
hierarquias dentro da sociedade eclesial, mas ainda para delimitar o âmbito dos
privilégios (sobretudo jurisdicionais) do clero. E, neste plano, ele consistia numa
dedicação, formal e definitiva, ao serviço divino.
§ 378. A formalização desta dedicação efetuava-se ou pelo sacramento da
ordem (ou ordenação), num dos seus diversos graus, ou pela colação (i.e. a
nomeação para) de um benefício (i.e. ofício eclesiástico), ou pela profissão numa
ordem religiosa, masculina ou feminina 428. Das dignidades e ofícios eclesiásticos
diremos mais tarde. A ordenação era o sacramento em virtude do qual um leigo era
ligado ao ministério da Igreja, recebendo o poder de consagrar e administrar o
sacramento da eucaristia (Trento, sess. XXIII, cap. III). A ordenação (ou ordem)
tinha sete graus: três maiores ou sacros (presbítero, diácono e subdiácono) e quatro
menores ou não sacros (acólito, exorcista, leitor e ostiário [porteiro])429. E não era
acessível a todos. Dela estavam (e continuam a estar, na Igreja Católica) excluídas as
mulheres. Mas, para além disso, existiam múltiplos impedimentos (ou
“irregularidades”) à sua receção. Os canonistas identificavam três tipos de
irregularidades: morais (crime430 431, infâmia432, demência, embriaguez, esponsais 433,
mancebia pública, falta de vocação); físicas434 (sexo435, doença contagiosa
[nomeadamente, lepra], falta de vista436, privação de algum membro, aleijão ou

428 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Clericus”, n.2.
429 Para fazer corresponder os graus da ordem (i.e. a hierarquia da igreja militante) à hierarquia dos
anjos (i.e. da igreja triunfante: anjos, arcanjos, tronos, dominações, virtudes, principados, potestades,
querubins, serafins, Decreto, 2ª parte, C. 23, qu. 3 de poenit. dist. 2, c.. 45), alguns canonistas falavam
de nove graus, juntando um superior (o episcopado) e um inferior (a prima tonsura). Outros, pelo
contrário, consideravam que o episcopado era uma dignidade e a primeira tonsura, uma preparação
para a ordem. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. Cf. “Ordo”, n. 3.
430 Bastava a suspeita forte, indiciada pelo facto de se ter sido pronunciado.

431 Era esta interdição de efundirem sangue que impedia os clérigos de condenarem em pena de

sangue (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 26; Bernardino Carneiro,
Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 57).
432 Decorrente de heresia, cisma ou apostasia; de condenação em crime civil que a importasse (v. g.

lesa-majestade); de descender de herege relapso; de se ter envolvido em duelo, como duelista ou


padrinho; de condenação por sedição, libertinagem ou usura (cf. Bernardino Carneiro, Elementos de
direito ecclesiastico [...], cit., 61 e bibl. cit.).
433 Os casados com mulher virgem podiam ordenar-se, desde que declarassem publicamente

guardar castidade e adotassem vestes religiosas; o mesmo podia fazer quem se encontrasse separado da
mulher por adultério desta. Em contrapartida, não podiam ser ordenados os casados por duas vezes ou
os casados com mulher que tivesse sido “conhecida” por qualquer outro homem. Cf. António Cardoso
do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 17. A ordenação impedia a celebração do matrimónio
(Extrav. Jo. XXII, liv. VI, cap. un.).
434 Sobre elas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. "Ordo”, nº 10 e ss.

435 “Ordinari potest homo masculus”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.s.v.“Ordo”, n.

9.
436 Bastava a cegueira do olho esquerdo, para evitar que o sacerdote virasse a cara ao cálice e à

hóstia durante a consagração, quando o missal está do lado esquerdo. A perda de um dedo, salvo o
polegar, não era irregularidade.

122
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

defeito do corpo); sociais (ilegitimidade de nascimento, impureza de sangue 437,


profissão de cómico438, falta de idade439, falta de ciência440. As irregularidades
relativas ao nascimento eram averiguadas nas habilitações de genere; as restantes
eram-no nas habilitações de vita et moribus. Para além da inexistência de
impedimentos, a imposição do sacramento da ordem dependia da titularidade, pelo
ordenando, de meios de subsistência. Assim, ninguém podia ser ordenado sem
“título”, ou seja, sem possuir previamente e de forma pacífica um benefício, um
património pessoal ou uma pensão de que se sustentasse 441. Apenas se
excecionavam desta regra os professos em ordens religiosas, os jesuítas ou os
missionários.
§ 379. Enquanto titulares de uma especial dignidade, os clérigos ordenados
deviam manter regras estritas no viver, que incluíam a abstenção de jogos seculares
e da caça, a não frequência de tabernas ou do teatro, um comportamento moral
irrepreensível, um porte discreto, a mansidão de costumes442, o uso de vestes
clericais, a prática da tonsura ou “coroa aberta” e outras normas variáveis de região
para região quanto ao hábito corporal 443.
§ 380. À profissão em ordens religiosas nos referiremos adiante.
§ 381. Apesar da tentativa de formalizar a entrada no estado clerical por uma
qualquer solenidade (ordenação, profissão, colação de benefício) que permitisse
traçar fronteiras distintas numa classificação que tantas e tão importantes
consequências práticas trazia, permanecia uma certa zona de mobilidade em que a
pertinência ao estado clerical acabava por se decidir quase unicamente em função
de critérios externos, como o uso do hábito e da tonsura. De facto, quanto aos
clérigos menores, o uso de hábito e tonsura condicionava a produção de um dos
mais importantes efeitos do estado clerical – a isenção jurisdicional444.
§ 382. Como o uso de hábitos religiosos estava rigorosamente interdito aos
seculares, pode dizer-se, portanto, que a face visível do estado clerical consistia
mesmo no uso do hábito (ou seja, que, ao contrário do que se diz na sabedoria
popular, o hábito fazia mesmo o monge).
2.4.4.3 O direito eclesiástico.
§ 383. Para desempenhar a sua missão (de condutora, de mãe e de mestra), a

437 Cf. CR 17.5.1612 (mandando executar um breve de Paulo V que excluía os cristãos novos do

sacramento da ordem); revogado pelas LL de 25.5.1773 e 15.12.1774 (e breve de Pio VI, de 14.7.1779).
438 Abolido pelo alv. 17.7.1771, art.º X.

439 Variava com as ordens e com as dioceses (em Lisboa e Évora, por exemplo, não se podia

receber a primeira tonsura antes dos sete anos; o diaconato exigia os 23 anos e a ordem presbiteral, os
25).
440 Saber ler e escrever, para a primeira tonsura; saber latim, para as ordens menores; licenciatura

em teologia ou cânones, para o episcopato (em princípio). Cf. Conc. Trento, sess. XXII, cap. 2, sess.
XXIII, cap. IV e XI, de reformat.; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 10.
441 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Ordo”, n. 30.

442 Estava-lhes, por isso, vedado o porte de armas ou os desafios e duelos.

443 Na Península não podiam, por exemplo, usar barba nem bigode.

444 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ordo”, n. 94. Os clérigos menores

casados (uma vez só e com mulher virgem) gozavam de privilégio clerical apenas no foro criminal
(Trento, sess. XXIII de reformat. cap. 6), se andassem de hábito e tonsura e fossem destinados pelo
bispo ao serviço em alguma igreja (Trento, sess. XXIII de reformat. cap. 6).

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Igreja dispunha, quer de normas disciplinares, quer de uma malha jurisdicional e


político-institucional visando a sua aplicação. Comecemos pelas primeiras.
§ 384. O primeiro núcleo das normas com que a Igreja disciplinava a
sociedade moderna estava contido no património doutrinal ou dogmático da Igreja,
integrando as obras dos teólogos. Dentro destas, salientam-se as normas morais,
visando o aperfeiçoamento individual. Nos âmbitos do comportamento para
consigo mesmo (monastica), do comportamento no seio da família (oeconomia), ou ao
comportamento no seio da república (politica). A cada um destes grupos
correspondia um capítulo da teologia moral, corpo literário vastíssimo, que vai
desde as grandes sínteses (como a segunda parte da Summa theologica, de S. Tomás de
Aquino, (1225-1274), até aos comentários monográficos ou aos “manuais de
confessores”445, espécie de repertórios dos “casos de consciência” para uso dos
confessores446.
§ 385. Nos séculos XVII e XVIII, a teologia moral atingiu um alcance e uma
finura de análise casuística impressionantes. Estava-se, pelo menos no Sul da
Europa, perante uma sociedade “integrista”, em que se visava - apesar de uma certa
laicização do pensamento teológico operado com a escolástica tomista - uma
direção integral da vida inspirada na moral cristã e em que, portanto, os atos mais
mínimos e mais íntimos estavam detalhadamente regulados, quase não havendo
lugar para ações indiferentes do ponto de vista do destino sobrenatural de cada um.
Este ambiente integrista explica também a influência do discurso teológico sobre
outros universos normativos, como, designadamente, o direito secular. Por outro
lado, teologia moral (como também o direito) da Época Moderna é dominada pela
ideia de que cada ato concreto está tão individualizadamente ligado ao seu contexto
que mal pode ser regulado por fórmulas gerais. O resultado era uma exuberante
literatura casuística, descrevendo com minúcia as mais diversas situações morais e
propondo para cada uma delas um juízo particular. Trata-se do “molinismo”,
designação proveniente do nome de um dos grandes teólogos morais da época, o
jesuíta castelhano Luís de Molina (1536-1600).
§ 386. A capacidade que esta produção doutrinal tinha de influenciar os
comportamentos quotidianos era enorme. Não porque as fontes originais do
pensamento teológico fossem diretamente acessíveis à generalidade das pessoas.
Pelo contrário, elas constituíam um universo literário bastante hermético, escrito
em latim e pleno de referências que apenas um erudito podia decifrar. Mas a cultura
teológica tinha uma intenção eminentemente prática e dispunha de uma série de
mediações que a faziam acessível à massa dos fiéis, desde a pregação até à liturgia e
à direção de consciência447.
§ 387. Destas, a pregação, nomeadamente a pregação dominical, constituía um

445 Sobre os manuais de confessores, v. para Portugal, Francisco Bethencourt, “As artes da

confissão […]”, cit..


446 A principal fonte para o estudo da teologia moral deste período continua a ser a parte II da

Summa theologica, de S. Tomás de Aquino (há edições modernas, bilingues e traduzidas em francês,
italiano e espanhol). Mas, nos séculos XVI e XVII, produziram-se sumas que exerceram grande
influência em Portugal e na Espanha. Sobre as principais e sobre a teologia moral da época, v.
Melquíades Andrés (dir.), Historia de la teologia española, cit..
447 Cf. Adriano Prosperi, Tribunali della coscienza. Inquisistori, confessori, missionari […], cit..

124
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

eficacíssimo instrumento de disciplina das comunidades de crentes 448. Outra, a


confissão, preceito pelo menos anual para cada fiel, por meio da qual se exercia
uma disciplina personalizada e se atingiam os níveis mais íntimos da conduta de
cada um. Se a pregação podia “entrar por um ouvido e sair pelo outro”, a confissão
implicava o risco da não absolvição e das penas canónicas que daí decorriam. Nos
casos mais graves, como a privação dos sacramentos ou a excomunhão, estas penas
expunham quem violasse os preceitos canónicos a situações de marginalização
social que eram mais graves do que muitas das penas seculares. Pense-se na
vergonha pública que constituiria, nesses tempos, a impossibilidade de se casar pela
igreja, de se ser padrinho, de frequentar a igreja, de receber os sacramentos ou a
visita pascal, de ser enterrado canonicamente. Finalmente, a disciplina eclesiástica
dispunha de um outro instrumento de implementação, as visitas feitas pelo bispo ou
vigário-geral a cada paróquia da diocese, ocasião para proceder a uma devassa geral
da vida da comunidade, quer quanto aos aspetos do culto, quer quanto a matérias
de disciplina (como, por exemplo, a existência de pecadores públicos - adúlteros,
prostitutas, homossexuais, jogadores, usureiros)449.
§ 388. Embora o universo dogmático e disciplinar da teologia admitisse
interpretações destoantes, podia dizer-se que, no conjunto, ele ratificava - nesta
época em que a dimensão profética da Palavra se acantonava em movimentos
místicos sempre suspeitos de heterodoxia - a ordem social e política estabelecida.
Em todo o caso, os poderes civis não deixavam de se preocupar com o seu
controlo. Domínios de difícil intervenção eram a pregação e a confissão. Mas já
quanto às visitas e aos abusos que as autoridades eclesiásticas aí podiam praticar, as
Ordenações (2,1,13) previam uma intervenção moderadora do rei, como protetor dos
seus vassalos, contra as medidas punitivas tomadas pelos prelados que não
respeitassem, na forma ou na substância, os preceitos do direito canónico450.
§ 389. A segunda fonte de disciplina eclesiástica dos comportamentos era o
direito, o seu direito, o direito canónico, conjunto de normas cuja observância
estava garantida pela ameaça de sanções do foro externo.
§ 390. Que a Igreja dispusesse, em vista da missão sobrenatural, de poderes de
constrangimento sobre os crentes em matérias espirituais e que dispusesse deles de
forma exclusiva era indiscutível. Na verdade, isso correspondia a um princípio de
boa ordem da sociedade que reclamava que, para cada domínio, existisse um e um
só princípio ordenador 451, sob pena de confusão. A lei divina fora instituída para
ordenar o homem para Deus, enquanto a lei humana visava a ordenação dos
homens uns em relação aos outros. Daí que os príncipes temporais não pudessem
estabelecer nada acerca das coisas espirituais e divinas, pois o seu poder não lhes
fora concedido em vista da felicidade da vida futura. Pelo que este domínio ficaria
exclusivamente sujeito aos pastores espirituais, nomeadamente ao Sumo Pontífice,

448 Sobre a eficácia disciplinadora da pregação (parenética), cf. João Francisco Marques, A parenética

portuguesa e a Restauração […], cit., maxime, 110 ss.


449 Cf. para Portugal, Isaías da Rosa Pereira, “As visitas paroquiais como fonte histórica” […],

cit.; Franquelim Neiva Soares, A arquidiocese de Braga no século XVI. Visitas pastorais […], cit.; Joaquim de
Carvalho, e José Pedro Paiva, “Repertório das visitas pastorais [...], cit.; 1990.
450 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia […], cit.; Francisco Salgado de Somoza,

Tractatus de regia protectione […], cit..


451 Cf. S. Tomás de Aquino, De regimine principum, n. 3 (trad. castelhana em
http://catalog.hathitrust.org/Record/006525684).

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gozando de absoluta imunidade perante a jurisdição civil 452.


§ 391. Mas já não era evidente que a Igreja pretendesse a regulamentação de
matérias temporais e, muito menos, que pretendesse abranger sob o seu poder os
não crentes. Daí que estas questões tivessem sido muito discutidas durante toda a
Idade Média e Moderna, tanto mais que elas se relacionavam com instantes
problemas de natureza política. A primeira questão relacionava-se com as relações
(ou hierarquia) entre os poderes espiritual e temporal e a segunda com questões
como a dos direitos civis ou políticos de judeus e infiéis, a da liberdade de crença
ou a da partilha do mundo não cristão entre os soberanos cristãos 453. Este tema é
abordado noutro capítulo (v. cap. 2.5). Limitamo-nos, por isso, a algumas
indicações complementares.
§ 392. As fontes sagradas não eram claras quanto à primazia ou não do poder
espiritual sobre o temporal. Por um lado, parecia que, considerando a hierarquia
entre o Criador e a Criação, entre o bem eterno e o mundano, entre o espiritual e o
temporal454, a Igreja podia pretender um domínio superior do mundo, que lhe
permitisse tutelar o poder dos reis, limitando-o ou corrigindo-o, sempre que se
afastasse dos ditames de Cristo ou do seu Vigário na Terra. Esta superioridade do
poder espiritual constituía a linha orientadora de uma série de cânones recolhidos
no Decreto de Graciano (distinc. 1, 10), sendo aceite pela maior parte dos canonistas
medievais e modernos455.
§ 393. Mas, por outro lado, Cristo parecia ter sido bem claro quanto à
separação das esferas dos poderes espiritual e secular, nomeadamente ao distinguir,
no célebre dito sobre os tributos (redite quae sunt Caesaris, Caesari, & quae sunt Dei, Deo
[dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus], Mateus, 22), os direitos de
Deus dos direitos do Imperador. E esta ideia de separação nítida entre as duas
esferas (dizendo de outro modo, de autonomia do poder temporal) obtinha
tradução (pelo menos alegórica) noutros passos das Escrituras. No século V (494
d.C.), o papa Gelásio I, em carta dirigida ao Imperador Anastácio, formulou a
célebre doutrina “dos dois gládios”456, pela qual atribuía uma mútua autonomia, nos

452 É a doutrina tradicional (S. Tomás, Summa theol. 2a.2ae, qu. 99, art. 3), reafirmada pelo

concílio de Trento (sess. 25, c. 20); sobre o tema, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, liv. 2,
disp. 4, epit. n. 264 ss..
453 Sobre esta última questão, v. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, liv. 1, disp. 2, §

4, ns. 191 ss. (judeus), 225 ss. (pagãos); também, Serafim de Freitas, De iusto imperio lusitanorum asiatico,
cit..
454 A dignidade da Igreja estaria para a dos reis, como o sol estaria para a lua, ou como a alma

estaria para o corpo (João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt 1, liv. 2, disp. 4, epit. ns. 269 e 302;
pt. 2, liv. 1, d. 1, § 12, n. 283).
455 Desde o português Álvaro Pais no seu De planctu Ecclesiae, até alguns dos teólogos juristas da

Segunda Escolástica (Gabriel Vasquez de Menchaca, Torquemada), passando pelos grandes canonistas
italianos dos sécs. XII e XIII (Cardeal-Hostiense, Abade Panormitano, João de Andrea). Uma das
fontes jurídicas invocadas era o cânone Grandi non immerito (Liber sextum, 1, 8, 2), relativo à deposição de
D. Sancho II.
456 “São de facto dois, Augusto Imperador, os poderes porque se rege principalmente o mundo: a

autoridade dos sagrados Pontífices e o poder real” (c. duo sunt quippe, Decretum, 1, dist.. 96, c. 10). Cf.
nesta distinctio, outros textos sobre o tema. O Gen. falava da criação de dois luzeiros no céu, donde
Inocêncio III derivara a ideia de dois poderes (“Deus fez dois grandes luzeiros, ou seja, instituiu duas
dignidades, quais são a autoridade pontifícia e o poder real”, cit., João Baptista Fragoso, Regimen [...],
cit., pt. 2, lb. 1, disp. 1, § 12, n. 283); os Evangelistas insistiam na ideia de que “o Filho de Deus não

126
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

respetivos campos, às duas esferas políticas. Ambos visariam a felicidade; mas o


poder temporal, contemplando mais diretamente a felicidade terrena, teria como
fim a paz da república “distinta do espiritual, e separada, não dependente, tendo em
vista uma consecução mais cómoda e melhor do governo económico e político” 457.
Quanto ao Sumo Pontífice, apenas potencialmente (in habitu) gozaria do poder
temporal, contra os opressores dos fiéis ou da fé 458.
§ 394. O primado do poder real no temporal incluía também o poder de
governo sobre os clérigos, pois estes, como membros da república, deveriam
observar as normas civis diretivas (mas não punitivas), estabelecidas em vista do
bem comum; o que abrangia a sua sujeição às leis de tabelamentos dos preços, de
requisição de bens, de serviço militar defensivo e, mesmo, de certos tributos (pro
expensis communis)459.
§ 395. Com a valorização da natureza em face da graça e do direito civil em
face do direito canónico, reforçou-se ainda entre os juristas e os teólogos o peso da
ideia da autonomia, na esfera temporal, do poder dos reis, não tanto em relação a
Deus - de quem eles eram vigários e cujos ocultos desígnios realizam (como
pastores ou como castigos) - mas em relação ao Papa e à Igreja. Em todo o caso,
esta autonomia não era ilimitada.
§ 396. Na verdade, em face da já referida hierarquia respectiva dos bens
espiritual e temporal, o príncipe devia governar de modo a não se desviar da
observância dos preceitos de Deus; embora a especificidade do governo temporal
pudesse justificar, ou a regulamentação de atos indiferentes do ponto de vista
sobrenatural, ou mesmo a autorização de atos condenáveis deste ponto de vista,
desde que da sua proibição adviesse maior mal ou perigo 460. Em princípio, porém,
o governo temporal estava limitado pela disciplina da Igreja, pelo menos em termos
de se não poder admitir que as leis civis autorizassem atos pecaminosos 461 ou que,
pela complacência dos poderes temporais, a religião e os fiéis corressem perigo 462.
§ 397. Por outro lado, os príncipes temporais só limitadamente - i.e. enquanto
o exigisse o bem da república, sem qualquer prejuízo do múnus clerical - podiam

veio ao mundo para julgar o mundo, mas para o salvar” (João, 3; Luc.7).
457 Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit., pt. 1, cap. 1, n. 53.

458 Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit..; Luís de Molina, Tractatus

[…], 1 disp. 29.


459 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, liv. 2, disp. 4, epit. n. 303.

460 É o caso da permissão da prostituição, do divórcio, da usura, do teatro profano ou dos cultos

não cristãos (nomeadamente, judaico).


461 Daí o disposto em Ord. fil.3, 64, sobre a não-aplicação do direito comum (mas não do direito

próprio) sempre que dela resultasse pecado.


462 Assim, o príncipe cristão estaria obrigado a impedir a divulgação de doutrinas que pudessem

perturbar a fé dos fiéis, ou de confissões e práticas religiosas que, pela sua perfídia ou aberração,
escandalizassem ou corrompessem os costumes. Escrevendo nos finais do séc. XVI, João Baptista
Fragoso - que, assume uma posição tolerante para com os judeus (João Baptista Fragoso, Regimen [...],
cit., pt. 1, liv. 1, disp. 2, § 4, n. 191 ss.) - afirmava que “os impérios e os reinos são corroídos se as
pessoas públicas por temeridade ou audácia chegarem a pensar que para a conservação da República e
consecução da paz pública nada se deve acautelar no domínio da religião, antes se devendo permitir que
cada um viva como quiser e siga o que entender mais conveniente em matéria religiosa [...] O qual erro,
como muito pernicioso, deve ser erradicado completamente e por nenhumas razões permitido ao
magistrado [...]” (ibid. n. 213); o que levava ao ideal expresso numa inscrição que teria visto em Paris,
“unus Deus, una fides, unus Rex, una lex”.

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exercer o seu poder sobre os eclesiásticos 463.


§ 398. Assim, e apesar de uma percetível tendência para a desvinculação do
poder civil em relação ao religioso (“secularização”) 464, o direito canónico
constituiu, não apenas uma fonte importantíssima de regulação autónoma da
comunidade dos fiéis no domínio espiritual, como um instrumento da Igreja
militante para a tutela do governo temporal do mundo.
§ 399. Uma parte das normas de direito canónico (como os Dez
Mandamentos) estavam contidas nas próprias Escrituras, constituindo o chamado
“direito divino”. Outras tinham sido promulgadas por papas, por concílios e por
sínodos, integrando o direito “da tradição”. Esta tradição fora sendo recolhida, a
partir do século XII, numa monumental coleção, mais tarde designada por Corpus
iuris canonici, uma das fontes principais, não apenas do direito da Igreja, mas
também dos próprios direitos seculares465.
§ 400. O direito canónico vigorava, naturalmente, para as matérias espirituais
(in spiritualibus), com o âmbito muito mais vasto que estas tinham na Época
Moderna (incluindo, por exemplo, o regime do casamento, o dos pactos e contratos
jurados com invocação de Deus ou dos santos). Mas, para além disso, de acordo
com um critério trabalhosamente estabelecido durante a Idade Média e fixado
finalmente pelo grande jurista Bártolo de Saxoferrato, aplicava-se ainda às matérias
temporais (in temporalibus), sempre que a solução preconizada pelo direito secular
conduzisse a pecado (“critério do pecado”)466. É este o critério recolhido nas
Ordenações portuguesas467 (“... mandamos que seja julgado [o caso, de que se trata],
sendo materia que traga pecado, por os Sagrados Canones. E sendo matéria, que
não traga pecado, seja julgado pelas Leis Imperiaes, posto que os Sagrados Canones
determinem o contrario [...]”, Ord. fil.364, pr.).
§ 401. Mas, qualquer que fosse a delimitação teórica estabelecida entre os
domínios de vigência dos direitos secular e canónico, o que é certo é que este
último - nomeadamente o “direito divino” - gozava de uma indesmentível força

463 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., ibid. n. 303; Ord. fil.2, 1 a 3.
464 Em Portugal e em Espanha existiam, pelo menos a partir do séc. XVII, fortes correntes
“regalistas”, defendendo as prerrogativas do monarca em relação à Igreja. Para além de tirarem partido
de argumentos doutrinais como os referidos no texto, apoiavam-se nos dados do direito pátrio,
estabelecido em concordatas sobretudo dos sécs. XV e XVI, pelas quais os reis peninsulares teriam
adquirido direitos e isenções particulares em relação ao direito canónico comum (cf. para Portugal, o
tratado sobre o poder real, de Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia […], cit.). Com o
pensamento político iluminista, a isenção do poder temporal viria a ser fundada em argumentos
doutrinais novos (cf. António Ribeiro dos Santos, De sacerdotio et imperio [...], cit.; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 5).
465 A edição oficial conjunta do Corpus Iuris Canonici é de 1582. Manteve-se em vigor até 1917,

embora atualizado pelos novos cânones e decretais (ius novissimum). Sobre a sistematização interna de
cada uma das suas partes, v. 1.3.2.
466 Era o que acontecia, por exemplo, com a admissão, pelo direito civil, da usura ou da

prescrição aquisitiva de má-fé.


467 É só com a lei “da Boa Razão” (de 18.8.1769) que o direito canónico deixará de se aplicar no

foro civil. Mas a disciplina eclesiástica sobre certas matérias, que hoje nos parecem como essencialmente
seculares, como o casamento ou o registo pessoal, manteve-se até muito mais tarde. O registo civil só é
definitivamente estabelecido com o Código Civil de 1867, enquanto que os casamentos celebrados
canonicamente só deixarão de ser regulados, mesmo à face do direito secular, pelo direito canónico em
1975.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

expansiva sobre a ordem jurídica civil, o que - como se disse - se compreendia


numa sociedade que se entendia a si mesma como dirigida para o objetivo
sobrenatural da salvação e para uma antecipação na terra, tão efetiva quanto
possível, da “cidade divina”.
2.4.4.4 A jurisdição.
§ 402. Uma das mais importantes prerrogativas da Igreja era o facto de dispor
de jurisdição privilegiada (“foro eclesiástico”), exercida por tribunais próprios,
perante a qual podia chamar mesmo os leigos (v. cap. 2.4.4.4). Não é preciso
encarecer a importância política desta reserva jurisdicional, pois não será difícil
imaginar que, nos seus tribunais, as decisões fossem mais favoráveis à Igreja e aos
eclesiásticos. Ou, pelo menos, que isto fosse imaginado pelos leigos que aí fossem
chamados. Mas, fosse como fosse, a existência de um foro especial evitava a
intromissão do poder secular (mesmo que só como aplicador do direito canónico)
na vida interna da Igreja.
§ 403. A competência dos tribunais eclesiásticos compreendia as questões
puramente eclesiásticas, quer ratione personae, quer ratione materiae468.
§ 404. As primeiras eram aquelas em que uma das partes fosse um eclesiástico,
salvo nos casos em que estes deviam responder perante as justiças civis469.
§ 405. As segundas compreendiam as questões relativas à disciplina interna da
Igreja. Incluíam, em primeiro lugar, aquilo a que os canonistas chamavam iurisdictio
essentialis. Ou seja: (i) causas em matéria espiritual, da competência do provisor da
diocese; (ii) causas em matérias relativas à fé470; (iii) causas sobre disciplina interna
da Igreja; (iv) causas relativas ao matrimónio (como sacramento que era), como, v.
g. anulação, depósito da mulher por sevícias, separação de pessoas, bigamia 471, etc..
Para além desta, incluíam a iurisdictio adventicia: (i) causas sobre coisas sagradas (Ord.
fil.2,1,l0); (ii) causas sobre bens eclesiásticos, cuja natureza não fosse controversa 472;
(iii) causas sobre dízimos, pensões e foros eclesiásticos; (iv) casos de usurpação da
jurisdição eclesiástica; (v) causas contra leigos nos casos de devassas e visitações
(Ord. fil.2,13)473; (vi) causas contra delinquentes seculares asilados nas igrejas (Ord.

468 Sobre a situação da doutrina setecentista sobre as relações entre a Igreja e a Coroa em Portugal,

Manuel Augusto Rodrigues, “Tendência regalistas e episcopalistas […]”, cit.. Para uma perspetival mais
geral J.-Ph. Genet (coord.), État moderne […], cit.. Fontes doutrinais sobre a jurisdição eclesiástica: além
de Manuel Mendes Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (= liv. 2), Antonio Vanguerve Cabral, Pratica
judicial [...], cit., pt. 1, caps. 50 ss..
469 V. Ord. fil.2, 1: eclesiásticos sem superior no reino (Ord. fil.2, 1, pr.; magistrado competente:

Corregedor dos feitos cíveis), eclesiásticos que residissem na corte (Ord. fil.2, 1, 4: idem), membros das
ordens menores (Ord. fil.2, 1, 4; 2, 1, 27: competência das justiças ordinárias laicas), questões sobre bens
da coroa ou “reguengos” (património fiscal do rei) (Ord. fil.2, 1, 17 ss.: competência das justiças
especializadas nestas matérias); outros casos: Ord. fil.2, 1, 1; 2, 1, 5; 2, 1, 20. No domínio criminal, os
eclesiásticos gozavam de uma isenção geral, salvo para os crimes de lesa-majestade (Ord. fil.2, 1, pr.; 2,
1, 4/27). Para além das fontes citadas, podem ver-se os respetivos comentários de Manuel Álvares
Pegas, Commentaria [...], cit., e, para o período iluminista, de Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis
[...], cit., 1, 1, 13 ss.
470 Em que o vigário-geral apenas recebia as denúncias, remetendo-as ao Tribunal do Santo Ofício,

cuja competência nestas matérias era exclusiva.


471 V. Ord. fil.5, 19, pr..

472 Se o fosse, a competência era da justiça secular: Ord. fil.2, 1, 5 ss..

473 Que obrigava a observar o processo canónico devido (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria

[...], cit., t. 8, pg. 142, com bibl.) Sobre o tema v. Joaquim de Carvalho, “A jurisdição episcopal sobre

129
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fil.2,5).
§ 406. A Igreja pretendia, além disso, a competência sobre outras matérias:
como as que envolvessem pecado (com base, um tanto forçada, em Ord. fil.3,64;
por exemplo, a violação de juramentos, v. g. em contratos); aquelas em que as
justiças seculares não atuassem (denegatio iustitiae); as causas em que existissem partes
miseráveis (inopiae litigantium causa); e, em geral, todas as causas em que os litigantes
recorressem, espontaneamente, às autoridades eclesiásticas, “prorrogando a sua
jurisdição”, como se dizia tecnicamente. No séc. XVIII, porém, a doutrina
civilística, imbuída já de estatalismo, não reconhecia a jurisdição da Igreja nestas
causas meramente civis474.
§ 407. Restavam, ainda, para a jurisdição eclesiástica as questões de “foro
misto” (causae mixti fori) que não tivessem sido avocadas por um tribunal laico, de
acordo com a regra da alternativa475.
§ 408. No âmbito da jurisdição eclesiástica, havia também especialidades
jurisdicionais.
§ 409. Para o julgamento dos membros da capela real ou dos clérigos que
residissem na corte, bem como para o das questões relativas à existência 476 de um
direito de padroado, era competente o capelão-mor, que dava recurso para o Juiz
dos Feitos da Coroa da Casa da Suplicação477. Para o julgamento de membros das
ordens militares (Cristo, Santiago, Avis, Malta, esta gozando de um regime um
tanto particular478), existia um ramo jurisdicional específico. Com efeito, os
cavaleiros das ordens apenas estavam isentos da jurisdição temporal em matéria
crime (e, mesmo aqui, apenas se gozassem de uma renda suficiente) 479. Neste caso,
a competência jurisdicional de primeira instância pertencia ao Juiz dos cavaleiros
das Três Ordens Militares, nas questões que surgissem na corte, ou, nas restantes,
aos ouvidores junto da Mesa mestral de cada ordem. A segunda instância era a
Mesa da Consciência e Ordens (v. cap. 2.4.2.3.8). A terceira, o rei, como grão-

leigos […]”, cit..


474 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 5, 24.

475 As causae mixti fori compreendiam: questões sobre obras pias (Ord. fil.1, 62, 39-40-42), sobre

capelas ou associações religiosas (Ord. fil.1, 62, 39), sobre casos de concubinato (Ord. fil.2, 1, 13; 2, 9),
sobre delitos mixti fori (lenocínio, incesto, envenenamento, blasfémia, usura, Ord. fil.2, 9), sobre
testamentos. A competência dos tribunais eclesiásticos era concorrente com a dos tribunais seculares: a
partilha fazia-se segundo as regras da preventio (conhecia o tribunal que primeiro tomasse conhecimento
do litígio [“prevenisse”, viesse antes]) ou da alternativa (a competência alternava, por certos períodos,
entre os tribunais eclesiástico e temporal). Os casos mixti fori foram abolidos pelo decreto nº 24, de
16.5.1832. Para além das fontes citadas, v. os respetivos comentários em Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], cit..
476 Para outros aspetos, v. Ord. fil.2, 1, 1.

477 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., “Praefatio”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis

[...], cit.1, 5, 23).


478 Os cavaleiros de Malta, por sua vez, seguiam a regra geral dos eclesiásticos, gozando de uma

isenção geral em matéria cível e crime (Leis de 18.9.1602, 6.12.1612, art. 6). Cf. Manuel Mendes de
Castro, Practica Lusitana […], cit., pt. 1, c. 24, n. 10; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
4, 3, 54.
479 V. Ord. fil.2, 12, 1-2 [fonte: Lei de 11.2.1536, em Duarte Nunes de Leão, Col leg. Extrav. cit.,

11.3.4.].

130
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mestre das ordens militares. 480


§ 410. Uma outra jurisdição eclesiástica especial era o Tribunal do Santo
Ofício da Inquisição, que gozava de competência exclusiva em matéria de heresia,
apostasia, blasfémia e sacrilégio, bem como de certos crimes sexuais (sodomia,
Venus nefanda [inominável, ímpio]) (Regimentos de 15.3.1570, 22.10.1613, 22.10.1640
e 1.9.1774; alvará 18.1.1614) (v. cap. 2.4.2.5). Os tribunais de primeira instância
eram os de Coimbra, Lisboa e Évora, no continente; e o de Goa, na Índia. Como
instância de recurso, o Conselho Geral. Junto de cada um destes tribunais existia
um Juízo do Fisco, que decidia as questões relativas ao confisco dos bens dos
condenados (e certas questões incidentais, como os crimes de falso ou de
resistência), bem como as questões em que uma das partes fosse um oficial da
Inquisição ou um seu privilegiado (familiar do Santo Ofício). Os Juízos do Fisco de
Lisboa e Coimbra decidiam em definitivo das questões de confisco, mas o de Évora
estava submetido ao de Lisboa (Regimento de 10.7.1620, ch. 25). Como foros
privativos dos oficiais e privilegiados da Inquisição, estes tribunais davam recurso
para o Conselho Geral (ibid. ch. 46).
§ 411. Um outro ramo especial da jurisdição eclesiástica era o da Bula da
Cruzada, que conhecia das questões a esta relativas, como o arrendamento das suas
rendas ou, em geral, todos os litígios que daí decorressem (Regimento da Bula da
Cruzada, de 10.5.1634, ns. 11, 12 e 16481). A instância jurisdicional era a Junta ou
Tribunal da Bula da Cruzada482, que conhecia, portanto, dos recursos (de apelação
ou agravo) dos Comissários da Bula, bem como dos recursos das decisões dos
Provedores, quando atuassem como juízes especiais dos oficiais e pessoas
privilegiadas da Bula (alvará de 28.9.1761).
§ 412. Mesmo prescindindo destes casos especiais, vale a pena refletir sobre a
enorme extensão da jurisdição dos tribunais da Igreja. De facto, a eles podiam ser
trazidas não apenas as questões em que uma das partes fosse a Igreja, uma
comunidade religiosa ou um eclesiástico (ainda que a outra parte o não fosse),
como uma vastíssima série de questões entre seculares que caíam na competência
material do foro eclesiástico.
§ 413. Mas, para além da competência contenciosa reservada a que nos
referimos, a Igreja dispunha ainda de uma competência jurisdicional voluntária,
para aqueles casos em que as partes, por sua livre vontade, quisessem resolver os
litígios perante um tribunal (ou entidade) eclesiástico (jurisdição “arbitral” ou
“voluntária”) 483. Estudos recentes têm revelado a extraordinária importância destes
mecanismos de resolução de conflitos, o modo como a Igreja os promovia,
incitando os fiéis a uma resolução “amigável e fraterna” (compositio fraterna, correctio
charitativa), sob a sua égide, em vez de uma resolução conflitiva perante os tribunais
de justiça. O que, naturalmente, contribuía para aumentar o poder disciplinar da
Igreja e dos eclesiásticos - nomeadamente dos párocos, mediadores naturais nas
pequenas comunidades de crentes -, tanto quanto afetava o impacto da justiça

480 António Manuel Hespanha, As vésperas [...] [ed. de 1986], cit., l, 459 n. 162.
481 Cf. http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=116&id_normas=
39133&accao = ver.
482 Arquivo: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4206562.

483 Cf. sobre os processos de mediação de conflitos, António Manuel Hespanha, Lei, justiça,

litigiosidade […], cit., nomeadamente os estudos de N. Castan, M. Clanchy e E. Powell.

131
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secular (v. § 2012).


§ 414. A estas prerrogativas de foro, acresce o facto de que os lugares
eclesiásticos gozavam, ainda, de imunidade. Uma das suas manifestações mais
importantes era a do “direito de asilo” (Ord. fil.2,5), apesar das suas múltiplas
limitações (não valia para os crimes mais graves, nem para os crimes dolosos) 484, a
que correspondia, no plano positivo, a competência das autoridades eclesiásticas
para punirem os asilados (cf. supra). Bem como, num plano já um tanto diverso, a
imunidade fiscal que, constituindo embora uma regra de direito comum, tutelada
por uma das excomunhões da Bula da Ceia (Bula in coena Domini, excomunhões 5 e
18), estava limitada, em face do direito pátrio, aos casos de isenção expressa 485.
2.4.4.4.1 As pequenas vitórias do outro gládio
§ 415. A situação privilegiada da Igreja era vista com preocupação pela coroa,
que tentava atenuá-la de diversas formas.
§ 416. Uma delas era o beneplácito régio, instituído ainda durante a primeira
dinastia, que obrigava a que as “cartas de Roma” fossem sujeitas, antes da sua
publicação, à aprovação régia (cf. Ord. af,2,12). Mas o controlo da comunicação
direta com Roma era ainda procurado por outras formas; assim, a coroa proibia que
se pedissem diretamente a Roma privilégios sobre bens ou benefícios eclesiásticos
(cf. Ord. fil.2,13; 14; 19), como forma de evitar, ou que o Papa chamasse a si a
concessão de benesses que, de outro modo, sairiam da mão do rei, ou que se
gerassem conflitos entre beneficiados da Cúria romana e beneficiados por qualquer
entidade eclesiástica (bispos, cabidos, abades de ordens) portuguesa.
§ 417. Outra prerrogativa régia era a de proteger os seus súbditos naturais
contra as violências dos eclesiásticos (a regia protectio, cf. Ord. fil.2,1,13; 2,3), bem
como a de punir pela justiça os criminosos que não o tivessem sido devidamente
pela justiça eclesiástica. O texto das Ordenações (Ord. fil.2,3) em que o rei reivindica
esta possibilidade é um modelo de cautelas, denunciador da debilidade das
prerrogativas régias perante a Igreja e os eclesiásticos 486. O rei, depois de multiplicar
as declarações de que não está a usar das suas prerrogativas de justiça - que
ofenderiam as isenções jurisdicionais da Igreja -, invoca apenas os seus poderes de
gestão dos seus bens (as suas atribuições “domésticas”) para poder tirar aos clérigos
malfeitores os bens que dele tivessem.
§ 418. Outra forma de penetração real era o direito de padroado, ou seja, a
faculdade de apresentar dignidades eclesiásticas em inúmeras capelanias (v. cap.

484 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..


485 Era o caso da dízima, da portagem e da sisa (Ord. fil.2, 11, 1; 2, 1, 19); mas os eclesiásticos
estavam sujeitos a jugadas, salvo privilégio (Ord. fil.2, 33, 8; 57, 1; 33, 25). Sobre o tema, António
Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit..
486 Vale a pena transcrever uns passos: “ [...] quando em seus reinos, e senhorios alguns clérigos de

ordens menores, ou sacras, ou beneficiados, comendadores e outros religiosos, e pessoas de jurisdição


eclesiástica, fossem culpados em malefícios, e julgados pelo eclesiástico, e não fossem punidos, como
por direito, e justiça deverião ser, e o dito Senhor o soubesse em certo, elle não como juiz, mas como seu
rei, e senhor, por os castigar, e evitar que tais malefícios se não cometessem, os lançaria de seus
moradores, e tiraria as terras, e jurisdições, castelos, ofícios [...], que dele, ou de seus antecessores de
graça, ou enquanto fosse sua mercê tivessem [...]. E isto não por via de jurisdição, nem de juizo, mas
por usar bem de suas cousas, e afastar de si os malfeitores, e que não houvessem dele sustentação,
nem mercês [ou]”.

132
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

4.2.1.1.2). Este direito, que existia também em favor de outras entidades


eclesiásticas ou seculares, possibilitava a constituição de redes clientelares e, deste
modo, a organização de círculos próprios de poder que não deixavam de introduzir
fissuras no bloco do poder eclesiástico.
§ 419. O controlo da coroa ainda se consubstanciava numa série importante
de interdições que recaíam sobre a Igreja e os eclesiásticos. Uma das mais
importantes era a proibição de adquirir bens de raiz (por parte da Igreja ou de
instituições religiosas, mas não por parte de clérigos, Ord. fil.2,18; v. cap. 4.3.3.3).
Embora, na prática, esta norma não fosse praticada, ela não deixou de constituir,
em certos contextos de crise das relações entre a Coroa e a Igreja (como no período
olivarista, a propósito da tributação da Igreja), uma forma de pressão. Para além
disso, impendiam sobre a Igreja outras interdições: proibição de aceitar penhores
(Ord. fil.2,24); de possuir bens nos reguengos (Ord. fil.2,16;13, 6). Quanto aos
clérigos, várias interdições: de sucederem em bens da coroa e nos morgados (Ord.
fil.2,16; v. cap. 5.4); de porte de armas (Ord. fil.2,1,26); de exercício do comércio
(Ord. fil.4,16); de exercício da advocacia (Ord. fil.3,28,1); de terem cargos de tabelião
(Ord. fil.1,80,4); de pedir benefícios ou juízes apostólicos para Roma (Ord. fil.2,13,1;
L. 10.12.1515; L. 3.11.1512); de atacar os privilégios do reino em relação à Santa Sé
(Ord. fil. 11,15; L. 27.5.1516).
§ 420. Em contrapartida, a Igreja obtinha proteção das autoridades temporais
que, além de reconhecerem a sua autonomia político-institucional nos termos
referidos, tutelavam o exercício do seu múnus, pastoral e profético, auxiliavam a
manter a disciplina eclesiástica e asseguravam a punição temporal dos crimes
religiosos (provisão de 4.2.1496; Ord. fil.1,6,9; 2,8).
2.4.4.5 Uma malha político-administrativa. Benefícios, padroados e
comendas.
§ 421. A malha do oficialato da Igreja não tinha equivalente na época. Desde
Roma até a uma paróquia perdida, a Igreja dispunha de uma malha de oficiais e
instituições que cobriam eficazmente o território e garantiam com uma eficácia
absolutamente excecional para a época as diversas funções que lhe competiam,
desde as puramente espirituais, até às do foro externo, como a realização da justiça
ou a cobrança dos tributos eclesiásticos.
§ 422. Neste último domínio, dispomos, de resto, de impressivos exemplos da
eficácia comparada dos aparelhos administrativos eclesiástico e secular. Um deles
refere-se à décima militar, criada, logo a seguir à Restauração, para o financiamento
da guerra. A sua fonte inspiradora era a dízima eclesiástica, equivalente a um
décimo da produção, cobrada em todas as paróquias. Apesar de se ter montado
uma complexa estrutura para o lançamento e cobrança do novo imposto, a
administração secular nunca conseguiu atingir nem a metade do que se estimava ser
o rendimento da dízima a Deus.
§ 423. Mas, para além deste aspeto da eficácia, a Igreja criou um enorme
repositório de princípios, máximas e conceitos relacionados com a administração.
Não admira, por isso, que a teoria jurídica e as técnicas de organização do oficialato
da Igreja tenham constituído a matriz intelectual sobre que assentou a
administração civil, nomeadamente nos aspetos não jurisdicionais (pois, nestes
últimos, a influência do direito romano foi maior).
§ 424. O conceito mais geral para designar um cargo eclesiástico é o de oficio
(v. cap. 2.6). O oficio consistia na administração de uma “coisa ou assunto
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eclesiástico” (res ecclesiastica). Ao ofício correspondia, portanto, uma função e a


atribuição dos poderes (jurisdição) correspondentes. Assim, à colação (ou dada,
entrega) de um ofício correspondia a atribuição de uma jurisdição 487.
§ 425. Como, na estrutura administrativa da Igreja, ao desempenho de uma
função correspondia a perceção de uma renda, de um “benefício”, esta última
designação passou, progressivamente a substituir a primeira, tanto mais que se
multiplicavam os casos em que a função associada à perceção da renda se tinha
extinguido. Assim, ofício e benefício passam a constituir sinónimos, designando a
mesma coisa, embora sob perspetiva diferentes. Em certos casos, à jurisdição
(ordinária) correspondia uma certa primazia ou preeminência, nomeadamente nos
atos litúrgicos ou capitulares (“no coro ou no capítulo”); falava-se, nestes casos, de
uma dignidade. Em contrapartida, se esta primazia era meramente honorífica, não
comportando qualquer jurisdição (i.e. não se unindo a qualquer ofício), falava-se de
uma simples pessoa (personatus). No caso de esta primazia se limitar à perceção de
um rendimento, falava-se de uma prebenda ou conezia488. Os ofícios (ou
benefícios) podiam ainda ser seculares (exercidos no “mundo”) e regulares (i.e.
importando a vida em comunidade sob uma regra ou cânon), simples ou curados
(i.e. envolvendo a cura de almas e administração de sacramentos). Todos estes
estatutos podiam estar regulados ou no direito canónico comum (nomeadamente,
no C. Iur. Can.) ou no direito canónico particular, constante de normas diocesanas
particulares, escritas ou costumeiras489.
§ 426. A concessão dos ofícios eclesiásticos fora inicialmente papal. Mas, por
direito comum, os bispos tinham adquirido um direito (intentio fundata), cumulativo
com o do Papa, de concessão dos benefícios da sua diocese. Para evitar conflitos de
competência, vigorava a regra da “alternativa”, pela qual cada uma destas entidades
concedia os ofícios durante seis meses intercalados do ano 490.
§ 427. Da concessão ou colação de benefícios deve distinguir-se a
apresentação, ou direito de propositura. Em certos casos, a apresentação dos
benefícios eclesiásticos podia caber a outra entidade, eclesiástica ou leiga, nos
termos do direito de padroado.
§ 428. O padroado era, segundo S. Tomás de Aquino, “o direito de apresentar
clérigo para um benefício eclesiástico” (v. cap. 4.2.1.1.2). O principal tratadista
português da Época Moderna define-o como um direito honorífico, oneroso e útil
sobre alguma igreja ou renda eclesiástica que compete a alguém que, com o
consentimento do ordinário, erigiu uma igreja ou benefício ou os dotou ou que
herdou esse direito de quem o tenha dotado”491 492.

487 Se o ofício era “perpétuo” (no sentido de indisponível por quem o dá), a jurisdição era

ordinária; se era precário, a jurisdição era delegada.


488 Falava-se também de pensão ou porção a respeito de uma prestação periódica imposta sobre o

rendimento de certo benefício pelo titular da sua colação (i.e. por aquele a quem competia prover esse
benefício) a favor de uma pessoa eclesiástica ou leiga (cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado
pratico compendiario das pensões ecclesiasticas [...], cit., § 21 ss.). As pensões podiam ser impostas pelo Papa,
pelos bispos, pelos grão-mestres das ordens militares e pelos reis (como grão-mestres ou padroeiros).
489 Sobre este tema, v. v. g. Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., cap. IV; mais recente, útil

como roteiro, Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico […], cit., § 121 ss.
490 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 1, disp. 20, § 1, ns. 1 ss. (pp. 655 ss.).

491 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 n. 3 e 4. O Concílio de Trento

134
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 429. Tal direito dizia-se honorífico, pois encerrava certas honras, como a de
apresentar (i. e. indicar ao titular do direito de nomeação ou colação, normalmente
o bispo) o titular do benefício (normalmente o reitor ou capelão da Igreja), a de ter
a precedência nos atos de culto (como as procissões, os ofícios, a bênção, etc.), a de
ter direito a preces, a cadeira especial na Igreja ou no coro, a ter sepultura em lugar
de destaque, etc.493.
§ 430. Dizia-se oneroso, porque sobre o patrono recaía o ónus de defender a
igreja ou capela do seu padroado e de impedir que os seus bens se dilapidassem 494.
§ 431. Dizia-se útil, pois o patrono, sua mulher e família tinham direito a ser
socorridos pelos rendimentos da Igreja se caíssem na miséria 495. O Concílio de
Trento (sess. 25, cap. 9) proibiu os patronos de se imiscuírem na perceção dos
rendimentos do benefício, deixando-os na livre disposição do beneficiado.
§ 432. O padroado podia ser eclesiástico, leigo ou misto496, consoante o
benefício fosse dotado com bens da Igreja ou com bens de leigos. Os padroados
não podiam ser vendidos, mas transmitiam-se por herança497. O Concílio de
Trento, no sentido de libertar as igrejas e benefícios dos direitos de padroado,
extinguiu a possibilidade de transmissão mortis causa dos padroados, apenas
excetuando aqueles de que fossem titulares os reis ou imperadores 498.
§ 433. Apesar de a apresentação do beneficiado pertencer ao patrono, a sua
colação pertencia ao ordinário499. Nos padroados eclesiásticos, o direito de
apresentação era partilhado com a Santa Sé 500.
§ 434. Ao benefício ou igreja sobre o qual impendia o direito de padroado
podia ser dado um comendador, ou seja, alguém encarregado de os proteger. Nesse
caso, ficam impendendo sobre os mesmos bens eclesiásticos tanto os direitos do
patrono como os do comendador. No entanto, o comendador não fazia suas as
rendas do padroado, a não ser que isso tivesse sido previsto no ato da instituição da
comenda, assim como não adquiria o direito de apresentação dos beneficiados 501.

(sess. 25, cap. 9) exigiu, pelo menos, documento autêntico ou posse imemorial para prova do direito de
padroado, mandando considerar como nulos todos os padroados fundados noutros títulos, salvo
quando os seus titulares fossem os reis ou imperador.
492 Sobre o padroado, fontes de direito canónico clássico, Decreto, lI, c. 16, qu. 7; Decretais, Ib. 6;

Trento, sess. 24 e 25. Literatura portuguesa: Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.; Bento Cardoso
Osório, Praxis de patronatu [...], cit..
493 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 ns. 7 a 11

494 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 n. 12.

495 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1 n. 14.

496 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res. 2, n. 1.

497 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res. 2, n. 6.

498 O padroado real português manteve-se, portanto.

499 A colação de benefício sem a apresentação do patrono era anulável, Jorge de Cabedo, De

patronatibus [...], cit., c. 1, n. 3 ss. No caso de o direito de apresentação não ser exercido no prazo de
quatro meses (padroados leigos) ou de seis meses (padroados eclesiásticos) a contar da vacatura do
benefício, o direito caducava para o Ordinário (ibid. n. 9; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit.,
XI, pg. 176, n. 6.
500 A apresentação era do patrono se o benefício vagasse nos meses de Março, Junho, Setembro e

Dezembro; nos restantes era da Santa Sé (Conc. Trento, sess. 24, cap. 18; Francisco Salgado de
Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit., pt. 3, c. 9, n. 99). Além disso, em qualquer dos casos, o
provimento devia ser feito, no caso do padroado eclesiástico, por concurso (Ibid. ).
501 Cf. Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu [...], cit., res.1, n, s 1 e 2. ps. 90-91.

135
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Apesar destes princípios, os conflitos entre padroeiros e comendadores não foram


raros, existindo diplomas de composição geral, estabelecendo a repartição das
rendas do benefício por uns e outros.
§ 435. O padroado régio, que concedia aos reis de Portugal, a apresentação
dos benefícios e ofícios das igrejas do reino, teve origem no início da monarquia.
Honório III, na bula Cum fidelis memoriae, de 21.12.1220, confirma a D. Afonso II o
padroado das Igrejas do Reino. No início do séc. XVI, Leão X, por bulas de 1514 e
1516, alarga este direito às Igrejas do ultramar 502. Seguiram-se a instituição das
dioceses, na África, na Ásia e na América.
§ 436. Logo no início do séc. XVII, o Papa começou a enviar para o Oriente
vigários apostólicos diretamente dependentes da congregação da Propaganda Fidei,
criada em 1622, disputando aos reis de Portugal o seu direito de padroado 503.
2.4.4.5.1 Bispos
§ 437. O ofício eclesiástico central era o de bispo 504. O próprio Papa se
intitulava bispo de Roma, tratando de irmãos os restantes bispos (ao passo que
tratava os reis por filhos). A diocese era, portanto, a célula básica da administração
da Igreja.
§ 438. Os bispos gozavam da jurisdição ordinária na sua diocese. As suas
competências505 eram: (i) a administração privativa de certos sacramentos e funções
(crisma, ordenação, consagração de igrejas ou altares, bênção de certas alfaias de
culto); (ii) a jurisdição espiritual (voluntária e contenciosa) universal 506 sobre os fiéis
e coisas eclesiásticas da sua diocese, abrangendo a cominação de censuras e certas
penas, a visitação e perceção dos respetivos direitos507; e (iii) a administração dos
bens da mesa episcopal ou “da mitra”508 509. No domínio da jurisdição contenciosa,
os bispos eram, na diocese, os magistrados eclesiásticos ordinários de primeira
instância (câmara ou cúria, tribunal do bispo) eventualmente assessorados (até
1832) pelas Mesas de justiça, constituídas pelos “desembargadores episcopais” e
apoiadas pelos vigários episcopais (arciprestes, arcediagos, vigários gerais) e por

502 Cf. Jorge de Cabedo, De patronatu […], cit.; Bento Osório, Praxis de patronatu regio[…], cit.;

José Joaquim Lopes Praça, Ensaio sobre o padroado portuguez […], cit.; Bernardino Carneiro, Elementos de
direito ecclesiastico […], cit., § 212 ss..
503 Luís (D.) de Sousa, Demonstratio juris patronatus […] Innocencio XI, anno MDCLXXVII, oblata,

Nova Goa, 1861.


504 Para Portugal, José Pedro Paiva, Os bispos de Portugal e do Império (1495-1777), cit..

505 Cf. Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit..

506 Excetuavam-se, porém, os territórios nullius diocesis, dependentes diretamente da Santa Sé,

como eram, em Portugal, as prelazias quasi episcopais (Santa Cruz de Coimbra [ab séc. XII], Santa
Maria da Oliveira de Guimarães [ab. séc. XV], priorado do Crato [ab 1443], priorado de Tomar [ab
1554], capela real de Vila Viçosa [ab 1581], as prelazias de Moçambique [ab 1612], Pernambuco [ab
1612], Cuiabá e Goiás [ab 1745]) e algumas igrejas e. capelas privilegiadas (v.g. capela real, casa real de
Santo António, Igreja das Chagas de Lisboa, capela da Universidade de Coimbra). Cf. Bernardino
Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 152, 157.
507 Direito catedrático (ou ceras) e colecta (ou procuração).

508 A partir do séc. XII, nos bens diocesanos distinguem-se os da mitra, administrados pelo bispo,

e os do cabido, administrados por este.


509 Em Portugal, a coroa recebia parte das rendas do primeiro ano dos benefícios vagos (ano do

morto); cf. CR. 9.3.1801 (João Pedro Ribeiro, Indice chronologico […], cit, 1, 128); alv. 3.7.1806.

136
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

outros oficiais (promotor, escrivão da câmara, notário apostólico, distribuidor e


contador)510.
§ 439. A segunda instância era constituída pelas Relações eclesiásticas,
tribunais coletivos com sede nas cabeças das dioceses metropolitanas (Lisboa,
Braga e Évora, no Continente; Goa, na Índia)511. A terceira instância era
constituída, a partir do séc. XVII, pelo Tribunal da Nunciatura ou da Legacia512. O
Tribunal da Nunciatura tinha ainda jurisdição de segunda instância para as causas
das dioceses metropolitanas e dos territórios isentos de qualquer diocese (exempti
nullius diocesis). Das decisões deste tribunal havia recurso (de “agravo” e de
“apelação”) para a coroa, nos limites reconhecidos pela doutrina da regia protectio
(nomeadamente em caso de abusos da jurisdição eclesiástica)513. O Tribunal da
Nunciatura foi abolido pelo decreto de 23.8.1833 e substituído (em 1848:
convenção de 21.10.1848, art. 12; Lei de 4.9.1851) pelas secções de recurso ou
pontifícias, cujos juízes eram nomeados pelo rei, sob proposta do núncio.
§ 440. Os tribunais eclesiásticos não tinham a possibilidade de dispor de meios
coativos temporais (desde uma lei de 4.2.1496). As disposições do Concílio de
Trento que reclamavam faculdades executivas para os tribunais eclesiásticos (sess.
XXV, cap. III, de reformat.) não foram recebidas514; por isso, em caso de necessidade,
as medidas coercivas deviam ser requeridas ao braço secular (ajuda do braço
secular, Ord. fil.2,8), por meio de pedido dirigido ao juiz territorialmente
competente515.
2.4.4.5.2 Cónegos
§ 441. As conezias (ou canonicatos) eram outros ofícios eclesiásticos de nível
diocesano. A instituição de cónegos diocesanos remonta aos primeiros tempos da
Igreja. Tratava-se de oficiais eclesiásticos escolhidos pelo bispo, para o ajudar,
ocupando-se das funções litúrgicas ou administrativas da sé. Como viviam em
comunidade e debaixo de uma regra (canon), recebiam o nome de cónegos (do latim
canonicus, depois cónegos). Com o tempo, distinguiram-se dois tipos de cónegos, os
regulares e os seculares. Os primeiros - de que se destacam os cónegos regulares de
Santo Agostinho - viviam em comunidade e sob voto de pobreza, não podendo

510 Cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 397-403.
511 Cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 404-406. As Relações tinham
também competência de primeira instância na diocese metropolitana naqueles casos em que uma das
partes era um bispo ou nas causas que se arrastassem por mais de dois anos nos tribunais das dioceses
sufragâneas (ibid. 404).
512 Na origem deste tribunal esteve uma bula de Júlio II, de 21.7.1554, segundo a qual as causas

julgadas no reino não teriam recurso para a Santa Sé; assim, tais recursos para fora do reino eram
também proibidos pela lei do reino (Ord. fil.2, 13, pr.; cf. ainda Bernardino Carneiro, Elementos de direito
ecclesiastico [...], cit., 406).
513 Cf. aviso 3.7.1672 e Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 7, 34; magistrado

competente: Juiz dos feitos da coroa da Casa da Suplicação (Ord. fil.1, 9, 12;1 12, 5/6). Este recurso
(neste caso, de agravo) existia em todos os casos de abuso da jurisdição eclesiástica (v. Ord. fil.2, 1, 12-
14; cf. Francisco C. de Sousa Sampaio, Prelecções […]¸1, 109 ss.).
514 Cf. L. 2.3.1568, em Duarte Nunes de Leão, Leis extravagantes […], pg. 279. A provisão de

19.3.1569 (= concórdia de 1578, art. XII) não foi recebida pelas Ord. fil.. Sobre este tema, Marcello
Caetano, “Recepção e execução dos decretos […]”, cit..
515 Cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico […], pg. 433.

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possuir quaisquer bens pessoais, nem mesmo em administração 516. Quanto aos
cónegos regulares, viviam fora da catedral, tendo, porém, aí alguma função (i.e.
tendo aí um ofício) ou recebendo, apenas, aí alguma prebenda. Na Época Moderna,
eram estes que constituíam a regra517. Os ofícios canónicos eram vários. Deles se
distinguiam alguns, instituídos por direito comum. Assim, o arcedíago (archidiaconus)
ou primeiro diácono substituía o bispo nas suas funções temporais, nomeadamente
judiciais518. Nestas últimas funções adquiriram tal importância que, pouco a pouco,
a sua jurisdição foi sendo considerada como ordinária (e não delegada pelo bispo);
o Concílio de Trento reagiu contra este abuso, reafirmando o carácter apenas
delegado desta jurisdição e retirando-lhes a competência para conhecerem das
causas criminais e matrimoniais (sess. 29, cap. XX, de reformat.). No entanto, a
doutrina seiscentista continuava a atribuir-lhes a primazia sobre os restantes
cónegos e a entender que os costumes que lhes conferiam jurisdição mais vasta
(nomeadamente, jurisdição ordinária) prevaleciam sobre o direito comum 519 520. O
arcipreste (archipresbytero) ou primeiro presbítero velava pelo exercício do culto e
substituía o bispo nas funções sacerdotais521 522. Existiam outros ofícios, dignidades
e primazias capitulares (ou canónicas, canonicatos), instituídas pelo direito particular,
escrito ou costumeiro de cada diocese 523: tesoureiro, custódio, sacristão, primiceiro,
chantre, preposto, mestre-escola, prior524 e simples conezias525.
§ 442. O colégio dos cónegos formava o cabido (ou capítulo) com importantes
funções na vida da diocese. Estando esta provida de bispo (sede plena), competia ao
cabido aconselhar e auxiliar o bispo nos assuntos árduos da diocese,
nomeadamente relativos a benefícios526. Para além disso, e como competência

516 Cf. lista das congregações de cónegos regulares em Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit.,

c.1, n. 25 ss. Já os cónegos regulares de Santo Agostinho tinham uma regra mais permissiva: podiam
possuir em administração os bens necessários ao seu sustento e a obras pias, embora esta posse fosse
precária, pelo que lhes podiam ser a todo o tempo retirados pelo superior (v. ibid. n. 19).
517 Cf. Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 1, n. 46.

518 Decr. Greg. IX, 1, 23; Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 5; Bernardino Carneiro,

Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 398.


519 Cf. Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. v. n. 36 ss.

520 O deão (decanus) era o cónego que presidia ao capítulo, normalmente o mais velho. Não se

tratava de um ofício ou dignidade, pois não tinha jurisdição; mas apenas de uma primazia (Agostinho
Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 7.
521 Decr. Greg. IX, 1, 24; Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 6; Carneiro 1896, 182.

522 Os arciprestes urbanos exerciam nas catedrais e os rurais (forâneos ou vigários da vara) tutelavam

um grupo de paróquias.
523 Para estes cargos, v. Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., 8 ss.

524 Os priores podem ser regulares e seculares e estes colegiais ou rurais. Os últimos equivaliam a

párocos com lugar no cabido.


525 Conezia (canonia) era o direito a lugar no coro e capítulo, tendo, em princípio, anexo o direito

a receber prebendas e porções diárias (sobre estas, Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 21).
Prebenda (ou porção), por sua vez, era o direito a receber certos proventos das rendas da igreja de que
se fosse prebendário (ou porcionário), tendo em vista o sustento próprio. Em sentido genérico,
prebenda equivalia a qualquer direito a receber rendas da Igreja em razão de um ofício eclesiástico. Em
sentido próprio, significava o rendimento anexo a uma conezia. A palavra aplicava-se ainda à perceção
de rendas da Igreja; independente do exercício de qualquer ofício eclesiástico, em retribuição de uma
função meramente temporal; neste sentido, podiam ser concedidas a leigos e por estes livremente
vendidas, sem perigo de simonia (Agostinho Barbosa, De canonicis [...], cit., c. 12).
526 Decr Greg. IX, 2, 10, 4; Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 164.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

própria, administrava os bens próprios do cabido. Estando a sé vaga (sede vacante), o


cabido exercia o poder episcopal, a título de administrador do bispado, designando
um vigário capitular527. Ao lado dos cabidos, como colégios de cónegos 528, criaram-
se ainda as colegiadas, presididas por um preposto (ou prior), que agrupavam os
cónegos que não pudessem ter lugar no cabido catedralício529.
2.4.4.5.3 Párocos
§ 443. O pároco constituía o mais comum dos ofícios da Igreja. A sua função
fora definida por Cristo como a de “apascentar as suas ovelhas”, tarefa que os
comentadores subdividiam em apascentar pela palavra, pelo exemplo e pela oração,
e que o concílio de Trento concretizara da seguinte forma: “... vigiar as Suas
ovelhas, oferecer sacrifícios por elas, apascentá-las [=alimentá-las] pela pregação da
palavra divina, pela administração dos sacramentos e pelo bom exemplo em todas
as obras; cuidar dos pobres e outras pessoas miseráveis com cuidado paterno e
incumbir-se das restantes tarefas pastorais” (sess. 23, can. 1).
§ 444. Vigiar os fiéis consistia no seu conhecimento (no seu registo)530 e no
permanente cuidado em os defender dos maus costumes e em promover neles os
bons531. Do dever de oferecer sacrifícios, salienta-se a celebração quotidiana do
sacrifício da Missa (ibid. cap. 3 e lib. 4); mas ainda orações, jejuns e outros
sacrifícios pelo bem do seu povo. Do dever de pregação faz parte o anúncio solene
da palavra de Deus pelo sermão, o ensino (aos domingos e dias santos) da doutrina
da fé compendiada no catecismo, ou, pelo menos dos seus rudimentos 532. A
administração dos sacramentos constituía a tarefa mais elevada do múnus
paroquial, pois era pelos sacramentos que o pároco prepara os fiéis para receberem
a graça divina533 534 e, logo, para a salvação. Devia ainda dar o exemplo 535 na

527 Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 165.


528 Nos tempos primitivos, os cabidos elegiam o novo bispo; na Época Moderna, essa nomeação
é papal, mediante prévia apresentação do rei; mesmo os vigários capitulares deviam ser “insinuados”
pelo rei; cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 167 s.
529 Foram muito abundantes, tendo sido extintas em 1846, com exceção das mais importantes

(lista em Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico […], cit., 179).


530 Os párocos tinham que manter livros de registo dos batizados, dos casamentos e dos óbitos

(Conc. Trento, sess. 24, cans. 1 e 2; dados que deviam constar e fórmulas, Agostinho Barbosa, De
officio, et potestate parochi […], cit., 1, cap. 7, ns. 1-10), além do registo das confirmações (ou crismas)
(ibid. n. 16); podiam ainda organizar outros registos atinentes à vida da paróquia.
531 Cf. Sebastião de Abreu, Institutio parochi […], cit..

532 Símbolo dos apóstolos [Credo], dez mandamentos, padre-nosso, artigos da fé sobre o batismo,

a eucaristia e a penitência (Conc. Trento, sess. 24, c. 4 e sess. 5, cap. 2; Sebastião de Abreu, lnstitutio
parochi [...], cit., liv. 2, caps. 4 e 5 e liv. 5).
533 Note-se como, nesta formulação “pós-tridentina”, a função sacramental dos párocos
condiciona a “receção da graça”. Entre os sacramentos destacava-se o da penitência, pelo qual o pároco
adquiria o poder de ligar e desligar em relação à Igreja. Sobre a função sacramental, v. Sebastião de
Abreu, lnstitutio parochi [...], cit., liv. 2, c. 7 e liv. 9.
534 Os sacramentos administrados pelo pároco são o batismo, a penitência, a eucaristia e a

extrema-unção. O matrimónio é administrado pelos próprios nubentes e a confirmação (ou crisma) e a


ordem pelos bispos.
535 Sebastião de Abreu, lnstitutio parochi [...], cit., liv. 2, c. 8 a 10, liv. 6. Aos párocos estava

especialmente proibido o convívio em tabernas, a embriaguez, uma pose descomposta (grandes risadas,
altas vozes, correrias, vestes imodestas ou sujas), o teatro, as touradas, os jogos (salvo o xadrez), a
caça, a pesca, o comércio ou agricultura profissionais, o porte de armas, Agostinho Barbosa, De officio,
et potestate parochi […], cit., 1, c. 6.

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conversação (abstendo-se de conversas torpes, maledicentes e desonestas) e nos


costumes (cultivando as virtudes, nomeadamente, a castidade, a temperança e a
caridade), bem como demonstrando um contínuo amor e zelo pelo bem-estar dos
fregueses a seu cargo. Este conjunto de funções dirigidas ao foro interno (cura
penitencial) distingue-se das funções disciplinares exteriores ou contenciosas dos
bispos (visitação, excomunhão, imposição de penas canónicas).
§ 445. O âmbito de exercício das funções do pároco era a paróquia ou
freguesia (de fregueses = filii ecclesiae, filhos da igreja), definida por limites territoriais
ou pessoais536. Nas paróquias grandes, ao pároco podiam ser designados ajudantes
ou coadjutores, também designados simples curas, cujo múnus pode ser limitado a
uma certa circunscrição territorial (curado)537 538.
§ 446. A cura de almas era um benefício, ou seja uma função a que estava anexo
o direito de perceber certas rendas. Neste caso, as rendas provinham de ofertas dos
fiéis (oblatas, ofertas) destinavam-se à manutenção do culto e ao sustento “côngruo”
do pároco (daí “côngrua”; como parte das rendas destinadas ao sustento do
pároco). Entendia-se que as ofertas eram feitas a Deus 539 obrigatórias apenas no
plano da consciência540.
§ 447. O conteúdo, designação, quantidade e periodicidade das rendas
decorriam do direito costumeiro das paróquias, embora existissem normas sobre
elas no direito canónico geral 541.
§ 448. A primeira categoria de rendas dos párocos eram as dos bens
adquiridos pela Igreja ou por contrato ou por deixas testamentárias (legados pios [v.

536 A paróquia podia consistir, v.g. em certas famílias ou numa comunidade. Sempre que o âmbito

dos fregueses fosse uma comunidade definida em razão da natureza das pessoas (e não do território), o
pároco tomava a designação de capelão (era o que acontecia com os encarregados de, v. g. monges, da
corte, de militares, etc.).
537 Com o tempo, muitos curados transformaram-se em novas paróquias, adquirindo o seu cura

funções paroquiais autónomas e não apenas delegadas.


538 Na linguagem vulgar, “cura” designava, em algumas zonas, o pároco. Noutras, era designado

por abade ou prior. Originariamente, o abade era o superior ou prelado de certas congregações
religiosas regulares (S. Bento, S. Bernardo, S. Basílio). E o prior era, em geral, a pessoa eclesiástica
dotada de preeminência. O termo era usado: (i) para designar uma dignidade do cabido; (ii) o primeiro
prelado de certas comunidades monásticas (v. g. conventos dominicanos, agostinhos, carmelitas,
jerónimos); (iii) noutras comunidades (beneditinos, monges de S. Bernardo), o segundo prelado,
depois do abade, frequentemente encarregado da direção de uma comunidade subordinada à casa
principal ou abadia); (iv) o superior das ordens militares.
539 O pároco era, portanto, apenas o seu administrador ordinário, devendo afetá-las, salvo

intenção em contrário do ofertante (v. g. para os cativos, para um oratório, confraria ou capela), às
despesas inerentes à cura de almas (cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos
ecclesiasticos [...], cit., ps. 164 ss.).
540 Os dízimos ó eram obrigatórios no plano do direito (canónico): (i) quando se deviam a título de

censo ou de outro contrato; (ii) quando se deviam por testamento ou legado; (iii) quando os ministros da
Igreja carecessem de côngruo sustento, caso em que os paroquianos podem ser compelidos a pagá-los
sob pena de excomunhão; (iv) quando estivessem introduzidos por costume de, pelo menos, dez anos
(Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 24, n. 23 ss.).
541 Cf. Barbosa, Agostinho Barbosa, De officio, et potestate parochi […], cit., loc. cit.; e Manuel de

Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., (que podem servir de guias
para o estudo mais aprofundado deste tema); ou Manuel de Almeida e Sousa (de Lobão), Tratado prático
compendiario das pensões eclesiasticas […], cit..

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

g. “terças dos mortos”], deixas pro anima [mortulhas, lutuosas, aniversários])542.


§ 449. A segunda categoria era a dos dízimos. Os dízimos ou décimas
eclesiásticas consistiam na retribuição, institucionalizada pelos poderes eclesiástico e
temporal desde o séc. VIII543 oferecida pelos crentes aos ministros que
administravam os sacramentos. Consistiam na décima parte dos frutos, tanto da
terra e de casas (decimas prediais), como da indústria humana, quer simples (v. g.
rendas do trabalho, décimas pessoais), quer combinada com a natureza (v. g.
produção de rebanhos, décimas mistas)544. Tratava-se, assim, de um tributo de
incidência muito geral; pagavam-se - na enumeração de um autor da época545 - de
todos os frutos de prédios ou de indústria humana: de trigo e grão, palha, vinho,
favas e outros legumes, nozes, amêndoas e castanhas, azeite, açúcar, peixes, abelhas,
mel, cera, leite, lã, caça, pastos, lenha, feno, linho e cânhamo; de negócio e artifício,
soldos militares, salários de advogados e procuradores, minas, moinhos, herança,
legado ou doação, rendas da indústria ou trabalho 546.
§ 450. A taxa era de um por dez, sem dedução das despesas, pelo menos nas
prediais547. Eram devidas548 por todos os paroquianos (ainda que eclesiásticos),
salvo costume ou privilégio papal549. O seu titular era o pároco550; embora, desde
uma célebre capitular de Carlos Magno, se tivesse estabelecido a regra de dividir o
produto das décimas em quatro partes, uma para os pobres, outra para a fábrica da
Igreja, outra para o pároco e outra para o bispo. Esta repartição variou com os

542 Ou seja, bens deixados para missas por alma de alguém (João Baptista Fragoso, Regimen [...],

cit., pt. 2, 10, disp. 24, n. 3). Note-se, porém, que estas aquisições estavam interditas pelas Ordenações
(Ord. fil.2, 18), que proibiam qualquer aquisição de bens por contrato e obrigavam a Igreja e pessoas
eclesiásticas a vender no prazo de ano e dia os bens adquiridos por qualquer outro título (cf. Francisco
C. S. Sampaio, Prelecções […], 2, 18, ps. 64 ss.). Esta norma foi, porém, pouco praticada; daí a reação
que suscitou a ameaça de a executar à risca, feita, como medida de chantagem sobre a Igreja, durante o
valimento de Olivares. Era, por exemplo, frequente que a Igreja recebesse bens em domínio pleno e
apenas alienasse, por meio de contratos de enfiteuse, o domínio útil, mantendo, portanto, as rendas.
Note-se ainda como a aplicação desta lei, que obrigava à venda dos bens de raiz adquiridos e proibia a
aquisição de outros bens imóveis com o produto da venda, produziria enormes quantidades de dinheiro
líquido nas mãos das entidades eclesiásticas; o que explica a sua propensão, quer para despesas
sumptuárias ou de consumo (também caritativas), quer para a colocação do dinheiro em padrões de juro
(embora a distinção, para este efeito, entre juros e outras rendas periódicas, fosse pouco nítida na
doutrina; decisivo era o critério da ligação da renda a algum bem imóvel).
543 Sobre a história das décimas, Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os

dízimos ecclesiasticos [...], cit., 86 ss. maxime, 96. Fontes de direito canónico, Decretais, 3, 30 (De decimis,
primitiis et oblationibus ).
544 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi […], 1, c. 28, § 1, n. 9.

545 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi […], 1, c. 28, § 1, n. 1 ss.

546 Pelo rigor do direito, eram devidas mesmo de atividades ilícitas e torpes, como o meretrício ou

as comédias, embora não estivesse em uso cobrá-las. Já os lucros usurários eram sujeitos a décima
(Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 28, § 1, 31-33).
547 Decretais, 3, 30, 7; 22; 26; 28. Discutindo a questão, Agostinho Barbosa, De officio, et potestate

episcopi [...], cit., ibid. ns. 35-37; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos
ecclesiasticos [...], cit., 32 ss. O princípio da tributação do rendimento líquido é adotado, em Portugal,
pelas décimas civis; nos finais do Antigo Regime, há quem pretende estendê-lo aos tributos forais e
mesmo aos cânones enfitêuticos e censíticos.
548 As Decretais (3, 30, 14) dizem que elas constituem um quasi debitum exigível em juízo.

549 Era o caso dos cistercienses, templários e hospitalários, dominicanos, franciscanos, cartuxos,

clarissas, etc. quanto às terras que cultivassem pelas próprias mãos (mas já não pelas que dessem de
arrendamento) (Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 28, § 2, n. 18 s.
550 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, c. 28, §2, n. 7 ss.

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costumes diocesanos; os bispos participavam em geral de uma parte das décimas


(quarta ou terça episcopal ou pontifical)551. Mas, sobretudo, as décimas andavam
geralmente doadas aos patronos das igrejas: sés, mosteiros, ordens militares e
mesmo leigos552.
§ 451. Finalmente, constituía receita dos párocos uma série variável de ofertas
feitas pelos fiéis em certas épocas festivas, por ocasião (e em retribuição) da
administração de certos sacramentos ou na altura dos ofícios fúnebres e funerais.
Eram as oblationes, oblatas (ou obradas) ou benesses553.
§ 452. Estas ofertas estavam na tradição da Igreja como forma de participação
das comunidades no sustento do culto 554. Mas, instituídos os dízimos, a sua
necessidade e legitimidade começou a ser discutida. Quanto à necessidade, ela teria
deixado de existir, pois os dízimos poderiam assegurar a côngrua dos párocos.
Quanto à legitimidade, argumentava-se que as funções sagradas não podiam ser
vendidas, sob pena de simonia.
§ 453. Para além disso, discutia-se a questão central de saber se tais ofertas
eram meramente voluntárias ou se, pelo contrário, podiam ser exigidas. Na Época
Moderna, toda esta discussão se concretiza na interpretação de um texto das
decretais (5,3,42)555 que, embora as declarasse meramente voluntárias, condenava
aqueles que induziam os crentes a não seguirem o “louvável costume” de fazer
ofertas aos párocos “pelas exéquias dos mortos, pelas bênçãos, pelos casamentos e
coisas semelhantes”.
§ 454. Na interpretação comum dos decretalistas, este texto acabava por
estabelecer a obrigatoriedade e exigibilidade das ofertas usuais.
§ 455. O concílio de Trento, apesar de alguém ter proposto o restabelecimento
da doutrina primitiva do carácter livre das ofertas, não se pronunciou sobre este
delicadíssimo tema. A questão tornara-se, de resto, muito sensível. Na verdade,
uma parte substancial dos dízimos estava geralmente apropriada por entidades,
eclesiásticas ou laicas, titulares do direito de padroado (ou de apresentação do
pároco), o que deixava o culto e os párocos sem os rendimentos suficientes. Estes
tentavam então forçar os paroquianos a ofertas específicas e suplementares para o
seu sustento (a título de funerais, aniversários, casamentos, batismos e outras
propinas pela administração dos sacramentos) 556. Daí que qualquer medida

551 Cf. Decretais. 3, 30, 13; para Portugal, Joaquim de Santa Rosa de Viterbo, Elucidário […], cit., s.

v. “Terças pontificais”.
552 As Decretais (3, 30, 15 e 17), proíbem a concessão de décimas a leigos. Mas esta proibição podia

ser contornada por privilégio papal (cf. Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., ibid. n.
50 ss.). Também se admitia a invocação de concessão ou prescrição anterior ao concílio de Latrão
(1139).
553 Sobre elas, v. por todos, Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., l, caps. 24

a 27; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit..
554 Estas prestações estabelecidas pelo costume são, por isso, chamadas usuais (quando tivessem

lugar em época certa) ou casuais (quando correspondessem a atos de culto sem ocorrência e momento
certos [incertus an, incertus quando]).
555 “Sobre a simonia e que ninguem exija ou prometa algo em troca de coisas espirituais” (epígrafe

do título 5, 3).
556 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., 94, 97.

Cf. ainda Frei Joaquim de Santa Rosa Viterbo, Elucidario [...], vs. “decimas”, “mortalhas”, “obradas”,

142
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

tendente a restringir abusos neste domínio fazia correr o risco de uma geral
insatisfação dos curas de almas. É isto que explica o silêncio do Concílio de Trento
sobre o assunto; que, no entanto, aí chegou a ser levantado 557.
§ 456. Em Portugal, a questão também foi conflitual. Não apenas entre os
fregueses que não se queriam ver constrangidos a ofertas usuais (muito menos, a
ofertas não usuais), mas também entre os párocos e os dizimeiros, a propósito da
garantia de uma côngrua paroquial mínima ou da pretensão dos dizimeiros de se
apropriarem também do rendimento das oblatas. Assim, em relação às igrejas e
capelas que fossem comendas das ordens militares, o Papa Paulo IV obrigou, em
1555, os dizimeiros a garantirem aos párocos uma côngrua de 100 cruzados,
sempre que estes não os obtivesse pelas oblatas da Igreja558. E a resolução régia de
18.7.1560 ratificou uma composição entre a Ordem de Cristo e párocos das suas
novas comendas, reservando para estes últimos as oblatas usuais (“ofertas de mão
beijada”, outras ofertas por ocasião do ofertório da Missa, bem como a
administração dos sacramentos e da encomendação dos finados) 559. Indiretamente,
a questão também interessava à coroa. Por um lado, porque ao rei incumbia a régia
proteção dos seus vassalos contra as exações da Igreja; depois porque, em certos
casos, as ofertas eclesiásticas eram conflituais com interesses específicos cuja tutela
competia à coroa560; finalmente, porque a fiscalidade eclesiástica concorria com a
fiscalidade real (nomeadamente, com as décimas militares). Além de que, tal como a
carga fiscal senhorial, a eclesiástica era mal vista pelo pensamento fisiocrático,
dominante nos finais do século XVIII e hostil a todos os ónus sobre a
agricultura561.
§ 457. A panóplia das oblatas era muito vasta, dependendo dos usos locais. As
mais importantes eram as ofertas funerárias, umas relacionadas com os ofícios
fúnebres e funeral, outras com missas de sufrágio e aniversários. À primeira
categoria pertencia a lutuosa562, direito do pároco à melhor peça de roupa ou vaso de
metal precioso, à sua escolha, por morte de um paroquiano 563. E ainda a porção

“obladas”, “tenças pontifícias”, etc.


557 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., pg. 114.

558 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos e
oblações pias, pg. 121
559 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos e oblações pias, pg.

123; José Anastácio de Figueiredo, Synopsis […], cit., 2, 73. Cf. também Manuel de Almeida e Sousa
(Lobão), (Terceira) Conferência sobre as oblatas […] e a expontaneidade dos seus offerentes, cit..
560 É o caso das ofertas funerárias, que prejudicavam quer os órfãos (cujos interesses eram

tutelados pela coroa, através dos juízes dos órfãos e provedores), quer os cativos (que beneficiavam
tanto de deixas expressas como de heranças para que não houvesse herdeiros [“resíduos”] e cujos
interesses eram defendidos pelos mamposteiros dos cativos).
561 Nos finais do século XVIII, verifica-se um movimento de paróquias das dioceses de Braga e

Porto no sentido de os fiéis não poderem ser constrangidos a pagar as oblatas. A questão chega à Rainha
que, num decreto em que aflora claramente uma política de proteção dos paroquianos contra as exações
eclesiásticas, manda que se faça silêncio sobre a questão, enquanto não se tomassem medidas
definitivas, cujo estudo encomenda ao Arcebispo de Braga (dec. 30.7.1790, Manuel de Almeida e Sousa
(Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., 129.
562 Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., 1, cap. 24, n. 32.

563 Segundo Lobão (Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...],

cit., 124), uma lei de 1515 fixou a funerária numa certa quota da terça (ou quota disponível, de que o de
cujus pode livremente dispor), lei que teria sido revogada em 1640, tendo subsistido os costumes locais
sobre os ofícios devidos e o seu custo, consoante a qualidade do falecido. O poder temporal tentou

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canónica ou funerária (canonica portio), correspondente às despesas funerárias (com


velas, paramentos e adornos, jantares dos oficiantes e coadjutores) 564, paga em
jantares ou vitualhas, cera, lamparinas, vinho, hóstias, lenha, pão, milho, carneiros,
etc.. À segunda categoria pertenciam as dádivas para missas de sufrágio e para
aniversários.
§ 458. Das oblatas faziam ainda parte as deixas para obras pias, recolhidas nas
arcas paroquiais “das pias”. Também aqui se verificou uma evolução (que
encontramos concluída na Idade Moderna) no sentido de transformar as ofertas em
obrigações dos fiéis e de as fixar numa quota da herança. Assim, no século XVI,
estava estabelecido o uso de distribuir em obras pias as terças dos que faleciam sem
testamento, uso a que foi posto termo por um assento de 1567 565.
§ 459. Além destas, muitas outras ofertas existiam (usuais, casuais dos párocos),
algumas delas residuais dos antigos dízimos pessoais, abolidos ainda na Idade
Média, outras pura e simplesmente fundadas nos costumes diocesanos ou
paroquiais. Era o caso, entre outras, dos mortuários, matrimónios, conhecenças, as aleluias,
loas de Natal, ofertas de Sexta Feira Santa, do dia dos fiéis, etc.566.
2.4.4.5.4 Abades
§ 460. Um último ofício eclesiástico é o de abade, superior de uma
comunidade de monges. A palavra “abade” significa pai, o que logo nos remete
para o imaginário político que estruturava as relações dentro destas comunidades -
o da família567. De facto, embora os abades dispusessem de poderes jurisdicionais
sobre os seus monges (moniales, regulares)568, as relações entre uns e outros, bem
como o estatuto destes últimos em relação à casa, adequava-se perfeitamente ao
modelo das relações intrafamiliares (v. cap. 3.2.4). Assim, os prelados e superiores
dos regulares tinham sobre eles toda a jurisdição espiritual e temporal, aplicando-
lhes penas espirituais (excomunhão e outras privações), temporais (jejum,
abstinência, prisão), “havendo-se como pais”569. Isto é ainda mais nítido nas
comunidades femininas, pois aqui a abadessa - sendo mulher e, logo, incapaz de
deter funções de governo político (i.e. funções jurisdicionais) só dispunha de
poderes domésticos, do mesmo tipo dos que a mãe de família dispunha em relação
às filhas e criadas570. Mas, em geral, os monges eram como filhos do abade: deviam-

restringir as exações eclesiásticas. Uma provisão de 1712, dirigida aos provedores, proibiu que se
forçassem os herdeiros a pagar sufrágios e obras pias não estabelecidas pelos defuntos. E uma lei de
25.6.1766, fixou as despesas com sufrágios e funerárias numa quantia “racionável, e conforme ao
direito” (Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., 126 ss.).
564 Das despesas funerárias, uma parte era obrigatoriamente para o pároco, a título de retribuição

do seu trabalho: era a “quarta funerária”, por se ter fixado o seu montante numa quota parte das
despesas funerárias e em obras pias (Agostinho Barbosa, De officio, et potestate episcopi [...], cit., c. 25).
565 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., 124.

566 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Dissertações sobre os dízimos ecclesiasticos [...], cit., pg. 154.

567 Do mesmo modo, o convento era também designado por “casa”. As abadessas eram tratadas

por “mãe” (ou “madre”).


568 A sua jurisdição sobre os monges é semelhante à dos bispos nas respetivas dioceses (João

Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 2, lib. 2, disp. 24, n. 1).


569 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], 1, pg. 299.

570 É a lição de S. Tomás: “foemina non potest habere aliquam jurisdictionem spiritualem [...] non

habent clavem ordinis, aut jurisdictionis”; (as mulheres não podem ter qualquer jurisdição espiritual [...]

144
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

lhe obediência571; podiam ser por ele julgados sem a observância de processo (sem
“figura de juízo”); podiam ser castigados e metidos em cárcere572. No domínio
patrimonial, esta semelhança com os filhos-família era enorme (v. cap. 3.2.4). Na
verdade, os monges, tal como os filhos, nem tinham, em princípio, património
próprio, nem gozavam de capacidade jurídica patrimonial. A sua entrada na vida
religiosa era marcada por um contrato de dote - semelhante ao das filhas que, pelo
casamento, entravam noutra família -, em que, além da outorga do dote, o pai
renunciava ao filho573. A partir da sua entrada em religião, o monge morria para o
mundo e tornava-se incapaz de domínio e posse: adquiria para o convento de que
se considerava filho, tal como os filhos adquiriam para o pater; os seus contratos
eram nulos; não podia testar; carecia de capacidade sucessória passiva, mesmo ab
intestato574. Ainda como os filhos, podiam-lhe ser concedidos pelo superior, a título
precário, alguns bens (“pecúlio”, tal como nos bens de que os filhos tinham a
administração, v. cap. 3.2.4) para fins lícitos e honestos575.
§ 461. A entrada em religião era um ato livre, precedida por um noviciado (de
um ano) (conc. Trento, sess. 24, caps. 15/16) e pela tomada de votos. Os votos
eram o de pobreza, castidade, obediência e estabilidade na vida devota 576. O voto
de pobreza implicava a renúncia à propriedade pessoal, comunicando-se todos os
bens próprios, catuais ou futuros, à congregação, sendo administrados pelo
superior da congregação, auxiliado por administradores ou por ecónomos (cf.
provis. 7.11.1790)577 578. A castidade implicava a abstenção, não apenas de todas as
formas de prazer sexual, mas ainda do matrimónio. A estabilidade na vida devota
implicava a proibição, não apenas de reverter ao estado laical, mas ainda de
abandonar a ordem (apostasia, punida no foro eclesiástico, com cárcere; v. § 2262).

pois não têm a chave da ordem ou da jurisdição); no mesmo sentido, diz João Baptista Fragoso que a
abadessa só tem o governo doméstico e que monjas que lhe desobedeçam pecam da mesmo forma que
as filhas. Por carecerem de jurisdição, as abadessas não podiam benzer nem pregar. Todavia, os bispos
ou provinciais podem cometer às abadessas, em caso de urgente necessidade, poderes de impor
preceitos sob penas espirituais (João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 2, disp. 24, § 6, n.
9).
571 Obrigações dos regulares: João Baptista Fragoso, Regimen [...], pt. 2, liv. 2, disp. 24, § 9.

572 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], ibid. cit., n. 5

573 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], 1, 306 ss..

574 O direito comum admitia que os monges herdassem para o convento; uma lei de 17.7.1769, de

sentido desamortizador, priva, no entanto, os monges de capacidade hereditária passiva (Manuel


Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], 1, 315).
575 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., liv. 2, disp. 24, n. 150. concílio de Trento tinha

proibido os pecúlios monásticos, por serem fonte de abusos (sess. 25, cap. 39, §§ 4/5); mas a prática
subsequente voltou a admiti-los.
576 Para alguns monges existe um quarto voto: de defesa da religião com armas (ordens militares),

de redenção dos cativos (ordem da Santíssima Trindade), de obediência devota ao papa (jesuítas), cf.
Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], cit., 1, 292.
577 Só na sua alienação ou hipoteca deviam intervir os capítulos, aos quais competia, de resto,

auxiliar o superior na resolução dos negócios árduos, cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal
[…], cit., 1, 292. As congregações, em contrapartida, podem possuir bens, com as restrições já
referidas para a aquisição de bens por entidades eclesiásticas; algumas ordens mais rigoristas (v.g.
capuchinhos) não podiam possuir quaisquer bens (cf. conc. Trento, sess. 25, cap. 3).
578 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], cit., 1, 300; João Baptista Fragoso,

Regimen [...], cit., liv. 2, disp. 24, § 4/5.

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2.4.5 Outras jurisdições corporativas (conservatórias).


§ 462. Na sociedade de ordens de Antigo Regime, os privilégios pessoais eram
inúmeros, estabelecendo foros especiais para certos estados. Na prática, era incerta
a sua lista, sendo também incerta a sua ordem hierárquica. Isto era uma das causas
da confusão jurisdicional, contra a qual, no séc. XVIII, reagem os juristas
iluministas. Em Portugal, Pascoal de Melo escreve: “[…] segundo eu posso
entender, nada mais funesto se pode conceber para a República que este
privilégio do foro, pois, além de as demandas se tornarem imortais, difíceis e
complicadas, por se costumarem pôr infinitas dúvidas sobre a competência de
tal privilégio, que coisa há, pergunto, mais alheia às razões da justiça e
humanidade do que fazer vir de longe à Corte, os agricultores, artífices, etc.? E
sobretudo a requerimento dos mais poderosos que aí moram, e aí desfrutam de
muita autoridade e abundam em muitas riquezas?” 579.
§ 463. Voltaremos ainda a este assunto dos foros privilegiados (V. adiante §
1991)580.
2.5 O direito.
2.5.1 Entre teologia e direito.
§ 464. A tradição de textos teológicos e jurídicos acerca da classificação das
várias modalidades de direito, bem como a definição de cada uma delas era
complexa. O Digesto (e as Institutiones) continham alguns textos muito conhecidos
sobre as diversas naturezas dos preceitos jurídicos – nomeadamente, o direito
natural, o direito das gentes e o direito civil581. Estes textos, combinados com

579 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 4, 7, 32.


580 Além das conservatórias das Nações Estrangeiras, havia jurisdições próprias para a Casa da
Índia e da Mina, a Misericórdia de Lisboa, o Hospital de Todos os Santos, a Universidade de Coimbra,
etc. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 1, 2, 10. Outros tribunais, juntas e repartições,
José Manuel Subtil, ”Governo e administração” […], cit., 258, n. 261; fontes legislativas podem ser
encontradas, sob cada nome, em Manuel Fernandes Thomaz, Repertorio […], cit..
581 Os mais importantes eram:. D.1, 1, 1, 3. “Ulpianus libro primo institutionum. Ius naturale est,

quod natura omnia animalia docuit: nam ius istud non humani generis proprium, sed omnium
animalium, quae in terra, quae in mari nascuntur, avium quoque commune est. Hinc descendit maris
atque feminae coniunctio, quam nos matrimonium appellamus, hinc liberorum procreatio, hinc
educatio: videmus etenim cetera quoque animalia, feras etiam istius iuris peritia censeri. 4. Ius gentium
est, quo gentes humanae utuntur. Quod a naturali recedere facile intellegere licet, quia illud omnibus
animalibus, hoc solis hominibus inter se commune sit.”; D.1.1.2. “Pomponius libro singulari enchiridii.
Veluti erga deum religio: ut parentibus et patriae pareamus.”; D.1.1.3. “Florentinus libro primo
institutionum. Ut vim atque iniuriam propulsemus: nam iure hoc evenit, ut quod quisque ob tutelam
corporis sui fecerit, iure fecisse existimetur, et cum inter nos cognationem quandam natura constituit,
consequens est hominem homini insidiari nefas esse.”; D.1.1.4. “Ulpianus libro primo institutionum.
Manumissiones quoque iuris gentium sunt. Est autem manumissio de manu missio, id est datio
libertatis: nam quamdiu quis in servitute est, manui et potestati suppositus est, manumissus liberatur
potestate. Quae res a iure gentium originem sumpsit, utpote cum iure naturali omnes liberi nascerentur
nec esset nota manumissio, cum servitus esset incognita: sed posteaquam iure gentium servitus invasit,
secutum est beneficium manumissionis. Et cum uno naturali nomine homines appellaremur, iure
gentium tria genera esse coeperunt: liberi et his contrarium servi et tertium genus liberti, id est hi qui
desierant esse servi.”; 1.1.5. “Hermogenianus libro primo iuris epitomarum. Ex hoc iure gentium
introducta bella, discretae gentes, regna condita, dominia distincta, agris termini positi, aedificia
collocata, commercium, emptiones venditiones, locationes conductiones, obligationes institutae:
exceptis quibusdam quae iure civili introductae sunt.”; 1.1.6. “Ulpianus libro primo institutionum. pr. Ius
civile est, quod neque in totum a naturali vel gentium recedit nec per omnia ei servit: itaque cum aliquid

146
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

leituras de filósofos gregos, nomeadamente Aristóteles, e também com filósofos e


retóricos romanos (nomeadamente, os estoicos e Cícero, este mais próximo dos
juristas), foram recebidos por autores cristãos que influenciaram muito o
pensamento jurídico e político medieval (nomeadamente, Isidoro de Sevilha 582) e
estavam transcritos nos Corpus iuris canonici583. Uma das preocupações dos juristas e
teólogos que escrevem sobre o assunto na primeira época moderna é justamente a
de compatibilizar entre si as peças desta tradição textual, harmonizando-a também
com referências a um outro universo textual, o da Bíblia e dos Evangelhos.
§ 465. Esta necessidade de construção de uma classificação consistente era
tanto mais importante quanto das definições que aqui se adotassem decorriam as
soluções para alguns problemas políticos e sociais de primeira importância, como o
do poder temporal da Igreja, nomeadamente do Papa, o da possibilidade de
derrogar (modificar ou dispensar casuisticamente a sua vigência) o direito natural
pelas leis humanas, o da legitimidade da conquista de povos novamente
encontrados, o da bondade (ou mesmo licitude) de instituições de primeira
importância no mundo de então, como a propriedade privada ou a escravatura, o
da fonte da validade dos contratos e, portanto, da possibilidade de os modelar
livremente de acordo com a vontade das partes. Por isso, esta questão foi central na
discussão de teólogos e juristas em torno de problemas políticos muito concretos
dos sécs. XVI e XVII, altura em que se verificavam deslocações importantes do
pensamento político mais tradicional, quer por causa da emergência das
monarquias, quer em virtude dos novos contactos com povos até então
desconhecidos e, por isso, não classificados nos esquemas intelectuais vigentes.
Nem sempre destas proposições muito gerais acerca das várias formas de
manifestação do direito surgiam normas claras e operativas que se pudessem aplicar
a situações concretas. Mas, pela sua generalidade, as definições e os princípios a que
se chegasse neste assunto forneciam argumentos para uma imensidade de questões
jurídicas decisivas. Não se tratará aqui detalhadamente desse rico e matizado
movimento de recomposição das categorias primeiras do direito584. Apenas se
evocarão alguns tópicos dogmáticos que ocorrem na argumentação de soluções
jurídicas concretas. Na ulterior exposição tomaremos como base a lição de alguns
teólogos influentes no contexto ibérico585, de preferência os mais atentos à
realidade jurídica portuguesa. Entre eles preferimos frequentemente Luís de Molina
(1535-1600), um tomista original e atento à sua época, professor, durante largos
anos em Coimbra e em Évora, sondando também o impacto das doutrinas dos
teólogos entre os juristas, nomeadamente a propósito das aplicações concretas 586.

addimus vel detrahimus iuri communi, ius proprium, id est civile efficimus. […].”; D.1.1.7. “Papinianus
libro secundo definitionum. pr. Ius autem civile est, quod ex legibus, plebis scitis, senatus consultis,
decretis principum, auctoritate prudentium venit”.
582 Cf. Etimologias, liv. 5, 2-4 (http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/
Isidore/home.html ou http://penelope.uchicago.edu/Thayer/L/Roman/Texts/Isidore/5*.html#1 -
original; http://ebookbrowsee.net/is/isidoro-de-sevilha-etimologias#.U14ok_ldWY4, traduc. port.;
28.4.2014).
583 Maxime, Decretum, pt. 1, dist. 1, c. 1. A principal fonte de Graciano é Isidoro de Sevilha,

Etymologiae, liv. Cf. 2-4.


584 Cf. Destacamos Michel Villey, La formation […], cit..

585 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, cit., 7.2.4 e 7.3.1.

586 Usa-se a sua principal obra neste domínio, o tratado De Iustitia et Iure (3 tomos, 1593-1600).

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§ 466. Para compatibilizar a versão teológica das esferas do direito com esses
textos que fundavam as leituras dos juristas, Luís de Molina 587 explicava que estes
estavam apenas preocupados com os preceitos jurídicos que visavam os aspetos
naturais do bem comum, não cuidando dos seus aspetos sobrenaturais. Por isso,
não consideravam as esferas do direito relativas às dimensões do bem que estavam
para além da natureza, tocando aos destinos sobrenaturais. Nomeadamente, não
consideravam aqueles preceitos do direito divino que não estivessem contidos na
ordem das coisas mundanas. E expunha, de seguida, as sistematizações dos
preceitos jurídicos quanto à sua natureza adotadas ou por teólogos ou por juristas.
2.5.2 O direito divino.
§ 467. Para os teólogos, pelo contrário, o direito tinha duas esferas
primordiais, a do direito natural e a do direito divino. O direito natural estaria
impresso por Deus na mente dos homens, de tal modo que estes poderiam
distinguir o bem do mal e conduzir-se em conformidade. Já o direito divino – que
por certo incluía o anterior, já que fora Deus o criador e ordenador da natureza –
incluía ainda preceitos estabelecidos por Deus, mas não inscritos na lei da natureza,
como os contidos no Antigo e Novo Testamento sobre deveres sobrenaturais dos
crentes, sobre cerimonial e outros (v.g. a instituição dos sacramentos). Por
contraposição ao direito divino natural, este último era o direito divino positivo.
Este direito divino positivo, fundado em preceitos diretos de Deus, tinha a mesma
natureza – voluntária, não natural – do direito criado pelos homens, para reger as
suas comunidades. Por isso, algum direito divino e todo o direito humano
distinguiam-se, pela sua natureza voluntária, do direito natural588.
§ 468. Dentro do direito humano, distinguia-se entre direito das gentes, direito
civil e direito canónico. O primeiro era comum a várias nações (embora não
necessariamente a todas).
§ 469. O direito civil era estabelecido em particular por uma comunidade
(república, cidade) para completar o seu regímen 589 e o direito canónico,
estabelecido pela Igreja para a sua disciplina interna 590. Se o direito das gentes não
carecia de uma especial positivação, por razões que se verão, já o direito civil e
canónico não existiam nem por natureza nem por um vago consenso, exigindo atos
de instituição ou positivação591.
§ 470. Para os juristas, que não cuidavam do direito visando fins sobrenaturais,
a referência ao direito divino positivo ou ao direito da Igreja era escusada, ficando-
se, frequentemente, pelas três categorias de direito natural, direito das gentes e

Para os livros 1 e 2, usados neste passo: http://books.google.pt/ books?id=IU5FAAAAcAAJ&printsec


=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad =0#v=onepage&q&f=false, 28.4.2014.
587 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., liv. 1, tract, 1, disp, 3, n. 3; disp. 4, ns. 1-3.

Para uma visão mais teológica do assunto, apoiando-se muito na lição de Tomás de Aquino, v.
Domingo de Soto, Tractatus de iustitia et de iure […], liv. 1, qu. 3 e ss..
588 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., Liv. 1, tract, 1, disp. 3, ns. 3 a 5.

589 Na verdade, as comunidades humanas também se regiam por preceitos de direito natural e por

preceitos de direito das gentes, pelo que o direito civil tinha a função de um complemento, justificado
pelas particulares condições de certa comunidade (lib. 1, tract. 1, disp. 3, n. 6).
590 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 3, n. 5.

591 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 3, n. 5, disp. 3, n. 6.

148
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

direito civil592.
Em todo o caso, a questão da eficácia do direito divino positivo –
nomeadamente do direito da Igreja (direito canónico) - era bastante relevante, em
termos práticos, pois a Igreja invocava as suas prerrogativas jurídicas contra o
poder temporal e os seus agentes.
§ 471. Na verdade, a Igreja reclamava o direito à sua liberdade, quer de auto-
organização, quer de desempenho do seu múnus pastoral, assim como se
considerava autorizada a coagir os príncipes cristãos a observar um mínimo das
regras de convivência cristã, impedindo, pelo menos, que as leis temporais
induzissem em pecado. Os casos de violação, pelos poderes temporais, destas
liberdades da Igreja estavam listados na bula In coena Domini (ou Bula da Ceia), que
era lida anualmente nas dioceses de todo o orbe católico, nos ofícios de Quinta-
Feira Santa593. De acordo com este documento, o Papa tinha o dever e o direito de
“defender a liberdade e jurisdição da Igreja contra todas as nações e gentes que se
desviassem (aberrare) do ovil de Cristo [...] de modo que aqueles que não se
coibissem por temor a Deus, fossem compelidos pela severidade da Igreja”,
podendo, para isso “derrogar os estatutos [i.e. direito temporal positivo] contra a
liberdade da Igreja, trazer a tribunal os que ocupassem a sua jurisdição e convencê-
los com remédios oportunos” 594. Na verdade, o múnus sobrenatural do Papa
permitir-lhe-ia revogar as “leis civis escritas e não escritas, que aprovassem os
crimes/pecados (scelera), mesmo apenas veniais, dos súbditos […] se os seus
autores, advertidos pelo Papa, não os quisessem revogar” (ibid. ns. 5 a 8), bem
como punir as violações aos preceitos da Bula 595 com a excomunhão perpétua (i.e.
subsistente, mesmo depois da morte do Papa que a proferira 596)597. Embora muito
controversa em todo o orbe católico e frequentemente proibida pelos poderes
temporais, a Bula da Ceia punha à disposição da Igreja um meio muito eficaz de
controle do poder temporal e de filtragem do direito civil – a excomunhão. Por
isso, constituía um reforço importante da eficácia do direito positivo divino
(nomeadamente, do direito canónico) em relação ao direito positivo temporal.
2.5.3 O direito natural e o direito positivo.
§ 472. Mais importante do que a arquitetura das distinções destes vários
direitos era a razão de ser delas, a qual se reportaria à natureza dos próprios
preceitos. Esta natureza implicava hierarquias e graus de indisponibilidade que se
iriam refletir em várias questões da dogmática das fontes de direito. Vale, por isso, a
pena detalhar algo mais a representação dos direitos e da sua força vinculativa que
está por detrás destas classificações

592 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 6.


593 Sobre a Bula da Ceia, v. para um panorama rápido, “In coena Domini”,
http://en.wikipedia.org/wiki/In_Coena_Domini, 5.5.2014, João Baptista Fragoso, Regimen […], cit.,
pt. 3, disp. 1 e ss.. A Bula da Ceia aparece nos finais do séc. XIV e mantém-se em vigor até 1770. Texto
(em português, 1597): http://almamater.uc.pt/referencias.asp?f=BGUCD&i=01000200&t=
BULA%20DA%20CEIA%20DE%20NOSSO%20SANCTISSIMO%20PADRE%20PAPA%20CLEM
ENTE%20VIII, 5.5.2014.
594 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., III, disp. 1, n. 5.

595 A Bula tipificava vinte casos de violação de violação das imunidades da Igreja. Cf. João Baptista

Fragoso, Regimen [...], cit., liv. 3, disp. 3 e ss..


596 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 3, disp. 3.

597 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 5.

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§ 473. O direito natural era o que vigorava em todo o lado, porque a sua
eficácia provinha da natureza e não do arbítrio de legisladores. Este direito
assentava, assim, numa prévia ordenação do mundo, na qual as coisas e situações
tinham uma valia impressa por Deus na natureza, por vezes positiva, por vezes
negativa. Daqui dependia serem proibidas ou, pelo contrário, serem impostas pelo
direito natural. Nestes termos, as coisas eram boas – como socorrer a extrema
pobreza - ou más – como mentir ou furtar -, antes de o direito positivo dispor
sobre elas598. O direito natural equivalia à vontade ordenadora de Deus, naquela
parte em que a razão natural dos homens a podia entender. Era neste sentido que
os teólogos tomistas falavam, a propósito deste direito e das suas relações com o
direito divino, numa “participação” do homem no seu conhecimento: o direito
natural era o direito divino, mas apenas na medida em que este era acessível à
intuição humana. Para lá desta, estavam os preceitos escondidos da ordem divina,
alguns dos quais tinham sido explicitados e tornados obrigatórios como comandos
expressos (e algo misteriosos) de Deus dirigidos aos crentes, nomeadamente nas
Sagradas Escrituras (direito divino positivo). O facto de o direito natural estar ao
alcance de todos por via exclusivamente racional tinha consequências importantes:
ele vigorava para todos – e não apenas para os crentes – e era conhecido por todos
que tivessem o uso da razão, de tal modo que o erro sobre ele não desculpava.
§ 474. Pelo contrário, o direito positivo surgia de um preceito (praeceptum) ou
ordem, tendo origem na vontade de quem o emitia. Como tinha como objeto
situações ou coisas que a natureza não regulara, o caráter bom ou mau dessas
situações decorria do próprio preceito. Por isso, se se podia dizer que o direito
natural traduzia um equilíbrio estabelecido (uma razão, ratio), o direito positivo
traduzia uma vontade (voluntas), a vontade do que o emitira - ou, de uma forma
mais mitigada, útil para resolver um caso intermédio, o do direito das gentes, como
se verá - a vontade de quem tacitamente se lhe tivesse acomodado (podendo não o
fazer). Assim, eram de direito positivo civil os prazos de prescrição ou os
processuais, as formalidades dos atos jurídicos; de direito positivo divino, o jejum
da quaresma, o preceito da comunhão anual, etc.599.
§ 475. A existência do direito positivo derivaria tanto do facto de nem tudo ter
sido regulado pela natureza, como de que as luzes que a mente humana teria para
conhecer a ordem do mundo eram limitadas e equívocas, carecendo de certificação
por um preceito suplementar, este de direito positivo, que esclarecesse e fixasse os
contornos obscuros do direito natural em certas situações. Sem esta determinação
suplementar, o regime das comunidades seria incompleto, incerto ou sujeito a erros.
Era, portanto, para remediar esta possibilidade de erro sobre o direito natural que
surgia o direito positivo, fixando autoritariamente um preceito que faltava ou estava
incerto no direito natural600.
§ 476. Questão mais complicada era a de saber se o direito positivo podia,
além de concretizar o direito natural, revogar, mudar ou dispensar em casos
concretos as disposições deste. A resposta comum era a de que isso era não
possível naqueles casos em que o preceito natural fosse forçoso ou inevitável, como

598 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 2.


599 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 3.
600 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, ns. 3 e 4.

150
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

aconteceria, por exemplo, com os preceitos de Decálogo (não por serem dados por
Deus aos homens, mas por corresponderem a normas naturais inevitáveis, ou seja,
indelevelmente impressas na consciência). Noutros casos, em contrapartida, a regra
natural podia deixar de obrigar. O exemplo era o do preceito natural de que as
coisas deviam ser restituídas ao seu dono por aquele que as tem precariamente
(como no depósito). Porém, podiam dar-se circunstâncias em que esse preceito não
devesse ser cumprido, como no caso da restituição de uma coisa ao seu dono,
estando ele louco ou possuído de furor tal que a própria coisa corresse o risco de se
perder601. Realmente, não se trataria de uma mudança do preceito, nem da sua
revogação ou da sua dispensa, mas da ocorrência de circunstâncias na situação
regulada (objectum praecepti) que excluíam a aplicação do preceito de direito natural
naquele caso, por faltar a razão natural para isso, ou até por surgir uma razão
natural para a não aplicação. Esta mutabilidade do direito natural por causa da
mutabilidade das circunstância explica porque é que o direito civil podia modificar
o direito natural, ao determinar a modificação das circunstâncias da situação que era
objeto de uma regulação natural602. Um exemplo era o da usucapião. Era proibida
pela regra de direito natural de que ninguém se podia apropriar de uma coisa de
outrem. No entanto, o príncipe teria o direito de tirar as coisas aos seus súbditos e
de as dar a outrem, quando isto fosse vantajoso para o bem da república. Daí poder
estabelecer circunstâncias perante as quais as coisas pudessem mudar de dono por
força da lei (da vontade do príncipe) quando isso fosse conveniente para a
tranquilidade e certeza do comércio jurídico e para o adequado cuidado de cada um
pelas suas coisas603. Outro exemplo era o da introdução (pelo direito das gentes) da
propriedade particular. Na verdade, Deus conservara as coisas em comum entre os
homens, por direito natural; mas não estabelecera que elas devessem ser comuns,
como também não proibira que se dividissem para melhor se administrarem e se
evitarem litígios entre os homens por causa do seu uso. Daí que, depois do Dilúvio,
os homens tenham, em quase todas as nações, dividido as coisas ou, pelo menos, se
tenham acomodado a essa divisão604. Também o estado de liberdade existiria por
natureza605, antes que os homens tivessem pecado. Tendo, porém, surgido o mal,
alguns homens tinham cometido atos ilícitos contra outros, tendo estes reagido pela
guerra justa dos outros contra eles. Nestas guerras, era de direito natural que o
vencedor matasse o vencido; mas também era um preceito da razão natural que
quem podia o mais, devia poder o menos. E, assim, ter-se-ia passado a permitir
entre muitas nações que os vencidos pudessem ser conservados (servare, servi), como
alternativa mais branda à sua morte606.
2.5.4 O direito positivo.
§ 477. O direito positivo divino tinha sido estabelecido ou por Deus
diretamente, ou pelos seus anjos e pelos seus profetas, em seu nome, ou por
aqueles a quem Deus tivesse dado o poder de estabelecer leis 607. Era este direito

601 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 5.


602 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 6.
603 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 7.
604 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 8.
605 D.1, 1 de iust. et de iure, 4 (l. manumissiones).

606 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 4, n. 9.


607 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 5, n. 1.

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que preceituava os jejuns, a observância dos dias santos, a não ordenação dos
bígamos.
§ 478. O direito positivo humano era constituído pelo direito das gentes e pelo
direito civil.

2.5.4.1 O direito das gentes.


§ 479. O direito das gentes era aquele que todas ou quase todas as nações
usavam. A sua relação com o direito natural era controvertida. Uns identificavam-
nos. Outros tentavam manter a distinção. A questão não era de somenos, nem do
ponto de vista teológico, nem do ponto de vista jurídico e político. Do ponto de
vista teórico, havia que explicar a razão de ser deste consenso alargado sobre certos
preceitos que, todavia, não eram universais e, por isso, pareciam não ser forçosos.
Isto de saber se o direito das gentes era estritamente obrigatório ou não era a
segunda questão – esta de natureza mais prática - acerca deste direito.
§ 480. Na verdade, sendo várias e importantes as instituições que os textos de
direito romano consideravam ser de direito das gentes, era muito importante saber
se tais instituições eram forçosas, como as de direito natural, ou se, pelo contrário,
podiam ser afastadas pela vontade dos homens. Domingo de Soto discute o
assunto608. Para ele, a diferença entre direito natural e direito das gentes não estava
tanto na origem dos preceitos de um e de outro, pois todas as esferas do direito
derivavam da lei que Deus tinha imposto ao mundo. Mas antes nos processos de
aceder a essa lei. Ao direito natural acedia-se intuitivamente, sem necessidade de
qualquer espécie de raciocínio e, por isso, sem qualquer possibilidade de dúvida ou
de erro. Isso explicava a sua difusão universal. Já o direito das gentes era uma
consequência do direito natural, mas por um processo de exame das situações e de
ilação dos preceitos a aplicar a partir dos princípios evidentes do direito natural. Por
outras palavras, não se tratava de preceitos impressos naturalmente na alma
humana, mas de ilações que a razão fazia a partir de princípios evidentes, por
processos de raciocínio, mais ou menos complicados, de que os seres humanos
eram capazes609. Diferentemente das soluções de direito natural, em que havia um
mecanismo infalível e universal de transmissão dos preceitos, no direito das gentes
o conteúdo dos preceitos obtinha-se por um caminho dedutivo menos garantido e,
por isso, menos universal. Este duplo processo de exame e de inferência podia ser
afetado por alguma ambiguidade ou erro. Daí que o reconhecimento desta esfera
menos óbvia do direito por Deus imposto à natureza já não era tão certa e universal
como a do direito natural. Soto dá exemplos destes processos de obtenção dos
preceitos por raciocínio. Por direito divino, a convivência humana devia ser tender
ao bem supremo, o que evidentemente implicava, no plano do direito natural, uma
vida comum pacífica e tranquila. Daqui era possível concluir – e muitas nações o
fizeram - que os bens deviam ser atribuídos individualmente, para evitar litígios. O

608 Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure […], cit., liv. 1, qu. 5, a.1 (corresponde a S.

Tomás, Summa, 1a.2ae, qu. 95I; também, 1a.2ae, 1, qu.5, a.3; e, sobretudo, 1a.2ae, qu.1, a.3).
609 Exemplo destes processos de dedução em Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure […],

cit., liv. 1, qu.5, a.3.

152
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mesmo tipo de ilação tinha lugar quando se deduzia do princípio natural de


respeitar a vida a instituição pelo direito das gentes da escravatura, como forma de
manter a vida dos vencidos em guerra; ou quando se estabelecia o respeito dos
pactos e dos contratos, como forma de possibilitar o intercâmbio entre os homens,
correspondendo à sua característica de sociabilidade; ou quando se concluía, a partir
do princípio natural de respeito pela palavra dos mortos, que os legados
testamentários deviam ser cumpridos610.
§ 481. Por este facto de haver uma mediação humana problemática (um
processo de raciocínio) entre os leis naturais e os preceitos de direito das gentes,
este último direito tinha algo de eletivo. Não tanto como o direito civil, que era
estabelecido por ordens intencionais e expressas da comunidade ou de quem a
governava. Mas antes por um consentimento implícito e duradouro – como nos
costumes antigos -, que exprimia um certo entendimento das leis da convivência.
Este moderado voluntarismo do direito das gentes explicava o regime da sua
mutabilidade por decisão comunitária. Luís de Molina, tratando da derrogação e da
dispensa do direito das gentes por normas de direito civil, conclui que, embora
alterável, a sua alteração devia provir de uma prática duradoura e geral, do mesmo
género daquela que o instituíra, que garantisse que se tinham tido em conta os
perigos que advinham da derrogação ou alteração do preceito de direito das gentes
que se queria alterar611.
2.5.4.2 O direito civil.
§ 482. Já o direito civil era próprio de uma comunidade, sendo estabelecido
por causa das suas peculiaridades, para completar – eventualmente corrigir, nos
termos antes descritos - os direitos natural e das gentes. Num plano micro, também
pertenciam ao direito civil os pactos entre pessoas singulares, pelos quais
estabeleciam direito relativo às suas coisas 612.
§ 483. O facto de o direito civil provir de uma ato de vontade, não
necessariamente baseado num processo justo e racional de dedução - pois “a razão
humana costuma estar sujeita a alucinações“ (ratio nostra hallucinare solet, escreve
Domingo de Soto) -, fazia com que ele não devesse valer sem que se averiguasse da
sua consistência com a ordem das coisas. Isidoro de Sevilha enumerara, num texto
que será lembrado e fundamentalmente aceite até à época moderna, que a lei tinha
que ser honesta, justa, possível, conforme à natureza, conforme aos costumes
pátrios, adequada ao tempo e ao lugar, necessária, útil, clara e feita em função da
utilidade comum dos cidadãos e não de interesses privados613. Apesar de alguns
autores medievais terem tentado simplificar o critério de Isidoro de Sevilha,
continuou a ser doutrina comum que o direito civil não devia contrariar os
preceitos da religião (ou do destino sobrenatural dos homens), da moral e da
justiça614. São estes princípios que explicam que os juristas modernos continuassem

610 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 5, n. 4.


611 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 5, n. 5.
612 Luís de Molina, De iustitia et de iure […], cit., tract. 1, disp. 5, n. 6.

613 “Qualis debeat fieri lex. Erit autem lex honesta, iusta, possibilis, secundum naturam,
secundum consuetudinem patriae, loco temporique conveniens, necessaria, utilis, manifesta quoque,
ne aliquid per obscuritatem in captionem contineat, nullo privato commodo, sed pro communi civium
utilitate conscripta” (Etymologiae, liv. 5, 21).
614 Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure […], cit., I. qu.5, a.3.

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a sustentar a sujeição do direito positivo a esferas mais elevadas do direito 615, não
apenas para garantir que a resolução justa dos litígios se fazia por uma medida justa,
mas ainda para que os povos não fossem habituados a uma disciplina errada.
Também aqui, porém, as circunstâncias políticas contemporâneas, iam atenuando
estas vinculações do direito positivo, nomeadamente daquele que provinha de
comunidades ou príncipes que não reconhecessem superior, como os reis ou as
repúblicas soberanas. O texto mais invocado era D.1,3,31 que declarava, embora
com um sentido menos forte do que se quis fazer valer616, que o príncipe estava
liberto da obediência às leis (prínceps legibus solutus). Isto era muito enfatizado, quer
pelo regalismo da época, no sentido de afirmar que o poder do príncipe não estava
sujeito ao poder do Papa, pois este não era senhor do mundo temporal, quer pelos
juristas favoráveis à extensão do poder legislativo dos reis, com o objetivo de
afirmar que o rei, ao usar do seu poder extraordinário (potestas extraordinaria), podia
contrariar o direito positivo já existente e – embora apenas em algumas
circunstâncias e mediando justa indemnização – podia passar por cima de direitos
de particulares. No entanto, a faculdade de violar os preceitos da razão e da justiça
– por outras palavras, o direito natural, não era incluída entre as prerrogativas do
rei, mesmo para os juristas mais regalistas.
2.5.4.3 Direito comum e direitos próprios.
§ 484. A base textual para a reflexão sobre a acomodação entre as ordens
jurídicas das várias entidades políticas em que a sociedade se organizava
naturalmente era a lex Omnes populi do Digesto (D.1,1,9), que afirmava que todos os
povos – no sentido de comunidades – se regem “em parte pelo seu próprio direito
e em parte pelo direito comum de todos os homens”, esclarecendo depois que o
direito próprio era aquele que o povo de uma cidade institui para si mesmo, e que
por isso se chama direito próprio da cidade, ou direito civil, sendo o direito comum
o direito instituído pela razão natural e que, portanto, se observa por todo o lado.
Nos juristas medievais esta bipartição é localizada nas nações europeias que,
baseadas nas tradições textuais do direito romano e do direito canónico, recebidas e
trabalhadas pelos juristas letrados, usavam de um vasto património de princípios
jurídicos comuns617. Distinguiam entre este direito doutrinário, que vigorava por
força da sua racionalidade intrínseca, do direito particular, singular, próprio,
estatutário ou municipal, “que foi introduzido pela autoridade do legislador, tendo
em vista alguma utilidade particular, contra o teor da razão 618. Nestes termos, ao
passo que o direito comum se caraterizava pela sua universalidade tendencial, pela
sua razoabilidade, mas também pela sua vigência sobretudo indicativa, o direito

615 Cf. o disposto em Ord. fil.3, 64, quanto à impossibilidade de o direito induzir em pecado ou de

contrariar a “boa razão”. Ou a proibição de o chanceler-mor do reino registar (promulgar) deis régias
“contra direito” (Ord. fil.1, 2, 3-4). Ou ainda, a declaração de nulidade absoluta ou a concessão de
recurso extraordinário de revista de sentenças dadas contra direito expresso ou notoriamente injustas (v.
revisio) (Ord. fil. 3, 75, pr.; 3, 95, pr.; v. cap. 7.1.15.2).
616 O texto romano referia-se a leis no sentido técnico de constituições do príncipe. O regalismo e,

depois, o absolutismo procuraram estender o significado da palavra a preceitos jurídicos.


617 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia […], cap. 6, 6, 1.

618 Cf. D.1, 3, 16. Alejandro Guzman Brito, “Sobre la historia de las nociones de derecho común y

dereecho própio”, cit..

154
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

próprio era local619, proveniente de uma vontade, decorrente de uma avaliação


conjuntural e algo arbitrária, mas, em contrapartida, mais efetivo no seu domínio
restrito de vigência.
§ 485. Originariamente, o direito comum era aproximado do direito do
império e, por isso, do direito romano, enquanto que o direito próprio seria o
direito de entidades políticas de menor hierarquia, como os reinos e as cidades.
Cedo, porém, os reis e as cidades que não reconheciam superior (qui superiorem non
agnosceant) começaram a reclamar a plenitude do seu poder (plenitudo potestatis) e,
consequentemente, as prerrogativas imperiais no seu âmbito territorial (rex in regno
suo imperator est). Ora uma delas era que o seu direito fosse considerado como direito
comum nesse âmbito territorial, por oposição a direitos de corpos particulares mais
restritos aí existentes. Porém, face a este direito comum do reino, continuavam a
ser reconhecidos como vigentes nas comunidades mais particulares, os direitos
próprios das comunidades inferiores, ou de âmbito territorial (v.g. concelhos), ou
de âmbito pessoal (v.g. universidades, comerciantes, militares, etc.).
§ 486. Importa realçar que esta legitimação do direito dos corpos políticos a
partir da sua origem direta na natureza, dava origem ao reconhecimento de uma
pluralidade de ordens jurídicas, cada qual emanando de uma comunidade social.
Sempre que se tratasse de comunidades perfeitas - ou seja, comunidades que
satisfizessem por si mesmas todas as finalidades da vida em comum, como os
reinos ou as cidades politicamente autónomas -, o seu governo e as suas ordens
jurídicas eram absolutas na esfera temporal, coordenando-se umas com as outras
num plano de igualdade. Uma situação semelhante àquela que hoje designamos por
“pluralismo”. Mas, mesmo quando se tratasse de comunidades imperfeitas, carentes
da cooperação de outras e por isso apenas elementos orgânicos de comunidades
superiores, o seu governo e ordem jurídica eram autónomos no seu grau,
preferindo, no seu âmbito particular, a esferas mais elevadas de direção ou
regulação. Tudo de acordo com uma lógica particularista que caraterizava o
pensamento social pré-moderno, em que o particular se impunha ao geral da
disciplina das situações locais.
§ 487. Estas breves notas já permitem enquadrar suficientemente os dados
doutrinais ocorrentes na doutrina jurídica portuguesa dos sécs. XVI a XVIII.
2.5.4.3.1 A lei.
§ 488. “O direito do nosso reino é direito comum”, afirma Álvaro Valasco 620,
aderindo à doutrina comum de que o rei, no seu reino, era imperador. Isto não
dava, porém, ao rei de Portugal um direito ilimitado de legislar, pois nunca poderia
prejudicar os direitos de terceiros - fossem eles adquiridos ou apenas direitos cuja
aquisição constituía uma expetativa forte (por exemplo, em função da qualidade de
herdeiro forçoso, ou da primogenitura)621 - nem contrariar as prescrições do direito
natural622. Limitando também o alcance do direito próprio estavam ainda algumas

619 Os estatutos não podiam obrigar os que não fosse súbditos daquele que os estabeleceu,

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 20. Assim, as leis portuguesas não se
aplicavam aos estrangeiros, pois as leis de um reino não se podiam estender aos bens ou pessoas de
outro, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 20.
620 Cf. Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 105, n. 8.

621 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 151, ns. 18 a 20.

622 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec.44, n. 17.

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regras que se relacionavam com a natureza excecional do direito do rei em relação


ao direito comum. Por isso, as restrições que introduzisse ao direito comum da
doutrina europeia (presumivelmente geral e racional) eram odiosas e deviam ser
restringidas623.
§ 489. No entanto, este direito do reino era já uma realidade normativa bem
estabelecida na primeira época moderna. Ele impunha-se aos súbditos e aos oficiais
do reino, nomeadamente aos juízes, que estavam proibidos de lhe preferir o direito
comum europeu. Os autores reconheciam que ele tinha as suas próprias razões, que
deviam ser assumidas, em vez das razões do direito comum geral, como orientações
para a sua interpretação624.
§ 490. Tudo isto, porém, não deve criar ilusões acerca da contínua usura do
direito próprio pelo direito comum. O direito próprio estava fora do ensino
universitário, era interpretado segundo as categorias (e na língua) do direito
comum625, era confrontado permanentemente com a presunção de racionalidade de
que gozava o direito comum, era continuamente reinterpretado, restringido como
odioso, criticado como contrário à razão (e “elegância”) do direito comum da
literatura jurídica letrada626, era considerado como suscetível de caducar se não
fosse observado627, estava desprotegido perante o erro, pois era atribuída relevância
ao erro de direito que recaísse sobre ele 628.
§ 491. Como o direito do reino era constituído pelas leis, pelos costumes
gerais e pelas práticas de julgar dos tribunais (estilos), na falta da lei era a estas duas
últimas fontes que se devia recorrer629. Não havendo preceito de direito pátrio,
mesmo aplicado analogicamente, alguns juristas recomendavam que se seguisse o
direito do reino mais próximo630. Só na falta de preceito aplicável se devia recorrer
ao direito comum “imperial”631, contido nos direitos civil e canónico, desde que
conforme à boa razão632. Tudo isto correspondia ao preceituado nas Ord. fil.3,64633

623 Cf. Manuel Themudo da Fonseca, Decisiones […], cit, dec. 12, ns. 10 e 31; dec. 13, n. 8.
624 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211, ns. 1 a 4.
625 Na verdade, continuava a ser forte a opinião de que, sendo um suplemento do direito comum,

o direito próprio deveria ser interpretado em conformidade com o direito comum (António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 2) e que, nas suas especialidades, era um direito estrito que
deveria ser aplicado restritivamente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 2
(ex. punia o autor e não mandante, se deste não falasse, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Statutum”, n. 3).
626 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, cit., 6.6.9.

627 Os estatutos que não fossem observados durante 10 anos eram nulo em absoluto, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 16.


628 Os estatutos não obrigariam os que os ignorassem, pelo menos os estrangeiros, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 17. Já os da terra não poderiam ignorar a sua
ignorância, se os estatutos tivesse sido anunciados por pregão público, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 17. Mas se a pena do estatuto fosse a mesma do direito comum,
ninguém ficaria escuso, ibid.. Estas normas sobre a relevância do direito próprio eram formuladas
sobretudo para os estatutos, não se aplicando à lei dos reinos (“a ninguém aproveita a ignorância da lei”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 17).
629 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt.1, dec. 211, n. 5.

630 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211, n. 7.

631 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 117, n. 24.

632 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 150, n. 19 e 20.

156
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
634.

§ 492. A doutrina portuguesa distinguia várias espécies de leis: cartas de lei [ou
leis, assinadas solenemente pelo rei e com eficácia perpétua], alvarás [assinados pelo
rei, numa fórmula abreviada – “Eu, ElRei” - , e valendo apenas por um ano, Ord.
fil.2,39], cartas régias, portarias e avisos [diplomas exprimindo ordens singulares do
soberano ou dos tribunais da corte]635. As leis deviam ser seladas e publicadas, por
edital ou por envio aos oficiais que as devessem aplicar, pelo Chanceler Mor do
Reino (Ord. fil. 1,2,10), valendo, na corte, dentro de 8 dias (vacatio legis); no reino, de
3 meses; no ultramar, depois de um período mais longo, fixado pela doutrina de
formas diferentes636.
2.5.4.3.2 Os estatutos (ou posturas).
§ 493. A palavra estatuto (statutum)637 designa, na literatura jurídica medieval e
moderna, os preceitos jurídicos promulgados pelas comunidades particulares,
enquanto que a palavra lei (lex) se reservava para as normas provindas do príncipe
(ou, em geral, entidades políticas que não reconhecessem superior) 638.
§ 494. Provinham de uma vontade, do povo ou dos magistrados seus
delegados (i.e. a quem o povo tivesse atribuído o poder de fazer estatutos), que, por
natureza, deviam prover sobre o governo daquela comunidade, mas podiam limitar-
se a confirmar preceitos de direito natural (ou de direito comum) 639.
§ 495. Na época moderna, a questão mais aguda que aqui se põe é a das
relações entre o poder de fazer estatutos e o poder de fazer leis. Francisco Suarez
discute a questão longamente. Como ponto de partida, um paradoxo. Por um lado,
aquilo que lhe parece ser a atribuição pelo ius civile de poderes legislativos (i.e. de
competência para editar normas jurídicas dotadas de força vinculativa geral) a todos
os magistrados que tenham o governo das províncias (ou cidades). Por outro, a
dificuldade de aceitar que tal competência possa existir sem o acordo do príncipe 640,
paradoxo que, afinal, traduz a antinomia entre um princípio doutrinal oriundo de
um ambiente político francamente pluralista e um projeto de poder - já com
tradução institucional - voltado para a centralização política. A solução vai Suarez
buscá-la à distinção entre comunidades perfeitas e imperfeitas, reservando a plena
jurisdição - e, logo, a plena potestas legislativa - para as primeiras (a que, no plano das

633 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211.
634 Sobre o sistema de fontes do direito português, com detalhe, Guilherme Braga da Cruz, “O
direito subsidiário […]”, cit., Nuno Espinosa Gomes da Silva, História do direito […], cit.
635 Cf. Nuno Espinosa Gomes da Silva, História […], 370 ss.; ensaio de estatística da produção

legislativa em Portugal, nos sécs. XVI a XVIII, em John Gilissen, Introdução histórica ao direito […], ps.
462 ss..
636 Segundo o direito comum, a vacatio legis era de dois meses, António Cardoso do Amaral, Liber

[...], cit., s. v. “Statutum”, n. 17.


637 Sobre o direito estatutário (ou direito local), v. com detalhes, António Manuel Hespanha,

Vésperas […], cit., 356 ss..


638 Embora alguns autores alarguem o sentido de estatuto a qualquer norma de direito próprio (v.

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 1).


639 “ Statutum est ius proprium unusquisque populus sibi constituit, et vocatur ius cvile et potest

facere quicumque potest condere legem ”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Statutum”, n..
640 Francisco Suarez, Tractatus de legibus […], cit., liv. 3, cap. 9, n. 5.

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realidades políticas do seu tempo, corresponderiam os regna e as civitates qui


superiorem non recognoscunt). As imperfeitas teriam – sobretudo as maiores, com
órgãos jurisdicionais próprios como seriam os concelhos portugueses – uma
capacidade legislativa proporcionada ao âmbito da sua jurisdição, sujeita aos bons
costumes e ao ius commune, não ofendendo os domínios de edição legislativa
reservados ao príncipe 641. Quanto a este ponto, Suarez parte de uma posição
definitiva - os magistrados das cidades não podiam, por meio de estatuto, revogar
ou alterar o direito comum ou a lei do superior 642, com isto se opondo a uma forte
corrente do ius commune clássico, com a qual, de resto, expressamente polemizava.
No entanto, a nitidez da regra anterior perde-se, logo nos números seguintes,
quando Suarez a explicita um pouco mais. Assim, o direito estatutário seria válido
quando apenas especificasse ou acrescentasse algo ao direito comum, geral ou do
reino. Não se pode, no entanto dizer que esta opinião fosse dominante. Entre os
autores de direito comum talvez ainda dominasse, mesmo nesta época, a opinião de
que os estatutos valiam contra o direito comum 643, mesmo quando, tratando de
outros pontos, consideravam a lei como uma fonte de direito mais digna e mais
cogente644.
§ 496. No plano do direito positivo português, havia uma norma diretamente
relacionada com esta questão. (Ord. fil.1,58,17), onde se dispunha " […] quando os
Corregedores, e Ouvidores dos Mestrados forem por correição, informar-se-hão de
seu Oficio, se ha nas Camaras algumas posturas perjudiciaes ao povo, e bem
comum, posto que sejão feitas com a solenidade devida, e nos screverão sobre ellas
com seu parecer. E achando que algumas forão feitas não guardada a forma de
nossas Ordenaçoens, as declarem por nullas, e mandem que se não guardem […] ".
Explicitamente, a ordenação referia-se apenas à conformidade entre o processo de
feitura das posturas e as formalidades previstas nas Ordenações. Já quanto à
contradição substancial entre a postura e a lei nada se diz. Apesar disso, é com base
neste texto que os autores acolhem, em geral, a opinião de que as posturas não
valiam contra a lei régia e o direito geral do reino 645. Ultrapassadas estas questões de
princípio, a atendibilidade das posturas, mesmo em termos doutrinais, acabava por
ser maior. Na verdade, ficcionando-se a presença e acordo do rei, que estaria
representado pelos juízes do concelho 646, as posturas devidamente aprovadas
tinham o valor de lei, impondo-se aos particulares, aos funcionários concelhios e
aos funcionários régios (nomeadamente aos corregedores), só podendo ser anuladas
por rescrito do próprio rei, nos termos do citado texto das Ordenações. Valeriam,
enfim, "loco ius civile", mantendo com o direito do reino a relação que, segundo a

641 Francisco Suarez, Tractatus de legibus […], cit., liv. 3, cap. 9, n. 17 e 20. As povoações menores

poderiam editar normas de convivência, mas estas valiam como pactos (ibid. ).
642 Francisco Suarez, Tractatus de legibus […], cit., liv. 6, c. 25, n 10 ss..

643 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 13.

644 Por exemplo, negando que fosse relevante a ignorância sobre ela (António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., s. v. “Statutum”, n. 17).


645 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 5, ad ad Ord. fil.1, 66, 28, c. 7, n. 2; ad

Ord. fil. 1, 66, 29, n. 6: "non posse inferiores infringere leges superiores [...] quod factum esse non
servata formam legis nullum esse vidimus"; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1. liv. 6, § 1, n.
44.
646 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 5, ad Ord. fil.1, 66, 28, c. 7, n. 15 (pg.

260).

158
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

teoria geral do direito comum, o ius proprium mantinha com o ius commune647.
§ 497. Apesar desta admissibilidade de princípio do valor das posturas feitas
de acordo com a forma legal, existiam certas regras complementares das quais
dependia a sua validade.
§ 498. A primeira era a regra segundo a qual o concelho não podia, ao fazer
posturas, estabelecer normas que só ao rei competem (regalia). Tal seria o caso, por
exemplo, da criação de monopólios ou do lançamento de tributos gerais 648. A
segunda era constituída pelo "princípio da especialidade", segundo o qual a
jurisdição e os poderes estatutários dos concelhos estavam funcionalmente
vinculados à satisfação do bem particular da comunidade concelhia. O que, no
plano do direito nacional, decorreria do proémio do tit. Ord. fil.1. 66 ("Aos
Vereadores pertence ter o cargo de todo o regimento da terra, e das obras do
Concelho, e de todo o que podérem saber, e entender, porque a terra, e os mora
dores della possão bem viver, e nisto hão de trabalhar"). A terceira era a de que, por
estatuto, não se podiam tirar direitos concedidos pelo direito comum ou tornar
ilícito aquilo que aliás seria lícito649, a não ser com o acordo dos ofendidos ou
estando em causa a utilidade comum. Cumpridos estes últimos requisitos a
competência estatutária ganhava grande amplitude, abrangendo um alargado tipos
de preceitos sobre uma enorme variedade de assuntos, documentada pelas coleções
de posturas que chegaram até nós650.
2.5.4.3.3 Costume.
§ 499. O costume era uma norma instituída pelos usos de uma comunidade,
de modo a induzir um consenso tácito sobre o seu conteúdo 651. Os costumes
podiam ser gerais ou especiais (mesmo apenas de uma família652). Desde que,
suplementarmente, cumprissem certos requisitos (justiça e conformidade com o
bem comum, racionalidade, durabilidade), os costumes tinham força de lei, no
âmbito da comunidade em que se tivesse constituído653.

647 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 5, ad Ord. fil.1, 66, 28, C. IV, n. 2.
648 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1. I. 7, disp. 19, § I. n. 26; já poderia
estabelecer certos tributos locais, visando o bem particular dos vizinhos (v. g. fintas).
649 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1. liv. 7, disp. 19, n. 4 (pg. 804).

650 Os estatutos podem repartir águas, mandar matar cães raivosos ou vadios, fixar os dias santos,

proibir a compra e a venda, proibir a exportação e importação, punir os vendedores de géneros de má


qualidade, autorizar o pasto em campos incultos (ainda que particulares), etc.; mas não podem, por
exemplo, estabelecer monopólios ou estancos, aumentar as penas, vender os bens comunais, pôr
tributos gerais.
651 “Consuetudo, est quodam ius moribus populi institutum, quod pro lege suscipiatur”, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, n. 1; “Consuetudo inducitur tacito consenso”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, n. 5. Para a doutrina dos teólogos,
Domingo de Soto, Traxtatus de iustitita […], cit., 1, qu.7, a.2. Se o costume tem força de lei, Luís de
Molina, Tractatus […], cit., pt. 1, qu. 34. Sobre a dogmática do costume, v. António Manuel
Hepsanha, As vésperas […], cit., 362 ss.; Nuno Espinosa Gomes da Silva, História […], 378 ss..
652 “Una familia potest in se facere consuetudinem”, Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit.. obs.

70, n. 24.
653 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, n. 2 e 11; Tomé Valasco,

Allegationes […], cit., all 56, ns. 3-4; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 110, n. 2; ibid. pt.
2, dec. 39, n. 6. Embora se considerasse que o costume era direito, exigia-se que a sua existência e
validade fossem confirmadas em juízo contraditório, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 125, n.
13.

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§ 500. Em Portugal, a opinião comum era a de que o costume local devia ser
atendido, mesmo quando contrário ao direito comum, desde que se verificassem
certos requisitos da sua validade (nomeadamente a sua prescrição e
racionalidade)654. Os limites a esta regra eram os óbvios: o direito divino e o direito
natural655, a que Álvaro Valasco acrescenta o direito canónico, mesmo em matéria
que não tivesse a ver com o pecado656.
§ 501. Discutida era já a questão de saber se valia contra a lei. Quanto a este
ponto, a orientação geral da literatura seiscentista era no sentido de que o costume
contra lei não devia ser observado, justificando-se esta opinião ou com os tópicos,
que já vinham do ius commune clássico, ou da irracionalidade deste costume, ou do
respeito devido à lei do príncipe. No entanto, despida a questão deste tom geral e
enfático, pode verificar-se que os autores têm posições muito matizadas: nem é
verdade que a doutrina dê, em todos os casos, relevo ao costume contrário à lei,
nem que ela o negue em absoluto. Por exemplo, Jorge de Cabedo657 dá conta de
decisões (Tomar, 1584) em que o costume local derrogara as regras de sucessão dos
morgados. Para Álvaro Valasco, seria pelo costume local e não pela lei que se
deviam regular as formalidades do inventário658. Já quanto ao costume praeter legem,
a opinião é a de que ele teria uma extensa eficácia, nomeadamente em sede de
interpretação dos negócios jurídicos. Assim, António Gama, Álvaro Valasco e
Tomé Valasco entendem que, em matéria de celebração de contratos ou na
interpretação do contrato enfitêutico, se devia atender ao costume 659 660.
§ 502. A eficácia normativa do costume resultava ainda do facto de ele
constituir um importante subsídio para a interpretação do direito e dos contratos
661.

654 Cf. por todos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, com tópicos

da doutrina contemporânea ("dicitur lex municipalis", n. 1; “cuius non extat memoria in contrarium
induct ius et privilegium ita ut non necesse allegare titulum“, n. 4; "consuetudo particularis vel special is
est illa quae consensu hominum unius loci est approbata, & homines illius loci adstringit, et in eodem
loco habet vim", n. 11; "habet vim legis" [sob certas condições ]), n. 2; "semper est attendenda", n. 5.
Outos exemplos em outras fontes: Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria […], cit., tomo 4, ad Ord..
fll.4.2.2. n. 1 (pg. 137) (os costumes da terra devem ser considerados nos contratos bonae fidei); t. 2, ad.
Ord. fil.3, 64, pr. n. 36-37 (a lei e o costume têm igual valor, sendo o costume prescrito considerado
como direito não escrito); n. 38 (o costume é mais eficaz do que os estatutos e as constituições
municipais); Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 7, ad Ord. fil.1, 87, pr. gl. 2, n. 3;
António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 193, n. 5 (o costume do reino prevalece na decisão das
causas sobre todas as leis e introduz-se por um só ato que tenha causa sucessiva por 40 anos); Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 211, n. 5 (o costume do lugar diz-se direito comum); Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 140. n. 23 (“consuetudo antiqua habetur instar privilegium”).
655 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, n. 19; note-se, no

entanto, a equiparação entre lei e razão: “non potest tamen vincere legem aut rationem aut veritatem”
(ibid. n. 6), que justifica o tópico de que o costume contra legem é irracional.
656 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 133, n. 11. No mesmo sentido, Tomé Valasco,

Allegationes […], cit., all. 56, n. 12-14, 19; Antonio da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 83, n. 1.
657 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt.1, dec. 121, ns. 3 e 4.

658 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 2.

659 Cf. Antonio da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 233, n.9; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,

dec. dec. 21, n.2; Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 56 (maxime, ns. 15 ss..
660 o mesmo opina Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria […], cit., t. 4, ad Ord. fil. 4, 2, gl. 1

(p. 137.
661 Cf. Decisiones [...], cit., dec. 10, n. 4; dec. 14, n. 3 (é a interpretação ótima das leis e dos

160
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 503. A existência de um costume decorria de uma prática duradoura de


reconhecer uma norma. Este último elemento (a intenção de cumprir uma norma
jurídica, opinio iuris)662 tornava mais difícil a prova do costume, pois não bastava
provar os atos materiais, mas ainda a sua intenção consciente de estar a observar
uma norma663. A duração exigida para que uma prática induzisse um costume
variava com a natureza da norma consuetudinária invocada. O prazo de 10 anos era
o prazo comumente requerido, quer pelo direito civil, quer pelo direito canónico,
para a prescrição de um costume racional. Mas para induzir normas contrárias à lei
ou em prejuízo da Igreja, seriam precisos costumes de 40 anos, centenários ou
imemoriais (cuius non extat memoria in contrarium)664.
2.5.4.3.4 Os estilos.
§ 504. O estilo era uma forma continuada de um tribunal declarar o direito. Os
juristas medievais definiam-no mais como um uso de argumentar (respicit ordo
loquendi vel procedendi) do que como um preceito quanto a comportamentos 665. A sua
obrigatoriedade decorria, por um lado, de os juízes deverem julgar segundo o
direito, induzindo a que as suas decisões e o modo de as processar e argumentar
correspondiam a esse direito. Tanto mais que os estilos mais relevantes eram os dos
tribunais reais, que declaravam o direito por autoridade direta do rei, a viva vox legis.
Daí que as sentenças dos tribunais superiores devessem constituir um padrão para
o futuro, sobretudo se configurassem uma orientação com alguma constância.
Assim, Jorge de Cabedo declara que os estilos da Casa da Suplicação se deviam
observar como lei666, tanto mais quanto mais antigos fossem 667, embora alguns
autores dissessem que bastavam duas sentenças conformes para estabelecer um
estilo668.
2.5.5 A dispensa de uma norma.
§ 505. A dispensa era o ato pelo qual, num caso concerto, uma entidade com
poderes para tal afastava a aplicação de uma norma jurídica geral 669, corrigindo a

estatutos); Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 146, n. 2-15 (a vontade contratual deve interpretar-
se pelo costume).
662 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, n. 10.

663 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Consuetudo”, ns. 8 e 10; Álvaro

Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 162, n. 9 ss.; toda esta decisão incide sobre este ponto, de que faz
uma boa síntese. Teria que se provar: (i) que havia esse costume e que se traduzia em atos frequentes; (ii)
que o costume era prescrito, n. 11-12; (iv) que a prática dos atos era acompanhada de intenção de
observar um costume, n. 13; (v) que esse costume correspondia a um consenso geral, n. 16; (vi) e que
se tinha desenvolvido com o conhecimento do príncipe, o que se presumia num reino, n. 27. As
testemunhas deviam estar conscientes de que o costume era mais do que uma mera prática, n. 15.
664 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 212; António Cardoso do Amaral, Liber [...],

cit., s. v. “Consuetudo”, n. 8.
665 Cf. Nuno Espinosa Gomes da Silva, Historia […], cit., 379 ss..

666 “Pro lege servanda”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 3, n. 5; também,

Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 63, n. 2 (no n. 4 refere-se à prova dos estilos.).
667 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 201, n. 1 a 8; v. também Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons. 157, n. 24.


668 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 148, n. 32.

669 “Dispensatio est relaxatio legis, seu iuris alicuius facta ab eo, qui habet jus dispesandi, per

quam dispensatus in illo casu solvitur, & eximitur ab illius vinculo”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Dispensatio”, n. 1.

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injustiça que constituiria a aplicação de um comando geral naquele caso singular;


embora se tratasse de um ato de graça670 - e por isso reservado ao príncipe -, não
era um ato arbitrário, devendo ser justificado por uma causa suficiente 671. Também
se entendia que os príncipes (ou o Papa) não pudessem dispensar a lei divina ou a
lei natural672. A dispensa da norma geral consistia na criação de uma situação de
privilégio (quasi privata lex¸ numa lei como que privada)673.
2.5.6 Os direitos particulares.
§ 506. Por via de regra, o direito não podia violar os direitos firmes,
enraizados, adquiridos, dos particulares.
§ 507. A tutela dos direitos dos particulares efetuava-se em dois momentos:
antes da consumação do ato do poder, por meio do controlo prévio e oficioso da
sua conformidade com o direito, e depois da sua consumação, tanto através do
instituto da nulidade ipso iure das decisões ilícitas do poder, como pela faculdade de
oposição à sua execução.
§ 508. O controlo prévio da conformidade dos atos régios com "as
Ordenações, ou Direito" (Ord. fil.1,2,2) competia ao Chanceler-Mor do Reino. Este
alto funcionário palatino - cujas atribuições principais eram as de selar e mandar
publicar os diplomas emanados dos tribunais ou oficiais da corte - devia, na
verdade, verificar se as cartas a selar eram contra os direitos do rei, “ou contra o
povo, ou Clerezia, ou outra alguma pessoa, que lhe tolha ou faça perder seu
direito"; no caso de isto acontecer, o Chanceler não deveria selar e publicar as
cartas sem expor as suas dúvidas ("glosar") ao rei ou ao Desembargo do Paço. Da
decisão final do Chanceler podiam os particulares lesados agravar para o
Desembargo do Paço (Ord. fil.1,2,11; 1,30,1).
§ 509. Porém, a tutela mais geral dos direitos dos particulares não era a
preventiva, mas a obtida por meios judiciários ordinários. Em Portugal, e nos
quadros gerais fornecidos pelo direito comum, os recursos dos particulares contra
os atos do poder político lesivos dos seus direitos estavam variamente previstos.
Desde logo, estava prevista a nulidade de uma determinação do poder contrária às
Ordenações ou ao "direito expresso", que poderia ser a todo o tempo revogada (Ord.
fil, 2,44; 3,75). A doutrina discutia o alcance da expressão "direito expresso". Em
Portugal, o alcance prático da faculdade do Chanceler-Mor de "pôr glosas" aos atos
régios não está estudado674.
§ 510. Qualquer que fosse o alcance prático da fiscalização do Chanceler-Mor,
o que é certo é que não só os juízes deviam recusar a aplicação da decisão ilegal do
poder, como o particular lesado podia, a todo o momento, opor-se à sua execução

670Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dispensatio”, n. 2.


671Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 79, ns. 7-8.
672 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 279, ns- 7 a 10; António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dispensatio”, n. 3. Sobre a teoria da dispensa (dispensatio), v. Domingo de
Soto, De iustitia et de iure […], cit., liv. 1, qu. 7, a. 3.
673 Sobre o privilégio como caraterística estrutural de uma ordem jurídica corporativa, v. António

Manuel Hespanha, “Justiça e administração […]”, cit., 154 ss.;


674 Cf. em todo o caso, a C.R. de 30.6.1636 (Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo) em que o rei

ameaça o chanceler-mor de lhe cortar o vencimento se le continuasse a recusar o registo de certas


determinações do Conselho de Portugal.

162
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mediante embargos (exceptiones), bem como por ação autónoma ("querela de


nulidade"), pedir a declaração oficial da nulidade do ato do poder 675. Os embargos
eram um meio geral de defesa que devia ser apresentado perante o magistrado que
emitira a decisão, com eventual recurso da decisão deste para a instância superior.
Era um meio de defesa bastante eficaz, pois tinha efeitos suspensivos.
§ 511. Outro tipo de recurso previsto na lei - e aqui abrangendo já
expressamente os atos extrajudiciais - era o agravo ordinário, previsto nas
Ordenações (Ord. fil.3,84,4) para todos aqueles casos em que a apelação não era
possível, nomeadamente, para as decisões de magistrados comissáriais ou
extraordinários, categoria na qual estava incluída a generalidade dos oficiais não
jurisdicionais. Neste tipo de agravo, o fundamento a alegar era, nos termos gerais, o
carácter antijurídico do ato e a lesão daí resultante na esfera jurídica do agravante.
O agravo tinha efeitos devolutivos - i.e. devolvia a apreciação do ato para a
entidade para a qual se agravava - e, em princípio, suspensivos - pois, salvo o caso
de atos por natureza urgentes, o agravo suspende a executoriedade do ato durante
seis meses (cf. Ord. fil.3,84,14). Quanto à eficácia prática dos embargos, basta dizer
que, de acordo com uma carta régia de 1634, raro era o provimento de ofício feito
pelo rei que não fosse embargado676. A coroa defendia-se proibindo o recebimento
de embargos em relação a atos de governo677; mas, ainda em 1642, o juiz do povo
de Lisboa embargava a lei de reforma monetária de D. João IV 678.
§ 512. Finalmente, e dado o carácter patrimonial dos direitos dos particulares,
a sua defesa provisória estava ainda garantida por remédios cautelares como, por
exemplo, os interditos possessórios (de manutenção ou de restituição de posse).
2.5.7 O pluralismo jurídico moderno na Europa e Ultramar. O direito e a
fé.
§ 513. A arquitetura de fontes antes descrita foi decisiva na conceção e
desenvolvimento do modelo político, institucional e jurídico dos primeiros
impérios coloniais europeus, que foram justamente o português e o espanhol, (i)
quer no que respeita ao estatuto dos povos “novamente encontrados”, (ii) quer no
relativo ao modelo de governo das comunidades de colonos.
2.5.7.1 O direito e a fé.
§ 514. Para a primeira questão foi decisiva a reflexão dos juristas acerca do
direito divino, do direito natural e do direito das gentes. Para a segunda, a tradição
literária construída sobre a lei Omnes populi, do Digesto679, relativa à relação entre

675 Um fundamento especial e muito relevante dos agravos (e também dos embargos) era a obrepção

ou subrepção, em que se alegava a existência de um vício na formação da vontade do soberano,


provocado ou pela sonegação de factos relevantes para a tomada de decisão (“verum tacere” -
subrepção) ou pela apresentação de informações falsas (“falsitatem proponere” - obrepção). Sobre estas
figuras, ver, por todos, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 12, ad Ord.. 11, 43, gl. 2, n.
3.
676 Cf. C.R. 20.9.1634, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo, pg. 48.

677 Cf. C.R. 2.11.1607, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.

678 Cf. C.R. 16.2.1642, Col. chron. leg. (J.J.A.S.), vol. respetivo.

679 D.1, 1, 9 Gaius libro primo institutionum: “Omnes populi, qui legibus et moribus reguntur, partim

suo proprio, partim communi omnium hominum iure utuntur. Nam quod quisque populus ipse sibi ius
constituit, id ipsius proprium civitatis est vocaturque ius civile, quasi ius proprium ipsius civitatis: quod
vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes peraeque custoditur vocaturque ius

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direito comum e direitos próprios.


§ 515. Comecemos pela primeira questão. Após o Concílio de Constância
(1414 e 1418), a legitimação da guerra e da conquista pelas razões da fé deixara de
ser possível, pois esse concílio declarou como heréticas680 a proposição de que o
poder, a jurisdição e a propriedade se fundavam na caridade de Deus em relação
aos fiéis681. Daí decorreria que as comunidades políticas dos infiéis seriam
ilegítimas; e, em contrapartida, justa e legítima a guerra contra eles, visando a sua
conversão. Esta rejeição da dependência do governo político em relação à fé
deslegitimava a ideia de “cruzada” e todos os títulos de domínio baseados na força,
tornando assim legítimas no plano temporal as entidades políticas estranhas ao
universo da cristandade (mais exatamente, da catolicidade).
§ 516. Ao mesmo tempo, os juristas também estavam de acordo em que o
Papa - embora gozasse de um poder de dirigir os príncipes cristãos relativamente
aos bens de natureza espiritual, impedindo que o governo das coisas terrenas os
prejudicasse - não era, no entanto, senhor do mundo, não dispondo, por isso, de
nenhum poder temporal fora das terras da Igreja 682, muito menos ainda fora do
âmbito da cristandade683. Luís de Molina tratou esta questão em duas disputationes do
seu tratado684.
§ 517. Na primeira delas, discutia a natureza do “reino” de Cristo (“Utrum
Christus quatenus homo rex fuerit temporalis, et Dominus orbis” [Se Cristo,
enquanto homem, foi rei temporal e senhor do mundo], disp. 28) e, a partir daí, os

gentium, quasi quo iure omnes gentes utuntur”.


680 Sess. 55ª, artº 8; e sess. 3; confirmada na sess. 7, can. 12, e sess. 14, can. 10. A fonte escritural

mais importante era a Epístola aos romanos, de S. Paulo, Romanos, 13:1 13, 1: “Cada qual seja submisso
às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram
instituídas por Deus. 13, 2: Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por
Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação. 13, 3: Em verdade, as autoridades
inspiram temor, não porém a quem pratica o bem, e sim a quem faz o mal! Queres não ter o que temer
a autoridade? Faze o bem e terás o seu louvor. 13, 4: Porque ela é instrumento de Deus para teu bem.
Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer
justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal. 13, 5: Portanto, é necessário submeter-se,
não somente por temor do castigo, mas também por dever de consciência. 13, 6: É também por essa
razão que pagais os impostos, pois os magistrados são ministros de Deus, quando exercem
pontualmente esse ofício. 13, 7: Pagai a cada um o que lhe compete: o imposto, a quem deveis o
imposto; o tributo, a quem deveis o tributo; o temor e o respeito, a quem deveis o temor e o respeito”.
O Antigo Testamento (sobretudo o Livro dos Reis) também era invocado.
681 Estes proposições tinham sido defendidas por João Wiclef, João Huss, Richard Armachanus e,

em geral, os Valdenses, v. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure [...], cit., liv. 2, disp. 19, maxime
ns. 1 e 6.
682 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 21 (sobre a distinção entre os

poderes temporal e eclesiástico); liv. 2, disp. 29 (sobre o poder temporal dos papas).
683 Com o que ficava inclusivamente bastante enfraquecida a relevância das bulas pontifícias de

divisão do mundo que, rigorosamente, apenas poderiam ser entendidas como diretivas aos príncipes
cristãos relativamente à repartição das terras a descobrir, a fim de regular o múnus espiritual da
evangelização.
684 Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], Liv. 2, disps. 28 e 29. Saliente-se a
importância do texto de Luís de Molina, um dos primeiros discursos teológico-jurídicos completamente
articulados sobre a escravização dos negros. Dado o seu carácter articulado e desenvolvido, poderá ter
constituído uma apostila destinada ao ensino, em Coimbra ou em Évora, durante o período de 26 anos
em que o autor aí deu aulas (1566-1590). Cf. sobre ele, António Manuel Hespanha, “Luís de Molina e a
escravização dos negros”, cit..

164
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

poderes transmitidos ao seu vigário na terra. Concluía que o Papa, na qualidade de


vigário de Cristo: (a) não tinha o poder de julgar diretamente causas e conflitos
temporais entre os príncipes, nem podia revogar as leis civis que não se ordenassem
a finalidades sobrenaturais, nem mandar que os juízes seculares apelassem para ele
nestes assuntos, cujo conhecimento cabia aos poderes seculares (n. 19); (b) tendo
plena jurisdição quanto aos aspetos espirituais, não tinha, porém, poder quanto aos
aspetos que pertencessem à jurisdição civil e temporal, a não ser que os príncipes
seculares o permitissem ou o bem espiritual o requeresse (n. 20); (c) tinha, como
anexo ao poder espiritual, pleno poder sobre as coisas temporais, mas apenas
quando o exigissem os fins espirituais (n. 22); (d) apenas podia dirimir as
controvérsias entre os príncipes, quando estes o consentissem, […] (n. 29);
finalmente, (e) não podia obrigar os povos e os príncipes a levar a vida
absolutamente conforme aos preceitos cristãs, mas apenas a dirigir a vida destes
nesse sentido, dentro de certos limites e termos (n. 35). Na disputatio 30, Molina
rejeita as posições extremas que ou negavam em absoluto (n.6) ou afirmavam sem
limites (n. 1 ss.) o poder temporal dos Papas, acolhendo a tese mais comum nos
teólogos católicos pós-tridentinos, que optava por uma via media (n. 8), que, mesmo
assim, excluía no fundamental o poder pontifício de governar, legislar ou julgar no
domínio temporal: salvo nas terras papais, a Igreja e os seus ministros tinham
apenas o domínio sobre o seu património e a jurisdição que fosse necessária para o
exercício do seu múnus, não lhe competindo, porém, o governo e administração
temporal em geral (n. 10). O Sumo Pontífice não era senhor/dono (dominus) do
mundo ou fonte do poder dos reis, cuja natureza seria totalmente distinta da do
poder do Papa685.
§ 518. E teriam os cristãos o direito de castigar com a guerra e com a
destruição as comunidades políticas que ofendessem bens comuns à humanidade,
como a religião verdadeira ? Por outras palavras, a idolatria não seria uma causa
justa para a guerra ? 686 O ponto tinha-se tornada atual porque, contra a corrente
teológica dominante, alguns franciscanos tinham admitido a possibilidade de,
restaurando o espírito de Cruzada, legitimarem a guerra como forma de
cristianização. Um destes tinha sido Alfonso de Castro, teólogo e jurista catalão um
pouco anterior, que legitimara assim a subjugação pela Espanha das nações do
Novo Mundo. O fundamento era, a um tempo, bíblico e natural. Por um lado,
“Deus mandou os filhos de Israel destruir muitas nações […]”; por outro, “estes
pecados opõem-se às luzes da razão, tal como a sodomia, a cópula com a mãe e
irmãs e outros crimes” (ibid.). Porém, a conclusão de Molina é nitidamente
contrária: “Não é lícito ao Papa, ao Imperador ou a qualquer outro príncipe punir
pecados que se oponham às luzes da razão, sempre que não tenham jurisdição
sobre os pecadores. Pois tais pecados não são daqueles que causem injúria a
inocentes [abona-se em Vitória e Covarrubias). Pois punir supõe uma vingança de
alguém por alguma culpa, bem como superioridade ou jurisdição sobre aquele que
deve ser punido ou sobre aqueles que receberam a injúria […]. Porém, nem o Papa
nem o Imperador têm qualquer jurisdição sobre tais infiéis [...], nem os pecados
deles ofendem os seus súbditos ou alguns inocentes, que devam ser defendidos por

685 Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], liv. 2, disp. 28 e 29; v. também disp. 21, ns.

13 ss. (diferenças entre os poderes do papa e dos reis).


686 Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], liv. 2, disp. 106.

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direito natural, pois apenas são ofensas a Deus [...] O mesmo se diga dos pecados
contra a lei da natureza e de todos os outros que não resultem em prejuízo de
alguém, pois a sua punição apenas compete a Deus” (ibid. disp. 105).
2.5.7.2 O direito e a natureza.
§ 519. As reduzidas faculdades de intervenção dos europeus na vida das
comunidades nativas, não provinham do direito divino, mas antes do direito
meramente natural.
§ 520. De facto - como se disse - o segundo padrão doutrinal para determinar
o que era justo e o que era injusto no tratamento dos povos que estavam fora da
universo Europeu era o direito natural. Desenvolvendo tópicos que já apareciam na
tradição textual anterior, os juristas modernos perfilhavam a opinião de que o poder
civil tinha uma origem humana, sendo conatural à existência de uma comunidade
organizada687. Por isso, devia ser respeitado, desde que não estabelecesse formas de
organização contrárias à natureza ou não ofendesse direitos naturais de outros.
Assim, Francisco de Vitoria, no seu tratado sobre os índios recentemente
descobertos (De indiis recenter inventis relectio prior) é taxativo no sentido de que "o
pecado mortal não impede a propriedade civil de ser uma verdadeira propriedade",
"a infidelidade não é impedimento de que alguém seja verdadeiro proprietário", "a
fé não pode destruir nem o direito natural nem o humano" 688. Também Domingo
de Soto, ao discutir a legitimidade da guerra contra os infiéis que nunca tivessem
tido contacto com a mensagem evangélica, declara (apoiando-se em S. Tomás de
Aquino [Summa theol. 2ª.2ae. q. 10, a. 10] e em Tomas Vio Caietano) que "a fé não
destrói a natureza, antes a aperfeiçoa e, portanto, não justifica que se prive das suas
possessões os homens que as têm pelo direito das gentes; sobretudo porque a
infidelidade negativa, i.e. a daqueles que nunca ouviram falar do nome de Cristo,
não constitui pecado nem merece nenhum castigo" (De iustitia et iure [...], lib. V,
qu. 3). É esta ideia do carater natural do governo e do direito que sustenta a grande
autonomia do direito humano face ao direito divino e também a doutrina da
ilegitimidade da guerra, como meio de destruir comunidades políticas e direitos de
liberdade e de propriedade.
§ 521. Da guerra justa trata longamente Molina689, concluindo ser justa a
guerra, declarada pelo príncipe (col. 415 C), que “vinga injúrias, sempre que uma
nação ou cidade deva ser castigada, por ter deixado de vingar o que pelos seus foi

687 Cumpre destacar o contributo de Baldus de Ubaldis (1327-1400) para a ideia de que o governo

e o direito decorrem diretamente da existência de uma comunidade humana organizada, sendo um


efeito direto da natureza, revelada pela tradição (passagem do tempo): “Populi sunt de iure gentium,
ergo regimen populi est de iure gentium: sed regimen non potest esse sine legibus et statutis, ergo eo
ipso quod populus habet esse, habet per consequens regimen in suo esse, sicut omne animal regitur a
suo proprio spiritu et anima” (Baldi Ubaldi, [...] In primam Digesti veteris partem comentaria […], ad Dig. 1,
1, 9); “Iura nostra considerant tempus, et in tempore fundant leges suas […]. Tempus quod dat sibi
[homini] vitam, dat sibi legem. Tempus vero quod semper accedit ad nos, illud dat nobis mores, illud
dat nobis legem, illo vivimus, nutrimur, et sumus”, ibid. ad Dig. 1, 3, 32). Emblemática da posição
dos teólogos e juristas modernos, Domingo de Soto, Tractatus de justitia et de jure […], cit., I. qu.5, a.1;
Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 22.
688 Citados em José Sebastião da Silva Dias, Os Descobrimentos […], cit., 223; posições contrárias

(decorrentes ainda do agostinianismo e da ideia medieval de Cruzada), na teologia e no direito da época:


Gregório López, Alfonso de Castro.
689 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disps. 98 ss..

166
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

injustamente feito, ou de entregar o que por injúria foi levado” (col. 413 A).
Concretizando, justa era a guerra que visasse: (i) recuperar coisas nossas
injustamente ocupadas; (ii) submeter súbditos injustamente rebelados; (iii) vingar e
reparar injúria injustamente recebida690. Embora não estivesse excluída a guerra
ofensiva, dirigida à recuperação de coisas próprias, ao ressarcimento dos danos
causados e à vingança das injúrias sofridas, a guerra justa era, desde logo, a guerra
defensiva, nos seus distintos objetivos. Nestes termos, era claro que era injusta a
guerra motivada pela ambição de “ampliação do império, a glória ou comodidade
próprias” (col. 435 C).
§ 522. Porém, alguns casos de guerra – e, portanto, de escravização – eram
mais controversos. O que é que se podia dizer que seria tão nosso que a sua
usurpação justificasse razoavelmente a guerra ? Naturalmente, as coisas de uma
nação: o seu território, as suas cidades, as suas riquezas naturais (pescarias, riquezas
minerais, etc.). Mas, além destas coisas que seriam nossas por se integrarem no
património próprio, também aquelas que fossem nossas por pertencerem a um
património comum a todos, como, por exemplo, o direito de passagem. Segundo
Vitória, seria de direito das gentes viajar para outras províncias e viver aí, desde que
sem prejuízo dos indígenas. Esse direito estender-se-ia à utilização dos portos e dos
rios, pois também estes seriam comuns de todos, além de a liberdade do seu uso
constituir o fundamento de um direito natural à intercomunicação, próprio do
género humano691. Uma forma especial de comunicação era o anúncio do
Evangelho, em termos tais que a proibição de entrada de missionários ou a injúria
que lhes fosse feita dava motivo a guerra justa.
§ 523. Finalmente, a guerra era justa não apenas para garantir direitos próprios,
mas ainda nos casos em que as comunidades encontradas se desviassem dos
padrões humanos de convivialidade.
§ 524. Não teriam todos os homens o direito a que todos respeitassem as
normas básicas do comportamento humano ? Reduzindo à escravidão ou, pelos
menos, assumindo a direção política, das comunidades que violassem
grosseiramente esses preceitos ? A resposta da opinião comum era afirmativa,
legitimando que os povos encontrados pudessem ser postos, em virtude da sua
rudeza, sob uma situação de tutela, semelhante à dos rústicos europeus 692.
Recolhendo, até certo ponto, a teoria dos "servos por natureza", Domingo de Soto
reconhece que, tal como, dentro de uma cidade ou até de uma família, podia haver
pessoas rudes que carecessem de capacidade para se dirigirem a si mesmos, também
no orbe existiam nações "que nasceram para servir" e que, portanto, deveriam ser
subjugadas, submetendo à ordem “aqueles que, como feras, andam errantes e sem
nenhum respeito pelas leis do pacto [de convivência política], invadindo o alheio
por onde quer que passem" (De iustitia et iure, liv. 4, qu. 2, a. 2) 693. Foi este último o
tópico recorrente na justificação da expropriação e escravização dos ameríndios,

690 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 104, col. 431 D ss.
691 Molina afasta-se desta opinião comum, sendo muito mais restritivo: Luis de Molina, Tractatus
de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 104, col. 433.
692 cf. António Manuel Hespanha, "Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique",

Ius commune, 10(1983), 1 ss..


693 Foi este último o tópico recorrente na justificação da expropriação e escravização dos

ameríndios, tanto em Portugal como em Espanha.

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tanto em Portugal como em Espanha 694. Ausência de governo civil, promiscuidade


sexual, canibalismo e sacrifícios humanos eram os sinais mais invocados para
declarar como inumanas e sujeitas a tutela as nações encontradas.
§ 525. No entanto, esta opinião, embora comum, não deixava ser contestada,
por exemplo por Luís de Molina: “Não temos que discutir aqui se é causa justa para
sujeitar uma nação à guerra o facto de ela ser bárbara e rude; de modo a que seja
regida por outrem que a imbua de bons costumes, para que mais tarde se possa
reger por si. Não faltaram os que acharam que isto era razão suficiente para se
pudessem reduzir à escravatura todos os brasileiros e outros habitantes do Novo
Mundo, para além dos africanos; com a consequência de que quem os comprasse
como escravos adquiria o domínio deles, sendo privados das suas terras e
expropriados de todas as suas outras coisas. Ora, como se mostrou na disputatio 32,
essa causa não é suficiente para que sejam sujeitos à escravidão, ficando assim
destruído o fundamento que os autores usavam para afirmar que se podia espoliar
de forma consequente das terras e dos bens quem os possuía” (disp. 105, n. 8). Em
certos casos mais graves e provados de barbarismo, Molina concordava com a
justeza da guerra, do cativeiro e da tutela política. Assim, seria justo que o príncipe
punisse os infiéis sobre os quais tivesse jurisdição 695 (ibid. disp. 106); bem como o
seria punir os infiéis e todos aqueles que cometessem pecados de que resultasse
injúria para inocentes (como imolarem inocentes, matarem-nos e comerem-nos, ou
oprimi-los com leis tirânicas), não sendo sequer necessário que o crime fosse
consumado, bastando que houvesse ritos ou costumes desse tipo. Também não
justificava estas práticas bárbaras que as vítimas concordassem com tais práticas,
pois seria justo libertar da morte mesmo aqueles que a aceitassem.
§ 526. Luís de Molina aborda aqui um ponto de certo alcance prático. Pois,
quer em África, quer, sobretudo, na América, os seus contemporâneos tinham
identificado costumes desses que justificariam a submissão dos indígenas 696. A
única limitação a este invasivo princípio era, para ele, a de que não seria justo
exceder a causa da guerra, usurpando, nomeadamente, os bens dos inimigos para
além das despesas da guerra e da retribuição pela injúria e danos (ibid. disp. 107).
§ 527. Em conclusão. Segundo o direito comum tardio, o direito divino
impedia o Papa ou os seus delegados (como o podiam ser os bispos ou até os
príncipes cristãos, enquanto delegados do Papa), quer de estabelecer direito nas
matérias temporais, quer de derrogar o direito temporal das entidades políticas, a
não ser, quanto às comunidades cristãs e em medida muito limitada, nos casos em
que este direito induzisse em pecado. Já quanto às comunidades não cristãs, a
legitimidade para lhes impor direito estava completamente excluída. Restava a
capacidade de intervenção permitida a qualquer entidade política a fim de defender
os seus próprios direitos de usurpações ou violações por outrem ou de corrigir
regimes políticos bárbaros, ou seja, claramente contrários às leis naturais da
convivência humana.
§ 528. Esta doutrina conduzia a uma situação paradoxal: os maiores obstáculos

694 Cf. sobre o tema, Anthony Pagden, The fall of natural man and the origins of comparative ethnology,

Cambridge 1982.
695 Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit, liv. 2, disp. 105.

696 Nesta última parte, Molina aproxima-se de Vitória (Relectio […], cit., col. 2, n. 15 ss.).

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

a uma expansão agressiva do catolicismo resultavam precisamente de normas da


religião e do direito divino quanto aos processos de difundir a fé. Na verdade,
apesar da importância que o tópico da evangelização teve na propaganda
imperialista das monarquias católicas, nomeadamente, das monarquias ibéricas, as
limitações à catequização – comuns nos teólogos pós-tridentinos - eram bastante
inconvenientes para a política colonial da Europa católica, pois impediam que, em
nome da fé, do poder universal do Papa, direto ou delegado, se impusesse uma
dominação política sobre os povos encontrados, se revogassem (ou
desconhecessem) as suas leis, se julgassem os seus conflitos, se expropriassem as
suas terras, se lhes impusessem normas cristãs de vida. O que ficava para os reis
católicos (e ainda assim como mandatários do papa) era muito pouco, mesmo que
estes invocassem privilégios papais dados para protegerem a expansão da fé. Pois
esta não podia ser feita pela força, nem os poderes de proteção da evangelização
podiam pretender dos infiéis muito mais do que a liberdade para os missionários.
As consequências do exercício do poder eclesiástico quase que eram apenas visíveis
nos aspetos de disciplina interna da missionação, regulando a repartição de poderes
de autoridades eclesiásticas e autoridades civis sobre missionários, catecúmenos e
colonos cristãos. Se se encarasse a questão do ponto de vista da lei da natureza, a
doutrina, apesar de bastante restrita, era mais generosa para os colonizadores, pois
permitia, mesmo contra os direitos locais, proteger direitos de inocentes
injustamente tratados ou destruir regimes políticos e jurídicos considerados como
contrários à convivialidade humana. No conjunto, este regime equivalia a um amplo
reconhecimento da vigência de uma pluralidade de direitos naquilo que hoje
chamaríamos a cena jurídica internacional, remetendo a resolução dos seus
conflitos não para regras fixas de hierarquia entre eles, mas para regras de
acomodação que variavam de situação para situação, de acordo com a “teoria dos
estatutos” (v. § 724), ou seja, com as normas de direito comum sobre a
acomodação mútua das ordens jurídicas particulares.
§ 529. Paradoxalmente, é o humanismo individualista e racionalista do séc.
XVIII europeu que põe em causa este princípio pluralista.
§ 530. Com o advento do racionalismo iluminista, no séc. XVIII, a ideia da
unidade do género humano ganha uma nova força. O direito, como a cultura em
geral, é percorrido por uma vaga de universalismo que, neste domínio do estatuto
jurídico e político dos povos exóticos, promove – em princípio697 - o igualitarismo
jurídico e a aplicação geral e abstrata das leis e das soluções políticas.
§ 531. Este movimento tem várias faces. Uma delas é a tendência para a
abolição das manifestações de sujeição dos não europeus aos europeus. Daí
decorre, em primeiro lugar, o movimento antiescravagista, que, em Portugal,
encontra as primeiras manifestações legislativas ainda no período pombalino (leis
de 6 e 7.6.1755; alv. 8.5.1750, proibindo o cativeiro de Índios do Brasil ; dec. de
28.3.1758, proibindo a escravização dos chineses, como "bárbara e nula" e contrária
ao direito natural e divino; alv. 16.1.1775, concedendo a liberdade a todos os filhos
de escravos nascidos em Portugal; lei de 19.9.1761 e alv. 7.1.1767, proibindo o
tráfico de escravos para o Reino). Outra face deste movimento de universalismo é a
atenuação do princípio da filiação (ius sanguinis) como critério de distinção entre

697 Na prática, mesmo legislativa, este universalismo tinha muitas limitações: v. Cristina Nogueira

da Silva, Constitucionalismo e Império […], cit..

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naturais e estrangeiros, temperando-o com um princípio de territorialidade, que


valorizava o lugar do nascimento. Ou a promoção da naturalização e a equiparação
dos naturais originários e dos naturalizados. Finalmente, uma outra face do
universalismo é a tendência para a aplicação geral do direito português a todos os
naturais portugueses, qualquer que fosse a sua raça ou estado cultural, tendência a
que corresponde uma política de integração de todas as dependências coloniais no
sistema político, jurídico e judicial do Reino.
2.5.8 A interpretação.
§ 532. O direito era tido – já se viu - como provindo da natureza ordenada das
coisas. Esta natureza tinha muito de evidente para qualquer pessoa. Mas, em
aspetos menos óbvios, tinha que ser revelada por regras emanadas do legislador ou
do trabalho dos práticos do direito (jurisprudentes)698.
§ 533. Daí que a explicitação do direito fizesse parte de uma hermenêutica
geral, que consistia em extrair dos indícios postos na natureza ou na revelação (no
“livro da vida” …) regras de conduta, moral, jurídica ou prática. Isso constituía um
trabalho contínuo e infindável, recolhido pela memória, sob a forma de tradição.
Era a própria experiência – negativa ou positiva – da busca do direito na natureza
que ia pondo à prova a bondade das soluções encontradas. Se prevalecessem, se
fossem aceites e se, assim, se integrassem nos usos da vida ou na praxe dos
tribunais, era porque correspondiam a uma leitura correta da natureza das coisas.
Era por isto que a constituição jurídica da sociedade se manifestava nesta tradição
social que se objetivava, principalmente, na literatura dos juristas.
§ 534. Neste contexto, a distinção – que, muito mais tarde, irá constituir uma
categoria do pensamento e do método jurídicos – entre “ser” (Sein) e “dever ser”
(Sollen) não fazia, por ora, sentido. O mundo era uma ordem que devia ser mantida,
desde logo por corresponder à Criação divina 699; como a natureza era ordenada, e
o caos lhe repugnava, no íntimo do ser havia uma lei, um dever ser, um direito natural,
definido pelo jurista romano Ulpiano (séc. II d.C.) - numa fórmula que será
continuamente citada durante mais de um milénio e meio – como “aquilo que a
natureza 700 ensinou a todos os animais [...]” (D.1,1,1,3).
§ 535. Não existia uma metodologia específica para interpretar este direito
ínsito nas coisas. Existia, sim, um método geral de ir interpretando o mundo,
procurando alcançar, não uma verdade definitiva, mas uma verdade provisória e
provável, cuja fiabilidade se estabelecia e ia aumentando pelo confronto dos pontos
de vista (teoria dos status, tópica, retórica) e a extração de conclusões capazes de gerar
consensos (opiniones communes, receptae, vulgares). Assim, este método não procurava

698 No caso dos jurisconsultos romanos, dada a autoridade que os seus escritos gozaram na cultura

jurídica do Ocidente, a sua autoridade era equiparada à do legislador, chegando a designar-se as normas
emanadas de uns e outros indiferentemente como leges.
699 “As coisas que provêm de Deus estão ordenadas” (“Quae a Deo sunt ordinatae sunt”),

escreveu S. Tomás de Aquino. Lembremo-nos que, de acordo com os versículos do Génesis sobre a
criação, ao fim de cada um dos seus sete dias, Deus olhava para o que tinha criado e, invariavelmente,
achava que a criação estava bem [ordenada] (Gen. 1, 1-2).
700 A natureza também é definida por Cícero (séc. I d.C) como uma norma: “Lex vera atque

princeps, apta ad jubendum et ad vetandum, est ratio recta summi Jovis” [a lei verdadeira e principal,
apta para mandar e proibir, é a recta razão do grande Júpiter] (De legibus, 2, 8-13)

170
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

tanto produzir uma solução certa, mas apenas pôr à disposição do orador
argumentos que tornassem convincentes os diversos pontos de vista.
§ 536. A opção por um ponto de vista devia basear-se em critérios objetivos
(mesmo, verificáveis). Uns formais, como a aceitação pelo uso (usu receptio 701), a
adoção pela prática dos tribunais (stylus curiae), a opinião favorável dos especialistas
(opinio communis doctorum). Outros substanciais (ou materiais): como evitar o absurdo
ou o inútil (absurda vel inutilia vitanda); ou como promover a harmonia do direito
(elegantia iuris)702; ou como favorecer a oportunidade e o bem comum (utilitas, bonum
commune). No meio de todos estes critérios, a acomodação da interpretação ao
sentido tradicionalmente dado aos textos era a regra de ouro, chegando a dizer-se
que este sentido usual valia mais do que o sentido verdadeiro 703
§ 537. Embora o direito não coincidisse com os textos, mas com algo que
estava antes deles (a ordem do mundo, a justiça, fonte mediata ou matéria, do
direito), estes dispunham de uma grande autoridade (chamavam-lhes a razão escrita,
ratio scripta), constituindo um critério decisivo para identificar o direito (fontes
imediatas, ou formais, do direito). Daí que alguns dos problemas de achamento do
direito coincidiam com problemas de interpretação de textos escritos. Embora não
nos devamos esquecer que, para as conceções da época, tudo podia valer como um
“texto”, desde que contivesse indícios de sentidos ocultos. Neste sentido se falava
do “livro da natureza” ou do “livro da vida”. Por isso, quando os juristas falam dos
status legales704 como constituindo a soma dos problemas de interpretação do direito,
eles não se estão a referir apenas àquilo a que nós hoje chamamos “interpretação
das leis”, mas a algo de muito mais abrangente, que poderíamos definir como
“leitura da ordem do mundo”.
§ 538. Os próprios textos do Corpus iuris civilis sobre a lei e a sua interpretação
– originaria ou sucessivamente estendidos, na sua doutrina, a outras fontes que não
eram lei, em sentido estrito705 – propunham, em geral, uma interpretação muito
atenta ao espírito da lei, à vontade do legislador, ou mesmo à letra da lei 706 707. Isto

701 D.1, 3 De legibus, 37. “optima enim est legum interpres consuetudo.”; ib. 23: “minine sunt

mutanda, quae interpretationem certam semper habuerunt”. Na doutrina portuguesa, o tópico é


constante: Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Interpretatio”, n. 844.
702 Interpretando o cada norma pelo seu contexto mais próximo (“Lex bene interpretatur juxta

titulum, sub quo est situata”, Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 28, n. 47); interpretar a norma
de modo a evitar contradições (“ubi cessent contrarietas”, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […],
cit., dec. 21, n. 7); interpretando o direito do reino de modo a aproximá-lo do direito comum (“est
favorabilis interpretatio per quam reducimur ad ius commune”, Tomé Valasco, Allegationes […], cit.,
72, n. 22).
703 "Interpretatio inducta per consuetudinem operatur etiam contra poprium signficationem",

Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 14, n. 3.


704 Os status legales (problemas de interpretação do direito) eram os seguintes: 1. oposição

scriptum/sententiam: o sentido comum das palavras do texto coincidem ou não com o sentido querido pelo
autor ?; 2. Concordância entre leges contrariae: Como proceder perante leis contraditórias ?; 3. Resolução
da ambiguitas: Como revolver a ambiguidade de um texto ?; 4. Desenvolvimento da raciocinatio: Deve-se
concluir analogicamente do disposto num texto normativo para um caso idêntico nele não previsto ?
705 As regras para revolver os problemas (status) encontram-se, por exemplo, no Digesto (D, 1, 3;

D, 50, 17); sobre a analogia, D, 1, 3, 12.


706 D.3, 17: “Scire leges non est verba earum tenere, sed vim ac potestatem”; D.50, 16, 219:

“Voluntatem potiusquam verba spectari oportet”; D.10, 4, 19: “Non oportere ius civile calumniari [i.e.
Falso et scienter impugnare, Gothofredus], neque verba captari; sed qua mente quid dicitur
animavertere convenire”; D.27, 1, 13.2: “Et si maxime verba legis hunc habeat intellectum, aliquando

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porque, como já se disse, eram necessárias umas mediações, dotadas de alguma


autoridade708, para revelar (abrir, ex-plicare) o sentido, por vezes oculto, das leis
naturais. Esta ideia da mediação do direito natural pela sua positivação por um ato
de autoridade acabou tendo uma importância argumentativa muito forte, criando
um filão doutrinal que, mais tarde, será apropriado por aqueles que, esquecida a lei
da natureza, vão identificar o direito com a lei dos homens (positivismo legalista) 709.
Este filão contribuiu para atribuir um certo protagonismo aos textos de direito
romano tardio que reservavam a interpretação da lei para o imperador 710, embora a
generalidade dos juristas interpretasse estes textos restritivamente; defendendo que
eles apenas se referiam a uma interpretação com força de lei (interpretação
autêntica), mas não à interpretação doutrinária (doctrinalis, scholastica), válida apenas
in academia, ou jurisprudencial (usualis), limitada ao caso sub judice. De qualquer
modo, mais limitadamente, este respeito pelo texto levou a que a interpretação
corretiva do texto (fosse ela extensiva, restritiva ou ab-rogatória) constituísse uma matéria
muito mais delicada do que a simples interpretação declarativa.
§ 539. Porém, como as próprias regras de interpretação não constituíam,
propriamente, uma teoria, mas apenas uma coleção de tópicos ou perspetivas a
serem usadas pelo intérprete segundo ponderações variáveis, a par com o tópico
legalista conviviam tópicos de natureza oposta, como o da “interpretação usual”
(que favorecia a prevalência das correntes jurisprudenciais – “jurisprudence des
arrêts”, praxística), o da invocação da equidade, da misericórdia ou da graça, como
deveres deontológicos dos julgadores, no sentido de afinar a justiça às
circunstâncias, encontrando um direito do caso concreto.
§ 540. De qualquer modo - quer justamente em virtude deste caráter aberto e
indeterminado tanto do direito como do complexo de regras da sua interpretação,
quer dos enormes problemas postos aos juristas pela coexistência de vários
sistemas jurídicos (direito romano, direito canónico, direito dos reinos, direitos
municipais e corporativos, etc.) – pode dizer-se que se encontra na literatura
jurídica desta época tudo aquilo que a ulterior teoria da norma irá utilizar.
Princípios como: o da derrogação da lei inferior pela lei superior, da lei geral pela
especial, da lei anterior pela lei posterior; expedientes como os da interpretação
restritiva, extensiva, da interpretação racional (ou segundo o espírito da lei), da
interpretação pela causa ou fim (interpretação teleológica; Decretais, 2,24,26:
“cessante causa, cessant eius effectus”), da interpretação analógica (D.1.3.2: “plures
sunt casus quam leges”), como ainda uma vastíssima cópia de argumentos que

tamen mens legislatoris aliud vult [Quoties ex verbis legis simpliciter intellectis, praefertur iniquum
aequo, recedimus a verbis, et stamus menti rationique legis, Baldus]”.
707 Em sentido contrário: D.1, 3, 20-21: Non omnium quae a majoribus instituta sunt, rationem

reddi potest. Et ideo rationes eorum quae constituuntur inquiri non opportet. Alioquin multa ex his quae
certa sunt subvertuntur.
708 A autoridade do rei, que tinha o poder de fazer as leis (cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit.,

dec. 14, n. 7); mas também a dos tribunais palatinos, que participavam do corpo do rei (“Interpretatio
senatus pro lege observanda est”, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 1, dec. 212, n. 6).
709 “Ordinationes Regni jubentur servari prout jacent, sine exquisitis interpretationibus”, defede

Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 117, n. 20, contrapondo implicitamente uma interpretação
comum e sensata dos textos legais às interpretações cerebrinas dos juristas.
710 C.1, 14, 12, 3: “O Imperador é o único legislador e intérprete das leis”.

172
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

cumprem todas as funções que a teoria da interpretação mais tarde será chamada a
atender (argumentos a maiori, a minori, a contrariu, a simile, a causis, etc.)711.
2.6 Magistrados e oficiais
2.6.1 Definição
§ 541. O ofício era o desempenho de uma função712. Era uma noção geral,
com uso dentro e fora da linguagem jurídica. O seu sentido nuclear era o de uma
obrigação fundada na natureza. Os filósofos consideravam o ofício como um dever
ditado pela virtude - pela bondade, dai a equiparação entre “aquilo que se faz por
obrigação” [ob+ficium] e “aquilo que se faz por bondade” [bene+ficium] -, que
contrastava com aquilo que era exigido apenas pela conveniência ou interesse (atos
mercenários)713. Todo este campo de sentidos pesa sobre a palavra e os seus usos
jurídicos: a ligação entre natureza, ofício e honra, a oposição entre ofício e serviço
mercenário. No discurso do direito, ofício também era um conceito geral, no
sentido de que podia ser aplicado a todas as situações em que alguém estava
objetivamente vinculado a fazer algo. Esta vinculação tinha, quanto à sua existência
e quanto ao seu conteúdo, um caráter objetivo, ligado à natureza das coisas, à
tradição ou ao direito, não dependendo da vontade, como as obrigações que
provêm, por exemplo, de um contrato. Neste sentido, o ofício consistia num
conjunto de deveres forçosos, irrecusáveis e indisponíveis. António Cardoso do
Amaral define ofício como “um conceito geral, que compreende a obrigação que
impendia sobre alguém, seja em assuntos eclesiásticos, seja em assuntos profanos,
quer públicos, quer privados”714, distinguindo-os conforme fossem impostos em
função da utilidade de particulares (v.g. o ofício do tutor, v. cap. 3.3.2.1) ou antes
em função da utilidade da república (v.g. os ofícios jurisdicionais, como o de juiz) e
considerando estes últimos como particularmente vinculativos para aqueles sobre
que recaíssem, que não os poderiam recusar. Porém, o caráter natural dos ofícios
implicava a obrigação de os aceitar e, por isso, também as causas de escusa eram
muito semelhantes, como se verá, qualquer que fosse a utilidade que os
justificasse715.
§ 542. Estabelecidos por uma ordem normativa objetiva – a natureza, a

711 Para a dogmática da interpretação na doutrina portuguesa, sobretudo no período iluminista, v.

Joana Liberal Arnaut, A inteligência das leis […], cit., sobretudo, ps. 119 ss..
712 Bibliografia geral: João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, liv. 5, disp. 13, §§ 9-12; liv.

7. disp. 21-23; Manuel Barbosa, Remissiones doctorum […], ad Ord. fil. 1, 67; 69-70; 73-75; 3, 9; 4, 25; 4, 49;
5, 20; 5, 71-72. Acerca de muitos ofícios, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, decs. 98 ss.
713 Veja-se o tratado de Cícero sobre os deveres (De officiis), em que estes são considerados como

emanando de um direito fundado na natureza, cuja observância propiciava uma vida honrada ou honesta,
de acordo com a natureza. Diferente da avaliação dos atos quanto à sua bondade absoluta era a avaliação
da sua utilidade quanto às vantagens que podiam trazer Cf. Cícero, De officiis (44 a. C.), 1, 9, em
http://www.thelatinlibrary.com/cicero/off1.shtml, trad. http://www.constitution.org/rom/ de_officiis.
htm.
714 “Officium est nomen generale, comprehendens onus, ad quod quis tenentur, & est adstrictus,

sive in rebus ecclesiasticis, sive in prophanis, tam publicis quam privatis, & pertinet ad magistratus,
gubernationem, seu honorem, et aliquando habet nudum ministerium”, António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 1.
715 “Aliud est publicum, aliud privatum [...] necessarium autem officium est illud, quod utilitate, &

auctoritate Reipublicae dicitur publicum, & illud non potest recusari”, António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 2.

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tradição, o direito -, os verdadeiros ofícios tinham um conteúdo de deveres e de


direitos que não dependia senão modestamente da vontade. Quando eventualmente
os criava, o rei estava subordinado a uma ordem natural-tradicional que limitava a
sua discricionariedade quanto ao estatuto dos oficiais 716. Qualquer modificação
desta ordo magistratum, officiorum et iurisdictionum – nomeadamente, criação de
magistraturas extraordinárias (por simples “pragmática” ou edictum principis) ou o
tratamento de questões fora das competências e ordem processual estabelecidas
(desaforo, extra ordinem cognitio) - devia ser excecional e, do ponto de vista da
doutrina, tinha sempre um caráter odioso 717. Por isso, a criação de novos ofícios
podia dar origem a ações judiciais de particulares ou dos titulares de ofícios já
existentes que considerassem que a criação de ofícios novos prejudicava os seus
direitos718. Quando se proviam ofícios já existentes, muito menos se devia inovar
no desenho das suas atribuições, que deviam ser as estabelecidas pela tradição719.
Havia, portanto, uma jurisdição natural ou ordinária de cada ofício; embora esta
jurisdição pudesse sofrer certas modificações 720, era esta que se presumia. Por
exemplo, a jurisdição episcopal cabia, por natureza, ao seu vigário geral (i.e. àquele
que, em geral, fazia as vezes do bispo), embora o bispo pudesse especialmente
delegar algumas das suas atribuições noutros oficiais; mas estas competências
“extraordinárias” tinham que ser provadas por uma carta especial de comissão, já
que não eram exercidas por autoridade natural, mas apenas pela autoridade
especificamente conferida pelo delegante721.
§ 543. Criado e provido o ofício, o estatuto dos oficiais ganhava uma
resistência tal que a ordem dada pelo rei contrária ao estatuto era considerada um
“desaforo” (violação do foro, ou jurisdição) e podia ser impugnada por contrária ao
direito ou presumivelmente motivada por erro ou maquinação 722. Paralelamente, o
ato de um oficial fora do fora do âmbito da sua jurisdição era nulo, podendo
resistir-se a ele.
§ 544. Diferentes destes ofícios “naturais” ou “honorários” eram os cargos
cujas atribuições provinham de uma delegação (ou comissão) do titular do ofício. A

716 Como escrevia Charles Loyseau (ao censurar Jean Bodin, que destacava os ofícios de criação

régia) “les plus varies officiers” não eram “les derniers erigez”, mas “les anciens, dont on n’a mémoire
de l’érection”, Cinq livres du droit des offices, Chasteaudun, Abel l’Angelier, 1610, liv. IV, Des offices
non venaux, Ch. V, Des commissions, n. 4 (https://play.google.com/books/reader?id=
fwpeI8BJQ5kC& printsec=frontcover&output=reader&authuser=0&hl=pt_PT&pg=GBS.PP2).
717 Com as consequências jurídicas que isto tinha: interpretação restritiva, proibição de extensão

analógica, presunção de que se tratava de um regime estabelecido intuitus casus, intuitus personae), dever
de indemnizar eventuais prejudicados com a criação de novos ofícios ou com a extinção de algum já
existente..
718 Decisão judicial interessante: “Fez elRay aposentador de novo a Pero Borralho. Veio com

embargos na chancelaria Isabel Pereira dizendo que não houvera nunca senão um só aposentador, e que
era em seu prejuizo haver dois, pois se repartiriam os próis e precalços [...]. Julgou-se no juízo da coroa
que não era agravada, e que elRey para bem publico podia crear de novo os ofícios, que parecessem
necessários”, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, Aresto 24.
719 O oficial criado de novo devia reger-se pelo estatuto desse oficio nas cidades vizinhas, António

Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 28.


720 Podia ser delegada ou prorrogada. Cf. adiante.

721 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, ns. 42 e 44.

722 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, ns. 31-32 (resiste-se ou

agrava-se quanto ao ato fora da jurisdição; recorre-se contra o ato dentro da jurisdição).

174
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ideia de que todos os ofícios eram do governante, que os atribuía aos seus
servidores por meio de uma delegação (parcial, disponível e revogável) da sua
jurisdição também se encontra nas fontes de direito romano, sobretudo do
principado e do Baixo-império.
§ 545. A figura conceitual usada para exprimir isto era a delegatio (ou mandatio)
jurisdictionis, pelo que esta jurisdição era dita delegata vel mandata, por oposição à
jurisdictio ordinaria. A jurisdictio delegata era especial, atribuindo o poder de tratar
(inquirir, processar, julgar) um caso ou um tipo específico de situações indicados na
carta de delegação. Foi por meio da delegação de jurisdição que se foi alargando a
estrutura de oficiais da coroa, na época moderna. Aos ofícios tradicionais –
normalmente, de governo (incluindo a justiça) das terras e outras corporações –
foram-se somando os funcionários em que o rei delegava o poder para tratar de
questões que antes estavam nas suas mãos e que ele geria informalmente (cognitio
extra ordinem) ou como coisas suas (dispondo delas por meio de leges rei suae dictae,
usando a sua potestas domestica ou privata administratio). Alguns deles eram
encarregados de conhecerem da causas concretas (juízes comissários) libertos das
formalidades do processo ordinário (sine strepitu et figura iudicium). Outros eram
nomeados para conhecer certos tipos de causas que tinham emergido com o
desenvolvimento da administração, como os negócios da guerra, da fazenda, do
património real ou da coroa. Na origem, estes novos ofícios eram classificados
como comissões (comissiones), curatelas (curationes) ou supervisões (superintendentiae).
§ 546. No final do séc. XVI, Jean Bodin, ao reconstruir as categorias do direito
público no âmbito de uma teoria do poder real como soberania, aproxima estas
comissões dos ofícios ordinários. Umas e outros seriam criados pelo príncipe, os
ofícios com uma jurisdição genérica, as comissões com uma jurisdição limitada no
espaço, no tempo e nas matérias, e dependente da vontade do concedente. Esta
construção não era muito inovadora, pois as suas bases dogmáticas estavam no
direito romano. Mas o alcance que Jean Bodin lhe dava abrangia setores cada vez
mais vastos e importantes do oficialato, pelo que afetava muito as instituições de
governo das monarquias modernas e o seu pessoal administrativo 723. Colocava o
príncipe (e não a natureza, a tradição ou o direito) como origem e regra dos ofícios,
integrava no governo da república áreas de administração antes consideradas quase
como que pessoais do rei, enquanto ecónomo (i.e. governador da sua casa),
libertava o poder real de muitos constrangimentos, mas reduzia na mesma medida
as prerrogativas dos oficiais.
§ 547. Não admira, por isso, que a criação régia de ofícios tenha suscitado
perplexidade e reações logo desde o seu aparecimento. Charles Loyseau reage
imediatamente a estas inovações, reafirmando a primazia dos “vrais offices” sobre
os criados de novo (“à nouveau erigez”), embora reconhecendo a importância das
comissões e a sua dependência em relação à vontade livre do príncipe (“… la
commission, qui n’a presque loy ni regle, ains depend quasi du tout de la volonté de

723 Jean Bodin, Les six livres de la République, Paris, Jacques du Puys, 1576, liv. 1, c. 3, e 8

http://fr.wikisource.org/w/index.php?title=Fichier:Bodin_-_Les_Six_Livres_de_la_R%C3%A9
publique, _1576.djvu&page=13; (Lyon, Jacques du Puys, 1580: https://play.google.com
/books/reader?id=KT3Pzv0zR_EC&printsec=frontcover&output=reader&authuser=0&hl=pt_PT&pg
=GBS.PP5). Cf. Vitor Ivo Comparato, “Note sulle teoria dela funzione publica in Bodin”, em
L’eduxazione giuridica […], cit..

175
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celuy qui la decerne”)724. A polémica passa a projetar-se sobre a dogmática acerca


de vários pontos do direito dos ofícios, como se verá 725.
§ 548. Uma outra distinção relevante era a que contrapunha as atribuições
nobres do oficial (officium nobile) às suas atribuições que ele desempenhava a pedido
das partes, para prosseguir uma utilidade particular (officium mercenarium).
Encontrámos esta distinção logo na abertura do De officiis de Cícero, quando ele
distingue as ações devidas pela natureza daquelas que apenas são devidas na
perspetiva de uma utilidade pretendida. Assim, o titular do ofício tinha o dever de
realizar, por sua iniciativa e pela autoridade que lhe era conferida pela sua função
(ex officio, motu proprio), os atos exigidos pela função natural do ofício. Estes faziam
parte do seu ofício nobre. Em contrapartida, havia outros atos que, cabendo na sua
esfera de competências, não eram necessários para a realização da sua função,
apenas podendo ser úteis na perspetiva de algum interesse particular. Estes estavam
fora do seu ofício nobre e integrados apenas no seu “ofício mercenário”. Como
eram úteis para os particulares e cabiam nas atribuições do oficial, este podia
praticá-los; mas recebendo em troco uma recompensa (mercês, emolumentum726). Era
corrente aproximar estas atribuições menores do conceito de ministerium, que
evocava, na sua etimologia, os serviços de uma pessoa de menor dignidade (minister,
proveniente de minus, menor; por oposição a master, maior). Esta aproximação das
palavras degradava a função de oficiais cuja função se limitasse a estas atribuições
mercenárias (como os tabeliães), classificando-os de servi ministeriales (semelhantes
aos criados ou escravos, cujos serviços apenas eram úteis aos seus patrões ou
senhores).
§ 549. Esta distinção entre officium nobile e officium mercenarium aparece em
Bártolo, que liga a distinção à natureza dos fins prosseguidos pelo juiz ao agir. Se
ele age em função de uma ação – e, portanto, vinculado aos interesses das partes -,
ele exerce o seu officium mercenarium. Mas se age por iniciativa própria,
independentemente de qualquer ação, prosseguindo interesses que não são os das
partes, mas o interesse público, ele exerce o seu officium nobile727.

724 Charles Loyseau, Cinq livres du droit des offices […], cit., liv. 1, ch. 1, n. 111.
725 Ord. fil. 2, 56 Libri Feudorum, 2, 56: “Quae sint regalia: potius ad fiscale ius, et proventus,
quam ad ipsam supremam authoritatem et dignitatem spectant”. (cf.
https://play.google.com/books/reader?id=T_BKAAAAcAAJ&printsec=frontcover&output=reader&a
uthuser=0&hl=pt_PT&pg=GBS.PT4).
726 Ubi onus, ibi emolumentum (se há um encargo, deve haver uma recompensa).

727 (“Quotiescunque officum iudicis deservit, dicitur mercenarium. Hoc est verum, quando
deservit ad eum finem, ad quem fuit intentata actio, secus si ad alium […]”, Bártolo, Opera […] omnia.
Dig Vet, ad 1, 1, De iur. omnium iud. (Adnotationes novae), pg. 31, Venetiis, 1590
(http://books.google.com.br /books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v= onepage&q&f=false). A distinção era complexa, pois
dependia de vários tipos de atos que o juiz podia praticar no decurso do processo: ”Pergunto quantas
formas há de atribuições (officium) do juiz […]. Digo que há três, uma como mercenário, quando serve
[http://ducange.enc.sorbonne.fr/deservire] a ação a partir (ex) da natureza [finalidade] da mesma ação,
como nos juízos de boa-fé, outra quando serve a ação em vista (propter) da natureza da mesma, como
nos juízos arbitrários […]. Certas atribuições do juiz são nobres, outras são mercenárias, outras
adversárias. As atribuições nobres são as que existem por si, quer o juiz as exerça por iniciativa própria,
ou a pedido de outrem, como inquirindo, ordenando a restituição in integrum, dando tutores, emitindo
decretos, estabelecendo o salário dos advogados e dos médicos e coisas semelhantes. Outras atribuições
são mercenárias, quando não existem por si, embora sirvam a ação, e isto pode acontecer de muitas

176
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 550. Simplificando a distinção de Bártolo, a doutrina mais moderna segue a


síntese feita pelos compiladores de Bártolo nas suas primeiras edições impressas, e
identifica o ofício nobre com as atribuições autónomas (ex officio) que decorriam
diretamente do cargo, requeridas pelo interesse da república, como, nomeadamente,
o seu poder público de declarar o direito728. Ou seja, as funções jurisdicionais do
oficial que não satisfaziam apenas o interesse das partes, nem dependiam, por isso,
apenas da iniciativa destas (como a generalidade dos atos processuais), mas que
envolviam também um poder autónomo de mando, a que chamavam império 729.
Assim, os oficiais “nobres” eram aqueles que detinham, para além de poderes
jurisdicionais simples, vinculados aos interesses das partes, poderes de iniciativa: os
que gozavam do poder de império. O modelo doutrinal era o do juiz ordinário. Em
contrapartida, oficiais mercenários eram os que não tinham esse poder de mandar,
de emitir autonomamente comando, mas apenas uma “jurisdição voluntária”, pois
o seu poder jurisdicional estava dependente da vontade (e interesses das partes). O
seu modelo típico era o do tabelião ou notário.
§ 551. Já se vê que este contexto linguístico e conceitual tinha implicações na
construção dogmática do ofício. Aqueles ofícios em que preponderassem as
atribuições que integravam a “função nobre”, visando o interesse público, eram
regulados como “honras”, cuja dignidade excluía qualquer exercício mercenário,
bem como o seu tratamento como bens patrimoniais 730. Pelo contrário, nos ofícios
em que predominassem as atribuições mercenárias, ministeriais, a função (oficium)

maneiras, quando serve a ação com o fim de que se proponha, como na citação e nos interrogatórios e
em tudo o que se faz antes da contestação da lide. Outras vezes serve a ação com o fim de que se exerça,
como quando concede prazos, aceita testemunhas e provas e em tudo o que fizer depois da contestação
da lide até à sentença definitiva. Outras vezes serve a ação com o fim de lhe por fim, e isto de três
formas, ou a partir (ex) da finalidade (natureza) da ação, como quando condena nos juros, frutos e
interesses nos juízos de boa-fé. Ou em vista da (propter) da finalidade da ação por algum seu acidente
externo, como nos juízos arbitrários, ou em virtude da natureza do juízo, ou da instância, não
atendendo a de que ação se trata, como na condenação nas despesas […] Por vezes, o ofício do juiz é
adversário, pois não serve a ação, mas antes se lhe opõe […] e isto pode acontecer de duas maneiras.
Primeiro quando o juiz propõe algo em vez da exceção […] ou quando serve a exceção interposta”
(Bártolo, Opera […] omnia. Dig Vet, ad 1, 1 De iur. omnium iuD.lex prima, n. 12 (p. 46), Venetiis, 1590
(http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false).
728 Cf. a definição bartolina de iurisdictio: “Iurisdictio in genere sumpta [est] potestas de publico

intoducat, cum necessitate iuris dicendi, & equitatem statuendae … Et dicitur iurisdictio a iuris, &
ditio, quod est potestas […], sic dicitur iurisdictio quasi iuris potestas” (Bártolo, Opera […] omnia. Dig
Vet, ad 1, 2, Rubr: Arbor iurisdictionum, pg. 44 v, Venetiis, 1590
(http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f =false). Cf. antes § 58.
729 “Imperium, est iurisdictio, quae officio iudiciis nobili exercetur, et ponitur in deffinitione

iurisdictione pro genere, & verba officium nobili, ponuntur ad differentiam iurisdictione simplicis,
quae exercetur officio iudicis mercenario … Et dicitur imperium, quia ex imperio, authoritate iudicis
procedit, et non ex aliquo iure, quod resideat apud partem” (O imnpério é a jurisdição que se exerce
pelo ofício noibre do juiz, sendo jurisdição o elemento genérico da definição e as palavras “do ofício
nobre” a diferença específica que o distingue da simples jurisdição, que é exercida pelo ofício
mercenário […] E diz-se império, pois a autoridade do juiz deriva do império e não de algum direito
que resida nas partes” (Bártolo, Opera […] omnia. Dig Vet, ad 1, 2, Rubr: Arbor iurisdictionum, b. p. 44 v,
Venetiis, 1590 (http://books.google.com.br/books?id=E-QbpiN8k-oC&printsec=frontcover&hl=pt-
PT&source= gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false).
730 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], pt. 1, liv. 1, disp. 2, ns. 121 ss. (maxime, n. 130,

onde se cita uma constituição papal de 1571, que estabelece a distinção com nitidez).

177
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estava separada da nobreza, da honra (honor). Por isso, estes ofícios aproximavam-se
das profissões que serviam interesses particulares e que, por isso, deviam ser
remunerados pelos que a eles recorressem. Isto pode explicar bem a assimilação de
certos ofícios a um bem patrimonial (in patrimonio)731, com a consequente
alienabilidade, penhorabilidade e transmissibilidade na herança do titular. Por vezes,
a lógica da tradição textual ia tão longe que contradizia as práticas sociais. Um
exemplo disso foi a suspeita de indignidade que impendia sobre o ofício de tabelião,
por causa da aproximação que a Glosa fazia entre o tabelionado e a qualidade de
servo ou escravo. Na época moderna, porém, o ofício estava socialmente
prestigiado e era muito bem remunerado. Daí que a doutrina fosse enfática em
repudiar essa desqualificação, opondo à lógica dos textos a nova lógica social: “O
ofício de tabelião público, segundo o direito comum, é vil, e abjeto, pois o tabelião
é chamado de escravo público [na glosa] […] Não escusa de encargos pessoais.
Hoje, em toda a nossa Hispânia, o ofício do tabelionado é reputado como nobre, e
todos os que exercem tal ofício vivem à maneira da nobreza e são autorizados por
leis régias a andar com armas e cavalos, como os cavaleiros” 732.
§ 552. Na doutrina jurídica da época moderna, nota-se o progressivo
alargamento do caráter nobre dos ofícios – que, em rigor, só existia para os oficiais
que gozassem de atribuições que cabiam no “ofício nobre” – a todos os ofícios. Os
oficiais, na verdade, faziam parte, até certo ponto, do universo social dos
jurisconsultos. Eram, uns e outros, gente que comunicava entre si no âmbito do
mundo da comunicação letrada e que reciprocamente se consideravam como
segmentos da sanior et honoratior pars reipublicae. Embora as distinções entre os vários
agentes da cultura letrada estivessem sempre presentes, os juristas tendiam a
dignificar os oficiais, sendo também exigentes nas qualidades que os deviam
caracterizar733.
2.6.2 Consequências normativas da natureza dos ofícios.
§ 553. O ofício era uma honra porque participava da tarefa de governo da
república como atividade de estabelecimento/restabelecimento da ordem (honesta
publica vita). E os agentes de governo constituíam uma elite social que ainda se
reforçava pelo desempenho desta tarefa de estabelecer os equilíbrios naturais da
sociedade política (uma administração honorária, Honorationensverwaltung). Os ofícios
exigiam nobreza natural, mas o seu exercício reforçava essa nobreza 734.
§ 554. Desde logo, consistindo em honras, os ofícios não deviam ser
adquiridos por um preço, ou procurados gananciosamente, mas apenas exercidos
por quem comprovadamente tivesse uma vida digna (“officium est negandis

731 “Officia publica postquam sunt acquisita censetur in bonis, et veniunt sub appelatione illorum”

(os ofícios públicos, depois de adquiridos, são tidos como fazendo parte dos bens e entram no
conteúdo desta designação”), Álvaro Valasco, Praxis partitionum […], c. 13, n. 69.
732 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 50, citando Ord. fil.1, 57 e as

Siete Partidas, 3, 19, 14.


733 Sobre as proximidades entre juristas e oficiais, v. António Manuel Hespanha, As vésperas […],

cit., V.3, ps. 498 ss..


734 Cf. sintetizando, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], t. 9, ad. Ord. 2, 33, rubr. gl. 14,

ns. 277/278; Nicolau Coelho Landim, De syndicatu […], c. 10, n. 50; João de Carvalho, Novus et
methodicus tractatus de una, et altera quarta legitima falcidia […], 1, n. 362.

178
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

petenti, et dandum fugienti, si est dignus” 735.


§ 555. A exigência de dignidade explica que se entendesse haver uma certa
proximidade entre o ofício e a concessão feudal736. Ou, pelo menos, que nos ofícios
não pudessem ser metidas pessoas vis – como os trabalhadores manuais
(mechanici)737 -, hereges e recém-batizados (neophiti) ou pessoas de sangue impuro,
como os cristão novos (iudaei, iudaeiconversi)738, bem como aqueles que tivessem
pendente acusação de crime, ou tivessem sido condenados por isso739. Também os
estrangeiros (forenses), já que não pertenciam àquela república (princípio do
indigenato)740.
§ 556. Este requisito de dignidade comprometia a disponibilidade do ofício
pelo seu titular e, por isso, limitava a patrimonialização dos cargos, pois apontava
para que os ofícios fossem sempre concedidos intuitu personae e apenas
transmissíveis sob condição de que o sub-rogante tivesse as mesmas qualidades do
que o sub-rogado, requisito que só podia ser avaliado por quem concedesse o
ofício741.
§ 557. Não raramente aparecia a questão do equilíbrio entre a dignidade (o
mérito social) e as particulares competências exigidas pelo cargo (o mérito
profissional). Neste capítulo das qualificações pessoais, exigia-se, como mínimo, a
maioridade (de 25 anos) e a suficiência de juízo e de informação 742. Acontece,
porém, que se considerava que certos cargos exigiam particulares aptidões. Tal seria
o caso dos ofícios de justiça real (“lugares de letras”: juízes de fora, corregedores,
desembargadores), para os quais se requeriam estudos universitários e exame de
entrada na carreira e prática do foro 743. Mas mesmo nestes casos, a dignidade
familiar não deixava de confluir com o mérito, conferindo preferência em igualdade
de apuro técnico. Em Portugal, apesar de se terem instituído exames de mérito para
aceder às carreiras da justiça letrada, os filhos dos Desembargadores costumavam
ser providos automaticamente nos lugares de letras, desde que tivessem, estudos 744.
Assim, em 1654, o conhecido desembargador Diogo Marchão Themudo pedia ao

735 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 4 (o ofício deve ser negado

ao que o pede e ser dado ao que foge dele, se for digno).


736 “Valet argumentum de officio ad feudum e contra” (Domingos Antunes Portugal, Tractatus de

donationibus […], cit., liv. 2, c. 7, n. 7).


737 Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officialis”, n. 1344.

738 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 51. Apoia-se no cân. 63 do

4º Concílio de Toledo (663 d.C.).


739 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 37.

740 “Forenses non vocantur ad gobernandam rempublicam”, decide Álvaro Valasco, Decisiones [...],

cit., cons. 8, n. 19. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., discute a regularidade da concessão de um ofício
a um francês (Melchior Febo, Decisiones […], dec. 28, per totam).
741 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, ns. 29/30.

742 Álvaro Valasco coloca a suficiência de conhecimentos como um dever mais do provido do que

do concedente, entendendo que pecava aquele que não tivesse conhecimentos suficientes para o ofício
que pediu, (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 9, n. 30.
743 Neste caso, a aptidão técnica era controlada não apenas pelos exames universitários (cf. L.

13.1.1539, em Duarte Nunes de Leão, Collecção […], ed. 1796, pg. 580; Ord. fil. 1, 35, 2; Est. univ. III,
19, pr.), mas também por um exame perante o Desembargo do Paço (“leituras de bacharéis”: depois de
1541, data dos primeiros exames conhecidos; sobre estes exames, cf. Nuno Camarinhas, Juízes e
administração da justiça […], cit.).
744 Cf. Fernanda Olival, Ordens Militares e o Estado Moderno […], cit., (ed. polic. de 1988, 1, 140).

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Desembargo do Paco que despachasse o seu filho como corregedor para uma
comarca do primeiro banco, por ser esse o costume 745. E Lourenço Correia de
Lacerda pedia para um filho, logo que perfizesse 12 anos, um lugar extravagante de
desembargador do Porto, em atenção aos serviços de seu pai 746. Em 1660 (dec.
20.4) este provimento extraordinário dos filhos era considerado como excecional e
dependente de graça especial do rei. Mas não era apenas no caso dos filhos de
Desembargadores que o provimento em lugares de letras se fazia sem exame. Isto
também acontecia com certos lentes das Faculdades de Leis e Cânones e com os
ministros do Santo Oficio747. Enfim, diferentes sinais de uma mesma conceção
estatutária da carreira jurídica para que outros autores já têm chamado a atenção 748.
§ 558. No caso dos tabeliães exigia-se um exame de suficiência749. Também os
advogados estavam sujeitos a diversos tipos de controlo de competência 750.
§ 559. A exigência da honra fazia com que os ofícios se perdessem por
infâmia751.
§ 560. Talvez fosse esta ideia de que o exercício dos ofícios pressuponha e
reforçava uma certa dignidade natural que justificasse a reivindicação, apoiada pelo
direito doutrinal dos ofícios, quanto aos direitos de sucessão no ofício dos filhos de
um oficial que tivesse servido dignamente. Também aqui se manifestaria aquela
capacidade natural dos progenitores de propagar na descendência as suas
qualidades. É certo que o princípio foi inicialmente formulado para os filhos de
oficiais que tivessem morrido na guerra, a título de remuneração póstuma dos seus
serviços752. E, quando foi alargado a outros oficiais, o fundamento mais invocado
do direito dos filhos era o de que a concessão do ofício aos descendentes se

745 Arq. Nacional da Torre do Tombo, Desembargo do Paço, Repartição da Justiça, Livro de

registo de consultas, livro 32 (16541656), fl. 15.


746 ibid. fl 16; v. outro caso a fls. 114.

747 Cf. Decrs. de 20.4.1663 (JJAS, 86) e 10.6.1666 (JJAS, 119).

748 Cf. por todos, Filippo Ranieri, “De corpo a profissão”, cit.

749 Cf. Reg. do Desembargo do Paço, ns. 6, 56, 59, 64, 67, 71; Ord. fil. 1, 1, 44; 1, 78.

750 A partir das Ordenações manuelinas, os advogados letrados perante as Casa do Cível e Casa da

Suplicação deviam submeter-se a exame (Ord. man. 1, 38, pr.: “muito proveitosa cousa he aver hi
procuradores letrados, e entendidos, que procurem os feitos, que se tratarem assi em nossa corte,
como em a nossa Casa do Cível, e nas cidades, e villas de nosso Reino”, 1, 38, pr.); o mesmo
acontecia quanto aos advogados não letrados que exercessem perante outros tribunais (ibid.). Uma lei de
13.1.1539 (em Duarte Nunes de Leão, Collecção […], cit., pg. 796) fixava a exigência de estudos em 8
anos de estudos jurídicos. Trinta anos mais tarde, em 1576 (lei de 7.5, ibid. pg. 220), voltou-se atrás,
abrindo provisoriamente a advocacia a não letrados que soubessem ler e escrever. Mas as Ordenações
filipinas exigirão de novo os oito anos de estudos para advogar perante os tribunais superiores, além de
uma "oposição" perante o Chanceler da Casa da Suplicação, se se queria advogar perante este tribunal
(Ord. fil.1, 48 ss.). Pelo contrário, para exercer perante a Casa do Cível, bastava - pelo menos de 1603 a
1722 (assento de 27.4) - a graduação universitária e a admissão, sem exame, pelo Governador da Casa.
Para o resto do reino, a advocacia estava aberta livremente aos bacharéis e, dependendo de um exame
perante o Desembargo do Paço, a todas as pessoas "aptas segundo o direito comum e real" (v. Ord. fil.
1, 48, 4). Em contrapartida, os procuradores do número que actuavam perante os tribunais dos concelhos
mais pequenos, com livre acesso ao patrocínio judicial (Ord. fil. 1, 48, 4), não estavam sujeitos a
nenhum exame (Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tom. 2, gl. 130; tom. 4, ad Ord. fil.1, 48,
gl. 6 n. 1; tom. 7, ad Reg. Sen. Pal. c. 45, n. 1; tom. 14, ad 1, 48, n. 5). Cf. António Manuel Hespanha,
As vésperas […], p. 512 n. 96.
751 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 36.

752 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 40.

180
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

justificava pelo facto de estes serem credores mais fortes do ato de graça do rei.
Mas este especial crédito fundava-se numa continuidade generativa entre pais e
filhos, que se manifestava também noutros pontos do direito.
§ 561. Esta conceção honorária dos ofícios é ainda consistente com outros
pontos da dogmática jurídica da época.
2.6.3 A capacidade para exercer ofícios públicos.
§ 562. Como funções de natureza pública753, os ofícios eram de exercício
obrigatório. O direito dispunha acerca das causas de escusa do dever de exercer um
ofício, sendo bastante restritivo quanto a isto: a falta de idade, a doença, a pobreza
e o ingresso em ordem religiosa escusavam, tal como ter mais de cinco filhos ou um
filho morto na guerra754. Também se podia estar escuso por privilegio (ou por
costume prescrito de estar escuso), como acontecia com os rendeiros das rendas
reais755. Estas escusas podiam não valer se não houvesse gente para desempenhar
os ofícios756. Pela mesma razão da imperatividade, não se podia abandonar o ofício
sob pena de se servir no dobro e de os bens do revel responderem pelo salário do
substituto757.
§ 563. Outra consequência do caráter público dos ofícios era a sua
incompatibilidade com o desempenho de funções que pudessem conflituar com o
interesse público. Assim, os oficiais da república por norma não podiam contratar,
por si ou interposta pessoa, pedir emprestado ou emprestar, bem como casar, no
lugar em que fossem oficiais, com pessoas sujeitas à sua jurisdição, sob pena de
nulidade dos atos praticados em contravenção e perda do objeto do negócio (Ord.
fil.4,15,1). Estas interdições prolongavam-se para além do termo do seu mandato.
Apenas se excetuavam os negócios de extrema necessidade (como alugar casa ou
comprar alimentos), celebrados publicamente e de boa-fé. Do mesmo modo, não
podiam estar em juízo no lugar em que exerciam758. António Cardoso do Amaral
refere que esta era a prática em todo o reino 759.
2.6.4 O exercício dos ofícios. Deveres deontológicos e retribuição.
§ 564. O desempenho dos ofícios regulava-se por normas que arrancavam da
ideia de que eles constituíam o exercício de funções devidas para com a coisa
pública ou para com os seus responsáveis máximos.
§ 565. Certos ofícios públicos, os exercidos sem carácter profissional e
quotidiano, participavam do imaginário do serviço religioso, combinado com o
imaginário do serviço feudal. O seu desempenho correspondia, em geral, a serviços
públicos devidos, pelo que deviam ser desempenhados gratuitamente. Exercê-los
bem dependia do valor e de um nobre espírito de serviço; a sua remuneração estava

753 Mesmo se algumas das suas atribuições visassem também a satisfação de utilidades particulares,

como é o caso do ofício de tutor ou das atribuições mercenárias dos oficiais.


754Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officialis”, n. 1344.

755Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officialis”, n. 1344.

756Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officialis”, n. 1344.

757 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 26.

758 A não ser para responderem por furto, coisa “fétida e abominável nos oficiais e pessoas

honradas” (António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 15.


759 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, ns. 5 a 9 e 14.

181
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no reconhecimento público ou na honra que eles conferiam. Era o que se passava


com os cargos de governo e justiça local, como vereador ou juiz ordinário. O seu
exercício podia gerar vantagens, mesmo patrimoniais e, por isso, para certos fins
(designadamente fiscais, como o pagamento das meias anatas ou, mais tarde, dos
direitos de encarte), o seu significado patrimonial podia ser avaliado 760. Porém, uma
outra remuneração não era estritamente devida, como o era o salário dos ofícios
mercenários, mas antes eventualmente “esperada” da liberalidade do príncipe.
Porém, esperada com tanta força que a expectativa correspondente chegou a
chamar-se “ação”, pois podia dar lugar a um direito acionável em juízo a que
correspondia um quase dever do príncipe a retribuir com mercês os serviços dos
beneméritos da república.
§ 566. Outros ofícios públicos, no entanto, escapavam a esta lógica puramente
honorária. Designadamente aqueles que eram desempenhados continuamente, com
carácter profissional, como era o caso dos oficiais ordinários da república. O
exemplo mais caraterísticos é o dos juízes régios (juízes de fora, corregedores).
Citando uma decretal de Gregório IX, Baptista Fragoso pondera que “é justo que
recebam o seu pagamento aqueles que prestam o seu serviço por certo tempo [i.e.
com carácter de regularidade, profissionalmente] [...] De onde os oficiais do reino
deverem ter um salário, pois aborrece desempenhar ofícios laboriosos e cargos da
república; e porque o desempenho de uma função a ninguém deve trazer um dano.
De facto, as leis não suportam que os que trabalham vivam na pobreza ou na
ansiedade”761. Porém este pagamento não deveria, em alguns dos casos - como no
dos ofícios de justiça -, ser pago pelas partes, já que o príncipe era obrigado a
prestar gratuitamente a justiça. Por isso, o estipêndio deveria estar a cargo do
príncipe. Porém, este pagamento regular do salário não isentava o príncipe de
outros deveres de remuneração em relação a estes oficiais. O facto que estes
serviam com o salário costumado, ou mesmo o facto de terem pedido os ofícios,
não anulava a componente liberal dos seus serviços - que consistia na sua
disponibilidade para servir a república. Assim, além dos salários estritamente
devidos, o príncipe devia remunerar com mercês justas os oficiais que servissem
bem762.
§ 567. A gratuidade da justiça impedia que os juízes recebessem ofertas das
partes, pois os seus serviços eram prestados à republica e não a estas. Se estas
pagassem algo, como que privatizariam a função judicial. E o juiz venderia a sua
missão, fazendo como que sua uma coisa que era de todos (facere litem suam). Esta
“venda” de função pública estaria muito próxima da simonia, ou venda de funções
sagradas. O princípio da gratuidade da prestação da justiça em relação às partes não
excluía, no entanto, a possibilidade de receber algo diretamente das mãos das
partes, desde que não houvesse nem pacto de favorecimento nem escândalo
público763.
§ 568. O facto de estes ofícios públicos serem como que um sacerdócio cívico

760 Sobre a avaliação da honra dos oficiais honorários dos concelhos, v. António Manuel
Hespanha, Vésperas […], cit., 5.1.
761 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 386, n. 55.

762 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 648, n. 196.

763 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 385, n. 56; pg. 391, n. 80.

182
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

fazia com que se fizessem elevadas exigências deontológicas ao seu exercício,


ratificadas pelo direito positivo: sufficiens scientia764, timor Dei, pureza de mente e
mãos765.
§ 569. Os oficiais respondiam – em princípio, perante o corregedor da corte,
para quem o corregedor da comarca devia mandar os processos 766 - pelos seus
delitos de ofício, por dolo, negligência, imperícia ou idênticas e também pelas falhas
de outrem em quem tivessem sub-rogado, sendo obrigados pelos danos 767,
incorrendo, eventualmente, em responsabilidade penal, como no caso de se
apropriarem de coisa pública ou dos seus administrados 768. Este modelo de
responsabilidade – que era semelhante ao dos artífices que não fossem escolhidos
pelas partes, como os agrimensores - aplicava-se também ao juiz que julgasse mal
por abuso de poder (facere litem suam), imprudência769 ou imperícia. A negligência
grave ou repetida (contumácia) justificava a remoção do ofício 770.
§ 570. A honestidade – imparcialidade e “limpeza de mãos” - era também um
dever essencial dos oficiais, pelo que a parcialidade e a corrupção (“venda da
justiça”, barataria) constituíam crimes (e pecados771) ligados ao exercício dos ofícios.
As Ordenações previam vários crimes de oficiais, todos eles relacionados com a
improbidade (Ord. fil. 5,71: “Dos Oficiais do Rei, que recebem serviços, ou peitas, e
das partes, que lhas dão, ou prometem”; Ord. fil. 5,72: “Da pena, que haverão os
Oficiais, que levam mais do conteúdo do seu Regimento, e que os que não tiverem
Regimento o peçam”; Ord. fil. 5,73: “Dos Almoxarifes, Rendeiros e Jurados, que
fazem avença) ou com a parcialidade” (Ord. fil. 5,74: “Dos Oficiais do Rei, que lhe
furtam, ou deixam perder sua Fazenda por malícia”).
§ 571. Crimes eram, ainda, a cobiça e o abuso dos salários, exigindo das partes
estipêndios (emolumentos, próis e percalços) superiores aos que eram
contrapartidas adequadas das funções exercidas e que, por isso, estavam fixados na
lei772.
§ 572. A supervisão da atividade dos oficiais de justiça e o apuramento dos
seus erros de ofício era feita durante as visitas regulares dos corregedores às terras
onde exerciam os seus ofícios ou, no termo das suas comissões, pelas residências
tomadas pelos mesmos corregedores, nos termos dos tits. 1, 58 e 1, 60 das
Ordenações773.

764 “Se não tiver ciência, a menos que tenha assessores peritos que consulte, faz sua a lide e, se

julgar mal, fica obrigado a ressarcir as partes lesadas" (ibid. ).


765 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 42, ns. 144 ss.

766 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 209, n. 1;Bento Pereira, Promptuarium [...],

cit., s. v. “Officialis”, 1340 ss..


767 Textos legais: Ord. fil. 1, 99 e 100. Doutrina: António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.

“Officium”, n. 20.
768 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 38.

769 Por exemplo, seguir uma opinião diferente da comum.

770 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Officium”, n. 25.

771 Cf. Os manuais de confessores costumavam conter um capítulo dedicado aos pecados dos

oficiais públicos.
772 Cf. v.g. Ord. fil. 1, 92 ss..

773 Comentário doutrinal: Nicolau Coelho Landim, Nova et scientifica tractatio … De syndicatu iudicum

& aliorum officialium justitiae […], cit.; João Pinto Ribeiro, Obras varias sobre varios casos con tres relações […],
89 ss.; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 4, ad Ord. 1, 60; Manuel Lopes Ferreira,

183
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§ 573. Em alguns ofícios, o desempenho de funções públicas (merum imperium)


combinava-se com a satisfação de utilidades privadas (mixtum imperium). Era o caso
dos ofícios de notário, que satisfaziam principalmente necessidades meramente
particulares, ainda que frequentemente relacionadas com assuntos de justiça, sendo
pagos, não por salários do rei ou das câmaras, mas por emolumentos a cargo das
partes774. Por isso, o serviço de escrivães e notários era fortemente atraído pelo
imaginário dos serviços mercenários Uma espécie de contrato de trabalho (locatio
conductio operarum) visando a escrita de documentos, que só se distinguia pelo facto
de que produzia certos efeitos de especial dignidade e autoridade pública, como a fé
pública dos documentos que redigissem. O carácter público destas funções
importava certas consequências. Os notários não podiam recusar os seus serviços a
ninguém775; não podiam violar as regras da verdade; não podiam exigir mais salário
que os estipulados na lei; não deviam aceitar ofertas das partes776; não podiam ser
“infames”777. Mas a semelhança com os ofícios mercenários levava a que ofícios e
réditos fossem considerados como privados para uma serie importante de efeitos.
Assim, uns e outros integravam-se no património do titular e, consequentemente,
podiam ser vendidos, arrendados (dados em “serventia”), herdados pelos filhos. As
proibições que, no direito português, existiam quanto a isto (Ord. fil. 1, 96) eram de
direito positivo e podiam ser dispensadas pelo rei.
2.6.5 Regime dos ofícios.
§ 574. Percorrer-se-ão, de seguida, alguns dos temas decisivos para a
caracterização do regime jurídico dos ofícios: nomeadamente, titularidade do poder
de criar e de dar ofícios, patrimonialização dos ofícios, autonomia jurisdicional e
emergência e ascensão dos ofícios comissariais 778.
2.6.5.1 Criação e dada dos ofícios.
§ 575. Embora se entendesse que os verdadeiros ofícios da república estavam
estabelecidos pela natureza, a doutrina moderna não deixava de conferir ao príncipe
o usual papel de ser o porta-voz dessa natureza, com o correspondente poder
exclusivo de criar ofícios. Desde as fontes romanas que esteve sempre presente na
dogmática jurídica ocidental a ideia de que o poder dos oficiais decorria de um
poder conferido por autoridade da república, tendo em vista o interesse da
comunidade (iurisdictio est potestas de publico introducta)779. Como figuração
(repraesentans) da comunidade, o príncipe incorporava em si esse cuidado pelo bem
comum e, consequentemente, assumia o poder de criar e prover os ofícios

Direcção para os syndicantes […], cit.. Sobre a alegada complacência deste controle corporativo dos oficiais,
v. António Manuel Hepanha, As vésperas do Leviathan […], cit., 529 ss.
774 Sobre estes emolumentos, António Manuel Hespanha, Vésperas […], cit., II.5.1. Saliento

neste estudo que os rendimentos emolumentares dos oficiais eram muito superiores (cerca do dobro)
dos rendimentos salariais, o que configura o oficiliato, sobretudo o local, como uma profissão
eminente “liberal”, pouco dependente das prestações económicas da coroa (v. ibid. II.5.5).
775 João Baptista Fragoso, Regimen […], tom. 1, pg. 662, ns. 271 ss..

776 João Baptista Fragoso, Regimen […], tom. 1, pg. 662, n. 290.

777 João Baptista Fragoso, Regimen […], tom. 1, pg. 662, ns. 294 s..

778 Sobre o tema, para Portugal e seu império, v. Roberta Giannubilo Stumpf, “Os provimentos

de ofícios: […]”, cit..


779 Cf. antes § 79

184
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

necessários à consecução do bem da república, uma vez que o seu ofício não era o
de exercer pessoalmente todos esses ofícios, mas antes o de os prover em pessoas
dignas para isso780. Mesmo quanto aos ofícios que ele, por si, pudesse
desempenhar, o príncipe podia confiar pontualmente o seu exercício a delegados,
sem criar um ofício ordinário correspondente ao exercício permanente daquelas
funções. A figura conceitual usada para exprimir isto era a de iurisdictio delegata (ou
mandata) que – por oposição à iurisdictio ordinaria concedida para a generalidade das
causas – seria concedida para uma causa individualizada e concreta.
§ 576. Esta prerrogativa régia cessava quanto aos ofícios de algum corpo
particular dentro do reino, como um concelho ou uma universidade, caso em que
competia aos órgãos de governo dessas comunidades a criação e provimento dos
seus ofícios. Os ofícios dos concelhos – que eram os mais importantes ofícios não
régios – eram criados e providos pelas câmaras, no âmbito da sua jurisdição
própria. Por isso é que a escolha de oficiais das câmaras pelo rei ou seus
magistrados delegados, como os corregedores, podia ser anulada a pedido de
qualquer vizinho781. Jorge de Cabedo trata do provimento dos ofícios concelhios
numa decisão famosa782, em que se percebe a tensão entre uma posição regalista e
outra corporativista, bem como os argumentos que podiam ser mobilizados num e
no outro sentido. Cabedo não pode fugir ao princípio de que a dada dos ofícios
pertence a quem tiver a jurisdição omnímoda ou ordinária no território
correspondente, o que legitimaria a dada dos ofícios dos concelhos pelas câmaras.
Mas a isto opõe um expediente retórico geral: o de que o rei, como lex animata,
pode subverter a justiça ordinária e intervir livremente na escolha dos ofícios locais,
como se todos os ofícios estivessem na sua disposição 783. Daí que se tendesse para
uma posição indecisa, que repartia pelo rei e pelos concelhos, o poder de criar
magistrados (bem como a jurisdição ordinária): "In Lusitania non esse totam civile
potestatem, & temporalem iurisdictionem solum penes in principi, cum civitates,
oppida, & populi constituendi sibi judices ordinarios ius habent, & creandi
magistratus qui ius litigantibus reddere valeant"784.
§ 577. Na doutrina portuguesa era, portanto, ponto assente que o direito de
criar e de dar ofícios do reino785 era uma prerrogativa real, bem estabelecida no
título 2,26 das Ordenações (“Dos direitos reais”: “[Direito real he] poder para fazer
officiaes de Justiça, assi como são Corregedores, Ouvidores, Juizes, Meirinhos,
Alcaides, Tabelliães, Scrivães e quaisquer outros Officiaes deputados para

780 Ao escolher os seus oficiais, o príncipe incorria numa responsabilidade in eligendo, pelo que

ficava obrigado pelos atos dos oficiais, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officialis”, n. 1340.
781 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 1, dec. 112, n.1 1; Bento Pereira, Promptuarium [...],

cit., s. v. “Officialis”, n. 1343. Sobre a eleição dos ofícios, ibid. t. 2, dec. 84; Manuel Barbosa,
Remissiones doctorum […], ad 1, 67, 1, 9-10.
782 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 29 (“Se o rei pode dar ofícios da câmara de

alguma cidade ou concelho em que os oficiais dele pretendem que a dada dos ofícios lhes pertence”).
783 Cf. n. 4 da decisão. Como a decisão versava sobre o provimento dos escrivães das câmaras,

Cabedo argumenta ainda com o facto de os tabeliães e escrivães das justiças serem um ofício régio, pelo
que os das câmaras também o seriam.
784 Manuel Alvares Pegas, Commentaria [...], cit., t. 5, ad Ord. fil.2, 45, 13, gl. 2, n. 23.

785 Mas não de outros corpos políticos “com jurisdição separada”, como concelhos, ordens

militares, universidade, Igreja, etc..

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administrar a Justiça”] e geralmente admitido pela doutrina 786.


§ 578. Este parágrafo, porém, só fala de ofícios de justiça, possivelmente
porque, quanto aos outros (militares, da fazenda e do fisco, dos bens reguengos do
rei, da corte787), era indiscutido que a sua criação e provimento pertenciam ao rei,
como pai ou ecónomo das suas coisas, sendo muito raro que tais poderes
estivessem doados788.
§ 579. Por outro lado, “fazer officiaes” tanto se pode referir à criação do
cargo, como ao seu provimento. Aqui, parece que é a este último aspeto que a
Ordenação se refere, o que se entende pois a natureza régia da criação dos próprios
ofícios (da coroa) era uma opinião incontroversa, como se viu. Quanto ao
provimento, ele constava de três etapas 789, que podiam competir a entidades
diferentes. Havia, por um lado, a proposta ou apresentação, da competência do
apresentante; depois, a eleição, escolha ou dada, da competência do titular do poder
de designar o provido, ou livre ou por escolha entre os propostos ou apresentados;
finalmente, a confirmação (ou apuramento) da escolha pela entidade que
eventualmente tivesse o poder de supervisionar o processo de provimento 790. Uma
situação típica era a de haver apresentação dos ofícios (senhoriais: ouvidores e seus
auxiliares) pelo senhor da terra (quando tivesse doação para isso) e confirmação
pela coroa, por meio do corregedor ou do Desembargo do Paço. Muito mais
raramente, os senhores podiam ter doação para a dada definitiva dos seus ofícios e
dos ofícios das suas terras791. Típica, também, era a apresentação (dos ofícios
municipais) pertencer às câmaras, mas os senhores ou o rei terem a prerrogativa de
os confirmar. Embora a doação das prerrogativas da coroa requeressem doação
expressa, quer as câmaras, quer os senhores invocavam frequentemente usos
antigos no sentido de escapar ao controlo final do rei, arrogando-se o direito de
dada definitiva dos seus cargos. Em contrapartida, o rei podia invocar o costume
em que estava de prover ofícios que, em princípio, competiriam às câmaras. A
decisão sobre este ponto que Cabedo inclui nas suas Decisiones792 é significativa da
orientação que prevalecia na doutrina nos finais do séc. XVI: “Sentenciou-se contra
a Câmara da villa de Jermelo sobre os officios de escrivão dos órfãos, e da
Almotaçaria, de que a câmara pretendia ter a apresentação, e elRey só a
confirmação; e provendo elRey estes officios a Gaspar da Silva sem apresentação
da câmara, ela lhe embargou a posse, a qual defendeu o procurador da coroa, e se
deu sentença a favor delRey, reservado o direito à Câmara para requerer em outro
feito a propriedade”. A decisão hesita. Reconhece-se ao rei a posse do provimento

786 “A concessão de ofícios e dignidades está reservada à majestade do rei”, escreve Melchior

Febo, Decisiones […], cit., dec. 28, n. 5.


787 Cf. tipologia e ofícios de cada tipo em António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ps.

160 ss..
788 V. Ord. fil. 2, 45, 31; 45, 15, sobre a excecionalidade da doação dos ofícios da fazenda e fiscais e

dos militares e de polícia (meirinhos, alcaides).


789 Detalhes, em António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan […], cit., p. 398 ss..

790 A confirmação régia da dada do ofício equivalia à dada pelo rei, escrevia Miguel de Reinoso,

Observationes […], obs. 8, n. 22.


791 Cf. exemplos, para Portugal continental, em António Manuel Hespanha, As vésperas do

Leviathan […], cit., p. 398, n. 201.


792 Decisiones […], cit., pt. 2, aresto 41.

186
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

(neste caso, apresentação e confirmação) dos ofícios 793, pelo este é mantido pelo
direito uti possidetis, mas não se decide sobre a questão substancial da competência
para prover o ofício, que fica para outro pleito.
§ 580. O rei podia dar ofícios vagos ou cartas de expectativas para os ofícios
quando vagassem, mesmo usando fórmulas indeterminadas, como a doação do
primeiro ofício que vagasse 794.
§ 581. Nos vice-reinados e governos da Índia e do Brasil, estas questões da
criação e provimento de ofícios estava contemplada nos regimentos de governo. Os
primeiros regimentos dos governadores gerais do Brasil 795 proibiam a criação de
novos ofícios pelos governadores, de acordo com a regra de que se tratava de uma
regalia796. Porém, para os ofícios já existentes, os governadores podiam nomear
serventuários, embora não pudessem provê-los a título definitivo. Em causa estava
não apenas o monopólio régio da criação de ofícios, mas ainda a garantia do direito
dos herdeiros do oficial falecido797. Jorge de Cabedo, que publica o segundo tomo
das suas Decisiones em 1604, indicia que, pouco antes (das Ordenações filipinas ?), teria
havido uma restrição dos poderes de criação ou provimento de oficiais pelos
governadores do ultramar, ao opinar que “os vice-reis e governadores das
províncias têm a faculdade de prover ofícios como antes, de contrário far-se-lhes-ia
grande prejuízo”798. Mas não é possível saber a que se refere799.
§ 582. A prerrogativa de prover ofícios podia ser doada, nos termos também
estabelecidos nas Ordenações, que obrigavam a uma menção expressa a ela na carta
de doação e excluíam a sua aquisição por prescrição, tal qual como acontecia com
as restantes regalias800. Isso era frequente nas doações de terras com jurisdição 801.
Seja como for, o princípio da natureza real dos ofícios mantinha-se nos planos
simbólico e doutrinal, jogando quer a favor do prestígio dos oficiais, como credores
da obediência e reverência devida ao rei, quer no sentido do príncipe, pois lhe
permitia reclamar um poder de supervisão sobre os ofícios 802.

793 Que, de resto, não tinha ambos a natureza de ofícios da câmara, pois a escrivaninha dos

órfãos seria real.


794 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, n. 1352; Álvaro Valasco, Decisiones

[...], cit., cons. 72.


795 Cf. v.g. reg. Francisco Geraldes, 30.5.1588, n. 45, Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes [...],

cit., 1, 275; reg. Gaspar de Sousa, 6.10.1612, n. 44, ibid. cit., 1, 431; reg. Roque da Costa Barreto,
23.1.1677, ibid. cit., 2, 753. Em contrapartida, o primeiro “capitão donatário” tinha o direito de criar e
prover ofícios: carta de doação de Duarte, 25.9.1534, ibid. cit., 1, 133.
796 Por isso, os ofícios de justiça e do fisco concedidos pelos vice-reis ou governadores vagavam

no fim do mandato do concedente, ao contrário do que acontecia com os ofícios providos pelo rei,
Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 21, n. 1. o mesmo acontecia nos ofícios concedidos
pelos Mestres das ordens militares, cf. António da Gama, Decisiones […], cit., Dec. 353, n. 36.
797 Cf. Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes […], cit., n. 43, pg. 430.

798 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 21, n. 3.

799 Sobre os ofícios nos mundos coloniais, Roberta Stumpf & Chaturvedula (orgs). Cargos e ofícios

nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII-XVIII). Estudos & Documentos,
volume 14, Centro de História de Além-mar, Lisboa, 2012.
800 Cf. ainda Ord. fil. 2, 45, 1; 3; 13; 15; 31 (sobre a concessão desta prerrogativa a senhores de

terras).
801 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan […], cit., ps. 398 ss..

802 Discutia-se se os donatários a quem tivesse sido concedida a dada de ofícios tinham o poder de

dar cartas de esperança e de prover serventias, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 24, n.

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§ 583. Esta pretensão real de dirigir o oficialato era, porém, mais teórica do
que prática, porque a mesma doutrina opunha barreiras decisivas a uma intervenção
do rei no exercício da jurisdição dos oficiais. Por um lado, entendia-se que os
oficiais não deveriam cumprir as ordens reais contrárias aos seus regimentos ou ao
direito803. Esta restrição é tudo menos banal, pois impedia o estabelecimento de
uma pirâmide administrativa hierarquizada. Mas a doutrina entendia ainda que o rei
não podia alterar, invocando a oportunidade, o regimento dos oficiais da coroa,
autorizando estes a embargarem ordens régias abusivas. Por fim, mantinha-se bem
vivo na doutrina seiscentista a ideia do caráter odioso da jurisdição extraordinária
(comissões, processo extra ordinem)804, o que reforçava ainda o princípio de que o rei
devia respeitar as atribuições dos oficiais e magistraturas ordinárias e deixar correr
livremente as causas intentadas perante elas. O seguimento de alguns processos que
opuseram oficiais ao rei é suficiente para revelar o grau de independência prática de
que gozavam os titulares de ofícios da coroa no confronto com o paço 805. Não é
preciso realçar a importância que isto teve na criação de um poder autónomo dos
oficiais. É preciso esperar pelos meados do séc. XVIII para que este contexto
doutrinal e legal comece a mudar num sentido favorável ao efetivo fortalecimento
da disciplina régia sobre os oficiais da coroa 806.

2.6.5.2 Extinção e privação de ofícios.


§ 584. Conexa com a questão da criação e provimento dos ofícios está a da
competência para extinguir o ofício ou para remover o oficial.
§ 585. O princípio doutrinal de que o rei era a fonte de toda a jurisdição e de
que, assim, era dele o poder de criar e de dar os ofícios importava a consequência
de que também competia a ele exclusivamente extinguir ou tirar os ofícios que
antes dera. Esta é a opinião geralmente defendida, no plano do rigor do direito 807.
§ 586. Porém, se prosseguirmos no exame da doutrina, as coisas perdem esta
clareza. Desde logo, a doutrina não era unânime. Ainda no séc. XVI, Aires Pinhel
tinha defendido a opinião de a extinção de ofícios ou a destituição de oficiais não
era livre, pois o príncipe não podia tirar os ofícios dados 808. Outros809 preferiam a
formulação de que, se a concessão de um ofício decorria da jurisdição voluntária, a
privação dele pertencia já à jurisdição contenciosa, pois o provido passava a ter

10.
803 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tom. 3, ad Ord, 1, 21, gl. 3, n. 3 ss.; t. 4, ad

Ord, 1, 63, gl. 2, n. 3; t. 6, ad Ord.. 1, 79, gl. 41.


804 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 13, n. 2 (“iurisdictio ordinaria favenda

est”); António de Sousa de Macedo, Decisiones […], cit., pt. 3, 2, n. 4.


805 Emblemático o processo referido por João Pinto Ribeiro, Tres relações de alguns pontos de direito,

que se offerecerão a … no cargo de juiz de fora em Pinhel, Lisboa, Casa de Sam Roque da Companhia de Jesus,
1635, “Relação primeira”.
806 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], 1, 2, 20; CL. 23.11.1770; Alv. 20.5.1774.

807 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 13, ns. 111-117;

Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 20; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit.,
tom. 7, ad Ord. 1, 99 (por erro, aparece como 1, 98), gls. 1 e 2.
808 Cf. Aires Pinhel, De rescindenda venditione […], cap. 2, n. 31.

809 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 27, ns. 23 e 24.

188
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

direitos ao ofício810, direitos que só podiam ser violados com justa causa,
previamente ouvido o oficial811, mesmo que fosse provido da forma mais precária
(“enquanto for nossa mercê”), pois nem nesse caso podia ser removido do ofício
sem justa causa
§ 587. A opinião de Pinhel não era a opinião comum no séc. XVII. Esta,
consagrada numa decisão de Jorge de Cabedo812, reconhecia ao rei o poder de tirar
ofícios perpétuos (“enquanto for nossa mercê”) ou temporários, embora com duas
importantes limitações: desde que houvesse justa causa para isso e o titular fosse
indemnizado813. Este direito estava, porém, limitado nos casos de ofícios
comprados pelos titulares ou naqueles casos em que a doação do ofício fosse
remuneratória de serviços (ob servitia & benemerita), situações em que o ofício como
que se patrimonializava no seu titular. Com todas estas limitações, a doutrina
dominante não era tão diferente da defendida por Aires Pinhel. E, por isso, a sua
opinião continua a ser citada. Paradoxalmente, até a fórmula usual nas cartas de
concessão (“enquanto for nossa mercê”) era por alguns interpretada de forma a
aumentar ainda as garantias do nomeado, pois se entendia que concedia o ofício
sem prazo e, logo, perpetuamente814.
§ 588. Também a ideia de que a concessão de ofício era pessoal, de uma
pessoa (o rei) a outra (aquele oficial), não funcionava plenamente, pois a concessão
não caducava com a morte do rei concedente, como acontecia com as doações
régias. Assim, os ofícios reais não careciam de confirmação “de rei a rei” 815.
§ 589. Depois, sobretudo com base em Ord. fil. 1,99, introduziram-se algumas
exceções ao princípio geral da liberdade real de tirar ofícios. Este não valeria nos
casos de ofícios vendidos ou concedidos ob benemerita e, de qualquer modo,
obrigaria a indemnização, a menos que o ofício fosse tirado por erros do oficial816.
§ 590. Tudo isto combinado redundava numa acentuada estabilidade nos
ofícios. Os reis consideravam seu dever manter neles os oficiais que bem servissem
e a doutrina testemunha haver um costume nesse sentido 817.
2.6.5.3 Transmissibilidade dos ofícios por morte do titular.
§ 591. Mais importante do que esta indisponibilidade do ofício em vida era a

810 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 5, n. 35.


811 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officum” (quoad officium vocationem et
privationem), n. 1367; Miguel de Reinoso, Observationes […], obs. 8, n. 28.
812 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 20, per totam.

813 A indemnização apenas não existia no caso de a causa da privação do ofício ser a prática de

erros de ofício, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.. pt. 2, dec. 20, n. 4.
814“O ofício criado ad beneplacitum [“enquanto me aprouver”] é tido como perpétuo”, sintetiza

Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, n. 1348.


815 Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 8, n. 15. Porém, os mestres das ordens

militares podiam avocar os ofícios dados pelos antecessores e concedê-los a outrem, tal como os
prelados, v. Jorge de Cabedo, Decisiones […], t. 2, dec. 21, n. 5. Também os ofícios concedidos por
governadores e vice-reis não se mantinham depois de findo os mandatos dos concedentes.
816 Os ofícios concedidos em doação remuneratória, como os concedidos em razão de serviços,

eram tidos como dados por contrato oneroso, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 8, n. 67
ss.; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, n. 1347. O contrato oneroso a que Reinoso
alude seria o de venda, que Álvaro Valasco considerada vinculativo para o rei e inquebrável (o príncipe
não pode sem causa privar alguém de ofícios que deu por dinheiro, Decisiones [...], cit., cons. 72, n. 5).
817 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 2, c. 13, n. 115 ss..

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sua indisponibilidade por morte do titular.


§ 592. Indisponibilidade, desde logo, pelo próprio titular, que não podia dispor
do ofício em testamento818, pois isso corresponderia, desde logo, a uma usurpação
do direito régio de prover os ofícios. Mas a indisponibilidade que mais interessa, do
ponto de vista historiográfico, é a indisponibilidade por parte do rei.
§ 593. O direito seiscentista reconhecia a transmissibilidade por morte dos
ofícios, situação que impedia uma estrutura do oficialato baseada no favor e arbítrio
do rei. Na origem deste princípio doutrinário de que os reis deviam confirmar os
filhos nos ofícios dos pais que tivessem servido bem está uma consulta de Álvaro
Valasco819. Desta consulta deduziu-se que a regra da hereditariedade dos ofícios já
estava bem assente na segunda metade do séc. XVI: “Não se duvida de que os reis
deste reino costumem desde tempo antigo prover os filhos dos oficiais beneméritos
nos ofícios dos pais, antes se tornou quase numa obrigação e dívida do mesmo rei,
como se se dissesse que cometia um ato ilícito [injuria] se os doasse a outrem, ainda
que Bártolo tenha dito outra coisa a propósito de um assunto diferente” 820. Nas
cortes de Coimbra de 1473, os povos tinham pedido que se estabelecesse esta regra,
a favos da qual militava um título do Código de Justiniano (C.12,49, De filliis
officialium)821. No séc. XVII, a regra está bem estabelecida na doutrina822, de tal
modo que um dos argumentos para qualificar de tirano o governo do Conde
Duque de Olivares era a de que, ao proceder a uma alegada venda massiva de
ofícios, se violavam os direitos dos filhos dos oficiais, aos quais nem sequer se
concedia o direito de embargar as vendas823. A transmissibilidade por morte não
beneficiava apenas os filhos vivos, pois eram admitidos os póstumos e mesmo as
viúvas - na expectativa de um segundo casamento de que viessem a ter filhos ou
para que pudessem arrendar os ofícios, já que não os podiam exercer pessoalmente
–, ou as filhas – como dote do casamento futuro -, ou as pessoas que o titular
tivesse nomeado para lhe suceder824 825.
§ 594. A tipologia dos ofícios assim apropriados pelas famílias era muito
diversa. Desde ao altos cargos da corte – embora aí fosse mais forte a tendência

818 A faculdade de deixar ofícios em testamento raramente era concedida, ensina Melchior Febo,

Decisiones […], cit., dec. 128, n. 7 (Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1362).
819 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 129, 309 ss..

820 “Quod autem Reges hujus Regni ab antiquis temporis soleant providere filijs officialium

benemeritorum de officijs parentum non venit in dubio, imo transivit jam quasi in obligationem, &
debitum ipsius Regis, ut injuria fecisse dicatur si alteri donaverit, quemadmodum alias in alia materia
dixit Bar[tolus] […]”
821 Uma história, hostil, do princípio é contada no preâmbulo da CL. de 23.11.1770 (em António

Delgado da Silva, Colecção […]).


822 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 14, n. 15; Manuel

Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tom. 1, ad Ord. 1, 1, gl. 1 74, n. 17; t. 7, ad Ord. 1, 99, gl. 2,
ns. 18 ss.; ns.. 24 ss. (sentenças); tom. 11, ad Ord. 2, 35, c. 197, n. 12; António de Sousa de Macedo,
Decisiones […], cit., pt. 3, 4, n. 7.
823 Cf. João Pinto Ribeiro, Usurpação, retenção e restauração de Portugal […], cit., 2, 29.

824 Se gozasse desta privilégio. No caso de não ter nomeado ninguém, considerava-se que nomeara

o filho mais velho, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, n. 1362, apoiando-se no
exemplo da sucessão enfitêutica (Ord. fil. 4, 36, § 3).
825 A casuística é muito rica: Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 7, ad Ord. 1, 99, gl.

2, ns. 24 ss..

190
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

para os considerar ligados às qualidades do titular e, sobretudo, ao favor régio – até


aos mais humildes ofícios das escrivaninhas dos juízes ou das câmaras. É neste
nível mais baixo que a regra da hereditariedade dos ofícios tem o vigor máximo,
criando uma camada social típica que, nas franjas superiores, tocava a baixa nobreza
provincial e, nas franjas inferiores, estava ao nível dos artífices. Para esta camada, o
ofício, vinculado à família, era como um morgadio, ponto e partida para a ascensão
social. Típico era que os filhos de notários e escrivães tentassem os estudos de
direito e, por este meio, a ascensão ao topo da camada letrada826.
§ 595. Do ponto de vista político, o reconhecimento dos direitos dos filhos
aos ofícios dos pais, bem como a possibilidade de embargo de atos régios em
contravenção a esta regra, vêm tirar ao rei a disponibilidade dos cargos da república
e diminuir muito o alcance prático do princípio de que ele era o titular da jurisdição
e da dada dos ofícios.
§ 596. Do ponto de vista sociológico, a importância disto não é menor. O
princípio da hereditariedade dos ofícios constituiu um fator decisivo para a
constituição de uma camada social vivendo dos ofícios públicos (nomeadamente,
dos tabeliados e das escrivaninhas) e tendendo a adotar como ideal de vida a “vida
limpa” dos ofícios, com as oportunidades de poder económico e social que eles
proporcionavam. Valasco aproxima as regras de transmissão dos ofícios das da
transmissão enfitêutica. De facto, num e noutro caso – tal como nos morgados -,
verificava-se a consolidação numa família de situações geradoras de poder social.
Este poder social decorria não só do facto de serem ricos e de deterem lugares de
poder, mas também da sua centralidade na chamada civiltà della carta bollata
(civilização do papel selado). De facto, os documentos escritos eram centrais na
certificação de matérias decisivas, desde o estatuto social até importantes direitos e
deveres de natureza patrimonial. As cartas reais de doação (v.g. de jurisdições) ou
de foral, de concessão de reguengos, de comendas, de sesmarias, de tenças, de
ofícios e de outras mercês, de constituição de morgados, os tombos ou vendas de
imóveis, os pedidos de graça régia (como a autorização de desamortização de
morgados, a concessão da maioridade ou da emancipação, a concessão de perdão e
outras previstas no regimento do Desembargo do Paço), eis alguns exemplos de
documentos que necessitavam da intervenção do notário e que eram conservados
nos seus cartórios. Para não falar de toda a cópia de atos processuais, desde os
documentos de prova escrita até à sentença. Portanto, os cartórios dos notários ou
dos escrivães eram repositórios centrais de preservação, manipulação ou ocultação
de memória politica e juridicamente decisiva. Neste contexto, já se pode imaginar a
importância das lutas sociais pelo controle dos arquivos judiciais e notariais. É por
isso que a apropriação social dos ofícios é muito mais do que um detalhe menor da
história burocrática.
§ 597. Do ponto de vista da história da administração, esta consolidação
familiar dos ofícios pode ter tido uma grande importância, pois por meio dela se
terão estabelecido e fortalecido rotinas administrativas e processos de formação
profissional, de pai a filho. Uma coisa e outra, combinadas com a estabilidade social
conferida pela segurança familiar, terá reforçado o corporativismo e a
autoconfiança.

826 Cf. Joana Estorninho de Almeida, A Forja dos Homens […], cit..

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§ 598. No séc. XVIII, a legislação pombalina e a nova doutrina do direito


público vêm reagir contra a hereditariedade dos cargos 827. No entanto, há sinais de
que a prática tenha continuado828
2.6.5.4 Venalidade dos ofícios.
§ 599. Um outro ponto muito relevante do regime dos ofícios é o da sua
venalidade.
§ 600. No plano do direito estrito, a venda dos ofícios pelos seus titulares, sem
prévia autorização régia, estava proibida (Ord. fil.1,96). Esta proibição era
completada por uma outra, dirigida àqueles donatários que tinham a dada dos
ofícios, para que não os vendessem (Ord. fil. 2,46)829.
§ 601. No estudo desta questão, devemos distinguir dois planos: o da venda
dos ofícios pelo rei e o da sua venda pelos titulares.
§ 602. Quanto à primeira questão, a doutrina reconhecia que a venda de ofício
secular não era proibida nem pelo direito divino, nem pelo direito natural, apenas o
podendo ser pelo direito civil. Sendo assim, o príncipe, que podia dispensar a lei,
também podia afastar este impedimento legal e vender ofícios, embora isto tivesse
inconvenientes, sobretudo nos ofícios que contivessem jurisdição; não tanto nos
outros, como os dos tabeliães e escrivães, em que os elementos mercenários
suplantavam os elementos honorários 830 831.
§ 603. Em contrapartida, a venda de ofícios pelos donatários estava
expressamente proibida por lei (Ord. fil. 2, 46)832.
§ 604. Baptista Fragoso833 desenvolve um completo discurso sobre o tema,
que é interessante seguir. Existiriam razões, digamos, práticas em contra da venda
de ofícios. “Aqueles que compram ofícios da república, não os exercem a favor da
república, como a razão postula, mas antes para sua vantagem, de modo a recuperar
o dinheiro dado e com juros. E, assim, admitem frequentemente muitas coisas
injustas e fazem a justiça venal. Além de que mal vão as coisas, quando se faz por
dinheiro o que se deve fazer por virtude” (p. 40). Esta última consideração já
introduz o núcleo da argumentação, relacionado com a mesma natureza do débito
destes serviços, permitindo uma distinção relevante entre ofícios públicos não
lucrativos e ofícios públicos lucrativos: “Os ofícios seculares não podem ser

827 Cf. a CL. 23.11.1770.


828 Cf. alvs. 3.9.1777, 20.11.1795, decr. 5.6.1793.
829 Comentários: Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 14;

Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tom. 7, ad Ord. 1, 96, pp. 414 ss.; t. 12, ad Ord. 2, 46;
Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 24; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, liv.
1, disp. 2, n. 121 ss..
830 Sendo menos grave nos outros, como os de tabelião; cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit..

pt. 2, dec. 24, ns. 1 ss.; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, n. 1365.
831 Sendo menos grave nos outros, como os de tabelião; cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit..

pt. 2, dec. 24, ns. 1 ss.; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, n. 1365.
832 Comentários: Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 14;

Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 7, ad Ord. 1, 96, pp. 414 ss.; t. 12, ad Ord. 2, 46; Jorge
de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 24; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, liv. 1, d.
2, n. 121 ss..
833 João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pg. 38, ns. 121 ss.

192
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

vendidos na medida em que são obrigações para com certas funções [...] e em que
têm um justo estipendio [ou seja, um salário correspondente aos custos do
exercício da função]. Já o poderão ser na medida em que tiverem certa eminência e
ocasião de lucrar, envolvendo o estipêndio um excesso sobre o débito […] como
são coisas seculares e que podem ser avaliadas, podem ser vendidos pelo príncipe”
(ibid. n. 123). O centro da argumentação está, portanto, no carácter naturalmente
devido (para com a república) dos serviços do oficial. A venda de uma coisa (a
função) que não era própria seria impossível. Como seria impossível a venda dos
réditos, pois estes correspondem exatamente (justamente) à função. Daí as
proibições de vendas de ofícios contendo administração de justiça (Pio V, 1571;
Ord. fil, 1,95), ainda que se opinasse que estas proibições podiam ser dispensadas
por licença (graça) régia e se constatassem abusos frequentes na matéria. Já nos
casos em que os réditos excediam a retribuição da função, incluindo alguma
oportunidade suplementar de lucro, a venda poderia ter lugar. Tal seria o caso de
outros ofícios públicos (como os tabeliados ou escrivaninhas) em que a retribuição
no estava tão rigidamente fixada, assumindo parcialmente a natureza de um ganho
puramente patrimonial. Nestes casos, os ofícios incorporavam-se no património
("Officia publica postquam sunt acquisita censetur in bonis, & veniunt sub
appelatione illorum"834).
§ 605. A venda de ofícios pelo rei não parece que tenha sido frequente em
Portugal835. Para além dos já referidos fatores de ordem doutrinal, nisto deve ter
pesado o facto de o nosso direito ter tutelado, como se viu, os direitos dos filhos
do titular, obstaculizando a venda e a disponibilidade pela coroa dos ofícios que
vagassem. Segundo a literatura autonomista portuguesa, os reis Habsburgo teriam,
no entanto, alterado a prática, no sentido da venalidade. Na Arte de furtar (1656, cap.
XVII836) escreve-se que os reis da Casa de Áustria “Faziam pratica neste reino coisa
nunca vista entre os portugueses: venderem-se a quem mais dava os ofícios que
antigamente se davam de graça […] Faziam jurar na Chancelaria os que compravam
os ofícios que nada davam por eles […]”. Esta acusação pode ter fundamento,
dadas as dificuldades do tesouro nessa época, mas sobretudo porque, em Espanha,
o grau de patrimonialização dos ofícios era maior. Sabe-se que houve, nos anos de
1630, vendas de ofícios de guerra e fazenda no ultramar. Mas faltam estudos que
coloquem a questão sobre bases empíricas mais fiáveis, até porque por “venda”
alguma desta literatura antiespanhola quer significar a concessão de ofícios por
peitas e subornos ou em remuneração de serviços financeiros. Seja como for, a
venalidade dos ofícios não foi, seguramente, uma particularidade do período

834 Álvaro Valasco, Praxis partitionum [...], cit., c. 13, n. 69.


835 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus, […], cit., liv. 2, c. 14, n. 6 (não é
corrente venderem-se os ofícios); Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., t. 2, dec. 24, n. 4 (mesmo em
relação aos ofícios que não contém jurisdição contenciosa, como os de tabelião, a venda é “insólita”).
Mas averia testemunhos de que alguma vez se teriam vendido ofícios, em leilão, mesmo sendo vivos os
titulares, João Baptista Fragoso, Regimen […], t. 1, pt. 40, n. 123. Maria do Rosário Themudo Barata
D. A. Cruz, As regências [...], cit., 238 ss.. refere apenas 5 casos de vendas expressa em 174 provimentos
de ofícios, entre 1557 e 1568.
836 Cf. http://books.google.com.br/books?id=NMMOAAAAQAAJ&printsec=frontcover&hl=

pt-PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false; http://www.slideshare.net/
giovannapiani/a-arte-de-furtar (ed. de 1744); http://www.brasiliana.usp.br/
bbd/handle/1918/01950100#page/7/mode/1up (ed. de 1752); https://archive.org/details/
artedefurtarespe00vieiuoft (1821).

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filipina, pois existia antes. Da segunda metade do séc. XVI há notícias de venda de
ofícios, nomeadamente de escrivaninhas de justiça, embora pouco frequentes. Nos
inícios do séc. XVII, há uma avaliação dos ofícios do Brasil, para efeitos de
venda837 E nos finais do séc. XVII continua a haver alvitres recomendando a venda
de ofícios como uma forma de desempenho do reino.
§ 606. Parece ter sido no ultramar que a venda dos ofícios se generalizou
mais838. No Brasil, no início do séc. XVIII, um decreto real 839 determinou que os
novos ofícios, criados ou a criar840, deviam ser dados em propriedade a quem
prometesse uma doação (“donativo”) à Real Fazenda, enquanto que os oficiais
providos em serventia deveriam pagar à Fazenda um terço do rendimento do cargo
(terça) 841. Mais tarde, pela provisão de 23.12.1740, o regime de donativo foi
estendido a todos os ofícios (exceto aos rendeiros). Daí em diante, os ofícios vagos
eram vendidos em leilão842. Teoricamente, isto não constituía, uma venda, mas
antes a combinação de dois atos de graça – o donativo e a dada do ofício – ambos
regulados pelo chamado “direito antidoral e consuetudinário”
§ 607. Esta qualificação jurídica que justificava a venda de ofícios é
significativa. Por “antidoral” quer-se dizer que estes deveres mútuos (de gratificar o
tesouro e de dar o ofício) se fundam na gratidão e não numa relação sinalagmática
(ou mercenária). O conceito de “consuetudinário” é usado, desde os meados do
séc. XVIII, nomeadamente para qualificar os costumes jurídicos relativos à
transmissão dos ofícios que não se encaixam no conceito moderno de ofício como
um dever público e, por isso, incompatível com a patrimonialização. Por isso,
“consuetudinário” era – de acordo com as leis pombalinas relativas aos ofícios (CL,
23.11.1770, Alv. 20.5.1774; sobre a nova conceção do ofício, cf. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis […], cit. 1789, 1, 2, 20) – o direito dos filhos aos ofícios dos
pais. De 1761 a 1767, o Conselho Ultramarino vendeu em leilão a propriedade ou
as serventias trienais de todos os ofícios de justiça vagos da Bahia, autorizando os
compradores a arrendá-los a serventuários843. A partir de 1767, a venda em leilão
foi substituída pela venda a preço fixo, limitada às serventias, pagando o

837 Documento descoberto por José Manuel Santos Pérez (Univ. Salamanca): 51-vi-54, “Cargos da

apresentação de Sua Majestade”, 1606, fls. 160-165.


838 Sobre a venda de ofícios na Índia, v. Diogo do Couto, Diálogo do Soldado Prático, Lisboa, 1980

(3ª ed.), pg. 60.


839 D. 18.5.1722, transmitida pela Provisão de 23.9.1723 (Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes

[…], III, 754; fonte, Arq. Secret. do Governo da Bahia, liv.. 20, fls. 15).
840 Excluindo ofícios da fazenda.

841 A terça era a renda normalmente paga pelos serventuários aos proprietários do ofício, de acordo

com o sistema de arrendamento dos ofícios estabelecido nos meados do séc. XVII (cf. CL. de Julho
1648; António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 515).
842 A base para o cálculo do donativo era o montante pago pelo anterior titular ou o valor estimado

da serventia (prov. 2.4.1756). Se os ofícios fossem tão insignificantes que ninguém desse nada por eles, o
governador podia provê-los de graça (aviso 10.3.1740; fonte: Arq. Secr. Gov. Est. Brasil, Ordens régias,
mç. 1740).
843 Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes […], 1972, 2, 735; fonte, CR. 20.4.1758, no Arq.

Secret. Govern. Bahia, liv. 61 – 7. De acordo com uma lei de 1666, os serventuários tinham que pagar ao
titular do ofício um terço do rendimento da serventia do cargo. O regime vigente no Brazil representava
uma extensão desta regra: aqui, a terça relativa aos ofícios vagos dados em serventia era pago à coroa,
pois não havia um titular dos cargos. Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 515.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

serventuário o imposto geral sobre os ofícios (meias anatas844), fixado em um terço


do rendimento anual do cargo (terça) e um donativo pré-estabelecido. Para os
ofícios (de justiça: escrivaninhas) em propriedade, o sistema de leilão continuou. Os
únicos ofícios excluídos – por serem providos por carta do vice-rei - eram os da
Relação. No Rio de Janeiro, o sistema de leilão também foi introduzido, com
pequenas diferenças, para as serventias dos ofícios de justiça (Carta régia de
24.10.1761). Uma fonte autorizada do início do séc. XIX – o vice-rei D. Francisco
José de Portugal - afirma que a prática brasileira era semelhante à dos outros
territórios do ultramar845, acrescentando que o sistema era muito inconveniente
pois favorecia a compra dos ofícios, como armas de combate, por grupos rivais e
excluía dos ofícios os mais beneméritos, que não tinham meios para competir neste
despique entre fações políticas846.
§ 608. Quanto à venda do ofício pelo titular. Existia uma proibição legal
expressa quanto à venda de ofícios sem autorização régia (Ord. fil. 1, 96, pr.:
”Mandamos, que os Tabelliães, Scrivães e quaisquer outros nossos Officiaes, não
possam vender os Officios, que de nós tiverem, nem trespassar, nem renunciar em
outrem sem nossa especial licença […]”). A pena era a perda do preço e do ofício,
que ficaria de novo para o rei. No entanto, no plano da prática, tal proibição não
parecia muito efetiva. Por um lado, o rei não raro concedia aos oficiais o direito de
renunciar noutrem, de nomear sucessor ou mesmo de vender ofícios. Admitia-se,
por exemplo, que o titular pedisse ao rei o provimento de pessoa que ele nomeasse
para o cargo a que renunciara e mesmo que o nomeado gratificasse o
renunciante847. Uma lei de 6.7.1705 (J.J.A.S. data respetiva) determinou que se não
concedessem licenças de renúncias senão nos filhos, indiciando uma prática mais
generosa de renúncias em estranhos, encobrindo vendas.
2.6.5.5 Arrendamento dos ofícios (serventias).
§ 609. No entanto, possivelmente mais do que vendidos, os ofícios eram
arrendados. Na verdade – apesar de legislação em contrário (v. Ord. fil. 1, 97) – era
frequente que os proprietários dos ofícios os não servissem pessoalmente e os
dessem em “serventia”, ficando a receber uma parte do rendimento do cargo. Já no
séc. XVII, a coroa acabou por coonestar esta prática: em 22.6.1666, na sequência de
providências anteriores, permitiu-se o arrendamento de ofícios, estabelecendo um
máximo para a renda a pagar ao proprietário – um terço do rendimento anual do
ofício, de acordo com a avaliação feita pela chancelaria régia848. No Brasil, como já
se viu, a coroa arrendava diretamente os ofícios (ou seja, vendia as serventias).
2.6.5.6 Vacatura de ofícios.

844 António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., 48.


845 D. Francisco José de Portugal, que anotou o regimento dado a Roque da Costa Barreto (1677):
Marcos Carneiro de Mendonça, Raízes […], 2, 756.
846 Também se dizia nesta fonte que esta mudança virtual dos oficiais cada três anos teria causado

um caos nos arquivos, devida à transferência dos papéis e dos livros de uma casa para a outra (Marcos
Carneiro de Mendonça, Raízes […], 2, pg. 757).
847 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, 24, n. 7 (obtida a licença para renunciar, pode-

se renunciar, mas não vender, nem renunciar a troco de dinheiro). Cf. a decisão judicial transcrita por
Pegas, em Comentaria ad Ordinationes […], tomo 12, pp. 175 ss..
848 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9, pag. 290.

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§ 610. Os ofícios vagavam por morte ou renúncia do titular 849.


§ 611. A vacatura por morte já foi referida. A vacatura por renúncia levantava
algumas questões jurídicas850.
§ 612. Uma destas questões era a de saber quem podia aceitar renúncias e
conceder de novo os ofícios. A questão punha-se, nomeadamente, quanto aos
poderes dos donatários a este respeito. A solução de direito comum era a de que os
donatários não podiam aceitar renúncias, pois estas tinham que ser feitas “nas mãos
do rei” ou daquele a quem ele tivesse expressamente concedido o privilégio de
aceitar renúncias de ofícios851. Mas, no concreto, a resposta dependia,
fundamentalmente, da interpretação da doação régia 852. A renúncia devia ser pura,
sem condições. Era inaceitável, nomeadamente, a renúncia com a condição de o
ofício ser provido numa certa pessoa (ou renúncia a favor de outrem), pois a
discrição do rei na concessão dos ofícios não podia ser limitada. Do mesmo modo,
a renúncia não podia ser condicionada por uma promessa daquele que seria
beneficiado por ela: por exemplo, se alguém prometesse ao titular do ofício uma
certa soma no caso de ele renunciar e de, por isso, o ofício vir a ser atribuído ao
promitente853.
2.6.6 Hierarquia dos ofícios.
§ 613. As fontes doutrinais de direito comum organizavam uma hierarquia dos
oficiais, a partir da importância e permanência das suas competências. Esta tabela
era encabeçada pelos magistrados cuja competência ordinária compreendia os mais
elevados graus de império e de jurisdição. Na base, os oficiais de competências mais
efémeras e de menor grau de impotência, como a modica coercio. Esta classificação
estava desenhada em cima das magistraturas e ofícios que ocorriam nas fontes
romanas e, por isso, constituía um esquema vazio, do ponto de vista dos ofícios
realmente existentes na época moderna854. O seu interesse era sobretudo
taxonómico, fornecendo um esquema de ordenação e, por meio deste, alguma
possibilidade de determinar por comparação os poderes que deviam competir a um
ofício concreto. Esta ordenação não era, porém, rigorosamente hierárquica; ou seja,
ela não significava um poder de comando dos oficiais superiores sobre os
inferiores, pois, muito frequentemente, os oficiais tinham competências
estatutariamente reservadas (privativas), que não podiam ser avocadas ou dirigidas
por oficiais de nível superior.
2.6.6.1 O príncipe e os magistrados “colaterais”.

849 Cf. Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit., obs 8, n. 29.


850 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Officium”, ns. 1360 ss.; Miguel de Reinoso,
Decisiones [...], cit., obs 5, per totam.
851 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 23, per totam; ou pt. 2, d.91, n.4; Miguel de

Reinoso, Decisiones [...], cit., obs. 5, ns, 20 ss.. O texto legal de apoio era Ord. fil. 1, 96, que proibia a
renúncia em outrem sem licença especial do rei (cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., comentário a
este título).
852 Cf. discussão em Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit., obs 5, per totam.

853 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec.128, n.9 (“pro obtinenda renunciatione officii non

potest fieri pactum de danda pecunia”, n. 23).


854 Ensaio de tipologia dos oficiais do reino de Portugal (metrópole) nos mesdos do séc. XVII em

António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit..

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 614. No topo das magistraturas ordinárias, estava o príncipe Com a


expressão “príncipe” pretendemos englobar o imperador, o rei ou outra entidade
qui superiorem non recognoscat. Por vezes, a literatura clássica do ius commune mantém
uma certa gradação entre o imperador e o rei, reservando para aquele a designação
de princeps e equiparando este último ao perfectus praetorii; noutras vezes, o rei é tido
como princeps e ao praefectus praetorii são equiparados ou os vice-reis ou os tribunais
da corte.
§ 615. Tendia progressivamente a entender-se que na pessoa do rei se
concentrava-se toda a jurisdição. Era tido, ainda, como lex animata, ou fonte de
jurisdição. Tanto de jurisdição delegada, o que seria normal, como da jurisdição
ordinária e mesmo da extraordinária. O príncipe detinha, assim, a plenitudo potestatis,
não apenas no sentido tradicional de que não estava sujeito a um poder superior,
mas ainda cada vez mais no novo sentido de que, cabendo-lhe o grau mais elevado
do poder, nesse grau se englobavam todas as faculdades políticas que competissem
aos outros graus855. Apesar de isto ter ainda pouco que ver com a realidade
institucional - plano em que a patrimonialização das jurisdições lhe impedia na
prática um exercício tão absoluto do poder - o certo é que este modelo dogmático
estava já presente na doutrina jurídica medieval, embora comprimido por
conceções concorrentes856.
§ 616. Logo abaixo do príncipe, mas como que fazendo ainda corpo com ele,
os magistrados e tribunais palatinas, detentores não só de mero e misto império e
jurisdição, mas ainda de algumas das atribuições compreendidas nos seus graus
máximos, a que a doutrina posterior chamará regalia maioria. Pares principis, quasi
corpus principis, colaterales, magnates sacri palatii, lhes chamará a doutrina, justificando a
atribuição de tais poderes. Nestes magistrados contam-se o praefectus praetorii, os
questores e os grandes magnates (duces, comites, marchiones, etc.) 857, com as
correspondências que a doutrina lhes dá nas magistraturas modernas858.
2.6.6.2 Magistraturas ordinárias com jurisdição territorial ou
corporativa.

855 Sobre este processo de absolutização do poder do príncipe, com críticas a anteriores equívocos

sobre o tema - devidos, por um lado, a uma projecção sobre o passado dos conceitos oitocentistas de
soberania e, por outro, a uma leitura unilateral e incompleta da dogmática da época (sem reconhecer,
ainda por cima, o carácter limitado da história feita apenas sobre as realidades dogmáticas) -, v. as
páginas que escrevi sobre o assunto no prefácio à colectânea Poder e Instituições […], cit.. A análise
detalhada das limitações práticas do poder real na época moderna, fi-la em As vésperas do Leviathan […],
cit.
856 Teorias da irrevogabilidade das doações régias de jurisdições, da prescritibilidade das
jurisdições, da inviolabilidade dos direitos radicados ou adquiridos. Dependia de cada conjuntura
discursiva, a hegemonia de uma ou de outra destas correntes.
857 A doutrina distinguia, por vezes, entre os magistrados superillustres e os illustres; o critério estava

na possibilidade de exercício ou não dos graus de poder reservados ao príncipe, como, v. o poder
legislativo. De entre os magistrado eclesiásticos incluíam-se aqui os cardeais e os patriarcas. De todos
estes era aproximado, por gozar das suas prerrogativas em relação aos estudantes, o doutor lente com
mais de vinte anos de exercício. Sobre isto, G. Mastrillo, De magistratibus [...], cit., pt. 2, liv. 5, c. 6, ns.
18 ss..
858 A correspondência entre as magistraturas do Baixo Império e as da época medieval e moderna

era matéria discutida: o perfectus praetorii seria o vice-rei ou o tribunal da corte; o questor, o conselheiro
da fazenda ou o chanceler; o cônsul, o juiz da corte; os senadores, os membros dos conselhos régios;
os comites, os altos funcionários palatinos, etc..

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§ 617. O grau seguinte das magistraturas ordinárias era preenchido por aquelas
qui superiorem recognoscunt.
§ 618. Em primeiro lugar, pelas magistraturas territoriais; que, no direito
comum clássico, eram as magistraturas ordinárias por excelência, a ponto de Baldo
definir o carácter ordinário do juiz com recurso ao carácter geral e não
especializado (territorial) da sua jurisdição859. Nestas, dentre as magistraturas maiores,
i. e. dotadas de império, destacavam-se os praesides provinciarum, magistrados
ordinários e universais no âmbito da província 860. A estes se equiparavam, na
tipologia das fontes do direito romano, os outros magistrados encarregados de
dirigir as províncias - proconsules, procuratores caesaris - e, no direito intermédio, quer os
representantes regionais do rei - comites, duces, corrigedores861 -, quer os magistrados
que presidissem às cidades metropolitanae, maximae e magnae862. Nas fontes de direito
canónico, equiparam-se-lhes os bispos.
§ 619. Em segundo lugar, pelas magistraturas que presidiam a universitates não
territoriais (collegia), magistraturas que, no direito comum clássico, eram excecionais:
as fontes referem o reitor da universidade, os conservadores das nações
estrangeiras, os chefes militares em campanha e pouco mais. Estes magistrados
dispunham apenas de iurisdictio e da medica coertio a ela inerente (nomeadamente no
que respeita à administração dos bens das mesmas pessoas coletivas). A expansão

859 Cf. Baldus, Commentarium in Dig. Vet. 1. iubere cavere, D. De iur. omn. iud. (D.2, 1, 4).
860 Para a teoria do ius commune clássico a distinção entre regnum e provintia e civitas assentava sobre
um duplo critério. De um lado, um critério, digamos, geográfico distinguia entre espaços humanos de
povoamento contínuo e espaços de povoamento descontínuo - assim, os reinos e as províncias eram
communitates hominum in aedificiis separatis hobitatium, enquanto que as cidades, oppida, castra e villae ou vici
são communitates hominuum in eodem loco habitantium. Um critério jurídico-político permitia ir mais longe
na distinção: assim, os reinos, enquanto comunidades que não reconheciam superior, estariam dotados
de todos os graus de mero império, mesmo de mero império máximo, e seriam, portanto isentos de
qualquer sujeição jurisdicional; já as províncias seriam sempre unidades políticas dependentes, embora
gozando de mero império (excluindo, no entanto, o máximo); as cidades, em contrapartida, não
gozariam, em princípio, de todos os graus do império (mas apenas dos graus inferiores), embora
dispusessem de jurisdição; os oppida, castra e villae, enquanto submetidos a uma cidade, não gozariam
sequer de jurisdição. Este era o modelo geral, com base no qual eram classificados os casos concretos
que ocorriam. Sobre isto, por todos, v. António Manuel Hespanha, “Representação dogmática […]”,
cit., em que se remete para Francesco Ercole, Da Bartolo all'Althusio […], cit., pp. 79, 83 ss. 108 ss.
para o confronto entre os conceitos aristotélico e bartolista de cidade e de reino.
861 Os praesides provintinrum gozavam, ao nível da província que dirigiam, de uma competência

universal e cumulativa com a dos outros magistrados, o que quer dizer que podiam avocar as causas
destes. Eram classificados pela doutrina como judices perpetui et universales. Para a aplicação desta doutrina
aos nossos corregedores ou mesmo aos donatários, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, d. 13
(per totam), Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 4 (ad. 1, 58), gl. 1 (cfr. nas gl. 12, 23 e
24 algumas restrições ao carácter cumulativo da competência dos corregedores - não podem avocar as
causas dos contadores, dos juízes de fora e dos rnamposteiros).
862 Para esta classificação das cidades, cf. Gabriel Alvarez Valasco, In l. imperium […], cit., n. 71:

as civitates máximas eram as que tinhão jurisdicção civil e criminal e a que estavam sujeitas outras cidades
(correspondiam às capitais das províncias, sedes do praeses); as civitates magnae eram aquelas cujos
magistrados também tinham foro civil e criminal, mas que não tinham outras cidades sujeitas; as civitates
parvae eram as restantes, em que os magistrados apenas gozavam de iurisdictio. Metropolitanae eram as
cidades sedes de bispado. Havia ainda outras classificações das cidades: desde logo, a das fontes
romanas (C. 11, 12 De metropoli Beryto, 1. un.), que distinguia as cidades em função do número de
médicos, gramáticos, etc. que aí houvesse. Entre nós, a criação de cidades era um direito real. V. sobre
o tema das cidades na doutrina portuguesa, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 6, ad
Ord. fil. 1, 73, gl. 2, n. 1 ss..

198
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

do modelo corporativo na sociedade tardo-medieval e moderna multiplicou, depois,


o número destas magistraturas, sem todavia alterar substancialmente a sua
competência jurídico-política863.
2.6.6.3 Magistraturas ordinárias de competência especializada.
§ 620. Finalmente, as magistraturas ordinárias criadas por lei e a que não
correspondia nem uma jurisdição predominantemente territorial (i. é, não eram
magistraturas universais dentro de um certo território), nem uma jurisdição
corporativa. São, afinal, as magistraturas através das quais se implanta a nova
administração, correspondentes a campos cada vez mais específicos de atividade e
dotadas de uma competência progressivamente privativa864. De uma forma geral,
pode dizer-se que estas magistraturas correspondem à consolidação de
magistraturas originariamente delegadas ou mesmo extraordinárias; na sua origem e
nas suas primeiras fases, seriam comissões ad hoc através das quais o rei
encomendava certa tarefa específica e limitada a certo funcionário. O
prolongamento no tempo desta tarefa e a repetição de concessões do mesmo tipo
terão proporcionado a institucionalização, sob forma ordinária, da magistratura e a
sua dotação com poderes retirados às magistraturas territoriais universais . Aqui, não
é possível formular uma regra geral quanto ao tipo de poderes jurídico-políticos que
integravam a competência destes magistrados, já que tais poderes decorriam da lei
(ou do regimento).
2.6.6.4 Magistraturas delegadas (ou comissariais).
§ 621. Ao lado deste continente mais ou menos estável das magistraturas
ordinárias - de que a categoria ultimamente descrita constituía a camada tectónica
mais jovem – encontrava-se a zona magmática das magistraturas delegadas e
extraordinárias, totalmente dependentes da oportunidade do momento,
experimentais e passageiras; mas, ao mesmo tempo, viveiro de futuras magistraturas
ordinárias. Muitas daquelas formas de institucionalização do poder político que
encontramos ainda em fase larvar durante os séculos XVI e XVII pertencerão já ao
mundo das magistraturas ordinárias do século XVIII 865.
§ 622. A construção da figura jurídica da comissão partia de elementos
dogmáticos encontrados dispersos nos textos romanos - nomeadamente das
distinções entre magistraturas e curationes e entre judex ordinarius e judex delegatus866.

863 Em Portugal, no século XVII, estas rnagistraturas eram inúmeras: conservadores das nações

estrangeiras, Juiz dos moedeiros, Juiz dos Cavaleiros, Conservador da Universidade, Juiz do Hospital
de Todos os Santos, juízes dos mesteres, etc..
864 Alguns magistrados deste tipo: Juiz da Índia, juízes dos órfãos, juízes das sisas, almoxarifes,

juízes das alfândegas, provedores, contadores, mamposteiros, dotados de uma competência privativa
em relação aos corregedores. Cfr. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 4 (ad. 1.58), gl. 2,
n. 1 e gl. 24, n. 6.
865 Sobre este processo de “consolidação” de magistraturas onginariamente delegadas, v. para a

França, Charles Loyseau, Traité du droict des offices [...], cit., liv. IV, c. V, nomeadamente ns. 15 ss. (o A.
relaciona a transformação das comissões em ofícios, através da sua formalização por lei do príncipe
[edito] com o interesse da realeza e dos oficiais em transforem os cargos em situações estáveis e, logo,
vendáveis). Sobre a interpretação histórico-sociológica dos aparelhos político administrativos na Europa
Moderna, v. Antonio Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., [Os oficiais, instrumentos ou entraves].
866 Para as fontes jurídicas e literárias da antiguidade, de onde esta distinção brotava, v. Jean

Bodin, Les six livres […], cit., liv. 3, c. 2 (p. 173 ss..); Charles Loyseau, Les cinq livres du droict des offices,
cit., liv. 4, c. 5, n. 3 ss..

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Mas foi preciso esperar pela segunda metade do século XVI para encontrar autores
que colocassem a distinção entre ofício e comissão no centro da teoria do ofício 867.
É o caso de Jean Bodin e de Charles Loyseau que, sublinhando nas suas obras a
figura do comissário, mostram bem a importância que esta (e o modelo
administrativo que ela representa)868 adquirem nesta época, em que o poder político
central estendia o seu campo de ação para fora do tradicional domínio do “iustitiam
dare”. Charles Loyseau, porventura mais próximo das fontes tradicionais do que
Jean Bodin, insinua ainda que os verdadeiros ofícios são, no fundo, os ofícios
ordinários de justiça, embora nos seus dias, causas “exógenas” (nomeadamente, a
instauração da venalidade dos ofícios) tivessem feito com que primitivas comissões
tenham sido decoradas com o carácter ordinário869. De qualquer modo, isto não
impede, antes pelo contrário, o aberto reconhecimento da existência de uma
administração que se processava ao lado da tradicional administração ordinária,
abrangendo domínios diferentes e novos, liberta das formalidades do processo
ordinário e, por fim, baseada num novo tipo de funcionário.
§ 623. Esta nova administração tanto abarcava tarefas extraordinárias, quer
quanto ao tempo (i. e. não permanentes), quer quanto ao assunto (ratione temporis vel
ratione subjecti, na fórmula adotada por Charles Loyseau), como tarefas ordinárias,
mas concedidas a alguém de forma precária ou excluindo as formas processuais
normais (cognitio extra ordinem}. A sua maior maleabilidade decorria, como já se
disse, desta mesma indefinição dos seus estatuto e processo; pois à plena
disponibilidade dos cargos somava-se a plena disponibilidade da competência e a
total maleabilidade processual 870. É esta nova estrutura político-administrativa que
se virá a impor no séc. XVIII.
2.6.7 Os ofícios no reino de Portugal.
2.6.7.1 Súmula
§ 624. Traçado este panorama dos grandes ramos do aparelho político-
administrativo, na periferia e no centro, importa fazer um balanço final, em que se

867 Obras e lugares citados na nota anterior; para a sua integração no contexto doutrinal e social da

época, v. os artigos de Vitor Ivo Comparato, Uffici e società a Napoli (1600-1647). Aspetti dell'ideologia del
magistrato nell'étà moderna, Firenze, 1974; Diego Quaglione, "L'ufficiale in Bartolo", L'educazione giuridica,
1. La tradizione italiana, Perugia, 1981, 143 ss.; Vitor Ivo Comparato, "Note sulla teoria della funzione
pubblica in Bodin", L'educazione giuridica, 2. L'étà moderna, Perugia 1981, 3 ss.; Salvo Mastelone, "Il
trattato di Charles Loyseau «Du droit des offices»", ibid. 17 ss.; sobre a interpretação sociológica da obra
de Charles Loyseau, nomeadamente quanto à sua teoria dos ofícios, v. a polémica entre Roland
Mousnier (La venatíté des offices sous Henri IV et Louis XIII, Rouen 1945; mais tarde, La monarchie absolue en
France, Paris 1979) e Boris Porshnev, Die Volksaufstände in Frankreich vor der Fronde, 1623-1648, Leipzig
1954; trad. franc. Paris 1963); e ainda Salvo Mastelone, “Introduzione al pensiero politico di Charles
Loyseau”, Critica storica, 4 (1965), 446-482.
868 Sobre o tipo administrativo do comissário, Otto Hintze, “ Der Comissarius […] ”, cit.; v.

também, As vésperas […], p. 505.


869 Charles Loyseau, Les cinq livres du droict des offices, cit., 1.4, c. 5, n. 15 ss.: até Carlos VIII só os

cargos de justiça teriam sido conferidos sob forma de ofícios ordinários; mas não os da guerra “dont la
perpetuité est dangereuse”), nem os de finanças “ou la longue experience n'est nécessaire”). A situação
teria mudado, quanto aos últimos, após Luís XII; e quanto a alguns dos primeiros, após Henrique II.
870 “La comission, qui n'a presque loy ni regre, ains dépend quasi du tout de la volonté de celuy

qui la decerne”, Charles Loyseau, Les cinq livres du droict des offices, cit., liv. 1, c. 1, n. 111 (ed. cit., pg.
20); cfr. ainda Jean Bodin, Les six livres […], cit., ps. 620 ss..

200
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

avalie a importância relativa desses ramos, se visualize o peso que este aparelho tem
em relação à população do reino (notando as eventuais assimetrias regionais) e se
determine o peso de cada uma das principais categorias de oficiais no conjunto.
§ 625. Os cálculos numéricos de seguida apresentados baseiam-se em estudos
efetuados para o século XVII. Desde já se adverte que a extrapolação para os fins
do século XVIII é muito arriscada, tudo indicando que se verifica, a partir dos
meados de setecentos, uma sensível intensificação das estruturas políticas e
administrativas centrais871. Como também se dá uma alteração da importância
política e simbólica dos vários órgãos.
§ 626. Por volta de 1640, existem em Portugal cerca de 11 700 oficiais da
administração periférica, a que haverá que somar cerca de 500 outros da
administração palatina.
§ 627. A maior parte dos ofícios corresponde aos ofícios concelhios (cerca de
72%, incluindo aqui os ofícios da milícia honorária). Devendo notar-se que nestes
se poderão ainda incluir os ofícios das sisas e os dos órfãos, com o que a
percentagem subiria para 85%.
§ 628. Isto é particularmente nítido nas comarcas ao norte do Douro e na
Beira interior (comarcas de Viseu, Lamego, Pinhel e Guarda). Em contrapartida,
destes elementos estatísticos ressalta a modéstia, em termos quantitativos (cerca de
10%), do aparelho da administração real periférica.
§ 629. Estes elementos estatísticos permitem destacar uma outra conclusão: o
aparelho político-administrativo estava predominantemente voltado para a
realização das funções judicial e “económica” (ou “de polícia”). À primeira estavam
ligados cerca de 28% dos oficiais e à segunda cerca de 46% (incluindo aqui os
ofícios “dos órfãos, resíduos e capelas”). As tarefas fiscais-financeiras ocupavam
cerca de 12%, enquanto que a milícia ocupava 8%; sendo de notar que a milícia
mercenária - elemento considerado central nos processos europeus de construção
do Estado - não conta senão com pouco mais de meia centena de oficiais (uns 5
por mil, relativamente ao total).
§ 630. Estes números permitem-nos concluir algo sobre os fins do poder, tal
como eles se manifestavam na prática. Neste plano, os aparelhos de poder
confirmam, até certo ponto, o modelo doutrinal dominante. Na verdade, a
supremacia que os respúblicos continuavam a atribuir à justiça como fim primeiro
do poder refletia-se, no plano da ação política, na importância numérica dos ofícios
de justiça, embora esta importância fosse acompanhada - ou até ultrapassada - pela
dos ofícios “económicos” ou “de polícia”, a maior parte deles vindos da época
medieval. O que, por seu lado, mostra como a ideia de que ao poder cabe regular os
aspetos quotidianos da vida em comum não é uma inovação do “Polizeistaat”; o
qual, neste ponto, apenas transportou para o nível central um modelo de ação
política de há muito em vigor no nível periférico do poder (família, comunidades).
Assim, o peso dos ofícios de polícia - que, note-se, são quase todos ofícios
concelhios - não indicia, no nosso caso, a emergência de um paradigma moderno
de poder político, mas a supervivência das formas medievais de tutela comunal da

871 Cf. com novos dados numéricos, para os finais do séc. XVIII, que documentam um enorme

crescimento da administração central (6 ou 7 vezes), José Manuel Subtil, “Governo e administração”


[…], cit., 190 ss.

201
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vida coletiva.
§ 631. Já os 12% dos ofícios da fazenda representam um traço característico
da organização proto estadual do poder político, embora aqui ainda estejam
incluídos os ofícios (locais) das sisas, que representam quase 50% do grupo. Se os
descontarmos, o significado deste sector reduz-se a uns 6% do total, dos quais -
acrescente-se - metade correspondia à administração alfandegária. A justiça estava
mais bem dotada, representando cerca de 28% dos ofícios totais. Mas, mesmo
assim, não existiam juízes régios sequer em 10% dos concelhos.
§ 632. A tipologia dos próprios ofícios reflete esta mesma estrutura
“jurisdicionalista” da administração ou mesmo aquilo a que se tem chamado a
“civilização do papel selado” (“civiltà della carta bollata”, F. Chabod). Na verdade,
se retiramos do conjunto os oficiais dos concelhos - os almotacés (9% do total) e os
vereadores (17% do total) -, um terço dos restantes oficiais é constituído por
escrivães - dos quais os escrivães do público e judicial representam cerca de 40 % -
e um quinto por juízes. Julgar e escrever são, pois, as tarefas paradigmáticas da
administração oficial na época moderna.
§ 633. Por outro lado, e como também já notámos, esta administração
periférica carecia de articulação, de modo a poder ser encarada como um aparelho
coerente e unificado.
§ 634. Para isto era, desde logo, decisivo o facto de a esmagadora maioria dos
oficiais pertencer, como se disse, a entidades dotadas de extensa autonomia
jurisdicional - os concelhos. A unidade poderia, no entanto, provir de um esforço
de articulação realizado pela administração real periférica. Mas, mesmo esta, era, em
si mesma, desarticulada. Desarticulada no topo; pela falta de órgãos palatinos de
coordenação, pelo menos até ao período pombalino, em que surge uma lógica “de
ministério” (ou “gabinete”), dominada por uma ideia de direção política
centralizada. Mas também na periferia, por falta de um funcionário com poderes de
coordenação global dos representantes locais da coroa, como o foram os
intendentes franceses ou o Kreishauptmann noutros reinos da Europa. Apesar da
tendência para o alargamento dos seus poderes, o corregedor foi sempre,
fundamentalmente, um oficial de justiça e de “administração civil”, nunca tendo
podido controlar as decisivas áreas da milícia ou da fazenda. As possibilidades de
intervenção na periferia do aparelho político-administrativo da coroa eram,
portanto, desde logo reduzidas, em virtude desta escassez de meios humanos.
Mas também o tipo de relacionamento institucional entre o aparelho político-
administrativo periférico da coroa e as estruturas político-administrativas que
lhe estavam subordinadas dificultava uma estratégia centralizadora. De facto, e
como já antes dissemos, as relações entre o centro e a periferia do sistema
oficialato existentes no sistema político moderno não podem ser descritas,
salvo porventura em domínios excecionais como a milícia e as finanças, através
do modelo que hoje designamos por relação hierárquica. O facto de a
competência (ou jurisdição) do funcionário ser, no domínio da teoria do ofício
do direito comum872, quase absolutamente garantida contra intromissões,

872 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit, V.3; José Manuel Subtil, “Governo e

administração […]”, cit., 187 ss..

202
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

impedia que o superior pudesse dar ordens ao inferior ou avocar as suas


competências. A intervenção do superior esgotava-se assim numa atividade de
tutela, dirigida a verificar o cumprimento do regimento dos oficiais
“subordinados”. Esta diluição do vínculo de subordinação não se verificava
apenas entre os oficiais da administração real e os da administração local com
que se correspondiam a jusante; caracterizava também o próprio aparelho
administrativo da coroa, nas suas ligações entre o centro e a periferia.

203
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3 Direito das pessoas.


§ 635. As Institutiones Justiniani873 abrem com a definição de direito e com as
várias divisões do direito; direito público (e sua divisão temática), direito privado;
direito natural, direito civil; direito escrito, direito não escrito. Uma delas é a divisão
temática do direito: pessoas, coisas e ações, importada de Gaius. Em rigor, não se
trata de uma divisão sistemática, do género das que foram feitas pelos
jusracionalistas. Estes partiam de uma definição da natureza do direito ou de um
princípio do direito, que tomavam como tronco e que iam especificando em braços,
como os ramos de uma árvore. Nem tão pouco corresponde à divisão em
elementos da relação jurídica: sujeitos, objetos e negócios, de que já Vinnius
ensaiara uma explicação estrutural874. Aqui, trata-se antes de agrupar as normas
jurídicas por assuntos. Umas tratam das pessoas, outras das coisas e outras,
finalmente, das figuras criadas pelo direito (ações, contratos, malefícios).
3.1 Estados e pessoas.
§ 636. O livro I, sobre as pessoas, cumpre bastante bem o seu propósito,
agrupando as normas sobre os homens. A estrutura interna do livro é construída a
partir de divisiones (ou status) do género homem875: livres, escravos e libertos; pais e
filhos (naturais ou adotados); tutores, curadores e pupilos.
§ 637. A exposição do direito das pessoas faz-se, portanto, a partir da noção
de status, ou seja, da qualidade das pessoas quanto aos seus direitos e deveres.
§ 638. "O estado é a condição do homem que é comum a vários" ensina
Antonio de Nebrija (Vocabularium […], cit. v. “Status”). Em princípio, um estado
correspondia a uma situação objetiva, a um lugar na ordem do mundo, da qual
decorriam tarefas ou deveres (officia) e, portanto, direitos e deveres. Tal como
“constituição”, “estabelecer”, status está relacionado com palavra grega stasis (lat. sito,
stiti, statum), equilíbrio objetivamente estabelecido. Como situação objetiva, o
“estado” não dependia da vontade. Esta distinção foi usada por Henry Sumner
Maine876 para distinguir as sociedades tradicionais, que se imaginavam como
assentes no status, das sociedades modernas, autorrepresentadas como fundadas no
contrato e na vontade.
§ 639. No direito romano, distinguiam-se três critérios para distinguir os
estados877: o status libertatis, ou situação como sujeito ou como objeto nas

873 Cf. on-line: http://droitromain.upmf-grenoble.fr/Corpus/iust_institut.html.


874 Arnold Vinnius, 1588-1657, In quattor libros Institutionum […], 1, 2, 12 (p. 31), cit.:Todo o
direito é dado às pessoas, em relação a coisas, por meio de ações e de julgamentos (Omne jus redditur
personis de rebus per actiones & judicia). O fim do direito é atribuir a cada um o que é seu. Para isto, é
necessário saber o que é o seu cada um; e porque é que esse seu se pode obter pela força. A primeira
questão diz respeito ou às pessoas ou às coisas. Explica que a diversidade do direito das pessoas depende
da sua condição ou estado. Que o direito sobre as coisas, pode ser real ou pessoal, traduzindo-se numa
obrigação ou num crédito. A razão de adquirir um ou outro direito está nas acções.
875 As mulheres aparecem apenas indiretamente, não sendo o género uma suma divisio da espécie

humana.
876 1822-1888: Ancient Law: Its Connection with the Early History of Society, and Its Relation to Modern

Ideas, 1861
877 Aqui, o status designa a perspetiva em que assenta a discussão de uma questão do estatuto das

pessoas, e não propriamente esses estatutos. Este sentido de status, como base de uma discussão, fora

204
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

comunidade das pessoas; o status civitatis, ou situação na comunidade política; e o


status familiae, situação na família. A partir daí, identificavam-se os estados das
pessoas, ou seja, os seus direitos e deveres (livres, escravos, cidadãos, latinos,
peregrinos, sui iuris, alieni iuris, etc.).
§ 640. Na sociedade tradicional europeia, o estatuto das pessoas depende dos
grupos sociais a que pertencem, pois cada qual desempenhava uma específica
função social (officium). E, assim, os direitos e deveres das pessoas decorriam dessas
funções. Destacavam-se três ofícios sociais: a milícia, a religião e a lavrança.
"Defensores são huns dos tres estados, que Deus quis, per que se mantivesse o
mundo, ca bem assy como os que rogan pelo povo se llaman oradores, e aos que
lavran a terra, per que os homes han de viver, e se manteem, são ditos
mantenedores, e os que han de defender são llamados defensores", pode ler-se nas
Ordenações afonsinas portuguesas (1446), inspiradas nas Partidas (1,2,25,pr.). Mas esta
classificação das pessoas podia ser mais diversificada e, sobretudo, menos rígida.
No domínio da representação em cortes, manteve-se basicamente a classificação
tripartida até aos finais do Antigo Regime. Já noutros planos da realidade jurídica
(direito penal, fiscal, processual, capacidade jurídica e política), os estados eram
muito mais numerosos. Nos distintos planos do direito, constituíam-se, assim,
estatutos pessoais ou estados, correspondentes aos grupos de pessoas com um
mesmo estatuto jurídico (com os mesmos “privilégios”, no sentido de direito
particular).
§ 641. A conceção do universo dos titulares de direitos como um universo de
"estados" (status) levava à "personificação" dos estados. Ou seja a considerar que
uma mesma pessoa física podia ter vários estados e que, como tal, nela podiam
coincidir várias pessoas jurídicas.
§ 642. Frente a esta multiplicidade de estados, a materialidade física e
psicológica dos homens desaparecia. A pessoa deixava de corresponder a um
substrato físico, passando a constituir o ente que o direito criava para cada aspeto,
face, situação ou estado em que um indivíduo se lhe apresentasse. "Pessoa - escreve
ainda o tradicionalista Manuel de Almeida e Sousa (Lobão) 878 - é o homem
considerado como em certo estado", ou seja, considerado sob o ponto de vista de
certa qualidade "conforme à qual [...] goza de direitos diversos dos que gozam
outros homens" (ibid.). Então, se são as qualidades, e não os seus suportes
corporais-biológicos, que contavam como titulares de direitos e obrigações, os
sujeitos de direito podiam multiplicar-se, dando carne e vida jurídica autónoma a
cada situação ou veste em que os homens se relacionassem uns com os outros. A
realidade jurídica decisiva, a verdadeira pessoa jurídica, era esse estado, que era
permanente; e não os indivíduos, transitórios, que lhe conferissem
momentaneamente uma face879.
§ 643. Homem que não tivesse estado não era pessoa. De facto, havia pessoas
que, por serem desprovidas de qualidades juridicamente atendíveis, não tinham
qualquer status e, logo, careciam de personalidade. "Quem não tenha nenhum destes
estados [civil, de cidadania ou familiar, status civilis, civitatis, familiae] é havido,

importado da retórica (teoria retórica dos “estados”).


878 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas a Melo […], cit., t. 1. tit. 1, 1.

879 cf. Bartolomé Clavero, Tantos estados […], cit., max. 36.

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segundo o direito romano, não como pessoa, mas antes como coisa", escreve Justus
Hermann Vulteius880. Era o caso dos escravos.
§ 644. Tal era a sociedade de estados (Ständesgesellschaft, società per ceti),
característica do Antigo Regime e que antecede a atual sociedade de indivíduos.
§ 645. Entre os juristas, a designação "estado" (status) foi frequentemente
substituída pela de privilégio (ou privilégio geral, pois o privilégio, ou direito particular
(quasi privata lex), era o meio pelo qual se afastava a regra geral, adaptando a norma
a situações particulares (v. cap. 2.5.5).
§ 646. Neste sentido lato (ou vulgar, como se dizia), os estados seriam
infinitos, pois eram inumeráveis as distinções que o direito fazia entre as pessoas.
Embora o direito romano considerasse apenas três estados: libertatis, civitatis e familae
e, por força dessa tradição literária, muitas das exposições do direito das pessoas
obedecessem a esta tripartição, os autores advertiam que, para além desta distinção,
haveria muitas mais a considerar, pois existiam muitos grupos de pessoas com um
conjunto especial de direitos e de deveres.
§ 647. Por outro lado, o estado autonomizava-se das pessoas físicas, pois, na
verdade, todas os entes tinham uma certa situação – função, estatuto - na ordem do
mundo. Ao criar o mundo, Deus criara a ordem. E a ordem consiste justamente
numa unidade simbiótica; numa trama articulada de relações mútuas entre
entidades, pelas quais umas dependem, de diversos modos e reciprocamente, de
outras. Neste sentido, todas elas, sem distinção de inteligentes ou brutos, de seres
animados ou inanimados, disponibilizavam "utilidades" e exerciam as "faculdades"
de gozo inerentes à sua situação, ao seu "estado". Por outras palavras, todas as
entidades que integravam a ordem da Criação tinham direitos e deveres umas em
relação às outras. A extensão desses deveres e obrigações dependia da posição de
cada entidade na ordem do mundo (status), sendo alheia à circunstância de disporem
ou não de entendimento, de serem pessoas ou de serem coisas, no sentido mais
corrente das palavras. Assim, para a tradição do direito comum, o universo dos
titulares de direito não era um universo de pessoas, no sentido comum da palavra,
mas antes um universo de "estados" (status).
§ 648. O que fica dito já permite entender que, ao tratar dos sujeitos da
política o do direito, o ponto de partida não há-de ser constituído pelos indivíduos
(i.e. os seres dotados de identidade física e racional), mas antes pelas condições
(status "estados"). Ou seja, pelas posições relativas que as criaturas ocupam na
ordem da Criação, de que fazem parte.
§ 649. Esta diferente conceção do universo dos titulares de direitos tem uma
dupla consequência.
§ 650. Desde logo, não permite uma rigorosa distinção entre sujeitos e objetos
do direito; distinção gémea da contraposição entre "homens" - dotados do uso da
razão, a quem caberiam, em exclusivo, os direitos e as obrigações - e "coisas",
privadas de capacidade racional e que ocupariam, também exclusivamente, a
posição de objetos desses direitos e dessas obrigações (v. cap. 4.1.4). Pelo contrário.
Direitos e obrigações poderiam caber, indistintamente, a homens e a outras
entidades que não têm (ou já não têm) essa qualidade. E, na verdade, as fontes

880 Citado por Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., I. 170.

206
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

romanas estendiam o “direito” às relações entre animais e até entre as feras ("O
direito natural é aquilo que a natureza ensinou a todos os animais. De facto, este
direito não é próprio do género humano, mas antes comum a todos os animais que
nascem na terra e nos mares, mesmo às aves", Ulpiano, D. 1,1,1,3). Domingo de
Soto (1494-1560), uma das figuras de proa da teologia moral e jurídica da Segunda
Escolástica ibérica, aborda expressamente esta questão do âmbito dos sujeitos de
direito. Ou seja, se só os homens são titulares de direito, ou se, pelo contrário,
também os animais e mesmo as coisas se podem reclamar de pretensões jurídicas:
"Pode efetivamente afirmar-se - escreve no seu Tractatus de iustitia et de iure, 1586 -
que, a seu modo, também os animais brutos têm domínio (i.e. propriedade) sobre a
erva [...] e até parece que a rainha das abelhas tem também domínio [i.e. poder
político] sobre seu enxame [...]. E entre as feras, parece que é o ferocíssimo leão
que domina os restantes animais, tal como o gavião parece que exerce domínio
sobre as infelizes aves. Outro tanto se pode dizer dos céus inanimados, os quais
têm domínio sobre este mundo sublunar, derramando sobre ele o calor e a força
com que se sustenta e desenvolve"881 (IV,1,2, pg. 284 col. 1). Deve dizer-se que
Soto acabava por recusar a opinião de juristas e teólogos insignes que tinham
ampliado a animais e coisas o campo do domínio político e do domínio jurídico (ou
propriedade). Mas fá-lo respeitosamente (bona venia dixerim [permito-me dizer]),
como se de uma opinião teoricamente respeitável e provável se tratasse. Insistir
neste caráter universal da ordem e nesta ideia de que tudo pode ter direitos sobre
tudo, de que tudo pode estar obrigado a tudo, parece uma peça importante para a
compreensão mais profunda da maneira medieval e moderna de ver e avaliar o
mundo e de se comportar nele. A partir deste modelo mental - absolutamente
oposto ao de hoje -, muitas instituições, normas e comportamentos tornam-se
esperados e óbvios. E, com isso, a sociedade moderna deixa de oferecer muitas
surpresas. De facto, esta ideia de uma ordem universal, na qual as coisas também
têm pretensões umas em relação às outras, ou mesmo em relação às pessoas,
legitimava uma série enorme de situações frequentes na sociedade de Antigo
Regime, em que direitos e obrigações acabam por caber a entidades que não eram
homens, como animais, espíritos e até cores882.
§ 651. Por outro lado, nesta conceção total da ordem, quebra-se a identidade
entre as pessoas e os substratos físicos dos corpos individuais. A pessoa passa a ser
uma criação do direito e não uma realidade da natureza. Os juristas exprimem este
caráter não empírico da personalidade de várias formas, tirando daqui
consequências normativas.
§ 652. As pessoas, dizem os juristas, são criações (ficções, feituras) do direito,
que nada têm a ver com a realidade dos factos (i.e. com o senso comum acerca da
personificação dos factos): o pai e o filho são a mesma pessoa, mas isto apenas para
o direito e não segundo os factos (“Pater & filius una & eadem persona censentur
quoad ea, quae sunt iuris civilis, non quoad ea quae facti sunt” 883). Daí que o direito

881 Domingo de Soto, De iustitia et de iure, Salmanticae, 1556 (ed. cons. ed. facsimilada, bilingue, a

cargo de P. Venancio Diego Carro, O.P. Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1968), 4, 1, 2, pg.
284 col. 1
882 Cf. António Manuel Hespanha, “As cores […], cit..

883 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n.12; Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v.

“Persona”, n. 1421.

207
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possa: (i) fazer coincidir mais do que uma pessoa no mesmo substrato corpóreo 884;
(ii) unir dois ou mais corpos físicos na mesma pessoa 885); (iii) criar pessoas sem
qualquer substrato físico (como a alma); (iv) como personificar animais ou mesmo
seres inanimados.
§ 653. Eis alguns casos que documentam esta capacidade poiética do discurso
do direito para criar titulares de estados ou qualidades de direito.
§ 654. O direito podia atribuir personalidade (e estado), desde logo, a seres
sobrenaturais, como Deus, que, nesta medida, é titular de direitos juridicamente
protegidos886, tanto no domínio civil como no penal 887, ainda que o seu exercício e
defesa coubessem aos seus vigários na terra (o Papa, a Igreja, os reis). Também os
santos e os anjos podiam ser titulares de situações jurídicas, como a propriedade de
bens ou a titularidade de cargos. Conhecido é o exemplo de Santo António, titular,
em Portugal, de um posto de oficial num regimento do Algarve, com os
correspondentes direitos, designadamente ao soldo. Titular de direitos podia ser,
também, a alma (de pessoa morta), a quem se faziam frequentemente
deixas testamentárias (por exemplo, rendas com as quais se pagassem missas pela
sua salvação) 888. A instituição da alma como herdeiro só foi proibida em Portugal
em 1769. Quando Álvaro Valasco 889 considerava "incivilis et ridicula" a decisão de
alguns tribunais de aceitar a nomeação da própria alma para as segunda e terceira
vidas de um "prazo de vidas" (enfiteuse transmissível aos herdeiros por umas tantas
vidas, v. cap. 4.3.3), o que lhe repugnava não era que a alma pudesse ser enfiteuta,
mas antes que, sendo a alma imortal, se prejudicasse o senhorio, por nunca poder
recuperar o bem emprazado. Só neste sentido o alma era uma "pessoa minus
idonea" (ibid. n. 6).
§ 655. Desprovidos, também, de qualquer substrato físico, no sentido daquilo
que o senso comum exige para que se possa falar de pessoa, estavam outros
titulares de direitos, como o nascituro ou o defunto. O nascituro, além de ter
direitos pessoais protegidos (pela punição do aborto 890), era também titular de
direitos patrimoniais, como o direito a alimentos e à proteção das suas expectativas
sucessórias, situação a que se referia o brocardo "nasciturus pro jam natus habetur,
quoties de commodo ejus agitur" (o nascituro tem-se por já nascido em tudo o que
respeite aos seus interesses). Quanto ao defunto, além de ser passível de punição

884 “Persona una duplici jure considerari potest”, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs.

8, n. 21; obs. 27, n. 18; Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Persona”, 1421.
885 “Vir & uxor una persona reputantur”, Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Persona”,

1421; Melchior Phebo, Decisiones […], cit., dec.16, n. 4; “Filius fictione juris est una, & eadem persona
cum patre”, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n.5; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit.,
pt. 1. dec. 108, n.1.
886 Domingo de Soto, De iustitia et de iure […], cit., liv. 4, qu. 2, art. 2.

887 Cf. g. a criminalização de pecados, que corresponde à tutela pelo direito dos deveres para com

Deus ou, em geral, a tutela jurídica dos deveres religiosos.


888 Cf. “Anima censetur persona” [embora “prohibita ad nominationem emphyteuticam”], Álvaro

Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 193, n. 6, Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Persona”, n.
1422.
889 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 193, n. 1 ss..

890 Sobre a punição do aborto no direito moderno, Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, 9,

14.

208
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

(privação de sepultura, infâmia, censuras eclesiásticas891), era titular de direitos


protegidos penalmente, como o direito à honra, o direito a sepultura e à integridade
do cadáver892; mas também direitos patrimoniais. Uns e outros eram exercidos pelo
poder público - ou pelo príncipe (em Portugal por meio do curador dos defuntos e
ausentes893 ou pela punição penal pública das ofensas feitas aos seus restos mortais
- ou pelos herdeiros.
§ 656. Em qualquer dos casos, o verdadeiro titular dos direitos era o defunto,
de que o herdeiro, mais do que representante, era a mesma pessoa ("haeres reputantur
eadem pessoa defuncti”894), assumindo as suas características e qualidades, mesmo
psíquicas. Assim, por exemplo, ele respondia pelas disposições psíquicas do de cuius,
como a sua ignorância, o seu dolo ou a sua má fé (ibid.). Esta sub-rogação na pessoa
do defunto abrangia mesmo o sexo; e, por isso, uma herdeira fêmea podia exercer
direitos exclusivos de homens, desde que personificasse a qualidade de herdeira.
§ 657. Finalmente, são também "personificados" (personae vice fungitur, D. 49, 1,
22) conjuntos de pessoas, "pessoas coletivas", "corporações", como as universitates,
collegia ou corpora, os conjuntos de bens, como a herança, o fisco, as piae causae
(hospitais, montes de piedade), as capelas e os morgados.
§ 658. Personificados eram, ainda, mesmo que só para os sujeitar a penas, os
animais. São conhecidas muitas histórias de punição de animais. Por exemplo, de
animais com os quais humanos tivessem tido relações sexuais (bestialidade); ou
animais responsáveis por danos. Tomás y Valiente relatou o saborosíssimo caso de
um pleito posto, em 1650, por uma aldeia contra uma nuvem de gafanhotos que,
regularmente, assolava as suas culturas. Citados os gafanhotos, decorrido o
processo com a observância de todas as formalidades e garantias para os réus, estes
são finalmente condenados por um tribunal eclesiástico a abandonar o local. E a
situação nem seria extraordinária, pois, segundo o juiz da causa, a questão da
legitimidade do processo era corriqueira”: “A esta pregunta y dificultad fuera fácil la
respuesta solamente con decir que así lo han hecho muchos obispos y doctos.
como lo que se refiere del santo y docto obispo El Tostado, obispo de Ávila, que
formó tribunal con fiscal y procurador, hizo proceso contra las Langostas, y dio
sentencia de excomunión y las mandó se recogiesen todas en unas cuevas que
estaban fuera de la ciudad; y como lo mandó, así sucedió. En Valladolid, otro
obispo hizo lo mismo contra las Langostas. El obispo de Osma hizo lo mismo
contra los ratones, y actualmente, cuanto estamos actuando este proceso, se halló
aquí un religioso descalzo de San Francisco, que se halló presente en Osma cuando
sucedió y lo vió con sus ojos. En Córdoba hizo lo mismo el obispo de aquella
ciudad contra las golondrinas, que una ermita fuera de la ciudad, de mucha
devoción, la ensuciaban mucho, y no hubo traza humana para estorbarlo, y las hizo
proceso y las excomulgó, y hoy día se ye el efecto de la excomunión [na limpeza da
fachada]”895.

891 Cf. Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], vol. 3, pg. 67, n. 11 ss..
892 Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal […], ibid.; José Joaquim Caetano Pereira e
Sousa, Classes dos crimes por ordem systematica, Lisboa, 2, 2, 1, 1, 6.
893 Cf. Manuel de Almeida e Sousa, Notas a Melo, cit., 1, 11.

894 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Haeres", n. 22 e 23.

895 Francisco Tomás y Valiente, “Delincuentes y pecadores”, em Francisco Tomás y Valiente et

al. Sexo barroco […], cit., 22 ss..

209
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§ 659. Mesmo as coisas inanimadas podiam ser titulares de direitos. Assim, um


prédio podia ser titular de direitos de servidão, a prestar ou por outros prédios
(servidões reais) ou por pessoas (servidões pessoais, como a “adscrição”, vinculação
de certas pessoas a trabalhar certa terra). Claro que o exercício ou a reivindicação
destes direitos competia a uma pessoa. Mas esta era indiretamente designada pela
especial situação que tinha com a coisa. Só mais tarde, quando o racionalismo
moderno identificou a capacidade jurídica com a capacidade de usar a liberdade e a
razão, se recusará que seres carentes de inteligência e de vontade possam ser
titulares de direitos896.
§ 660. Tratam-se, de seguida, os estados geralmente identificados como
relevantes no direito português de Antigo Regime.
3.1.1 Escravos.
§ 661. Segundo o direito comum, o estado de escravidão configurava a maior
perda da capacidade jurídica (capitis diminutio maxima), adquirindo-se por nascimento
e pela escravização segundo o direito das gentes ou segundo o direito civil e, neste
caso, ou por contrato, ou por pena897.
3.1.1.1 Títulos de escravização.
§ 662. O primeiro título justo de escravização898 era o nascimento, valendo
aqui a regra geral de que o filho seguia a condição da mãe (partus sequitur ventrem),
nomeadamente por razões de certeza (mater semper certa, pater nunquam). A data
relevante para determinar o estado da mãe era o período entre a conceção e o
parto, ou seja, o período em que o filho estava no útero da mãe 899. Assim, se uma
escrava tivesse sido deixada a um filho do dono, com a condição de ficar livre
depois da morte deste filho, eram escravos todos os seus filhos concebidos ou
nascidos até à morte do tal filho. Mas se tivesse sido manumitida com a condição
de, como livre, continuar servir o filho do antigo dono, esses filhos seriam livres 900.
§ 663. O princípio de que o status libertatis se atribuía de acordo com o estado

896 Cf. Domingo de Soto, De iustitia et de iure […], cit., liv. 4, qu. 1, sect. 2, pg. 283. Barthélemy

de Chasseneuz (1480–1541) tinha alargado a possibilidade de processar animais e de estes se defenderem


no foro no seu “Consilium primum, quod tractatus jure dici potest, propter multiplicitatem et
reconditam doctrinam, ubi luculenter et accurate tractatur quaestio illa: De excommunication animalium
et insectorum” (de 1531), em Responsorum seu Consiliorum opus, Lugduni, Giunta, Jean Jacques Moylin,
1535, citado por Edward Paysan Evans, The criminal prosecution and capital punishment of animals, London,
Heinemann, 1906 20 ss.
http://www.archive.org/stream/criminalprosecut00evaniala#page/18/mode/2up/search/autun).
Quanto aos ratos e gafanhotos, v. Gaspard Bally, Traité des monitores, avec un plaidoyer contre les insectes, par
spectable Gaspard Bally advocat au souverain Sénat de Savoye, 1668, igualmente citado pelo anterior. Quanto a
bois, José Dias Ferreira, Codigo civil português annotado, 1, Lisboa, Imprensa Nacional 1870, p. 6. Em
geral, Vilfredo Pareto, Traité de sociologie générale, trad. franc. Pierre Boven revue par l’auteur, 1917,
cap.IX, §1397 à §1542) §1501 (http://bibliotheque.uqac.uquebec.ca/index.htm);
http://www.archive.org/stream/criminalprosecut00evaniala#page/18/mode/2up/search/autun).
897 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 50 ss. (De servitute mere

personali).
898 Sobre os títulos de escravização, v. João Baptista Fragoso, Regimen christianae, cit., [1641],

Parte 1, cap. 8; António Cardoso do Amaral, Liebr […], cit., v. “Servitus”, ns. 50 ss. (De servitute mere
personali).
899 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 60.

900 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 61.

210
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

da mãe (“seguia o ventre”) tinha origem no direito romano (D. 1,5, De statu
hominum, 24). O texto romano referia-se, não à questão do status, mas à da
propriedade do filho de dois escravos de donos diferentes. Isto explica que a regra
contrariasse um outro princípio segundo o qual era o pai que determinava a
qualidade do filho, dada a prevalência genética do macho sobre a fémea. Foi
recebido no direito português, embora logo as leis visigodas (Liber judicum, 10,1,17)
tivessem corrigido esse princípio, dividindo a propriedade do nascido pelos dois
senhores. Em Portugal, este regime tinha exceções. Assim, era doutrina comum que
o filho de mãe escrava e do dono da mãe adquiria a liberdade (e direito sucessórios)
com a morte do pai, por uma presunção de manumissão tácita 901. No séc. XVIII,
isto tinha que ser combinado com as disposições da lei do ventre livre, de
16.1.1773, que considerou livre o filho de escrava, esposa ou concubina do pai 902.
§ 664. Um outro título da servidão civil era a guerra, de acordo com o direito
romano e das gentes. A teologia moral cristã viria exigir, suplementarmente, que a
guerra fosse justa. Já antes vimos o principal da teoria da guerra justa, da qual
resultava ser justa, em geral, a guerra defensiva e, em casos limitados, a guerra
ofensiva (v. § 521 ss.).903. Era nestes termos que se legitimava a guerra contra “os
sarracenos e turcos”, por parte daqueles que sofreram as suas ocupações e injúrias,
ou por parte dos seus herdeiros904. A definição de quem eram estes “sarracenos e
turcos” que se tinham apropriado de terras ou bens cristãos era questão mais
complicada, que explicava a reescrita da história no sentido de demonstrar um
domínio primordial dos cristãos sobre terras agora nas mãos de muçulmanos 905.
Em contrapartida, era evidentemente injusta a guerra motivada apenas pela
ambição de “ampliação do império, a glória ou comodidade próprias” 906. Como,
por direito natural, os vencedores podiam escravizar os vencidos em guerra justa,
ficava circunscrito o âmbito no qual se podiam fazer escravos por direito da guerra.
Outros autores simplificam o conceito de guerra justa, considerando como tal toda
a guerra movida por ordem do Papa, imperador ou príncipe que não reconhecesse
superior907. Isto equivalia a substituir um requisito substancial por um requisito
formal, sendo um indício das pretensões progressivamente absolutas dos poderes
temporais.
§ 665. Nada disto valia, porém, entre cristãos, pois existiria um costume
prescrito segundo o qual os cristãos não reduziam cristãos 908 vencidos à

901 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “servus”, n. 1762 e 1764, citando as opiniões

de Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 12, n. 11-13; 1764, António de Sousa de
Macedo, Decisiones […], cit., dec. 40.
902 Quanto aos nascidos antes, transmitiam a escravidão por duas gerações (a filhos e netos), mas

não para além disso, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 1, 4.
903 Era neste plano que se legitimava a guerra contra “os sarracenos e turcos”, por parte daqueles

que sofreram as suas ocupações e injúrias (Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 435
A/B).
904 Na falta destes, podia ser feita pelo Papa ou por aqueles em quem ele delegasse, Luís de

Molina, Tractatus […], cit., ibid..


905 Cf. sobre a ação de liberdade proposta por uma cativa de Túnis, nota 1848.

906 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 435 C.

907 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 52.

908 Alguns autores do séc. XVII dizem “católicos”.

211
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escravidão909. Esta exclusão dos cristãos da escravização pela guerra é, a partir do


séc. XVI, um princípio bem estabelecido entre as nações europeias, que não
admitem mais que os inimigos cristãos vencidos na guerra se tornem escravos,
embora caíssem eventualmente em cativeiro por razões de segurança. Na tradição
portuguesa, a liberdade dos vencidos podia incluir, inclusivamente, não cristãos,
como era o caso dos mouros livres ou “de pazes” do norte de África, a que se
referiam as Ordenações Afonsinas910. Mas, em geral, os vencidos não cristãos eram
considerados escravos911. A posição de Pascoal de Melo de tentar estender a outros
vencidos aquilo que as Ordenações dispunham sobre os mouros de pazes refletia a
tendência da época hostil à escravização 912. A remoção do princípio da escravização
de cristãos pela guerra era consistente com a ideia de que não se perdia, tão pouco,
a liberdade quando se fosse aprisionado na guerra por estrangeiros. Por isso, os
portugueses em cativeiro eram considerados como livres, não se lhes aplicando o
direito de postlimínio913. Todavia, a não escravização de cristãos vencidos não
implicava a alforria dos que se batizassem já escravos. A mesma antipatia pela
escravização de cristãos conduzia a que se desse a liberdade ao escravo adquirido
por judeu, se fosse cristão ou o quisesse ser914.
§ 666. O direito português reconhecia a instituição do resgate, pelo qual se
comprava a liberdade de alguém mantido em cativeiro (embora não
necessariamente na situação de escravo) (cf. Ord. fil.1,90,1). A esta função -
considerada piedosa e desempenhada pelos mamposteiros dos cativos (até à sua
extinção, 4.12.1775915) -, estavam consignados os resíduos das heranças (Ord.
fil.1,62,26; v. cap. 5.3.1.3) e as multas pecuniárias não consignadas a outro fim (Ord.
fil.5,136,pr). Como o resgate era um negócio reconhecido, o resgatado era obrigado
a satisfazer o resgatante pelo valor do resgate, como seu gestor de negócios 916).
§ 667. Outra causa da servidão civil era a condenação em crime que, segundo
um justo arbítrio, merecesse tal pena, sendo certo que esta pena nunca se poderia
aplicar senão ao criminoso, nunca aos seus descendentes; embora, reduzido este ao

909 Cf. Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, 158.1 E; ibid. 158.2 A; Bento Pereira,

Promptuarium […], n. 1763; Melchior Febo, Decisiones […], d. 190, n. 13.


910 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 1, 6. Cita Bodin e Vinio, criticando a sua

opinião sobre o estado dos mouros; usa a prova histórica, remetendo para a Historia […], § 66.
911 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1760 (“os de Tunis, capturados pelos nossos,

são escravos”).
912 Cf. a censura de Manuel de Almeida e Sousa (em Notas de uso […], na nota ao lugar respetivo

de Pascoal de Melo) a essa tentativa de estender a todos os “mouros” a referência das Ordenações a
mouros forros.
913 O postlimínio consistia na restituição de direitos civis a quem os tivesse perdido por cativeiro

ou por decisão de um magistrado estrangeiro ocupante. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Servitus”, n. 52. Por não ficarem escravos, os cristãos não podiam ser forçados a pagar resgate a
cristãos, pois não ficam escravos, ibid. n. 52. Também cristão cativados por sarracenos não ficavam
escravos por direito, pois a guerra dos sarracenos era injusta, ibid. n. 53; Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis, 1, 11, 7-8; Ibid. 2, 1, 6.
914 O dono recebia um resgate simbólico, que a doutrina estimava em 12 soldos, desde que

pusesse o escravo à venda no prazo de três meses sobre a data da aquisição, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 59.
915 Anterior regimento em Manuel Lopes Ferreira, Practica criminal […], cit., t. 3, cap. 33.

916 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 1, 9.

212
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

estado de escravidão, o estado servil se perpetuasse na descendência 917. A regra


segundo a qual o condenado à morte ficava escravo da pena existia em direito
romano, apenas para tornar juridicamente possível a execução do condenado, já
que um cidadão não podia ser morto. O direito usava depois esta figura para
impedir tais condenados de fazerem testamento 918. Porém, a escravidão da pena foi
suprimida pelo direito justinianeu. No direito pátrio, a redução à escravidão não
constituía uma pena ordinária, expressamente prevista nas Ordenações. Mas alguma
doutrina quinhentista e seiscentista entendia que ela existia, tal como no direito
romano, como pena acessória da pena capital 919. De facto, nas Ordenações (Ord.
fil.4,81,6), recorda-se a regra romana, para se diminuir o seu alcance: o testamento
era permitido a condenados à morte, mas apenas para permitir dispor da terça, ou
quota disponível, a favor de obras de piedade (dotes de órfãs, remissão de cativos,
hospitais, conserto de igrejas). Aparte este caso atípico da escravidão por causa da
pena, as Ordenações apenas previam a pena de escravidão para judeus ou mouros que
ajudassem escravos a fugir (Ord. fil.5, 63)920, situação que, depois da sua expulsão
por D. Manuel, constituía uma reminiscência sem relevo prático.
§ 668. No entanto, Luís de Molina entendia que, em relação aos povos
indígenas do ultramar (“numa e noutra Guiné”), devia ser reconhecida a pena de
escravização a que tivessem sido condenados pelas autoridades (indígenas) do lugar
em virtude de crime público atroz, como os crimes contra a república, pois esse
seria também o regime da lesa-majestade europeia. O reconhecimento da
legitimidade da escravização penal dependeria, assim, de um juízo de comparação
entre a gravidade do crime que levara à condenação do presumível escravo pelas
autoridades nativas e a daqueles crimes que, na tradição do direito penal europeu,
proporcionadamente devessem levar à aplicação de uma pena tão grave como esta.
Molina é de opinião de que, de acordo com um prudente arbítrio, seria justo
reconhecer como escravos os nativos condenados pelas autoridades locais por
crimes puníveis, na Europa, com a morte ou com as galés, dando como exemplo o
adultério da mulher, o atentado ao pudor de uma mulher, o furto de coisa notável
segundo os critérios do lugar. Mas não os furtos leves, “pois nem no exército os
punimos assim”921. A escravatura penal dos nativos pelas suas próprias
comunidades era, assim, legítima e reconhecida922. Esta conclusão tinha uma
enorme importância, pois dela resultava a legitimidade do estado de escravidão de
muitos dos nativos comprados aos régulos locais.
§ 669. A derradeira causa de escravização seria a venda de si mesmo923. De
facto, diz Luís de Molina, os homens – livres por direito natural - eram donos de si

917 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 158 C a160 C.
918 D.48, 19, De poenis, 29; C.6.22. Qui facere testamentum possunt vel non possunt, 8.
919 Tal é a opinião de Bento Pereira, nos meados do séc. XVII (em Promptuarium…, cit., n. 1763,

citando António Gama, Decisiones …, cit., [1578], dec. 362, n. 2. Cf. ainda Domingos Antunes
Portugal, Tractatus de donationibus […], liv. 3, cap. 15, n. 60; cap. 30, n. 8.
920 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 1, 11.

921 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 180A.

922 Embora já se considerasse injusto escravizar a mulher, os filhos ou os parentes do criminoso.

923 Segundo alguns autores, a ingratidão era também uma causa de escravização, pois o liberto

ingrato em relação aos seu antigo dono recaía na escravidão, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Servitus”, n. 54.

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mesmos e da sua liberdade, da qual podiam dispor 924; a única restrição que se punha
era a de a venda poder ser feita levianamente, quer quanto às circunstâncias, quer
quanto ao preço925. A conclusão de Molina era arriscada, pois pressupunha a
disponibilidade plena de bens pessoais fundamentais, como a liberdade (ou, por
paralelismo, a vida). E, por isso, este ponto de vista era discutido 926. No entanto, a
prática estaria documentada nas Escrituras 927, sendo também aceite pelo direito
romano; em ambos se permitia ainda a venda dos filhos in potestate pelos pais928. Ou
seja, era uma prática recebida – onde o tivesse sido - pelo direito civil. Já onde o
direito civil não a tivesse recebido expressamente, não valeria, dado o princípio da
liberdade natural dos homens. Esta última restrição não deixa de ter interesse, pois
obrigaria à prova concreta da admissão da venda de si mesmo, exigindo
averiguações concretas das situações, de direito e de facto. Era, seguramente, o caso
do Reino, onde tais contratos não estavam permitidos (Ord. fil.4,42). António
Cardoso do Amaral considerava que tal prática não estava em uso, pelo menos
entre as pessoas bem nascidas929. No Ultramar, dependeria daquilo que se provasse
serem os usos locais.
§ 670. Onde o estado de escravo era mais duvidoso, mesmo apenas no plano
doutrinal, era justamente no ultramar. Primeiro, porque era incerto se a guerra
contra nativos, que se desenrolava paralelamente à evangelização, conduzia ou não
à escravidão. Por um lado, n todas as guerras eram justas; e, para além disso,
poderia haver nativos cristãos, que, no rigor da doutrina, não se podiam tornar
escravos. Depois, porque a admissão da escravatura penal nativa dependia de um
juízo prudencial e casuístico, uma vez que eram diferentes os costumes dos
diversos povos quanto à admissão dos contratos de alienação da liberdade.
§ 671. Combinando a doutrina com a caracterização das situações, Molina
formulava algumas regras gerais.
§ 672. A primeira era a de que, se os escravos provinham de territórios onde
havia guerra justa e tivessem sido adquiridos no tempo dela, se presumia que eram
justos escravos; o mesmo se diria tendo cessado a guerra, mas não havendo rumor
de que aí se fizessem escravos injustamente, pois se presumia que eram os cativos
de guerra ou filhos deles 930. A questão complicava-se com a da caracterização da
guerra como justa ou injusta, tema sobre que Molina apresenta uma extensa
casuística 931. A opinião de Molina sobre as guerras entre os africanos era muito

924 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 160 D.
925 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 160 D-161 C. Cf. também disp. 33.
926 Também pela legitimidade da alienação da liberdade, João Baptista Fragoso, Regimen […], cit.,

p. 1, cap. 8. disp. 21, §§ 1-7; divergentes: Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit., qu. 37,
n. 9; Francisco de Caldas Pereira e Castro, Tractatus de emptione […], cit., cap. 30, n. 36).
927 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 160 D. Noé amaldiçoou o seu filho

Cam e declarou-o servo dos servos (Génesis 9:20-27).


928 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. D 161 D.

929 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 55 e 56.

930 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 178D-179A.

931 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 185 B, concluindo, como regra geral

que, sendo duvidosas as questões sobre a justiça das guerras, era lícito a um terceiro comprar coisas
tomadas por qualquer das partes. No caso de guerras injusta de ambas partes, movidas pela cobiça e
falta de vontade de fazer a paz, como acontecia em muitas guerras dos infiéis e dos bárbaros, podiam

214
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

negativa (“Rarissimamente se presume que sejam justas. Os que se julgam mais


poderosos invadem e oprimem os outros; e são esses que mais escravos exportam,
apoiando as injustiças dos outros e tirando aos escravizados injustamente a sua
liberdade …”, ibid. col. 189 E). E concluía: “Opino que estas guerras de que os
portugueses se abastecem de escravos, são mais latrocínios do que guerras”.
§ 673. Regras ulteriores dizem respeito aos escravos que se vendessem
voluntariamente como tal. A frequência com que tais vendas (sobretudo de filhos e
mulheres) eram invocadas obrigava a que houvesse o cuidado de inquirir das suas
circunstâncias932. Daqui decorre um regime diferenciado para esta situação. Na
Índia e em sítios em que as grandes fomes levavam os infiéis a venderem os filhos
ou a si mesmo, seria justo comprá-los, sempre que a sua decisão fosse livre e que
existisse da sua parte uma grande necessidade. Como cada um era dono de si, podia
vender livremente a sua liberdade; e, se o contrato fosse válido segundo a lei do
lugar, teria que se aceitar933. Para mais, a escravização por cristãos seria melhor do
que o estado de grave necessidade, sobretudo pela oportunidade de conversão. A
compra seria, assim, um ato de caridade. Ou seja, embora a ajuda a um necessitado
pagão não fosse exigida pela lei da caridade, como acontecia no caso de o
necessitado ser cristão, se fosse prestada, legitimava que se obtivesse algo em troca
dessa ajuda. A escravização seria essa contrapartida (ibid. 181 C). No caso destas
compras da liberdade, também o preço podia ser matéria de escrúpulo por
excessivamente módico. Excetuar-se-ia, porventura, o caso da Guiné Inferior
(Congo e Angola), onde a liberdade quase parecia não ter valor. Nos restantes
cenários, o preço seria variável. Em alguns lugares da Índia ou no reino de
Cambaia, compravam-se filhos aos pais por somas muito módicas, sobretudo
quando havia fomes 934. Molina adverte ainda, a este propósito, “que o preço dos
meninos não se mede pelo seu valor útil, mas em muito mais, a não ser que
interviesse alguma circunstância peculiar pela qual se devesse comprar aquele
menino por menos do que os outros (como no caso de a sua vida correr grande
risco e se ter que fazer grandes despesas para o curar ou alimentar, morrendo se
continuasse em poder dos pais)”935. Na Guiné, comprava-se um escravo por um
espelho dos usados pelas mulheres portuguesas pobres ou por outros bens, como
meio côvado de pano azul, verde ou vermelho, objetos de vidro ou de cobre. De tal
modo que o escravo não custava ao mercador mais do que uma moeda de ouro ou
menos. Por outro lado, a abundância de escravos fazia baixar o seu preço, a ponto
de os africanos os negociarem por preços muito baixos, como contas de marfim,
que usam ao pescoço como adorno, ou dentes de pantera 936. Molina, pela sua parte,
tinha deste assunto uma apreciação prudente: “Não ouso condenar este trato da
Guiné. Aquelas coisas que nós aqui vilipendiamos, são lá apreciadas. E o seu longo

comprar-se os cativos de guerra (ibid. col. 186 D). Isto porque como que se teria gerado um pacto mútuo
de cativar os vencidos, que obrigava os beligerantes e aproveitava a terceiros (Luís de Molina, Tractatus
[…], cit., tract. 2, d. 104, col. 187 B). “Talvez esta decisão – conclui Molina ironicamente - não deixe
de sossegar as consciências daqueles que compram escravos na Guiné superior e na Cafreria” (Luís de
Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 187 D).
932 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 180 D

933 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 182 B.

934 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 183 E.

935 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 184 A.

936 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 183 C.

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e perigoso transporte fá-las caras lá”937.


§ 674. A situação dos indígenas brasileiros quanto à escravização era ainda
mais complicada, pela existência, por sobre estas regras doutrinais, de legislação real
contraditória938. Na verdade, de acordo com legislação desde os finais do séc. XVI,
os índios do Brasil eram livres (CL 20.3.1570), salvo se fossem feitos prisioneiros
em guerra justa (precedendo alvará de guerra justa, CL 11.11.1595). Legislação
posterior ignorou mesmo esta ressalva (CL 5.6.1605; 30.07.1609); mas a CL de
10.09.1611 volta a declarar escravos os índios revoltados e a validar as suas vendas.
Na CL de 9.4.1655, D. João IV declara escravos os índios aprisionados em guerra
justa, fosse ela declarada por portugueses, estrangeiros ou índios e, para além
desses, os que impedissem a pregação e os índios vendidos amarrados por cordas.
D. Pedro II restitui os índios à liberdade pela CL de 1.4.1680, providência
confirmada em 6.6.1755939.
§ 675. Na segunda metade do séc. XVIII, a escravatura tinha, no Reino, uma
existência residual. Pascoal de Melo concluía que, nesta matéria de escravos e
libertos, o direito romano tinha perdido o uso 940, estranhando que se mantivesse
este estatuto no Brasil941. Não era tanto assim, nomeadamente quanto ao estatuto
dos libertos, sujeitos aos patronos por uma capitis deminutio que consistia em deveres
de fidelidade e de reverência semelhantes aos dos filhos, ou ao uso das ações de
liberdade, pelas quais muitos alegados escravos continuavam – no Brasil, até aos
finais do séc. XIX - a reclamar em juízo o estatuto de livres 942.
3.1.1.2 O direito dos escravos.
§ 676. O escravo era tido como ninguém (nullus), não podendo ser titular de
ações ou de direitos943 944. Em certa medida, era como se fosse uma coisa, pelo que

937 Luís de Molina, Tractatus […], cit., tract. 2, d. 104, col. 182 E/183 A.
938 Cf. Rafael Ruiz, Francisco de Vitória e a liberdade dos índios americanos, cit.; na época, v.g. João
Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p. 3, liv. 10, disp. 22, § 1 ss..
939 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 1, 10.

940 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 1, 12.

941 “Ignoro em absoluto com que direito e a que título. Bem sei que o comércio, a agricultura, a

indústria, as minas de ouro e outras atividades lucrativas destas regiões só podem ser vantajosamente
exercidas com o emprego desses homens rudes; mas uma coisa é utilizar o seu trabalho e serviço, e
outra tê-los como escravos e em verdadeira propriedade. Será para desejar que, em assunto tão grave,
se harmonizassem as razões da humanidade e as razões civis” (cita Montesquieu, Smith, de Felice,
Schwartz, Raynal), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 1, 12 nota). Sobre o ambiente jurídico da
época quanto à escravatura, Cristina Nogueira da Silva, “Escravos e direitos fundamentais no
pensamento constitucional e político de oitocentos”, em Africana Studia. Revista Internacional de Estudos
Africanos, nº 14(2010).
942 As ações de liberdade eram ações prejudiciais destinadas à declaração do status libertatis do autor.

Pela actio contraria, o autor reclamava a declaração do estado desfavorável do réu. Cf. cap. 7.1.3.1).
943 "Servi pro nullis habentur, & cum illis nulla actio, vel obligatio civilis esse potest", escreve

Bento Pereira no seu Promptuarium […], citando autores representativos (v. "Servi"); cf. Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 150, n. 2 ss..
944 Sobre o estatuto jurídico dos escravos em Roma, v. W. W. Buckland, The Roman law of slavery.

The condition of the slave in private law from Augustus to Justinian, Cambridge, Cambridge U.P, 1908
(http://pt.scribd.com/doc/24531929/Buckland-Roman-Law-of-Slavery). Para o Brasil, Waldomiro
Lourenço da Silva Júnior, “Alforria, liberdade e cidadania: o problema da fundamentação legal da
manumissão no Antigo Regime ibérico”, em Revista de Indias, 73.258(2013), 431-458
(http://revistadeindias.revistas.csic.es/index.php/revistadeindias/article/viewArticle/930, 30.08.2013);

216
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

há quem diga não haver diferença entre a servidão de um prédio e a de um


escravo945 Consistente com esta coisificação do escravo e dos seus atributos era o
considerar-se que o escravo que fugisse cometia “um furto de si”946. Daqui
decorriam todas as incapacidades dos escravos. Não podiam adquirir a propriedade
nem a posse. Não podiam contrair obrigações nem ser credores delas. Não podiam
estar em juízo por si. Não podiam exercer magistratura, nem ter ofícios.
§ 677. Este estatuto tão negativo tinha, porém, limitações, algumas que já
vinham do direito romano. Outras provinham do direito canónico que, a propósito
da liberdade dos escravos de receber sacramentos – designadamente, o sacramento
da ordem947 -, introduziu a distinção entre o constrangimento do corpo e a
liberdade da alma. Daqui resultava uma situação sui generis, combinando uma
incapacidade básica com algumas exceções.
§ 678. No plano patrimonial, o escravo adquiria para o seu senhor, embora
pudesse ter alguma autonomia de gestão patrimonial, em virtude de um pecúlio
constituída pelo senhor para ser gerido por ele 948. Porém, nesta gestão, as
obrigações e perdas ou ganhos patrimoniais eram do senhor. O rigor deste
princípio era atenuado, na prática, por figuras diversas, entre as quais a ideia de
obrigação natural, de responsabilidade do dono pelos atos do escravo e, sobretudo,
pela instituição do pecúlio (v. cap. 3.2.4), um conjunto de bens que o senhor
entregava ao escravo e que este podia aumentar com um negócio ou atividade
gerida por si949. Os poderes de disposição do escravo eram precários 950 e não
configuravam verdadeiros direitos951; mas o direito conhecia uma série de
expedientes que garantiam quem comerciasse com o escravo fiado na garantia do

Arno Wehling & Maria José Wehling, “O escravo na justiça do Antigo Regime: o Tribunal da Relação
do Rio de Janeiro”, Arquipélago, 2ª série, 3, 119-139 Também, Mariana Armond Dias Paes, “O
estatuto jurídico dos escravos na civilística brasileira”, diss. UFMG, Belo Horizonte, 2010, em
http://www.academia.edu/388464/O_estatuto_juridico_dos_escravos_na_civilistica_brasileira (direito
dos escravos); Kátia Lorena Novais Almeida, “Da prática costumeira à alforria legal”, em Politeia, v.
7.1(2007), 163-186 2007 (http://periodicos.uesb.br/index.php/politeia/article/viewFile/227/245,
30.08.2013).
945 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 6, n. 6.

946 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 6, n. 1. Ele e quem o encobrisse

estavam sujeitos às ações do furto, pelo dano e pela pena, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Servitus”, n. 70 (v. cap. 8.2.6.2).
947 A questão era a de saber se um escravo podia ser ordenado sem consentimento do dono. A

Igreja via-se confrontada com a contradição entre a liberdade da fé e os direitos do dono do escravo à
sua exploração, pois a entrada no estado eclesiástico privaria o dono dos serviços do escravo; cf. R. H.
Helmholz, The spirit of classical canon law […], cit., chap. 3. Na doutrina portuguesa moderna, a opinião
mais comum era a de que o escravo não podia ser ordenado (diácono ou sacerdote) sem a autorização
do dono; se o fosse, o sacramento era válido, mas devia ser deposto, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 67.
948 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 77.

949 Sobre os pecúlios no direito romano,


http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Servus.html.
950 É que, em princípio, a promessa feita pelo senhor ao escravo não obrigava aquele, Bento

Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1760, citando António da Gama, Decisiones […], cit., [1578], dec.
115, n. 1.
951 Gaius, Institutiones, 4, 78: “78. Sed si filius patri aut servus domino noxam commiserit, nulla

actio nascitur. Nulla enim omnino inter me et eum, qui in potestate mea est, obligatio nasci potest;
ideoque et si in alienam potestatem pervenerit aut sui iuris esse coeperit, neque cum ipso neque cum eo,
cuius nunc in potestate est, agi potest”.

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pecúlio e isto bastava a terceiros contraentes, a quem eram dados meios processuais
para exigir supletivamente do dono o cumprimento das obrigações do escravo 952.
Com base no pecúlio, o escravo podia conseguir um pé de meia para desenvolver
uma atividade lucrativa – por exemplo, alugando outros escravos - ou economizar
para comprar a sua liberdade. A figura dos chamados “escravos a ganho”, comum
no Brasil, permitia aos senhores tirar partido do trabalho e serviços de escravos
excedentários, pondo-os a servir como carregadores, aguadeiros ou mesmo
prostitutas. Mas, porque a actio de peculio permitia a limitação da responsabilidade do
senhor ao montante do pecúlio, o escravo a ganho ou negociante constituíam
formas de envolvimento comercial do senhor com responsabilidade limitada e, por
isso, eram apreciadas em negócios de algum risco.
§ 679. No plano pessoal, o escravo podia receber livremente os sacramentos e
contrair matrimónio sem o consentimento do dono. Se este não tivesse mostrado
opor-se ao casamento, não podia mesmo vender o escravo para longe, de tal modo
que a mulher, sendo escrava, não pudesse satisfazer o débito conjugal 953. Não pode
ser instituído herdeiro, nem nomeado legatário954, a não ser sob a condição de vir a
adquirir a liberdade955.
§ 680. No plano processual, os escravos careciam de legitimidade processual
ativa e passiva na generalidade das causas civis. Nem sequer podiam ser
testemunhas, pois eram infames956. Nas causas civis patrimoniais apenas o senhor o
podia defender, pelo interesse patrimonial que tinha no desfecho da ação; mas
quem era condenado era o escravo957. Mas podiam estar em juízo nas ações de
liberdade958. Nas causas espirituais e nas causas relativas a relações pessoais do
matrimónio (por exemplo, pedido da mulher), os escravos eram capazes 959. No
foro criminal, podiam ser acusados de todos os crimes e sofrer todas as penas,
salvo as patrimoniais, pois não tinham bens960. Concretamente, contra eles podia
ser posta a actio furti, com a qual o senhor reclamava ser ressarcido pelo furto que o
escravo fugitivo tinha feito da sua própria liberdade961; já a reivindicatio, pelo qual o

952 Nomeadamente por meio de uma actio de peculio (ou de in rem verso), que limitava a
responsabilidade do dono ao montante do pecúlio, com isto constituindo um meio de limitação da
responsabilidade do devedor.
953 Se, porém, a mulher fosse livre, não se dava esta limitação, devendo ela acompanhá-lo para

onde ele fosse mandado; se o dono colaborou com o escravo que se fazia passar por livre para casar
com mulher livre, entendia-se – como castigo – que o dono tinha querido manumitir o escravo, cf.
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 74.
954 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 65.

955 O dono, porém, não podia apor esta condição em relação a um escravo seu, mas apenas a um

de outrem; se o escravo fosse seu, a instituição como herdeiro era entendida como manumissão, cf.
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 62.
956 Por isso que era infame também não podia ser juiz, advogado ou procurador, nem exercer

ofícios civis, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 76.
957 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 72-73.

958 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 73, n.1; António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 75 (acrescenta as ações relativas à utilidade pública).


959 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 73.

960 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 71.

961 Pois se entendia que, ao fugir, o escravo cometia um furto de si, Bento Pereira, Promptuarium

[…], cit., n. 1760.

218
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

senhor pedia a entrega do seu escravo era posta contra o seu possuidor ilegítimo. O
direito punia duramente o escravo que tivesse dormido com a ama, mandando-o
chicotear e queimar962.
§ 681. Os poderes do senhor sobre o escravo não eram ilimitados. Como
todos os poderes jurídicos, eles estavam limitados por um “uso honesto”, ou seja,
conforme à natureza das coisas. O facto de o escravo ser uma criatura humana
impedia que ele fosse objeto de práticas desproporcionadamente cruéis. Já no
direito romano, matar um escravo não era apenas um delito que apenas gerava uma
obrigação de indemnizar o dano (como destruir uma coisa). Era um crime (v.
D.47,2,61). Assim, a Lei das XII Tábuas dava uma ação contra quem tivesse
quebrado um osso a um escravo (D.47,2,36). Em princípio, caíam nesta categoria
de atos criminosos todos os atos de violência que se afastassem da intenção de
corrigir e emendar (animus corrigendi vel emendandi)963, atentando contra os bons
costumes (bonos mores)964. Contra os bons costumes era, também, induzir uma
escrava à prostituição965. Se o agressor não fosse o dono, havia, tal como em
relação a animais domésticos, ações para o possuidor ou dono do escravo
reclamarem a punição de injúrias feitas a escravos. Era o caso da actio legis Aquiliae,
dada contra quem matasse ou ferisse um escravo ilegitimamente, i.e. sem ser em
legítima defesa ou por ser encontrado em adultério ou semelhante (D.9,2,11,7; Cf.
cap. 8.2.6.1). Em Portugal, isto era recebido, fornecendo a cobertura jurídica para
um princípio cristão de caridade e piedade966. Assim, entendia-se que o dono podia
castigar e prender, mas não matar ou infligir deformidades corporais. A Igreja devia
entregar aos seus donos os escravos que se acoitassem a ela com medo de sevícias,
embora obrigando os donos a jurar que não os tratariam com excessos 967. O
impacto destas limitações na prática seria pequeno, porventura menor ainda do que
os limites existentes ao exercício do poder doméstico sobre mulher, filhos e
criados. Por isso, as cartas régias de 20.3.1688 e de 13.3.1688, que obrigavam os
senhores que maltratassem os escravos a vendê-los, foram revogadas pouco depois
(23.2.1689), deixando de novo os castigos ao arbítrio do bonus pater famílias, a ser
avaliado pelos tribunais, de acordo com os hábitos estabelecidos. Nos sécs. XVIII e
XIX, a justiça – influenciada por um ambiente mais sensível aos argumentos da
piedade e da crença na humanidade –, a justiça passa a aceitar acusações de maus
tratos contra senhores de escravos, postas por estes ou por terceiros, os quais
podiam terminar pela concessão da liberdade aos escravos maltratados 968.

962 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 78; já a escrava que tivesse

dormido com o amo não era punida, se este não fosse casado. Pelo contrário, se se mantivesse como
sua concubina até à morte dele, ganhava a liberdade, a não ser que o amo fosse casado, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 79; v. “De sacramento matrimonii”, n. 66.
963 D.47.10.15.38.

964 Cf. W. W. Buckland, The Roman law of slavery. […], cit., maxime, p. 29 ss..

965 Cf. W. W. Buckland, The Roman law of slavery [...], cit., 75 ss.

966 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 69.

967 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 69.

968 Tratava-se da ampliação do princípio que dava a liberdade aos escravos expostos ou privados de

alimentos. Cf. Silvia Hunold Lara, Campos da Violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988. p. 364-365; Id. “Legislação sobre escravos africanos na
América portuguesa”, em José Andrés-Gallego (coord.), Nuevas aportaciones à la historia jurídica de
Iberoamérica, Madrid, Fundación Histórica Talavera, 2000. p. 198-199 (CD-rom); Priscila de
Lima, “Direitos de escravos: maus-tratos e jusnaturalismo em petições de liberdade (América

219
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§ 682. O estado de escravidão terminava, tipicamente, com a manumissão ou


alforria969. No direito romano, a manumissão era um ato muito formal, pois
representava não apenas a concessão da liberdade, mas também a criação de um
novo cidadão. Fazia-se ou por uma declaração solene e ritual de um magistrado de
que o manumitido era um cidadão, com a presença do e acordo (ainda que apenas
tácito) do manumitente (vindicta), ou pela inscrição pelo magistrado competente do
manumitido no censo dos cidadãos romanos (censu) ou por testamento970. Com o
andar dos tempos, foram reconhecidas maneiras menos formais de conceder a
liberdade: (i) pela declaração do senhor perante testemunhas 971, numa ocasião mais
ou menos solene (inter amicos; por exemplo, no ato de batismo); (ii) por um
documento escrito, eventualmente perante o notário, de que resultasse claramente a
vontade de manumitir (per chartam)972; ou (iii) por outras formas (in ecclesia, portas
patentes), dependendo do seu reconhecimento pelas práticas jurídicas locais. A
manumissão podia ocorrer em outras circunstância, como aquela em que o amo
dava uma escrava, como livre, a um homem livre para que ele casasse com ela. Em
todo o caso, era sempre preciso que a intenção de manumitir fosse muito clara;
assim se desse a escrava sem referência à sua qualidade, embora soubesse e
consentisse que o donatário iria casar com ela, já não havia manumissão973.
§ 683. A manumissão por testamento como cláusula testamentária só fazia
efeito depois da morte do testador, podendo ainda ser sujeita a prazo ou condição
(v.g. de servir alguém, por certo tempo; de mandar rezar missas por alma do
manumitente974). Enquanto a condição não se verificasse, o escravo ficava numa
situação de “cidadania esperada” (statu liber¸D.40,7). Realizada a eventual condição,
o manumitido tornava-se livre e, eventualmente, herdeiro (se o devesse ser pelo
direito ou se fosse instituído tal no testamento). A doutrina portuguesa exigia duas
testemunhas para que a cláusula de manumissão fosse válida 975.
§ 684. A manumissão era irrevogável pelo manumitente. Mas podia ser
anulada por ingratidão do liberto, expressa em atos de desrespeito pelo patrono (cf.
Ord. fil.4,63)“(...) Se alguém forrar seu escravo, livrando-o de toda a servidão e,

portuguesa, segunda metade do século XVIII e início do XIX)”, em Histórica – Revista Eletrônica do
Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 42 (jun. 2010), 1-10.
969 Sobre isto, cf. em geral, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 57;

Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., dec. 194. Sobre a manumissão romana, síntese em
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0062:entry=manumissio-harpers;
http://www.ancientworlds.net/aw/Post/882461;
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Manumissio.html. Para
a prática brasileira, destaque para Waldomiro Lourenço da Silva Júnior, “Alforria, liberdade e
cidadania: o problema da fundamentação legal da manumissão no Antigo Regime ibérico”, em Revista de
Indias, 73.258(2013), 431-458
(http://revistadeindias.revistas.csic.es/index.php/revistadeindias/article/viewArticle/930, 30.08.2013).
970 Gaius, Institutiones, 1, 17; Inst. Just. 1, 1, 5, 1.

971 Na doutrina portuguesa, a manumissão podia ser concedida perante duas ou três testemunhas,

Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1067 (cita Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 168, n.3).
972 Cf. em geral, Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec. 186.

973 Cf. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 67.

974 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1763, citando António da Gama, Decisiones […],

cit, dec. 115.


975 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., 1067.

220
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

depois que for forro, cometer contra quem o forrou alguma ingratidão pessoal, em
sua presença ou em ausência, quer seja verbal, quer de feito e real, poderá esse
patrono revogar a liberdade que deu a esse liberto, e reduzi-lo à servidão em que
antes estava”). A manumissão feita em fraude dos credores pelo amo insolvente
podia ser anulada976.
§ 685. Uma vez manumitido, o escravo passava à situação de liberto 977 e o
senhor à de patrono978. A situação de liberto acarretava a obrigação de respeitar o
patrono, que se exprimia de formas muito diversas, de acordo com os costumes e a
opinião comum (Ord. fil.4,63). Podia incluir sinais externos de consideração e
homenagem, a necessidade de autorização para praticar certos atos, a prestação de
serviços ou de auxílio, etc.. Estava, por isso, na origem de uma relação clientelar
socialmente muito relevante, tanto pelo poder social que atribuía aos ex-senhores,
como pelo facto de permitir atribuir a particulares uma modalidade importante de
controlo social. O patrono, em contrapartida, devia proteger e aconselhar o liberto.
A quebra das obrigações do liberto podia acarretar o seu retorno à situação de
escravo. Qualquer que tenha sido o impacto prático desta consequência, ela não
deixava de constituir um eficaz meio de pressão sobre os libertos para respeitarem
as suas obrigações para com os senhores.
§ 686. Além da manumissão, o escravo ficava livre se fosse entregue na roda
dos expostos ou o senhor o abandonasse (derelictio), nomeadamente, pondo-o fora
de casa ou negando-lhe a alimentação ou o tratamento, estando doente979. O
abandono não se presumia, pois era contra a regra de senso comum de que
ninguém abandona as suas coisas. E, por isso, devia deduzir-se de circunstâncias
que indiciassem fortemente a intenção de abrir mão do escravo. Requeria-se, além
disso, que o escravo abandonado se gerisse a si mesmo como livre e só depois que
isso se provasse por um período de tempo relevante era considerado livre. Em
contrapartida, o escravo doente a quem o senhor recusasse o tratamento ficava
imediatamente livre. Alguns autores propõem a mesma solução para a escrava que
o dono abandonasse mandando-a cuidar de si, o que se entendia ser um
incitamento à prostituição980.
§ 687. Finalmente, a liberdade adquiria-se por usucapião, se um escravo
vivesse como livre, de boa fé (i.e. ignorando a sua condição servil), durante vinte
anos.
3.1.1.3 Servos adscritícios e criados.
§ 688. As Ordenações recusavam expressamente a existência de servos
adscritícios (Ord. fil.4,42), e a doutrina interpretava as situações em que alguém
estava obrigado a certos cultivos em determinada terra como de origem contratual e

976 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 66.
977 No direito romano: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/ Roman/Texts
/secondary/SMIGRA*/Libertus.html; http://www.ancientlibrary.com/smith-dgra/ 0712.html.
978 No direito romano: http://penelope.uchicago.edu/ Thayer/E/Roman/Texts
/secondary/SMIGRA*/Patronus.html; http://www.ancientlibrary.com/smith-dgra/0885.html.
979 O dono poderia reaver o escravo, pagando as despesas de alimentos e de cura. Cf. António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 58.


980 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec. 186.

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sempre temporárias981.
3.1.1.4 Outras fidelidades domésticas.
§ 689. Era assim quanto aos criados, ligados ao dominus por uma relação que
excedia em muito a de uma relação contratual (v. cap. 6.9.2.2.3, maxime § 1785 ss.),
aparecendo envolvida no mundo das fidelidades domésticas. Não é que o direito
português moderno ainda mantivesse a adscrição (cf. Ord. fil.4,28). Mas as relações
entre o senhor e os servos desenvolviam-se no ambiente da família patriarcal (da
"casa") que criava, de parte a parte, laços não contratuais.
§ 690. De facto, as limitações ao estatuto jurídico dos criados decorriam
sobretudo da sua pertença ao mundo doméstico.
§ 691. Desde logo, "criados" (famuli, "família") eram, tradicionalmente, aqueles
que viviam com o senhor "a bem fazer", ou seja, pelo comer e dormir. Eram quase
apenas estes que as Ord. man. (4,19) consideravam, não lhes reconhecendo (como,
de resto, acontecia com o direito comum) direito a reclamarem uma soldada.
Apesar da inversão verificada com as Ord. fil.- que passam a reconhecer um direito
geral a um salário e refletem o advento de um mundo (urbano ?) muito mais
expandido de relações mercenárias de trabalho (cf. 4, 32 ss.) -, a doutrina continua a
resistir a integrar as relações domésticas de trabalho no "mercado do trabalho" e
distingue os criados domésticos, segundo o modelo tradicional dos trabalhadores
mercenários externos982 - cujo direito ao salário entende estar dependente de uma
longa série de decisões da lei ou dos patrões 983 (v. cap. 6.9.2.2.3, maxime § 1785 ss.).
Os laços de vinculação pessoal - que se traduziam, nomeadamente, num muito
débil direito ao salário (ou, pura e simplesmente, na sua ausência) e na necessidade
de licença do senhor para abandonar a casa - existiam também no caso dos criados
dos cortesãos e nos "acostados", ou seja, daqueles que tivessem recebido do senhor
algum benefício 984. Apesar de Melo Freire (um individualista) considerar estas leis
"feudalizantes" e caídas em desuso985, Lobão (um tradicionalista) censura-o
asperamente por isso, continuando a propor um modelo patriarcal das relações
entre senhores e criados 986, em que os criados se dissolviam no seio da família
governada despoticamente pelo pater, em cuja pessoa quase que se integravam. Um
sinal deste mesmo sentimento de uma íntima comunhão entre senhor e criado era
constituída pelas isenções de que gozavam os criados de eclesiásticos e nobres (Ord.

981 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 1, 13.


982 "Domestici sunt illi, qui cum aliquo continue vivunt, data aliqua inferioritate, ad unum panem,
& ad unum vinum" (domésticos são aqueles que vivem com alguém, implicando alguma inferioridade,
por um pão e um copo de vinho, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 3, ad I.24, gl.20,
n.2); cf. também Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 32, n. 4 e Ord. fil.2, 11.
983 Cf. cf. o comentário de Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria […] a Ord. fil.4, 30.

984 V. Ord. fil.4, 30: casamento, cavalo, armas, dinheiro ou outro qualquer galardão. Os criados

dos estudantes, estavam obrigados a servir apenas pela roupa e calçado; os músicos e cantores, apenas
pela comida (João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p.3, liv.10, d.21, 5); o mesmo valia para as
criadas das monjas, pois se entendia que o eram com o intuito de ingressarem no convento (Silva, 1731,
4, ad 4, 29, pr. n. 28), para os aprendizes (ibid. 30) e para os menores de sete anos, que serviam "pela
criação" Ord. fil.4, 31, 8).
985 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], 2, 1, 16, in fine.

986 Lobão invoca, significativamente, o direito dos Estados alemães que, como se sabe,
conservaram até muito tarde o regime de servidão e de adscrição.

222
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

fil. 2, 25 e 58) e o facto comum de se pedirem ao rei mercês para os seus criados 987.
§ 692. Também não eram escravos os pobres ociosos, compelidos ao trabalho
pelos magistrados (Ord. af.4,34; ou Ord. fil.1,88,13-17) ou os órfãos dados por
soldada, a quem, por isso, era devido salário (Ord. fil.1,88,13-18)988 989. Nem os
condenados, mesmo às penas mais vis, como as galés e trabalhos públicos. Apesar
disso, o seu status libertatis aparecia muito comprimido.
3.1.2 Naturais.
§ 693. O conceito de cidadania (status civitatis) traduzia, no direito romano, a
qualidade daquele que gozava da plenitude do direito da cidade. Como, para o
direito comum, o termo civitas era aplicado a qualquer comunidade política que não
reconhecia superior (qui superior non recognoscit), o conceito tornava-se aplicável ao
reino, um território sujeito à jurisdição suprema do rei 990.
§ 694. Na Europa da primeira época moderna a naturalidade tinha substituído
a cidadania como conceito chave quanto aos laços de pertença política991. A
naturalidade representava a pertença natural a uma comunidade, originada no
nascimento ou numa residência continuada. Esta conceção não voluntarista,
natural, dos laços políticos estava consagrada na referência que nas Siete Partidas se
fazia ao señorio natural, um laço político que ligava os súbditos ao senhor da terra em
tinham nascido, criando para todos uma pátria comum (patria communis),
expressamente definida como a sujeição a uma jurisdição comum (i.e. a uma
declaração do direito que valia para todos)992 e, como base disto, uma natureza
comum (tierra natural, naturalidad) que era fonte de amores recíprocos e de deveres

987 Cf. em geral, sobre o tema, António da Natividade, Fr. (O.S.A.), Stromata oeconomica […], cit.,
op. 12.
988 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, I. 16.
989 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, i, 14 e 15.
990 Cf. António Manuel Hespanha, “L’espace politique dans l’Ancien Régime”, em Estudos em

homenagem aos Profs. Manuel Paulo Merêa e Guilherme Braga da Cruz, Coimbra, Faculdade de Direito, 1984,
1-58; versão castelhana em ID.La Gracia del derecho, Madrid, Taurus, 85-120; sobre as unidades
territoriais, v. António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan [...], cit., 352 s..
991 Sobre naturalidade e cidadania: Tamar Herzog, Defining Nations: Immigrants and Citizens in Early

Modern Spain and Spanish America. New Haven, Yale U. P. 2003; ID.“Early Modern Spanish Citizenship
in the Old and the New World”, em John Smolenski (ed.). New World Orders, Philadelphia, University
of Pennsylvania, 2005; Id.“Municipal Citizenship and Empire: Communal Definition in Eighteenth-
Century Spain and Spanish America”, em Julius Kirshner and Laurent Mayali (eds.). Privileges and Rights
of Citizenship. Law and the Juridical Construction of Civil Society, Berkeley, The Robbins Collection, Studies
in Comparative Legal History, 2002; François-Xavier Guerra, “Identidad y soberanía: una relación
compleja”, em Id. (ed.), Las Revoluciones Hispánicas: Independencias Americanas Y Liberalismo Español,
Madrid, Editorial Complutense. 1995, 207-235; Id. “L’État et les comunes: comment inventer un
empire?”, em Nuevos mundos / Mundo nuevo (electronic journal), publ. Fevereiro 2005, em
http://nuevomundo.revues.org/document625.html [2005.11.1]. Para o Brasil, Maria Fernanda Bicalho,
“O que significava ser cidadão nos tempos coloniais”, in Marta Abreu & Rachel Soihet (ed.). Ensino de
história. Conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003, 139-151. Para a África
Portuguesa (e também Brasil), nos finais do Antigo Regime, Cristina Nogueira da Silva,
Constitucionalismo e Império. A cidadania no Ultramar português, Coimbra, Almedina, 2009, maxime, cap. 11.
992 Cf. Siete Partidas, 2, tits. 1-20 (v. http://books.google.pt/books?id=MVB-
TzR2uFEC&pg=PA310&lpg=PA310&dq=siete+partidas+se%C3%B1orio+natural&source=bl&ots=e
EC8T4mDGk&sig=Iv1qu1w3HgrVRO65xevjxef4UY0&hl=pt-
PT&sa=10&ei=6LsfUPXvOJCyiQfBsYCQBw&ved=0CF8Q6AEwBg#v=onepage&q=senor%20natur
al&f=false). Estabelecendo uma relação entre o nascimento numa terra e a capacidade para a fazer
frutificar e assentar nela uma comunidade política bem organizada.

223
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comuns.
§ 695. A fixação da naturalidade, como ligação natural ao território de um
reino, dependia dos conceitos jurídicos que caracterizavam politicamente o espaço.
§ 696. Nos discursos doutrinais portugueses que se referem à caracterização
política do espaço, aparecem os conceitos de “Reino”, “províncias”, “conquistas”.
As “conquistas” do ultramar (tal como estavam aparentemente definidas na
titulação dos reis portugueses) eram consideradas como províncias do reino 993 no
que respeita ao estatuto político e jurídico dos seus habitantes, sem que houvesse
qualquer diferença estrutural quanto ao direito que se lhes aplicava 994. O reino
compunha-se, por isso, do território metropolitano e do colonial (províncias,
conquistas)995. Esta indistinção territorial significa que quem quer que mantivesse
uma pertença enraizada em relação a qualquer zona do território do reino era,
indistintamente, um natural português. Por todo o espaço colonial havia usos de
falar que distinguiam “filhos da terra” ou “naturais” de “reinóis” (na Índia, ainda,
de “descendentes”). Mas estas categorias, por muito impacto social que tivessem,
em geral não tinham significados jurídicos.
§ 697. O vocabulário relativo ao espaço conhecia ainda distinções que podiam
ganhar sentidos jurídicos. A cidade (civitas ou urbs) opunha-se à aldeia (pagus, vicus,
villa), ao campo (rus), à floresta (sylva), com tal oposição se referindo a distância
entre a civilidade / civilização e a selvajaria (de sylva) (v. cap. 3.1.2.2). A linguagem
política identificava a cidade (civitas) com uma comunidade perfeita autossuficiente e
“polida” (v. cap. 2.4.1.1). Estas distinções projetavam-se sobre os respetivos
moradores: os da cidade eram civis, urbanos, polidos, tudo adjetivos derivados dos
nomes da cidade. Os das aldeias eram “pagãos” (pagani), “vilãos” (vilani), “rústicos”
(rustici) ou “selvagens” (sylvestri, hominess in sylva). Estes nomes tinham, como se verá,
reflexos no discurso jurídico.
§ 698. A naturalidade (naturalitas) era, portanto, a plena pertença a uma
comunidade política plena (i.e. que não reconhecesse superior, qui superiorem non
agnoscat), assente no laço natural de amor que ligava o povo, entre si e ao seu senhor
natural, cujo tribunal reconheciam como fonte suprema de justiça política (patria

993 Manuel Alvares Pegas, Commentaria […], cit, tomo 12, ad 2, 55; Melchior Febo, Decisiones

[…], p.1, dec. 67, n. 11; p. 2, dec. 109, n. 22; p. 2, dec. 18. Ainda no séc. XVIII se distinguia, embora
apenas simbolicamente, naturais de Portugal e naturais dos reinos dos Algarves, dizendo-se que a sua
naturalidade tinha sido uma recompensa por serviços prestados (cf. L. 4.2.1771, § 4). Pelo contrário,
era comum a doutrina de que não havia nenhuma diferença entre o reino e as conquistas (Domingos
Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., p. 1, cap. 15; Francisco Coelho de Sousa Sampaio,
Prelecções de direito pátrio [...], cit., p. 3, t. 55, § 3).
994 Havia, naturalmente, direito de aplicação restrita a um lugar, mas isso não era estabelecido em

razão das pessoas, mas de outras circunstâncias.


995 A origem da palavra província referia-se ao caráter militar da sua incorporação política (pro-

vincere), em que as magistraturas ordinárias de Roma eram substituídas por chefes militares
extraordinários (proconsules, governadores). Embora a palavra “governador” tenha mantido até tarde esta
conotação de magistrado extraordinário com poderes discricionários (“governadores militares” ou,
simplesmente, governadores), a palavra província perdeu esse sentido no Portugal metropolitano, onde
as províncias tinham um sentido apenas corográfico995. No ultramar, porém, “província” convivia com
“conquista”, ambas remetendo para a ideia (de facto, sem tradução institucional, na maior parte dos
casos) de um governo extraordinário. Observe-se que, na Igreja, a província era um território
dependente de uma arquidiocese metropolitana ou do provincial de uma ordem regular, sendo também
usada para designar zonas de administração eclesiástica no ultramar.

224
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

communis). A naturalidade de um reino compreendia a capacidade de exercer cargos


no reino ou a sujeição ao direito e jurisdição real ordinária ou comum. Quando
referida a uma comunidade menor – como uma cidade ou um município – a
naturalidade (local) ou vizinhança compreendia a capacidade para ser eleito para o
governo municipal, de exercer ofícios locais, a sujeição ao direito local, tanto nos
encargos como nos privilégios.
§ 699. Aos naturais opunham-se os estrangeiros (foranei) 996.
§ 700. A ligação entre uma pessoa e um reino era fixada – não pela vontade e
escolha – mas por uma ligação objetiva com o seu território - como pátria ou terra
do pai - e com a jurisdição sobre ele, pois territorium e iurisdictio adeririam uma ao
outro997. Esta carga naturalista do território explicava que este, juntamente com a
naturalidade do pai, definisse o vínculo a uma ordem jurídica e política natural, a
naturalidade.
§ 701. Assim, a naturalidade adquiria-se (i) por nascimento em território
português998, (ii) de pai português. A filiação podia ser legítima ou natural (Ord.
fil.2,55,pr.) (v. cap. Que ordem expositiva ?)999. Os filhos de portugueses nascidos
no estrangeiro eram estrangeiros, exceto se a ausência do pai fosse motivada pelo
serviço público ou por necessidade séria1000.
§ 702. Os estrangeiros não adquiriam a naturalidade por residência contínua,
mas podiam obter carta de cidadão, passada, como graça que era, pelo Desembargo
do Paço (Ord. fil.2,55,pr.). A cidadania tinha uma natureza voluntária, e não natural,
por isso podendo ser objeto de uma concessão. Mas os filhos destes cidadãos
apenas podiam obter a naturalidade portuguesa se acrescentassem natureza ao
vínculo, por nascerem em Portugal e por o seu pai aqui se ter radicado, por
residência e aquisição de bens imóveis há mais de 10 anos (Ord. fil.2,55,1)1001.
Aparentemente, esta última cláusula geraria uma massa de portugueses entre os
filhos de nativos não europeus habitando o território das conquistas. No entanto,
não era assim, pois a propriedade indígena raramente seria considerada por um
tribunal como propriedade no sentido do direito português. Por outro lado, é muito
provável que o facto de se tratar ou de infiéis ou de gentios impedisse os nativos
locais de aceder à categoria de plenos naturais portugueses.
§ 703. Ao nascimento era equiparado o batismo e o uso e fama.
§ 704. A naturalidade também se podia obter por graça régia, através de carta
passada pelo Desembargo do Paço. Porém, nos termos de uma orientação restritiva
que se nota nos autores do séc. XVII, alguma doutrina exigia, para que a

996 Era raramente estendido às categorias intermédias, como latini e peregrini; em contrapartido, era

frequentemente complementado com os conceitos extremos de hostes e captivi (servi).


997 “Iurisdictio cohaeret territorio”, glosa ordinária a Libri feudorum, 2, 56, rubr. n.2); “territorium

est spatium munitum et armatum iurisdictione” (Baldus, Commentaria ad Libri feudorum, 2, 56, rubr. n.2).
998 Manuel Álvares Pegas, Commentaria, [...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 5, n. 15: "nati fuerint in

hoc Regno, aut intra illius dominationis terras".


999 Os filhos espúrios (v. cap. Filhos.) seguiam a condição da mãe, sendo portugueses se
nascessem em Portugal filhos de uma portuguesa, v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria, [...], cit., tom.
12, ad 2, 55, gl. 6, n.1.
1000 Sobre este assunto, v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria, [...], cit., tom. 12, ad 2, 55;

Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., p. 1, cap. 15.


1001 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 2, 4.

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naturalização incluísse a faculdade de ser providos nos ofícios, benefícios e honras


do reino, que a carta de naturalização referisse expressamente este privilégio 1002.
§ 705. Como a mulher seguia a naturalidade do marido, adquiria a naturalidade
portuguesa a mulher casada com português. A sua viúva mantinha-a, enquanto não
se casasse de novo. A desposada “por palavras de presente” também adquiria a
naturalidade portuguesa. Em simetria, perdia-a a portuguesa que casasse com um
estrangeiro.
§ 706. A naturalidade podia perder-se por desnaturalização ou expatriação
voluntária (Ord. fil.2,55,3)1003 e por decreto real (simetricamente ao que acontecia
com a sua concessão, Ord. fil.2,13)1004.
3.1.2.1 Extensões da naturalidade.
§ 707. O universo dos naturais (também chamados indígenas) era alargado
pela equiparação do batismo ao nascimento, pois o batismo era uma espécie de
novo nascimento espiritual que dava a naturalidade a quem fosse batizado no reino
por um pai espiritual (padrinho) natural1005.
§ 708. Equivalente ao batismo era o cathecumenatus – a instituição eclesiástica
que preparava para o batismo. Por todo o império – tal como em certas regiões da
Europa em que foram lançadas missões na Europa moderna – grandes massas de
pagãos (hindus, africanos animistas e muçulmanos ou índios americanos) eram
convertidos ao catolicismo, depois de um período de preparação espiritual, durante
o qual gozavam de um estado jurídico misto, que combinava o seu direito nativo
com derrogações exigidas pela sua nova religião ou, então, destinadas a protegê-los
das comunidades originárias. A sua situação era semelhante à das pessoas que
beneficiavam da graça régia por serem dignas de misericórdia (miserabiles personae:
pobres, viúvas). No Oriente, (Goa, Malaca e Macau), foram criadas instituições
específicas – Pai dos Cristãos, Casa dos Catecúmenos – para proteger estes neófitos.
Como resultado, desenvolveu-se nestas províncias uma importante comunidade de
portugueses – aí designados por “naturais”, agora com o sentido de portugueses da
terra (“filhos da terra”, em Macau) – que disputou aos “reinóis”, idos do reino, ou
aos “descendentes”, de famílias portuguesas fixadas no Oriente a hegemonia
política até ao séc. XX. Em África – uma região devastada por uma colonização
esclavagista predatória -, o batismo não originou uma comunidade de naturais
nativos, mas antes uma multidão inorgânica de escravos cristianizados. Na América,
contudo, a ideia de uma sociedade de naturais cristãos e portugueses existiu, dando
origem a instituições similares às dos Pais de cristãos do Oriente. Era o caso das
repúblicas índias do Brasil e do Paraguai, governadas por clérigos regulares
(normalmente jesuítas), ou das Aldeias, sob o mando de um Capitão dos Índios.
§ 709. Para estabelecer este laço natural, a doutrina jurídica equiparava ao

1002 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 1, n. 9; o autor não

concorda, invocando a opinião de Bártolo, que se deveria aplicar nos termos de Ord. fil.3, 64.
1003 Sem expatriação, não se poderia renunciar à naturalidade, Manuel Álvares Pegas, Commentaria

[...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 1, n. 13.


1004 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 2, 12.

1005 “Civis enim efficiatur baptismum”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12,

ad Ord. fil. 2, 55, ns. 5-8, pp. 449 ss.. O mesmo acontecia com a manumissão e emancipação.

226
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

nascimento físico, o nascimento civil e político constituído pela aquisição da


liberdade pela manumissão, o que era de realçar sobretudo em espaços em que a
escravatura fosse importante e a manumissão algo frequente, pois ela ligava os
libertos à comunidade dos naturais, obliterando eventuais pertenças políticas
anteriores à escravização. A manumissão dava ao manumitido a categoria de liberto
(libertus, libertinus), ligado ao antigo senhor (dominus, agora patronus) por especiais
laços de fidelidade e de serviço (auxilium, servitium) e sofrendo incapacidades civis e
políticas (capitis diminutiones).
3.1.2.2 Restrições da naturalidade.
§ 710. Alargada pelo batismo e pela manumissão, o pleno gozo do estatuto de
natural era comprimido por outros estados jurídicos. Uns destes eram os
relacionados com as incapacidades jurídicas geradas por características individuais,
como a idade, o género, a normalidade psicofísica. Outro era coletivo, e de algum
modo ainda ligado à configuração do espaço – a rusticidade, que evocava as
condições da vida e do desenvolvimento humano nas comunidades rurais (pagi, rus).
A doutrina jurídica medieval e moderna tinha desenvolvido toda uma teoria da
especificidade do direito dos rústicos (iura rusticorum)1006, assente na ideia de que as
suas condições de vida impediam um pleno desenvolvimento da sua humanidade,
tornando os rústicos numa população de gente primitiva e simples, incapazes de
usarem do direito das populações civilizadas e polidas. Politicamente, eram naturais;
mas gozavam de um estatuto especial, atendendo à sua cultura e hábitos grosseiros.
Do ponto de vista jurídico, a rusticidade gerava um privilégio (privilegium rusticorum),
materializado no uso de um direito simplificado.
§ 711. Originalmente, o conceito de ius rusticorum destinava-se a cobrir o direito
das zonas da Europa que não tinham absorvido o direito letrado – as zonas rurais
profundas, os vales pouco acessíveis, as zonas de floresta, os lugares isolados (os
sertões) ou as ilhas remotas. Mas, na verdade, também a maior parte das zonas não
urbanas, pobres, iletradas e primitivas. Num inquérito corográfico lançado em
1758, o pároco de Ester descreve assim a sua freguesia, situada no termo de
Lamego, quanto à notoriedade dos seus habitantes quanto às letras e às armas:
“[…] as letras ordinárias dos nacionais bem parece apenas as de exararem hum
tosco sinal de seu nome para quando a honra da vara de juiz lhe for a casa se bem
que de ordinário como bons cristãos a sua melhor firma é o sinal da cruz (+).
Armas são sim os seus arados e mais instrumentos próprios do seu trabalho e quase
como descendentes daquele primeiro honrado homem podem dizer com asserto,
cumprem à risca com o Divino preceito - in sudore vultas tui vesceris pane
[…]”1007. Esta descrição poder-se-ia aplicar à maior parte dos pequenos concelhos
da zona isolada e pobre até aos dias de hoje. Os magistrados letrados ou os
corregedores reais eram aconselhados a transigir com os usos rústicos aí vigentes,
desistindo de aplicar as subtilezas do direito erudito1008.

1006 Sobre a oposição entre saber e rusticidade na literatura jurídica moderna, cf. António Manuel

Hespanha, "Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique", cit; versão portuguesa,
periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/download/../13797. Sobre o tema, em geral, A. Murray (1978),
Reason and Society in the middle ages, cit..
1007 José Viriato Capela e Henrique Matos (dir.), As freguesias do distrito de Viseu nas Memórias

paroquiais de 1758. Memórias, história e património, Braga, ed. José Viriato Capela, 2010, 193.
1008 Jeronimo Castillo de Bobadilla, Politica para corregidores y señores de Vasallos, Madrid, 1597;

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§ 712. Mais tarde, quando os europeus tomaram contacto com o que eles
consideraram ser culturas inferiores, estas imagens da rusticidade e dos seus efeitos
jurídicos ganharam um novo campo de aplicação, para descrever as populações
indígenas das colónias. Nos escritos de juristas letrados ou pretensões de saber
direito, os indígenas e os colonos pobres e iletrados eram descritos como brutos,
simples ou rudes, manipulados por procuradores e rábulas interesseiros e também
ignorantes, cujo saber se esgotava nuns brocardos jurídicos mal entendidos, e
governadas por magistrados incompetentes, despóticos e parciais. A rusticidade
extrema era a das “nações bárbaras”, cujos costumes selvagens (canibalismo,
anarquia politica, promiscuidade sexual) permitiam que lhes fosse movida uma
guerra sem quartel, destruindo as suas comunidades, ignorando o seu direito ou
confiscando a sua propriedade.
3.1.2.3 O relevo jurídico da naturalidade.
§ 713. A distinção entre naturais e estrangeiros era relevante para determinar a
pertença à comunidade política e jurídica, pois o direito aplicável e a jurisdição
competente dependiam, desde logo, do estatuto pessoal (princípio da personalidade
do direito) Por isso, os naturais eram governados pelo seu Senhor natural, de acordo
com o direito da sua terra natural; no caso, o direito português, ou doutrinal (ius
commune] ou constante das leis, praxes judiciais e costumes do reino (ius proprium
regni) 1009. A partir do séc. XVI, a distinção ganhou uma nova importância, por
causa da divisão do mundo pela bula Inter coetera, de 1493, e pelo Tratado de
Tordesilhas (1494), com os quais os naturais de Portugal e de Castela adquiriram o
direito exclusivo de atuar nas conquistas dos respetivos reinos. Ou, quando os reis
de Espanha ascenderam ao trono de Portugal, pelo facto de terem jurado,
expressamente, no pacto de Tomar de 1579, o princípio do indigenato: os ofícios,
benefícios, bens da coroa e jurisdições portugueses só poderem ser atribuídos a
naturais de Portugal 1010. Não admira, portanto, que as definições de “natural” desta
época destacassem esta capacidade para exercer os cargos da república ("quis
dicatur civis originarius alicujus civitatis, ut sit capax omnium dignitatum solitarum
concedere originarius" [diz-se cidadão originário de uma cidade, como capaz de
todas as dignidades que se costumam conceder a originários] 1011). No séc. XVIII, o
conteúdo da condição de natural mantinha-se idêntica. Pascoal de Melo considera
que os direitos dos cidadãos são: recorrer ao rei por súplica ou pedindo a sua
“ajuda” (Ord. fil.2,1,9,11; CL 18.8.1769, § 2), pedir as garantias da sua “segurança”
[cartas de seguro] (Ord. fil.5,128), exercer os ofícios da república, de acordo com o
princípio do indigenato (L. 15.7.1671), ser provido nos benefícios eclesiásticos (Ord.
fil.2,13,1), ser beneficiado com bens da coroa do reino (Ord. fil.2,35,pr), pedir
mercês régias (Regº 16.1.1671).
§ 714. A definição de naturais permitia a extensão automática do direito

Amberes, 1703 (http://books.google.pt/books?id=OP6kPrJQLfAC&printsec=frontcover&hl=pt-


PT&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false, 2012.08.06).
1009 Ord. fil.3, 64.

1010 Porventura, foi esta a razão para incluir nas Ordenações Filipinas um novo título (Ord. fil.2, 55,

“Das pessoas, que devem ser havidas por naturais destes Reinos”), aparentemente copiado das
Ordenanzas reales de Castela, Liv. 1, Tit. 3, Lei 19).
1011 Manuel Álvares Pegas, Commentaria, [...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 1, n. 14.

228
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

português metropolitano, com as suas categorias e instituições, às comunidades de


naturais do ultramar, com as ampliações e restrições que se descreveram. Todavia,
isto não significava uma uniformidade jurídica deste espaço político. Em virtude da
sua estrutura particularista, o ius commune europeu atribuía um generoso espaço às
especificidades jurídicas das periferias, fossem elas os municípios (ius proprium,
statuta civitatis, “posturas”, “usos”), os tribunais locais (“juízes ordinários da terra”,
“juízes pela ordenação”, “juízes de fora” 1012), as justiças senhoriais (“ouvidores”)
ou as comunidades rústicas (iura rusticorum). E isto aplicava-se, sem dúvida, ao
espaço ultramarino.
3.1.3 Vizinhos.
§ 715. A aquisição da vizinhança estava regulada nas Ordenações (Ord.
fil.2,56)1013 de um modo que privilegiava, não o nascimento, como no caso da
naturalidade, mas a residência. O principal critério era o da residência permanente,
indiciada por casamento e posse de bens, com intenção de fixação no lugar. A
naturalidade – a que se equiparava a manumissão ou a adoção por um vizinho - era
um critério adjutório para provar a intenção de morar. No caso de retorno ao lugar
originário, depois de mudança de residência, a intenção de morar mostrava-se pela
residência durante 4 anos1014.
§ 716. A Ordenação ressalvava os costumes locais que dispusessem
diferentemente sobre este ponto (Ord. fil.2,56, ult.). Progressivamente, esta ressalva
dos costumes locais perante a lei geral é problematizada pela doutrina. Já no séc.
XVII, Manuel Álvares Pegas exprimiu as suas dúvidas sobre isso, a propósito deste
parágrafo, citando autores do direito comum tardio1015. No entanto, mesmo o
insuspeito Pascoal de Melo, já na segunda metade do séc. XVIII, afirma que os
direitos municipais devem “ser venerados”, não podendo ser limitados ou ab-
rogados senão por importante causa pública1016.
§ 717. Era indício de vizinhança a fama pública ou o exercício de ofícios
locais, seculares ou eclesiásticos1017.
§ 718. Em Portugal, a distinção entre naturalidade (civis) e vizinhança (incola) é
destacada pela doutrina, pelo menos a partir dos meados do séc. XVII 1018.

1012 Apesar de nomeados pelo rei, os juizes de fora eram verdadeiras justiças locais, autónomos em

relação à coroa, gozando de uma esfera particular de jurisdição e decidindo com base nos padrões locais
de julgamento. Em todo o caso, em virtude mais da sua formação letrada e da sua relativa autonomia
em face dos jogos locais de poder do que do facto da sua nomeação régia, era frequente – no Reino ou
no ultramar – que eles reagissem aos usos localmente instituídos. Cf. para um caso típico no ultramar,
Maria Filomena Coelho A justiça d’Além-Mar. Lógicas jurídicas feudais em Pernambuco, Recife, Fundação
Joaquim Nabuco, 2009.
1013 Cf. Domingos Antunes Portugal Tractatus de donationibus [...], cit., p. 1, cap. 15; Francisco

Valasco de Gouveia, Justa acclamação do serenissimo rey de Portugal D. João o 4, Lisboa, Lourenço de
Anveres, 1644
(books.google.pt/books/about/Justa_acclamação_do_serenissimo_rey_de.html?id=k3QIAAAAQAAJ
&redir_esc=y, 30.08.2013), p. 2, punct. 1; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2,
56, gl. 1, 9 ss.. A ordenação tinha como fonte as Ordenanzas reales de Castela, 1, 3, 19.
1014 O direito comum exigia 10 anos para mostrar a intenção de morar.

1015 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2, 56, gl. 6.

1016 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 2, 6.

1017 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2, 56, gl. 2, n. 7.

1018 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 1, n. 8.

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Nomeadamente quanto à impossibilidade de a aquisição da vizinhança levar à


aquisição da naturalidade. Ou seja: os estrangeiros podiam adquirir a vizinhança, se
cumprissem os requisitos da lei (Ord. fil.2,56). Mas a aquisição da vizinhança não
fazia adquirir a naturalidade. Manuel Alvares Pegas, seguindo Domingos Antunes
Portugal1019, é taxativo: “extero, qui licet domiciliarius sit, et incola civitatis quoad
privilegia, et onera incolarum, non tamen pro cive habendus sit, ut possit obtinere
officia, et beneficia solis originariis competentia, ut explicat Portug, 1, cap. 15, n.
38”1020. E, pouco adiante, confirma: "si aliquis non fuerit a Regno originarius, nom
efficitur natalis per honores, & libertates concessas, nec per officia” 1021. Esta
restrição no reconhecimento na naturalidade relacionava-se com o seu
enraizamento na natureza; mas talvez se prendesse também com a nova relevância
que o princípio do indigenato tinha adquirido em Portugal com o juramento de
Tomar, de 1579.
§ 719. No séc. XVIII, a distinção continuava a fazer-se. Pascoal de Melo refere
que “enquanto a cidadania compreende toda a vida da república e todos os direitos
em geral concedidos aos cidadãos, a vizinhança respeita apenas direitos e privilégios
de importância inferior, concedidos aos moradores de um lugar por lei especial”,
como o direito a desempenhar cargos ou usar de bens comuns. E, por isso, o
estrangeiro, embora adquirisse a vizinhança por residência, apenas pela
naturalização, podia adquirir a naturalidade (cita Ord. fil.2,55,pr.)1022.
3.1.4 Estrangeiros.
§ 720. A naturalidade tinha também o efeito de excluir da comunidade política
e jurídica os não naturais, ou estrangeiros.
§ 721. Correspondendo à diferença entre os naturais do reino e os naturais de
uma terra, também os estrangeiros podiam ser, ou os estranhos a uma terra, e
colocados fora do seu ordenamento jurídico particular – os forasteiros, não vizinhos
(cf. Ord. fil.2,56) – ou os estranhos ao reino, e colocados fora da ordem jurídica do
reino – estrangeiros em sentido próprio, foraneus, exterus, externus (cf. Ord. fil.2,55).
§ 722. Este vasto espaço dos estrangeiros conhecia ulteriores distinções, não
lhe cabendo uma definição única e definitiva, antes variando de acordo com uma
complexa rede de qualificações1023 e também de acordo com a questão que estava
em discussão1024. O conceito evocava o legado romano, recebido pelo ius commune:
(a) estrangeiros reconhecidos por tratado (foederati, cujo estatuto estava fixado por
pacto ou acordo de tréguas), (b) simples estrangeiros (exteri, externi) e (c) inimigos
(hostes, tidos e tratados como tal segundo as leis da guerra). Os últimos estavam
geralmente numa situação de completa sujeição: podiam ser mortos, escravizados,
ou mantidos livres, mas totalmente submetidos ao direito dos vencedores, como
súbditos territoriais (subditi territoriales). No espaço colonial português, esta última
situação de inimigos vencidos era a das populações mouras do Norte de África (nas

1019 Tractatus de donationibus [...], cit., p. 1, cap. 15, n. 38.


1020 Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 1, n.8.
1021 Commentaria [...], cit., tom. 12, ad 2, 55, gl. 2, n. 9.

1022 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 2, 5.

1023 Cf. Tamar Herzog, Defining nations. Immigrants and citizens […], cit., 4 ss..

1024 António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, [...], cit., p. 203 ss..

230
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

fortalezas de Marrocos1025), do Médio Oriente (Hindustão ou Ásia do Sudeste) ou


dos índios brasileiros vencidos 1026. Em África, era declarada a guerra a régulos que
tivessem recusado uma acomodação “amigável” com os portugueses, o que
acontecia, no séc. XVII, em extensas zonas do território de Angola.
§ 723. A maior parte dos estrangeiros pertencia, porém, à categoria intermédia
de “simples estrangeiros”. O seu estatuto nem era regulado por tratado, nem
dependente das leis da guerra. Eram simplesmente não portugueses, embora
residentes no território português ou nas suas vizinhanças.
§ 724. Como súbditos territoriais, os estrangeiros estavam sujeitos ao direito
do reino, no que respeitava ao seu estatuto político 1027. Mas, nas esferas das
relações entre particulares, o estatuto jurídico dos estrangeiros obedecia ao
princípio do ius commune segundo o qual cada comunidade (portanto, também as
comunidades pessoais) tinha, por natureza, uma ordem jurídica própria 1028. Este
princípio materializava-se em práticas institucionais, tais como a devolução da
competência jurisdicional sobre os estrangeiros para os tribunais próprios dessas
comunidades ou para tribunais específicos estabelecidos por tratado (os
“consulados” das nações amigas)1029. Esta devolução também acontecia no
ultramar. Em geral, eram frequentes os tratados que continham cláusulas de
salvaguarda da ordem política e jurídica local. Em Goa, uma carta régia de 1526
garantiu aos hindus de Goa o principal do seu direito, criando uma jurisdição
especial para julgar por ele as causas entre a comunidade hindu relativas a certas
rendas fundiárias. Em Macau, a comunidade chinesa era julgada, ou pelos
mandarins chineses instalados no território, ou por um membro da câmara, para
isso especialmente deputado – o procurador dos negócios sínicos1030. Também no
Brasil, as comunidades índias, vivendo em território português ou nas suas
fronteiras, tinham os seus juízes, que decidiam em equidade, segundo os seus
costumes, e “sem revolver Bartallos, nem Acursios” 1031. Finalmente, em África, o

1025 Excluindo os que se tinham rendido e celebrado um tratado de paz (“mouros de pazes”).
1026 Era o caso dos “índios bravos”: v. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, [...],
cit., p. 292 ss..
1027 Cf. Stefano Vinci, “The legal status of foreigners in Europe between medieval and modern

ages”, em http://www.academia.edu/1849781/the_legal_status_of_foreigners_in_europe_between_
medieval_and_modern_ages.
1028 A acomodação do princípio da territorialidade do direito com o da personalidade da aplicação

do direito foi tentada pela teoria estatutária (séc. XIV). Assim, os contratos e testamentos reger-se-iam
pelo direito do local da sua celebração (lex actus); o processo, pelo direito do foro (lex fori); o estatuto
pessoal, pelo direito do do interessado; a situação jurídica de imóveis, pelo direito da sua localização
(lex rei sitae); os atos exprimindo o poder político (v.g. punição, fiscalidade, administração, etc.) estavam
sujeitos ao direito do senhor sob cujo poder fossem praticados. Estas soluções podem ser resumidas na
fórmula de que o alcance de aplicação das normas está ligado ao alcance do poder de quem as edita:
assim, no caso de bens imóveis, coincide com o território, no caso de pessoas, coincide com o
universo dos súbditos. Novamente, uma enorme atenção ao plano dos factos, que se traduz na adoção
de soluções casuísticas e na recusa de esquemas rígidos, abstratos e imobilistas.
1029 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 2, 8-11.

1030 Cf. Maria Carla Faria Araújo, Direito português e populações indígenas: Macau, 1846-1927, cit.;

António Manuel Hespanha, Panorama da história institucional e jurídica de Macau, cit..


1031 Cf. Carta do Compadre do Rio de São Francisco do Norte, ao Filho do Compadre do Rio de Janeiro. o qual

se queixa do parallelo, que faz dos indios com os cavallos, de não conceder aos homens pretos maior dignidade, que a de
Reis do Rozario, e de asseverar, que o Brasil ainda agora está engatinhando e crê provar o contrario de tudo isso. Por
J.J. do C.M. Rio de Janeiro: Impressão Nacional, 1821: "Eu tenho tranzitado por algumas d’essas

231
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direito nativo era tido em conta para ratificar a situação dos indígenas ou mesmo
para julgar causas mistas entre indígenas e colonos1032. Assim, João Baptista
Fragoso1033, discutia a validade dos casamentos entre africanos e índios brasileiros
de acordo com os seus próprios direitos, desde que estivessem de acordo com o
direito natural; o que correspondia a uma doutrina jurídica assente desde o séc.
XVI, sobre a inviolabilidade das instituições dos indígenas sul-americanos1034.
3.1.5 Nobres.
§ 725. "Nobre" e "nobreza" são termos pouco usados nas fontes jurídicas
portuguesas da primeira época moderna. Em contrapartida, o seu oposto, “peão”, é
frequente1035. Mais para os finais da época, começa a desenhar-se a criação de uma
categoria comum de “nobres”, agrupando as várias categorias anteriores de pessoas
não plebeias1036.
§ 726. Assim, o aparecimento da categoria de nobre parece ser a receção pela
literatura jurídica portuguesa de uma oposição bipolar que estruturava a literatura
italiana de direito comum - nobiles-non nobiles [ignobiles], sanior et melior pars-vilior et peius
pars) – inspirada no direito romano (D.50,16,238), embora tanto o direito
justinianeu como a literatura religiosa ou clássica profana conhecessem um leque
maior de categorias das pessoas baseadas na sua virtus.
§ 727. As Siete partidas (2,21,2), por sua vez, adotam uma classificação tripartida
de “los tres estados porque Dios quiso que se mantuviese el mundo": defensores,
oradores, labradores. Embora, quando se tratava de explicar as qualidades requeridas
àqueles a quem tocava a defesa da terra natural, adotassem uma classificação
bipartida - "cavaleiros" ou "nobles omes" e os outros. A importância das Partidas -
que constituem uma fonte de referência para a doutrina hispânica, sobretudo
castelhana, sobre a nobreza durante as épocas medieval e moderna - é, portanto, a
de ter fixado uma classificação social bipartida e de, quanto ao conceito de nobreza,
ter optado, decisivamente, por um critério linhagista.
§ 728. A progressiva criação da arqui-categoria "nobreza" permitia referir, de

Aldêias, e Villas, onde prezidem esses Juizes Brancos e Indios, que Vm. figura, que os Juizes brancos
conduzem os Indios, como o Cavalleiro conduz o cavallo pelas redeas: perdoar-me há Vm. a liberdade
de assegurar-lhe, que está mal informado d’esses factos. Os Juizes n’essas Villas são de facto hum
Branco, e hum Indio; servem por semanas alternadas, com a diferença, que o Indio só conhece, e
despacha verbalmente diferenças dos seus Indios, ou destes com algum Branco, Preto, ou Pardo; com
as decizões deste Juiz nada tem o Juiz Branco, assim como o Indio senão embaraça nas decizões
daquele, o qual conhece dos feitos contenziosos, e discussões forences, e he para ver, e admirar, que
o Juiz Indio sem revolver Bartallos, Nem Acursios, quasi sempre julga com Justiça, retidão, e
equidade, quando o Juiz Branco enredado nos intricados trocicollos da manhoza chicana raras vezes
acerta; por mais que para isso se desvelle, quando se desvela” (p. 7).
1032 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia, [...], cit., p. 298 ss.; Hespanha

(2001a), António Manuel, “Luís de Molina e a escravização dos negros”, Análise Social¸157(2001), 937-
990.
1033 João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p. 640 ss. (Disp. 22: De conjugio Indorum, § 4, De

reliquis quae spectant ad matrimonia inter infideles jure naturae, & an inter eos vera sint ?”).
1034 Cf. Anthony Pagden, The fall of the natural man […], cit..

1035 No seio de categoria de peão existia ainda a de mecânico ou pessoal vil.

1036 Cf. António Manuel Hespanha, “A nobreza nos tratados jurídicos dos séculos XVI a XVIII”,

cit.; José Antonio Guillén Berrendero, “Honor and service. Álvaro Ferreira de Vera and the idea of
nobility in the Portugal of the Habsburgs”, cit..

232
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

forma sintética, todos os grupos jurídicos privilegiados que ocorriam nas fontes
portuguesas, atribuindo-lhes, como mínimo, o conjunto de privilégios gozado pelo
grau mais inferior (como "privilegiado", "vereador", "escrivão da câmara") 1037. De
tal modo que, dizendo, em geral, que alguém era nobre, se dizia que gozava, pelo
menos, do estatuto da mais modesta das categorias particulares de pessoas
privilegiadas previstas na lei.
§ 729. A que estatuto se referia, então, a categoria genérica da nobreza ? Em
primeiro lugar, a princípios de direito comum, por vezes bastante vagos, como o
que media a punição das injúrias pela categoria dos ofendidos (cf. Ord. fil.5,16,1); o
que reservava o governo ou os lugares militares de distinção aos nobres; ou,
sobretudo, os que outorgavam “nobreza”, sem mais acrescentar, a certos ofícios ou
funções ou que exigiam a qualidade de “nobre” para o desempenho de certas
funções. Referia-se, em seguida, a normas que falavam de plebeus – por exemplo,
as cartas de foral que criavam certos impostos -, e que implicavam, portanto, a
existência de um grupo de não plebeus, privilegiados ou honrados. Para o efeito
destes últimos textos, ser nobre era não ser plebeu, como notavam os juristas dos
finais do séc. XVI, ao dizer que a prova decisiva em direito quanto ao estado de
nobreza não era a prova da nobreza, mas apenas a de que não se era plebeu, i.e. que
se tinha algum privilégio1038.
§ 730. Nos finais do séc. XVIII, este conceito genérico de nobreza importava
para 1039:
 determinar o âmbito de aplicação das normas de direito comum que
estabeleciam privilégios genéricos para os nobres ou que exigiam nobreza
para o desempenho de certas funções;
 determinar quem pagava certos impostos que o foral impusesse sobre os
plebeus 1040;
 definir quem podia aceder a hábitos das ordens militares que exigissem a
nobreza;
 estabelecer o âmbito das isenções em relação às fintas e encargos pessoais
dos concelhos, tais como servir de tesoureiro ou levar presos, etc. (Ord.
fil.1,66,42) 1041;
 isentar de penas vis ou infames (forca, chicote, galés) ou estabelecer um

1037 V. Ord. fil. I. 66, 42; 5, 120; 5, 138.


1038 Este raciocínio levava à admissão de uma tripartição que não existia no direito comum - a que
distingue "nobres", "plebeus" e "estado do meio". Com efeito, segundo o direito real português (v.g.
Ord. fil.4, 92, 1), existia um “estado do meio” entre nobres e plebeus, o daqueles que “andavam a
cavalo”, mas que não gozavam do esplendor do sangue que os tornasse ilustres (v. Melchior Febo,
Decisiones [...], cit., dec. 155, ns. 6/7).
1039 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 3, 43.

1040 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, ar. 68 (fidalgos e nobres não pagam oitavo);

Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. I. aresto 65 (nobres não pagam jugada, nem "outras coisas, que
pagão os piães"). No comentário de Manuel Álvares Pegas, a Ord. fil. 2, 33 (“Das jugadas”) transcrevem-
se muitas decisões judiciais sobre este ponto (Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9, ad
2, 33, rucr. cap. 24, maxime ns. 204 ss.).
1041"Fidalgos, cavaleiros e escudeiros de linhagem ou de criação, pessoas de maior qualidade que

as anteriores [doutores, licenciados, bacharéis em teologia, direito ou medicina, que forem feitos por
exame em estudo geral, juízes, vereadores, procuradores e tesoureiros dos concelhos], pobres de
esmola e outros privilegiados".

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regime penal mais leve1042;


 excluir os direitos sucessórios dos filhos ilegítimos 1043 (v. cap. Filhos.);
 estabelecer a capacidade para instituir morgados (só depois da C.L. Agosto
1770, § 15) (v. cap. Instituidor e instituição.);
 autorizar a caça no distrito da corte (A. 1.7.1776, § 4).
§ 731. Salvo no que diz respeito às normas genéricas do direito comum, não se
pode, portanto, dizer que fossem de extraordinário relevo, quanto aos seus
resultados práticos, os privilégios concedidos à nobreza, embora o mesmo não se
possa dizer, eventualmente, da sua importância simbólica. O que permite dizer que
a importância social deste estado não era sobretudo devida aos seus efeitos
jurídicos, representando estes, antes, uma marginal, mas emblemática, formalização
de uma marcação social visível, sobretudo, noutros sistemas simbólicos.
3.1.5.1 O imaginário jurídico nobiliárquico.
§ 732. Para se fazer o levantamento desse imaginário é importante considerar a
teoria jurídica da nobreza, tal como aparece na tratadística dos sécs. XVI e XVII,
que funda a distinção entre nobres e não nobres na própria ordem da criação.
§ 733. Teria sido esta que teria dado a umas coisas a primazia sobre as outras,
em razão da utilidade ou da beleza (ratione utilitatis vel pulchritudinis). Daí que a
nobreza pudesse ser considerada, neste sentido, como um facto de natureza
(falando-se, então, de nobreza natural 1044), residindo mesmo nas coisas inanimadas
(ouro, pedras preciosas), ou nos animais desprovidos de razão (falcão, boi, leão).
Nos homens, como nas coisas da natureza, esta nobreza natural derivaria da
virtude, nomeadamente daquela virtude que torna alguém ou alguma coisa apto a
dominar (Aristóteles, Politica, 9; Ética, 4). Como dirá Bártolo, a nobreza 1045residia
"naquele hábito eletivo [i.e. naquela habituação de bem decidir] acerca das coisas
que respeitam à preeminência e ao domínio". Neste sentido, a nobreza natural era
irrenunciável, pois ninguém podia fugir à sua própria natureza 1046.

1042 Não devem ser enforcados, mas decapitados, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I. dec. 18,

ns. 2/6 (fonte de direito comum: Bártolo in l. capitalium, D. de poenis). Devem ser menos punidos tanto
na imposição da pena como na execução, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I. dec. 18, ns. 3. V. Ord.
fil.5, 25; 5, 120. São escusos de prisão ("presos em ferros": Ord. fil.5, 120): fidalgos (de solar ou
assentados nos livros), desembargadores, doutores em leis ou em medicina, juízes formados (mas não
os ordinários, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 14), cavaleiros fidalgos, ou confirmados, e
de ordens militares, escrivães da fazenda e câmara. São escusos de pena vil (açoites, baraço e pregão:
Ord. fil.5, 138): escudeiros, moços da estrebaria real (ou de dignitários até conde, conselheiro e
prelado), pajens de fidalgos assentados, vereadores e seus filhos, procuradores dos concelhos, mestres
e pilotos de navios reais de gávea ou de quaisquer navios de mais de cem tonéis, amos ou colaços de
desembargadores ou de cavaleiros de linhagem, pessoas que tenham cavalo, mercadores de mais de
100 000 reis. Estes privilégios não funcionam no caso de crime de lesa-majestade, divina ou humana
(Ord. fil.5, 1 ss.), erro de ofício, falência fraudulenta (v. Ord. fil.5, 66).
1043 Ord. fil.4, 92, 1 (decisão de 1620, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I. dec. 106).

1044 É Bártolo (in alleg. lege prima, C. de dignitat.) que distingue entre nobreza teológica (cf. S. Tomás,

Summa theol. 1a.2ae, qu. 110, correspondente ao estado de graça), nobreza natural e nobreza política.
1045 Citado por Juan Arce de Otalora, Summa nobilitatis Hispanicae & immunitatis regiorum tributorum

causas […], Salmanticae, Andreas à Portonarijs, 1556.fl. 15 v..


1046 A questão da irrenunciabilidade da nobreza coloca-se mesmo em face da nobreza política. Em

geral, entende-se não se podia renunciar à nobreza, mesmo por juramento. Porque, ao fazê-lo,
atentar-se-ia contra a ordem política e injuriar-se-ia toda o estado a que se pertencia. Do mesmo modo,

234
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 734. Nesta nobreza natural se fundava a nobreza política, de que os juristas


se ocupavam preferentemente, e que era aquela que, na república, servia para
distinguir o nobre do plebeu. A investigação sobre as suas fontes levava à
antiguidade. Segundo Juan Arze de Otalora, Platão filiava-a: (i) na progenitura
ilustre; (ii) na graça do príncipe; ou (iii) na fama de atos passados e feitos na guerra.
Já Aristóteles (Politica, 4) a fizera decorrer do nascimento, da riqueza e da
virtude1047.
3.1.5.2 Títulos de aquisição ou de prova.
§ 735. Que a nobreza natural, a virtude, fosse a causa eficiente de toda a
nobreza política ninguém duvidava. Só que a nobreza natural constituía um critério
escondido e sujeito a disputa. Esse era o seu principal defeito como critério
operacional de hierarquização da república. Como qualidade apenas virtual,
necessitava, portanto, de um agente suplementar que a tornasse atual e visível.
Assim, - dizia-se - "a nobreza não se presume [...] pois não é intrínseca à natureza
[comum] dos homens, mas atribuída [a alguns] por feitos ilustres, pelas letras, pela
riqueza ou pela graça do príncipe ("nobilitas non praesumitur [...] quia nobilitas non
insit a natura, sed illustribus factis, litteris, divitiis, aut Principum gratia pariatur
hominibus 1048); "e, assim, deve provar-se por indícios, fama e testemunhas de ouvir
dizer ou outras presunções ("et sic probari debet, ex indiciis, fama, et testibus de
auditu, & aliis praesumptionibus") 1049.
§ 736. Esse fator que tornava visível (e, logo, politicamente, atual) a nobreza
interior podia ser, desde logo, o príncipe, que, tal como Deus em relação às virtudes
sobrenaturais, podia revelar virtudes políticas aliás escondidas. Mas o mesmo efeito
podia ter a fama e, ainda, uma tradição familiar de virtude - a linhagem ou
geração1050.
§ 737. Daqui, a tipologia das vias de aquisição (talvez melhor, de manifestação,
de demonstração, de publicação) da nobreza.
§ 738. Comecemos pela graça do príncipe. Para João Baptista Fragoso, que
escreve em Portugal nos finais do séc. XVI, a nobreza concedida pelo príncipe não
deixa de constituir, pela oposição à nobreza interior, natural, uma "nobreza
extrínseca". É a "qualidade atribuída pelo que detém o principado, em virtude da
qual o que a recebe é assinalado como superior ao plebeu" (nobilitas extrinseca 1051 est
qualitas illata per principatum possidentem, que quis acceptus ostenditur ultra honestos
plebeius1052).
§ 739. Porém, outros dão à ação do príncipe um caráter mais criador. Tal

o clérigo não podia renunciar ao seu estado. Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. I. liv. 3,
disp. 6, n. 154; tal como o natural não podia decidir deixar de o ser.
1047 Juan Otalora, Summa nobilitatis Hispanicae et immunitatis regiorum tributorum causas […], cit., p. 16.

1048 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 10.

1049 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p.2, dec. 73, n. 12.; Manuel Álvares Pegas, Commentaria

[...], tomo 3, ad Ord. fil.1, 24, gl. 1, n. 7. Cf. ainda, "nobilitas est qualitas extrinseca, cum a principio
omnes aequalis conditionis homines estiterint", Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, d. 106, n. 4.
1050 Cf. Juan Otalora, Summam nobilitatis Hispaniae […], cit., p. 16.v..

1051 Segundo Aristóteles, é virtude de antiga riqueza (Polit. 4, 8) ou dignidade dos antepassados

(Rhetor. 15); mas agora, a nobreza induz-se do príncipe; tal é a opinião de João Baptista Fragoso,
Regimen […], p. I. liv.3, disp. 6, pg. 316, n. 132.
1052 João Baptista Fragoso, Regimen […], p. 1, liv.3, disp. 6, pg. 316, n. 131

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como Deus, ele seria a verdadeira causa eficiente da nobreza: "do mesmo modo
que junto de Deus é nobre quem Deus pela sua graça faz grato ao mesmo Deus,
assim no mundo é nobre quem o príncipe, por lei ou pela sua graça, faz grato ou
nobre"1053. Por isso, o arbítrio do príncipe não teria limites nem seria sindicável nas
suas razões. Uma ilustração: apesar do facto de a nobreza que decora um doutor se
fundar na sua ciência, o príncipe poderia criá-los sem qualquer formalidade, apenas
pelo facto de lhes chamar doutores, tal como, na milícia, ele enobrecia um soldado,
chamando-lhe cavaleiro 1054.
§ 740. Em Portugal, o caráter constitutivo da graça régia na outorga da
nobreza era muito clara para os juristas, apesar de não constar da lista de regalia da
Ordenação,2,26. Por um lado, as Ordenações não lidavam, como se viu, com a
categoria genérica da "nobreza", mas antes com categorias particulares, ligadas a
distinções outorgadas pelo rei 1055. Por outro lado, estas categorias eram bastante
arbitrárias, parecendo não conterem qualquer referência a uma classificação
"natural" ou linhagística.
§ 741. "A nobreza pertence apenas ao rei, sendo uma superioridade real; e a
nobreza surge de concessão régia ou de privilégio" (nobilitas ad solum Regem pertinet,
& est superioritatis regalis: & nobilitas inducitur ex regis concessione, seu privilegio)", afirmam
Jorge de Cabedo, escrevendo nos finais do séc. XVI 1056, e Melchior Febo, um
pouco mais tarde 1057. João Baptista Fragoso, por sua vez, filia esta prerrogativa
régia no próprio exemplo de Deus, ao criar os anjos como seres excelentes e ao
atribuir-lhes uma hierarquia; de Deus teria passado aos reis deste mundo, a começar
pelos do Antigo Testamento (Esther, I. 6; Macabeus, 1) 1058. Entre esta nobreza dativa
e a nobreza generativa não existiria nenhuma diferença (ibid. n. 138). António Gama
é ainda mais decisivo: ninguém adquiria a nobreza por si mesmo, mas apenas pela
dignidade do ofício ou pela concessão real (nemo acquiritur nobilitatem a seipso, sed a
dignitate oficii, vel concessione regis)1059.
§ 742. Esta concessão da nobreza pelo príncipe seria tácita em relação aos que
estivessem a seu lado, os seus “colaterais” 1060. Também o fazia, chamando alguém

1053 Cf. Bártolo, citado por Juan de Otalora, Summa […], cit., fl. 17 v.
1054 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 143/41.
1055 Cf. g. todas as categorias de fidalgos, cavaleiros e escudeiros da Casa Real (mais tarde, damas

do Paço), fidalgos de cota de armas, [i.e. fidalgos a que o rei concedera cartas de brasão], cavaleiros das
ordens militares, desembargadores, juízes, vereadores, capitães de navios do rei. Exceção, no sentido
de uma nobreza obtida "espontaneamente" (i.e. sem intervenção régia), eram os fidalgos de solar (que
não se sabia, agora, ao certo o que fossem, não faltando quem os equiparasse aos senhores de terras;
logo, de novo, as "criaturas" régias), os mercadores de grosso trato e os capitães de navios de alto
bordo.
1056 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 1.

1057 Melchior Febo, Decisiones […], cit., I. d. 14..

1058 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. I. liv. 3, disp. 6, n. 137.

1059 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 86, n. 5.

1060 "Adhaerentes lateri principis, & ei servientes in officio aliquo sunt nobilis", Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 4; Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1. dec. 106, n. 38: apesar
de uma opinião isolada de Ripa de que as parteiras da rainha seriam duquesas, acha duvidoso que se
possa dar tal dignidade sem lei expressa. Esta nobreza colateral não se estendia, no entanto, aos que
exerciam ofícios mecânicos (como cozinheiros, ucheiros, moços de estrebaria, etc.).

236
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

de nobre, concedendo armas ou doando-lhe um senhorio com jurisdição 1061.


Alguns inferiores ao príncipe teriam também o privilégio de criar nobres,
inscrevendo-os nos seus livros de matrícula, como se fossem criados pelo rei. Em
Portugal, era o que acontecia com o Duque de Bragança 1062.
§ 743. No caso de se tratar da nobreza em geral, da tal que só se encontrava
nas fontes do direito comum (ou na parte penal das Ordenações e nas cartas de foral,
a propósito das isenções fiscais), a doutrina recorre a formas de manifestação
menos dependentes de um ato real, tais como os habitus sociais - "viver à maneira
[segundo a lei] da nobreza" -, que não remetiam para classificações de origem real,
mas para categorias sociais assentes, sobretudo, na fama inveterada 1063. Numa
sociedade em que a natureza se deixava ler na tradição, a nobreza interior podia
manifestar-se exteriormente se tivesse tempo de frutificar em atos repetidos ao
longo da vida (nobilitas probatur per actus, qui faciunt veram distinctionem inter nobilem et
plebeum)1064, pois não nascia de um instantâneo piscar de olhos (nobilitas non nascitur
in ictu oculi)1065. A reputação pública – a pública fama – não era senão a
exteriorização da nobreza interior; mas, como o interior estava irremediavelmente
escondido, a reputação tornava-se um sinal indispensável, neste sentido gerador, da
nobreza. Como escreveu Melchior Febo, insuper nobilitas consistit in hominum
existimatione1066.
§ 744. Na realidade, esta independência da qualidade de nobre em relação a
um ato de graça régia refletia a ideia de que a hierarquização das pessoas consistia
num facto da natureza, na existência de uma hierarquia natural das pessoas1067 e não
num facto da vontade política. Esta apenas a podia declarar, concedendo-a
expressamente a quem já a tinha implicitamente (a "quem a merecesse"); mas não
concedê-la como que ex novo e de raiz1068.
§ 745. A admissão da relevância da reputação social como forma de acesso à
nobreza torna o discurso jurídico num espelho dos sistemas sociais de distinção do
estado de nobre. O direito doutrinal e jurisprudencial não fazia mais do que ratificar

1061 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., I. liv. 3, disp. 6, n. 157-161.
1062 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., I. liv.3, disp. 6, pg. 316, n. 133.
1063 "Grande jurisdição tem o tempo sobre a estima, & e reputação da nobreza", escreve João

Pinto Ribeiro ( “Sobre os títulos de nobreza de Portugal e seus privilégios”, em João Pinto Ribeiro,
Obras varias, Lisboa, 1730).
1064 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 106, n. 35.

1065 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 198.

1066 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, cit., dec. 106, n. 35; “Nobilitas causatur ex communi

opinio”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., 2, dec. 73, n. 5; “Nobilior maior est, quo antiquor”,
António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 21. Cf. ainda, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1,
dec. 14 (questão julgada em Aveiro em 1614: era costume, em Aveiro, que apenas relevasse, para
isenção de oitavo, a nobreza originária; o costume não foi reconhecido pela Relação que decidiu que
bastava a reputação e a vida segundo a lei da nobreza).
1067 "Em todas as coisas bem regidas, & governadas, ha de haver esta ordem: que isto é o que a

natureza principalmente em si contem", Álvaro Ferreira de Vera, Origem da nobreza [...], cit., 3.
1068 "[A nobreza] é uma qualidade concedida por qualquer principe aquelle, que a merece, ou porque

descende de pessoas, que a mereceram por serviços feitos à Republica, assi em armas, como em letras;
ou por se aver aventajado dos mais em qualquer memorável exercício", Álvaro Ferreira de Vera, Origem
da nobreza [...], cit., 5; embora o A. afirme que "os reis são os que concedem essencialmente a nobreza e
fidalguia" (ibid. 6) as causas eficientes destas são a virtude e a linhagem, sendo o rei apenas a causa
formal (ibid. ).

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- por meio de um sistema regulado de prova e de certificação - classificações já


operadas na vida quotidiana. Abria-se à vida, evoluía com ela; mas introduzia nas
classificações sociais maior certeza e maior durabilidade. Em rigor, não criava nada
de novo; mas atribuía ao que já estava criado uma fiabilidade e uma permanência
muito maiores.
§ 746. Uma outra via de acesso à nobreza era a linhagem. Certos autores -
nomeadamente autores castelhanos, orientados pela noção de hijos dalgo, muito
marcante no direito nobiliárquico das Partidas - preferiam destacar a linhagem como
origem principal da nobreza. Era o caso de Juan de Otalora que afirmava que "pela
palavra nobreza se entende simplesmente a nobreza de género" (Summa, cit. fl. 17),
tanto mais que esta não seria apenas um critério seguro de diagnóstico da nobreza
natural, mas antes uma das suas causas eficientes, já que "a nobreza de sangue e a
virtude natural dos pais excita à virtude dos filhos" (ibid. fl. 16) 1069. E, daí, que
reagisse contra o anterior dito de Bártolo sobre o caráter generativo da graça do
príncipe, opondo-lhe um de Boécio, que destacava, pelo contrário, o caráter
eficiente do sangue: "a nobreza é um certo louvor e clareza dos pais"; ou de
Landolfo, no mesmo sentido: "a nobreza do género [= de linhagem] é a qualidade
ou dignidade que provém do brilho do sangue, com origem nos pais e continuada
pela carne nos filhos legítimos". "Esta definição - concluía Otalora - contém toda a
substância da nossa nobreza".
§ 747. O português João Baptista Fragoso também adotava este conceito
naturalista e generativo da nobreza, acolhendo a mesma definição 1070, e
sublinhando que o estado de nobreza surgira com a própria criação do homem,
sendo doravante transmitida pela geração1071. Mas não deixava de sublinhar o
caráter apenas probatório da linhagem, asseverando que a nobreza generativa não
existia senão quando adornada pela virtude 1072. Para a maior parte dos autores
portugueses, em todo o caso, a linhagem era apenas uma das formas de
manifestação da nobreza, a nobreza de linhagem apenas uma das espécies de
nobreza, equivalente àquilo a que se chamava fidalguia1073; embora se reconhecesse
que esta via de manifestação era a melhor 1074.
§ 748. Assente esta eficácia do nascimento na manifestação da nobreza,
punha-se a questão de determinar qual das linhagens contava, se a do pai ou a da

1069 "É que a virtude paterna transmitida aos filhos não só os obriga à sua imitação, mas ainda os

provoca e estimula [a obrar virtuosamente]", Juan Otalora, Summa nobilitatis Hispaniae […], cit., fl. 16.
1070 "Nobilitas generis est qualitas sive dignitas promanans ex splendore claris sanguinis a

parentibus trahens originem, & et in filios naturales, ac legitimos per carnem continuata" (sublinha-se a
diferença em relação à definição de Ortalora, pois aqui não restringe a transmissão da nobreza aos filhos
legítimos).
1071 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv.3, disp. 6, pg. 316, n. 134

1072 Cita Baldo, in l. nobiliores, C. de commerc. & mercat. (C.4, 63), onde diz que existem três espécies

de nobreza: da estirpe, da virtude, da estirpe e virtude, que seria a verdadeira nobreza; cf. também,
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 6, ad 1. 74, gl. 2, n. 11.
1073 “Nobilitas gentilitia est, quae provenit ex nobili genere, & familia, nomine, & insigniis, seu

armis decorata [i.e. ornada pela carta de armas] quod in nostro regno fidalguia vocatur”, Manuel Álvares
Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1. 24, gl. 1, n. 9.
1074 A nobreza originária (i.e. de origem) deve ser sempre preferida (v. Ord. fil.1, 96, 2). Só esta é

admitida na confraria da Misericórdia [de Aveiro], Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, ns.
11/12.

238
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mãe. A opinião mais comum era a de o marido, que representava a unidade da


família, transmitia aos filhos e à mulher a sua nobreza, já que os domésticos faziam
unidade com a pessoa do pai 1075.
§ 749. Jorge de Cabedo, com base num texto das Ordenações (Ord. fil.5,92,4, que
permitia ao filho tomar o brasão da mãe), era de opinião de que, segundo o direito
português, que seria uma exceção ao direito comum, se devia considerar também a
nobreza materna como generativa1076. A opinião era singular, mas ficou na memória
textual, parecendo ganhar força com os tempos, sobretudo no caso em que a
nobreza materna fosse excelente 1077.
§ 750. Havia outras modalidades de manifestação / aquisição da nobreza. O
jurista francês Barthelemy de Chasseneux (1480-1541), uma autoridade no direito
costumeiro borgonhês e respeitado tratadista de direito comum tardio, enumera as
seguintes1078: (i) a dignidade, (ii), a riqueza; (iii), a reputação comum; (iv) o privilégio
do príncipe 1079; (v) o lugar de nascimento 1080; (vi) a adoção; (vii) os feitos militares;
(vii) o estado clerical; (viii) a prescrição. Nem todas eram reconhecidas em Portugal,
embora pudessem ser oportunisticamente invocadas. Aqui, em contrapartida,
discutia-se muito a questão de duas qualidades – a riqueza e a ciência – para
manifestar a nobreza.
§ 751. Em relação à ciência, os textos clássicos (Aristóteles e o Codex
Iustitniani) promoviam uma opinião afirmativa, que se tornou comum1081. Os
próprios juristas estavam interessados nisso. A eficácia da riqueza para gerar
nobreza também tinha raízes em Aristóteles que defendia que a riqueza antiga dava
nobreza 1082. Para os autores portugueses, esta proposição não era tão evidente,
pois não haveria uma relação necessária entre a riqueza interior e os bens deste
mundo. A sua posição andava mais próxima de certo realismo, fundado na
observação e sensível às leis da vida 1083, nomeadamente quanto às possibilidades de

1075 “Nobilitas et gloria patris in filios transit. Memoria patris conservatur in filiis. Filius et pater

una persona censetur”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 36, n. 14. “Nobilitas transit in
posteros in infinitum”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 5. Se é de considerar o
momento da conceção ou o do nascimento, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 106, ns.
19/20. Em contrapartida, “An nobilitas filii ascendit ad parentum” [se a nobreza do filho se transmite,
para cima, ao pai], Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 154.
1076 “Nobilitas ex parte matris de jure lusitano consideratur (& quid de iure commune)”, Jorge de

Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, cons. 73.


1077 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 141.

1078 Cf. Bartolomé, Chasseneuz (Bartholomaei Chassanaei), Catalogus gloriae mundi […], cit., p. 8,

maxime cons. 7 ss.. Toda a obre é muito interessante para o imaginário da honra, seus sinais (heráldica),
seus graus, suas fontes, etc..
1079 Além da concessão direta da nobreza, concessão de título ou ofício que exigissem nobreza

(“nobilitas causatur ex titulo (comitatus, ducatus, baroniae) & hoc est quod vocamus ‘de solar’", Jorge
de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 6).
1080 Era o caso da nobreza dos bascos.

1081Aristóteles, De anima, 1; Polit. 4, 4. Fontes jurídicas: João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit.,

p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 149); “Scientia homines nobiles facit”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...],
cit., tomo 4, ad 1, 35, gl. 8, n. 3; “unde bachelaureatus nobilitate fruitur”, Manuel Álvares Pegas,
Commentaria [...], cit., tomo 7, ad 1, 90, gl. 4, n. 9.
1082 Nihil aliud est quam inveterate divitiae”, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, n.

8; “[est] acquisita ex propria industria, vel divitiis”, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, n.
20.

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se levar uma vida nobre sem o apoio da riqueza 1084.


§ 752. Os fundamentos da perda da nobreza eram o reflexo, em negativo, dos
fundamentos da sua aquisição. Assim, a nobreza perdia-se por factos que
infirmassem a presunção de virtude (como a prática do crime de falso 1085), que
fizessem incorrer em infâmia (como a prática do crime de lesa majestade, Ord.
fil.5,6,9) ou que prejudicassem a reputação pública (como o exercício do comércio
sórdido ou de profissão vil) 1086.
§ 753. Se a reputação ocupa um lugar central na panóplia dos títulos de
aquisição da nobreza, os atos e trem de vida que geram essa reputação hão-de
constituir a melhor prova da nobreza. "O tratamento elegante manifesta a nobreza
de berço [...] e, assim, presume-se nobre aquele que se comporta como nobre em
todos os atos", escreve Jorge de Cabedo, no início do séc. XVI 1087). Mas, fora
destes casos de evidência, "a fama (e, ainda mais, as testemunhas de ouvir dizer,
sobretudo se são vizinhos e parentes) também provam a nobreza (tal como prova a
filiação e a consanguinidade)" 1088. Meios suplementares de prova eram, ainda
dentro da mesma lógica, o uso do nome paterno1089, o uso de armas e insígnias 1090
e, evidentemente, a carta régia de concessão de um título particular de nobreza, de
acordo com os regimentos do Paço ou a sentença 1091, como meio derivado de
consolidação de situações jurídicas.
3.1.5.3 Categorias.
§ 754. Ao falar de categorias da nobreza, podemos estar a falar de duas coisas
diferentes: de categorias doutrinais ou de categorias legais.
§ 755. As primeiras são consequências, no plano das classificações doutrinais,
da diferença dos títulos de aquisição. "A nobreza - escreve Melchior Febo - é
tomada em três aceções: primeiro, em função da estirpe, como na linguagem vulgar;
segundo, em função da virtude, como na linguagem filosófica; e, terceiro, em

1083 “Nobilitas plerumque consistit in divitiis”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73,

n. 5; Barthelemy Chasseneuz, Catalogus Gloriae mundi […], cit., p. 8, cons. 22.


1084“Nobilitas sine divitiis sordescit”, Manuel Barbosa, Remissiones doctorum [...], cit., ad 5, 139, n.

7. Sobre o tema, v. Álvaro Ferreira de Vera, Origem da nobreza [...], cit., 49 ss..
1085 Falso testemunho, ocultação de bens em fraude dos credores, falência (pois os falidos são

ladrões públicos, Ord. fil.5, 66), falta de cumprimento dos deveres de rendeiros reais relapsos (Ord. fil.2,
53), João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 164.
1086 Exercício de arte mecânica (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 12, ad 2, 60,

gl. 1, n. 6); mas a agricultura não prejudica a nobreza (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit.,
tomo 12, ad 2, 60, gl. 1, ns. 7/8). A nobreza perde-se pelo exercício por si do comércio, salvo costume
em contrário (Álvaro Valasco, Allegationes […], all. 13, ns. 217/233); “officium vile [quod] nullam
habet affinitatem cum nobilitate”, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 163;
em Espanha, todavia, não perdiam todos os privilégios, como, por exemplo, o de não pagarem
impostos, ibid. n. 168.
1087 Jorge de Cabedo Decisiones [...], cit., p.2, dec. 73, n. 14.

1088 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 15; Manuel Álvares Pegas, Commentaria

[...], cit., 3, ad I. 24, gl. 1, ns. 14/15.


1089 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 17

1090“Per immemorabile possessionem, illustratas armas, & insignias nobilium, nobilitas probatur”,

Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1, 24, gl. 1, n. 16. Sobre a importância dos
nomes e títulos, v. João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de nobreza…”, cit., per totum.
1091 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1, 24, gl. 1, n. 16.

240
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

função de uma coisa e outra, e esta é a nobreza perfeita, ou seja a generosidade


decorada com a grandeza de alma (Baldo, in L. nobiliores, Cod. commerc &
mercator)"1092. Mas, consideradas as coisas mais no plano estritamente jurídico, "a
nobreza ou é generosa e nativa, ou política" 1093.
§ 756. As segundas – as categorias legais - têm já um relevo mais
marcadamente institucional. Ou seja, servem para classificar as pessoas em vista do
seu enquadramento na hipótese de uma norma.
§ 757. Em Portugal, isto ocorria, desde logo, com as várias categorias de
nobreza previstas na lei, das quais se falará de seguida. Mas ocorria também com
uma classificação doutrinal, já antes referida, que aparece na doutrina a partir dos
meados do séc. XVI. Referimo-nos à classificação tripartida "nobreza", "estado do
meio", "povo". "Na república - escreve Gabriel Pereira de Castro, pelos inícios do
séc. XVII - o estado deve considerar-se de forma tríplice: um, o de nobre, outro, o
de mecânico e de artes sedentárias, e o último, dos privilegiados que, pela milícia ou
pela arte, escaparam aos ofícios sórdidos" 1094. Pela mesma época, alguns autores
integravam estes privilegiados na nobreza, embora os catalogassem como "nobres
de ínfima espécie". Era o caso de Melchior Febo que dizia dos nobres escusos de
oitavo que eram "de ínfima ordem, e de simples figura, que não dispunham daquela
glória dos que tinham adquirido a nobreza dos seus antepassados, apenas a tendo
por causa das suas riquezas; porém, o dinheiro não pode adquirir nem a virtude
nem a verdadeira geração"1095. Daí que, como ele expressamente acautela, estes
nobres nascidos plebeus não deviam ser admitidos nas confrarias reservadas aos
nobres. Já na segunda metade do séc. XVIII, Pascoal de Melo complicava um
pouco mais as coisas: "na sociedade civil, como sociedade desigual, convêm que
existam várias ordens de cidadãos: a primazia detêm-na a ordem dos patrícios;
depois a dos cavaleiros e a dos plebeus [...]. Os patrícios são os nobres por
excelência que, na cidade, obtêm junto do rei o principal lugar [...]. Por isso, aqui
apenas incluímos os que dantes se chamavam filhos d'algo e hoje chamamos
fidalgos" 1096. Mas, antes de tratar da terceira ordem, a do povo, falava de "um outro
género de nobreza" (3, 3, 14), constituído pelos que se ocupavam "nos ofícios e
funções civis" aos quais eram devidas honras, embora não fossem propriamente,
nem nobres (patricii), nem cavaleiros (equites). Tal seria o caso dos desembargadores
e dos restantes magistrados 1097, professores e doutores 1098. No povo, finalmente,
incluía os que não tinham “nenhuma nobreza”; ou seja, os que não se incluíam em
qualquer das anteriores categorias ou, ainda, na dos agricultores, já que "os
cultivadores dos campos são sempre de enumerar no conjunto dos nobres" 1099.

1092 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I. d. 106, n. 34; cf. também João de Carvalho, Novus et

methodicus tractatus […], cit., n. 200.


1093 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., I. dec. 106, n. 2; também. dec. 14, n. 10 e João de

Carvalho, Novus et methodicus tractatus […], cit., n. 264.


1094 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 113, n. 2.

1095 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 14, n. 11.

1096 Aqui incluía as sub-categorias de "ricos homens", "infanções", "vassalos", "duques",


"marqueses e condes", "viscondes e barões", "fidalgos da Casa Real" (Pascoal de Melo, Institutiones iuris
civilis, 2, 3, 3 ss.).
1097 Excluía os juízes ordinários.

1098 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 1.

1099 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 15.

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§ 758. Quanto às categorias correspondentes a graus especiais de nobreza


previstas nas leis, elas eram, em primeiro lugar, as várias categorias decalcadas dos
regimentos do paço do séc. XV para as Ordenações e cujo sentido e limites não eram
isentos de dúvidas nos últimos séculos do Antigo Regime; eram categorias como as
de ricos-homens 1100, infanções 1101 e vassalos 1102. Depois, os títulos de duques, marqueses,
condes, barões, viscondes 1103 ou, simplesmente, de senhores de terras 1104. Depois, ainda, as
várias categorias de fidalgos (de solar 1105, de cota de armas 1106 ou inscritos nos nossos
livros 1107 1108), de escudeiros 1109. E, finalmente, categorias como as de doutor ("feitos
doctores em studo universal per exame", Ord. fil.3, 59,4) 1110, licenciado 1111 1112,

1100 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 108; Manuel Álvares Pegas, Commentaria

[...], cit., 3, ad 1, 24, gl. 1, n. 11.


1101 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2I, dec. 107.

1102 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 106.

1103 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 105; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis, 2, ii, iii, vi ss..


1104 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 9.

1105 "Não se sabe o que são; parece serem nobres notórios, com solar", João Baptista Fragoso,

Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 173. Sobre o tema, cf. João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de
nobreza…”, cit., 125 ss..
1106 Cf. João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de nobreza…”, cit., 130 ss..

1107 (= cavaleiros), Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 14, ad I. 1, n. 54. Fragoso

diz que eram os que tinham armas concedidas pelo rei de armas. Opunham-se aos cavaleiros simples ou
cavaleiros de ordenanças (João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 146; cf.
ainda, Álvaro Valasco, Allegationes [….], cit., all. 13, ns. 4/11; João Pinto Ribeiro, Sobre os títulos de
nobreza, 128 s. 136 ss.).
1108 De acordo com o Regimento de 1572, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 10;

Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1. ad 1, 2, gl. 2, n. 4.


1109 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 106; João Pinto Ribeiro, “Sobre os títulos de

nobreza…”, cit., 138 ss. Segundo Manuel Alvares Pegas, escrevendo na segunda metade do séc. XVII,
haveria quatro espécies: (i) os que tinham foro de escudeiros da Casa Real dado pelo rei (v. Ord. fil.1, 65,
30); (ii) os que tinham foro na Casa Real por carta especial (só tinham os privilégios desta) (Ord. fil.2, 45,
38); (iii) os criados ou escudeiros de fidalgos (v. Ord. fil.2, 45, 38; 5, 139, pr.); (iv) os escudeiros de
linhagem (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 14, ad 1, 66, n. 102). Segundo Melchior
Febo, os escudeiros não costumavam ser nobres; o título era usualmente dado a plebeus e mecânicos e
filhos de plebeus, nomeadamente quando iam à India em serviço do rei (Melchior Febo, Decisiones [...],
cit., p. 1, dec. 106, n. 38).
1110 Eram equiparados a cavaleiros confirmados; tinham os mesmos privilégios dos bispos, abades

beneditinos e fidalgos (Ord. fil.5, 120); cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p. 1. liv. 3, disp. 6,
n. 144/5; João de Carvalho, Novus et methodicus tractatus […], cit., n. 265. Os filhos dos doutores
estavam incluídos, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 161 (ou 162 noutras edições), n. 4/5;
os doutores jubilados ou eméritos eram equiparados a condes, n. 6.
1111 Havia dúvida sobre a sua nobreza, n. 7; mas, segundo a jurisprudência palatina, o
entendimento comum era o de estavam equiparados aos nobres pelo menos para alguns efeitos legais
(maxime, necessidade de legitimação dos filhos), Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 11 (ou
12), n. 8; João de Carvalho, Novus et methodicus tractatus […], n. 278. Sobre os bacharéis, ibid. 284 (era
discutido).
1112 Quanto aos advogados, eram equiparados aos cavaleiros (L. qui advocati, Cod. advocat divers. jur.

C.2, 7), segundo decisão da Casa da Suplicação (pelo menos para os efeitos da Ord. fil.3, 59), Melchior
Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 161 (ou 162 noutras edições), n. 9. Quanto aos médicos, apesar de
dificuldades com textos do direito romano que os referiam como exercendo um ofício vil, era certo e
julgado na Casa da Suplicação (decisão de 1595) que gozavam dos mesmos privilégios que os doutores
em teologia e direito, mesmo que não fossem doutorados, ns. 15/16; mas devia distinguir-se entre a
medicina especulativa e a cirúrgica, sendo esta mecânica, ns. 18/19; o boticário era nobre (Melchior

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

juiz 1113mercador 1114, com um regime de privilégios e isenções que decorria mais do
direito comum do que do direito régio1115.
3.1.5.4 Efeitos da nobreza.
§ 759. Constituindo uma disposição espiritual, a nobreza consistia numa
inclinação do espírito para certas virtudes1116, nomeadamente, para as mais
necessárias ao exercício da autoridade (magnanimitatem, magnificentiam, affabilitatem,
docilitatem, industriam politicam). Esta disposição interior provocava a aptidão dos
nobres para realizar grandes empresas (ex nobilibus nobiles res procreantur1117). Era
precisamente esta capacidade que recomendava os nobres para os cargos de
governo1118 e que justificava que os seus serviços fossem mais remunerados1119.
§ 760. Para além destes efeitos gerais do estado de nobreza, a lei atribuía aos
nobres certos privilégios particulares, de natureza fiscal, civil, processual e penal,

Febo, Decisiones [...], cit., 1619, I. ar. 65). Quanto aos notários, foi julgado frequentemente na Casa da
Suplicação (Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 161 (ou 162 noutras edições), n. 22), com
base em textos do direito romano que os declaravam servos públicos. que exerciam um ofício vil, não
adquirindo, antes perdendo, a nobreza. Mas Melchior Febo, Decisiones [...], cit., contrariava este ponto
de vista: o notário era um servo público, não porque fosse escravo e carecesse de personalidade, mas
porque servia um múnus público, sendo obrigado a prestar serviço a qualquer pessoa do povo; neste
sentido, seriam servos públicos todos os que servissem os ofícios da república. Opina, por isso, que o
cargo não tirava a nobreza, embora não a desse, como vira frequentemente julgado, ns. 20-28. No
mesmo sentido, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad 1, 23, gl. 1, n. 4 ss.. Sobre os
pintores, entendia-se, nos finais do séc. XVI, que o costume da pátria os incluía entre os mecânicos,
apesar de alguns privilégios de nobreza, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 113. Sobre
estas categorias, também João de Carvalho, Novus et methodicus tractatus […], cit., 278 ss..
1113 A nobreza do juiz depende do costume do lugar; em geral, só os juízes de vilas notáveis (mas

não os das terras pequenas ou os de vintena) - e os seus filhos - são considerados nobres (Melchior
Febo, Decisiones [...], cit., I. ar. 124; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 3, 14).
1114 São nobres para efeito de escusarem de pena vil (Ord. fil.5, 139), se exercem a mercancia de

forma nobre (L. nobilibus, cod. commerciis, & mercaturis). Em todo o caso, a questão era controversa,
devendo observar-se o costume da pátria, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., 1, dec. 161 (ou 162
noutras edições), n. 29 s..
1115 Sobre todas estas categorias no direito dos finais do séc. XVIII, quando já ofereciam dúvidas

de interpretação por estarem em desuso, v.: Sobre “senhores de pendão e caldeira”, Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, 2, iii, iii; sobre “infanções”, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, ii, iv; sobre
“vassalos”, senhores das terras e “acontiados”, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 5 e 2, 5, 9;
sobre duques, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 6; sobre marqueses e condes, 2, 3, 7; sobre
viscondes e barões, 2, 3, 8; sobre “grandes” (incluindo aqui os duques e seus filhos, o Grão-prior do
Crato, os arcebispos e bispos, os cónegos da Patriarcal e os titulares), 2, 3, 9; sobre fidalgos da casa
real, 2, 3, 10; sobre os cavaleiros das ordens militares, 2, 3, 13; sobre a nobreza de letras (nobreza civil):
desembargadores, magistrados e professores das Faculdades jurídicas, 2, 3, 14.
1116 Sobre os vícios e virtudes dos nobres, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 4,

ad 1, 35, gl. 4, n. 4; tomo 6, ad 1, 74, gl. 2, ns. 7-12; "politici, & urbani, ac bene morati; nobilitati
omnes virtutes famulentur, maxime magnanimitas, & magnificentia, docilitas, & affabilitas" (João
Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 3, disp. 6, n. 136 in fin.). Também teriam defeitos típicos
(ingrati, illiberales, libidini dediti, ibid. n. 135).
1117 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 3, ad I. 24, gl. 1, n. 8.

1118 “Praeferendi sunt ad honores, & magistratibus, & dignitates (saeculares et spirituales)”, Jorge

de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n. 7; “nobiles, & non ignobiles sunt eligendi ad
gubernationes, & officia publica reipublicae”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad
1, 1, gl. 5, n. 4; “Caeteribus paris anteponendi”, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 73, n.
7.
1119 “Maioribus gratiis, beneficiis, & privilegiis munerandi sunt nobiles, & magnates, quam

inferioris gradus homines”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad 2, 45, gl. 2, n. 1.

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em geral já referidos.
3.1.6 Plebeus e outros estados.
§ 761. Com a tendência que se verifica, desde o séc. XVII, para o alargamento
da nobreza, na qual se vai incluindo, como categoria mais baixa, o próprio “estado
do meio”, o estatuto de plebeu tende a ser equiparado ao dos que exercem ofícios
assalariados e ao dos artífices (ou seja, os que exercem artes não liberais, mechanici,
mecânicos). É esta a lição de Pascoal de Melo que faz questão de afirmar
expressamente que os agricultores (que não dessem dias a outrem, entenda-se) eram
nobres1120.
§ 762. Em face das Ordenações, que estabelecem regimes jurídicos (embora de
detalhe) para certas categorias de pessoas, pode dizer-se que o direito português
previa outros estados. Seria o caso dos moedeiros (Ord. fil.2,62), dos bombardeiros,
dos desembargadores (Ord. fil.2,59), dos rendeiros das rendas reais (Ord. fil.2,63).
3.1.7 Pessoas miseráveis.
§ 763. As pessoas ditas miseráveis – órfãos, viúvas honestas, regulares das
ordens mendicantes, freiras e outras que o juiz, segundo o seu arbítrio, considerasse
como tais1121 - tinham um estado próprio, que lhes permitia, designadamente,
podiam escolher o juiz – da corte, da comarca ou da terra (Ord. fil.3,5,3) -,
obrigando a outra parte a vir a esse foro.
§ 764. Manuel Álvares Pegas ensaia uma enumeração das pessoas que cabiam
nesta categoria, baseada na literatura jurídica da época.
§ 765. Segundo ele, seriam miseráveis – em geral, “aqueles cuja natureza nos
move a compadecermo-nos em virtude da injustiça que a sorte lhes fez” 1122. De
onde fossem considerados como tais os cativos e os recém-libertados das cadeias
(n. 42); os estranhos ao lugar e os recém-chegados (n. 43); os doentes (n. 44); as
comunidades religiosas, os hospitais e os mosteiros (n. 45) 1123, os agricultores (n.
46), as meretrizes (n. 47), os expostos (n. 47), os velhos (n. 48), os mercadores em
viagem (n. 48/49), os viajantes carecidos de meios de sustento (n. 51), aqueles que
não têm com que se vestir (n. 51), os que têm várias filhas casadoiras a quem
devam dote (n. 53), os que foram privados de todos os seus bens por sentença (n.
54)1124.

1120 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 3, 15.


1121 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Personae miserabiles”, n. 1423; ibid. “Miserabiles
personae”, n. 1276; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit, p. 1. dec. 54, n. 9; Álvaro Valasco,
Allegationes […], cit., all. 66, n. 27.
1122 Em Commentaria [...], cit., 13, ad Ord, 3, 5, gl. 5, cap. 6, n. 40..

1123 Nestes casos, a ideia que funcionava era, tanto a da existência de votos de pobreza, como a

das necessidades dos doentes ou dos monges. Mas também a de uma diminuição da capacidade jurídica
das comunidades, que se manifestam noutras situações. O mesmo autor refere uma pretensão das
monjas de S. Bernardo de Tavira de serem miseráveis, num processo contra Mateus Gonçalves
Rendeiro, em 1665 (Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses practicabiles […], tomo 2, cap. 11, n.
106); realmente, as Ordenações “concediam o privilégio a todas as monjas, enquanto miseráveis, e isto
quer sejam ricas, quer tenham jurisdição” (ibid. ).; no entanto, Pegas julga de excluir as que têm
jurisdição, restringindo-o às comunidades das ordens mendicantes, que não têm bens (enumerando as
de S. Francisco, S. Domingos, Santo Agostinho, Carmelitas e Jesuítas) (ibid. ).
1124 V. Ord. fil.3, 5, 3.

244
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 766. Ao definir a causa da miséria, Pegas refere-se, não à injustiça, mas à


“injustiça da sorte”. Esta fórmula ambígua reflete-se nas dificuldades da resposta à
pergunta de saber se uma classe dos miseráveis, os que careciam apenas de bens
materiais – os pobres - poderiam tomar pela força aquilo de que tivessem
necessidade; por exemplo, se podiam roubar para comer.
§ 767. Os juristas eram muito cuidadosos com essa questão. Contudo, a ideia
de que os pobres tinham um direito natural aos bens excedentes era largamente
dominante.
§ 768. Constatemos, logo desde o início que, de acordo com o pensamento
teológico-jurídico dominante - tal como foi expresso pelos grandes juristas ibéricos
da segunda metade do séc. XVI, na sequência de uma tradição textual anterior –, os
pobres1125 tinham um direito reconhecido a ser auxiliados, a que correspondia o
dever das pessoas comuns (ou das corporações, como misericórdias, câmaras,
tribunais) de os ajudar. Os próprios poderes colaboravam no cumprimento deste
dever, criando impostos com finalidades caritativas, recolhidos ou nas “arcas das
[obras] pias”, existente nos concelhos ou arrecadados por estruturas criadas para o
efeito, como as mampostarias dos cativos, cuja missão era arrecadar e administrar
os donativos e as taxas destinadas a remir os cativos e tratar das negociações da sua
remissão.
§ 769. S. Tomás de Aquino (1225(?)-1274) discute o tema na Summa Theologica
(2a.2ae, qu. 32). Uma das questões versa o tópico de saber se a esmola é um ato de
caridade ou um ato de justiça (qu. 32, art. 1). Neste último caso, haveria um dever
jurídico de esmola e um correspondente direito à esmola, ou mesmo à partilha
equitativa dos bens. São Tomás exclui que as esmolas constituam qualquer espécie
de retribuição (pelos pecados, em vista da salvação), assim, que pertençam à esfera
da justiça. Contudo, ao discutir a questão “Se dar esmolas é uma matéria obrigatória
(artº 5), ele sublinha que cada um tem o dever externo de ajudar os pobres, imposto
pela razão natural, a qual – acrescento eu – também é, para São Tomás, a fonte do
direito natural. Portanto, embora não seja concebido como um dever legal, dar
esmola é, contudo, classificado como uma espécie de dever, de um nível superior,
decorrente da razão natural, cuja exclusão da esfera da justiça se explicava, não pela
inexistência de um dever, mas fundamentalmente pela falta de um direito
correspondente.
§ 770. Mas porque é que não havia um direito à esmola ? Não por razões
substanciais, nomeadamente por causa do caráter absoluto do direito de
propriedade (dos ricos). São Tomás desenvolve o tema da propriedade de um
modo que nega o seu caráter absoluto e a transforma numa espécie de
compropriedade com os necessitados: “Os bens temporais que Deus nos deu –
escreve ele (ibid.) – são nossos enquanto propriedade; mas no que respeita ao seu
uso, eles não nos pertencem só a nós, mas também àqueles que nós podemos
socorrer com aquilo que temos para além das nossas necessidades” 1126.

1125 O tratado peninsular mais completo sobre o estatuto dos pobres é o de Gabriel Alvarez de

Velasco, De privilegiis pauperum et miserabilium personarum […], cit.. Cf. ainda, Gaspar de Baeza, Prima pars
Tractatus de inope debitore […], cit.. Para Portugal, Bento Gil, Tractatus de jure, et privilegiis honestatis in duo
diviginti articulos […], cit.
1126 A frase seguinte, num tom pré-proudhoniano, quase considerava as desigualdades da
propriedade como um roubo (de uso): “Daí que S. Basílio diga […] O que se passa é que tu escondes o

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§ 771. Mais tarde e mais próximo, Domingo de Soto elaborará sobre este
ponto1127, concluindo que, se um direito à esmola não estava formalmente
garantido, esta falha legal relacionava-se primordialmente com um aspeto técnico: o
facto de que, quer o supérfluo dos ricos, quer o necessário aos pobres, ter que ser
acertado por uma decisão prudencial (de um tribunal, porventura) 1128,
determinando o que era o supérfluo e o necessário de cada um dos ricos e dos
pobres, respetivamente. Isto tornaria o direito dos pobres em algo de meramente
virtual. Foi por isso que, mais tarde, haveria de ser introduzida uma nova política da
pobreza que dava a autoridades públicas o poder de tomar a seu cargo o auxílio aos
pobres, de acordo com critérios objetivos e gerais (“pobres merecedores”).
§ 772. Neste momento, ocorre salientar dois traços principais.
§ 773. Em primeiro lugar, que a teologia europeia tradicional – e, com ela, o
direito – atribuía aos pobres reais direitos de partilhar os recursos criados pela
providência divina, pelo menos na medida das suas extrema necessidade e caráter
supérfluo dos bens disponíveis. A concessão destes direitos incluía o
reconhecimento do direito de autoapropriarão, mesmo por furto nos casos
extremos. Embora não tivesse chegado a configurar um verdadeiro dever de dar
esmola. Este último passo só é dado – e posto a cargo dos poderes públicos – com
regimentos urbanos dos finais do séc. XVI, antecipando o que virá a acontecer com
o atual Estado-Providência (ou de Bem-Estar, Wohlfahrtsstaat)1129.
§ 774. Para além disso, o direito estabelecia uma especial proteção dos pobres
e outras pessoas miseráveis, concedendo-lhes privilégios de foro, que lhes
permitiam avocar as causas em que interviessem para o tribunal da corte, tal como
acontecia com os desembargadores 1130. Isto porque, “inspirando a natureza a
piedade pelo seu abandono pela fortuna” (ibid. n. 42, pg. 182), se entendia que a
grandeza de alma (magnanimitas) do rei lhes criaria uma situação mais favorável
nesses tribunais. Esta vantagem – que, realmente, podia representar apenas alguma
comodidade ou mesmo apenas uma distinção simbólica, obrigando a outra parte a
prescindir do seu foro e a ter que propor a ação no foro da parte privilegiada –
fazia, apesar de tudo, com que a qualidade de pobre fosse artificialmente procurada;
como acontecia com os pais de muitas filhas nobres, que tinham obrigação de
dotar 1131.
§ 775. No entanto, a pobreza podia facilmente transbordar os limites da
ordem social, sobretudo nume época de fome e miséria endémicas, assumindo

pão que mata a fome dos pobres; que tu deitas fora o vestido do homem nu, que tu atiras para o lixo os
sapatos do descalço, que tu enterraste o dinheiro daquele que precisava; e que, deste modo, tu cometes
uma injúria [um ato ilícito] em relação a todos os que podias ajudar”. Santo Ambrósio expressa-se do
mesmo modo (ibid. ).
1127 Com detalhes, sobre as posições de Domingo de Soto, António Manuel Hespanha, Imbecillitas

[…], cit., cap. 8.


1128 Domingo de Soto, De iustitia & iure, Lib. 5, qu. 3, cit..

1129 Cf. detalhes em António Manuel Hespanha, Imbecillitas […], cit., cap. 8.

1130 Cf. para Portugal, Ord. 3, 5, 3: comentário extenso em Manuel Alvares Pegas, Commentaria da

Ordinationes [...], tom. 13, ad dicta Ord. p. 181 ss.; Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs. 52,
n. 1.
1131 Cf. Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses practicabiles [...], cit., tomo 2, cap. 11, n. 106 (p.

828).

246
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

formas de logro 1132 ou mesmo violência individual ou coletiva. Daí que os pobres
comecem a ser hierarquizados quanto aos seus méritos para receberem esmolas. Se
compulsarmos juristas do séc. XVII – por exemplo, Manuel Álvares Pegas 1133 -
vemos como estes méritos realmente não se relacionavam com a miséria ou
pobreza (inopia, paupertas), mas com características que indiciavam a sua maior ou
menor conformidade com os padrões da ordem. Assim, no caso de terem que se
escolher os pobres a contemplar com um legado testamentário “a favor dos
pobres”, deveriam ser escolhidos os mais pobres, mas também os mais nobres,
começando pelos “parentes [do falecido], os da mesma cidade ou paróquia” 1134, os
religiosos (ibid. ns. 10-3). Ao mesmo tempo, incapacidades jurídicas indignificadoras
vão-se acumulando sobre os pobres
§ 776. A idoneidade dos pobres para testemunharem com verdade é posta em
causa, a menos que gozassem de fama comprovadamente boa e o rico contra quem
testemunhassem a tivesse, pelo contrário, má. Não é que fossem necessariamente
desonestos; porém, “podia-se suspeitar que aceitassem facilmente dinheiro para se
deixarem corromper” 1135. Outros 1136, embora considerassem as fraquezas dos
estados de riqueza e de pobreza, acabavam por se inclinar, no momento de
decidirem a quem atribuir posições sociais de destaque, pelos ricos: contra os
pobres estaria que a sua vida está privada de atividade intelectual (n. 20) ("tenues, et
exhausti sunt"); contra os ricos, o facto de que a riqueza raramente seria irmã da
virtude, para além da sua tendência para a preguiça. Porém, entre os dois extremos,
escolhe a riqueza, pela tranquilidade de espírito que dá (n. 21); além de que, nos
tempos que corriam, não se reputaria ninguém de digno de honra senão os ricos (n.
21), pela sua influência, reputação e esplendor. Manuel Álvares Pegas abunda
também neste elogio da riqueza e suspeição da pobreza; as riquezas conservam a
retidão e favorecem a nobreza 1137, pois tal dignidade torna-se sórdida sem a
abundância (ibid. n. 2); daí a utilidade da riqueza para a República e para os
cidadãos: manter a igualdade; fazer temer a torpeza; permitir viver dos seus bens,
com esplendor; manter o brilho, decoro e honra das famílias (m. 19) e, com isto, a
riqueza cria ou induz a nobreza 1138; ao passo que os pobres facilmente se
corrompem e, por isso, tornam-se suspeitos (n. 19).
§ 777. Em suma, o estatuto bem aventurado dos pobres cede cada vez mais
perante o esplendor social e político da riqueza, cada vez mais aliada à
honorabilidade e à nobreza. O mundo dos pobres é, progressivamente, não este,
mas o Outro.
§ 778. Por outro lado, assistimos a uma concentração no Estado de políticas

1132 Citando o poeta Juvenal, Manuel Álvares Pegas considera que “os pobres são capazes de

todos os ludíbrios”, pelo que devem ser afastados de todos os cargos de autoridade (Commentaria ad
Ordinationes [...], cit., Tom. I. ad tit. 1, 1, gl. 20, ns.12 a 15 (p. 179).
1133 Nos seus Commentaria ad Ordinationes [...], cit., tom. 4, ad 1, 62, § 16, gl. 23, ns. 10 ss. e nas

suas Resolutiones forenses [...], cit..


1134 Admite-se que o testamenteiro se possa beneficiar a si mesmo ou aos seus filhos, se forem

pobres (ibid. n. 13)


1135 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1. Liv. 5, p. 602.

1136 Cf. g. António de Sousa de Macedo, Perfectus doctor […], 1643, c. 7. “Divitiae”.

1137 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad. 1, 1, gl. 19, n. 7.

1138 Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad. 1, 90, gl.8, n. 1.

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destinadas a responder a problemas sociais (desde a pobreza à violência). Até ao


séc. XV, as competências para lidar com estas questões estavam dispersas e
emaranhadas, permitindo um leque alargado de formas de intervenção social e uma
constelação complexa de formas de legitimação dos processos de terapia social. A
partir de agora, tudo tende a concentrar-se nas mãos do Estado; os deveres (morais
e quase-legais) relativos aos pobres tendem a desaparecer, o mesmo acontecendo ao
direitos destes de partilhar – mesmo pela força – os bens de que necessitassem de
uma forma considerada como extrema. O que deles fica, é a imagem da sua
dependência, fragilidade, plasticidade em relação aos poderosos – quase como
meninos -, mesclada com a da sua eventual violência desesperada e do potencial
perigo que isto representava, quer para a ordem social, quer para os bens dos ricos.
3.1.8 Mulheres.
§ 779. A condição da mulher 1139 - concretizada nos usos da linguagem, em
preceitos cerimoniais e de etiqueta, em normas jurídicas - decorria de modelos de
leitura (ou de construção) da natureza depositados na tradição cultural europeia. A
imagem da mulher contida nesta tradição era consistente, podendo explicar, não
apenas as práticas habituais, mas também as normas de comportamento, os
preceitos morais e as normas jurídicas. O direito participava deste sistema de pré-
compreensões profundas sobre a identidade e a natureza dos sexos e recebia dele as
suas intuições fundamentais1140. No entanto, como saber prático de um mundo
social em que as mulheres não eram mais do que seres passivos e menorizados, o
direito diferenciara-se como sistema produtor de imagens sobre o feminino.
§ 780. O feminino era, em geral, irrelevante (inexistente), sendo denotado pelo
masculino tanquam corpus a capite sua [tal como o corpo o é pela sua cabeça]. Porém,
quando a imagem da sua particular natureza o faz irromper no direito, o próprio
direito explicita os traços da sua pré-compreensão da mulher, traços que o saber
jurídico amplifica e projeta socialmente em instituições, regras, brocardos e
exemplos - fraqueza, debilidade intelectual, olvido, indignidade.
§ 781. Percorramos mais detidamente os traços desta imagem da mulher.
§ 782. O primeiro traço é o da sua menor dignidade, o que incapacitaria as
mulheres, nomeadamente, para as funções de mando. O texto fundador era, neste
caso, um passo de Ulpianus, inserido no Digesto: "As mulheres estão afastadas de
todos os ofícios civis ou públicos; e, por isso, não podem ser juízes, nem
desempenhar magistraturas, nem advogar, nem dar fianças, nem ser procuradoras"
(D.50.17,2). O princípio já aparecia nos filósofos. Aristóteles enunciava-o e
justificava-o. S. Tomás de Aquino, um bom leitor de Aristóteles, partilhava destes
pontos de vista sobre a condição feminina 1141. Na Summa theologica 1142, uma obra
que influenciará decisivamente toda a cultura europeia, antes e depois de Trento,
ele manifestou a opinião de que as mulheres eram infelizes acidentes da natureza.

1139 Rui Gonçalves, Dos privilegios e praerogativas que ho genero feminino tem por direito
comum & ordenações do Reyno […], cit..
1140 Sobre o estatuto da mulher no direito comum, v. por todos, Helmut Coing, Europäisches

Privatrecht. cit., 1, 234 ss..


1141 Sobre a condição feminina em S. Tomás, Otto H. Pesch, Tomás de Aquino […], 246-271.

1142 Summa theol. 1a.2ae, qu. 92.1 ad 1.

248
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Também as fontes religiosas convinham nesta inferioridade da mulher. O relato da


criação da mulher (Génesis, 1,2,18), bem como a da sua parte na tentação de Adão e
sua consequente condenação por Deus (Génesis, 1,3) têm efeitos devastadores muito
duradouros sobre a imagem da dignidade da mulher. No universo dos textos
jurídicos, a presença desta imagem é constante. O Decreto de Graciano - que recolhe
muito da tradição patrística, fortemente antifeminista - está cheio de referências à
menor dignidade da mulher, aos seus fundamentos e às suas consequências: "É da
ordem natural em tudo, que as mulheres sirvam os maridos, os filhos e os pais; pois
não constitui nenhuma injustiça que o menor sirva o maior" (Decreto, pt. 2, C. 33, q.
V, c. 12) 1143. O pecado original ainda agravara a desigualdade, pois "foi Adão quem
foi enganado por Eva e não Eva por Adão. Foi a mulher quem o atraiu para a
culpa, pelo que é justo que seja ele a assumir a direção, para que, por causa da
facilidade das mulheres, não volte a cair" (Decreto, pt. 2, C. 34, q. V, c. 18). A quebra
desta hierarquia corresponderia a sacrilégio: "como a cabeça da mulher é o marido,
mas a cabeça do marido é Cristo, toda a mulher que não se submeter a seu marido,
isto é, à sua cabeça, torna-se ré do mesmo crime do homem que não se submeta a
Cristo, sua cabeça [...]. Mesmo as mulheres gentias servem seu marido segundo uma
lei comum da natureza" (Decreto, pt. 2, C. 33, q. V, c. 15).
§ 783. Esta pré-compreensão da mulher como ser degradado desentranha-se,
no decurso da tradição jurídica europeia, em consequências normativas, algumas
das quais são meras extensões dos lugares das Escrituras, comunicadas ao direito
pela sua receção no direito canónico.
§ 784. Diretamente do Levítico se extraía a consequência de que mulheres,
mesmo as consagradas a Deus (as freiras), estão proibidas de tocar os vasos ou
vestes sagradas (Decreto, I. dist. 23, c. 25). A regra paulina sobre a sujeição das
mulheres aos homens - nomeadamente, a sua proibição de que a mulher domine o
homem - combinava-se com o já citado passo ulpinianeu do Digesto (D. 50, 17, 2) e
gerava uma tradição formidável de interdições quanto ao acesso das mulheres a
tudo quanto pudesse ser entendido como lugar de magistério ou de mando.
§ 785. No plano do direito canónico, estava-lhes vedado o sacerdócio, pois
este implicava jurisdição e magistério. Bem assim, todos os atos avulsos desta
natureza. As abadessas ou outras superioras, por exemplo, não podiam pregar,
benzer ou ouvir as monjas em confissão (Decretais, V, 38, 10) 1144. Por maioria de
razão, "qualquer mulher, ainda que douta, não deve ensinar em reunião de
homens". Mas também não podia batizar (Decreto, I. d. 23, c. 20).
§ 786. Pelo direito civil, como já se viu, "as mulheres estavam afastadas de
todos os ofícios civis ou públicos; e, por isso, não podiam ser juízes, nem
desempenhar magistraturas, nem advogar, nem dar fianças, nem ser procuradoras"
(D. 50, 17, 2).
§ 787. O direito comum aplicava este princípio, com algumas limitações, ao

1143 A fonte é S. Agostinho (Quaestiones in Genesim, (em http://www.


documentacatholicaomnia.eu/02m/0354-0430, _Augustinus, _Quaestionum_In_
Heptateuchum_Libri_Septem, _MLT.pdf), liv. 1, qu. 153.
1144"Mulier nos potest ordinari quia est incapax ordinis clericalis[...] nec potest exerceri spiritualia,

neque tangere sacra vasa [...], neque potest accedere ad altare [...] neque potest praedicare, neque publice
docere, quamvis sit docta, & sancta, quoniam hoc est officium sacerdotale" (António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mulier", n. 2).

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mundo político medieval e moderno. Assim, vedava às mulheres, em princípio, o


exercício de magistraturas e de lugares que importassem jurisdição, a sucessão nos
feudos e nas alcaidarias1145.
§ 788. Esta recusa de capacidade política às mulheres tinha, depois,
consequências na sua capacidade sucessória relativamente a todos aqueles bens que
contivessem alguma dignidade: feudos, morgados, ofícios e regalia 1146 (v. cap.
5.4.4). "As mulheres não costumavam suceder nos castelos, que costumavam ficar
para os filhos, pro dignitate, & consuetudine familiae [a bem da dignidade e memória da
família] ", escreve, no séc. XVII, Agostinho Barbosa 1147.
§ 789. Em Portugal, o princípio da incapacidade política feminina é recebido
na Lei Mental (primeira metade do séc. XV), que exclui as mulheres da sucessão
nos bens da coroa (Ord. fil. II, 35, 4). "As mulheres - escreve Jorge de Cabedo no
início do século XVII 1148 - são incapazes de serem donatárias de bens da coroa,
estando proibidas de os possuírem. A razão é patente, pois tais bens compreendem
muitos atos de jurisdição, como são julgar, nomear ouvidores para julgar, confirmar
os juízes eleitos, apresentar tabeliães e outros magistrados e, de vez em quando,
nomear alguns ofícios. A incapacidade compreende também regalia, como os ofícios
dos castelos, que são os chefes dos castelos a que chamamos Alcaides mores dos
castellos, os quais também não competem às mulheres, nem estas os podem exercer
por si, pois não pertencem a mulheres atos de guerra, como também não lhes
pertencem os atos de jurisdição, l. foeminae [...] Estas proibições existem, a não ser
que o Príncipe conceda especialmente a mulheres estes cargos".
§ 790. O mundo medieval e moderno europeu participava, no entanto, de
outras tradições jurídicas e políticas que outorgavam papéis políticos diferentes ao
feminino. Conhecia rainhas, condessas, senhoras de terras, padroeiras de mosteiros,
que exerciam prerrogativas de mando e que, enquanto senhoras, exerciam também
a jurisdição. O direito feudal lombardo - que, através dos Libri feudorum incluídos no
Corpus iuris civilis, influenciava o direito feudal e senhorial de toda a Europa -
conhecia a sucessão feminina dos feudos. Se isto não foi suficiente para obliterar a
tradição judaica, foi pelo menos bastante para temperar as opiniões quanto ao
fundamento da exclusão das mulheres dos cargos de dignidade. Se havia costumes e
leis que as admitiam, se, além disso, a história era abundante em exemplos de boas
governantes, é porque a incapacidade política da mulher não podia decorrer de um
defeito do sexo; mas apenas de um costume criado em certas nações, atenta a
honestidade e o pudor femininos 1149. "A mulher - sintetiza António Cardoso do
Amaral -, segundo costume prescrito, não pode ter jurisdições, exercê-las por si,

1145 A opinião é comum. Cf. em Portugal, Álvaro Valasco, Decisiones […], dec. 120, n. 3; 157, n.

8; António da Gama Pereira, Decisiones […], dec. 337, n. 2; António Cardoso do Amaral, Liber […],
cit., s. v. “Mulier", n. 4.
1146 Manuel A. Pegas, Commentaria […], tomo 11, cap. 69, n. 3 ss.; Jorge de Cabedo, Decisiones

[…], p. 1. dec. 208; já nas sucessões de bens indiferentes (como os bens alodiais ou enfitêuticos), o
varão não deve preferir a mulher (António Gama, Decisiones […], dec. 194, n.3; Álvaro Valasco,
Decisiones […], cit., cons. 157, n. 7.
1147 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], cit., De apelativa, s.v. "Filius", n. 61.

1148 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, 27, 1 ss..

1149 Codex, tit. de mulieribus in quo loco munero sexui congruentia vel honores adgnoscunt, C,

10.64.

250
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

julgar e dar sentenças. À mulher não é proibido julgar e ter jurisdição por causa da
capacidade, mas por causa da honestidade [...] não porque careça de juízo, mas
porque foi recebido que não exerça ofícios civis" 1150.
§ 791. Mesmo que esta tradição literária, fundamentalmente judaica, da
indignidade das mulheres pudesse ser cancelada, restava ainda a tradição, essa
predominantemente clássica, da sua fraqueza e fragilidade.
§ 792. Os juristas eram unânimes em considerar que as mulheres careciam das
capacidades suficientes para se regerem por si só. "As mulheres, em razão da
ignorância, equiparam-se às crianças", escrevia Pegas 1151, recolhendo uma opinião
comum. "O seu engenho é móvel [...] a sua disposição vária e mutável, como diz o
poeta, presumindo-se que se deixam facilmente mover com carícias", continuava
Pegas 1152. Daí que já o direito romano lhes tivesse proibido, pelo
Senatusconsultum Velleianum, dar fianças, para evitar que cedessem às manobras
de sedução dos devedores 1153. Seriam naturalmente ignorantes, como os meninos e
os rústicos, não sendo de presumir que conhecessem o direito 1154. Daí que a Glosa
enumerasse os casos em que essa ignorância lhes valia como escusa 1155. António da
Gama, discutindo um caso concreto de instituição de um morgado por uma mulher
e perguntando-se se seria relevante averiguar da intenção da instituidora quanto à
ordem sucessória observa que a pobre mulherzinha (muliercula), como qualquer
mulher, não podia entender as ficções e subtilidades do direito1156.
§ 793. Por tudo isto, as mulheres tinham de estar sujeitas à tutela de
alguém 1157. Antes do casamento, estavam sob a patria potestas do seu pai. Depois,
estavam como pupilas debaixo da curatela do marido. De qualquer modo, "por
causa da fragilidade do sexo e da sua pior condição [...] não se devem intrometer
nas reuniões dos homens" 1158; não podiam ser fiadoras (Ord. fil.4,61); não podiam
ser testemunhas nos testamentos (Ord. fil.4, 76); nos delitos eram castigadas mais
brandamente.
§ 794. Esta fragilidade do sexo (imbecillitas sexi) faziam com que, nas mulheres,
tudo se perdesse: a família, o estado 1159, o nome, a memória. "A mulher chefe de
família é o fim da família", concluía Tomé Valasco 1160.

1150 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Mulier", n. 5.


1151 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 4, ad Ord, 1, 62, gl. 43, n. 5 ss..
1152 Jorge de Cabedo, Practicarum observationum [...], cit., p. 1, dec. 114, n. 9.

1153 Cf. D. 16, 1; C.4, 29, Ord. fil. 4, 61; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 138, n. 23.

1154 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., 138, n. 24 (embora devam consultar peritos em

direito).
1155 Gl. in l. fin Cod. de juris et facti ignorantia, C.1, 18.

1156 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 307, n. 3 (“quaequidem mulier fictiones iuris

& et eas subtillitates, non poterat considerare”).


1157 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Mulier", n. 29.

1158 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Mulier", n. 1.

1159 "A mulher filha de nobre, ao casar com plebeu, perde a dignidade nobre", António Cardoso

do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Mulier", n. 27. Esta "ductilidade" da mulher também lhe permitia
aproveitar a nobreza do marido (C.12, 1, 13; Manuel A. Pegas, Commentaria […], tomo 7, ad 1, 90,
gl.18, n. 1).
1160 Tomé Valasco, Allegationes […], all. 29, n. 10; Manuel A. Pegas, Commentaria […], tomo 11,

ad 2, 35, cap. 181, per totum ("A linha masculina é a linha que começa num varão e neles se continua
sem qualquer mulher ou interposição de seus descendentes [...] A linha feminina é a que começa na

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§ 795. Esta era uma das razões que, a mais da sua menor dignidade, leva a
excluir as mulheres da sucessão em que o sucessor ou a lei tivessem tido em vista a
conservação dos laços familiares que então mais contavam - os laços agnatícios 1161.
Isso acontece, frequentemente, nos bens vinculados à memória da família, como os
morgados e, em Portugal, é estabelecido, em geral, para os bens da coroa.
§ 796. A pré-compreensão do feminino de que o direito parte contém também
referências à perversidade das mulheres, que seriam mais lascivas e depravadas. Por
isso, o estado de pureza era, nas mulheres, sempre precário e instável, sujeito a mil
atentados e desejos. S. Cipriano, um outro látego do género feminino, avisa da
evanescência da virgindade: "pode-se desflorar com a vista; mesmo a mulher
incorrupta pode não ser virgem. Pois o dormir com homem, a conversa, os beijos,
contém muito de criminoso e impúdico" (Decreto, II, C. 27, qu. I. c. 4; fonte, S.
Cipriano, ad Pomponium). À imodéstia nos enfeites e nos trajos se refere S.
Agostinho: "Pintar-se com pigmentos, de modo a parecer ou mais rosada ou mais
branca, é uma falácia adulterina.. Pois sem dúvida os seus maridos não se deixam
enganar por ela. E apenas a eles pertence decidir se as suas mulheres se enfeitem,
segundo a permissão (venia) deles e não segundo o poder (imperium) delas. É que os
verdadeiros ornamentos são [...] os bons costumes" 1162.
§ 797. Quanto à feitiçaria, um cânone conciliar do séc. IX, incorporado no
Decreto de Graciano, manda reprimir duramente as mulheres que se dediquem a
sondar o sobrenatural por meio de práticas demoníacas. "Também não é de omitir -
diz-se - que algumas mulheres celeradas, reconvertidas a Satanás e seduzidas pelas
ilusões e fantasmas dos demónios, creem e confessam que cavalgavam de noite
aquelas bestas, com Diana, deusa pagã, ou com Herodíades, e uma enorme
multidão de mulheres, viajando no silêncio da noite por muitas terras distantes,
obedecendo ao seu império e dedicando certas noites ao seu serviço [...] E o
próprio Satanás se transfigura em anjo da luz para se apossar da mente dessas
mulherzinhas [...]" (Decreto, pt. 2, C. 26, q. 5, c. 12). E esta prevenção especial
acompanha a prática inquisitorial, que mantém uma particular atenção aos
sortilégios e feitiços das mulheres.
§ 798. O remédio contra estes defeitos das mulheres era uma constante
vigilância sobre os seus costumes e um seu rigoroso confinamento ao mundo
doméstico. Era isto que se predicava sob a regra do pudor e honestidade das
mulheres. A honestidade seria, de facto, "a virtude moral oposta à lascívia" 1163. De
alguma maneira, é a virtude que consiste em usar do sexo segundo a reta razão da

mulher [...] e divide-se em duas espécies, uma sob o ponto de vista do princípio, se começa em mulher,
pois todos os que descendem dela se dizem ser de linha feminina, embora sejam varões, pois procedem
daquela primeira mulher como estirpe [...] Outra é a linha feminina que se compõem só de mulheres sem
qualquer mistura de varão. A mulher que é chefe da sua família também é o seu fim, pois, em primeiro
lugar, a linha masculina extinguiu-se no pai, não se transmite à filha, antes nela terminando, e não se
continua nos seus herdeiros, que se dizem de linha feminina e se consideram de outra familia e
agnação").
1161 Agostinho Barbosa, Tractatus varii. De appellativa […], s. v. "Filius", n. 61; Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 208, n. 3 ss..


1162 Epis. 73 ad Possidiam, c. 415; passo recolhido em Decreto, De consecr. dist. 5, c. 38.

1163 Bento Gil [Benedictus Aegidius], Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art. proem. n.

2.

252
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

natureza 1164.
Os direitos e deveres que dela decorrem seriam, assim, de direito
natural, impondo-se às obrigações civis ou políticas, e mesmo às ordens expressas
do príncipe 1165. O primeiro preceito da honestidade feminina era que a mulher não
se misturasse com os homens 1166. "A mulher - escreve António Cardoso do
Amaral 1167- não deve advogar nem procurar em juízo a favor de causas alheias. É
incompatível com o pudor do sexo que se meta em negócios alheios ou importune
desavergonhadamente os magistrados". Daí que ela não pudesse ser juiz ou ocupar
cargos que a obrigassem a privar com homens - a não ser que, pela sua dignidade
ou idade, o pudor não corresse riscos nessa privança 1168; não pudesse ser obrigada
a ir ao tribunal, como juiz 1169 ou procurador (Ord. fil.3,47; V, 124, 16); nem a ser
testemunha 1170; não pudesse ser metida em cárceres públicos, mesmo que de
mulheres 1171; não devesse meter-se em questões alheias, nem sequer para acusar
crimes públicos 1172.
§ 799. Embora muitas destas restrições fossem apresentadas pelos autores
como honras devidas ao estado de mulher, se nos perguntamos pelos seus
fundamentos, encontramos sempre a virtude da honestidade. E, buscando a
arqueologia desta virtude quando predicada do género feminino, chegaremos
rapidamente ao seu oposto, a natural lascívia das mulheres. Nelas, a honestidade é
uma virtude contra a natureza, um improvável freio da recta razão que procurava
compensar a violência das pulsões do desejo e a debilidade da vontade natural para
resistir a elas.
§ 800. Esta imagem da mulher, latente nos textos do direito comum europeu,
projetava-se sobre os direitos dos vários reinos. Neles ganhava, eventualmente,
refrações próprias, que decorriam de tradições culturais particulares. Era o que se
passava com o direito português que, como se pôde ver das indicações de fontes
que foram sendo dadas, recebera a generalidade das regras de direito comum 1173.
§ 801. Onde se verifica alguma especialidade do direito pátrio quanto ao
estatuto da mulher era no regime de comunhão geral de bens, considerado como
costume geral do reino (Ord. fil.4,46/47) - embora sujeito a progressiva usura pelo

1164 Daí que honestidade não se confunda com virgindade, pois realmente a honestidade não

impede o coito em geral, mas apenas o "desonesto" (Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis
[…], cit., art. proem. n.2).
1165 Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art. 2. ns. 2 ss..

1166 Sextum, II, 2 (não convém que se passeiem ou participem em reuniões de homens e, por isso,

não devem vir a juízo).


1167 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mulier", n. 7.

1168 Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art 2, n. 6.

1169 Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], cit., art 2, n. 1 (Ord. fil.3, 47; 5, 124, 16;

Nueva recop.3, 9, 7: "porque no seria cosa guisada, que estuviese entre la muchedumbre de los hombres,
librando los pleytos".
1170 Digesto, 12, 2, 15. Ord. fil. I. 78, 3. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit... s.v. "Mulier",

n. 52. Esta isenção é atenuada no caso de mulheres desonestas ou plebeias (Bento Gil, Tractatus de iure,
et privilegiis honestatis […], art 2, n. 15)
1171 Porque sempre existe o carcereiro (Bento Gil, Tractatus de iure, et privilegiis honestatis […], art 3,

n. 2); se tiver que ser encarcerada, deve sê-lo em mosteiro de mulheres. Para Portugal, v. Ord. fil.2, 31,
4; 4, 76, ult.
1172 D, 3, 1, 1, 2; 48, 2; Decreto, C. 5, 3, 1-3, Bento Gil, Tractatus […], cit., art. 2, n. 12.

1173 Para o Brasil, Jeannie da Silva Menezes, Sem embargo de ser fêmea […]. cit.

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regime de dote e arras, de direito comum 1174 – e que limitava mais os poderes de
disposição patrimonial da mulher. "O marido e a mulher - escreve Jorge de Cabedo
no início do séc. XVII 1175 - possuem os dois os bens e são como que sócios na
casa divina e humana (cf. Ord. Man.4,17)".
3.1.9 Menores.
3.1.9.1 A natureza dos menores.
§ 802. A hierarquização da sociedade decorre, lembremo-lo, de uma ordem
natural das coisas. Nela, o homem ocupava o primeiro lugar, acima dos animais e,
depois, das plantas e dos seres inanimados. Portanto, uma humanização deficiente
aproximaria o homem do escalão inferior, ou seja, das bestas. Com o pecado
original, essa radiosa humanidade primitiva teria decaído também. As crianças, mais
próximas dessa origem pecaminosa, iriam iniciar – apoiadas pelo batismo – uma via
longa de remissão desse pecado e de aquisição dos traços de uma humanidade
plena. Até lá, ou partilhavam de traços de animalidade ou recordavam o impacto
desse pecado que estava na sua origem.
§ 803. É esta a chave para se entender o estatuto cultural dos menores na
sociedade de Antigo Regime 1176.
§ 804. Em relação a estas pessoas desprovidas de uma plena capacidade de agir
de acordo com as capacidades intelectuais dos homens - a inteligência, a razão, mas,
sobretudo, a prudência -, e feridas à nascença do pecado da sua origem (pecado
original), o sentido comum de Antigo Regime é muito pouco generoso. Mesmo
quando se trata das crianças, nem a sua fragilidade nem a solicitude e o carinho que
hoje se entende inspirarem as eximia a juízos muito negativos sobre a sua
inumanidade e perversão.
§ 805. Como as crianças constituem um padrão - e uma metáfora - para avaliar
outras situações de humanidade diminuída, o que se diz das crianças diz-se, por
extensão, dos rústicos, dos nativos, dos dementes e dos velhos. Daí o interesse do
imaginário jurídico acerca delas.
§ 806. No base da fraqueza dos menores está, sempre, a insuficiência do juízo.
Isto prejudicava o conhecimento e avaliação das situações e impedia, portanto, a
prudência na gestão da vida e dos negócios. Nos primeiros anos, a esta deficiência
da razão juntava-se a deficiência da fala, deficiência esta que alguns prolongavam
até à puberdade, já que a fala humana haveria de ser a do homem adulto, com
articulação grossa e firme, tal como forte e firme haveria de ser o entendimento. É
o costumado acopular – que também se encontra a propósito da avaliação da

1174 Cf. cap. 3.3.1. É provável que a frequência de cada um dos regimes dependesse dos estratos

sociais; aparentemente, o regime de dote e arras era mais comum nos grupos nobres. As camadas
populares, com poucos bens de família ("troncais", "de avoengo"), pouco ciosas dos valores
linhagísticos e recorrendo menos ao direito letrado e escrito, usariam o costume da comunhão,
inicialmente mais comum no Sul, mas depois (a partir de Ord. Man.4, 7) recebido como costume geral
do reino.
1175 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., I. dec. 106, n. 1.

1176 Sobre a história da criança, v. Ph. Ariès, L'Enfant et la vie familiale sous l'Ancien Regime, Paris,

Seuil, 1973; Lloyd de Mause, (ed.), The History of Childhood, New York: Psychohistory Press, 1974;
Colin Heywood, History of Childhood: Children and Childhood in the West from Medieval to Modern Times, Polity
Press, 2001.

254
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

capacidade dos rústicos, dos nativos e na de alguns dementes – entre reta razão e
discurso fluente.
§ 807. Mas a razão, ou equilíbrio, é também um freio aos extremos das paixões
animais – da ira, da luxúria, da volúpia. E, por isso, a falta de siso dos menores
explicava que, neles, a animalidade tendesse a vir ao de cima e a aproximar-se das
bestas, nos seus impulsos caprichosos e imoderados. Daí que os menores fossem
volúveis, desorientados e imprudentes.
§ 808. Alguns atos, de natureza muito pessoal – como os esponsais, o
casamento e a eleição para dignidades e ofícios de cuja dada ou apresentação (para
estes conceitos, v. cap. 2.6.5) fossem titulares –, eram-lhes permitidos, já que eles
dependeriam sobretudo de escolhas dirigidas por afetos pessoalíssimos, situados,
digamos, abaixo da razão. Mas já tudo quanto tinha a ver com a sabedoria no agir
(com a prudência) lhes era rigorosamente vedado, mesmo se intimamente ligado
com atos que lhes eram permitidos. Assim, no casamento, podiam escolher o
parceiro, mas já não podiam gerir os bens.
§ 809. Todo este regime de interdições se prolongava até aos 25 anos, altura
em que, de roldão com a capacidade para ser juiz e julgar os outros, se recebia toda
a cópia de direitos. Numa época de vidas curtas, isto significava que, durante cerca
de metade do tempo de vida, não se tinha, do ponto de vista jurídico, capacidade
para viver autonomamente. Mesmo se – de acordo com múltiplos testemunhos – a
vida profissional, civil e militar, pudesse começar muito cedo.
3.1.9.2 As idades: infantes, impúberes e púberes.
§ 810. Paulo Zacchia († 1659), um dos mais célebres médicos legistas da época
moderna, autoridade para toda a medicina legal até aos inícios do século XIX,
disserta longamente sobre a menoridade e a sua relevância para direito 1177. Começa
com a averiguação das fases dessa idade.
§ 811. A primeira delas era a meninice ou puerícia (pueritia, impubertas).
§ 812. Dentro dela, a sua primeira fase seria a da infância que, na melhor
opinião, seria aquela em que "o menino não pode falar" 1178 (in+fans). Contava-se a
partir do dia do nascimento - já que a maioria dos juristas não considerava que o
feto pudesse ser tido como um ser animado 1179 - e durava, também na melhor
opinião, até aos sete anos. Os menores de sete anos (infantes) careceriam totalmente
da razão, sendo equiparados aos loucos furiosos. Não responderiam por nenhuns
atos, nem sequer poderiam fazer testamento. Isto, mesmo que tivessem juízo
superior ao normal para a sua idade, já que "não gozam de qualquer prudência,
mesmo que nos seus atos pareçam ter alguma" 1180.
§ 813. Saídos da infância, os meninos tinham ainda que passar o marco da
puberdade. Antes disso, tinham a condição de impúberes.
§ 814. Sobre a capacidade dos meninos (pueri impuberes), a opinião comum era a
de que "embora com o progresso da idade a inteligência do homem se
aperfeiçoasse, de tal modo que quanto mais velho fosse o homem, mais perfeita se

1177 Paulo Zacchia, Quaestiones medico-legales, cit., liv. I. tit. 1, qu. 2, n. 2.


1178 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 3, n.2.
1179 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 3, n. 10 ss.
1180 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 3, n. 26.

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presumia ser a sua inteligência, os meninos participavam de uma inteligência apenas


simples e de uma mínima razão”1181.
§ 815. Já nos casos dos meninos próximos da puberdade1182, dizia-se que
participavam de alguma inteligência, sendo capazes de entender alguns pactos,
embora não pudessem dispor de nenhum conhecimento que lhes fosse útil, a eles
ou a outrem. Quando muito, poder-se-ia dizer que gozavam de juízo semipleno 1183,
mesmo se do ponto de vista corporal fossem já quase plenamente capazes 1184. Isto
autorizava-os a praticar alguns atos jurídicos, como a contrair promessas de
casamento (esponsais “por palavras de futuro”), a nomear ou apresentar pessoas
para dignidades ou ofícios (se tiverem esse direito) 1185. Nestes dois casos, a
atribuição de capacidade aos menores impúberes explicava-se também pela
natureza sobretudo pessoal dos atos, em que, mais do que a razão, eram decisivos
os sentimentos e as simpatias.
§ 816. O fim da meninice impúbere dava-se com a puberdade. Tratava-se de
momento difícil de definir, acerca do qual existiam dúvidas, quer quanto aos sinais,
quer quanto ao tempo. Já no direito romano, os juristas se dividiam quanto ao
método de marcar as idades do homem: os da “escola sabiniana” optavam por
destacar o critério do porte físico, os da “escola proculeiana” distinguiam contando
os anos. “Puberdade”, de facto, relacionava-se com púbis, ou seja, “a zona peluda
que costuma aparecer em torno das partes vergonhosas, na parte inferior do ventre
sob a qual se encontra a bexiga, nos varões à roda de dos catorze anos e nas fêmeas
à volta dos doze [...], quando o homem fica capaz de gerar ” 1186. Tratava-se
evidentemente de um sinal de natureza, que sinalizava a maturidade sexual; do
mesmo modo que a mesma natureza indiciava com a calvície - um retorno à fase
pelada da infância - a perda das faculdades reprodutoras. Um sinal de algo que era,
decerto, muito relevante do ponto de vista do direito, nomeadamente para a
capacidade de contrair casamento e de realizar a sua finalidade, a procriação. Claro
que uma coisa era falar de pelos e outra de capacidade para procriar 1187. Daí que a
discussão sobre o limite mínimo da adolescência fosse um tanto incerta. A
pluralidade de palavras não ajudava. "Adolescência" parecia relacionar-se com
“dolentia” e “dolor” e, por aí, com os achaques físicos do crescimento 1188. "Idade
núbil” referia-se, evidentemente, ao casamento; mas de uma forma que se
considerava ser apenas aplicável à mulher, pois, na língua latina, o verbo “nubere”

1181 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 4, n. 16.


1182 Este conceito era vago, diferindo os autores quanto ao período da proximidade (3 dias ?, 6
meses ?); finalmente, dependeria do arbítrio do julgador; v. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas
[…] Melo [...], cit., II, 13, 2 e 3 rubr, n. 2.
1183 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 3, n. 20.

1184 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 4, n. 26.

1185 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit... v. "Minor", n. 3.

1186 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, n. 1 ss..

1187 Uma tradição médica que durou até ao séc. XVIII (ainda bem documentada no Dictionnaire

philosophique, de Voltaire, v. “Barbe”: http://www.monsieurdevoltaire.com/article-dictionnaire-


philosophique-b-comme-barbe-108228579.html), relaciona com a potência sexual a pilosidade do púbis
e do queixo – que teria origem no líquido seminal masculino produzido nos testículos -, mais do que os
cabelos da cabeça.
1188 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, n. 9.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

tinha uma conotação de passividade que não se adequava ao papel ativo do varão
no casamento (“mulher núbil, mas não varão núbil, a não ser de modo
inapropriado, pois se pode dizer que a mulher é noiva, mas não o homem […], já
que ao dizer que a esposa celebrou noivado, como que estamos dizendo que foi
posta a servir”1189). A Glosa distinguia três tipos puberdade: a plena, aos catorze
anos; a mais plena, aos dezassete; e a pleníssima, aos dezoito. Por outro lado, havia
quem prolongasse a puberdade até aos vinte e cinco anos, atendendo à constituição
tanto do corpo como da alma, "pois uma e outro sempre se aperfeiçoam alguma
coisa até àquele termo”1190.
3.1.9.3 O direito dos menores.
§ 817. No plano jurídico, as disposições acerca da idade da puberdade
variavam. Para adotar, o direito romano (D.1,7, De adoptionibus et emancipatioinibus;
I.1,11, De adoptionibus, 4) estabelecia a idade de 18 anos para os homens e 14 para as
mulheres; o mesmo para interpretar o alcance de uma doação ou legado temporário
que devesse terminar “na puberdade” e para aceitar procurações. Para casar, o
direito estabelecia uma idade adequada do ponto de vista das finalidades do
casamento, elegendo como decisivo o critério da capacidade de gerar. Esta era
indiciada pela penugem púbica, mas importava modificações corporais mais
decisivas.
§ 818. Em Portugal, os juristas fixavam a puberdade feminina nos doze
anos1191 e a dos homens mais tarde: nos catorze anos (Ord. fil.4,104,6)1192. O caráter
estrito da doutrina canónica sobre casamento – impondo-lhe como fim quase
exclusivo a reprodução - resumia praticamente a questão da puberdade à questão da
fertilidade. Isto explica que, do ponto de vista da capacidade jurídica, os menores
púberes, para a generalidade dos negócios jurídicos, pouco mais capazes fossem do
que os impúberes. Perguntando-se acerca da capacidade racional destes
adolescentes e, consequentemente, da sua aptidão para gerir autonomamente os
seus negócios, Zacchia constatava que as leis não lhes permitiam gerir nada a seu
arbítrio, antes lhes assinando tutores 1193, pois "pouco resistem às paixões, estando
sujeitos a ímpetos voluptuosos irracionais de que não podem ser afastados pela
razão”1194. E, por isso, mesmo quando casados, “não podem administrar as suas
coisas, pois o conselho da sua idade é frágil e menos firme, não sendo suficiente
para evitar muitos enganos e insídias a que estão sujeitos aqueles que administram

1189 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, ns. 22/23.


1190 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, n. 69.
1191 Cf. ibid. n. 42. Sobre a precocidade jurídica da mulher: "A mulher que é mais imperfeita do que

o homem, requer menos espaço do que este para que a sua perfeição íntegra seja conseguida, pois a
perfeição do homem é sem dúvida maior; correspondendo à perfeição ou imperfeição o aumento ou
diminuição do tempo das idades (...); na verdade, parece que a mulher cresce mais depressa, começa a
gerar mais depressa, e envelhece mais depressa do que o homem: a sua imperfeição provém do seu
menor calor e, por isso, embora este desapareça mais cedo, também cresce mais prontamente (...);
mas, como disse, não é apenas por causa da sua imperfeição, mas também por causa da humidade das
suas temperaturas e da própria moleza do corpo, que a mulher cresce mais rapidamente do que o
homem; pois as menores dimensões do corpo fazem com que este mais facil e precocemente se
expanda, como testemunha Galeno”, Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, ns. 53-59.
1192 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 13, 1 ss..

1193 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, n. 82.

1194 Paulo Zacchia, Quaestiones [...], cit., qu. 6, n. 89.

257
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bens”1195.
§ 819. A puberdade não equivalia à maioridade e, assim, só tendo vinte e cinco
anos (dezoito, sendo mulheres) é que os menores podiam pedir ao rei a sua
emancipação, desde que provassem capacidade e suficiência para a administração
patrimonial (Ord. fil.3,42)1196. Era também a partir dessa idade que deixavam de
gozar do privilégio de pedir a rescisão dos atos que os prejudicassem, mesmo que
praticados pelo tutor (restitutio in integrum [ob aetatem]) dentro de um prazo de 4 anos
(Ord. fil.3,411197).
§ 820. Também o exercício de cargos públicos lhes estava vedado até aos 25
anos (Ord. fil.1,94), tal como a faculdade de advogar em juízo (Ord. fil.1,48, 3 e 20), a
menos que tivessem um título universitário1198.
§ 821. Onde o direito dignificava mais os menores – atribuindo-lhes uma
responsabilidade que permitia a censura e o castigo – era no domínio dos delitos
civis (indemnização de danos) ou penais (punição). Aí, o direito comum
considerava-os juridicamente aptos, pois eram capazes de intenção, logo desde a
puberdade1199. O direito pátrio considerava-os responsáveis a partir dos vinte anos,
impondo-lhes a mesma pena dos maiores; entre os dezassete e os vinte anos,
atenuava a pena segundo arbítrio do julgador; e só os isentava da pena ordinária se
tivessem menos de dezassete anos (Ord. fil.5,19,1; 5,36; 5,135), sendo a pena capital.
Não o sendo, mandava aplicar o direito romano (I, 4,1, De obligat. quae ex delicto
nascuntur, 18).
§ 822. A grande exceção da incapacidade dos menores era, como se viu, a do
casamento, que os menores podiam celebrar a partir da idade nupcial de 16 ou 14
anos, consoante fossem machos ou fêmeas.
§ 823. A incapacidade dos menores era suprida pela direção do pai ou, caso
este tivesse falecido ou fosse incapaz, de um tutor (v. cap. 3.3.2). Se os menores não
tivessem família, eram colocados sob a proteção dos juízes dos órfãos, que lhes
atribuíam um. Os poderes do tutor eram de mera administração, tendo que jurar
bem administrar, dar fiança, prestar contas e responder por danos dolosos ou
culposos para o património do menor.
3.1.9.4 Os quase menores, os maiores e os quase maiores.
§ 824. Como se disse, o imaginário dos menores, estes seres imperfeitos mas
perfeccionáveis se submetidos à direção ou disciplina, foi estendido eficientemente

1195 António Cardoso do Amaral, Liber [cit.], v. “Minor”, n. 21.


1196 Sobre a capacidade e incapacidades dos menores, Diogo Guerreiro Camacho de Aboim, De
munere judicis orphanorum, cit., tract.3, liv. 5, cap. 5 ss..
1197 Permite aos menores de 25 anos recorrer ao pedido extraordinário de rescisão de negócios que

os prejudiquem (restitutio in integrum [ob aetatem], com efeitos ex tunc). Outros lugares: Ord. fil.4, 87, 3
(aceitação de herança); Ord. fil.4, 79, 2 (prescrição); Ord. fil.96, 21 (partilhas). Sobre a diferença entre a
ação ordinária de nulidade, fundada em causas gerais de nulidade, substancial ou de forma (com efeitos
ex nunc), e o pedido extraordinário de rescisão (restitutio in integrum) por causa da idade (com efeitos ex
tunc), v. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 13, 8, rubr. p. 643 ss. (com
muitos detalhes sobre os requisitos e efeitos desta rescisão). Cf. também cap. 7.1.3.
1198 Mas podiam aceitar procurações extrajudiciais (Ord. fil.3, 9, 5), a partir da idade plena, segundo

o direito comum (17 ou 18 anos).


1199 António Cardoso do Amaral, Liber {…], v. “Minor”, n. 19

258
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

a outras categorias de gente mais fraca.


§ 825. Este estatuto assentava como uma luva aos rústicos e, mais tarde, aos
povos nativos, permitindo evitar o conceito aristotélico de escravos por natureza,
esse sim prejudicial do dogma católico da salvação universal, mas justificando a
tarefa de direção temporal e espiritual a cargo dos europeus. É por isso que o
imaginário colonial está, até muito tarde, repassado de patriarcalismo. E, por outras
razões e um tanto menos bem, o imaginário pueril aplicava-se também às mulheres.
Aqui, falhava o caráter provisório do estatuto, já que não se pensava que as
mulheres fossem a tal ponto educáveis, que pudessem compensar as fraquezas do
sexo. Mas, vivendo também elas no mundo doméstico, o natural era que fossem
equiparadas aos filhos (loco filiae vivunt) na comum sujeição ao pátrio poder.
§ 826. Segundo o direito comum ou segundo o direito pátrio, estavam também
equiparados aos menores quanto à necessidade de confirmação dos seus atos e
quanto ao benefício de restituição dentro do quadriénio dos negócios que os
prejudicassem, a república, o fisco, as cidades, o Igreja, os colégios, os hospitais, as
casas religiosas, os furiosos, os mentecaptos, os surdos e os mudos, os velhos
decrépitos, os pródigos, as viúvas (Ord. fil.3,5,3), as pessoas miseráveis (Ord. fil.3,41),
os soldados e suas mulheres, os rústicos (Ord. fil.3,87,2), os presos (Ord.
fil.3,9,121200), os ausentes em serviço da república1201.
§ 827. Por oposição aos menores, eram maiores os que tivessem perfeito vinte
e cinco anos (Ord. fil.3,42,ult.), embora fossem exigidos os trinta anos para se ser
juiz dos órfãos (Ord. fil.1,88,1; 1,94,pr.) ou governador de um castelo (Ord.
fil.1,74,4). E eram quase maiores aqueles a quem o rei tivesse concedido carta de
suplemento de idade (hoje, o equivalente à emancipação, mas não então, já que a
emancipação se relacionava com a aquisição da plena cidadania, do estado de sui
iuris, ou seja, da desvinculação em relação ao pai de família); ou os que tivessem
casado (Ord. fil.3,41). Estes últimos não gozavam, por um lado, do benefício da
restituição, mas não tinham tão pouco plena capacidade para dispor de bens (Ord.
fil.1,88,28; 3,42,1 a 3).
3.1.9.5 O trabalho dos menores.
§ 828. Saindo de casa, o destino de muitos menores era o de servirem em casa
de amos1202. A doutrina admitia que isso pudesse acontecer desde muito cedo,
havendo referências a meninos trabalhadores com menos de dez anos 1203. Na
maioria dos casos, os moços e moças serviam a "bem fazer", ficando ao arbítrio do
patrão dar-lhes o que quisesse, atento o tempo de serviço e a qualidade deste. Neste
tipo de contratos, mesmo celebrados entre adultos, a doutrina jurídica raramente
admitia a obrigação de o patrão pagar um salário certo 1204. Muito mais tratando-se
de crianças. A mesma doutrina previa expressamente o caso dos criados de
estudantes aos quais fosse dado tempo para estudarem; dos criados dos mestres de

1200 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 30: os contratos entre encarcerados devem ser

rescindidos.
1201 Fontes em Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 13, 9 rubr. p.

661; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tom. 15, ad Ord. 3, 41, 17.
1202 V. Ord. fil.4, 29 ss..

1203 Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., ad. Ord. fil. 4, 29, 33.

1204 Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., ad. Ord. fil. 4, 29, n. 1 s..

259
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ofício, ou aprendizes, a quem a arte fosse ensinada e a quem se prestassem


alimentos; ou dos enteados que servissem seus padrastos 1205 (v. cap. 6.9.2.2.3).
3.1.10 Os doidos.
§ 829. O direito de Antigo Regime desconhecia uma caracterização geral da
doidice, definida global e genericamente como “incapacidade de se governar”.
Lidava, pelo contrário, com uma ampla panóplia de distinções, como desassisado,
desmemoriado, mentecapto, doido, sandeu, furioso, demente, louco. Manuel de
Almeida e Sousa (de Lobão), ainda impregnado de doutrina antiga, escrevera “Seria
muito extenso se me propusesse individuar todas as espécies de doidos, e as
diferenças entre os furiosos, maníacos, frenéticos, insanos, mentecaptos, estultos,
fátuos, etc. [...]”1206. Apenas advertia que “outros não são loucos, mas só rudes,
simples, grossolanos, como estúpidos, obtusos, e de juízo menos fino, e perspicaz etc.”
(ibid. n. 3) E que “supposto aos fátuos qui mente totaliter capti non sunt datur curator [aos
que não são totalmente apanhados da cabeça se dá tutor), contudo, como se não
pode aqui dar regra certa, porque uns há que são mais fracos que outros, o mais
seguro é fazer por médicos exames, e experiências nos que se supõem doidos, não
confiando de testemunhas as provas da demência” (ibid. nº 4).
§ 830. Ou seja, a doidice, do ponto de vista do direito, ainda não era uma
característica genérica que, por uma razão de princípio, excluía do pacto social e da
convivência civil (uma incapacidade). Era antes um feixe variegado de
características mentais, de diferente incidência nas relações sociais e que, portanto,
tinham que ter tratamentos particularizados, atentos à diversidade das situações
psicológicas, bem como dos atos envolvidos. Isso faz com que as situações de
demência se matizassem; algumas delas, como a epilepsia ou “mal sagrado” (morbus
sacer), apareciam rodeadas de uma auréola de mágica clarividência. Outras geravam,
em graus variados, incapacidade jurídica. Ou seja, não estamos ainda perante essa
grande fronteira entre pessoas civil e politicamente capazes e pessoas incapazes.
Estamos antes diante de uma inabarcável diversidade das pessoas, consideradas nos
seus “universais” ou “estados”1207.
§ 831. É esta a visão do direito mais antigo. Como as pessoas não têm todas a
mesma função social, como as suas funções (“universais”) se incorporam na sua
própria natureza, é de direito natural que tenham estatutos jurídicos diferentes. A
demência tinha então um estatuto variado, expresso em comportamentos que se
identificavam casuisticamente, sem se curar de uma causa mental unificadora. O
mais que se podia dizer, como característica comum, era que não se adequavam à
ordem estabelecida no mundo1208. Gente que “não falava a propósito, mas fora de
assunto, respondendo uma coisa às perguntas sobre outras 1209; que “diziam coisas

1205 Cf. Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., ibid. ns. 30/31, 33.
1206 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., 2, 12, § 7, n. 1.
1207 Ou seja, voltando a citar Coelho da Rocha, “enquanto às circunstâncias ou estado das

pessoas, a quem competem os direitos, ou obrigações (jura personarum)” (Instituições […], cit., 1, § 47).
1208 “Et probatur quando testes dicant memoriam non habuisse ordinatam” [prova-se quando se

diz que não têm uma memória com ordem], Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12,
ad 1, 50, cap. 6, t. 4, n. 95, p. 251.
1209 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], ibid. n. 94.

260
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

vazias”1210; que “iam pelas praças, atirando pedras”1211; que “andam pelas ruas,
lançando berros”1212; que “quando estão doentes, proíbem que se chame o médico,
e se recusam a tomar os remédios para a cura” 1213.
§ 832. Passemos aos estados que se aproximavam da demência.
§ 833. A bebedice era um pecado, um pecado grave e mortal. No plano do
direito, produzia um estado equiparado ao do demente: “Além disso, como o ébrio
– citando Cícero – raramente vê o sol no Ocidente, mas ainda mais raramente no
Oriente, nada nele se pode dizer razoável, nem a vontade, nem o bom conselho na
gestão da vida [...] e por isso é equiparado ao morto e ao doido furioso [...] pois a
bebedice não é outra coisa senão uma loucura voluntária [...] de onde Platão dizer
que não apenas o velho se faz menino, mas também o ébrio [...] E assim, como
escreveu Vives, embebedar-se é perder as faculdades e o senso, sair do poder da
razão e do juízo da cabeça, de onde se diz que o homem se transforma numa rês ou
numa pedra. E fala sem saber o que diz, pelo que se conduz a si e aos seus para
graves males”1214.
§ 834. Depois, os surdos-mudos. O direito romano classificava os surdos-
mudos como doentes perpétuos, daí se equiparando os surdos-mudos de
nascimento aos dementes. Subjacente, porém, parece estar algo mais profundo,
sobre a relação entre a razão e a fala. Essa mesma relação que assimilava a selvajaria
à falta de uma linguagem articulada (barbari), no fundo porque supunha que existia
um nexo indissociável entre razão e comunicação, do qual decorreria, não apenas a
insensatez dos surdos-mudos, como a selvajaria dos homens isolados na floresta
(homo in sylva, silvícola, selvagem), isolados nas aldeias (paganus, aldeanus), no campo
(rusticus) ou nos vales isolados 1215, impossibilitados de comunicarem. Em
contrapartida, outros deficientes físicos feridos de ainda mais reduzida capacidade
de observação – como os cegos – podiam não estar sujeitos a tutela (ibid. 192). Já
“o surdo-mudo de nascimento não podia testar. Ainda que tivesse bom
entendimento, e exprimisse a sua vontade por sinais; porque não podia ter ideia
bastante sobre o que fosse instituir herdeiro e fazer testamento; e porque a
declaração da vontade por palavras pronunciadas ou escritas era solenidade
essencial dos testamentos” (ibid.). De novo, testemunhando a estreita relação entre
a fala e a razão: “o que está gravemente enfermo e mesmo já moribundo e
balbuciante, pode fazer testamento se puder ainda pronunciar as palavras
inteligivelmente: pois ainda então se presume estar em seu juízo” (ibid. 185).
3.1.10.1 Os estados próximos da demência: velhos, doentes, pródigos e
falidos.
§ 835. Mas a variedade de estados continua. E, com ela, o desfile das
adequadas especialidades, algumas envolvendo incapacitações.

1210 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], ibid. n. 95.


1211 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], ibid. n. 97.
1212 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], ibid. n. 99.

1213 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit..

1214 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus regiis [….], cit., liv. 3, cap. 15, n. 27.

1215 Onde ainda Fodéré tinha identificado uma propensão ao cretinismo. Nele, também, a relação

entre pobreza intelectual e ruralismo (cf. François-Emmanuel Fodéré, Les lois éclairés[...], cit., I. 64).

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§ 836. A velhice (senectuto) era uma das sete idades do homem1216, em que as
pessoas viam diminuídas as suas capacidades vitais (“est imminutio animal a
tempore contingens”1217), perdendo o corpo os seus calor e humidade iniciais e
começando a ser dominado por humores frios e secos 1218. Nela, as pessoas perdiam
a capacidade de gerar1219, o seu vigor físico e mental. Não se tratava de uma doença,
pois era uma situação natural e que não se afastava da normalidade 1220. E, por isso,
aos velhos não aproveitavam os privilégios dos doentes. O seu início situava-se por
volta dos cinquenta anos, embora variasse de pessoa para pessoa e, por isso,
devesse ser arbitrado pelo juiz1221. O seu termo ocorria pelos setenta anos, variando
também com as pessoas e dependendo também do arbítrio do julgador. Depois dos
setenta, a velhice era chamada decrepitude (decrepitas)1222, caracterizada por uma
deterioração mais evidente das capacidades físicas e das faculdades mentais. O
corpo ficava trémulo, a vista perdia a agudeza, a voz perdia a segurança, a memória
enfraquecia, o sentido de orientação vacilava.
§ 837. Do ponto de vista jurídico, a velhice trazia consigo algumas vantagens.
Entre elas avulta a preferência para o provimento em dignidades1223, a escusa de
tutela e de encargos (ofícios) públicos1224, a proibição de ser posto a tormentos ou a
atenuação das penas1225.
§ 838. Outras categorias assimiladas à velhice eram a dos doentes (ibid. pg.
185)1226, a quem, sendo incuráveis, se impede a administração de seus bens e se
pode dar curador de bens; a das pessoas miseráveis, compreendendo religiosos
mendicantes, pobres, doentes, cegos, aleijados, peregrinos, a quem se faculta o gozo
da restituição in integrum (possibilidade de anular os atos jurídicos que lhes causassem
prejuízo) (ibid. 193); a dos presos, feridos de algumas incapacidades, mas também
protegidos por alguns privilégios.
§ 839. Depois, a dos pródigos, que mantinham com os doidos uma
proximidade de estatuto. Por muito sugestivo que isso fosse, a incapacitação dos
pródigos não decorria do “individualismo proprietário” liberal. Ela vinha já do
Antigo Regime, envolvendo então uma delicada questão de contra distinção entre a
prodigalidade, que era um vício, e a liberalidade, que era uma virtude. O direito
romano já previra a nomeação de tutores para os pródigos. As Ordenações (Ord.
fil.4,103,6) previam a sujeição a tutor daquele que “como pródigo,

1216 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 2.


1217 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 6.
1218 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 6; qu. 10, n. 11.

1219 Entendia-se que o homem as perdia aos sessenta anos e a mulher, com a perda dos fluxos

menstruais, aos 50 anos, Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 58.
1220 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, ns. 62-76.

1221 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, De aetatibus, qu. 9, ns, 30, 35, 36.

1222 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 10.

1223 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 4.

1224 Por opinião comum, a partir dos 70 anos, apenas. Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De

aetatibus, qu. 9, n. 42
1225 Paulo Zacchiae, Quaestiones […], De aetatibus, qu. 9, n. 2.

1226 A doença devia ser provada por quem a invocasse e podia configurar um estado de necessidade

que justifique a ofensa de bens alheios (Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Infirmitas”).

262
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

desordenadamente gasta e destrói a sua fazenda”. No início do séc. XIX, Lobão


recorda antigas definições e antigos critérios: o pródigo é aquele que dissipa os seus
bens dilapidando-os, sem ter nem regra nem tempo nas despesas1227; ou o que fala
como sensato, mas atua como insensato 1228; pródigo diz-se assim como que
significando “apartado de governo”1229. Recordando ainda que havia dois tipos de
largueza de mãos, uma típica dos pródigos, outra dos liberais, ou generosos;
dissipando os pródigos a sua fortuna em coisas de que efémera ou nenhuma
memória havia-de ficar, como jantaradas, lutas e jogos, caçadas e opulências 1230.
Enquanto que o liberal daria de forma circunspecta, o pródigo fá-lo-ia de forma
difusa e sem qualquer prazer, tendo o primeiro uma regra e o segundo nenhuma 1231.
Concluindo: “como não há dúvida de que a prodigalidade diminui a coisa e os
próprios frutos, nada ficando da propriedade, resulta que a prodigalidade é uma
depravação da mente que leva ao dispêndio da própria substância [da pessoa],
afastando-a da razão e do juízo e destruindo a sua fama pública, tornando-se o
pródigo candidato à impotência de alma que é própria dos animais selvagens” 1232
1233.

§ 840. Sobre os falidos (ou seja, os comerciantes pródigos) impendia, além


disso, uma pesada suspeição. Fazendo parte de um grémio cujos negócios se
baseavam em estritas regras de confiança, os falidos tinham traído essa confiança,
pondo-se em condições de não satisfazerem as suas obrigações comerciais. Podiam
tê-lo feito ou por inabilidade grosseira ou por falta de honestidade. Fosse como
fosse, “estava sempre contra eles toda a sinistra presunção”1234. Daí que fossem
incapacitados para vender e que - tal como acontecia com os pródigos - lhes fosse
nomeado um curador. Mas as suspeitas sinistras iam até ao ponto de os meter na
prisão, requerendo-o os credores.
§ 841. A incapacidade de certas viúvas, que também autorizava a que se lhes
nomeasse curador, provinha da lei. As Ordenações (Ord. fil.3,107) dispunham que, “se
alguma viúva, maliciosamente e sem razão, desbarata ou alheia os seus bens, as

1227 “Prodigus est, qui neque tempus, neque fluem expensarum habet, sed bona sua dilapidando

profundit”, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., 2, ad 2, 12, 9.
1228 “Seu qui sermone quidem videtur sapiens, sed factis est insapiens”, Manuel de Almeida e

Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., ibid..


1229 “Prodigus dicitur quasi procul a regimine [longínquo, afastado do governo] positus”, Manuel

de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., ibid...


1230 “Omnino sunt duo genera largorum, quorum alteri prodigi; alteri liberales. Prodigi, qui epulis,

viscerationibus, a gladiatorum numeribus, ludorum, venationum que opparatu pecunias profundunt in


eas res, quarum memoriam, aut nullam aut brevem sunt relicturi”, Manuel de Almeida e Sousa
(Lobão), Notas […] Melo [...], cit., ibid..
1231 “Donat liberalitas circunspectè prodigalitas effuse, ac nullo delectu. Liberalitate est modus;

prodigalitati nullus”, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., ibid..
1232 “Certe prodigalitati, re imminuta, et fractis opibus, nullus restat fundus; ex his colligitur

prodigalitatem esse depravationem mentis pronœ in effusionem proprie substantiae, rationis et judiciis
profugam famam contemptricem, in consulate cujusdam animi impotentiae feralem postum”, Manuel
de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., 2, ad 2. tit. 12, § 9
1233 Ao pródigo alguns doutores equiparavam, para o fim de se lhe dever dar curador, o “bêbado

continuo [...] e o jogador continuo, e taful”, Lobão, Notas […] Melo [...], cit., 2, ad 2. tit. 12, § 9, nº.
8. Sobre o conceito de prodigalidade, v. ainda Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 12, 9.
1234 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado encyclopedico, pratico e critico sobre as execuções […],

cit., §§ 188/189.

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justiças do lugar (o Juiz ordinário, ou dos órfãos) onde os bens estiverem, os


entregam a quem os administre, assignando alimentos convenientes à viúva”. A
doutrina corrente afirmava que “esta providência tende a beneficio não só da viúva
mas também dos seus sucessores”1235. Mas não se tratava de um simples caso de
prodigalidade. “A sua razão intrínseca – escrevia Lobão - ou pode ser coibir o luxo
das viúvas, conforme o Apost. ad Thimoth. cap. 5, Viduae, quœ in deliciis est, vivens,
mortua est [a viúva que vive nas delícias, embora viva, já está morta]. Ou pode ser
um desempenho da obrigação, que as Sagradas Letras impõem aos Imperantes de
vigiarem na proteção das viúvas [...]”. Um autor anterior aproximava expressamente
este furor dissipador da doidice e da irracionalidade, opinando que a Ordenação se
aplicava “mesmo que a viúva não seja, nem pródiga, nem dada à luxúria, desde que
se prove apenas que ela maliciosamente ou dissipava os bens ou os alienava sem
razão [...], sendo necessário provar a irracionalidade da alienação” 1236. A passageira
referência à luxúria não deve ser tida como insignificante. Na verdade, o direito
romano (D.27,10,15) dispunha que “a mulher, que vivia luxuriosamente, podia ser
interditada quanto à administração dos bens” (“et mulier, quae luxuriose vivit bonis
interdid potest”). A palavra “luxúria” tinha - em latim como, depois, nas línguas
novilatinas – uma conhecida ambiguidade: ou se referia ao profuso dispêndio dos
bens ou ao profuso dispêndio de si mesmo, em atividades eróticas. Embora a
opinião comum entendesse o texto citado como referido à prodigalidade e
dissipação de bens, uma coisa não deixava de estar ligada à outra como duplo
sintoma da falta de contenção feminina 1237. Daí que, por detrás do disposto na lei
quanto às viúvas, se perfilasse um tipo social previsível: o da viúva alegre, insensata
e desonesta, dissipadora dos bens e do recato devido ao seu estado. Por isso, a
combinação das duas faces da luxúria não devia ser descartada: “De forma que, só
porque uma mulher é meretriz, que lucra pela prostituição, se lhe não deve dar
curador, mas [só] se é pródiga, et maxime se nela se unem ambos os vícios”1238.
§ 842. Em suma. Para o direito de Antigo Regime, a questão da doidice e da
sua especialidade em termos de efeitos de direito não constituíam senão um
afloramento de um princípio arquitetónico de toda a ordem jurídica – o da
diversidade de estados e, consequentemente, de estatutos jurídicos. Como o direito
é um dispositivo de produção e reprodução industrial de imagens, esta consideração
não dramatizadora da loucura, da sua dissolução num mundo de especialidades, na
trivialização das suas fronteiras pela multiplicação de outras fronteiras, podia
contribuir para uma atitude menos especialmente discriminadora do que aquela que
a centralidade política da capacidade de querer e entender, típica do paradigma
liberal, virá a instaurar. Aí, os loucos já não são apenas “especiais”; passam a ser
incapazes do vínculo político e, por isso, politicamente alienados e interditos.

1235 Manuel Borges Carneiro, Direito civil de Portugal, cit., 1, p. 184.


1236 António Mendes Arouca [1610-1680], Adnotationes practicae ad librum fere primum Pandectarum Juris
Civilis [...], cit., pt. 1, liv. 9. de stat. homin. ns. 157-158. Sobre a viúva gastadora, v. ainda Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 12, 10.
1237 Cf. sobre isto, António Manuel Hespanha, “O estatuto jurídico da mulher […]”, cit.; Id.

"Carne de uma só carne[…]”, cit.;.


1238 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., I. tit. 12, § 10, nº 3.

264
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

3.2 Família. Relações pessoais


§ 843. Para a cultura europeia pré-moderna, família constituía uma sociedade
organizada pela própria natureza, cujo regime se impunha, portanto, ao direito dos
reinos. É por isso que António da Natividade afirma, nos meados do séc. XVII,
que "o direito oeconomico, patriarcal ou da casa, que se exerce com o fundamento
na piedade, é mais exigente e devido, do que o político […]" 1239.
§ 844. A família tinha o seu princípio num ato cujo caráter voluntário a Igreja
não deixava de realçar, sobretudo na sequência do Concílio de Trento (1545-
1563)1240, onde se estabelecera, enfaticamente, que "a causa eficiente do matrimónio
é o consentimento"1241. Um consentimento verdadeiro e não fictício, livre de
coação e de erro e manifestado por sinais externos 1242. Porém, esta afirmação da
natureza consensual do casamento apenas queria dizer que se pretendia pôr freio às
pretensões das famílias de se substituírem aos filhos na escolha dos seus
companheiros. Fora deste contexto, era incontroverso que a vontade não podia
modelar a natureza e consequências do casamento, que decorriam forçosamente da
própria natureza da instituição que ele fizera surgir - o estado de casado, a família.
A teologia cristã explicava este paradoxo de um ato de vontade dar lugar a
consequências de que a vontade não podia dispor, concebendo a vontade de casar
apenas como uma matéria informe a que a graça divina vinha dar uma forma (i.e.
consequências) determinada.
3.2.1 O casamento.
§ 845. Na origem da família estava, portanto, o casamento ou matrimónio, um
ato juridicamente relevante tanto perante o direito temporal como perante o direito
espiritual (aqui, como sacramento1243).
§ 846. O casamento era definido como a união indissolúvel 1244 do macho e da
fêmea, para procriar e manter uma vida em comum 1245 e como remédio contra a
concupiscência1246. A finalidade da procriação estava estabelecida pela natureza
(pelo direito natural) (D.1,1,1,3) e também pela religião (“Crescite et
multiplicamini”, Gén, 1,22). Daí que o casamento partilhasse da natureza de
contrato e de sacramento. Como contrato, obedecia a uma série de normas do
regime geral do contrato, nomeadamente àquelas que exigiam a capacidade de
querer (vontade) e a sua liberdade, embora as exigências da natureza e da religião

1239 António da Natividade, Stromata oeconomica […], IV, cap. 3, n. 8, pg. 111.
1240 Sobre o concílio de Trento: http://www.storiadeldiritto.org/ uploads/5/9/4/8/5948821/
garlati_2011_famiglia.pdf
1241 Conc. Trident. sess. 24, cap. 1, nº 7. Cf. já no direito romano, D. 23.1, De sponsalibus; D.50, 17

De regulis iuris, 30 (“Nuptias non concubitus, sed consensus facit”).


1242 Daqui decorrem as principais causas de nulidade do casamento, que se relacionam com vícios

da vontade de cassar..
1243 A definição do casamento como um sacramento (causativum gratiae unitivae, causador da graça

da união) foi feita no concílio de Florença, de 1438.


1244 “Quod Deus conmunxit homo non separet” (Mateus, 10, 9), Antonio Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 2.


1245 “Maris et foemina conjunctio indiviuam vitae consuetudinem retinens”, Antonio Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 1


1246 “Remedium ad evitandam illicitam fornicationem”, Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...],

cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 2.

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limitasse aqui, de forma muito evidente, a plena liberdade de configurar pela


vontade os efeitos do contrato. Os teólogos e os canonistas exprimiam estas
limitações da eficácia da vontade, dizendo que o consentimento apenas constituía a
matéria sobre que a vontade de Deus, infundida pelo sacramento, atuava, criando a
forma da união1247.
§ 847. Esta presença de Deus no casamento fazia com que ele fosse
indissolúvel. Esta conclusão não foi clara e unânime até ao concílio de Trento (sess.
24, cap. 6, can. 12), porque a principal fonte escritural em que se fundava não era
de interpretação pacífica1248. De qualquer modo, o casamento só se tornava
indissolúvel com a consumação por meio de cópula carnal. Antes dela, o casamento
(“casamento rato mas não consumado”) podia ser dissolvido, durante um prazo de
dois meses depois da celebração1249, por um ou os dois cônjuges quererem entrar
em religião1250.
§ 848. Como o consenso era o elemento fundamental do casamento, os
ministros eram os próprios contraentes, ao pronunciarem a fórmula de mútua
aceitação como esposos; a presença do padre e das testemunhas era obrigatória e
condicionava a eficácia do casamento, mas apenas como um preceito canónico 1251.
Esta centralidade do consentimento fazia com que a vontade dos nubentes devesse
ser livre de constrangimentos externos, como a vontade dos pais ou a obrigação de
casar imposta por terceiro1252. Pela mesma razão, a promessa de casamentos
(esponsais, matrimónio “por palavras de futuro”) não podia estabelecer nenhuma
cláusula penal, para o caso de não se cumprir 1253. Como só uma vontade sã podia
obrigar, a validade do casamento estava afetada – embora em grau muito mais
restrito – pelos vícios da vontade (v. cap. 6.4). Assim, o erro sobre a qualidade do
outro contraente relevava, embora apenas em certas circunstâncias. De facto, era
nulo o casamento com escravo ou escrava que se pensava serem livres 1254, mesmo
que depois tivesse havido uma manumissão, pois se entendia que o consenso inicial
não compreendia o casamento com pessoa de condição servil. Isto também valeria

1247 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 3.
1248 Mateus, 5, 32 (“Mas eu digo que todo aquele que se divorciar de sua mulher, exceto por
imoralidade sexual, faz que ela se torne adúltera, e quem se casar com a mulher divorciada estará
cometendo adultério”); Santo Agostinho interpretava o texto como proibindo a dissolução, mas outros
teólogos tinham opinião contrária.
1249 “Bimestre”, v. Conc. Trento, sess. 24, cap. 6.

1250 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “De sacramento matrimonii”, n. 31.

1251 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 5 e 6.

Aliás, o casamento seria clandestino, o que implicava nulidade e penas canónicas arbitrárias, aplicadas
pelo juiz eclesiástico, cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento
matrimonii”, ns. 11 e 12.
1252 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium quoad libertatem”. Em todo o

caso, a ordenação Ord. fil. 4, 88, 1 privava da legítima a filha que tivesse casado sem autorização do pai.
Mas Gabriel Pereira de Castro, embora achasse que esta consequência era de direito civil e canónico,
ponderava que estas leis civis que introduziam entraves ao casamento eram feitas mais para atemorizar
do que para serem aplicadas (cf. Decisiones […], cit., dec. 10, ns. 1 e 2). V. adiante, cap. 3.2.4.
1253 Cf Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 40.

1254 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 64, a

não ser que, depois de conhecida a condição servil, houvesse cópula carnal, pois isso valia como um
novo consenso. Sobre o tema, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 61.

266
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

no caso de grande desproporção entre a qualidade nobre que se imaginava no outro


nubente e a que ele efetivamente tinha, como se se pensava casar com rei, duque,
marquês ou conde e nada disso se verificava 1255. Já o erro quanto ao nome, quanto
à fortuna, quanto à virgindade e quanto à saúde do outro contraente não
relevavam1256. Também a coação grave relevava. Assim, o casamento contraído sob
ameaça de morte não valia, mesmo se depois se consumou1257.
§ 849. O casamento estava ainda vedado aos incapazes, havendo porém
algumas especialidades, nomeadamente quanto à menoridade, que terminava, para
os varões, aos 14 anos e para as mulheres, aos 12 anos. O mudo podia casar, apesar
de não poder proferir as palavras sacramentais, desde que exprimisse exteriormente
o consentimento interior1258.
§ 850. Fora disto, o casamento estava vedado no caso de haver impedimentos,
bastando a fama pública e notória de impedimento para que o casamento não se
pudesse realizar1259. Os impedimentos dividiam-se em dirimentes, que causavam a
nulidade do casamento, e impedientes, que apenas adiavam a sua realização até que
pudessem ser sanados. Os impedimentos podiam ainda ser absolutos,
independentemente da relação entre as pessoas dos cônjuges, e relativos, ou
decorrentes de uma especial relação entre eles.
§ 851. Os impedimentos dirimentes derivavam do direito natural ou do direito
divino e, por isso, não podiam ser dispensados, ou só o podiam ser pelo papa e
com justa causa1260.
§ 852. O primeiro dos impedimentos dirimentes absolutos era a existência de
casamento anterior. Como o casamento era indissolúvel, era nulo o casamento com
segundo cônjuge, vivendo o primeiro1261. Para além do mais, isto era crime (de
bigamia, equivalente a heresia; v. cap. 8.2.2), importando infâmia, exílio, perda de
ofícios e dignidades e confisco1262.
§ 853. O segundo impedimento era o do sacramento de ordens, pois não
podiam casar: o clérigo de ordens sacras, os monges e os jesuítas com os três votos
da ordem1263. A nulidade do casamento e a excomunhão eram as consequências da
violação do preceito1264.
§ 854. O terceiro impedimento era o da falta de idade núbil, pela qual se

1255 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 64.
1256 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 63 e
65.
1257 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 39.

Tende para exigir que haja protesto da ameaça anterior ao casamento. Também, Diogo Marchão
Themudo, Decisiones […], cit, dec. 58 (medo de morte, prisão, estupro ou infâmia).
1258 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 4.

1259 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 44.

1260 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 33.

Alguma doutrina não admitia qualquer dispensa, fundada no caráter natural ou divino das normas que
estabeleciam os impedimentos, ibid, n. 33.
1261 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 34.

1262 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 34. O

conhecimento era de foro misto, fixado por prevenção..


1263 Depois de um motu proprio de Gregório X, de 1584.

1264 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 54.

267
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presumia existir capacidade de gerar e de, portanto, cumprir a finalidade maior do


casamento. Por isso, estavam impedidos de casar os rapazes menores de 14 anos e
as raparigas menores de 12. Admitia-se, porém, o casamento de rapariga próxima
da idade núbil, se o marida afirmasse que já tinha tido cópula come ela 1265.
§ 855. Também era impeditiva a diferença de religião. Assim, o batizado não
podia casar-se com não batizada (como moura ou judia), sob pena de nulidade. Isto
não implicava o não reconhecimento do casamento entre infiéis que, como
contrato, valia, nem sequer se dissolvendo quando um ou os dois cônjuges se
convertiam e se batizavam1266. No caso de se converter apenas um, a subsistência
do casamento estava condicionada ao facto de o infiel estar disposto a coabitar com
o fiel sem ofender a religião. No caso de um cair em heresia, o casamento
mantinha-se1267.
§ 856. Podia-se desposar uma mulher pública. Mas não estava em uso nas
Espanhas o costume de perdoar ao condenado que, sendo levado ao suplício, fosse
abordado por uma prostituta pedindo para se casar com ela e acedesse a isso 1268.
§ 857. Os impedimentos dirimentes relativos derivavam do parentesco, da
afinidade, do rapto, do adultério e do conjugicício.
§ 858. O parentesco, que só relevava se existisse à data do casamento (mas não
o superveniente1269) podia ser carnal, espiritual, de honestidade pública ou civil. O
primeiro correspondia ao parentesco de sangue, relevando sem limites nas linhas
descendente e ascendente (entre descentes e ascendentes) e até ao quarto grau de
direito canónico nos transversais (3.os primos). O parentesco espiritual unia entre
padrinhos (de batismo ou de crisma) e afilhados e sua parentela, também até ao 4º
grau1270. O parentesco de honestidade pública unia os esposados e seus parentes,
mas só no 1º grau, e os unidos por casamento rato e não consumado, até ao 4º
grau1271. O parentesco civil unia os adotantes e adotados e sua parentela até ao 4º
grau1272.
§ 859. A afinidade unia uma pessoa aos parente do cônjuge (mas não amante
ou concubina1273). Os seus graus eram os mesmos dos graus de parentesco do
cônjuge. Relevava também até ao 4º grau.
§ 860. Tanto o parentesco ou a afinidade não impediam se fossem

1265 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 60 e

61. A idade mínima para casar por palavras de futuro (esponsais) eram os 7 anos. Os esponsais
obrigavam até que, sobrevinda a idade núbil, fossem confirmados quebrados, Antonio Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 62.
1266 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 71

1267 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 72.

1268 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 59.

1269 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 68 e

74.
1270 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 48.

1271 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 50.

1272 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 55 (não

incluía a mãe do adotado, talvez para permitir o casamento do adotante com ela).
1273 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 51 (se

alguém se casa com Berta, depois não pode casar com parenta sua até ao 4º grau).

268
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

legitimamente desconhecidos dos cônjuges1274.


§ 861. O rapto da mulher (a única hipótese a que as fontes se referem)
também constituía um impedimento dirimente, que só desaparecia se a raptada,
posta em liberdade, concordasse com o casamento (sess. 24, cap. 6).
§ 862. Também não se podia casar com quem se tivesse tido relações vivendo
o primeiro cônjuge (a primeira mulher), desde que se tivessem feito maquinações
para o (a) matar e promessas de casar com a amante. As três condições tinham que
se verificar concomitantemente1275. Era o impedimento do adultério (que a
literatura descreve sempre como adultério do marido, possivelmente por se achar
inimaginável que isso ocorresse com uma mulher).
§ 863. Os impedimentos meramente impedientes eram a celebração do
casamento em tempo proibido1276, a existência de esponsais com outra pessoa, o
casamento de católico com herege1277, a ignorância da doutrina, a dúvida sobre a
existência de um impedimento. Podiam ser dispensados pelo bispo.
§ 864. O casamento devia ser celebrado pelo pároco da terra em que os noivos
morassem, ou por outro padre, com licença do primeiro1278. Devia ser precedido
por anúncios públicos, lidos na missa e afixados na porta da igreja (proclamas,
banhos ou editais), para que fossem denunciados os impedimentos. Podiam ser
dispensados no caso de suspeita fundada de que o casamento podia ser
maliciosamente perturbado1279. Podia ser contraído por procuração, que contivesse
um mandato expresso1280.
§ 865. O casamento provava-se por coabitação contínua e auxílios mútuos e
pelo registo paroquial1281.
§ 866. O casamento celebrado e consumado (ratum et consumatum) era
indissolúvel em vida dos cônjuges. Mas podia dissolver-se quanto à cama (torus) e
habitação. Esta separação (ou divórcio, termo também usado na época 1282) – que
tinha que ser decretada pelo juiz eclesiástico1283, depois de ponderação prudente da
situação (causa cognita et bene ponderata)1284 – tinha que ser fundada num elenco
restrito de causas, que se enumeram de seguida.

1274 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 53.
1275 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 57.
1276 Só havia tempos proibidos para os casamentos solenes: do advento até a epifania, da 4ª feira

de cinzes até à oitava da Páscoa, Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento
matrimonii”, n. 73.
1277 Podia ser dispensado, mas requeria normalmente certas condições, como a educação católica

dos filhos.
1278 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 13 e

15.
1279 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 7 e 9.

1280 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 16

1281 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 58; Cf.

Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium quoad probationem”.


1282 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium quoad divortium”.

1283 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 35.

1284 Tanto mais “que haveria mulheres – escreve Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“De sacramento matrimonii”, n. 18 - que se queriam separar dos maridos para poderem viver
luxuriosamente”.

269
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§ 867. O adultério de qualquer dos dois era a primeira causa de separação. A


doutrina enumerava casos em que a mulher podia eximir-se da culpa (se o marido
também a traía, se tivesse sido prostituída por ele, se tivesse tido relações por erro,
pensando erradamente que era com o marido, se tivesse sido forçada, se o marido
se reconciliou com ela, se, sendo casada com um infiel, por ele tivesse sido
repudiada)1285.
§ 868. A impotência (impotentia coeundi) de um dos dois cônjuges ao tempo do
casamento, fosse ela causada pela idade, pela natureza, ou por artes maléficas,
perpétua (incurável) e provada por prova objetiva era também causa de separação.
Mas, se o outro cônjuge sabia dela, ficavam casados, unidos como irmãos 1286. Já a
doença superveniente (mesmo a lepra, a mais temida na época) não era fundamento
de separação. Pelo contrário, ambos os cônjuges continuavam obrigados ao débito
conjugal relativamente ao doente1287
§ 869. Os maus tratos, incluindo a tentativa de homicídio, a violência física, a
violência sexual e os ralhos desproporcionados ao estatuto da mulher, eram outras
causas de separação1288 Também a prática de crimes de lesa majestade podia
justificar o pedido de separação1289
§ 870. O marido podia ainda pedir a separação se a mulher frequentasse
homens estranhos, se ficasse fora de casa à noite (sem ser em casa dos pais), se
frequentasse teatros, contra a vontade do marido 1290.
3.2.2 Os esponsais.
§ 871. O casamento – que era a manifestação da decisão presente de casar
(logo, “palavras de presente”) - podia ser antecedido de uma promessa mútua de
casar, no futuro (logo, palavras de futuro), a que se chamava esponsais. Para serem
válidos, os esponsais1291 requeriam a capacidade nupcial, a liberdade das vontades e
uma manifestação pública das vontades1292 1293. Havia alguma ambiguidade no
termo esponsais, que tanto designava uma promessa presente de união (um
verdadeiro casamento) ou, em sentido mais rigoroso, apenas uma promessa de vir a

1285 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, ns. 19,

20, 23 e 25A masturbação constituía adultério, íbid. n. 21.


1286 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 68.

1287 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 70.

1288 O juiz eclesiástico inquiria sumariamente das sevícias, sem citação das partes (sine strepitu et

figura iudicii), mandando a mulher para casa de outra mulher honesta, onde pudesse viver segura,
Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 29.
1289 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 26.

1290 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “De sacramento matrimonii”, n. 30.

1291 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sponsalia”: Bento Pereira, Promptuarium

[…], cit., v. “Matrimonium quoad sponsalia”,


1292 Sobre os esponsais e seu regime, em Portugal, no séc. XVIII, v. Maria da Conceição Meireles

Pereira, "Os esponsais - forma e significado no contexto da sociedade portuguesa de setecentos”,


Revista da Faculdade de Letras. História, Porto, - 2ª série, 5 1988), p. 189-210
http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2109.pdf; também, Id. Casamento e sociedade na 2ª metade do séc.
XVIII: o exemplo da paróquia do Socorro, Porto, 1987; Ana Maria Santos da Nóbrega de Oliveira Braga,
“Para uma história do casamento em Portugal nos finais do Antigo Regime : o quadro normativo ”,
diss. Mestrado em História Moderna, Univ. do Porto, 1990, 171 p..
1293 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 5, 2 e 3.

270
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

casar no futuro. Ao passo que o casamento gerava uma situação (status) permanente
e indissolúvel, os esponsais geravam apenas um impedimento impediente de novo
casamento - não podendo quaisquer dos desposados contrair casamento, antes de
dissolvido o laço esponsalício – e uma obrigação da casar. Esta podia ser dissolvida
por consenso entre os nubentes ou por decisão do tribunal (eclesiástico), embora a
sua violação unilateral importasse penas espirituais (a excomunhão, tendo este
regime evoluído para outros mais complacentes, por volta do séc. XVIII) e
temporais (multas, indemnização do outro nubente, prisão 1294). Todavia, teve que
haver um equilíbrio entre o cumprimento forçado desta obrigação e o princípio da
liberdade de casar. No sentido de forçar o cumprimento iam os interesses do
preterido e da sua família, pois a recusa de casar correspondia a um desrespeito
grave, mesmo a uma injúria, que comprometia a honra. Mas militava no sentido
inverso o caráter pessoal e livre do casamento. Daí que a Igreja aconselhasse os
seus juízes a procurarem soluções consensuais para estes diferendos e que os
práticos – sobretudo depois da lei de 6.10.1784 - aconselhassem as partes a apor
nos contratos de esponsais uma cláusula penal, definindo o valor da indemnização a
pagar no caso de se faltar à promessa, o que facilitaria os acordos 1295. À medida que
se foi restabelecendo o princípio de que a validade do casamento estava
dependente, não apenas do consenso dos nubentes, mas também da autorização
dos pais (v. cap. § 894), foi-se requerendo que estes interviessem também nos
esponsais, dando o seu assentimento. Suplementarmente, podia ser necessária a
autorização do rei, para certas categorias de pessoas, como os donatários de bens da
coroa1296.
3.2.3 Marido e mulher.
§ 872. A primeira das consequências do casamento era a obrigação, para os
dois cônjuges, de se entregarem um ao outro, gerando uma unidade em que ambos
se convertiam em carne de uma só carne ("Erunt duo in una caro" [serão os dois
uma só carne], Genesis, 2). Esta união mística dos amantes já ocorria pelo facto
mesmo do amor que, de acordo com a análise psicológica dos sentimentos
empreendida pela escolástica, fazia com que a coisa amada se incorporasse no
próprio amante 1297. Com o casamento, esta unificação dos amantes ganhava
contornos físicos, pois os cônjuges ficavam - passados dois meses de reflexão, o
bimester, em que nenhum deles podia ser forçado à consumação carnal do
casamento 1298 - a dever um ao outro a entrega corporal (traditio corporis), tornando-
se tal entrega moral e juridicamente exigível (debitum conjugale)1299.

1294 Nomeadamente, de a quebra da promessa ter sido acompanhada de coabitação ou cópula com

outra pessoa (v. Ord. fil.5, 23).


1295 Cf. Maria da Conceição Meireles Pereira, "Os esponsais […]”, cit., 200 ss..

1296 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 5, 5 a 7.

1297 Cf. S. Tomás de Aquino, Sum. theol. 1a.2ae, qu. 37, p. 267.2.

1298 O bimester tinha como finalidade permitir a qualquer dos cônjuges uma última reflexão sobre o

ingresso no estado religioso. Mas, subsidiariamente, destinava-se a aumentar, pela espera, o desejo de
consumação (Antonio San Jose, Compendium […], cit., tract. 34, II, n. 110).
1299 As limitações ao dever de entrega eram poucas: doença sexual transmissível, demência,
embriaguez, pendência de divórcio, incapacidade da mulher para dar à luz filhos vivos (mas não já
perigo de parto difícil). Algumas destas causas de inexigibilidade do débito conjugal cessavam sempre
que a recusa causasse perigo de desavença ou de incontinência (e, logo, pecado) do outro cônjuge
(Antonio San Jose, Compendium […], cit., tract. 34, II, n. 135 ss.). Fora destes casos, a exigência de

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§ 873. Justamente porque se enraizava na natureza, o matrimónio devia ter um


uso honesto; ou seja, devia consistir em práticas (nomeadamente sexuais) cuja forma,
ocasião, lugar, frequência, não dependiam do arbítrio ou do desejo dos cônjuges,
mas de imperativos naturais. Assim, a mútua dívida sexual dos esposos estava
ordenada à satisfação das finalidades naturais e sobrenaturais do casamento1300.
§ 874. São justamente estas finalidades e a sua hierarquia que explicam o
conteúdo dos deveres mútuos dos cônjuges, nomeadamente no plano da disciplina
da sexualidade matrimonial. Na verdade, o facto de a reprodução aparecer como a
finalidade principal do casamento implicava que a sexualidade apenas fosse tida
como natural desde que visasse este fim. Seriam, desde logo, contra natura todas as
práticas sexuais que visassem apenas o prazer 1301, bem como todas as que se
afastassem do coito natural e honesto - vir cum foemina, recta positio, recto vaso (homem
com mulher, na posição certa 1302, no "vaso" certo). Daí a enorme extensão dada ao
pecado (e ao crime) de sodomia (v. cap. 8.2.2.1, que incluía não apenas as práticas
homossexuais, mas ainda todas aquelas em que, nas relações sexuais, se impedisse
de qualquer forma a fecundação. Mesmo que "natural", a sexualidade matrimonial
não devia estar entregue ao arbítrio da paixão ou do desejo, antes se devendo
manter nos estritos limites do honesto. Assim, a sexualidade - e, particularmente, a
sexualidade da mulher - era drasticamente regulada por aquilo a que os teólogos e
moralistas chamavam o "uso honesto do casamento". O coito não devia ser
praticado sem necessidade ou para pura satisfação da concupiscência, antes se
devendo observar a moderação1303. Em rigor, devia terminar com o orgasmo do
homem, pois, verificado este, estavam criadas as condições para a fecundação. Os
esposos deviam evitar, como pecaminosas, quaisquer carícias físicas que não
estivessem ordenadas à prática de um coito honesto. Pecado grave era também o
deleite com a recordação ou imaginação de relações sexuais com o cônjuge 1304. Para
além disso, o coito podia ser desonesto quanto ao tempo 1305 e quanto ao lugar 1306.

relações sexuais tinha que se conformar, como se verá, àquilo que era considerado como um "uso
honesto" do casamento (Antonio San Jose, Compendium […], cit., ibid.; Francisco Larraga, Promptuario
[…], cit., tract. 9, 8).
1300 Segundo a teologia moral da época, as finalidades do casamento eram: (i) a procriação e

educação da prole; (ii) a mútua fidelidade e sociedade nas coisas domésticas; (iii) a comunhão espiritual
dos cônjuges e (iv) - objetivo consequente à queda do género humano, pelo pecado original - o remédio
contra a concupiscência.
1301 "Copula [vel osculi, amplexus, tactus vel delectatio memoriae] ex sola delectatione [...] habet

finem indebitum" (a cópula, beijos, abraços, afagos ou o deleite pelas recordações que visem apenas o
prazer têm um fim indevido), Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, n. 149 e 156 ss..
1302 Sobre a gestualidade sexual, v. Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, ns. 158

ss.: condenação de todas as posições sexuais diferentes daquela que veio a ser conhecida como a
"posição do missionário" (amantes deitados, voltados um para o outro, com o homem por cima). Tal
opção não era arbitrária, mas antes justificada com argumentos ligados à natureza e finalidade do coito
humano: na verdade, esta posição seria a que melhor garantiria a fecundação, denotava a superioridade
do homem e, pondo os amantes de frente um para o outro, realçava a dimensão espiritual do ato.
1303 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, ns. 158/160.

1304 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, 163.

1305 Durante a menstruação, a gravidez e o puerpério (Antonio de San Jose, Compendium [...],

cit., tract. 34, ns. 150-153), durante a Quaresma e dias santos de guarda (ibid. 150).
1306 Em lugar público ou sagrado (salva necessitate ...); o mesmo valia para as carícias (Antonio de San

Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, n. 156).

272
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 875. É certo que, não sendo a procriação a única finalidade do casamento,


estes princípios acabavam por sofrer algumas restrições. Admitia-se, por exemplo,
que os cônjuges pudessem fazer entre ambos voto de castidade, sacrificando as
finalidades terrenas da sua vida em comum (procriação e adjutório mútuo) a um
objetivo de natureza puramente espiritual - a união das suas almas até à morte. Ou
que se excedessem os limites honestos do débito conjugal, para evitar que, levado
pelos impulsos da sensualidade, um dos cônjuges fosse levado a pecar,
satisfazendo-os fora do matrimónio.
§ 876. Esta união entre os cônjuges gerava, porém, vínculos suplementares,
tecendo entre todos os elementos da família uma rede afetiva a que os moralistas
chamavam piedade familiar, mas que os juristas não deixavam de classificar como
direito, um direito de tal modo enraizado na natureza que até das feras era
conhecido ("vemos que também os outros animais, e até as feras, parecem ter
conhecimento deste direito", escreve o jurista romano Ulpiano, num texto muito
conhecido do início do Digesto [D.1,1,1,3]).
§ 877. A união dos cônjuges dava também à esposa direitos de uso exclusivo
sobre o corpo do marido em matéria de intimidade e de sexo; daí que este lhe
devesse fidelidade (Ord. fil.5,25), embora a tutela jurídica do adultério1307 do marido
fosse muito menos forte do que a do adultério da mulher (v. cap. 8.2.2.2)1308. Por
isso, havia autores que relacionavam a exigência de fidelidade do marido apenas
com a pedagogia pelo exemplo ou com uma regra geral de equidade (não exigir de
outrem aquilo que o próprio não pratica1309).
§ 878. Unida pelo amor, a família constituía um universo totalitário, em que
existia apenas um sujeito, apenas um interesse, apenas um direito, não havendo, no
seu seio, lugar para a discussão sobre o meu e o teu (a "justiça"), mas apenas para
considerações de oportunidade, deixadas ao arbítrio do bonus pater familias (a
"oeconomia") 1310.
§ 879. As relações entre marido e mulher 1311 estavam desenhadas sobre a
antropologia do amor conjugal, tal como então se entendia. Um amor igual e
desigual ao mesmo tempo. Igual, porque se baseava numa promessa comum e
recíproca de ajuda, de fidelidade e de vida em comum, promessa cujo
cumprimento, por seu lado, seria decisivamente facilitado pela igualdade da
condição e riqueza dos cônjuges1312.
§ 880. Esta identidade da família justificava a ideia comum de que a vida de
casados seria decisivamente facilitada pela igualdade da condição e riqueza dos

1307 Sobre o adultério da mulher e do marido, Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis […], cit.,
10, 2 ss..
1308 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 10, 2.
1309 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 7, 6.
1310 Cf. Antonio da Natividade, Stromata […], cit, op. 4, c. 3, n. 2/3, pg. 110. Existem algumas

limitações a este princípio, consubstanciadas em direitos dos filhos (v.g. "alimentos", dotes, bens
integrados em pecúlios próprios), da mulher (v.g. "alimentos" ou reparação de "injúrias"), dos criados
(v.g. "soldadas") e, até, dos escravos (v.g. a vindicação da "liberdade" ou reparação de "injúrias"),
oponíveis judicialmente ao pater.
1311 Cf. em geral, António da Natividade, Stromata [...], cit., op. 9.

1312 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d.1, 3, 36/40.

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cônjuges1313, embora esse equilíbrio de estados e patrimónios não constituísse uma


cláusula do direito. O próprio casamento tinha esse efeito igualizador pois fazia
com que a mulher participasse do estado, privilégios e dignidade do marido,
podendo usar dos seus títulos e brasão, ou, em contra partida, perdendo o direito
ao estado e dignidade paternos, de que gozava antes do casamento1314. Embora esta
exigência de igualdade pudesse não ser suficiente para passar por cima de diferenças
muito marcadas de estatuto. Assim, segundo Pascoal de Melo 1315, o estatuto mais
desfavorável do marido plebeu só prejudicava a esposa nobre no caso em que se
justificasse assinalar a natureza chocante do casamento, pela grande diferença entre
os estatutos dos dois cônjuges1316. A identidade explicava, depois, que a esposa
tivesse o domicílio do marido (Ord. fil.1,91,7; 2,59,15; 3,86,23).
§ 881. Porém, o amor entre os cônjuges era, sob outro ponto de vista,
desigual. Desigual, porque, em virtude da diferente natureza do homem e da
mulher, os sentimentos mútuos dos cônjuges - e, logo, os deveres correspondentes
- não eram iguais nem recíprocos. Uma boa ilustração disto é o adultério. Embora
fosse, em qualquer caso, igualmente censurável do ponto de vista da moral abstrata
(pois ambos os adúlteros violavam a mútua obrigação de fidelidade), a moral
positiva julgava-o diferentemente, já que o adultério da mulher não apenas fazia cair
o opróbrio sobre os filhos e obscurecia a paternidade dos filhos (turbatio sanguinis),
como - segundo o célebre jurista Baldo (séc. XIV) - causava aos maridos uma dor
maior do que a da morte dos filhos 1317.
§ 882. Para além da desigualdade do amor, as desigualdades naturais dos sexos
faziam com que esta comunhão dos esposos fosse fortemente hierarquizada. Na
verdade, eles constituíam uma só carne; mas, nesta reintegração num corpo
novamente único, a mulher parece que tendia a retomar a posição de costela do
corpo de Adão.
§ 883. A subalternização da esposa tinha uma lógica totalitária no ambiente
doméstico. Começava logo nos aspetos mais íntimos das relações entre os
cônjuges. Assim, na consumação carnal do casamento. Já que se entendia que a
perfeição do ato sexual se dava com o orgasmo do homem, sendo dispensável o da

1313 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d.1, 3, 36/40
1314 Com limitações: a esposa do rei não tinha a dignidade real sugerida em textos do direito
romano (isenção de obediência às leis; regalia), embora pudesse gozar de estatutos especiais, como os
previstos na lei portuguesa para a jurisdições da rainha (Ord. fil. 2, 45; leis sobre a Casa das Rainhas:
10.2.1642; 10.1.1643; v. http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4164777), ou para uma proteção penal
especial. Também o marido da rainha podia não se tornar rei se não cumprisse os requisitos
estabelecidos nas Leis Fundamentais do reino (em Portugal, ter o casal pelo menos um filho varão).
1315 Institutiones iuris civilis, cit., 2, 5, 8.

1316 Os filhos de matrimónios desiguais seguiam a condição do pai, Jorge de Cabedo, Decisiones

[…], cit., p. 1, dec. 98, pg. 213.


1317 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, liv.1, d.1, 3, n. 42. Daí que os juristas entendam

que o adultério mútuo e recíproco não se pode compensar, pois "a impudícia na mulher é muito mais
detestável do que no homem", ibid. 3, liv.3, d.4, 2, n.41. É também esta desigualdade, do amor, do
ciúme e da dor que faz com que o marido não seja punido (no secular, pois, no espiritual, sempre
incorre em pecado mortal) se matar a mulher colhida em flagrante de adultério (desde que mate também
o seu parceiro) (Ord. fil.5, 38, pr.; comentário, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, liv.1, d.1, 3,
63).

274
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mulher 1318.
O que decorria do facto de se considerar como meramente passivo e
recipiente o papel da mulher na gestação, na qual se limitava a contribuir com a
matéria bruta a que o homem daria a forma. Esta hierarquização devia tornar-se
visível na própria gestualidade do ato sexual. De facto, seria contra natura o coito
"praticado de pé, sentado ou em posição invertida, estando o homem por baixo e a
mulher por cima" 1319. Numa palavra, a própria expressão dos corpos devia
evidenciar a posição dominante do homem.
§ 884. A subordinação da esposa manifestava-se, depois, no plano dos atos
externos, de natureza pessoal e patrimonial. Estava sujeita ao poder do seu
marido 1320, o que se traduzia numa faculdade generalizada de a dirigir 1321, de a
defender e sustentar 1322 e de a corrigir moderadamente 1323, embora isto incluísse a
morte pelo marido quando surpreendida em flagrante de adultério (Ord. fil.5,38,pr.;
este direito não se estendia ao pai). Deste poder de correção estava privada a
mulher. Ao explicar porque é que a mulher não podia, ao contrário do marido,
abandonar o marido adúltero (a não ser no caso de "correr o risco de perversão ou
de incorrer em pecado"), um moralista de seiscentos explica que "à mulher não
compete a correção do homem, como a este compete a correção daquela, pois o
marido é a cabeça da mulher e não o contrário" 1324. No plano processual, a mulher
não podia estar em juízo sem a autorização do marido, salvo em casos excecionais
(v. cap. 7.1.7.1 e 7.1.7.2), como para obter a revogação da alienação de imóveis feita
pelo marido sem seu consentimento (Ord. fil.4,48,2) ou para revogar doações do
marido à concubina (Ord. fil.4,66).
§ 885. Este imaginário dos sentimentos familiares constitui o eixo da
economia moral da família de Antigo Regime e do seu estatuto institucional. As
suas grandes linhas - naturalidade, preferência dos laços generativos (agnatícios, de
"parentesco") aos laços conjugais (cognatícios, "de afinidade"), organicidade e
unidade da família, sob a égide do pater - estão predeterminados por esta
antropologia do amor familiar e modelam também as relações entre pais, filhos e
restante parentela.

1318 "O matrimónio só se consuma pela cópula, pela qual os cônjuges se tornam numa só carne, o

que não se verifica sem a emissão de sémen pelo homem [...]”, Antonio de San Jose, Compendium [...],
cit., tract. 34, II, n. 121.
1319 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, II, n. 158.

1320 Sobre a sua natureza jurídica, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 7, 2. A inferioridade

da mulher quanto ao poder sobre os filhos do casal decorre, como reconhecem os juristas na segunda
metade do séc. XVIII, de respeitos que têm mais a ver com os mutáveis costumes das nações do que
com a natureza do casamento (v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 4, 6).
1321 Administrando os seus bens com bastante liberdade (Ord. fil.4, 48; 60; 64; 66; cf. Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 7, 4 e respetivas notas de Lobão); representando-a em juízo (Ord. fil.3,
47).
1322 V. Ord. fil.4, 103, 1; à mulher e às suas criadas, mesmo para além das forças do dote (João

Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, liv.3, d.4, 1, n. 9, pg. 172).


1323 V. Ord. fil.5, 36, 1; 5, 95, 4. A propósito da moderação dos castigos, Pascoal de Melo comenta

que, em Portugal, mais nas classes populares do que nas elevadas, o castigo frequentemente
degenerava em sevícias, por causa das quais quotidianamente se afadigavam os juízes (Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, 2, 7, 2).
1324 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, II, n. 151.

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3.2.4 Filhos.
§ 886. Natural era o amor entre os esposos. Mas natural era também a sua
primordial ordenação em relação à procriação. Daí que, contrariamente a algumas
tradições “contratualistas” que vinham do direito romano, o elemento estruturante
da sociedade familiar fosse o facto natural da geração.
§ 887. Assim, filhos eram, antes de mais, os que o eram pelo sangue,
independente de terem nascido na constância do casamento 1325. Isto é
particularmente verdade em Portugal, onde (contra a regra do direito comum), os
filhos naturais de plebeus estavam equiparados aos legítimos, pelo menos no plano
sucessório (Ord. fil.4,92). Já os dos nobres, embora adquirissem a qualidade nobre
do pai e tivessem direito a alimentos, careciam da legitimação régia para herdar (v.
cap. 5.3.1.1). Mas quanto à principal obrigação dos pais - o sustento e educação -
filhos eram todos, os legítimos, os ilegítimos e até, com alguma limitação 1326, os
espúrios (i.e. aqueles cujos pais não eram nem poderiam ser casados, por existir
entre eles algum impedimento não relevável [impedimento dirimente, v. cap. 3.2.1],
como o estado clerical ou um prévio casamento com outrem) 1327.
§ 888. A qualidade de filho provava-se, principalmente, pelo tratamento como
filho (tractatus filiationis). A doutrina considerava que esta prova era muito difícil, já
que se baseava sempre em conjeturas e presunções. Todavia, a criação, a educação,
o dote, com a fama pública de serem pai e filho, eram indícios muito fortes 1328.
Insuficiente era o facto de o pai confessar a paternidade ou chamar de “filho”. A
prova de que o pai dormia com a mãe ao tempo da conceção podia ser destruída
pela alegação de que ela convivia com vários homens (exceptio plurium)1329.
§ 889. Se todo o grupo familiar estava ligado por deveres recíprocos, os mais
estritos eram, porém, os deveres entre pais e filhos, cuja naturalidade e profundeza
excederiam, inclusivamente, a dos deveres entre os cônjuges 1330.
§ 890. Os principais deveres do paterfamilias para com os filhos correspondiam
às suas obrigações naturais: (i) o de os educar, espiritualmente1331, moralmente1332 e

1325 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Filius”; Bento Pereira, Promptuarium

[…], cit., s. v. “Filius …”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 4 a 6.
1326 No caso dos filhos legítimos e naturais, os alimentos eram devidos de acordo com a qualidade

e possibilidades do pai; nos espúrios apenas segunda a sua necessidade (ut fame non pereant), João Baptista
Fragoso, Regimen […], cit., p. 3, p. 153 (o A. afasta-se desta opinião, que seria a recebida, sendo
favorável à plena equiparação entre todos).
1327 Para além dos naturais, filhos eram ainda os que tivessem sido objeto de adoção, nos termos

de institutos que vinham do direito romano, onde tinham tido grande difusão. Cf. João Baptista
Fragoso, Regimen […], cit., p. 3, liv.1, d. 2, 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 5, 9; a
adoção, por ser uma graça "contra direito" devia ser autorizada pelo rei (i.e. pelo Desembargo do Paço,
Ord. fil.1, 3, 1).
1328 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 76, n. 6 e ss.; Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,

cons. 176, n. 2 ss..


1329 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 134, n. 2.

1330 Cf. Antonio da Natividade, Stromata [...], cit., op. 5, per totum.

1331 Cf. sobre o seu conteúdo (doutrina sagrada; pelo menos, o credo, o decálogo, o padre-nosso

e os principais mistérios da fé (João Baptista Fragoso, Regimen [...]. cit., p. 3, liv.1, d.1, 6, pg. 21 s.).
Também, Antonio da Natividade, Stromata [...], cit., op. 10).
1332 João Baptista Fragoso, Regimen [...]. cit., p. 3, liv.1, d.1, 4, n. 52, pg. 15 (sobre a moralidade

das filhas).

276
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

civilmente, fazendo-lhes aprender as letras (pelo menos, dando-lhes os estudos


menores), e mandando ensinar-lhes um ofício e, caso nisso concorressem as
qualidades da família e as aptidões do filho, facultando-lhes estudos maiores1333; (ii)
o de lhes prestar alimentos, nisso se incluindo a bebida, a comida, a habitação, e
tudo o mais que pertencesse ao sustento, como o vestir, calçar e medicamentos1334;
e (iii) o de os dotar para matrimónios carnais ou religiosos 1335.
§ 891. Em contrapartida, os pais eram os titulares dos direitos patrimoniais
que os filhos adquirissem e gozavam o direito de os dirigirem e orientarem.
§ 892. A titularidade dos direitos dos filhos significava que estes adquiriam
para os pais. Este princípio era atenuado pelo facto de os filhões poderem possuir
certos bens por disposição e benevolência dos pais, os chamados pecúlios.
§ 893. Os filhos deviam aos pais gratidão, obediência e obséquios 1336. O dever
de gratidão obrigava os filhos, ainda que naturais ou espúrios, a ajudar os pais
necessitados, quer em vida, ministrando-lhe o auxílio de que carecessem, quer
depois de mortos, fazendo-lhe as exéquias e dando-lhes a sepultura, de acordo com
a sua qualidade e assegurando missas por suas almas 1337. Mas, além disso, impedia
por exemplo, que o filho acusasse o pai em juízo (v. cap. 7.1.7.1 s.) ou que o
matasse, ainda que para defender um inocente 1338. O dever de obediência obrigava-
os a respeitar e acatar as decisões dos pais 1339.
§ 894. Em alguns aspetos fundamentais, o concílio de Trento veio minar este
dever de obediência, ao sublinhar o caráter essencialmente voluntário dos atos
relativos à fé, no número dos quais entravam, no entanto, alguns de grande relevo
externo. Assim, punia com a excomunhão qualquer pessoa (e, portanto, também os
pais) que forçasse outra a tomar o estado religioso (sess. 25, De reformat. cap. 18).
§ 895. Mas o mesmo se passava quanto a decisões ainda mais críticas para a
política familiar - as relativas ao casamento. O Concílio enfatizava, de facto, o
caráter livre e voluntário do matrimónio. Daí que fulminasse com a excomunhão
quem atentasse contra a liberdade matrimonial e dispensasse os párocos de se
assegurarem da autorização dos pais dos nubentes, já que este requisito podia
impedir uniões queridas pelos próprios (sess. 24, de reformat. c. 1).
§ 896. Porém, os direitos dos reinos, mais atentos aos interesses políticos das
famílias do que ao caráter pessoalíssimo das opções de vida, continuavam a

1333 V. Ord. fil.4, 97, 7; v. também, sobre o alcance desta obrigação paterna, João Baptista Fragoso,

Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d.1, 6, ns. 96 ss. (em Portugal, seria costume dever o pai custear os
estudos e livros universitários do filho, mesmo que não concordasse com eles). Tudo isto limitado,
naturalmente, pela condição familiar e pelas posses do pai. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), no
Tratado das acções recíprocas […], cit., 47 ss. entende que os pais nobres estão obrigados a pagar os estudos
até ao grau de bacharel ou de doutor ( 48).
1334 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, liv.1, d.2, 1; Antonio da Natividade, Stromata [...],

cit., op. 9; Lobão, 1828, 1 ss..


1335 Joao Baptista Fragoso, Regimen […], loc. cit.; António da Natividade, Stromata [...], cit., op. 2;

Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), no Tratado das acções recíprocas […], cit., 56.
1336 Cf. António da Natividade, Stromata [...], cit., op. 5.

1337 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, l liv.1, d.2, 8, ns, 226/227, p. 65; e liv.2, d.3, 2,

n. 44, p. 86.
1338 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, liv.1, p.1, d.1, 2, n.21.

1339 Em contrapartida, o pai podia castigar os filhos desobedientes, embora - tal como no caso da

mulher - nos limites de uma moderata domestica correctio, não lhes causando feridas, mutilações ou a morte.

277
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proteger o poder paternal. Era este o sentido da legislação de vários reinos


europeus que, sobretudo a partir dos meados do séc. XVIII, passaram a punir
severamente os nubentes que desobedecessem a seus pais.
§ 897. Em Portugal, as Ordenações deserdavam as filhas menores (de 25 anos)
que casassem contra a vontade dos pais (Ord. fil.4,88,1); e, em complemento,
puniam com degredo quem casasse com mulher menor sem autorização do pai
(Ord. fil.5,18). Mas as disposições liberalizadoras do Concílio de Trento, difundidas
por teólogos e canonistas, influenciaram decisivamente párocos e tribunais,
chegando os juristas a discutir a legitimidade destas leis régias que, indiretamente,
coartavam a liberdade do matrimónio.
§ 898. Porém, esta insistência na liberdade de casar não podia deixar de
perturbar a disciplina familiar, com tudo o que isso tinha de subversivo, no plano
das relações pessoais entre pais e filhos, mas também no do controle paterno das
estratégias de reprodução familiar. Já as Cortes de 1641 tinham sido sensíveis a esta
quebra da autoridade paterna na escolha dos esposos dos filhos. Mas é na segunda
metade do séc. XVIII - quando se procurava uma nova disciplina da república e da
família - que a reação contra esta "laxidão" se tornou mais forte 1340. Numa diatribe
contra a difusão desta "moral relaxada, opposta a todos os princípios da Sociedade
civil"1341, Bartolomeu Rebelo descrevia a situação de "libertinagem" a que tinha
conduzido a doutrina de Trento, propagada pelos teólogos "jesuítas" 1342 e
propunha o retorno a uma rigorosa disciplina familiar, em que a matéria das
núpcias fosse da exclusiva responsabilidade dos pais "sem attenção alguma aos
filhos, os quaes só se contemplão, como ministros e executores da vontade paterna
[...] Donde se segue com infallivel certeza, que competindo aos Pais a escolha dos
cazamentos, devendo estes attender às qualidades dos Espozos e Espozas, que
buscão para seus filhos, não devem estes intrometer-se ao Officio paterno [...]" (p.
21/23).
§ 899. Este autor não exprimia uma opinião isolada, nem a que a própria
Igreja fosse insensível. Os teólogos começavam a revalorizar o valor da obediência,
considerando que os casamentos não consentidos pelos pais eram frequentemente
ilícitos e pecaminosos, por desobediência aos pais, sobretudo quando os filhos
casassem indignamente, pois tais casamentos "seriam fonte de ódios, rixas, dissídios
e escândalos" 1343. Bento XIV publicara (em 17.11.1741) uma encíclica que atenuava
os cuidados tridentinos com a liberdade matrimonial. E o Patriarca de Lisboa
enviara, no início dos anos setenta, uma circular aos párocos, recomendando-lhes
que se assegurassem do consentimento dos pais 1344. Em 1772 (9.4), a Casa da
Suplicação tomara um assento duríssimo, ampliando Ord. fil.4, 881345. A lei de

1340 Cf. anedotas sobre o tema em "Descrição de Lisboa [...]. 1730", Castelo Branco Chaves (org.),

O Portugal […], p. 64.


1341 Bartolomeu Coelho Neves Rebelo, Discurso sobre a inutilidade dos esponsaes dos filhos celebrados sem

consentimento dos pais, cit..


1342 Decorre das mesmas listas de "bons" e "maus" teólogos que dos dois lados estavam jesuítas;

mas o sentido geral da teologia moral da Segunda Escolástica, dominada pelos jesuítas, era, de facto,
liberalizador quanto a este ponto.
1343 Antonio de San Jose, Compendium [...], cit., tract. 34, II, n. 71.

1344 Bartolomeu Coelho Neves Rebelo, Discurso […], cit., 15.

1345 Pois, além da deserdação das filhas, nos termos aí consignados, cominava ainda a deserdação

278
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

9.6.1775 ratificou esta orientação, deserdando os filhos e filhas (sem limite de


idade) que casassem sem consentimento dos pais, para além de reforçar as penas já
estabelecidas nas Ordenações contra os sedutores.
§ 900. Mas, se a política pombalina da família visava este objetivo de firmar a
autoridade e disciplina interna das famílias, visava ainda outros fins de "política
social", como o de lutar contra o pronunciado casticismo das famílias nobres 1346 e
contra a tendência para os pais exercerem um "poder despótico" sobre os filhos,
negando "absoluta, o obstinadamente os consentimentos ainda para os
matrimonios mais uteis [...] em notorio prejuizo das Familias, e da Povoação, de
que depende a principal força dos Estados". Daí que o rei, "como Pai Commum
dos [...] Vassalos", tenha cometido ao Desembargo do Paço, pela lei de 29.11.1775,
o suprimento da autorização paterna para os casamentos da nobreza de corte, dos
comerciantes de grosso trato ou das pessoas nobilitadas por lei; e aos corregedores
e provedores, o suprimento desta autorização no caso dos casamentos de artífices e
plebeus.
§ 901. A lei de 6.10.1784 reforçou de novo o controle dos pais sobre os
esponsais dos filhos, obrigando a que estes interviessem expressamente na escritura
da sua celebração (ns. 1 e 2) e neles dessem o consentimento (nº. 4). Só que, como
compensação, restringia a obrigatoriedade do consentimento aos esponsais dos
filhos menores de 25 anos, para além de manter a possibilidade de suprir a
autorização, nos termos da lei de 29.11.1775 1347.
§ 902. O pátrio poder andava ligado ao facto natural da geração e não tanto à
incapacidade de os filhos se governarem por si mesmos (que, por sua vez, explicava
as restrições da capacidade dos menores). Isto fazia com que, no direito português,
o pátrio poder fosse tendencialmente perpétuo, não se extinguindo pela maioridade
do filho, e podendo continuar até à sua velhice, desde que o pai fosse vivo 1348.
§ 903. A qualidade de filho extinguia-se pela morte do pai1349. Para este efeito,
no conceito de morte cabiam a morte natural (mas não a civil, provinda de
desnaturalização, de degredo, de condenação às galés 1350). Extinguia-se também
com o casamento do filho (Ord. fil. 1,88,6)1351, com o acesso deste a uma
magistratura, com a ordenação e com a entrada em ordens.
§ 904. Outra causa de extinção do poder paternal era a emancipação1352. No

dos filhos, qualquer que fosse a sua idade (!), que se casassem, fosse com quem fosse, indigno ou
digno, sem consentimento dos pais (Collecção chronologica dos assentos.. ass. 282).
1346 Cf. v.g. as leis abolindo a distinção entre cristãos velhos e cristãos novos, 25.5.1773 e
15.12.1774; e o dec. contra os "puritanos" de 1768.
1347 Para mais detalhes, v. o meu artigo "Carne de uma só carne” […]”, cit..

1348 Mesmo a morte do pai, não era suficiente para atribuir ao filho uma plena capacidade,

colocando o filho alieni iuris (i.e. sujeito ao pátrio poder) sob a patria potestas do avô ou, na falta deste, de
um tutor ou curador, sendo menor ou incapaz.
1349 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., 3, liv.2, d. 3, 3, ns. 1 ss. [sobre o termo do

poder paternal] e 82 a 114 [sobre este último ponto]; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2,
5, 21.
1350 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 5, 22.

1351Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 72, n. 3 (os filhos que se casam saem do

poder paternal segundo o estilo de Portugal, de Castela e da Galiza); Tomé Valasco, Allegationes [...],
cit., alleg. 29, 25 ss..
1352 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., v. “Emancipatio”; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

279
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direito romano, a emancipação era um ato solene, pois equivalia à criação de um


novo cidadão. fazendo-se ou por rescrito do príncipe ou perante um magistrado 1353.
No direito pátrio, a emancipação era um ato voluntário do pai, realizado perante
um juiz1354 e confirmada pelo rei, pois, como dispensa da lei, era uma graça régia
(Ord. fil.1,3,7), processada pelo Desembargo do Paço 1355. As cartas de suprimento
de idade supriam a falta de idade para se ser plenamente capaz mas não
emancipavam1356. A emancipação era obrigatória no caso de tratamento cruel pelo
pai ou aceitação de legado com essa condição (Ord. fil.3,9,4; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit.2,5,25). A emancipação podia ser revogada por
ingratidão (exceto a que derivava de casamento)1357.
§ 905. Porém, a filiação também terminava com a separação económica dos
filhos, quando estes tivessem adquirido habitação separada e atividade económica
própria1358 ou tivessem acedido a uma dignidade civil ou eclesiástica que tivesse
proventos1359.
§ 906. A unidade era um princípio constitucional da família de Antigo Regime.
Este apelo da unidade fazia-se sentir não apenas enquanto sujeitava todos os
membros da família à direção única do pater, mas também enquanto favorecia
modelos de assegurar a unidade da família, mesmo para além da morte deste. Isto
refletia-se no estatuto dos filhos, comprometendo a ideia de igualdade e
instaurando uma hierarquia entre eles.
§ 907. Referimo-nos, antes de mais, ao instituto da primogenitura, cuja difusão
se explica, porventura, por ingredientes da tradição judaica (testemunhados pelas
Escrituras; cf. Exodus, 13, 22) e feudais. A raiz do direito dos primogénitos a
encabeçarem a comunidade familiar estaria no facto de, por presunção que decorria
da natureza, o amor dos pais ser maior em relação ao filho mais velho, bem como
da dignidade ungida e quase sacerdotal do filho mais velho no Antigo Testamento.
O caráter antropológico e quase divino deste fundamento dos direitos de
primogenitura fazia com que estes fossem inderrogáveis (salva justa causa) quer
pelo pai, quer pelo rei.
§ 908. Na época moderna, porém, a antiga dignidade natural ou divina dos
direitos dos primogénitos (v. § 327) já era negada por muitos, que a fundava antes

civilis [...], cit., 2, 5, 33.


1353 D. 1.7 De adoptionibus et emancipationibus et aliis modis quibus potestas solvitur.

1354 Cf. Tomé Valasco, Allegationes [...], cit., alleg. 29, n. 18; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p.

1, dec. 80, n. 4,
1355 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 72, n. 1. Sobre a carta de emancipação,

Manuel Barbosa, Remissiones […], ad Ord. fil.1, 3, 7.


1356 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 30, n. 14 (o poder paternal – e, logo, a

qualidade de filho -, extinguia-se pela emancipação, mas não por carta de suprimento de idade (venia
aetatis). Cf. ainda Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 5, 24: davam-se no caso de
incapacidade do pai ou ao órfão (causa cognita e com idade mínima de 20 anos nos homens e 18 nas
mulheres, v. Ord. fil.3, 42, pr; Reg. Des. Paço, § 13; alv. 24.7.1713).
1357 Cf. Tomé Valasco, Allegationes [...], cit., alleg. 29, 39 a 41 e 46.

1358 C.8 De patria potestate, 46; I. De patria potestate, 1, 9; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis

[...], cit., 2, 5, 26.


1359 Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 29, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,

2, 5, 27.

280
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

num particular uso de certas nações quanto às regras de sucessão de determinados


bens, de acordo com a sua natureza (caso dos bens feudais) ou com a vontade do
seu dono (caso dos morgados) 1360. E, de facto, na Europa ocidental, o seu âmbito
reduzia-se, praticamente, ao direito feudal (caso dos "feudos indivisíveis") e, na área
hispânica (ou de influência hispânica, como em certas zonas de Itália), aos
morgados (v. cap. 5.4)(e, até certo ponto, aos bens enfitêuticos) (v. cap. 4.3.3)1361..
§ 909. Nestes casos, porém, a indivisibilidade do património familiar (e a
unidade familiar a que isto força, criando direitos e deveres recíprocos dos
familiares que vivem na sombra do administrador do vínculo), já tinha menos a ver
com a unidade natural da família do que com as vantagens políticas (do ponto de
vista familiar, mas também do ponto de vista da coroa) da indivisão dos bens das
casas e da sua conservação numa certa linha sucessória. Do ponto de vista das
famílias, a indivisibilidade do património vinculado evitava não apenas o olvido do
nome e gesta familiares1362, mas também a dispersão dos próprios membros da
família, já que estes ficavam economicamente dependentes do administrador do
morgado. Do ponto de vista da coroa, porque esta conseguia “encabeçar” o
auxilium das famílias (maxime, das famílias nobres) num número relativamente
pequeno de intermediários1363 1364. O caráter "civil" e não "natural" dos morgados é
realçado ainda mais na literatura pós-iluminista 1365, que propende fortemente a
considerá-los "antinaturais", justamente por ofenderem a igualdade de direitos entre
todos os filhos 1366, princípio que, ele também, decorria da unidade natural da
família, embora entendido de outro modo. Do caráter civil e político (i.e.
"artificial") dos morgados seguia-se que a sua criação dependia apenas do prudente
arbítrio do instituído, estando, portanto, aberta a nobres e plebeus, com a única
limitação de que a instituição devia ter a opulência adequada aos fins por ela
visados1367.
3.2.5 Restante parentela.
§ 910. É também este caráter natural e "generativo" da família que traça os
limites do seu âmbito como grupo social.
§ 911. A família, em sentido estrito, engloba apenas os que se encontram

1360 Embora tal uso atribuísse ao primogénito uma certa "preeminência e dignidade", João Baptista

Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv. 9, d. 20, 1, n. 8, pg. 576).


1361 Sobre o princípio da primogenitura na história do direito europeu, John Gilissen, Introdução

histórica […], cit., 681 s.; para Portugal, ibid. 694 ss..
1362 Daí que, em geral, se excluíssem as mulheres da sucessão dos morgados, dada a sua
incapacidade para transmitir o nome: "a família aumenta pelos varões em dignidade e honra e destrói-se
e extingue-se pela mulheres; e por isso se diz que as mulheres são o fim da família" (Miguel de Reinoso,
Observationes [...], cit., ob. 14, ns. 9/11).
1363 Ord. fil.4, 100, 5; Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, II, 4.

1364 Este modelo de encabeçamento era conhecido noutros domínios, nomeadamente, no da

receção de rendas e tributos, como forma de reduzir o peso do governo.


1365 Cf. Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, I. 6 ss. insistindo na

origem "hispânica" da instituição (em Portugal, L. 15.9.1557; Ord. fil.100, 4; em Castela, Leis de Toro
[1535] e Nova rec.V, 7.). Para Castela, v. Bartolomé Clavero, Mayorazgo. Propriedad feudal en Castilla. 1369-
1836, Madrid, Siglo XXI, 1989.
1366 Gaetano Filangieri, Scienza della legislazione, 1780, I.18, 10; cf. para a discussão, Lobão,

Morgados, II, 1-18.


1367 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv. 9, d. 18, 1, n. 11.

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sujeitos aos poderes do mesmo paterfamilias1368. Num sentido um pouco mais vasto,
designa os agnados.
§ 912. A fonte da maior parte da doutrina moderna quanto à definição é
Gaius: “as personas unidas por parentesco do sexo masculino: por exemplo, o
irmão nascido do mesmo pai, o filho ou o neto do mesmo, igualmente o tio
paterno e o filho do tio paterno e o neto do mesmo. Em contrapartida, aqueles que
estão unidos por parentesco do sexo feminino não são agnados, tendo outra
designação, de acordo com o direito natural, a de cognados. Assim, portanto, entre
o tio materno e o filho da irmã, não há agnação, mas cognação. Igualmente, o filho
da tia paterna ou materna não é meu agnado, mas cognado e reciprocamente e eu
estou unido a eles pelo mesmo direito, já que os que nascem seguem a família do
pai e não a da mãe1369. Também se podia dizer que era constituída por todos os que
tinham saído da mesma casa1370. Sammuel Coceius, já no período iluminista,
sintetiza do seguinte modo os direitos dos agnados:- "Deste estado da família
decorrem vários direitos. Assim, 1º, todos os privilégios que aderem à família,
também pertencem aos agnados, do mesmo modo que o uso do nome e dos
brasões, etc.; 2º, as injúrias feitas à família podem ser vingadas também por eles, 3º,
os membros da família devem defender aqueles que não o podem fazer, pois nisto
consiste a tutela legítima"1371). A família agnatícia era juridicamente relevante até ao
6º grau1372, pela linha masculina, incluindo os adotados 1373. Tudo isto tinha
correspondente no direito português1374. Esta conceção de família, fundada em
princípios de sujeição política e linhagísticos - e a que era sensível, sobretudo, o
grupo nobiliárquico - correspondia, basicamente, ao conceito de linhagem.
§ 913. Em sentido mais lato ainda - que era o do direito canónico 1375, depois
recebido, para certos efeitos, pelo direito civil – a família abarca todas as pessoas

1368 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, iv.iii-v, em que se define família como um

conjunto de várias pessoas que estão sob o poder de uma só, sujeitas tanto pela natureza como pelo
direito.
1369 “Sunt autem agnati per virilis sexus personas cognatione iuncti, quasi a patre cognati, veluti

frater eodem patre natus, fratis filius reposve ex eo, item patruus et patrui filius et nepos ex eo. At hi,
qui per femini sexus personas cognatione coniunguntur, non sunt agnati, sed alias naturali iure cognati.
Itaque inter avunculum et sororis filium non agnatio est, sed cognatio. Item amitae, materterae filius
non est mihi agnatus, sed cognatus, et invicem scilicet ego illi eodem iure coniungor, quia qui
nascuntur patris non matris familiam secuntur”. Gaio, Institutiones, 1, 156.
1370 D.50, 16 Ulp. De verborum significatione, 195, § 2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2,

4, 5.
1371 Samuel Cocceius, Iustitiae naturalis et romanae novum systema, cit., liv. 3.cap.4, sect.5, § 170 (p. 93

da ed. 1762).
1372 Os graus eram contados por gerações. Por direito civil, subia-se por um ramo da árvore da

família de um parente até ao ascendente comum e descia-se, por outro ramo, deste para o outro
parente. Por direito canónico, só se contava um dos ramos, o mais extenso.
1373 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 2, 7, 26. Cf. para os agnati e cognati em Roma,

http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Cognati.html.
1374 Dever de auxílio mútuo (v. Ord. fil.5, 124, 9), direitos sucessórios (Ord. fil.4, 90, 94, pr. 96),

direito de reagirem judicialmente contra a usurpação de armas e apelidos (Manuel Álvares Pegas,
Tractatus de inclusione […], cit., V, c. 116).
1375 O direito canónico alargava ainda a noção de família - e alguns dos correspondentes deveres -

aos pais espirituais, condição que se adquiria pelo batismo, confissão e crisma, além de englobar
também os tutores e os mestres (João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., p. 3, liv. 1, d. 1, 4, n. 50).

282
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ligadas pela geração (agnados) ou pela afinidade (cognados). A família cognatícia era,
por isso, o conjunto de pessoas, varões ou fêmeas, que estavam unidas pelo
parentesco consanguíneo ou natural, ou seja, por procriação e nascimento.
Compunha-se de um tronco comum e de duas linhas, a descendente (os que
descendem uns dos outros) e a colateral, ou seja os que não descendem uns dos
outros, mas que têm um ascendente comum (como os irmãos). Como a sujeição ao
pater era irrelevante, a família cognatícia incluía as linhas femininas.
§ 914. Num sentido ainda mais vasto, família representa o conjunto de todos
os que estão ligados entre si por laços generativos (de sangue) ou por afinidade
(casamento). O conceito é usado, mas não tem relevância jurídica. Nem tinha a ver
o conceito de família alargada, como comunidade de vida e de bens de todos os
irmãos e descendentes que se pensa poder ter existido em comunidades rurais,
favorecida pela existência de baldios e pastos comuns e pelo sistema de
encabeçamento da enfiteuse. As Ordenações (Ord. fil.4,44,1) previam este tipo de
sociedade universal; mas ela não pertencia, claramente, ao universo com que os
juristas letrados lidavam. Os mais tardios, consideravam-na extravagante e
exótica 1376; os mais antigos pouca atenção lhe dedicavam (aparte o caso da
comunhão geral de bens entre os cônjuges, que era o regime matrimonial "segundo
o costume do reino", Ord. fil.4,46,pr.; 951377).
§ 915. "Família" era, então, uma palavra de contornos muito vastos, nela se
incluindo agnados e cognados, mas ainda criados, escravos e, até, os bens 1378. "La
gente que vive en una casa debaxo del mando del señor della", eis como definia
família o Dicionario de lengua castellana, da Real Academia de Historia (1732),
invocando as Part. VII, tit. 33, l. 6: "Por esta palabra familia se entiende el señor de
ella, e su muger, e todos los que viven so el, sobre quien ha mandamiento, assi
como los fijos e los servientes e otros criados, ca familia es dicha aquella en que
viven mas de dos homes al mandamiento del señor". Mas acrescentava, em
entradas seguintes, outras aceções: "numero dos criados de alguém, ainda que não
vivam dentro da casa"; "a descendência, ascendência, ou parentela de alguma
pessoa"; "o corpo de alguma religião ou comunidade"; "o agregado de todos os
criados ou domésticos do rei"; fazendo ainda equiparar "familiar" a amigo 1379.
3.2.6 Criados.
§ 916. Em relação a toda esta universalidade valiam os princípios inicialmente
enunciados, nomeadamente o da unidade sob a hegemonia do pater, ao qual
incumbiam direitos-deveres sobre os membros e as coisas da família.

1376 "Confesso que nunca vi provada claramente, nem julgada no foro tal sociedade universal tacita

com effeitos de expressa, nem tão pouco jámais vi escriptura de sociedade universal expressa", escreve
Lobão (Tratado das acções recíprocas […], cit., 789); mas não deixa de expor uma série de regras sobre as
partilhas de sociedades de amanho comum das terras paternas, constituídas, nomeadamente em meios
rústicos, entre irmãos, com suas mulheres e filhos (cf. 777 e ss.; no caso de os irmão serem "nobres",
785).
1377 Mas diferente de uma sociedade familiar universal, Álvaro Valasco, De partitionibus […], cit.,

cap. 5, n. 8.
1378 Na expressão [actio] familiae erciscundae (ação para dividir a família), a palavra significava,
obviamente, os bens. Alguns estendem os deveres familiares até ao ponto de abrangerem o dever de ser
útil aos vizinhos (Antonio da Natividade, Stromata […], cit., op. V, cap. 13.).
1379 Sobre o conceito de família v. ainda, Nuno Monteiro, "Os sistemas familiares", cit., 279; e,

do mesmo autor, "Casa e linhagem [...]", cit..

283
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§ 917. Era assim quanto aos criados, ligados ao dominus por uma relação que
excedia em muito a de um simples mercenariato, aparecendo envolvida no mundo
das fidelidades domésticas. Não é que o direito português ainda conhecesse a
adscrição (cf. Ord. fil.4,28). Mas as relações entre do senhor e os servos
desenvolviam-se no ambiente da família patriarcal (da "casa") que criava, de parte a
parte, laços muito variados.
§ 918. Desde logo, "criados" (famuli, "família") eram, tradicionalmente, aqueles
que viviam com o senhor "a bem fazer", ou seja, pelo comer e dormir (v. 3.1.1.3 e
3.1.1.4; § 961).
3.2.7 A expansão do modelo familiar.
§ 919. Muito do imaginário e dos esquemas de pensamento a que acabamos de
nos referir transvazavam largamente o domínio das relações domésticas, aplicando-
se, nomeadamente, ao âmbito da república.
§ 920. Como se diz na época, "sendo a casa a primeira comunidade, as leis
mais necessárias são as do governo da casa"1380; e sendo, além disso, a família o
fundamento da república, o regime (ou governo) da casa é também o fundamento
do regime da cidade. Este tópico dos contactos entre "casa" e "república" - e,
consequentemente, entre a "oeconomia", ou disciplina das coisas da família, e a
"política", ou disciplina das coisas públicas 1381 -, a que a historiografia tem dado
muito destaque 1382, explica a legitimação patriarcal do governo da república, em
vigor durante quase todo o Antigo Regime, bem como o uso da metáfora do
casamento e da filiação para descrever e dar conteúdo às relações entre o príncipe e
a república e entre o rei e os súbditos. E constitui também a chave para a
compreensão, num plano eminentemente político, de uma grande parte da literatura
que, aparentemente, se dirige apenas ao governo doméstico.
§ 921. Zona de expansão do modelo doméstico era também o domínio das
relações internas à comunidade eclesiástica. Não só a Igreja (v. cap. 2.4.4) era
concebida como uma grande família, dirigida por um pai espiritual (Cristo ou o seu
vigário, o Papa [note-se o radical da palavra]) e regida, antes de tudo, pelas regras
do amor familiar (fraterna disciplina, fraterna correctio), como as particulares
comunidades eclesiásticas obedeciam ao modelo familiar. Às congregações
religiosas chamavam-se "casas"; os seus chefes eram "abades" (palavra que significa
"pai") ou "abadessas" (ou "madres"), a quem os religiosos deviam obediência filial.
Os religiosos eram, entre si, "frades" (fratres, irmãos) ou sorores (sorores, irmãs).
Sobre eles impendiam incapacidades e deveres típicos dos filhos família. A
disciplina interna da comunidade era - sobretudo nas congregações femininas em
que as madres não dispunham de jurisdição, por serem mulheres - concebida como
uma disciplina doméstica, competindo aos superiores os poderes de que os pais
dispunham em relação aos filhos. Ao séquito de um dignitário eclesiástico (um
bispo, um cardeal), chamava-se a sua “família”. Os agentes / informadores do

1380 António da Natividade, Stromata [...], cit., op. I. cap. 1, p. 2, n. 10.


1381 Que Aristóteles, sintomaticamente, considerara conjuntamente no seu tratado sobre a
"economia".
1382 Cf. por todos, Frigo (1985a), Daniela, Il padre di famiglia […];"La dimensione amministrativa

[…]”;“Disciplina rei familiariae”: a economia […]; António Manuel Hespanha, "Justiça e administração
entre o Antigo Regime e a revolução" […]; Cesare Mozzarelli (ed.), "Famiglia" del príncipe […].

284
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Santo Ofício eram designados de “familiares”.


§ 922. Tudo isto é bastante para mostrar o papel central que, na imaginação
das relações políticas, é desempenhado pelo modelo da família. Modelo que, por
outro lado, obedece a uma impecável lógica estruturante, fundada em cenários de
compreensão do relacionamento humano muito profundamente ancorados nas
sociedades europeias pré-contemporânea.
3.3 Relações patrimoniais.
§ 923. A natureza da comunidade familiar explicava o seu regime jurídico.
Depois de casados, marido e mulher passavam a fazer parte de um só corpo,
passando a ser considerados pelo direito, não como iguais, mas como idênticos 1383.
A este corpo familiar se agregarão os filhos do matrimónio [os naturais ?] e outras
pessoas que integrem a comunidade familiar (como os parentes vivendo em
comunhão doméstica), os criados e os escravos, mas também os próprios bens, que
se integravam na sociedade familiar, sendo por vezes designados como “família”
(v.g. actio familiae erciscundae, ação de partilha dos bens da família) (v. § 1570), e tendo
por vezes regimes jurídicos assentes nessa sua natureza “familiar” (bens de
avoenga, bens troncais, bens de morgado)1384.
§ 924. Em relação a toda esta universalidade valiam os princípios inicialmente
enunciados, nomeadamente o da unidade sob a hegemonia do pater, ao qual
incumbiam direitos-deveres sobre os membros e as coisas da família. O marido
(pater) assumia, por isso, o papel de cabeça (caput familiae) ou de principal (princeps
familiae).
§ 925. Estes princípios da unidade da família e do lugar capital, principal, do
marido/pai de família explicam, em geral, o regime jurídico da instituição.
§ 926. De acordo com isto que era considerado ser a natureza da família, os
maridos tinham um certo poder sobre as suas esposas (e sobre os filhos 1385) (v.
3.3.1), tanto nos aspetos pessoais como patrimoniais. A ele se referem as Ord. fil.
(4,66). Este poder era diferente da propriedade (sobre os escravos), do poder eril
(i.e. doméstico, sobre os criados) ou do poder dos tutores sobre os pupilos. Por
isso, os maridos não podiam vender ou alugar as suas mulheres, mas apenas dirigi-
las, defendê-las ou castiga-las moderadamente, tendo em vista a sua educação (Cf.
Ord. fil.5,36,1). O poder punitivo doméstico compreendia os castigos em geral (Ord.
fil.5,36,1), mas também o cárcere privado (Ord. fil.5,95,4) ou mesmo a aplicação da
pena de morte, quando a esposa fosse surpreendida em ato de adultério (Ord.
fil.5,38,pr.) (v. cap. 8.2.2). Segundo Pascoal de Melo, entre os plebeus, este poder de
correção degenerava frequentemente em maus tratos físicos, de que os tribunais se
ocupavam frequentemente e que conduziam por vezes à separação de mesa e
habitação1386. No domínio patrimonial, o marido era o administrador natural do

1383 António Manuel Hespanha, “Carne de uma só carne” […], cit.


1384 Para os grandes juristas italianos do séc. XIV, falar de família ou de casa equivalia a falar do
património, como substância da unidade doméstica: “Familia accipitur in iure pro substantia” (Bártolo
da Sassoferrato, Commentaria in primam infortiati partem, Lugduni 1555, ad D. 28.211 de liberis et posthumis,
l. in suis, 112, rubr.).
1385 Cf. cap. 3.2.4. As esposas gozavam também, embora apenas subsidiariamente, de poder sobre

os filhos (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 7, 15 ss.).


1386 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 7, 1 e 2.

285
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património familiar, competindo-lhe os direitos de disposição e administração dos


bens, bem como as ações judiciais correspondentes, embora com limitações e
sujeitos a regras de prudência comumente aceites. Esta subordinação natural da
esposa nem sequer cessava quando ela exercesse a dignidade de rainha: embora o
marido, como súbdito, estivesse sujeito à sua jurisdição e poder políticos (quoad
imperium), mantinha porém a sua supremacia doméstica (quoad potestatem
domesticam)1387, embora estas situações dependessem também das Leis Fundamentais
e dos pactos nupciais celebrados.
§ 927. Do ponto de vista patrimonial, a consequência mais importante da ideia
de unidade da família sob a direção do marido era a comunhão de bens e os
poderes do marido na administração dos bens comuns (v. cap. 3.3.1.1). O
casamento visava objetivos de natureza pessoal, como a união física, de vida e
espiritual. Entendia-se que estes marcavam de tal modo a sociedade familiar que o
próprio regime de bens era influenciado por esta lógica da unidade. Tal como os
corpos e as vidas, os bens levados pelos cônjuges para o casamento ou adquiridos
depois pelo casal, em princípio comunicavam-se, entrando a fazer parte de um
património comum.
§ 928. Além disso, a identidade familiar criava uma comunicação tal que
obrigava o marido a prestar alimentos à esposa (Ord. fil.4,103,1) e justificava tanto a
comunhão de bens, salvo pacto em contrário (Ord. fil.4,46), como a atribuição à
mulher de um estado de parente consanguíneo (cognado) que, por sua vez, a incluía
na lista de herdeiros ab intestato do marido (Ord. fil.4,94).
§ 929. Esta ideia de comunhão surge da doutrina cristã 1388 quanto à natureza
do casamento, não se encontrando qua tale no direito romano, no qual a supremacia
política do marido não poderia ser afetada pela plena comunhão de bens, já que
nesta os bens do marido se comunicariam à mulher. Também nos direitos
germânicos, a ideia de comunhão patrimonial familiar existia, mas localizava-se não
tanto na família estrita, mas antes na família extensa ou estirpe, dando origem a um
outro quadro institucional, em que a comunhão de bens num casal não prejudicava
direitos das famílias de cada cônjuge sobre bens familiares (comunhão apenas de
bens adquiridos na constância do casamento, mas não dos bens familiares trazidos
por cada cônjuge para o casamento).
§ 930. Ao princípio da unidade somava-se o referido princípio patriarcal, ou
seja, do governo pelo pai.
§ 931. No domínio patrimonial, o marido era o administrador natural do
património familiar, competindo-lhe os direitos de disposição e administração dos
bens - embora com limitações e sujeitas a regras de prudência comumente aceites -
bem como as ações judiciais correspondentes.
§ 932. A situação subordinada das esposas manifestava-se ainda nas restrições
para pôr ações em tribunal sem o consentimento do marido (Ord. fil.3,47),
nomeadamente ações contra o marido (v. cap. 7.1.7.1). Esta desproteção judicial
tinha limites, nomeadamente quando se tratava de obter a anulação de atos

1387 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 7, 5.


1388 Mas não no direito canónico, diz Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 8, 3; cf.
Decretum, cap. II, tit. De donationibus inter virum et uxorem).

286
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

abusivos de administração patrimonial por parte do marido. Assim, podia pedir a


revogação das alienações de imóveis feitas pelo marido sem o seu consentimento
(Ord. fil.4,48,2) ou das doações que este fizesse à concubina (Ord. fil.4,66)1389.
§ 933. Em contrapartida, este poder de direção e de proteção obrigava os
maridos a sustentar as suas mulheres de acordo com a sua qualidade
(“decentemente”), não apenas pelos bens comuns do casal, mas também pelos bens
próprios do marido (Ord. fil.4,103,1).
§ 934. A unidade da família também se refletia nos aspetos patrimoniais das
relações entre o pai e os filhos.
§ 935. Em relação aos pais, os filhos tinham, para além do dever de
obediência, o dever de prestação de serviços - dever de obséquio, que consistia na
obrigação de prestarem ao pai a ajuda e trabalho gratuitos de que ele carecesse 1390.
No caso de estarem sob a sua patria potestas, este dever era irrestrito (ad libitum, qui
totum dicit, nihil excipit), obrigando-os a trabalhos que, prestados a outrem, seriam
pagos. Já no caso dos filhos emancipados se entendia que esta obrigação não
abrangia os trabalhos que requeressem arte ou indústria 1391. Por outro lado, o pai
era o verdadeiro proprietário dos bens dos filhos sob o seu pátrio poder. A regra
geral (mas, até certo ponto, também caricatural) era a de que, fazendo os filhos
parte da pessoa do pai, só este era titular de direitos e obrigações, adquirindo para si
os ganhos patrimoniais dos filhos sujeitos ao pátrio poder e sendo responsável
pelas suas perdas. Com a consequência suplementar de que não poderiam entre si
contratar. Tudo isto estava, no entanto, algo atenuado.
§ 936. A unidade da família também se refletia sobre a capacidade de adquirir
dos filhos. Desde o direito romano que se lhes reconhecia a capacidade de terem
certos direitos sobre certos bens, os chamados pecúlios (peculium)1392. Nos pecúlios,
distinguia-se o peculio adventício, constituído pelos bens adquiridos por sucessão,
por doação, por industria própria ou por caso fortuito, sobre o qual os filhos
detinham a propriedade, mas não o usufruto 1393; o pecúlio profetício, constituído
por bens entregues pelo pai ou dados por outrem em atenção ao pai, sobre os quais
os filhos não tinham nem a propriedade, nem o usufruto ou administração, salva
concessão do pai1394; o pecúlio castrense, integrado por bens adquiridos na

1389 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 7, 3.


1390 Cf. cap. 3.2.4.
1391 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.10, d.22, 5, ns. 117/118, pg. 650; Manuel

de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado das acções recíprocas […], cit., p. 22 (este mais restritivo quanto aos
deveres dos filhos).
1392 Nos seus vários tipos de castrense, quasi castrense, adventício e profecticio, enumerados por ordem

decrescente de poderes de disposição dos filhos; cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1,
d. 2, § 8, ns. 229 ss. (p. 66); Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado das acções recíprocas […], cit.,
cap. 13. Sobre a capacidade para testarem, doarem e se obrigarem, João Baptista Fragoso, Regimen [...],
cit., p. 3, liv.1, d. 2, § 8, ns. 236 ss.; p. 3, liv.1, d.2, §§ 9 e 10.
1393 A não ser nos casos previstos em Ord. fil.4, 98: se o pai lhes doasse o usufruto que tinha nesses

bens; se algo lhes fosse dado ou deixado com a condição de o pai não ter o usufruto; se o pai não queria
que o filho aceitasse a doação dos bens adventícios; se lhes fosse deixado apenas o usufruto de certos
bens; se os bens tivessem sido doados pelo rei; nas coisas herdadas, conjuntamente com o pai, de
irmão ou irmã, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d. 2, § 8, n. 230.
1394 De qualquer modo, não podiam administrar esses bens senão em benefício do pai, não os

podendo tão pouco vender sem licença do pai, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d.
2, § 8, n. 231

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profissão das armas; e o pecúlio quase castrense, adquirido pelos rendimentos de


benefício eclesiástico ou de ofício civil, como tabelionado, magistratura, ou
semelhante. Nestes últimos, os filhos tinham o domínio pleno, o usufruto e a
administração (Ord. fil.4,97,18).
§ 937. Por direito comum, os filhos não podiam testar antes da puberdade,
nem com o consentimento do pai. O mesmo acontecia por direito pátrio (Ord.
fil.4,81,3; 4,83), a não ser para causas pias 1395.
§ 938. Quanto aos seus poderes de contratar, o filho família maior (puber)
obrigava-se natural e civilmente. Ou seja, tinha a capacidade plena, embora restrita
aos bens de que pudesse dispor livremente (i.e. os bens castrenses e quase
castrenses e, excecionalmente, os bens adventícios); quanto aos outros, ou não
eram deles, ou não tinha, em geral, a sua administração 1396. Quanto à capacidade
para contratar com o próprio pai, de há muito se superara a restritíssima norma do
direito romano 1397, apenas se mantendo a impossibilidade de demandas entre pai e
filhos 1398.
3.3.1 Os regimes de bens do casamento.
§ 939. Apesar de estes princípios ligados à natureza da sociedade familiar
enquadrarem a constituição patrimonial da família, o direito reconhecia que o
regime de bens tinha também algo de voluntário, dependendo ou da vontade dos
nubentes ou daquilo que o direito do país estabelecia.
§ 940. Em Portugal, os autores seiscentistas e setecentistas consideravam que
os nubentes podiam, dentro de alguns limites e observadas certas formas, modelar
os poderes (de disposição e de administração) de cada um deles em relação aos
bens que trouxessem para o casamento ou adquirissem na sua constância 1399. Assim
como poderiam, segundo uma opinião não unânime, modificar esse regime depois
de casados1400, ou por meio de doações entre eles (v. cap. 3.3.1.4) ou modificando o
pacto nupcial. A modificação do pacto, quer afastando o regime de comunhão geral
e adotando o regime dotal, quer no sentido oposto, quer introduzindo novas
cláusulas, era válida nos mesmos termos em que o eram as doações entre os
cônjuges, ou seja desde que disso não resultasse o empobrecimento de um dos
cônjuges em favor do outro (cf. Ord. fil.4,65,3).
§ 941. Em geral, o direito apenas tinha por nulos os pactos que contrariassem

1395 Não assim no direito castelhano, Lei 5ª de Toro, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p.

3, liv.1, d. 2, § 8, ns. 235-236.


1396 Cf. João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 3, liv.1, d.2, § 10, §§ 271 a 275. Os filhos

menores (impuberes) tinham a capacidade dos menores: em geral, eram incapazes, a não ser se próximos
da maioridade, caso em que ficavam obrigados naturalmente: não podiam ser acionados, mas se
cumprissem, não podiam repetir o que tivessem pago (obligatio naturalis).
1397 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 1, 8; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),

Notas […] Melo [...], cit., ao passo respetivo, p. 245.


1398 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 3, liv.2, d.3, 2, n. 43.

1399 V. Ord. fil.4, 46. Assim, Álvaro Valasco é de opinião que, segundo o direito português, tudo

entra na comunhão, salvo se os nubentes convencionarem o contrário (Álvaro Valasco, Decisiones [...],
cit., cons. 175, n. 3; Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1225).
1400 Se Melchior Febo, Decisiones [...], cit., defendia que o regime de bens não se podia mudar

(Decisiones […], dec. 170, n. 16), outros tinham a opinião contrária (cf. Bento Pereira, Promptuarium
[…], v. “Matrimonium”, n. 1221).

288
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

a razão natural, os bons costumes e a utilidade pública. Assim, seriam nulos os


pactos que subordinassem o marido à mulher ou que libertassem esta da supervisão
do marido. O mesmo aconteceria com os pactos que ofendessem as legítimas dos
filhos, que frustrassem a finalidade do dote (por exemplo, impedindo o gasto dos
frutos dos bens dotais ou privando a viúva do dote, ao libertar os herdeiros do
marido do encargo da restituição do dote).
§ 942. Na falta de convenção, as Ordenações regulavam dois modelos, dando-
lhes uma generalidade diferente. Um era a comunhão geral de bens, ou carta de
ametade (charta dimidiae) (Ord. fil.4,46), considerada como o costume geral do reino
e, por isso, como o regime presumido de bens, caso não houvesse pacto que o
modificasse ou escolhesse outro. O outro regime previsto e regulado pela lei (Ord.
fil.4,47) era o regime de dote que, esse, tinha que ser pactado para que vigorasse.
Havia, porém, outros modelos, muito presentes na mente dos juristas. Destes
destacavam-se o regime de bens do direito comum (que os juristas referiam como
matrimonium in forma juris contractum e próximo do regime dotal) - em que o
património se unificava, mas sob a propriedade do marido, embora respeitando a
autonomia de algumas massas patrimoniais autónomas, os pecúlios dos filhos
(castrense, quase castrense, profectício e adventício) e o dote 1401 1402 - e o regime de
bens do direito castelhano, em que cada cônjuge conservava como próprios os bens
que tivesse levado para o casamento, mas entravam em comunhão os adquiridos no
estado de casados1403.
§ 943. O regime de bens português de comunhão, tal como o castelhano, o
siciliano ou o sardo, eram regimes de direitos próprios. Por um lado, de acordo
com as regras de conflitos de normas do direito comum, tinham a primazia no
reino a que diziam respeito, como direitos particulares. Mas, por outro lado,
estavam sujeitos à usura que decorria de se afastarem do direito comum e de, por
isso, serem considerados como regimes “odiosos”, cujas normas deviam ser
interpretadas restritivamente, no sentido de se aproximarem do direito comum 1404.
3.3.1.1 A comunhão geral de bens1405.
§ 944. No direito comum, ao qual se referia a doutrina dos glosadores e dos
comentadores, a unidade da família era realizada pela submissão de todos os bens à
propriedade do pater, temperada pelo reconhecimento da autonomia de algumas
massas patrimoniais, da mulher (dote) ou dos filhos (pecúlios).
§ 945. Em Portugal, a comunhão de bens começou por ser um costume
particular de algumas terras, tendo sido generalizada como costume do reino pelas

1401 Cf. síntese, em Loredana Garlati, “La famiglia tra passato e presente”, em
www.storiadeldiritto.org/uploads/5/9/4/8/5948821/garlati_2011_famiglia.pdf.
1402 Cf. Gabriel Pereira da Castro, Decisiones […], dec. 53, n. 4. 4. Por isso, no matrimónio in

forma iuris contractum, os legados e doações não se comunicavam, n. 6, mas apenas os seus frutos, n. 13.
Cf. sobre o regime de bens do direito comum http://www.solofrastorica.it/campanilematrim.htm
1403 Álvaro Valasco, Consultationes […], cit., cons. 175, n. 2.

1404 Um exemplo: a opinião de Álvaro Valasco de que as leis de Espanha sobre a comunicação aos

dois cônjuges dos bens adquiridos na constância do matrimónio corrigiriam o direito canónico e, por
isso, seriam odiosas (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103, ns. 5-6).
1405 Cf. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], tract. 2, disp. 422-423, 433-434, 476;

Fernão Rebelo, De obligationibus iustitiae […], p. 2, liv. 6; Manuel Barbosa, Remissiones […], ad 4, 46;
Álvaro Valasco, Praxis partitionum […], cap. 4.

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Ordenações Afonsinas (Ord. af.4,12,5) e aparecendo consagrada nas Ordenações (Ord.


fil.4,46; Ord. fil. 4,95) como regime supletivo de bens do casamento, comunicando
aos dois cônjuges todos os bens, levados para o casamento ou adquiridos por
qualquer título depois dele. Álvaro Valasco escreve que “é antiquíssimo este
costume do reino de que se comuniquem entre os cônjuges todos os bens, sempre
que se casem à face da igreja […], seguindo-se cópula ou coabitação, Em voz de fama
de marido e mulher em casa teúda e manteúda, seja em casa do pai, seja em outra” (apoia-
se em Ord. fil.2,47,1; Nova Recopilación, 4,7,pr. e 4,46,pr.)1406.
§ 946. Os juristas salientavam a sua origem consuetudinária, embora
qualificassem este costume como de antiquíssimo e destacassem a boa razão em
que era fundado. Álvaro Valasco enumerava assim os seus fundamentos racionais:
(i) Seria uma consequência lógica (a maiore ad minorem) da comunicação dos corpos
dos cônjuges, pois se se comunicava o mais excelente (os corpos), mais devia
comunicar-se o menos excelente (os bens); (ii) evitaria que, numa casa, se discutisse
cada dia o teu e o meu, como sucederia nos lugares em que este costume não
vigorava; (iii) faria com que cada um dos cônjuges procurasse o bem patrimonial do
outro; (iv) decorreria do facto de no contrato de casamento estar implícito um
contrato de sociedade1407, pelo que os cônjuges seriam sócios "na casa divina e na
humana”1408.
§ 947. A comunhão (casamento por carta de ametade) dava-se com a
consumação, por cópula subsequente, de um casamento válido 1409, em que outro
regime não tivesse sido formalmente1410 estabelecido (Ord. fil.4,46,pr.). A exigência
de consumação do casamento – que tinha a importante consequência de impedir a
comunhão nos casamentos não consumados ou anulados por esse motivo – era
discutida1411.
§ 948. No reino, presumia-se que os casamentos eram por “carta de ametade”
(charta medietatis)1412. Todos os bens – qualquer que fosse a sua natureza e o título a
que tivessem sido recebidos1413 - entravam na comunhão e, dissolvido o casamento,

1406 Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, cit., cap. 5, n. 1.


1407 Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, 1605], cap. 5, ns. 2-3. Enumera, porém,
as diferenças entre a comunicação dos bens nos dois casos: Sobre as diferenças entre a sociedade
conjugal e as sociedades universais de direito comum, Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum
[…, 1605], cap. 5, n. 8.
1408 Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, 1605], cap. 5, n. 7.

1409 Não já de um casamento apenas aparentemente válido (casamento putativo), ainda que os

cônjuges não soubessem da causa da sua nulidade (i.e. estivessem de boa fé) (Ord. fil. 4, 46, 1).
1410 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1210 (não é necessária

escritura, provando-se por testemunhas). Em todo o caso, valia a regra geral da exigência de escritura
pública para negócios sobre imóveis (Ord. fil.3, 59).
1411 Em sentido diferente: António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 124; Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons. 137, n.8 (refere a opinião mas não concorda). Cf. Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis [...], cit., 2, 8, 9.
1412 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1221 (remete para Melchior

Febo, Decisiones […], cit., dec. 170, n. 19).


1413 “No nosso direito tudo se comunica, mesmo que derive de doação régia, ou de guerra [ao

contrário do que se passa no direito de Castela] (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103; Bento
Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1228). Esta decisão de Cabedo parece implicar
que o disposto em Ord. fil.4, 95, 1 (em que se excluíam do inventário e partilha os bens da coroa e outros
bens de nomeação) apenas dizia respeito aos casamentos em regime dotal.

290
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

na partilha1414.Tornavam-se propriedade comum dos dois1415, deixando de haver


bens próprios de cada cônjuge 1416. Mesmos os rendimentos que um dos cônjuges –
normalmente o marido – adquirisse pelo exercício de um cargo ou de uma
profissão. Álvaro Valasco destaca como isso estava enraizado nas práticas
portuguesas, sendo costume que o marido, regressado de navegações longínquas e
tendo a mulher morrido no ínterim, comunicasse (e incluísse no inventario e
partilha) os bens por si adquiridos nessas viagens e em ofícios ou profissões
desempenhados longe de casa1417, o que confirmava que o fundamento da
comunhão não era tanto a colaboração e o trabalho comum, mas antes a unidade
de pessoas e bens criada pelo casamento.
§ 949. Então que bens se tornavam comuns? Em princípio, todos, portanto.
Eram exceção aqueles que não se podiam alienar: bens de morgado, domínio direto
de bens enfitêuticos, bens da coroa (Ord. fil.4,95,1); embora se comunicassem os
seus frutos, bem como as despesas e benfeitoria feitas neles (Ord. fil.4,97,24).
Também não se comunicavam as dívidas de cada cônjuge contraídas antes do
casamento. Ou, nas dívidas novas, as que se devessem considerar pessoais, tais
como as de jogo, as que resultassem de gastos com vícios ou as penas
pecuniárias1418 ().
§ 950. Lendo a doutrina da época, surgiam muitas opiniões que parece
contrariarem esta universalidade da comunhão. Muitos defendiam que certos bens
levados para o casamento ou adquiridos na constância deste não se comunicavam,
que as dívidas eram da responsabilidade de quem as contraiu ou que os
rendimentos de cargos ou profissões ficavam próprios de cada cônjuge 1419.
§ 951. Na verdade, estas opiniões são reflexo da discussão destes temas no
direito comum e no direito castelhano, em que coexistiam no âmbito dos bens
familiares várias massas patrimoniais autónomas. No direito de Castela, só se
comunicavam os bens adquiridos depois do casamento. E, mesmo nestes, haveria
que averiguar o título de aquisição e a origem dos capitais gastos nela. É que não se
comunicavam os bens adquiridos por herança ou doação, nem aqueles comprados

1414 Assim, a cláusula "que se partam os adquiridos quer se adquiram por título oneroso, quer

lucrativo" era supérflua, Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1220, 1221.
Cf. Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, cit., cap. 5, ns. 9 e 14.
1415 Cita Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum […, cit., cap. 5, ns. 9 e 14.

1416 Além do caso da bínuba quinquagenária, de que se falará, havia uma única situação em que a

qualidade dos cônjuges excluía a comunhão: a do casamento de escrava com livre, em que a escrava que
casasse não beneficiava da comunhão de bens, Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v.
“Matrimonium”, n. 1228 (também Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1. dec. 150, n. 1).
1417 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 166, n. 7. Sobre a comunicação das rendas de

ofícios, em geral, v. a cons. 166. n. 5; Bento Pereira, Promptuarium […], cit, v. “Matrimonium”, n.
1219.
1418 No casamento por dote e arras, as dívidas nunca se comunicam (Ord. fil.4, 95, 4). Cf. Pascoal

de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 8, 17.


1419 Pascoal de Melo (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 8, 17) diz que não

entravam na comunhão os bens que não se podiam alienar, o que parece corresponder ao rigor
conceitual de inalienabilidade: bens de morgado, domínio direto de bens enfitêuticos, bens da coroa
(abonando-se com Ord. fil.4, 95, 1), embora se comunicassem os seus frutos, bem como as despesas e
benfeitoria feitas neles (Ord. fil.4, 97, 24). Porém, Álvaro Valasco é expresso em sentido inverso (Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103). A indecisão proviria da frequente generalização das soluções de
direito comum ao direito particular da comunhão reinícola, até porque nos grupos sociais de elite – em
que bens de nomeação eram frequentes – se praticava, sobretudo, o regime dotal.

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por troca de bens próprios de cada cônjuge ou por força dos rendimentos desses
bens próprios. Por sua vez, no direito comum, como havia patrimónios autónomos
dentro da massa dos bens da família (como o dote), era importante saber por força
de que bens ou rendimentos se adquiria um novo bem, pois este devia entrar no
património por conta do qual fora adquirido1420. Como no estilo da literatura
jurídica de então, as citações aparecem descontextualizadas, é frequente encontrar
declarações gerais de que certos bens não se comunicavam 1421, quando no texto
original elas diziam respeito à situação no direito castelhano de comunhão de
adquiridos ou ao direito comum de autonomia do dote. É importante realçar como
estas confusões promoviam as soluções de direito comum e de direito castelhano,
uma e outra mais favoráveis à extensão do direito de disposição patrimonial livre do
marido, pois tendiam a incluir nos bens próprios do marido as novas aquisições, já
que se presumia terem sido feitas por conta dos seus bens e do seu trabalho.
§ 952. Para a generalidade dos autores mais antigos, a comunicação dos bens
apenas se verificava na constância do matrimónio. Depois de separação por sevícias
ou adultério, tendo cessado a comunhão de corpos, cessaria também a comunhão
de bens, pelo que os bens adquiridos depois de separação seriam próprios de cada
cônjuge. Todavia, não já por causa da natureza da situação matrimonial, mas como
pena, o cônjuge culpado da separação continuava a comunicar os bens 1422. Pascoal
de Melo iria ter uma opinião diferente, mais apegada ao conceito de casamento e de
comunhão, defendendo a continuação da comunicação dos bens, já que a separação
não punha fim ao estado de casado, apenas o suspendendo. Em contrapartida,
rejeitava que a comunicação atingisse apenas o cônjuge culpado, como se fosse uma
pena, pois esta pena não estava prevista na lei, algo que, agora, começava a ser um
princípio jurídico muito relevante.
§ 953. Mesmo no caso de segundas núpcias, em que a comunhão podia
prejudicar os filhos do primeiro matrimónio, dar-se-ia a comunhão de bens, só
estando garantida aos filhos do casamento anterior a sua legítima nos bens do pai

1420 Atento o direito comum (v. Luis de Molina, Tractatus de iustitia et de iure […], cit., tract. 2,

disp. 422-423, 433-434, 476; Rebelo, p. 2, liv. 6), os bens adquiridos na constância do matrimónio
eram do adquirente quando claramente se constatasse que tinham sido adquiridos com coisas ou
dinheiro seus. Presumia-se que os adquiridos pela mulher tinham sido adquiridos por força dos bens do
marido (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 103, ns. 3-4.
1421 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 170, ns. 35-37, 45) afirma que, embora houvesse

pacto de comunhão, este pacto não se estendia às heranças, sobretudo à dos pais, pois os bens
herdados por testamento ou ab intestato não pertenciam à sociedade (íbid. n. 51); mas este é, por ventura,
o regime do direito castelhano, não o das Ordenações (v. António da Gama, Decisiones […], cit., dec.
358 (a cláusula de comunhão compreendia todos os bens que os cônjuges adquirissem por herança dos
seus parentes). Gabriel Pereira de Castro (Decisiones […], cit., dec. 50, n. 7), afirmava que podia alienar
os bens aquele que os adquirira; isto seria verdade, mas apenas para os bens próprios de cada cônjuge,
nos regimes em que eles existissem, o que não era o caso da comunhão geral portuguesa. António da
Gama afirmava que, quando se desse a separação, os bens adquiridos por qualquer dos cônjuges não
entravam na partilha (Decisiones […], cit., dec. 357, n. 1), o que só era verdade no regime do direito
comum. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 115, n. 30), dizia que nem o ofício nem os seus frutos
eram comunicados, mas pensando nos regimes do direito comum, eventualmente no castelhano. Bento
Pereira (Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1233) refere a opinião de que as dívidas contraídas
antes do casamento eram pagas apenas pelos bens do devedor, a menos que fossem contraídas em
razão do futuro casamento, o que era o regime do direito comum (e do dote), mas não o da comunhão
portuguesa. Há muito mais exemplos.
1422 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 357.

292
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ou mãe 1423.
Fazia exceção o regime de bens das segundas núpcias de viúva de mais
de 50 anos, em que só se comunicavam os bens adquiridos, por se admitir que os
seus herdeiros não deviam ser prejudicados por um casamento tão
extemporâneo1424 (“bínuba quinquagenária”, Ord. fil.4,105).
§ 954. Como os bens eram comuns, nenhum dos cônjuges podia praticar em
relação aos mais importantes deles - os imóveis - atos de disposição sem
autorização do outro (Ord. fil.4,48,pr.). Tais atos eram nulos, podendo o cônjuge
que não tivesse dado a autorização pedir a anulação da alienação e reivindicar de
terceiro a coisa alienada. Como a esposa não podia ir a juízo sem autorização do
marido, carecia dela para propor estas ações, embora o juiz pudesse substituir-se ao
marido no caso de este não dar autorização (Ord. fil.3,47,4). Todas as intervenções
judiciais relativas a direitos sobre imóveis do casal seguiam a mesma regra do duplo
consentimento1425.
§ 955. Constituída esta comunhão de bens, vinha ao de cima o lugar de
direção do marido como chefe da família.
§ 956. Na verdade, pertencia ao marido, como cabeça (caput) e principal
(prínceps) da família, a administração dos bens. Era neste sentido que Melchior Febo
dizia que o domínio da mulher sobre os bens comuns era um domínio apenas
virtual (in habitu) e não efetivo (in actu)1426, concluindo daí que o marido era o
verdadeiro proprietário dos bens, podendo dispor deles, salvo no caso de intuito
fraudulento contra o património familiar1427. Comum era, porém, outra opinião,
que distinguia proprietário e administrador. A mulher era companheira (socia) e não
escrava do marido, pelo que o direito reconhecia a necessidade da sua intervenção
nos atos mais importantes de disposição do património, suscetíveis de o prejudicar
mais gravemente. Isto acontecia com a alienação de imóveis (na qual se
compreendia a venda, a doação, o aforamento, a hipoteca, e os arrendamentos de
longo prazo: Ord. fil. 4,48) ou de móveis de maior valor (Ord. fil.4,64) e com a
garantia pessoal de obrigações de outrem (fiança: Ord. fil.4,60), a qual colocava o
património do casal na situação de responder por dívidas de outrem (Ord. fil.4,60;
64; 66)1428. Já quanto aos imóveis, podiam ser alienados apenas pelo marido, desde
que o negócio não fosse claramente prejudicial ao casal. A alienação sem
consentimento era nula, perdendo o comprador o preço (Ord. fil.4,60 e 64). O
consentimento da mulher tinha que ser expresso 1429.

1423 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 8, 2. Este regime terminou com a CL

17.9.1769; mas foi reposto pelo D. 17.7.1778.


1424 Sobre a “bínuba quinquagenária”, v. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v.
“Matrimonium”, n. 1218; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 8, 12. Note-se a carga
antropológica deste regime: a mulher de mais de cinquenta anos não seria nem atrativa nem fértil, pelo
que o casamento poderia visar apenas o enriquecimento do marido. Mas o mesmo não se aplicava ao
homem quinquagenário.
1425 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 2, 8, 18.

1426 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], dec. 115, n. 7.

1427 Melchior Febo, Decisiones […], dec. 115, ns. 8-10, 34.

1428 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 7, 4. Bento Pereira, Promptuarium […], cit.,

s. v. “Matrimonium”, n. 1229 ss. (poderes de alienação); ibid. 1218; Jorge de Cabedo, Decisiones […],
cit., p. 1. dec. 109, n.1 (doação de imóveis); Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 55, ns.
1-2 (doação do usufruto).
1429 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s.v. “Matrimonium”, n. 1229.

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§ 957. Em contrapartida, a mulher não podia contratar sem a autorização do


marido, tal como não podia acionar ou ser acionada sem ela (Ord. fil.4,66; Ord.
fil.3,47)1430 1431. O consentimento da mulher não era necessário, depois de separação
por sevícias do marido, nem para propor ações sobre imóveis, nem para vender
imóveis1432.
§ 958. A comunhão terminava com a separação ou “divórcio”1433, por
qualquer das causas que o direito canónico reconhecia (nomeadamente, sevícias,
adultério) (v. cap. 3.2.1)1434. Dissolvido o matrimónio, os bens eram inventariados e
divididos, por partilha1435, entre os cônjuges ou, sendo algum falecido, entre o
sobrevivente e os herdeiros. A mulher não perdia a sua meação a não ser nos casos
previstos nas Ordenações1436. Em Castela, cada cônjuge recuperava os bens que
levara para o casamento e os adquiridos como próprios, dividindo-se os restantes
adquiridos1437.
§ 959. Em virtude da comunhão, o cônjuge sobrevivo retinha para si, não
como herdeiro, mas como comproprietário, a metade dos bens do casal; além de,
como “continuação” da pessoa do falecido, ficar na posse dos bens (comunicados)
até à partilha com os herdeiros1438.
§ 960. Depois da partilha, os cônjuges recuperavam a plana capacidade de
disposição sobre os bens, pelo menos para a parte da doutrina que opinava que a
dissolução do casamento punha fim à comunhão1439.
3.3.1.2 O regime dotal
§ 961. O regime dotal tinha a particularidade de criar uma massa de bens que
era entregue ao marido pelo pai da esposa para sustento do casal. Estes bens,
inalienáveis por qualquer dos cônjuges e administrados pelo marido com regras
mais estritas, distinguiam-se dos bens comuns do casal, bem como dos bens que a
mulher tivesse reservado para si, e que administrava (bens parafrenais)1440. A lógica
subjacente ao regime dotal era a de que o sustento quotidiano da família devia ser
assegurado por uma massa patrimonial, constituída para esse fim pelo pai da noiva

1430 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec. 106; Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec.
9.
1431 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 8, 19.
1432 Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1230; António da Gama, Decisiones
[…], cit., dec. 357, n. 2.
1433 O “divortium” separa quanto ao thoro (toro, cama), mas não quanto ao vínculo, Bento

Pereira, Promptuarium […], v. “Matrimonium”, n. 1244 ss..


1434 Outras causas, Manuel Themudo da Fonseca, Decisiones […], cit., dec. 38.

1435 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 175, n. 3.

1436 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1244 ss..

1437 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 175, n. 2.

1438 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 8, 15

1439 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Matrimonium”, n. 1225; Melchior Febo,

Decisiones […], dec. 72, ns. 1-3.


1440 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 2. A antiga distinção entre bens

parafernais profetícios (entregues pelo pai à filha e que a ele deviam retornar, dissolvido o matrimónio)
ou adventícios (adquiridos de outra forma pela mulher) tinha-se tornado obsoleta pelo facto de a filha
adquirir a maioridade (e, logo, a titularidade dos seus bens) com o casamento.

294
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

–o dote1441. Apesar de haver autores que consideravam o dote como instituído no


interesse da mulher1442, a opinião comum era a de que o a preservação dos bens
dotais no património familiar era exigido pelo interesse público, pois o aumento da
população da república exigia que se fomentasse a sustentabilidade patrimonial dos
casamentos 1443. Era neste sentido que se chegava a afirmar que o dote era a
substância do matrimónio e, portanto, que em todos os casamentos devia haver
dote1444. Para alguns, o dote era tão essencial ao casamento que a inexistência ou
insuficiência dele podiam tanto desobrigar da anterior promessa de casar com
alguém1445 como autorizar a desobedecer a uma ordem régia de casar com certa
mulher1446. Para outros, o dote era tão normal que deveria ser tido como o regime
supletivo de bens1447.
§ 962. A constituição do dote era um dever do pai (ainda a filha natural1448 e
mesmo a espúria1449), semelhante ao de alimentos, embora menos estrito 1450.
Subsidiariamente, podia recair sobre a mãe 1451 e mesmo sobre os irmãos
germanos1452. Dava às filhas uma ação contra os pais que era usada,
alternativamente, com a acção de alimentos 1453. O dever de dotar cessava nos casos
de desobediência grave (por exemplo, casar sem autorização paterna, sendo
menor), de ingratidão (tal como outros deveres dos filhos, Ord. fil.4,88)1454 ou no
caso de pobreza do pai. Os juristas discutiam se cessava no caso de a filha ser rica,
por ser herdada da mãe ou ter recebido bens (nomeadamente, em dote) de
terceiro1455. O dote era pago pelos bens comuns dos pais, ou em comum pelos dois,
por força dos seus respetivos bens1456.

1441 Uma lógica idêntica “de sustento” tinha o dote espiritual, com que o pai devia beneficiar as

filhas que entrassem em religião.


1442 “Dos dicitur patrimonium filiae”, escreve Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 153, n. 3.

1443 Cf. a indicação de autores de uma e outra opinião em Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,
cons. 150, ns. 14-17 e 23.
1444 “Matrimonium non debet esse sine dote”, escreve Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec.

145, n. 10.
1445 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 31, n. 15 (o juramento de casar, sem

referência ao dote, não obriga a casar sem ele).


1446 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 31, n. 11.

1447 “Mulier nubes simpliciter secundum consuetudinem regni videtur bona sua in dotem dare, nisi

sit quinquagenaria, & filios habeat primi matrimonii. Quia tunc solum videtur dare in dotem tertiam
suorum bonorum”, Antonio da Gama, Decisiones […], cit., dec. 320, n. 3. (Bento Pereira,
Promptuarium […], n. 489).
1448 Alguns autores entendiam que o dote das filhas naturais podia ser menor; mas outros,

fundados em que a obrigação de dotar era de direito natural e que, perante este, todos os filhos eram
iguais, recusam a discriminação dos ilegítimos (cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9,
6).
1449 Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 471

1450 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 6.

1451 Recaía também sobre a mãe (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 7).

1452 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, ad t. 9, 8, rubr. p. 460.

1453 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, ad t. 9, 5 e 6, rubr. p. 451.

1454 As causas de deserdação justificam a não dotação (Bento Pereira, Promptuarium […], n. 483).

1455 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 6.

1456 Detalhes: Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, ad. tit. 9, 7, rubr.

p. 457.

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§ 963. O dote constituía-se por um pacto (Ord. fil.4,46,pr.)1457. Este pacto dotal
era irrevogável, mesmo nos casos de ingratidão da filha 1458. Não era exigida uma
forma especial, mas devia ser expresso, pois os bens levados pela mulher para o
casamento presumiam-se parafrenais. No entanto, tinham que se respeitar as
formalidades requeridas pelas Ordenações, em função da natureza dos bens (por
exemplo, escritura pública: Ord. fil.3,59, pr.; casos especiais, 11, 12 e 15).
§ 964. Era questão discutida a de definir o âmbito dos bens dotais. Para uns,
todos os bens que a mulher trazia para o casamento eram dotais, salvo cláusula no
pacto do dote que considerasse alguns como parafernais. Era a opinião de Jorge de
Cabedo e de Pegas1459, nomeadamente, que invocavam o texto da Ordenação 1460.
Neste caso, como bens parafernais ficariam apenas os que a mulher tivesse
adquirido depois de casada. Para outros, pelo contrário, seriam parafernais todos os
bens não incluídos expressamente do dote. A primeira opinião era mais favorável à
mulher, pois alargava a proteção dotal a mais bens1461.
§ 965. Bens dotais podiam ser quaisquer bens que estivessem no comércio e
que, portanto, fossem idóneos para prover ao sustento da família: bens móveis ou
imóveis, usufrutos, juros e tenças, bens recebidos em enfiteuse 1462 e mesmo as
expectativas de ofícios ou de sucessão de morgados 1463. Eram ainda dotais os bens
adquiridos com dinheiro dotal, se isto estivesse convencionada ou fosse
expressamente declarado no ato de compra. Com autorização (dispensa) do
Desembargo do Paço (Regimento, artº 40), os bens do dote podiam trocar-se por
outros, que ficavam com a mesma natureza. O crescimento dos bens dotais, pelos
seus frutos e boa administração, passava a integrar o dote se isso tivesse sido
convencionado1464; aliás, pertencia ao marido.
§ 966. O montante do dote esteve sujeito a limites, uns de direito civil e outros
de direito de polícia. Os limites de direito civil decorriam da sua natureza – que era
a de assegurar o sustento da família, num nível adequado (côngruo com) à condição
social dos nubentes (medida, sobretudo, pela condição da noiva) 1465 - e da
necessidade de garantir as legítimas dos outros filhos. Por isso, o dote devia ser

1457 Havia outros pactos pré-nupciais ou esponsalícios: a dação para casamento, as arras, o pacto

dotalício e a liberalidade esponsalícia.


1458 Bento Pereira, Promptuarium [...]. cit., n. 490.

1459 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 183, n. 3; Antonio de Sousa de Macedo,

Decisiones [...], cit., dec. 21; Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses […], cit., vol. 3, cap. 36, n. 53.
1460 “Bona dotalia censetur omnia, quae mulier, seu uxor, secum attulit si per contractum dotis

nupsit”; Ord. fil.4, 47, pr.: "todos os bens que a mulher trouxer em seu dote, quando casa por contrato,
e não por costume do Reino").
1461 Será a solução adotada pelo Code civil, arts. 1540 e 1541.

1462 Estava dispensado o consentimento do senhorio direto.

1463 Pascoal de Melo exceptuava dos bens que podiam constituir o dote os morgados, desde que

não fosse respeitada a ordem de sucessão prevista na sua instituição, os bens da coroa sem autorização
do rei (Ord. fil.2, 35, 18) e os bens enfitêuticos, sem autorização do senhorio direto (Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., ii, 9, 11). A razão era a da sua inalienabilidade – pelo que não podiam ser
dados à esposa. Esta última restrição não aparece nos autores mais antigos, alguns dos quais defendem
explicitamente o contrário.
1464 A doutrina dividia-se.

1465 Sobre a congruidade do dote, com indicação da doutrina anterior, Lobão, Notas a Melo […],

II, Tit. 9, 12, rubr. p. 470.

296
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

côngruo e não ofender as legítimas dos outros filhos 1466, estando limitado à legítima
da filha dotada mais aquela massa de bens de que os pais podiam dispor livremente
– a terça ou quota disponível (v. Ord. fil.4,97,3; cap. 5.2)1467. A partir de meados do
séc. XVIII, surgem leis pragmáticas impondo limites aos dotes, que se tinham
tornado excessivos, pondo em risco a solvabilidade das grandes casas 1468.
§ 967. O dote era, em princípio, dado por conta da legítima da filha dotada 1469,
devendo os bens dotais vir à colação e ser computados para estabelecer as quotas
hereditárias dos vários filhos.
§ 968. Os bens dotais, que ficavam na propriedade da mulher 1470, eram
administrados pelo marido tendo em vista as suas finalidades1471. Daí que, mesmo
por meio de atos de mera administração não devessem ser usados para outros fins,
como o pagamento de dívidas e satisfação de obrigações de qualquer dos cônjuges
anteriores ou não relacionadas com o matrimónio. Os poderes do marido eram os
de um administrador. Por isso, em princípio, não devia poder alienar os bens do
casal, sem consentimento da mulher. Mas o regime dotal era ainda mais estrito, pois
o dote estava protegido contra a dissipação para outro fim que não fosse o do
sustento do casal, ainda que com o consentimento de ambos os cônjuges 1472. Na
verdade, o direito romano proibia a alienação de bens dotais, por qualquer dos
cônjuges, ainda que com o consentimento do outro, dando à mulher uma ação para
os reivindicar1473, no caso de o marido os alienar. Como havia a prática de as
mulheres se obrigarem a não pedir a anulação das alienações destes bens, os juristas
medievais mais antigos discutiram muito se este juramento seria válido. Para evitar
que as mulheres violassem os tais pactos jurados (e, na verdade, para proteger os
maridos que violassem a interdição de vender bens dotais sem consentimento das

1466 Por isso, os bens doados em dote deviam ser trazidos à colação (Ord. fil.4, 97, 1; v. cap. 5.6),

para serem computados nas legítimas das filhas dotadas.


1467 Em Castela, o limite era de 1/10 do património. Numa época em que os casamentos entre as

elites portuguesa e castelhana eram comuns, as questões da aplicação do direito castelhano ou português
dos dotes a esses casamentos era importante, surgindo com frequência na doutrina. A opinião mais
seguida era a de que se aplicavam as normas de conflito da teoria do direito comum (teoria estatutária).
Assim, dava-se preferência ao direito do lugar da celebração do ato, que normalmente coincidia com o
da residência da noiva. O dote devia ser trazido à herança para se calcular o montante da legítima e para
ser imputado à legítima da filha dotada (collatio dotis).
1468 Em 1645, os dotes das mulheres nobres foi limitado a 12.000 cruzados (Alv. 14.8.1645). Uma

lei de 17.8.1761, reduziu drasticamente os dotes das filhas de nobres com mais de 3 contos anuais de
renda (a um enxoval de roupa branca de valor não superior a 4.000 cruzados), sendo ainda abolida a
legítima das filhas. Mas um decreto de D. Maria, de 17.7.1778, restabeleceu a legítima, bem como a
liberdade de dotar, embora com respeito pelas legítimas dos outros filhos; limitando também as arras a
8.000 cruzados (v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 13).
1469 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 482.

1470 "Dominium mariti circa res dotales dicitur immaginarium, uxoris autem verum et proprium"

(Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p.1, d.154, n.7).


1471 O dever de alimentos do pai em relação à família era de direito natural, pelo que subsistia

ainda que os bens dotais fossem insuficientes


1472Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., ns. 497 e 498.

1473 O direito romano clássico proibira a alienação dos bens dotais pelo marido, concedendo à

esposa uma ação de reivindicação para os recuperar; mas Justiniano alargara esta proibição às mulheres,
para as proteger da sua fraqueza perante a influência do cônjuge (cf. C. De rei uxoriae actione, 15; I. 4, 6,
12). Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 150, ns. 14-17 e 23. Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis [...], cit., 2, 9, !4. Porém, a sua troca podia ser permitida, como graça régia, pelo
Desembargo do Paço, Reg. Des. Paço, § 40.

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mulheres), Bonifácio VIII, pela bula Licet (VI. 2.11.2.), proibiu os juízes seculares de
admitirem as reivindicationes de bens dotais, inutilizando as proibições do direito
romano e as ações concedidas às esposas dotadas e deixando o marido livre para
alienar os bens dotais sem receio da reação das mulheres 1474. Porém, nos praxistas
portugueses dominava a opinião de que os bens eram inalienáveis por qualquer dos
cônjuges, ainda que com o consentimento do outro. Álvaro Valasco justifica esta
opinião principalmente com a natureza pública do interesse que presidira à
instituição do dote e, subsidiariamente, com a debilidade da mulher perante a
influência do marido. Isto levava a que se devesse afastar o direito comum, tanto
mais que o direito romano, em si mesmo, também promovia a intangibilidade dos
bens dotais. Nisso convinha a ordenação Ord. fil.4,48, apesar de estar redigida de
forma genérica. Embora uma corrente minoritária limitasse esta regra ao caso de a
mulher ter jurado não atacar as alienações do marido, havia um argumento
suplementar contra a validade de juramentos de não reivindicar: a proibição dos
pactos jurados pelas Ordenações (Ord. fil.4,73: “Que não se façam contratos, nem
distrates, com juramento promissório, ou de boa fé”). Lobão informa, porém, que
o Desembargo do Paço costumava dispensar essa proibição. Outra forma de tentar
remover a proteção aos bens dotais era reconhecer a validade das alienações feitas
pelos dois cônjuges, ocultando a natureza dotal dos bens. Neste ponto, a doutrina
dividia-se1475. Uns consideravam que a venda era nula, dada a natureza pública do
interesse pela conservação do dote e o facto de a ordenação Ord. fil.4,48 não excluir
da proibição estas alienações fraudulentas. Outros, pelo contrário, consideravam
que a validade da venda era uma espécie de punição para a fraude da mulher, que
calara a natureza dotal dos bens alienados, além de argumentarem com o interesse
do comprador na manutenção do negócio. A questão manteve-se indecisa1476. No
conjunto das polémicas em torno da capacidade do marido para vender os bens
dotais nota-se o conflito entre um regime de proteção do património familiar,
vinculado a um interesse superior de conservação das famílias, e um regime
favorável ao predomínio absoluto da vontade e interesses do marido que, na
verdade, descaracterizava bastante o modelo dotal.
§ 969. Para se entender bem a dimensão social desta questão, é bom
considerar a conjuntura social dos sécs XVII e XVIII ibéricos. Para uma elite
altamente endividada por uma economia de reputação, em que as despesas
sumptuárias e de status eram indispensáveis para obter mercês e rendas, a
necessidade de capital fresco em cada geração era crucial. Os bens de raiz da casa,
ou já tinham sido vendidos e penhorados ou eram de morgado, inalienáveis e

1474 Seguindo a lógica, perversa, de não induzir ao perjúrio as mulheres que tivessem jurado não

reclamar os bens dotais, por exigência dos maridos; o que era frequente. Para lhes salvar a alma, tirava-
se-lhe os bens …
1475 Sobre as discussões doutrinais, com os argumentos de um lado e de outro, Álvaro Valasco,

Decisiones […], cit., cons. 150 per totam.


1476 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9, 14, rubr. p. 473 ss..

Que alinha pela opinião favorável a alienação dos bens dotais, num discurso carregado de misogenia:
“Não ha mulher que ignore quaes são os seus bens dotaes, nem tal ignorancia se pode presumir num
sexo avaro por natureza, e aferrado aos seus bens [...] Huma vez que vende os que sabe serem dotaes,
illude, e engana ao comprador, supprimindo-lhe a verdade [...]. A Lei a presume por isso dolosa, e
incursa no crime de stelionato [...]. A conservação dos dotes não nos merece as ideas dos romanos; nem
o favor publico, que interessa nessa conservação [...] he tão forçoso que autorize um crime tal [...]".

298
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

impenhoráveis. Perante o assédio dos credores ou as necessidades de novos


investimentos em prestígio, o dote das esposas constituía uma oportunidade
ansiada para recuperar o equilíbrio financeiro das casas ou, pelo menos, para
minorar situações aflitivas de endividamento. Isso supunha, no entanto, que os
bens dotais estivessem livres para poder responder por dívidas que vinham de trás,
sem relação com o sustento da nova casa. A vinculação do dote ao sustento da
família dotada impedia o seu uso para reequilibrar as finanças do marido,
eventualmente dos seus ascendentes. Daí a importância de poder vender os bens,
pressionando a mulher para aceitar o enfraquecimento do dote ou mesmo com o
pleno acordo dela, consciente de que na alienação dos bens dotais estava a imediata
sobrevivência, política, social e económica da família1477.
§ 970. É ainda à luz desta oposição de interesses que deve ser entendida a
polémica, que se manteve até ao séc. XIX, sobre se os bens dotais podiam ser
vendidos para o sustento do casal. Aqui, a opinião mais racional pareceria ser a
afirmativa, pois não era outra a finalidade da instituição do dote, para além de que a
mulher – que receberia o dote uma vez dissolvido o casamento – também era
obrigada, embora subsidiariamente, a manter a família 1478. Todavia, outros juristas
consideravam os perigos de abuso do marido, quer simulando despesas, quer
furtando os outros bens a responder pelos gastos. Por isso, não faltam os juristas
que se opõem à solução, ou que a limitam e condicionam 1479.
§ 971. Aos atos de venda estavam equiparados todos os outros de alienação,
por escambo, doação, transação ou de oneração, como a constituição de servidões,
de enfiteuses, de hipotecas1480.
§ 972. Dissolvido o matrimónio, normalmente pela morte de um dos
cônjuges, os bens dotais1481 deveriam voltar para a esposa 1482 e sua família1483. As
dúvidas surgiam quando, sobrevivendo o marido, houvesse filhos, pois uma parte,
progressivamente dominante, da doutrina atribuía, neste caso, o dote ao marido e,
por sucessão deste, aos filhos; uma solução que favorecia os interesses da família do
marido face aos da família da mulher.
§ 973. A restituição do dote estava duplamente garantida. Ou por uma

1477 Nota-se em Pascoal de Melo um velada antipatia em relação a este regime do dote, talvez por

ele consistir num modelo de vinculação da propriedade a interesses familiares supra-individuais,


comprometendo os interesses dos credores na mobilidade geral dos bens. Melo salienta o caráter
estrangeiro do regime, tenta restringi-lo em diversos pontos e condiciona alguns dos seus aspetos à
inexistência de direitos adquiridos em contrário.
1478 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 366, n. 7.

1479 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 128, n.4.

1480 “Duvidouse se os bens dotais se podiam obrigar em fianças sobre rendas da fazenda delRey

consentindo a mulher nessa hipoteca ? Determinouse que nem de consentimento da molher se podia
fazer a dita obrigaçam, e estando feita execuçam por parte delRey nos tais bens, se ouve por nula” (em
Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 506).
1481 Sobre o regime dos “crescimentos” ou frutos do dote e das despesas com ele feitas pelo

marido administrador, v. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., Notas, 2, 9,
24, rubr. p. 506 ss. (a regra geral era a de que se deduziam as despesas necessárias ou úteis).
1482 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 502; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...],

cit., 2, 9.21; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9, 21.
1483 Se o dote excedesse legítima, o pai podia incluir no pacto dotal uma cláusula reversiva,

dispondo que os bens voltassem a ele. Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...],
cit., 2, 9, 22, p. 499 ss.. O mesmo podiam fazer outros dotantes.

299
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hipoteca sobre todos os bens do marido. Ou pela atribuição de preferência à esposa


em relação a todos os outros credores do marido1484.
§ 974. A existência de massas patrimoniais distintas nos bens do casal
originava uma maior complexidade do regime de bens no casamento com dote.
§ 975. A doutrina considerava que a mulher adúltera ficava privada de dote
(Ord. fil.5,25), mas exigia que o marido a tivesse acusado disso1485.
§ 976. Nos casamentos com contrato de dote existiam, para além dos bens
dotais, os bens parafernais e os bens comuns1486.
§ 977. Os bens parafernais (do grego antigo parapherna, o que está para além
do dote) eram os bens especificamente reservados para a mulher (em geral joias,
somas de dinheiro ou objetos pessoais) no contrato de dote e, além destes, os bens
recebidos por esta na constância do casamento, provindos de sucessão
testamentária ou ab intestato, ou de doação1487. Eram propriedade da mulher, embora
sob a administração do marido. O marido podia vendê-los, com autorização da
mulher, mas o produto da venda continuava parafernal, devendo ser restituído à
mulher e seus herdeiros1488. A mulher só podia reivindicar os parafernais com
autorização do marido, conforme a regra geral sobre a sua capacidade processual.
Esta autorização podia ser suprida pelo juiz (cf. Ord. fil.4,48,3).
§ 978. Dissolvido o matrimónio, os bens dotais eram entregues à mulher.
Aqui, a grande questão era a de saber por que critérios se devia pautar a
administração e a quem aproveitava os seus frutos. Muitos autores defendiam, pura
e simplesmente, que o marido era soberano nos critérios de administração, que os
gastos feitos dos bens parafernais se presumiam de interesse comum e que o
marido fazia próprios os rendimentos ou crescimento dos bens parafrenais1489.
Outros acabavam por chegar a resultados equivalentes, pois defendiam que, sendo
os frutos também parafernais, existiriam doações tácitas periódicas deles, feitas pela

1484 Cf. Lei de 20.06.1774, que estabeleceu a solução de uma hipoteca tácita a favor da mulher,

preferencial em relação a todos os credores anteriores e posteriores, inovando em relação a anterior


opinião mais comum, que negava este privilégio. Cf. sobre o concurso com a Fazenda Real, Jorge de
Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1. decs. 183, 188-9); Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 505; mais
tarde, o regime é alterado a favor do fisco (L. 22.12.1761, tit. 3, 14).
1485 Tecnicamente, a reclamação (repetição) do dote era paralisada por uma exceção invocando o

adultério. Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit.9, 23, rubr. p. 505.
Muitos autores não exigiam a acusação formal por parte do marido, bastando outra forma de reação por
parte deste (expulsão da mulher, queixas públicas) que mostrasse que ele não consentia no adultério.
1486 V. Ord. fil.5, 38, 2.

1487 Alguns autores pretendiam que se devia presumir que os bens da mulher eram parafernais e

não dotais (Baldus Consilia, Cons. 69). Cf. Christian Gottfried Leiser, Ius georgicum de praediis, von
Landgüthern, liv. 1, cap. 34 (De praedis paraphrenalibus), n. 16-17:
books.google.com.br/books?id=S7NFAAAAcAAJ&pg=PA174&lpg=PA174&dq=bona+paraphernalia
&source=bl&ots=M9pLdzVd9Y&sig=fnWUHY2FnAJgMbZ0vzKxnFWDY_8&hl=pt-
BR&sa=10&ei=mSBbUpy2E4urkQe46oC4Aw&ved=0CFQQ6AEwBTgy#v=onepage&q=bona%20pa
raphernalia&f=false).
1488 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9, 15, rubr. p. 484,

distinguindo várias hipóteses de uso do dinheiro da venda, em geral subsumíveis à regra geral de que os
bens vendidos são bens da mulher, pelo que o produto da venda deve ser destinado a satisfazer
interesses seus e não alheios.
1489 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 77, n.3; Domingos Antunes Portugal, De

donationibus [...], cit., p. 1, Praelud. 2, § 3, n. 99.

300
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mulher ao marido, como agradecimento e compensação dos trabalhos da


administração. Quando muito, apenas teriam que ser entregues à mulher os últimos
frutos (frutos pendentes) no momento da dissolução, ficando o resto para o marido
e seus herdeiros. Em síntese, na dissolução do matrimónio, caberiam à mulher e
seus herdeiros, os parafernais que restassem – e como estivessem - à data da
dissolução1490.
§ 979. Os bens comuns eram todos aqueles que os cônjuges tivessem
conjuntamente adquirido por força dos seus bens próprios. O seu regime seguia o
dos bens comuns do casamento por carta de ametade.
§ 980. O quadro seguinte sintetiza o que acaba de se dizer.
Bens comuns Bens dotais Bens parafernais
Administração e
Administração, sem disposição, com
poder alienar ou obrigar autorização da mulher,
(bens imóveis), mesmo Ord. fil.4,48,pr.; 4,60).
Imóveis: regra geral com a autorização da Estavam entregues ao
1491
(administração e mulher . Também se marido como
disposição, esta com falava, a propósito administrador e
autorização da destes bens, em procurador e não como
mulher, Ord. propriedade limitada. proprietário.
fil.4,48,pr.) A conservação dos bens A mulher dispunha de
Móveis: poderes totais dotais era garantida por ação para revogar a
Marido
de disposição, hipoteca de todos os doação deles pelo marido
podendo a mulher bens do marido à sem o seu consentimento.
pedir a revogação da restituição e por Embora carecesse da
doação depois da atribuição de privilégio autorização do marido
separação, para creditório à esposa (Lei para propor esta ação,
recuperar a sua de 20.06.1774), mesmo esta autorização podia ser
metade (Ord. fil.4,64). contra o fisco. suprida pelo juiz (cf. Ord.
fil.4,48,3).
Por morte do marido, os
bens dotais ficavam para Com a dissolução do
a mulher e para os filhos casamento, voltavam à
propriedade da mulher.
Não tinha quaisquer
Poderes totais de
poderes, nem de
disposição, embora não
administração, nem de
os pudesse obrigar em
disposição
garantia (privilegium sc.
Também não podia 1493
Mulher Velleianum) .
contratar, por força
dos bens comuns, sem Respondia por contratos
autorização do marido do marido, se participasse
1492 nos lucros que daí
(Ord. fil.4,64 ). 1494
resultassem

1490 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, tit. 9, 15, rubr. p. 484
ss..
1491 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 14. Podia, porém, alienar os móveis, a

que a interdição do direito romano não se referia.


1492 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 17.

1493 C. 8, 55 De revocandi donationibus, 6; C. 8, 53 De donationibus, l. 35; v. Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 15.


1494 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 18; Ord. fil. 4, 60, pr..

301
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3.3.1.3 As arras.
§ 981. Anexo à generalidade – mas não a todos, necessariamente, pois a
fixação de arras era facultativa1495 - dos pactos de dote estava o pacto de arras.
§ 982. As arras1496 não eram, no direito português, o mesmo que no direito
comum, em que, nas palavras de Álvaro Valasco 1497, “as arras eram aquilo que é
dado pelos que celebram esponsais em sinal ou penhor de um matrimónio futuro,
para a firmeza e segurança de que o celebrarão”. Daí que, tal como em outros
contratos, a falta de cumprimento da promessa implicasse a perda das arras ou a
sua restituição em dobro. Em Portugal, as arras eram tidas como uma espécie das
doações para casamento (donationes ob matrimonium, donationes matrimonii causa)1498. A
explicação das arras era discutida. Parecia a muitos que provinha da instituição
germana da “compra do corpo da mulher” (emptio puellae) ou do privilégio de a
desflorar (Morgengabe, prima pro nocte datum). No séc. XVII, isto parecia a Valasco
ridículo, além de incoerente com o facto de se prometerem também a viúvas,
preferindo a opinião de que se tratava, ou de uma soma oferecida em homenagem à
honra, honestidade ou nobreza da mulher, ou de uma contrapartida do dote, ou de
uma forma de o marido garantir uma vida abastada e honesta à mulher,
nomeadamente no caso de viuvez (ibid. n.4). A questão não era apenas histórica,
pois podia ter relevo dogmático: assim, o saber se o não pagamento, total ou
parcial, do dote, autorizava a repetição das arras, ou de uma sua parte. Como a
doutrina tendia a responder afirmativamente a esta questão1499, a ideia de que as
arras eram o equivalente do dote ganhava força. Porém, a desproporção –
estabelecida na lei (em Portugal, Ord. fil.4,47) – entre dote e arras parecia inutilizar
esta ideia, dando força à de que se tratava antes de uma retribuição da honestidade
e lustre da mulher (propter matrimonium, pudicitiam vel honorem), ou mesmo de uma
manifestação de reconhecimento por um dote vultuoso 1500.
§ 983. As arras eram constituídas por pacto, mas não podiam exceder a terça
do dote (Ord. fil.4,47,1)1501, para não se prejudicar os filhos de anteriores
casamentos1502.
§ 984. Na constância do matrimónio, os bens de arras eram da mulher,
embora administrados pelo marido e, dissolvido aquele, retornavam ao marido ou
seus herdeiros.
3.3.1.4 As doações entre os cônjuges.

1495 Álvaro Valasco, Decisiones […], cons. 2, n.11.


1496 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 64 ss.. Sobre arras, importante, Álvaro Valasco,
Decisiones […], cons. 1 a 3. Distinção em relação às doações propter nuptias, ibid. cons. 2, ns, 5 ss.;
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 27.
1497 Álvaro Valasco, Decisiones […], cons. 2, n.1.

1498 Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 9, 37, rubr..

1499 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 3 per totum.

1500 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 3, ns. 5-7. Neste caso de dotes vultuosos, bem

como no caso de a mulher ter um estatuto social muito superior ao marido, as arras poder-se-iam
mesmo instituir, excecionalmente, depois do casamento (ibid. ns. 2 e ss.).
1501 Em Castela, a décima parte, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 64.

1502 Cf. ainda o decreto de 17.7.1778, que apenas permitia estas liberalidade a fidalgos,
estabelecendo para elas um limite de 8.000 cruzados.

302
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 985. Embora o direito romano reconhecesse a validade, em geral, dos


contratos onerosos entre os cônjuges, tratava com desconfiança as doações entre
eles, porque suspeitava que qualquer dos dois podia induzir o outro a beneficiá-lo
ou, para o mesmo fim, chantageá-lo com o divórcio (“se não me doas algo,
divorcio-me)1503 1504.
§ 986. Em Portugal, o tema era tratado nas Ordenações (Ord. fil.4,65), que
também procuravam impedir que, por meio de doações, um dos cônjuges alterasse
a seu favor o que fora convencionado acerca do regime dos bens de um e outro. O
princípio era o de que todas as dotações pelas quais um cônjuge se fizesse mais rico
à custa do empobrecimento do outro eram livremente revogáveis 1505, só se
consolidando, não sendo entretanto revogadas, com a morte do doador. Para além
disso, consideravam-se revogadas no caso de nascimento superveniente de filhos,
pois se entendia ser provável que a inexistência de filhos tivesse sido muito
relevante na decisão de doar os bens ao parceiro conjugal 1506.
§ 987. Estas prevenções eram inúteis no caso de comunhão de bens, pois aí
nem havia bens próprios, nem a doação evitava que os bens doados se
comunicassem. No caso de outros regimes em que existissem bens próprios de
cada cônjuge, escapavam ao regime restritivo da lei as doações em que não
houvesse enriquecimento de um dos cônjuges 1507. Era o caso das doações
remuneratórias de serviços (obséquios) que um dos cônjuges tivesse prestado ao
outro1508 ou o das doações que só fizessem efeito por morte do doador (mortis causa)
que, para além de serem sempre revogáveis, por serem semelhantes a testamentos,
não produziam nenhum enriquecimento antes da morte do doador.
§ 988. As Ordenações falavam apenas de doações. Mas a doutrina equiparava às
doações todos os pactos de que proviesse um idêntico efeito de alteração do
equilíbrio patrimonial antes estabelecido entre os cônjuges, como as renúncias a
favor do outro de bens a adquirir, as vendas simuladas ou fraudulentas, etc. 1509.
Também as alterações dos pactos conjugais podiam entrar aqui; pois se se passasse

1503 D.24.1.1 (Ulpianus libro 32 ad Sabinum): “Moribus apud nos receptum est, ne inter virum et

uxorem donationes valerent. Hoc autem receptum est, ne mutuo amore invicem spoliarentur
donationibus non temperantes, sed profusa erga se facilitate”; (D.24.1.2, Paulus libro septimo ad Sabinum):
“Ne cesset eis studium liberos potius educendi. Sextus Caecilius et illam causam adiciebat, quia saepe
futurum esset, ut discuterentur matrimonia, si non donaret is qui posset, atque ea ratione eventurum,
ut venalicia essent matrimonia”. (D.24.1.3, Ulpianus libro 32 ad Sabinum): “pr. Haec ratio et oratione
imperatoris nostri Antonini Augusti electa est: nam ita ait: “Maiores nostri inter virum et uxorem
donationes prohibuerunt, amorem honestum solis animis aestimantes, famae etiam coniunctorum
consulentes, ne concordia pretio conciliari viderentur neve melior in paupertatem incideret, deterior
ditior fieret”. Cf. também: C.5, 16.
1504 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 10; Manuel de Almeida e Sousa

(Lobão), Notas […] Melo [...], cit., ao mesmo título, p. 538 ss..
1505 Além disso, deviam ser confirmadas pelo rei, caso ultrapassassem certa soma, nos termos

gerais das doações (insinuação: Ord. fil.4, 62).


1506 Não havendo filhos, nos bens próprios de cada cônjuge sucediam os seus herdeiros (a sua

família). Daí que fosse frequente que, não havendo filhos, a mulher doasse os bens a seu marido, em
virtude da solidariedade conjugal. Havendo filhos do casal, esta doação não fazia sentido.
1507 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 10, sec. II a 4, p. 542 ss

1508 Por exemplo, cuidando dele numa doença grave ou administrando os bens comuns ou os bens

próprios durante uma ausência.


1509 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 10, 4, 1, sec. I. p. 539.

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da comunhão para o regime dotal, ou deste para aquela, um dos cônjuges podia
perder património próprio para o outro. Nestes casos, a alteração do regime de
bens era revogável por qualquer dos cônjuges até à sua morte, como se se tratasse
de uma doação.
§ 989. Pascoal de Melo1510, por influência de autores alemães do usus modernus,
autonomiza o regime dos bens esponsalícios, bens entregues à mulher para seus
pequenos gastos e para o seu sustento na viuvez (apanágio, alimentos, alfinetes).
Para outros, são apenas bens doados, que seguem o regime geral das doações entre
cônjuges1511.
3.3.2 Tutelas e curatelas.
§ 990. Relacionado com as relações patrimoniais na família estavam as tutelas
e as curatelas, que estabeleciam mecanismos de supervisão sobre pessoas atingidas
por diminuições da sua capacidade jurídica (capitis deminutiones), mas que não
pudessem contar com a guia e supervisão paternas.
3.3.2.1 Das tutelas.
§ 991. A sociedade de Antigo Regime era uma sociedade de vidas breves, pois
era curta a expectativa de vida. O estado de orfandade era frequente e suscitava o
cuidado do poder. Por isso é que os reis colocavam frequentemente os órfãos e as
viúvas sob a especial proteção da respublica, criando magistrados especialmente
incumbidos de cuidar dos seus interesses e regulando a sua tutela.
§ 992. A tutela era, por isso, o dever que a república impunha a alguma pessoa
- chamada tutor (ou "guardador", nos textos portugueses mais antigos e nas
Partidas) - de fazer as vezes do pai falecido ou incapaz no cuidado dos filhos,
provendo a sua educação, sustento e administração dos seus bens 1512. Trata-se, por
isso, de um encargo público, semelhante a um ofício (D. 40,15,2,1: "publicam
tutelam"), pelo que devia ser providenciado e supervisionado por um magistrado
("juiz dos órfãos") e, em princípio, não admitia escusas 1513. A tutela devia ser
atribuída (datio tutelae), de acordo com o direito da natureza, aos parentes
consanguíneos dos órfãos, pois eram tidos como partilhando a mesma carne e o
mesmo corpo. Esse era o fundamento da tutela legítima e do regime do seu
deferimento.
§ 993. A principal fonte de direito romano era I.1,201514. As principais fontes

1510 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 9, 35.


1511 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] Melo [...], cit., II, 9, 35, ps. 531 ss..
1512 “Tutela est vis, ac potestas ad tuendum eum, qui propter aetatem suam sponte se tueri non

potest [...] et est triplex nma alia est legitima, alia testamentaria, alia dativa”, António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, n. 1.
1513 "... officum publicum est administrare tutelam, qua propter datur invitus", António Cardoso

do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, n. 4.


1514 “Pr.: Si cui nullus omnino tutor fuerat, ei dabatur in urbe quidem Roma a praetore urbano et

maiore parte tribunorum plebis tutor ex lege Atilia, in provinciis vero a praesidibus provinciarum ex
lege Iulia et Titia"; "4. Sed hoc iure utimur, ut Romae quidem praefectus urbis vel praetor secundum
suam iurisdictionem, in provinciis autem praesides ex inquisitione tutores crearent, vel magistratus
iussu praesidum, si non sint magnae pupilli facultates."; "6: Impuberes autem in tutela esse naturali iure
conveniens est, ut is qui perfectae aetatis non sit alterius tutela regatur”. “7: Cum igitur pupillorum
pupillarumque tutores negotia gerunt, post pubertatem tutelae iudicio rationem reddunt".

304
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

de direito pátrio eram as ordenações Ord. fil.1,88,49 e Ord. fil.4,1021515.


§ 994. Estavam sob tutela os órfão impúberes (até 14 anos); os púberes (de 14
até 25 anos) estavam sob curatela (cf. Ord. fil.4,104,6). Excecionalmente, podia ser
dada tutela em vida do pai: se ele estivesse ausente em regiões longínquas, se tivesse
endoidecido ou se se tivesse casado de novo 1516.
§ 995. A tutela podia ser legítima (i.e. atribuída pela lei [pelo direito]),
testamentária, estabelecida em testamento pelo pai, pelo avô, pela mãe ou por um
terceiro que instituísse o pupilo como herdeiro, ou dativa, atribuída por um
magistrado competente (Ord. fil.4,102).
§ 996. O pai podia (e deveria, segundo alguns) dispor um tutor para os seus
filhos, ou no testamento (tutela testamentária), ou por pacto com o escolhido, para
fazer efeito depois da morte do pai. A tutela testamentária era a mais frequente 1517.
A tutela podia ainda ser estabelecida, pelo avô paterno (tendo o pai falecido sem
nomear tutor), pela mãe (nas mesmas circunstâncias) ou até por um estranho que
instituísse o pupilo como herdeiro. A tutela dada pelo pai ou pelo avô, era a
preferente e fazia efeitos imediatos, sem outras cautelas ou formalidades (fiança,
inquirição) (Ord. fil.4,102,1), a não ser o inventário judicial dos bens dos pupilos
(Ord. fil.4,102,pr.). A tutela instituída pela mãe, pelo pai natural ou por um estranho
careciam de confirmação por sentença do juiz dos órfãos (eventualmente do juiz
ordinário, quando o inventário corria perante ele), inquiridas as qualidades do
nomeado (Ord. fil.4,102,2).
§ 997. No caso de não haver uma tutela voluntária (pactícia ou testamentária),
o direito chamava à tutela (legítima) os parentes e os patronos (do pai escravo ou
liberto, no que respeita aos seus filhos livres). Dos parentes, os primeiros chamados
eram a mãe1518 ou o avô, cumpridos certos requisitos estabelecidos pela lei (Ord.
fil.4,102,3, Ord. fil.1,62,37: nomeadamente, a renúncia a segundas núpcias e ao
benefício do Senatusconsulto Velleiano)1519. Seguiam-se os restantes parentes, pela
ordem da sucessão e da proximidade de grau1520.
§ 998. Na falta de tutor testamentário ou legítimo, a tutela deferia-se ao tutor
dativo (ou, na linguagem do direito romano, "tutor Atialiano"), dado oficiosamente
pelo juiz (dos órfãos) do lugar de domicílio da família (i.e. do pai) (Ord. fil.4,102,pr. e
5).
§ 999. As Ordenações excluíam do ofício de tutor os menores, os furiosos, os
pródigos, os pobres, os escravos, os religiosos, as mulheres (em suma, os que não
gozavam de capacidade jurídica para exercer múnus públicos) (Ord. fil.4,102, 1 e 3),

1515 Principal literatura portuguesa: Simão de Oliveira da Costa, De munere provisori […], cit.; Diogo

Guerreiro Camacho de Aboim, De munere judicis orphanorum […], 1cit.; António de Paiva e Pona,
Addicçoens à orphanologia pratica […], cit.
1516 v. Ord. fil.1, 88, 6; Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 30.

1517 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 11, 5 e 6.

1518 Por direito comum, a tutela não podia recair em mulheres ("... est tamen officium virile, quo

mulier fungi non potest", António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, n. 5). No
entanto, excetuavam-se a mãe e a avó, ibid. n. 6.
1519 Se o valor dos bens ultrapassasse certa quantia, a confirmação da tutela materna devia ser feita

pelo Desembargo do Paço, Ord. fil.1, 37, in fine.


1520 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, n. 2.

305
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bem como os inimigos do pupilo1521. Os admitidos deviam, além disso, ser capazes
de administrar efetiva e competentemente os bens do menor, o que prejudicava a
capacidade dos filhos-família e dos ausentes. Não eram aponíveis termos na
instituição da tutela; mas já se admitiam condições, desde que possíveis 1522.
§ 1000. Os tutores, salvo os dados pelo pai e mãe ou os dados oficiosamente
pelo juiz, deviam prestar fiança pelos bens que iriam administrar, exceto se
possuíssem bens que garantissem suficientemente os pupilos contra os seus atos de
má gestão (Ord. fil.4,102,5).1523.
§ 1001. Os juristas diziam que as atribuições do tutor (officum tutoris) diziam
respeito à autoridade sobre o pupilo e à administração dos seus bens 1524. Na sua
autoridade cabia a confirmação dos atos do pupilo (D.26,8, De auctorite et consensu
tutorum; e I.1,21, De auctoritate tutorum, I.1,21); na administração, o governo da pessoa
e bens do pupilo: a sua educação, conforme as suas posses e a tradição da família, a
sua defesa (nomeadamente, judicial: Ord. fil.1,88 per totum; Ord. fil.3,41,8), e a
administração prudente dos seus bens, como a faria um bom pai de família. As
Ordenações exigiam, porém, a confirmação do juiz dos órfãos para os atos de maior
importância, como as vendas, os empréstimos de dinheiro, o reconhecimento de
dívidas, os esponsais e o casamento (Ord. fil.1,81, max. 29)1525. Os tutores deviam
prestar contas, periodicamente, da sua administração e eram responsáveis pelos
danos causados nos bens dos menores, por dolo ou negligência (Ord. fil.3,41; tal
como os seus fiadores, Ord. fil.4,102,5)1526, podendo ser removido da tutela por
isso1527. Os seus bens ficavam obrigados à reparação dos prejuízos causados aos
pupilos1528.
§ 1002. Como a tutela era um encargo público, estavam reguladas as causas de
escusa: eram escusos os pais de 5 ou mais filhos, os desembargadores, os
administradores de rendas reais, os de mais de 70 anos, os doentes incapazes de
administrar os seus próprios bens, os nobres e os doutores, bem como todos a
quem esse privilégio fosse especialmente concedido (Ord. fil.4,104)1529.
§ 1003. A tutela extinguia-se quando o pupilo atingia a maioridade. Para além
disso, extinguia-se por condição aposta na tutela dativa, pelo decurso do prazo de

1521 Outras interdições, por incompatibilidade de interesses em Manual de Almeida e Sousa


(Lobão), Notas [...] a Melo, II, 9, 11, 3 ss. p. 568 ss..
1522 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 11, 9.

1523 Todos careciam de confirmação do juiz e de alguma inquirição sobre a sua suficiência. A

sequência de atos prévios à entrada na administração dos bens do pupilo era: (i) mandato do juiz; (ii)
inventário; (iii) juramento do tutor; (iv) prestação de fiança; (v) juramento de zelar bem o património do
pupilo.
1524 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 11, 15.

1525 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, ns. 16-22; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis, cit., 2, 11, 15. Sobre os juízes dos órfãos, António Vanguerve Cabral, Pratica
judicial [...], cit., p. 1, cap. 48. V. Ord. fil.1, 88 (principalmente inventário e cura dos seus bens).
1526 Por culpa grave ou leve e até por caso fortuito, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit.,

s. v. “Tutela”, n. 13.
1527 Os juízes dos órfãos respondiam por culpas na supervisão das tutelas, Ord. fil.1, 88, 3; ibid. §§

7, 16, 18 e 24.
1528 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, n. 7.

1529 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Tutela”, ns. 28 ss..

306
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

dois anos no qual os estranhos eram obrigados a assumi-la (Ord. fil.4,102,9), por
incapacidade superveniente do tutor, e por outras causas semelhantes 1530 1531.
3.3.2.2 Das curatelas.
§ 1004. À tutela dos menores púberes (nos rapazes, mais de 14 anos; nas
raparigas, mais de 12 anos) era dado o nome de curatela. A distinção terminológica
vinha do direito romano, mas não se refletia em diferenças de regime, quando dizia
respeito a órfãos.
§ 1005. A curatela só era uma figura autónoma quando se dava a não órfãos que
fossem incapazes.
§ 1006. Assim, existia para os dementes (furiosos, "sandeus", desassisados,
desmemoriados) (Ord. fil.1,103), embora estes pudessem administrar os seus bens
nos intervalos lúcidos (Ord. fil.1,103,3; v. cap. 3.1.10). O regime estendia-se aos
surdos e aos mudos; mas não aos cegos, que, embora não vissem, eram capazes da
faculdade de comunicar1532. A curatela era legítima e recaía sobre os parentes mais
próximos, por ordem de grau; nos casados, cabia à esposa 1533.
§ 1007. A curatela também existia para os pródigos, ou seja, para aqueles que
delapidassem sem razão o seu património (Ord. fil.4,103,6: "desrazoadamente gasta,
e destrói a sua fazenda"; v. cap. 3.1.10.1), desde que assim fosse judicialmente
declarados1534 (sobre o jogador, Ord. fil.5,66,7). A viúva pródiga tinha um regime
especial, que se traduzia em que não lhe era dado um curador, em honra de seu
falecido marido e de sua linhagem, mas se devia comunicar esse facto ao rei (Ord.
fil.4,107)1535.
§ 1008. Aos ausentes e cativos com paradeiro desconhecido era dado um
curador pelo juiz dos órfãos, pelo provedor da comarca ou pelo Desembargo do
Paço, consoante a importância dos bens (Ord. fil.1,90; 1,60; Regimento do
Desembargo do Paço, § 50).
§ 1009. À herança jacente sobre que impendia litígio podia o juiz da causa dar
um curador1536. O mesmo acontecia com a massa falida 1537 e com a igreja vacante.
Também ao filho no ventre da mãe podia ser dado um curador, que cuidasse do
seu património futuro, no caso de ele vir a nascer1538.

1530 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 11, 19.


1531 Sobre a tutela dos reis, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 11, 22.
1532 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 12, 7.

1533 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 12, 7.

1534 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 2, 12, 9.

1535 Este regime procurava combinar dois aspetos da proteção da honra do marido falecido: por

um lado, evitar que a conduta desregrada da sua viúva ofendesse a sua memória; mas, por outro, não
pôr nas mãos de um estranho a autoridade que ele em vida tinha sobre a mulher.
1536 Cf. Manual de Almeida e Sousa (Lobão), Notas [...] a Melo, 2, 12, 12, sec. 2, p. 631.

1537 Cf. Manual de Almeida e Sousa (Lobão), Notas [...] a Melo, 2, 12, 12, sec. 3, p. 633.

1538 Cf. Manual de Almeida e Sousa (Lobão), Notas [...] a Melo, 2, 12, 12, sec. 4, p. 634.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

4 Direito das coisas


4.1 O conceito de “coisa”
§ 1011. Se a qualidade de pessoa e o seu estatuto civil e político eram o produto
de uma certa forma de imaginar o mundo humano (v. cap. 3.1), também o mundo
das coisas (res) e as suas relações com o mundo dos homens (as situações reais) o
eram.
§ 1012. Vamos procurar reconstituir esse imaginário e as suas mutações,
averiguando, quer o conceito de coisa, quer os conceitos por meio dos quais o
direito modela as relações das pessoas com as coisas. Com isto procuramos atingir,
por meio desta “interpretação densa” das construções jurídicas, a “ontologia
espontânea” da época.
4.1.1 As coisas na sistematização tradicional das matérias jurídicas.
§ 1013. A ideia de que há um “direito das coisas” aparecia, com grande
evidência, num texto muito conhecido das Institutiones de Justiniano, que recolhia
uma tradição anterior de sistematizar as matérias 1539. Este modelo de sistematização
passa para o direito comum. No entanto, se nos detivermos um pouco sobre o que
o direito comum considera uma coisa, logo veremos que o mundo dos objetos
jurídicos é um estranho mundo, que pouco tem a ver com o mundo dos “objetos”
segundo o nosso senso comum.
§ 1014. “Coisa é um nome geral”, escreve António Cardoso do Amaral -
“compreendendo direitos, contratos e todas as obrigações [...]; trata-se de uma
definição perigosa de coisa, pois, devendo a definição ser a demonstração da
substância do definido, no caso presente se verificam neste muitas variações, de
acordo com as circunstâncias dos negócios” 1540. Este uso muito genérico do
vocábulo “coisa” ocorre também nas Institutiones de Gaius, quando ele se refere às
fontes das obrigações1541 e, entre elas, ao lado do consenso, da recitação de palavras
ou da redação de um escrito, enumera “as coisas”, significando as circunstâncias
elas mesmo, independentemente de qualquer consenso, recitação ou escrito.
Porém, neste contexto da sistematização das matérias jurídicas, o sentido de “coisa”
tinha que ser mais restrito. A fixação deste sentido era uma questão tormentosa
entre os autores. Nuns apontamentos manuscritos de lições de direito em Coimbra,
dos anos 30 do séc. XIX 1542, o autor distingue um significado filosófico (“tudo o
que existe ou he possivel existir, ou seja substancia ou modo”), de um outro
jurídico, útil para entender a sistematização das matérias jurídicas adotada no

1539 Cf. I.1, 2, 12: “12. Omne autem ius, quo utimur, vel ad personas pertinet vel ad res vel ad

actiones. ac prius de personis videamus. Nam parum est ius nosse, si personae, quarum causa statutum
est, ignorentur”. Corresponde a I. 8, das Institutiones Gaii (http://www.thelatinlibrary.com/
gaius1.html#8).
1540 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Res”, n. 1.

1541 Inst. Gaii, 3, 89 : “ Et prius videamus de his, quae ex contractu nascuntur. Harum autem

quattuor genera sunt: aut enim re contrahitur obligatio aut uerbis aut litteris aut consensu” (primeiro
vejamos aquelas [obrigações] que nascem de contrato. Destas, há quatro géneros. Pois a obrigação ou se
cria pela situação (pela coisa, re), ou por palavras, ou por escritos, ou por consenso).
1542 Exemplar na minha biblioteca; na anotação a Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3, 1,

1. O texto manuscrito deve ser dos meados da década de 1830, pois contém referências a legislação de
1834.

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modelos da Institutiones. Esse sentido mais restrito é dado por exclusão (“No
sentido jurídico toma-se cousa por tudo aquillo que não he pessoa nem ação”, pg. 2
vº), embora acabe por resultar numa equiparação de coisa a todo quanto se
relaciona com a fruição de uma utilidade, tendo, por isso, um reflexo patrimonial
(“e por isso entende-se por cousa tudo aquilo que he distinto de pessoas e acções e
que nos pode prestar alguma utilidade.// Tomada pois neste sentido significa os
bens que constituem o nosso património e assim compreende os direitos e ações
por que estas também pertencem ao património e nos são uteis. Isto se prova da L.
41, De verb. signif. [D.50,16] e L. de Junho de 1774, § 27, que manda que não tendo o
devedor mais bens se executem as suas ações cativas, donde he certo que estas
constituem parte do seu património”, pg. 2 vº)1543.
§ 1015. É claro que, se se adotasse este conceito alargado de coisas, mal se
compreendia a existência de um tratamento separado das ações no livro terceiro.
Pascoal de Melo nota isto e esclarece que, no seu manual, toma as ações não como
coisas incorpóreas, mas como meios de prosseguir em juízo os direitos de cada um
e que é apenas neste sentido que as ações constituíam um assunto autónomo 1544.
Este esclarecimento também parece significativo de um deslocamento das ações do
centro do direito para uma lugar “adjetivo”: as ações tendem a perder a sua
autonomia de coisas que têm um sentido (patrimonial) próprio (deixam de ser
“direitos substantivos”), para serem encaradas apenas como meios de realizar
vantagens patrimoniais (“direitos adjetivos”) (v. cap. 7.1.2).
4.1.2 A “coisifcação” das relações sociais e políticas.
§ 1016. A literatura mais antiga1545 documenta a quase universalidade do
conceito de coisa. Ela compreenderia uma série de institutos com significado
patrimonial, como direitos e ações, tanto sobre imóveis como sobre móveis (n. 9), a
herança (n. 2), o dinheiro (n. 4), os escravos (n. 5); a farinha, os frutos, o vinho e
coisas semelhantes (i.e. os frutos, ns. 6 e 7). Mas coisas são ainda os factos (“Facta
quoque continentur”, n. 3), as partes das coisas (n. 8), ou mesmo as pessoas (livres)
de um mosteiro, enquanto sujeitas a alguma jurisdição ou poder (n. 10).
§ 1017. Em suma, o direito comum atribui generosamente o estatuto de coisas
e assimilava o regime que titulava os direito sobre elas a direitos que hoje se
configuram como pretensões em relação a pessoas, nomeadamente: (i) os direitos
políticos (ou iurisdictio, regalia, direitos feudais, direitos tributários); (ii) os benefícios
e ofícios; (iii) o direito de eleger, nomear ou apresentar (um magistrado, um
beneficiado ou um oficial). Tudo isto equivaleu a conceber, ao lado de direitos reais
sobre coisas materiais (como na propriedade ou no usufruto), direitos reais sobre
direitos (como, por exemplo, no caso de se invocar a posse de direitos a receber um

1543 Corresponde à noção de Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 1, 1 (“quaecumque

bona nostra et patrimonium augent”).


1544 No ms. citado, a ideia de Pascoal de Melo aparece mal traduzida, com um sentido exatamente

oposto: “He porém de advertir que aqui as ações não se tomam como cousas incorpóreas, porque neste
sentido pertencem ao 3º objecto do direito, mas se toma(m) como meios de prosseguir em juízo aquilo
que nos pertence” (corresponde ao texto final do § 1, mas traduzido ao contrário “sed tanquam
medium jus nostrum in judicio prossequendi … et hoc sensu ad tertium juris objectum referentur”, Inst.
3, 1, 1”.
1545 Usamos, como exemplo, Agostinho Barbosa, Tractatus varii […]. Appellativa. cit., s.v. ”Res”.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

direito banal)1546.Ou seja, a generalidade das prerrogativas políticas (poderes de


mando, de tributação, de nomeação de oficiais) era considerada como bens in
patrimonio. Daí que estas prerrogativas tivessem um regime semelhante aos bens
patrimoniais em sentido mais estrito (ou seja, às coisas materiais), podendo ser
vendidas, trocadas e, sobretudo, reivindicadas e defendidas de esbulhos com auxílio
dos remédios possessórios. Substancialmente, estes direitos sobre coisas imateriais
eram do mesmo tipo dos que incidiam sobre objetos físicos. A sua diferenciação
surgia, apenas, quando ao tipo de ações aptas para os garantir. Umas como que se
dirigiam à coisa, em si mesma, independentemente de quem a detivesse, outras
dirigiam-se a uma pessoa sobre quem recaísse especialmente a obrigação de a tornar
disponível para o titular do direito sobre ela. As primeiras eram ações reais,
supondo um direito direto sobre a coisa (in re), as segundas eram ações pessoais,
dirigidas a uma certa pessoa, a quem particularmente incumbisse a satisfação do
titular do direito sobre a coisa.
§ 1018. Isto induz a pensar que os direito sobre as coisas (direitos reais) não
tinham a unidade estrutural que ganharão na dogmática contemporânea, e que
permite uma distinção nítida entre direitos reais e direitos obrigacionais. Eram
realmente apenas direitos relativos a coisas, acerca de coisas, visando coisas, uns
exercitáveis diretamente sobre elas, outros apenas por meio de pretensões dirigidas
a pessoas.
§ 1019. Em todo o caso, este universo de direitos relativos a coisas era atraído
pela regulação e proteção atribuídas pelo direito ao domínio das coisas físicas,
nomeadamente da terra. Por isso, há uma tendência para estender os meios de
proteção da propriedade (e posse) sobre coisas físicas às coisas imateriais. Isto
acontecia com a reivindicação, como pretensão de declaração geral de um direito
ou estatuto, sucessivamente estendida à proteção de direitos simbólicos, como os
estados de filho, de livre (vindicatio libertatis), de senhor direto da terra (vindicatio
colonum), de nobre; à jurisdição, à precedência social, como se tudo isto fossem
coisas materiais in patrimonio.
§ 1020. Esta especial proteção de que gozavam os direitos sobre as coisas físicas
consistia, nomeadamente, em se permitir a sua reivindicação judicial em relação a
qualquer pessoa (a restituição ao titular de um direito real sobre a coisa podia ser
imposta a todos); o reivindicante não tinha que provar qualquer obrigação especial
do detentor a restituir, porque a obrigação que recaía sobre este era geral e comum,
impondo-se a toda e qualquer pessoa. É isto que quer dizer a oposição, estabelecida
pelos canonistas, entre um ius in re (um direito absoluto, erga omnes, sobre a coisa) e
um ius ad rem (um direito à coisa), pois este último recaía apenas sobre certa pessoa
(devedor) que, por um vínculo jurídico especial de natureza pessoal e relativa (v. g.
um contrato), estava obrigada a entregá-la a alguém (credor).
§ 1021. Outra manifestação desta especial proteção que o direito concedia às
“situações reais” era a eficácia da defesa da posse de uma coisa, ou seja, a energia
com que o direito defendia a situação de uso de uma coisa pelo seu detentor estável
e contínuo, independentemente de qualquer título justificativo, desencadeando
meios muito eficazes contra qualquer esbulho, violento ou não, do possuidor e

1546 Como, neste último caso, não existe um substrato material sobre que o direito real se exerça,

a posse é feita equivaler a um uso longo de exercer o direito sobre que a posse incide; cf. Helmut Coing,
Europäisches Privatrecht […], cit., I. 343.

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obrigando o esbulhador a restituir (reivindicatio) e a abster-se de qualquer


perturbação da posse, enquanto não demonstrasse a sua própria legitimidade para
querer usar da coisa (interdicta)1547. Ora o direito comum alargou muito esta
possibilidade de defesa mais enérgica de direitos. Atribuiu-a, como já o fazia o
direito romano, aos proprietários e usufrutuários. Mas autorizou também titulares
de outros direitos a usarem da reivindicação e a protegerem provisoriamente as suas
posses com os remédios possessórios (interdicta)1548.
§ 1022. A eficácia destes meios de defesa era enorme; o que muito contribuiu
para garantir o pluralismo de direitos típico da sociedade de Antigo Regime, pois
qualquer titular de direitos políticos podia facilmente garanti-los, como direitos
sobre coisas concretas incorporadas no seu património, quer contra os vassalos,
quer contra os concorrentes ou mesmo contra os suseranos. É isto que permite
caracterizar adequadamente o sistema jurídico-político medieval e primo-moderno
como um “Estado de direitos” (Rechtsbewährungsstaat). De facto, os direitos de
resistência dos particulares em relação ao príncipe configuram-se como direitos de
carácter privado, acionáveis perante os tribunais comuns. Mas, para além disso, as
pretensões dos súbditos em relação ao príncipe são verdadeiros direitos dotados de
tutela contenciosa, e não apenas meras pretensões ou súplicas, deixadas ao arbítrio
da graça do monarca, nem direitos políticos, acionáveis apenas por meios
“políticos”, mas desprovidos de uma suficiente garantia no plano da jurisdição
comum.
4.1.3 As coisas como entidades conceptuais, antes que empíricas.
§ 1023. O alargamento do conceito de coisa foi possível porque as coisas não
constituíam entidades fixas e estáveis, dados a se stante, ligados a uma qualquer
realidade material. São antes entidades móveis e fluidas1549, cuja existência e
natureza dependem das circunstâncias dos negócios jurídicos que as nomeiam e das
próprias construções dos juristas.
§ 1024. Desde logo, os juristas dizem que o surgir e o desaparecimento das
coisas é um facto do direito e não um facto da Natureza . De facto, há coisas que só
existem no mundo do direito, como as chamadas “universalidades” (universitates), ou
seja, coisas (como um rebanho, uma exploração agrícola [fundus instructus] ou uma
herança) integradas por distintos objetos materiais (ou mesmo por objetos materiais
e imateriais, como direitos, créditos, etc.), a que só o direito dava entidade (ou
unidade). Em segundo lugar, havia coisas que carecem de qualquer suporte
material, como os direitos, que surgiam e se extinguiam no puro campo do discurso
jurídico (v.g. os direitos como coisas, a que nos referimos). Em terceiro lugar, havia
coisas às quais o direito mudava a natureza, ficcionando uma natureza que não era a
“natural”, como, por exemplo, quando se considerava uma renda perpétua como
uma coisa imóvel, sendo que, naturalmente, não há nada mais móvel do que o
dinheiro1550. Por fim, as coisas eram passíveis de classificações jurídicas diferentes e

1547 Sobre os meios de defesa próprios do direito real no período do direito comum, v. cap. 2.5.6;

Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., I. 341 ss..


1548 Cf. Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., 342 ss.

1549 “Res de facili revertitur ad suam naturam” , Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.. cons. 112, n.

31; “Varietate temporum variatur res”, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 3, n. 15.
1550 V. Ord. fil.3, 47, pr.

312
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

incompatíveis entre si, de acordo com o ponto de vista a partir do qual fossem
encaradas pelo direito: coisas tanto podiam ser o todo como cada uma das suas
partes1551: uma cabra podia ser parte de uma coisa - o rebanho -, uma coisa em si
mesma, ou outra coisa em si mesma, mas com características diferentes, depois de
morta1552.
§ 1025. Este universo incerto e flutuante das coisas jurídicas abrangia, porém,
muito mais do que objetos externos do mundo empírico. Isto já se verificou na
definição dada por António Cardoso do Amaral. A inclusão de pessoas entre as
coisas suscita alguns comentários.
4.1.4 Pessoas e coisas.
§ 1026. Como vimos, as pessoas não estavam fora do universo das coisas (v. §
650). Mesmo no sentido mais estrito de que também as pessoas podiam
proporcionar utilidades integráveis num património.
§ 1027. O caso mais evidente – mas não o único – de encarar pessoas como
fontes de utilidades patrimoniais (como coisas) era o dos escravos.
§ 1028. A questão de saber se os homens podiam ser objeto de relações
jurídicas confundia-se com a questão da legitimidade da escravatura. Para os juristas
do direito comum, a escravatura não era natural, pois, por natureza, todos os
homens nasciam livres1553. Mas, como explicava S. Tomás, que uma coisa seja
natural pode querer dizer apenas que, sem que intercedesse uma causa suplementar,
essa coisa tinha, por defeito, certo estatuto ou qualidades, pelo que se presumia,
salvo prova em contrário, que esse fosse o seu estatuto. Era neste sentido que
também se dizia que um prédio era naturalmente livre ou alodial, sendo necessário
fazer a prova de que sobre ele recaísse algum ónus (v.g. fosse tributário ou
enfitêutico)1554. Não obstante, ou por causa do pecado original ou por razões
ligadas à conveniência da vida em sociedade, o direito humano criara a escravatura,
tomando uns homens “coisas” de outros1555,1556.
§ 1029. Porém, a coisificação de pessoas ultrapassava a questão da escravatura,
pois certas utilidades integradas num património eram constituídas por factos
pessoais, por concretas ações humanas. As obrigações de trabalhar, de obedecer, de

1551 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], Appellativa […], cit., s.v. “Res”, n. 8.
1552 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Res”, addtio (“res eadem potest
secundum diversos respectos diverso jure censeri”; ed. Conimbricae, Franciscum de Olyveira, 1740, II,
363.2.
1553 D.1, 5, 4; S. Tomás, Summa Theol. 1a.2ae, qu. 94, 5 ad 3.

1554 “Res omnia praesumitur libera, nisi probetur tributaria”, António Cardoso do Amaral, Liber

[...], cit., s.v. “Res”, n. 4; adição ao anterior, ed. Conimbricae, Franciscum de Oliveira, II, p. 363 col.
2.
1555 Os teólogos dizem que esta “coisificação” dos homens só se dá secundum corpus, pois a
liberdade se mantém sempre secundum mentem (S. Tomás, Summa theologica, 2-2, qu. 104, 5c ad 2). Esta
distinção, que ocorre nos canonistas a propósito de outras assuntos, parece ter sido fundamental para
uma redefinição da distinção entre as pessoas - providas de uma dimensão interna, inatingível por atos
externos - e as coisas - reduzidas à sua dimensão exterior e sensitiva. Cf. R. H. Helmholz, The spirit of
classical canon law […], cit., 76 (escravos e gado [chattel]).
1556 Alguns teólogos juristas consideram a escravatura, em certos casos, como um instituto de

direito natural, ligando-a a uma desigualdade natural dos homens, dos quais uns teriam engenho para
mandar e outros, em contrapartida, mais robustez física, para servir (cf. v. g. Domingo de Soto,
Tractatus [...], cit., IV, 2, 2).

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se sujeitar ao mando, à jurisdição à direção são exemplos dessas coisas que são
factos de pessoas. Por isso se dizia que a coisa mosteiro 1557 compreendia o
conglomerado de poderes sobre as coisas e as pessoas – trabalhadores, criados,
foreiros, súbditos jurisdicionais, monges - desse mosteiro.
§ 1030. Esta como que indistinção entre pessoas e coisas correspondia a uma
visão do mundo típica do período medieval e primo-moderno. Na mundividência
da época, os homens e as mulheres, os restantes seres vivos e os seres inanimados
integravam-se diferentemente na ordem da Criação. Cada qual tinha aí um lugar e,
decerto, o lugar do homem era mais nobre do que o das restantes criaturas. Mas,
vistas as coisas de outro ponto de vista, o que existia era uma pluralidade de
condições ou estatutos naturais das criaturas, que fixavam os direitos e os deveres
de cada uma delas – desde os anjos à mais humilde das florzinhas - e que não
permitiam distinções qualitativas decisivas (como a distinção radical entre pessoas e
coisas), tanto mais que, mesmo a máxima função de servir a Deus, era
desempenhada, de acordo com palavras das Escrituras, tantos pelos anjos e
arcanjos como pelos humildes lírios dos campos (Mateus,6,28) ou pelas pedras da
calçada (Lucas,19,40). Pessoas, animais, plantas e seres inanimados eram, em certo
sentido, todos criaturas, comandadas por uma ordem natural da criação. Só a
hipervalorização da capacidade humana de entender e de se auto determinar, típica
do racionalismo e voluntarismo modernos, é que traçará fronteiras decisivas entre o
mundo dos homens e o mundo dos seres inanimados, atribuindo aos primeiros a
prerrogativa de criar intencionalmente efeitos de direito e negando essa capacidade
aos segundos. O pensamento jurídico dos grandes mestres do direito comum
estava, assim, dominado pela ideia de uma grande ordem universal, da qual faziam
parte homens e coisas, cooperando uns e outros, de acordo com as respetivas
naturezas, numa estrutura finalista orientada para o bem comum. Nesta ordem,
tudo tinha uma função, uma utilidade. As coisas tinham-nas também. E estas
funções encaixavam-se umas nas outras, serviam-se mutuamente, numa hierarquia
de bens, terrenos ou sobrenaturais, que se rematava no sumo bem sobrenatural que
era o louvor de Deus.
§ 1031. A esta ordem natural das utilidades (utilidades de pessoas, utilidades de
corpos, utilidades de coisas) correspondia, da parte dos beneficiários dessas
utilidades, uma ordem de “necessidades” (affectiones, amores) que criava nos usuários
uma inclinação para as disfrutar. Se essas inclinações eram conformes à razão
mereciam o reconhecimento do direito. A estes “desejos racionais”, a estas
faculdades legítimas de gozo, chamava o direito domínio. O domínio era, portanto,
“o poder ou a faculdade reconhecido a alguém de se apoderar das coisas, pondo-as
à sua disposição e uso lícito, segundo as leis estabelecidas conforme à razão” 1558. As
situações reais reconhecidas e protegidas pelo direito reproduziam, assim, a ordem
das utilidades e os estímulos de gozo que esta ordem despertava nos sujeitos.
§ 1032. Neste universo ordenado das necessidades e das utilidades, as coisas
não eram essencialmente diferentes das pessoas. Algumas coisas necessitavam de
outras (v. g. os animais do pasto, o prédio dominante, do prédio serviente [v. cap.
4.3.4), algumas pessoas necessitavam de outras (v. g. o senhor dos vassalos),

1557 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […] Appellativa […], s.v. “Res”, n. 10.
1558 cf. Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 1, 1 [280].

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

algumas coisas necessitavam de pessoas (v. g. a terra, dos servos adscritícios) e,


muito geralmente, as pessoas necessitavam de coisas. A esta cadeia das necessidades
correspondia, em negativo, uma cadeia das utilidades. Daí que o conceito de
domínio, como faculdade de uso, fosse muito geral, abrangendo tanto vários
direitos de gozo sobre coisas (propriedade, usufruto, hipoteca, servidões, etc.),
como direitos sobre pessoas (nomeadamente a jurisdição). O próprio poder de
Deus sobre o mundo podia ser configurado como domínio: ou Deus não fosse o
Dominus mundi.
§ 1033. Domingo de Soto dá conta desta potencial universalidade do conceito
de domínio1559: “Pode, efetivamente, alegar-se que, a seu modo, também os animais
brutos têm domínio, por exemplo, sobre a erva, que lhes foi concedida para seu
sustento, como se lê no Génesis. E até parece que a rainha das abelhas tem domínio
sobre o seu enxame; e entre as gralhas, parece que a rainha das demais dirige o
bando. E entre as feras parece que é o ferocíssimo leão que domina sobre as
demais; e o gavião parece que exerce o seu domínio sobre as infelizes aves. Em
segundo lugar, outro tanto se pode dizer das coisas inanimadas, as quais têm o
domínio sobre este mundo sublunar, derramando sobre ele o calor e a energia
(virtus) de que este se sustém e desenvolve [...]. E por isto se lê no Génesis, I. que o
Sol foi criado para que presida ao dia e a Lua para presidir à noite”1560.
§ 1034. É desta pluralidade de domínios que dá conta a literatura do direito
comum clássico. Baldo de Ubaldis, o célebre jurista perugino do século XIV,
escreve: “Um é o domínio que se diz propriedade e este é o domínio direto. Outro
é o domínio que se diz útil e este não é, a bem dizer, propriedade, antes estando
sujeito à propriedade, ou porque lhe é subalterno, como no caso do domínio de
hipoteca, ou o contraria, como no caso do domínio do prescribente. Ainda se fala,
de forma mais lata, de domínio, a propósito do domínio de usufruto ou do domínio
de qualquer servidão. Também os que têm superioridade sobre os súbditos se
chamam - domini - [senhores], devendo este vocábulo ser entendido, quando ocorre,
segundo a qualidade da pessoa”1561.
§ 1035. Ou seja, faltava à pré-compreensão tradicional do direito o dramatismo
– que haveria de surgir depois – da distinção entre pessoas, como sujeitos de
direito, com a capacidade de criar ativamente, intencionalmente, situações jurídicas,
e coisas, como objetos passivos de direito, privadas de qualquer capacidade de
geração de normas1562. A geração de direitos era um atributo da natureza, fosse ela a
natureza (condição, estado) das pessoas, fosse ela a natureza (condição) das coisas,

1559 Embora para a criticar.


1560 Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 1, 2, [p. 283].
1561 Baldo, ad I. proprietatis, C. de probationibus, n. 1 [C.4, 19, 4], em Baldo de Ubaldis, in

quartum et quintum Codicis libras cammentaria, cit., por Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., 96. De Paolo
Grossi é ainda a inspiração que aqui se acolhe quanto à ontologia das coisas no direito comum: Paolo
Grossi, Il dominio e le cose, cit..
1562 Este dramatismo está hoje a recuar. Por um lado, alguns filósofos e antropólogos (v.g. Bruno

Latour) têm identificado a distinção dramática entre pessoas e coisas, nomeadamente no campo do
direito e da política, como uma imagem da modernidade ocidental (v. A. M. Hespanha, “Até que ponto
é moderno o direito da modernidade ?”, cit.). Por outro lado, os movimentos de defesa dos animais
conseguiram introduzir (em 281.2015) no próprio Code civil – o texto emblemático que distinguira
definitivamente a categoria de sujeito e de objeto de direitos - o conceito de animais como seres
sensíveis, embora sujeitos ao regime das coisas (“des êtres vivants doués de sensibilité (…) soumis au
régime des biens”.

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fosse ela a natureza das relações entre umas e outras (v.g. ius in re, ius ad rem). Não
havia elementos sempre determinantes e elementos apenas determinados. Tudo
pode aparecer inserido de certa forma numa relação jurídica objetiva, dada pela
natureza. Neste sentido, a distinção entre pessoas e coisas era mais temática do que
ontológica: algum direito tratava de pessoas, outro trataria de coisas e outro, ainda,
de atos jurídicos. Assim se explicando a sistematização tripartida, que não passava,
então, de uma organização meramente temática (e não ontológica).
4.1.5 Da multiplicidade de utilidades à universalização da propriedade.
§ 1036. O texto antes citado de Domingo de Soto inclui, entre as modalidades
de domínio, a própria jurisdição, ou seja, o poder político; era daqui que decorria a
dificuldade de distinguir o público do privado, os direitos patrimoniais dos direitos
senhoriais, que caracteriza a ordem jurídica de Antigo Regime 1563.
§ 1037. Mas o domínio não era apenas uma figura tendencialmente universal,
mas ainda naturalmente multiforme. Na verdade, cada coisa tinha as suas formas
naturais de ser usada, as suas utilidades, e a cada uma destas correspondia uma
faculdade de apropriação dela pelos homens, um “domínio” potencial. Esta
cosmovisão levava, portanto, à admissão de tantas formas de domínio -
eventualmente repartidas por tantos sujeitos - quantas as faculdades de gozo das
coisas. E, de facto, os juristas medievais começaram a distinguir tipos de domínios,
correspondentes a tipos de uso das coisas, chegando a enumerar vinte e três, desde
os domínios que tutelavam usos dirigidos a fins sobrenaturais (v. g. o domínio
“beatífico”, “gratífico”, “evangélico”) até aos que correspondiam às várias
utilidades temporais (domínio “direto”, “útil”, “feudal”, “usufruto”, “uso”,
“hipoteca”, “servidão”, etc.). Rigorosamente, o domínio, como modelo de relação
do homem com coisas, não tinha como objeto a coisa, mas uma sua utilidade. O
domínio não era a coisa, mas a (pluriforme) relação de uso com ela 1564. Dizendo de
outra forma, que realça a extensão do conceito de coisa, coisa não era uma entidade
material, mas antes cada uma das suas possíveis utilizações.
§ 1038. Entre as várias modalidades de domínio não existe, sequer, uma
hierarquia, pois todos os usos das coisas e as utilidades delas colhidas se encaixam,
cada qual à sua maneira, na ordem do universo. Propriedade eminente, direito de
usufruto, usufruto limitado, tudo são formas de domínio, cada qual
correspondendo a uma utilidade específica e, no seu âmbito (i. e. no plano do gozo
dessa utilidade), plena e autónoma. Do ponto de vista do gozo das respetivas

1563 Sobre o tema, António Manuel Hespanha, “O jurista e o legislador [...]”, cit., 52 ss.; Jesús

Vallejo, Ruda equidade […], cit., 1992, 141 ss. com muitos textos impressivos (“E esta equiparação da
jurisdição ao domínio prova-se assim: o príncipe tem toda a jurisdição e por isto se diz senhor [dominus]
de todo o mundo” (Bártolo, cit., p. 149). O domínio do príncipe (e restantes magistrados) sobre os seus
súbditos e sobre as coisas existentes no seu território era descrito como um dominium quoad iurisdictionem,
ou seja, um domínio dirigido a uma certa fruição (jurisdicional), como os outros domínios (v. g. o utile)
se dirigiam a fruições diferentes (v. g. a fruição económica). Mais tarde, maxime com Hugo Grócio (1583-
1645) fixa-se a expressão “domínio eminente”. Só quando o domínio passa a ser considerado como um
poder absoluto é que a ideia de um “domínio político” se toma paradoxal, pois não poderiam existir
dois domínios sobre as mesmas coisas. Em Portugal, o poder tributário ainda é filiado no domínio
eminente por Pascoal de Meio ( Institutiones iuris civilis, cit., 1, 4, 7); mas tal conceito já é criticado por
António Ribeiro dos Santos e problematizado por Lobão.
1564 Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 1, 1 [280].

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

utilidades da coisa, tanto o senhor direto como o enfiteuta dispõem plenamente da


coisa1565.
§ 1039. Se alguma hierarquia existe entre os vários direitos que coexistam sobre
a mesma coisa, ela não decorre senão da hierarquia das utilidades que cada direito
garante. E, aqui, é claro que a seriação há-de corresponder a uma hierarquia
conhecida: as finalidades espirituais hão-de sobrepor-se às meramente temporais;
de entre estas, as utilidades que interessam ao bem comum hão-de ter a primazia
sobre as meras utilidades particulares, segundo uma ordem que vai do mais comum
ao mais particular (república, cidade, corporação, família). Assim, os gozos
meramente pessoais hão-de ceder, primeiro, perante os interesses temporais
comuns e, juntamente com estes, perante os interesses sobrenaturais. Este
paralelismo entre a hierarquia das utilidades e a hierarquia dos domínios faz com
que uma corrente “integrista” ligue a proteção jurídica do domínio a fatores de
ordem sobrenatural, como a graça e o pecado. Assim, aqueles que estivessem em
estado de graça teriam um domínio sobre as coisas alheias, a fim de poderem
prosseguir as suas finalidades gratificantes 1566. Em contrapartida, ao pecador ou
infiel, que visava utilidades contrárias à ordem da salvação, seria negado o domínio
sobre as próprias coisas, de que poderia ser despojado, pois o domínio só seria
plenamente válido se se orientasse para a salvação. Foi a partir de considerações
deste género que se defendeu a legitimidade da ocupação das terras dos povos
infiéis ou pagãos na época da expansão europeia 1567.
§ 1040. Os juristas afirmavam que o dono de uma coisa podia fazer dela o que
quisesse: cada um seria juiz e definidor das condições de uso das suas coisas, pelo
que seria injusto que um homem livre não fosse autorizado a dispor das suas coisas,
mesmo que fosse para as destruir ou transmitir com as condições que lhe
aprouvesse (“Rei suae quilibet est moderator, et arbiter, ut possit facere quicquid
velit […] Iniquum est enim, liberum non esse homini ingenuo de rebus suis posse
disponere […] ampliat in tantu, ut possit quis res suas projicere in mare [ns. 1 e 2]
[…] Unde in concessione, seu traditione rei suae potest quis apponere legem quam
velit, [n. 3]”1568. No entanto, para isto era preciso que sobre essa mesma coisa não
coexistissem outros domínios [ibid. n. 4]; e, para além disso, a vontade, para ser
legítima, tinha que se mover na esfera do que era permitido pela razão.
§ 1041. A identificação do domínio com os vários usos das coisas criou, porém,
problemas politicamente delicados quando, nos séculos XIII e XIV, se discutiu o
alcance do voto de pobreza das ordens mendicantes (dominicanos e franciscanos).
O que queria dizer o voto de “não possuir bens”? Concretamente, se usar dos bens,
disfrutar das suas utilidades, era ser dono, (dominus) então os franciscanos e os
dominicanos eram donos de muitas coisas, nomeadamente das coisas consumíveis,
i.e. daquelas que se consumiam com o uso, como a comida ou o dinheiro. Nestes

1565 Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., 103.


1566 A apropriação das coisas alheias seria um ato caritativo, em benefício (espiritual) dos próprios
espoliados.
1567 O Concílio de Constança (1414-1418) condenou estas proposições como heréticas. Por isso, a

Segunda Escolástica (nomeadamente, Domingo de Soto) nega, também esta conclusão, legitimando,
com base no direito natural, a propriedade que os infiéis – e, concretamente, os povos “encontrados” -
tinham sobre as suas terras e coisas (Domingo de Soto, Tractatus [...], cit., IV, 2, 1 [287]).
1568 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […], cit., Axioma CXCIX. “Res”, ns. 1 a 3.

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casos, dizia-se desde S. Tomás1569, que o domínio não apenas se confundia com o
uso, mas que ambos eram, para além disso, inseparáveis. Sob o impulso desta
polémica, que atingiu proporções político-eclesiásticas extremas1570, surgiu a ideia
de que o verdadeiro domínio não consistiria num uso fáctico, material, das coisas,
mas antes numa disposição meramente subjetiva. Como escreve Paolo Grossi, “O
homem é proprietário, não porque tenha concretamente coisas na sua posse, mas
porque quer ser proprietário delas, porque tem em relação a elas uma vontade
apropriativa; aquele que não tem nada (nihil habens) pode ser dono de tudo
(omnibus dominans) se se lhe atribuir a vontade correspondente1571.
§ 1042. Esta subtileza permitia resolver, como logo se vê, o problema da
pobreza dos franciscanos, mas teria também consequências profundíssimas no
destino futuro do discurso sobre os homens e as coisas, da sua regulamentação
jurídica e das medidas políticas tomadas acerca disso. Enfim, o que se prenuncia a
partir de agora - embora a evolução ainda vá levar muitos séculos a consumar-se - é
uma conceção do domínio como afirmação de uma vontade dos sujeitos sobre os
objetos.
4.1.6 O modelo proprietário das relações dos homens com as coisas.
§ 1043. Na raiz desta nova conceção do domínio estava a definição do homem
como ser livre e senhor dos seus atos, que necessitava de se projetar no mundo
externo das coisas para realizar essa liberdade e cumprir o seu destino (“ (...) os
homens, pela sua própria natureza e direito, começaram a ser donos das suas ações
para, com esta liberdade, servirem o Criador”, Domingo de Soto). Assim, o
domínio sobre as coisas aparecia como um prolongamento do domínio sobre si
próprio, o ter tornava-se num mero ato de vontade do sujeito que se afirmava como
dono de uma coisa1572, a propriedade era um outro nome da liberdade, desse poder
expansivo de afirmação do sujeito. O domínio adquiria uma dimensão puramente
subjetiva, escapando completamente ao império das coisas. Estas, as suas utilidades
concretas e as modalidades concretas do seu gozo, não influíam em nada a natureza
do domínio, que passava a ser uma faculdade puramente volitiva de gozo abstrato.
Quem diz “abstrato”, diz tendencialmente ilimitado. Nesta conceção, falar de um
direito de propriedade era falar do complexo virtual de todas as utilidades de uma
coisa e dos poderes de uso correspondentes; era falar da síntese de todos os
poderes que, em abstrato, um sujeito podia exercer sobre as coisas em geral 1573; era
falar da forma perfeita de o homem se relacionar com as coisas. Antes, a
propriedade “livre”, não limitada, era apernas a forma originária de ter coisas (“res
omnia praesumitur libera, nisi probetur tributaria” 1574. Estabelecida por natureza,
ela não implicava que os homens, por motivos legítimos e vantajosos, tivessem

1569 Summa Theol. 2a.2ae, qu. 78, a. 1.


1570 Sobre o tema, v. Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., maxime, 150 ss. (com outras referências
bibliográficas).
1571 Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., 156.

1572 Manifestações desta nova dissociação entre o domínio e o uso são, por um lado, o avarento

(que é dono, mas não usa) e, no outro polo, justamente os mendicantes (que usam, mas não são
donos).
1573 Paolo Grossi, “Tradizione e modelli [...], cit., 200 ss.

1574 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Res”, n. 4.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

introduzido novas formas de se relacionar com as coisas. Esta visão pluralista do


domínio cede perante uma outra, em que a propriedade plena é natural num
sentido mais duro: é o modelo de relação entre homens e coisas que melhor
corresponde à natureza de um e de outras.
§ 1044. Este último imaginário das situações reais, que tem sido designado
como modelo “proprietário”, elaborado a partir do século XIV pela escolástica
franciscana, pelo pensamento da Segunda Escolástica (Luís de Molina [1536-1600],
Domingo de Soto [1494-1570], Francisco Suarez [1548-1617]) e pelas escolas
jusracionalistas, tem importantes consequências, no plano dogmático
§ 1045. Esta corrente intelectual será desenvolvida pela escolástica franciscana
dos finais da Idade Média, pela Escola Peninsular de Direito Natural (Segunda
Escolástica) e, finalmente, culminará na conceção individualista da propriedade das
escolas jusracionalistas do século XVIII.
§ 1046. Em primeiro lugar, relacionava intimamente o domínio com a vontade.
A propriedade, tal como a liberdade, eram as duas primeiras manifestações da
tendência natural dos indivíduos para se autodeterminarem, para quererem 1575. E,
por isso, constituíam os seus primeiros direitos naturais, com dignidade natural e
fundamento teológico, pois esta vontade fundadora não era senão um reflexo da
vontade e da sapiência de Deus1576.
§ 1047. Em segundo lugar, definia o domínio como um direito tendencialmente
absoluto; ou seja, um direito que, por natureza (a natureza de uma vontade que não
suporta limites), tendia a abranger todos os usos possíveis (i.e. que pudessem ser
queridos) das coisas. Tal como a soberania, o domínio era absoluto e indivisível.
Poderia acontecer que não se pudesse, em relação a certa coisa, gozar dele
ilimitadamente, por existirem limites externos; mas, então, estaríamos perante um
domínio “imperfeito” que, desaparecendo os limites externos1577 ao seu exercício,
ocuparia naturalmente os novos espaços, tendendo para a perfeição (“elasticidade”
do domínio). A ideia de uma multiplicidade de domínios, compreendendo cada
qual apenas algumas faculdades de utilização da coisa, parecia agora como algo de
não natural ou como logicamente absurdo1578.
§ 1048. Em terceiro lugar, definia o domínio como um poder essencialmente
privado; ou seja, originado na vontade individual, em satisfação de impulsos
também individuais e, por isso, satisfazendo interesses meramente privados,
enquanto o poder público, a jurisdição, emanava, direta ou indiretamente, de uma
vontade coletiva e visava satisfazer interesses públicos.
§ 1049. Esta foi a matriz que culminou nas grandes codificações liberais dos
inícios do século XIX. O artigo 544 do Code civil de 1804, um dos monumentos do
modelo atual1579 de conceber as situações reais, definia a propriedade como “o

1575 Daí que só possam ser sujeitos de domínio os seres dotados de entendimento e livre arbítrio; o

que exclui que se possa falar de propriedade na titularidade de coisas ou de animais, como antes se
admitia (cf. Domingo de Soto, Tractatus […], cit, p. 284).
1576 Paolo Grossi, L’ordine [...], cit., 169.

1577 Nomeadamente, direitos concorrentes de outrem, como uma servidão ou um usufruto.

1578 “Undinge”, absurdo, é como Thibaut (em 1817) classificará a ideia de um domínio dividido

(cf. P. Grossi, “Tradizione e modelli nella sistemazione post-unitaria della proprietà”, cit., 201 ss).
1579 Embora hoje em crise, nomeadamente após receção pelo mesmo código da noção de “seres

vivos dotados de sensibilidade” (em 28.1.2015).

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direito de gozar e dispor das coisas da forma mais absoluta, desde que não se faça
delas um uso proibido pelas leis ou pelos regulamentos”. Este texto constitui um
emblema do conceito moderno (individualista, burguês, capitalista) da propriedade,
sobretudo porque nele se costuma destacar o carácter absoluto e pleno dos poderes
do proprietário. Na época em que esta máxima foi cunhada, as suas palavras não
tinham ainda as intenções que depois vieram a adquirir. Assim, o termo “absoluto”
não apontava para a autorização de “um qualquer, arbitrário, associal, uso das
coisas”, típico de uma conceção liberal, pura e dura, da propriedade. Visava antes
negar a existência de qualquer direito eminente, feudal ou estadual, que limitasse os
poderes do proprietário. Mas, logo no início do século XIX, a doutrina jurídica
francesa transformou esta definição num dos dogmas do liberalismo, colocando-a
ao lado da divisa de J. Bentham, Liberty and property, no topo da ideologia
“proprietária” ou “individualismo possessivo” 1580.
§ 1050. Este modelo “proprietário” apresenta os seguintes traços estruturais.
§ 1051. A propriedade era um direito absoluto, no sentido (que era o originário
do Code) de que não estava sujeito a limites externos, pelo que o seu exercício não
dependia de condicionamentos ou autorizações. No momento em que foi
introduzida no Code civil, esta referência ao carácter absoluto da propriedade
implicava a abolição de uma série de ónus, fiscais, feudais ou comunitários, que
impendiam sobre a terra. Mas iria também justificar a antipatia por todas as formas
de limitação ou condicionamento da liberdade de dispor exclusivamente das coisas,
anteriormente conhecidas, quer de natureza privada (v. g. as formas de comunhão e
de indivisão, os vínculos, a necessidade de autorização ou outorga para alienar, os
direitos de preferência, os laudémios), quer de natureza pública (v. g. os regimes de
licenciamento administrativo da transmissão ou oneração do solo, os
condicionamentos públicos da venda, como os monopólios ou estancos, os regimes
de amortização, etc.). Propriedade absoluta era, assim, a propriedade não partilhada,
aquela que não reconhecesse qualquer dominium eminens ou directum exterior. Era a
propriedade franca, que obedece à regra natural da “liberdade natural da
propriedade”1581.
§ 1052. A propriedade era um direito pleno, ou seja, continha em si todas as
faculdades de ação que o seu titular pudesse desenvolver em relação à coisa,
incluindo a sua destruição económica ou física. Isto significava, em primeiro lugar,
que o direito de propriedade não se destinava a garantir a funcionalidade económica
das coisas, não visava refletir, no campo do direito, as utilidades possíveis das
coisas, antes possibilitando exercícios a-funcionais, como o não cultivo de uma
terra ou a destruição de uma coisa1582.

1580 A expressão é de C.B. Macpherson (Property, mainstream and critical positions, Toronto, 1978).

Eco da divisa de J. Bentham, em Portugal, Vicente José Cardoso da Costa, Que he o Codigo civil, cit.,
73, 96 ss..
1581 Cf. Manuel Fernandes Thomaz, Observações sobre o discurso que escreveu Manoel d'Almeida e Sousa em

favor dos direitos dominicaes […], cit., 80/81; José Homem Correia Teles, Digesto portuguez [...], cit., I. 117
(n. 743); sobre o pretenso direito eminente do Estado, v. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas
[…] a Melo […], cit., 3, 64.
1582 Daí a antipatia da generalidade dos autores desta época pela obrigatoriedade de cultivar as

terras, frequente nas leis agrárias anteriores (cf. José Acúrsio das Neves, Memória sobre os meios de melhorar
a industria […], cit., 24 ss.: “é viciosa toda a lei que faz violência ao proprietário, ou ao lavrador sobre o

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1053. A propriedade era um direito tendencialmente perpétuo, daí decorrendo


a tendência para o desfavor das formas temporalmente limitadas de domínio
(fideicomissos, enfiteuses em vidas, cláusulas de retroação) e a promoção da
propriedade perpétua1583.
§ 1054. A propriedade era, finalmente, um direito essencialmente privado, não
devendo, portanto, coenvolver direitos de carácter público, como acontecera na
constituição fundiária e política do Antigo Regime. Estes competiam - como vinha
dizendo a doutrina desde Francisco Suarez (De legibus, I. 8 4 ss.) - à iurisdictio e não
ao dominium; enquanto faculdades dos particulares, seriam abusivos e deviam ser
abolidos1584.
§ 1055. Ainda no século XVIII, o “modelo proprietário” aparecia já bem
delineado na obra de Pascoal de Melo. Aí, o domínio era já apenas um, ou seja, o
direito ilimitado e exclusivo de gozar de todas as utilidades da coisa: “o domínio é
um certo direito sobre as coisas, pelo qual entendemos o direito de dispor
livremente da coisa, extraindo dela todas as utilidades, excluindo o uso dela por
outros e reivindicando-a em relação a qualquer um1585”. É certo que haveria direitos
reais com poderes mais limitados, por lei ou por convenção (servidões, usufrutos,
enfiteuses), por isso se falava de domínio pleno ou menos pleno (como mais tarde
se falará de propriedade perfeita e imperfeita)1586. Mas o pleno domínio, o domínio
exemplar, comportava todos os poderes de fruição e de exclusão da fruição de
outrem.
4.2 As espécies de coisas.
§ 1056. O estudo das coisas devia começar pela tarefa de estabelecer as
distinções entre coisas, baseadas nas qualidades destas. É o que Gaius faz nas suas
instituições, num texto que foi recolhido no Digesto1587. Segundo este texto, a

uso do seu prédio, ou sobre o seu modo de cultura”). Já os teóricos iluministas apostavam na estrita
regulamentação da produção agrícola (cf. António Henriques da Silveira, “Sobre a agricultura e
população da província do Alentejo”, cit.; Prophyrio Hermeterio Homem de Carvalho, Primeiras linhas
de direito agrario […], cit.).
1583 Manuel António Coelho da Rocha, Instituições […], cit., I. 319 (§ 402), 709 e 716.

1584 Correia Teles (José Homem Correia Teles, Digesto portuguez [...], cit., I. § 741 ainda inclui no

direito de propriedade os direitos de jurisdição. Mas as servidões pessoais (personae servir rei) tinham sido
ou estavam a ser abolidas: a servidão doméstica, fora-o em 1771 (alvs. 16.1 e 19.9, completados pelos
de 16.1.1773 e 10.3.1800); as servidões pessoais a favor de prédios tinham sido abolidas como direitos
banais pela lei de 24.7.1846 (retomando a sua extinção em 1824). Cf. Manuel António Coelho da Rocha,
Instituições […], cit., I. §§ 524 e 587; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Notas […] a Melo […], cit.,
3, 437, 442-443.
1585 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 2, 1.

1586 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 4.

1587 D.1.8.1: “Gaius libro secundo institutionum. pr. Summa rerum divisio in duos articulos

deducitur: nam aliae sunt divini iuris, aliae humani. Divini iuris sunt veluti res sacrae et religiosae.
Sanctae quoque res, veluti muri et portae, quodammodo divini iuris sunt. Quod autem divini iuris est,
id nullius in bonis est: id vero, quod humani iuris est, plerumque alicuius in bonis est, potest autem et
nullius in bonis esse: nam res hereditariae, antequam aliquis heres existat, nullius in bonis sunt. Hae
autem res, quae humani iuris sunt, aut publicae aut privatae. Quae publicae sunt, nullius in bonis esse
creduntur, ipsius enim universitatis esse creduntur: privatae autem sunt, quae singulorum sunt. 1.
Quaedam praeterea res corporales sunt, quaedam incorporales. Corporales hae sunt, quae tangi
possunt, veluti fundus homo vestis aurum argentum et denique aliae res innumerabiles: incorporales
sunt, quae tangi non possunt, qualia sunt ea, quae in iure consistunt, sicut hereditas, usus fructus,
obligationes quoquo modo contractae. Nec ad rem pertinet, quod in hereditate res corporales

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divisão suprema das coisas era entre as de direito divino e as de direito humano. As
primeiras podiam ser sagradas, apenas religiosas ou santas. As segundas estavam
geralmente no património de alguém, mas excecionalmente, podiam não ser de
ninguém (nullius in bonis), no sentido mais rigoroso da expressão (res nullius), ou
apenas no sentido de que não eram de nenhum particular, embora pertencessem a
uma entidade pública ou universidade.
§ 1057. Com base noutro critério, distinguia entre coisas corpóreas,
sensorialmente percebíveis, e incorpóreas, que consistiam em direitos, como a
herança, o usufruto ou as obrigações, apesar de estes dizerem respeito a coisas
corpóreas.
§ 1058. Muitas destas distinções do direito romano clássico tinham perdido
muito do seu sentido um milénio depois. No entanto, os juristas do direito comum,
mantiveram esta matriz de divisão das coisas.
4.2.1 Coisas sagradas, religiosas e santas.
§ 1059. Embora notando que os romanos tomavam as palavras noutra aceção,
os juristas do direito comum mantiveram o conceito de coisas de direito divino e,
dentro delas, a distinção entre as coisas sagradas, as religiosas e as santas.
§ 1060. As coisas sagradas eram aquelas que tivessem sido consagradas por
meio da bênção do bispo ou seu delegado (quando pudesse delegar a bênção) para
o serviço sagrado. Era o caso dos altares, dos vasos sagrados, das imagens benzidas
e de outras alfaias dedicadas ao culto. Próximas das sagradas estavam aquelas coisas
(por alguns chamadas coisas eclesiásticas) que não eram aplicadas diretamente ao
culto, mas a usos apenas relacionados com este, como é o caso dos ornamentos dos
templos ou das vestes dos oficiais de culto.
§ 1061. As coisas religiosas eram aquelas santificadas pelo facto de aí estarem
sepultadas pessoas. Entre as coisas religiosas avultavam os cemitérios, consagrados
para sepultura dos crentes1588, embora também objeto de um especial licenciamento
dos poderes temporais, por razões sanitárias ou urbanísticas, que se foram
tornando progressivamente mais exigentes 1589.
§ 1062. As coisas santas eram aquelas que, sendo profanas, eram consideradas
invioláveis, estando a sua ofensa castigada por lei. Os exemplos mais comuns eram
os das portas e muros das cidades.
§ 1063. A relevância jurídica destas categorias era a de que as coisas sagradas
eram consideradas como de ninguém (de nenhum património, rei nullius bonis)1590,

continentur: nam et fructus, qui ex fundo percipiuntur, corporales sunt, et id quod ex aliqua
obligatione nobis debetur plerumque corporale est, veluti fundus homo pecunia: nam ipsum ius
successionis et ipsum ius utendi fruendi et ipsum ius obligationis incorporale est. Eodem numero sunt et
iura praediorum urbanorum et rusticorum, quae etiam servitutes vocantur”
1588 Em Portugal, os ritos fúnebres eram regulados pelo ritual romano (Paulo V, 1605-1621).

1589 Ao poder temporal cabia a polícia funerária, atentos os interesses da república (fixação do

lugar dos cemitérios, negação de sepultura; v.g. aos sodomitas, Ord. fil.5, 113), a correção de abusos
dos párocos quanto ao custo dos funerais; na segunda metade do séc. XVIII, começam a ser referidas
exigências relativas à saúde, nomeadamente para condenar os enterramentos nas igrejas. Cf. Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 1, 6 e 7.
1590 Cf. adiante; Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., 2, 1, 7; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 1, 3 e 4.

322
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

por estarem destinadas a Deus, ficando sob a guarda e administração dos ministros
da Igreja, como seus "procuradores, mas não senhores” 1591. Quanto às coisas
eclesiásticas não consagradas, o seu regime seria menos rigoroso quanto à
possibilidade de as transacionar. De facto, até ao séc. XI, os bispos podiam alienar
as coisas da Igreja1592. As reformas disciplinares do séc. XII restringiram muito esta
faculdade. No direito comum tardio, entendia-se esta proibição como geral, embora
pudesse haver exceções, que cobriam uma casuística extensa: venda por grande
necessidade, venda de coisas sagradas integradas noutras que não o eram (v.g. a
capela de uma casa), venda de coisas sagradas já estragadas ou destruídas, venda a
outra igreja ou entidade eclesiástica, venda para comprar outras coisas melhores,
venda para remir cativos ou libertar presos 1593. Fosse como fosse, a avaliação de
tudo isto devia ser feita pelo ordinário da diocese 1594. Para mais, como a Igreja,
enquanto collegium ou universitas, era equiparada ao menor 1595, as suas alienações
deviam ser confirmadas pelo seu protetor, o príncipe 1596. Esta proibição de
comércio de coisas sagradas e eclesiásticas constava de Ord. fil.2,241597. O âmbito de
aplicação desta norma era, no entanto, controverso, já que no texto se falava em
prata e ornamentos. Alguma doutrina considerava esta intromissão régia na
disposição de coisas eclesiásticas como contrária à liberdade da Igreja e restringia,
por isso, o seu alcance a coisas móveis de metais preciosos, até porque a razão da
lei seria a proibição de vendas clandestinas de bens eclesiásticos, em prejuízo da
Igreja1598, cessando, por isso, na alienação de imóveis ou de objetos que não se
pudessem ocultar tão facilmente como estas peças preciosas.
§ 1064. O conceito de coisas religiosas permitia tratar do direito das sepulturas
e dos cemitérios
§ 1065. O conceito de coisas santas, com o conteúdo que tinha no direito
romano (coisas consagradas aos mais elevados serviços da cidade, como as
muralhas e suas portas, os paços dos supremos magistrados), desaparecera com o
desaparecimento dessa religião cívica que caraterizava a república romana. No
entanto, a ideia de uma especial dignidade dessas coisas votadas à preservação da
república e do seu regime mantinha-se. Sagradas eram as portas e muralhas das
cidades, por isso sendo obrigatório para qualquer cidadão defendê-las, ao mesmo
tempo que era proibido ofendê-las, construindo mais alto do que elas, apoiando
nelas casas particulares ou encostando-lhe escadas, escalando-as ou prejudicando de
qualquer forma a sua função defensiva1599. Sagradas eram também as leis e os

1591 Decretais, 3, 24 de donationibus, cap. 2.


1592 Decretum, causa XII, qu. 2; caus. 66 e 73.
1593 Manuel Barbosa, Remissiones […], ad. Ord.2, 24; Luís de Molina, De iustitia [...], cit., tom. 2,

De contractibus, disp. 340.


1594 Em Portugal, v. alv. 25.6.1631, § 4, que exige o consentimento do ordinário, ou seja, do

bispo ou cabido, conforme as constituições dos bispados..


1595 I. 2, 8 Quibus alienare licet vel non, pr. e § 2.

1596 C.1, 2 De sacrossantis ecclesiis et rebus et privilegiis earum, l. 14; Novelas, 7 e 120; v. Ord. fil. 2, 24

(“que se não possa comprar, nem receber em penhor prata, & ornamentos das Igrejas”)..
1597 Sobre este texto, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 8, ad Ord.2, 24, Luis de

Molina, De iustitia […], tom. 2, De contractibus, disp. 340.


1598 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 8, ad Ord.2, 24, n. 9.

1599 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 10, ns. 1 a 4.

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legados ou embaixadores, tanto de nações amigas como inimigas 1600. Também


ocorre a designação da casa como perímetro sagrado e inviolável 1601. Aplicado a
coisas, a classificação de santas implicava que não pudessem estar no património de
privados.
4.2.1.1 Os bens eclesiásticos.
§ 1066. Diferentes das coisas eclesiásticas, destinadas a atos de culto, eram os
bens eclesiásticos. Entendemos aqui por bens eclesiásticos 1602 aqueles sobre os
quais a Igreja tinha o domínio. Nesta categorização, não era, portanto, a natureza
dos bens, mas a qualidade do seu titular, que dava origem a um regime jurídico com
algumas especialidades, nomeadamente quando eles tivessem sido destinados a
sustentar uma função religiosa. Isto acontecia, nomeadamente, com aqueles bens
cujos rendimentos estivessem consignados aos sustento de um ofício eclesiástico.
Este regime era ainda tornado mais complexo pelo facto de, sobre esses bens, se
constituírem direitos, não apenas do titular do ofício, mas ainda daquele a quem era
dado o poder de o propor ou nomear (patrono) ou de o proteger (comendador).
Era através destas instituições dos benefícios, dos padroados e das comendas que
se efetuava a redistribuição social dos rendimentos da Igreja.
§ 1067. Mesmo na época, o regime dos bens eclesiásticos era complicadíssimo.
Isso explica – tanto quanto a apetência por eles e os conflitos que isso provocava –
a quantidade de litígios existentes acerca deles e, por isso, a abundância e
complexidade da doutrina jurídica sobre o assunto.
§ 1068. No texto que se segue, procura-se sistematizar e esclarecer esse regime.
4.2.1.1.1 Benefícios.
§ 1069. De acordo com a tradição que corre na época moderna, o sistema
beneficial teria sido introduzido na alta idade média. Nos tempos primitivos, os
eclesiásticos (tal como os pobres) teriam sido sustentados diretamente pelos fiéis.
No séc. V (ano 467), o Papa S. Simplício teria dividido os bens eclesiásticos em
quatro massas: uma destinada aos bispos, outra aos clérigos, outra aos pobres e
outra, finalmente, às despesas de culto (“fábrica da Igreja”). A partir daí, os clérigos
começaram a ser sustentados pela atribuição, em princípio pelos bispos, de bens da
Igreja, de cujos rendimentos pudessem viver decentemente. Esta atribuição de
alimentos teria sido inicialmente feita quase quotidianamente, à medida das
necessidades concretas do clérigo (annonnae, praebendae, de praebeo, apresentar;
designação dada aos alimentos prestdaos aos soldados 1603); depois, evoluiu para
concessões precárias de bens, de onde o clérigo tiraria o sustento; chamou-se a
estes bens o benefício 1604.

1600 Cf. D.50.7. De legationum, 18.


1601 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 1, 5.
1602 Cf. António Manuel Hespanha, “Os bens eclesiásticos na época moderna […]”, cit..

1603 Em sentido estrito, a praebenda ou canonica portio era aquela parte que se tomava da massa dos

bens e proventos dos eclesiásticos e se dava a cada um como parte sua (Andrea Vallensis, Paratitla […],
cit., p. 442, n. 1); mas que, embora se prestasse pelos bens da Igreja, não se prestava em razão do
ofício divino, mas em razão de trabalho temporal.
1604 A primeira referência no C.I.C. reporta-se ao Concílio de Mogúncia (ano de 813) (Decr. Greg.

III, 48, 1).

324
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1070. A origem do modelo do benefício está no direito romano tardio, que


utilizava a designação para referir a atribuição de bens àquelas que se distinguiam na
guerra, quer como prémio, quer como incentivo para feitos futuros (cf. C. 11, 59).
Interessante é, neste momento, destacar o carácter gratuito e benevolente do
benefício, o que o distinguia de qualquer pagamento mercenário (“beneficium est
benevola actio gaudium vel honorem tribuens capienti”, Séneca, De benef. 1) 1605.
Isto fazia com que o beneficiado ficasse ligado ao concedente por uma relação de
gratidão e fidelidade que lhe vedava, nomeadamente, a prática de atos que
envolvessem desrespeito, como contrariar a palavra jurada do concedente ou depor
contra ele1606.
§ 1071. Mas, apesar desta componente de precariedade e liberalidade da
concessão, a tendência teria sido a de entender progressivamente esta atribuição de
rendimentos como um direito patrimonial do tipo do usufruto, doravante integrado
perpetuamente no património do beneficiado e, assim, por ele disponível como
coisa patrimonial sua.
§ 1072. Nos finais da época moderna, quando já é muito forte a reação da
opinião pública contra esta progressiva patrimonialização das rendas dos
eclesiásticos, a doutrina insistirá no carácter por assim dizer público da obrigação de
sustentar os clérigos. Sustentação essa que, não podendo já competir diretamente à
comunidade, como nos tempos primitivos, deveria estar a cargo do soberano 1607.
§ 1073. Seja como for, antes de o iluminismo e, mais tarde, o liberalismo terem
re-imaginado um sistema novo de retribuição dos eclesiásticos, o sustento destes
estava baseado nesta concessão quase patrimonial de rendas, a que se chamou
benefício.
§ 1074. De acordo com uma definição comum, o benefício era um direito
perpétuo, atribuído por uma autoridade eclesiástica, de receber frutos
(rendimentos) de certos bens da Igreja, em virtude de um ministério (ou ofício)
sagrado, ao qual esses frutos tinham sido consignados ou anexados.
§ 1075. A perpetuidade do benefício residia no facto de, tanto a concessão dos
ofício como a dos benefícios, ser feita sem qualquer limitação temporal e em firme,
não podendo ser retirada arbitrariamente. Por isso é que as concessões temporárias
- v.g. enquanto não se der o provimento definitivo, como nas vigararias, que são
administrações temporárias de benefícios; ou enquanto o ofício carecer de certa
proteção, como nas comendas - não são, rigorosamente, benefícios. Como não o são
os ofícios livremente reassumíveis pelos concedentes (como os ofícios dos
regulares de ordens monásticas, também chamados manuais ou obedienciais,
justamente porque estava na mão do concedente dá-los ou tirá-los livremente; ou
os ofícios meramente delegados, como os dos legados papais) 1608.
§ 1076. A doutrina da época apresentava diversas classificações dos benefícios,
algumas delas prenhes de consequências institucionais.
§ 1077. Os benefícios podiam ser eletivos, providos por eleição canónica, ou

1605 Manuel Gonçalves Teles, Commentaria […], cit, III, tit. 5, “ De praebendis … ”, n. 12.
1606 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 54
1607 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit., II, 90, § 62 ss..

1608 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit., II, 92, § 66; Andrea Vallensis, Paratitla [...],

cit., III, 5, 1, n. 7.

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colativos, providos por simples doação ou colação. Maiores (como os de Papa,


arcebispos, bispos, abades) ou menores (os restantes). Curados, se incluíam a cura de
almas (administrar sacramentos e difundir a palavra de Deus, exercer a jurisdição
espiritual), ou não curados, se não a incluíam (o que se presumia). Regulares, atribuídos
a membros de uma ordem ou regra monástica, obrigando a uma mais estrita
obediência ao superior e livremente dependentes, quanto às funções e quanto ao
período de concessão, do arbítrio deste 1609; seculares, se atribuídos a clérigos
seculares, não sujeitos a regra e militando no século (o que se presumia). Familiares,
se o seu provimento tinha que se verificar no seio de certa família, ou não familiares,
no caso contrário 1610.
§ 1078. O provimento dos benefícios era levado a cabo, nas mais importantes
dignidades eclesiásticas (ecclesiae viduae: bispos e abades de ordens), por eleição
canónica (i.e. respeitadas as normas do direito canónico, nomeadamente quanto à
forma de efetuar a eleição e quanto aos requisitos do eleito 1611), a realizar dentro
dos três meses seguintes à vacatura. A eleição podia ser substituída por uma escolha
(compromissum) feita por um grupo mais restrito de eleitores (compromissários) ou pela
nomeação pelo titular do poder secular, como acontecia, para os bispos, em
Portugal. Devia ser confirmada pelo titular do direito de nomear o ofício.
§ 1079. Nos restantes ofícios, o provimento era feito por nomeação (ou colação),
por via de regra, episcopal. Apesar de o Papa ser, como vigário de Cristo, o titular
natural do provimento dos ofícios da Igreja, os bispos teriam adquirido, com o
decurso do tempo, uma expectativa jurídica (fundata intentio) de os poder conceder,
embora isto não prejudicasse os direitos papais1612. Daí que, embora ordinariamente
coubesse aos bispos a concessão dos ofícios, este direito estava limitado pelos
direitos cumulativos de colação que competiam ao Papa. Assim, este era titular de
uma reserva geral que lhe permitia prover os benefícios que vagassem em certos
meses (meses ímpares) ou que vagassem na cúria 1613. Havia outras reservas
especiais, no caso de certos benefícios 1614. Além de que o Papa, como vigário de
Cristo e usando de seu poder absoluto, podia prover qualquer benefício, em
qualquer circunstância e mês, como também podia privar dele o beneficiado 1615.

1609 De facto, os ofícios monacais (ou manuais) eram dados e tirados ad nutum (à discrição); o

conteúdo das suas atribuições também dependia em absoluto do concedente, João Baptista Fragoso,
Regimen […], cit., II, 854, § 12.
1610 Sobre este tema, v. v.g. Andrea Vallensis, Paratitla […], cit., III, 5, 2, p. 444; mais recentes,

Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit., II, 93, §§ 69 ss.; Bernardino Joaquim da Silva Carneiro,
Elementos de Direito Eclesiástico […], cit., 121 ss
1611 Sobre as eleições e os requisitos dos eleitos, v. Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit.,

II, 104, § 88 ss.


1612 João Baptista Fragoso, Regimen […], cit., II, 655, n. 2/5.

1613 Dado que esta reserva prejudicava os direitos dos patronos, havia quem restringisse
fortemente o âmbito da reserva pontifícia, não a admitindo nos benefícios em padroado leigo, nos
obtidos onerosamente, nos benefícios das ordens militares (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],
cit., tomo 9, ad Ord. 2, 35, c. 117, ns. 149 ss.). Além de que a reserva pontifícia não existia nos
benefícios regulares ou manuais das ordens (cf. ibid. tomo 11, ad 2, 35, c. 117, ns. 35 e 36).
1614 Franz Xavier Gmeineri, Paratitla […], cit., II, § 127. Nos benefícios de padroado eclesiástico,

a Santa Sé gozava de oito meses de reserva, ficando para os padroeiros apenas os meses de Março,
Junho, Setembro e Dezembro (Conc. Tridentini, sess. 24, cap. 18).
1615 Andrea Vallensis, Paratitla […], cit., III, 7, § 2, p. 451 ss..

326
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1080. Por outro lado, o direito de provimento dos bispos podia estar ainda
limitado por direitos de apresentação (i.e. de proposta de nomes) que competissem
aos eventuais patronos do benefício, nos termos do direito de padroado (v. infra).
§ 1081. No sentido de manter os ofícios e benefícios livres para serem
concedidos, no momento da vacatura, estava proibida a promessa de concessão de
ofícios não vagos (cartas de expectativas). O Concílio de Trento (sess. 24, de reform.
cap. 19) sublinhou ainda mais esta proibição, no âmbito de uma política de
ampliação da liberdade de colação que incluía também a introdução de restrições
aos direitos de padroado (v. infra).
§ 1082. O sistema beneficial baseava-se, como se viu, na conjunção entre um
ofício ou função eclesiástica, com a correspondente atribuição de poderes ou
jurisdições, e um benefício ou renda.
§ 1083. No plano dos poderes conferidos pelos benefícios, por vezes eles
correspondiam a uma certa primazia ou preeminência jurisdicional, nomeadamente
nos atos litúrgicos ou capitulares ("no coro ou no capítulo"); falava-se, nestes casos,
de uma dignidade. Em contrapartida, se esta primazia era meramente honorífica, não
comportando qualquer jurisdição (i.e. não se unindo a qualquer ofício, como um
lugar honorífico no coro, procissões ou sufrágios), falava-se de uma simples pessoa
(personatus). No caso de esta primazia se limitar à perceção de um rendimento,
falava-se de uma prebenda ou conezia 1616. Finalmente, se os poderes conferidos
fossem de mera administração, sem jurisdição ou dignidade, como no caso dos
sacristães, porteiros guardas ouzeladores, tratava-se de um mero ofício.
§ 1084. Neste modelo administrativo, ao desempenho de uma função
correspondia sempre a perceção de uma renda, de um "benefício". Na verdade, os
ofícios eclesiásticos nunca eram conferidos sem rendas (sem titulum [ou causa de
possuir]). A razão seria tanto a justiça (“é justo que quem vive para o altar, viva
também do altar”) como a necessidade de evitar que surjam “clérigos vagos e
acéfalos”1617. Apesar de contraditória com a lógica inicial do instituto, a situação
inversa de existirem benefícios sem a correspondente função podia verificar-se,
nomeadamente por esta se ter entretanto extinto, permanecendo a titularidade dos
rendimentos. Assim, ofício e benefício passaram a constituir sinónimos, designando a
mesma coisa, embora sob perspetivas diferentes. Mas, no mundo semântico da
administração eclesiástica, a designação de benefício (que remete para uma
perspetiva patrimonial) suplanta francamente a de ofício (que remete para uma
perspetiva funcional ou ministerial), embora a lógica institucional hesite entre uma e
outra visão.
§ 1085. Por um lado, a ligação essencial do benefício a uma função subjacente,
a um ministerium, de natureza espiritual, tinha como consequência a obrigatoriedade
da residência no lugar do benefício, a fim de poder desempenhar presencialmente

1616 Falava-se de pensão ou porção a respeito de uma prestação periódica imposta sobre o

rendimento de certo benefício pelo titular da sua colação (i.e. por aquele a quem competia prover esse
benefício) a favor de uma pessoa eclesiástica ou leiga (cf. Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado
prático compendiario das pensões eclesiásticas […], cit., 21 ss.). As pensões podiam ser impostas pelo Papa,
pelos bispos, pelos grão-mestres das ordens militares e pelos reis (como grão-mestres ou padroeiros).
Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pensio”, n. 2 ss..
1617 Cf. Manuel Gonçalves Teles, Commentaria [...], cit., p. 116, n. 13. Se o bispo ordenasse

clérigos sem titulum tinha que lhes prestar alimentos dos seus bens, ibid. p. 118.

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as inerentes funções, nomeadamente as que revestissem um carácter de urgência,


como a administração da confissão ou da extrema unção1618. Daí que ninguém
pudesse ter mais do que um benefício, pelo menos se estes fossem entre si
incompatíveis1619. Por outro lado, o facto de algumas das funções subjacentes
serem essencialmente espirituais levava à incapacidade dos leigos para serem
titulares de certos benefícios anexos a este tipo de funções 1620. Ainda nesta
perspetiva, os rendimentos do benefício deviam servir sempre a função subjacente.
Assim, entendia-se que os beneficiados aplicavam ao seu múnus os frutos do
benefício; e que, mesmo os rendimentos supérfluos, deveriam ser consumidos em
gastos piedosos1621. Também os réditos dos benefícios vagos deveriam permanecer
consignados ao benefício, sendo entregues ao sucessor ou gastos em benefício
deste; de modo a que os bispos não se pudessem apropriar deles para gastos gerais
da diocese1622; embora esta perspetiva interessasse também, mesmo de uma ótica
puramente patrimonial aos futuros beneficiados.
§ 1086. Mas a consequência talvez mais notável da lógica ministerial dizia
respeito aos critérios de seleção dos beneficiados. Aqui, estava muito presente a
ideia de que o beneficiado não era um mero arrecadador de rendas, mas uma
pessoa que, tendo que desempenhar um ministério, tinha que ter as qualidades
requeridas para tal. Essas qualidades (morais, intelectuais, físicas e de idade 1623)
estavam fixadas pelo direito canónico e enfaticamente sublinhadas pelo Concílio de
Trento (sess. 24, c. 12)1624. Mas, para além do cumprimento de requisitos absolutos,
havia ainda que ponderar os méritos relativos dos potenciais candidatos. Nos
ofícios eclesiásticos mais importantes - como os bispos e superiores de ordens
religiosas - isto obrigava a que o provimento se fizesse mediante concurso,
constando de um exame formal, devendo ser aprovado o melhor (dignior). No plano
dos princípios, isto impediria - segundo alguns, mas não todos - a concessão de
benefícios por preferências pessoais, clientelares ou familiares 1625. Nos benefícios
inferiores a exigência era menor, havendo quem - embora contra a letra dos
decretos de Trento (sess. 24, c. 18) - dispensasse o concurso formal, nomeadamente

1618 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 9. Este é um dos grande

temas do Concílio de Trento em matéria beneficial: cortar com os abusos de beneficiados ausentes (cf.
obrigações do beneficiado: residência assídua, Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, 156 §
200; Trento: sess. 23, cap. 1). No entanto, a prática continuou a ser bastante permissiva, admitindo,
nomeadamente, a falta de residência nos benefícios sem cura de almas (António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., “Beneficium”, n. 63).
1619 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 17.

1620 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, 92, § 66. Já no caso das simples prebendas

(v. supra) não milita esta razão, pelo que podem ser auferidas por leigos.
1621 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 164.

1622 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 174.

1623 O benefício curado exige 25 anos e ordem clerical; os outros exigem pelo menos 14 anos

(Trento, sess. 23, c. 6 de reformat). Sobre os requisitos pessoais para ter benefícios, v. João Baptista
Fragoso, Regimen [...], cit., II, 663, § 2, ns. 4 ss..
1624 cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 9.

1625 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 8. Em contrapartida,

João Baptista Fragoso (Regimen [...], cit., II, 663, § 2, ns. 4/5.) defendia que o bispo podia conceder
ofícios a seus consanguíneos idóneos, desde que o não fizesse com escândalo; apenas não lhes podendo
conceder os ofícios renunciados em suas mãos por outrem, n. 2.

328
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

nos benefícios que fossem apresentados por patronos laicos 1626; mas, de qualquer
modo, exigia-se que o apresentado fosse digno (embora não o mais digno), em
termos de virtude (mais do que em termos de nascimento 1627). Em todo o caso, o
princípio de que o ofício eclesiástico tinha uma natureza espiritual, devendo ser
exercido pelo mais digno e meritório, e de que a concessão do correspondente
benefício era um ato gratuito e liberal fazia com que qualquer motivação
interesseira ou qualquer pacto acerca da concessão fossem arguíveis de simonia (i.e.
o pecado que consistia na venda de função espiritual). Pelo que os critérios
objetivos do mérito sempre foram muito mais exigentes na colação dos benefícios
eclesiásticos do que na concessão dos ofícios ou mercês da república.
§ 1087. Em contrapartida, uma visão patrimonialista do benefício tendia a
considerá-lo como uma mera renda, semelhante a tantas outras existentes no
mundo medieval e moderno, incidindo sobre certos bens , E, daí, que se
concebesse a existência de benefícios sem ofício subjacente (prebendas ou
conezias) ou a venda de benefícios (entendidos como meros réditos temporais 1628)
como isenta do perigo de simonia. Admitida a venda (ou a troca), aceitava-se
também a renúncia a favor de outrem, embora autorizada pelo colator apostólico.
Entendendo-se mesmo que este não podia conceder o benefício a outrem 1629. Tais
renúncias eram muitos vulgares.
§ 1088. Numa lógica puramente patrimonial, também se entendia que o
concedente do benefício pudesse reservar para si uma porção do rendimento, a
título de pensão. Isto foi frequente até ao Concílio de Trento, o qual, seguindo a
lógica espiritualista, proibiu estas pensões, a não ser que ficassem votadas a fins
também espirituais (como, v.g. a reparação da igreja do padroado)1630. Mas, mesmo
depois, não só se admitia que o fundador de uma igreja reservasse uma pensão
sobre os bens doados1631, como se manteve a prática de, em certos benefícios, se
exigir, no momento da confirmação, o pagamento de uma soma equivalente a
metade do rendimento anual (meia anata). Daí que, perante a generalidade da prática,
a doutrina preferisse fixar limites às pensões, estabelecendo a regra de que estas não
deviam ser de tal modo pesadas que o beneficiado não se pudesse sustentar
comodamente, observando os preceitos de uma vida honesta e de hospitalidade; em
geral, a pensão não deveria exceder a terça parte dos frutos do benefício 1632.
4.2.1.1.2 Padroados.
§ 1089. O direito de padroado1633 competia a quem tivesse fundado ou dotado

1626 No padroado real português, a apresentação precedia exame e informação, normalmente

tirada pelo deão da capela real (Jorge de Cabedo, De patronatibus […], cit., c. 19, n. 1, p. 69).
1627 Discutindo a questão de se nos ofícios seculares ou eclesiásticos eram de preferir os nobres,

Manuel Gonçalves Teles, Commentaria [...], cit., p. 167, n. 4 (não são de preferir os nobres pois não é a
nobreza do nascimento mas das virtudes e da vida honesta que tornam o servidor grato e idóneo para
Deus; para o governo da Igreja devem ser eleitos não os nobres pela carne mas os humildes e pobres, n.
4).; apoia-se em S. Tomás, De regim. principum. liv. 4, cap. 15.
1628 Andrea Vallensis, Paratitla [...], cit., liv. 3, tit. 5, § 1, n. 5.

1629 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, v. “Beneficium”, n. 46.

1630 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, 172 s..

1631 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, “Pensio”, n. 6.

1632 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, “Pensio”, n. 8/9.

1633 Decretum, 2, p. C. 16, qu. 7, c. 33: “O mosteiro ou oratório instituído canonicamente não

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uma igreja em quantia apreciável (“jus patronatus est jus honorificum, onerosum, &
utile, alicui competens in ecclesia, pro eo, quo de diocesani consensu ecclesiam
contraxit, fundavit vel donavit1634). Incluía, entre outras coisas, o direito de
apresentar pessoa idónea para um benefício vago (v. § 428 ss.). 1635.
§ 1090. Embora a prática anterior fosse diferente e mais permissiva, o Concílio
de Trento procurou restringir o direito de padroado, limitando a sua concessão aos
casos de fundação ou dotação substancial de uma igreja ou capela. Em todo o caso,
continua a admitir-se, embora relutantemente, que o Papa, usando do seu poder
absoluto (i.e. superior ao direito), pudesse conceder padroados (de vi potestatis de
camera) a quem não tivesse fundado igrejas1636. Simultaneamente, estabelecem-se
condições mais rigorosas para a prova do direito de padroado, exigindo documento
autêntico ou posse imemorial, com única ressalva dos padroados imperiais ou
régios, para os quais se continuavam a admitir todas as provas admitidas em
direito 1637.

deve ser tirado do domínio do instituidor contra a sua vontade, devendo-se permitir-lhe que o
encomende ao presbítero que quiser para a celebração dos ofício sagrados, com o consentimento do
bispo da diocese”. Cf. também Decretais, 3, 38 (“De iure patronatus”). Sobre o padroado, v. Bento
Cardoso Osório, Praxis de patronatu regio […], cit.; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Ius patronatus”; Jorge de Cabedo, De patronatibus [...], cit.; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., II,
689, § 7; Andrea Vallensis, Paratitla […], cit., ad III, 38; Franz Xavier Gmeineri, Institutiones […], cit.,
II, 136 ss..
1634 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius Patronatus”, n. 1.

1635 Sobre o padroado v. os respetivos artigos do Dicionário de História de Portugal, Porto, Iniciativas

Editoriais, 1961 e Dicionário Ilustrado de História de Portugal, 1985, bem como as indicações contidas em
Ana Mouta de Faria, “Função da carreira eclesiástica na organização do tecido social do Antigo
Regime”, cit., Joaquim de Carvalho & José Pedro Paiva e J. P. Matos, “A diocese de Coimbra no
século XVIII […]”, cit.. Literatura antiga, Jorge de Cabedo, De patronatibus [...], cit.; Bento Cardoso
Osório, Praxis de patronatu [...], cit.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 5, 19;
Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 217; e José J. Lopes Praça, Estudos sobre o
padroado portuguez [...], cit.. Lista dos padroados da Ordem de Cristo (“as cinquenta comendas do
Padroado”), em Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., c. 18, n. 1. Formalidades e fórmulas de
apresentação, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., cap. 19. Sentenças sobre casos de apresentação de
beneficiados pelos reitores das Igrejas do padroado real, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit.,
tomo 13, p. 67 ss.. Depois de ter sido objecto de discussões nas Cortes vintistas, os padroados (salvo o
da Coroa) foram abolidos pelo dec. de 5.8.1833, reservando ao governo a apresentação dos benefícios
eclesiásticos (cf. Bernardino Carneiro, Elementos de direito ecclesiastico [...], cit., 236).
1636 Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., p. 139.

1637 Concílio de Trento, "Padroado", sess. 25, cap. 9: "Assim como não é justo prejudicar os

legítimos direitos de padroado e violar as pias vontades dos fiéis quanto à sua instituição, também não é
de permitir que, debaixo desta aparência, se coloquem os benefícios da Igreja em servidão, o que
muitos fazem de forma impúdica. Assim, para que se observe em tudo um equilíbrio devido, o Santo
Sínodo reconhece como título do padroado a fundação ou a doação que se demonstre provada por
documento autêntico e outras provas requeridas por direito; ou também por múltiplas apresentações por
tempo antiquíssimo que exceda a memória dos homens ou de outro modo equivalente, segundo a
disposição do direito. No entanto, naquelas pessoas, comunidades ou universidades nas quais aquele
direito as mais das vezes costuma ser obtido sobretudo por usurpação, exigese uma prova mais plena e
exata como título verdadeiro. Nem a posse imemorial lhes valerá senão quando, além de outras coisas
necessárias, se provarem apresentações, continuadas, e pelo espaço não inferior a cinquenta anos, e
sortidas de efeito. Todos os restantes padroados nos benefícios, tanto seculares, como regulares, ou
paroquiais, ou dignidades, ou quaisquer outros benefícios, em catedral, ou igreja colegiada, ou
privilégios concedidos, tanto com efeito de padroado como qualquer outro direito de nomear, eleger
ou apresentar para quando vaguem, são totalmente revogados, sendo tida como nula qualquer posse
deles, exceto os padroados sobre igrejas catedrais e outros que pertençam ao imperador ou aos reis ou

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1091. Além do direito de apresentação, o direito de padroado incluía, desde


logo, o direito de pedir alimentos, por força das rendas do benefício, no caso de
pobreza do patrono; mas a avaliação da pobreza dependia da “qualidade” do
patrono. Embora o Concílio de Trento (sess. XXII, de reformat , cap. ult.) tenha -
na sequência de determinações canónicas anteriores (cf. Decr. Greg. IX, cap.
extirpandae, III, 5, 30) - proibido terminantemente os patronos de se intrometerem
na perceção dos frutos do benefício, a doutrina seguia admitindo, mesmo nos finais
do séc. XVIII, que os patronos podiam receber censos nos bens da igreja
fundada1638. No plano simbólico, os patronos tinham direito a lugares de destaque
na igreja, no coro e nas procissões (ibid.).
§ 1092. Estes direitos obrigavam o patrono à cura, inspeção e defesa da igreja,
para que esta não fosse prejudicada nos seus direitos. Em síntese, costumava
recitar-se o seguinte brocardo:
Patronos debetur honos, onus, utilitasque;
Praesentet, praesit, defendat, alatur egenus

§ 1093. (deve-se ao patrono a honra, o ónus e a utilidade; apresente, presida,


defenda e seja alimentado na miséria).
§ 1094. Neste brocardo, destacavam-se as características fundamentais do
sistema de direitos e deveres incluídos no padroado. Ou seja, o seu carácter
honorífico, oneroso e utilitário. Honorífico, pois encerrava certas honras, como a
de apresentar o titular do benefício (normalmente o reitor ou capelão da Igreja), a
de ter a precedência nos atos de culto (como as procissões, os ofícios, a bênção,
etc.), a de ter direito a preces, a ter cadeira especial na Igreja ou no coro, a ter
sepultura em lugar de destaque, etc.1639. Oneroso, porque sobre o patrono recaía o
ónus de defender a igreja ou capela do seu padroado e de impedir que os seus bens
se dilapidem (ibid. n. 12). Utilitário, pois o patrono, sua mulher e família tinham
direito a ser socorridos pelos rendimentos da Igreja se caíssem na miséria (ibid. n.
14).
§ 1095. Os padroados podiam competir a muitas entidades. Desde
comunidades paroquiais ou poderosos locais a entidades eclesiásticas (como sés ou
cabidos). A distinção entre padroados leigos e eclesiásticos era a mais importante,
decorrendo da origem dos rendimentos com os quais se tinha construído ou
dotado a igreja ou da vontade do instituidor leigo no sentido de ser padroeiro o
próprio abade da igreja1640 e era relevante de diversos pontos de vista. Não apenas
quanto aos prazos de apresentação (seis meses nos eclesiásticos; quatro meses nos
leigos; em ambos os casos, sob pena de devolução ao superior, se não exercido a
tempo), mas também no modo de fazer a apresentação. Nos eclesiásticos, o
concurso entre os concorrentes era de regra, estando dispensado nos leigos. Estes
últimos, tinham outras regras menos estritas quanto à idoneidade do apresentado
(não tinham que abrir concurso, bastava escolher digno, mas não o mais digno) e

possuidores de reinos, bem como outras entidades sublimes e príncipes supremos que tenham nos seus
domínios direitos imperiais; assim como os concedidos em favor de estudos gerais. Assim, os benefícios
são concedidos como livres pelos seus colatores, tendo as provisões destes pleno efeito”.
1638 Cf. Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 138, § 160.

1639 Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu […], res. 1, ns. 7/11.

1640 Jorge de Cabedo, De patronatibus […], cit., n. 11.

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quanto à sua designação concreta, pois, antes da confirmação do apresentado,


podiam mudar a escolha1641.
§ 1096. Os padroados transmitiam-se, desde logo, por sucessão. Neste plano,
não se afastavam do direito sucessório normal, não exigindo, designadamente,
masculinidade ou progenitura. Eram inclusivamente divisíveis, quanto aos direitos
de perceção de rendas. Naturalmente que a apresentação, em si mesma, era
indivisível. Mas, sendo vários os herdeiros titulares do direito de padroado, eles
podiam combinar entre si uma forma de gerir o direito de apresentar (por exemplo,
por eleição entre os cotitulares ou, o que era mais frequente, pelo exercício
alternado)1642. Alguns, podiam ser gentilícios ou familiares, não podendo sair de
certa família1643. O patrono podia doar o padroado à igreja de que fosse patrono
que, assim, ficava padroeira de si mesma 1644.
§ 1097. Para os que consideravam que o padroado era algo de meramente
temporal, este podia mesmo ser vendido, sem perigo de simonia 1645. Outros
exigiam que o patronato estivesse anexo a uma universalidade de bens de natureza
temporal, para poder ser assim transacionado; porque em si mesmo, considerado
como prerrogativa de apresentar ofício eclesiástico ou de obter honras numa igreja,
seria um direito espiritual e, logo, inalienável 1646.
4.2.1.1.3 Comendas.
§ 1098. Uma forma especial de atribuição de benefícios era a comenda 1647. Em
rigor, não se tratava de uma concessão de benefício, mas apenas da sua
“encomendação” (ou entrega como que em depósito) 1648 temporária a alguém, que
devia proteger e curar o benefício, entregando-o, quando isso lhe fosse pedido, ao
concedente, e pondo os frutos à disposição do beneficiado 1649.
§ 1099. O alemão Justus Henning Boehmer descreve assim a origem da
instituição: “Nos tempos primitivos não era possível pôr logo à frente das igrejas
um pastor idóneo; entretanto, para evitar todos os incómodos que normalmente
nascem da anarquia, costumava-se encomendar e cometer a igreja vaga a alguém
probo que, como tutor ou procurador, se encarregasse de boa fé dos atos a ela
relativos. Este não era pastor da igreja e só era nomeado por certo tempo”. E
prossegue, dando conta das críticas que os protestantes dirigiam a todas estas
formas de transferência para leigos das funções e rendas da Igreja, “pouco a pouco,
esta instituição degenerou em rapina, verificandose uma reação contra ela [...]
obrigando-se os bispos a, no prazo de um ano, proverem as igrejas ou a substituir o

1641 Decr. Greg. IX, III, 38, 24 e 29; Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 140, §
163.
1642Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 145, § 177.
1643António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, nota p. 695 col. 1.
1644 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, n. 30.

1645 Tal é a opinião de Franz Xavier Gmeineri, Institutiones [...], cit., II, p. 144, § 173.

1646 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ius patronatus”, n. 5.

1647 Sobre padroados e comendas, comentadas, em António Manuel Hespanha, “Os bens
eclesiásticos […]”, cit..
1648 Commendare é depositar, D. 50, 16, 186.

1649 Andrea Vallensis, Paratitla [...], cit., p. 462.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

comendador [...] Mas hoje estas comendas (ou beneficia commendatae) justificam-se
mais pelos réditos que dão do que pelo bem da cura de almas” 1650.
§ 1100. Em Espanha, foi este, além disso, o sistema de distribuição das terras
das Américas pelos colonos. O comendador foi originariamente um encarregado
temporário da administração de um território, com a perceção dos respetivos
tributos e as jurisdições espiritual e secular correspondentes, enquanto estas não se
provessem definitivamente os respetivos ofícios. Mas esta ideia de precariedade foi-
se obliterando progressivamente. Solorzano Pereira, que trata longamente da
instituição da encomienda, pela qual se distribuíram aos colonizadores as terras das
Américas, define ainda a comenda como o recebimento de “alguma coisa em
guarda ou depósito, amparo e proteção” 1651. Mas também já lhe acrescenta a outra
dimensão patrimonial, mais próxima da realidade prática da época, ao defini-la
como o “direito de perceber os tributos dos índios, conferido por mercê” (ibid. III,
3, 2 ss.). Na verdade, como refere, estas nomeações “não davam nem conferiam
título algum ao que servia o benefício, só o constituindo como seu depositário,
guardador ou administrador por certo tempo e por causa de evidente utilidade da
Igreja; mas com a faculdade de que pudesse gozar e dispor dos frutos, como se
fosse um beneficiado” (ibid. IV, cap. 15, 5 ss.).
§ 1101. Em Portugal1652, a comenda era definida como um “benefício de coisa
imóvel, retida a propriedade no concedente, de modo a que o usufruto passe para o
aceitante em virtude da fidelidade deste”1653. Discutia-se a sua natureza beneficial,
sendo dominante a opinião de que não se tratava de benefícios eclesiásticos, já que
o múnus que estava subjacente à perceção de frutos nada tinha de espiritual,
consistindo na obrigação de fazer a guerra aos infiéis1654. Era aos párocos das
igrejas da comenda que competiam todas as funções espirituais, para o que lhes era
atribuída uma certa pensão (ou “cota”) extraída dos frutos e rendimentos da
comenda, de que os comendadores eram meros administradores (ibid. n. 22).
§ 1102. Estavam atribuídos em comendas os benefícios, jurisdições e rendas das
ordens militares. Com a integração dos mestrados das Ordens na Coroa, esta torna-
se padroeira destas comendas1655. O rei, como mestre, apresenta a comenda (que
não é um benefício) e o comendador apresenta um vigário perpétuo ou reitor que
provê os benefícios1656. Aí, os comendadores repartiam com os curas (ou vigários
perpétuos) os réditos eclesiásticos, de acordo com o disposto na carta de
concessão1657. Frequentemente, os comendadores tinham os frutos das igrejas e os

1650 Ius parochiale […], cit., sec. 8, cap. 2, ns. 25/27.


1651 Juan Solorzano Pereira, Politica indiana, cit., III, 1, 1.
1652 Sobre o regime das comendas em Portugal, v. Lourenço Pires de Carvalho, Enucleationes [...],

cit..
Lourenço Pires de Carvalho, Enucleationes [...], cit., II, p. 10, n. 7.
1653

Lourenço Pires de Carvalho, Enucleationes [...], cit., 1, en. 2, ns. 18 ss..


1654

1655 Cf. lista das comendas de Cristo do padroado da coroa (“as cinquenta comendas do

padroado”), em Jorge de Cabedo, Praxis de patronatu […], cit., cap. 18, n. 1 (p. 66).
1656 Jorge de Cabedo, Praxis de patronatu […], cit., cap. 18, n. 2 a 5; Bento Cardoso Osório diz

que “os reitores das igrejas do padroado real, nas quais foram constituídas comendas, continuam a
apresentar os curas e demais benefícios, como antes” (Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu […],
p. 91, n.1; p. 106, n. 4). Cf. diploma sobre a repartição das apresentações dos benefícios das comendas
e seus rendimentos entre comendadores e reitores em Osório, ibid. p. 93.
1657 Bento Cardoso Osório, Praxis de patronatu […], cit., p. 90, n. 2

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vigários as suas porções1658.


4.2.1.2 A enfiteuse eclesiástica.
§ 1103. Ao tratar da enfiteuse (v. 4.3.3.3; § 1302), referir-nos-emos a este tipo
de bens eclesiásticos, na verdade bastante comum.
§ 1104. Adiantemos apenas que as Ordenações dispunham que a enfiteuse
eclesiástica fosse regulada pelo direito canónico (Ord. fil.4,39,2 in fine). Exigia a
observância das solenidades e requisitos deste direito, requerendo escritura pública.
Não podia, em princípio, ser perpétua ou por mais de três gerações ou vidas,
embora alguns autores excetuassem o caso de emprazamento de terra inculta, para
a tornar mais atrativa ao foreiro1659. Também era bastante generalizada a opinião
que sustentava que a Igreja podia adquirir e reter perpetuamente os prazos vindos a
si por comisso, devolução do domínio útil pelo foreiro, aquisição deste domínio
pelo senhorio nos casos em que tinha direito de preferir na venda dele 1660. Porém,
esta consolidação do domínio nas mãos da Igreja contrariava as leis de
desamortização de 11 de 30 de Julho de 1611. Outra especialidade relevante deste
tipo de enfiteuse era a de bastar o não pagamento do cânone por dois anos para dar
lugar a comisso; em compensação, o enfiteuta podia purgar a mora, satisfazendo
rapidamente as pensões antes da contestação da lide (v. Ord. fil.4,39,2)1661.
§ 1105. Em suma. As especialidades da enfiteuse eclesiástica decorriam, ou da
aplicação do direito canónico, ou do favor ecclesia ou da política anti amortizadora da
coroa. Mas pouco se relacionavam com a especial natureza das coisas.
4.2.2 Coisas comuns, públicas, de ninguém e privadas.
§ 1106. Esta é uma outra classificação que provem do referido texto de Gaius
sobre as espécies de coisas1662.
4.2.2.1 Coisas comuns de todos.
§ 1107. Eram coisas comuns de todos aquelas que, por natureza, fossem de uso
comum de todos os seres animados, como o ar, as águas pluviais e correntes, o mar
e o seu litoral1663. Eram ainda comuns no sentido de que, não pertencendo a
ninguém, ficavam a ser do primeiro que as ocupasse, embora só nessa parte

1658 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Beneficium”, n. 11.


1659Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 22; se se concedesse
por mais, era reduzida a 3 vidas, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 72, n. 2. Para as
modificações pombalinas, v. CL de 9.9.1769, § 26.
1660 V. Ord. fil.1, 62, 48 e Ord. fil.2, 1, 6, em que se permitia às comunidades eclesiásticas adquirir

prazos enfitêuticos sem restrição de tempo.


1661 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 7; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 28.


1662 D.1, 8 De rerum divisione, 1; Cf. D. 41.1 De adquirendo rerum dominio, 52 (“Modestinus libro septimo

regularum. Rem in bonis nostris habere intellegimur, quotiens possidentes exceptionem aut amittentes ad
reciperandam eam actionem habemus”).
1663 O mar litoral, quanto à jurisdição, era público. Cf. Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum

[...], cit., ad 2, 1, § 1, n. 1 (o mar largo era comum por natureza e insuscetível de apropriação
jurisdicional, embora houvesse pretensões ao domínio jurisdicional do Mar Adriático pelos venezianos,
do Mar Báltico, pelos prussianos, do Mar do Norte, pelos ingleses e, mais tarde, do mar oceano pelos
portugueses e espanhóis).

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ocupada e sem prejuízo do uso dos outros 1664. Era o que acontecia com as praias do
mar, em que todos podiam lançar redes ou edificar, desde que não prejudicassem o
direito dos outros1665. Em todo o caso, entendia-se que o domínio privado sobre
estas coisas era de difícil aquisição, apenas se podendo usucapir por posse
imemorial1666. E, fosse como fosse, este domínio estava sempre limitado pela
natureza pública destes bens. Pois os rios, os portos, as margens ribeirinhas
(ribeiras, ripae), estavam abertas ao uso público de todos e cada um – usos como
aportar barcos, amarrá-los às árvores, secar as redes -, mesmo que estivessem no
domínio de alguém; ou seja, apesar da eventual propriedade particular das
margens1667, o seu uso era público1668.
§ 1108. A diferença entre coisas comuns de todos e coisas públicas era que as
comuns satisfaziam o uso indistinto tanto dos homens quanto dos restantes
animais, ao passo que os usos das coisas públicas exigiam capacidades que só os
homens tinham, como pescar ou navegar. Pelo direito das gentes fora instituído nas
coisas públicas um certo domínio (nomeadamente, jurisdicional), de modo a que
essas fossem reservadas aos povos de uma certa circunscrição (comunidade ou
universidade) territorial, de modo a assegurar o uso comum de todos os
habitantes1669. Isso não acontecia nas coisas comuns em sentido absoluto, pois
nestas não havia nenhuma espécie de domínio de uma comunidade particular,
sendo antes absolutamente comuns de todos 1670, independentemente da terra a que
pertencessem, e não podendo sequer ser atribuídas ao primeiro ocupante
(aomcontrário do que acontecia com as coisas públicas)1671.
§ 1109. Os rios podiam ser públicos e privados. Os públicos eram os perenes,
sempre correntes e navegáveis. Privados, eram os que secavam e não se prestavam
à navegação1672. Os privados, por sua vez, diferiam dos próprios, pois este nasciam
no terreno de uma pessoa, correndo apenas por ele. Os rios públicos pertenciam
aos reis por cujo território corriam. O seu uso era público, sendo, por isso, lícito a

1664 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., 2, 1, § 1, n. 2.


1665 A menos que alguém tivesse adquirido uma como que posse, em termos de ele só poder usar
essa coisa comum (v.g. pescando ou construindo), caso em que era protegido pelo interdito uti possidetis,
Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., 2, 1, § 1, ns. 3 e 4.
1666 Mas não de longo tempo (30 anos); tal fora o título de aquisição do domínio jurisdicional do

Adriático pelos venezianos, Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., 2, 1, § 1, n. 5.


1667 Os autores distinguiam entre as margens ribeirinhas dos rios (ripa fluminum), sujeitas à variação

sazonal das cheias, e o litoral do mar (litora marium), que variava diariamente com as marés. Este último
não era de ninguém, embora pudesse ser tutelado pelo príncipe; as ribeiras dos rios eram dos donos dos
prédios limítrofes, Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 2, ib. n. 4.
1668 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 2, ns.1 e 2.

1669 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 2 e ss. n. 5.

1670 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 2 ss. n. 5 I a II.

1671 Cf. D.1, 8, 4: “Marcianus libro tertio institutionum. pr. Nemo igitur ad litus maris accedere

prohibetur piscandi causa, dum tamen ullius et aedificiis et monumentis abstineatur, quia non sunt iuris
gentium sicut et mare: idque et divus pius piscatoribus formianis et capenatis rescripsit. 1. Sed flumina
paene omnia et portus publica sunt.”; 1.8.5, Gaius libro secundo rerum cottidianarum sive aureorum.
pr. Riparum usus publicus est iure gentium sicut ipsius fluminis. Itaque navem ad eas appellere, funes ex
arboribus ibi natis religare, retia siccare et ex mare reducere, onus aliquid in his reponere cuilibet
liberum est, sicuti per ipsum flumen navigare. Sed proprietas illorum est, quorum praediis haerent: qua
de causa arbores quoque in his natae eorundem sunt. 1. In mare piscantibus liberum est casam in litore
ponere, in qua se recipiant”. V. Ord. fil. 2, 26, 9/10.
1672 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n. 6.

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todos pescar neles1673. Esta conclusão tinha algumas limitações: (i) não era válida
quando o direito de pescar tivesse sido vendido pela cidade ou pelo príncipe,
instituindo um monopólio de pescarias1674; (ii) só se aplicava aos rios públicos; (iii)
não valia se as pescarias tivessem sido adquiridas por particular por prescrição
imemorial, pois este era o tempo de prescrição dos lugares públicos 1675.
§ 1110. Nos rios públicos não se podiam construir azenhas (molendinae) ou
outros edifícios que impedissem o uso público ou a navegação (tal como nas vias
públicas), a não ser com licença do príncipe 1676. Mas, se neles já houvesse azenhas,
outros podiam-nas construir, a não ser que os donos das primeiras tivessem obtido
o privilégio de ser os únicos, ou se esse fosse o costume do lugar 1677.
§ 1111. Já nos rios privados e próprios, só o dono podia pescar 1678.
§ 1112. A distinção entre coisas comuns de todos, coisas públicas, coisas de
uma universidade e coisas particulares foi recebida na doutrina jurídica moderna,
embora com sentidos que não eram os do direito romano e estavam sujeitos a
indecisas polémicas doutrinais.
§ 1113. Na classificação romana, a questão subjacente relacionava-se - como se
refere expressamente no texto das Institutiones – com a questão de saber se as coisas
- em função das utilidades que se satisfaziam com elas - estavam ou podiam estar
no património de um particular ou não. A maior parte das coisas estavam, ou
podiam estar, no património de alguém. Porém, às vezes isto não acontecia quando
certas coisas eram insuscetíveis de apropriação privada. Era o caso, em geral, das
coisas sagradas; mas também o das coisas das universidades, da república ou de
entes coletivos, porque prosseguiam utilidades coletivas1679.
§ 1114. No direito comum, retém-se algo do sentido da classificação das
Institutiones, ligada à oposição entre a natureza pública ou privada das coisas. Com
alguma alteração no sentido da palavra república. No sentido estrito do direito
comum, república era apenas a capital do império ou de um reino que não
reconhecesse superior, sendo privados os restantes burgos e cidades 1680. Mas, em
sentido amplo, o termo aplicava-se também a qualquer cidade em que houvesse
administração da justiça por juízes (e restantes oficiais) próprios, quer estes fossem
instituídos pelo rei ou pelo povo. E, assim, as coisas deputadas para uso da
república – no sentido mais estrito, ou no sentido mais amplo - eram públicas, não
podendo ser vendidas, dadas, doadas ou obrigadas, sob pena de nulidade absoluta

1673 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, ns. 7 a 9; v. Ord. fil.2, 26, 8.
1674 Que tivesse adquirido este direito de alienar por prescrição imemorial, Joannis Oynotomi, In
quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n.10.
1675 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n. 10.

1676 Mas nos privados e próprios, os donos podiam construir livremente, ainda que prejudicassem

outrem Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n. 12 e 13.


1677 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, ns. 13 e 14. O senhor, se

tivesse o direito de obrigar os súbditos a ir ao seu moinho não podia proibi-los de ir a um feito de novo,
Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n. 15.
1678 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 5, n. 11.

1679 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 1, 7.

1680 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, nº 36.

336
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

(nullius momenti)1681. Públicos eram, neste sentido, os palácios reais, mas também as
casas em que se administrava a justiça1682
§ 1115. Outras classificações das coisas (dos bens) no direito comum eram,
porém, suscitadas por outras preocupações. O conceito de bens do rei (regalia)
surgiu, na esteira de uma constituição de Frederico II – inserida nos Libri
feudorum1683 e transposta para as Ordenações, Ord. fil. 2,26, Dos direitos reais 1684 -
para designar os bens que, pela sua natureza (ou seja, segundo a constituição
tradicional do reino), pertenciam ao rei e que, por isso, ou não podiam sair do seu
património ou só saíam dele por um ato de disposição do rei. Subsidiariamente, o
conceito servia para interpretar atos jurídicos, nomeadamente doações régias. Já
com o conceito de bens da coroa (bona regiae coronae), se queriam identificar os bens
que, por pertencerem à coroa do reino, de que o rei era apenas um administrador,
não podiam ser dela separados a título definitivo, mas apenas a título precário e
temporário. No âmbito dos bens do rei, outras distinções existiam, correspondentes
a designações usadas na lei ou na doutrina - reguengos, bens fiscais, bens dominiais
do rei, sesmarias1685 (v. cap 2.4.3.3.2).
§ 1116. Já com o conceito de bens alodiais se queria significar os bens que, pela
natureza da sua função, pertenciam naturalmente a um património privado. Os
bens - ou coisas - presumiam-se alodiais, porque a relação entre os homens e os
seus bens compreenderia, originariamente, todas as faculdades de uso e de
disposição; embora, depois disso, se tivessem introduzido outros modelos de
pertença patrimonial.
§ 1117. São estas grelhas de classificação que vão ser aplicadas às situações
concretas existentes na prática, situações essas que tinham tido origem nas
circunstâncias da história e na sua leitura através de categorias jurídicas de várias
procedências e desenhos jurídicos diferentes dos do direito romano.
§ 1118. A distinção entre bens públicos e privados permanece, mas a sua
relevância esbate-se perante a necessidade de classificar de forma mais fina a
situação, quer a dos bens públicos, quer a dos bens privados.
4.2.2.2 Coisas públicas ou do rei (regalia).

1681 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, nº 40.


1682 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9, ad 2, 26, 11, gl. 13, que refere que
este caráter público dos paços da justiça não implica que sejam do rei; em alguns casos, eram dos
concelhos ou até de donatários, que os tinham mandado fazer à sua custa e que os reparavam e
mantinham (com decisões judiciais a este propósito).
1683 Libri feud. 2, 16 (Constituição de Frederico II: “Regaliae, armandiae, viae publicae, flumina

navigabilia et ex quibus fiunt navigabilia, portus, riparica, vectigalia, quae vulgo dicuntir telonia,
moneta, multarum poenarumque compendia, bona vacantia et quae ut ab indignis, legibus auferentur,
nisi quae specialiter quibusdam concedentur; et bona contrahensium incestas nuptias, condemnatorum
et proscriptorum [...]; angariarum, perangariarum, et plaustrorum et navium praestationes, et
extraordinaria collatio ad felicissimam regulis numinis expeditionem, potestas constituendorum
magistratum ad iustitiam expediendam; argentariae et palatia in civitatibus consuetis; piscationum reditus
& salinarum, et bona committentium crimen majestatis, dimidium thesauri in loco Caesaris inventi,
non data opera, vel loco religioso; si data opera, totum ad eum pertineat”; interpretação e comentário,
Philipus Ernestus Bertram, De genuino sensu ac valore constituionis Friderici I. Imp. II. F. 56, Halae
Magdeburgicae, Io. Friderici et Frid. Augusti Grunertorum, 1765); outro conceito importado do direito
feudal era o de alódio (ou bens alodiais), Libr. feud. 2, 54.
1684 Onde, no fundamental, se reproduz a lista dos regalia do direito feudal lombardo.

1685 V. Ord. fil.4, 43.

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§ 1119. Quanto aos bens públicos, os autores destacavam a já referida categoria


de coisas (ou bens) do rei ou regalia (v. antes cap. 2.4.3.3.2)1686, que encontravam no
tit. 2,26 das Ordenações1687, sem que fosse antecedida de qualquer definição. Manuel
Álvares Pegas anuncia a matéria como importantíssima (“Augustissima”),
complicada (“intrincata”) e frequente (“quotidiana … admodum frequens”),
definindo coisas do rei (direitos reais) como aqueles direitos supremos que
competem aos príncipes que não reconhecem superior 1688, direitos (jura et reditus)
que estes teriam como um pagamento, fixado na constituição primordial do reino
ou por costume imemorial1689, devido pela administração da justiça e pela proteção
dos súbditos1690. Isto não quereria dizer, nem que os reis não tivessem outros bens
que não fossem desta espécie, nem que todos os direitos reais estivesse enumerados
em Ord. fil.2,26, onde faltavam, entre outros (cf. ibid. n. 6), as terças dos concelhos,
o padroado régio e os reguengos1691.
§ 1120. A doutrina distinguia entre regalia maiora e minora. Os primeiros
competiriam ao rei em razão do "poder e jurisdição supremos" 1692 e, por isso, ou
não se podiam separar da sua pessoa (adeririam aos seus ossos, "ossibus principis
adhaerunt") ou, pelo menos, estavam reservados ao rei, no sentido de que não se
podia entender estarem compreendidos numa doação régia genérica, antes
carecendo de uma referência concreta1693.
§ 1121. Os regalia minora1694 eram direitos que competiam ao rei "em razão do
seu domínio universal ou em sinal de submissão”, pois, por costume ou destinação
expressa, se presumia que eram principalmente destinados às despesas do governo
da república, como seriam os tributos (tributa, vectigalia), os rios, as estradas públicas.
§ 1122. Alguns destes estavam consignados a fins especiais, para os quais os
povos os pagavam e aos quais estavam atribuídos 1695: as terças dos concelhos (tertia

1686 Em geral sobre a evolução (sobretudo medieval) do conceito de regalia. H. Thieme, “Die

Funktion der Regalien”, em Z. d. Savigny-St. Germ. A. 62(1942) 57 ss.; I. Ott, “Der Regalienbegriff im 12
Jahrhundert”, em Z. d. Savigny St. Kan. A. 66(1945) 234 ss.; G. Astuti, La formazione della stato mudemo in
Italia, l, Torino 1967, 50. Para o conceito de "direitos reais" no período iluminista, em Portugal,
António Ribeiro dos Santos, papéis sobre "direitos reais", em cods.. Bib. Nac. Lisboa, 4670, 4677.
1687 Corresponde a Ord. af. 2, 24. Existem outras enumerações. Cf. António Manuel Hespanha,

História das instituições […], cit., p. 145 n. 240.


1688 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, ad 2, 26, rubr. gl. 1, ns. 1 e 2. Remete para

Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., t. 1, p. 2, liv. 1, cap.1.


1689 “[…] ea, quae ratione redditus, & tributi ab antiquo per constitutionem, aut possessionem

imemorialem debentur”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, ad. 2, 26, rubr.. gl. 1, n. 5.
1690 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, ad 2, 26, rubr. gl. 1, n. 4..

1691 Sobre reguengos, comentário do mesmo autor a Ord. fil.2, 16.

1692 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9 ad Ord. 2, 28, ad rubr. n. 87; Domingos

Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., I. 2, c. I. n. 16; Jorge de Cabedo, Decisiones […],
dec. 42, n. 3.
1693 Como criar magistrados, capitães, cunhar moeda, legitimar ilegítimos.

1694 Enumeração e regime: Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3,

cap. 1 (tributos); cap. 2 (Angarias e perangarias [serviços dos vassalos]); caps. 3 e 4 (ruas e estradas); cap.
5 (moinhos); cap. 6 (portos); cap. 7 (ilhas); cap. 8 (coisas comuns); cap. 9 (caça e pesca); cap. 10
(palácios); cap. 11 (sal); cap. 12 (veios e minas), cap. 13 (tesouros); cap. 14 (bens vagos); cap. 15
(heranças ab intestato).
1695 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9, ad Ord. fil.2.28, ad rubr. n. 87;

“non est quies sine armis, nec arma sine stipendiis, nec stipendia sine tributis habere possunt”;

338
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

oppidorum) para o reparo das muralhas1696, o consulado marítimo para a manutenção


de uma armada de costa, os rendimentos das alfândegas e portos secos consignados
ao pagamento de salários de oficiais, os rendimentos da Casa da Índia, destinado ao
fabrico de navios, a dízima nova do pescado, consignada aos gastos de uma armada
de galés, os rendimentos das minas, destinados à câmara real, as anatas, as décimas
e o real de água, afetados a despesas da guerra. Dado que estariam destinados a
certas finalidades, não podiam ser delas desviados sem uma justa causa; por isso,
não se entendiam compreendidos numa doação genérica, pois não se podia
presumir que o príncipe doador quisesse prejudicar terceiro ou estas
consignações1697.
§ 1123. Outros direitos reais não tinham um especial destino, pertencendo ao
príncipe como senhor de todos. Era o caso, desde logo, dos reguengos, bens que o
príncipe tinha reservado para os gastos da república e cujos rendimentos, por isso,
deviam ser reservados ao rei1698, sendo administrados pelos seus almoxarifes.
Quando o rei não explorasse diretamente tais terras – o que era a regra -, estas
terras eram dadas em enfiteuse ou em censo, contra pensões enfitêuticas ou
censíticas, que também constituíam direitos integrados neste grupo de rendas reais.
Depois, incluíam-se neste grupo os bens vagos ou desertos, existentes dentro do
reino. Em virtude de um princípio de direito comum, as terras incultas e ermas (i.e.
não possuídas por ninguém), como os matos maninhos, que se encontrassem
dentro das fronteiras do reino, pertenciam ao rei, enquanto senhor de todo o reino,
como bens vagos (v. Ord. fil.2.26,17), porque o rei era senhor de todo o reino 1699.
Eram, portanto, terras públicas, enquanto ninguém provasse que eram suas; e,
portanto, não podiam ser adquiridas por ocupação 1700. Esta regra valia para as terras
ermas e incultas fora dos limites do termo de algum concelho, pois, se as terras
estivesses no termo de um concelho pertenceriam a este, como que tendo sido
concedidas pelo príncipe para uso dos vizinhos, os quais teriam sobre elas uma
presunção de direito (intentio fundata). 1701 Tipicamente, estas terras eram
concedidas em sesmaria (v. Ord. fil.4,43), por uma concessão gratuita e precária,
condicionada ao cultivo num certo prazo, sob pena de recuperação pelo rei para
nova concessão.
§ 1124. Destinados a custear despesas gerais de governo eram também as
portagens, as jugadas (Ord. fil.2,33), as décimas velhas do pescado, as pensões

acolhendo outra definição, os regalia minora "dizem apenas respeito aos proventos fiscais e aos frutos
patrimoniais" (Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., t. I. l. 2, c. I. n. 19).
1696 Por isso se dizia, reforçando ainda mais essa indisponibilidade pelo rei, que as terças dos

concelhos e das multas agrárias ou coimas (prov. 18.11, 1577, alv. 18.1.1613) eram “dos povos” e não
dos reis (v. Ord. fil.2, 28, 2), sendo este apenas o seu administrador (cf. sobre a sua arrecadação, Ord.
fil.1, 70, 3).
1697 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 ad Ord.2, 28, ad rubr. n. 87.

1698 V. Ord. fil. 2, 16, proibindo que entidades isentas adquiram bens nos reguengos.

1699 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria as Ordinationes […], cit., ad Ord. fil.4, 43, pr. ns. 3 e 4

(“quia regulariter quidquid est intra fines territorii praesumitur esse illius, cujus est territorium”).
1700 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria as Ordinationes […], ad Ord. fil.4, 43, pr. n. 5 (abona-se

em Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit., qu 8, n. 37).


1701 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria as Ordinationes […], ad Ord. fil.4, 43, pr. n. 6; cita Jorge

de Cabdeo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 112 (“De agris desertis”), n. 3; e Álvaro Valasco, Tractatus de
jure emphyteutico […], cit., qu 8, n. 38.

339
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enfitêuticas e outros rendimentos dos prédios patrimoniais ou reguengos, os


tributos antigos, como o “salaio”, pago pelos pescadores, o tributo das moendas e
azenhas feitas em rios públicos, os fornos, moinhos e barcas, as pescarias, as peitas
e jantares. Nestes casos, uma vez que não havia uma especial consignação destes
rendas, elas podiam ser livremente doadas e entendia-se estarem compreendidas nas
doações genéricas dos direitos reais.
§ 1125. Uma outra categoria de bens do rei seria a daqueles bens que, estando
unidos à coroa do reino para sustentar o estado real, eram do rei como poderiam
ser de qualquer privado, como os prados de pasto (defesas, montados, saltos e
matas), os maninhos e outros prédios rústicos (granjas) ou urbanos (armazéns e
casas). Também estes bens se compreendiam nas doações régias1702.
§ 1126. A estes bens do rei se acrescentaria ainda uma quarta categoria: a das
coisas que o príncipe tinha, não pelo direito de principado, mas como privado,
porque os tinha comprado ou os tinha recebido de devedores 1703. Quanto a estes
bens, não se entendia que estivessem compreendidos em doações genéricas, mas
antes se exigia uma expressão menção1704 para que se considerassem doados.
§ 1127. Num esquema:
Regalia maiora: Poder e jurisdição Inalienáveis (pelo
suprema, inseparável do menos sem expressa
rei. doação).

Regalia minora: Bens e rendas destinados Tributos, rios, Por presunção na


às despesas do governo estradas públicas titularidade do rei,
da república. mas alienáveis.

Bens e rendas que Direitos reais e Por presunção na


pertenciam ao príncipe rendas conexas titularidade do rei,
como senhor de todos (jurisdições, coimas mas alienáveis.
(ou senhor natural). e penas, bens dos
condenados);
Reguengos;
Terras desertas ou
vagas (ainda
desertas ou já dadas
em sesmaria), e seus
rendimentos (como
as pensões
enfitêuticas ou
censíticas);
Estancos e
monopólios;
Portagens, jugadas,

1702 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 ad Ord.2, 28, ad rubr. n. 89.
1703 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 ad Ord.2, 28, ad rubr. n. 90.
1704 O que fosse isto, v. Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 9 ad Ord.2, 28,

ad rubr. ns. 91 ss..

340
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Bens e rendas do rei Terças, consulado, Inalienáveis.


consignados a certas alfândegas e portos
despesas. secos, décima
militar, etc.

Bens do rei como Quintas, herdades, Do rei, se


privado, mas unidos à matas, casas incorporados no
coroa do reino e armazéns tombo dos bens do
reservadas para as rei.
despesas da república.

Bens adquiridos pelo rei Titulados e provados


por via contratual ou por pelos meios de
herança de seus maiores. direito válidos para
particulares.

§ 1128. O que dava unidade a esta categoria de bens do rei era a sua vinculação
ao sustento do estado real e às funções que lhe eram inerentes, desde o exercício da
mais elevada jurisdição até ao governo corrente do reino ou mesmo ao simples
mantimento da casa do rei1705. É esta referência ao rei que lhes dava a todos uma
presumível natureza pública. Mas essa natureza não conduz a uma unificação do
seu regime, nomeadamente quanto ao sentido e modalidades da sua alienação ou
concessão a particulares. A possibilidade da sua concessão estava antes relacionada
com o tipo de titularidade que o rei detinha sobre eles. Se os tinha como
administrador da coroa, ou de certas finalidades destes bens, os seus poderes de
concessão eram restritos. Se os detinha como “senhor universal”, podia geri-los
com a liberdade próxima de um particular.
4.2.2.3 Bens da coroa.
§ 1129. Uma outra categoria das coisas públicas, presente na doutrina
portuguesa era a de bens da coroa 1706, usada na Lei Mental1707 (v. cap. 2.4.3.5). A
definição de bens da coroa também suscitava nos autores a complicadíssima
questão da classificação do património régio. Nela confluám diversos tópicos
doutrinais, além de que as classificações variavam consoante o seu objetivo
dogmático (v.g. definição dos direitos inalienáveis da coroa1708, dos direitos
prescritíveis1709, ou dos direitos concedidos por doação genérica) (v. cap. 2.4.3.6).
§ 1130. Na perspetiva da Lei mental, o autores distinguem, normalmente, (i) o
património “privado” do príncipe, constituído por aqueles bens que ele possuía antes
de ser rei e (ii) o património público ou da coroa, neste se distinguindo (ii a) o património
fiscal, que compreende os reguengos, as sesmarias, os bens dos confiscados e, em
geral, todos os bens não (ou ainda não) incorporados expressamente na coroa do

1705 Não era licito que o rei usasse e fruísse dos bens púbicos senão para ocorrer às necessidades

comuns e ao bem da República, v. Domingues A. Portugal. De donationibus […], cit., liv. II, cap. IV.
1706 António Manuel Hespanha, História das instituições, cit., pp. 286/287.

1707 A Lei Mental, com as declarações e interpretações a que foi sujeita, foi incorporada nas Ord.

Man. 2, 17, donde passou para as seguintes (Ord. fil. 2, 35). Comentários à Lei Mental, muito úteis para
a sua interpretação no séc. XVII, em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomos 10 e 11.
1708 Cf. v.g. a classificação de Domingos A. Portugal, De donationibus [...], cit., p. 2, c. I. n. 15.

1709 Cf. v.g. a classificação de Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 9, p. 308; Jorge de

Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, c. 42, n. 4.

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reino, e (ii b) o património da coroa do reino. Este último era constituído: (ii b 1) pelos
direitos reais (enumerados, v.g. em Ord. Af. II, 24, Ord. Man. II, 15, Reg. Faz. cap.
127 e Ord. fil. II, 26) e pelos tributos (bens da coroa do reino "por natureza"); e (ii b
2) pelos bens expressamente incorporados na coroa por meio do seu registo nos
livros dos próprios da coroa do Arquivo Régio 1710.

§ 1131. As classificações abundavam, e não eram sempre as mesmas. Uma erra


a seguinte:

Património Privado
Património fiscal
Património Público  Direitos reais
Património da coroa  Tributos
Bens incorporados

§ 1132. Esta classificação, que é a de Pegas1711, é por outros autores simplificada


a duas categorias, a de bens privados do rei, que lhe competem ratione personae, e bens
públicos ou da república, que lhe competem tanquam defensor reipublicae1712, incluindo
nos bens públicos as duas categorias de património público ou da coroa,
construídas por Pegas.
§ 1133. Seja como for, todos os autores estão cientes do carácter artificial destas
distinções, muito marcadas pela distinção “público”-“privado” de origem romana,
mas sem correspondência na estrutura política medieval, caracterizada precisamente
pela indistinção entre as esferas do público e do privado. Assim, tanto Portugal
como Pegas afirmam que "hoje a distinção não releva, pois todos os bens do rei,
quer públicos quer privados, gozam do mesmo regime" 1713 ou que "esta distinção
entre património público e privado do príncipe não tem qualquer importância no
foro"1714. Para efeitos da lei mental, a questão acabava por se resolver por meio de
uma enumeração e não com base nestas tortuosas distinções conceituais.
§ 1134. Assim - e seguindo a enumeração de Pegas1715-, eram bens da coroa: as
cidades, lugares e castelos; os montes maninhos; as lezírias; os direitos reais
enumerados nas Ordenações; as pensões e rendas concedidas em juro e herdade; o
padroado régio; as capelas da coroa quando tivessem sido objeto de incorporação;
as jurisdições; a décima das ilhas; os reguengos quando tivessem sido objeto de

1710 Formalidades em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t.. 10, p. 16, n.8.
1711 Commentaria, tomo 10, pg 13, n.l; t. 2, pg.2.
1712 Domingos Antunes Portugal, De donationibus [...], cit., t. 2, p. 3, c. 43.

1713 Domingos Antunes Portugal, De donationibus [...], cit., t. 2, p. 3, c. 43, n. I.

1714 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 13, n. 2. Ainda na época iluminista,

quando a distinção "público-privado" já renascia, a distinção é tida por despicienda, Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., I, 36.
1715 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, lac. cit., ns. 5 ss.

342
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

incorporação. Em contrapartida, não eram bens da coroa - não estando portanto a


sua doação sujeita à Lei mental e deferindo-se, antes, pelas regras da simples doação
ou pelas dos contratos de concessão agrária (ad excolendum, ad habitandum [e não ad
militandum]: enfiteuse, arrendamento, etc.) - os reguengos não incorporados nos
próprios da coroa, as sesmarias, os baldios e os pastos comuns. No caso de dúvida,
o ónus da prova de que os bens doados eram da coroa do reino pertencia ao
procurador desta, pois se presumia - salvo no caso de bens da coroa por natureza -
que os bens eram patrimoniais do rei (favor libertatis) e de que, assim, podiam ser
doados mais plena e livremente.
§ 1135. Sendo bens da coroa do reino – e não apenas bens do rei –, os bens
estavam sujeitos a um regime mais estrito de indisponibilidade, pois os reis, que
eram apenas seus administradores, não os podiam doar em termos tais que os
alheassem definitivamente da coroa, prejudicando os seus sucessores 1716. Este
regime restritivo consistia, basicamente, (i) em exigir cartas de doação para titular a
concessão de bens da coroa, (ii) por vezes com a exigência de que aí houvesse uma
referência expressa ao bem ou direito concedido e (iii) em estabelecer o princípio
de que as doações eram precárias, podendo ser revogadas pelo rei, e devendo ser
confirmadas por morte quer do rei, quer do donatário1717 (v. cap. 2.4.3.5). A este
rigor da lei não correspondia um idêntico rigor da prática1718. Não apenas os reis
confirmavam invariavelmente as doações feitas, por si ou seus antecessores, como a
doutrina desenvolveu uma teoria segundo a qual, sendo as doações de bens da
coroa uma forma de remunerar serviços prestados pelos vassalos, elas se
transformavam em doações remuneratórias irrevogáveis (donationes ob benemetita,
antidorales, remuneratoriae) que os reis tinham o dever quási (como que) jurídico de
confirmar1719 (v. cap. 2.4.3.8). Pegas diz com todas as letras "ser inviolável neste
Reyno, os Senhores delle guardarem & manterem as (doações) que fizeram os
Senhores seus predecessores" e que os tribunais reconhecem "como por direito
consuetudinário deste Reyno os Senhores Reys são obrigados a manter, & sustentar
as mercês feitas pelos Senhores Reys seus predecessores, ainda que sejam
meramente liberaes, para cuja validade não he necessária mais que a concessão,

1716 Como teria acontecido com D. Duarte, a quem a prodigalidade de seu pai teria deixado rei

“das estradas de Portugal”. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, ns. 13 e 14:
“Rex non potest alienare bona Coronae … quod bona Regni non sunt própria ipsius Regis, imo sunt
illius dignitatis regalis; et non tamtum illa bona Coronae alienare non potest, sed debet revocare alienata
[…] Rex tamen bene poterit facere modicas donationes de bonis Coronae […], non tamen ita largiter,
ut magis videatur prodigalitas, quam benevolentia”.
1717 Cf. sobre o regime das doações de bens da coroa, António Manuel Hespanha, História das

instituições […], cit., 382 ss.; Id. As vésperas […], cit., 402 ss..
1718 A própria doutrina era hesitante e cheia de modulações e adversativas, como se pode ver desta

síntese: “Rex potius debet habere ratum factum sui praedecessoris, quam invalidum, si aliquod
praejudiciale non continerat, quoniam beneficium Principis debet esse permanens, et non debet
recipere diminutionem […] Non tamen ita, quod ad hoc obligetur vi coactiva, sed vi directiva; quoniam
unus Rex, seu Princeps, non imponuit legem alteri successori”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s.v. “Rex”, n. 15.
1719 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., c. 167, n. 5; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p. 2,

dec. 1 ss. (maxime dec. 19, n. I ss.); Domingos Antunes Portugal, De donationibus […], cit., p. 2, c. 7, n.
25 (baseado na piedade que o rei deve votar às decisões dos seus maiores e na regra "corona nunquam
moritur"); Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad 2, 45, 12, gl. 14, ns. 4 e 5 (pg.
167), Fontes: Ord. fil. 2, 35 e 2, 38. Cf. sobre o assunto, António Manuel Hespanha, As vésperas […],
cit., 408 ss..

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ainda que se não tire carta ou alvará [...} "1720.


§ 1136. Além de tentar proteger os reis da sua própria liberalidade, a Lei Mental
instituía um sistema específico de sucessão nos bens da coroa, consagrando a
masculinidade e a primogenitura. Por morte do donatário, o direito a pedir a
confirmação dos bens doados transmitia-se ao seu descendente masculino mais
velho (v. cap. 2.4.3.7).
§ 1137. A sucessão por primogenitura1721 (v. § 327, § 907) era como que uma
consequência do princípio de indivisibilidade. O discurso jurídico letrado de há
muito insistia no princípio de que as jurisdições e as dignidades não se dividiam
(dignitates et jurisdictiones non dividuntur)1722. O argumento ocorrente para justificar o
sistema era o da necessidade de manter o poder das famílias, no qual se apoiava o
próprio poder da coroa: "quia per integritatem, & bonorum unitatem conservantur
bona, et memoria donatariorum, & servitiorum remunerationes […] unitas et
integritas est unicum remedium conservandi bona in donatariorum sucessores”1723.
Na verdade, não é claro que os interesses das famílias ou o interesse da coroa
ganhassem com a sucessão masculina. Pode ser que na sua base estivessem apenas
elementos simbólicos.
§ 1138. A adoção da indivisibilidade e primogenitura tinham, antes de mais, o
efeito de evocar o sistema linhagístico em uso na coroa e na sucessão das
dignidades. Por aí se explica, porventura, que a doação de bens puramente
patrimoniais (i.e. que não continham jurisdição nem regalia: doação de reguengos,
sesmarias, armazéns, casas, em propriedade) não estivesse sujeita à regra da
indivisibilidade1724. A progressiva importância dos elementos simbólicos ligados ao
esquema primogenitural levou a que sectores nobiliárquicos (mas não os juristas)
insistissem na exclusão da linha transversal - o que aumentava significativamente o
risco biológico da extinção da estirpe - e na consagração do direito de
representação em favor do neto, filho do primogénito pré-morto, que, então,
afastaria o secundogénito1725.
§ 1139. Os efeitos práticos da Lei Mental, como dispositivo de controlo político
da nobreza, não devem ser exagerados.

1720 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 12, ad 2, 45, 12, gl. 14, ns. 4 e 5 (pg. 167).
1721 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 403 ss..
1722 L. Praeterea, dos Lib. feud. 2, 55, pr./1; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 1,

p. 424, nº 8. A indivisibilidade do reino era o tópico inspirador: “Regnum debet esse unicum, & non est
dividendum, quoniam si Regnum dividatur, cito destruetur, et unicus prínceps in eo esse debet”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, 12.
1723 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 11, pg. 41, n. 2.

1724 Alguma jurisprudência dos sécs. XVI e XVII alargava o princípio da indivisibilidade à sucessão

nos reguengos (cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 11, c. 20, pg. 40; Jorge de Cabedo,
Decisiones […], cit., p. 2, dec. 27, n. 5.
1725 A solução proposta era a do direito feudal e também a do direito castelhano dos morgados (lei

40 de Toro). Contra, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 109, n. 55, invocando
apenas a razão dogmática de que nos feudos não se dava a representação. A solução será adotada por D.
João IV - a pedido das cortes de 1641 (cap. 27 da nobreza e 26 do clero); cf. capítulos gerais, pp. 55, 76
e 8]. Sobre a divisibilidade dos feudos no direito comum (nomeadamente, sobre a distinção entre
feudos divisíveis e indivisíveis, ou per modum maioratus), Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit.,
tomo 11, pg. 59 e pg. 105, n. 3.

344
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1140. Desde logo - como aliás a própria lei previa (Ord. man. 2,17,23) - o rei
podia dispensar a sua aplicação. Mas, além disso, o âmbito de aplicação da Lei
mental não abrangia, zonas extensas da liberalidade régia. De facto, não estavam
sujeitas à lei: (i) as concessões de bens de reguengos ou de sesmarias, as concessões
em enfiteuse de quaisquer bens da coroa (mesmo de bens da coroa em sentido
estrito, embora esta hipótese não fosse comum), ou as suas concessões para fins
não nobres (isto é, para povoamento ou cultivo, ad habitandum ou ad excolendum) 1726;
(ii) as doações de bens das ordens militares 1727; (iii) as doações feitas à Igreja, pois os
bens da coroa perdiam então a sua natureza e tornavam-se bens eclesiásticos,
amortizando-se no donatário1728. Alguns autores defendiam mesmo a opinião - que
poderia tirar todo o alcance prático à lei - de que não estavam sujeitas à lei mental
as doações remuneratórias de serviços; mas esta opinião nunca se tornou
dominante1729.
4.2.2.4 Reguengos.
§ 1141. As terras da coroa do reino eram concedidas, como vimos, visando a
contrapartida de serviços nobres, como o auxílio e o conselho (auxilium et consilium).
A sua concessão estava sujeita ao regime especial da Lei Mental (v. cap. 2.4.3.5).
§ 1142. Para além destas, havia as terras que o rei detinha enquanto privado e
de que dispunha de acordo com as regras do direito comum, entre vivos ou por
morte, como qualquer privado.
§ 1143. Sobravam ainda as terras reguengas ou reguengos, a que se referem as
Ordenações nos títulos 2,30, 2,31, 2,16, 2,17, 2,22 e 2,331730. Eram referidas nas
Ordenações para atribuir aos seus moradores o privilégio de não estarem sujeitos aos
encargos dos concelhos, para proibir que os privilegiados (clérigos, fidalgos e
cavaleiros) aí adquirissem bens, para sujeitar as terras reguengueiras ao tributo das
jugadas e para estabelecer algumas peculiaridades das concessões de terras
reguengueiras.
§ 1144. Os reguengos eram os bens que pertenciam ao príncipe como tal, em
razão do seu império e principado1731 e que, no reinado de D. Pedro I, tinham sido
registados nos livros “dos próprios” (tombo dos bens particulares do rei). Claro
que desde aí o rei tinha adquirido outros bens que, com algum que não tivesse sido
então tombado, constituíam os bens puramente patrimoniais do rei (cf. § 1142).
Sobre esses bens, o rei tinha reservado um tributo em sinal de reconhecimento de

1726 Ord. man. 11, 17, 6; para a interpretação, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10,

p. c. 39 (maxime, p. 317 n. 54).


1727 Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 333, n. 34.

1728 As doações de bens da coroa feitas à igreja tinham importantes especialidades: uma delas era

esta de não estarem sujeitas à Lei Mental (nem a confirmação, v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria
[…], cit., t. 12, p. 132, n. 9); daí que se não encontre registo dessas doações nas confirmações gerais
ou nas listas de donatários da coroa. Outra era a de não poderem ser impugnadas por excessivas ou por
lesivas, não estando assim sujeitas às restrições que a doutrina fazia às doações régias (cf. para este
último ponto, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, c. 35, p. 258 ss.).
1729 Cf. a discussão em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 10, p. 402, n. 5; este autor

não adere à posição mais radical, restringindo a doutrina ao caso de doação feita a não súbdito, pois os
serviços do súbdito eram devidos e, logo, as doações não seriam remuneratórias.
1730 Cf. ainda Ord. fil.2, 18, 6 e 2, 22.

1731 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 8, ad 2, 16 gl. 1, ns. 1 e 2.

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supremo senhorio e destinado a custear as despesas de sustento e manutenção da


dignidade régia, a que se chamara jugada 1732. Por pagarem este imposto, as terras
reguengas eram também chamadas terras jugadeiras, embora a correspondência
exata entre as duas categorias fosse controvertida.
§ 1145. Também a distinção entre terras reguengueiras e terras puramente
patrimoniais, que era sobretudo baseada na circunstância formal do registo dos
bens no tombo dos “próprios da coroa”, oferecia dificuldades conceituais, de que a
doutrina se dava conta. Manuel Álvares Pegas exprime essas dificuldades, logo no
início do seu comentário a Ord. fil.2,30: “[3.] Embora seja certo que estes bens
reguengueiros sejam bens do príncipe e se enumerem entre os bens do rei [regalia],
como defende Portugal e prova Ord. tit. 2,16, já comentada, no entanto tenho
dúvidas sobre em que diferem dos outros bens patrimoniais a que antes nos
referimos. E Valasco1733 opina que são certos prédios que estão em propriedade
plena nos possuidores salvo cânon ao rei, com o qual se transmitem para qualquer
outra pessoa [doutrina, decisão judicial] e, assim, podem ser divididos, se isso for
costume [...], o que não é irracional, pois, por direito comum, a divisão da enfiteuse
é válida [...]. [4.] Mas os referidos doutores falam em termos muito gerais, que não
explicam exatamente a minha proposição. Primeiro, porque entre os prédios que
pertencem ao príncipe anumeram os fiscais, feudatários, reguengueiros e
enfitêuticos e entre todos estes há muita diferença, embora em todos eles se pague
alguma coisa, tributária ou em cânon. Segundo, porque também estes prédios se
dividem em duas espécies, como se prova de Ord. fil. 2, 16 e 17. Terceiro, porque se
encontram alguns bens reguengos que não se podem alienar, nem doar, nem deixar
em testamento, como se vê em Ord. fil. tit. 2,45, em que vários bens são tributados
com tributos daqueles de que se fala nos reguengos. E sei que alguns bens são

1732 V. Ord. fil.2, 33. Sobre a sua origem e correspondência com tributos de direito comum, v.
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 33, rubr. n. 1 a 4. A doutrina moderna
discutia se as jugadas eram um tributo ou uma prestação contratual. Gabriel Pereira de Castro e Álvaro
Valasco, nos seus tratados sobre a enfiteuse, inclinavam-se para a natureza tributária, mas Manuel
Álvares Pegas discordava deles, preferindo a natureza contratual, estribado em indícios literais (v.g. Ord.
fil.2, 27, 2 fala em “contrato”), v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 33, rubr.
n. 6. A jugada incidia sobre as produções em trigo, milho, vinho e linho (Ord. fil.2, 33, pr.; ou noutros
frutos expressamente referidos no foral, v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad
Ord. fil.2, 33, pr. c. 10, n. 23), sendo a sua taxa de um oitavo (salvo diferente disposição do foral, Pegas,
ibid. n. 25), sem dedução das despesas de cultivo (v. Pegas, ibid. cap. 18, n. 90-91). Era um tributo geral,
devido por todos, mesmo pelos privilegiados, salvo privilégio ou isenção expressa no foral, registado
nos livros de jugadas (v. Pegas, ibid. cap 24, n. 119). Por lei de que resultou a Ord. fil.2, 29, D. Manuel I
teria revogado privilégios antigos de fidalgos, cavaleiros (Pegas, ibid. n. 143), subsistindo apenas uma
isenção bastante restrita e condicionada da Igreja (Ord. fil.2, 22, v. Pegas, ibid. ns. 145 e 146). As jugadas
incidiam, portanto, sobre clérigos, cónegos e bispos, (Ord. fil.18, 6; comentário, Pegas, ibid. n. 183 ss.
max 187 e 189); comendadores (ibid. n. 201; vereadores, juízes, oficiais dos concelhos (ibid. n. 203;
juízes de altos tribunais (ibid. n. 204); Hospitais (ibid. 218); bens das capelas (ibid. n. 231); confrarias (ibid.
n. 232); colégios e universidades (ibid. n. 233). Em todo o caso, era comum que os forais isentassem das
jugadas os “cavaleiros”, o que fornecia uma boa base para disputar sobre a obrigatoriedade de as pagar
(v. Pegas, ibid. ns. 213 ss. e 247 ss.: moedeiros, bombardeiros, desembargadores e seus colonos,
cavaleiros isentos pelas cartas de forali, ibid. n. 257 ss. sempre com muitas decisões judiciais). Como era
um ónus real, transmitia-se com a coisa, mesmo que o adquirente fosse privilegiado, v. Pegas, ibid. c.
24, ns. 120 ss.; 140 ss.) e atribuía ao rei ou donatário um privilégio executivo em relação a outros
credores (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ibid. cap. 6, n. 18). As jugadas eram
pagas pelos colonos (Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ibid. ns. 19 e 202).
1733 Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici, cit., qu. 13, n. 1,

346
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

reguengueiros, que pagam tributos a algum castelo e seu alcaide, e que não pagam
imposto ou cânon ao príncipe, e que não foram considerados neste assunto
[...]”1734.
§ 1146. Poucas destas terras reguengueiras – como, de resto, as terras
patrimoniais do rei – eram exploradas diretamente ou cedidas a título de
arrendamento. Quando o eram, a sua administração era assegurada pelos
almoxarifes e seus oficiais: os almoxarifes do reino ou de almoxarifados
especiais1735. Quando doadas, as terras jugadeiras ficavam no domínio pleno (ou
alodial) do possuidor, sem comisso, laudémio ou necessidade de licença do príncipe
para alienar, a não ser que tivesse havido pacto em contrário 1736. Então, podiam ser
vendidas, aforadas, dadas em censo, integradas em capela ou morgado1737, sendo as
suas rendas igualmente administradas pelos almoxarifados respetivos. Se a jugada
não fosse paga, o jugadeiro não caía em comisso, como aconteceria se fosse um
foreiro. Se não fosse cultivada, a jugada não era devida, pois supunha uma colheita.
Mas o prédio podia ser retirado ao seu dono e dado em sesmaria a quem o quisesse
cultivar1738.
§ 1147. Mas o rei também podia dar terras reguengas em enfiteuse, ou impor-
lhe um censo. Porém, a criação de uma segunda imposição – neste caso, o foro ao
rei - sobre a mesma terra libertava-a do pagamento da jugada. Não porém, se a terra
jugadeira fosse dada em enfiteuse pelo seu possuidor, pois nesse caso não se
verificavam as razões para que a jugada deixasse de se pagar 1739.
4.2.2.5 A concessão de coisas públicas.
§ 1148. A concessão de bens da coroa é tratada a propósito dos bens da coroa
do reinos (v. cap. 2.4.3.5) e do contrato de doação (v. cap. 6.9.2.1.2).
§ 1149. O regime de concessão de ofícios foi referido no capítulo a estes
dedicado (v. cap. 2.6.5.1).
§ 1150. A concessão de mercês é referida a propósito do contrato de doação (v.
cap. 6.9.2.1.1).
§ 1151. A concessão de terras sem jurisdição foi tratada no cap. 4.2.2.4. Uma
modalidade especial (as sesmarias) será tratada de seguida.
4.2.2.6 Sesmarias.
§ 1152. A figura fora inspirada pelo direito romano (agri deserti: C. 11.62. De
fundis patrimonialibus et saltuensibus et emphyteuticis et eorum conductoribus;
C.11,58; De censibus et censitoribus et peraequatoribus et inspectoribus,7,2),

1734 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 30, rubr. ns. 3 e 4, p.330.
1735 Cf. Ordenações da fazenda, de 17.10.1516, em José Roberto Monteiro de Campos Coelho e
Sousa (org.), Systema […], cit.; António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 116, 214.
1736 V. Ord. fil.2, 17; Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 33, rubr. cap. 4,

ns.12 e 13; ns. 241 ss..


1737 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 26, n. 7.

1738 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 33, rubr. cap. 5, n. 17..

1739 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9, ad 2, 33, rubr, ns. 234 a 239. As

razões eram que o rei (neste caso, por meio de um colono seu) não devia pagar impostos a si mesmo e
de que uma coisa não devia pagar dois tributos (tal como acontecia na sisa, que não era paga pelas
vendas de coisas do rei), embora pudesse pagar duas prestações privadas.

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aparecera na época medieval e estava regulamentada com detalhe nas Ordenações


(Ord. fil. 4,43), na sequência de uma lei de 28.5.13751740.
§ 1153. Podiam ser objeto de concessão em sesmaria quaisquer terras incultas,
quer aquelas que nunca tivessem sido apropriadas e permanecessem desertas, e
vagas para o rei (Ord. fil. 2,26,171741), quer as que os donos mantivessem
improdutivas por mais de um ano, sem uma justa causa; já que a lei pretendia, não
apenas promover novos arroteamentos, como impedir o abandono de terras já
cultivadas.
§ 1154. Só podiam ser dados em sesmaria os terrenos desertos que
pertencessem ao príncipe por direito comum, nomeadamente se ele lhes tinha
imposto um tributo em sinal da sua superioridade como rei1742.
§ 1155. As terras vagas eram reais, como real era a prerrogativa de tirar as
incultas aos seus donos por causa da utilidade pública. Tal prerrogativa apenas era
delegável por expressa doação ou comissão. Daí que os senhores das terras e os
mestres das ordens não se pudessem apropriar das terras, devendo antes dá-las em
sesmaria, e sem qualquer pensão1743. Nas terras das Ordens militares, as sesmarias
eram do rei, enquanto rei, e não enquanto mestre da Ordem 1744. Por isso, as
sesmarias não podiam ser dadas por priores ou comendadores, em enfiteuse (isto é,
contra pensão ou cânon) (Ord. fil.4,43,15), como alguns defenderiam, muito
erradamente1745. Muito menos se podiam dar em sesmaria terras que pertencessem
aos povos dos concelhos, para seus pastos e criações1746. Jorge de Cabedo refere
expressamente (loc. cit.) o caso da província do Brasil, que pertencia à ordem de
Cristo, em que as terras seriam dadas em sesmaria pelos capitães, sem pensão, por
carta passada em nome do rei e com uma dízima que pertencia ao rei como Mestre
da Ordem de Cristo. Também aí as terras vagas não podiam ser dadas em enfiteuse
pelos vereadores dos concelhos, pois não eram bens próprios desses concelhos,
mas públicos de todos os cidadãos e vizinhos, só podendo ser dados em sesmaria
(ou seja, sem pensão).

1740
Arq. Hist. Mun. Coimbra /Pergaminhos Avulsos, nº 29. [fl. 1] V. https://www.cm-
coimbra.pt/index.php?option=com_docman; http://www.silb.cchla.ufrn.br/downloads/tabelmon.pdf.
Fontes doutrinais: Mauro Luís de Lima, Commentaria ad Ordinationes Regni Portugalliae, (ex liv. 4, 36 [usque
4, 79, 3]) ad perficiendum operam ab Emmanuel Gonçalves da Silva, I (e único), Olisipone, Francisco Luis
Ameno, 1761; Álvaro Valasco, Tractatus de iure emphyteutico […], cit., qu. 8, ns. 34 ss.; Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., 2 p. dec. 112, n. 4; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit, 1, 7, 3 e 4; 3, 1,
8; Historia […], § 61.Manuel de Almeida e Sous (Lobão), Notas […] a Melo […], cit., 1, ad 1, 7, 3 e 4,
p. 231; 3, ad 3, 1, 8 p. 63;
1741 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, pr. ns. 3 a 5.

1742 Terras tributárias ou fiscais, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112, n. 1;

Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap. 3 a 41). Assim se entende a
observação de Manuel Álvares Pegas de que uma terra jugadeira podia ser dada em sesmaria, caso não
fosse cultivada (“Si terra, ex qua jugata solvenda esset, non colatur, et praemissa notificatione dominus
non parverit, alteri in perpetuum titulo, vulgo sesamria concedi potest”), Comentaria […], cit., tomo 9
ad Ord. fil. 2, 33, gl. 1, cap.5, n. 17.
1743 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112, n. 3, Mauro Luís de Lima, Commentaria

[...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 15, n. 1.


1744 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 15, ns. 3 e 4.

1745 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112, n. 4.

1746 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2 aresto 10.

348
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1156. Em contrapartida, não podiam ser dadas em sesmarias as terras desertas


situadas nos termos dos concelhos que não tivessem sido reservadas expressamente
pelo rei como terras fiscais ou tributárias da coroa, por se presumir serem comuns
dos seus vizinhos, para pastos e outros usos coletivos comuns dos povos de um
concelho, por antiga concessão régia 1747. Cabedo cita um aresto dos finais do séc.
XVI em que este princípio é recebido: “Julgouse em hum feito da Lourinhãa, que
veio por apelação do Almoxarife, que se não podiam dar terras de sesmaria, quando
prejudicavão o geral proveito dos moradores: em Julho de 1598. [...]”; e comenta
“Fallit hoc nisi Princeps tales fundos sibi fecerit vectigales, quia tunc pertinent ad
Principis coronam, seu fiscum”, citando o texto das Ord. man. [4,67,8]
correspondente a Ord. fil. 4,43,12 - "que não forão coutados, nem reservados pelos
Reys que ante nós forão"1748.
§ 1157. A lei previa, porém, que também se pudessem dar em sesmaria terras
dos concelhos, ouvido o procurador do concelho e os vereadores, se da concessão
não resultasse prejuízo atendível para os pastos e outros cómodos dos vizinhos 1749.
§ 1158. Esta questão de saber se os terrenos incultos nos termos dos concelhos,
eram do rei ou dos povos era crítica. No território do reino, integralmente dividido
em concelhos, a presunção era a de que os terrenos incultos eram comuns. Isto terá
levado ao desuso da figura das sesmarias, pois estas só continuariam a ter lugar ou
em terrenos averiguadamente do rei (terras tributárias ou foreiras da coroa, que a
esta pagassem algum tributo agrário, como jugadas, ou um foro enfitêutico ou
censítico) ou relativamente a terrenos particulares, vagos por incúria dos donos.
Mas no Brasil, de muitas terras vagas e com limites indefinidos, a regra parecia ser a
da natureza real das terras ermas, exceto no caso em que pertencessem a termos
concelhios bem determinados.
§ 1159. Quanto às terras incultas de propriedade particular também não se
davam em sesmaria, pois se entendia que cabia ao dono decidir se as terras
deveriam ser cultivadas ou ficar em pousio, servindo para usos complementares de
outras leiras cultivadas (rotação de culturas, pasto do gado, matos para estrume ou
camas dos animais)1750. Para além disso, os proprietários tinham direito a manter
pousios os terrenos ermos contíguos às suas propriedade (as chamadas “saídas) 1751.
§ 1160. Os bens abandonados vinculados a morgados ou capelas não se davam
em sesmaria, pois isso importaria a sua alienação; mas obrigava-se os

1747 Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil. 4, 43, pr. n.6; Idem. ad Ord. fil. 4, 43, 9,

n. 5; Idem, ad Ord. fil.4, 43, 12, n. 1; abona-se em Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 112
(“De agris desertis”), ns. 2 e 3; Idem. p. 1, aresto 46; Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […],
cit., qu 8, n. 38 a 42; Francisco de Caldas Pereira e Castro, Analyticus commentarius sive ad typum instrumenti
emptionis […], cit., cap. 21, n. 6). Ord. fil.4, 43, 12, Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., Ord.
fil.4, 43, 12, ns. 2 a 4. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit..
1748 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p.1, ar. 46.

1749 V. Ord. fil.4, 43, 9; Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., liv. 3, cap.

43, n. 90; Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 9, ns. 1 e 2; Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., p. 1, aresto 46. Aos vizinhos competia uma ação de dano contra os concessionários,
Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 12, n. 2.
1750 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 11, ns. 1 a 4: cada é um

árbitro das suas coisas, desde que disponha delas de acordo com as leis e os bons costumes; sobre
tentativas de fraude à lei, Ord. fil.4, 43, 8.
1751 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 15, n. 6.

349
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administradores a cultivá-los, o mesmo acontecendo nos bens administrados por


tutores1752.
§ 1161. Os almoxarifes ou os sesmeiros por estes nomeados 1753 citavam os
donos (nominalmente ou em pregão, no caso de desconhecidos) para apresentarem
uma justificação da falta de cultivo durante pelo menos um ano 1754. Na falta de
justificação, para além da imposição de uma pena arbitrária medida pela culpa de
não cultivar1755, a terra (ou a parte dela não cultivada) era concedida por períodos
de cinco anos, ou menos, de acordo com a qualidade da terra 1756. Se o dono
apresentasse justificação para a falta de cultivo, esta era atuada pelo notário e
registada no título de concessão, para memória futura 1757. O conhecimento de
reclamações quanto à concessão cabia aos almoxarifes, se as terras fossem
enfitêuticas ou tributárias à coroa; ou, se as terras eram isentas, ao juiz ordinário do
lugar da contenda acerca da sesmaria1758.
§ 1162. As sesmarias concediam-se sem qualquer pensão adicional: se eram
terras fiscalmente isentas, continuavam como tal; se fossem tributárias, não se lhes
impunha outro tributo (Ord. fil.4,43,13). A lei era explícita e rigorosa, não admitindo
a relevância de costume em contrário, mesmo imemorial. Todavia, Amaro Luís de
Lima lembra, no comentário, que o costume imemorial era o melhor título do
mundo1759, abrindo para o reconhecimento de antigas práticas de conceder
sesmarias contra pensões suplementares.
§ 1163. No Brasil, as sesmarias têm um florescimento, a partir de 1530, ano em
que Martim Afonso de Sousa, capitão mor e governador, recebe o encargo de dar
terras em sesmaria. O regime das sesmarias brasileiras tem umas quantas
especificidades, umas terminológicas (como o uso da palavra sesmeiro para o
concessionário da sesmaria), outras de regime, como o estabelecimento de um foro,
a partir de 1695 (Carta Régia de 27.12.1695; antes pagavam apenas o dízimo ao rei,
v. alv. 8.12.1590), pelo menos para certas zonas; ou a confirmação real da carta de
concessão, passados três anos (a partir de 1698); ou, ainda, o estabelecimento de
limites espaciais às concessões (a partir de 1697)1760.

1752 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 6, ns. 1 e 2; lembra Ord. fil.1,

62, 50 sobre a remoção de tutores faltosos.


1753 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, pr. n. 2.

1754 A falta de citação originava a nulidade do processo subsequente (Mauro Luís de Lima,

Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 1, ns. 1 a 3; ad Ord. fil.4, 43, 2).
1755 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., da Ord. fil.4, 43, 4, ns. 4 e 5.

1756 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 3 ns. 1 e 2; ad Ord. fil.4, 43, 4,

ns. 1 e 2.
1757 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 3, n. 3.

1758 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 5, n. 3.

1759 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad 13, n. 4.

1760 Bibl.: Erivaldo Fagundes Neves, "Sesmarias em Portugal e no Brasil", Politeia. História e

sociedade, 1.1(2001) 111-139; Marcia Mota, Nas fronteiras do poder. Conflitos de terras e direito agrário no Brasil
de meados do séc. XIX, Rio de Janeiro, Vício de Leitura, 1998; Laura Beck Varela, Das Sesmarias à
Propriedade Moderna, Rio de Janeiro: Renovar, 2005; Carmen Alveal, Converting Land into Property in the
Portuguese Atlantic World, 16th-18th Century. Tese (Doutoramento em História) – Johns Hopkins
University, 2007; Rafael Chambouleyron e Karl-Heinz Arenz, Anais do IV Encontro Internacional de
História Colonial. Vol. 2. Terra e império: os direitos de propriedade na América portuguesa em perspectiva comparada,
Belém, Açaí, 2014. Projeto de publicação de cartas de sesmaria:

350
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

4.2.3 Comuns de todos.


§ 1164. Aos bens comuns de todos – como o ar ou o alto mar – já antes nos
referimos ao tratar dos bens públicos.
4.2.4 De uma universidade.
§ 1165. Os bens comuns eram os que estivessem apropriados coletivamente
por uma comunidade e destinados a um uso comum. Em rigor, o seu estatuto
assemelhava-se ao dos bens em compropriedade, que pertenciam a mais do que
uma pessoa, como os bens dos sócios, os bens comuns dos cônjuges ou os bens
que tivessem ficado indivisos entre os herdeiros. A diferença era a de que os bens
comuns tinham esse estatuto como que por natureza, por estarem vinculados aos
interesses de uma comunidade natural, como um município ou uma corporação.
§ 1166. Para este efeito, uma universidade era um conjunto de várias pessoas,
designado por um nome especialmente atribuído (como um conjunto de cidadãos,
de estudantes e professores, de moleiros, de alfaiates ou de outros artífices). Esta
entidade coletiva podia ser proprietária de coisas em comum, como matas, pastos,
rendas ou somas de dinheiro guardadas em arca comum, que então se diziam bens
da universidade, pois não pertenciam a cada um dos membros individualmente,
mas a todos em conjunto, pois estavam destinadas conjuntamente aos usos de
todos1761. Como este uso coletivo das coisas não tinha tido origem numa
deliberação, mas decorria da própria existência dessa comunidade, estas coisas
estavam naturalmente votadas ao uso daqueles que fizessem parte dela não
podendo, por isso, ser apropriadas individualmente por nenhum dos membros,
embora pudessem ser usadas por cada um1762. Por isso, aquilo que pertencia à
universidade não era dos particulares, sendo também certo que esta separação
patrimonial entre a universidade e os seus membros também valia para as
dívidas1763.
§ 1167. A respublica também era uma universidade, com a particularidade de
compreender a totalidade das pessoas de uma certa circunscrição territorial. Neste
sentido, as coisas destinadas à utilidade comum dos cidadãos eram comuns a todos
eles, merecendo a classificação de coisas comuns públicas e não podendo ser
cedidas a usos particulares incompatíveis com o uso público1764. Em sentido estrito,
respublica era só a cidade de Roma ou aquela onde vivesse o imperador ou um rei ou

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/demarcacao-de-territorio.
1761 “Universitas collectio plurium hominum, uno nomine specialiter eis deputato, ut est
universitas civiumn, vel scholarum … collegium pistorium, sartorum et aliorum artificium, qui possunt
habere res communes, nemora, pascua, piscinas, salinas, vectigalia, et aliam item pecuniam in aerario
seu arcam communem, et hae dicuntur res universitatis, quae non sunt singulorum separatim, sed
omnium et universirum de universitate usibus & conjunctim destinatae”, Joannis Oynotomi, In quatuor
institutionum [...], cit., ad 2, 1, 6, n. 1.
1762 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 6, n. 2.

1763 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 6, n. 3. Se a universidade fosse

condenada e não tivesse bens, era obrigada a lançar uma coleta sobre os seus membros, ibid. n. 4. Por
outro lado, a coletividade não ficava obrigada por dívida contraída pelo seu administrador a não ser que
tivesse atribuído um especial mandato para tal ao administrador ou que a soma mutuada fosse gasta em
utilidade comum, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, nº 39.
1764 As coisas deputadas para uso da república não podiam ser vendidas, doadas ou obrigadas, sob

pena de nulidade nullius momenti, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 40.

351
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autoridade que não reconhecesse superior. Neste sentido estrito, as cidades e os


burgos que reconhecessem superior tinham uma natureza privada. Porém, em
sentido lato, respublica aplicava-se a qualquer cidade em que houvesse jurisdição
ordinária, ou seja, juízes próprios e seus oficias, fossem eles instituídos pelo rei ou
pelo povo1765. E, por isso, os bens dos concelhos eram assimilados a bens públicos,
votados aos usos comuns aos vizinhos.
§ 1168. No plano patrimonial, as universidades eram consideradas como
menores, devendo os seus atos de disposição de bens serem confirmados pelo rei,
como seu protetor, e gozando do privilégio de poderem pedir uma restitutio in
integrum (v. cap. 7.1.3.4) no caso de serem lesadas1766.
§ 1169. Em Portugal, entre os bens comuns, neste sentido, avultam os bens dos
concelhos1767, terras apropriadas coletivamente por estes e que nos forais aparecem
designados por "baldios", "matos maninhos", pauis, "pegos" 1768. Sobre elas
impendia um direito coletivo de uso, traduzido no direito de apanhar lenha, de
caçar e pescar, de trazer gados a pastar. No entanto, desde os tempos mais
recuados que este direito das comunidades estava sujeito a usurpações: ou por parte
do senhor da terra (eventualmente também das oligarquias municipais), que se
apropriava destas terras e as dava de arrendamento ou de foro a cultivadores
individuais, ou dos próprios concelhos, que os aforavam a particulares para obter
receitas ("rendas do verde", que englobavam também as rendas de pastagem pagas
pelos criadores de fora do concelho que tivessem neste o seus gados a pastar) ou
pura e simplesmente os distribuíam pelos notáveis da governança. Mesmo sobre a
propriedade individual alodial impendia um direito coletivo aos pastos, do qual
apenas estava isenta a propriedade coutada, pelos funcionários concelhios ou reais
("couteiros", "juízes das coutadas"), a favor do proprietário.
§ 1170. Dos concelhos podiam ainda ser edifícios ou lugares de uso comum,
como paços ou casas, passais, terreiros ou logradouros, açougues, celeiros, cuja
propriedade era da universidade, o uso porém de todos, não podendo ser, por isso

1765 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 36.


1766 C.11.30.3, “Imperator Alexander Severus. Rem publicam ut pupillam extra ordinem iuvari
moris est”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, nº 37 e 38. O mesmo acontecia
com o fisco real (“Nota quod Rex, & fiscus funguntur jure minoris, & restituuntur”, António Cardoso
do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, add. (ed. 1740, p. 380.)
1767 O surgir dos concelhos deu origem ao aparecimento de novas formas de apropriação do solo

ou, pelo menos, deu uma nova forma jurídica a antiquíssimos modelos sociais de utilização da terra. A
primeira categoria de terras dentro dos alfozes concelhio é a das terras atribuídas a título individual,
perpétuo e hereditário aos seus habitantes, mediante certas contraprestações contidas no foral. Eram
terras de propriedade alodial sujeitas apenas a ónus tributários (terrae de ius privatum salvo canone). Outra
categoria era a das terras pertencentes à coroa e que esta tinha reservado para si depois da constituição
do concelho. Eram os reguengos do concelho, sujeitos aos regimes dos reguengos em geral, e cujos
moradores gozavam de determinados privilégios em relação aos deveres dos vizinhos para com o
concelho (Ord. fil.2, 30 e 31). Cf. António Manuel Hespanha, História das instituições […], cit., 137.
1768 Sobre as modalidades sociais, políticas e jurídicas da gestão dos bens comuns dos concelhos,

v. Laureano M. Rubio Perez, “El regimen comunal y la gestión del común en el noroeste de la Peninsula
Iberica, siglos XV-XIX” em http://congresonoroiberico.com/documentos/20121105%20-
%20LAUREANO%20M.%20RUBIO%20-%20ponencia.pdf.; María José Pérez Álvarez & Laureano M.
Rubio Pérez, “Familia y comunidad rural. Modelos agrarios, colectivismo social y comportamientos
familiares en la provincia de León durante la edad moderna”, em
http://revistas.usal.es/index.php/Studia_Historica/article/view/shhmo201436177222

352
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

concedidos (ou aforados) a particulares, sem licença do rei1769.


4.2.5 Coisas de ninguém.
§ 1171. Coisas havia que não eram de ninguém (res nullius)1770. Algumas, eram
de ninguém por natureza, como os animais selvagens – terrestres, peixes ou aves -,
cuja propriedade era, por isso, atribuída ao primeiro ocupante. Outras, eram-no por
facto humano, como as coisas abandonadas pelos seus donos (derelictae a domino)1771;
o abandono das coisas pelo seu dono não se presumia1772. Na dúvida, as coisas
presumiam-se de alguém1773. Uma vez que a propriedade não dependia da Graça, as
coisas dos infiéis não eram res nullius, nem podiam ser ocupadas. Porém, as coisas
que já tinham sido de cristãos e que lhes tinham sido usurpadas pela força,
tornavam-se de quem as reconquistasse, em domínio pleno, podendo ser guardadas
pelo conquistador ou atribuídas por ele a outrem 1774. Este regime não era senão a
aplicação do princípio geral de que os bens tomados (praeda) (em guerra justa) ao
inimigo ficavam a pertencer ao general vencedor 1775. O facto de a guerra se destinar
a recuperar coisas injustamente esbulhadas apenas a justificava (a tornava justa).
4.2.6 Coisas particulares.
§ 1172. As coisas que não eram sacras, públicas, de universidades ou de
ninguém, eram particulares. Esta era a situação comum das coisas e, por isso, era o
que se presumia que elas fossem. Trataremos dos poderes que os particulares
podiam ter sobre as coisas ao descrever os diversos direitos que sobre elas podiam
incidir.
§ 1173. Por vezes, os juristas consideravam como pertencendo a uma categoria
diferente aquelas coisas que, sendo particulares, não eram plenamente de ninguém,
por ninguém poder dispor dos direitos sobre elas. Isto acontecia nas coisas de tal
modo comuns que nenhum dos sócios podia dispor delas por si só, necessitando da
cooperação ou consentimento de outrem. Este tipo de direito coletivo sobre coisas
não era caraterístico da tradição romanística, mas é conhecido no direito comum

1769 V. Ord. fil.4, 43, 12 e 15; 1, 66, 17. Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 112; p.
1, ar. 46.
1770 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., 2, 1, 7.
1771 O abandono de uma coisa (derelictio) supunha não apenas um ato físico – de largar o bem, de
deixcar de o usar (abjectio) - mas ainda a intenção de abandonar (o animus derelinquendi). Os exemplos mais
comuns eram o abandono de animais ou o lançamento ao mar da carga de um navio, para o salvar (cf.
D.14, 2 14.2. De lege Rodia [Rhodia] de iactu). Se faltava a intenção de abandonar, como no caso de uma
coisa perdida, a propriedade não se extinguia, devendo o achador entregar a coisa ao dono, se
soubesse de quem era, ou anunciar publicamente (por pregão ou comunicação às autoridades) o achado.
Se o dono não aparecesse, a coisa devia ser entregue aos pobres e não apropriada pelo achador (salvo se
este mesmo fosse pobre, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 20). Além disso,
o achador não podia usucapir a coisa (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 19),
nem sequer pedir alvíssaras pela sua entrega ao dono (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Res”, n. 22).
1772 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 21.

1773 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 7, n. 3.

1774 “Regnum quod detinetur a faucibus Turcarum, Maurorum, aut quorumcumque infidelium,

potest a quocumque recuperari; & optimum, & justum bellum est illud, quod movetur contra infideles,
& inimicos nostrae fidei Catholicae, & quicumque redemerit, aut recuperaverit, consequetur plenum
dominium illius […]” António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.v. “Rex”, 18.
1775 Inst. Gaii, 2, 69.

353
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por corresponder aos patrimónios em mão comum, de origem germânica


(Gesamthandsgemeinschaft)1776. Mas também existia naquelas coisas sobre as quais os
direitos estavam suspensas, como acontecia com as coisas hereditárias e as coisas
litigiosas. Nas coisas hereditárias, os virtuais direitos de herdeiros e legatários
estavam suspensos até à adjudicação da herança (addictio hereditatis)1777 (v. cap.
5.2.12). No caso da coisa litigiosa, a sua transação estava suspensa lite pendente, ou
seja, desde a litis contestatio até à decisão da causa1778 (v. cap. 7.1.9.3).
4.2.7 Outras divisões da coisas. Coisas corpóreas e incorpóreas, móveis
ou imóveis.
§ 1174. Além disso, as coisas podiam ser corpóreas e incorpóreas, móveis, ou
imóveis. As coisas corpóreas eram as que tinham uma entidade física, as
incorpóreas, as que careciam disso, como os direitos. As coisas de sua natureza
imóveis ou estáveis eram as que não podiam ser movidas, como os prédios, as que
só muito dificilmente o podiam ser, como lagares e cubas, mas também certos
direitos de grande permanência, como as rendas anuais, as pensões, e os
arrendamentos por longo tempo, isto é, por dez anos 1779. Uma outra distinção
separava as coisas genéricas das coisas em espécie, estas últimas determinando-se,
não por uma individualidade, mas por peso, conta ou medida. A consequência mais
importante da distinção era a de que a obrigação que tivesse como objeto uma coisa
específica se tornava nula pelo desaparecimento da coisa, enquanto que a que
incidisse sobre um género podia sempre ser cumprida por equivalente (genus
nunquam perit).
4.3 Os direitos sobre as coisas.
§ 1175. Havia vários tipos de direitos sobre as coisas (iura in re)1780: a posse
(possessio), o domínio (dominium), vários outros direitos sobre prédios, o penhor
(pignus) e a hipoteca (hypotheca) (v. cap. 6.9.2.3.2).
4.3.1 A posse.
§ 1176. Um conhecido dicionário jurídico seiscentista 1781 define posse da
seguinte forma: “A posse é aquele direito pelo qual alguém tem um verdadeiro

1776 Distinguia-se da compropriedade porque nesta cada um podia dispor da sua parte, embora não
do todo.
1777 Salvo para pagamento de dívidas da herança, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.

v. “Res”, n. 17. Em Portugal, a carta de Lei de 9 de Setembro de 1769, § 1, distinguiu entre bens
hereditários e adquiridos, identificando os primeiros com bens de família que não podiam ser deixados a
estranhos havendo familiares até ao 4º grau de direito canónico, embora não definisse uns e outros.
Essa lei foi revogada por D. de 17.7.1778 (cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 1, 10).
1778 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, ns. 7 a 10.

1779 Ord. fil.3, 47, pr. e liv. 4, 48, 8.

1780 Que se distinguiam dos direitos às coisas (iura ad rem), que consistiam em obrigações de uma

pessoa em relação a outra referente a coisas. Sobre esta sistematização, Arnold Vinius, In quattor libros
Institutionum […], cit., 2, 1, 11, 1.
1781 “Possessio est ius quoddam, quo aliquis rem corporalem vere in potestate habet, et dicitur

corporalis rei detentio a pedum positione, quoniam sola corporalia possidentur, incorporalia vero non
possidentur, sed quasi, et quasi traduntur per potentiam, & usum; incorporalia enim non possunt
corporaliter aprhendi, sicut sunt iura et servitutes, & ideo non possidentur”, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.1.

354
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

poder sobre uma coisa corpórea, designando a detenção da coisa corpórea a partir
de imposição dos pés”1782. O autor segue explicando, com base em textos
medievais, sobretudo canonistas, que as coisas incorporais – como os direitos e as
servidões -, por não poderem ser apreendidas fisicamente, não podiam ser objeto
de posse, mas apenas de como que de uma posse (quasi possessio). Esta vinculação
materialista da posse – que caracterizaria também os direitos germânicos –
contrastava com a extensão do conceito a essas situações de detenção de coisas
imateriais desprovidas de uma entidade corporal.
§ 1177. A compatibilização entre o lado material da posse, a sua ligação a uma
situação de poder de facto sobre um corpo, e o seu lado desmaterializado, que
autorizava a falar de quase que uma detenção de um direito, faziam-na os juristas ao
distinguir a posse natural e a posse civil, na esteira de um texto do Código de
Justiniano1783. Dando-lhe, porém, uma pequena volta. A posse natural não seria a
posse sobre coisas materiais, mas a posse que se traduzia em atos materiais,
externos, de uso (corpus possessionis). Enquanto que a posse civil não seria a que se
exercia sobre coisas imateriais, mas antes aquela que se traduzia numa disposição
puramente interna, a intenção de possuir a coisa para si mesmo ou em nome
próprio (animus possidendi), a qual produzia efeitos também imateriais de direito,
ligados a uma intenção de deter1784. Ambas podiam coexistir. Mas podia ocorrer
que se distribuíssem por titulares diferentes. O exemplo típico era o da enfiteuse
(da enfeudação, do usufruto), em que o senhor direto detinha a posse civil da coisa,
sem qualquer tradução fáctica (por isso, falava-se da nua propriedade), e o enfiteuta
(colono, feudatário, usufrutuário) detinha os poderes palpáveis de usar a coisa, a sua
posse útil1785.
§ 1178. A distinção, cuja construção foi laboriosa, tinha alguns pontos fracos.
Um deles era que algum conteúdo interno era necessário para distinguir a posse da
mera detenção de uma coisa, como a do arrendatário, do depositário, do guarda. É
que estes, satisfazendo o aspeto externo da situação de posse, não tinham a
intenção interna de possuir em nome próprio, agindo como possuidores em nome
alheio, simples detentores1786. E, por isso, a sua detenção material da coisa – a mera
detenção - não se considerava como posse nem conduzia a nenhuma das
consequências desta (nomeadamente, usucapião, proteção judicial por remédios
possessórios).
§ 1179. Esta distinção refletia-se nas formas de adquirir e de perder a posse. A
posse natural adquiria-se por atos humanos externos relativamente a uma coisa:
usá-la (abrir e fechar as suas portas, deter as suas chaves, cultivá-la), exercer os
direitos correspondentes (receber os proventos de uma coisa, de um direito ou de
um cargo), exibir por atos externos uma qualidade (v.g. a de filho, a de nobre). E
perdia-se ou pelo abandono da coisa possuída ou pelo consentimento de atos

1782 D.41.2 De adquirenda vel amittenda possessione, 1: Paulus libro 54 ad edictum.”Pr. Possessio

appellata est, ut et Labeo ait, a sedibus/pedibus (?) quasi positio, quia naturaliter tenetur ab eo qui ei
insistit, quam Graeci katoxyn dicunt”.
1783 7.32.10. “Imperator Constantinus. Nemo ambigit possessionis duplicem esse rationem, aliam quae

iure consistit […]”.


1784 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.3 s..

1785 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, ns. 4-5.

1786 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n. 39.

355
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externos de uso exercidos por outros e incompatíveis com o próprio uso 1787. Ou
seja, tudo se passava no plano dos comportamentos fácticos. Já a posse civil,
consistindo apenas numa intenção e num efeito de direito correspondente, embora
exigisse um ato inicial que exprimisse a intenção de possuir (animus possidendi)1788,
não precisava de outros factos externos subsequentes, extinguindo-se quando
desaparecesse a tal intenção de possuir 1789. Porém, o fim da posse civil podia
também ser traduzida por um ato expresso de renúncia ou transferência da
posse1790. Tal era o caso de um contrato de cedência da posse, como a venda, a
troca, a doação ou o constituto possessorio, cláusula (ou pacto) pelo qual se
convencionava que a posse da coisa vendida mudasse de natureza por mero efeito
do contrato (v.g. de posse em nome próprio a mera detenção em nome de outrem)
independentemente de um ato material de transferência 1791. De qualquer modo,
tudo (quase tudo, fora o ato inicial de manifestação do animus possidendi) se passava
no plano do direito.
§ 1180. Outra consequência da distinção entre posse natural e civil era que,
sendo a posse natural uma situação de facto, podia ser adquirida por incapazes de
atos jurídicos a favor daqueles que fossem a sua cabeça, em termos de direito (os
filhos, mesmo se crianças, em relação ao pater; os escravos, em relação aos donos).
A aquisição da posse civil já era mais exigente, pois baseava-se numa intenção
reconhecida como válida pelo direito e, por isso, não podia ser protagonizada por
incapazes1792. Podia, porém, ser adquirida por pessoa diferente do possuidor, nos
casos em que alguém atuava em nome e a favor de outrem (como o procurador, o
gestor de negócios, o amigo, o colono ou o inquilino) 1793.
§ 1181. Também se relacionava com o peso da ideia de que a posse consistia
em atos materiais a tese de que a posse do defunto não se transmitia aos herdeiros,
ao contrário do que acontecia com o domínio. Isto porque o domínio era um
direito, que sobrevivia à morte do seu titular, enquanto que a posse seria uma
situação de detenção de facto, exigindo apreensão e exercício atual, que terminava
com a morte do titular1794. Apesar desta tese não ser unânime1795, ainda nos finais

1787 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.11.


1788 Por exemplo, um contrato de compra e venda, que provava tanto a intenção do vendedor de
abandonar a posse da coisa, como a do adquirente, de entrar nela. Se a compra e venda contivesse uma
cláusula de constituto possessorio, este documentava a intenção de alterar a natureza da posse (de posse em
nome alheio para posse em nome próprio, ou o contrário).
1789 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.10. Mas não se perdia pela

simples passagem do tempo sem uso externo, pois este não era exigido para este tipo de posse, nem
implicava o desaparecimento da intenção de possuir, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Possessio”, n.11.
1790 Tal como a posse natural, a posse civil extinguia-se pelo perecimento da coisa ou de
desapropriação por decisão do príncipe, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 2, 7.
1791 Por exemplo, venda de uma coisa, com sua retenção pelo vendedor, mas agora como

arrendatário; ou compra de uma coisa pelo locatário, que assim passava a possuidor em nome próprio.
Cf. um caso em Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 106, per totam.
1792 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, ns. 8-9.

1793 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n. 6.

1794 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 13; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis

[...], cit., 3, 2, 6.
1795 A Glosa estabelecia a transmissão da posse aos filhos, António Cardoso do Amaral, Liber [...],

356
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

do séc. XVI é a defendida por Álvaro Valasco numa consulta expressamente


dedicada ao assunto. O tema da consulta era intrincado, pois comportava várias
questões. Fora feita uma doação de bens da coroa a um certo conde, com dispensa
da Lei mental para que as filhas sucedessem na falta de filhos. O donatário morrera
sem filhos, sucedendo-lhe uma filha, a qual renunciara em vida no filho
primogénito, morto ainda em vida da mãe, mas que tinha um filho, que entrou em
posse da herança, tendo esta sido disputada pelo irmão secundogénito do pai. O
neto pretendeu defender a posse da herança, mesmo antes de ser decidida a questão
dos seus direitos à herança1796 e, nesse âmbito, levantou-se a questão de saber se ele
era possuidor e se, por isso, podia recorrer aos remédios possessórios (de que
trataremos adiante, v. cap. 7.1.3.4). O neto alegava que sim, pois ele seria a mesma
pessoa do pai e gozaria da mesma situação jurídica dele, como defendia a Glosa 1797.
Valasco não concordava1798, sobretudo por uma razão que se relacionava com a
natureza material da posse: só por um artifício do direito civil – diz – se entende
que pai e filho são a mesma pessoa … o filho parte do corpo ou carne do pai
(“pater & filius censetur una & eadem [persona] […] [filius] censetur portio
corporis paterni […] caro patris”)1799. Porém esta posse “civilíssima” (isto é,
artificialíssima) seria “imaginária e desprovida de factos externos (effectus)” e
insuficiente para que o filho pudesse usar de remédios possessórios sem qualquer
ato real de posse”1800. A regra da identidade entre pais e filhos valia, mas só quanto
àquilo que fossem efeitos de direito, mas não já quanto àquilo que decorresse
necessariamente de factos, como a posse natural 1801. Para além de que não haveria
qualquer base textual que consagrasse a continuidade da posse nos filhos 1802.
Diferente desta era a questão da posse do estado de parentesco, que se podia herdar
de um parente, pois os parentes de parentes eram parentes entre si 1803
§ 1182. A possessio ou a quasi possessio protegiam uma gama muito vasta de
situações em que o direito não protegia mais do que a manutenção do estado atual
das coisas, sem cuidar – para já – dos seus fundamentos. Neste sentido, a proteção
da paz, mais até do que a proteção da justiça, era o objetivo predominante. Para
evitar rixas, mantinha-se tudo como estava, até que os fundamentos da situação

cit., s. v. “Possessio”, n.16; mas não, em geral, aos herdeiros (v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
cons. 126, 2 a 4). Em sentido contrário, para além de Valasco, Melchior Febo, Decisiones […], dec.
118, n. 18.
1796 Neste ponto, a questão era a da preferência dos filhos de filhos (direito de representação) aos

irmãos, questão muito debatida na vigência da Lei mental (v. cap. 5.4.6) e só decidida, pela concessão
do direito de representação, no reinado de D. João IV (cortes de 1641), cf. António Manuel Hespanha,
As vésperas […], cit., 405.
1797 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 1.

1798 Porém, Valasco achava que a posse do marido aproveitava à mulher que vivesse com ele,

Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 180, n. 5. Mas aqui o argumento era o da comunhão do casal.
1799 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 4.

1800 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 10.

1801 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 12.

1802 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 126, n. 11; ao contrário do que acontecia em

Castela para os morgadios (Lei de Toro, 45). No direito feudal, a posse do feudatário não se continuava
nos filhos (“Possessio in feudis existens in patre non continuatur in filio”, Álvaro Valasco, Decisiones
[...], cit., cons. 126, n. 14).
1803 “Quasi possessio consanguinitatis ad omnes descendentes transit”, Gabriel Pereira de Castro,

Decisiones […], cit., dec. 25, n. 12.

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atual pudessem ser averiguados mais detidamente. Os direitos do possuidor atual


eram assumidos enquanto correspondentes a uma situação de facto, não enquanto
correspondentes a um direito bem fundado. E impedia-se qualquer perturbação que
pusesse em causa o equilíbrio existente. A doutrina relacionava esta garantia da
posse com a garantia da paz, que constituía uma das missões mais importantes dos
magistrados da república. Por isso, ninguém – nem o possuidor injusto ou o
simples detentor - podia espoliar outrem da sua posse, por alta recreação, sob pena
de ser castigado por isso (para além de perder a coisa espoliada) 1804; ninguém podia
ser desapossado das suas coisas sem ser ouvido 1805; e, mesmo a apropriação por
mandato judicial da coisa cuja posse fosse controversa, depositando-a nas mãos de
um depositário (sequestro), era uma medida excecional, que só podia ser decretada se
houvesse perigo sério de rixa1806.
§ 1183. Para que o possuidor merecesse proteção bastava-lhe provar poucas
coisas: que a sua posse se verificava, que correspondia a uma situação pública e
pacífica e que alguém a tinha perturbado ou ameaçava fazê-lo.
§ 1184. A prova da posse consistia em demonstrar que o possuidor, publica e
pacificamente, exercia os direitos sobre a coisa – se se tratasse de uma coisa
corpórea (habitar, cultivar, utilizar) - ou gozava do estatuto que ela proporcionava -
se se tratasse de uma coisa incorpórea, como um estatuto (por exemplo, ser filho,
ser familiar, ser vizinho, ser cristão velho, ser nobre, estar isento de certo imposto,
ser titular de uma servidão predial1807). A prova referia-se, basicamente, ao estado
atual, e não às suas causas ou origens; a atualidade da posse supria a maior parte
dos seus defeitos e atribuía ao possuidor uma preferência sobre todos os outros 1808
quanto a essa posse 1809, obrigando quem a quisesse contestar a discutir, não a sua
existência fáctica, mas também o seu fundamento ou título (ao passo que o
possuidor, para defender a sua posse, não tinha que se meter nesta questão) 1810.
Referindo-se ao momento atual, a alegação da posse pelo possuidor dispensava a
prova da sua antiguidade ou prescrição. Assim, bastava provar o recebimento de
uma prestação de uma renda, de um salário de um ofício ou benefício para provar
que se estava na posse desse direito ou estatuto 1811. Só a discussão da sua

1804 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 11 a 15.
1805 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 16 e 17.
1806 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 35 ss..

1807 O caso mais nítido de uma servidão que se exercia sem a prática de qualquer ato era o das

servidões prediais negativas, em que o direito era o de que o dono do prédio serviente se abstivesse de
certos usos (não construir mais alto, altius non tollendo; suportar as águas pluviais do prédio dominante;
não abrir janelas ou frestas sobre este) (v. cap. 4.3.7).
1808 “In pari causa potior est condtio possidentis”, Jorge Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, dec.

121.
1809 Por isso, mesmo o possuidor injusto (mas não o violento) tinha que ser ouvido antes de lhe

ser tirada a posse, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.. cons. 191, n. 2 a 4.
1810 Por isso é que ninguém podia por-se na posse de uma coisa por sua exclusiva iniciativa (“sua

authoritate”), tendo sempre que recorrer a um magistrado, invocando melhor direito do que o do
possuidor atual.
1811 Um só ato basta para adquirir a quasi possessio, Jorge Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec.

61; para provar a posse de uma renda anual bastava provar que se tinha recebido uma, Miguel de
Reinoso, Observationes […], cit., obs. 62, ns. 9-10; o direito de apresentar provava-se por uma
apresentação, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 62, 42.

358
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

propriedade é que exigia uma prova mais substancial ou mais constante. Em alguns
casos, como na prova da posse de benefícios eclesiásticos, exigia-se a exibição de
um título com alguma aparência de validade (“título colorido”, titulus coloratus vel
putativus1812). Para além disso, era preciso provar que a posse era pública (e não
escondida, clam), pacífica e em nome próprio. O ser pacífica excluía a posse obtida
por esbulho violento (vi armata), ou mesmo apenas aquela que fosse obtida por
decisão – de um magistrado ou do príncipe – sem que o anterior possuidor fosse
ouvido1813.
§ 1185. O ser em nome próprio excluía, em princípio, os meros detentores 1814.
Mas não faltava quem entendesse que, mesmo estes deviam ser protegidos 1815,
justamente considerando o interesse público na manutenção do que estava
estabelecido.
§ 1186. A predominância do elemento material sobre o elemento intencional
explicava que a intenção de possuir se presumisse 1816.
§ 1187. A posse traduzia um direito de uso de uma coisa ou direito. Nesse
sentido representava um valor patrimonial. No reino, como regra geral, o valor da
posse equivaleria a metade do da propriedade 1817.
§ 1188. Porém, para além de constituir este valor, a posse tinha outros efeitos.
§ 1189. O primeiro era de gerar, em certas circunstâncias, responsabilidade pelo
perecimento ou deterioração da coisa perante o seu proprietário. Era o caso do
possuidor de má fé – i.e. que sabia que a sua posse não era conforme ao direito
(iniusta possessio), conhecendo os vícios de que ela padecia1818 – o qual devia entregar
a coisa intacta ao proprietário, no caso de ele a reclamar, respondendo pela sua
destruição ou deterioração, culposa ou casual 1819, e pelos seus frutos1820, e sendo,

1812 Como era o provimento de um benefício eclesiástico por um superior, como o bispo, mesmo

antes de averiguar de possíveis vícios de forma, de competência ou de fundo desse provimento


(nomeadamente, se não fora feito por erro ou engano, obreptio, subreptio). Em todo o caso, alguns
juristas entendiam que essa aparência não existia se o bispo provia um benefício de provimento pelo
Papa. Eram muito comuns os conflitos entre beneficiários providos pelo ordinário local (bispo) e outros
que tinham obtido em Roma idêntico provimento. Por via de regra, o direito do Reino era hostil a
quem obtinha cartas de Roma (v. Ord. fil. 2, 13 e 15).
1813 O possuidor justo ou injusto (!) não podia ser espoliado sem ser ouvido, Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit.. cons. 191, n. 2 a 4.


1814 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n. 38.

1815 O possuidor atual não podia ser esbulhado da posse, mesmo que fosse um simples detentor,

Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 213 n. 11. Só que devia chamar à demanda em que defendia a
sua posse a pessoa em nome da qual possuía (v. Ord. fil. 3, 45, 10); António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Possessio”, n.39.
1816 “Possidendi voluntas praesumitur im dubio”, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit.,

dec. 24, n. 21.


1817 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 51, n. 47.

1818 Possuidor de boa fé era o que julgava que a coisa era sua, por erro de facto ou de direito; de

má fé o que sabia que ela não o era, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, ns.
28-29. Se a questão da propriedade da coisa fosse levada a juízo, o possuidor tornava-se de mé fé depois
da litis contestatio, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.30.
1819 Respondia pela (sua) culpa nos prejuízos da coisa, mas também pelo caso fortuito, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, ns. 22-23.


1820 Colhidos ou a colher, no caso de nem sequer ter um título de posse, ou apenas pelos frutos

ainda a colher, se acaso o tivesse. Deviam ser deduzidas as despesas feitas, porque a restituição dos
frutos sempre se entendia como autorizando a retenção das despesas, António Cardoso do Amaral,

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em caso de perecimento, obrigado a restituir equivalente ou aquilo que se tivesse


fabricado com ela ou que com ela o possuidor tivesse lucrado 1821 A situação do
possuidor de boa fé - que ignorava os vícios da sua posse – era muito mais
favorável, pois apenas respondia pelos danos que a coisa tivesse sofrido por sua
culpa, além de que não era obrigado a restituí-la em espécie, caso isso não fosse
possível, podendo entregar ao dono um equivalente correspondente àquilo com
que se locupletara pelo facto da posse (nomeadamente, o preço pelo qual a
vendeu1822), deduzidos os gastos feitos com ela1823.
§ 1190. Uma outra consequência da posse era poder conduzir à aquisição da
propriedade pro prescrição, como veremos adiante. Mas também aqui, estava muito
dificultada a usucapião pelo possuidor de má fé, pois só se admitia a prescrição de
tempo longuíssimo acompanhada de negligência do seu dono na reclamação da
coisa1824
§ 1191. A defesa da posse começou por ter em vista mais o interesse de todos
na manutenção do que estava estabelecido do que a proteção da posse de um
particular. Daí que os meios de proteção da posse (os chamados remédios
possessórios) tivessem gozado de uma grande eficácia, quer pelo pouco que havia a
provar para um possuidor se valer deles, quer pela simplificação processual que os
caraterizava.
§ 1192. Na origem (romana), a defesa da posse era assegurada por ordens
(interdicta, proibições)1825 dos magistrados (pretores), no sentido de que fosse
respeitada a posse de quem detinha as coisas, ainda que os possuidores não
tivessem direito a uma reivindicatio, por não serem proprietários segundo o ius civile.
Do que se tratava, não era de proteger a propriedade dos particulares, mas antes de
salvaguardar a paz pública. Segundo a gravidade da perturbação da posse, podiam
ser pedidos interditos que garantiam a posse (uti possidetis, como possuías), que
condenavam o seu esbulho pela força (unde vi, onde houve violência) ou, mais
severamente, que puniam o uso de força armada (vi armata, com violência usando
armas)1826.
§ 1193. No direito comum, a proteção da posse combinava meios que vinham
do direito romano com outros que vinham do direito canónico (como a ação de
esbulho, actio spolii1827) e, ainda outros, dos direitos dos reinos 1828.
§ 1194. Em toda esta tradição, esteve sempre clara a distinção entre os
remédios possessórios, que incidiam sobre o facto da posse e suas condições de
validade ("nec vi nec clam nec precario", não violenta, não clandestina, não

Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.21.


1821 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.25.

1822 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.36.

1823 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”30-33. Mas apenas os gastos

necessários ou úteis, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.34.
1824 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.24.

1825 “Restituas”, “Exhibeas”, “Vim fieri veto”.

1826 Sobre os interditos, súmula em http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/


Texts/secondary/SMIGRA*/Interdictum.html.
1827 Decretum, causa 3, qu. 1, c. 3 ("Redintegranda sunt omnia expoliatis vel ejectis episcopis").

1828 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Possessio”, n.40.

360
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

precariamente ou em nome de outrem) e os meios petitórios que permitiam ao


proprietário defender a justiça da sua posição: reivindicação, ação negatória (v.g. de
servidão), ação de extremas (actio finium regundorum). Os interditos ou outros
remédios possessórios que derivassem deles (como as cartas tuitivas, em Portugal)
eram, portanto, medidas cautelares para proteger a posse que tivesse sido esbulhada
ou ameaçada de tal. Com eles, o que se pretendia era manter ou recuperar uma
situação de facto que estava estabelecida, e não discutir e acertar a questão do
direito de propriedade ou do estatuto jurídico da coisa. Isso devia ser discutido no
âmbito de uma ação dirigida especificamente a esse fim. Daí que, nesta fase
cautelar, o perturbador da posse não pudesse pretender discutir – por meio da
interposição de uma exceptio - a questão da propriedade.
§ 1195. Em Portugal, na primeira época moderna, a posse era protegida, junto
dos tribunais comuns, por meio dos interditos de conservação (retinendae possessionis)
ou de recuperação da posse (recuperandae possessionis). Porém, ao lado deles, a ação de
espólio (actio spolii), provinda do direito canónico, ia ganhando uma popularidade
cada vez maior, nomeadamente por não estar sujeita aos prazos dentro dos quais
tinham que ser pedidos os interditos romanos.
§ 1196. Mas, como a manutenção da paz e a correção das violências era uma
atribuição real, pelo menos a partir do fim do séc. XV, apareceu a possibilidade de
pedir ao rei a graça de uma carta especial de proteção da posse (carta tuitiva, de tuere,
lat. proteger)1829. A medida era sobretudo cobiçada para aqueles casos em que o
perturbador da posse era um poderoso, perante o qual os juízes das terras
pudessem vacilar.
§ 1197. O regime das cartas tuitivas, uma especialidade do direito português, foi
descrito por Álvaro Valasco numa consulta recolhida no seu célebre livro
Consultationum […]1830. Segundo ele, as cartas tuitivas correspondiam ao interdicto
uti possidetis (D. 43.17 Uti possidetis), com a especialidade de que não se pediam a um
juiz mas ao rei – como protetor dos miseráveis1831, no prazo de um ano a contar do
esbulho ou ameaça. O seu uso era frequente nas causas eclesiásticas 1832.
§ 1198. O pedido da carta tuitiva – tal como o libelo da ação de espólio ou o
pedido de um interdito – tinha que conter a prova de que a posse existia ao tempo
do pedido1833 e fora perturbada. No caso de benefícios eclesiásticos, requeria-se a
exibição de um título para a posse, pelo menos com aparência de validade (titulus
coloratus) 1834. Nos outros casos, tinha que se provar a posse em sentido próprio –
não a simples detenção1835 -, quer natural, o que implicava provar atos, quer civil, o

1829 Como atos de graça, as cartas tuitivas deviam ser pedidas ao Desembargo do Paço, cf. Ord.

fil.3, 3, 6; Reg. Des. Paço, 118; v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 2, ad Ord. fil.2, 3,
6, gl. 11, n. 7-8;.
1830 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76.

1831 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 2, ad Ord. fil. 1, 3, gl. 11, n. 1.

1832 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 2. Sobretudo quando a posse de um

benefício concedido no reino era contestada por um beneficiário provido em Roma.


1833 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 12.

1834 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 3-5. Também Manuel Álvares Pegas,

Commentaria […], cit.. tomo 2, ad Ord. fil.1, 3, 6, gl. 11, n. 17 ss. Como se tratava de uma medida de
graça, não se ouviam as partes, ibid. n. 15.
1835 Posse em virtude de contrato de comodato, depósito, locação ou de custódia; posse por

incapaz de posse, como o escravo.

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que significava provar um facto que gerasse esse efeito de direito 1836. Porém, as
cartas tuitivas davam-se mesmo para proteger a mera detenção, pois o seu fim era o
de evitar violências1837.
§ 1199. As cartas eram passadas ou contra certa pessoa, que ficava proibida de
perturbar a posse, ou genericamente contra eventuais tentativas de espólio 1838
§ 1200. Os remédios possessórios podiam ser conservatórios (de manutenção
da posse, retinendae possessionis, como o interdicto uti possidetis) ou restitutórios (de
restituição da posse, restituendae possessionis, como os interditos unde vi e vi armata, ou
a actio spolii)1839.
§ 1201. Em todos estes remédios possessórios, a causa era, segundo o direito
comum, sumária, sem publicação das provas, nem das testemunhas. Em Portugal,
porém, Valasco testemunhava a prática de não se proceder sumariamente, antes por
processo ordinário, dando origem a largas demandas sobre questões de posse.
Segundo ele, esta prática era errada, pois aqui ainda não se tratava da substancia da
causa, que haveria de ser discutida numa ação sobre a questão da propriedade (ou
causa petitoria, petitorium). Daí que também no pedido das cartas tuitivas se devesse
agir sumariamente, pois elas eram concedidas sem prejuízo do direito de domínio e
de posse1840.
4.3.2 O domínio.
§ 1202. O domínio era de direito das gentes1841,embora as formas de o adquirir
fossem estabelecidas pelo direito civil1842.
§ 1203. O domínio era correntemente definido como o direito (ou faculdade
jurídica) de usar, dispor, de forma perfeita (ou seja, por qualquer forma), de uma
coisa, apenas com as limitações impostas pelo direito (com a extensão que a palavra
então tinha) ou por convenção.
4.3.2.1 Os modos de adquirir o domínio.
§ 1204. O domínio adquiria-se por vários modos, de que se tratará a seguir.
Segundo o direito comum, adquiria-se por natureza (direito natural ou direito das
gentes). E, de acordo com o direito civil, e observados os seus requisitos, adquiria-
se pela própria autoridade do direito civil 1843, que estabelecera a aquisição do

1836 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 9.


1837 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, ns. 10/11.
1838 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 13

1839 Que se refletem em Ord. fil. 4, 58. Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., t. 2, ad

Ord. fil. 1, 3, 6. 11, n. 7 a 10. Cf. ainda Ord. fil. 3, 40 (“o que nega estar em posse da cousa que lhe
demandam”); 3, 68 (“que em feito de força nova se proceda sumariamente sem ordem de Juízo"); 4, 58
(“dos que tomam forçosamente a posse da cousa que outrem possui”).
1840 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 16. Também na causa de sequestro, em

que se entregava uma coisa litigiosa a alguém, por se temer rixa sobre a sua posse, se usava o processo
sumário, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 76, n. 17.
1841 E não por direito divino, já que a propriedade não dependia da fé do proprietário. Cf.

interessante discussão, que aborda este aspeto, sobre o direito dos cristãos aos bens dos infiéis, a
propósito do saque da conquista de Túnis, em 1535, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 335
(uma escrava reclama, em 1575, a sua liberdade, por ter sido injustamente cativada).
1842 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dominium”, n. 1

1843 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dominium”, n. 3.

362
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

domínio por usucapião1844, por aluvião, por especificação, por confusão 1845, por
convenção (doação, troca, venda, mutuo) acompanhada de tradição1846, por
adjudicação judicial. Adquiria-se, ainda, por autoridade do príncipe, que podia tirar
a um e dar ao outro, havendo justa causa. Também os modos de extinção do
domínio serão tratados adiante.
§ 1205. Os modos de adquirir o domínio podiam ser de direito das gentes ou de
direito civil. Basicamente, esta era a distinção mais clara que surgia nas fontes
romanas1847. Outras distinções são aí menos claras, bem como certas distinções,
que só aparecem mais tarde, como formas originárias e derivadas de aquisição do
domínio, ou certas categorias como a acessão (accessio) ou a especificação
(specificatio), termos que não ocorrem nas fontes. Se quiséssemos estar mais
próximos das distinções que subjazem aos diversos regimes previstos nas fontes,
distinguiríamos o regime de apropriação de coias de ninguém, o da apropriação de
coisas novas, o da apropriação de coisas de outrem ou o da confusão ou mistura de
coisas.
4.3.2.1.1 Ocupação (occupatio).
§ 1206. A ocupação era o primeiro modo de adquirir o domínio, segundo o
direito das gentes. A ele se referem os §§ 12 a 16 do Livro 2,1 De rerum divisione das
Institutiones de Justiniano, relativos à captura de animais terrestres (ferae), de peixes,
de abelhas e de aves.
§ 1207. A caça e a pesca visavam a apropriação de animais bravios que, na sua
liberdade natural, não eram de ninguém1848. Pela apreensão física, as presas
tornavam-se do caçador, ainda que apanhadas em terreno de outrem 1849. Mas
também perdiam esse estatuto se fossem de novo soltas (I. 2,1,12) ou se, apenas
feridas, conseguissem fugir. Isto era singular na ocupação, pois a coisa ocupada, por
regra, ficava definitivamente do ocupante.

1844 Note-se que o domínio não se perdia por não uso ou por prescrição extintiva, porque era

perpétuo por natureza, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, d. 208, n. 8; também por isto, mão
se tinha domínio quando se gozasse de um direito revogável sobre uma coisa, Miguel de Reinoso,
Observationes […], cit., obs. 6, n.18, 36.
1845 Se duas coisas se misturassem a ponto de formarem uma nova coisa indivisível, esta ficava a

ser dos proprietários das antigas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 18.
1846 Esta era a regra geral: a aquisição do domínio pressupunha a tradição, não bastando a simples

convenção e respetivo título, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dominium”, n. 4;
Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs, 19, n. 1. Porém, aquele que transferisse a coisa, tinha
que ter sobre ela os direitos que transmitia (“tradens rem alicui non potest illi plus transferre dominii
quam illud quod habet in re”), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dominium”, n. 5.
1847 Cf. I.2, 1, 11: “Singulorum autem hominum multis modis res fiunt: quarundam enim rerum

dominium nanciscimur iure naturali, quod, sicut diximus, appellatur ius gentium, quarundam iure
civili. commodius est itaque a vetustiore iure incipere”.
1848 Também eram de ninguém as coisas sagradas e as públicas, mas estas não podiam ser
ocupadas. O mesmo se diga das coisas da herança jacente, que também não eram de ninguém até à
aceitação da herança, Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2, 1, 12, n. 2.
1849 Os donos podiam proibir a entrada nos seus prédios para caçar. A contravenção originava uma

actio iniuriarum, para pedir indemnização por danos, mas não mudava a natureza selvagem do animal e,
logo, a sua ocupação pelo caçador, Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2, 1, 12, n
3. Podia haver costumes locais de as pescarias ou as caçadas (ou parte delas) serem dos donos dos
prédios onde ocorressem. Cf. alv. De 1.6.1776, autorizando a prisão dos caçadores intrusos em quintas
muradas enquanto não tivessem pago os danos causados-

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§ 1208. Podia haver limitações de direito civil à caça e à pesca1850, tal como
havia direitos senhoriais reservando para o rei1851e para os senhores certos animais,
aves ou peixes1852. Mas, como a ocupação era um instituto de direito das gentes, as
proibições de caçar ou pescar, podendo dar origem a sanções não impediam a
ocupação, já que o direito civil não mudava a natureza selvagem dos animais1853.
Mais complicado era o caso de certos animais que, embora algo domesticados
(mansuefactae), nunca se fixavam num sítio, pois nunca perdiam a sua liberdade
natural, como as abelhas, os pavões, as pombas e os veados. As Institutiones
consideravam-nos como selvagens, podendo ser ocupados, a menos que já
estivessem no costume de ir e voltar1854. Mas o direito português obrigava o
achador a apregoar o achamento de animais destes durante algum tempo até os
considerar de novo ocupados1855.
4.3.2.1.2 Conquista.
§ 1209. Também as coisas – móveis e imóveis, - que se tomavam aos inimigos
eram consideradas pelo direito das gentes como ocupadas. Os próprios inimigos
podiam ser escravizados (v. cap. 3.1.1.1)1856. Como as guerras eram públicas, no
sentido de que eram feitas pelos povos ou seus príncipes, como chefes dos
exércitos, e como os soldados faziam a guerra em nome deste, as presas de guerra
pertenciam ao príncipe, que as podia, depois, dar ou ceder; para alguns, porém, esta
publicização não tinha lugar nas coisas móveis e semoventes (animais), que ficavam
ao soldado que as tomasse 1857. A Ord. fil. 2,32,1 entregava ao primeiro ocupante os
navios inimigos ou corsários naufragados. Mas esta ordenação foi revogada pela lei
de 13.12. 1713, que entregou estes despojos à fazenda régia.
4.3.2.1.3 Achamento.
§ 1210. Segundo o direito natural, era ainda suscetível de ocupação pelo
achador aquilo que fosse objeto de achamento (inventio), quer nunca tivesse sido de
ninguém, quer se já o tivesse sido (tesouros e coisas abandonadas 1858)1859. Assim,
podia ser ocupado o que se encontrasse nas praias, por ser um produto do mar
(lapilli, gemmae, margaritae, conchyliae). Já as minas e veios de metal eram do rei, pelo

1850 V. Ord. fil.5, 88 e 91. Uma lei de 1.7.1776 proibiu aos plebeus a caça na Estremadura. Uma lei

de 12.4.1612 proibiu a caça com espingarda; outra, de 23.2.1624, restringiu a caça às perdizes. Segundo
o direito canónico, os clérigos não podiam caçar, para não se distraírem do culto divino. Cf. o
Regimento do Monteiro-mor e o do Juiz das Coutadas em José Roberto Monteiro de Campos Coelho e
Sousa (org.), Systema […], cit., vol. II; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 13, ad Ord.
fil.3, 5, p. 154.
1851 Cf, Ord. fil. 2, 26, 14, rendas das pescarias. A baleia e os peixes maiores eram chamados

“peixes reais”, não podendo ser tomados pelos que os apanhassem, antes pertencendo à fazenda real
(Regimento da Fazenda Real, cap. 94 do, foral de Setúbal).
1852 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2, 1, 12, ns. 2 e 3; 13, n. 3.

1853 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2, 1, 13, n. 3.

1854 I. 2, 1, 14-15. Já as galinhas (coelhos, ovelhas e cabras domésticos) eram tidas como
domésticas (mansuetae), I.2, 1, 16. A sua apreensão por outrem dava origem a uma actio furti.
1855 V. Ord. fil. 5, 62, 3 e 3, 94.

1856 Cf. CL de 20.12.1713.

1857 Cf. CL 20.12.1713.

1858 Como as moedas lançadas à multidão.

1859 I. 2, 1, 18.

364
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

que não podiam ser ocupados1860 ou apropriados pelo achador; ao qual, no entanto,
podiam ser concedidos per mercê régia1861.
§ 1211. As coisas achadas que já tivessem sido de alguém pertenciam ao seu
antigo dono, devendo ser-lhes entregues, sendo conhecido do achador, sem pedido
de alvíssaras pelo achamento1862. Não conhecendo o dono, o achador devia
apregoar o achamento e, se ninguém aparecesse, dar as coisas aos pobres (cf. §
1171). As Ordenações referem especialmente o achamento de coisas provenientes de
naufrágios, assegurando a propriedade delas aos seus donos originários (cf. Ord.
fil.2,32). A ocupação por achamento supunha um ato físico de tomada ou ingresso,
mas mantinha-se mesmo que esse elemento físico deixasse de existir (ao contrário
do que acontecia nos animais selvagens)1863.
§ 1212. O achamento de tesouros – coleções de bens preciosos encontrados,
cujo dono não era conhecido1864 - tinha um regime especial. Se o tesouro tivesse
sido encontrado em terreno próprio ou terreno sagrado, ou se tivesse sido objeto
de uma busca intencional em terra de outrem, pertenceria ao ocupante; mas tendo
sido achado fortuitamente em terreno de outrem, o achador tinha que o repartir
com o dono do terreno ou com o fisco (cf. I.2,139; V. C. 10.15. De thesauris). Este
era também o regime do direito comum e das Siete Partidas (III, 28, 45). O direito
português foi restringindo progressivamente os direitos do achador. As Ord. af.
(2,7,5) reservavam a terça para o rei, sendo o tesouro achado em terreno do
achador; ou, no caso de o achado se dar em terreno do rei ou em lugar público,
atribuíam ao rei dois terços. As Ordenações filipinas declaravam serem do rei “todos
os bens vagos, a que não he achado senhor certo” (Ord. fil. 2,26,16 e 17)1865. No
entanto, a doutrina hesitava em enquadrar os tesouros nesta disposição, preferindo
aplicar o regime do direito comum1866.
4.3.2.1.4 Aquisição dos frutos.
§ 1213. Os frutos ou o locatário das coisas seguiam a situação da coisa, sendo
do seu proprietário (perceção, percepto). No entanto, se a coisa estivesse possuída,
de boa fé, por um não proprietário (maxime, por um não proprietário, como o
usufrutuário ou o locatário), este fazia seus os frutos1867. A justificação era o
contrato que lhe atribuía a posse da coisa, a consideração da boa fé da posse ou a
compensação pelo trabalho de cultivo e manutenção da coisa1868. Também o

1860 V. Ord. fil.2, 26, 16.


1861 V. Ord. fil.2, 34; outra legislação em Pascoal Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 3, 6
(sobre os diamantes, alv. 24.12.1734).
1862 V. Ord. fil. 5, 62, 4; mas deviam ser pagas ao achador as despesas com a conservação da coisa.

1863 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 18.

1864 Cf. D.41, 1, 31, 1 ("vetus quædam depositio pecuniæ, cujus non extat memoria, ut jam

dominum non habeat"; Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., ad 2, 1, 7, n. 1. Cf. também
Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 39.
1865 Cf. C.10.15. De thesauris.

1866 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., p. 3, cap. 13, n. 91; Jorge

de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 56.


1867 Cf. I. 2, 1, 48; Ord. fil. 2, 53, 5. A solução não era unânime, distinguindo os autores entre posse

onerosa e posse gratuita, entre frutos naturais e industriais, percebidos e pendentes. Pascoal de Melo
(em Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 3, 9) discute esta questão brevemente.
1868 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 35 (v. I. , 2, 1, 35; D. 22, 1, 45 e

D.41, 1, 48).

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usufrutuário1869 se apropriava dos frutos das coisas alheias por ele usufruídas.
§ 1214. Nos frutos do gado incluíam-se, além do leite e da lã, as crias, tudo se
tornando do possuidor de boa fé ou do usufrutuário por direito natural. Não assim,
porém, as crias das escravas, cujos filhos eram do proprietário, pois seria absurdo
que uma pessoa pudesse ser considerada como fruto, já que os frutos foram criados
para os homens1870. A ideia de que um recém-nascido de uma escrava não podia ser
um fruto seria de origem estoica, relacionando-se com um conceito de dignidade
humana. O jurista Ulpiano1871, porém, justificava a solução num plano mais técnico:
os frutos da escrava seriam os seus serviços, não os seus partos, pois não eram
compradas para parir, mas para servir com o seu trabalho (“quia ancillae non ad
hoc comparantur ut pariant, sed ut serviant”).
4.3.2.1.5 Acessão natural (accessio naturalis).
§ 1215. Por direito das gentes também acediam ao prédio, incorporando-se no
património do seu dono, as coisas que por aluvião lhe acrescessem, por mudança
nas margens1872, por arrastamento pela força das águas – v.g. de uma árvore -1873 ou
por surgimento de ilhas1874. A este modo de adquirir chamou-se, na tradição
romanística, accessio naturalis1875.
§ 1216. Diferente era o aluvião (alluvio1876), que era aquilo que os rios
acrescentavam paulatinamente a um prédio e que ficava incorporado neste por
direito das gentes.
4.3.2.1.6 Acessão por facto humano ou industrial (accessio artificialis vel
industrialis).
§ 1217. Apropriação de coisa de outrem por facto humano1877 dava-se quando
duas coisas (de donos diferentes) eram unidas de forma tão indissociável que uma
(a coisa secundária) se torna parte de outra (a principal), não se podendo dizer que

1869 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 16.
1870 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 11, n. 4; I. 2.1.19 (e comentário de
Vinnius). Incluíam-se aqui os filhos das escravas, pois, tais como as crias dos animais, tinham sida
como que vísceras da mãe; Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 37, 1.
1871 V D.5.3 De hereditatis petitione, 27.

1872 Cf. Inst Gaii, 2, 70. Caso mais relevante era o da mudança de curso do rio, em que, sendo o rio

privado, o antigo leito ficava a pertencer aos donos dos prédios antes ribeirinhos. Sendo o rio público,
o novo leito tinha a mesma natureza, mas o antigo perdia-a, Arnold Vinnius, In quattor libros
Institutionum [...], cit., 2, 1, 23.
1873 Neste caso, excecionalmente, o antigo proprietário, sendo identificável, mantinha os seus

direitos.
1874 Distinguia-se o aparecimento de ilhas no mar - fenómeno raro, que ficavam públicas do

senhor do reino adjacente (v. Ord. fil.2, 26, 8) ou de ninguém e então sujeitas ao regime da ocupação - do
de ilhas nos rios - mais frequente, regido pela regra da acessão (se as ilhas ficavam no meio do rio,
confrontando prédios de ambas as margens, seriam compropriedade dos donos dos prédios fronteiros;
outros juristas pensavam que isto só ocorria se o rio não fosse público, pois se o fosse, as novas ilhas
também o eram, Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 22).
1875 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 20.

1876 Inst Gaii, 2, 70; D.41, 1, 7.

1877 Accessio não é um termo romano; os juristas romanos designam a accessio como um modo

específico de ocupatio; v. http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/


SMIGRA*/Accessio.html.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

surgia uma coisa nova, mas antes que se juntava uma coisa acessória à principal. O
dono da coisa principal tornava-se dono da secundária (“per praevalentiam alienam
rem trahit meam”, D.6,1,23,4) 1878. A identificação da coisa considerada principal
podia ser duvidosa. O solo era-o, com certeza, relativamente a plantas (plantatio:
cultivos, plantios, árvores1879) ou construções fixas (aedificatio1880, superficies solo cedit).
§ 1218. Outros exemplos famosos eram o da escrita em relação ao pergaminho,
nos livros, em que o suporte era considerado o principal, e os da tecelagem
(textura), da tinturaria (tintura)1881, da ornamentação (decoratio), da cobertura de
fémeas (seminatio). Em todos estes casos, a substância junta acedia ao principal e era
apropriada pelo dono deste. Diferente era o caso da pintura de um quadro, em que
a pintura era considerada a parte determinante à qual aderia o suporte (tabula; tabula
picturae cedit)1882. Se a hierarquia não se conseguisse estabelecer, as coisas
confundidas ficavam comuns1883.
§ 1219. Quando alguém perdia para outro a propriedade (por acessão ou por
especificação [v. a seguir]) tinha direito a ser indemnizado pelo valor da
propriedade perdida (por meio de expedientes diversos) 1884.
4.3.2.1.7 Especificação (specificatio).
§ 1220. A especificação (specificatio) era um termo criado pelos juristas
medievais, a partir de rem (speciem) novam facere, locução que aparece nas fontes
romanas1885. Dava-se quando se fazia uma coisa nova a partir de outra coisa. Isto
podia acontecer por fusão intencional de coisas diferentes [novam speciem faciendo]; ou
por aplicação de trabalho e indústria a um material alheio já existente, de modo a
transformá-lo irreversivelmente numa coisa nova 1886).
§ 1221. Se a reversão fosse impossível, se se tivesse agido em nome próprio
(por e para si1887) e de boa fé (pensando o artífice que o material era seu)1888, o
fabricante fazia-se proprietário da coisa, devendo, porém, indemnizar o verdadeiro
dono do material pelo seu valor. Se, pelo contrário, a reversão era possível 1889, a
coisa continuava a pertencer ao proprietário original, mas o fabricante tinha direito

1878 “Quando duas coisas, qualquer delas podendo subsistir por si, são de tal forma unidas que

façam parte do mesmo corpo […], a parte inferior sempre cede à parte mais importante (praestantior)”,
Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 26, n. 2). Esta importância podia avaliar-se
pelo tamanho. Se o tamanho era igual, decidia o preço.
1879 Cf. § 1.Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 31-32.

1880 O que edifica em solo próprio com materiais alheios fica dono do edifício, Arnold Vinnius, In

quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 29. O que edifica em solo alheio não adquire o edifício, Arnold
Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 30
1881 Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 21, 1, 33 e 2, 1, 26.

1882 Cf. Gaius, II.73; cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 34.

1883 I.2, 1, 27.

1884 I.2, 1, 26, n. 4.

1885 “Aliud sit materia, aliud navis”, D.13, 7, 18, 3)

1886 Inst. Gaii, 2.29. Fabrico de vinho feito de uvas alheias, de azeite com azeitonas alheias, de

mulsum ou hidromel (misturando vinho e mel), de um móvel, de uma casa, de um navio, de um vaso
de barro cozido.
1887 Se não trabalhava para si, mas como empregado de outrem, eventualmente do dono do

material, adquiria para o patrão.


1888 Se agiu de má fé, é punível como ladrão.

1889 Exemplo: fabrico de um vaso de metal que pudesse ser refundido.

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a ser indemnizado pelo trabalho, se tivesse agido de boa fé.


§ 1222. Este modo de aquisição da propriedade referia-se a processos muito
comuns na agricultura, na metalurgia, na construção civil ou naval, na farmácia, na
marcenaria. Por isso, este ponto de direito constitui um bom campo para observar
a reação do direito perante a modificação das práticas sociais de produção de bens.
A bondade das soluções para as diferentes situações havia de depender da
“novidade” da coisa (species) produzida, da reversão do processo de fabrico, do
valor relativo dos materiais e do trabalho e indústria no fabrico. Mas também tanto
de conceções filosóficas acerca do que são as coisas como dos processos sociais
pelos quais se efetuava a produção ou transformação.
§ 1223. No direito romano confrontavam-se duas escolas a respeito da
propriedade da coisa novamente fabricada. Enquanto que os sabinianos, inspirados
na ontologia dos estoicos, entendiam que não surgia uma coisa nova, pois a
substância das coisas era a sua matéria (sine materia nulla species effici potest) e atribuíam
a propriedade do artefacto ao dono dos materiais, os proculeianos, inspirados na
ontologia de Aristóteles, em qua a forma constituía a verdadeira natureza das
coisas, atribuíam a nova coisa ao seu fabricante, que a ocuparia ao mesmo tempo
que lhe dava existência (quod factum est, nullius nulla fuerat). No direito justinianeu 1890
adotou-se uma via média, em que a propriedade era atribuída ao fabricante – como
propunham os proculeianos - sempre que os materiais originais não pudessem ser
de novo reconstituídos; mas em que se entregava a nova coisa ao dono dos
materiais – como queriam os sabinianos – se eles se pudessem separar de novo.
Aparentemente, o que justificava esta solução era a impossibilidade ou dificuldade
de, em certos casos, identificar as matérias originais e os seus donos, pelo que se
atribuía, nesses casos, a propriedade ao autor da coisa final 1891. Mas o conceito de
“coisa nova” também influía, pois era claro que a coisa era outra, definitivamente,
se o processo de fabrico não pudesse ser revertido e o contrário no caso inverso.
§ 1224. No direito comum, tendeu a prevalecer a solução de que a coisa, sendo
nova, pertencia ao fabricante. Novo era o vinho em relação às uvas; o azeite, em
relação às azeitonas; o barco, casa e móvel, em relação à madeira. Mas não o trigo
(ou outros cereais ou leguminosas), em relação às suas sementes. Mesmo no caso
de a coisa ser nova, havia que averiguar a natureza da atividade do fabricante.
Nomeadamente, se este tivesse feito a coisa em nome de outrem (por exemplo, um
artesão trabalhando a mando e por conta de outrem). Ou, a sabendas, com matéria
de outrem. Nestes casos, a coisa seria do mandante da obra ou do dono dos
materiais, respetivamente1892.
§ 1225. Como se disse, à acessão correspondia também uma perda de
propriedade, que deveria ser indemnizada, a não ser nos casos de mé fé (em que o
dono da coisa acessória sabia que a principal era de outro).

1890 I.1, 1, 25.


1891 Cf.
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Accessio.html;
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Confusio.html.
1892 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 25, n.4.

368
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

4.3.2.1.8 Confusão (confusio) e mistura (mixtura).


§ 1226. Nas coisas que eram o produto da fusão, acordada ou casual, de
líquidos ou metais fundidos da mesma espécie, mas de tal modo que a sua
separação fosse impossível (confusão, confusio)1893, a propriedade da massa
resultante era comum, na proporção da matéria prestada por cada um. Se as coisas
eram de diferente espécie, a espécie resultante era diferente e, por isso, seguiam-se
as regras da especificação, ficando a coisa do fabricante) 1894.
§ 1227. A mistura (commixtio) era a junção de coisas sólidas de donos diferentes,
de tal modo que a sua separação podia ser difícil, mas não impossível. Se a mistura
tivesse sido feita por consenso, a massa resultante ficaria em propriedade comum,
pois se entendia que eles, ao juntá-las, as tinham querido comunicar. Se tivesse sido
feita por acaso ou por vontade de um só, a solução era a mesma, mas cada um
podia retirar a sua parte, sendo isso possível 1895.)
§ 1228. Se o processo de união não se pudesse reverter, aquilo que se unira ao
elemento principal (não necessariamente o mais valioso) preexistente ficava a
pertencer ao dono deste.
§ 1229. A confusão também podia ocorrer com direitos. Assim um crédito e
um débito podiam acabar na titularidade da mesma pessoa. Nesse caso, a obrigação
extinguia-se1896. O mesmo no caso de o credor ter herdado o penhor ou de o dono
do prédio serviente se ter tornado dono do prédio dominante ou o contrário 1897.
4.3.2.1.9 Tradição.
§ 1230. A dogmática romanística não encontrava nas fontes a distinção entre
aquisição originária – a que englobaria os modos de aquisição anteriorermente
descritos – e aquisição derivada – a que pertenceriam os seguintes – tradição e
usucapião. Na sistematização das Institutiones, a tradição (traditio) aparecia ligada às
modalidades de aquisição de que se falou (“I.2,1,40, “Per traditionem quoque jure
natural res nobis acquiruntur …”), como uma forma de adquirir de direito natural.
Já a usucapião aparecia mais à frente (I.2,6), como uma forma de aquisição de
direito civil.
§ 1231. A tradição (traditio) era um modo de aquisição de direitos sobre coisas
que, para além da apreensão pelo adquirente, exigia um ato de vontade do
transmitente, por isso se distinguindo da ocupação1898. Este ato consistia numa
entrega natural – de mão em mão – ou simbólica1899 da coisa, acompanhada da
respetiva aceitação ou apreensão. Mas exigia-se ainda um título ou causa que

1893 Vinho com vinho, prata com prata, dinheiro com dinheiro.
1894 Se duas coisas se misturassem a ponto de formarem uma nova coisa indivisível, esta ficava a
ser dos proprietários das antigas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res” 18.
1895 Cf. D..41, 1, 7, 8; D.46, 3, 78; D.6, 1, 3, 2D.6, 1, 5.

1896 Cf. D.46, 3, 75.

1897 “Gaius libro septimo ad edictum provinciale. Servitutes praediorum confunduntur, si idem

utriusque praedii dominus esse coeperit” (D.8, 6 Quemadmodum servitutes amittuntur, 1).
1898 Cf. I.2, 1 De rerum divisione, 40; Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., ad 2,

1, 40; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3, 3, 10.


1899 Por um equivalente simbólico que simplificasse a tradição em espécie (tomar um punhado de

terra, cortar um ramo de árvore, pegar nas chaves, abrir e fechar uma porta, indicar com o dedo).

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justificasse este comportamento (compra, doação, troca) 1900, pois não se presumia
que alguém entregasse a outrem as suas coisas sem uma causa, nem que ela fosse
apenas a de que as queria dar.
§ 1232. O transmitente tinha que ser dono1901, pois não podia transmitir direitos
quem não os tivesse1902, e não estar enganado sobre a causa da transmissão.
§ 1233. A exigência da tradição justificava-se para reforçar a segurança do
comércio jurídico, estando consagrada quer nas fontes romanistas 1903, quer no
direito português1904. Porém, no direito português não se requeria qualquer
cerimonial de tradição1905, nem sequer a elaboração de escritura, salvo nos casos
expressamente indicados na lei1906.
4.3.2.1.10 Usucapião (usucapio) ou prescrição (praescriptio) aquisitiva.
§ 1234. Para além dos modos de adquirir de direito natural ou das gentes, o
direito civil estabelecera outros, uns de aquisição de uma universalidade de bens,
como a herança (v. cap. 5.2.11), outros de bens determinados, como a usucapião, a
doação (v. cap. 6.9.2.1.1) ou os legados (v. cap. 5.2.14), entre outros.
§ 1235. A prescrição podia incidir sobre coisas e sobre direitos, quer para os
adquirir, quer para os extinguir pela mera passagem do tempo. O seu impacto no
direito comum era enorme, pois era através dela que se constituía ou se extinguia
uma quantidade imensa de relações e situações jurídicas. Com poucas exceções (v.
adiante), quase tudo se podia ganhar e perder por meio de uma posse duradoura,
pacífica e pública. A prescrição era a transcrição no direito da passagem do tempo,
que fazia e desfazia a natureza das coisas. Embora respondendo negativamente,
alguns juristas colocavam mesmo a questão de saber se os pecados deixavam de o
ser por prescrição, ou seja, por um uso continuado de os praticar ou por uma
prática continuada (da Igreja, da comunidade) de não os ter como tal 1907.
§ 1236. A usucapião (usucapio) era definida como uma forma de aquisição de
direitos sobre uma coisa, fundada na passagem do tempo fixado na lei e
estabelecido para punir os negligentes e certificar a situação das coisas, evitando os
litígios1908. Os juristas entendiam que ela se equiparava a um pacto, tendo uma

1900 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 40, n. 1 a 5.; cita o jurista Paulus

(D.41, 1 41.1 De adquirendo rerum domínio, 31, pr.); “Nunquam nuda traditio transfert dominium, sed ita
si venditio aut alia justa causa praecesserit, propter quam traditio secuta sit”, Arnold Vinnius, In quattor
libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 5.
1901 Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 40, 4-5.

1902 Por isso, o possuidor de boa fé não podia transmitir senão a posse, mas não a propriedade.

1903 C.2, 3 De pactis, 20: "traditionibus et usucapionibus dominia rerum non ex nudis pactis
transferentur". Cf. Arnold Vinnius, In quattor libros Institutionum [...], cit., 2, 1, 2.
1904 Embora apenas indiretamente: Ord. fil.4, 7, pr. e 2: "o que primeiro que houver a entrega d'ella

será d'ella feito verdadeiro senhor”.


1905 Havia, porém, simbologias usuais: usava-se atirar ao ar um punhado de terra e cortar um

ramo.
1906 V. Ord. fil.4, 19, pr. (contratos necessários para a substância ou validade da transação); Ord. fil.3,

59 (para a prova).
1907 “Não pode considerar que por prescrição deixe de ser pecado o que a Igreja declarou ser

pecado”, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 133, n. 12.


1908 Cf. D.41.3, De usurpationibus et usucapionibus, 3: “Usucapio est adiectio dominii per
continuationem possessionis temporis lege definiti”. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.

370
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

eficácia semelhante1909; outros, porém, recordavam que, pelo menos no direito


português, ela não podia ser título aquisitivo de bens que se podiam ceder por
contrato (como os bens da coroa ou os direitos reais [regalia], que podiam ser
doados, mas não adquiridos por prescrição, v. cap. 2.4.3.5). A prescrição dava
origem ou a uma ação para pedir a coisa usucapta ou a uma exceção para paralisar a
ação reivindicatória do anterior proprietário 1910.
§ 1237. A usucapião de direitos, ou seja, de faculdades abstratas que,
frequentemente, não tinham um corpus físico, colocava alguns problemas
dogmáticos. O que era a sua posse contínua ? A resposta era: o seu exercício. Mas,
por vezes, o seu exercício não exigia nenhuma atividade, como no caso dos direitos
negativos (i.e. direito a que o outro não faça). Nestes casos, era duvidoso o que
fosse a posse deste direito. O mesmo se diga em “direitos” a um benefício gratuito
de outro (v.g. a um ato régio de graça, uma mercê). Dadas estas dificuldades, havia
autores que excluíam estas situações da possibilidade de serem usucaptas 1911.
§ 1238. Os requisitos da prescrição eram quatro: (i) o convencimento do
possuidor de que a coisa era sua e de que podia dispor dela, ainda que estivesse
errado (boa fé); (ii) a existência de um título que atribuísse a propriedade da coisa
ao possuidor, ainda que, realmente, o título não fosse válido (justo título); (iii) a
posse contínua durante um certo período de tempo (lapso do tempo); (iv) o caráter
jurídico da posse, ou seja, o reconhecimento pelo direito daquela posse sobre
aquela coisa (posse não viciosa)1912.
§ 1239. A prescrição requeria boa fé, justo título e posse válida e contínua em
nome próprio.
4.3.2.1.10.1 Boa fé.
§ 1240. A boa fé (v. cap. 6.4.1) era o desconhecimento legítimo de que a coisa
era alheia ou, ampliando um pouco, o desconhecimento dos vícios da posse 1913.
Este convencimento da titularidade da coisa presumia-se1914. Mas não existia em
certas situações, como no caso de o possuidor ter um título de que resultasse ser a
coisa alheia (v.g. um contrato de locação, um instrumento de aforamento, uma
carta de doação régia) ou se a posse tivesse sido obtida por violência 1915, se a coisa
tivesse sido furtada1916; se o adquirente tivesse sido avisado de que a coisa não era
do vendedor; se a comprou a quem não podia vender1917; ou se a posse tivesse sido
contestada em juízo e essa contestação tivesse sido reconhecida como possível, na

v. “Praescriptio”, n. 80.
1909 “Tantumdem illa tribuunt, quantum pactum, habet vim contractus", António da Gama,

Decisioones [...], cit., dec. 278, n. 2.


1910 Cf. D.50, 16 De verborum significatione, 28, pr.; I.2, 6. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber

[...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 1-2. Cf. I.2, 6;, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 3,
11 e 3.4.1.
1911 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 30 e 34.

1912 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 3.

1913 Cf. 50.16.109: “Bonae fidei emptor esse videtur, qui ignoravit eam rem alienam esse, aut

putavit eum qui vendidit ius vendendi habere, puta procuratorem aut tutorem esse”.
1914 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 12.

1915 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 14.

1916 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 14.

1917 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 13.

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fase da litis contestatio.


§ 1241. A boa fé presumia-se1918.
§ 1242. Pelo direito canónico, a boa fé era indispensável para que a prescrição
(aquisitiva ou extintiva) tivesse lugar1919, não sendo a má fé suprida por nenhuma
circunstância, nomeadamente pelo alongamento do período de prescrição 1920.
§ 1243. Em contrapartida, o direito civil só exigia a boa fé no início da posse,
podendo ela desaparecer depois sem que isso impedisse a prescrição 1921. Por outro
lado, o direito civil admitia que uma posse mais longa compensasse a má fé. E,
assim, a prescrição imemorial saneava todos os vícios - presumindo a boa fé e
induzindo título legitimo1922 -, fazendo prescrever aquelas coisas que, de outro
modo, não prescreveriam1923. Ora a doutrina entendia que o direito canónico devia
ser sempre preferido ao civil, nestes casos em que este último conduzia a soluções
de pecado (“critério do pecado”)1924. Por isso, era uma doutrina comum que
nenhuma lei ou costume podia validar a prescrição de má fé 1925.
§ 1244. As Ordenações não tratavam expressamente do regime geral da
prescrição. Mas, por certos dos seus preceitos, podia entender-se que tinha
recebido o regime de direito comum, preferindo, nas Ord. fil.(na sequência de uma
lei de D. João III, depois recebida nas Filipinas), a solução do direito canónico na
questão da exigência da boa fé 1926. Assim, no direito português, requeria-se sempre
boa fé, em toda e qualquer prescrição1927, tanto no autor como no seu sucessor
(universal ou particular), pelo que o possuidor de má fé em tempo nenhum podia
usucapir.
4.3.2.1.10.2 Justo título.
§ 1245. O título justo era aquele que, na convicção do possuidor, justificava a
sua posse como correspondendo a propriedade, ainda que o possuidor estivesse
enganado quanto à validade do título1928. Sem ele, não se podia gerar prescrição.
§ 1246. No entanto, a prescrição de longuíssimo tempo e a imemorial supriam
o justo título e a boa fé ou, pelo menos, tornavam-nos presumíveis, pelo que não

1918 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 125, n. 11.
1919 Cf. Decretales, 2, 26 De praescritionibus, caps. 5 e 20. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Praescriptio”, n. 4.
1920 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 11 (“nem que durasse

mil anos”).
1921 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 16-17.

1922 Ou demonstrando a existência de um privilégio (contra o direito geral) que legitimasse a

propriedade da coisa (mesmo naquilo que era reservado ao príncipe), cf. António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 19 (também. Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […],
cit., qu. 8, n. 36).
1923 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 18.

1924 As soluções jurídicas deviam tender para a salvação das almas (in salutem animae), cf. António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 16.


1925 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 125, n. 6.

1926 Ord. fil.4, 3, 1; Ord. fil. 4, 79, pr (in fine); Ord. fil. 2, 53, 5. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis [...], cit., 3, 4, 8.


1927 V. Ord. fil.4, 79, pr. in fine; Ord. fil.2, 53, 5.

1928 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 7.

372
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

tinham que ser provados pelo possuidor 1929. Para mais, entendia-se que, se faltasse
o título, mas se houvesse posse contínua e de boa fé, a coisa acabava por se
transferir para o possuidor, não por usucapião, mas por se extinguir por prescrição
a ação do proprietário para reivindicar a coisa.
§ 1247. Nas servidões e direitos incorporais não era preciso título 1930.
4.3.2.1.10.3 Posse contínua.
§ 1248. A prescrição exigia a continuação da posse por um certo lapso de
tempo, variável, de acordo com as situações.
§ 1249. Pelo direito comum, os prazos da prescrição ordinária 1931 eram de 3
anos para os móveis, ou de 10 anos para os imóveis, entre presentes (i.e. habitando
o mesmo lugar) 1932 ou de 20 anos entre ausentes1933. A prescrição das servidões
tinha alguma especialidade, dado que elas podiam consistir num fazer ou num não
fazer, com caráter contínuo ou descontínuo. Assim, as servidões contínuas - de
passagem, de aqueduto, de pescar - seguiam a regra geral1934. Para a aquisição das
servidões descontínuas, porém, era preciso tempo imemorial, se não existisse
título1935; para a sua caducidade, eram precisos 20 anos (entre presentes ou
ausentes).
§ 1250. A prescrição extintiva do direito a intentar ações reais equivalia à
usucapião e tinha os mesmos prazos 1936.. As ações pessoais visando reclamar coisas
prescreviam em 30 anos mesmo prazo. O mesmo acontecia com as prestações
anuais ou mensais1937.
§ 1251. Havia, depois, prazos especiais de prescrição para certas situações e
com efeitos diversos. A de longuíssimo tempo era a de 30 ou 40 anos, a prescrição
centenária a de 100 anos, a prescrição imemorial era aquela que se traduzia numa
posse imemorial (cujo início já não era lembrado, cujus memoria non exstat) 1938.
§ 1252. A prescrição de longuíssimo tempo (de 30 ou 40 anos) existia para os
casos previstos no direito comum 1939. A prescrição de 40 anos com título valia
tanto como a imemorial1940.

1929 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 4, 2 e 8.


1930 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 73.
1931 Havia prazos especiais para determinados tipos de bens, prescrições extraordinárias.

1932 Presentes eram os que viviam na mesma cidade; outros ampliavam aos da mesma comarca,

Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. p. 1, Aresto 42.


1933 C.7.31. De usucapione transformanda et de sublata differentia rerum mancipi et nec mancipi,

l. un..
1934 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 76.

1935 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 73; com titulo, tempo

ordinário, Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 36.


1936 Cf. I.2, 6, pr.; C.7, 31, 2. Textos das Ord. fil. que podiam servir de apoio: Ord. fil.1, 84, 23; 4, 3,

1, Ord. fil.4, 79. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 10.
1937 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, 35.

1938 V. Ord. fil. 1, 62, 51: “por tanto tempo que a memoria dos homens não he em contrario”; cf.

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 4.


1939 Uma especialidade: a prescrição de longuíssimo tempo era exigida no caso de usucapião da

coisa dada em penhor ao credor penhoratício Ord. fil.4, 3, 1: entre presentes, 30 anos; entre ausentes, 40
anos.
1940 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 35.

373
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§ 1253. A prescrição centenária ou imemorial era a mais poderosa. Os autores


diziam que ela equivalia a título, a decreto do príncipe ou a lei1941. Por direito
comum, era bastante para usucapir qualquer direito real, pois por tempo imemorial
adquiriam-se mesmo as coisas imprescritíveis1942, correspondendo a privilégio ou
direito adquirido1943 e sendo, portanto, a única que corria contra o rei ou contra a
igreja ou seus direitos1944. Também constituía título bastante para a instituição de
morgados e capelas1945.
§ 1254. Havia uma prescrição de breve tempo (3 anos) quanto ao pagamento
dos salários de criados1946.
4.3.2.1.10.4 Posse legítima (não viciosa).
§ 1255. Sem uma posse de quem reclama a prescrição, válida perante o direito,
não podia haver prescrição1947.
§ 1256. Deste modo, não podia correr quando a coisa fosse possuída por
força1948, de forma clandestina ou em nome de outrem 1949 (como precarista 1950,
foreiro1951, credor penhoratício, usufrutuário1952)1953. No entanto, entendia-se que a
usucapião podia existir, para os dois lados, no contrato de colonia1954
§ 1257. Usucapir supunha a possibilidade de possuir em nome próprio e, por

1941 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 163, n. 3; Miguel de Reinoso, Observationes [...],

cit., obs. 16, ns. 14 ss. ou obs. 65, n. 23 (esta “observação” incide toda ela sobre a prescrição
imemorial).
1942 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 141, ns. 7 e 8.

1943 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, ns. 1-2.

1944 Cf. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 20 e 21. Segundo

Álvaro Valasco, nos termos do direito comum, a prescrição imemorial podia ser alegada contra os bens
reservados para o príncipe e contra os bens particulares da coroa, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
dec. 120, n. 20.
1945 V. Ord. fil.1, 62, 51. Cf. porém, a lei de 13.8.1770, que requeria título.

1946 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 334, ns 1 ss. Presumia-se a boa fé do patrão,

se pagasse os salários por ecónomo ou feitor, António da Gama, Decisiones [...], cit., 34, n. 8.
1947 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 25: “Sine possessione usucapio contingere non

potest”. Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 6, n. 2; assim, um leigo que usasse
cobrar dízimos, nunca prescrevia, pois a sua posse não podia ser validada pelo direito canónico,
Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 65, n. 23.
1948 Nem mesmo a favor do sucessor do espoliador, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],

cit., s. v. “Praescriptio”, n. 51.


1949 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 25.

1950 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 34.

1951 O domínio direto (que é civil, e não exige corpus) não prescrevia a favor do colono, cf.

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 33; o enfiteuta não podia
prescrever contra o senhor se o reconhecesse como tal, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 192,
n. 2
1952 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 41.

1953 Nem para constituir direitos ou situações que o direito não permitia; por isso, não se podia

contrair matrimónio ilícito por prescrição, de forma a torná-lo lícito (v.g. passando por cima de
impedimentos), cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 31.
1954 A colonia (arrendamento rural) prescrevia provando o não pagamento da renda por 30 ou 40

sem expulsão do colono, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 192, ns. 7-8; a regra só tinha lugar
nos colonos de prédios rústicos, porque no de urbanos tratava-se de inquilinato, Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 192, n. 11 e cons. 157, n. 35.

374
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

isso, capacidade civil. Em alguns casos, a posse do escravo, do filius famílias ou dos
menores podia valer como título de aquisição para o dono ou pater1955. O herdeiro
herdava a posse com a mesma qualidade (v.g. boa ou má fé) da do de cujus1956.
§ 1258. De igual modo, a prescrição não podia correr em relação a coisas que,
por direito, não pudessem ser possuídas por particulares 1957. Ou que - por força de
lei, cânone ou vontade do testador – não pudessem ser alienadas1958. O caso dos
morgadios era interessante. Como o administrador do morgado não podia alienar,
prejudicando o casco de bens que tinha sido vinculado, a prescrição (e apenas a de
40 anos) só prejudicava aquele contra quem prescreveu, mas não os seus
sucessores, cujos direitos tinham sido fixados na instituição do morgado 1959.
§ 1259. A prova da posse fazia-se pelos meios comuns de prova (v. cap.
7.1.9.5). Na prescrição imemorial, a prova fazia-se por fama e de outiva1960.
4.3.2.1.10.5 Coisas imprescritíveis.
§ 1260. A prescrição não corria contra coisas que não pudessem ser adquiridas
por particulares, como já vimos1961 (v. cap. 4.2.1 a 4.2.3).
§ 1261. Assim, a prescrição não corria nas coisas fora do comércio, nas sagradas
ou religiosas, nas públicas ou que estão na posse de alguma cidade, como também
não corria quanto a homem livre ou escravo fugitivo 1962.
§ 1262. Quanto às coisas públicas, a questão da prescrição tornou-se um tópico
crítico, pois, numa época em que os registos eram raros, a titularidade de poderes
públicos ou jurisdicionais era, muito frequentemente, apenas a posse de exercer
esses direitos ou cobrar esses impostos.
§ 1263. Em geral, a prescrição - salvo, para alguns e apenas em alguns casos, a
centenária e a imemorial1963 - não podia correr contra os direitos supremos do
imperador ou do rei que não reconhecesse superior, nem contra o papa, pois
ninguém podia deixar de reconhecer a sua respetiva superioridade 1964. Ou seja,
ninguém se podia apropriar, por qualquer modo incluindo a prescrição, daquilo que
estava reservado aos reis em sinal de reconhecimento do seu poder de jurisdição,
nem podia invocar o direito prescrito de se eximir à sua obediência 1965.

1955 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 4.


1956 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 71.
1957 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 39. Cf. ainda Pascoal

de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 4, 11.


1958 Ainda que a posse fosse anterior ao facto que as tornou inalienáveis, cf. António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 40.


1959 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 63. Por isso, os direitos

usucaptos caducavam com a chegada de um novo administrador, que recuperava o morgadio na sua
condição originária.
1960 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 79.

1961 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 9: “Gaius libro quarto ad edictum provinciale.

Usucapionem recipiunt maxime res corporales, exceptis rebus sacris, sanctis, publicis populi Romani et
civitatium, item liberis hominibus”.
1962 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 30.

1963 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 20 e 21.

1964 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 23.

1965 “Iurisdictionalia & concernentiam iurisdictionem non praescribantur in hoc regno, etiam per

tempus immemoriale, licet aliud de iure communi atento”, Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit.,

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§ 1264. Embora, atento o direito comum, houvesse uma certa flutuação nesta
imprescritibilidade das regalia majora1966, no direito português era claro que elas não
podem ser usucaptas. Assim, no direito português, um senhor não podia usucapir o
direito de última apelação para o príncipe, embora isso fosse admitido por alguns
autores de direito comum1967.
§ 1265. Também o direito de criar ofícios não se adquiria por prescrição1968 (v.
cap. 2.4.3.5).
§ 1266. Do mesmo modo, nenhum senhor da terra ou castelo podia adquirir
jurisdição régia pelo simples decurso do tempo 1969, sendo obrigado a mostrar cartas
de concessão ou doação1970. Também os limites territoriais dos espaços
jurisdicionais não prescreviam 1971.
§ 1267. Não corria também para adquirir direitos sobre a via pública, como pôr
passadiço ou latada avançada sobre ela, a não ser que houvesse esse costume,
"como acontece – lembra António Cardoso do Amaral - no concelho de Ruivães,
onde eu nasci, todas as ruas são cobertas de videiras sobre latadas de madeira, na
parte de cima, de modo a não impedir a servidão"1972. Nem tão pouco corria
prescrição de longo tempo em relação a aqueduto público destinado ao uso da
cidade1973.
§ 1268. Também os bens do rei estavam protegidos contra a sua usucapião por
particulares. Os patrimoniais e fiscais só prescreviam a favor de particulares por
prescrição de 40 anos; os regalia majora e minora, os bens que continham jurisdição,
os impostos, nunca se extinguiam por prescrição a favor dos súbditos 1974. Mas
extinguiam-se por prescrição de 30 anos os direitos de cobrar prestações (forais)
anuais ou mensais1975. Relativamente a estes direitos “de foral”, como as jugadas ou
censos “domaniais”1976, alguns defendiam que a prescrição aquisitiva (usucapião)
imemorial corria a favor dos senhores, mosteiros ou concelhos1977, como forma de
obter prestações deste tipo1978. Mas, normalmente, referiam-se apenas a uma posse
imemorial já na altura em que os forais tinham sido reformados por D. Manuel.

obs. 65, n. 29. Pelo direito do reino, não podiam prescrever (ser usucaptos) nem a as jurisdições, nem
os direitos reais, nem o padroado régio, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 65, ns 1 a 3.
A não ser em virtude de privilégio pois o príncipe teria uma intentio fundata em relação a tudo aquilo que
pertencesse à jurisdição real, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 24.
1966 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 120, n. 20 e 21.

1967 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 40, n. 13.

1968 Pois nas coisas relativas à superioridade do império ou aos tributos não há prescrição nem

imemorial, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2, dec. 33, n. 2.


1969 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 25.

1970 Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit., qu. 8.

1971 Não prescrevem os termos das paróquias ou das dioceses, cf. António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 32..


1972 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 36.

1973 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 37.

1974 Cf. v. Ord. fil.2, 27, 1; cf. António C. do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 44.

1975 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, 35.

1976 I.e. devidos ao senhor, não ao proprietário (como os foros enfitêuticos). V. Ord. fil. 2, 27, 1.

1977 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 67.

1978 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 167, n. 22.

376
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1269. No caso dos direitos jurisdicionais e disciplinares da Igreja, a prescrição


também não corria1979. Os prelados inferiores não podiam usucapir contra os
bispos quanto às suas atribuições reservadas1980. Porém, o rei podia adquirir dos
bispos a apresentação de benefícios por prescrição imemorial, assim como os
bispos podiam adquirir estes direitos contra o papa 1981.
4.3.2.1.10.6 Contra quem não corria a prescrição.
§ 1270. Uma outra limitação da usucapião é que não corria contra certas
pessoas, nuns casos em razão da sua dignidade, noutros casos com intuito de as
proteger.
§ 1271. Não corria, desde logo, contra incapazes ou pessoas atingidas por
alguma capitis diminutio, enquanto o fossem. Era o caso dos menores1982, da mulher
casada1983, do ausente em serviço da república1984.
§ 1272. Também a Igreja estava mais protegida. Decerto, pela dignidade do seu
múnus, mas também porque, como corporação, tendia para ser equiparada ao
menor. Por isso, embora a igreja adquirisse por usucapião contra privado por 10
anos (ou 30 sem título), o privado só adquiria contra a Igreja com prescrição de 40
anos com título e, sem isso, com prescrição imemorial 1985. Para além disto, os
direitos e bens episcopais não prescreviam sede vacante1986, enquanto o prelado
estivesse impedido (v.g. por excomunhão), ou enquanto vivesse o prelado que os
tivesse alienado1987.
§ 1273. Existiam ainda inúmeras prescrições extraordinárias, a que
correspondiam prazos diversos para exercer direitos ou pedir providências1988.

1979 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 38 e 43.
1980 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 27 e 66.
1981 Ou vice versa, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 22.

1982 “Praescriptio dormit dum pupillaris aetas durat, nisi emens a pupillo putet illum esse
maiorem”, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 60. Por exemplo,
nas coisas vendidas por menores sem autorização do tutor, a prescrição a favor do comprador não
corria enquanto durasse a menoridade, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Praescriptio”, n. 61. As Ordenações excetuavam a prescrição por tempo longuíssimo: Ord. fil.4, 79, 2;
Ord. fil.3, 41, 6..
1983 Não corria contra os bens dotais constante matrimonio, pois a mulher não tinha capacidade para

agir por si, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 64.
1984 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 56.

1985 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 65.

1986 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 55.

1987 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 59.

1988 Cf. exemplos em Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 4, 14: Com efeito, a

acusação criminal prescrevia por 20 anos, Ord. fil.1, 84, 23; a querela (cf. v. cap. 8.1.6.3) devia ser
apresentada ao juiz dentro de 1 ano, Ord. fil.5, 2, 4 e 117; a apelação (cf. v. cap. 8.1.6.4.23) devia ser
interposta dentro de 10 dia (Ord. fil.3, 70) e prosseguida no juízo superior dentro de 6 meses (Ord. fil.3,
70, 3 e 4); a exceção non numeratae pecuniae (de dinheiro não recebido) devia ser oposta dentro de 60 dias
(Ord. fil. 4, 51); os herdeiros não tinham que prestar contas aos testamenteiros passados 25 anos (Ord.
fil.1, 62, 8 e 22); os salários dos escrivães e tabeliães prescreviam 3 meses depois de dada a sentença (Ord.
fil. 1, 70, 19; e 1, 8); só dentro de ano e dia se podia acionar por damno infecto (por dano causado) e pelo
interdito quod vi aut clam (por dano violento ou oculto), Ord. fil.1, 68, 25); a mulher só podia demandar o
seu estuprador até 1 ano depois de deixarem de ter relações (Ord. fil. 5, 23, 2); a acão de nulidade
prescrevia por 40 anos; a de lesão enorme, por 30; Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 82, n. 7.

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4.3.2.1.10.7 Termos, suspensão e interrupção.


§ 1274. A prescrição corria a partir do momento em que o proprietário pudesse
propor uma ação de reivindicação da coisa (ou, no caso da prescrição extintiva de
créditos, desde o momento que o crédito se tornasse exigível) 1989. Circunstâncias de
impacto geral1990 (suspensão natural, como o roubo da coisa ou circunstâncias de
força maior que impedissem a posse ou o exercício da ação reivindicatória, como
no caso de peste) suspendiam o curso do prazo1991. Interrompida naturalmente,
recomeçava quando a posse se restaurasse1992.
§ 1275. A interrupção da prescrição dava-se pela manifestação formal por parte
do proprietário de que reclamava a propriedade da coisa. Esta manifestação podia
ser a retoma (não violenta nem clandestina) do uso da coisa ou (spolius), ou a citação
ou litis contestatio de uma ação de reivindicação (ou de cobrança do crédito) por ele
proposta1993.
4.3.2.2 Os poderes do proprietário.
§ 1276. Os poderes do proprietário consistiam na propriedade ou domínio
(dominium, cuja definição corrente era “o direito perfeito [i.e. pleno] de ter, possuir,
fruir, usar e dispor de alguma coisa, pelo arbítrio da sua vontade ou segundo algum
modo determinado e definido por algum poder superior ou autoridade”1994. Esta
definição parece muito alargada, mas de facto não o é tanto. Por um lado, a
referência ao carácter arbitrário do uso retira da palavra arbitrium a ideia de
ponderação e medida destacada no conhecido estudo de Massimo Meccarelli 1995
que, justamente, ligava o arbítrio àquilo que fosse razoável adequado, esperado,
opondo-o ao desordenado e insuscetível de ser justificado (licentia). Por outro lado,
este uso “arbitrário” da coisa também está circunscrito (determinatum) e limitado

1989 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, ns. 47 e 48.
1990 A interrupção natural aproveitava a todos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Praescriptio”, n. 77. A civil, só aproveitava àquele contra aquele contra quem a prescrição era
invocada, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 78.
1991 Cf. D.41.3 De usucapionibus et usurpationibus, 5; “Gaius libro 21 ad edictum provinciale
Naturaliter interrumpitur possessio, cum quis de possessione vi deicitur vel alicui res eripitur. Quo casu
non adversus eum tantum, qui eripit, interrumpitur possessio, sed adversus omnes. Nec eo casu
quicquam interest, is qui usurpaverit dominus sit nec ne: ac ne illud quidem interest, pro suo quisque
possideat an ex lucrativa causa”. Cf. António C. do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 48.
1992 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 63, n. 8.

1993 Cf. D.41.3.2. cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, n. 78. Para

a interrupção da prescrição: na prescrição de 30 ou 40 anos, bastaria a citação; na de longo tempo, seria


necessária a litis contestatio, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 63, n. 7. A questão era
discutida.
1994 “Ius perfectum habendi, possidendi, fruendi, utendi ac disponiendi de aliqua re, pro
voluntatis arbitrio aut secundum aliquem modum determinatum, & deffinitum aliqua superioritate, vel
auctoritate”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Praescriptio”, v. “Dominium”, n. 1. A
definição de Bártolo era “ius in re corporali perfecte disponendi nisi lege prohibetur”, glosando D.41, 2
De adquireda poss. 17, 1: “41.2. De adquirenda possessionem, 17: Pr. Si quis vi de possessione deiectus sit,
perinde haberi debet ac si possideret, cum interdicto de vi reciperandae possessionis facultatem habeat.
1. Differentia inter dominium et possessionem haec est, quod dominium nihilo minus eius manet, qui
dominus esse non vult, possessio autem recedit, ut quisque constituit nolle possidere. Si quis igitur ea
mente possessionem tradidit, ut postea ei restituatur, desinit possidere”.
1995 Massimo Meccarelli, Arbitrium […], cit..

378
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

(deffinitum) por poderes superiores.


§ 1277. Se se examinar um pouco mais detidamente o regime da propriedade
percebemos melhor que se tratava de um complexo de direitos e de deveres com
um conteúdo fluido, bem longe de um direito pleno, unilateral e exatamente
definido sobre uma coisa objetivamente identificada1996.
§ 1278. Por um lado, o uso da propriedade estava diversamente limitado por
restrições legais ou estatutárias, introduzidas pelo príncipe (ou outra entidade que
não reconhecesse superior, nos termos daquilo a que mais tarde se chamará o seu
dominium eminens: aqui se inclui a possibilidade de confisco, de expropriação 1997, de
regulamentação edilícia. Por outro lado, o proprietário tinha que se conformar com
restrições ao uso da coisa originadas nas relações de vizinhança, urbana ou rústica.
Por fim, a fruição estava limitada pela ideia de “uso honesto” ou uso conforme à
natureza, que podia obrigar a cultivar, proibir a destruição de coisas úteis, impedir
usos desonestos (meretrício1998, negócios usurários).
§ 1279. Em contrapartida, a propriedade dava direitos sobre prédios vizinhos.
Por um lado, um direito geral a uma pretensão de propriedade sobre prédios
contíguos abandonados – as chamadas: entradas e saídas1999. Por outro, alguns
direitos de interferir no uso de prédios vizinhos. O proprietário podia exigir a
expulsão do prédio vizinho de pessoas barulhentas e rixosas 2000 ou de
prostitutas2001, pois se presumia “uma certa sociedade e fraternidade entre
vizinhos”, que explicava que se matasse a ovelha infetada para que não
contaminasse todo o rebanho” ou para que “o exemplo do mal não provocasse e
perturbasse os que vivem honesta e sossegadamente” 2002.
§ 1280. O dono também podia celebrar convenções com outros acerca dos seus
bens. O limite, num caso ou noutro, era a lei e o prejuízo de outrem 2003. Porém, o
domínio estava, como se disse, sujeito às leis da sociedade, devendo o dono usar da
coisa segundo as normas prescritas, sem que por isso fosse menos dono. Daí que as
proibições de alienar, que impendiam sobre o marido, sobre os tutores, sobre os
administradores de morgado, sobre os donatários de bens da coroa, não os faziam
menos donos ou senhores2004, nem sequer eram entendidas como dando origem a

1996 V. Virpi Mäkine, Property Rights in the Late Medieval Discussion on Franciscan Poverty, cit..
1997 V. Ugo Nicolini, La proprieta, il principe e l'espropriazione per pubblica utilita […]: U. Nicolini,
“Espropriazione per pubblica utilità”, cit..
1998 Quem alugasse a sua casa para prostituição, perdia-a (Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],

cit., ad 1, 22, glos. 5, n. 6).


1999 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.4, 43, 15, n. 6

2000 Que incomodariam sobretudo os advogados e os estudantes, que eram perturbados nos seus

estudos, nomeadamente pelos artesãos (ex. os que usam de martelos e malhos, como os latoeiros),
Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., ad 1, 22, glos. 5, n. 16. Refere uma sentença de 1660 a
favor de um advogado.
2001 “Mulher que publicamente se prostitui e vende o corpo, não a que por amor ou espírito de

serviço [!] aceita alguns homens”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 3, ad 1, 22,
glos. 5, n. 11. A “Lei dos julgadores dos Bairros de Lisboa” regulava o exercício da prostituição
(transcrita em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 5, ad 1, 65, gl. 17, e tomo 3, ad 1,
22, gl. 6).
2002 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., ad 1, 22, glos. 5, n. 9.

2003 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 33.

2004 Cf.. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., 194, n. 22.

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uma divisão do domínio. Tratava-se apenas de limitações ao domínio, de modo a


salvaguardar o interesse da república e dos cidadãos 2005. Nas coisas comuns a vários
particulares, a disposição da coisa exigia, naturalmente, o acordo dos sócios ou
comproprietários.
§ 1281. Como o domínio podia integrar um complexo vasto de diferentes
direitos2006, a doutrina distinguia várias espécies. O domínio jurisdicional (domnium
iurisdictionis)2007, que consistia na titularidade da jurisdição, ou seja do poder de dar
ordens e de exercer a jurisdição; o dominium eminens, de que se falará muito no séc.
XVIII, para referir o direito do príncipe sobre as terras dos súbditos, que explicava
os seus poderes de expropriação e de imposição fiscal; o domínio direto (dominium
directum, ou nua propriedade2008), que consistia numa intenção protegida pelo
direito2009 de ser dono de uma coisa sobre a qual não se dispunha de um poder de
uso, mas que obrigava aquele que detinha a faculdade de uso a prestar serviços ou
pagar um cânon; o domínio útil (dominium utile, ou usufruto), correspondente em
negativo ao anterior, facultando o uso de uma coisa, contra o pagamento de certas
prestações de serviços ou bens pagas ao senhor direto como reconhecimento do
seu domínio2010; o domínio doméstico (dominium domesticum)2011, significando o
poder do pater sobre as coisas e pessoas da casa. Era esta multiplicidade de espécies
de dominium que explicava que pudesse haver mais do que um dono (ou senhor) da
mesma coisa, embora os seus domínios não pudessem ser da mesma espécie, pois
não podia haver duas pessoas a exercer os mesmos poderes sobre a integralidade da
coisa2012. Havia ainda quem falasse em quasi dominium, não no mesmo sentido em
que se falava em quasi possessio, mas no de referir o direito adquirido por quem
comprasse, de boa fé, uma coisa a quem não fosse dono dela ou o do herdeiro à
herança: não a podia defender com a reivindicação, mas era titular de uma actio
publiciana 2013.

2005 V. Ord. fil.4, 107, pr.início. Do mesmo tipo eram outros institutos que limitavam ou

condicionavam o direito de propriedade: prescrição por parte de terceiros, expropriação, insinuação das
doações, solenidades dos contratos e testamentos.
2006 Cf. Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., II, 11, n. 4.

2007 “Dominus (iurisdictinis) est ille qui dominium iuste, & legitime acquisivt in iusto bello, aut per

legitimam succesionmem, sive per consensum seu electionem populi habentis potestatem eligendi
dominum, aut per institutionem principis vel aligius superior habendi iurisdictionem & potestatem
eligendi dominum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Dominium”, n. 1.
2008 A palavra “propriedade” era usada para designar a nua propriedade. Arnold Vinnius, In quattor

libros Institutionum [...], cit., ad 2, 1, 11, 3.


2009 Requeria, portanto, animus dominandi, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Dominium”, n. 2.
2010 Cf Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., II, 11, n. 4. Esta distinção entre

dominium directum e utile ocorria nos bens feudais e na enfiteuse. Em Portugal, entendia-se que não havia
bens feudais (apesar de Ord. fil.5, 6, 16-17), v. cap. 2.4.3.5.
2011 “Dominus tenetur corrigere quemcumque de familia sua”, António Cardoso do Amaral, Liber

[...], cit., s. v. “Dominium”, n. 5; “potest servum suum castigare”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Dominium”, n. 6.
2012 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 244, n. 1. Mas podia haver comproprietários,

que senhoreassem uma parte indivisa da coisa (metade, um terço, etc.).


2013 Joannis Oynotomi, In quatuor institutionum [...], cit., II, 11, n. 8. A actio publiciana era uma actio

in rem (utilis) concedida pelo pretor para tutela dos possuidores de boa fé com um título que acreditavam
ser válido, v. cap. 7.1.3.2.

380
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1282. O proprietário podia reivindicar a sua coisa em juízo por ações reais 2014,
que incidiam sobre a coisa, independentemente de quem a possuísse 2015. E também
defendê-la extrajudicialmente (mesmo pela força, desde que imediatamente e
quando não fosse possível recorrer ao auxilio do juiz, Ord. fil. 4, 58, 2).
4.3.3 A enfiteuse.
§ 1283. Francisco Caldas Pereira de Castro, 1543-1597, porventura o mais
destacado dos juristas que trataram extensamente da enfiteuse nos finais do séc.
XVI destacava, a propósito de uma discussão de que falaremos, o caráter
emblemático da enfiteuse quanto aos modos de possuir e transmitir os bens. O
reino de Portugal seria uma única e imensa enfiteuse. Ter terras era ter concedidos
certos rendimentos anuais, mas não a possibilidade de dispor delas, por morte e em
vida. Era assim que se possuíam os morgados, as capelas, os bens da coroa, os bens
emprazados, os bens censíticos. Era assim que o rei tinha a maior partes das suas
terras, mesmo as terras jurisdicionais e até o reino. Era assim que os senhores
jurisdicionais tinham as terras da coroa dos reinos. Era assim que os bispos, as
mitras e os abades dos mosteiros tinham as terras da Igreja. Era assim que os
oficiais tinham os ofícios, de disposição limitada pela graça do rei e pelos direitos
dos filhos. Era assim que os lavradores tinham as suas herdades, tomadas de rendas
por vidas ou longo tempo. Quase como meros administradores, a quem tinha sido
concedido um domínio útil, mas não um pleno poder de disposição, que estava
noutrém (a coroa do reino, a Igreja, as famílias, os senhores diretos) 2016. A fortuna
eram, na verdade, constituída por rendas, mas não por bens.
§ 1284. Esta constituição social (e jurídica) da terra tinha alguns traços
estruturais: a precariedade da concessão, a indisponibilidade por vida ou por morte
e a indivisibilidade. E isto gerava um habitus social correspondente: a dependência
em relação ao concedente, um poderoso ou protetor de quem se esperava
liberalidade e constância; a inculcação de um modelo de sociedade em que os
indivíduos contavam menos do que as entidade transindividuais (a família, a Igreja,
a Coroa) e em que os laços de solidariedade que estas entidades causavam se
projetava na vinculação e indivisão do seu património dos particulares.
§ 1285. Não era que tudo fosse enfiteuse, mas que quase tudo se usava e se
transmitia como se o fosse. O que restava, os bens de que se pudesse dispor

2014 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, 23. A reivindicação era um

elemento típico e indispensável do domínio. Quem não dispusesse dela não era proprietário. Mas, em
contrapartida, quem não fosse proprietário não a podia usar. Cf.. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
172, n. 12.
2015 Podia reivindicar a coisa própria de qualquer possuidor a quem tivesse sido entregue sem ser

em nome do proprietário, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, n. 23; mesmo que
o possuidor a tivesse, entretanto, dado em penhor, já que o proprietário não era afetado por atos de
disposição praticados por terceiros (res inter alia acta gesta non nocet nec prodest), António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Res”, ns. 24-25 (exceções à regra).
2016 “Se considerarmos tanto os bens temporais como eclesiásticos, o que é este reino senão uma

única e universal enfiteuse ? Nos reinos de Portugal quase todas as propriedades (possessiones), como
capelas, morgados, igrejas, bens da coroa, são vinculadas (addictae). Tiradas estas, apenas fica uma
porção exígua. O que são os proventos e rendimentos das capelas, dos morgados, das igrejas, ou dos
bens da coroa, senão várias e inumeráveis concessões enfitêuticas ? O quê, senão benefícios de
senhores [úteis, enfiteutas], distribuídos a várias pessoas ? O quê, senão um número frequentíssimo de
enfiteuses ?”, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus, de renovatione emphyteutica [...], cit., qu.
11, n. 21.

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livremente - por exemplo, os bens alodiais em exploração direta, os bens


arrendados, os bens censíticos ou censuais, ainda assim com pontos de contacto -
pouco representava.
§ 1286. Por isso, entender a enfiteuse e a pré-compreensão da sociedade que lhe
subjaz é dispor de uma poderosa chave interpretativa para a sociedade de Antigo
Regime.
§ 1287. A enfiteuse2017 (também designada por prazo2018 ou emprazamento) era
um direito, perpétuo ou temporário, sobre um bem (imóvel) que permitia ao
possuidor (enfiteuta, colono) melhorá-lo e gozar dos seus rendimentos e frutos,
pagando certo cânone (foro ou pensão) em reconhecimento do domínio direto de
outrem2019. Alguns autores acrescentavam como elemento essencial da enfiteuse a
obrigação para o enfiteuta de não vender os bens sem consentimento do senhorio
direto e de, no caso de venda, pagar a este um certa quantia (laudémio), como que
gratificando-o por não exercer o seu direito de preferência 2020.
§ 1288. A origem da enfiteuse parece que estaria na forma romana de conceder
os prédios públicos tributários (vectigales), pelos quais os concessionários pagavam
uma prestação anual perpétua2021, dependendo a concessão de renovação e estando
sujeita a caducidade (commissum) no caso de se violarem as condições da concessão.
4.3.3.1 Natureza da enfiteuse
§ 1289. A estes traços estruturais que constavam da definição, a lei portuguesa
acrescentava a indivisibilidade2022.
§ 1290. A enfiteuse era declarada por lei2023 como indivisível, não pela sua
natureza – pois nada impedia que fosse dividia em glebas -, mas porque a lei
portuguesa queria, segundo aí se diz, evitar a confusão dos foros pela sucessiva
partição entre os herdeiros. Este não era o regime de direito comum, que

2017 Do grego εημύτευσις, proveniente do verbo έμφυτεύω, plantar; daí “lugar para plantar e fazer

frutificar”.
2018 De placitum, aprazimento, gosto, graça.

2019 “Contractus meliorationis, seu datio, per quam utile dominium rei immobilis transfertur in

perpetuum, vel ad tempus, pro quo solvitur aliquid reale, per tempora constituta, directo domino, in
recognitione dominii”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 1; Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 1. Fontes legais e doutrinais: D.6.3 Si ager vectigalis, id est
emphyteuticarius, petatur; C.4.66. De emphyteutico iure (também, C.11.62 a 65); Ord. af.4, 78-80, Ord. man.4,
63-65; Ord. fil.4, 36 a 41; Álvaro Valasco, Tractatus de jure emphyteutico […], cit., pt. 1, qu. 1; Francisco
Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., qu. 1 e ss.; Francisco Pinheiro, De censu et emphyteusi,
cit., pt. 2, disp. 1; Manuel Barbosa, Remissiones […], cit, ad Ord. fil. 4, 36 ss.; Luís de Molina, Tractatus
de iustitia […], cit., tract. 2, disps. 10, 444 a 447, 472-473; João Baptista Fragoso, Regimen […], cit.,
pt. 3, disp. 9, ns. 1 a 5 e 7; Mauro Luís de Lima, Commentaria […], cit., ad Ord. fil. 4, 36 e ss..
2020 “Non censetur emphyteuticus contractus quando in eo non fuit adjecta clausula, quod fundus

nun potest vendi irrequisito domino, & absque eo quod laudemium illi solvatur”, Jorge de Cabedo,
Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 153, n. 1.
2021 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 2.

2022 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 16; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 18.


2023 Ord. fil. 4, 36, 1 ("e por quanto o foro não há-de ser partido entre muitos") e Ord. fil.4, 96, 23

(“E porque os taes bens, segundo a natureza dos foros, não se hão de partir, e hão de :andar em uma
só pessoa”).

382
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

considerava a enfiteuse como divisível, assimilando-a aos feudos2024. O regime de


indivisibilidade – que era o da Coroa do Reino, das jurisdições, dos bens da coroa e
dos morgados – iria dar à enfiteuse um leve sabor aristocrático. Como a proibição
de dividir era apenas de direito régio, ela poderia ser afastada por costumes
imemoriais das regiões2025. E, assim, na província de Entre Douro e Minho, a
indivisibilidade era mitigada: embora só um dos herdeiros se relacionasse com o
senhorio para pagar integralmente o cânone, cada herdeiro ficava com a sua parte
dos bens emprazados, pagando ao cabecel a sua quota deste 2026. Nas outras
regiões, havendo vários herdeiros, um apenas (o cabecel) ficava com os bens
enfitêuticos, dando tornas aos outros pelo valor que lhes caberia se houvesse
divisão2027. O cabecel era escolhido por votos dos herdeiros. Na falta de acordo
maioritário, os bens deviam ser vendidos no prazo de seis meses 2028.
§ 1291. Outra característica da enfiteuse, acrescentada pelo direito régio era; a
de apenas se permitir o emprazamento de imóveis 2029.
§ 1292. Características naturais da enfiteuse, que nela não podiam faltar nem
ser afastadas por pacto eram: a divisão de domínios (direto e útil) entre o senhor
(senhorio) e o enfiteuta (colono), não podendo este último alienar por sua vontade
os bens sem os oferecer à preferência (prelação) do senhor 2030 e perdendo o seu
direito se não pagasse o cânone por 3 anos.
§ 1293. Em contrapartida, não eram naturais, sendo alteráveis pelo pacto de
constituição2031, a existência e montante do laudémio, o pagamento pelo senhor das
benfeitorias feitas pelo colono, a formalidade da constituição – na enfiteuse
eclesiástica, a escritura pública era necessária -, modo, qualidade e tempo do
pagamento do cânon, a ordem de devolução sucessória dos bens emprazados 2032.
4.3.3.2 Contra distinção entre enfiteuse e outras situações fundiárias.
§ 1294. A constituição jurídica da terra era complexa na sociedade de Antigo
Regime. O que se passava era que os juristas tentavam enquadrar em figuras
dogmáticas da tradição romanística a multiplicidade infinita de situações concretas,
associando-lhes nomes, conceitos e regimes jurídicos típicos. Assim, impunha-se
um importante esforço de diferenciação conceitual, sobre a qual assentavam

2024 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 24.
2025 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 78.
2026 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 18.

2027 O que havia, portanto, era divisão ideal, apenas para calcular o valor da parte que competiria

a cada herdeiro e pela qual ele teria de ser indemnizado pelo cabecel.
2028 Sem direito de preferência do senhorio direto, nem laudémio, pois a venda não fora decidida

pelos herdeiros, mas pelo direito; cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 53, ns. 1 a 3; Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., [...], cit., pt. 1, dec. 107, n. 1 ss.; António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 24.
2029 V, Ord. fil.4, 37, pr. ("herdade, vinha, casa, olival ou outra possessão de foro").

2030 V. Ord. fil.4, 38, pr. e 1; mesmo que no pacto estivesse permitida a venda sem consentimento

do senhor, cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 116, n. 1.


2031 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 3

2032 Antes de tudo, nestas condições não naturais do contrato, valia o pacto, desde que não se

subvertesse totalmente a substância do instituto, por contrariar algum dos seus elementos naturais,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 14; Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis [...], cit., 3, 11, 3.

383
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consequências normativas e institucionais.


4.3.3.2.1 Enfiteuse e locação (colonia simples).
§ 1295. Distinguia-se a enfiteuse da locação (também chamada colonia simples)
(v. cap. 6.9.2.2.3), pois esta última não criava uma situação real. Assim, a posição do
locatário era tutelada por uma ação pessoal. Além disso, a renda da locação não era
paga em reconhecimento do domínio direto, mas como a retribuição da cedência
do direito de cultivar e receber os frutos, devendo haver alguma correspondência
entre a pensão e os frutos, nomeadamente para efeito de reduzir aquela quando
estes diminuam drasticamente, ou para decidir acerca da lesão enorme, por
insuficiência ou excesso gritantes das rendas. Esta correspondência cânon-frutos
era muito atenuada na enfiteuse, pois a função do cânone era outra 2033. Para
designar, em geral, os que pagavam pensões fundiárias usava-se a palavra colono.
Diziam-se simples colonos os que cultivavam o prédio alheio, como arrendatários
ou locatários, pagando renda certa ou parciária 2034 ou certos serviços (não havia
colonos adscritícios, v. Ord. fil.4,42).
§ 1296. Já a locação por longo tempo era considerada como uma espécie de
alienação pela qual se transferia o domínio útil 2035, embora, em rigor, não houvesse
laudémio nem comisso2036. Outra espécie de locação era a constituição de um
direito de superfície, ou seja do direito de ter uma coisa edificada ou plantada em
solo alheio (v. cap. 4.3.10).
4.3.3.2.2 Enfiteuse e censo.
§ 1297. Considerada como uma questão muito importante, dada a frequente
ocorrência dos dois institutos e a também frequente incerteza dos regimes
pactados, era a distinção entre enfiteuse e censo2037.
§ 1298. Os censos eram uma instituição muito antiga, que aparecia nas Siete
Partidas (3,18,68), remontando ao direito feudal. O censo podia ser simples ou feito
com “investidura” – um ato solene em que o senhor da coisa transferia para outro
o domínio útil da coisa mediante certas palavras, sob condição de fidelidade e
estipulação de serviços militares ou de outras prestações pessoais. Este último
correspondia a um contrato feudal, não estando em uso em Portugal. O primeiro
transferia o para o colono censitário o domínio pleno, com livre alienação e sem
comisso por não pagamento do foro, embora permanecesse a obrigação de
pagamento do foro. Assim e segundo a distinção dogmática, embora no censo
também houvesse divisão de domínios, o colono (censitário) era senhor pleno da
coisa, podendo aliená-la livremente, não pagando laudémio e não perdendo a coisa
por não pagamento do censo2038. Na dúvida sobre se a situação era enfitêutica ou
censítica, preferia-se presumir a situação de maior liberdade de disposição que era a

2033 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 4.


2034 Cf. “colono parceiro”, em Ord. fil.4, 45, 2.
2035 V. Ord. fil.3, 47, pr.; 3, 48, 8.

2036 Cf. no entanto, Ord. fil.4, 38-39, que parece referir-se também à locação de longo tempo. Cf.

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 4 nota.


2037 Cf. Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici [...], cit., qu. 32.

2038 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 3; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 5.

384
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

do censo2039.Os bens censíticos que pagassem pensão ao rei estavam muito


próximos dos bens chamados reguengos (v. cap. 4.2.2.4), pois ambos pagavam uma
quantia ao rei, ou como tributo em reconhecimento do seu senhorio natural (no
caso dos reguengos), ou como pensão contratual perpétua (no caso do censo) 2040.
Era uma das tais questões intrincadas que resultavam da incerteza quanto à
natureza da pensão, da qual dependia o encaixe de antiquíssimas situações agrárias
na dogmática da doutrina jurídica moderna.
4.3.3.2.3 Enfiteuse e feudo.
§ 1299. Também nos feudos, havia elementos próximos da enfiteuse 2041. Um
deles era a divisão do domínio, pois o feudo era a concessão benévola por alguém
de uma coisa imóvel de tal modo que permanecesse no concedente apenas a
propriedade da coisa imóvel, transitando o seu usufruto para o adquirente e seus
herdeiros, varões e mulheres (se expressamente referidas), ficando-lhes a pertencer
perpetuamente, para que sirvam fielmente o seu senhor” 2042. A diferença entre
enfiteuse e feudo consistia, porém, em que feudo importava homenagem (serviços
pessoais) e serviço militar (ad militandum)2043, ao passo que a concessão enfitêutica
não exigia qualquer vínculo político pessoal 2044 e era feita com a finalidade de
cultivo (ad cultivandum). Em Portugal, não existiam feudos; mas a doutrina
aproximava deles as beetrias, o domínio de solar, a obrigação de servir a cavalo e as
capitanias dos castelos (alcaidarias-mores); mas não as doações de bens da coroa 2045
(v. cap. 2.4.3.5).
4.3.3.2.4 Enfiteuse e concessões precárias de coisas eclesiásticas.
§ 1300. Estas concessões precárias de coisas eclesiásticas eram feitas pelos

2039 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 153, ns. 1-2; todavia, em sentido

contrário, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 37, n. 10: se a pensão corresponde aos
frutos, presume-se que se trata de arrendamento (colonia); quando ela é módica, como costuma ser nos
casos de censo e de enfiteuse, presume-se que se trata de enfiteuse.
2040 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 11, Nota.

2041 De modo a autorizar o uso do argumento ab emphyteusi ad feudum e vice versa. Cf. Álvaro

Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici […], cit., qs. 38-41, 51.


2042 Cf. Marius Giurba, Repetitiones […], cit., Prael. II, n. 1.

2043 Cf. Siete Partidas, 4, 25-26, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 5-6.

2044 V. Ord. fil..4.42.

2045 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 6 nota. Sobre a distinção entre

feudos e doações dos bens da coroa, v. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., ps. 407-409.
O carácter não feudal das concessões de bens da coroa fora enfaticamente declarado (nas Ord. man. 2,
17, 2). Com este princípio, obtinham-se alguns resultados práticos. O primeiro deles era o de distinguir
as obrigações dos donatários das dos feudatários. Na verdade, o serviço feudal tinha um carácter
pessoal, mas limitado aos termos do pacto de enfeudação. Em contrapartida, entendia-se que os
serviços dos donatários, embora também de natureza pessoal, eram ilimitados, consubstanciados numa
promessa genérica de obediência (Ord. man.2, 17, 3). Eles serviriam enquanto vassalos naturais, sem
limitações na guerra defensiva e até ao limite daquilo que pudessem (tantum intra vires) na guerra ofensiva.
O segundo era o de estabelecer o carácter em princípio temporário da doação de bens da coroa, contra
o carácter perpétuo da concessão feudal. O terceiro era o de sublinhar o carácter indivisível dos bens da
coroa (Ord. man. 2, 17, 2; 2, 14; 2, 25) contraposta à natureza em princípio divisível da concessão feudal,
só afastada no caso de concessões que contivessem dignidades ou em que o pacto fixasse o contrário.
Finalmente, a última consequência da distinção entre feudo e doação régia era a de que os feudos se
regulavam pelo direito feudal, contido nos Libri feudorum, nomeadamente quanto à interpretação e
integração das suas cláusulas, enquanto que as doações régias se regiam pelo direito pátrio, legislado ou
consuetudinário, embora o direito feudal vigore como direito subsidiário.

385
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bispos, no exercício do seu poder económico (doméstico), a clérigos ou pessoas


necessitadas, podendo ser de bens móveis e não obrigarem ao pagamento de
pensão2046.
4.3.3.3 Espécies de enfiteuse.
§ 1301. A enfiteuse podia ser secular, quando incidisse sobre bens profanos, e
eclesiástica, quando bispos, reitores ou administradores de igrejas ou casas religiosas
concedessem bens eclesiásticos 2047.
§ 1302. As Ordenações dispunham que a enfiteuse eclesiástica fosse regulada
pelo direito canónico (Ord. fil.4,39,2 in fine). Daí que o seu regime pudesse ser
diferente do da profana.
§ 1303. A doutrina começava por se perguntar da sua legitimidade, pois tratava-
se de uma forma de alienação de coisas da Igreja, em princípio proibida 2048. Apenas
se justificaria por causa da necessidade ou da utilidade da Igreja em fazer cultivar
terra de outro modo inculta2049; por isso, estaria excluída a concessão enfitêutica de
terras cultivados e férteis, a não ser que estas por costume andassem em
enfiteuse2050.
§ 1304. Não podia ser constituída sem as solenidades e requisitos do direito
canónico, requerendo escritura pública, não apenas para prova, mas também como
formalidade essencial2051. A sua concessão importava poderes de plena disposição,
como os dos bispos e dos abades; porém, os comendadores das ordens militares
não a podiam conceder sem autorização do mestre, pois não tinham tais
poderes2052.
§ 1305. Não podia conceder-se em perpétuo ou por mais de três gerações ou
vidas; alguns autores excetuavam o caso de emprazamento de terra inculta, para a
tornar mais atrativa ao foreiro2053.
§ 1306. Era bastante generalizada a opinião que sustentava que a Igreja podia
adquirir e reter perpetuamente os prazos vindos a si por comisso, devolução do
domínio útil pelo foreiro, aquisição deste domínio pelo senhorio nos casos em que
tinha direito de preferir na venda dele2054. Porém, esta consolidação do domínio nas
mãos da Igreja contrariava as leis de desamortização de 11 e 30 de Julho de 1611.
Por isso, segundo a lei 4.7.1768 e o Alv. de 12.5.1768, estas terras reintegradas no

2046 Cf. Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici [...], cit., qu. 34; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 5.


2047 V. Ord. fil.4, 39; Novelas. 7, 3 e 120, 6.

2048 Cf. C.1.2. De sacrosanctis ecclesiis et de rebus et privilegiis earum, 14 e 17; Decretais, 3, 13

De rebus ecclesiae alienandis vel non, cap. 5.


2049 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 12.

2050 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 12.

2051 Cf. Novelas 7, pr. e Novelas 120 cap. 5; Ord. fil.4, 19, pr.; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.,

pt. 1, dec. 13, n.4; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 28.
2052 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 23.

2053Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 22; se se concedesse

por mais, era reduzida a 3 vidas, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 72, n. 2. Para as
modificações pombalinas, v. CL de 9.9.1769, § 26.
2054 V. Ord. fil.1, 62, 48 e Ord. fil.2, 1, 6, que se permitia às comunidades eclesiásticas adquirir

prazos sem restrição de tempo.

386
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

domínio pleno da Igreja deviam ser de novo emprazadas pelas igrejas,


conservando-se as pensões antigas.
§ 1307. Outra especialidade relevante deste tipo de enfiteuse era a de bastar o
não pagamento do cânone por 2 anos para dar lugar a comisso; em compensação, o
enfiteuta podia purgar a mora, satisfazendo rapidamente as pensões antes da
contestação da lide (v. Ord. fil.4,39,2)2055.
§ 1308. Em suma. As especialidades da enfiteuse concedida pela Igreja
decorriam, ou da aplicação direta do direito canónico, ou de um favorecimento da
Igreja (nomeadamente, no caso de redução do prazo de comisso), ou da política da
coroa no sentido de restringir a propriedade eclesiástica.
§ 1309. A enfiteuse podia ser perpétua ou temporária 2056. Presumia-se que era
constituída apenas por vidas (por uma vida) e não em perpétuo 2057. Mas os autores
discutiam este ponto, tanto mais que, por um lado, a presunção da renovação
dependia do costume da região2058; e, por outro lado, porque o ponto se relacionava
com a polémica acerca da renovação da enfiteuse, a que nos referiremos mais tarde.
Era muito comum a enfiteuse em 3 vidas, por vezes com pacto de renovação findas
estas2059.
§ 1310. Quanto à ordem de sucessão, os atos de instituição de enfiteuse (pacto et
providentia, investitura) podiam estabelecer três modelos básicos 2060: a enfiteuse
hereditária (v. Ord. fil.4,36,7; 4,96,23); a enfiteuse familiar (v. Ord. fil.4,96,24); e a
enfiteuse de nomeação (Ord. fil.4,36-37), podendo esta ser livre, hereditária ou
familiar, dependendo do teor do pacto2061. A enfiteuse que não fosse hereditária,
dizia-se de pacto et providentia, pois a fonte da ordem sucessória não era o direito
hereditário, mas o que tivesse sido estabelecido no pacto de constituição da
enfiteuse.
§ 1311. Na enfiteuse hereditária, expressa pela cláusula “suceda Titius e seus
herdeiros e sucessores”2062 (podia ter outras condições, filho, varão), sucedia-se
segundo a ordem de sucessão legítima (iure hereditário, v. 5.3), como se os bens não
tivessem uma ordem sucessória especial. A única especialidade em relação à
sucessão legítima era a de que o fisco não sucedia pois, no caso de faltarem
sucessores legítimos, os bens voltavam ao senhorio direto 2063. Além de que, como
se disse antes, sendo vários os herdeiros, a enfiteuse se encabeçar num deles. O
pacto podia estabelecer certas condições para que os herdeiros sucedessem na

2055 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 7; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 28.


2056 V. Ord. fil.4, 39, pr. e Ord. fil.2, 1, 6 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Emphyteusis”, n. 13. Com a legislação pombalina, a enfiteuse temporária passou a ter que ser por 3
vidas (CL. 3.11.1757); antes podia ser dada pela vida do enfiteuta ou por 10 anos (v. Ord. fil.4, 38-39).
2057 Para designar a enfiteuse perpétua usavam-se os nomes de fateusim, aforamento, enfatiota.

2058 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 276, n. 3; no sentido da perpetuidade, Pascoal

de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 18.


2059 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 13.

2060 Para as fórmulas que indiciavam cada modelo, Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici [...],

cit., qu. 4, n. 8; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 8.
2061 Cf. v. Ord. fil.4, 38, ult..

2062 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 21.

2063 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 20.

387
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enfiteuse (linha masculina, varonia, primogenitura, legitimidade); neste caso, na


enfiteuse sucediam apenas os herdeiros que satisfizessem essas condições
suplementares.
§ 1312. Na enfiteuse familiar, expressa pela cláusula “suceda Titius e a sua
família”2064, os bens enfitêuticos não entravam na herança do enfiteuta, sendo
devolvidos segundo uma ordem sucessória própria, diferente do direito hereditário
comum. Essa ordem hereditária especial era o “direito de sangue”, a pertença à
família do último possuidor da enfiteuse, direito que fora fixado pelo senhorio
direto no pacto de constituição da enfiteuse. Então o sucessor não o era por ser
herdeiro do último enfiteuta, mas por benefício do senhorio direto ao estabelecer
aquela ordem de sucessão dos bens enfitêuticos. Também aqui, havendo vários
herdeiros, teria lugar o encabeçamento. E o fisco nunca sucedia. Em contrapartida,
podiam suceder os filhos deserdados, ou que tivessem recusado a herança, pois não
sucediam como herdeiros. Tal como na enfiteuse hereditária, também na familiar
podiam ser estabelecidas condições suplementares para suceder nos bens
(primogenitura2065, varonia, legitimidade2066).
§ 1313. A enfiteuse de nomeação exprimia-se pela forma “quem o último
possuidor escolher”, podendo este ser mais ou menos livre na escolha, pois o
senhorio direto podia impor condições limitativas à eleição e nomeação (v. Ord.
fil.4,37)2067. Podiam ser nomeados todos os que não se achassem especialmente
proibidos. A nomeação em vida, uma vez feita, não podia ser revogada 2068: Mas, no
caso de a escolha dever ser feita por morte, aquele a quem cabia a escolha podia
alterá-la até ao momento da morte, valendo, por isso, a ultimamente feita.
4.3.3.4 Quem podia emprazar e quem podia ser chamado a suceder no
prazo.
§ 1314. Podiam emprazar os que tivessem a livre administração dos bens a dar
em prazo. Todos podiam receber bens em enfiteuse 2069. Constituíam exceção: os
eclesiásticos que não podiam receber em enfiteuse bens reguengos 2070; os corpos de
mão morta2071; e os magistrados, quanto o senhor direto concedente estive sob sua
jurisdição2072.
§ 1315. Na enfiteuse eclesiástica, não eram admitidos à sucessão os filhos
naturais nem os espúrios ou os incestuosos, pelo desfavor com que eram tratados
pelo direito canónico (v. cap. 3.2.4)2073. Na enfiteuse profana hereditária, os direitos

2064 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 22.
2065 Considerava-se primogénito o filho mais velho que o fosse ao tempo do falecimento do
enfiteuta, devendo esse ser preferido ao neto filho do filho mais velho que faleceu em vida de seu pai,
Ord. fil.4, 36, 2. Para comparação com idêntica questão na sucessão dos morgados, v. cap. 5.4.6
2066 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 23.

2067 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 24.

2068 V. Ord. fil. 4, 37, 2; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 25.

2069 As mulheres eram admitidas à enfiteuse, mesmo à eclesiástica, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 28.


2070 V. Ord. fil. 2, 16.

2071 V. Ord. fil.2, 18.

2072 V. Ord. fil.4, 15.

2073 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 334, ns. 19 a 21; António da Gama, Decisiones

388
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

de vocação dos filhos naturais, espúrios ou incestuosos dependiam dos seus direitos
sucessórios (v. cap. 5.3.1.1), pois nela eram chamados enquanto herdeiros. Já na
enfiteuse profana ex pacto et providentia, fosse ela familiar ou de nomeação, a vocação
de bastardos, espúrios ou incestuosos dependia do teor das cláusulas do pacto. Em
geral, os filhos naturais podiam ser chamados, estando compreendidos na
designação geral de “filhos”2074. Esta palavra incluiria também os espúrios e os
incestuosos, o mesmo acontecendo no caso de nomeação livre; mas a opinião não
era unânime2075. Quanto aos filhos de segundo matrimónio, o seu direito à vocação
com os filhos do primeiro, dependeria do costume da região2076
4.3.3.5 Que coisas se podiam aforar.
§ 1316. Podiam ser dados em enfiteuse coisas imóveis ou unidas ao solo, que
estivessem no comércio2077, nomeadamente prédios, rústicos e urbanos, cultivados
ou incultos2078. Eram “coisas pegadas ao solo” as casas ou barracas de madeira, as
árvores, os moinhos de água ou de vento. Os tributos ou rendas perpétuos ou a
mais de 10 anos eram imóveis, podendo ser aforados2079, mas não se podiam aforar
os direitos e ações reais, os bens da coroa e os de morgado 2080. Uma lei de
25.7.1766 estabeleceu que os bens comuns dos concelhos só pudessem ser
emprazados com autorização do Desembargo do Paço.
4.3.3.6 Como se constituía e como se provava.
§ 1317. A enfiteuse constituía-se por contrato (de enfiteuse) ou por testamento.
A vontade do concedente constante do ato de instituição devia ser rigorosamente
observada (ad unguem), sendo de atender enquanto não contrariasse a natureza do
instituto2081. A escritura em tabelião não era um requisito substancial da enfiteuse,
servindo apenas para a sua prova (exceto na enfiteuse eclesiástica, que requeria
instrumento escrito2082). Daí que a enfiteuse se pudesse constituir por prescrição,

[...], cit., dec. 149, n.4; Ibidem, dec. 377, n. 6; Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 4.
Alguma doutrina admitia, porém, que sendo de livre nomeação, se pudessem nomear os filhos naturais
(Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec.161, n. 8).
2074 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 147, ns. 1 a 13, invocando, Ord. man.4, 62, 4 (a

que corresponde Ord. fil.4, 36, 4). Cf. porém, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 334. n. 7, em
que estende ao direito civil o desfavor canónico em relação aos bastardos.
2075 “Embora os espúrios sejam incapazes para ser nomeados para a enfiteuse eclesiástica, podem

ser expressamente chamados pelo concedente ou pelo enfiteuta a que for concedida a faculdade de
nomear livremente quem quiser” (Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 6). Porém, “a
concessão geral de nomear para enfiteuse não inclui espúrios e incestuosos” (António da Gama,
Decisiones [...], cit., dec. 377, n. 6).
2076 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 233, n. 9.

2077 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 11; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 9.


2078 Nas casas, a pensão só podia constar de dinheiro e aves (Ord. fil.4, 40), pois seria aquilo de que

os habitantes das cidades mais comummente podiam dispor.


2079 V. Ord. fil.3, 47, pr. e 5.

2080 Porque não podiam ser alienados, levando a que o senhorio perdesse os laudémios, v. Ord.

fil.2, 35, 25; Ord. fil.4, 41; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 26.
Porém, estas interdições cessavam por licença do rei, Ord. fil.2, 35, 25; Regimento do Desembargo do
Paço, ns. 39-40.
2081 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 14.

2082 V. Ord. fil.4, 19.

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havendo um uso antigo de o enfiteuta pagar uma pensão constante ao senhor.


Assim, se alguém pagasse pensão uniforme por 40 anos, presumia-se a existência de
uma enfiteuse perpétua2083.
4.3.3.7 Como se extinguia.
§ 1318. A extinção da enfiteuse podia ocorrer por várias causas, umas vezes por
culpa do enfiteuta, outras sem ela. Extinguia-se, sem culpa do enfiteuta, nos casos
de: extinção da coisa, cessão ou renúncia do domínio útil no senhorio (aceitando
este essa renúncia), prescrição extintiva (do senhorio direto) por não pagamento do
cânone por 40 anos, extinção das vidas ou cumprimento do prazo do contrato, por
qualquer causa de consolidação dos dois domínios na titularidade de um dos domini,
falta de sucessores. Por culpa do possuidor a enfiteuse perde-se: por falta de
pagamento do cânone durante três anos (comisso: Ord. fil.4,38 e 392084); por grande
deterioração da coisa2085; por alienação da coisa sem conhecimento do senhorio
(Ord. fil.4,38,pr.); por determinação da lei penal, por condenação em crime que
previsse esta pena (como na lesa-majestade) 2086.
4.3.3.8 Direitos do enfiteuta.
§ 1319. Uma vez constituída a relação enfitêutica, são os seguintes os direitos
de senhorio e enfiteuta2087.
§ 1320. O principal direito do enfiteuta é o de colher toda a utilidade e proveito
do prédio, como senhor útil dele2088. Este direito constitui, de algum modo,
também um dever, pois ele não podia deixar de cultivar a terra, tornando-a
infrutífera pelo abandono, nem podia renunciar ao domínio útil sem a autorização
do senhorio2089. Podia, porém, subconceder a enfiteuse, se isso fosse permitido pelo
pacto e se o senhorio nisso consentisse 2090.
§ 1321. Ou, mais radicalmente, o enfiteuta podia alienar o domínio útil, por
venda ou troca, a que eram equiparados o arrendamento por longo prazo2091 e
também o subemprazamento. Mas tudo isto apenas com o consentimento do

2083 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 33; Gabriel Pereira

de Castro, Decisiones […], dec. 37, n. 8; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 127, n. 1 (presume
a existência de título); o pagamento do cânon por 10 anos já bastava para presumir a existência de uma
enfiteuse temporária, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 33.
Correspondentemente, o não pagamento de pensão por 40 anos extinguia a enfiteuse, consolidando os
dois domínios no colono, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 149, n. 5.
2084 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, ns. 7 e 8. Porém, o

senhorio tinha que pedir a declaração do comisso; também podia optar por pedir o cânon em atraso e a
indemnização pela mora: ibid. n. 9 podia optar pelo pedido de indemnização pelo dano, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 9.
2085 Cf. Novela 120, cap. 8.

2086 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 17.

2087 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 12.

2088 A designação de útil dada ao domínio do foreiro parece expressiva, porque contém uma

referência à utilidade que o colono retirava do prédio. Porém, a designação provém do facto de os seus
direitos sobre a coisa não serem tutelados por uma ação direta (a reivindicatio), mas por uma ação útil,
uma vez que a ação direta pressupunha o domínio direto, que ele não tinha.
2089 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 35.

2090 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 4

2091 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 92.

390
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

senhorio, que devia poder evitar uma alienação que o prejudicasse 2092, devendo
pagar o laudémio ao senhorio2093. O direito do senhorio de aprovar a alienação e de
receber o respetivo laudémio não existia no caso de alienações forçadas, como: as
feitas por mandato do juiz2094; as alienações de parcelas feitas pelos herdeiros ao
herdeiro encabeçado; ou a alienação que tinha que ser feita no caso de os herdeiros
não concordarem com o encabeçamento2095. No caso de o domínio útil ter sido
concedido pelo pai como dote de filha, uma vez que ele estava obrigado a dotar, a
alienação não era considerada como voluntária e, por isso, não dependia de
autorização do senhorio direto nem pagava laudémio 2096.
§ 1322. A doutrina ponderava que, na realidade, o senhorio direto não tinha um
direito a autorizar a alienação. Mas apenas a ser informado dela, para poder exercer
o seu direito de preferência. E que, por tanto, o foreiro apenas tinha que notificar o
senhorio da alienação e do preço por que a fazia. Perante esta notificação, o
senhorio, ou preferia, ou não, consoante lhe parecesse aceitável ou não o novo
colono. Se não preferisse e nada dissesse no prazo de dois meses, a venda ficava
firme e era-lhe devido o laudémio2097. Logo, uma aprovação formal da aceitação
pelo senhorio do novo foreiro não seria precisa. A falta de notificação e tradição da
coisa para o adquirente2098 causava a queda em comisso – o que importava a
caducidade da enfiteuse, se o senhorio assim quisesse – bem como a nulidade da
venda2099.
§ 1323. O enfiteuta não tinha direito a ser ressarcido do valor das benfeitorias
correntes, desde que necessárias ou úteis, por ele feitas no prédio, no caso de a
enfiteuse terminar (cf. cap. 4.3.4, sobre a colonia). De facto, estas benfeitorias
tinham sido feitas em coisa própria e correspondiam ao seu dever de a manter.
Podia, porém, ser indemnizado de benfeitorias importantes e extraordinárias, que
correspondessem a melhoramentos mais do que normais e correntes.
§ 1324. O colono dispunha de uma ação real útil (utilis actio in rem, no direito
romano, a actio vectigalis, D. 39, 2, 15, 26) para pedir a coisa a quem usurpasse o seu
uso, mesmo ao senhorio direto (cf. D.6,3,1,2). Gozava ainda de ações e interditos
possessórios para proteger o seu domínio.
§ 1325. Tinha o dever de pagar os tributos que recaíssem sobre a coisa
(nomeadamente, a jugada, v. cap. 4.2.2.4, § 200), de não a deteriorar e suportar os
danos que a atingissem.
4.3.3.9 Direitos do senhorio.

2092 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 15. O prejuízo podia decorrer da

menor fiabilidade ou competência agrícola do novo foreiro; mas também de ele ser uma pessoa
poderosa, de quem fosse difícil exigir o pagamento do cânone, cf. Melchior Febo, Decisiones […], dec.
167, n. 19.
2093 V. Ord. fil.4, 38, pr; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 5.

2094 V. Ord. fil.4, 36, 1; Ord. fil.3, 93, ult.

2095 V. Ord. fil.4, 36, 1.

2096 V. Ord. fil.4, 37, 2. Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 113, ns. 1 ss..; Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 13.


2097 V. Ord. fil.4, 38; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 6.

2098 Era necessária a tradição do bem, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Emphyteusis”, n. 6. O comisso podia ser pedido pelo senhorio num prazo de 5 anos, cf. íbid..
2099 V. Ord. fil.4, 38, 1. Ord. fil.4, 38, 1.

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§ 1326. O primeiro direito do senhorio era o de receber o cânone, foro ou


pensão2100.
§ 1327. Este podia consistir em dinheiro ou em frutos, dispondo as Ordenações
que o foro de casas tinha que ser em dinheiro ou em aves2101.
§ 1328. O foro era, em geral módico, pois não tinha relação com os frutos, mas
com o reconhecimento do senhorio direto 2102. Daí que não se reduzisse por
esterilidade da coisa2103. Isto também era relevante para determinar se tinha ou não
havido lesão, pois o foro apenas se considerava excessivo se, de acordo com as
regras da lesão, fosse superior ao dobro do que fosse justo para a cedência de
domínios úteis2104, independentemente do valor da renda nos arrendamentos de
bens do mesmo tipo, as quais se relacionavam com a produtividade da coisa.
§ 1329. A pensão não podia ser remida nem aumentada pelo senhorio, mesmo
no caso de renovação; mas Pascoal de Melo informa que era prática aumentar as
pensões aquando das renovações 2105. A espécie em que o foro se pagava poderia
mudar. Assim, se se pagava uma quarta do vinho e se se plantassem outras espécies,
pagar-se-ia também uma quarta das novas produções2106.
§ 1330. Outro importante direito do senhorio era o já referido direito de
preferência na alienação dos bens enfitêuticos. Como se disse, este direito apenas
tinha lugar nas alienações voluntárias (v. Ord. fil.4,38). Relacionado com o direito de
preferência (ou prelação) estava o direito ao laudémio, no caso de alienação da coisa
aforada; que alguns consideravam como uma compensação do consentimento
prestado à alienação da coisa. Também só era devido nos casos em que houvesse
direito de preferência, mas em que ele não tivesse sido exercido 2107. O laudémio era
a quadragésima parte do preço (Ord. fil.4,38,pr), podendo pactuar-se outro. Por
direito comum, era devido pelo comprador; mas, pelo direito pátrio, era devido
pelo enfiteuta vendedor2108.
§ 1331. Outro direito do senhorio era o de reaver a coisa aforada por comisso.
A principal causa de comisso era o não pagamento do cânon. Na enfiteuse
eclesiástica, por 2 anos; na profana, por 3 anos. O comisso não ocorria
automaticamente, sendo necessário que o senhorio o pedisse, pela actio ([pessoal]

2100 O direito ao foro era tutelado por uma ação contra os sucessivos foreiros, v. Ord. fil.4, 36, 5.

Na enfiteuse eclesiástica, mas não na profana, o senhorio gozava de uma hipoteca tácita sobre a coisa
aforada.
2101 V. Ord. fil.4, 40.

2102 Uma pensão grande induzia a que se tratava de um arrendamento e não de uma enfiteuse, e

vice versa, Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs. 59, ns. 9 e 11.
2103 Cf. Cf. Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs. 59, n. 7. Ao contrário do que

acontecia no censo, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 34 e 35.
Se a esterilidade fosse grande, o foro devia ser reduzido equitativamente, v. Manuel Barbosa,
Remissiones […], ad Ord. fil.. 4, 39, n. 18; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Emphyteusis”, n. 34-35.
2104 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 257, n. 1.

2105 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 13

2106 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 37.

2107 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 17.

2108 V. Ord. fil.1, 62, 48; 4, 38, pr..

392
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

actio comissi) 2109.


O comisso também ocorria, como vimos, no caso de alienação da
coisa aforada pelo enfiteuta sem autorização do senhorio; ou seja: vendendo,
escambando, subemprazando, hipotecando ou penhorando, arrendando a longo
prazo; sempre se exigindo a tradição da coisa. Também a deterioração grave da
coisa podia gerar comisso2110.
4.3.3.10 Renovação e consolidação.
§ 1332. O direito à renovação da enfiteuse foi uma questão famosa, que dividiu
a doutrina desde o séc. XVI ao séc. XVIII. A dureza da discussão e a ênfase posta
na defesa das respetivas soluções – traço verdadeiramente excecional no discurso
sereno dos juristas da época - mostra que se tratava de uma questão considerada
como socialmente crucial, pela qual passava o bem estar geral da república.
§ 1333. A questão da renovação só se punha no caso de caducidade da enfiteuse
sem culpa do foreiro2111. Nos casos de caducidade por culpa do foreiro (por
exemplo, por comisso, delito, devolução ao senhorio direto, prescrição extintiva)
nunca havia renovação automática, porque então o senhorio devia poder decidir se
queria voltar a renovar o emprazamento a tal foreiro, culpado ou negligente, ou
concedê-lo a um terceiro ou, então, ficar com os bens livres2112. A renovação
também não tinha lugar nos emprazamentos perpétuos, mas apenas nos
temporários – nomeadamente nos de vidas - esgotado o prazo da concessão. Para
os autores para quem a perpetuidade se presumia, a questão da renovação tinha
menos relevo. Mas para aqueles que entendiam que a enfiteuse se presumia feita
por uma vida, a questão da renovação tornava-se num ponto central. Não
ocorrendo a caducidade, os bens de prazo ficavam para os sucessores do enfiteuta,
nos termos do pacto ou do regime supletivo estabelecido nas Ordenações (Ord.
fil.4,36,2).
§ 1334. Havendo caducidade não culposa e renovação, os bens eram
concedidos de novo ao enfiteuta ou seu sucessor, retornando a enfiteuse ao estado
pristino2113 com o mesmo regime originalmente estabelecido. Como se tratava,
justamente, de uma renovação, o senhorio não devia aumentar o cânon nem exigir
qualquer quantia pela renovação. A renovação devia ser pedida no prazo de um ano
depois da extinção2114.
§ 1335. No caso de caducidade de uma enfiteuse temporária, se o pacto nada
dispusesse em contrário, os bens voltariam livres ao senhorio, segundo o princípio

2109 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 119, ns. 4 e ss.; v. ns. 7, 11 e 13;

outros diziam que operava ipso iure, mas com a cláusula tácita si dominus voluerit, v. Miguel de Reinoso,
Observationum […], obs. 59, ns. 1 ss.. Nesta última opinião se poderia fundar o direito do senhor de se
reapropriar da coisa por autoridade própria (i.e. sem recurso ao tribunal), no caso de comisso; direito
que se hesita em reconhecer, v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 173, n. 9.
2110 Cf. António da António da Gama, Decisiones [...], cit., Decisiones [...], cit., dec. 17; Ibidem, dec.

147, ns. 1 e 5 (“agros per limites dividens, arbores fructiferas extirpans”); mas não arrancando oliveiras
que produzissem pouco, ou substituindo umas árvores por outras ou por vinha (Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 50, ns. 5 e 6.
2111 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv.1, qu. 8, n. 1 ss.; Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 26.


2112 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 26.

2113 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 30.

2114 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 31.

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do favor libertatis, pois a condição de propriedade livre (ou plena) seria a condição
natural a que os bens regressariam se findasse o direito que comprimia o direito de
propriedade. A prática, no entanto, seria diversa, presumindo-se o direito do foreiro
à renovação, pelo que era frequente incluir no pacto uma cláusula expressa de não
renovação, estabelecendo que o senhorio receberia os bens livres no fim do prazo
da concessão. Esta cláusula, para uns, seria válida e representaria uma renúncia do
foreiro a pedir a renovação. Para outros, porém, seria nula ou ineficaz 2115.
§ 1336. Em 1610, António Cardoso do Amaral descreve em termos dramáticos
a situação social e política – que, para ele, afetaria a paz e justiça na República - que
decorria desta indecisão. “Há tanta malícia no nosso tempo quanto aos contratos
de enfiteuse – escreve ele2116 - que quase ninguém trata de pedir a renovação dentro
do ano, nem depois disso, para que os contratos de enfiteuse se tornem confusos.
De onde os senhorios diretos, as igrejas e os conventos, sofram hoje grande
prejuízo por causa da opinião de alguns dos juristas portugueses que afirmam, sem
fundamento de direito, que o senhor direto é obrigado a renovar a enfiteuse apesar
da renovação não ser pedida no prazo de um ano a partir da extinção das vidas e
também apesar de no contrato de investidura se estabelecer que, acabadas estas
vidas, os bens enfitêuticos regressassem ao dono livres, sem exceção ou
controvérsia de opinião. E, principalmente, não faltaram juízes que assim julgaram.
Queira Deus que a sua alma não esteja no inferno pelos prejuízos que hoje sofrem
a Igreja e os senhores diretos”. E continua2117, rebatendo as razões alegadas por
estes juristas subversivos, à testa dos quais colocava Álvaro Valasco, um especialista
respeitado e seguido em matéria de enfiteuse, sobre que publicara um tratado, em
1569: “Nem é uma razão adequada a de estes juristas portugueses que dizem que a
república sucumbiria totalmente se se negasse a renovação aos descendentes ou
herdeiros do último enfiteuta [...] como diz Valasco (cons. 123, n. 1 2118), pois penso
que mais sucumbirá a república se não se observar o direito, pois a mesma
república é sustentada tanto pelas armas como pelas leis [...] o juiz inferior, posto
pelo Supremo Pontífice ou pelo Príncipe, é o guardião das leis e não deve governar-
se pelo seu senso [...] e a razão natural não consente que se tire o direito do
senhorio direto para o dar ao enfiteuta [...], não devendo [o senhorio] ser dele
privado, por um interesse particular [do enfiteuta]”.
§ 1337. Realmente, o tema da renovação da enfiteuse tornara-se numa
momentosa questão polémica, sobre a qual os autores divergiam.
§ 1338. Álvaro Valasco era o jurista a quem Amaral imputava a liderança da
corrente favorável à renovação obrigatória dos prazos. Na sua monografia sobre a
enfiteuse, publicada em 1569, todavia, Valasco pouco se refere à renovação da
enfiteuse. E, quando o faz2119, apenas segue a opinião de Bártolo sobre a

2115 Haveria decisões da Casa da Suplicação nesse sentido, embora houvesse quem considerasse

esta cláusula como nula ou ineficaz (Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 123, n. 13, e outros),
posição a que outros negavam qualquer fundamento jurídico, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 15.
2116 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emphyteusis”, n. 31.

2117 Cf. Ibid.

2118 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 123, n. 1 ss..

2119 Cf. Álvaro Valasco, Quaestiones iuris emphyteutici [...], cit., qu. 2, n. 7.

394
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

obrigatoriedade da renovação no caso de ter havido melhoramentos no prédio. Em


todo o caso, também é o autor referenciado por Francisco Caldas Pereira de Castro
como emblemático da receção em Portugal da equidade bartolina2120. Trinta anos
mais tarde, nas Decisiones, as suas opiniões parece terem-se consolidado no sentido
da renovação, como veremos.
§ 1339. Em 1585, este Caldas Pereira, reconhecendo o mérito da obra de
Valasco, mas lamentando a sua escassez em tema da renovação2121, publicara uma
obra monográfica sobre a renovação da enfiteuse, em que fora muito enfático no
sentido de reconhecer a sua obrigatoriedade, apesar da existência de pacto em
contrário. O principal da argumentação, com detalhada referência de autores e
decisões judiciais, vem na qu. 8 do livro 12122. O autor começa por expor o estado
da questão no direito comum, em que a opinião mais reputada - inspirada num
comentário de Bártolo a C.7.41. De adluvionibus et paludibus et de pascuis ad alium statum
translatis, 3 - era a de que a equidade exigia que a enfiteuse devesse ser renovada
quando, findas as vidas, houvesse um sucessor do último enfiteuta. Dos juristas
portugueses teriam seguido esta opinião Álvaro Velasco (no Tractatus), António da
Gama e o seu mestre Manuel da Costa, que se fundavam na analogia com a
obrigatoriedade da renovação da doação de bens da coroa aos filhos de donatários
beneméritos2123.
§ 1340. Essa opinião estaria recebida no reino, não apenas em relação às
enfiteuses dadas por privados, mas também nos prazos de bens públicos 2124. A
questão seria mais discutível na enfiteuse eclesiástica, em que o favor ecclesiae e a
especial força de pactos ratificados por juras, tornaria mais atendível a recusa da
renovação, sobretudo se houvesse um pacto de non renovando2125. Mas o autor,
reconhecendo embora a existência de opiniões e decisões contrárias 2126, decidia-se,
mesmo aqui, pelo reconhecimento do direito à renovação (n. 18). Citava, em apoio,
uma decisão antiga (de 1564), que, em segunda instância, corrigira uma anterior
decisão do ouvidor, condenando no recurso a duquesa de Bragança à renovação de
um prazo em Guimarães, apesar de haver uma cláusula do pacto em contrário e de
a autora invocar a necessidade de reaver os bens livres; e outra muito recente
(1584), da Casa da Suplicação, que obrigava o mosteiro de S. Vicente a fazer o
mesmo.
§ 1341. Noutra das quaestiones, o autor desenvolve de forma expressiva o
argumentário, ao discutir a afirmação de que “findas, as vidas do prazo, os filhos,

2120 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, n. 19.
2121 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 1, n. 1.
2122 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, pg. 56 ss. (da ed.

original).
2123 Que deviam ser renovados aos filhos dos que morressem na guerra. V. Ord. Man. 2, 17, 12;

Ord. fil.2, 35, 2.A doutrina que estende a obrigatoriedade geral da confirmação da doação é, portanto,
uma extensão do preceito legal, por identidade de razão, equiparando os serviços não militares à morte
na guerra.
2124 Cita decisão inédita da Casa da Suplicação de 1576 relativa a emprazamento de armazéns

régios, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, n. 3.
2125 Discussão, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 8, ns. 5 ss..

2126 Cita duas decisões, em sentido oposto, de António da Gama: no sentido de não reconhecer o

direito à renovação, dec. 41, n.6; em sentido contrário, dec. 326, n. 8; e refere que havia decisões dos
tribunais da corte que negavam a obrigação de renovar.

395
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ou descendentes do ultimo possuidor, não possam pedir renovação, nem o directo


senhorio fique obrigado, por nenhua via, a renovarlhe o dito prazo, antes o possa
dar libremente, e emprazar a quem quizer, e fazer delle o que lhe aprouver". Vale a
pena uma citação mais longa. Resolver a questão pressupunha confrontar duas
opinião comuns, uma favorável à inexistência de um direito à renovação; e outra,
mais provável, defendida por Bártolo, reconhecendo a obrigatoriedade da
renovação, por exigência da equidade. Segundo ele, “a opinião desfavorável à
renovação “parece bastante provável, pois as palavras do pacto demonstram que se
tinha concordado nisto, não obstando o argumento de que assim se tirava aos
descendentes um direito adquirido pois, embora se lhe infligisse um prejuízo, não
se podia dizer que tinham adquirido um direito pelo pacto, mas apenas uma
expectativa futura”2127. Pelo que se deveria concluir “que a renovação não é devida
aos descendentes e parentes do último possuidor, pois, logo desde o início, a
enfiteuse tinha sido concedida com a cláusula de não renovação no fim das vidas
estipuladas, importando isto uma renúncia a algum direito à renovação” 2128. No
entanto, a melhor opinião não seria esta, pois haveria que corrigir o rigor do direito
por considerações de equidade, atinentes ao interesse público2129. E, de facto, esta
consideração da equidade fora sendo recebida em Portugal 2130. O que se explicava
pelos supremos interesses públicos coincidentes com a proteção das expetativas
dos enfiteutas2131: “Porque aquela convenção, que não afeta apenas às coisas da
família, mas também o prejuízo público, é de todo de condenar como contrária aos
bons costumes e à utilidade pública [...]. E também contrária à caridade e deveres
que os homens têm de conceder benefícios [...]. A paz e sossego de todo o reino
consiste na renovação da enfiteuse: nem o colono, nem o lavrador, nem o cliente,
nem o enfiteuta, cultivariam o prédio enfitêutico ou atribuído em benefício, nem
reparariam os edifícios em ruínas, nem aplicariam o seu trabalho e indústria ao solo
estéril, para o tornarem cultivável, nem melhorariam as propriedades enfitêuticas,
deste modo aumentando os rendimentos dos senhores [diretos], se deixassem de
contar com o benefício da renovação”. Isto explicaria a nova orientação do direito
pátrio, que afastava a cláusula de não renovação: “A isto não obsta aquela capciosa
e imoral cláusula, pois exclui toda a equidade e humanidade no comércio entre os

2127 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 14
2128 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 18.
2129 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21: ”ainda que

esta opinião seja verdadeira por direito estrito, parece que é mais equitativa e mais útil à república a
opinião contrária, apesar do referido pacto que exclui de todo o benefício salubérrimo e utilíssimo da
renovação da enfiteuse. Tanto por aquilo que antes dissemos na qu. 8 ad fin. como também porque a
renovação da enfiteuse diz respeito ao direito e autoridade públicos, a que não se pode renunciar por
pacto [...]. É que o “edito” [opinião doutrinal destinada a aperfeiçoar o direito estrito] da renovação da
enfiteuse, à imagem do edito do pretor, que sempre olhou as coisas na perspetiva de uma equidade
suprema, foi promulgado e recebido pelos costumes dos povos em todas as províncias e reinos que
pertencem ao império e religião cristãos”.
2130 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21: “Parece que

entre nós, tida em conta a autoridade e a utilidade, já foi progressivamente introduzido o direito
público de conceder e de renovar [a enfiteuse]. Porque se, por causa desta convenção e pacto
perniciosos à República, abolirmos este direito, subverter-se-ia aquela equidade da renovação
(sepultando a justiça natural e civil) que recomenda que, findas as vidas, a enfiteuse seja renovada aos
descendentes e agnados mais próximos”.
2131 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21.

396
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

homens e apagai e destrói totalmente o compromisso e obrigação da renovação,


causando vários inconvenientes à república […]2132. Assim como a cláusula “ut
finita tertia generatione emphyteusis libera, et expedita ad dominum revertetur, cum
omnibus melioramentis”, pelos costumes do nosso povo, recebidos neste reino,
não prejudica a renovação […], assim também não o prejudica a referida cláusula
em que as partes expressamente renunciam à renovação. Pois o alcance e eficácia
(vis et energia) das duas cláusulas é precisamente a mesma. É que também pelas
palavras libere & expedite revertatur pensavam impedir tal renovação […]”.. Uma
remoção idêntica à da cláusula do pacto se devia também aplicar aos estatutos ou
compromissos jurados existentes em certas comunidades eclesiásticas que proibiam
a renovação dos prazos”2133. Seria tão forte este direito à renovação que o pedido
de prazo em que houvesse sucessores do anterior enfiteuta equivaleria ao pedido de
benefício de pessoa viva, sendo equiparado a um furto2134. Porém, a prática de
julgar ainda dominante em alguns tribunais da corte era no sentido de atender aos
pactos de não renovar. Mas isto não aconteceria na Casa da Suplicação, em que,
mais do que a vinculação dos pactos, se atendia aos vínculos da equidade e da razão
natural e onde, por isso, “todos os dias se obriga os senhorios a fazerem a
renovação, apesar de tais cláusulas; ligados por uma força e vinculação mais do que
inflexíveis. Isto mostra larga e exuberantemente a equidade da razão” 2135.
§ 1342. Voltemos ao vibrante texto de António Cardoso do Amaral contra a
obrigatoriedade da renovação. O que dele se conclui é que, na segunda metade do
séc. XVI e, sobretudo, na viragem para o séc. XVII, a prática judicial se vinha
alterando profundamente, por causa dos tais juízes que, pouco piedosos em relação
aos direitos das igrejas e dos senhorios, tinham começado a reconhecer os direitos
dos foreiros à renovação enfitêutica. De acordo com a informação de Caldas
Pereira, pioneiros nesta mudança tinham sido os desembargadores da Casa da
Suplicação. Por outro lado, a vivacidade com que o assunto é discutido pode
indiciar que a terra se estava a tornar mais rara ou que os valores das suas rendas
estavam a subir, procurando os senhores diretos aumentar a rentabilidade dos seus
aforamentos, recuperando as terras de uns para as dar a outros, em vez de manter
os contratos antigos.
§ 1343. No início do séc. XVII, concomitantemente ao aparecimento das novas
Ordenações, as opiniões sobre a renovação ainda não eram absolutamente claras no
sentido de um irrestrito direito à renovação.

2132 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 21.
2133 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 31: “Disto se
segue a dúvida frequente de saber se a promessa jurada de não renovar a enfiteuse finda, por extinção
da terceira vida tira o benefício do filho ou dos descendentes do último possuidor, Francisco Caldas
Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., qu. 11, n. 23. Existem em alguns mosteiros, alguns estatutos
particulares, mesmo jurados, e também em algumas igrejas catedrais, pelos quais é proibido que os
bens enfitêuticos voltem aos concedentes, sendo estes obrigados a renovar aos descendentes ou
herdeiros do último possuidor. E a resolução é que estatutos ou promessas de não renovar não se
observem e que não se impeça o benefício da renovação, pois, como a renovação diz respeito a um
interesse público e como do estatuto e promessa de não renovar resulte proibido um ato principalmente
em favor do interesse público, eles [estatutos e promessas] não podem ficar mais firmes pelo juramento
[...], cit., o que corresponde a uma opinião comum [...]”
2134 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 5, n. 1 ss. (maxime,

ns. 11 e 12).
2135 Cf. Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., liv. 1, qu. 11, n. 22.

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§ 1344. Jorge de Cabedo, que publica, em 1602, logo a seguir à reforma das
Ordenações, sustenta uma opinião recuada, pelo menos quanto à enfiteuse
eclesiástica. Os mosteiros eram obrigados a renovar a enfiteuse, findas as vidas 2136.
Mas isto só acontecia, não por um direito à renovação, mas como uma solução de
equidade no caso de ter havido melhorias que fosse justo compensar, princípio que
ocorreria tanto na enfiteuse eclesiástica como na profana, quer fosse dada em três
vidas, quer por certo prazo2137. Por outro lado, a instituição eclesiástica só podia
negar a renovação, se provasse a sua pobreza 2138.
§ 1345. Nas suas Decisiones (publicadas postumamente, em 1605), que
seguramente tiveram maior difusão do que o Tractatus e às quais se deve referir
António Cardoso do Amaral, Álvaro Valasco pronunciava-se pelo dever do
senhorio de renovar o emprazamento aos sucessores do último enfiteuta 2139, apenas
admitindo que ele pudesse reter o prazo por necessidade superveniente (que tinha
que ser provada)2140. Em todo o caso, a tutela do direito dos sucessores do enfiteuta
era apenas prudente, pois não se lhes concedia uma ação real para recuperar os
bens, mas apenas uma ação pessoal para serem indemnizados pelos prejuízos que
decorriam da não renovação2141. Porventura, isto já era um motivo bastante para
desincentivar a não renovação.
§ 1346. No fim da primeira década do séc. XVII (1621), Gabriel Pereira de
Castro faz o ponto da situação, já então francamente favorável à obrigatoriedade de
renovação dos prazos. Segundo ele, já se reconhecia nessa época aos filhos e
descendentes do enfiteuta um direito legal – ou seja, segundo o direito estrito, e não
apenas segundo a equidade – à renovação, o que provaria que “a equidade acerca da
concessão, renovação e legado de prazos obriga a muita coisa contrária ao rigor do
direito [refere-se ao direito sobre a obrigatoriedade de cumprir as cláusulas
pactadas, neste caso a de não renovação]” 2142. Inicialmente, a renovação obrigatória
só teria sido admitida se tivesse havido benfeitorias. Porém, com o tempo, tinha-se
fixado a opinião de que bastava que não tivesse havido deterioração da coisa. Por
sua vez, a eficácia da cláusula de não renovação tinha perdido progressivamente
terreno2143. Esta nova corrente doutrinária e jurisprudencial fora-se formando
pouco a pouco, tornando-se finalmente pacífica a opinião de que enfiteuse se podia
renovar, debaixo das cláusulas do título originário 2144, chegando ao ponto de se
opinar que a renovação devia ser declarada oficiosamente pelo juiz 2145. Num outro

2136 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 203 (discutindo principalmente o direito à

renovação na enfiteuse eclesiástica).


2137 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 203, ns. 6 e 7.

2138 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 203, ns. 1 e 2.

2139 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 157, ns. 1 ss.. No Tractatus, o assunto é tratado

na qu. 28, n. 17.


2140 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 157, n. 17.

2141 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 172, n. 8.

2142 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, n. 1.

2143 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, n. 2.

2144 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, ns. 3 e 4

2145 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 128, n. 5. Havia uma ação pessoal para

a exigir, Francisco Caldas Pereira, Commentarius analyticus [...], cit., qu. 20.

398
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

passo2146, Gabriel Pereira de Castro confirma a opinião de que a equidade obrigava


a que o senhorio renovasse a enfiteuse e que isto obrigava a considerar nulos os
pactos contra o benefício da renovação. De tal modo que o direito à renovação já
era tido como estando compreendido no património dos herdeiros.
§ 1347. Melchior Febo, que publica dois anos antes, dá um testemunho
idêntico, ao afirmar que “a renovação da enfiteuse é hoje concedida não apenas por
equidade, mas também pelo rigor do direito” 2147. Estes dois autores publicam uma
década depois de António Cardoso do Amaral, de onde se pode admitir que nesta
década se tenha consumado a evolução no sentido da consolidação dos prazos que
este dramaticamente temia.
§ 1348. Cerca de duzentos anos mais tarde, a questão continuava a ser
considerada como frulcral para o destino do reino, agora numa perspetiva
fisiocrática de valorização da agricultura. E, por isso, a lei de 7.9.17692148 adotou
como solução legal a chamada “equidade bartolina“ que consagrava a
obrigatoriedade da renovação do contrato enfitêutico, mesmo temporário e mesmo
com pacto de não renovação, a favor de descendentes, ascendentes e herdeiros
colaterais, uma solução para que já apontavam as Ordenações (Ord. fil.4,36,2)2149.
4.3.4 Os censos.
§ 1349. As situações de censo constituíam uma zona particularmente vaga na
constituição fundiária de Antigo Regime.
§ 1350. Os autores seiscentistas definiam, em geral, o censo como “o direito de
receber periodicamente (ao ano, ao mês ou com outra periodicidade) uma pensão
pecuniária em dinheiro ou em outro género” (como cereais, vinho ou azeite) 2150.
Porém, a palavra era usada para descrever várias situações em que se recebia
periodicamente uma parte dos frutos de um prédio, sem que frequentemente se
soubesse como surgira e como se justificava essa situação, nomeadamente, se era
uma prestação contratual, se o sinal de divisão de domínio ou, mesmo, se se tratava
de uma obrigação de tipo tributário2151

2146 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 31, n. 4.
2147 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 161, n. 36.
2148 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 26.

2149 Principal bibliografia sobre a enfiteuse em Portugal e no “império português”: Luís Cabral de

Moncada, A reserva hereditária no direito peninsular e português, 1, Coimbra, França & Arménio, 1916;
Mário Júlio de Almeida Costa, Origem da enfiteuse no direito português, Coimbra, Coimbra Editora, 1957;
Margarida Durães, “Herdeiros e não herdeiros: nupcialidade e celibato no contexto da propriedade
enfiteuta”, Revista de história económica e social, 21(1987), ps. 49 ss.; Ramon Villares (1988) “Los foros de
Galícia: Algunos problemas y comparaciones (Galicia, Portugal y Valencia)”, em Ler História, 12(1988);
Joel Mata, “Práticas da enfiteuse em Portugal nos séculos XIV-XVI”, em Lusíada. Direito, Porto,
3.1(2011), em http://www.cepesepublicacoes.pt/portal/pt/obras/praticas-da-enfiteuse-em-portugal-
nos-seculos-xiv-xvi. Sobre os prazos do Zambeze: Alexandre Lobato, Colonização senhorial da Zambézia e
outros estudos, Lisboa, J.I.U. 1962. Allen Isaacman, Mozambique: the africanization of a European Institution.
The Zambezi Prazos. 1750-1902, Madison, The University of Wisconsin Press, 1972; M.D.D. Newitt,
Portuguese settlement on the Zambesi, London, Longman, 1973; Eugénia Rodrigues, Portugueses e Africanos
nos Rios de Sena. Os prazos da Coroa nos séculos XVII e XVIII, Universidade Nova de Lisboa, Dissertação
de Doutoramento em História, 2002.
2150 Cf. “Census est quoddam ius recipiendi aliquam pensionem precuniariam, aut alteriur rei,

utilis in annum, aut mensem, seu aliud tempus, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Census”, n. 1.
2151 Como que um pagamento de uma soma em reconhecimento de sujeição, António Cardoso do

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§ 1351. Situações em que um prédio pagasse uma pensão a alguém era muito
comum, podendo ter as mais diversas origens. Ou se tratava de um tributo em sinal
de reconhecimento de jurisdição, ou de uma forma de lembrar um antigo domínio,
ou de uma expressão de gratidão de um donatário. Ou, por fim, de uma forma de
remunerar um empréstimo.
§ 1352. O direito comum tardio conhecia a figura do censo, sobretudo pela
regulamentação que o instituto tinha tido no direito canónico, depois de várias
bulas papais (de Martinho V, de Calisto III e de Pio V) que procuravam impedir
que, sob capa de tais contratos fundiários, se encobrissem usuras. Os autores
distinguiam duas espécies típicas de censo, o censo reservativo e o censo
constitutivo ou consignativo2152: “o censo constitui-se, em primeiro lugar, quando
alguém transmita a outrem um bem seu, com todo o domínio direto e útil, mas
com o ónus de que o que o recebe fique obrigado a um certo censo todos os anos
[censo reservativo]. Em segundo lugar quando se compra de outrem um censo
anual sobre a coisa do vendedor que transmite ao compardor apenas o seu domínio
directo, ficando com o domínio útil], prometendo o vendedor pagar um censo
anual, obrigando e hipotecando a coisa [o domínio útil da] a esse censo [censo
constitutivo ou consignativo]2153.
§ 1353. Muito frequentemente estes contratos encobriam negócios usurários,
pelos quais alguém emprestava capital a outrem - sob a forma da entrega do bem
(censo reservativo) ou do preço por que comprava a renda (censo constitutivo) –
contra o pagamento de um juro – sob a forma de uma pensão a pagar pelo bem
transmitido pelo mutuante ao mutuário (censo reservativo) ou por um bem retido
pelo mutuário, mas adstrito ao pagamento da pensão ao mutuante (censo
consignativo). Este caráter suspeito dos censos levou a que houvesse sucessivas
intervenções legislativas dos papas (Martinho V, Calisto III) sobre estes negócios,
de modo a precaver que eles servissem para encobrir usuras,
§ 1354. A última delas foi um motu proprio de Pio V, de 15692154, recebido
geralmente nas ordens jurídicas temporais 2155, em que se estabeleciam uma série de
preceitos destinados a assegurar que se tratava apenas de um negócio de auxílio a
pessoas que necessitassem de constituir uma renda perpétua a seu favor, mediante
uma retribuição adequada (“ad sublevandas quotidianas pauperum et maxime
negociantium necessitates et ut possit quilibet sibi providere de pecuniis […]”,

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 1.


2152 V. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado pratico e compendiario dos censos […]; Mário Júlio

de Almeida e Costa, Raízes do censo consignativo […], cit..


2153 “Census autem constituitur primo, ut quid tradat rem suam allcui et in eum transferat omne

dominium directum et utile cum onere quod acciptens rem teneatur solvere certum censum singulis
annis. Secundo modo emendo ab alio annuum censuum super re venditoris, et venditor promittit
solvere annuum censum et obligando et hypotecando rem certam pro ipso annuo censu”, definição de
Follerio (final do séc. XVI, citado por E. Bussi, La formazione dei dogmi […], cit., v. 2, 126).
2154 V. texto em António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 2.

2155 Mesmo nos territórios não sujeitos ao papa, em virtude do critério do pecado, pois o regime

da constituição pontifícia se destinava a definir e a evitar os censos inquinados pelo pecado da usura,
limitando-se a declarar o direito natural e divino António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Census”, n. 19. Sobre o tema, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 133; Manuel de Almeida e
Sousa (Lobão), Tratado práticos dos censos […], cit., cap. II, §§ 15 ss..

400
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

como refere Follerio, no passo antes citado). De acordo com este novo regime 2156,
o censo tinha que incidir sobre uma coisa certa, imóvel (ou tida juridicamente como
tal), transmitida por um certo preço, justo e em dinheiro contado, podendo a
pensão ser remida pelo que se obrigara a pagá-lo2157.
§ 1355. A constituição do censo tinha, portanto, que ser feita sobre coisa
imóvel certa2158, não podendo ser constituída sobre uma pessoa 2159, sem que
houvesse uma coisa onerada com o pagamento da pensão. Não se podia constituir
senão em coisa própria e livre; não em coisa enfitêutica, feudal, regalenga
(jugadeira), hipotecada2160 ou vinculada2161. Se o bem não fosse próprio ou livre, o
censuário podia acionar o que tinha prometido o censo pelos danos ou mesmo com
a actio furti2162
§ 1356. A constituição da renda tinha que ser feita por um preço justo, pois um
preço baixo equivalia a uma renda (ou juro) alta, ou seja, a um contrato usurário 2163.
Para facilitar a avaliação, a pensão tinha que consistir numa quantidade certa, sob
pena de se considerar usurária, embora pudesse ser de diversos géneros (dinheiro,
cereais, vinho, azeite, aves) 2164. A justeza do preço de uma renda não tinha
necessariamente a ver com a comparação entre a renda constituída e a
produtividade de prédio2165, mas com o custo do capital numa certa zona; e, por
isso, tinha que se aferir pelos costumes do lugar 2166. Em Portugal, os juros tinham
sido limitados por várias leis (de 13.1.1615, 23.5.1698, 16.1.1773 e 4.8.1773. A
justeza do preço dos censos era avaliada de acordo com elas, mas também de
acordo com a duração do censo. Assim, com base em autores teólogos e juristas
seiscentistas, Manuel de Almeida e Sousa (Lobão) estabelece os seguintes preços
para os censos: os censos perpétuos irremíveis deviam ser comprados à razão de 30
por 1 (juro de 3,3 %)2167; os perpétuos remíveis, a 20 por 1 (5 %); os de duas vidas,
a 12 por 1 (8, 3 %); os em uma vida, a 10 por 1 (10 %)2168.
§ 1357. O censo podia ser constituído por doação ou testamento, além de se
poder adquirir por usucapião de 40 anos 2169.

2156 Que, no entanto, não se aplicava aos censos já constituídos, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 23.


2157 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 2.

2158 Até ao motu proprio de Pio V, o censo podia ser constituído sobre todos os bens, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 16.


2159 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 3

2160 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 17.

2161 Cf. Melchior Febo, Decisiones […] cit., dec. 120, n. 4.

2162 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 17.

2163 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 18.

2164 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 21.

2165 No entanto, se o bem se tornasse estéril ou a sua produção decaísse muito, o censo era

correspondentemente afetado, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 2 e 26;
Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 58, ns. 1 a 6.
2166 Cf. Diogo Marchão Temudo, Decisiones […], cit., dec. 85, n. 2. A menos que o por lei do

príncipe se fixasse a razão do censo (como acontecia em Portugal, em que o juro era fixado em 5 %)..
2167 Ou seja, comprava-se por 30 uma pensão perpétua de 1, o que correspondia a um juro anual

de 3, 3 %.
2168 Cf. Manuel de Almeida e Sousa (Lobão), Tratado pratico e compendiario dos censos […], §§ 40 ss..

2169 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, ns. 15 e 22.

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§ 1358. O prédio censual (ou censítico) podia ser livremente alienado e


dividido, sem que houvesse lugar a pagamento de laudémio2170, mas sobre ele, ou
sob cada uma das suas partes, impendia o dever de pagar a pensão,
independentemente da identidade do seu possuidor, já que o ónus do censo era um
ónus real. Na verdade, o censo devia ser pago pelo dono da coisa censítica, não se
podendo excluir isto na sua venda2171. Se o prédio fosse parcialmente vendido ou
dividido entre vários compradores, o censuário podia pedir o censo ao dono de
qualquer das partes, pois “o censo é devido por todo o prédio” 2172. A doutrina não
era unânime quanto a saber se o dono do censo tinha ou não direito de preferência
na venda do prédio2173.
§ 1359. O não pagamento do censo não dava lugar a comisso, por não
pagamento do censo ficando o censuário apenas obrigado a pagar os juros de
mora2174. Mas prescrevia, se não pago durante 10 anos2175.
§ 1360. O censo era constituído sem prazo, sendo, por isso, tendencialmente
perpétuo. Mas podia ser remido pelo vendedor em parte ou no todo, não se
podendo renunciar a esta faculdade2176.
§ 1361. Do censo resultava uma ação real sobre os rendimentos da coisa ou
uma ação pessoal dirigida àquele que se obrigara a ele2177.
4.3.5 A colonia.
§ 1362. A colonia constituiu uma forma específica de contrato agrário que se
desenvolveu e manteve na ilha da Madeira. Tratava-se da cedência precária a
outrem do uso útil da terra, contra o pagamento de uma meação dos frutos 2178,
mantendo o senhorio a possibilidade de, a todo o tempo, pôr fim ao contrato,
atribuindo ao colono a propriedade das benfeitorias que, porém, estavam sujeitas à
autorização do senhorio. O colono dispunha de poderes de disposição quase plenos
sobre as benfeitorias, que podia vender ou deixar por morte, mesmo dividindo-as,
salvo o direito de opção do senhorio. E que lhe deviam ser pagas pelo senhorio, se
pusesse fim ao contrato.
§ 1363. Trata-se (pois ainda hoje subsiste)2179 de um dos afloramentos mais

2170 Cf António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, ns. 5 e 6.


2171 Pois o censo era um direito real que recaía sobre a coisa, como uma hipoteca (“quoniam
census ille est ius quoddam reale ipsi rei impositum, et ab ipsa debetur, nec est necesse exprimere, ut
pro solutione census praedium ipsum sit hypothecatum", António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Census”, n. 12).
2172 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 13.

2173 Cf. No sentido afirmativo, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 11;

no sentido negativo, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 91, n. 3.


2174 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 7 (só danos); Álvaro

Valasco, Decisiones […], cit., cons. 35.


2175 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 63, n. 5.

2176 V.g. se o censo tivesse sido vendido por 100, podia ser remido um quarto dele por 25,

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Census”, n. 10.


2177 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 66, n. 1; E. Bussi, La formazione […],

cit., v. 2, 133.
2178 O colono tinha o dever de pagar ao dono do chão, prestações periódicas, calculadas em

metade de certos produtos, pois podiam não ser todos atingido (“meias” ou “demídia).
2179 Bibliografia sobre a história contemporânea do instituto: João Lizardo (org.), Caseiros e senhorios

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

claros da ideia de divisão da propriedade sobre uma mesma coisa. No senhorio


reside uma propriedade permanente que consiste no direito a receber o foro, de
remir o contrato, com opção de compra das melhorias, e de autorizar as melhorias,
condicionando assim, indiretamente, a produção e a própria vida do colono. Ao
colono pertence o direito de cultivar a terra, nos limites estabelecidos pelo estado
em que esta se encontrava e pela autorização de “melhoras” pelo senhorio, e de
transmitir em vida ou por morte, indivisas ou divididas, as melhoras ou
benfeitorias, salva a preferência do senhorio.
§ 1364. O facto de os dois direitos terem uma natureza real – os dois eram
propriedade, embora limitada – fazia com os seus titulares tivessem ambos
importantes faculdades, com destaque para a possibilidade de alienar a sua “parte”
da coisa por ato inter vivos ou mortis causa. Para além de poderem usar de todas as
formas de tutela próprias da propriedade (ação de reivindicação, meios cautelares
de tutela (embargos, interditos, etc.).
§ 1365. Trata-se, por outro lado, de uma sobrevivência da modalidade mais
opressiva de cedência do uso do solo, em que o colono está privado da plena
direção da exploração agrícola, não podendo modificar a gleba, mudar os cultivos
ou as suas técnicas, construir ou modificar coisas acessórias ao cultivo (como casas
de habitação, currais, celeiros, poços) sem autorização do senhorio. Livremente,
apenas podia trabalhar e recolher metade do produto do seu trabalho. Para além de
que a repartição do produto a meias – que era o mais normal – representava uma
forma de partilha muito mais gravosa do que a habitual nos contratos de enfiteuse
ou de locação. De facto, a meação ou dimidia dos frutos, calculada sobre o valor
bruto destes – i.e. sem deduzir as despesas de cultivo – era muito mais do que um
arrendatário costumava pagar para cultivar terra alheia2180.
§ 1366. Têm sido discutidas as razões do aparecimento e manutenção desta
forma de cedência agrária na Madeira2181. Desta discussão podem extrair-se algumas

nos finais do séc. XX na Madeira. O processo de extinção da colonia, Porto, Afrontamento, 2009.
2180 No século XVIII, foram tomadas medidas legislativas para reduzir os foros enfitêuticos pagos

no Algarve, por se considerar que estes eram leoninos, causando ao colono uma lesão enorme, ao
exceder aquilo que era, na altura, uma remuneração normal (e, então, legal) do capital (5 %) (alvarás
de 15.9.1776 e de 16.1.1773). Assim como se começou a propor, na doutrina jurídica, que o cálculo das
rendas que consistiam numa quota parte dos frutos, fosse feito sobre o produto líquido (o produit net dos
fisiocratas franceses), deduzidas as despesas. Realmente, segundo a visão contratualista das cessões
agrárias, a desproporção das vantagens dos dois contraentes criava uma situação abusiva ou leonina que,
racional e livremente, não poderia ter sido querida. Cf. António Manuel Hespanha, O jurista e o legislador
na construção da propriedade burguesa, versão polic. Lisboa, 1980, 80 pp. (https://drive.google.com/file/d/
0BxG11aEdnDQ2bndBeGRNRFJ6WFk/view?usp=sharing); versão abreviada (sem aparato crítico
completo), Análise social, 61-62(1980), 211-236, nota 33.
2181 Bibliografia sobre a história da colonia: Jorge de Freitas Branco, Camponeses da Madeira. As bases

materiais do quotidiano do arquipélago (1750-1900), Lisboa, Dom Quixote, 1987; Nelson Veríssimo,
Relações de poder na sociedade madeirense do século XVII, Funchal, Secretaria Regional do Turismo e Cultura,
1999; Benedita Câmara, “The Portuguese Civil Code and the colonia tenancy contract in Madeira
(1867–1967)”, Continuity and Change, 21.2(2006), pp 213‐233 (em http://www.researchgate.net
/publication/231871653_The_Portuguese_Civil_Code_and_the_colonia_tenancy_contract_in_Madeira
_%2818671967%29; ou http://www.isnie.org/ISNIE06/ Papers06/ 03.1/camara.doc;); Benedita
Câmara, "Colonia contract of Madeira was not classified as emphyteusis by the Portuguese civil code
(1867). The new legal framework allowed long term cooperation between agents?".ou “O contrato de
colonia: ambiguidade entre a parceria e a enfiteuse? Que mudou no relacionamento entre o senhorio e o
colono após 1867?”, comunicação ao XXIII Seminari d'Història Econòmica i Social. Les pràctiques
emfitèutiques a l'època moderna i contemporània. Una perspectiva comparada, Universitat de Girona,

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ideias sobre as particulares razões que a explicam. Originalmente, as terras da ilha


terão sido dadas em sesmaria pelos capitães gerais, como no Brasil (v. cap. 4.2.2.6).
Com o objetivo de evitar a dispersão das terras, aqui concedidas em pequenas
glebas dada a exiguidade do território, muitos dos concessionários vincularam-nas a
morgados e, sobretudo, capelas. Isto dificultava, porém, a sua exploração por
colonos, pois as terras vinculadas não podiam ser dadas em enfiteuse nem
arrendadas por períodos longos (v. cap. 5.4.3). Por outro lado, os altos rendimentos
permitidos pela escassez de terra e esperados pelos senhores diretos eram muito
superiores àqueles que se costumavam exigir como cânon enfitêutico, podendo ser
considerados lesivos e, consequentemente, reduzidos (cf. cap.6.6). Por outro lado, a
prática de renovação forçosa da enfiteuse, que se terá estabelecido nos finais do séc.
XVI, também desagradaria aos senhorios, sobretudo num mercado de terra tão
propício à especulação, como o da Madeira. A parceria agrária (ou contrato de
meias) também não era satisfatória, porque, embora permitisse exigir a metade dos
frutos, desprotegia o colono quanto ao destino das benfeitorias; as quais, dada a
orografia da ilha, eram muito dispendiosas (despedra, construção de muros de
suporte, levadas de água). Encontrar uma solução satisfatória para este complexo
de pretensões passava por estabelecer uma forma de contrato agrário que: (a)
permitisse a vinculação do domínio direto, para evitar a sua dispersão; (b) facultasse
aos administradores dos vínculos formas perpétuas de cedência das terras
vinculadas; (c) oferecesse aos colonos uma posse útil da terra por um período
tendencialmente longo e lhes assegurasse a propriedade, quase irrestrita, das
melhorias, com direitos de transmissão por vida e em morte 2182; (c) porém,
autorizasse o senhorio pôr fim ao contrato, pagando estas melhorias; (d) lhes
permitisse, além disso, um certo controlo da atividade agrícola, por meio da
faculdade de autorizar ou não as melhorias.
§ 1367. Na literatura jurídica anterior ao séc. XIX não se encontram referências
específicas à colonia madeirense. Colonia é antes um termo geral para os contratos
agrários, em que o colono pagava ao senhor uma pensão periódica, o que acontecia

16, 18 de juny de 2011, em http://www.udg.edu /Portals/87/IRH/CRHR/TEXT_Benedita_5.pdf/;


também em http:// www4.fe.uc.pt/aphes31/ papers/sessao_3d/benedita_camara_paper.pdf)
2182 Por direito comum, as melhorias (ou benfeitorias, melioramenta) dividiam-se em necessárias,

quando evitassem a ruina ou esterilidade da coisa (cuidar da saúde ou vestido dos escravos,
encanamento de rio ou defesa das margens, restauro de casas velhas, reposição de árvores mortas,
construção ou reparo de cercas, semeaduras, recuperação ou defesa judicial da coisa, Manuel Álvares
Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad. 1, proem, gl. 43, n. 60 ss.), úteis, quando valorizavam a
coisa, embora a sua não realização não a deteriorasse (ibid. tomo 1, ad. 1, proem, gl. 43, n. 81-82),
dirigidas à produção e perceção dos frutos (como as semeaduras, cultivos e colheitas, ibid. ad. 1,
proem, gl. 43, n. 94; tom. 7, ad 1, 87, gl. 24, ns. 3 ss.) e voluptuárias as que apenas adornavam, mas
não aumentavam os frutos, (como a pintura de casas, a construção de jardins, ibid. tomo 1, ad. 1,
proem, gl. 43, n. 91). A regra geral era a de que as benfeitorias eram de quem as tinha feito (melioramenta
illius sunt, qui fecit, cum ad meliorantem pertineant, ibid. tomo, 1, ad. 1, proem, gl. 43, n. 3; ou seus
herdeiros, ibid. ad. 1, proem, gl. 43, ns. 4 e 5). O melhorante tinha sempre o direito de ser ressarcido
pelo dono da coisa, gozando para isso de uma ação pessoal e por vezes, de ação real e direito de
retenção (ibid. ad. 1, proem, gl. 43, ns. 90 ss.); no caso das benfeitorias voluptuárias podia retirá-las se
isso fosse possível sem deterioração da coisa. Especificamente para o caso da enfiteuse, v. Manuel
Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 1, ad proem. gl. 43, n. 132; para o arrendamento, ibid. n.
135. Nestes termos, não se vê bem qual seria a especificidade da colonia, salvo porventura a
configuração do direito às benfeitorias como um direito real, acionável por uma ação real.

404
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

na enfiteuse, no arrendamento, na parceria e até nas terras jugadeiras 2183. As suas


especificidades explicar-se-iam por cláusulas próprias que podiam ser introduzidas
no contrato enfitêutico ou de arrendamento. Só nos meados do séc. XIX é que a
situação da colonia aparece como um instituto específico, claramente distinto da
enfiteuse, da parceria e do arrendamento. Da primeira separavam-na a possibilidade
de expulsão do colono e a possibilidade de transmitir e dividir as benfeitorias; da
parceria, a divisão do domínio e consequente direito real do colono sobre as
benfeitorias; do arrendamento, o caráter tendencialmente perpétuo.
§ 1368. A reação jurídica contra estas formas de relações fundiárias começou
com o pensamento fisiocrático, que defendia o desenvolvimento económico com
base no progresso da agricultura baseado na abolição de encargos sobre a terra e
com a garantia de liberdade de decisão dos contraentes, nomeadamente dos
cultivadores. Isto levou à abolição dos direitos banais e dos direitos de foral, à
extinção parcial ou, mais tarde, total dos morgadios (e fideicomissos), do uso e
habitação, dos censos. Mesmo antes das revoluções, as ideias fisiocráticas levaram a
restrições aos morgados e capelas, à redução de foros excessivos (por exemplo, no
Algarve), a propostas de abolição dos forais (reinado de D. João VI). Ao mesmo
tempo, esta ideia de liberalismo agrícola difundiu uma imagem negativa de todas as
formas de uso da terra que não concentrassem num só todos os poderes de
disposição da empresa agrícola. A compropriedade, a enfiteuse, a parceria – ou seja,
todas as formas imperfeitas de propriedade – passaram a ser tidas como
prejudiciais. Na ilha de Porto Santo, a colonia parece ter sido abolida e
transformada em censo no séc. XVIII, sem direito de expulsão e com redução do
foro a 1/5 ou 1/8. Mas não na ilha da Madeira.
§ 1369. A reação dos titulares de rendas sobre a terra seguiu uma de duas vias.
A primeira foi a de argumentar que a abolição dessas rendas (de direitos banais, de
direitos de foral, de servidões pessoais de base fundiária, nomeadamente) constituía
uma ofensa do direito de propriedade, que as constituições agora consagravam
como um direito sagrado. Não admira, pois que o argumento da proibição do

2183 Por exemplo, no v. “Colonus” do índice de Solano do Vale a Pegas, remete-se para “caseiros”

e “rendeiros”, “Emphyeuta”, “Locatio”, “Jugata”, “Forus”, “Reguengos” (Manuel Álvares Solano do


Vale, Index generalis […], cit., s. v. “Coloni”). Em Bento Pereira, o verbete “Colonia. Colonus” refere-
se à locação (v. Bento Pereira, Promptuarium […], cit.). Cf. dados complementares sobre o termo
“colonia” e “colono” no cap. 4.3.3.2.1. Por sua vez, Pascoal de Melo escreve: “A palavra colono
abrange, geralmente, todos os arrendatários de campos, e, por isso, também os próprios censuários e
enfiteutas. Dizem-se, porém. simples colonos os que cultivam um fundo alheio mediante o pagamento
de certa pensão em dinheiro corrente ou em certa quantidade de frutos; se esta quantidade for incerta,
por exemplo, a terça parte dos frutos, o arrendatário toma o nome especial de colono parceiro, o qual
é mais um verdadeiro sócio nos frutos que um arrendatário, Ord. liv. 4, tit. 45, 5 2, lei 25, 5 6, do tit.
Locati, Valasco, Quaest. 30, Schilter, Exercit., XXXI, $ 7; no Alentejo este colono chamava-se poneiro,
Lei de 9 de Julho de 1773. § 14, talvez da palavra grega poneiros Além disso, os colonos são ou totais,
isto é, principais, os que receberam sozinhos a coisa dada a censo, enfiteuse, ou locação de longo
tempo, ou parciais, os que têm, parcialmente, a coisa em comum com outros. A dita lei de 9 de Julho
de 1773, § 14, que hoje está abrogada, ou melhor suspensa, pelo Decreto de 17 de Julho de 1778 até
promulgação do Novo Código, manda que se adjudiquem ao colono principal todos os fundos e
possessões comuns acessórias e menos principais. Também há quem chame colonos aos que são
obrigados a pagar ao respetivo senhorio, pelo fundo que cultivam ou habitam, não já certo dinheiro,
nem certa ou incerta porção de frutos, mas certos trabalhos servis; no entanto, estes homens
assemelham-se mais à constituição feudal, isto é, servil, do que à enfitêutica ou colonária (Tit. 13, 5 a
11). Não temos colonos originários e adscriptícios, Ord. Iiv. 4, tit. 42 (Instituições, Do direito das
pessoas, Tit. 1, g XIII)” (usei a tradução de Miguel Pinto de Menezes).

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confisco, foi utilizado mesmo quanto à abolição da escravatura (ou seja, submissão
do valor da liberdade pessoal ao da propriedade). A outra via de reação foi a de
disfarçar rendas com origem nas relações sociais de tipo feudal em relações de
natureza contratual, ou seja, produto das vontades “livres” dos foreiros.
§ 1370. A compropriedade, a enfiteuse, a parceria – ou seja, todas as formas
imperfeitas de propriedade – passaram a ser tidas como prejudiciais. O Código Civil
de 1867 não incluiu a colonia entre as formas de propriedade imperfeita artº 2189 e,
com isto, tê-la-á abolido tacitamente, sujeitando ao regime da enfiteuse (artº 1689)
ss.as situações até aí tidas como de colonia2184.
4.3.6 As situações agrárias. Quadro sinótico.
§ 1371. Reunimos num quadro a caraterização simplificada das várias situações
reais.
Tipo Duração Foro Laudémio Comisso Indivisão Domínio Tributo Dízima
Herdades Perpétua Não Não Não Não Pleno Não Sim
Jugadeiras Perpétua Não Não Não Não Pleno Sim Sim
Enfiteuse Convenção Sim Sim Sim Sim Dividido Não Sim
Pleno
Censos Convenção Sim Não Não Não Não Sim
onerado
Perpétua
Sesmarias Não Não Não Não Não Não Sim
condicional
Dividido
Colonias Convenção Sim Não Não Não Não Não
precário
Servidão Perpétuo Não Não Não Sim - Não Não
Usufruto e
Perpétuo Não Não Não Sim Dividido Não Não
Uso

4.3.7 As servidões.
§ 1372. No direito romano justinianeu, as servidões – como a herança e o
usufruto - eram consideradas como coisas incorporais, que consistiam num
direito2185 sobre coisa de outrem2186.

2184 O DL 47 937, de 15.09.67 (art.º1, n.º1), proibiu, para o futuro, a celebração de contratos de

colonia, reconhecendo, porém, os contratos celebrados até à sua entrada em vigor, que continuariam
regidos pelo direito costumeiro e pelos usos locais, o que quer dizer que se mantinham os chamados os
direitos reais menores, ou seja, os direitos reais do colono sobre as melhoras, que continuaram a poder
ser transmitidos quer inter vivos, quer mortis causa. Mantendo-se também os direitos do senhorio à
dimidia, à autorização das melhoras e à expulsão do colono.
2185 Cf. “Incorporales autem sunt [res] quae tangi non possunt, qualia sunt ea quae in iure
consistunt: sicut hereditas, usus fructus, obligationes quoquo modo contractae. nec ad rem pertinet
quod in hereditate res corporales continentur: nam et fructus qui ex fundo percipiuntur corporales sunt,
et id quod ex aliqua obligatione nobis debetur plerumque corporale est, veluti fundus, homo, pecunia:
nam ipsum ius hereditatis et ipsum ius utendifruendi et ipsum ius obligationis incorporale est. 3. Eodem
numero sunt iura praediorum urbanorum et rusticorum, quae et servitutes vocantur”, I.2, 2
2186 Cf. Giuseppe Grosso, Luigi Raggi, Manlio Udina, “Servitù”, em Enciclopedia Italiana (1936),

em http://www.treccani.it/enciclopedia/servitu_%28Enciclopedia_Italiana%29/. Sobre a tradição


jurídica portuguesa, António Pinto de Meyrelles Barriga, As servidões prediais em direito peninsular e
português: subsídios para a história do direito português, Lisboa, Instituto Superior de Ciências Económicas e
Financeiras, [1934]; António Santos Justo, “A base romanista do direito luso-brasileiro das coisas:

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1373. O conceito era tão vasto que nele podiam caber a jurisdição sobre uma
coisa2187, o direito a serviços pessoais (serviços relativos a uma pessoa, servidões
pessoais) ou o direito a comodidades úteis ao uso de uma coisa de que se fosse
proprietário (servidões relativas a uma coisa, servidões reais) 2188.
§ 1374. As servidões pessoais eram direitos que recaíam sobre uma coisa alheia
relativos a serviços pessoais a prestar ao titular pelo proprietário dessa coisa. Tais
serviços podiam ser muito variados: prestar-lhe certos dias de trabalho, fazer-lhe
carretos de bens, permitir o pasto dos seus rebanhos 2189, permitir a exploração por
outrem de pedreiras no seu prédio2190, obrigar os habitantes de um lugar a moer os
cereais num certo moinho, ou a cozer pão num certo forno 2191.
§ 1375. As servidões reais eram devidas a uma coisa (um prédio, o prédio
dominante), consistindo no direito a vantagens no seu uso proporcionadas pela
limitação das faculdades de uso do prédio serviente. Havia limitações “naturais” ao
uso dos prédios, seja em função da utilidade pública, seja em benefício de prédios
vizinhos. Essas limitações constavam de normas de regulamentação urbanística 2192
ou de disciplina das relações de vizinhança urbana, em Portugal a cargo dos
almotacés2193, ou da natureza e disposição dos terrenos. Porém, estas limitações de
uso não constituíam servidões, pois estas necessitavam de um facto humano
constitutivo2194. O prédio superior tinha, por natureza, o direito de fazer correr as
águas da chuva ou de veios subterrâneos para o prédio inferior, sem que o dono
deste o pudesse impedir. Os seus donos podiam construir “até ao céu”,
prejudicando o sol e as vistas dos prédios vizinhos, cuja utilidade podia ficar
limitada por isso2195. Tal como podiam tapar o ar e vento aos vizinhos com muros
de que necessitassem. Porém, como a natureza das eiras era a de ter vento para
separar o grão da palha, os prédios em que estivessem tinham por natureza o
direito a manter essa aragem, a benefício da agricultura, ainda que isso importasse
uma limitação ao uso dos prédios confinantes 2196. O mesmo acontecia com as

algumas figuras jurídicas”, Revista da Ordem dos Advogados, 69.1-2 (2009), pp. 73-107; Ricardo Lopes,
“O direito de propriedade e as relações de vizinhança”, Scientia Iuridica, 13 (1954), pp. 478-495.
2187 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 18 (“as servidões mistas

que se devem à coisa da pessoa, como é o usufruto ou a jurisdição e similares”.


2188 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 1.

2189 Se os rebanhos fossem os de certo prédio do beneficiário da servidão, tratava-se de uma

servidão real, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 17.
2190 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 43.

2191 Este direito do proprietário do moinho ou do forno fundavam-se em presumidos privilégios

nesse sentido, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. ns. 46 e 47. Pascoal de
Melo refere a obrigação dos habitantes de terras do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra de fazer as suas
moendas nos moinhos do mosteiro, ou dos vizinhos de Tomar e de Setúbal de usar formos senhoriais;
ou ainda a obrigavam de morar e de cultivar que impendia sobre certos moradores dos reguengos (v.
Ord. fil.2, 17), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13, 2.
2192 V. Ord. fil.1, 68, 18 a 21.

2193 V. Ord. fil.1, 68, 22 ss..

2194 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 9.

2195 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 34. Mas já não se

poderiam tapar as vistas do mar, do céu, do curso do rio (o A. que era da Ruivães, invoca, enlevado,
as vistas do Douro e do Tejo. “sicut est fluvius Durius, vicinus meus, quia Durius vocatur eo quod per
dura saxa delabitur, aut Tagus” …, cf. ibid. n. 35) ou o sol que aquecia o terraço, ibid..
2196 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 33.

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limitações de uso de prédios que decorressem do dever de respeitar a privacidade


dos vizinhos, que impedia que os donos dos prédios abrissem portas e janelas, ou
construíssem terraços devassando prédios vizinhos2197
§ 1376. O que era natural era a plenitude do domínio ou liberdade do
prédio2198. E, por isso, a existência de uma servidão pressupunha um facto do
homem que modificasse essa natureza2199. Por exemplo. Os prédios inferiores
recebiam naturalmente as águas que fluíssem dos superiores. Mas, como esta mera
sujeição que decorria da natureza não criava uma servidão a seu favor, para que
tivessem direito a essa água era preciso que tivessem efetuado obras de captação no
prédio superior2200.
§ 1377. Dado que se tratava de relações ente coisas (indiretamente, de relações
entre pessoas, mas pelo facto de serem proprietárias de certas coisas) nem
requeriam qualquer ação (facere) do dono do prédio serviente 2201, nem podiam
subsistir sem essas coisas2202. E, por isso, as servidões eram consideradas como
coisas acessórias do prédio a que serviam 2203, não podendo ser objeto autónomo de
alienação, independentemente do prédio a que serviam2204. O facto de a servidão
ser uma coisa incorpórea impedia que se pudesse ter posse dela em sentido próprio.
Mas o conhecimento e consentimento (sciencia et pacientia) do dono do prédio
serviente ao exercício da servidão configurava uma quase posse (quasi possessio) que
podia conduzir à usucapião de uma servidão correspondente2205. Até ser fixada
numa parte específica do prédio serviente (que devia ser a menos gravosa para ele),
a servidão era devida por todo o prédio. As servidões, como coisas incorpóreas,
eram indivisíveis2206.
§ 1378. As servidões reais (ou prediais) podiam ser de diferentes tipos: oneris
ferendi (de apoiar sobre o prédio serviente determinada construção); a tigni immittendi
(colocar traves), cloacae (de esgoto), projiciendi (de avançar uma construção sobre o
prédio serviente), altius tollendi (de poder construir mais alto), estilicidii (de verter a
água da chuva sobre os prédios vizinhos), passu, iter ou viae (de passagem), pascendi
(de trazer gado a pastar), pecoris ad aquam adpulsus (de levar o gado a beber),de abrir

2197 “[…] de modo a ver os seus segredos, as moças ou as freiras [que habitassem o prédio

vizinho], pois isso não se pode fazer em desrespeito de outrem”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Servitus”, n. ns. 36 e 38.
2198 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., dec. 125, n. 12.

2199 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 9.

2200 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 10.

2201 Apenas uma aceitação (pati).

2202 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 2. Os prédios podiam ser

urbanos, se destinados a morar, fosse em cidades ou em aldeias, ou rústicos, se destinados ao cultivo,


embora pudessem conter estábulos ou cabanas Servidões reais são as que se devem a uma coisa, não
podendo existir sem elas, a dominante e a serviente, urbanas ou rústicas, como apoio da exploração
agrícola, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. ns. 3 e 4.
2203 Por isso, as servidões seguiam a coisa: vendido o prédio vendiam-se a servidões, cf. António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 32.


2204 Por exemplo, não se podia ceder a água de uma servidão de rega para uma utilidade de outro

prédio ou pessoa.
2205 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 11.

2206 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, ns. 6 e 7.

408
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

portas ou janelas ou de ter vistas sobre o prédio do vizinho (prospectu).


§ 1379. As servidões eram contínuas se se traduziam num uso contínuo e atual,
como no caso do direito de superfície ou no de assentar uma trave no muro do
vizinho (tigni immitendi)2207. Eram, em contrapartida, descontínuas, se dependessem
de facto humano que não se produzisse continuamente, como no caso das
servidões de passagem, de pasto, de aqueduto, de usar poço, de dar de beber ao
gado, de usar fonte, de regar2208. A natureza contínua ou descontínua da servidão
relevava para o regime da prescrição. As servidões contínuas e quase contínuas,
exercidas pelo dono do prédio dominante com conhecimento do dono do prédio
serviente, pacificamente e como direito próprio (nec vim nec clam, nec precario2209),
adquiriam-se por prescrição de 10 anos entre presentes, e de 20 entre ausentes 2210.
Já as descontínuas necessitavam de um exercício por imemorial 2211. A distinção
também tinha efeitos na extinção da servidão: a servidão contínua perdia-se por 10
ou 20 anos2212;a descontínua só se perdia por não uso pelo duplo deste tempo 2213.
§ 1380. A servidão estava protegida por ações próprias. A ação confessória de
servidão (actio confessoria servitutis ou vindicatio servitutis) dirigia-se contra o que
perturbava ou impedia o exercício da servidão; a ação de negação da servidão (actio
negatoria servitutis) dirigia-se contra o que exercitasse uma servidão não devida 2214.
Podia ainda pedir-se o reconhecimento da servidão acionando o dono do prédio
serviente com a ação do contrato pelo qual tivesse sido constituída 2215.
§ 1381. O uso da servidão também podia ser defendida cautelarmente por
interditos possessórios2216.
4.3.8 O usufruto
§ 1382. O usufruto estava definido no Digesto como o direito de usar e fruir
coisas alheias sem alterar a substância delas2217. Este uso não estava restrito àquilo
estritamente necessário, mas podia compreender todas as utilidades e frutos que a
coisa podia disponibilizar a um usuário prudente, mesmo para além das
necessidades do usufrutuário. Por isto se distinguia do direito de uso, que apenas

2207 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 13.
2208 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, ns. 14 a 17. Algumas
servidões, embora consistindo em atos descontínuos, supunham uma intenção contínua de uso. Era o
caso do usufruto ou da jurisdição. Seriam servidões mistas, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Servitus”, n. 18.
2209 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 22.

2210 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 19.

2211 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 20.

2212 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 23. Nos prédios urbanos

requeria-se que o dono do prédio serviente fizesse oposição ativa ao exercício da servidão, ibid. ns. 23,
26 e 39.
2213 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 24; a servidão devida a

prédio da Igreja só se perdia por não uso de 40 anos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Servitus”, n. 25.
2214 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 5.

2215 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Servitus”, n. 6.

2216 Cf. Mauro Luís de Lima, Commentaria […], cit.; refere-se ao usufruto, mas este era uma

espécie de servidão, pg. 234, n. 14.


2217 D.7, 1, 1: “Usus fructus est ius alienis rebus utendi fruendi salva rerum substantia”.

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autorizava ao uso estritamente necessário 2218.


§ 1383. Os limites do uso da coisa estavam na necessidade de não a destruir ou
modificar essencialmente e de fazer dela um uso prudente, como aquele que dela
faria um bonus pater familias2219. O usufruto era uma espécie de servidão universal,
pois compreendia todas as utilidades da coisa. Alguma doutrina considerava o
usufruto como uma parte do domínio2220 e, por isso, restringia a sua constituição
sobre bens da coroa doados2221, já que a constituição de usufruto induzia
alienação2222 e o donatário da coroa não podia alienar os bens doados. Pela mesma
razão, o usufruto não podia ser constituído pelo enfiteuta sem autorização do
senhor direto2223.
§ 1384. Os bens consumíveis, que se esgotam no seu próprio uso, não podiam
ser objeto de usufruto. A cessão do seu uso era apenas um quase usufruto, já que o
usufrutuário era obrigado a restituir ao proprietário coisas da mesma quantidade e
qualidade ou o seu valor, quando terminasse a concessão 2224.
§ 1385. O usufrutuário devia pagar uma caução usufrutuária, garantindo o valor
dos bens do usufruto que seria restituída quando o usufruto acabasse 2225.
§ 1386. O disfrute das comodidades da coisa trazia, em contrapartida, a
obrigação de suportar todos os ónus reais 2226; nisto, também o usufrutuário se
equiparava ao enfiteuta2227
§ 1387. O usufruto podia ser constituído por ato inter vivos ou por testamento.
Ou podia decorrer da lei, que estabelecia usufrutos a favor de certas pessoas em
certas situações2228. O principal usufruto legal previsto na lei portuguesa era o
usufruto a favor do pai (mas não da mãe) nos bens adventícios dos filhos (Ord.
fil.4,97,19; v. cap. 3.2.4)2229. Mas o direito do reino também atribuía às viúvas
pobres o usufruto de uma quarta parte dos bens do marido 2230.

2218 D.7, 1, 8 De usu et habitatione, 1: “Constituitur etiam nudus usus, id est sine fructu […]”.
2219 Cf. I.2, 1, 38; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13.
2220 Cf. “Usufructus pars dominii reputantur”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo

9, ad 2, 33, gl. 1, cap. 24, n. 217


2221 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad 2, 35, cap. 21, n. 13.

2222 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 73, n. 7.

2223 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 299, n. 1.

2224 Cf. D.7.5. De usu fructu earum rerum, quae usu consumuntur vel minuuntur; cf. Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13, 8.


2225 Cf.. Ord. fil.4, 91, 4; Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13, 7.

2226 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 116, n. 2.

2227 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 201, n. 7.

2228 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13, 5

2229; Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad 1, 87, gl. 8, n. 74 a 88. (com as

limitações da regra); ou nos bens dos escravos, ibid. n. 89. Outros casos menos relevantes de
constituição de usufruto legal: (i) a favor do pai ou a mãe que, havendo filhos do primeiro matrimónio,
contraiu segundas núpcias, nos bens que herdar ab intestato de filho já falecido (Ord. fil.4, 91, 2 e 4); (ii) à
bínuba quinquagenária, existindo filhos do primeiro matrimónio, nos bens que já tinha ou adquiriu
depois do segundo casamento (Ord. fil.4, 105); (iii) pelo alv. 17.8.1761, § 7, à viúva fidalga na décima
parte dos bens da herança ou património do marido, incluindo morgados e bens da coroa, v. Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13, 5.
2230 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus […], cit., pt. 3, c. 23, n. 12..

410
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1388. O usufruto extinguia-se: com a morte do usufrutuário, pois tratava-se


de um direito pessoal, que não passava aos herdeiros (nem se podia alienar) 2231;
pelo perecimento da coisa; pela consolidação do usufruto com a propriedade da
coisa (i.e. se o usufrutuária a adquirisse); pelo não uso da coisa por um período de
10 anos2232; pela emancipação dos filhos de cujos bens adventícios o pai tivesse o
usufruto (v. Ord. fil.4,97,19)2233. Finalmente, perdia-se por um uso que excedesse os
limites dos poderes do usufrutuário2234.
4.3.9 Uso e habitação.
§ 1389. O uso simples contém menos direitos do que o usufruto, pois o usuário
apenas pode usar das comodiades da coisa que lhe sejam estritamente necessárias,
não podendo, por exemplo, vender os frutos de que não necessite (v. I.2,1,5).
Como era um instituto menos usado, na dúvida, entendia-se que era o usufruto que
era concedido.
§ 1390. Mais limitado ainda era o direito de habitação (I.2,1,5), como direito
restrito de habitar uma casa, mas não de dispor dos frutos e outrras amenidades
que ela proporcionasse2235.
4.3.10 Direito de superfície.
§ 1391. O direito de superfície era o direito de ter alguma coisa edificada,
plantada ou colocada em solo alheio. A doutrina hesitava em a considerar como
uma cedência de domínio útil ou uma locação, que se distinguia da enfiteuse por
não ter laudémio, nem comisso2236
4.3.11 Direito ao pasto.
§ 1392. O direito de pasto (pascua) era, em sociedades com gados locais, mas
também com gados de transumância, como era o caso das comunidades rurais

2231 Cf. “Quidquid personale est”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad 2,

35, cap. 38, n. 22; ib. tomo 2, ad 1, 3, gl. 96, cap. 4. n. 83. No entanto, distinguia-se a inalienabilidade
do usufruto da alienabilidade das suas comodidades (cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs.
73, n. 8); por isso, a comodidade dos frutos podia ser vendida pelo usufrutuário, Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 66, ns. 23 e 24.
2232 Cf. Perde-se pelo não uso, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 10, ad 2, 35,

cap. 78, n. 36.


2233 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad. 1, 87, gl. 8, n. 90 e 103

2234 I.2, 4, 3: “Finitur autem usus fructus morte fructuarii et duabus capitis deminutionibus,

maxima et media, et non utendo per modum et tempus. quae omnia nostra statuit constitutio. item
finitur usus fructus, si domino proprietatis ab usufructuario cedatur (nam extraneo cedendo nibil agitur):
vel ex contrario si fructuarius proprietatem rei adquisierit, quae res consolidatio appellatur. eo amplius
constat, si aedes incendio consumptae fuerint vel etiam terrae motu aut vitio suo corruerint, extingui
usum fructum et ne areae quidem usum fructum deberi”.
2235 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 13, 9; Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),

Notas […] a Melo […], cit., nota a Melo 3, 13, 9.


2236. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 11, 5. Sobre este direito na tradição

romanística, v. “Superficies” em LocusCurtius (http://penelope.uchicago.edu/Thayer/


E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Superficies.html); Adriano Rocca (org.), […], Venezia, G.
Antonelli, 1847-69, Volume 5, v. "Locazione", n. 47 (em https://books.google.pt/
books?id=OBVfAAAAcAAJ&pg=PA74&lpg=PA74&dq=superficies+contratto+diritto+romano&sour
ce=bl&ots=E5e1H0KAGE&sig=fLDdxKgq1_OoG5aGdzbih0Rk208&hl=pt-PT&sa=X&ei= JBDW
VP3yL4L_sATGo4HoAQ&ved=0CCsQ6AEwAw#v= onepage&q=superfícies %20contratto
%20diritto%20romano&f=false).

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peninsulares, uma das mais importantes servidões prediais2237.


§ 1393. Já nos forais medievais se encontram frequentes afloramentos destes
direitos aos pastos, que estavam muito dependente dos costumes das regiões. Em
algumas delas, os gados estavam autorizados a pastar nos prédios públicos e
particulares. Noutras, apenas em certo tipo de prédios. Noutras, enfim, o direito a
pasto dependia da constituição de uma servidão, não estando os proprietários
naturalmente obrigados a sofrer a entrada de gados alheios.
§ 1394. Já referimos o direito ao pasto a propósito do regime dos bens comuns
dos concelhos, embora estes tivessem usos comuns que iam para além do pasto
(aproveitamento da lenha, apanha de colmeias, direitos de caça e de pesca, etc.).
Deiferentes eram estes direitos a que agora nos referimos, assentes numa relação
particular entre os donos de dois prédios, numa servidão.
§ 1395. Neste último caso, a servidão de pasto podia ser pessoal (abrangendo os
rebanhos de certa pessoa ou de certa comunidade – um mosteiro, os moradores de
um concelho ou de uma aldeia) ou real, servindo então apenas os rebanhos
pertencentes a certo prédio. Num caso ou noutro, era tida como um direito
inalienável, ou por ser pessoal, ou por ser um acessório do prédio dominante.
Existindo este direito, o dono do prédio serviente era obrigado a sofrê-lo, não
podendo murar o prédio, nem fazer aí cultivos incompatíveis com o pasto de
animais (fazendo-os, não tinha direito a ser indemnizado pelos estragos causados
pelo gado), nem mesmo apascentar o seu gado se o pasto não chegasse para os
animais de ambos2238.
§ 1396. Diferente deste direito que provinha de uma servidão de compáscuo era
o direito dos vizinhos a usar os pastos comuns e atribuídos pelos vereadores,
segundo os costumes antigos (Ord. fil.1,66,5 6) ou segundo o teor de privilégio
real2239. Como se tratava de bens públicos (v. cap. 4.2.2.4), não podiam ser
adquiridos por ninguém, nem por prescrição imemorial, tal como não podiam ser
alienados pelos vereadores ou pelo senhor da terra2240.

2237 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3, 13, 10.
2238 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit.3, 13, 10.
2239 Cf. Privilégios dos pastores serranos de passarem os seus gados para o Campo de Ourique,

Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad reg. Des. Paço, cap. 89, in fine.
2240 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, ad 2, 35, cap. 268, n. 4. Salvo

autorização régia por um ato puro de graça, que não era sequer da competência do Desembargo do
Paço, como fora julgado sobre a alienação de pastos comuns a favor das freiras de S. Bernardo de
Portalegre, Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 11, ad 2, 35, cap. 268, n. 2. O uso dos
pastos era regulado nos forais e vigiado pelos juízes do verde ou pelos funcionários do concelho. Cf.
decreto de 1612 mandando restituir à Câmara do Crato pastos e ervagens, matos e ramas do seu termo,
Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 7, ad regim. Senatus Palat. cap. 96, n. 1 (toda a
contenda, até ao n.32); sobre os direitos dos povos das várias aldeias do concelho de Alcobaça a
madeiras, montados e pastos nas matas, ibid. tomo 9, ad 2, 27, gl. 3, n. 61.Sobre os montados de
Campo de Ourique, António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.. 225, reg. 19.1.1699, JJAS, pg.
424; o gado que usava os pastos deste campo estava sujeito a um imposto que consistia numa pequena
percentagem das cabeças de gado (“monta”); v. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tomo 9,
ad 2, 26, gl. 16, n. 40; Sobre bens patrimoniais do rei deste tipo (lezírias, pauis, montados, matas,
montarias, pinhais), António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit.. 225 ss..

412
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

5 As sucessões.
§ 1397. A sucessão era um outro meio de se adquirirem coisas, a título universal
(como na herança) ou a título particular (como nos legados). A sucessão podia ser
deferida de acordo com a vontade do falecido (de cujus, de cujus sucessione agitur,
expressa num testamento, ou pela lei, caso este faltasse.
5.1 Fontes do regime sucessório no direito comum.
§ 1398. No direito sucessório de direito comum confluem tradições jurídicas
muito diferentes.
§ 1399. Por um lado, a tradição jurídica romanista, ela mesmo produto de uma
longa evolução. Os textos do Digesto reportam-se a uma fase mais antiga, em que a
sucessão era, principalmente, dominada pela preocupação de garantir a substituição
política e jurídica do de cujus, a qual era feita por um ato solene e público de
instituição de herdeiro (inicialmente perante os comícios reunidos), o testamento.
Esta fase publicista e formalista é temperada pelo direito pretório que, sem apagar
alguns dos traços anteriores, introduz uma nova dimensão na sucessão, a de dar
destino ao património do falecido, admitindo à sucessão outros seus familiares,
segundo uma ordem que se supunha seria a dos seus afetos: os ascendentes, os
parentes consanguíneos, e o cônjuge (v. cap. 3.2.5. Embora o sistema sucessório
romano fosse bastante igualitário no que respeita ao género, sobre ele pesava
fortemente a estrutura jurídica da família, com as suas distinções entre casamento
cum manu (em que a mulher estava submetida ao poder marido, como se fosse uma
filha, também para efeitos sucessórios) e casamento sine manu (em que a mulher não
dependia do marido, nem era uma sua parenta “política”, tendo por isso diminutos
direitos sucessórios). Justiniano reformou profundamente o direito sucessório
clássico, em constituições posteriores à elaboração das Institutiones e do Digesto ( as
Novelas 115 e 118). Aí, muitas das antigas distinções desapareceram ou foram
atenuadas, daí resultando um direito sucessório ainda centrado no testamento,
basicamente como expressão formal de uma vontade do testador, muito pouco
limitada, de dispor dos seus bens para depois da morte 2241.
§ 1400. Outra tradição era a dos direitos locais, nomeadamente de origem
germânica, implantados nos reinos e cidades alto-medievais. Aí dominava um
sistema sucessório estabelecido pela natureza ou pelos deuses, que limitava muito a
vontade do de cuius, distribuindo os bens, de acordo com a sua diferente natureza
(feudais, de família, adquiridos, do lado paterno, do lado materno), pelos
herdeiros2242.
§ 1401. Por fim, a tradição do direito canónico, que encarava o testamento
como um complemento do sacramento da confissão, tendo como fim principal
tomar disposições para a salvação da alma, como fazer legados pios (ad pias causas),
mandar rezar missas pela alma ou mesmo apenas declarar a sua fé e pedir perdão a
Deus. Por isso, o direito canónico quase apenas se preocupou com estes
testamentos piedosos, procurando discipliná-los2243, supervisionar a sua feitura2244,

2241 Cf. entre muitas sínteses, a de Álvaro d’Ors, Derecho privado romano, §§ 288 ss.. Em suporte

digital, por ex. http://www.treccani.it/enciclopedia/testamento_(Enciclopedia-Italiana)/.


2242 Helmut Coing, Europäisches […], cit., § 119 ss..

2243 Cf. g. simplificando as suas formalidades

2244 Promovendo a intervenção do cura de almas (ou pároco) na sua elaboração.

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vigiar o seu cumprimento2245, reclamando a jurisdição sobre eles.


§ 1402. O que resulta, na época moderna, desta confluência de tradições é um
regime complexo, em que se notam, como num sítio arqueológico, os sinais das
várias camadas. Das mais antigas ficou a necessidade de instituição de herdeiro,
alguns formalismos (como o número de testemunhas: cinco, sete ou oito2246); da
sucessão pretória, depois acolhida por Justiniano, a chamada dos cognados; da
sucessão “germânica”, o primado de uma ordem natural de sucessão, o direito de
alguns dos parentes a uma quota nos bens, a coexistência de várias massas de bens
com distintos regimes sucessórios (os de família, os paterno ou maternos, os
feudais, os de morgado); do estrato vindo do direito canónico, o regime
diferenciado do testamento piedoso (ad pias causas), a reclamação da jurisdição
eclesiástica sobre os testamentos, a desvalorização da instituição de herdeiro2247.
§ 1403. Com o jusracionalismo, o regime de direito comum é sujeito a críticas e
tentativas de reforma, por vezes contraditórias. A ideia de sucessão natural ganha
força, tanto mais que ela correspondia a ideias de vinculação da herança a uma
comunidade familiar que interessava à política linhagística, querida das grandes
casas. Isto levava a restringir a liberdade testamentária e a consagrar a primazia da
ordem da sucessão intestada (ou legítima)2248. Mas, em contrapartida, a ideia
individualista/voluntarista de liberdade de disposição valorizava a vontade do
testador, sobretudo no sentido de reduzir as exigências formais dos testamentos,
limitadas àquelas que garantiam a liberdade e autenticidade da intenção do testador
(mens testatoris)2249. Por outro lado, de acordo com o pensamento regalista,
combatiam-se as pretensões eclesiásticas na matéria, negando ao direito canónico
vigência perante os tribunais temporais, bem como a subsistência da jurisdição
eclesiásticas para julgar as questões conexas.
5.2 O testamento e a sucessão testamentária.
5.2.1 O testamento. Noção.
§ 1404. A definição acolhida de testamento era a que constava de D.28.1.1 (Qui
testamenta facere possunt et quemadmodum testamenta fiant: “O testamento é a declaração,
feita de acordo com o direito, acerca da vontade sobre aquilo que alguém quer que
seja feito depois da sua morte” (Modestinus libro secundo pandectarum. Testamentum est
voluntatis nostrae iusta sententia de eo, quod quis post mortem suam fieri velit).
§ 1405. No direito português, embora houvesse costumes anteriores,
nomeadamente provenientes do código visigótico, o regime testamentário tinha
sido objeto de uma profunda reforma legislativa, inspirada pelo direito comum, no

2245 Instituindo os bispos como executores testamentários.


2246 Cinco era o número de testemunhas da mancipatio testatória na fase arcaica do direito romano;
sete, estas cinco mais o libripens e o emptor família; oito, os anteriores mais o subscritor do testamento).
Estes números “mágicos” mantiveram-se, mesmo quando o seu originário sentido cerimonial se perdera
completamente.
2247 Boa síntese em Helmut Coing, Europäisches […], cit., ibid..

2248 Na legislação pombalina, há exemplos destas leis que limitam a disposição dos bens para fora

do círculo dos parentes mais próximos, ou a sua dissipação em legados (carta de lei de L. 9.9.1769,
revogada pelo Dec. 17.7.1778).
2249 Um bom exemplo destas perplexidades é Pascoal de Melo, nas suas Institutiones iuris civilis (3, 5),

cuja versão do regime sucessório está longe de refletir fielmente a doutrina dos sécs. XVI e XVII.

414
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

tempo de D. Afonso V (Ord. af. 4, 97 a 103)2250.


§ 1406. O testamento era considerado ser de direito das gentes, embora as suas
formalidades pudessem ter sido tornadas mais exigentes pelo direito civil de cada
lugar2251. Como o direito civil devia ser preferido ao direito das gentes, o
testamento regia-se pelos costumes do lugar onde fora feito, desde que estes não
dessem lugar a falsidades ou a violação do direito natural 2252. Eventualmente,
incidindo sobre bens imóveis, teriam que ser respeitadas as formalidades do lugar
em que estes se situassem.
§ 1407. Por força da antiquíssima tradição do direito romano arcaico, seguia-se
entendendo que não era válido sem a instituição de herdeiro 2253, por isso se
distinguindo de um documento menos solene, mas menos eficaz também, de
dispor para depois da morte, o codicilo. O direito racionalista, na esteira do direito
canónico, deixa de reconhecer a instituição de herdeiro como uma condição da
instituição de herdeiro2254.
§ 1408. Considerava-se que da substância do testamento faziam parte a forma e
as solenidades – ou pelo seu caráter originariamente público e quase sagrado, ou
pela necessidade de garantir a autenticidade da declaração do testador -, a qualidade
da pessoa do testador (capacidade testamentária ativa) e as qualidades das pessoas
dos herdeiros e legatários (capacidade testamentária passiva) 2255. As diferenças do
regime quanto a estes pontos, nomeadamente quanto ao primeiro, ditavam a
existência de várias espécies de testamentos. Assim, o testamento ou era público ou
particular, conforme assentasse em fé pública ou apenas particular; civil ou militar;
escrito ou nuncupativo; aberto, ou cerrado; solene, ou menos solene
(privilegiado)2256. Estas distinções, que variam um pouco conforme os autores
davam origem a diversos tipos de testamentos, de que se destacam os seguintes.
5.2.2 Espécies de testamento e suas formalidades.
§ 1409. O testamento público era o feito perante o príncipe (ou perante o juiz e
registado em auto judicial2257), em que se omitiam todas as formalidades, pois a
garantia deste excluía qualquer falsidade2258.
§ 1410. O testamento tabeliónico2259era feito por um notário ou tabelião e
firmado por ele2260. Era o testamento ordinário, com as formalidades de regra.

2250 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 3.


2251 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 1.
2252 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 104, n. 22.

2253 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 2. Havia exceções. A

mais importante era a do testamento de causas piedosas (ad pias causas), provindo do direito canónico,
que validava testamentos sem instituição de herdeiro,
2254 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5.

2255 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 5.

2256 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 5; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 4.


2257 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 5.

2258 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 45.

2259 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 6.

2260 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 6.

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Como formalidades2261, exigia cinco testemunhas, por direito pátrio (Ord. fil.4,80),
sete por direito comum2262, todas maiores de 14 anos, varões2263, livres, que
soubessem assinar e que não estivessem por lei impedidas de o ser 2264. As
testemunhas deviam ser rogadas, ou seja, convocadas especialmente para isso2265. O
testamento devia ser assinado pelo testador ou por alguém por si, que declarasse a
qualidade com que assinava (Ord. fil.4,80,pr.). A doutrina explicava a importância
deste formalismo pelo facto de o ato de testar pressupor grande ponderação de
juízo e de vontade2266.
§ 1411. Nos finais do séc. XVIII, e para simplificar os requisitos formais dos
testamentos, que os praxistas tinham complicado, a doutrina insiste em que a regra
mais importante para a validade do testamento era a de que apenas se requeriam as
formalidades expressamente contidas nas palavras das Ordenações 2267. A
preocupação com a simplificação das formalidades do testamento já vinha do
direito canónico, que supria algumas delas no caso de testamento feito perante o
pároco; mas esta simplificação, muito favorável à Igreja, não a admitia o direito
racionalista, tendencialmente laicizante.
§ 1412. Estas formalidades gerais dos testamentos tabeliónicos eram
dispensadas em certos casos especiais2268. Nos testamentos feitos nas aldeias, onde
normalmente houvesse pouca gente, bastariam três testemunhas (cinco por direito
comum) Ord. man.4,76,ult. (que não passou para as Ord. fil.). A razão de ser da
exceção era a pequenez do lugar, não a rusticidade das pessoas (mas isto era
discutido) 2269. Em tempo de peste, também bastavam três testemunhas, conforme
o direito comum e a praxe corrente em todos os tribunais em Portugal 2270. Os

2261 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 81, ns. 1 e 2.
2262 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, ns. 26 e 40.
2263 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, 27; as mulheres sendo

excluídas propter fragilitatem sexus. Pelo direito canónico, eram, porém, admitidas segundo alguns
autores; outros entendiam, no entanto que isto só acontecia nos testamentos ad pias causas. Eram
admitidas nos codicilos, ibid..
2264 Podiam ser testemunha as pessoas que não estivessem expressamente proibidas, Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 11. Estavam-no as mulheres, exceto nos testamentos feitos
ao tempo da morte (Ord. fil. 4, 80, 4), os impúberes, os furiosos, os mudos, os surdos, os cegos, os
pródigos, os herdeiro, seus filhos, pai e irmãos não emancipados (mas podiam ser testemunhas a mãe,
o avô, os irmãos emancipados, os criados e os legatários, Ord. fil.4, 85. 85); v. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit.3, 5, 11-12; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Testamentum”, n. 28. O monge não podia escrever testamento com deixas a um mosteiro; uma CL de
25 de Junho de 1766 proibia deixas ao que escreveu e seus familiares; mas foi revogada, Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 12.
2265 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 31 (“presente e

rogado”); esta exigência não existia nos testamentos nuncupativos, nem nos militares, em que bastavam
duas ou três testemunhas, de qualquer modo presentes (ibid. n. 46; cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...],
cit., cons. 104, dedicada aos testamentos militares).
2266 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 83, n. 2.

2267 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 6.nota.

2268 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 15.

2269 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 8, n. 5 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,

cons. 117, ns. 2 e 3 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 39.
2270 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 42; formalidades,

António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 81, ns. 1 e 2.

416
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

testamentos feitos pelos pais aos seus filhos também valiam apenas com a
assinatura do pai e de duas testemunhas desta assinatura 2271.
§ 1413. O testamento aberto era feito pelo testador, ou por um particular a seu
rogo2272, e igualmente assinado por cinco testemunhas, varões, maiores de 14 anos
e livres. Era subscrito pelo testador e por aquele que escreveu o testamento, que era
tido como tabelião. Ao contrário do testamento tabeliónico, cujo conteúdo fazia fé
por ser escrito por um oficial público, este devia ser lido diante das testemunhas,
antes de estas o assinarem, para que elas pudessem atestar a autenticidade do seu
conteúdo2273.
§ 1414. O testamento cerrado ou místico era escrito e fechado pelo testador, ou
por outrem a seu mandado, e entregue pelo testador, na presença de cinco
testemunhas varões, maiores de 14 anos e livres, ao tabelião, que lhe perguntava
perante elas se o testamento era seu; se o testador dissesse que sim, o tabelião fazia
um instrumento de aprovação, apenso ao testador e assinado pelo testador e pelas
cinco testemunhas2274.
§ 1415. O testamento nuncupativo era uma declaração oral do testador acerca
da sucessão dos seus bens. Pelo direito justinianeu, era admitido em geral, embora
com a exigência de mais testemunhas, como um testamento de direito civil2275. Nas
Ordenações filipinas, a sua validade aparecia condicionada ao facto de ter sido feito na
iminência da morte e de o testador não se restabelecer2276. A generalidade da
doutrina continuava, porém, a entender que se podia testar nuncupativamente em
qualquer altura, embora as testemunhas devessem, neste caso, ser todas homens,
segundo o regime geral do direito comum 2277. Neste caso, o testamento valia para
sempre, isto é, enquanto não fosse revogado 2278. Como as suas exigências formais
eram menores, a doutrina entendia que se os testamentos não pudessem valer
como escritos, por falta de forma, valeriam como nuncupativo, se tivessem forma
bastante para tal, já que a substância do testamento era a declaração de vontade do
testador e sua prova2279.
§ 1416. Próximo do testamento estava o codicilo, originariamente uma
declaração sobre a sucessão dos bens, complementar a um testamento e, por isso,

2271 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 41; valeria como

codicilo, presumindo-se que continha cláusula codiciliar, Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all.. 61,
ns. 26-27; formalidades, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 32, n. 1.
2272 Não podia ser um herdeiro aí instituído, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Testamentum”, n. 78.
2273 V. Ord. fil.4, 80, 3; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 7.

2274 V. Ord. fil. 4, 80, 1-2.; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”,

n. 51.
2275 Cf. I.2, 10, 14 – “Sed haec quidem de testamentis quae in scriptis conficiuntur. si quis autem

voluerit sine scriptis ordinare iure civili testamentum, septem testibus adhibitis et sua voluntate coram
eis nuncupata, sciat hoc perfectissimum testamentum iure civili firmunque constitutum”.
2276 Atenuava-se o formalismo, pois apenas se exigiam perante seis testemunhas, homens ou

mulheres. V. Ord. fil. 4, 80, 3. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 9. A doutrina
também entendia que não se exigia a rogatio das testemunhas.
2277 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 9.

2278 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., a Ord. fil. 4, 80, 3; António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 40.


2279 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 51 n. 2.

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não contendo instituição de herdeiros2280. A eficácia dos codicilos estava limitada


por esta sua natureza subsidiária: só os podiam fazer os que pudessem testar; neles
não se podia nem instituir herdeiro, nem revogar uma instituição; bastavam quatro
testemunhas, varões ou fêmeas, contando o que escrevesse o documento (nas
pequenas povoações, apenas três testemunhas). Como as formalidades dos
codicilos eram menores, podia-se inserir num testamento a cláusula codiciliar,
determinando que o testamento, se não pudesse valer como tal, valesse como
codicilo (v.g. “quero que o testamento valha de qualquer modo”). Como os
codicilos tinham as limitações antes referidas, nem tudo se salvava; mas,
normalmente, isto permitia manter os legados (mas não, claro, as instituições de
herdeiros)2281
§ 1417. Havia ainda espécies chamadas privilegiadas de testamentos, que
obedeciam a regimes especiais de validade.
§ 1418. O testamento militar tinha uma antiga tradição no direito romano e
vinha regulado nas Ordenações (Ord. fil.4,83). Podia ser feito pelos militares em
campanha2282 e caracterizava-se pela dispensa das formalidades ordinárias: bastavam
duas ou três testemunhas e dispensava-se a sua rogatio2283.
§ 1419. O testamento piedoso (ad pias causas, ad exoneradam conscientiam) traduzia-
se essencialmente em legados a favor da alma, ou legados pios (missas, esmolas,
dádivas a instituições religiosas), embora pudesse conter legados profanos. Pelo
direito canónico, era válido só com duas ou três testemunhas 2284, desde que escrito
por mão própria e selado com o selo do testador. Valia ainda que não contivesse
instituição de herdeiro2285, pois a sua finalidade era principalmente espiritual; e uma
causa piedosa faria valer uma disposição nula (cum cessat falsídia)2286. A opinião
comum era a de que esta validade não se estendia ao foro secular; mas muitos
autores perfilhavam a opinião contrária2287. Os juristas racionalistas e regalistas,
como Pascoal de Melo, irão negar a sua validade temporal 2288.
§ 1420. O testamento de estrangeiros não era, em rigor, um testamento
privilegiado. Só que se tinha que atender à lei relevante para determinar as suas

2280 V. Ord. fil. 4, 86; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, ns. 32

a 36, 47 e 55.
2281 António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 126, n. 4; sobre esta cláusula, Melchior Febo,

Decisiones [...], cit., dec. 13, n. 34, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 56 e 57.
2282 E, segundo alguma doutrina, pelos cavaleiros das ordens militares e, segundo opinião ainda

mais problemática, pelos clérigos e pelos doutores, v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
3, 5, 15.
2283 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 46; Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons. 104, toda ela (com referência aos testamentos feitos em nau militar ou nas
fortalezas da Índia); Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 15.
2284 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, 43. Dispensava-se a rogatio,

cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 81. ns. 3 e 4.


2285 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 145.

2286 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 96, n. 60.

2287 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 67, per totam, especialmente ns. 1, 6 e 7 (Bento

Pereira, Promptuarium [...], cit., 1885).


2288 A constituição de Alexandre III que o autorizara (no cap. Relatum 11 do tit. 3, 26 De testamentis

das Decretais) nunca teria sido recebida pelas leis ou costumes de Portugal, Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 17.

418
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

formalidades. Em princípio, esta era a lei do lugar em que o testamento era feito.
Assim, os testamentos de portugueses nas terras “dos mouros” deviam ser feitos
segundo o costume do lugar ou, não sendo este conhecido, segundo o ius gentium
(duas testemunhas); as formalidades dos testamentos feitos no mar eram reguladas
pelo direito do porto a que o mar fosse adjacente (ou pelo ius gentium se este fosse
desconhecido)2289; os testamentos feitos em nau portuguesa eram considerados
testamentos militares; os testamentos de estrangeiros em Portugal obedeciam ao
direito português. Em qualquer dos casos, tinha que se atender à lei do lugar da
situação dos bens imóveis deixados, pois era por esta que se definia a validade das
cláusulas testamentárias a eles relativas (statutum unius regni non extenditur ad bona sita
extra territorium statuentium)2290.
§ 1421. Também o testamento dos cônjuges entre si - feito, como se dizia, “de
mão comum”, no qual eles mutuamente se instituíam herdeiros - não era um
testamento privilegiado, visto que requeria as solenidades ordinárias. A sua
especialidade provinha de um regime algo especial quanto à revogação. Qualquer
um dos cônjuges podia, em princípio, revogar a sua parte sem o conhecimento do
outro, visto que, na realidade, os testamentos eram dois, sendo lícito a cada um
mudar de intenção. Em todo o caso, havia quem entendesse que, nomeadamente se
figurasse no testamento uma cláusula proibindo a revogação, havia um
condicionamento da deixa de um pela deixa do outro, uma espécie de instituição
sinalagmática, que impediria a revogação unilateral. Esta opinião, contudo, não era
comum, optando a doutrina pela regra geral da revogabilidade das deixas
testamentárias2291.
5.2.3 Requisitos substanciais do testamento.
§ 1422. Para além destas solenidades externas, condicionavam a validade do
testamento certas circunstâncias substanciais, relativas à vontade do testador, como
essência do testamento2292. Estas circunstâncias tinham que ver com a capacidade
testamentária ativa, com a possibilidade de querer e de saber o que se queria, com a
liberdade de decisão do testador e com o requisito de instituição de herdeiro ou de
deserdação expressa, que fora herdado da fase mais antiga do direito romano 2293.
§ 1423. A capacidade testamentária ativa2294 era recusada2295 ao furioso e afins
(salvo nos intervalos lúcidos)2296, aos impúberes2297, ao pródigo (declarado

2289 Nos limites das navegações portuguesas, vigorava o direito português, Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons. 182 n. n. 17; mas podia aplicar-se o direito especial dos testamentos feitos em
lugar ermo (Ord. man. 4, 76, ult.), ibid. n. 18.
2290 Sobre estes casos, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 182, ns. 2 a 19..

2291 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 182, n. 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis

[...], cit., 3, 5, 18. Note-se que o testamento conjunto dos dois cônjuges, escrito pelo marido, e em que
eles se instituem mutuamente herdeiros era nulo na parte da instituição do marido, porque o herdeiro
não podia escrever o testamento, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n.
79. Sobre os testamentos em mão comum dos cônjuges, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit.,
“Testamentum”, n. 1870.
2292 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 19.

2293 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 19.

2294 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 6 ss..

2295 V. Ord. fil.4, 81.

2296 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 7 (mentecapto,

fatuus, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 97, ns. 1 ss.). Sucediam, não os herdeiros ab

419
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judicialmente como tal)2298, ao surdo mudo de nascença ou ao que não possa


exprimir o nome do herdeiro2299, ao filho família2300, ao escravo2301 ou aos cativos
de guerra, aos condenados em pena que importasse a morte civil 2302, aos usurários
que não prestassem caução de restituir as usuras 2303; aos excomungados (pelo
menos, aos públicos), pois estão excluídos da comunidade, aos banidos
(degredados, privados aquae et ignis2304); aos hereges, pois os seus bens eram ipso facto
tidos como confiscados2305; aos infames2306; aos condenados por lesa majestade 2307.
Em contrapartida, podiam testar os estrangeiros 2308, como se disse.
§ 1424. De direito comum, os monges professos com três votos não podiam
testar, pois perdiam o domínio dos seus bens 2309. Isto era confirmado pelas
Ordenações (Ord. fil.4,81,4), que estabelecia esta proibição para os que tivessem feito
os três primeiros votos (pobreza, castidade e obediência) 2310. No entanto, os
direitos de muitos reinos (v.g. França, Espanha e Portugal) autorizavam os restantes
clérigos a testar de seus bens, mesmo os adquiridos em razão do ofício ou com os
proventos deste2311. Esta possibilidade de dispor de todos os bens,

intestato do furioso, mas os herdeiros ab intestato do testador, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Haereditas”, n. 5.
2297 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 10: 14 anos nos

rapazes e 12 nas raparigas. Sucediam os seus herdeiros legítimos.


2298 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 12.

2299 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, ns. 8 e 9. Os cegos

podiam testar, mas exigia-se um número maior de testemunhas: sete ou oito testemunhas, além do
notário, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 24.
2300 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 11. Só podia dispor

dos bens castrenses ou quase castrenses. V. Ord. fil.4, 81, 3; Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 29,
ns. 114 ss..
2301 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 16.

2302 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 13: degredados,

cárcere perpétuo, morte natural (embora a prática, segundo diz, fosse a de deixar o condenado fazer
testamento antes da execução, se não houvesse confisco dos bens). Aos que fossem feitos prisioneiros
pelo inimigo aplicava-se o regime romano do postlimínio. Pascoal de Melo afasta estas causas de
incapacidade testamentária (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 21).
2303 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 14.

2304 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 15.

2305 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 18.

2306 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 21.

2307 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 22.

2308 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 21.

2309 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 16; António da

Gama, Decisiones […], cit., dec. 308.


2310 Mas valia o testamento feito antes (e, por isso, o dos noviços). Cf. António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 16, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,
5, 24. Logicamente, este testamento não podia ser revogado depois dos votos. Discutia-se se a entrada
em religião rompia o testamento quando fosse imprevista no momento da feitura deste e acompanhada
da intenção de plena dedicação à vida religiosa, cf. ibid..
2311 V. Ord. fil.2, 18, 5. Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 95, ns. 19-21; Álvaro

Valasco, Decisiones […], cit., cons. 74, n. 13; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 23.
O testamento regia-se pelo direito canónico, quanto às formalidades (duas testemunhas, perante o
pároco). Para valer no foro secular, tinha que obedecer às formalidades do direito civil; cf. Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 74; Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 7, n. 30.

420
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

independentemente da sua origem, não provinha do direito canónico primitivo,


mas antes se explicava pela conveniência em evitar litígios sobre a origem dos bens
que, no baixo clero, teriam pouco relevo económico. Já nos testamentos dos
bispos, se restringia a sua capacidade de disposição aos bens hereditários e
adquiridos a título pessoal e, ainda assim, só com autorização do Papa 2312, não se
estendendo, assim, aos bens obtidos em razão do ofício (o que se presumia nos
seus bens)2313. Os cavaleiros das ordens militares podiam testar (de acordo com
uma bula de Júlio II, de 12.12.1505). Os cavaleiros da Ordem de Malta, só com
licença do mestre e do rei2314.
§ 1425. A liberdade de testar era essencial num ato destinado, justamente, a dar
conta das disposições livres do testador quanto aos seus bens 2315. Por isso, era nulo
o testamento extorquido pela força, medo ou dolo mau, sendo privado da herança,
como indigno, aquele que impedisse alguém de testar, não chamando as
testemunhas ou o tabelião2316. Também era nulo o testamento daquele que fosse
induzido a fazê-lo por blandícias ou carinhos exagerados e dolosos, por pedidos
constantes ou por ameaças2317.
§ 1426. As restrições aos pactos sucessórios ou à sua obrigatoriedade em
relação aos que os subscreviam também tem a ver com a salvaguarda desta
liberdade de testar. De facto, pelo pacto sucessório alguém obrigava-se a dispor de
certa maneira dos seus bens, a revogar um testamento já feito ou a não o
revogar2318. Isto comprometia o princípio de que a vontade do testador devia
manter-se livre e mutável (ambulatoria) até à morte. Daí que o direito dispusesse que
os pactos sucessórios (e testamentos em mão comum, que implicitamente
continham o pacto de que cada parte não podia modificar o testamento sem o
consentimento da outra) só valiam como disposições mortis causa, mantendo-se a
vontade do testador ambulatória até à morte. A única exceção admitida era a de
pactos sinalagmáticos, em que a promessa de testar de certa forma tivesse tido uma
contrapartida2319. Para além disto, o direito dispunha que se não considerasse
perjuro o testador que alterasse o testamento, tendo jurado não o fazer.

2312 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 90; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis [...], cit., 3, 5, 23.


2313 Sobre os testamentos dos cardeais, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 26.

Sobre os testamentos régios, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 27 (podiam testar os
seus bens particulares, com as formalidades ordinárias).
2314 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 25.

2315 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 28.

2316 V. Ord. fil. 4, 84, pr. e § 3, ns. 1, 2 e 3; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Testamentum”, ns. 111-112.


2317 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., pt. 1. dec 25; dec. 68, ns. 5 a 7 (“Testamentum

annulatur, quando blandiciae habent admistum dolum, vel sunt admitxtae mine, aut verbera … Idem
est dicendum, si intervenient preces importunae, vel seduxio uxoris per mariti suasiones”); Manuel
Barbosa, Remissiones […], cit., à Ord. liv. 4, 84.
2318 Os pactos sucessórios ou eram de sucedendo ou de non sucedendo. Pelo pacto de sucedendo

convencionava-se que alguém fosse instituído herdeiro por outro; pelo de non sucedendo, alguém se
obrigava a renunciar a uma certa herança futura (Ord. fil. 4, 70, com fonte nos direitos justinianeu e
canónico). Para os juristas jusracionalistas, estes pactos eram tendencialmente válidos. Havia ainda o
pacto acerca de herança de pessoa viva, que era considerado imoral, pois se entendia fazia perigar a
vida dessa pessoa (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 164, per totam).
2319 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 49.

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5.2.4 A instituição de herdeiro.


§ 1427. Para o direito romano, incluindo a sua última fase, a instituição de
herdeiro era da essência do testamento 2320. O direito comum acolheu este princípio,
que, subvertidas as funções políticas que o testamento tinha na cultura romana pré-
clássica e clássica, não fazia já grande sentido. Mas é preciso esperar pela segunda
metade do séc. XVIII para que a instituição de herdeiro perca este papel central no
direito testamentário2321.
§ 1428. Podiam ser instituídos herdeiros2322 todos aqueles que o direito não
excluísse da capacidade testamentária passiva (factio passiva testamenti)2323. O testador
podia dispor livre e plenamente – v.g. preterindo familiares a favor de estranhos 2324 -
de todos os seus bens, salvaguardada, porém, a parte que devesse ficar para os
herdeiros forçosos (v. 5.3.1)2325. Podiam ser instituídos herdeiros a alma ou os
pobres, ficando a distribuição a cargo do testamentário 2326.
§ 1429. A instituição de herdeiro (tal como a deixa de legados) podia ser feita a
termo (a quo e ad quem) ou sob condição, desde que esta não fosse inepta ou
irracional, caso em que não obrigava o herdeiro ou legatário 2327. Não valiam como
tal as condições consideradas desonestas, por limitarem a liberdade natural (como

2320 I.2.20 De legatis, 34: “Ante heredis institutionem inutiliter antea legabatur, scilicet quia
testamenta vim ex institutione heredum accipiunt et ob id velutii caput atque fundamentum intellegitur
totius testamenti heredis instituto”. Para os juristas jusracionalistas, esta regra devia-se a uma superstição
dos romanos, sem um suporte racional; v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 68, n. 2; Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 29.
2321 “A instituição de herdeiro não é da essência do testamento”, afirma enfaticamente Pascoal de

Melo ( Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 29), abonando-se nos autores do usus modernus.
2322 Usava-se a palavra hereus (hereo) para designar o herdeiro, mas também o proprietário alodial

(hereu ou hereo).
2323 Os incapazes de serem herdeiros eram: os religiosos regulares (Ord. fil.4, 81, 3 e 4; poderiam,

no entanto, receber uma renda vitalícia para alimentos, além de legados), os proscritos ou
desnaturalizados, os hereges (Ord. fil.5, 1, pr.), os apóstatas (Ord. fil.4, 81), os filhos e netos de
condenados por lesa-majestade (Ord. fil.5, 6, 13; mas não as filhas), os clérigos instituídos por outros
clérigos (Ord. fil.2, 18, 7), os colégios e corpos, quer seculares, quer eclesiásticos, de mão morta (cf.
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 5, 31, sendo a doutrina anterior mais permissiva,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 18), os cativos (que se presumiam
mortos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 52). Os mentecaptos e os
pródigos podiam ser instituídos, mediante aceitação do curador (cf. António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 21). A capacidade hereditária era referida ao momento do deferimento
da herança, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 37; no direito romano, a aferição era
mais complicada, abrangendo vários momentos e isto reflete-se ainda na doutrina do direito comum (cf.
Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 63, n. 4).
2324 Note-se que o testamento que instituísse um espúrio podia ser querelado por um herdeiro

legítimo preterido, Gama dec. 143, n.1.


2325 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 29 ss.. Uma lei de 9.9.1769 (revogada

por um dec. de 17.7.1778) limitou o direito de ser instituído herdeiro a quem fosse parente agnado do
testador até ao 4º grau.
2326 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 19.

2327 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 96; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 32. O legado ciente de coisa alheia obrigava o herdeiro a adquirir
essa coisa a entrega-la ao legatário, cf. ibid. n. 98; o testador não revogava o legado penhorando ou
hipotecando a coisa, apenas obrigando o herdeiro a levantar o ónus; mas entendia-se que a alienação da
coisa legada correspondia à revogação do legado, cf. ibid. n. 103.

422
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

as de não casar, de se manter viúvo, de viver castamente)2328, que tornavam nulo o


testamento, sendo apostas à instituição de herdeiro2329.
5.2.5 A preterição de herdeiro.
§ 1430. No direito português, tal como no direito comum, todos os
descendentes de qualquer idade, categoria (mesmo os póstumos 2330) e sexo, quer
estivessem sob a patria potestas (haeredes sui), quer tivessem sido emancipados, deviam
ser expressamente referidos no testamento, tanto pelo pai, como pela mãe, fosse
para os instituir como herdeiros, fosse para os deserdar. Se eles fossem preteridos
ou deserdados sem justa causa ou sem declaração desta, o testamento era nulo,
embora ficassem firmes os legados que não excedessem a terça dos bens (quota
disponível)2331.
§ 1431. Isto valia igualmente para os outros herdeiros forçosos (v. caps. 5.3.1.1
e ss.): pais e irmãos (estes só se fossem preteridos por pessoa infame, Ord.
fil.4,90,1). Esta regra não se aplicava aos testamentos dos clérigos, pois estes
dispunham livremente dos bens, salvas as legítimas 2332, nem aos dos militares, nos
bens castrenses e quase castrenses 2333.
§ 1432. Um irmão podia preterir outro irmão, desde que não fizesse seu
herdeiro uma pessoa infame, caso em que esse irmão devia ser instituído ou
deserdado, se houvesse causa para tal (maquinação contra a sua vida; acusação
crime do irmão contra o testador; maquinação para lhe fazer perder todos os seus
bens; trato sexual com a mulher do testador)2334.
5.2.6 A deserdação.
§ 1433. Para além de não poderem ser preteridos, os filhos também não podiam
ser deserdados, a não ser pelas causas previstas nas Ordenações (Ord. fil.4,88, cuja
fonte era a Nov. 115)2335 , a saber: injúria aos pais (§§ 4 e 5); acusação ou denúncia
criminal contra eles (§§ 6 e 11); convívio com feiticeiros (§ 7); maquinação contra a
vida dos pais (§§ 8 e 9); incesto com a madrasta ou com a manceba do pai (§ 10);
recusa de fiança ou resgate ao pai preso ou cativo (§§ 12 e 16); impedimento a que
o pai faça testamento (§ 13); 10); recusa ou negligência em cuidar do pai furioso ou

2328 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 34. Mas a doutrina admitia a instituição

da esposa, com a condição de não voltar a casar (Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 87, n. 15).
2329 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 36.

2330 O testamento que excluísse os nascituros era nulo (“in quo praeteritus venter, hoc est proles in

ventre, est nullius momenti”), Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 124, n. 44. No testamento em
que se tivesse preterido um filho póstumo, caíam as instituições de herdeiro, mas mantinham-se os
legados se o testador sabia que a mulher estava prenha, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Testamentum”, n. 60.
2331 V. Ord. fil. 4, 82, 1 e 5; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”,

n. 62; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 38 3. Todavia, não era necessária a
instituição especial dos filhos quando o pai dispunha da terça em favor de um dos filhos, porquanto se
entendia que com este facto ele não preteria os outros, mas os instituía a todos quanto ao restante, Ord.
fil.4, 82; cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], dec. 78, n. 1.
2332 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 64. Esta exceção

não era pacífica (Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 88, ns. 2, 4 e 6).
2333 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 65.

2334 V. Ord. fil.4, 90, 2, inspirado na Nov. 22, cap. 47.

2335 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 43.

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enfermo (§§ 14 e 15); heresia (§ 17); meretrício, concubinato público ou casamento


sem consentimento paterno de filha menor de 25 anos (§ 1) 2336. Todas estas causas
valiam também a favor de outros ascendentes poderem deserdar descendentes (Ord.
fil.4,88,18). Eram, por isso, herdeiros forçosos (ou legitimários), com direito a dois
terços da herança (cf. 5.3.1.1).
§ 1434. Os filhos podiam deserdar os pais por sete causas, indicadas na Ord.
fil.4,89, inspirada na mesma Novela de Justiniano (Nov. 115, cap. 4): maquinações
contra a vida dos filhos (§ 1); estupro da mulher ou barregã do filho (§ 2);
impedimento a que o filho fizesse testamento (§ 3); envenenamento pelo pai da
mãe de seu filho, ou por esta daquele (§ 4); recusa, negligência no cuidar do filho
furioso (§ 5); recusa em resgatar o filho (§ 6); heresia do pai (§ 7). 2337. As causas da
deserdação deviam ser declaradas no testamento, e provadas pelo herdeiro
instituído (Ord. fil.4,82,2).
§ 1435. Também os irmãos não podiam ser deserdados a favor de pessoa
infame (Ord. fil.4,90, 2).
§ 1436. Alguns autores defendiam que os clérigos podiam deserdar pai e mãe,
mas esta opinião não era a comum.
5.2.7 As substituições.
§ 1437. A matéria das substituições tinha como fonte o direito romano, em que
era uma matéria complicada e cheia de subtilezas. Foi nele que se inspirou a Ord.
fil.4,87. As substituições eram a instituição de herdeiro, para o caso de o primeiro
instituído não poder aceitar a herança (“em segundo grau”, Ord. fil.4,87)2338. Tinha
cinco espécies, a saber.
§ 1438. A substituição vulgar era a indicação de um herdeiro em segundo grau
se o primeiro instituído não o pudesse ser, por não ter aceitado a herança ou por
não o ter podido fazer (por pré-morte, por incapacidade) (Ord. fil.4,87,1)2339. A
substituição recíproca dava-se quando o testador dispunha que os vários herdeiros
instituídos se substituíssem entre si, no caso de a instituição se frustrar em relação a
qualquer deles (Ord. fil.4,87, 5). A substituição pupilar era aquela em que o testador
nomeava um outro herdeiro para substituir o seu filho pupilo (varão menor de 14
anos ou fémea menor de 12) para o caso de este falecer em idade pupilar (Ord.
fil.4,87, 7). A substituição exemplar era a que um ascendente fazia para o caso de
que o instituído, naturalmente impedido de fazer testamento (furioso, mentecapto,
surdo-mudo), morresse enquanto esse impedimento durasse (Ord. fil.4,87,11).
Finalmente, a substituição compendiosa era aquela que o testador fazia para o caso
de morte de um herdeiro (Ord. fil.4,87,12)2340. Apesar de a lei não a referir, a
doutrina reconhecia ainda como válida a substituição fideicomissária, em que o
testador autorizava o primeiro instituído a ser substituído, no caso de se verificar ou

2336 Sobre a deserdação no direito comum, v. Julius Kirschner, “Baldus de Ubaldis on


disinheritancecit..
2337 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 88, ns. 2, 4, 6.

2338 Fontes doutrinais: Bento Pereira, Promptuarium […], cit., n. 1817.

2339 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 126, ns. 4 ss.; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,

cons. 53, n. 3. Em geral, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1823.


2340 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 126, n. 10.

424
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

não certa condição ou de transcorrer um certo período de tempo (ex.: “Deixo os


meus bens a Pedro, que os passará a seus filhos, quando tiverem 18 anos”; ou “que
os passará a Paulo, se este não for para a Índia”).
5.2.8 A interpretação dos testamentos.
§ 1439. A vontade do testador era o fundamento do testamento, devendo ser
rigorosamente cumprida, a não ser que fosse imoral ou ilegítima 2341. Esta
centralidade da vontade também explicava as normas especiais de interpretação dos
testamentos, que devia procurar atingir, de forma mais plena do que nos outros
atos2342, essa vontade, reconstruindo-a a partir de indícios e conjeturas
verosímeis2343, dentro daquilo que conduzisse a soluções legais 2344. Por outro lado,
sendo o testamento um ato de interesse público, devia ser feito o possível para
manter o testamento válido2345. Daí que, sendo alguma cláusula inválida ou
insanavelmente obscura, devia procurar-se reduzir o testamento às cláusulas válidas,
mantendo-o de pé2346.
5.2.9 Testamentos nulos, rotos, inoficiosos e vazios.
§ 1440. Em todo o caso, a validade do testamento podia não ser possível.
Nesses casos, o testamento dizia-se nulo, roto (ruptum), inoficioso e vazio
(destitutum)2347.
§ 1441. O testamento dizia-se nulo quando estivesse em absoluto e desde o
início destituído de todo o efeito ou por incapacidade (inabilidade) do testador
(Ord. fil.4,81), ou por omissão das solenidades prescritas (Ord. fil.4,80), ou por falta
de instituição ou deserdação não justificada dos filhos (Ord. fil.4,82,2) ou dos pai e
mãe (Ord. fil.4,82,1 e 4,91). Nestes casos, o testamento podia ser atacado por um
herdeiro legítimo por meio de uma ação declaratória de nulidade 2348.
§ 1442. O testamento roto era aquele que se tornava nulo pela mudança do
estado do testador para um que não lhe permitisse testar (v.g. o de escravo2349) ou,
muito mais frequentemente, pelo nascimento e consequente preterição de um

2341 Encontram-se exemplos como: tratar o seu cadáver de forma ímpia (por exemplo, deitando-o

ao mar), desobrigar o testamenteiro da prestação de contas, fazer alguém herdeiro com a condição de
este doar os bens a um filho espúrio do testador, como forma de contornar a proibição de instituir
herdeiros os filhos espúrios, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 10.
2342 “Plenior quam in donationibus et contractibus”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,

s. v. “Testamentum”, n. 75.
2343 “Ex verissimile et quae sunt verisimilia in ultimis voluntatibus”, António da Gama, Decisiones

[...], cit., dec. 224, n. 14.


2344 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, 101; “[testamentum ]

videtur se conformare cum jure communi”, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 206, n. 26.
2345 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 17, obs. 6 ss. (“publice interest [est]

testamenta sustineri et conservari”).


2346 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 76.

2347 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 56.

2348 E não pela petição dos bens contra o testamento (bonorum possessio contra tabulas), nem pela

querela de testamento inoficioso, que ambas supunham um testamento válido. Estas distinções quanto
às ações disponíveis perderam o interesse no direito comum tardio, que não obrigava a indicar o nome
da ação (v. 7.1.3).
2349 Aquele que ingressava numa ordem religiosa não sofria uma diminuição da capacidade jurídica

e, por isso, o testamento por ele feito antes de professar não se tornava roto; cf. Álvaro Valasco, Praxis
partitionum […], cit., cap. 16, n. 17.

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póstumo2350 ou pela feitura de outro testamento, solene e perfeito (Ord. fil.4,84,2). A


revogação de um testamento por outro era possível mesmo que o primeiro
contivesse uma cláusula de não revogação, pois a vontade do testador era
deambulatória até à morte (era a sua última vontade) 2351.
§ 1443. O testamento inoficioso (i.e. que não cumpre o seu ofício ou função)
era o testamento feito validamente, em que aqueles a quem era devida a legítima
tivessem sido deserdados ou preteridos por causa justa mas falsa 2352. Podia ocorrer
entre pais, filhos e irmãos, que eram os que tinham legítima 2353. Uma vez rescindido
o testamento, pela querela de testamento inoficioso, somente se viciava a instituição
de herdeiro, ficando firmes os legados e outras cláusulas testamentárias (cf. Ord.
fil.4,90).
§ 1444. Dizia-se (destituctum) aquele em que não fosse instituído herdeiro2354 ou
em que o instituído não aceitasse a herança ou não a pudesse receber, devido a
morte ou não cumprimento da condição. Este testamento, tal como o nulo, não
tinha qualquer valor, tanto quanto à instituição, como quanto aos legados e outras
cláusulas2355. Semelhante era o caso de o herdeiro, depois de feito o testamento, ter
cometido um ato infame contra o testador (como ter relações íntimas com a sua
mulher ou viúva), pois então se tornava indigno da herança, a qual ficaria para o
fisco2356.
§ 1445. Discutia-se sobre se a quota deixada a herdeiros ou legatários não
válidos (ou que não tivessem aceitado a herança) acrescia à dos herdeiros válidos
(direito de acrescer) ou se, pelo contrário, se deferia pela ordem de sucessão ab
intestato. O direito de acrescer explicar-se-ia por repugnar ao princípio de que
ninguém podia morrer em parte testado e em parte intestado 2357. Pascoal de Melo é
de opinião de que o direito de acrescer não tinha sido recebido e que a regra testatus
não tinha nenhum fundamento racional2358. Mas a doutrina anterior admitia esse
direito2359.

2350 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 59; ou legitimação

de um natural ou espúrio, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 73.
2351 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 66-69 (“voluntas

testatoris est deambulatoria usquem ad extremum vitae exitum”). A doutrina obrigava, no entanto, a
que, se o primeiro testamento contivesse essa cláusula (ou fosse garantido mediante a invocação do
credo, do padre nosso ou de fórmula religiosa semelhante (“nisi in eo scribantur articuli fidei auto ratio
dominica vel similia “), o testamento revogatório o referisse expressamente (“não obstante tal
testamento e tais palavras”). Cf. ainda, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 209, n. 2.
2352 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 70.

2353 Nos irmãos apenas no caso da sua preterição por pessoa infame a dos irmãos, só em certos

casos, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 90.
2354 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 165, ns. 2 ss..

2355 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 5, 54. Mas, se fosse instituído um herdeiro

incapaz ou que morresse antes do testador, e outro fosse instituído para o “resto da herança” este
herdava tudo, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 17
2356 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 51.

2357 Cf. I.2, 14, 4: “neque enim idem ex parte testatus et ex parte intestatus decedere potest”.

2358 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 6, 23.

2359 Cf. v.g. Álvaro Valasco, De partitionibus […], cap. 17. n. 31.

426
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

5.2.10 A execução dos testamentos.


§ 1446. A execução dos testamentos2360 competia aos testamenteiros nomeados
pelo testador e, subsidiariamente, aos herdeiros. Segundo o direito canónico, os
bispos supervisionavam a execução dos testamentos 2361, tarefa que, por direito
régio, competia aos provedores das comarcas e aos juízes dos resíduos 2362. O
testamenteiro podia não aceitar a missão; porém, tendo-a aceite, não a podia
abandonar2363.
§ 1447. O testamenteiro devia executar o testamento no prazo indicado pelo
testador (Ord. fil.1,62,pr.) ou, na falta de prazo deste, dentro de um ano e um mês a
contar da data da morte. Devia obrigatoriamente prestar contas e fazer inventário
da herança. Podia ser removido, pelo juiz, no caso de faltar às suas obrigações
dolosamente. Podia ter direito a uma recompensa, estabelecida pelo testador,
embora os seus serviços fossem por natureza gratuitos, pois eram prestados em
nome da amizade2364.
5.2.11 A herança.
§ 1448. A herança era a sucessão universal dos bens (coisas, direitos e deveres
não pessoais) de um defunto, deduzido o dinheiro devido a outrem (aes alienum) 2365.
§ 1449. Antes de ser aceite pelos herdeiros, a herança dizia-se jacente (v. Ord.
fil.3,80,1), constituindo uma universalidade (como tal podendo ser vendida)2366. Até
ser aceite era considerada como res nullius. Representava a pessoa do defunto e,
como tal, podia proceder-se em juízo contra ela, como se procedia contra um
pupilo (dando-lhe curador2367).
5.2.12 A aceitação da herança.
§ 1450. Pelo direito comum, na esteira do que acontecia no direito romano, os
“herdeiros do seu” (haeredes sui, os que estavam sob a patria potestas do de cuius) não
tinham que aceitar a herança (adire haereditatem), recebendo-a ipso iure2368. Já os
outros (haeredes extranei) tinham que a aceitar, para que ela se lhes transmitisse 2369.
§ 1451. A herança entendia-se aceite pela prática de qualquer pacto ou contrato

2360 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Testamentum”, ns. 1931 ss..
2361 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 105.
2362 V. Ord. fil.1, 62, 23; cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., pt. 1, cap. 49 (Juízo

dos resíduos e das capelas; causas pias, cumprimento dos legados pios e bens dos ausentes); Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 6, 14 e 16.
2363 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Testamentum”, n. 107; sobre o regime das

testamentarias, ibid. ns. 109 ss.


2364 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Testamentum”, ns. 1931 ss.; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 6, 16.


2365 “Haereditas est successio in universum ius, quod defunctus habui tempore mortis, ” António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, ns. 1 e 8.


2366 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 9.

2367 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 14; Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., 68, ns. 10 a 15.


2368 O mesmo aconteceria com a Igreja, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 109, n.

4.
2369 Pascoal de Melo já dá esta distinção como supérflua, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis

[...], cit., 3, 6, 4.

427
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sobre bem que lhe pertencesse2370 (por “se agir como herdeiro”2371). A herança
podia ser aceite puramente ou sob condição (v.g. se for solvável). Também podia
ser aceite no todo ou apenas em parte, pois não fora recebida no direito português
a regra romana nemo pro parte testatus et pro parte intestatus decedere potest 2372. Os
incapazes aceitavam a herança pelos seus representantes; o filho família podia
aceitar por si, pedindo antes autorização ao pai 2373. O prazo para aceitar a herança
era marcado pelo juiz a pedido dos credores. Decorrido o prazo, a herança tinha-se
como repudiada, quando pedida pelo herdeiro substituto; por aceite, quando pedida
pelos credores ou legatários2374.
§ 1452. A herança não aceite era devolvida ao herdeiro legítimo seguinte, não
passando aos herdeiros do herdeiro que não a aceitara, pois nunca tinha sido dele.
Salvo se este não a tivesse aceitado por alguma dúvida em que fosse justo dar um
tempo de reflexão e, entretanto, tivesse morrido. Sucedia o contrário se o herdeiro
fosse haeres sui, pois aí não era necessária a aceitação, ficando então a herança, não
aceite nem repudiada, para os filhos e, falecidos estes, para os seus herdeiros 2375. O
herdeiro podia repudiar a herança, mas não depois de a ter aceitado 2376.
5.2.13 A situação jurídica do herdeiro.
§ 1453. Uma vez aceite, a representação da pessoa do defunto passava para o
herdeiro2377, que respondia pelo património hereditário, tanto nas vantagens como
nos inconvenientes. Assim, podia usar dos direitos do defunto em vez dele, desde
que não fossem direitos pessoais e, por isso, intransmissíveis; competiam-lhe todas
as ações do defunto, desde que a natureza da ação o permitisse; sendo haeres sui
aproveitava a posse do de cuius2378; substituía o defunto nas suas posições
contratuais2379; respondia, em princípio, pelas dívidas, pelos legados e pelas
despesas do funeral, na parte correspondente à quota da herança que, como
herdeiro, lhe coubesse (responsabilidade parciária) 2380 2381; devia cumprir as dívidas
de alimentos do de cujus2382; embora não respondesse pelos delitos do defunto,
respondia pelos danos que decorrem desses delitos 2383 e por aquilo em que eles o

2370 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “testamentum”, n. 94.


2371 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt.1. dec. 61, ns. 1 ss..
2372 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 134, n. 5.

2373 Se este a negasse, adquiria-a sem mais, Ord. fil.4, 98, 3.

2374 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 6, 10; sobre o tempo para aceitar e

repudiar, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 96.


2375 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 6.

2376 V. Ord. fil.4, 87. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 49..

2377 V. Ord. fil.4, 48, 3.

2378Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 15; por ser como que a

pessoas do de cuius; já o herdeiro estranho não aproveitava a posse do falecido (Álvaro Valasco, Decisiones
[...], cit., cons. 126, ns. 2 e 3) (v. cap. 4.3.1).
2379 Era obrigado a manter o locatário, o que não acontecia com o legatário (que herdava as coisas

e não a posição jurídica do testador), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”,
n. 14.
2380 No caso das dívidas ao fisco, a responsabilidade era agravada, v. Ord. fil.2, 52, 5.

2381 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, ns. 25 a 28.

2382 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 28, ns. 7 e 11.

2383 Cf. Diogo Marchão Themudo, Decisiones [...], cit., dec. 23, n. 4.

428
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

tivessem beneficiado. Para além disso, tinha que cumprir as instruções do defunto,
a não ser que tivesse justa causa para não o fazer 2384.
§ 1454. Os herdeiro ficavam obrigados plenamente pelas dívidas da herança.
Podiam, porém, requerer o benefício de inventário 2385, possibilidade introduzida
por Justiniano de o herdeiro limitar a responsabilidade pelas dívidas dela ao
montante de ¾ dos bens herdados (reservando para si a quarta Falcidia)2386. Os
juristas jusracionalistas, em contrapartida, defendiam que o herdeiro nunca
respondia ultra vires hereditatis, pelo que o pedido de inventário seria apenas uma
cautela recomendada pela prudência, sobretudo porque, no foro, ainda dominava a
anterior doutrina da responsabilização plena do herdeiro pelas dívidas da
herança2387. Já os legatários não respondiam pelas dívidas do defunto.
§ 1455. O inventário da herança era obrigatório para os que administrassem
bens alheios e sempre que houvesse filhos menores ou herdeiros incapazes. Era da
competência oficiosa do juiz dos órfãos e, no caso de herdeiros incapazes, dos
juízes ordinários (Ord. fil.. 1,78,7; 1,79,13; 1,88,8).
5.2.14 Os legados.
§ 1456. O direito pátrio que regulava os legados era, basicamente, o direito
comum, que já influenciara muito o direito testamentário das Siete Partidas (v. Part.
VI, tit. 9)2388.
§ 1457. A regra era a plena liberdade de fazer legados, salva a quota dos
herdeiros forçosos2389. Podiam fazer legados os que podiam testar e recebê-los os
que podiam receber heranças2390. Os legados mantinham-se, apesar da preterição
dos herdeiros ou deserdação sem causa, ou mesmo que no testamento não se
nomeasse herdeiro (testamento destituto), mas não no caso de nulidade do
testamento por falta de forma 2391. Já os legados a pessoas que morressem antes do
testador, mas depois do testamento, eram tidos como não escritas2392. Frequentes
eram os legado de causas pias consistindo em deixas a bem da alma do testador (em
louvor de Deus ou dos santos, para a salvação da alma, à Igreja ou lugar pio, aos
pobres, a bem de lugares públicos, como pontes, fontes, caminhos, etc.) 2393. O

2384 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, ns. 23, 40 e 41.
2385 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereditas”, n. 35.
2386 Pedia-se no prazo de 30 dias a partir da notícia da instituição do herdeiro. A lei Falcidia datava

de 41 a. C.
2387 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 6, 9-10. Informa que, de qualquer modo, a

praxe dos inventários era pouco rigorosa (cita Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 52.
2388 Fontes doutrinais, Bento Pereira, Promptuarium iuridicum [...], cit., ns. 990 a 1011.

2389 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7, 3.

2390 Embora não pudesse instituir os filhos espúrios como herdeiros, podia fazer-lhes legados a

título de alimentos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 3. Se não
pudessem ser tidos como tal, esses legados ficavam para o fisco, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “legatum”, n. 18.Também valia o legado feito a um religioso, pois se entendia que se
destinava a alimentos ou a atos de culto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Legatum”,
n. 4.
2391 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, ns, 5 e 29.

2392 Ficando os bens legados para os herdeiros instituídos, António Cardoso do Amaral, Liber [...],

cit., s. v. “legatum”, n. 15.


2393 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 68.

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legado torpe ou instituído com palavras insultuosas não valia (cf. ibid. v. “Legatum”,
n. 32).
§ 1458. O legado incluía os crescimentos da coisa (mesmo a casa que se
construiu sobre o solo legado)2394 e as coisas acessórias (casa com o seu aido); água
com os seus cano; servidões; loja com os seus débitos, crédito e mercadorias2395.
§ 1459. O legado condicional só era devido, cumprida a condição2396. A
condição impossível, imoral ou contra a lei tinha-se por não escrita, valendo o
legado como firme2397. O legado com a condição de nunca ser alienado, equivalia a
um fideicomisso familiar, em que os bens ficavam perpetuamente na família do
legatário2398.
§ 1460. Independentemente da revogação do testamento, eram tidos como
revogados os legados feitos a pessoa em relação à qual se tivesse gerado uma
inimizade superveniente ou que tivesse vindo a caluniar o testador (por exemplo,
instaurando contra ele uma ação sobre o seu status2399). O legado extinguia-se
perecendo a coisa legada; mas não se o testador tivesse vendido a coisa, caso em
que o herdeiro ficava obrigado pelo seu valor2400. O legado de uma coisa alheia,
obrigava o herdeiro pelo preço2401.
§ 1461. O legado podia ser repudiado; no caso de legado condicional ou a
tempo, só se estivesse realizada a condição ou cumprido o tempo 2402. Tal como os
bens instituídos a favor de herdeiros que não aceitassem ou não pudessem aceitar a
herança, os legados repudiados ficavam para o herdeiro, em virtude do direito de
acrescer2403.
§ 1462. Na interpretação dos legados deviam usar-se os sentidos da linguagem
corrente2404.
§ 1463. Os legados podiam ser pedidos por ação de reivindicação ao herdeiro
que tivesse aceitado a herança. No foro português, costumava usar-se o meio mais
expedito da assignação de 10 dias2405.

2394 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 41.
2395 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, ns. 47 a 49.
2396 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7, 15.

2397 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 25. Vale a condição de a

viúva permanecer viúva, mas não a condição geral de não casar ou de guardar virgindade, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 28. Porém, Pascoal de Melo é de opinião
diversa: a condição impossível ou o uso de expressões injuriosas para o legatário invalidariam o legado
(tal como acontecia na instituição de herdeiro), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7,
14.
2398 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 64.

2399 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 30.

2400 A menos que o herdeiro provasse a intenção de revogar o legado, cf. António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, ns. 35-36; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7,
17.
2401 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 59.

2402 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 22; contra, Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7, 16.


2403 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 19.

2404 Regras de interpretação, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7, 9 a 12.

2405 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “legatum”, n. 10; Pascoal de Melo,

430
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

5.2.15 Os fideicomissos.
§ 1464. O direito justinianeu equipara aos legados os fideicomissos 2406. A
matéria dos fideicomissos era considerada como difícil, entre os juristas do direito
comum. Mas, ao mesmo tempo, tinha-se tornado num ponto de direito de grande
interesse, porque, já desde a época romana que os fideicomissos se tinham tornado
num instituto muito usado, quer para contornar proibições do direito testamentário
quando à disposição dos bens, quer para impedir que os bens saíssem de uma
família aquando das heranças.
§ 1465. No direito português, a centralidade dos fideicomissos era bastante
menor, sobretudo porque o instituto dos morgados (v. cap. 5.4), permitia atingir o
segundo fim.
§ 1466. Um fideicomisso (de fide comissum, entregue à confiança) era a instituição
pelo testador de um herdeiro ou legatário (fiduciário), com o pedido formal (“rogo,
volo, fidei tuae committo”) de que transmitisse por morte (restituere) os bens da
herança (ou apenas alguns especificamente designados)2407 a outrem
(fideicomissário)2408. Podia ser instituído por testamento, mas também por codicilo
e mesmo por contrato inter vivos (v.g. doação)2409. O fideicomisso de família
perpétuo – em que se designava como fideicomissário uma pessoa e os seus
descendentes, ou em que se incluía uma condição de que os bens não pudessem ser
alienados - permitia justamente que os bens se mantivessem na família para sempre
e correspondia, por isso, a um morgadio, em que a sucessão se deferia pela ordem
sucessória ab intestato2410. O direito justinianeu impedia que o fideicomisso de
família durasse mais do que quatro gerações; mas o direito comum aboliu esta
limitação e permitiu que este tipo de fideicomissos fosse constituído por ato entre
vivos; a partir daí, ele tornou-se na forma típica de garantir a preservação do
património das famílias abastadas ou com preocupações linhagísticas. Manteve-se
assim até muito tarde (na Alemanha, até 1938), tal como aconteceu com o
morgadio, em Portugal
5.3 A sucessão legítima ab intestato ou legítima.
§ 1467. A sucessão que se deferia de acordo com a lei era chamada legítima 2411.

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7, 5.


2406 Cf. D.30 a 32 De legatis et fideicomissis; I.2, 20 De legatis e 23 De fideicommissariis

hereditatibus.
2407 O herdeiro fideicomissário tinha que ficar sempre com, pelo menos, ¼ dos bens (quarta

trebellianica). Esta correspondia à quarta falcidia, que limitava a obrigação do herdeiro de responder pelas
dívidas da herança a uma quarta parte. O senatusconsultum Trebellianum estendeu este regime às obrigações
do herdeiro fiduciário de restituir a herança aos fideicomissários.
2408 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 135, n. 2.

2409 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 7, 19.

2410 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 206, n. 25. Normalmente, continha uma

cláusula a favor da alma do testador. “Fideicomissum perpetuum in família inducitur quotiescunque


relinquuntur bona cum onere missarum, & ut in illis descendentes in perpetuum, etiam si ex aliqua
ratione non sit maioratus”, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 120, n. 19: “Fideicomissum
perpetuum censetur inductum inter omnes de família, si testaror bona relinquat duobus de domo, &
progénie sua onere distribuendi tertiam pecuniae quantitatem inter pauperes”, Miguel de Reinoso,
Observationum […], cit., obs. 68, n. 1.
2411 Fontes romanas: D.38.16 De suis et legitimis heredibus; C.6.55. De suis et legitimis liberis et ex filia

nepotibus ab intestato venientibus, mas, sobretudo a Novela 118 (v. http://droitromain.upmf-

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Porque não se baseava num testamento, chamava-se ab intestato.


5.3.1 A ordem sucessória.
§ 1468. A ordem legítima de sucessão era, assim, de direito civil, embora o
chamamento das primeiras classes (filhos e descendentes) se fundasse naquilo que
se entendia ser o impulso natural dos pais em relação aos filhos (mesmo dos
naturais e espúrios)2412, pelo que se entendia que os direitos hereditários destes – tal
como os seus direitos a alimentos paternos - eram de direito natural e, por isso,
inalteráveis pela lei2413. O que poderia variar, de acordo com o direito de cada
cidade, era a extensão ou configuração destes direitos, nomeadamente, a quota dos
bens a que os filhos tinham um direito (quase) inviolável – a legítima2414. Pelos
meados do séc. XVIII, a leitura da natureza altera-se, a ponto de se considerar a
ideia mesma de sucessão como artificiosa, já que, por natureza, as coisas seriam de
ninguém, sendo apropriadas apenas pelos chamados títulos originários de
apropriação2415 (v. cap. 4.3.3.2.1).
§ 1469. No direito romano, a ordem legítima de sucessão variou muito.
Inicialmente só os filhos sujeitos a seu pai, fazendo parte da família política do pater
(agnados) (v. § 911), eram herdeiros forçados, pois, fazendo parte do corpo do pai,
na verdade herdariam o que já era seu (haeredes sui et necessarii). Mais tarde, este
direito foi alargado aos cognados (emancipados ou sui iuris) pelo direito pretório 2416.
Mas só a Autêntica 118 (Justiniano, ano 543) aboliu a distinção entre agnados e
cognados, ou entre varões e mulheres, constituindo a principal fonte do regime de
direito comum2417.
§ 1470. A ordem sucessória de direito comum, basicamente recebida no direito
português2418, incluía os seguintes grupos: descendentes, ascendentes, colaterais,
cônjuge e fisco2419.
5.3.1.1 Os descendentes.

grenoble.fr/Corpus/Nov118.htm). A fonte doutrinal mais usada foi Domingos Antunes Portugal,


Tractatus de donationibus [...], cit., caps. 18 e 19 (com muitas ulteriores referências); também, Pascoal de
Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 8.
2412 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. n.18, n.5.

2413 Doutrinalmente, discutia-se se a sucessão tinha um fundamento no direito divino, natural ou

civil. Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 2 ss..
2414 Por justa causa, podia ser tirada, Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...],

cit., liv. 3, cap. 18, ns. 7 e 8. Mas, de resto, tinha que ser respeitada, nem o príncipe a podendo
dispensar, ibid. ns. 9-10. Havia uma certa intermutabilidade ou compensação entre legítima e alimentos,
o que autorizava o pai que instituísse um morgado que privava os filhos segundos das suas legítimas a
substituí-las por alimentos, ibid. liv. 3, cap. 18, n. 8.
2415 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 8, 2, com referência à nova
mundividência quanto à apropriação das coisas.
2416 Por meio de um decreto de entrega da posse dos bens a filhos que não fossem herdeiros

segundo o ius civile: bonorum possessio unde liberi (contra tabulas), Domingos Antunes Portugal, Tractatus de
donationibus [...], cit., liv. 3, cap.18, n.13.
2417 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 43. Sobre

a sucessão romana, confrontada com a hebraica, Francesco Lucrezi, La successione intestate […], cit..
2418 V. Ord. fil.4, 96. O direito português como que assume implicitamente a ordem sucessória do

direito comum, apenas a esclarecendo ou adaptando em limitados pontos.


2419 Cf. Nov. 118, Ord. fil.4, 96, pr.. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.

“Haereditas”, ns. 1 e 2.

432
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1471. O primeiro grupo é o dos descendentes 2420, começando pelos filhos.


Primeiro os filhos legítimos, nascidos de um matrimónio válido, sem distinção de
varões ou fémeas2421. Os direitos sucessórios dos filhos existiam quer em relação à
herança de seu pai, como de sua mãe 2422. Nos legítimos incluíam-se os póstumos,
nascidos até ao 10º mês depois da morte do pai, período considerado como de
possível geração2423. Os filhos legitimados por subsequente matrimónio ou carta
régia de graça2424 também eram tidos como legítimos 2425. Apesar de entre escravos
não poder haver matrimónio pelo direito romano (só coabitação, ou contubernium), o
direito canónico tinha validado este casamento, pelo que os filhos de escravos
casados eram legítimos e eventuais herdeiros de seus pais2426. Os filhos dos
estrangeiros nascidos de legítimas núpcias também gozavam destes direitos 2427.
§ 1472. Outra era a situação dos filhos ilegítimos ou naturais, nos quais se
incluíam os espúrios e os filhos de coito condenado (coitus damnatus).
§ 1473. Filhos naturais eram, pelo direito canónico, os nascidos de pais que não
fossem casados. Porém, para que tais filhos fossem considerados como naturais de
seu pai, a relação concubinária tinha que ser estável e única de parte a parte. O
concubinato breve e vago não era suficiente para criar uma relação de filiação, ainda
que natural, com o pai. Parece que, nos sécs. XVI e XVII, o rigor já não era tão
grande que não se admitisse que um homem com várias concubinas tivesse filhos
naturais delas2428.
§ 1474. Por direito comum, os filhos naturais só herdavam de seus pais, se não
houvesse filhos legítimos (ou a mãe)2429. Se não houvesse descendentes, mas
houvesse ascendentes, só herdavam por disposição testamentária e, ainda assim, só
nos limites da terça (uncia hereditatis), pois tinha que ser salvaguardada a legítima
(duae unciae hereditatis) dos ascendentes2430. Os filhos naturais não tinham uma quota
legítima que tivessem forçosamente que herdar e, por isso, não podiam arguir de
inoficioso um testamento que os deserdasse (querela innoffciosi testamenti)2431. Os netos
que fossem filhos legítimos de filhos naturais também não sucediam; mas sucediam
os que fossem filhos naturais de filhos legítimos, uma distinção estranha que se

2420 V. Ord. fil.4, 82, 4, 96.


2421 O alv. de 17.8.1761 privou as filhas dos nobres da legítima dos pais, mantendo-lhes o direito a
alimentos. Muito criticado, foi revogado pelo Dec. de 17.7.1778.
2422 Era a solução introduzida no direito romano pelo senatusconsulto Orficiano (de 178 d.C. cf.

D.38, 17; C.6, 57). Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18,
n. 21.
2423 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 23.

2424 Tratamento exaustivo das legitimações em Manuel Álvares Manuel Álvares Pegas, Commentaria

[...], cit., Commentaria […], cit., tom. 2, ad Ord. fil.1, 3, 1, gl. 4 (ps. 6-93); A legitimação pelo príncipe,
Jorge de Cabedo, Decisiones […], pt. 2, dec. 69, per totam.
2425 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 52.

2426 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 31.

2427 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 35.

2428 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 47.

2429 V. Ord. fil.4, 91, 92, 1 e 3, que Portugal entendia dever ser entendido neste sentido.

2430 Cf. 4, 49, 1 e 3. Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap.

18, n. 39. Podiam também ser incluídos, por testamento, na linha de sucessão de morgados.
2431 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 40 (não

no caso de plebeu); ibid. lib. 3, cap. 18, n. 51.

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explicava pelo facto de os netos herdarem por direito de representação do pai, cujo
estado assumiam2432.
§ 1475. O direito português acolhia o regime do direito comum, mas apenas
para os nobres. O filho natural de nobre não herdava 2433. Mas, se fosse plebeu
sucedia com os outros filhos legítimos2434. Daí que, no direito pátrio, todas as
restrições sucessórias dos filhos naturais só valiam para o caso de filhos de
nobres2435. Estes direitos sucessórios aproveitavam também aos filhos tidos de
escrava própria ou alheia2436.
§ 1476. Os filhos espúrios eram, em sentido genérico, os filhos de pai incógnito
(“cui pater est populus, non habet ille patrem”) 2437. Em sentido estrito, eram os que
provinham de pais que, por direito canónico, não se pudessem casar. Não tinham
direitos sucessórios ab instestato, por qualquer dos direitos2438. Para além disso, não
podiam ser instituídos herdeiros, nem receber nada dos bens dos pais, por
testamento ou contrato lucrativo2439. Estas restrições estendiam aos seus
descendentes, mesmo legítimos2440; no entanto, os espúrios podiam ser legitimados
e, com isso, obter direitos sucessórios plenos. Este era um dos casos em que a
legitimação podia ter interesse, do ponto de vista sucessório, para um plebeu.
§ 1477. Os filhos de “de coito danado” eram aqueles que provinham de relação,
não apenas proibida pelo direito, mas punida, como os filhos de relações
incestuosas, os filhos de clérigos de ordens maiores, os filhos de concubina mantida
no domicílio conjugal2441. Nem sequer podiam ser legitimados por graça régia, pois
não se podia apagar o pecado2442. Estavam privados de direitos sucessórios em
relação ao pai2443, mas sucediam à mãe, tendo até direito à legítima 2444. Porém, se a

2432 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 49-50.
2433 V. Ord. fil.4, 91, 1.
2434 Ord. fil.4, 92; cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18,

ns. 33 e 49.
2435 Um investido em ordens era tido como cavaleiro, pelo que o seu filho natural não sucedia,

Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all 6, n. 28.


2436 Ord. fil.4, 92, pr.; Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cp.

18, n. 34. Que também podiam suceder na administração de um morgado; cf. Miguel de Reinoso,
Observationes […], cit., obs. 33, n. 1 ss..
2437 “Et ideo quasi nati incerto patre spurii solent appellari”, Domingos Antunes Portugal,
Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 65. Outras designações: “filhos das ervas”, “filhos
das malvas”, “filhos de Deus”, “filho das ervas e neto das águas correntes”, “filhos da silveira, “filhos
do palheiro”; “filhos bravos”; “filhos do boto” (norte de Brasil); "filhos do vento" (África colonial
portuguesa); hervoeira significava prostituta (cf. António Amaro das Neves, "Filhos das ervas: a
ilegitimidade no Norte de Guimarães (séculos XVI-XVIII)". Guimarães, NEPS - Universidade do
Minho, 2001 (https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/209/1/FilErvasAAN.PDF).
2438 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 65-66.

2439 Mas podiam receber do avô, que não era parte na infâmia do seu nascimento, Domingos

Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 67 e 87).
2440 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 67.

2441 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 84.

2442 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 97.

Invoca uma decisão do Desembargo do Paço de 4.8.1634.


2443 Os filhos de coito danado, por direito comum não sucedem, António da Gama, Decisiones

[...], cit., dec. 322, n. 2.


2444 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 73. Era

434
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mãe fosse “ilustre” (nobre), já não sucediam se existissem filhos legítimos2445.


§ 1478. Os filhos adotivos2446 também herdavam2447, indistintamente com os
filhos legítimos e naturais, embora os filhos adotivos fossem como que “filhos
fictícios e imaginários” 2448, produto de uma artificialis generatio2449. Este caráter
artificial da filiação adotiva explicava que ela, atribuindo certos direitos e obrigações
(por exemplo, os direitos a alimentos, nos dois sentidos), fosse uma situação
passageira. Daí que a palavra filho, na lei ou em atos jurídicos, não compreendesse,
em princípio, os adotivos e que os direitos sucessórios destes terminassem com a
emancipação2450. As adoções eram feitas por carta régia2451, embora a doutrina
seiscentista pusesse em dúvida se estavam em uso 2452.
§ 1479. Entre os descendentes contavam-se ainda os netos, bisnetos, etc. que
herdavam por “representarem” o pai 2453. Isto queria dizer que os filhos de um filho
pré-morto herdavam aquilo que teria cabido ao pai, se fosse vivo (direito de
representação); assim, concorrendo filhos com netos, a herança não se dividia por
cabeças (per capita), mas por estirpes (per stirpes) 2454.
§ 1480. Os descendentes eram herdeiros forçosos ou necessários, não apenas
no sentido de que não podiam ser preteridos (omitidos no testamento) ou
deserdados sem causa, mas ainda no de que lhes cabia, necessariamente, 2/3 da
herança (v. Ord. fil.4,92) (legítima). Esta “necessidade” de instituição dos
descendentes não era apenas formal, como no direito romano, que se bastava com
a sua instituição expressa ou deserdação, desde que justificada, mas também
substancial, pois lhes reservava uma quota parte dos bens da herança (a “legítima”),
que as Ordenações implicitamente fixavam em 2/3 (Ord. fil.4,82,pr.)2455. Os bens que
constituíam a legítima não podiam ser onerados, pois isto diminuía o seu valor 2456.

discutido se herdavam dos colaterais ou consanguíneos da mãe; a opinião afirmativa era a mais comum,
Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 87.
2445 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 84-85.

2446 O direito romano distinguia a adoção de filhos famílias de outrem da adrogação de sui iuris.

2447 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 99-100.

2448 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 108.

2449 Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., ad Ord. fil.1, 3, gl. 5, n. 7.

2450 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, ns. 108-111

2451 V. Ord. fil.2, 35, 12; 2, 56; 3, 9, 2; 3, 85, 2.

2452 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria [...], cit., tom. 2, ad Ord. fil. 1, 3, gl. 5 (p. 93); Jorge de

Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 70, n. 4 (em desuso); Domingos Antunes Portugal, Tractatus de
donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 18, n. 106 (as leis não caducariam e ele próprio já teria visto adoções).
2453 Nov. 118, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 3;

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 8, 5.


2454 O direito de representação aparecera no direito justinianeu (Nov. 118), sob duas formas: a

representação do filho pelo neto e a representação de um colateral pelos seus filhos. Nesta último caso,
porém, a divisão da herança fazia-se por cabeças, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus
[...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 46-48.
2455 A reserva de uma parte da herança para os descendentes (para a família) não é de origem

romana, mas antes germana. O direito romano conhecia a reserva de uma parte (quarta parte) da
herança para o herdeiro, mas apenas em relação às dívidas da herança (quarta falcidia). Cf. Rafael M.
Carnicero Giménez de Azcárate.. “La preterición de herederos en el Derecho común y en el Derecho
aragonés.”, Cuadernos "Lacruz Berdejo", http://www.derecho-
aragones.net/cuadernos/document.php?id=170.
2456 Havia uma vasta casuística sobre os ónus que podiam ou não recair sobre as legítimas.

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§ 1481. Para o cálculo do valor da herança e determinação tanto da quota dos


herdeiros forçosos (globalmente, 2/3) como da quota de que o testador podia
livremente dispor (“quota disponível”), deviam ser trazidos à herança os bens
doados pelo testador em vida a seus descendentes. Só depois desta colação (v. cap.
5.6) (collatio), se procedia ao cálculo, considerando as doações como antecipações
das legítimas dos respetivos herdeiros forçosos 2457. A legítima existia ainda para os
pais (v. Ord. fil.4,82,4 e Ord. fil.4,89) e, em certa medida, para os irmãos, que podiam
arguir a nulidade de um testamento em que fossem preteridos por um herdeiro
infame (Ord. fil.4,90, mas aqui trata-se antes de uma limitação à deserdação do
irmão em favor de uma pessoa indigna).
§ 1482. A legítima dos herdeiros forçosos podia ainda ser prejudicada por
doações em vida feitas a terceiros. Computado o valor das legítimas e concluindo-
se que as doações a terceiros as ofendiam, os atos de liberalidade podiam ser
reduzidos2458.
5.3.1.2 Os ascendentes.
§ 1483. Não havendo descendentes, herdavam os ascendentes (Ord. fil.4,91),
por proximidade de grau, sem direito de representação 2459. Sendo de igual grau,
dividiam a herança. Discutido era já se herdavam indistintamente,
independentemente da linha – paterna (pai e seus ascendentes) ou materna (mãe e
seus ascendentes) – a que pertencessem e da proveniência dos bens. No direito
comum, Bártolo defendera a regra paterna paternis, materna maternis, segundo a qual
os bens de família seriam herdados pelos ascendentes da linha paterna e os de
família da mãe, pelos ascendentes de linha materna. Esta seria a opinião comum 2460,
embora Domingos Antunes Portugal considerasse ser mais razoável a indistinção,
sobretudo no caso de o casamento dos progenitores do de cujus ser de comunhão
geral. E, segundo diz, essa seria a jurisprudência estabelecida, que apenas aplicava a
regra bartolina no caso de os pais do de cujus serem casados em regime dotal2461. Os
ascendentes eram herdeiros forçosos, devendo necessariamente receber 2/3 da
herança2462. Havia casos em que os ascendentes não herdavam, como, v.g. se a mãe
tivesse casado antes de um ano a contar do falecimento do pai ou se este casasse
em segundas núpcias2463.
5.3.1.3 Os colaterais.

2457 A collatio bonorum (aportação de bens) era a junção de uma massa de bens a outra, a fim de se

efetuarem cálculos. Para este efeito, o valor dos bens doados em vida pelo testador a seus filhos (ou os
dotes dados às filhas) eram adicionados ao dos bens da herança, para se calcularem as legítimas e a
quota disponível, e depois imputados à parte que cabia ao filho respetivo (D.37, 6; C.6, 20).
2458 Cf. I.2, 18; C.3, 29. As condições desta redução eram discutias, pois também se tinha que ter

em conta as legítimas expectativas dos donatários. Era considerado decisivo o caráter gratuito da doação
e a intenção de prejudicar os herdeiros ou, pelo menos, a leviandade do doador quanto a isto. Discutia-
se ainda o momento relevante para efetuar o cálculo da legítima, se o tempo da doação ou antes o
tempo da morte do doador.
2459 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 3 e 4.

2460 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., 2, dec. 34, n.9.

2461 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 6-8.

2462 Of , 4, 91, 1; CF. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19,

n. 11.
2463 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap.19, n. 14-40.

436
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1484. Pelo direito comum, os colaterais concorriam com os ascendentes; mas,


pelo direito do reino, os ascendentes excluíam os colaterais (Ord. fil.4,91 pr). Só não
havendo ascendentes, herdavam os colaterais, a começar pelo mais próximo 2464,
independentemente de serem agnados ou cognados, homens ou mulheres 2465. Não
sucediam os colaterais que fossem filhos naturais ou espúrios. A proximidade era
contada pelos graus de direito civil (Ord. fil.4,94) (v. § 911), e não pelos do direito
canónico (§ 858), que só se usavam para estabelecer os impedimentos matrimoniais
(v. Ord. fil. 5,124,4). Os colaterais herdavam até ao décimo grau (Ord. fil.4,94)2466.
5.3.1.4 Os cônjuges.
§ 1485. Não havendo parentes até ao 10º grau, sucediam os cônjuges (Ord.
fil.4,94), uma novidade introduzida nas cortes de Elvas de 1361, preferindo o
cônjuge ao fisco2467. O matrimónio e a comunhão de vida deviam subsistir no
momento da morte do de cuius(Ord. fil.4,94, "a qual juntamente [...]"), embora
também se admitisse a sucessão do cônjuge separado, se ele não fosse o culpado da
separação2468. O cônjuge putativo (i.e. por casamento que não era válido, apesar do
convencimento dos alegados cônjuges) não tinha direitos sucessórios 2469. Os afins
nunca sucediam2470.
5.3.1.5 O fisco.
§ 1486. Se, na falta de testamento, todas estas classes sucessórias falhassem, o
herdeiro dos bens seria o fisco2471, recebendo os bens com os respetivos ónus (Ord.
fil. 2,26,17). Em Portugal2472, porém, os bens dos morriam sem testamento e sem
herdeiros legítimos – mesmo os estrangeiros - eram consignados à redenção dos
cativos.
§ 1487. Exceção era o caso de sucessão de libertos, em que o patrono – e seus
consanguíneos até ao 5º grau - tinha direitos sucessórios2473.

2464 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 11 e 41.
2465 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 43.
2466 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 45.

2467 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, ns. 49-51.

2468 V. Ord. fil.4, 45. Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap.

19, ns. 55 e 56; Pasccoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 8, 18. As causas de divórcio e de
separação (quoad thorum et cohabitationem) eram o adultério (mesmo sem consumação carnal), as sevícias,
o crime em que houvesse perigo da alma do outro cônjuge, ibid. liv. 3, cap. 19, ns. 53-57.
2469 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 58.

2470 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Haereditas”, n. 3,

2471 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, caps. 14, 15 e 20.

Apesar de alguma doutrina no sentido afirmativo, os colégios ou universidades não eram herdeiros
legítimos dos seus membros, substituindo o fisco, Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus
[...], cit., liv. 3, cap. 20, n. 37. Assim, a Igreja ou os mosteiros não herdavam os bens dos eclesiásticos
(Ord. fil.2, 18, 7), a não ser que estes os tivessem recebido em razão do seu ofício. O direito dos espólios
(i.e. reclamação pela Igreja dos bens dos clérigos) não fora recebido (CL. 9.9.1609), nem tão pouco a
lutuosa, tomada pela Igreja dos bens (ou parte deles) dos párocos falecidos sem testamento (portio
canonica). Os senhores das terras também não eram herdeiros em vez do fisco, pois esta regalia não se
lhes transmitia.
2472 V. Ord. fil.1, 89, 1; cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Haereditas”, n. 4.

2473 Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit., liv. 3, cap. 19, n. 60.

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5.4 Os morgados.
5.4.1 Noção
§ 1488. Os morgados eram conjuntos de bens cuja transmissão por morte
obedecia a uma ordem sucessória estabelecida, para sempre, pelo instituidor no
documento de instituição, diferente da ordem de sucessão legítima (v. cap. 5.3).
Neste sentido, tratava-se de uma ordem sucessória especial ou privilegiada, que
afastava (dispensava) para sempre a lei geral relativa à ordem sucessória. Este foi o
pretexto para, no séc. XVIII, se exigir a autorização do rei – a quem competia
exclusivamente dispensar a lei – para a constituição de morgados. Porém, antes
dessa época, admitia-se a livre instituição de morgados, como uma emanação da
liberdade de disposição dos seus bens. A não ser que isso violasse os direitos de
sucessores obrigatórios (heredes sui), como os filhos (v. 5.3.1.1); era o caso de a
instituição do morgado ofender as legítimas dos filhos. Nestes casos, requeria-se,
sim, a autorização do rei.
§ 1489. O morgado era definido como o direito de suceder nos bens que
tivessem sido deixados com a condição de ficarem unidos perpetuamente na
família, deferindo-se ao herdeiro primogénito mais próximo 2474. A ordem
sucessória estabelecida pelo instituidor podia não ser a primogenitural; mas então
não se devia chamar propriamente de morgado2475.
§ 1490. Assim, as características estruturais dos bens de morgado eram a sua
indivisibilidade, a inalienabilidade e a vinculação à família.
§ 1491. A finalidade dos morgados era a conservação da memória da família 2476
por meio da permanência de certos bens que o instituidor considerara nucleares na
posse perpétua de parentes seus. Daí que se falasse em vínculos, para destacar esta
vinculação dos bens a uma família. Ter isto em conta era importante na
interpretação das regras de sucessão estabelecidas, pois elas deviam favorecer e não
prejudicar esta finalidade2477.
§ 1492. A origem dos modelos institucionais que integram o núcleo do instituto
podem ter provindo da ideia bíblica de primogenitura e da ideia germânica de
propriedade familiar indivisível (in gesamten Hand).
§ 1493. As figuras próximas dos morgados eram as capelas e os fideicomissos
(v. cap. 5.2.15)2478.

2474 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 1: “ius succedendi in

bonis, ea lege relictis, ut in família perpetuo conserventur, & deferantur proximiori primogenito, per
ordinem succesivum”; esta definição era de Luís de Molina, o autor ibérico mais citado nesta matéria,
por causa do seu tratado De primogeniorum hispanorum origine ac natura, 1573. Em Portugal, fez autoridade
o Tractatus de exclusione, inclusione, successione et erectione maioratus, de Manuel Alvares Pegas, 1685. Antes a
questão foram tratada por quase todos os decisionistas dos sécs. XVI e XVII.
2475 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 1.

2476 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 133, ns. 1-3.

2477 Ibid.; daí que se pudesse presumir não ser da vontade do instituidor chamar à sucessão alguém

em que a família se extinguisse, como uma mulher ou um clérigo (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.,
pt. 1, dec. 133, n. 3).
2478 A principal diferença era a de que os fideicomissos não incluíam a cláusula da indivisibilidade e

não privilegiavam a linha masculina.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1494. A liberdade de definir a ordem sucessória de um morgado era muito


grande. A ordem de sucessão estabelecida devia ser respeitada rigorosamente (ad
unguem), o mesmo acontecendo com outras condições que podiam ser impostas aos
sucessivos herdeiros dos bens (morar em certa terra, cumprir certas obrigações pias
ou outras, etc.). Daí que a sua capacidade de disposição dos bens estivesse bastante
limitada, por isso se lhes chamando apenas “possuidores” ou “administradores”
dos bens vinculados, sendo removidos dessa posse a favor do sucessor mais
próximo se violassem as condições estabelecidas2479.
§ 1495. As condições de sucessão dos morgados constavam do documento de
instituição, que podia ser um testamento ou um contrato (normalmente uma
doação, contendo condições quanto à transmissão dos bens doados 2480)2481. No
entanto, as condições de administração e de sucessão também podiam resultar do
costume longo relativo à forma de sucessão de certos bens, que denotasse que estes
eram bens vinculados2482.
§ 1496. Como as Ordenações estabeleciam uma ordem sucessória dos morgados
para suprir obscuridades ou lacunas da ordem estabelecida pelo instituidor (v. Ord.
fil.4,100), distinguiam-se (com importantes efeitos práticos a partir da legislação
pombalina sobre o assunto2483) os morgados em que se observava a ordem definida
na lei daqueles que obedeciam a distintas condições de sucessão – exclusão das
mulheres ou, pelo contrário, preferência pela linha feminina, exclusão de clérigos,
etc. - ou outras. Os primeiros eram os morgados regulares, os segundos, os

2479 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 3.


2480 Por exemplo, uma doação régia de bens da coroa, com o estabelecimento de uma ordem
sucessória específica (por exemplo, o de não sucederem mulheres, ou de haver direito de representação
sucessória, v. Ord. fil.2, 35, 1 e 4).
2481O Arquivo Nacional da Torre do Tombo contém documentação riquíssima sobre morgados (e

capelas) pois era obrigatório o envio à Torre do Tombo de um exemplar da sua instituição: (i) instituição
de Morgados e capelas. 1422/ 1852. 30 liv. Portugal, Torre do Tombo, Morgados e Capelas (col.); (ii)
sentenças relativas a Morgados e Capelas. 1414 / 1860. 24 liv. Portugal, Torre do Tombo, Morgados e
Capelas (col.); (iii) registos vinculares. 149 proc. Portugal, Torre do Tombo, Morgados e Capelas (col.)
(v. http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4223346). Aí há também pareceres jurídicos sobre este
disputadíssimo tema: Parecer sobre “as benfeitorias feitas em bens de morgado”, por Francisco
Carneiro. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv. 8, f. 403; Parecer sobre “a obrigação que
tem o sucessor no morgado de pagar as dívidas de seu pai”. Portugal, Torre do Tombo, Armário
Jesuítico, liv. 8, f. 407; Parecer sobre “se uma pessoa que largou o morgado a seu filho em vida com
obrigação de pagar as dívidas, e se fez religioso pode estar seguro na consciência”. Portugal, Torre do
Tombo, Armário Jesuítico, liv. 8, f. 409; Parecer “sobre se um perde ‘ipso facto’ o Morgado do
Algarve faltando as condições dele”, 1636-07-10. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv.
14, f. 409; Parecer “sobre o Morgado de João Esmeraldo acerca da exclusão de bastardos e outras
dúvidas”, 1638-02-28. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv. 14, f. 452; Parecer “sobre o
suceder em outro morgado fêmea filha do último possuidor”, relativo a D. Leonor, filha de Afonso de
Torres, 1638-03-10. Portugal, Torre do Tombo, Armário Jesuítico, liv. 14, f. 454; “Testamento do
doutor Gabriel Pereira de Castro, que fala na capela de Sacavém e vincula o morgado que tomou na sua
terça a fazenda da Beira Ninães, Frazão e outros”, 1632-10-14. Portugal, Torre do Tombo, Cartório
dos Jesuítas, mç. 23, n.º 125 (v. Documentação sobre morgados: http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-
virtuais-2/extincao-dos-morgados-e-capelas/)..
2482 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 132, n. 16 (por costume, podia introduzir-se

alguma qualidade ou requisito na sucessão de morgados numa família; Gabriel Pereira de Castro,
Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 8 (o modo de suceder num morgado fixava-se por um costume de 40
anos).
2483 A lei de 3.8.1770 deixa de permitir aos instituidor afastar-se das regras de sucessão

estabelecidas por lei.

439
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irregulares.
§ 1497. A legislação pombalina, nomeadamente a lei de 3 de Agosto de 1770,
alterou profundamente a disciplina dos morgados, no sentido de dificultar a sua
constituição, de a sujeitar a licença régia e de reduzir a liberdade do instituidor na
aposição de cláusulas sucessórias ou outras, limitando a ordem de sucessão à
estabelecida na lei2484.
5.4.2 Instituidor e instituição.
§ 1498. A instituição de morgados (e, também, capelas) era, por regra, livre.
Podiam-nos instituir leigos ou clérigos2485, nobres ou plebeus, varões ou mulheres,
ao abrigo da sua liberdade de testar. Algumas restrições provinham, não da
qualidade das pessoas, mas da situação dos bens – que deviam ser de livre
disposição - ou de direitos que os onerassem, como os direitos sucessórios dos
herdeiros necessários2486.
§ 1499. Os morgados (e capelas) instituíam-se tipicamente por testamento, mas
também podiam criar-se por contrato – por exemplo, doações2487, contratos dotais
- de que resultassem condições perpétuas relativas à indivisibilidade e
inalienabilidade dos bens. Como se exigia a intenção de vincular, o uso, mesmo
longo, de transmitir os bens com as condições típicas dos morgados não era um
título constitutivo. Todavia, fazia presumir uma instituição antiga. Realmente, a
escritura não era um requisito essencial 2488, pelo que os morgados se podiam provar
por confissão2489, testemunhas, fama por espaço de longo tempo, uso continuado e
prescrito de transmissão obedecendo a uma ordem sucessória típica dos morgados
(masculinidade, proximidade, família)2490.

2484 Legislação ulterior relevante: [Carta de Lei por que Vossa Magestade […] ocorrrendo aos

abusos que se introduziram nas instituições dos morgados […] ha por bem dar as providencias
competentes [...] determinando a qualidade de pessoas e rendimento competente para a fundação de
morgados; excluindo [...] as clausulas contradictorias, exquisitas e prejudiciais […] e reduzindo-os todos
à natureza de morgados regulares [...]”, [Lisboa], Regia Officina Typografica, [1770]; Alvará com força
de ley sobre a posse dos morgados: de 9 de Novembro de 1754, Lisboa, Chancelaria Mor da Corte e do
Reino, 1754; “Carta de lei pela qual ficam desde já abolidos todos os morgados e capelas atualmente
existentes no continente do reino, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas e declarados alodiais os
bens de que se compõem”, em Diário de Lisboa: folha oficial do Governo Português. N.º 111 (1863 maio 20),
pg. 1519; Decreto pelo qual serão abolidos todos os morgados e capelas, cujo rendimento líquido não
chegar a duzentos mil reis. Portugal, Torre do Tombo, Biblioteca, Collecção de Decretos e regulamentos
publicados durante o governo da Regência do Reino estabelecida na Ilha Terceira, Lisboa, Imprensa Nacional, 1836
(1832 abril 4), ps. 19-22.
2485 Mesmo com os bens que lhe tenham sido doados intuitu ecclesiae (a favor da Igreja), pois por

costume geral estes bens eram considerados como suscetíveis de ser doados ou deixados em testamento
(constituíam o chamado espólio, v. Ord. fil.2, 18, 7), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Maioratus”, n. 2. Em Portugal, porém, um clérigo não podia instituir morgado nem capela a favor de
outro clérigo com bens por ele comprados, sem licença do rei ( Ord. fil.2, 18, 5). Isto relacionava-se com
a política régia de contenção da propriedade eclesiástica.
2486 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 2.

2487 Por exemplo, uma doação para constituição de dote ou uma doação régia bens da coroa

criavam morgados nos quais incorporavam esses bens.


2488 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 153, n. 11.

2489 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 22, ns. 20-21.

2490 Era morgado se se tivesse deferido a sucessão pela forma de morgado por mais de 40 anos,

António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 218, n. 2.

440
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1500. Era matéria de interpretação o determinar-se se houvera a intenção de


instituir um morgado2491. Gozando o morgado de um regime excecional, não se
presumia que os bens fossem de morgado, pelo que isto havia de decorrer de
cláusulas expressas ou de indícios2492. Considerava-se que existia um morgado se
houvesse uma cláusula estabelecendo a vocação de filhos e descendentes da prole e
família do instituidor (pois não bastava ser o sucessor mais próximo do último
possuidor), para todo o sempre, ou a proibição perpétua de alienar 2493. Em
contrapartida, a intenção de vincular não se deduzia da mera imposição perpétua de
celebração de missas2494.
§ 1501. Para se tratar de morgado era, portanto, preciso que se estipulasse
inseparabilidade e indivisibilidade dos bens, bem como a sua vinculação à família
designada na instituição, pois esta era a caraterística dos morgados ibéricos 2495. As
dignidades, como ducados, condados e marquesados, ou as jurisdições também
eram indivisíveis, sendo considerados como morgados, pelo que na sua sucessão se
observava o regime dos morgados2496.
§ 1502. Em Portugal, o costume de não dividir os castelos e as honras, ou seja,
os bens que importavam o exercício de poder, vem da baixa Idade Média (v. § §
436). A fonte era a lei Praeterea, dos Lib. feud. 2, 55, pr.-1, sendo já frequente na
segunda metade do século XIV, com o argumento, que depois se manteve, da
necessidade de manter o poder das famílias2497, no qual se apoiava o próprio poder
da coroa. Parece, no entanto, que este objetivo de evitar a usura do poder
económico se acompanhava de um objetivo de natureza simbólica. A adoção da
indivisibilidade e primogenitura tinham, antes de mais, o efeito de evocar o sistema
linhagístico em uso na sucessão da coroa e das dignidades. A progressiva
importância dos elementos simbólicos ligados ao esquema primogenitural puro
levou a que sectores nobiliárquicos (mas não os juristas) insistissem na exclusão da
linha transversal - o que aumentava significativamente o risco biológico da extinção
da estirpe - e na consagração do direito de representação em favor do neto, filho do
primogénito pré-morto, que, então, afastaria o secundo-génito (v. adiante).
§ 1503. Com a contínua aristocratização do pensamento social durante os
séculos XVII e XVIII, com o progressivo realce dos direitos de todos os filhos à
herança e com o advento das conceções individualistas quanto à liberdade de
disposição dos bens e à vantagem (económica e fiscal) da sua circulação, reforçou-
se a tendência para restringir, em nome da natureza da família, a liberdade de
instituir morgados àqueles casos em que o interesse público justificasse os prejuízos
decorrentes da vinculação2498. Permitir ou não a vinculação passou a depender do

2491 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 82, ns. 3 a 7.
2492 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 82, n. 6.
2493 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 8; Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 96, n. 1.


2494 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 4; Melchior Febo,

Decisiones [...], cit., dec. 120, ns. 9 e 10 a 17. Por que palavras se considerava estar a instituir-se um
morgado, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 143.
2495 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 5.

2496 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 6-7.

2497 Cf. Henrique da António da Gama, Decisiones [...], cit., Barros, História […], cit., vol. 8, 267,

279.
2498 Já no direito seiscentista português, os direitos dos filhos eram acautelados: a livre instituição

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modo como se entendesse o equilíbrio justo entre a "igualdade natural dos filhos",
a "política de reputação das famílias" e a "política da república". A primeira, hostil
aos morgados; a segunda buscando-os como meio de adquirir ou manter o lustre
social; a terceira, procurando combinar as vantagens fiscais e económicas da
circulação dos bens com a existência de uma nobreza poderosa em volta do trono
§ 1504. Já no séc. XVI, Luís de Molina exigia que a autorização régia para
instituir morgados em prejuízo dos restantes filhos apenas fosse concedida no caso
de o instituidor ser nobre ou de qualidade e riqueza2499. Pois as famílias de humilde
ou obscura origem nada teriam a perpetuar, antes procurando nos morgados um
meio de, confundindo a natureza, se insinuarem entre os nobres 2500. Esta "política
das famílias" devia ser corrente, pois Manuel de Almeida e Sousa (Lobão),
justificando as medidas restritivas tomadas no tempo de Pombal, fala de "huma
geral mania de instituir vinculos em predios de ridiculos rendimentos" (ibid. 14),
apesar das limitações que alguma doutrina (não dominante no foro) tendia a
introduzir.
§ 1505. É apenas com as leis de 3.8. e 9.9.1770 que a "política da república"
impôs às "políticas das famílias" um equilibrado respeito pelos "direitos naturais de
todos os filhos à herança", concretizando as condições (quanto à qualidade das
pessoas e quanto à importância dos bens vinculados) juridicamente necessárias,
para que os morgados anteriores subsistissem ou outros novos se pudessem
instituir 2501.
5.4.3 Bens de morgado.
§ 1506. Os bens (ou direitos) incluídos num morgado deveriam estar em
condições de ser sujeitos às condições inerentes à sua perpétua vinculação a uma
família. Daí que se não pudessem constituir morgados sobre direitos obrigacionais
(iura ad rem) ou direitos reais (iura in re) temporários (como os do colono de uma
enfiteuse de duração limitada2502), ou seja sobre bens de que o instituidor não

só se admitia pelas forças da quota disponível ("terça"); no caso de a instituição se fazer em prejuízo da
quota legitimária dos filhos, carecia-se de um ato de graça do rei (por intermédio do seu tribunal de
graça, o Desembargo do Paço), por se tratar de uma derrogação dos direitos dos filhos (Manuel Álvares
Pegas, Tractatus de exclusione […], cap. 3, ns. 1 e 2).
2499 Luís de Molina, De primogeniorum hispanorum, liv. 1, cap. 14, n. 8.

2500 Cf. Manuel de Almeida e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, 1, cap. 9, n. 12 e

literatura aí citada.
2501 Cf. comentário detalhado em Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 3, 9 e Manuel de Almeida

e Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, 1, cap. 9, ns. 13 ss.; 3 (maxime, sobre as categorias
admitidas de nobreza, 6 ss.; sobre as qualidades dos comerciantes, agricultores [não os da pequena
agricultura ao norte do Tejo, mas os da grande agricultura do Alentejo] e letrados que podiam instituir
morgados, v. 13 e 16). A legislação pombalina alargava ainda a necessidade de licença régia a toda e
qualquer instituição de morgado (ibid. n. 13) e reduzia a uma única (a da Ord. fil.4, 100) a fórmula de
sucessão nos morgados (ibid. n. 10). Esta última disposição implicava, v.g. a revogação da legislação
anterior que impedia a união de morgados, a exclusão ou prejuízo das mulheres da sucessão nos
vínculos, a exclusão de cristãos-novos. Note-se, em todo o caso, como a interpretação que Lobão faz
desta última regra (ao admitir substituições fideicomissárias complementares à vocação sucessória
estabelecida na lei, nos termos da Ord. fil.4, 87) lhe tira muito do seu alcance, v. Manuel de Almeida e
Sousa de Lobão, Tratado prático de morgados, 1, cap. 9, 15 ss..
2502 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 214, ns. 3, 10 e 11. Mesmo em relação a bens

enfitêuticos perpétuos, a vinculação exigia a autorização do senhorio direto, pois este ficaria privado de
receber o laudémio, já que os bens vinculados eram inalienáveis, Melchior Febo, Decisiones [...], cit.,

442
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

tivesse uma disponibilidade absoluta, como os bens que os filhos administrassem


por consentimento dos pais. Dada a natureza perpétua dos morgados, também não
podiam ser constituídos sobre bens perecíveis ou que desaparecessem facilmente,
como os bens móveis. Podiam, todavia, vincular-se bens móveis preciosos ou
rendimentos, pensões e juros, desde que não estivessem sujeitos a remissão (i.e.
perpétuos).
§ 1507. Por outro lado, uma pessoa com filhos apenas dispunha de
disponibilidade absoluta sobre os bens que não pertencessem às legítimas dos
filhos. Daí que os bens vinculados devessem caber na quota disponível do
instituidor (ou terça).2503 No caso de os bens do morgado excederam a legítima, era
necessária a licença do rei e a constituição de alimentos aos filhos excluídos 2504. A
doutrina era, porém, complacente, admitindo que os filhos podiam consentir na
ofensa das suas legítimas, mesmo tacitamente, não se opondo à constituição de
morgados2505.
5.4.4 Chamados à posse ou administração.
§ 1508. Não havia, em geral, restrições quanto às pessoas que podiam ser
chamadas a possuir ou administrar morgados.
§ 1509. As mulheres (e a linha feminina ou cognatícia) podiam ser chamadas a
suceder nos morgados2506. A sua exclusão em absoluto (cláusula da masculinidade,
que incluía a exclusão da linha feminina e, por isso, reservava a sucessão aos
agnados varões) era mesmo considerada odiosa (i.e. contra os princípios do direito)
e, por isso, só podia ser instituída por palavras expressas. Mesmo a exclusão apenas
relativa – ou seja, o afastamento de mulheres por varões de grau mais remoto –
também repugnava ao direito, devendo ser abertamente estabelecida2507. Ou seja, o
regime comum, em conformidade com o qual se deviam interpretar as disposições
do instituidor, igualava sucessores femininos (ou por linha feminina, i.e. cognados)
e masculinos (e por linha masculina, i.e. agnados)2508. Já então, porém, havia
doutrina e decisões dos tribunais da corte favorecendo a linha masculina, por

dec. 5 (que refere uma decisão da Casa da Suplicação no sentido da impossibilidade de vincular o
domínio útil, mesmo que perpétuo, dec. n. 4); mas havia opiniões contrárias: Gabriel Pereira de Castro,
Decisiones [...], cit., dec. 26, n. 2; Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses […], cap. 9, n. 30. Mas na
prática esta vinculação fazia-se, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 26, n. 7.
2503 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 3.

2504 Cf. Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 62, ns. 8 a 10. No caso de se deixar íntegra a

legítima, não se carecia de autorização do rei (v. Ord. fil.4, 82), Melchior Febo, Decisiones [...], cit.,
dec.212.
2505 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 5, n. 12-13 (); António da Gama,

Decisiones [...], cit., dec. 218, n. 4. n. 25; discutindo os requisitos do consentimento, Melchior Febo,
Decisiones [...], cit., dec. 112.
2506 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 5, n. 1.

2507 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 208, ns. 1 ss.. Gabriel Pereira de Castro

apenas dá preferência à linha masculina quando as mulheres tivessem sido excluídas: Gabriel Pereira de
Castro, Decisiones [...], cit.; dec. 50, ns. 1 a 3 (quando as mulheres não são excluídas, o filho de filha
mais velha exclui o filho de filho mais novo; mas quando as mulheres são excluídas, o filho de varão
mais novo prefere o de filha mais velha).
2508 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 59, ns. 1 e 3. Chamando-se
ascendentes, incluía-se a mãe, ibid. n. 5

443
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ventura por analogia com o que a Lei Mental dispunha para os bens da coroa 2509.
§ 1510. As Ordenações filipinas reforçam um pouco a masculinidade da sucessão
dos morgados (aproximando-a da sucessão nos bens da coroa), pois a preterição
das mulheres por varões do mesmo grau passa a fazer parte do regime supletivo
então estabelecido ( Ord. fil.4,100,1), sendo, por isso, o regime aplicável sempre que
a paridade entre varão e fémea, concorrendo no mesmo grau, não fosse
expressamente estabelecida pelo instituidor2510. Em todo o caso, a sucessão
feminina continuou a poder ser estabelecida e até se presumia nos morgados
instituídos por mulheres2511. De qualquer modo, estando verificada a sucessão
numa mulher, esta não era prejudicada pela superveniência de varões 2512.
§ 1511. Nos morgados que incluíssem bens que tivessem anexa jurisdição,
como era o caso dos bens da coroa, ou que contivessem alguma obrigação que não
pudesse recair em mulher, os filhos preferiam as filhas 2513, como estava
expressamente estipulado na Lei Mental ( Ord. fil.2,35,4).
§ 1512. Os clérigos não estavam, por via de regra, excluídos da sucessão nos
morgados. Alguns autores negavam que pudessem suceder em morgados com
dignidade e jurisdição anexas, pois não podiam exercer cargos seculares nem
exercer jurisdições temporais, quer pelo direito canónico, quer pelo direito pátrio (
Ord. fil.2,35,10)2514. Mas essa não era a opinião mais generalizada, que afirmava que,
sucedendo, podiam delegar a jurisdição num delegado ou exercê-la pessoalmente,
desde que não aplicassem por si penas que infundissem sangue (morte ou
mutilação)2515.
§ 1513. Mais duvidosa era a sucessão de monge, como consanguíneo mais
próximo.
§ 1514. Uns respondiam afirmativamente; mas a melhor opinião parecia ser a
contrária, pois a sucessão de uma pessoa monástica prejudicava a finalidade básica
dos morgados, que era a continuação da família e da sua memória 2516. Havia quem
distinguisse o caso de monge que podia suceder para a comunidade daquele que era
incapaz de suceder, mesmo para esta, estando morto para o mundo. Neste último

2509 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 337, n. 1: foi definido em muitos casos no

senado que o filho mais novo deve preferir-se à filha mais velha, embora antigamente prevalecesse uma
opinião contrária.
2510 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., dec. 208, n. 6; Melchior Febo, Decisiones […], cit.,

dec. 192, n. 3.
2511 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 33, n. 15. Um exemplo: Catarina
Fernandes instituiu um morgado em 1471 e chamou em primeiro lugar a sua irmã e depois a filha que
dela nascesse. António da António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307.
2512 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 208, n. 8.

2513 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 337, n. 14.

2514 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 16.

2515 Por isso, podia-se ser bispo e conde ao mesmo tempo, delegando-se a jurisdição que não se

pudesse exercer pessoalmente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 16
(citando Gomez e Molina); a interpretação era duvidosa, tratando-se de bens da coroa, em face de Ord.
fil.2, 35, 10; mas a acumulação do bispado de Coimbra com o condado de Arganil mostra que a
dificuldade não era insanável.
2516 António da Gama regista as duas opiniões, preferindo a segunda: António da Gama, Decisiones

[...], cit., dec. 84, n. 6; ibid. dec. 48, n. 3.

444
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

caso, o monge não poderia suceder no morgado. No primeiro caso, sim, pois
poderia o mosteiro assumir a sucessão e as obrigações eventualmente estabelecidas
pelo instituidor. Mas não deixava de ser problemático que esta sucessão garantisse a
finalidade do instituidor de manter a memória da família2517. De qualquer modo, os
instituidores de morgado ou de capela podiam apor a condição de que um mosteiro
não sucedesse2518.
§ 1515. No caso de morgados jurisdicionais, a estas dificuldades ainda se
acrescentavam as das sucessões de eclesiásticos em morgados com dignidades ou
jurisdições anexas. E, de facto, não existia o costume de monges sucederem neste
tipo de morgados2519. Os cavaleiros de Cristo, Santiago, São Bento de Aviz,
Calatrava e Alcântara, apesar de serem verdadeiros clérigos, com os três votos,
tinham por costume adquirido o direito de sucederem em morgados, patrimoniais
ou jurisdicionais2520.
§ 1516. Por vezes, os instituidores estipulavam que não sucedessem pessoas que
não pudessem contrair casamento e fazer desaparecer a família (loucos, surdos-
mudos, cegos, ou cavaleiros de ordens militares obrigados ao celibato). Nesse caso,
respeitava-se a vontade do instituidor2521.
§ 1517. Outras dúvidas diziam respeito aos direitos sucessórios dos filhos
naturais. A regra era a de que isto dependia da fórmula da instituição, que podia
admitir ou excluir a linha bastarda2522. Na dúvida, entendia-se que os filhos naturais
tinham os mesmos direitos do que os legítimos, pelo menos nos plebeus, pois era
isso que acontecia na sucessão dos bens em geral (Ord. fil.4,92)2523. Mas havia
autores que, recolhendo uma tradição textual que remontava às Siete Partidas2524, ou
tendo em vista, possivelmente, o caso de nobres, cujos filhos naturais tinham
menos direitos hereditários do que os legítimos (v. 3.2.4), ou, ainda, refletindo o
regime de sucessão dos bens da coroa2525, defendiam que, segundo a regra
(regulariter), os filhos naturais não sucediam nos morgados 2526. Depois da lei de 1575
que esteve na origem do tit. Ord. fil.4,100, a tese da exclusão dos bastardos podia
argumentar com o texto da Ordenação 4,100, pr. (“filho, ou neto, ou descendentes
legítimos”) e tornou-se dominante.
§ 1518. Diferentes da incapacidade genérica de serem chamados a suceder eram
as incapacidades concretas de um determinado sucessor. Que fosse furioso natural

2517 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 17.
2518 Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 137, n. 30..
2519 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 17.

2520 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 18.

2521 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 18.

2522 V. Ord. fil.100, 4, 3.

2523 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 33 (sim, n. 11); obs. 53, n. 21 (mas não

espúrios, porque a memória do instituidor não se conservava nos espúrios, ibid. obs. 53, n. 29); foi
julgado no Senado que não se podiam instituir naturais ou bastardos em prejuízo dos legítimos, ibid.
obs. 58, n. 30.
2524 Siete Partidas, 2, 15, 2: Lei de Toro, 40; Nueva Recopil. 5, 7, 11. A lei de 3.8.1770 adota esta

orientação casticista.
2525 V. Ord. fil.2, 35, 1: “filho legítimo barão maior”.

2526 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 13, n. 7.

445
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e permanente2527 ou mentecapto2528, caso em que não poderia assumir a sucessão,


passando a administração ao seguinte chamado. Que fosse surdo-mudo de
nascença, em que não podia suceder senão no morgado patrimonial, mas não no
jurisdicional2529. Em geral, portanto, a incapacidade pessoal fazia passar ao sucessor
seguinte2530.
5.4.5 Ordem sucessória.
§ 1519. A ordem sucessória era a estipulada pelo instituidor 2531. Na verdade, o
sucessor de morgados não era chamado pelo direito hereditário (iure hereditario), mas
por um direito particular (iure particulari, ex pacto et providentia)2532. Por isso, o
fundamental era a interpretação das cláusulas do pacto que exprimiam a vontade do
instituidor2533. Na falta ou obscuridade da instituição, a ordem era a estabelecida
pelo direito para este instituto. Em Portugal, até às Ordenações Filipinas, discutia-se
que ordem fosse essa. António da Gama (Decisiones [...], cit.) apontava várias
possibilidades: a de ser a dos fideicomissos, como aconteceria em toda a
Espanha2534, a dos feudos, a dos bens da coroa, estabelecida na Lei Mental, ou a da
sucessão do reino2535. As Ordenações filipinas procuraram clarificar a ordem de
chamada para a transmissão dos morgados ( Ord. fil.4,100,1 e 2). Esta clarificação
foi feita com base na jurisprudência quatrocentista e quinhentista e nas
extravagantes de D. Sebastião de 15.9.1557 e dizia-se que correspondia à ordem da
sucessão do reino. A mesma clarificação fora feita pela lei 40 de Toro (de 1505) e
pela Nueva Recopilación (5,7). Mas esta ordem não vinculava os instituidores,
servindo apenas para suprir as deficiências do pacto de instituição, no qual se
podiam estabelecer toda a sorte de regras sucessórias ou de condições
(masculinidade estrita, exclusão de pessoas eclesiásticas, exclusão de cognados,
sucessão por escolha do possuidor ou de outrem, condição de casar, de morar em
certa terra, de ser doutor, etc.).
§ 1520. Fosse como fosse, a ordem instituída devia ser observada ad unguem,
valendo como lei, apenas podendo ser revogada pelo costume de longo tempo, que
valia como lei2536. Assim, a regra de sucessão usada na primeira vocação devia usar-

2527 A loucura por acidente superveniente não incapacitava para a sucessão, pois se entendia que o

nascido são podia administrar o morgado por um curador, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Maioratus”, n. 13.
2528 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 13.

2529 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 14. Se fosse são de juízo

e delegasse o exercício da jurisdição, podia suceder. O cego podia suceder em todos os morgados,
embora devesse exercer a jurisdição por interposta pessoa, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,
s. v. “Maioratus”, n. 15.
2530 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 11 (e 12).

2531 V. Ord. fil.100, 4, 3.

2532 Por isso, podia suceder mesmo quem repudiasse a herança, António da Gama, Decisiones [...],

cit., dec. 174, n. 16.


2533 Cf. regras de interpretação de expressões usadas para definir a ordem de vocação, Gabriel

Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 8.


2534 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., 92, n. 2.

2535 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 174, n. 16. Pascoal de Melo, opina que eram

as leis da sucessão da coroa que se aplicavam nos morgados, na falta de disposições do instituidor (
Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 9, 3).
2536 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 121, n. 2.

446
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

se nas seguintes, salvo disposição em contrário2537. Nem a transação feita pelo


possuidor do morgado, nem a prescrição, podiam afastar ou prejudicar os
sucessores instituídos2538.
§ 1521. Podia acontecer que o instituidor deixasse a vocação à discrição da
escolha (eleição) do possuidor do morgado, como se verá.
§ 1522. Mais tarde, com a lei pombalina de 3.8.1770, passa-se a considerar que a
ordem legal exprimia a substância da sucessão dos morgados (ordem substancial), pelo
que o pacto de instituição apenas acrescentava “qualidades” (ordem da qualidade), de
futuro tidas como irrelevantes2539.
§ 1523. Um pretendente ao chamamento podia pedir, em vida do possuidor, a
declaração judicial dos seus direitos, nomeadamente se houvesse diffamatio, ou seja,
se o possuidor ou outros alegados sucessores propalassem que esse candidato à
sucessão não tinha direito a ela, ou se o possuidor do morgado dissipasse os
bens2540.
§ 1524. Na sucessão eram tidos em conta, segundo uma combinatória que
decorria ou do pacto ou da lei, os princípios hierarquizadores da linha, do grau, do
género e da idade. Em princípio, a linha prejudicava o grau e este a preferência do
género e esta a preferência da idade. Ou seja, a sucessão deferia-se ao varão mais
velho de mais próximo grau dentro da linha preferente2541. Tudo isto, repete-se,
salva disposição em contrário do instituidor.
§ 1525. Vejamos cada um destes elementos.
§ 1526. Quanto à linha.
§ 1527. Podiam distinguir-se várias linhas: a primogenitural, a masculina e a
feminina; a agnada e a cognada; as descendente, ascendente, e colateral; a legítima e
a ilegítima; as dos eventuais diversos casamentos do instituidor.
§ 1528. A relevância das linhas na ordenação da parentela decorria daquilo que
o instituidor tivesse estabelecido. Na falta de disposição, valiam as seguintes regras
gerais2542: (1) Preferia-se a da linha primogénita; (2) Não se passava para outra linha
até que se esgotasse a anterior; (3) Eram chamados sucessivamente os primogénitos
dentro da linha, não se passando ao segundo sem se esgotar a linha do primeiro 2543;
(4) Extinta a linha descendente, passava-se ao primogénito dos colaterais e, extinta
esta linha, seguia-se a do segundo; e assim sucessivamente; (5) Os ascendentes,
como tal, não sucediam nos morgados (não sucedia o pai, que era o parente mais
próximo em grau, mas o irmão)2544

2537 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 171, n. 2.


2538 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 1.
2539 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 9, 14.

2540 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 184, n. 1 (diffamatio, ns. 4 a 9; dissipação de

bens, n. 10); podia pedir caução aos possuidor, ibid. n. 18.


2541 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 22, n.12; António de Sousa de Macedo, Decisiones

[...], cit., dec. 16, ns. 5 a 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], 3, 9, 16;. Todos invocando
Ord. fil.4, 100, pr..
2542 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 9, 17.

2543 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 93, n. 1.

2544 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 5. Esta regra tinha limitações (v.g. Gabriel

Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 48, n. 5: a mãe preferia o irmão) e, como todas, podia ser

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§ 1529. O equilíbrio entre agnados e cognados estava relacionado com a


anterior distinção, pois agnados eram os parentes por via masculina e cognados
também os parentes por via feminina 2545 (v. § 911). Também dependia da vontade
do testador, expressa ou colhida por indícios 2546.
§ 1530. Porém, a linha consanguínea tinha o importante efeito de limitar o
grupo de pessoas que podiam suceder no morgado, já que não se admitia que a
sucessão pudesse cair num estranho à família do instituidor 2547
§ 1531. A extinção da linha consanguínea, levantava a dúvida sobre se devia ser
chamado um sucessor estranho à família do instituidor ou o fisco, inclinando-se a
doutrina para a última solução, pois destinando-se o morgado a perpetuar a
memória da família, extinguia-se o seu objeto quando já não existisse família; e,
então, a sucessão passava a reger-se pela ordem sucessória ab intestato, em que, na
falta de parentes até ao 10º grau, sucedia o fisco (v. cap. 5.3.1.5)2548. As Ordenações
filipinas decidiram no sentido de que, extinta a família consanguínea, ninguém mais
pode ser admitido à sucessão do morgado (Ord. fil.100,4,2).
§ 1532. Já atrás foi referido o equilíbrio entre a linha masculina e feminina,
tendo-se visto que ele dependia da vontade do instituidor e que, na ordem
sucessória supletiva se foi tendendo da equiparação para o favor à linha
masculina2549. Assim, as Ordenações filipinas estabeleceram que o varão preferisse a
fêmea, ainda que esta fosse mais velha, se o contrário não fosse disposto pelo
instituidor ( Ord. fil.100.4,1).
§ 1533. Também já se disse que, no caso de peões, em princípio não relevava a
distinção entre filhos legítimos e ilegítimos; mas isto estava dependente da vontade
do instituidor. Alguns autores afirmam, radicalmente, que os ilegítimos não fazem
parte da família2550, mas isto deve referir-se aos filhos bastardos de nobres.
§ 1534. As linhas que se estabeleciam em função dos vários casamentos em
princípio não eram relevantes, pelo que se deviam considerar no mesmo plano os
filhos dos primeiro e segundo matrimónio2551.

afastada por disposição do instituidor.


2545 A linha cognatícia era, por isso, a série de pessoas ligadas pelo mesmo sangue por
descenderem do mesmo tronco; continha vários graus, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit.,
3, 9, 14 nota.
2546 Quando é que o morgado era de agnação e quando de cognação, Melchior Febo, Decisiones

[...], cit., dec. 39, n. 1. Em síntese, no primeiro, só eram chamados os parentes por via masculina e no
segundo também eram chamados os parentes por via feminina.
2547 V. Ord. fil.4, 100, 2: “o parente mais chegado ao último possuidor, sendo do sangue do

instituidor”; Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 59, n. 7, Manuel Álvares Pegas,
Tractatus de inclusione et exclusione maioratus […], cit., t. 2, cap. 9, ns. 89, 130, 438-440, 707. Como
sempre, o instituidor podia afastar este limite, embora isto chocasse com a natureza dos morgados,
fazendo supor que se tratava antes de um fideicomisso.
2548 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., 193, ns. 1 a 4. O sucessor devia ser da prole do

instituidor, não bastando ser o parente mais próximo do possuidor, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,
cons. 123, n. 7.
2549 Cf. síntese: a mulher mais velha preferia ao irmão mais novo, se o contrário não estivesse

disposto; mas também se julgou de modo inverso, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 129, n.
1.
2550 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 14, n. 4.

2551 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 122, ns. 1 e 2.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1535. Quanto ao grau (v. cap. 5.3.1).


§ 1536. O sucessor mais próximo em grau preferia, em princípio, os mais
remotos2552. Este era, talvez, o princípio menos sujeito a variação, porque
regularmente aceite pelos instituidores, embora pudesse ser prejudicado pela
relevância das linhas.
§ 1537. A proximidade contava-se em relação ao último possuidor e não em
relação ao instituidor (mesmo que se dissesse “ao meu parente mais chegado”); e,
assim, o filho do possuidor preferia ao filho do instituidor 2553.
§ 1538. Quanto à idade.
§ 1539. Em geral, no mesmo grau, os mais velhos preferiam aos mais novos 2554,
pois se presumia a instituição da regra da primogenitura 2555. Segundo as Ordenações
filipinas (Ord. fil.100,4,pr.; mas não as anteriores) havia direito de representação dos
mais velhos falecidos antes da abertura da sucessão pelos seus filhos. Ou seja, em
Portugal, a partir dos inícios do séc. XVII, vigorava um conceito próprio de
primogenitura, referido ao momento do nascimento 2556. Antes, este conceito
convivia com um conceito impróprio de primogenitura em que o mais velho era o
que o fosse à morte do possuidor do morgado, ainda que fosse filho de filho ou
filha mais novos2557. Por isso se dizia, neste conceito, que a primogenitura se
reportava, não ao momento do nascimento, mas ao momento da abertura da
sucessão à morte do possuidor do morgado. Isto implicava a negação de direito de
representação dos filhos mais velhos pré-falecidos. Tal conceito de primogenitura
era o estabelecido pela Lei Mental para a sucessão nos bens da coroa (v. Ord.
fil.2,35,1)2558 e podia ser adotado, mesmo depois das Ord. fil. Pelo instituidor,
quando este excluísse o direito de representação dos filhos mais velhos pré-
falecidos pelos seus filhos.
§ 1540. Nos morgados de eleição, o que contava era a escolha do possuidor e
não a ordem de sucessão pré-estabelecida2559.
§ 1541. A escolha podia ser condicionada ou livre. No primeiro caso, o
possuidor estava condicionado por critérios estabelecidos pelo instituidor, como
por exemplo, a pertença à família ou ao tronco do instituidor 2560. No segundo caso,

2552 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 174, n. 5; Melchior Febo, Decisiones [...], cit.,

dec. 104, n. 3; ibid. dec. 143, n. 16.


2553 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 7, n. 5.

2554 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 5 (sempre se têm por chamados

os mais velhos).
2555 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, n. 24. Se os filhos fossem gémeos e

não se soubesse qual tinha nascido primeiro, o pai decidia; na falta de decisão, dividia-se o morgado, se
se pudesse dividir; se não, decidia o juiz, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Maioratus”, n. 20.
2556 Cf. cortes de 1641 (cap. 27 da nobreza e 26 do clero); cf. capítulos gerais, pp. 55, 76 e 81. Cf.

António Manuel Hespanha, As vésperas [...], cit., III.5.


2557 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 19.

2558 Porém, Ord. fil.2, 35, 2 abria uma exceção para os filhos pré-falecidos na guerra, caso em que

haveria direito de representação.


2559 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 286, n. 2; sobre a eleição, Bento Pereira,

Promptuarium [...], cit., 1135 ss.


2560 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 8, n. 1.

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a escolha podia ser absolutamente livre2561, embora limitada pelo arbítrio de um


homem prudente, não se considerando válidas as escolhas não razoáveis ou que
contrariassem as finalidades gerais da instituição2562. Havia quem restringisse ainda
mais a liberdade de escolha, admitindo-a apenas entre pessoas do mesmo grau 2563.
§ 1542. A escolha de dois era possível, mas o morgado permanecia indiviso 2564.
§ 1543. O nomeado adquiria o direito de agnação, para si e para os seus
sucessores2565; embora por eleição não se pudesse adquirir a consanguinidade, pois
esta era um facto da natureza, a nomeação fazia com que ela se passasse a
presumir2566.
§ 1544. Uma questão famosa do direito da sucessão dos morgados era, como se
viu, a da concorrência entre neto filho de filho maior pré-falecido e filho segundo.
As Ordenações filipinas procuraram clarificar a ordem de chamada para a transmissão
dos morgados ( Ord. fil.4,100).
5.4.6 O direito de representação.
§ 1545. A primeira questão que definiram foi a da concorrência entre o neto
filho do primogénito pré-falecido e o filho segundogénito2567, estabelecendo que o
neto preferiria ao filho segundogénito, por direito de representação de seu pai 2568 .
§ 1546. Aparentemente, isto deveria ter encerrado uma árdua controversa
doutrinal que tinha dividido os juristas nos séculos anteriores, e não apenas em
Portugal, a ponto de Bártolo ter dito que certezas nesta questão provinham mais da
superstição do que da discrição2569.
§ 1547. Podemos comparar o estado da questão antes e depois das Ord. fil.
Comparando uma decisão famosa de António da Gama 2570, publicada em 1578,
com uma observação de Miguel de Reinoso, publicada em 1625.
§ 1548. António da Gama discute uma sentença sobre a sucessão num morgado
instituído por Catarina Fernandes, em 1471, em que se chamava em primeiro lugar
a irmã da instituidora, logo depois a filha dela nascida e depois da morte desta, o
seu filho ou filha primogénitos (natu maiorem). O morgado deferiu-se por esta
ordem até Gaspar Guerreiro, que deixou um filho segundogénito, Melchior
Guerreiro, e o neto, filho do filho primogénito, João Guerreiro, entre os quais se

2561 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 109, n. 2 (de que palavras se inferia, ns. 3 a 7);

existia plena liberdade de escolha, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1. dec. 143, n. 1.
2562 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 109, n. 8.

2563 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 25, n. 1.

2564 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 1. Exemplo, Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit., pt. 1, arest. 97.


2565 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 25, n. 17.

2566 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 25, n. 7.

2567 Portanto, tio paterno (patruus) do neto por via primogenitural. A questão podia formular-se em

termos mais gerais: a concorrência entre o neto, filho de um filho pré-falecido, e um filho nascido
depois deste, mas que tivesse sobrevivido ao pai.
2568 No mesmo sentido tinham decidido as Siete Partidas, (2, 15, 2), ao tratar da sucessão régia, e a

l. 40 de Toro, de 1505, em Castela, ao tratar da sucessão nos morgados.


2569 Segundo António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 2.

2570 Decisiones […], cit., dec. 307, n. 1.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

gerou um litígio, em que cada um reclamava a preferência. A sentença decidia a


favor do neto.
§ 1549. Esta orientação correspondia a uma opinião tida como comum,
nomeadamente em todas as Espanhas2571, congregando os votos de juristas
célebres, desde Bártolo, Grammaticus e Tiraquellus, a peninsulares como
Covarrubias, Gregório Lopez, Luis de Molina, Manuel da Costa 2572 e Diogo de
Sá2573. Do ponto de vista dogmático, o fundamento do direito do neto seria,
principalmente, o seu direito de representar o pai, que decorria do facto da essencial
identidade entre o pai e os seus filhos, nomeadamente o primogénito, que o pai
quereria honrar, mais do que a todos os outros, como já diziam as Siete Partidas
(2,15,2). O direito de representação seria, por isso, um facto de direito natural, legal
(romano)2574 e costumeiro2575. Mas corresponderia ainda à presumível intenção do
instituidor que, movido pelos referidos afetos naturais, pretenderia privilegiar a sua
geração primogénita2576. Esta primazia da linha primogenitural levaria a que ela
constituísse um grau anterior ao das estirpes dos outros filhos; e, por isso, que os
dois candidatos, neto primogenitural e filho segundo, nem sequer estivessem no
mesmo grau.
§ 1550. A opinião contrária, favorável ao filho segundo (ou tio paterno do
anterior, patruus) também era seguida por juristas de muita autoridade (Alexandre de
Imola, Mateo de Afflicits), tendo a seu favor sentenças antigas de tribunais
portugueses, cuja jurisprudência António da Gama dizia ser variável, de acordo
com as circunstâncias de cada caso. Num litígio sobre as doações de bens da coroa
aos barões do Alvito, embora houvesse votos de juristas para os dois lados,
decidira-se a favor do filho segundo2577. A argumentação baseava-se na letra da
doação (em que se dizia que os bens haveriam de se transmitir ao “filho maior
barão”), bem como na letra da Lei Mental 2578 que dispunha que os bens da coroa
doados se transmitiriam “ao filho legítimo maior barão que dele [donatário]
ficar”2579. Mas argumentou-se ainda com pontos doutrinais. Que o filho estava em
grau mais próximo do que o neto; que, se se argumentasse que o neto era como se
fosse filho - pois constituía a mesma pessoa que ele ou o representava -, ambos os
argumentos se baseavam em ficções de direito, que não podiam prevalecer sobre a
realidade efetiva das coisas (cf. ibid. n. 6). Por isso, o neto só teria direito de
preferência se concorresse com irmãos seus ou com primos seus, faltando de todo

2571 Este argumento era tido como irrelevante pelos defensores dos direitos do filho segundo, pois

o direito estrangeiro (aliás variável, pois o de Nápoles favoreceria o filho segundo) não se aplicaria em
Portugal, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 22.
2572 No seu Tractatus de regni successione, cit..

2573 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 2 e n. 14 a 16.

2574 Invocam-se textos de direito romano relativos à divisão de coisa comum, às partilhas e à

sucessão de bens de libertos.


2575 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, ns. 8 a 10.

2576 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 12.

2577 António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n. 2.

2578 Transcrito em Ord. man. 2, 17, 1 (depois, em Ord. fil.2, 35, 1).

2579 A decisão refere mais sentenças relativas à sucessão de bens da coroa doados aos Menezes,

conde de Cantanhede, e aos Faria, alcaides-mores de Palmela, em que se decidiu a favor do filho
segundo, justamente com base na letra das Ordenações.

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os filhos do anterior possuidor do morgado 2580. Que o direito de representação só


existia no caso de sucessão nos bens do pai, mas não já no caso de transmissão de
bens concedidos ao pai, como era o caso dos feudos ou das doações de bens da
coroa, em que a causa eficiente da devolução não eram os afetos naturais mas a
vontade do concedente2581. Que a solução era coerente com o que se dispunha
quanto à sucessão na enfiteuse (Ord. man. 4, 62; depois, Ord. fil.4,37). Esta era a
opinião de António da Gama, que entendia que a vocação do “maior” (mais velho)
se reportava, não ao momento do nascimento, mas ao momento da morte. E,
assim, excluía que o filho pré-falecido alguma vez tivesse tido algum direito que
pudesse transmitir ao filho ou que este, como parte da pessoa do pai, pudesse
reclamar2582. Esta opinião de António da Gama também afetava a sua opinião sobre
a sucessão da coroa do reino que ele entendia se deveria deferir, neste caso, ao filho
segundo, de tal modo se explicando o cuidado dos reis que tal não desejavam, de
explicitar nos seus testamentos os direitos de sucessão dos netos filhos de filho pré-
falecido2583.

2580 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit.. dec. 307, n. 5.


2581 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 306, n. 14.
2582 António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, ns. 3 e 4. Em contrapartida, os que

defendiam os direitos do neto, faziam uma distinção subtil entre a sucessão nos bens – que nunca se
dera no filho pré-falecido e que, portanto, este não podia transmitir ao seu filho – e o direito a suceder
neles. Esse direito tinha-o ele, estando incorporado no seu património, tendo-o transmitido por morte
a seu filho, n. 7 (“non ex vi transmissionis, quia cum hereditas viventes [scl. patris] non sit delata, non
potest transmiti, sed ex vi repraesentatione, n. 10: também, n. 12).
2583 Como acontecera no testamento de D. Dinis, de D. João I, e no contrato de casamento de D.

Afonso (V) com D. Joana, a Excelente Senhora, cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 307, n.
23. A regra de sucessão do reino foi discutida, nessa altura por Manuel da Costa, no seu citado tratado
acerca da sucessão do reino [In celeberrimas iuris Cesarei leges, & paragraphos Commentarii, & de maoiratu
bonorum patrimonialium, et de regni successione [...]], e por Álvaro Valasco (Decisiones […], cit., cons. 167, ns.
16 a 19 [discute se a sucessão do reino se defere pela ordem de sucessão dos morgados ou não,
concluindo ser mais provável a resposta negativa), e será regulada pelo alv. 9.9.1641 e pela L. 12.4.1698.
Em 1632, são publicadas as alegadas atas das cortes de Lamego, que estabeleceriam o seguinte sobre a
ordem de sucessão: “[…]Viva o Senhor Rei Dom Afonso, e possua o Reino. Se tiver filhos varões
vivam e tenham o Reino, de modo que não seja necessário torná-los a fazer Reis de novo. Deste modo
sucederão. Por morte do pai herdará o filho, depois o neto, então o filho do neto, e finalmente os
filhos dos filhos, em todos os séculos para sempre. Se o primeiro filho do Rei morrer em vida de seu
pai, o segundo será Rei, e este se falecer o terceiro, e se o terceiro, o quarto, e os mais que se
seguirem por este modo. Se o Rei falecer sem filhos, em caso que tenha irmão, possuirá o Reino em
sua vida, mas quando morrer não será Rei seu filho, sem primeiro o fazerem os Bispos, os
procuradores, e os nobres da Corte do Rei. Se o fizerem Rei será Rei e se o não elegerem, não reinará.
Disse depois Lourenço Viegas Procurador do Rei, aos outros procuradores: ‘Diz o Rei, se quereis que
entrem as filhas na herança do Reino, e se quereis fazer leis no que lhes toca?’. E depois que altercaram
por muitas horas, vieram a concluir, e disseram: “Também as filhas do senhor Rei são de sua
descendência, e assim queremos que sucedam no Reino, e que sobre isto se façam leis”, e os Bispos e
nobres fizeram as leis nesta forma. Se o Rei de Portugal não tiver filho varão, e tiver filha, ela será a
Rainha tanto que o Rei morrer; porem será deste modo, não casará se não com Português nobre, e este
tal se não chamará Rei, se não depois que tiver da Rainha filho varão. E quando for nas Cortes, ou
autos públicos, o marido da Rainha irá da parte esquerda, e não porá em sua cabeça a Coroa do Reino.
Dure esta lei para sempre, que a primeira filha do Rei nunca case senão com português, para que o
Reino não venha a estranhos, e se casar com Príncipe estrangeiro, não herde pelo mesmo caso; porque
nunca queremos que nosso Reino saia fora das mãos dos Portugueses, que com seu valor nos fizeram
Rei sem ajuda alheia, mostrando nisto sua fortaleza, e derramando seu sangue. Estas são as leis da
herança de nosso Reino, e leu-as Alberto Chanceler do senhor Rei a todos, e disseram, boas são,
justas são, queremos que valham por nos, e por nossos descendentes, que depois vierem”.

452
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1551. Em suma – defende António da Gama (ibid. n. 25) - se se tratasse de


bens sujeitos à Lei Mental, os bens de morgado passavam ao filho segundo, por
causa da letra da lei. Se se tratasse de bens patrimoniais e se se dizia que sucederia o
“filho maior”, deferia-se também a sucessão ao filho segundogénito, pois esta
qualidade de maior idade não se verificava no neto. Se se dizia que sucederia o
“filho”, não se referindo a qualidade de maior idade, de novo se devia preferir o
segundogénito, pois o neto não era filho. Mas António da Gama reconhecia que
estas soluções – muito favoráveis a uma ordem sucessória nos morgados que os
aproximava da sucessão na coroa e nos bens jurisdicionais - não eram seguras, dada
a variabilidade da jurisprudência dos tribunais.
§ 1552. Alguns autores contemporâneos excecionavam o caso de o filho
primeiro ter morrido na guerra ou em cativeiro2584-, pois, nesse caso, o filho poderia
representar o pai pré-falecido, nos termos de uma regra geral sobre os direitos dos
filhos de militares mortos em combate (v. para os ofícios em geral, cap. 2.6.5.3)2585.
§ 1553. As “observações” de Miguel de Reinoso saíram em 1625, tendo o autor
morrido em 1623. De qualquer modo, são posteriores às Ordenações filipinas, com o
seu texto expresso sobre a sucessão dos morgados que decidia este ponto da
concorrência de neto primogenitural com filho segundo no sentido do neto ( Ord.
fil.4,100). Miguel de Reinoso sustentava 2586 esta preferência do neto com base no
direito de representação, atribuindo-lhe os direitos preferenciais à sucessão. Isto
fazia com que desenhasse as linhas e os grau de uma forma diferente de Gama. A
cada filho corresponderia uma estirpe e a estas, diferentes linhas e graus
sucessórios. Cada estirpe ou linha sucessória iniciar-se-ia quando nascia cada um
dos filhos e receberia os seus direitos. Isto queria dizer que, embora na ordem
sucessória geral, todos os filhos estivessem no mesmo grau, na ordem sucessória
dos morgados, cada filho como que estava num grau (ou linha) diferente dos
irmãos, de tal maneira que não se podia passar ao grau (ou estirpe, linha) seguinte
enquanto houvesse sucessores do grau anterior 2587. Assim, o filho primogénito teria
recebido à nascença, para si e para a sua estirpe ou linha, o direito de primogenitura
que transmitiria por morte ao seu filho primogénito, embora nunca tivesse recebido
os bens a que esse direito se referia2588. Por isso, morto o pai, o neto recebia o
direito de primogénito, que podia fazer valer perante os tios. Reinoso reconhecia
que esta opinião era controversa na doutrina do direito comum, mas constatava que
a Ord. fil.4,100 tinha decidido a favor dos direitos do neto, seguindo o que também
corresponderia ao direito consuetudinário em quase todo o lado, e também nas
Espanhas2589. Como o preceito das Ordenações era uma lei declaratória, ela aplicar-se-
ia a todos os morgados, mesmo aos constituídos antes2590.

2584 Como acontecera em alguns dos casos relatados por António da Gama (como os do barão do

Alvito, ou do conde de Cantanhede).


2585 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 148; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1,

dec. 147, ns. 1 a 3.


2586 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 23.

2587 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 23, n. 6.

2588 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 23, ns. 1 a 4.

2589 Cita as Leis de Toro, n. 40; Nueva rec. 5, 7, 5); cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit.,

obs. 24, ns. 1 e 2; obs. 25, ns. 3 a 6; também, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 192, ns. 20 a 23
(direito inglês, francês e espanhol).
2590 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, n. 3-10.

453
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§ 1554. Na lógica desta doutrina, a preferência dos netos aproveitava também


às netas, ou porque, apesar de os varões preferirem as fêmeas do mesmo grau, não
existiria no caso uma igualdade de grau, ou porque as netas reclamavam não um
direito seu, mas um direito do pai, cuja entidade assumiam. Este princípio valia nos
morgados patrimoniais2591. Mas também nos morgados de bens da coroa, pois o
novo preceito de Ord. fil.100,4 tinha feito com que o termo “maior” significasse
agora “primogénito” e, sendo assim, a referência de Ord. fil.2,35 ao filho maior
devia ser agora entendida como referindo-se ao filho primogénito, por si ou pelo
seu representante natural, preterindo, portanto, o filho segundo 2592.
§ 1555. Se compulsarmos recolhas de opiniões do primeiro terço do séc. XVII,
continuamos, porém, a verificar, não apenas que esta questão era muito discutida,
como que a opinião que favorece o filho segundo – seguindo o modelo da sucessão
nos bens da coroa adotado da Lei mental (v. Ord. fil.2,35), mas afastando-se do
modelo de sucessão dos morgados estabelecido nas mesmas (v. Ord. fil.100,4,pr.) –
continuava a ter um grande impacto doutrinal 2593. Isto pode explicar-se ou porque
este modelo se adequava mais ao espírito nobiliárquico dos morgados, ou porque as
discussões sobre o assunto dos juristas da época diziam mais frequentemente
respeito a morgados de bens da coroa, em que se observava a preferência do filho
segundo sobre o neto.
5.4.7 Poderes do possuidor
§ 1556. Os poderes do possuidor do morgado sobre os bens que o constituíam
estava limitado pelo facto de ele os dever deixar intactos ao seu sucessor, para
assim se cumprir a finalidade de vinculação à família estabelecida no pacto. Para
exprimir este caráter limitado dos seus poderes a doutrina seiscentista portuguesa
chama-lhe principalmente “possuidor” (e não administrador, como ocorrerá mais
tarde, no séc. XIX). Embora alguns insistissem em que se tratava de um
“verdadeiro dono”2594, ponderava-se que, como não podia usar de ações diretas,
mas apenas de ações úteis, dificilmente poderia invocar essa qualidade 2595.
Realmente, o possuidor do morgado, se dispunha de ações para reivindicar os bens
dos herdeiros do anterior possuidor2596, não tinha uma ação reivindicatória para
reclamar os bens de terceiros que os possuíssem 2597, tendo que usar de uma ação
possessória2598, que presumia a posse do bens, ou, eventualmente, uma ação útil 2599

2591 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, ns. 13 e 14.
2592 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 24, ns. 17 a 19.
2593 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 9; Álvaro Valasco,

Decisiones […], cit., cons. 121, n. 6; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 107, n. 2; Gabriel
Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 116, ns. 1 a 3.
2594 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons, 116, n. 5; é senhor de pleno direito, Álvaro

Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 122, n. 6.


2595 Cf. o mesmo Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 195, ns. 6 a 10.

2596 Os sucessores de morgado constituído por contrato não se tornavam donos dos bens senão

por tradição, aliás tinham apenas uma ação ex contratu, ineficaz em relação a terceiros que possuíssem
bens do morgado, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 194, n. 11.
2597 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 194, ns. 7 ss.; 59; sim, em Castela, n. 21; mas

não por direito comum e pátrio, n. 21.


2598 Como possuidor, podia recorrer às ações e aos remédios possessórios, Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons. 194, n. 15.

454
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

(v. 7.1.3).
§ 1557. Era investido neste direito por força do pacto de instituição aquando da
morte do anterior possuidor, sem necessidade de qualquer outro título ou
mandado2600, podendo entrar nos bens do morgado por iniciativa própria 2601. Antes
mesmo de tomar posse do morgado, podia pedir providências cautelares no caso de
delapidação dos bens e ser garantido com uma caução, fiança ou uma proibição de
alienação dirigida ao atual possuidor2602.
§ 1558. Mais do que a conceituação da posição do possuidor interessava a
determinação dos seus poderes. Era certo que ele não podia dividir os bens, assim
como não podia aliená-los2603, salvo para a redenção do sucessor do morgado se
caísse cativo e não pudesse ser resgatado apenas com os frutos do morgado 2604.
Também era admitida a venda para pagar dívidas ou despesas feitas para a
conservação dos bens, embora isto com limitações. De facto, cada possuidor era
obrigado a conservar e melhorar os bens. Isto devia ser feito por força dos
rendimentos do morgado, pelo que cada possuidor não estava, em princípio,
obrigado aos filhos do antecessor pelas despesas úteis por este feitas, em gastos de
conservação ou em lides judiciais2605. Alguns autores distinguem consoante as
despesas eram pequenas ou grandes.
§ 1559. A permuta, como alienação, também estava, em princípio, proibida 2606
§ 1560. Também estava impedido de outros atos que implicassem disposição
perpétua. Tal era o caso da constituição de um usufruto 2607, de hipoteca2608, da
imposição de um censo perpétuo2609, do arrendamento por longo tempo2610. O caso

2599 Realmente, nesta época, a distinção era meramente académica, dado que estas classificações

romanas não tinham conteúdo prático.


2600 Podia ser investido na posse ainda em vida do antecessor, prevalecendo a sua posse contra um

herdeiro legítimo, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, n. 108, 1 ss. (a propósito do esbulho:
Ord. fil. 4, 58).
2601 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 191, ns. 26 a 28.

2602 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 28.

2603 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, ns. 21-23; Bento Pereira,

Promptuarium [...], cit., ns. 1181 ss.


2604 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 23 (decisão da Casa da

Suplicação em Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 30, n. 16).


2605 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 116, ns. 7 ss.; Jorge de Cabedo, Decisiones [...],

cit., pt. 1, dec. 111, ns. 2 e 5; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 27. A
questão era indecisa, dependendo de complicada casuística: Jorge de Cabedo, porém, defende o
contrário (o possuidor ficaria obrigado pelas dívidas do antecessor em utilidade do morgado, podendo
aceitar a sucessão a benefício de inventário Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 2. dec. 110, ns. 4 e
6).
2606 Admitia-se a permuta com licença do rei, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec.

176, n. 1, de acordo com a regra geral sobre os poderes do rei de dispensar a lei. Em todo o caso,
como estavam em causa os direitos dos sucessores seguintes, requeria-se a autorização destes, ibid. n. 2,
também de acordo com a regra de que nem o rei podia ofender direitos adquiridos. As coisa recebidas
em troca ficam com a natureza de bens vinculados, ibid. n. 3.
2607 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 73, ns. 1 a 7; mas podia ceder
temporariamente os frutos, Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 73, n. 10.
2608 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 5.

2609 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 120, n. 4.

2610 O sucessor não estava obrigado a manter o colono de arrendamento por tempo longo feito

pelo seu predecessor, pois tal arrendamento equivalia a alienação, António Cardoso do Amaral, Liber

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da sua dada em enfiteuse era bastante discutida, o que se entende, vista a


popularidade das concessões enfitêuticas. A opinião comum era a de que o
possuidor do morgado não podia dar bens do morgado em enfiteuse perpétua ou
em vidas, de modo que excedesse a vida do mesmo possuidor 2611. Na prática,
porém, as situações em que os bens estavam tradicionalmente aforados ou em que
essa era a solução mais adequada ao seu cultivo, deviam ser muito frequentes. Pelo
que se introduziam regras que flexibilizavam bastante a possibilidade de
aforamento. Ele era possível se a entrega em enfiteuse fosse de evidente
necessidade para o morgado; se fosse costume aforar os bens; se os bens
estivessem assim à data da constituição do morgado 2612; ou se estivessem dados em
enfiteuse por longuíssimo tempo2613.
§ 1561. Os atos de alienação eram nulos2614. Todavia, para proteger as
expetativas do comprador, não podiam ser desfeitos em vida do vendedor, mas
apenas pelos sucessores, a não ser que o comprador soubesse que se tratava de
bens de morgado2615.
§ 1562. Os bens perdiam a natureza vincular se tivessem sido alienados
(tricenal) nos últimos trinta anos ou se houvesse memória de alguma vez o terem
sido2616. Os morgados também se extinguiam a pedido do possuidor, mas com
licença régia2617.
5.5 As capelas.
§ 1563. As capelas eram conjuntos de bens deixados a alguém (o patrono) com a
condição de, pelo seu rendimento, se mandarem rezar missas pela intenção
estabelecida pelo instituidor ou de outros encargos pios (missas rezadas ou
contadas, aniversários, sufrágios)2618. A sua finalidade era, portanto, diferente da
dos morgados. Nas capelas não se tratava de perpetuar a memória de uma família,
mas de assegurar a realização perpétua dos atos piedosos dispostos na
instituição2619. Como ónus deste tipo ocorriam também nos morgados, havia a
necessidade de distinguir as duas instituições, pois os seus regimes tinham

[...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 26.


2611 António Gomez, apud Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 95, n. 2 e 9, António da

Gama, Decisiones [...], cit., dec. 192, n. 3; este autor refere uma sentença favorável ao aforamento em
três vidas, mas discorda da decisão (António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 16), requerendo, pelo
menos, autorização do rei, disposição do instituidor ou sentença, ibid. dec. 192, n. 3.
2612 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., dec. 70, ns. 28, 39 e 48.

2613 Até 3 vidas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 25.; Miguel de

Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 70, n. 21 ss..


2614 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 133, n. 15.

2615 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 133, n. 16; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.,

Cons. 184, n. 13; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Maioratus”, n. 24.
2616 Prescrição aquisitiva da liberdade, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 132 n. 20; ibid.

cons. 167, n. 17; Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec.52, n. 1.
2617 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons 130, n. 18 ss..

2618 Cf. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure [...], cit., disp. 576; Bento Pereira, Promptuarium

[...], cit., ns. 136-141; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 3, 10, 1 ss..
2619 Assim, como nas capelas não estava em causa a memória da família, na falta de sucessores

parentes do instituidor, o rei devia nomear administrador, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec.
193, dec. 288.(cita sentença antiga de desembargadores, neste sentido, ibid. dec. 280, n. 2).

456
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

especificidades. As Ordenações faziam isto – a propósito da definição das


competências dos provedores das comarca, a quem competia a tutela das capelas –
estabelecendo que se consideraria capela a deixa de rendimentos destinados ao
sustento de atos piedosos, reservando uma quota para a remuneração do possuidor
ou administrador desses rendimentos (ou bens) 2620. Em contrapartida, seria
morgado a deixa de rendimentos ou bens com a obrigação de realizar atos pios,
ficando o remanescente das rendas para o administrador 2621.
§ 1564. O ónus tinha que ser perpétuo e tinha que estar expressa a
inalienabilidade dos bens, já que a linha sucessória encarregue de os administrar e
de cumprir o encargo fora escolhida pelo instituidor pela especial confiança que lhe
mereceria. Se a alienalibilidade não estivesse estipulada, tratar-se-ia de uma doação
ou deixa com encargos pios, eventualmente perpétuos e, por isso, transmitidos com
a coisa, mas não de uma capela2622. Perpetuidade de vinculação era, então, uma
característica essencial das capelas.
§ 1565. O regime da instituição, sucessão e condições de administração das
capelas era o mesmo dos morgados2623 2624. Na satisfação do ónus devia atender-se
ao disposto na carta de instituição, embora a doutrina formulasse normas
interpretativas e supletivas2625.
§ 1566. Às obrigações de administração da capela e de satisfação dos seus
encargos pios, correspondiam direitos dos patronos quanto à apresentação dos
benefícios e ofícios associados e quanto à retenção de certa parte dos rendimentos
(v. antes § 428).
§ 1567. A legislação pombalina estabeleceu para as capelas um regime diferente
do dos morgados. A Lei de 9.9.1769 determinou. (1) a obrigatoriedade de licença
régia (ou do Desembargo do Paço) para a instituição de capela em bens móveis ou
em dinheiro, §§ 14 e 17; (2) a inadmissibilidade de encargos pios que excedessem a
décima parte dos rendimentos anuais dos bens da capela, § 19; (3) a extinção das
capelas de rendimento para o administrador inferior a 100 000 rs. anuais, § 21; (4) a
integração na Coroa, sem os encargos, das que vagassem por qualquer titulo,

2620 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 1 (“Capella dicitur cum certa

quota administratoribus assignata”).


2621 “E por não vir em duvida qual he morgado ou capela, declaramos ser morgado, se na

instituição que dos bens os defuntos fizeram, for conteudo que os administradores, ou possuidores,
dos ditos bens cumpram certas missas, ou encargos, e o mais que renderem hajam para si, ou que os
instituidores lhes deixaram os ditos bens com certos encargos de missas, ou de outras obras pias. E se
nas instituições for conteudo, que os administradores hajam certa coisa ou certa quantia das rendas,
que os bens renderem, assim como o terço, quarto, ou quinto, e o que sobejar se gaste em Missas, ou
outras obras pias. Em este caso, declaramos não ser morgado, senão capela” ( Ord. fil.1, 62, 53).
2622 Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit., obs. 68, ns. 18 ss; Melchior Febo, Decisiones [...],

cit., dec 119, ns. 9 ss.; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 96, n. 1.
2623 Em todo o caso, não era válida a instituição de capela, em que fossem chamados à
administração igreja, mosteiro, religiosos ou clérigos, Manuel Mendes de Castro, Practica [...], cit., t. 2,
liv. 1, cap. 11, n. 94.
2624 As capelas fundadas por D. Afonso IV na Igreja de Lisboa (“capelas de D. Afonso IV”), com

importantes rendimentos e senhorios, eram administradas por um provedor e ouvidor especiais, do


qual se apelava para a Mesa da Consciência (Reg. De 3.1.1561), Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis
[…], cit., 3, 10, 9
2625 Como se deviam cumprir as obrigações de missas, Miguel de Reinoso, Observationes [...], cit.,

obs. 7; como se procedia no caso de os rendimentos serem insuficientes para os ónus, Ord. fil.1, 62, 55.

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ibid2626.
5.6 Partilhas e colações.
§ 1568. Uma vez aceite a herança e sendo vários os herdeiros, havia que
proceder à partilha dos bens, concretizando as partes alíquotas a que cada herdeiro
tinha direito. Como alguns dos herdeiros (herdeiros necessários, herdeiros do seu,
heredes sui) podiam ter direitos “naturais” sobre uma quota da herança (as legítimas),
havia também que calcular essa parte e saber se algumas das liberalidades do de
cujus, feitas em vida ou no testamento, violavam este seu dever de respeitar as
legítimas dos herdeiros necessários (i.e. se eram contrárias a esses deveres, ou
inoficiosas), a fim de serem reduzidas aos seus limites. Era disto que se tratava nas
partilhas e colações2627
§ 1569. A partilha fazia-se ou extrajudicialmente, por acordo entre os herdeiros,
reduzido a escrito se isso fosse obrigatório2628, ou por meio de partidores
(avaliadores, partidores, escolhidos pelas partes, pela câmara do lugar pelo juiz, Ord.
fil.3,17,2), ou judicialmente (Ord. fil.4,96,18). O próprio testador podia proceder, em
vida, à partilha, para prevenir futuros dissídios2629. A divisão feita amigavelmente
entre os filhos em vida do de cujus podia ser revogada até à morte deste 2630. Mas a
que fosse feita por contrato entre pais e filhos emancipados não podia ser revogada,
de acordo com a regra de que as partilhas feitas não se desfaziam2631.
§ 1570. A partilha judicial efetuava-se, no direito romano, por meio da actio
familiae erciscundae, uma espécie de reivindicatio posta à disposição dos herdeiros
legítimos ou testamentários, com título, para reclamar de um herdeiro a divisão da
herança2632. Distinguia-se da ação de petição da herança, logicamente anterior, que
era dada a um herdeiro com título para ser reconhecido como tal por alguém que
lhe negava essa qualidade, nomeadamente, um possuidor sem título dos bens
hereditários2633. Uma e outra fundavam-se no facto de que o herdeiro tinha um
direito real sobre a herança, uma vez esta aceite por ele. Em pouco se distinguiam
da reivindicação2634. Uma lei de D. Afonso IV, depois inserida nas Ordenações,
importara para o direito pátrio o núcleo do regime da tradição romanística2635.

2626 Atendendo à ofensa de situações consolidadas à sombra do direito anterior, o Decreto de

17.7.1778 suspendeu, até à promulgação do Novo Código, os §§ 18, 19, 20 e 21 da referida lei, que
dispunham sobre a extinção das instituições vinculares insignificantes, e da abolição ou redução dos
encargos pios, permitindo novas instituições apenas se o Rei as autorizasse, § 8.
2627 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”; Bento Pereira, Promptuarium

[...], cit., vs. “Collationes”, “Divisio”, “Partitio”; Álvaro Valasco, Praxis partitionum et collationum, inter
haeredes, […], cit.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12.
2628 O que acontecia se o valor da herança excedesse certa quantia (Ord. fil.3, 59).

2629 Cf. Álvaro Valasco, Praxis partitionibus […], cit., cap. 20, 3.

2630 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 127, ns. 1-2.

2631 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 127, ns.4-5 e 7.

2632 Cf. D.10.2 Familiae erciscundae; C.3.36 Familiae erciscundae. Cf. Pascoal de Melo, Institutiones

iuris civilis [...], cit., 3, 12, 1.


2633 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 1.

2634 Não se pedia coisa certa e determinada, mas uma universalidade; prescreviam por 30 anos,

como ações pessoais, e não por um ano, como a reivindicatio, uma ação real.
2635 Ord. af. 4, 107, Ord. man.4, 77, Ord. fil.4, 96; v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,

3, 12, 2.

458
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1571. Qualquer herdeiro podia propor a ação de partilhas, devendo ser todos
citados. A partilha era pedida ao que estivesse na posse dos bens hereditários
(cabeça de casal, frequentemente, o cônjuge sobrevivo ou um dos filhos
herdeiros2636).
§ 1572. O possuidor da herança devia fazer o inventário da herança, dentro de
30 dias a contar do falecimento2637. Nele se descreviam todos os bens imóveis,
móveis e dívidas, e seus valores avaliados por louvados 2638. As coisas alheias na
posse do de cujus (comodadas, depositadas, recebidas em penhor) deviam ser
descritas como tal, indicando o título a que estavam na herança 2639. Coisas alheias
eram também os bens vinculados, pois não entravam na herança nem neles se
sucedia iure hereditario, mas por uma vocação especial (v. 5.4)2640. Daí que não
devessem entrar no inventário, a não ser para as declarar estranhas à sucessão, nem
deveriam ser trazidas à colação (v. a seguir).
§ 1573. Os legados não se partiam, pois o seu destino tinha sido estipulado pelo
testador. A partilha também podia resultar de uma divisão feita informalmente
pelos filhos e mantida por longo tempo2641. As despesas pendentes imputavam-se
ao acervo comum e dele se deduziam: funeral, pagamento de soldadas, alimentos
em dívida, arras não pagas. Também os frutos pendentes eram imputados ao
comum2642.
§ 1574. Os quinhões eram feitos pelo juiz e atribuídos por ordem sua 2643. Havia
coisas que não admitiam divisão, ou pela própria natureza ou por disposição do
direito. À primeira categoria pertenciam as materialmente indivisíveis e todas as que
se destruiriam com a divisão (como o escravo, o cavalo, o lagar, o moinho). À
segunda categoria pertenciam as ações e os direitos incorpóreos (como as
servidões2644, dívidas e créditos). Neste caso, as coisas deviam ser atribuídas a um
dos herdeiros, que compensava os outros pelo valor da quota que lhes pertencesse
(das tornas); também podiam permanecer em comunhão, vender-se ou arrendar-se,
distribuindo-se pelos herdeiros uma quota do rendimento 2645. Também a enfiteuse
hereditária ou familiar não se dividia, devendo ser encabeçada num dos herdeiros
(v. 4.3.3).
§ 1575. A distribuição natural da herança entre os filhos era a igualitária 2646,
embora se admitisse que o de cujus quisesse introduzir diferenças entre os herdeiros,

2636 Cf. v. Ord. fil.4, 95, pr.; Ord. fil.4, 96, 9; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12,
5.
2637 Havendo menores de 25 anos, o inventário devia ser feito pelo juiz dos órfãos (Ord. fil.1, 88,
4).
2638 V. Ord. fil.1, 88, 5.
2639 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 11.
2640 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 96, ns. 4-5; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 9.
2641 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 320, n. 5.

2642 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 308.

2643 V. Ord. fil.4, 96, 2, Ord. fil.4, 96, 6. Na partilha extrajudicial dominava uma regra que era tida

como sendo a mais equitativa: dividia o mais forte e escolhia o mais fraco.
2644 O seu exercício pode ser dividido.

2645 V. Ord. fil.4, 96, 5; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 8.

2646 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 21.

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favorecendo uns mais do que os outros, ainda em vida, por partilha por ele feita;
ou, depois da morte, por especiais legados feitos no testamento, ressalvada sempre
a parte que cada um tinha forçosamente que ter na herança (legítima). Isso fazia
com que se devessem levar em conta, no momento da partilha, as liberalidades
feitas ainda em vida pelo pai aos filhos, para determinar duas coisas. A primeira era
saber se a doação em vida era apenas um adiantamento da parte que o filho teria na
herança ou era antes uma liberalidade especial que cumulava ao quinhão
hereditário. Ou seja, se a doação era por conta da legítima ou antes por conta da
quota disponível. A outra questão era a de saber se, tratando-se de uma liberalidade
extra feita pelo pai a um dos filhos, ela cabia na quota disponível (na terça) de que o
pai podia livremente dispor ou se, pelo contrário, ofendia a legítima dos outros
filhos. Para isto serviam as colações.
§ 1576. A colação2647 era a apresentação pelos filhos à herança das coisas ou
rendas recebidas do pai por doações em vida 2648, para serem calculadas as legítimas
de todos os filhos e verificado se estas doações as ofendiam 2649.
§ 1577. Só os herdeiros que tinham legítimas (os herdeiros forçosos) é que
tinham que trazer as doações à colação2650. Por isso, esta obrigação não impendia
sobre herdeiros que não os filhos 2651 (ascendentes, outros parentes, estranhos,
filhos bastardos não legitimados de nobres 2652). Como também não impendia sobre
os filhos que recusassem a herança (e que, portanto, não eram herdeiros) 2653.
§ 1578. Depois, estes filhos só tinham que trazer à colação os bens que
tivessem recebido dos pais como liberalidade; ou seja, os bens que os pais lhes
tivessem doado por força da quota disponível, como liberalidade adicional. Esta
liberalidade não se presumia, antes se partindo do princípio de que as doações em
vida eram antecipações daquilo que os filhos iriam herdar. E, por isso, as doações
tinham que ser trazidas à colação, para serem calculadas e, eventualmente,
reduzidas2654; mesmo que o de cujus declarasse que queria beneficiar o filho e tornar
essa doação definitiva, pois ele nunca poderia prejudicar a legítima dos outros 2655.
§ 1579. Em contrapartida, não tinham que ser conferidas (trazidas à colação) as
dádivas que correspondessem ao cumprimento de deveres parentais 2656, pois não se

2647 A palavra colação tinha dois significados em direito: esta, de trazer bens à herança (collatio

bonorum), e a de provimento (provisio) num ofício eclesiástico, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 2 [a 19]).
2648 Também o ofício comprado para o filho tinha que ser trazido à colação, António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 32.


2649 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 12.

2650 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 22.

2651 Ou netos que representassem um filho pré-morto ou que tivessem recebido doações de seu

avô, que pudessem ser reputadas como adiantamentos da herança do pai, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., n. 29..
2652 V. Ord. fil.4, 97, pr..

2653 Cf, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, n. 43.

2654 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, n. 24.

2655 Noutros direitos, as doações aos filhos podiam ser definitivas, por não haver garantia de

legítima, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 28.
2656 Como as despesas, com comida, criação, vestes e educação, tudo proporcionado ao estado

da família. Nomeadamente, cabiam aqui, as vestes quotidianas, mas não as de festa ou as joias, as

460
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

tratava de liberalidades. Nem tão pouco eram conferidos os bens que fizessem
parte de pecúlios que os filhos tivessem ganhado com o próprio trabalho (como os
pecúlios adventício, castrense e quase castrense)2657 ou que o filho tivesse recebido
de outrem que não o pai (v.g. as doações régias)2658. Já o pecúlio profectício,
pertencente ao pai, mas sob administração do filho, devia ser conferido2659.
§ 1580. Como já se disse, o morgado não vinha à colação, porque não fazia
parte da herança. Por outro lado, não podia ser instituído em prejuízo das legítimas
dos filhos ou, a menos que isso tivesse sido validado por licença régia (v. 5.4)2660.
§ 1581. Se as liberalidades trazidas à colação, avaliadas no momento da morte,
excedessem a quota disponível e ofendessem a legítima dos outros filhos, eram
consideradas excessivas ou inoficiosas (v. Ord. fil. 4,97,4 n. 13) e reduzidas ou
anuladas2661.
§ 1582. À partilha seguia-se a entrada em posse, que não era adiada pelos
eventuais recursos2662. Uma vez feitas, as partilhas não podiam rescindir-se, a não
ser em casos muito contados (erro, lesão enorme). Mas podiam ser reformadas ex
aequo et bono2663.

despesas com estudos (se o filho foi preguiçoso e não obteve aproveitamento, as despesas deviam vir à
colação), o ensino de ofício e as despesas com viagens, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Collatio”, cit., n. 25, 32-33, 38; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 12. Os dotes de
matrimónios espirituais ou carnais eram da obrigação dos pais e, logo, não vinham à colação (Ord. fil.4,
97, pr.), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 31. O mesmo com as
quantias pagas para livrar o filho da cadeia ou para pagar os delitos por ele cometidos, António Cardoso
do Amaral, Liber [...], cit., n. 36.
2657 Grosso modo, bens recebidos de terceiros intuitu personae, bens adquiridos em ofício ou

profissão, bens adquiridos na milícia, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”,
cit., n. 40-41. Se o pai fosse rico e o filho indolente, presumia-se que os bens que administrava eram do
pai; o contrário, se o pai fosse pobre e o filho trabalhador. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., n. 26 e 27. Cf. 3.2.4.
2658 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 30.

2659 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Collatio”, cit., n. 25-26.

2660 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 96, ns. 4-5.

2661 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 13.

2662 V. Ord. fil.4, 96, 22; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 14.

2663 V. Ord. fil.4, 96, 18. Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 168, n. 2 (“Hodie per legem

extravagantem non rescinduntur”); Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 12, 14-15.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

6 As obrigações.
6.1 Introdução.
§ 1584. As “obrigações” tiveram uma autonomização mais problemática como
uma das divisões principais do direito (ao lado das “pessoas”, das “coisas” e das
“ações”). Nas Instituições de Justiniano, a matéria das obrigações ocupa os título I.3,
13 a I.4, 5, dividindo-se assim por dois livros, mas sendo anunciada como uma das
divisões do direito civil (“Nunc transeamus ad obligationes […]”)2664. No entanto,
esta matéria nem corresponde ao título ou epígrafe de nenhum dos quatro livros,
nem aparece na conhecida classificação das partes do direito (pessoas, coisas e
ações) 2665. Por isso, no direito comum tardio suscita sempre esse problema da
relação das obrigações com as “partes” do direito.
§ 1585. Um dos autores que discute a questão longamente é Arnold
Vinnius2666. Na anterior tradição romanística, as obrigações eram incluídas em
alguma das três partes referidas no Digesto. A tradição mais antiga, em que se
incluiria um dos autores das Instituições de Justiniano, Teófilo, e o grande Acúrsio,
incluía as obrigações na parte das ações, solução insinuada por ventura pela ordem
dos títulos das Instituições, em que o tratamento das obrigações antecede
imediatamente o das ações, sendo como que um seu proémio. No plano
argumentativo, Vinnius justificava esta precedência das obrigações em relação às
ações pela ideia de que as obrigações eram a causa das ações e como que “as suas
mães”2667. Uma tradição mais moderna, que Vinnius identificava com Hermann
Vulteius (1565-1634; Commentarius in Institutiones iuris civilis, 1598), considerava que
as obrigações pertenciam ao direito das pessoas, como sua inerência ou extensão 2668.
Vinnius tão pouco ousou autonomizar a matéria das obrigações, antes a incluindo
na parte das coisas, como um dos tipos de vínculos que as ligavam às pessoas, neste
caso um direito a elas (ad rem), enquanto no caso do vínculo tratado propriamente
no livro das coisas se trataria de um direito sobre elas (in re).
§ 1586. Esta menor visibilidade das obrigações no plano da taxonomia jurídica

2664 Segue: “[…] Obligatio est iuris vinculum, quo necessitate adstringimur alicuius solvendae rei,

secundum nostrae civitatis iura. […]”, 1, 3, 13, pr..


2665 Esta divisão aparece num fragmento do Digesto (D.1, 5, 1 extraído das Institutiones de Gaio:

“Gaius libro primo institutionum, Omne ius quo utimur vel ad personas pertinet vel ad res vel ad actiones”;
isto não aparece nas Institutiones de Justiniano, embora se lhe aluda implicitamente (em I.1, 3, pr. I.2, 1,
pr. e I.4, 1, pr.). No entanto, estas estão divididas em quatro livros, e não em três, e esta divisão não é
consistente com a sistematização em pessoas, coisas e ações. O livro II é heterogéneo e a matéria
alegadamente das ações (nas quais estariam incluídas as obrigações) está dividida, com critério pouco
aparente, pelos livros 3 e 4 (em I.4, 1, pr.. sugere-se que nos títulos do livro 3 se trata das obrigações ex
contrato e nos do livro 4 das que provêm de delito; mas nem isto se observa).
2666 No seu Commentarius às Instituições (Commentarius in quatuor libros Institutiononum […], cit., ad 3,

14; que corresponde a I.3, 13, na ed. de Krüger).


2667 Vinnius contrapõe que as obrigações também podem ser consideradas como a causa dos

direitos sobre as coisas (in rebus), na medida em que estes se estabelecem na sequência de direitos às
coisas (ad res), que correspondem a obrigações (ibid. ad I.3, 14, n.2).
2668 Vinnius observa que isto pode ser dito de institutos como o uso ou o usufruto, que a doutrina

incluía pacificamente na parte das coisas, além de que os direitos e deveres das obrigações não variariam
com o estado das pessoas e, por isso, não caberiam em direitos definidos como “quod persona assistit
quatenus persona est, id est jus, quisque in civitate sensetur propter statu et qualitatem personae suae”
(ibid. ad 3, 14, n.2)..

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do ius commune explicará o caráter disperso do seu tratamento e a sua quase


irrelevância como categoria que agrupasse as matérias comuns a vários institutos e
negócios jurídicos e permitisse construir uma dogmática comum a eles.
§ 1587. As Institutiones contêm uma escorreita definição de obrigação: “um
vínculo jurídico em razão do qual somos forçados a pagar, fazer ou disponibilizar
algo a alguém, de acordo com o direito da nossa cidade”, I.3,13). E prosseguem,
indicando as suas espécies: civis e pretórias ou contratuais, quase contratuais,
delituais e quase delituais2669. Esta definição proemial, com as suas divisões, é muito
semelhante à que se faz para as actiones; e permitiria um tratamento encadeado (ex
genere et differentia) das figuras que geravam deveres e os correspondentes direitos.
Porém, o direito comum não desenvolveu, a partir desta definição e classificação
anexa, uma “teoria geral das obrigações” com o âmbito e desenvolvimento que lhe
virá a dar a pandectística do séc. XIX 2670.
6.2 A fonte do vínculo obrigacional.
§ 1588. O desenvolvimento dogmático de I.3,13 ocupa-se principalmente da
fonte do vínculo obrigacional, nomeadamente da eficácia da natureza (da razão
natural) na geração de obrigações, uma questão cuja importância foi crescendo,
mesmo ainda no direito romano, à medida que se ia tornando obsoleta a conceção
formalista e ritualista do direito romano mais antigo, para a qual só declarações
formalizadas e rituais podiam gerar obrigações jurídicas. Já o direito justinianeu, no
passo citado, salientava a variedade das fontes das obrigações (“Segue-se a divisão
em quatro espécies; na verdade, as obrigações são provenientes de um contrato, ou
de um como que contrato, ou de um malefício (delito) ou de um como que
malefício. Primeiro devemos considerar as que provêm de um contrato. Destas, há
quatro espécies: é que ou se contrata em virtude de uma situação objetiva, ou por
palavras, ou por escrito, ou por consenso” (I.3,13,2). Na fase tardia do direito
comum já eram raras as obrigações cuja fonte fosse exclusivamente o formalismo
do direito civil estrito. Quase todas tinham fundamento fora dele, naquilo que era
descrito como a razão natural, como quer que esta fosse entendida.
§ 1589. A doutrina jurídica moderna relaciona-se, no plano do tratamento
dogmático da obrigação, com um período de transição entre uma conceção antiga,
predominantemente objetivista da obrigação e uma conceção moderna, em que a
obrigação é vista como uma consequência de elementos subjetivos, a vontade das
partes2671 2672. A valorização do consenso como fonte da obrigação, já presente no

2669 “1. Omnium autem obligationum summa divisio in duo genera deducitur: namque aut civiles

sunt aut praetoriae. civiles sunt, quae aut legibus constitutae aut certe iure civili comprobatae sunt.
praetoriae sunt, quas praetor ex sua iurisdictione constituit, quae etiam honorariae vocantur. 2. Sequens
divisio in quattuor species deducitur: aut enim ex contractu sunt aut quasi ex contractu aut ex maleficio
aut quasi ex maleficio. prius est, ut de his quae ex contractu sunt dispiciamus. harum aeque quattuor
species sunt : aut enim re contrahuntur aut verbis aut litteris aut consensu. de quibus singulis
dispiciamus”, I.3, 13, 1.
2670 Ou seja, fontes das obrigações, capacidade obrigacional, objeto das obrigações,
cumprimento e incumprimento, transmissão e extinção das obrigações.
2671 A oposição entre estes dois conceitos de obrigação foi magistralmente desenhada por Michel

Villey (“Préface historique à l'étude des notions de contrat", em Archives de philosophie du droit, 13(1968),
1-11), que destaca de que modo a ideia dominante até ao jusracionalismo foi a de que a fonte das
obrigações residia em tipos objetivos de relacionamento entre as pessoas, pouco modeláveis pela
vontade das partes. O individualismo jusracionalistas (sobretudo dos filósofos e dos moralistas, não dos

464
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

direito justinianeu2673, tinha sido reforçada pela posição dos canonistas de que o
cumprimento de uma promessa era também exigível no plano teológico, como
forma de evitar o pecado da mentira. Mas ainda permaneciam muitos vestígios de
outros fundamentos – digamos, objetivos - da obrigação, bem como da ideia de que
estes mesmos dados objetivos – de natureza, de justiça – podiam limitar a
capacidade vinculativa das promessas. Ou seja, permanecia muito de um conceito
pluralista das fontes da obrigação, não se tendo ainda verificado a consolidação do
consensualismo que caraterizará o direito jusracionalista 2674.
§ 1590. Na doutrina portuguesa seiscentista, o conceito de “obligatio” não
despertava grande entusiasmo2675.
§ 1591. Quem lhe dedica um pouco mais de atenção é António Cardoso do
Amaral que, no respetivo verbete2676, aborda muito brevemente alguns pontos
dispersos sobre a capacidade para se obrigar e sobre os requisitos do objeto da
obrigação, antecedidos por algumas notas sobre as questões conceituais mais gerais.
§ 1592. A obrigação era aí definida como um vínculo de direito que obrigava
necessariamente (necessitate) a dar ou a fazer algo a alguém2677.
§ 1593. A “necessidade” deste vínculo podia provir, ou apenas da natureza, ou
apenas do direito positivo, ou de uma coisa e outra.
§ 1594. As obrigações que provinham apenas da natureza (obrigações meramente
naturais) vinculavam porque, tendo o obrigado consentido na obrigação, a equidade
natural (ou razão natural e da gentes2678) obrigava cada um a cumprir as suas
promessas2679. Mesmo aqui, o que era “natural” não era a liberdade da vontade, mas
o cumprimento das promessas: expressa uma vontade, a equidade ou razão naturais
obrigavam a que se cumprisse. Mas continuava a haver coisas que não se podiam

juristas), não apenas instalou uma nova conceção voluntarista da obrigação, como releu e reinterpretou
a esta luz os textos anteriores.
2672 Cf. Emílio Bussi, La formazione dei dogmi di diritto privato nel diritto commune (diritti reali e diritti di

obligazione), cit., (vol. 2); Reinhard Zimmermann, The law of obligations […], cit.; Raffaele Volante, “I
giuristi e il contrato”, em Trecanni.it (2012) (http://www.treccani.it/enciclopedia/i-giuristi-e-il-
contratto_%28Il_Contributo_italiano_alla_storia_del_Pensiero:_Diritto%29/) (glosadores); Andrea
Massironi, Nell'officina dell'interprete. La qualificazione del contratto nel diritto comune […], cit., (comentadores
e pós-comentadores).
2673 Cf. Lihong Zhang, Contratti innominati nel diritto romano […], cit..

2674 Que alguns entendem ter sido decisivamente preparado pela Segunda Escolástica. Cf. neste

sentido, Wim Decock, Theologians and Contract Law: […], cit., numa narrativa que tende a valorizar os
germes voluntaristas e “liberais” da doutrina jurídica moderna das obrigações e dos contratos.
2675 Cf. a magreza das referências a “obligatio” em Bento Pereira, Promptuarium […], cit;
Agostinho Barbosa, Repertorium […], cit., s. v. “Obligatio”; António Cardoso do Amaral, Liber […],
cit., s. v. “Obligatio”; ou no índice de Manuel Álvares Pegas (v. Manuel Solano do Vale, Index […], cit.,
s. v. “obligatio”).
2676 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit..

2677 “Vinculum iuris quo necessitate astringimur ad alinquem dandum vel faciendum”, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 1.


2678 “Quaedam est inducta ratione natural, vel gentium, quae ex conventione, seu promissione

oritur”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 2.


2679 “Naturalis tantum est illa, quae contrahitur per consensum inter quemcumque capacem
rationis, et ahec obligatio non obligat nisis ex aequitate naturali, qua tenetur unusquisque adimplere
promissa”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 1.

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legitimamente querer, por contrariarem a natureza 2680 ou a justiça2681. Ou que,


podendo ser queridas, não era natural que se exigisse o seu cumprimento, por
exemplo, por terem mudado radicalmente as condições que se verificavam à data
em que se tinha querido2682. Num único caso se entendia que o cumprimento da
promessa se devia manter apesar da torpeza do objeto da obrigação, o das
promessas ratificadas por juramento (e, mesmo assim, apenas no caso de a intenção
torpe ter sido apenas do credor), por aí estar em causa a salvação da alma 2683.
§ 1595. Mas havia uma segunda espécie de obrigações naturais 2684, as que
decorriam apenas do instinto da natureza, despertado por serviços ou benefícios
recebidos, que fazia com que cada um se sentisse naturalmente obrigado a fazer
bem aos que o tivessem beneficiado2685. Manuel Álvares Pegas vai ainda mais longe
no reconhecimento deste âmbito natural das obrigações, ao dizer que se estava
obrigado a fazer tudo o que beneficiasse outrem e não prejudicasse o próprio 2686
§ 1596. Embora Amaral não fale delas neste sítio, a doutrina contemplava ainda
um terceiro género de obrigações naturais, em que a “natureza” (ou seja
considerações sobre a equidade natural das situações) tinha um impacto de outro
tipo: não o de criar uma obrigação, mas antes o de levar o direito civil a limitar os
efeitos de uma promessa, não atribuindo uma ação ao credor, mas apenas um
direito de retenção da prestação. Era o que se passava nos casos em que a
obrigação não era tutelada por uma ação mas dava ao credor, não o direito de a
exigir, mas apenas o de reter o que lhe fosse pago voluntariamente. Isto acontecia
com as obrigações do pupilo, já capaz de entender (puber), contraídas sem
intervenção do tutor ou curador; com as fianças dadas pela mulher, em
contravenção com o senatusconsulto Velleianum2687; ou do menor que tivesse
contraído mútuo, contra as disposições do senatusconsulto Macedonianum2688; ou das
obrigações acessórias estabelecidas num contrato reprovado pelo direito (Ord.
fil.4,48,1). Embora estas obrigações não dessem origem a uma ação, pelo que o
credor não as podia exigir em juízo, tinham certos efeitos das obrigações,
nomeadamente, o de impedir o devedor natural que tivesse pago espontaneamente
de repetir o que pagou, como indevido (condictio indebiti) ou o de autorizar o credor a
compensar com este crédito natural um débito civil que tivesse em relação ao

2680 I.e. havia objetos impossíveis que invalidavam a obrigação (ad impossibilita nemo cogitur; D.50, 17,

135: [Ulpianus] “Ea, quae dari impossibilia sunt vel quae in rerum natura non sunt, pro non adiectis
habentur”), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 10.
2681 De pacto ou promessa torpe não surge nenhuma obrigação, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., n. 14.


2682 “Obligatio generalis semper censetur continere tacitam conditionem, si res in eodem statu

persistat, quo era tempore contractus”, pelo que a obrigação não valia para uma circunstância nova e
não pensada, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 12.
2683 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 14.

2684 A mesma sistematização aparece em S. Tomás, Summa theol. 2a.2ae. qu. 106, arts. 4 a 6.

2685 “Secundam est obligatio naturalis, aque causatur solum instinctu naturae, propter servitia, seu

benefitia, & ita naturaliter obligamur benefacere benefacienti nobis”, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., n. 2.
2686 “Quod mihi prodest, & tibi non nocet, teneris facere”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria

[…], cit., n. tomo 6, ad 1, 68, gl. 27, n. 28 (p. 71).


2687 Este senatusconsulto (46 d.C.) proibia as mulheres de serem fiadoras.

2688 Este senatusconsulto (27 a.C, ) proibia os menores de pedirem dinheiro emprestado (mútuo).

466
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mesmo devedor2689.
§ 1597. Até que ponto é que o direito civil acolhia estas consequências da
equidade ou razão natural, atribuindo aos credores uma ação ? Ou seja, que relação
havia entre as obrigações naturais e as obrigações civis ?
§ 1598. Do primeiro grupo de obrigações naturais, umas eram corroboradas
pelo direito civil, dando lugar a uma ação, como no caso de uma convenção
prevista pelo direito positivo (legitima conventio)2690. Outras não tinham este amparo
do direito civil, não dispondo portanto o credor de uma ação para fazer cumprir a
obrigação2691.
§ 1599. As obrigações naturais do segundo grupo (as que provinham do
benefício e da gratidão) nem seriam rigorosamente jurídicas, pois o seu fundamento
era esse “instinto da natureza”, mas nem sequer a equidade ou razão natural ou das
gentes. Tratamos delas a propósito do estatuto jurídico dos atos gratuitos ou
liberais, aí se vendo que elas geram, não rigorosamente um débito (e uma obligatio),
mas um quasi-debitum (e uma quasi obligatio ou obligatio antidoralis). A estas obrigações
chamava-se antidorais ou remuneratórias, sendo geradas, não por uma convenção,
mas pelo próprio facto do benefício, em virtude de um impulso natural que
obrigava à gratidão e à remuneração. Como obrigação natural, este vínculo obrigava
todas as pessoas capazes de razão, independentemente do seu estado (mesmo os
escravos ), que tivessem recebido um favor ou benefício: uma doação, a liberdade,
etc.. Ao passo que as obrigações civis não obrigavam senão pessoas capazes de
vontade, estas recaíam sobre capazes e incapazes, todos eles sensíveis aos instintos
naturais. Por vezes, o vínculo antidoral seria tão forte que daria origem a uma ação
para exigir a prestação remuneratória (“dava ação”). O exemplo mais notável, no
direito comum, era o da retribuição, por meio de mercês, dos serviços prestados
pelos vassalos. Outras vezes, a obrigação antidoral apenas tinha como efeito
impedir o concedente de retirar a concessão (como se ela fosse gratuita ou
indevida), tornando a doação (”remuneratória”) irrevogável pelo doador. Ideia que
também se aplicava no contexto das doações feitas em remuneração de serviços,
nomeadamente pelos reis.
§ 1600. Excecionalmente, havia, em contrapartida, obrigações que apenas
obrigavam por direito civil, não gozando de qualquer obrigatoriedade no plano da
razão ou dos instintos naturais. Era o caso de alguém ter contraído uma obrigação
formalmente válida perante o direito, mas que se justificava perante a equidade ou

2689 António Cardoso do Amaral, Liber […]¸ v. “Obligatio”, n. 6-8; Arnold Vinnius,
Commentarium […], cit., ad I. 3, 14, n. 8, pg. 696 in cap.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...],
cit., 4, 1, 5. Outras obrigações do mesmo tipo eram as que impendiam sobre o testamenteiro de um
testamento nulo por falta de forma quanto ao cumprimento das disposições testamentárias (Arnold
Vinnius, Commentarium […], cit., ad 3, 14, n.8); ou a de pagar as dívidas de jogo (v. António Cardoso
do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Ludus”, n. 4)
2690 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 2.

2691 Os exemplos destes últimos casos relacionavam-se os dois com obrigações criadas por pactos

que, na tradição do direito romano, não davam origem a ações de direito civil (actiones legis), mas apenas
– quando muito – a exceções (D. 2, 14 De pactis, 1). Era o caso de se apor a um contrato um pacto pelo
qual o credor não pudesse reclamar o crédito em juízo (pacto de non petendo), ficando o credor obrigado
apenas naturalmente a não chamar o devedor a juízo (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n.
2); ou o caso de alguém se ter obrigado ao pagamento de certa quantia por um pacto nu (António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 2).

467
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os afetos naturais2692.
§ 1601. Todavia, o mais comum eram as tais obrigações naturais corroboradas
pelo direito civil – tanto naturais como civis -, surgidas quando alguém se tivesse
obrigado tendo capacidade para isso e fazendo-o com as solenidades exigidas pelo
direito. Ficando então vinculado juridicamente e sujeito aos meios de
constrangimento do direito (nomeadamente, a uma ação). Esta obrigação perante o
direito civil fazia-se por contrato (ex contractu), por delito (ex delicto), por uma
situação que o direito tratava como contrato (ex quasi contractu) ou como delito (ex
quasi delicto)2693.
§ 1602. Compreendendo uma gama tão vasta de vínculos, difícil era que a
obrigação suscitasse uma teoria geral, como a que veio a aparecer mais tarde. Já nas
Institutiones, de Justiniano, o parentesco dos temas tratados nos preceitos dos títulos
dedicados às obrigações é prejudicado pelas divisões destas em espécies (re, verbis,
litteris, consensu) com um regime jurídico muito diferente2694. No citado verbete
“Obligatio”, António Cardoso do Amaral apenas consegue reunir, neste âmbito
genérico, duas regras sobre capacidade obrigacional 2695, e menos de meia dúzia
sobre termo e mora das obrigações2696. O resto dos temas gerais seriam tratados
noutros verbetes (contractus2697, debitum) ou sob os nomes dos vários contratos
(emptio venditio, locatio conductio, societas, mandatus, commodatum, depositum, etc.).
6.3 A ascensão do consensualismo.
§ 1603. Entre estes temas tratados por António Cardoso do Amaral no verbete
“obligatio” não estão o das condições da eficácia jurídica da vontade. Isso também
torna ainda problemático que o consensualismo fosse o eixo principal da
dogmáticas das obrigações. De facto, se o assentimento comum (consenso) era um
elemento importante neste domínio, igualmente importantes eram outros
elementos que podiam fundamentar o vínculo obrigacional ou limitar a eficácia do
consenso e que também eles apareciam muito em destaque no universo textual tido
como referência para a dogmática jurídica moderna 2698. Entre estes elementos
contam-se: (i) a observância de fórmulas e rituais, como na stipulatio; (ii) a justiça
substancial das promessas, como o estabelecimento de um preço justo; (iii) a
consideração de cláusulas substanciais ou naturais de cada tipo contratual
(substantialia e naturalia contractus); (iv) a naturalidade de certos instintos como a
gratidão; (v) uma certa lógica material das situações (como a entrega de um objeto a
outrem, na expetativa de o receber de volta, a gestão de negócios de outrem); (vi) a

2692 O exemplo é o de alguém que, na expectativa de um futuro recebimento que acabou por não

ter lugar, fez um documento em que declarou ter recebido, comprometendo-se a pagar, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 4.
2693 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., ns. 5 e 6.

2694 Cf. I.3, 14 ss..

2695 Dos escravos, quanto às obrigações naturais, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n.

10; dos escravos e filhos família quanto às obrigações civis, ibid. n. 21.
2696 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., ns. 15 a 18.

2697 O próprio Digesto continha um texto que incitava à equiparação entre obrigação e contrato:

D.5, 1, 20: [Paulus], “Omnem obligationem pro contractu habendam existimandum est, ut ubicumque
aliquis obligetur, et contrahi videatur […]”.
2698 Nomeadamente, o texto das Institutiones, 3, 13 a 3, 27.

468
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

produção de danos, não por dolo, mas com culpa grosseira. Nada disto tinha a ver
com a vontade; muitas vezes, contrariaria mesmo a vontade. Mas tinha como
consequência gerar obrigações) (v. cap. 6.6).
§ 1604. Fosse como fosse, a vontade de se obrigar havia de ser válida
(“livremente consentida”, cf. Ord. fil.3,34,1;Ord. fil.4,71) ou seja, isenta de vícios da
vontade, como o erro, o dolo ou a coação 2699. Os celebrantes haviam de ter
suficientes mens et memoria2700. A simples perturbação do espírito, como a causa pela
ira momentânea, prejudicava a sua validade2701.
§ 1605. Assim, na maior parte dos tipos obrigacionais – as que derivavam de
pactos e contratos - o consentimento - e, portanto, a vontade - eram elementos
realmente constituintes e isto foi provocando uma progressiva relacionação da
obrigação com a vontade (consensualismo) que teve consequência dogmáticas2702,
desde logo a de que apenas se podiam obrigar os que podiam consentir e dispor das
suas coisas. O que excluía os menores sem consentimento dos tutores 2703 e os
restantes incapazes2704. Em contrapartida, o princípio da vontade admitia como
válidas as obrigações entre pais e filhos, ao contrário do que acontecia no direito
romano (por aí se entender que constituíam a mesma pessoa).
6.4 Os vícios da vontade.
§ 1606. A averiguação das condições psicológicas da formação da vontade não
tinha, no direito comum, a centralidade que hoje tem quando se trata de determinar
a validade dos atos jurídicos de uma pessoa. Isto era uma consequência do facto de
os efeitos jurídicos dos atos das pessoas tenderem a ser considerados como algo
que estava determinado objetivamente, por efeito direto da natureza das coisas ou
da realização de alguma formalidade ou ritual. Este formalismo, que era típico do
direito romano mais antigo, foi sendo progressivamente substituído pela ideia de
que os efeitos dos atos das pessoas decorriam de terem sido queridos por elas. Por
isso, tornou-se progressivamente mais importante averiguar como se tinha formado
essa vontade, se por um processo psicológico natural ou, pelo contrário, por um
processo viciado por ocorrências que impediam que se falasse de uma vontade,
como acontecia quando alguém decidia sob o efeito da ignorância (ignorantia, error),
de um engano (dolus), de uma ameaça (metus). Estas circunstâncias patológicas
constituíam vícios da vontade. Uma circunstância contígua a estas era a de alguém
ter querido certos efeitos mas, para defraudar alguma proibição ou impossibilidade
jurídica, ter declarado querer outros (simulatio, fraus); aqui, não tinha ocorrido

2699 Os vícios da vontade são tratados em António Cardoso do Amaral (Liber […], cit.)
pontualmente nos verbetes gerais de “Obligatio” e “Contractus” ou, sobretudo, sob os respetivos
nomes (error, dolus-fraus, metus). Em Pascoal de Melo, a propósito dos contratos comerciais, no livro I
das Institutiones (1, 8, 5 ss.).
2700 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Contractus”, n. 15.

2701 “Contractus calore iracundiae celebratus non valet”, a não ser que confirmado, excetuava-se

um contrato a favor de causas piedosas, que valia, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Contractus”, cit., 25
2702 Sobre a ascensão do consensualismo ou voluntarismo, i.e. da ideia de que a fonte das
obrigações é a vontade, v. Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], cit., 405 ss..
2703 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 2, 13, 5; 2, 4, 14.

2704 Furiosos, mentecaptos, pródigos, impúberes, menores, filhos-familias; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 1, 9;4, 2, 3.

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nenhum vício de vontade, mas existia uma discrepância entre a vontade explícita,
declarada, e a vontade real, ocultada.
§ 1607. Não admira, em face desta eficácia apenas lateral da vontade na
produção de efeitos de direito, que não encontremos no direito comum uma teoria
unitária dos hoje chamados vícios de vontade, nem sequer um “lugar” único para
tratar do tema. Cada negócio jurídico era afetado diferentemente por várias
circunstâncias2705. Também não admira que o “vício” não consistisse apenas numa
malformação puramente psicológica, digamos, da vontade, mas incluísse alguns
elementos “morais”. Não se tratava apenas de que certa vontade se tivesse formado
em virtude de uma circunstância anormal (um erro, uma ameaça externa), mas
também de que ela se devesse a um comportamento intelectual inadequado, como
o descuido, a leviandade, a omissão de um dever de indagação ou de reflexão.
Finalmente, a diferente relevância da vontade na produção de efeitos jurídicos
explica a diversidade dos efeitos jurídicos dos diversos vícios de vontade em cada
negócio. Nuns – os mais formais, considerados como descendentes dos negócios
“de direito estrito” (stricti iuris) -, certos vícios de vontade, como a ignorância, eram
menos relevantes; noutros – menos formais, descendentes dos negócios contraídos
sob a égide da “boa fé” (bonae fidei) – esses mesmos vícios relevavam. Nuns caos,
davam lugar à dissolução do negócio (restitutio in integram)2706. Noutros apenas
punham à disposição da parte cuja vontade fosse imperfeita uma exceptio, para
inutilizar a actio da outra parte. No ius commune mais tardio, caída que fora a
distinção entre negócios de direito estrito e de boa fé e não sendo mais usado o
processo romano com os seus ritos, fórmulas e expedientes, esta diversidade de
regimes passou a fazer muito menos sentido do que a construção de uma teoria
geral dos vícios de vontade2707. Mas esta tardou muito em surgir, continuando a
matéria a ser tratada dispersamente e com recurso às antigas distinções romanistas.
6.4.1 A ignorância ou erro.
§ 1608. O defeito menos grave da vontade era a ignorância (ignorantia),
relevante, do ponto de vista do direito, em dois contextos. Um era o da vontade
negocial, em que a invocação da ignorância (desculpável) podia favorecer aquele
que tivesse concordado com algo que não queria, pelo que o erro tinha efeitos
positivos (in bona parte). Um outro era o da responsabilidade por danos, em que a
ignorância (também desculpável) podia excluir a imputação da culpa ao agente
causador.
§ 1609. A atual dogmática jurídica prefere falar de erro a falar de ignorância,

2705 Cf. Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], I. 413. Na origem deste regime variável de

ineficácia dos negócios jurídicos estava o direito romano, em que, por exemplo, os chamados vícios de
vontade são tratados de forma dispersa e com consequências diversas, que vão desde a nulidade ipso iure
(originando a denegação da ação), à dissolução por uma restitutio in integrum ou à inutilização da actio do
credor por uma exceptio. A sede textual nas fontes também é dispersa. No Digesto, a ignorância é tratada
em D.22, 6, De ignorantia iuris et facti; o dolo, em D.4.3 De dolo malo; a cocção em D.4, 2, Quod metus
causa gestum erit.
2706 Sobre a distinção entre contratos de direito estrito e contratos de boa fé, v. adiante cap. 6.9.2.

2707 Em que o erro, o dolo, a coação e, porventura, a simulação fossem tratadas conjuntamente.

Em que se distinguissem os efeitos em termos de categorias gerais, como “nulidade”, “anulabilidade”,


“ineficácia”, “rescisão”, pleno iure (ou ipso facto) ou [tantum] ope sententia judicis, ex tunc ou ex nunc, erga
omnes ou apenas relativa

470
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

exigindo, por isso, um conhecimento positivo mas falso para invalidar a vontade
negocial. O direito comum falava antes de ignorância, bastando-se com um puro
desconhecimento2708.
§ 1610. O juízo sobre o estado de ignorância incorporava não apenas uma
constatação de que alguém não sabia algo – o simples desconhecimento (nescientia) -
, mas ainda um juízo de valor sobre esse estado de desconhecimento. A ignorância
era o desconhecimento de algo que se devia conhecer. A literatura jurídica 2709
distinguia, na verdade, entre: (i) o mero desconhecimento (nescientia, nescire), que
tanto podia prejudicar o que não sabia, se este devia saber (in mala parte)2710, como
protegê-lo (in bona parte), se ele não devia saber2711; (ii) a ignorância, que era um
desconhecimento indevido2712, que afetava negativamente (desfavoravelmente, in
mala parte) a situação do que não sabia, impedindo-o de alegar essa ignorância e
valer-se dela como escusa; (iii); o erro, um estado de conhecimento, mas
equivocado2713; (iv) a hesitação (titubatio), uma incapacidade de se decidir entre dois
conhecimentos diferentes ou contraditórios2714.
§ 1611. De um ponto de vista consensualista, a ignorância devia levar à
nulidade do negócio, visto não se poder dizer que consentia quem ignorava ou
laborava em erro. Esta era uma das leituras possíveis de um texto muito conhecido
do Digesto (D.2,14,1,32715), em que se dizia que não havia um pacto sem uma
convenção (i.e. sem uma “reunião” [con+venire] de vontades: “[…] nullum esse
contractum, nullam obligationem, quae non habeat in se conventionem, sive re sive
verbis fiat […]”) e que, sem uma intenção comum, não se podia falar de convenção
(“[…] ita et qui ex diversis animi motibus in unum consentiunt […]”. A
generalidade da afirmação de que um contrato e uma obrigação não podiam valer
sem consenso é, porém, muito simplificadora, porque o mesmo texto logo
acrescenta que o tal consentimento prévio podia consistir em palavras (verbis), mas
também no recebimento de uma coisa que devesse ser restituída (re)2716. Embora se

2708 “Julgava algo que não era assim” (e.g. “Julgava que o objeto era do vendedor, que as moedas

eram autênticas, que a noiva era virgem”) vs. “Não julgava nem sabia nada”. O primeiro requisito para
poder invocar o erro é mais exigente do que o segundo.
2709 Cf. v.g. António de Nebrija, Vocabularium […], cit., Cf. “Ignorare”.

2710 Neste caso, não podia invocar o desconhecimento, para se escusar. Equivalia à ignorância em

sentido estrito.
2711 Neste caso, podia invocar o desconhecimento.

2712 “Ignorantia proprie est ignorare illud, quod quis tenetur scire”, António Cardoso do Amaral,

Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 1 (de direito divino, natural, canónico e civil).
2713 “Error autem est cum aliud est quam credat”, Antonio de Nebrija, Vocabularium […], v.

“Ignorare”.
2714 “Diversa vel contraria scire videor, nec alicui eorum magis animum aplico”, António de

Nebrija, Vocabularium […], v. “Ignorare”.


2715 “3. Conventionis verbum generale est ad omnia pertinens, de quibus negotii contrahendi

transigendique causa consentiunt qui inter se agunt: nam sicuti convenire dicuntur qui ex diversis locis in
unum locum colliguntur et veniunt, ita et qui ex diversis animi motibus in unum consentiunt, id est in
unam sententiam decurrunt. Adeo autem conventionis nomen generale est, ut eleganter dicat pedius
nullum esse contractum, nullam obligationem, quae non habeat in se conventionem, sive re sive verbis
fiat: nam et stipulatio, quae verbis fit, nisi habeat consensum, nulla est”.
2716 Outros textos do Digesto de sentido consensualista: D.44, 7, 55; D.50, 17, 116 (refere-se à

força e ao temor (pr.: “Nihil consensui tam contrarium est, qui ac bonae fidei iudicia sustinet, quam vis
atque metus”) e ao erro (n. 2: “Non videntur qui errant consentire”).

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encontrem, no direito comum, afirmações genéricas que estabelecem que a falta de


consenso dava origem à nulidade2717, a verdade é que o leque de consequências era,
como já se disse, mais diversificado, indo da plena reconstituição do estado anterior
(restitutio in integrum) a meios processuais de defesa (exceptiones) ou até à pura e
simples irrelevância. A distinção das várias situações e respetivas consequências
dependia da qualidade da pessoa que invocava a ignorância, da natureza da
ignorância, do objeto sobre que esta incidia, do tipo de negócio em que ela ocorria.
§ 1612. Para afetar o contrato, a ignorância devia ter sido decisiva na própria
decisão de celebrar aquele contrato (erro sobre a substantia contractus) l2718) com
aquela pessoa (erro sobre qualidades essenciais da pessoa do outro contraente 2719),
e não apenas nos motivos (psicológicos) para contratar ou numa das circunstâncias
acessória do contrato (acessoria contractus, como o preço, por exemplo).
§ 1613. A ignorância podia ser sobre o direito ou sobre os factos 2720. A primeira
incidia sobre o conteúdo dos direitos divino ou natural, canónico ou civil. Como
todas as pessoas deviam ter algum conhecimento destes direitos, ou pela sua
evidência ou pela natureza política dos homens, a ignorância sobre estes direitos era
culposa e não relevava2721. Já se a ignorância incidia sobre alguma norma particular
(statutum) de direito local apenas era irrelevante para os locais, que tinham obrigação
de a conhecer, mas não já para os estrangeiros 2722. Esta irrelevância da ignorância
do direito não valia para aqueles que tinham uma boa escusa para não o
conhecerem, como os impúberes, os menores e dos soldados 2723. Mas também os
rústicos, pela sua simplicidade de espírito 2724, ou as mulheres, pois o direito devia
proteger a sua “fragilidade”2725.
§ 1614. A ignorância sobre os factos também dependia da qualidade das
pessoas, nos termos anteriores. Mas dependia ainda da sua natureza 2726. Os juristas
distinguiam, a este propósito, entre: (i) a ignorância fingida (afetada, falsa), dos que
ignoravam devendo conhecer, podendo e devendo ser evitada e não sendo
relevante como escusa2727; (ii) a crassa ou supina, dos que ignoravam aquilo que o

2717 Na esteira de textos romanos: D.5, 1, 2, pr. (erro sobre a jurisdição do juiz); D.44, 7, 57;

D.50, 17, 116, 2 (ambos bastante explícitos).


2718 Cf. D.18, 1, 16 e 34 (sobre o objeto da compra e venda)

2719 Como o seu estado, as suas qualidades, sempre que essenciais para o objeto do contrato (v.g.

nobreza, perícia, virgindade).


2720 Fonte romana: D.22, 6, De ignorantia facti et iuris.

2721 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 2-3 (mas já relevava se o

erro tivesse sido provocado por outrem: “dolum tamen bene excusat”, ibid. ).
2722 A não ser que o estatuto fosse conforme ao direito comum, ibid..

2723 Por estarem longe de casa e não terem notícias da terra (a fonte para esta inclusão dos soldados

entre os ignorantes protegidos é D.22, 6, 9, 1); mas era duvidoso que pudessem invocar a ignorância
do direito natural, comum a todos os seres humanos.
2724 “Ubi non datur malicia, est parcendum rustici simplicitati”, António Cardoso do Amaral,

Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 5.


2725 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ignorantia”, ns. 4-6.

2726 O mesmo se pode dizer da ignorância de direito. Só que esta, salvo nos casos excecionais

antes referidos, era considerada sempre como ou fingida ou supina.


2727 “Quis ignorat quod scire potuit et teneatur, sed noluit”, António Cardoso do Amaral, Liber

[…], cit., v. “Ignorantia”, n. 7.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

comum das pessoas da sua qualidade sabia 2728; também não relevava; e (iii) a
ignorância provável ou invencível, comum e geral, de coisas que normalmente não
era preciso saber, mesmo pelos que fossem cuidadosos e diligentes; esta, sim,
relevante como escusa. Mais grave ainda do que ignorância fingida era o erro
intencional ou fraude, em que se simulava querer uma coisa, quando na verdade se
queria outra, para enganar o declaratário (quem não podia doar, dizia que vendia;
quem não podia prestar fiança, declarava que devia2729).
§ 1615. Determinar, nos casos concretos, se tinha havido ignorância e de que
grau, era matéria de prova. Considerava-se provável e presumível a ignorância
acerca de facto alheio, a não ser que fosse público e muitas vezes tratado;
improvável, a que versasse algo que a maior parte das pessoas sabia ou facto
próprio e não muito antigo2730. Havia uma maior exigência – e, portanto, uma mais
vasta irrelevância do erro como escusa - se o que se enganou devesse averiguar
melhor, em razão do seu ofício, tal como acontecia com quem devesse aprovar
alguém para ordens, ofício ou benefício, quanto às qualidades dos candidatos 2731.
Como facto interno da consciência, o estado de ignorância podia provar-se por
juramento do que a invocasse, entendendo-se que a recusa em jurar presumia o
conhecimento2732.
§ 1616. Em todos os casos em que, segundo os anteriores critérios, a ignorância
fosse relevante, funcionava porém a regra de que ela não seria de atender nos
contratos de direito estrito ou sempre que a sua invocação originasse um lucro para
quem a tivesse invocado2733. Verifica-se, assim, a já referida limitação do princípio
da vontade por razões jurídicas objetivas: apesar de uma vontade sã não ter
existido, havia outras razões – substanciais ou formais – para que o negócio
subsistisse. Mais tarde, os autores jusracionalistas irão procurar acomodar a
proteção do contraente ignorante com a dos outros contraentes, evitando que estes
vissem prejudicadas as suas expectativas negociais por um erro alheio, mesmo que
desculpável2734.
§ 1617. À medida que o direito se foi desformalizando e que se foram tornando
obsoletas as distinções entre as convenções com base nas suas formalidades (v.g.
contratos de direito estrito e contratos de boa fé), ou se foi deixando de usar a
ordem processual romana e caindo em desuso os seus institutos 2735, as
consequências da ignorância começaram a estar cada vez mais ligadas ao modo
como ela afetava a vontade e a apontar para a nulidade. Porém, as antigas distinções
não deixavam de ser recordadas e de influenciar a solução dos casos. Ao mesmo
tempo que se acrescentaram, no último direito comum racionalista, formas de
compensar o declaratário pelos prejuízos que lhe pudessem advir da relevância do

2728 “Est illa qua quis ignorat illud quod omnes suae qualitatis scire solent, et facile poterat, sed

scire non curavit”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 7.
2729 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. "Dolus et fraus", n. 16.

2730 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 9 e 11.

2731 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 10.

2732 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 11.

2733 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., v. “Ignorantia”, n. 6.

2734 Cf. Helmut Coing, Europäisches Privatrecht […], I. 418 ss..

2735 Cf. g. alternativas processuais que tinham a mesma consequência processual de inutilização da

pretensão, como a denegatio actionis, a restitutio in integrum ou a exceptio.

473
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erro.
6.4.2 O dolo.
§ 1618. O dolo podia ser descrito como um erro provocado por uma
artimanha, falsidade ou maquinação de outrem destinada a enganar (“omnis
calliditas, falsitas, et machinatio adhibita ad alterum circunveniendum, fallendum &
decipiendum, cum aliud simulatur, & aliud agitur”)2736. Embora em todos os
contratos cada parte tentasse favorecer os seus interesses, encarecendo a sua
prestação e desmerecendo a da outra parte, e sempre houvesse, neste sentido
genérico, algum intuito de influenciar o outro contraente 2737). Tal como no erro,
entendia-se que não se podia falar, aqui, em consentimento, pelo que o dolo podia
ser invocado pelo enganado para invalidar o contrato 2738.
§ 1619. Em princípio, o dolo tornava nulos ipso iure2739 os contratos, pelo menos
os menos formais (i.e. os “de boa fé”, no sentido romano), desde que a manobra
dolosa incidisse sobre a decisão de contratar, e não apenas se se quisesse enganar
quanto a uma cláusula, v.g. o preço2740. No dolo, o regime de invalidação do
contrato era mais agressivo, pois não havia que acautelar tanto o interesse da outra
parte, já que, normalmente, esta conhecia o vício da vontade da vítima, pois fora ela
que o causara, com as suas artimanhas. No entanto, como no erro, esta linha geral
de orientação podia sofrer desmentidos. Desde logo, a vítima podia ter interesse em
manter o contrato e, por isso, querer que ele valesse 2741. Por outro lado, o dolo
podia ser de terceiro, caso em que, ainda que tivesse dado causa ao contrato, não
impedia que este valesse2742. Também nos contratos mais formais (i.e. “de direito
estrito”), o dolo não os anulava ipso iure, dando apenas direito a uma exceptio2743. O
dolo não relevava, ainda, nos contratos em que se aceitavam bens espirituais, pois
não se podia entender ter sido enganado aquele que, no fim de contas, tenha
querido o melhor dos fins2744.
§ 1620. O dolo, como intenção de enganar, podia ocorrer nos contratos, nos
testamentos e na feitura das leis ou na sua interpretação, respetivamente sobre o
legislador e sobre o intérprete, quando alguém induzia a promulgar certa lei 2745 ou a

2736 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Dolus et fraus”, n. 1. Fontes romanas:

D.4, 3, De dolo malo; D.44, 4, De exceptio doli. A definição latina é do jurista romano Labeo, em D.4, 3,
1, 2). No direito português, v. Ord. fil. 3, 34, 1; 3, 59, 25.
2737 Falava-se, então, de dolus bonus (D.4, 3, 1, 3).

2738 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, n. 2.

2739 A nulidade ipso iure correspondia à denegação da ação.

2740 Também se discutia se o dolo dava origem a uma ação (para pedir a nulidade do contrato) ou

se apenas podia fundar uma exceção (para inutilizar a ação a pedir o cumprimento), António Cardoso
do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, ns. 18 e 21.
2741 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, n. 2

2742 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, n. 4 ss..

2743 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, n. 7; v. “Contractus”,

ns. 18 e 21.
2744 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 19.

2745 Por exemplo, dando ao legislador informações falsas (obreptio) ou subtraindo-lhe informações

verdadeiras (subreptio). Neste caso, o vício era arguível não apenas pelo enganado, mas por qualquer
pessoa que fosse prejudicada por aquela lei.

474
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

interpretar o direito de certa maneira2746. Em sentido diferente, o dolo como


intenção, era necessário nos delitos2747.
§ 1621. O dolo, tal como a fraude, provava-se por conjeturas2748.
6.4.3 A fraude ou simulação.
§ 1622. Próximo do dolo estava a fraude, um engano dirigido a terceiros e não a
uma das partes do negócio, como o dolo. A fraude, também era designada por
simulação2749, era uma manobra pela qual se mostrava exteriormente querer algo
que não correspondia às verdadeiras intenções das partes 2750. Distinguia-se do erro,
tanto porque incluía a intenção de enganar, como porque reunia o acordo das
partes e, portanto, dela não se podia dizer que afetava a convenção por falta de
consenso (na verdade, era um erro combinado). Distinguia-se do dolo, porque
aquele que se queria enganar não era parte no negócio, mas um terceiro 2751. Os
autores distinguiam várias espécies de simulação: aquela em que se simulava um
negócio que realmente não se queria (actus imaginarius, corpus sine spiritu)2752; aquele
em que se simulava fazer um contrato e na verdade se queria e se fazia outro 2753;
ou, finalmente, aquele em que se interpunha um terceiro capaz para realizar, como
testa de ferro, um negócio que se queria celebrar com alguém inábil para isso 2754.
Outros faziam classificações mais detalhadas2755
§ 1623. A simulação não se presumia, antes se devia provar por indícios ou
conjeturas2756, não apenas leves, mas fortes ou veementes 2757.
§ 1624. A simulação era relevante quando invocada por terceiros prejudicados,
como o fisco ou os credores, uns e outros defraudados pelo negócio simulado.
Nestes casos, os contratos eram nulos ipso iure2758 ou dava-se aos prejudicados uma

2746 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, n. 13.
2747 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “ Dolus et fraus”, 10.
2748 Agostinho Barbosa, Repertorium […], v. “Fraus”. No caso da fraude, ou simulação, uma

conjetura baseava-se na proximidade de sangue ou amizade entre os conluiados (parentes, domésticos,


criados), ibid.; Melchior Febo, Decisiones […], I. dec. 37, n. 3.
2749 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Fraus”, 1767-1769; maior desenvolvimento

em Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, per totam; Fernando Rebelo, Opus de
obligationibus iustitiae [...], cit., pt. 2, liv. 2, qu. 6, sect. 1. No direito português, Ord. fil. 4, 71 (e
respetivo comentário de Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad. cit., ordenação).
2750 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 1: “Quaedam machinatio, per quam

aliud exterius ostenditur, aliud vero intrinsecus intendunt partes”.


2751 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 1.

2752 Simulam uma venda ou doação, apenas para agradar a terceiro; ou para defraudar os credores

do vendedor/doador.
2753 Quero dar uma fiança, mas coobrigo-me como devedor principal. Quero contrair uma usura,

mas contrato um censo consignativo ou uma venda com pacto de retrovendendo.


2754 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 2.

2755 Ex.: 1. Uma coisa por outra; 2. Uma pessoa por outra; 3. um contrato por outro; 4. um modo

por outro; 5. um nome por outro; 6. um tempo por outro, 7. uma quantidade por outra, 8. um facto
por outro, 9. um lugar por outro, 10. um sinal por outro, 11. um juramento por outro. Cf. Álvaro
Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 12.
2756 No caso da fraude, ou simulação, a proximidade de sangue ou amizade entre os conluiados

(parentes, domésticos, criados), v. Agostinho Barbosa, Repertorium […], cit., s. v. “Fraus”; Melchior
Febo, Decisiones […], I. dec. 37, n. 3.
2757 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, ns. 16 a 24.

2758 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 30; além de ser pecado, como mentira

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exceptio (ob fraudem creditoris) 2759. No caso de não haver prejuízo de terceiros 2760, o
contrato simulado era, em princípio, válido 2761, a não ser que o negócio escondido
fosse contra o direito2762 ou imoral (turpis)2763.
6.4.4 A coação.
§ 1625. A coação consistia numa ansiedade ou tremor do espírito provocado
por uma ameaça (mina) de mal presente ou futuro2764. O padrão para avaliar as
seriedade e gravidade da ameaça – e, portanto, a sua relevância para este efeito de
rescindir um negócio jurídico - era o de uma pessoa “constante” (vir/mulier
constans)2765. O simples temor reverencial, habitual no contexto das relações
domésticas (entre marido e mulher ou entre patrono e libertos), as ameaças de
brincadeira, as improváveis ou aquelas que não poderiam ser levadas a cabo, não
eram relevantes2766. Por outro lado, o sofrimento com que se ameaçava tinha que
ser grande, implicando a morte ou tortura física (cruciatum salutis, aut corporis)2767, a
liberdade ou a perda de todos os bens ou da maior parte deles 2768. Finalmente, a
ameaça devia ser injusta, ou seja, o mal não podia ser um direito de quem
ameaçava, como se alguém fosse ameaçado pela autoridade eclesiástica competente
com uma excomunhão que tivesse merecido em virtude do seu comportamento ou,
pelo seu credor, ou com a execução de uma dívida que tivesse contraído. Nestes
casos, bem se podia dizer que o coacto se deveria queixar de si mesmo, pois se
tinha posto numa situação de fragilidade2769. A doutrina referia, como exemplos, o
caso do devedor que era ameaçado com a cobrança da dívida ou da liberta que era
ameaçada pelo patrono de ser reescravizada se não lhe desse algo que tinha
prometido; mas notava também que não era este o caso do adúltero ou ladrão
apanhado em flagrante e ameaçado de morte pelo marido ou dono das coisas, já

que era (ibid. n. 40).


2759 Fonte: D.42.8 Quae in fraudem creditorum facta sunt ut restituantur.

2760 Era o caso de contratos simulados feitos para escapar a uma ameaça ou apenas para ostentação

(honoris causa: ex. fingir fazer uma doação vultuosa ou dar um grande dote, apenas para presumir
riqueza), Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, n. 11.
2761 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154, ns. 5 e 6. Entre as partes, sendo válido o

negócio que realmente queriam, era este que valia, convertendo-se um contrato no outro; sendo
inválido o negócio escondido, valia o simulado, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 154,
n. 3.
2762 Uma proibição legal, como a proibição de as mulheres prestarem fiança, ou de os filhos

família contraírem empréstimos em dinheiro; uma consequência fiscal, como a fraude sobre o preço nos
impostos calculados sobre o valor da coisa alienada (sisas, dízimas).
2763 Na verdade, o contrato simulado para prejudicar terceiro caía nesta categoria.

2764 “Metus est instantis, vel futuri periculi trepidatio mentis”. Diferia da violência efetiva, ,

António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 1.


2765 Não relevando, em contrapartida, o medo das pessoas assustadiças ou nervosas, António

Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 10.


2766 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 130, n. 21; António da Gama, Decisiones […], cit.,

dec. 250, n. 3; todavia, o medo reverencial chegava para rescindir um negócio em que ocorresse uma
lesão enorme, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 3.
2767 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 250, n. 3.

2768 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 2.

2769 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 4.

476
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

que a imposição da pena não competia a este último2770.


§ 1626. O contrato, negócio jurídico ou ato judicial (testemunho, coação),
realizado numa situação de temor justificado (ob metu justo et probabile) podia ser
rescindido por meio de uma restitutio in integrum (ob metu)2771. Era o caso do contrato
entre o preso e aquele que o tivesse mandado prender ou sob cuja custódia
estava2772. Para além disso, a coação era um ato ilícito e um pecado 2773, não podia
ser arguida pelo autor dela e obrigava à restituição de tudo quanto se tivesse
extorquido. De forma correspondente, a abstenção de realizar certos atos podia
também ser suprida, se se provasse que tinha sido provocada por coação. O caso
típico era o da não apelação, sempre que tivesse sido devida a ameaças do juiz ou
da outra parte para que não se recorresse2774. Não se encontra nas fontes referência
a idêntica relevância no caso de um coacto não contratar ou não testemunhar.
§ 1627. A coação devia ser arguida no prazo de um ano, pois tal era o prazo
para a dedução das ações pretórias2775.
§ 1628. O metus purgava-se pela confirmação livre do ato2776.
§ 1629. A velha distinção entre negócios mais formais (stricti iuris) e menos
formais (bonae fidei) continuava a pesar sobre a doutrina, havendo quem continuasse
a afirmar que os contratos (por oposição aos meros pactos) não podiam ser
rescindidos por coação2777. Todavia, era, por exemplo, pacífico que a coação
autorizava a rescisão do casamento2778.
§ 1630. A coação provava-se por conjeturas e indícios indubitáveis2779. O
protesto de que o negócio fora realizado sob coação, constante do próprio ato
negocial, ajudava a prova, mas não era exigível, pois podia desencadear a ameaça;
daí que fosse dispensável2780. Havia um certo favor quanto à prova da coação,
sendo comum a referência de que duas testemunhas sérias que afirmassem ter
havido ameaças valiam mais do que vinte que dissessem o contrário 2781.
§ 1631. O regime da coação permite ter um relance sobre esta sociedade de
fortes poderes fácticos, como era a sociedade de Antigo Regime. As mulheres são
apresentadas como seres mais frágeis, cuja atemorização era mais fácil2782. Quando

2770 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 11.


2771 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 5; Álvaro Valasco, Decisiones
[…], cit., II, 142, n. 7.
2772 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 28.

2773 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 3.

2774 O coacto devia protestar das ameaças perante o juiz ou perante homens bons; mesmo que este

protesto não fosse feito, ainda por medo de que isso chegasse ao conhecimento de quem ameaçava, a
apelação deveria ser recebida, provada a ameaça por testemunhas, António Cardoso do Amaral, Liber
[…], cit., s. v. “Metus”, n. 6.
2775 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 14.

2776 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 13.

2777 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 30, ns. 9-10: “Contractus metus gesti

validi sunt”.
2778 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 8.

2779 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 7.

2780 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 30, n. 8.

2781 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Metus”, n. 7.

2782 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., “Metus”, n. 9; António da Gama, Decisiones

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casadas, estariam tão sujeitas a ameaças dos maridos que este estado de coagidas era
considerado como permanente2783, como uma extensão provável do temor
reverencial que deviam ao seu “pai político” e que incluía o dever de suportar as
suas ameaças e os seus ralhos 2784. Ainda no âmbito do mundo doméstico, aparecem
os patronos a coagir os libertos – as fontes falam mais de libertas, por razões que se
imaginam facilmente -, forçando-os a dar-lhes coisas ou a prestar-lhes serviços e
favores. No foro, o juiz ameaçava as partes com a prisão, nomeadamente se
ousassem recorrer dos seus atos. E as partes, assustadas, sentiam medo de sequer
protestar, perante homens bons, da violência que se lhes fazia. Os poderosos
atemorizavam as testemunhas e os seus adversários mais fracos, forçando-as à
transação ou à desistência da lide ou a não recorrer de sentenças desfavoráveis. Os
clérigos ameaçavam os leigos com a excomunhão, tanto quando ela se justificava
como quando isso não acontecia. A violência era tão endémica que a coação,
embora não se presumisse, era mais facilmente provada, exigindo-se menos
testemunhos e aceitando-se a sua habitualidade em certos casos (como na família).
Se o direito formal fosse efetivo, muitos negócios sucumbiriam perante a rescisão
por coação.
6.4.5 A renúncia à invocação dos “vícios da vontade”.
§ 1632. A prática encontrou formas de diminuir a incerteza negocial causada
pela possibilidade de invocar estas circunstâncias que afetavam a validade dos
contratos. Tais eram as cláusulas de renúncia, pelas quais, no próprio contrato as
partes (ou apenas uma delas), se comprometiam a não usar dos seus direitos de
invocar vícios de vontade. Estas cláusulas cabiam na figura geral de renúncia a
direitos
§ 1633. A renúncia era uma desistência consciente 2785 de um direito próprio2786.
Era um pacto estrito, que só incluía aqueles direitos que estivessem expressamente
enumerados, e, por isso, de interpretação restritiva 2787. Daqui decorria que só se
podia renunciar a direitos próprios e quando a renúncia não causasse prejuízos a
terceiros2788 e que não era possível fazer renúncias gerais a direitos que não se
soubesse ter ou a direitos futuros ou eventuais 2789.

[…], cit., dec. 346, n. 1 (as mulheres, mesmo as constantes, são mais fáceis de coagir a contratar ou a
rescindir contratos).
2783 Pressupunha-se que a ameaça do marido dura enquanto durar o matrimónio, António da

Gama, Decisiones […], cit., dec. 346, n. 4.


2784 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 250, n. 4 a 6: as simples ameaças do marido, a

não ser que usuais, não configuravam coação.


2785 Daí que não valesse se feita por erro, dolo ou coação, António Cardoso do Amaral, Liber

[…], cit., s. v. “Renunciatio”, n.. 45.


2786 “Est intima refutatio rei, vel proprii iuris, quam quis scienter facit”, António Cardoso do

Amaral, Liber […], cit., s. v. “Renunciatio”, n. 1.


2787 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Renunciatio”, n. 1.

2788 “Renunciare potest unusquisque iuri suo sine incommodo alterius”, António Cardoso do

Amaral, Liber […], cit., s. v. “Renunciatio”, n. 18.


2789 António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Renunciatio”, cit., n. 23; como, por exemplo, a

herança futura. Sobre a renúncia à invocação de casos fortuitos futuros que afetassem o cumprimento
dos contratos: não se podia renunciar aos casos fortuitos em geral; mas podia renunciar-se à eficácia de
casos fortuitos de tipo especificado, e então a renúncia valeria em relação a esses ou a casos menos

478
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1634. Admitia-se, em todo o caso, o pacto de renúncia a toda a proteção do


direito (auxilium legis), que consistia num pacto de que não se recorreria aos meios
de proteção jurídica e judicial (actiones, exceptiones appelationes) que o direito desse em
certa circunstância2790. A renúncia aos meios de proteção dos contraentes
ignorantes, enganados ou coactos era deste género e, por tanto, valia. No entanto,
havia uma limitação que podia prejudicar a renúncia nestes casos: não era admitida
a renúncia que ofendesse a equidade natural ou contivesse uma lesão dos bons
costumes2791ou, o que podia alargar ainda mais a impossibilidade de renúncia, não
se podia renunciar a uma proteção que o juiz pudesse conceder oficiosamente (ex
officio suo)2792. No direito comum tardio, tornaram-se ainda irrenunciáveis os direitos
que tivessem uma natureza pública, como seria, por exemplo, os privilégios da
nobreza (Ord. fil. 5, 120, 12)2793, o que permitiria, progressivamente, incluir “direitos
irrenunciáveis” (ou seja, direitos pessoais cuja renúncia afetasse a equidade e os
bons costumes: direito à vida, à liberdade, ou a certas proteções do interesse da
república)2794.
6.5 Outras consequências do consensualismo.
§ 1635. O consensualismo tornava a geração de obrigações independente de
qualquer fórmula ou rito2795. Excecionalmente, a lei podia exigir alguma
formalidade, como a escritura pública (que devia conter a data e ser roborada por
duas testemunhas, Ord. fil.1,78,4; 1,24,16)2796. Noutros casos, a forma escrita era
exigida, não como formalidade, mas apenas como meio técnico de comunicar,
como no caso dos negócios entre ausentes, feitos por carta.
§ 1636. Outra consequência do princípio consensual era a de que só o próprio
se podia obrigar e não outrem por ele 2797, a não ser que o aceitasse (ratificasse)2798.
Bem como a de que, sendo estabelecidas pelo consenso, as obrigações extinguir-se-
iam também pelo consenso, salvo quando esse consenso se formava no contexto
de um sacramento (em que Deus era também envolvido), pois então o consenso,
estabelecido perante Deus e suscitando a sua intervenção, não podia ser desfeito

relevantes, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Renunciatio”, n. 47, e 48. Cf. ainda
ibid. v. “Contractus”, ns. 10 e 11.
2790 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Renunciatio”, ns. 18 e 30.; mesmo assim,

aquele que renunciasse a todas as exceções e proteção legal não era prejudicado em relação aos direitos
que não soubesse ter.
2791 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Renunciatio”, n. 42; era nula, Álvaro

Valasco, Decisiones […], cit., cons. 173, n. 22.


2792 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Renunciatio”, n. 43.

2793 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […]. dec. 83, n. 2.

2794 Cf. g. os privilégios do Senac. Velleianum ou do Senac. Macedonianum, a renúncia à arguição

da lesão (“de jure regio renunciatio laesionis non valebit”, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […],
cit., dec. 65, n. 2).
2795 Sobre o ritualismo do direito mais antigo, v. Everardo Otto (1685-1756), De jurisprudentia

symbolica exercitationum trias, Trajecti ad Rhenum [Utrecht], Matthaeus Vish, 1735;


http://books.google.cl/books/about/Everardi_Ottonis_De_jurisprudentia_symbo.html?hl=it&id=x1Z
DAAAAcAAJ], 4, 1, 9.
2796 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 1, 9,

2797 Salvo no caso de o terceiro ser mandatário ou procurador. Diferente do procurador era o

intermediário (ou proxeneta, mediador, corretor).


2798 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 4.

479
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apenas pela vontade dos homens. Era o que acontecia no batismo e no casamento,
que, por isso, não se podiam dissolver2799.
§ 1637. Finalmente, a centralidade da vontade na génese das obrigações levava a
que a dogmática dos pactos fosse central no âmbito da dogmática das obrigações.
6.6 Limites do consensualismo: possibilidade e licitude.
§ 1638. Recordemos que havia, no entanto, elementos que condicionavam a
validade dos negócios que não se relacionavam com a vontade das partes.
§ 1639. Assim, o objeto da obrigação tinha que poder ser querido e querido
licitamente. Daí que não pudesse ser impossível2800 ou ilícito (Ord. fil.4,70,3)2801. Por
isso, não valiam - nem sequer no espiritual - os pactos contra o que a lei
determinasse por razões de ordem pública [“favorem publicum vel publicam
utilitatem”], nem que contivessem torpeza§ 1. ou intenção de prejudicar outrem.
Era o que acontecia com o pacto no sentido de que algo que a lei estabelecesse
como delito não fosse considerado como tal, pois tal pacto convidaria a
delinquir2802. Também os pactos contra os bons costumes não obrigavam, nem no
espiritual2803. Um exemplo era o dos pactos sobre a sucessão futura (i.e. sobre
herança de pessoa viva) eram considerados imorais, a menos que o autor da
sucessão consentisse neles2804. Outro era o do pacto ou contrato que importasse
lesão enorme, ou seja, em que o preço fosse inferior a metade ou superior ao dobro
do justo valor da coisa2805. Também a cláusula ou pacto de quota litis, pelos quais se
convencionava que a retribuição do mandato judicial seria uma quota do que se
ganhasse na ação2806 não obrigava.
6.7 As cláusulas acessórias dos contratos.
§ 1640. Existiam cláusulas que podiam ou não figurar num contrato,
condicionando a sua eficácia ou estabelecendo uma certa maneira de o cumprir.
Não eram cláusulas necessárias, como as referentes às partes ou ao objeto
contratuais, mas acessórias. As cláusulas acessórias típicas eram as condições, o
termo e o modo, que se definem adiante.
§ 1641. Não se encontra, na doutrina do direito comum, um tratamento geral

2799 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Obligatio”, n. 7.


2800 Ad impossibilia nemo tenetur. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Obligatio”,
n. 10, v. “Pactum”, ns. 13-14 (“não vale o pacto sobre coisa impossível, de direito ou de facto”, ou
“fora do comércio”).
2801 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Obligatio”, n. 14. Eram ilícitas as

convenções sobre condições indisponíveis, como a liberdade; e, por isso, a obrigação de trabalho
perpétuo não era válida, pois equivalia à sujeição de um homem que nasceu livre à escravidão. Porém,
valia a obrigação de servir para sempre numa igreja ou hospital, pois a obrigação de servir a Deus não
seria escravidão, antes libertação (ibid. n. 9).
2802 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 24.

2803 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 104, n. 6 (“contractus contra bonos mores in

neutro foro obligant”).


2804 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 20; exemplos, ibid. ns.

21-22.
2805 Miguel de Reinoso, Observationum […], cit., obs. 30, n. 23 (“Laesio enormissima annulat

contractum”).
2806 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 37.

480
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

destas figuras, como hoje acontece na teoria geral dos contratos ou, até, dos
negócios jurídicos. Elas eram tratadas a propósito dos atos, negócios ou contratos,
em que apareciam mais frequentemente. A condição costumava ser tratada no
regime da instituição de herdeiro, eventualmente da doação e compra e venda. O
termo era tratado a propósito dos termos ou prazos processuais. O modo era
referido de forma dispersa ou não era sequer autonomizado; às vezes era abordado
juntamente com a condição, da qual se aproximava.
§ 1642. Autonomiza-se aqui a condição, como uma figura geral, porque, de
todos estas cláusulas acessórias, é a que merece mais atenção da doutrina.
6.7.1 A condição.
§ 1643. A condição (conditio) era um evento futuro que suspendia o ato jurídico
até que a condição fosse realizada2807. Esta definição corresponde à condição
suspensiva, que era a única reconhecida pelo direito romano clássico (como, aliás,
pelo common law)2808. Porém, o direito romano justinianeu veio a admitir também a
condição resolutiva, verificada a qual, o contrato se dissolvia. A construção da
condição resolutiva era artificiosa, valendo-se de uma ficção para conseguir repor as
coisas na situação original, se a condição não fosse realizada. Desdobrava-se o
negócio condicional num negócio puro (i.e. sem condição) e ficcionava-se um
negócio inverso em que a anterior condição resolutiva aparecia como suspensiva.
Assim: a venda condicional (resolutiva) “A venda a B o escravo Pamphilum sob a
condição de lhe ser pago até certa data” transformava-se numa venda pura “A
venda a B o escravo Pamphilum” a que se juntava o negócio condicional
(suspensivo) “B doa a A o escravo Pamphilum sob a condição de B não o ter pago
a A até certa data”. Alternativamente, aplicava-se aos negócios sob condição
resolutiva o mesmo artifício usado para obrigar à restituição um beneficiário que
não cumprisse uma condição negativa. As condições negativas “Dou a A se A não
casar” apenas se podiam realizar com a morte do beneficiário do negócio, pois só
então se sabia que ele não fizera aquilo que estava proibido pela condição. Todavia,
isto tirava quaisquer efeitos úteis ao benefício. Por isso, a partir do séc. I a.C, os
negócios sujeitos a uma condição negativa eram logo feitos válidos como se fossem
puros, devendo porém os beneficiários prestar uma garantia (por meio de uma
stipulatio) de que restituiriam os bens no caso de incumprirem a condição não fazer.
Era a chamada cautio Muciana, que passou a aplicar-se também aos casos de
condição resolutiva. Como a condição resolutiva justinianeia se baseava na ficção
jurídica de um pacto acessório que compensava o negócio condicional, a doutrina
de direito comum quase que tratava apenas da condição suspensiva2809.

2807 “Conditio promissionis, seu contractus est futurus eventus in quam actus suspenditur donec

conditio eveniat”, cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 2
2808 Cf. D.De verborum obligatione, D.45.01, 85, 7 (“Quicumque sub condicione obligatus curaverit,

ne condicio exsisteret, nihilo minus obligatur”). Cf. Daniele Berardi, L’avveramento fittizio della condizione,
2012, tese de doutoramento na Università degli studi di Padova (http://paduaresearch. Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit..unipd.it/2780/1/tesi_pdf.pdf, 26.02.2014).
2809 A condição negativa só se realizava quando se tornasse impossível (v. António da Gama,

Decisiones […], cit., dec. 160, n. 4); nomeadamente pela morte daquele de quem dependia a sua
realização (v. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., 112, n. 1) e dec. 316, n.1; a de não ter
filhos, admitia-se que se desse como cumprida quando não fosse verosímil que os viesse a ter, António
da Gama, Decisiones […], cit., dec. 160, n. 4.

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§ 1644. Nos negócios condicionais, era a realização integral 2810 da condição que
disparava a existência do contrato. Assim, antes de se cumprir a condição da venda,
a coisa não era do comprador, nem este a podia reclamar com uma reivindicatio2811.
Também no casamento, o contrato não surtia efeito enquanto a condição não fosse
cumprida e, por isso. nenhum dos cônjuges podia ser obrigado a consumá-lo
pendente conditione2812.
§ 1645. A condição devia cumprir-se nos exatos termos e pessoas2813. Podia
consistir em facto de quem a apôs, daquele a quem a sua realização interessa, ou de
terceiro.
§ 1646. Todos os negócios que resultem de um ato de vontade podiam ser
condicionados2814.
§ 1647. Porém, a condição impossível, ilícita ou torpe 2815 invalidava qualquer
contrato, tanto de boa-fé, como de direito estrito; aposta a um legado ou
testamento não os viciava, mas tinha-se como não escrita; aposta na instituição de
herdeiro também se tinha como não escrita2816.
§ 1648. O mesmo acontecia no matrimónio, valendo o acordo dos nubentes
como puro; mas se fosse contrária aos fins do casamento 2817 e os dois cônjuges nela
tivessem consentido, invalidava o matrimónio por não se poder dizer que houvera
acordo em realizar o ato com os seus fins inquebrantáveis2818. Ainda relativamente
ao casamento, não era lícito apor em qualquer negócio, nomeadamente em doação
ou deixa testamentária, a condição de o beneficiário casar, ou casar com certa
pessoa, porque se entendia que isso limitava a liberdade essencial à decisão
matrimonial2819.

2810 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 3 ss..


2811 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 5; Álvaro Valasco, Decisiones
[...], cit., cons. 120, n. 17 (“Conditione deficiente deficit dispositio sub illa concepta”).
2812 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 22.

2813 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 9. Por isso, na realização da

condição, é relevante a pessoa que a realizava (Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 59,
n. 8). Mas, em princípio, podia passar para os herdeiros de quem a deveria ter realizado, se não fora o
seu falecimento (António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 16; Melchior Febo,
Decisiones […], cit., dec. 83, n. 6; Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 171, nº 9).
2814 Em tudo se admitem ónus e condições, Álvaro Valasco, Decisiones […], cons. 27, n. 9; para as

doações, Jorge de Cabedo, Decisiones […], pt. 2, dec. 31, n. 1. No direito romano, havia atos que não
sofriam condição (actus legitimi), como a datio tutoris, mancipatio, in iure cessio, etc..
2815 A doutrina estende este regime às condições contrárias a lei do príncipe, estatuto, cânones ou

bons costumes; tal condição seria desonesta (contra a natureza) ou ridícula (António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 24; “leis e bons costumes”, amplia Melchior Febo,
Decisiones […], dec. 121, n. 10).
2816 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, ns. 19, 20 e 24.

2817 Por exemplo, a condição de não ter filhos.

2818 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 21.

2819 “As condições que repugnam à liberdade do matrimónio são proibidas”, escrevia Jorge de

Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 2, dec. 31; por isso, o legado à filha com a condição de casar com
certa pessoa seria de rejeitar (António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 314 n. 3); mas se aquele que
devia realizar a condição, casando, se casou sem saber da condição, o negócio valia, António da Gama
Decisiones […], cit., dec. 125 n. 1. Já a condição de não casar, valia apenas no já casado, quanto a
casamentos futuros, depois de morto o cônjuge atual (Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit.,
dec. 112, n. 1.

482
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1649. Em geral, a condição contra a natureza e substantia do contrato ou do


ato viciava-o, pois este não podia subsistir sem ela 2820. A condição inútil, como a de
não vender aposta em doação ou venda feita à Igreja (que não podia alienar os seus
bens [amortização]) era tida como realizada, e o contrato valia 2821. A condição
tornada impossível por caso fortuito valia ou não, dependendo da vontade
presumida de quem a tivesse aposto2822.
6.7.2 O modo.
§ 1650. O modo aproximava-se da condição, enquanto configurava um encargo
acessório que recaía sobre um dos contraentes. No entanto, tratava-se de uma
verdadeira cláusula contratual, que gerava uma obrigação, e não apenas de uma
condição que impendia sobre a validade do contrato2823.
6.7.3 O termo.
§ 1651. O termo (dies) era a fixação de um prazo que ou suspendia (termo
suspensivo, a quo) ou resolvia (termo resolutivo, ad quem) o contrato. Os termos não
se presumiam2824, mas podiam ser apostos em qualquer negócio cujos efeitos não
fossem, por natureza, perpétuos, como era o caso da constituição da propriedade
ou da constituição de herdeiro (semel heres semper heres)2825.
6.8 A extinção das obrigações.
§ 1652. As obrigações podiam extinguir-se por vários modos2826. O principal
era o pagamento (solutio)2827. Outros eram o mútuo consenso (eventualmente
transformando uma obrigação noutra, novatio2828), a compensação (compensatio)2829, a
confusão (confusio)2830, a prescrição (praescriptio)2831 e o perdão (remissio)2832.
§ 1653. O pactum de non petendo realmente não extinguia a obrigação, apenas
impedindo exigir o seu cumprimento coercivo, por meio do recurso a uma ação.

2820 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 25.


2821 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 18.
2822 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Conditio”, n. 9-10.

2823 “Dou-te isto, mas obrigas-te a fazer aquilo”; e não “Dou-te isto, se fizeres aquilo”. Sobre a

distinção, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 98, n. 1.


2824 Outras cláusulas usuais: in diem addictio: o contrato deixava de obrigar o vendedor se, até ao fim

do dia designado, este recebesse uma melhor oferta; lex commissoria: a coisa voltava à disponibilidade do
vendedor se o comprador não pagasse dentro de certo prazo
2825 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Obligatio”, n. 17/18 (“quod sine die

debetur, statim debetur”).


2826 No direito romano clássico: “Verborum obligatio aut naturaliter resolvitur aut civiliter:

naturaliter veluti solutione aut cum res in stipulationem deducta sine culpa promissoris in rebus humanis
esse desiit: civiliter veluti acceptilatione vel cum in eandem personam ius stipulantis promittentisque
devenit” (D.46.3.107; v. ainda D.46, 2 a 8.
2827 Adolf Berger, Enciclopedic dictionary […], cit., s. v. “Solutio”; D.46, 3; C.8, 42.

2828 V. D.46, 2, De Novationibus et delegationibus.

2829 “Debiti et crediti inter se contributio”; D.16, 2 De compensationibus; LU, v. “compensatio”.

2830 “Confusio est cum debitor et creditor una persona fit” (cf. D.46, 3, 75); um caso especial era o

da extinção das servidões por confusão dos prédio serviente e dominante num mesmo dono (“servitutes
praediorum confunduntur, si idem utriusque praedii dominus esse coeperit”, D.8, 6, 1.
2831 D.44, 1, De exceptionibus praescriptionibus et praeiudiciis; C.8, 35, De exceptionibus sive praescriptionibus.

2832 V. um caso particular (perdão de rendas, remissio mercedis, D.19.2.15.2).

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§ 1654. Os jurisconsultos portugueses modernos recolhiam o fundamental da


doutrina romanística, negligenciando, no entanto, as formas de extinção das
obrigações caídas em desuso (como a acceptilatio).
§ 1655. O pagamento era definido como a entrega daquilo que se devia, com a
consequente liberação do devedor2833. Conhecia uma forma verdadeira e natural, a
entrega da coisa devida; e outra fictícia e apenas civil, quando o efeito liberatório
era conseguido por uma entrega equivalente ou feita por outrem, nestes casos com
o acordo do credor2834.
§ 1656. O pagamento devia corresponder pontualmente àquilo que fora
convencionado, a não ser que algo tivesse sido posteriormente convencionado.
Devia ser feito ao credor – sendo capaz e estando no seu juízo 2835 -, não liberando
se feito a outrem2836. Devia ser feito no tempo e no lugar convencionado2837. Devia
consistir na coisa convencionada e não noutra, nem que fosse no seu valor 2838. As
obrigações que constavam de moedas ou de géneros por medida podiam levantar
problemas se as moedas ou medidas tinham variado. Em princípio, deviam ser tidas
em conta as suas variações, exceto se se tivesse sido convencionado que a
obrigação era para ser cumprida segundo o valor das moedas ou das medidas ao
tempo da convenção2839.
§ 1657. O pagamento devia ser provado por quem o alegava, exibindo o recibo,
embora se admitissem as restantes provas de direito2840.
§ 1658. O pagamento indevido podia ser repetido, a menos que consciente,
pois então se entendia corresponder a uma doação; no entanto, presumia-se a
ignorância do caráter indevido da prestação. Esta ignorância só relevava se recaía
sobre os factos, mas não se se tratasse de ignorância sobre o direito (ignorantia
iuris)2841.
§ 1659. A falta de pagamento atempado constituía o dever em mora. A mora

2833 “Solutio est traditio illius quod debetur & liberatio ab obligatione”, António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 1.


2834 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 1.

2835 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 7.

2836 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. ns. 2 e 3. Porém, livrava o

pagamento feito, por ignorância, ao possuidor, mesmo de má fé, ou ao usurpador, ibid. n. 5. Também
valia o pagamento a um procurador cuja procuração tivesse sido revogada, mas sem o conhecimento do
devedor, ibid. n. 8; mas não ao procurador sem poderes.
2837 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 12 (salvo em caso de justa

causa.Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 47, n.5. O tempo de pagamento de obrigações em
géneros agrícolas costumava ser o das colheitas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Solutio”, n. 21.
2838 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, ns. 13 e 14; Álvaro Valasco,

Decisiones […], cit., cons. 157, n. 3.


2839 Mas a questão podia ser complicada, se as moedas ou medidas originárias tinham deixado de

existir. Então, tinha que se encontrar o seu equivalente no momento do pagamento, António Cardoso
do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 15, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 374, n.
2. A equivalência podia fazer-se pela razão entre moedas antigas e novas ao tempo do contrato, se se
tivesse tido em vista o género de moeda, ou ao tempo do pagamento, se apenas se considerara o valor
delas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. ns. 19 e 20.
2840 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 24.

2841 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Solutio”, n. 27.

484
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

dava-se “quando não se faz aquilo que se devia fazer no tempo devido, ou no dia
da interpelação [nas obrigações sem prazo estipulado para o cumprimento 2842]”2843.
O principal efeito da mora era o de obrigar o devedor a pagar juros (interesses) desde
o momento da mora até ao do pagamento, a menos que tivesse uma justa causa
para não pagar, que pudesse alegar como exceção2844. Outro efeito era o da
inversão do risco (periculum), que passava a correr pelo devedor em mora 2845.
6.9 As obrigações contratuais (ex contractu).
6.9.1 Os pactos e os contratos.
§ 1660. Um pacto era o acordo entre duas ou mais pessoas em dar ou fazer algo
que todas quisessem2846.
§ 1661. No direito romano mais antigo, o pacto era uma convenção informal,
sem nome, causa ou forma jurídica, contraposta às convenções contratuais que,
pelo contrário, tinham um nome e uma forma determinada. Esta distinção, que não
se mantivera sequer no direito romano mais tardio 2847, não tinha sido plenamente
recebida pelo direito comum.
§ 1662. Neste, em parte por influência do “consensualismo” do direito
canónico2848, em parte pela progressiva atenuação do formalismo do direito romano
clássico, a distinção entre pacto e contrato torna-se incerta. Por um lado, mantém-
se presente a distinção, que aparece nas fontes romanas, mas, por outro lado, as
formas contratuais romanas deixam de se usar ou perdem relevância para
determinar o valor e regime das convenções. Quando se chega ao direito comum
tardio, o que prevalece é o uso da noção de pacto como noção geral (nomen generale),
distinguindo, no seu seio, as convenções mais formais, perfeitas ou principais
(pactos vestidos, pacta vestita) das menos formais, imperfeitas ou acessórias (pactos
nus, nuda pacta).

2842 “Quod sine die debetur, statim debetur” (o que é devido sem uma data para pagar é devido de

imediato).
2843 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Mora”, n. 1.

2844
Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Mora”, n. 2 (uma exceção que afastava
a mora era o débito não estar acertado (liquidado), ibid. n. 5).
2845 “Damna sunt reficienda ei qui ob moram debitoris passus est”.

2846 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […]¸cit., s. v. “Pactum”; Pascoal de Melo, Institutiones

iuris civilis [...], cit., 4, 2.


2847 Cf. D.2, 14, De pactis, 1, 2 (“D.2.14.1. Ulpianus libro quarto ad edictum. pr. Huius edicti aequitas

naturalis est. Quid enim tam congruum fidei humanae, quam ea quae inter eos placuerunt servare? 1.
Pactum autem a pactione dicitur (inde etiam pacis nomen appellatum est). 2. Et est pactio duorum
pluriumve in idem placitum et consensus. 3. Conventionis verbum generale est ad omnia pertinens, de
quibus negotii contrahendi transigendique causa consentiunt qui inter se agunt: nam sicuti convenire
dicuntur qui ex diversis locis in unum locum colliguntur et veniunt, ita et qui ex diversis animi motibus
in unum consentiunt, id est in unam sententiam decurrunt. Adeo autem conventionis nomen generale
est, ut eleganter dicat pedius nullum esse contractum, nullam obligationem, quae non habeat in se
conventionem, sive re sive verbis fiat: nam et stipulatio, quae verbis fit, nisi habeat consensum, nulla
est. 4. Sed conventionum pleraeque in aliud nomen transeunt: veluti in emptionem, in locationem, in
pignus vel in stipulationem”.
2848 “[…] Os pactos baseados na equidade geram ação, obrigação e exceção por direito canónico,

pois o direito natural e divino [em que se fundava o direito canónico] obriga a cumprir aquele que
prometeu algo”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 6. Sobre o
reconhecimento da eficácia vinculativa dos pactos, v. Wim Decock, Theologians and Contract Law: […],
cit..

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§ 1663. Uma sinopse típica da matéria é a de António Cardoso do Amaral 2849,


que aqui se segue.
§ 1664. “Pacto - escreve Amaral – é o mesmo que acordo (placitum) e consenso;
falando de um modo geral chama-se pacto a todo o contrato, mas, quando têm um
nome específico não se usa a denominação genérica, mas a da sua espécie e, assim,
quando te vendo uma coisa minha, diz-se “venda” [e não “pacto”] e assim por
diante, de onde se segue que, ainda que “pacto” compreenda todos os contratos e
convenções, se use o seu específico nome para cada um” (n. 1). Neste sentido, o
conceito de contrato aparece como mais reservado para os contratos que tinham
um nome e um regime jurídico (uma ação) específico e o de pacto serviria para os
inominados.
§ 1665. Seguidamente, o autor afina mais os conceitos, ao distinguir pacto
vestido e pacto nu2850. “Um pacto diz-se vestido em várias circunstâncias2851. Ou
quando é revestido de palavras, como na estipulação (stipulatio), em que a uma
pergunta se segue uma resposta […], ou quando se reveste de letras [escritas] […],
ou de consentimento, como nos contratos que se perfazem pelo simples
consentimento […], ou por algo que está inerente ao contrato, como quanto te
vendo uma casa com o pacto de que eu ainda aí habite durante um ano […], ou
pela intervenção de uma coisa, como quando te prometo dar-te algo, para que me
dês ou faças algo (ns. 3-4)2852. Embora o consenso se pudesse manifestar destas
quatro diversas formas, a origem do contrato era sempre o consenso e não as
circunstâncias externas que o “vestiam”. Por isso, estas deviam ser encaradas
sempre como indícios do consenso das vontades: “magis celebratur voluntate
contrahensium, quam verbis, et ideo magis inspicitur voluntas, quam conceptio
verborum”2853 2854.
§ 1666. Em contrapartida, o pacto nu “é aquilo que apenas está na mente e na
pura intenção estar de acordo, sem qualquer invólucro externo, como, por
exemplo, quando te prometo dar cem, sem qualquer pergunta anterior tua [como
na stipulatio], nem escrito, nem nada do que antes se referiu, e tu aceitas; então o

2849 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”.


2850 Sobre esta e outras distinções dogmáticas do direito moderno dos contratos, Andrea
Massironi, Nell'officina dell'interprete. La qualificazione del contratto nel diritto comune (secoli XIV-XVI), cit.
2851 Outra formulação: “Contractus quattor modis celebrantur, videlicet re, verbo, litteris, &

consensu”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, ns. 1-2.
2852 “Pactum vestitum dicitur multis modis, aliquando enim vestitur verbis, puta per stipulationem

praecedente interrogatione, secuta responsdione, […] aliquando vestitur litteris […] aliquando consensi,
ut contractibus, qui solo consensu perficiuntur […] aliquando cohaerentia contractus, puta vendo tibi
domum eo pacto, ut ibi inhabitem per annum […] aliquando interventu rei, veluti promisi tibi aliquid
dare, ut tu aliqui mihi dares, au faceres et simulae dedi”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit.,
s. v. “Pactum”, n. 4. Os juristas romanos arrumavam os contratos de acordo com esta tipologia das
formas de exprimir o consenso da seguinte forma: Por consenso: emptio venditio, locatio conductio,
mandatum, societas. Por entrega de uma coisa: mutuum, depositum, commodatum, pignus; Por recitação de
palavras: stipulatio, dotis dictio, iurata promissio liberti. Por um escrito: obligatio litteris contracta.
2853 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 12.

2854 As circunstâncias (res), que aqui funcionam como sinais de uma vontade de contratar, podem

também gerar diretamente uma obrigação não fundada na vontade (ex quasi contratu). Era o caso da
gestão de negócios sem mandato, que gerava obrigações para o gestor e para o dono do negócio, tal
como a tutela ou curatela voluntárias (v. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.
“Contractus”, n. 3).

486
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

pacto diz-se nu” (n. 5)2855. Feita esta distinção (a partir da causa eficiente), distingue
de novo, agora a partir do regime jurídico de cada espécie (a partir da causa final):
“O pacto nu, segundo o direito civil [direito estrito] não gera uma obrigação, mas
apenas uma exceção […], enquanto que os pactos baseados na equidade, por direito
canónico, geram ação, obrigação e exceção, pois o direito natural e divino obriga
aquele que prometeu cumprir algo […]” ( n. 6). Daí que, por direito civil, os pactos
apenas geravam meios de defesa contra ações da outra parte (exceptiones), enquanto
que os contratos geravam ações.
§ 1667. A partir daqui, já se perfila a distinção – sempre imprecisa e variável –
que tendeu a prevalecer no direito comum entre “pacto” e “contrato”. O contrato
era um acordo autónomo ou principal, revestido de alguma forma, que gerava
automaticamente um meio jurídico para fazer cumprir as obrigações que dele
decorriam. Equivalia a um pacto vestido. O pacto, pelo contrário era um acordo
absolutamente informal ou a que faltava algo2856 para ser imediatamente exequível
em direito e que, por isso, não gerava uma ação, embora pudesse ser usado como
fundamento de um meio de defesa (exceptio). Equivalia a um pacto nu.
§ 1668. O contrato era, deste ponto de vista, a categoria juridicamente mais
solene, definitiva, com um regime jurídico mais preciso e com uma garantia judicial
mais completa. No seu âmbito, os juristas seiscentistas continuam ainda a fazer
distinções provenientes do direito romano, mas com um alcance prático cada vez
menor.
§ 1669. A que tinha tradições textuais mais importantes era a que distinguia
contratos nominados de inominados.
§ 1670. Uns contratos seriam “nominados” – i.e. tinham um nome, gerando
automaticamente (eo ipso quod sunt in esse producti ) uma ação civil [actio legis]
específica, prevista na lei das XII Tábuas 2857. A ação tinha um nome determinado e
importava regime processual específico. a qual tinha esse nome (compra e venda
[emptio, venditio], arrendamento [locatio, conductio], sociedade [societas], mandato
[mandatum]). Como produziam automaticamente uma ação, faziam efeito imediato,
não sendo possível o arrependimento (poenitentia)2858
§ 1671. Os contratos diziam-se inominados porque não tinham nome próprio
(um conteúdo e regime fixados pelo direito), correspondendo o seu conteúdo à
vontade das partes: do ut des, do ut facias, facio ut facias, facio ut des2859. As pretensões
jurídicas que deles decorriam também podiam ser várias: aquele que cumpriu a sua

2855 “Pactum nudum est illud quod est in mentis, & puris finibus (intenções) conventionibus, sine

aliquo vestiemnto, puta promitto tibi dare centum, sine aliqua interrogatione praecedente, nec litteris,
nec aliquo supra relatis, & tu consentis, tunc dicitur pactum nudum”, António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 5.
2856 Por exemplo, o acordo definitivo de algum dos intervenientes.

2857 Estes contratos davam imediatamente lugar à ação, pois o seu regime estava inequivocamente

fixado por lei, quer quanto ao pedido, quer quanto à causa de pedir (ou seja, a lei fixava a fórmula da
ação, nas estando nem no arbítrio das partes, nem no do juiz. Cf. D.2, 14, 7, 1. Cf. António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 6. Como nesta fase do direito comum, a petição inicial
(libelo) não tinha que indicar o nome da ação, este automatismo deixava de existir e, portanto, a
distinção entre contratos nominados e inominados tornou-se irrelevante.
2858 Ao contrário do que acontecia nos inominados, cf. António Cardoso do Amaral, Liber […],

cit., s. v. “Contractus”, ns. 6, 8 e 9.


2859 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 5.

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parte podia agir contra o adversário para que cumprisse o que prometera; ou podia
repetir o que tivesse prestado em cumprimento da sua obrigação; ou podia pedir
uma indemnização (id quod interest, em função da descrição dos factos feita no
libelo) (v. cap. 7.1.9.2). O seu regime, embora se pudesse aproximar do de algum
dos contratos nominados era o que mais conviesse à situação que gerara o
contrato2860. Não geravam uma ação enquanto não se produzisse a causa, ou seja,
enquanto não se verificava a prestação por uma das partes 2861
§ 1672. Outra distinção, na época moderna de pouca monta (ou nenhuma), era
feita entre contratos de boa fé, expressão justinianeia que se aplicava aos contratos
que davam origem a ações e boa fé (actiones bonae fidei) (v. cap. 7.1.3). Pertenciam a
esta categoria os contratos consensuais e os contratos reais (ex re, com exceção do
mutuum): (emptio, venditio, locatio conductio, negotiorum gestio, mandatum, depositum societas,
tutela, comodatum, pignus, familiae erciscundae, os contratos praescriptis verbis, permutatio,
hereditatis petitio). Os contratos reais geravam ações de direito estrito (stricti iuris)
(stipulatio, mutuum, arbitrium, etc.)2862 2863.
§ 1673. Estas classificações dos contratos, como estavam frequentemente
dependentes da natureza e classificação dos meios processuais usados para os
garantir, perderam muita da sua relevância quando desapareceu o sistema
processual romano, com as suas oposições entre ações civis e pretórias, ações de
boa fé e de direito estrito. Ora, na época moderna, tudo isto tinha desaparecido.
Em Portugal, as Ordenações tinham estabelecido que do libelo não tinha que constar
o nome da ação, mas apenas o pedido e os seus fundamentos (v. cap. 7.1.3). Não
obstante, a referência a estas classificações e a sua análise continua a ser
regularmente feita. evidenciando uma permanência de objetos discursivos sem
referente na prática do direito, ou mesmo disfuncionais em relação a ela.
§ 1674. Podia convencionar-se que, no futuro, se haveria de convencionar
(pactos de contrahendo, contratos promessas), mas as simples tratativas ou
conversações que antecedessem os pactos não eram elas mesmas consideradas
pactos, pelo que a quebra de negociações não constituía em responsabilidades pela
não realização do negócio2864. Concluído o pacto, estavam criadas as respetivas
obrigações2865.
§ 1675. Os pactos, tal como os contratos, tinham que ser cumpridos (pacta sunt
servanda) pontualmente (i.e. ponto por ponto, rigorosamente). Nos pactos, mais
exclusivamente dependentes da vontade do que os contratos, esta era o principal
critério de cumprimento, como se vê na teoria da interpretação, em que a
averiguação da vontade era o essencial, sobrepondo-se aos elementos literais das

2860 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, ns. 4-5.
2861 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 6.
2862 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 7.

2863 No período final do direito comum, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
declarará, coerentemente, todas estas distinções como inúteis ( Institutiones iuris civilis […], cit., 4, 2, 1-
2).
2864 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 7.

2865 O constitutum, pacto em que alguém prometia cumprir obrigação própria já assumida, era

inútil. O constitutum in alieno era, de facto, uma fiança, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,
4, 2, 8.

488
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

cláusulas convencionadas2866. As cláusulas obscuras ou ambíguas do pacto valiam


contra quem as tivesse aposto, por se presumir que agira maliciosamente ou
capciosamente ao fazê-lo2867. Na dúvida, presumia-se que os contraentes se teriam
conformado com a lei ou os costumes do reino 2868 ou com a interpretação
normalmente dada às diferentes cláusulas que ocorriam frequentemente e que fora
sendo recolhida num género literário próprio 2869.
§ 1676. Nos contratos, mais formais do que os pactos, embora as partes
pudessem modelar o seu conteúdo de acordo com as suas vontade, havia preceitos
que decorriam do regime jurídico de cada tipo contratual o qual se entendia ter sido
aceite pelas partes (natura contractus)2870 ou se impunha mesmo à sua vontade (como
nomen contractus, substantia ou substantialia contractus)2871. Esta teoria de que os contratos
(ao contrário dos simples pactos) tinham uma natureza objetiva diminuía o arbítrio
dos contraentes2872 e amarrava-os a cláusulas eventualmente não queridas2873.
§ 1677. Mais tarde, houve quem defendesse a posição mais permissiva de que
os pactantes não tinham que cumprir os pactos se indemnizassem as outras partes
dos danos decorrentes da frustração do cumprimento (id quod interest). Esta era a
posição de Christian Thomasius, na dissertação An qui factum promittit, liberatur
praestando id quod interest; mas não constituía a opinião dominante2874.
§ 1678. Como convenções fundadas no direito natural, que obrigava a que as
promessas fossem cumpridas, os pactos (e contratos) obrigavam toda a gente.

2866 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 12: “Magis celebratur

voluntate contrahensium, quam verbis, et ideo magis inspicitur voluntas, quam conceptio verborum”.
Cf. ainda Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 41, n. 23; Melchior Febo, Decisiones […], cit.,
dec. 185, n. 18.
2867 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 38.

2868 “Os contraentes sempre se limitam nos seus contratos às leis que regulam esses contratos”,

Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 16, n. 18; “os contratos são interpretados segundo o costume
do reino”, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 75, n. 3.
2869 Cf. g. Agostinho Barbosa, Remissiones doctorum de dictionibus et clausulis in utroque iure contentis,

Romae, Bartholomaei Zannette, 1621; ou Tractatus varii [...] Clausulae usufrequentes [...], cit...
2870 “Contractus est observandus secundam formam, & substantiam ipsius contractus, nec possit

aliquis eorum contrahensium ultra formam contractus aliquid agere [...] semper enim substantialia
contractus sunt attendenda [...] illum tamen, quod venit ex natura conractus, habetur pro cauto [...]”,
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 17.
2871 “Unde dicitur pactum rumpit leges, contractus autem dat leges”, António Cardoso do Amaral,

Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 12.


2872 “Pacta contra substantia contractus non obligant”, Melchior Febo, Decisiones […], cit., d.111,

ns. 17-18. Não já no caso de a contradição apenas envolver cláusulas acidentais (António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., s. v. “Pactum”, n. 27). Também se dizia que o pacto feito contra a substância
do contrato não valia, exceto no caso de apenas contrariar cláusulas acidentais do ponto de vista dessa
substância, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Contractus”, n. 27.
2873 Cf. v.g. a clausula rebus sic stantibus. Em todas as convenções se pressupunha a existência de uma

cláusula tácita de que elas valeriam apenas se se mantivessem as condições existentes ao momento da
celebração, pois não teria sido prevista a uma alteração das circunstâncias (condição tácita “eodem statu
persistere res, quam erat tempore contractus, cum casus superveniens, non esset dictum nec
cogitatum”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Obligatio”, n. 11).
2874 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 5; sobre “id quod interest”,

Raffaele Volante, “Id quod interest. Il risarcimento in equivalente nel diritto comune”, Diritto libero,
2012, em
http://www.academia.edu/3440582/Id_quod_interest._Il_risarcimento_in_equivalente_nel_diritto_co
mune, em 10.2.2014.

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Mesmo o príncipe. A questão foi muito abordada pela doutrina do direito comum
tardio, que se interrogava sobre se o príncipe, liberto da obediência às leis civis2875,
não estaria também desobrigado de cumprir os contratos 2876. A resposta dominante
era a de que estava vinculado aos contratos, dado o fundamento natural, e não
político ou civil, da obrigação de cumprir as convenções; pelo que o príncipe ficava
obrigado pelo direito natural, de cuja obediência não estava liberto 2877. Apenas no
caso de o contrato causar um enorme prejuízo para a coroa, como cabeça da
república2878, por uma causa superveniente e não previsível no momento da sua
celebração, é que o príncipe poderia rescindir ou não cumprir um contrato por si
firmado.
§ 1679. Uma forma específica de pacto, com importância no âmbito de um
litígio, era a transação2879, pela qual se convencionava decidir uma questão duvidosa,
dando, retendo ou prometendo algo. Também a transação estava sujeita às
limitações dos pactos, nomeadamente quanto à disponibilidade do objeto 2880 e
quanto à sua licitude2881. A transação era de interpretação estrita, podendo ser
anulada por lesão (Ord. fil.4,13,6). Como não era uma decisão do juiz, mas das
partes, não se podia apelar dela (Ord. fil. 3,78)2882.
6.9.2 As espécies de pactos e contratos.
§ 1680. Passemos em revista o fundamental dos vários contratos nominados,
para os quais havia uma tradição dogmática específica.
§ 1681. Na ordem, seguimos o agrupamento feito, já nos finais do séc. XVIII,
por Pascoal de Melo2883.
§ 1682. Numa primeira categoria agruparemos os contratos beneficiais, pelos
quais se estipula que alguém dê ou faça a outrem uma certa coisa, sem se estipular
uma contrapartida para esse ato. A categoria compreendia a doação, à qual se
equiparavam, em certos aspetos, o mútuo, o comodato, o precário, o depósito e o
mandato2884

2875 Limitando o alcance do princípio, António Manuel Hespanha, As vésperas […], p. 480 ss..
2876 Discussão: Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 120 ns. 7-14; Miguel de Reinoso,
Observationes […], cit., obs. 57, ns. 3-5. Sobre o tema dos limites contratuais e legais ao poder do
príncipe, v. em síntese, António Manuel Hespanha, As vésperas […], p. 480 ss. max.p. 481 e nota 18.
2877 Cf. v.g. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], dec. 120, ns. 1-3.

2878 Não bastava o prejuízo do fisco, como património do príncipe.

2879 D. 2, 15, De transactionibus; Ord. fil. 3, 78, 1; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit.,

4, 2, 9.
2880 Algumas limitações na transação (para proteger de si mesma a parte transigente), Pascoal de

Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 11, 1. Nos processos crime, podia-se transigir quanto aos
danos ou à retaliação privada (direito de denunciar ou de acusar), mas não quanto à punição pública,
Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 13 (v. Ord. fil. 1, 3, 9).
2881 Discutia-se se a transação sobre o adultério, em que o marido ofendido desistisse da acusação,

era ou não imoral e ilícita, por equivaler a proxenetismo (ceder a mulher em troco de uma quantia). A
doutrina mais tardia (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 14, citando Chr.
Thomasius) considerava o negócio honesto.
2882 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 2, 15.

2883 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 1 e 2.

2884 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 1.

490
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1683. Um contrato beneficial era aquele que consistia numa ação a favor de
outrem, fundada no bem querer. Em sentido mais estrito designava aquilo que se
dava por amor ou benquerença. A particular natureza dos contratos beneficiais
relacionava-se justamente com este caráter gratuito e benévolo, o qual estabelecia
para eles certas regras específicas: (1) não tinha sentido avaliar a igualdade das
prestações; (2) só se lhes aplicavam as suas regras específicas quando o seu
cumprimento fosse voluntário, já não quando fosse exigido judicialmente; (3)
tratando-se de liberalidades, não deviam trazer prejuízos não suportáveis para o
benfeitor, pelo que este podia revogar o benefício no caso de necessidade grave e
imprevista; (4) careciam de acordo do beneficiário, nomeadamente pelas obrigações
que originavam, embora não no plano estritamente jurídico, a mais importante das
quais era o dever de gratidão, com as suas sequelas 2885.
6.9.2.1 Os contratos gratuitos.
6.9.2.1.1 A doação.
§ 1684. Começamos pela doação.
§ 1685. A doação era um dos contratos que melhor revelava as crenças
implícitas acerca da ordem do mundo. Haveria uma ordem do mundo, em que as
pessoas e as coisas estavam ordenadas entre si. Essa ordem do mundo era estável,
até certo ponto, indisponível. A sua alteração era excecional e, por vezes
impossível. Cada um tinha as suas coisas (ius suum) e o direito protegeria esse
quinhão primordial (patrimonium). As alterações da ordem patrimonial eram
possíveis, por meio da atos como que mágicos, como a recitação de palavras ou a
celebração de rituais, como acontecera com a celebração de contratos no direito
mais antigo, ou por meio da vontade, pactando, como acontecia no direito mais
moderno. Porém, estas alterações tinham que ter uma causa (causa eficiente), como a
razão que levou o doador a doar, ou causa final, como o objetivo do doador ao doar -
, inscrita na própria ordem da natureza. Essa causa era, no fundo, uma tendência
natural para manter o equilíbrio entre os patrimónios. De tudo isto decorria que a
doação simples, espontânea, arbitrária e incausada, puramente liberal, era possível,
mas excecional, pelo que, ocorrendo, devia ser verificado se o ânimo de doar – i.e.
sem ser para recompensar ou na perspetiva de um retorno futuro - existira mesmo
ou fora apenas induzido por manobras torpes para distorcer a vontade. Se se
concluísse que essa vontade de dar tinha existido, ela era respeitada pelo direito,
embora sujeita a limitações quanto à pessoa do donatário, quanto a expectativas de
terceiros relativas ao património do doador e quanto ao objeto doado. Se essa
vontade de dar tivesse afinal uma causa natural, como o sentimento de gratidão
pelo que o donatário, antes, tinha feito em benefício do doador, a doação era,
afinal, um movimento natural de restauração do equilíbrio patrimonial. O donatário
era recompensado por um anterior benefício feito ao agora doador, restaurando-se,
assim, um equilíbrio primordial entre os dois. E, assim, a doação impunha-se no
plano do direito e também no plano de uma ordem natural anterior, reportada a
equilíbrios patrimoniais originais e a sentimentos que visavam a sua reposição
(gratitudo). Por isso, estas doações com uma causa (ob benemerita), ou remuneratórias,
impunham-se ao próprio direito estrito, valendo e sendo, pelo menos parcialmente,
eficazes, mesmo quando este direito tendesse a não as reconhecer. Este modelo

2885 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 2.

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ontológico parece explicar os traços do regime jurídico da doação, nomeadamente,


o instituto da insinuação, as proibições de doar, a eficácia natural e civil das doações
remuneratórias, as quais, ou eram válidas mesmo no caso em que doações
puramente liberais não o seriam ou, mais radicalmente, eram consideradas como o
cumprimento de contratos não beneficiais.
§ 1686. A doação era uma liberalidade gratuita, ou seja, não juridicamente
devida2886.
§ 1687. O seu regime jurídico era profundamente condicionado por uma dupla
suspeição que recaía sobre ela. Ou de que, no fundo, as doações não eram gratuitas;
ou de que, sendo de facto gratuitas, a vontade que lhes dera origem não tinha sido
sã. Daí que estivessem sempre em risco de não valerem como doações, mas como
contratos onerosos; ou de, se fossem de facto contratos gratuitos, não valerem
como contratos, por falta de vontade suficiente. Valerem, de facto, como dádivas
gratuitas2887, era algo que o direito não presumia e que averiguava cuidadosamente,
não fosse esse ato bizarro do doador carecer de fundamento válido ou vir a perder
esse fundamento com a mudança dos tempos.
§ 1688. A verdadeira doação (datum simpliciter) era, portanto, a que se explicava
por um sentimento de amizade, afinidade ou afeição entre o doador e o donatário -
que devia ser avaliado, quanto à sua pertinência e eficácia, em função da qualidade
das pessoas e da natureza daquilo que fora dado 2888 - e sem qualquer outra causa
que não a intenção liberal e a generosidade (largitudo, munificentia)2889. Isto era
possível em pessoas virtuosas, inspiradas pelo sentimento da liberalidade ou da
graça, mas tão raro que não se devia presumir2890. Antes pelo contrário: se o doador
não invocasse por palavras a sua intenção puramente liberal, esta não se presumia,
antes se assentando em que a doação tivera “uma causa”. Porém, tendo uma causa,
o ato “em rigor não era uma doação, mas antes uma remuneração ou recompensa,
de serviços aceites de outrem” 2891. De facto, a causa afastava o espírito de
liberalidade, essencial à verdadeira doação. Como escreveu Melchior Febo, “não se
diz ser grato aquele que apenas voltou a dar aquilo que recebeu” 2892. Por isso é que

2886 D. 39, 5 De donationibus, 15, 2. Fontes: D.39, 5; I. 2, 7; C.8, 53-56; Ord. fil. 4, 62 a 66. Sobre

o regime de direito romano, Gordon Campbell, A compendium of Roman law […], 63 ss.. Muito
interessante sobre os “enigmas jurídicos” da doação, com referências aos planos não estritamente
jurídicos do tema, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos […], cit., 9 ss.. Sobre a liberalidade no direito
comum, v. António Manuel Hespanha, “ Les autres raisons de la politique. L’économie de la grâce “,
cit.; Bartolomé Clavero, Antidora [...], cit..
2887 Os juristas opunham, por vezes, a datio (dação), pura e gratuita, à donatio (doação), causada

(ob causam) por um anterior benefício de sentido contrário.


2888 “Est consideranda amiticia, aut affinitas, vel affactio inter dantem, et accipientem, & qualitas

utriusque personae, & quantitas dati” [para se saber se se trata de uma doação simples ou de outro
contrato próximo, como o mútuo ou o comodato], António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.
“Donatio”, n. 47.
2889 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 4.

2890 Sobre as donationes ob benemerita, v. Miguel de Reinoso, Observationes […], dec. 31 ss.: se são

verdadeiras doações, ibid. ns. 1-2; “in dubio censetur remuneratoria”, ibid. n. 3.
2891 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 5. Já no direito romano a

doação em sentido próprio era a doação gratuita: D.39, 5, 1, pr.: “Ulpianus […] propter nullam aliam
causam facit., quam ut liberalitatem et munificentiam exerceat […] Haec proprie donatio applelatur”.
2892 “Non dicitur tantum gratus qui tantum reddit quantum accepit”, Bento Pereira, Promptuarium

[...], cit., s. v. “Donatio”, n. 450; Miguel de Reinoso, Obervationes […], cit., obs. 31, n. 16; v. também

492
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

os serviços devidos ao pai (ao marido, ao patrono, ao rei, acrescentam alguns 2893),
justamente porque são devidos em face de anteriores atos de cuidado ou de proteção,
não constituíam doações nem geravam naquele que é servido um sentimento de
gratidão que o obrigasse a voltar a beneficiar os filhos, a mulher, os libertos ou os
súbditos2894. O mesmo se diga da doação pela qual o pai instituía um dote a favor
da filha (ou que prestava os alimentos devidos aos filhos): não era um ato
verdadeiramente beneficial, antes correspondendo ao cumprimento de um dos
deveres dos pais.
§ 1689. A doação simples era válida, embora limitadamente, pois a mera
liberalidade cedia perante expectativas fundadas ou direitos estabelecidos 2895. Por
isso, tendo uma certa importância, a sua motivação tinha que ser averiguada pelo
rei. As Ordenações (Ord. fil. 4,62) dispunham que as doações de valor superior a 300
cruzados2896, tinham que ser averiguadas e confirmadas pelo Desembargo do Paço,
como tribunal colateral ao rei, num processo que se chamava de insinuação 2897. A
este regime estavam também sujeitas doações de menor soma, mas que, juntas,
excedessem os ditos valores (para evitar a fraude à lei) 2898. Na insinuação se
averiguava se a vontade de doar era sã, isenta de vícios (as Ordenações falam de
“induzimento, arte, engano, medo, prisão, ou outro algum conluio“, sendo este
conluio, tipicamente, a simulação para prejudicar herdeiros ou credores) que a
invalidassem 2899, e também se a doação não teria alguma causa não expressa (como
remunerar serviços anteriores ou futuros, constituir um dote, beneficiar o outro
cônjuge, instituir um pecúlio para um filho, fazer uma deixa por morte 2900, efetuar
um pagamento2901)2902 que mudasse a natureza do contrato.

“qualiter debeant essere benemerita ut donationem remuneratoriam faciant”, ibid..


2893 Este era o fundamento da opinião de que em Portugal, em que os vassalos nobres recebiam

uma contia, estes eram obrigados a servir o rei. Por isso, os seus serviços não eram benefícios feitos ao
rei e, logo, este não tinha que os remunerar. De onde as doações régias seriam doações simples e não
remuneratórias. Esta linha de argumentação não era a dominante.
2894 Miguel de Reinoso, Observationes […], obs. 31, n. 4 (toda a decisão é importante).

2895 Como, por exemplo, as legítimas dos filhos ou de outros herdeiros necessários. Por isso, não

eram válidas as doações simples que as ofendessem


2896 500 áureos, pelo direito comum. No caso de serem feitas por mulheres (cujo ânimo era mais

frágil e menos esclarecido), a insinuação era obrigatória a partir de 150 cruzados.


2897 Originariamente, a insinuação traduzia-se na intervenção no ato de um notário público (C.8,

53, 36, 3). Cf. António de Nebrija, Vocabularium […], cit., s. v. “Insinuatio”: “scriptura publica facta in
praesentia publicarum personarum”. Sobre o seu regime no direito comum tardio, em Portugal, Bento
Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Donatio”, n. 462 ss.; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […],
tom. 2, ad Ord. fil.1, 3, gl. 6 (p. 94).
2898 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 10.

2899 Para exigir a repetição da coisa doada, o doador dispunha da condictio indebiti, António Cardoso

do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, ns. 39 e 59. Mas existia também uma exceptio (ob errorem)
para o doador se defender de uma ação em que se pedisse o cumprimento da doação. A repetição não
tinha lugar se o doador estivesse obrigado a dar por uma obrigação de direito natural (de gratidão). Daí
que quem tivesse doado por uma causa equivocada não poderia repetir se houvesse uma outra
verdadeira causa para doar, ainda que apenas de direito natural.
2900 A doação mortis causa equivalia à deixa testamentária, mas devia ser aceite pelo donatário

(D.39.6, de mortis causa donationibus, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n.
38.
2901 Donatio remuneratoria, donatio dotis, donatio inter virum et uxorem, donatio peculii, donatio mortis causa,

donatio/datio in soluto.
2902 A nomeação para administrador de morgado ou cabecel de um prazo não era uma doação

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§ 1690. Como a insinuação se destinava a validar algo que parecia pouco


verosímil – a doação puramente gratuita -, não era requerida no caso daquelas
doações que em rigor não o eram por terem uma causa2903. Assim, doação para
instituir um dote (donatio causa dotis), para prestar alimentos ou para causas pias não
tinha que ser sujeita a insinuação2904. Pela mesma razão de que correspondia ao
cumprimento de um dever de gratidão, também a doação remuneratória não
obrigava a insinuação2905. Também a doação por causa de morte (donatio mortis causa)
não tinha que ser insinuada, por, na verdade, se equiparar a uma deixa
testamentária2906. Já as doações régias não tinham que ser insinuadas, mas porque o
doador já tinha essa natureza pública que certificava a seriedade da decisão de
doar2907.
§ 1691. Assim, pela insinuação ou se invalidavam doações simples, realmente
não queridas, ou se transformavam doações simples em doações com causa,
reforçando a sua eficácia.
§ 1692. A determinação de uma causa para a doação mudava o seu regime,
fortalecendo-o. Em geral, a causa validava certas doações aliás inválidas 2908 ou
tornava a doação mais firme, excluindo certas causas de revogabilidade
superveniente que podiam atingir a doação simples, como o nascimento de filhos
do doador2909, a sua pobreza superveniente ou a ingratidão do donatário 2910. Por
isso, as partes podiam ter um interesse vital em alegar e provar a causa da doação,
de modo a fazer com que ela valesse. Realmente, embora uma doação simples
valesse, em princípio, uma doação ob causam, nomeadamente remuneratória (ou ob
benemerita) valia mesmo em casos em que as meramente simples fossem inválidas.
Mas, para que isto acontecesse, não bastava dizer que havia uma causa; era preciso
prová-la2911.

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 3.


2903 António da António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 163, n. 3.

2904 Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1. dec. 135, n. 6; António da Gama, Decisiones [...],

cit., dec. 120, n. 1; António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 11.
2905 Desde que o benefício não excedesse o merecimento, António da Gama, Decisiones […], cit.,

dec. 213, n. 1; também dec. 302, n. 8.


2906 Sobre o seu regime, Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 60 ss.. Quanto à

forma, devia, por isso revestir a do testamento: 5 testemunhas, 2 no caso de ser feita a filho, António
Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 10. Em geral, a escritura de doação devia
conter os nomes de doador e donatário e a descrição precisa da coisa doada, António Cardoso do
Amaral, Liber […], cit., n. 36.
2907 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 3.

2908 Por exemplo, as doações entre pessoas que não pudessem fazer doações entre si (v. abaixo)

2909 As doações ob causam ou as remuneratórias não eram revogadas pelo nascimento de filhos (C,

8, 55, 8, que deu Ord. fil.4, 65), Melchior Febo, Decisiones […], dec 86, 2 ss..
2910 A doação que tivesse uma causa não era revogável por ingratidão, nem carecia de insinuação,

Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 449, António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 163, n. 3.
2911 Nas doações entre pessoas proibidas de doar, a declaração dos merecimentos que se
compensariam com ela não bastava para as validar, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 184, n. 20;
ou dec. 31, n. 20: “Senatus saepe judicavuit non sufficere assertionem meritorum etiam inter personas
non prohibitas donare, si donatio summam a lege taxatam excedant, sed necessarium esse meritorum
probationem, ut si aequivaleant rei donatae, sustineatur donatio, se vero donatio excedat merita, in eo
excessu vitietur”. Para que as doações se digam remuneratórias os benefícios recebidos deviam ser
provados, bem como a sua equivalência com o bem doado (quanto ao excesso, a doação diz-se simples

494
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1693. Podiam doar as pessoas que podiam contratar ou que podiam dispor
dos bens2912. Assim, como os pais e os filhos in potestate eram tidos como sendo a
mesma pessoa2913 e, por isso, não podiam contratar entre si, também não podiam
fazer-se mutuamente doações. Embora o pai pudesse constituir pecúlios aos filhos
ou sustentar os seus estudos e isto, por vezes, fosse chamado de doação, realmente
eram atos unilaterais de disposição dos seus bens (v. cap. 3.2.4). Não podiam doar –
de acordo com princípios comuns a todos os contratos - o furioso, o demente e
outros semelhantes, o menor de 15 anos sem autorização do tutor, o filho-familias,
sem autorização do pai, a não ser pelas forças do pecúlio de que tivesse
administração2914; o mesmo quanto ao religioso ou ao monge sem autoridade do
superior2915.
§ 1694. Quanto à causa da doação (os merecimentos que ela remunerava), para
além de – nas doações remuneratórias - dever ser proporcionada ao bem doado,
sob pena de o excesso deste ser considerado como doação simples ou absoluta,
devia ser possível, lícita e honesta. As doações feitas por uma causa (i.e. a razão de
ser ou finalidade) impossível, de direito ou de facto, eram válidas, se o doador
soubesse dessa impossibilidade, pois se entendia que, se sabia, estava a querer doar
de forma pura ou incondicional2916. Não assim se desconhecesse a impossibilidade
ou se ela fosse superveniente, caso em que a doação seria anulável. O mesmo
acontecia se a causa fosse futura e não se verificasse ou se verificasse por facto
independente da vontade do donatário (“doo para que faças certa coisa e não o
fizeste ou o fizeste [isso foi feito] por outra razão”) 2917.
§ 1695. A imoralidade ou torpeza da causa invalidava a doação. Assim, podiam
ser anuladas (e também revogadas) as doações feitas em fraude dos credores 2918, as
doações feita por homem casado à sua concubina (mas não já por homem
solteiro)2919 ou as doações com finalidades desonestas ou criminosas 2920. Este era o

e revogável), v. Bento Pereira, Promptuarium […], n. 449, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 86,
n. 11. Também António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 8.
2912 Em contrapartida, estavam vedadas aos que não podiam dispor dos bens doados, ou por não

serem donos deles, ou por não poderem dispor dos seus bens, Não se podia doar coisa alheia ou que
tivesse sido confiscada; o usufrutuário não podia doar a plena propriedade; o prelado ou regedor de uma
igreja não podia fazer doações por força dos bens de uma igreja (salvo se isso fosse o costume do lugar);
v. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, ns. 19-23. Mas o patrono poderia doar
bens do padroado sem autorização do bispo (v. ibid. n. 28.
2913 Cf. cap. 3.2.4.

2914 Castrense ou quase castrense, proveniente de exercício das armas ou de outro ofício público,

benefício ou dignidade.
2915 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, ns. 17-18. O credor podia doar

o crédito, tal como um dizimeiro podia doar as dízimas a que tivesse direito, pois se tratava de coisas
que estavam no seu património (ibid. ns. 23 e 27).
2916 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 56.

2917 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 55.

2918 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 37.

2919 Doação feita à concubina por homem solteiro, vale, António Cardoso do Amaral, Liber […],

cit., s. v. “Donatio”, n. 16 e, por isso, o doador não pode repetir o doado, António da Gama,
Decisiones [...], cit., dec. 223, n. 3.
2920 “Datum ob turpem causam, non repetitur, & ex utraque parte extat turpis causa, in pari enim

causa turpitudinis, melior est conditio possidentis […]. Si tamen sit turpiendo ex parte accipientis
tantum repetitur, quod fuit datum, ab illo qui dedit […]. Non tamen si turpituto sit a parte dantios, vel
utraque parte”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 51.

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caso de doações feitas a um oficial para obter um favor contrário aos seus deveres
de ofício (como livrar alguém da tropa, preferir um candidato a um lugar, julgar
num certo sentido, nomeadamente contra direito) 2921. Nestes casos, distinguia-se o
crime de corrupção da validade da doação. O crime verificava-se sempre, quer por
parte do doador, quer por parte do donatário, por causa da peita de um oficial
público. Se o que se pedia era a decisão que correspondia ao que o direito
estabelecia, o doador podia repetir o que doara, pois o donatário não lhe faria
nenhum obséquio em decidir a seu favor e, logo, faltava a causa para doar. Porém,
se o que se pedia era contra o direito, a doação era válida, não podendo o doador
repetir, “pois houvera torpeza de um e de outro lado”, embora o donatário devesse
ser punido mais duramente e indemnizar aquele que fora prejudicado pela sua
decisão ilícita e perder para o fisco a coisa doada 2922. O regime que acaba de ser
referido correspondia à regra geral de que a doação com causa torpe não era
anulável se havia intenção imoral apenas por parte do doador, mas não do
donatário.
§ 1696. Podia ser doado tudo o que estivesse no comércio. Discutia-se a
possibilidade de doar todos os bens, tendendo-se a responder que não2923, tanto por
configurar um ato de prodigalidade, como por induzir a supor que se tratava de
uma doação simulada, para sonegar o património e defraudar interesses protegidos
de terceiros, nomeadamente de credores2924. Os que admitiam uma doação com
este âmbito convertiam-na ou numa doação da herança (com o conteúdo que esta
viesse a ter2925) ou numa doação apenas dos bens presentes 2926. Fosse como fosse,
os credores gozavam sempre de uma actio pauliana para anular a doação enquanto os
prejudicasse2927. Nem as doações de todos os bens feitas à igreja ou por causas
piedosas escapavam a este regime de invalidade, no caso de ofenderem as legítimas
dos filhos (mesmo supervenientes) ou os direitos dos credores; embora se
considerasse que não pecavam por liberalidade excessiva (prodigalidade), sobretudo

2921 As fontes doutrinais usadas referem-se, como exemplo, ao oficial militar encarregado de

recrutamento, ao juiz, ao notário, ao corredor das folhas (i.e. aquele que verificava os antecedentes
criminais de uma pessoa).
2922 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 52-53.

2923“An donatio omnium bonorum reservato usufructo valeat ? Pro utraque parte quaestionis est

opinio, sed neagtiva communior”, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Donatio”, ns. 455-456;
António da Gama, Decisiones [...], cit., d. 348, n. 3.
2924Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Donatio”, n. 457, Miguel de Reinoso, Decisiones

[...], cit., obs. 41, per totam, maxime ns. 1-3, 4 ss..
2925 Como o donatário não era herdeiro não ficava obrigado a pagar as dívidas, cf. Miguel de

Reinoso, Decisiones [...], cit., obs. 42, per totam, maxime, n. 2 ss..
2926 Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit., 41, ns. 8 e 16; António Cardoso do Amaral, Liber

[…], v. “Donatio”, cit., n. 14.


2927 Miguel de Reinoso, Decisiones [...], cit., (“ex donatione omnia bona probatur et convincitur

fraus”). A ação pauliana era um expediente geral para proteger os direitos dos credores à garantia
constituída pelo património do devedor (v. António Cardoso do Amaral, Liber […], “Donatio”, cit., n.
85: “cum aes alienum totum patrimonium respiciat”). Em todo o caso, não era concedida contra bens
doados ob benemerita, porque estes, à sua maneira, também eram devidos e até preferencialmente (já que
estes credores naturais a quem tivessem sido doados bens nem sequer entravam em concurso com os
credores civis, antes os preferiam, por não serem obrigados a restituir os bens). Cf. ainda Álvaro
Valasco Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 188, n. 12 (os credores não podem revogar uma
doação onerosa que os defraude).

496
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

se fossem feitas com a reserva do usufruto, pois nunca se daria de mais a Deus ou
para a salvação da alma2928.
§ 1697. Ainda que não se tratasse de doações de todos os bens, o montante das
doações podia importar a sua invalidade, sempre que fossem inoficiosas, ou seja,
que, pela sua importância (avaliada na altura da abertura da herança 2929),
comprometessem as legítimas dos filhos2930. Os filhos prejudicados dispunham de
uma ação (querela inofficiosae donationis) para obter a sua revogação, mesmo que se
tratasse de doações remuneratórias 2931. No direito comum, a querela inofficiosae
donationis só aproveitava aos filhos legítimos. No direito régio, aproveitava também
aos filhos naturais de plebeu2932. As doações feitas a um filho eram imputadas na
sua legítima e também podiam ser inoficiosas, se ofendessem as legítimas dos
outros2933.
§ 1698. As doações eram passíveis de condições ou de pactos anexos que
condicionassem a sua eficácia. Tais condições ou pactos, na verdade, não faziam
mais do que explicitar a causa que, não sendo realizada, invalidaria a doação. Tal
como se disse quanto à causa, as condições tinham também que ser possíveis, lícitas
e morais2934. Se a condição não fosse satisfeita pelo donatário (v.g. prestação de
alimentos), caía a doação, tendo o doador uma reivindicação contra o donatário2935.
§ 1699. A doação podia, também, conter um termo (ad tempus)2936.
§ 1700. O contrato não tinha uma forma prescrita (Ord. fil.4,62,1), a não ser
quando tivessem por objeto algo cuja transferência exigisse escritura pública (Ord.
fil. 3,25 e 30; 4,10 e 19). As doações mortis causa requeriam a forma dos testamentos
(D. 39.6, de mortis causa donationibus, 38).
§ 1701. O contrato de doação perfazia-se pela tradição da coisa ou pela
aceitação do donatário2937; no caso de doação com retenção do usufruto dizia-se
que a coisa se transferia “por ficção”2938.
§ 1702. A revogação da doação era autorizada ou pela superveniência de
filhos2939, já que se presumia que isso teria sido relevante na decisão do doador, ou

2928Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 465, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 240,

n. 3; António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Donatio”, cit., n. 12-13.


2929 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 189.

2930 Sobre o seu regime, no direito comum, castelhano e português, Bento Pereira, Promptuarium

[...], cit., s. v. “Donatio”, n. 460; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 188, ns 1-2.
2931 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 188, n. 5.

2932 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 94, ns. 7-8 e 15

2933 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, ns. 84, 87.

2934 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 90.

2935 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 32; a condição de não

alienar ou de não alienar senão a certa pessoa, tornava nulas as vendas supervenientes feitas pelo
donatário, pois se tinha vendido uma coisa que não se tinha recebido, por falta de realização da
condição e, consequentemente, de consumação da doação, v. António Cardoso do Amaral, Liber […],
cit., s. v. “Donatio”, n. 33; a doação de um ofício para quando vagasse pela primeira vez consome-se se
o donatário não o aceitasse dessa vez, cf. ibid. n. 35.
2936 António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Donatio”, cit., n. 45.

2937 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 44.

2938 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 31.

2939 Legítimos, naturais, mas não espúrios, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.

“Donatio”, n. 43.

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por ingratidão do donatário, a qual anulava a causa de doar2940. As doações


remuneratórias não estavam sujeitas a este regime de revogação, pois se entendia
serem pagamentos devidos e, por outro lado, porque nestes casos o donatário não
tinha porque ficar obrigado ao doador. Assim, a revogabilidade só existia nas
doações simples e, porventura, nas doações de dote 2941. Também não eram
revogáveis as doações acompanhadas de um pacto de non revocando2942.
6.9.2.1.2 As doações de bens da coroa ou doações régias.
§ 1703. Em Portugal, mereceram um tratamento especial as doações de bens da
coroa, feitas pelo rei (v. cap. 2.4.3.5) 2943. Não tanto, no que diz respeito ao seu
regime como doações, mas sobretudo em virtude do objeto doado: jurisdições e
bens da coroa (v. cap. 4.2.2.3).
§ 1704. Como doações, partilham com as outras uma comum natureza de atos
beneficiais, com todos as suas consequências. Vale, para elas, tudo o que foi dito
acerca da causa e da distinção, a partir daqui, entre doações simples ou puras e
doações remuneratórias. Quanto a isto, a doutrina – aparentemente mais próxima
dos interesses dos donatários do que dos interesses do rei - insistia no caráter
remuneratório das doações, com fundamento na insistência com que o direito
régio, desde uma lei de 8.4.14342944, sublinhava a natureza não feudal das
concessões de terras, o que implicava que o serviço que os vassalos prestavam ao
rei não era obrigatório, mais voluntário ou liberal. Este caráter não obrigatório,
gratuito, dos serviços geraria no rei sentimentos de gratidão, causa de uma
obrigação antidoral de remunerar esses serviços com mercês. A doutrina desde
cedo que tendeu a considerar que o rei tinha o dever de retribuir com mercês os
serviços dos seus vassalos, que as doações de jurisdições e de bens da coroa eram
um dos tipos dessa retribuição e que, portanto, essas doações eram remuneratórias
e quase tão firmes como contratos onerosos, nos termos já descritos 2945.
§ 1705. As Ordenações (v. Ord. Man. 2,17,12; Ord. fil.2,35,2) estabeleciam a
obrigatoriedade de renovação das doações de bens da coroa aos filhos dos
donatários que tivessem morrido na guerra. Este texto era invocado como uma
afloração do princípio mais geral da irrevogabilidade das doações remuneratórias.
Na verdade, subentendia-se – um tanto forçadamente - que a obrigatoriedade de
renovar equivalia à proibição da revogação. E que, portanto, a obrigatoriedade da
confirmação da doação era uma extensão do princípio da irrevogabilidade das
doações remuneratórias.
§ 1706. Esta firmeza contratual das doações era ainda reforçada pela

2940 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, ns. 39-40. A decisão de revogar

a doação devia ser tomada no prazo de 5 anos sobre os atos de ingratidão, ibid. n. 40. A ingratidão não
podia ser invocada pelos herdeiros do doador, mas podia sê-lo pela sua mãe.
2941 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 41. Sobre as doações

para casamento (propter nuptias) e as doações de dote (donationes dotis), v. a secção sobre os regimes de
bens do casamento. Sobre os seus regimes, como doações, v. ibid. ns. 63 ss..
2942 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Donatio”, n. 68.

2943 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 388 ss..

2944 Cf. depois, Ord. Man. 2, 17 (“queremos que nom sejam avidas por terras feudaes, nem ajam

natura de Feudo”).
2945 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 408 ss..

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

desnecessidade de insinuação. De facto, no rei coincidiriam, como qualidades


essenciais, a liberalidade e a magnanimidade. Nestes termos, a virtude de ser liberal
nunca degeneraria no vício da prodigalidade, pois a grandeza da alma do rei levá-lo-
ia a ser excessivo nas mercês. E, assim, o favor régio nunca teria que ser avaliado
quanto a excessos.
§ 1707. Em contrapartida, a especial natureza das coisas doadas – jurisdições e
bens da coroa - restringia esta firmeza. É que a Lei Mental, incorporada nas
Ordenações (Ord. fil. 2, 35)2946, estabelecia uma série de princípios sobre as doações
destes direitos reais (regalia), alguns dos quais enfraqueciam muito as garantias dos
donatários: nomeadamente, o caráter pessoal (intuitu personae)2947 da doação e a
proibição de que tais bens fossem alienados pela coroa, mantendo sempre a sua
natureza de bens do reino (da coroa do reino, bona regiae coronae), mesmo se doados.
Por isso é que as doações tinham que ser confirmadas, tanto por morte do
donatário – por causa da sua natureza pessoal -, como por morte do doador –
porque o rei tinha que deixar o património da coroa íntegro ao seu sucessor. Este
caráter precário das doações régias, estabelecido pela Lei Mental, foi em larga
medida subvertido pela doutrina, logo a partir do séc. XVI, justamente com base na
ideia de que se tratava de doações remuneratórias. Tendo esta natureza, havia como
que um direito do donatário – ou dos seus herdeiros2948 – à confirmação da doação,
quando a lei exigisse que ela fosse confirmada 2949, ao mesmo tempo que a
revogação das doações feitas era tida como contra direito, a não ser por ato grave
de ingratidão (nomeadamente, violação de deveres estritos de vassalo) 2950.
“Princeps regulariter non revocat donationes a se factas”, pelo menos sem uma
causa ponderosa, escrevia Gabriel Pereira de Castro 2951. A doutrina era, em geral,
muito favorável aos donatários. Para além da ideia de doação remuneratória e dos
correspondentes direitos do donatário à confirmação, os juristas jogavam ainda
com a aquisição dos bens doados por prescrição de 40 anos depois da primeira
doação2952, com a consolidação da doação feita na sequência de um contrato 2953 e,
finalmente, com o princípio de que a falta de confirmação não privava os
donatários do uso dos bens doados 2954.
§ 1708. Para se precaver quanto à arguição da nulidade das doações régias por
violarem o direito ou os direitos de particulares, os reis costumavam inserir na

2946 Cf. com mais detalhes, António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 402 ss..
2947 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […}, cit., s. v. “Donatio”, n. 466; Jorge de Cabedo,
Decisiones […], cit., p. 2, dec. 5, n.3.
2948 De acordo com a ordem especial de sucessão nos bens da coroa, prevista na Lei Mental. Sobre

o problema geral da sucessão nos benefícios, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 31, ns. 5-6.
2949 As doações podiam ser de três tipos: por uma vida, pela vida do concedente, ou
perpetuamente, v. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 5, n. 2 ss.; sobre a prática das
confirmações de doações régias, v. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 408 ss..
2950 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p.2, dec. 95, 12 ss.; p.2, dec. 75, ns. 5 ss. (v. 13:

revogação por lei geral).


2951 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 6; embora estes princípios fossem

compensados pela ideia de que a causa se presumia (“in revocatione Principi causa praesumenda est”,
ibid. n. 7).
2952 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 8.

2953 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], v. “Donatio”, cit., n. 38.

2954 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], ibid..

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doação certas cláusulas de estilo. A jurisprudência cautelar incluía nestas cláusulas


(i) a afirmação do rei de que estava plenamente ciente da situação de direito e de
facto (ex certa scientia), (ii) de que era de sua própria vontade (motu proprio) aquilo que
dispunha na doação, (iii) sem embargo de quaisquer direitos em contrário (non
obstantibus), (iv) que revogava tão expressamente como se os tivesse expresso na
carta (pro expressis), (v) recorrendo, se necessário fosse, ao seu poder extraordinário
de rei (“de poder absoluto”, plenitudo potestatis). Daqui decorria a forma de estilo:
"Doo, de moto proprio, com ciência certa e poder absoluto, e não obstante
quaisquer direitos, que tenho por expressos, etc.". Com isto, as doações régias
adquiriam, dizia a doutrina, força de lei, dispensando qualquer direito ou direitos,
mesmo que apenas com levíssima causa2955.
§ 1709. Algumas divergências dos historiadores quanto à dependência ou não
dos senhores de terras em relação ao rei provêm justamente de nem todos se
aperceberem desta dualidade da natureza das doações régias. Por um lado, elas
estão sujeitas ao regime “centralizador” das Ordenações. Por outro lado, este regime
assenta sobre o regime geral das doações, tal como era desenhado pela tradição do
direito comum. Embora mais obscuro para os historiadores, este último regime era
muito favorável aos donatários, ao supor que estes tinham direito e ação à mercê e
que, por isso, a doação, como remuneratória, tinha uma eficácia próxima dos
contratos onerosos. A prática – outro nível de análise por vezes descurado -,
confirma a firmeza das doações régias, quase invariavelmente confirmadas e só
muito raramente revogadas2956.
§ 1710. A doutrina aproximava da doação outros tipos de contratos nominados
em que apenas uma das partes prestava. Limitando-se a outra a assentir. Então,
costumavam designar-se por contratos gratuitos; hoje, predomina a designação de
unilaterais.
6.9.2.1.3 O comodato ou empréstimo.
§ 1711. Um deles era o comodato (Ord. fil.4,50 [mútuo] e 4,53 [comodato];
D.13,6, Commodati vel contra) – também designado vulgarmente por “empréstido”
(arcaico) ou empréstimo, isto é, a cedência graciosa de coisa não fungível, para um
certo e determinado uso, para certo fim e por certo tempo, com a obrigação da sua
restituição.
§ 1712. Distinguia-se do mútuo, que incidia sobre coisa fungível; do precário,
que não especificava um uso certo, nem um certo tempo, sendo apenas uma
cedência livremente revogável; e da locação-arrendamento, em que a cedência não
era graciosa, mas onerosa2957.
§ 1713. O comodato podia incidir sobre coisas móveis, semoventes (animais)
ou imóveis, ou ainda sobre direitos, como a servidão de habitação (i.e. empréstimo

2955 Agostinho Barbosa, Tractatus varii […] De clausulis […], cit., clausulae 41 e 59, n. 1; Domingos

A. Portugal, Tractatus de donationibus […], liv. 3, cap. 44, ns. 17 a 21.


2956 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit., 408 ss..

2957 “Commodatum est gratuita concessio alicuius rei, facta specialem usum & cum tempore

definito tacite vel expresse (commodo tibi equum ad eundem Romam, librum ad transcribendum)”. Na
falta de especificação do uso ou do tempo, tratava-se de um precário António Cardoso do Amaral,
Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, 1. Cf. também Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3,
4.

500
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

de uma casa para morar, v. cap. 4.3.9); mas não já sobre coisas que se consumissem
pelo uso, a não ser que estas não fossem para usar, mas apenas para ostentação 2958.
A coisa emprestada devia pertencer ao comodante 2959. Se o fim da cedência da coisa
constasse do contrato, o uso para outro fim configurava furto de uso, gozando
então o comodante de uma actio furtiva para recuperar a coisa, mesmo antes de
decorrido o prazo2960. Não devia haver qualquer retribuição pelo uso da coisa, aliás
tratar-se-ia de locação2961
§ 1714. O comodato era irrevogável antes de se cumprir o prazo ou realizar a
finalidade para que se fizera a cedência2962, ao contrário do que acontecia no
precário, livremente revogável, pois não se convencionava a finalidade da cedência,
nem um prazo para a restituição2963. Morrendo o comodante ou o comodatário, o
contrato transferia-se para os herdeiros2964.
§ 1715. Como era cedida uma coisa determinada para certo fim, o comodante
devia informar o comodatário dos vícios da coisa 2965. O comodatário era obrigado
às despesas necessárias e normais de manutenção da coisa 2966.
§ 1716. Existia alguma especificidade nestes contratos relativamente a saber
sobre quem recaía o dano da coisa. Em regra, o dano recaía sobre o dono da coisa
(res suo domino perit; Ord. fil.4,50,pr e 4,53,1), salvo convenção em contrário. Na
verdade, o domínio da coisa não passava para o comodatário, continuando o
comodante a ser o dono dela. O dano doloso responsabilizava aquele que tivesse
tido a intenção de o causar. Mas o facto de uma das partes obter os benefícios
gratuitamente fazia com que respondesse tanto pelo dano doloso como também
pelo culposo, mesmo que a culpa fosse levíssima (Ord. fil.53,2)2967, pois o negócio
tinha sido gratuito para si. Já se o comodato tivesse sido contratado também em
proveito do comodante, a responsabilidade do comodatário reduzia-se, pois já não
se tratava de um negócio gratuito, ou totalmente gratuito, para ele 2968. No precário e
depósito, em que o emprestador podia revogar livremente o contrato se entendesse

2958 Como o empréstimo de dinheiro apenas para que o comodatário ostentasse riqueza. Neste

caso, embora a restituição não tivesse que ser a das mesmas moedas, mas apenas da mesma soma, as
moedas não eram consumidas, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, 4.
2959 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, 6.

2960 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, 7.

2961 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, 10.

2962 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, 2

2963 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 3.

2964 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 4.

2965 Respondendo pelos prejuízos caso soubesse dos vícios e não os comunicando ao comodatário,

António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 9.


2966 Mas não se estas fossem elevadas, como o tratamento caro de um escravo emprestado ou a

sua recuperação no caso de fuga (António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”,
n. 15).
2967 As distinções da culpa em grave, leve e levíssima (lata, levis, levissima) eram de direito romano.

A calibragem da culpa originava, porém, grandes incertezas doutrinais (v. cap. 8.1.4.2).
2968 Exemplo de comodatos com os quais o comodante tinha benefícios: o empréstimo de roupas

para o comodatário ir visitar o comodante, em que lucrava a reputação do comodante (neste caso, o
comodatário respondia apenas por dolo e culpa grave); empréstimo de baixela para receber um amigo
comum em casa do comodatário (este responde por dolo e culpa, como na venda. locação, etc.). Cf.
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 13. Cf. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 4, 4, v.

501
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que a coisa corria riscos na mão daquele que detinha a coisa emprestada, este
último apenas respondia por dolo. O comodatário apenas respondia por caso
fortuito em três casos: se tivesse tido culpa na geração do caso fortuito, se isso
tivesse sido pactado, ou se estivesse em mora2969. Ou seja, o comodatário não
respondia pela deterioração ou perecimento da coisa cedida se lhe tivesse dado o
uso contratado e se ela se tivesse deteriorado sem culpa sua 2970. Diferentemente no
caso de mútuo, pois o mutuário adquiria o domínio da soma mutuada e, por isso,
recaía sobre ele o prejuízo da perda fortuita, em obediência ao princípio de que
recai sobre cada um o prejuízo da perda das próprias coisas (res suo domino perit)2971.
§ 1717. Se a coisa se tivesse perdido, sendo o comodatário responsável de
acordo com as regras anteriores, estava obrigado a restituir o seu valor
(aestimationem)2972.
6.9.2.1.4 O mútuo.
§ 1718. Outro contrato gratuito era o mútuo, um contrato gratuito que “fazia
do meu teu”, como explicavam os autores a partir de um ingénuo argumento
etimológico (“meum”+”tuum”). Constava de uma cedência gratuita e por certo
tempo, de uma quantidade de coisas fungíveis, ou seja, que se especificassem
apenas por conta, peso ou medida - o que incluía a moeda, mas também cereais,
vinho, azeite, metais, lenha, etc. - ou que se consumisse pelo uso (Ord. fil.4,50)2973.
Como contrato gratuito, o mútuo não dava origem ao pagamento de uma
contraprestação pelo uso da coisa (usuras); se o devedor restituísse algo mais
(crescimento) do que o emprestado (principal), então o contrato transformava-se
num de mútuo oneroso ou usura2974, salvo se esse acréscimo correspondesse aos
juros de mora, que compensavam a dilação do pagamento.
§ 1719. No direito romano, o mútuo era sobretudo tratado a propósito do
senac. Macedoniano, que proibia os empréstimos de dinheiro a filhos-família,
concedendo-lhes uma exceptio para inutilizar a condictio (actio mutui) do credor. Os
filhos não eram, por isso, obrigados a pagar e, se pagassem voluntariamente,
dispunham de uma condictio (indebiti) para recuperarem o que tinham pago, pois,
nestas circunstâncias, o mútuo não gerava nem obrigação civil, nem natural 2975. A
proteção dos filhos era tão forte que se entendia que eles nem sequer ficavam
obrigados por terem jurado cumprir2976. Não valia, no entanto, para os filhos que

2969 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 16.
2970 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 14.
2971 “Commodatarius non possidet rem comodatam, sed semper dominium remanere apud
commodantem […]”; já no mútuo, embora o mutuário adquirisse o domínio das coisas, elas não
pereciam, porque “as coisas genéricas nunca se perdem” (“mutuarius consequitur dominium pecuniae
mutuae, & obligatur in genere [genus nunquam perit]: perdeu aquelas moedas, mas restitui outras]”,
António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, ns. 16-17.
2972 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Commodatum”, n. 5.

2973 “Mutuum est quod aliqui praestatur ut tempore reddat”, António de Nebrija, Vocabularium

[…], cit., v. Mutuum”. V. também Manuel Barbosa, Remissiones […], ad Ord. fil. 4, 50. Fontes romanas:
D.12.1 De rebus creditis si certum petetur et de condictione; C.4, 1, De rebus creditis, e C.4, 2, Si certum petatur.
2974 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit, 1, 8, 14-15.

2975 Cf.. Manuel Barbosa, Remissiones […], ad Ord. fil. 4, 50, n. 3-4. Normalmente, o mútuo gerava

uma actio mutui a favor do mutuante.


2976 No direito português (e no espanhol) a ratificação dos contratos por pactos jurados não era

502
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

estivessem longe, como soldados ou como escolares, e que pedissem emprestado


para as despesas relacionadas com as suas atividades, caso em que ficavam
obrigados, bem como os pais por eles (Ord. fil. 4,50,4).
§ 1720. Porém, as situações em que se pedia dinheiro ou géneros por algum
tempo – num aperto, até à próxima colheita (São Miguel, 29 de Setembro), até à
venda do gado, até à abertura do vinho novo (ou matança do porco, São Martinho,
11 de Novembro), até ao regresso de viagem, até à feira – deviam ser muitíssimo
correntes, fazendo parte dos processos correntes de sobrevivência e de
financiamento das sociedades camponesas. Os juristas portugueses de seiscentos,
porém, raramente se ocupavam do mútuo simples, decerto porque demandas sobre
ele raramente chegassem ao foro. Interessava-os, sim, o mútuo oneroso, ou usura,
um tema muito discutido na doutrina jurídica e teológica medieval e moderna.
6.9.2.1.5 A usura.
§ 1721. A usura – ou seja, o empréstimo de dinheiro contra o pagamento de um
crescimento ou usuras, em virtude pacto prévio ou de espectativa nesse sentido 2977 -
era tida como proibida pelos direitos divino e natural e, segundo a opinião comum,
também pelo direito civil2978. Para além de ilícita, a usura era crime e pecado mortal,
além de que negar isto constituía heresia2979. Porém, como emprestar dinheiro era
uma graça, o tema da usura recaía na discussão acerca dos deveres de gratidão e da
forma de os compensar; e, assim, não se considerava ser usuras aquilo que o
devedor oferecesse ao credor como expressão da sua gratidão, atentos o valor da
dádiva e a riqueza e condição dos intervenientes 2980. Todo o excesso do pagamento
sobre o capital mutuado era ilício e imoral, pois embora quem emprestasse corresse
riscos, esse lucro não seria honesto, “indo para além da natureza do mútuo” 2981.
§ 1722. Esta ideia de que da natureza do mútuo fazia parte apenas a restituição
da coisa, permitia, no entanto, que se incluíssem nesta os seus “crescimentos
naturais”, como os frutos das sementes, as crias dos animais (mas não o parto das
escravas)2982. Por outro lado, o facto de se ter o dinheiro parado e sob risco num
banco (ou monte de piedade, “montepio”) autorizava a que se recebesse algo para
além do capital aí depositado2983. Daí que os costumes do lugar ou a lei do príncipe
pudessem estabelecer um montante legítimo para o crescimento do capital. Em
Portugal, legislação do séc. XVII fixou em 5 % o juro justo para certos negócios,

permitida (para não alargar a competência dos tribunais eclesiásticos).


2977 “Usura est quidquid sorti principali accedit; lucrum tacitum, vel expressum quod ratione mutui

suscipitur, pacto seu spe praecedente”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n.
1.
2978 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 2.

2979 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 4.

2980 “Non est usura recipere aliquid ultra sortem principalem, gratia oblatum a debitore, cum

tamen creditor sine spe illius mutuasset. Considerata tamen quantitate donati, & paupertate, seu
liberalitate debitoris donantis. Si autem mutuans haberet mentem depravatam sperando aliquid a
debitores usuram commiteret”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 1.
2981 Cf.. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 4.

2982 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 6 (“hoc tamen non habet

locum in foetu ancillarum, quamvis in foetu pecudum locum habeat”). Cf. a discussão de outros casos
(vender uma coisa por preço superior ao da compra, n. 8; comprar com obrigação de retrovender, ns.
9-10) nos números seguintes.
2983 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 15.

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como a compra de rendas (v. cap. 4.3.4).


§ 1723. Os contratos usurários eram nulos de pleno direito, podendo esta
nulidade ser invocada pelos próprios (“contra factum proprium venire” 2984)2985. Os
usurários conhecidos2986 incorriam em excomunhão automática (ipso iure), eram
privados de sepultura cristã 2987, eram infames e indignos de ocuparem benefícios ou
ofícios2988, viam os seus testamentos anulados, deviam ser expulsos das corporações
de que fizessem parte, bem como ser expulsos por quaisquer autoridades das terras
sob a jurisdição2989.
§ 1724. Esta agressividade em relação à usura tinha, porventura, relação com a
agressividade antijudaica da cultura europeia moderna, em que a figura do usurário
era relacionada com o “judeu onzeneiro” (o que cobrava juros a 11 %, ou seja, a
mais de 10 %, a décima que se pagava a Deus e se podia exigir aos familiares 2990).
Mas relacionava-se seguramente com a antipatia que a cultura tradicional tinha pelo
que lucrava com a pobreza e necessidade dos outros, pelo que tirava rendimento de
coisas inertes que, como o dinheiro, não se reproduzem (“nummi non faciunt
nummos”). Uma antipatia que, mais moderadamente, se alargava à finança e ao
comércio, outra atividade especulativa estranha às comunidades camponesas de
outrora.
6.9.2.1.6 O lucro legítimo dos comerciantes. O contrato de câmbio.
§ 1725. Como o direito comum se organiza segundo uma lógica corporativa,
assente na ideia de que cada grupo (ou corporação) goza do seu direito, a doutrina
entendia que o grupo específico dos comerciantes, dedicado justamente a lucrar
com a atividade de comprar e vender, estava por natureza desobrigado de um
direito que não reconhecia a legitimidade do lucro, regendo-se por um direito
diferente2991.
§ 1726. Uma das diferenças dizia respeito a uma atitude positiva quanto ao
lucro, ou seja, ao facto de a mera transação de uma coisa poder gerar, por si mesma,
um excesso no seu valor. “Diz-se lucro – escreve António da Gama2992 – aquilo que
sobra, uma vez deduzidos os gastos [na compra da coisa e na sua conservação], a
avaliação do trabalho [de a comprar, manter e vender] e os danos”.
§ 1727. O lucro justificava-se pela natureza da própria atividade do

2984 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 8.


2985 V. Ord. fil.4, 67.
2986 Ou seja, os condenados como tal, ou confessos em juízo (António Cardoso do Amaral, Liber

[…], cit., s. v. “Usura”, 18), ou os que tivessem essa fama pública (ibid. n. 19, onde se discorre sobre a
prova da usura). O crime era de foro misto, podendo ser conhecido por uma e outra jurisdição (ibid. n.
20).
2987 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 16.

2988 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 21-22.

2989 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Usura”, n. 13.

2990 Cf. Deuter. 24, 19-20.

2991 Sobre contratos de comerciantes em Portugal nas épocas medieval e moderna, v. Filipe

Themudo Barata, “Negócios e crédito [...]”, cit..


2992 António da Gama, Decisiones […], cit., d. 110, n. 26. Ou “lucrum dicitur quod superest

deducto capitali […]”, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 47, n. 28.

504
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

comerciante, que acrescentava, por si mesma, valor às coisas2993. Por isso, qualquer
dilação no pagamento de uma compra a um comerciante interrompesse esse fluxo
de criação de valor, impedindo-o de realizar lucros. Por isso, o juro exigido pela
espera do pagamento era como que uma indemnização (tantundem) ao
credor/comerciante pelo que ele poderia ter ganho se tivesse recebido o dinheiro
antes2994 (“lucro cessante”2995). Daí que a prova que era preciso fazer para se
justificar o juro era a de que aquele comerciante concreto, se tivesse tido aquele
dinheiro nas mãos, teria comprado coisas que, naquelas circunstâncias de mercado,
teriam dado certo lucro2996. Ou seja, o lucro – e, logo, o juro - não se podia estimar
em abstrato nem fixar-se numa quantia certa, pois variava com o tempo e o
lugar2997.
§ 1728. Nestes termos – apesar de tudo, limitados –, o dinheiro dado, entre
comerciantes, sob certo juro, “à rezam de juro”, não constituía usura reprovada2998.
§ 1729. Outro negócio próprio dos comerciantes e em que também se
verificava algum excesso entre a quantia a pagar e a quantia originalmente devida
era o contrato de câmbio.
§ 1730. O contrato de câmbio2999 era o contrato pelo qual alguém se
comprometia a fazer pagar a outrem, em lugar diferente, uma certa quantia, dando
uma correspondente ordem de pagamento expressa num escrito formal (carta ou
letra de câmbio).
§ 1731. Originariamente, o contrato de câmbio destinava-se a resolver o
problema da distância entre o devedor e o credor, bem como, eventualmente, o da
diversidade de moedas. Para isto, o devedor (“sacador”, “passador”, scribens) dava
uma ordem (“saque”) a um seu correspondente numa praça estrangeira (“sacado”),
pelo qual este deveria pagar certa soma, à vista 3000, num certo prazo ou numa data
fixada na letra, ao credor do devedor designado na letra (“tomador”, “cobrador”,
recipeins). A ordem devia ser aceite pelo sacado (“aceite”). O beneficiário da letra
podia, por sua vez, ceder a terceiros os seus direitos de receber aquela quantia, por
meio de uma transferência de crédito, escrita sobre a letra, a que se chamava
“endosso” (ou “pertence”). Uma vez aceite a ordem pelo sacado, este ficava a ser o
primeiro responsável pelo pagamento, liberando/exonerando o sacador. Não se
verificando o aceite, o tomador devia denunciar formalmente este facto mediante

2993 A análise clássica da figura do comerciante é a de Werner Sombart (1863-1941): Der moderne

Kapitalismus. Historisch-systematische Darstellung des gesamteuropäischen Wirtschaftslebens von seinen Anfängen bis zur
Gegenwart, 1916, reed. München, DTV, 1987; Luxus und Kapitalismus, München, Duncker &
Humblot, 1922.
2994 António da Gama, Decisiones […], cit., 110.

2995 Distinção entre dano emergente e lucro cessante em Miguel de Reinoso, Observationes […], cit.,

obs. 9, per totam.


2996 Provava-se por testemunhas, que testificassem todos estes pontos, António da Gama,
Decisiones […], cit., dec. 110, n. 16 e 20; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 107, n. 6 [ambas as
decisões são todas elas interessantes].
2997 A menos que, desde o princípio, se pudesse calcular, António da Gama, Decisiones […], cit.,

dec. 110, n. 18-19. Também era natural que se mantivesse nas ocorrências seguintes de uma feira,
Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 2.
2998 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 84, n. 3.

2999 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 27.

3000 À vista da letra, i.e. na sua apresentação a pagamento.

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“protesto”, ou seja, um ato formal perante um notário público, que certificasse a


falta de aceite. O protesto tinha o efeito de responsabilizar de novo o sacador pelo
cumprimento da obrigação3001, dando também ao tomador uma ação contra o
sacador para lhe exigir o montante em dívida e os juros 3002.
§ 1732. A letra era um documento formal, que devia conter todas os dados que
permitissem identificar a obrigação (o tempo do pagamento; a quantia a pagar; o
lugar da emissão; a data de emissão) e os vários obrigados (nome do sacador, do
sacado e do tomador; eventualmente dos beneficiários de endosso)3003. Uma vez
emitida, a letra titulava o negócio, que passava a valer tal como constava dela, sem
que se tivesse que averiguar a sua causa ou as suas circunstâncias. Por isso, o
negócio não podia ser alterado ou rescindido, depois de emitida e aceitada a
letra3004. Por isso também, a letra era um instrumento muito flexível na sua
utilização, já que a causa por detrás de cada uma das obrigações dela constantes era
irrelevante. O sacador podia ser o devedor e o sacado um seu agente. Mas o
sacador também podia ser o credor e o sacado o devedor, como quando, numa
venda com espera de preço, a emissão da letra se destinava a que o credor pudesse
obter de terceiro, a quem endossava a letra e transmitia o seu crédito, a imediata
realização do preço (“desconto da letra”).
§ 1733. O contrato de câmbio podia dar origem a crescimentos do capital,
justificados ou pela dilação no tempo do pagamento, ou pela distância entre o lugar
de emissão da ordem de pagamento e o lugar da satisfação deste ou pela diferença
de moedas na praça do devedor e na praça do credor. Existiam outros documentos
mercantis, pelos quais se notificavam dívidas, por exemplo, as “cartas de aviso”.
Mas estas não tinham os efeitos jurídicos da letra3005.
§ 1734. A ação cambial era sumaríssima (Ord. fil. 3,25)3006.
6.9.2.1.7 O precário.
§ 1735. Outro contrato gratuito era o precário3007, um contrato gratuito que
consistia na concessão gratuita do uso de uma coisa por um tempo
indeterminado3008, podendo ser livremente revogado (“quando cumque ei placuerit,
& propria authoritate”), desde que da distratação não resultasse prejuízo para o
precarista3009. A doutrina distinguia entre o precário em sentido estrito (precarium

3001 O sacador ficava obrigado até ao aceite, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec.

126, n. 4-5. Na falta de aceite, o sacador ficava obrigado, Melchior Febo, Decisiones […], dec. 207.
3002 Melchior Febo, Decisiones […], dec. 217, n.6. Sobre o processamento das letras das praças do

norte da Europa (Holanda), Roma e do reino, ilhas e Brasil, “Estilos mercantis da Praça de Lisboa, e
Reyno de Portugal”, em Manuel Solano do Vale, Index […], cit., vol. 3, v. Mercatura, p. 271 ss.);
Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 4, ad. Ord. fil. 1, 51, gl. 4, cap. 4.
3003 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 336, n. 1.

3004 Melchior Febo, Decisiones […], dec. 203, n. 7; dec. 208, ns. 7-8.

3005 António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 336, n. 1.

3006 Fonte: Clementinas, 5, 11, 2 Saepe contingit.

3007 D.43.26, de precario, 1; C.8, 9, De precario et de Salviano interdicto; António Cardoso do Amaral,

Liber […], cit., s. v. “Precarium”, ns. 1 e 3; Álvaro Valasco, Tractatus de iure emphyteutico […], cit., p. 1,
qu. 34; Luís de Molina, Tractatus de iustitia […], cit., tract. 2, disp. 294 e 298; Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 4, 2, 7.
3008 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 2, 7.

3009 Por isto se distinguia da doação que só excecionalmente podia ser revogada. Não se podia

506
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

neutris generis) e as concessões vinculados a um certo tempo ou periodicidade, como


a concessão de uma renda periódica ou de uma terra por períodos de um ano, ou
de um quinquénio, renováveis enquanto o concedente quisesse, atendíveis os usos
locais. A este tipo de precário, que se aproximava das concessões enfitêuticas,
renováveis por períodos, ad nutum, chamavam precário feminino (precarium foeminini
generis, talvez para evocar a sua natureza não tão rígida 3010.
§ 1736. O precário podia consistir na cedência de bens, móveis, semoventes e
imóveis, ou de direitos3011.
§ 1737. O precário era uma concessão pessoal, que se extinguia por morte do
precarista, mas não do concedente, embora os herdeiros deste mantivessem a
possibilidade de o rescindir3012. Também se extinguia pela venda da coisa, a menos
que o novo dono o renovasse3013
§ 1738. O precarista só responde por dolo e culpa grave, como já referido.
6.9.2.1.8 O depósito.
§ 1739. O depósito era também um contrato gratuito. Pelo depósito, alguém
recebia do proprietário de uma coisa, móvel ou semovente, a sua posse, para
guardar essa coisa até que ela lhe fosse pedida de novo, sem exigir por isso qualquer
recompensa3014. Se houvesse uma retribuição ao depositário, já não se tratava de um
depósito, mas de um outro contrato (inominado) 3015. O domínio e propriedade
ficavam no depositante3016.
§ 1740. O depósito podia ser convencional ou judicial (por autoridade do juiz:
Ord. fil. 1,62,26; 3,86: 4,49). Para estes casos, podiam existir depositários públicos.
O depósito judicial dava-se no caso dos bens penhorados3017 ou no caso de as
coisas em litígio correrem risco de se perderem. Neste caso, chamava-se
sequestro3018; era excecional, verificando-se apenas por receio justificado e
importante de risco para as coisas objeto do litígio (magna et justa causa3019). O
depósito de certa quantia (pecunia numerata) era considerado como mútuo3020. Na
verdade, o comodato ou o mútuo eram considerados como depósitos

convencionar a não revogabilidade do precário, por isso ser contra a natureza do contrato, António
Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Precarium”, n. 3.
3010 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Precarium”, ns. 3-4.

3011 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Precarium”, n. 4.

3012 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Precarium”, n. 6.

3013 António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Precarium”, n. 7.

3014 “Depositum est illud quod custodiendum alicui datur, ut suscipiens, restituatur illammet rem,

quam susceperit”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 1. Fonte
romana: D.16, 3 Depositi vel contra; fonte de direito português: Ord. fil. 4, 49, 1. Bibl.: Luís de Molina,
Tractatus de iustitia […], tract. 2, disps. 522-527; Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., 404 ss.; Pascoal
de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 8.
3015 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 1.

3016 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 2.

3017 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 406; chamava-se negócio fiduciário.

3018 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 3; s. v. “Sequestratio”;

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 9.


3019 Como pena, no caso de delito capital; como medida preventiva, em caso de receio de rixa ou

tumulto; como medida de segurança da coisa (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 9).
3020 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 12.

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irregulares3021.
§ 1741. Também a mulher ou as filhas podiam ser objeto de depósito, o que era
frequente na pendência de uma ação de separação, por exemplo por sevícias 3022.
§ 1742. O depositário tinha as coisas apenas para a sua guarda e não para as
usar; se as usasse contra a vontade do depositário, era obrigado pelo depósito (actio
depositi) e pelo furto (actio furti)3023. Devia restituir a coisa, quando pedida, não
gozando do direito de retenção (v.g. para ser reembolsado de despesas necessárias
feitas com a coisa)3024, nem podendo invocar nenhuma circunstância para se eximir
à restituição (v.g. a compensação)3025, já que o escrito de depósito tinha o valor de
título executivo a favor do depositante 3026. Nada podia alegar para impedir a
exibição e entrega, nem compensação, nem despesas. Esta obrigação estrita de
imediata restituição ainda podia ser reforçada pela inserção no contrato da clausula
depositaria, pela qual as partes convencionavam que não se ouvisse o depositário em
juízo antes de entregar a coisa ao depositante, embora fosse frequente que o
depositário obtivesse uma dispensa régia, para poder alegar em juízo antes de
efetuar a restituição3027. A falta de entrega originava a prisão do réu3028.
§ 1743. O depósito fazia-se, em regra, por comodidade do depositante. Este
facto, combinado com a circunstância de a propriedade da coisa depositada ficar no
depositante, ditava as regras da responsabilidade pela deterioração ou perda da
coisa. O depositário, simples possuidor gratuito, só respondia pelo dolo ou a culpa
grave (lata)3029. Já responderia também por culpa leve: se tivesse sido remunerado
ou se tivesse tirado vantagens do depósito, se isso tivesse sido convencionado, ou
se estava em mora3030. Se o contrato aproveitasse aos dois, o depositário respondia
por dolo e culpa, mesmo leve 3031. Se as coisas (v.g. trigo, vinho ou azeite) corressem
o risco de se deteriorar ou de se perderem (morrerem, no caso de animais), o
depositário devia comunicar ao juiz que receava pela corrupção ou morte; este,
tendo averiguado a situação (causa cognita), podia decidir da venda das coisas antes
que se estragassem ou perecessem, desobrigando-se o depositário pela restituição
do que obtivera na venda. De outro modo, seria responsável (por culpa) pelo valor
(aestimatio) das coisas3032.

3021 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 8.


3022 “Depositum uxoris (in monasterio) et puellae”: Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 404.
3023 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 11.

3024 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 13.

3025 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], dec. 89, ns. 2 a 5; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p.1,

d.62
3026 A causa de depósito era sumária (Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 404; Álvaro

Valasco, Allegationes […], all. 65, n. 43).


3027 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 407; desenvolvimentos, Miguel de Reinoso,

Observationes […], obs. 45, ns. 1 ss..


3028 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 45, n. 8.

3029 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”.

3030 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 6. Mas não já se a

coisa também se perdesse ainda que estivesse no depositante António Cardoso do Amaral, Liber […],
cit., s. v. “Depositum”, n. 7.
3031 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 8.

3032 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, n. 10

508
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

6.9.2.1.9 O mandato.
§ 1744. O mandato era outro contrato gratuito, pelo qual alguém cometia a
outrem a administração de um negócio seu 3033. Um exemplo notável é o do
mandato judicial, passado a advogados ou a outros procuradores judiciais e
extrajudiciais3034 3035.
§ 1745. O mandato devia ser cumprido segundo as instruções do mandante,
sem míngua nem excesso, mas podendo cumprir-se por forma equivalente. Era de
interpretação estrita, não se estendendo a casos não expressos, Aquilo que fosse
feito para além do que fora mandado era nulo e inexistente 3036. No âmbito das
instruções dadas, o mandatário devia desincumbir-se com cuidado e prudência, aliás
devia indemnizar pelos danos culposos que, se o mandato fosse gratuito, seriam
apenas os provenientes de culpa grave. O incumprimento doloso gerava infâmia,
pois correspondia a uma quebra intencional das instruções do dono do negócio.
Aquela margem de arbítrio que cada um tem em relação às suas coisas extinguia-se
se se tratava de coisas de outrem3037.
§ 1746. Podiam passar procurações ou mandatos todos os que pudessem
administrar os seus bens. Não podiam ser mandatários os menores de 25 anos, os
infames e os poderosos (Ord. fil.1,48, 19 ss.). O mandato especial exigia escritura
pública (Ord. fil.3,29), salvo no caso de mandantes nobres, para os quais bastava
escrito particular.
§ 1747. O mandato podia ser livremente revogado, enquanto as instruções não
tivessem começado a ser executadas (re integra), se o mandato fosse da exclusiva
utilidade do mandante, pois se também fosse da utilidade do mandatário (mandato
imperfeito) só podia ser revogado com o consentimento deste (Ord. fil.3,27;
1,48,9)3038. O mandato especial derrogava o mandato geral anterior3039. Sendo uma
comissão pessoal, o mandato cessava por morte do mandante, embora os efeitos
dos atos já realizados pelo mandatário se mantivessem 3040. No caso do mandato

3033 “Mandatum dicitur quando aliquis ad satisfactionem suae voluntatis aliquid imponit alicui, &

fit ad commodum mandantis, nam si esset ad utilitatem illius, cui mandatum commititur, non
dicerentur tunc mandatum, sed persuasio”, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.
“Depositum”, n. 1; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 10.
3034 Sobre os advogados (C, 2, 7, De advocatis diversorum judiciorum; Ord. fil. 1, 48). Em Portugal,

tinham que ter uma licenciatura de cinco anos em Leis ou Cânones e fazer exame na Casa da Suplicação
(Ord. fil. 1, 48, 1). Na Casa do Porto e nas restantes cidades e vilas do reino eram admitidos por provisão
do Governador, corregedores e juízes, sem prévio exame (Ord. fil. 1, 48, 2-3). Os não letrados eram
admitidos a advogar por meio de uma licença ou provisão do Desembargo do Paço. Os advogados,
como mandatários, eram responsáveis por dolo, culpa ou ignorância ( Ord. fil. 1, 48, 10 e 17; Bento Gil,
Directorium […], cit.. Não venciam salário, mas honorários (v. Ord. fil. 1, 92; ordenação que estava em
desuso no séc. XVIII, em que o que pediam podia ser corrigido pelo prudente arbítrio do juiz, levando
em conta o valor da causa, a perícia demonstrada e o uso do foro). Era proibida a quota litis (Ord. fil. 1,
92, 11. Os procuradores (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 3, 11) podiam ser judiciais ou
extrajudiciais.
3035 Cf. A terminologia jurídica usava também a palavra mandante no sentido do que mandava

outrem praticar um crime, v. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Depositum”, ns. 2-6.
3036 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mandatum”, ns. 7-8.

3037 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mandatum”, n. 9.

3038 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mandatum”, n. 11.

3039 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mandatum”, n. 14.

3040 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Mandatum”, n. 10.

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judicial, este extinguia-se pela sentença definitiva, por morte do mandante, do


mandatário ou de qualquer litigante, ou por revogação do mandato (Ord. fil.3,26,pr).
O procurador podia desistir ou renunciar (Ord. fil.3,26,1). No direito romano tardio,
os poderes do procurador judicial eram tão grandes que, depois da contestação da
lide, decidia livremente sobre a gestão da causa, sendo considerado como senhor da
lide (dominus litis).
6.9.2.2 Os contratos onerosos
§ 1748. Os contratos onerosos compreendiam os contratos de troca, compra e
venda, locação de coisas e de serviços, sociedade, contrato enfitêutico, além de
todos os outros contratos inominados em que uma das partes prestava a outrem
algo, a troco de uma contraprestação3041.
6.9.2.2.1 A troca (permutatio).
§ 1749. A troca era a entrega de uma coisa certa contra o recebimento de outra
equivalente, também certa. Em termos latos, isto acontecia em todos os contratos
onerosos, dos quais a troca constituía como que um modelo 3042. Por isto, o seu
regime estendia-se a outros contratos inominados em que se dava, ou uma coisa
certa por uma incerta, ou uma incerta por uma certa, ou uma ação por uma coisa,
ou uma coisa por uma ação, ou uma ação por uma outra ação 3043. Como contrato
inominado, a troca dava lugar a uma ação genérica do tipo da actio praescriptis verbis,
criada pelos pretores para todos os contratos inominados, em que se pedia que se
condenasse o réu naquilo que se averiguasse que competia ou que era adequado - id
quod interest, quidquid oportet (aquilo que interessa, o que for conveniente) -, em face
de uma situação contratual descrita no libelo ou petição inicial (intentio). Note-se
que, na época do direito comum, o autor não tinha que indicar o nome da ação na
petição inicial; e, por isso, em todas as ações se pedia aquilo que se justificasse em
face da situação descrita no libelo.
§ 1750. A troca, no direito romano, não se perfazia por mero consenso, antes
exigindo a entrega das coisas permutadas (D. 19,4 De rerum permutatione; C. 4.64. De
rerum permutatione et de praescriptis verbis actione). Este requisito de que o consenso
fosse “revestido” da entrega das coisas para que o contrato se perfizesse mantém-se
na doutrina do direito comum tardio3044. De tal modo que se um dos contraentes
não cumprisse, apenas podia exigir a restituição da coisa (por uma condictio indebiti
ou uma reivindicatio), mas não podia exigir que o outro cumprisse, entregando a sua
parte, pois não havia contrato se o consenso não tivesse sido tornado real pela
entrega das coisas permutadas3045. Os progressos de um modelo consensualista do
direito fazem com que, nos finais do séc. XVIII, Pascoal de Melo já considerasse

3041 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 12.
3042 “Permutatio est praestatio unius rei certae, pro altera certa [...] et est verbum generale
pertinens ad omnem contractum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Permutatio”, n.
1.
3043 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 4.

3044 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Permutatio”, n. 2.

3045 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Permutatio”, n. 9: “solus consensus,

interventu rei non est vestita”.

510
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

que a troca era meramente consensual 3046.


§ 1751. Embora a proximidade entre a compra e venda e a troca fizesse com
que esta última não fosse tratada pela doutrina com muito desenvolvimento, um
caso havia em que esse tratamento diferenciado se justificava – o da troca de
benefícios ou ofícios eclesiásticos, contendo atribuições espirituais. Neste caso,
sendo a venda impossível, por não se poder pôr preço temporal a coisas espirituais
(simonia), a troca ficava a ser a única forma de transferir benefícios ou ofícios entre
os beneficiados3047. O direito exigia, porém, para além do consenso dos
permutantes, a autorização dos superiores, ou seja, daqueles que tinham o poder de
apresentar ou eleger o titular do benefício. Normalmente, isto fazia-se resignando
cada um nas mãos do superior, esperando que este, sem qualquer pacto que o
vinculasse, conferisse o cargo ao outro renunciante. De outro modo, os contratos
seriam simoníacos3048.
6.9.2.2.2 A compra e venda (emptio venditio).
§ 1752. A compra e venda3049 era considerada como um dos mais importantes
contratos “de direito das gentes” (uma classificação de novo a ganhar sentido, pois
justificava a validade do contrato no contexto das relações com povos não
europeus ou das franjas da Europa). Nas Ordenações filipinas, é um dos contratos
mais detalhadamente regulados, embora a sua disciplina legal corresponda, em
geral, à do direito comum. No essencial, este contrato consistia na prestação de
uma coisa certa contra o pagamento de uma quantia de dinheiro também certa 3050.
Para a sua validade plena – ou seja, para ter todos os efeitos reais de transferência
da propriedade (os principais) e obrigacionais (que eram acessórios) - eram
indispensáveis o consenso, a determinação da coisa e do preço e a efetiva entrega
das duas prestações3051. Porém, o simples consenso já produzia, pelo menos, o
efeito de o contrato não ser nulo por falta de entrega da coisa ou de pagamento do
preço, atribuindo ações a cada uma das partes para exigir o cumprimento ou uma
ação de ressarcimento de danos pelo incumprimento (pagamento de juros ou com
multa do duplo, do triplo e outras)3052.
§ 1753. No direito romano clássico, a compra e venda era um negócio
consensual destinado a transferir informalmente a propriedade das coisas vendidas,
o que, no direito mais antigo, só se produzia por meio da cerimónia ritual da
mancipatio, apenas autorizada a cidadãos romanos. Em contrapartida, a emptio venditio
estava acessível a todos, desempenhando assim um papel muito importante no

3046 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 13.


3047 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Permutatio”, n. 11.
3048 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Permutatio”, ns. 6 e 8.

3049 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n.; Ord. fil.4, 122.

3050 V. Ord. fil.4, 1, 1.

3051 “Quaedam alienatio, qua dominium, & possessio rei venditae transfertur, per traditionem

ipsius dominii, vel si non est dominus vere, & realiter, usucapiendi conditio, tranfertur in ementem
soluto pretio”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 1. Nas coisas
“móveis” (nec mancipi, scl. menos importantes), dava imediatamente origem a uma ação para pedir a
coisa; nas coisas “imóveis” (mancipi, scl. mais importantes) punha o comprador na situação de poder
adquirir a coisa por usucapião e de usar a actio publiciana.
3052 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 125; Tomé Valasco, Allegationes […], all.

28, n. 48.

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comércio com não cidadãos. Produzia efeitos tanto reais como meramente
obrigacionais. Quanto aos efeitos reais, dava origem a uma ação pretória, a actio
publiciana, para reclamar a coisa vendida de vendedor ou de um terceiro; esta ação
ficcionava que o comprador tinha a posse e que tinha transcorrido o tempo
necessário para a usucapião a favor dele; além disso, que gozava ainda de uma
replicatio doli para opor à exceptio iusti dominii eventualmente oposta pelo vendedor
que mantivesse a coisa consigo3053. Quanto a efeitos obrigacionais, gerava uma
ação – actio empti, inicialmente concedida, não pelo direito civil, mas apenas pelo
pretor peregrino, nos quadros do ius gentium3054 -, a favor do comprador para
obrigar o vendedor a indemnizá-lo pelo que correspondesse (id quod interest) aos
danos produzidos pelo incumprimento do contrato (ou vice-versa: actio venditi).
§ 1754. Com os progressos do consensualismo, a doutrina da segunda metade
do séc. XVIII começou a defender que nem a tradição da coisa nem o pagamento
do preço eram da essência do contrato. Para os racionalistas-consensualistas, a
venda perfazia-se pelo mero consenso, mesmo quando a coisa permanecesse na
posse do vendedor. Daí que o incumprimento dos deveres de entrega da coisa e de
pagamento do preço não anulassem a venda, mas gerassem ações visando o seu
efetivo cumprimento (actio empti, actio venditi).
§ 1755. A natureza consensual do contrato, para além de permitir – ainda que
com os limites da natureza do contrato – pactos modificativos do regime ordinário
da compra e venda, exigia que o contrato fosse livre. Excecionalmente, admitia-se
que se fosse obrigado a vender, por razões de interesse público (expropriação)3055;
mas já não se considerava necessário o consentimento de familiares na venda dos
bens de avoenga3056. Podiam comprar e vender todos os que podiam dispor dos
seus bens3057. Porém, o vendedor apenas podia vender coisas suas, de que pudesse
dispor, de acordo com o princípio de que ninguém podia transferir para outrem
mais do que aqueles direitos que tivesse 3058. Daqui decorriam várias consequências

3053 Caso o comprador estivesse na posse da coisa e o vendedor a reclamasse, o comprador

dispunha de uma exceptio rei venditae et traditae.


3054 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 1. Cf. D.19.1; C.4, 49

(cf. D.19.1.1, pr.: “Ulpianus libro 28 ad Sabinum. Si res vendita non tradatur, in id quod interest agitur,
hoc est quod rem habere interest emptoris: hoc autem interdum pretium egreditur, si pluris interest,
quam res valet vel empta est”).
3055 Pode-se obrigar à venda, perante carestia ou extrema necessidade da república, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 78; v. Ord. fil. 4, 11. O príncipe podia
obrigar a vender, mesmo a preço mais baixo do que se comprou, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...],
cit., p. 2, dec. 94, n. 4 ss.. Por provisão régia também se podia obrigar alguém a vender a favor de
conventos, para que tivessem habitações mais cómodas e decentes, Jorge de Cabedo, Decisiones [...],
cit., p.1, dec. 105, ns. 1 a 5; o mesmo para melhorar uma igreja (v.g. venda de servidão altius non tollendi,
permitindo à igreja ultrapassar a altura de edifícios vizinhos). Mais tarde, estabelecem-se casos de venda
forçada da propriedade ou de servidões no interesse dos prédios confinantes ou encravados que
carecessem de serventia (alvs. 9.7.1773 e 14.10.1773, Dec. 17.7.1778). Estas vendas forçadas deviam
respeitar o justo preço, v. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 105 (per totam); também, em
geral, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 22, n. 1 ss..
3056 Ord. fil.4, 11, pr..

3057 Exceção: salvo juízes e oficiais não perpétuos, na área da sua circunscrição: Ord. fil.4, 15.

3058 “Nemo potest plus iuris in alienum transferre quam ipse habet in re vendita”, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 15.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

práticas: a venda de coisa comum não valia a não ser na parte do vendedor 3059; não
valia a venda pelo marido de coisas imóveis da mulher3060, o mesmo acontecendo
da venda pelo pai das coisas dos filhos 3061. Em alguns casos, porém, o não dono
podia vender: tal era o caso da venda de coisa do menor com mandato do juiz ou
da venda de bens do devedor feita pelo executor judicial3062. Por vezes havia
inabilidades relativas: o pai não podia vender aos filhos que estivessem sob o seu
pátrio poder, pois se tratava de um negócio como que consigo mesmo; em geral,
qualquer venda feita a um filho carecia do consentimento dos outros, mas, neste
caso, por suspeita de esconder uma doação que prejudicasse as legítimas destes
últimos3063.
§ 1756. Como a coisa devia pertencer ao vendedor, este respondia pela
legitimidade dos seus direitos sobre ela perante o comprador de boa fé 3064 (garantia
da evicção)3065. A evicção era da natureza do contrato de compra e venda3066, não
podendo o comprador renunciar a esta proteção3067. Por isso, sendo a coisa vendida
reclamada por outro como seu dono (ou seu enfiteuta ou seu credor
hipotecário3068), o comprador3069 devia denunciar este facto ao vendedor3070, para
lhe ser concedida uma ação de evictione, pelo preço pago e pelas despesas que tivesse
tido que fazer na manutenção ou melhoramento necessário da coisa comprada
(deduzidos os frutos recebidos3071), ou uma ação quanti minori para poder repetir
uma parte do preço correspondente à desvalorização da coisa proveniente dos ónus
omitidos pelo vendedor3072. Porém, esta garantia – bem como a possibilidade de

3059 Nem prejudicava o sócio, a não ser pela usucapião do comprador de boa fé, que atingia a

coisa por inteiro, uma vez que a usucapião era indivisível (“nemo pro parte usucapire potest”), António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 14. Nas sociedades de comerciantes,
porém, um podia vender mais do que a sua parte, se se entendesse que isso cabia nos seus poderes de
gestão (v.g. se os sócios comerciassem cada um em seu lugar ou se as coisas vendidas fossem as que
faziam parte do negócio, rei venales).
3060 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 64 (Ord. fil.4, 48).

3061 O filho pode pedir a revogação António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-

venditio”, n. 65.
3062 Em ambos os casos, as vendas deviam ser feitas em leilão (subhasta), para garantir as melhores

condições de preço; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, ns. 40-41.
Sobre a venda por leilão, v. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Venditio”, nº 2008; também v.
“Subhastatio”.
3063 Ord. fil.4, 12; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 66;

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 14.


3064 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 30.

3065 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Evictio”.

3066 Mas também existia na troca ou na enfiteuse, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.

v. “Emptio-venditio”, n. 23.
3067 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 21.

3068 Nestes casos, entendia-se que existiam direitos reais que comprimiam o direito de propriedade

do vendedor e que, portanto, faziam com que a coisa vendida não fosse integralmente sua, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 24.
3069 Ou o credor, no caso da dação em pagamento, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,

s. v. “Emptio-venditio”, n. 24.
3070 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 21; no caso da

venda judicial, o obrigado à evicção era o devedor, dono do património a ser vendido, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 25.
3071 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 26.

3072 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 59-60.

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aquisição por usucapião, se o vendedor estivesse de boa fé 3073 - cessava se o


comprador estivesse de má fé, ou seja, se soubesse que o vendedor não era dono,
que não podia dispor daqueles bens ou da herança ou que, vendendo, tinha
excedido os seus poderes ou o mandato 3074; nestes casos, o comprador perdia tanto
a coisa como o preço pago, não prejudicando a venda o verdadeiro dono 3075.
§ 1757. A coisa objeto do contrato devia ser certa3076 (e própria do vendedor;
aliás este respondia por evicção), estar no comércio 3077 e não ser litigiosa 3078.
Podiam vender-se direitos (como o direito a uma renda ou a um usufruto3079). As
mercês régias3080 e os ofícios3081 não podiam ser vendidos. A vida e o corpo não
podiam ser comprados ou vendidos3082. Mas admitia-se a venda de si mesmo, feita
por homem livre (v. cap. 3.1.1.1)3083.
§ 1758. A determinação do objeto podia exigir certas regras de interpretação.
Assim, a venda de todos os bens incluía os bens móveis e imóveis do vendedor, ao
tempo do contrato3084; a venda de um prédio, incluía todos os direitos reais e frutos
extantes (colhidos mas não consumidos) ou pendentes, salvo convenção em
contrário3085; mas não a madeira já cortada3086; a venda de vinho não incluía as
vasilhas3087; a venda do direito à água incluía o aqueduto ou cano 3088; a venda de um
terreno incluía casas e árvores; a venda de uma casa, horta ou quintal, incluía o que

3073 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 10. A usucapião

da integralidade da coisa também era possível a favor do adquirente de boa-fé de uma coisa sobre que
recaísse um ónus (v.g. pensão, servidão, fideicomisso), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Emptio-venditio”, n. 7.
3074 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 5.

3075 E, sendo a coisa roubada, o comprador que o soubesse ficava suspeito de participação no

furto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 6 e 9.


3076 Ord. fil. 4, 2, pr..

3077 Não estavam no comércio: as coisas sagradas e as espirituais António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 2 (v. também António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Emptio-venditio”, n. 73); as que estivessem reservadas para o uso da República (deputatae usui
reipublicae, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 74). Também as
coisas públicas ou as comuns a todos estavam fora do comércio.
3078 Ord. fil.4, 10.

3079 Assim, a venda de uma renda anual por uma vida era lícita, Melchior Febo, Decisiones […],

cit., dec. 201, n. 14. A doutrina considerava que a venda do usufruto correspondia a uma locação,
Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 75, n.10.
3080 Ord. fil. 4, 14.

3081 Ord. fil.1, 80, 20; 1, 96; v. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 1, 8, 22, 24 e 25.

3082 Sobre a compra e venda de escravos: Luís de Molina, De iustitia […], cit., liv. 2, disps. 336-

340, 366-369, 379.


3083 O homem que se vendesse ou consentisse na venda feita de si ficava escravo, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 44. Mas se alguém tomasse um homem
livre e o vendesse incorria em pena de morte, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Emptio-venditio”, n. 45.
3084 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 50.

3085 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 49.

3086 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 49.

3087 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 47.

3088 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 77.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

aí se encontre para uso contínuo3089; na venda de um prédio, reservadas as pedras


(de cantaria), entendiam-se reservadas apenas as já extraídas3090; a venda de caçadas
ou pescarias abrangia tudo o que se apanhasse 3091; a venda de coisa dada em
enfiteuse incluía a sua renovação por morte do enfiteuta (v. cap. 4.3.3.9)3092.
§ 1759. O preço devia consistir em dinheiro contado 3093 e ser certo3094 e
justo3095.
§ 1760. A compra e venda era o contrato em que, tipicamente, podia existir
uma falta de correspondência entre o preço convencionado e o “justo preço”, uma
noção que remetia para a ideia de que as coisas tinham um valor objetivo, fixado na
natureza e manifestado naquilo que elas valiam para a maior parte das pessoas, nas
condições correntes nos mercados (“justo preço”)3096. De tal modo que seria lesivo
qualquer acordo em que o preço combinado se desviasse desse valor justo. Embora
fosse normal que cada contraente tentasse valorizar ou desvalorizar aquilo sobre
que negociava – e que, por isso, todos os contratos contivessem alguma lesão (lesão
módica3097) –, o direito considerava como insuportavelmente lesivos, e por isso
nulos ou anuláveis, os contratos em que essa lesão fosse enorme ou
enormíssima3098; mesmo que o preço tivesse sido cientemente querido 3099. Enorme
seria a lesão em que o preço convencionado fosse menor do que metade ou maior
do que o dobro do preço justo. Enormíssima a lesão muito superior a estes limites.
No caso de lesão enorme, o contraente lesado podia pedir ou a rescisão do contrato
ou a restituição (ou o suprimento, conforme os casos) da diferença entre o preço
convencionado e o preço justo (por uma actio quanti minori)3100. No caso de lesão
enormíssima – que era definida, um tanto vagamente, como aquela em que a regra
da metade era muito excedida, avaliado o excesso segundo o arbítrio do julgador -,
o contrato era nulo de pleno direito3101. O benefício da lesão tutelava a equidade

3089 O conceito de fundus instructus servia para designar a universalidade de coisas que aparelhavam

um prédio para o uso agrícola.


3090 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 2, dec. 113, n. 2.

3091 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 72.

3092 Havendo acordo do senhorio. Este era o uso, embora, por direito rigoroso, a venda não

devesse exceder a vida do vendedor, v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-
venditio”, n. 76.
3093 Ord. fil. 4, 22.

3094 Podia, no entanto, ser deixado a arbítrio de terceiro (Ord. fil. 4, 1, 1; 4, 2, pr.).

3095 Ord. fil. 4, 13.

3096 Sobre o preço, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1990; João Baptista Fragoso, Regimen

[…], p. 1, liv. 7, disp. 19, §§ 2-3); Ord. fil. 4, 20 (preço do trigo). “Iustum pretium ex communi
aestimatione hominum consensum”, v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 43, 1 (mas toda a
decisão é sobre o tema); seriam justos os preços do mercado ao tempo do contrato (ibid. n. 2), os
fixados em leilão (Melchior Febo, dec. 201, ns. 18-19) ou os taxados (Jorge de Cabedo, Decisiones [...],
cit., p. 2, dec. 92; v. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., 44, n. 1 ss.; por exemplo, o preço do peixe,
fixado pelos almotacés, Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 1992); o preço justo era um padrão
geral, que não tinha em consideração o preço de custo daquela coisa ou as despesas que ela deu (Álvaro
Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 43, n. 6 ss.).
3097 Sempre que fosse inferior a metade, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Emptio-venditio”, n. 59.
3098 Ord. fil. 4, 13, 1; C.4, 44 De rescindenda venditione, 2.

3099 Ord. fil.4, 13, 9.

3100 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 58.

3101 Por se entender que havia dolo do contraente lesante, António Cardoso do Amaral, Liber [...],

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natural e, por isso, era irrenunciável e invocável durante 15 anos 3102, levando à
nulidade do contrato3103.
§ 1761. A compra e venda podia ser acompanhada de pactos adicionais 3104,
desde que estes não fossem contra a natureza do contrato. Entre estes, o pacto de
espera do preço, muito comum na compra de géneros agrícolas, a pagar quando se
verificasse uma receita do lavrador (venda na feira ou venda da próxima
colheita)3105; o pacto de retrovendendo, pelo qual o comprador se comprometia a
devolver a coisa comprada e a receber de novo o preço por ele pago 3106; a addictio in
diem, que permitia ao vendedor a adjudicação da coisa a outrem no caso de este
cobrir a oferta do comprador inicial até um certo dia; o pacto comissório (lex
commssoria), que autorizava o vendedor à rescisão do contrato e à recuperação da
coisa se o preço não fosse pago dentre de certo prazo 3107; pacto de protimense (de
prelação), que dava ao vendedor (ou a terceiro) o direito de preferir, preço por
preço, na revenda da coisa 3108; o pacto de venda a contento, consistindo numa

cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 57; não se aplicava Ord. fil.4, 13, 5.


3102 Ord. fil.4, 13, 9; Ord. fil.4, 13, 5.

3103 Ord. fil.4, 13, ult. com a consequente restituição dos frutos da coisa desde o momento da

perfeição do contrato. Pascoal de Melo preferia um regime restritivo da relevância da lesão, limitado à
rescisão do contrato com efeitos ex nunc (somente a partir da invocação da lesão); mas reconhecia que
essa não era a tendência do foro (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 17).
3104 Ord. fil.4, 4, pr.. Alguma doutrina limitava a validade destes pactos a 30 anos, v. António da

Gama, Decisiones […], cit., dec. 247, ns. 3-4.


3105 A venda de pão / trigo com dilação no pagamento do preço era válida, Melchior Febo,

Decisiones […], cit., dec. 201, n. 16.


3106 V. Ord. fil.4, 4, pr.. O pacto de retrovendendo (ou com cláusula de reversão) encobria

frequentemente negócios usurários. O prestamista ficava com uma coisa daquele que necessitava de
dinheiro, até que ele pudesse pagar, lucrando, ou com os frutos da coisa ou com a diferença para
menos entre a quantia emprestada (o preço pago) e o valor real da coisa, com a qual ficaria se o devedor
não a pedisse de volta (v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 53)
ou com a diferença para mais entre o preço (simulado) que tivesse sido (falsamente) declarado, mais alto
do que a soma efetivamente dada pelo comprador ao vendedor, e que era o que o vendedor teria que
devolver ao comprador (v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n.
57). Cf. exemplo de pacto de venda de terra de trigo por 200 cruzados, podendo o vendedor desfazer a
venda e recobrar o preço durante 5 anos, mas não antes de dois anos; os juros eram os frutos, ou a
diferença entre o preço pago pelo comprador e o valor da terra daí a 5 anos (Álvaro Valasco, Decisiones
[...], cit., cons. 41); se o preço fosse inferior num quarto do valor seria usura (António da Gama,
Decisiones […], cit., dec. 82). Presumia-se que se tratava de um contrato usurário se o comprador fosse
usurário habitual, v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 53. Pelo
direito do reino (Ord. fil. 4, 4, 1) a venda a retro com diminuição do preço presumia-se usurária; esta
ordenação era contrária ao direito comum, pois este era mais exigente, requerendo três circunstâncias:
preço (simulado) inferior ao preço justo, pacto de reversão e compra por usurário habitual; por isso,
esta ordenação só se deveria observava no foro secular, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Emptio-venditio”, n. 53-56; Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 154, n. 34. Se a venda não
fosse usurária, o vendedor que pudesse reverter a venda gozava de uma reivindicativo (também contra
terceiro a quem a coisa tivesse sido vendida, v. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 15,
n. 6), logo que restituísse o preço, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-
venditio”, ns. 53 e 56. Sendo usurária, o vendedor mantinha sempre a possibilidade de reivindicar a
coisa, pois, como o contrato era nulo, teria mantido sempre a propriedade dela (Álvaro Valasco,
Decisiones [...], cit., cons 70, ns. 8-9).
3107 Ord. fil.4, 5, 3; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 58.

3108 Ord. fil. 4, 11, 3.

516
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

cláusula de rescisão caso a coisa não agradasse ao comprador 3109; o pacto de que o
comprador não pagasse as pensões devidas e já vencidas que onerassem o
prédio3110; o pacto constitutum, pelo qual o vendedor vendia com uma obrigação para
o comprador (por exemplo, manter os arrendatários do prédio vendido) 3111. Todos
estes pactos vinculavam, devendo ser cumpridos, sempre que não contrariassem a
natureza do contrato3112.
§ 1762. Como o contrato era consensual, o documento escrito não era da
substância do contrato3113. No entanto, as Ordenações exigiam a escritura pública
para que se pudesse provar a aquisição de bens móveis de valor superior a 60 000
reis e de bens imóveis que valessem mais de 4 000 reis 3114. Como esta ordenação
era contrária ao direito comum, só se aplicava no foro secular 3115.
§ 1763. O erro substancial3116 anulava a venda.
§ 1764. O contrato podia ser anulado, invocando coação ou dolo, por mero
acordo antes da perfeição do contrato3117. A venda com intenção dolosa ou
fraudulenta do comprador era nula, não podendo o comprador sequer adquirir a
coisa por usucapião, nem mesmo de longo tempo 3118; o contrário, se dolo e fraude
tivessem sido do vendedor3119. A venda feita em fraude dos credores valia, mas
podia ser revogada a pedido destes 3120. A venda feita em fraude da república não
valia, perdendo o comprador de má-fé a coisa e o preço3121.
§ 1765. O regime do contrato de compra e venda decorria, em grande parte, do
que se entendia ser o momento da perfeição do contrato. Se se entendesse que o
contrato apenas se efetivava pela transferência mútua da coisa (traditio) e do preço,
o risco e as utilidades da coisa corriam pelo vendedor – como dono da coisa -
enquanto a entrega não se desse. Mas, feita a entrega, ainda que o preço estivesse
por pagar (como nas vendas com espera de preço), o risco, tal como os cómodos,

3109 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 51; normalmente

a rescisão devia ocorrer num prazo fixado; se o prazo não estivesse expresso, valia por 60 dias.
3110 Mas não as futuras, porque isso equivaleria a vender o prédio livre, quando ele era onerado (v.

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 59).


3111 Sobre estes pactos, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 15.

3112 Tal seria o caso de um pacto que autorizasse qualquer dos contraentes a rescindir livremente o

contrato (v. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 59-60); ou aquele
que condicionasse a validade do negócio ao arbítrio de um dos contraentes (a venda sob condição do
outro querer, si volueris, é nula, António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 222, n. 6; v. Ord. fil.4, 1, 1).
3113 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 37. Cf. porém,

Ord. fil. 4, 19, 1.


3114 V. Ord. fil.3, 59.

3115 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 37.

3116 Isto é, sobre circunstâncias que levariam a não vender ou não comprar e não apenas a não

vender ou a não naquelas condições, v.g. erro sobre a identidade e as qualidades decisivas da coisa
vendida; mas não já sobre o preço, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-
venditio”, n. 12.
3117 V. Ord. fil.4, 2, 3; Ord. fil.4, 19, 1.

3118 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 11.

3119 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 8.

3120 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, ns. 8, 62.

3121 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, ns. 43, 62.

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corriam pelo comprador, apesar de este não ter ainda pago 3122. Se se entendia que o
contrato ficava perfeito no momento da convenção, ainda que a coisa vendida se
mantivesse na posse do vendedor (consensualismo), tanto o risco como as
comodidades da coisa (nomeadamente, os seus frutos) eram do comprador, como
novo dono3123. As soluções para que apontava a doutrina seiscentista e setecentista
eram mais frequentemente coerentes com a ideia de que a perfeição correspondia
ao momento da entrega3124. Rescindido o negócio (por exemplo, por lesão apenas
enorme; ou por erro), o comprador tinha direito aos frutos que colhera na
pendência, bem como a indemnização pelas despesas necessárias e úteis feitas na
manutenção da coisa e seu melhoramento 3125.
§ 1766. O vendedor garantia o comprador, quer quanto à propriedade da coisa,
quer quanto às suas qualidades. Assim, era obrigado pela evicção ou seja, no caso
de um terceiro reclamar a coisa vendida alegando que ela era sua. E também pelos
de vícios ocultos (isto é, não visíveis nem comunicados pelo vendedor 3126) da coisa,
como as doenças ou manhas dos animais (animais doentes, fémeas estéreis, cavalos
assustadiços, bois bravos3127), caso em que tinha que aceitar a devolução da coisa e
a restituição do preço ou respondia por uma ação (actio redhibitoria) pela diminuição
do preço equivalente ao defeito3128. No direito romano, a ação redibitória era uma
ação pretória, cujo fundamento era a falsidade ou omissão dolosa quanto aos
vícios3129. O réu era condenado naquilo em que o comprador tivesse sido
prejudicado (quanti minoris ou id quod interest)3130. O comprador podia ainda usar a
actio ex empto, para reclamar do vendedor doloso o preço pago por uma coisa
defeituosa. No período do direito comum, de que aqui se trata, estas distinções
eram irrelevantes, porque o autor não tinha que indicar no libelo o nome da ação
(cf. 7.1.9.2); em todo o caso, a doutrina continua a discutir o nome da ação,
nomeadamente porque elas tinham diferentes prazos para serem intentadas (a actio
ex empto só prescrevia depois de 30 anos; mas as ações pretórias - actio redhibitoria e
quanti minoris - prescreviam muito antes, 6 meses ou um ano) 3131. A

3122 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, ns. 38-39.
3123 V. Ord. fil.4, 8; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 16.
3124 Por exemplo, Jorge de Cabedo defendia que, se se vendesse uma coisa por medida (por

exemplo, vinho; mas também uma área de terreno), o risco corria pelo vendedor, até à medição e
especificação, Jorge de Cabedo, Decisiones [...]. p. 1, dec. 102, n. 2; também António da Gama,
Decisiones […], cit., dec. 211, n. 3.
3125 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 161.

3126 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 61. Presumia-se que

o comprador ignorava as obrigações da coisa, se não fossem expressamente anunciadas pelo vendedor,
Melchior Febo, Decisiones [...], cit., dec. 115, n. 33. Mas se o comprador cientemente comprasse uma
coisa onerada (v.g. fiduciária) não podia acionar o vendedor pelo prejuízo (id quod interest), António da
Gama, Decisiones […], cit., dec. 20, n. 1.
3127 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 2007 (v. “Venditio quoad evictionem”). Sobre se

o escravo que está fugido dá lugar a evicção, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 41,
n. 1.
3128 Ord. fil.4, 17.

3129 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 74 (per totam).

3130 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 74, ns. 19 a 24.

3131 v. Nunzia Donadio, “Qualità promesse e qualità essenziali della res vendita: il diverso limite tra

la responsabilità per reticentia e quella per dicta promissave nel ‘diritto edilizio’ o nel ius civile”,
http://www.teoriaestoriadeldirittoprivato.com/index.php?com=statics&option=index&cID=129)].

518
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

responsabilidade do vendedor cessava se o comprador sabia ou devia saber – por


ser perito – do vício ou quando este sobreveio depois do contrato 3132.
§ 1767. A venda sem tradição, embora tivesse efeitos obrigacionais (actio empti),
não transferia o domínio (a não ser que o vendedor ficasse com a coisa, mas como
seu mero possuidor, pelo constituto possessório). Por isso, o comprador só podia
reivindicar a coisa de terceiro depois da tradição3133. Daqui decorria que, na venda
sucessiva da mesma coisa a duas pessoas, preferisse aquela para quem a coisa
tivesse sido transferida3134, pois transferia o domínio, ao contrário do que acontecia
com a outra venda, que mantinha no vendedor o domínio e a possibilidade de
vender3135.
§ 1768. Uma vez entregue a coisa vendida, a venda adquiria uma eficácia plena.
Não podia ser rescindida por falta de pagamento do preço, no caso de a venda ser
feita com espera de preço, embora o vendedor tivesse uma ação (actio venditi) para
pedir o preço em débito e o comprador estivesse obrigado ao pagamento de juros
enquanto não pagasse3136.
§ 1769. Muitas vendas davam origem ao pagamento de sisas (gabellae)3137.
6.9.2.2.3 A locação (locatio conductio).
§ 1770. A locação era a cessão a alguém (conductor, locatário, colono3138,
inquilino3139) ou do uso de uma coisa ou de serviços (opera) contra o pagamento de
uma quantia em dinheiro (pensio, merx). Era um contrato inominado, tutelado, no
direito romano, por uma actio praescriptis verbis, com a qual qualquer das partes
reclamava da outra aquilo que fosse devido em face da situação descrita na petição
inicial3140. Como, na locação de coisas, a propriedade da coisa não se transferia, mas
apenas o uso, o contrato de cedência de coisas cujo uso consistisse no seu consumo
(coisas consumíveis) não era locação, mas mútuo, em que não se restituíam as

3132 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., decs. 74, 29-30.
3133 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 16.
3134 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, ns. 17-18 (o mesmo na

enfiteuse e no arrendamento de longo tempo [locatio longi temporis, em que se entendia que também havia
uma transmissão de uma parte do domínio, como na enfiteuse]); mas, segundo a melhor opinião, não
no arrendamento de pouco tempo, pois, in puncto iuris, o locador não transferia o domínio para o
locatário, ficando sempre o domínio no locador, pelo que a segunda locação era feita a domino, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 17). Na venda do senhorio útil da
enfiteuse, havia ainda que considerar em qual das vendas tinha o senhor consentido, preferindo esta,
como primeiro critério, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 18.
3135 Mas o vendedor respondia sempre pela frustração (id quod interest) da venda que não pudesse

valer (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 172).


3136 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Emptio-venditio”, n. 38. Nestes casos de

espera de preço, passado o prazo para pagar, o vendedor podia pedir o preço ou a coisa, ibid..
3137 Quanto às sisas: Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., s. v. “Venditio”, n. 2021; também v.

“Gabella”. Contratos de que se pagavam sisas, v. Artigos das sisas, de 27.9.1476 (em José Roberto […]
Soisa, Systema […], cit., vol. 1, cit., pp. 205); António de Sousa de Macedo, Decisiones […], cit., decs.
72-73.
3138 Nos arrendamentos rústicos.

3139 Nos arrendamentos urbanos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio

conductio”, n. 32.
3140 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 1. O contrato fora,

originariamente, de direito das gentes, não formal e de boa-fé (António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 10).

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coisas locadas, mas outras do mesmo género 3141. Por outro lado, como se entendia
que a cedência do uso da coisa por mais de dez anos correspondia à transferência
do domínio (útil), a locação por período superior a 10 anos equivalia a um contrato
enfitêutico, em que se dividia o domínio e se cedia o domínio útil ao locatário,
retendo o locador o domínio direto3142. Também se entendia que a cedência em que
a renda consistisse numa parte dos frutos (“parceria”) devia ser tratada como
contrato de sociedade e não como locação 3143.
§ 1771. O objeto da locação podiam ser coisas móveis3144 ou imóveis3145, mas
também serviços (locação de serviços, locatio conductio operarum)3146 e direitos3147. As
servidões reais (res servit rei) não se podiam arrendar porque eram inseparáveis do
prédio servido; mas, arrendado este, elas eram transferidas para o locatário.
§ 1772. Podiam locar-se todas as coisas que se podiam vender, pois se tratava
de contratos similares3148. Tratando-se de locação de serviços, estes tinham que ser
lícitos e honestos.
§ 1773. Valia na locação a regra de que ninguém podia transferir para outrem
mais direitos do que os que tivesse. E, por isso, bispo ou beneficiado não podiam
arrendar perpetuamente ou por longo tempo 3149 os bens, rendimentos, ou direitos
de uma igreja ou mosteiro3150; também a locação feita pelo usufrutuário se extinguia
com a sua morte3151. Já o herdeiro do locatário podia suceder-lhe na locação3152.
§ 1774. Embora a locação incidisse sobre um objeto certo, havia coisas que
eram universalidades reais, de tal modo que locada a coisa principal se entendiam
locadas as coisas ou utilidades anexas. A concretização deste princípio dependia, no
entanto, do convencionado, bem como de usos locais. Assim, a doutrina
portuguesa entendia que, arrendado um terreno, não eram arrendadas as árvores aí
existentes3153; mas, em contrapartida, o arrendatário podia vender pedras e barro,

3141 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 2.


3142 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 2; “locatio ultra
decenium est alienatio translato dominio in conductorem, cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit.,
1086.
3143 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 31. Cf. sobre este

tipo de arrendamento, Ord. fil. 4, 45 (“terras a meias ou a terças)“.


3144 O atual aluguer. Incluía as coisas semoventes: v.g. arrendamento de gados ou de colmeias (a

ordenação Ord. fil.4, 69 proibia estes contratos, decerto por suspeita de serem usurários).
3145 O atual arrendamento.

3146 O atual contrato de prestação de serviços.

3147 Por exemplo, o arrendamento de ofícios (serventias de ofícios) ou o direito de cobrar tributos

(ou outras rendas, reais ou não).


3148 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 3.

3149 Dez anos ou mais, porque o arrendamento de longo tempo (locatio longi temporis) – ou
renovável de modo a ultrapassar este período (cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Locatio conductio”, n. 9) - equivalia à alienação do domínio útil, sendo que a alienação não cabia nos
poderes de um administrador, como o bispo em relação aos bens da igreja.
3150 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, ns. 7-8.

3151 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 5. O mesmo

acontecia com a morte do administrador do morgado e do donatário de bens da coroa, Álvaro Valasco,
Decisiones […], cit., cons. 186, n. 13.
3152 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 5.

3153 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 26.

520
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

pelo menos até um limite não abusivo, estimado por um homem bom3154.
§ 1775. O arrendamento era consensual, exceto se a renda excedesse a soma de
30 000 moedas, caso em que carecia de escritura pública3155. A entrega das chaves
efetivava a tradição3156.
§ 1776. O locador ficava obrigado pelos danos (id quod interest) causados por
vícios ocultos da coisa locada de que tivesse ou devesse ter conhecimento e de que,
portanto, devesse notificar o locatário. Assim, o locador de vasilhas ficava
obrigado a satisfazer pelos danos se o vinho tivesse azedado ou o azeite vertido por
defeito das pipas ou dos cântaros. Mas as fontes doutrinais atenuam a
responsabilidade do locador no caso de arrendamento de uma pastagem em que
houvesse ervas venenosas, apenas obrigando a não cobrar a renda3157.
§ 1777. O locatário, por seu turno, era obrigado à restituição pontual e integral
da coisa, não podendo sequer pôr em causa a propriedade do locador sem efetuar a
prévia devolução3158. Portanto, não a podia alienar (v.g. vender ou penhorar, pois
não tinha propriedade sobre ela), embora a pudesse arrendar para igual uso, se
outra coisa não tivesse sido estipulada3159. Quanto aos danos, o locatário era
responsável pela deterioração dolosa ou danosa da coisa, mas não por culpa
levíssima ou por caso fortuito3160. Assim, se o colono colhesse, ainda verdes, os
frutos que de outro modo seriam colhidos pelo locador depois do termo do
contrato, responderia pelo dano; o mesmo, se deixasse de cultivar o prédio, com
prejuízo deste3161.
§ 1778. Sendo vários os locatários de uma mesma coisa, cada um respondia por
uma parte alíquota das obrigações contratuais (responsabilidade conjunta) 3162.
§ 1779. O arrendatário podia reclamar do senhorio as despesas necessárias e
úteis feitas no prédio, gozando do direito de retenção da coisa locada até ser
indemnizado3163.
§ 1780. Como não detinha a posse em nome próprio, mas em nome do
proprietário locador, nem o colono nem o inquilino podiam adquirir a coisa locada
por usucapião (a não ser que se tivesse invertido o título de posse – i.e. modificada
razão jurídica pela qual o possuidor detinha a coisa)3164; um caso de inversão do
título de posse decorria do pagamento da renda por um período longo, o que

3154 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 93, n. 1.
3155 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., 1088.
3156 Cf. Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., 1094.

3157 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 12.

3158 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., v. “Locatio conductio”, n. 15; Ord. fil. 4, 54,

3.
3159 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 14.
3160 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 13.
3161 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 18.

3162 “Unusquisque et non unus pro alio”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Locatio conductio”, n. 25.


3163 Ord. fil.4, 54, 1; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 30,

Bento Pereira, Promptuarium [...], cit., 1088.


3164 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 19.

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gerava a presunção de que a terra não estava arrendada mas dada em enfiteuse3165.
§ 1781. A renovação da locação fazia-se tacitamente, se o locatário continuasse
na posse da coisa3166, com conhecimento do dono, depois de findo o prazo 3167.
§ 1782. O arrendatário podia ser despejado antes do termo do contrato apenas
nos quatro seguintes casos: (1) se o locador tivesse uma necessidade superveniente
e inesperada de habitar a casa arrendada3168; (2) se a casa arrendada passasse a
ameaçar ruína, a ponto de carecer de reparação indispensável 3169; (3) se o locatário,
inesperadamente3170, usasse a coisa de modo a que esta sofresse deterioração (física
ou de valor)3171; (4) se, no caso de arrendamento por mais de cinco anos 3172, o
arrendatário não tivesse pago a renda durante dois anos ou, sendo o arrendamento
por menos tempo, se não a pagasse pontualmente. A doutrina acrescentava a estes
casos enumerados na lei, mais uns quantos extraídos de princípios gerais. Tal eram
os casos em que o locador adquirisse um estado que exigisse morada mais digna
(v.g. de cavaleiro, de doutor, de advogado, de presbítero), em que um filho ou filha
casassem, em que a casa em que habitava ameaçasse ruína, em que a guerra ou a
peste obrigassem o senhorio a deixar a sua casa3173 3174. Mas ainda (Barbosa, cit. n.
12) se na casa ocorriam situações que assustassem os vizinhos (v.g. almas penadas
ou zaragatas, tetris imaginibus vel tumultis). Devia ser dado algum tempo ao inquilino
para se realojar (Barbosa, cit. n. 11).
§ 1783. Também o locatário podia, em alguns casos, pôr termo ao contrato ou
reduzir a renda. Em geral, o contrato de locação era rescindido a favor do locatário
se este não pudesse tirar partido da utilidade da coisa, por razões que lhe não
fossem imputáveis3175. Os exemplos habituais nas fontes são o não uso de uma casa

3165 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 19.
3166 No caso da prestação de serviços, se os serviços continuassem a ser prestados ao seu tomador,
com conhecimento deste.
3167 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 17; com base em

Ord. fil.4, 23, a doutrina entendia que, no arrendamento de casas, se dava a renovação tácita do
contrato; o que era o contrário da regra de direito comum (v. Gabriel Pereira da Castro, Decisiones […],
cit., dec. 98, n. 2). Sobre o aluguer de casas, Ord. fil.4, 23-24.
3168 Por exemplo, se casasse. Só se aplicava ao arrendamento de casas, mas não de prédios

rústicos (Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 4, n.7). Mas entendia-se não valer nas
casas arrendadas a estudantes (Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 24, n.7).
3169 Neste caso, o arrendatário devia ser readmitido depois das obras.

3170 Manuel Barbosa seguia a opinião de que não podiam ser despejados os estudantes que

metessem prostitutas nas casas arrendadas, porque isso não seria nem novo nem inusitado (Manuel
Barbosa, Remissiones [...], cit., v. 4, ad Ord. fil.4, 24, n. 5), a não ser que se pusesse em risco a honra do
senhorio ou o sossego dos vizinhos.
3171 Exemplos das fontes: meter na casa arrendada mulheres de má vida ou ladrões, meter porcos

nas eiras, cortar árvores, não fazer reparos ou colheitas nos tempos devidos. Nestes casos, o locatário
responderia ainda pelos danos causados.
3172 Jorge de Cabedo diz que, nos arrendamentos eclesiásticos, o despejo era legítimo se o

arrendatário falhasse dois anos de renda; nos temporais, só com três rendas anuais em falta. Jorge de
Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 92 n. 4.
3173 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 20.

3174 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 24, 8-9.

3175 Se a culpa do não uso fosse do locador, este ainda tinha que indemnizar o locatário pelo dano,

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 23.

522
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ou não cultivo dos campos por causa de guerra ou de peste3176. Também a


diminuição da produção por uma causa natural mas extraordinária (uma seca ou um
mau tempo inabituais) podia dar direito à diminuição proporcional (pro rata) da
renda3177, se desse lugar a uma quebra da colheita de mais de metade e esse prejuízo
não fosse compensado pela abundância de anos anteriores ou posteriores 3178.
Qualquer culpa do locatário, mesmo leve (como a culpa na escolha de
trabalhadores incompetentes), prejudicava a possibilidade de remir ou diminuir a
renda3179. Na enfiteuse, sendo o cânone apenas o reconhecimento do domínio
eminente, não se diminuía por esterilidade3180.
§ 1784. Embora a locação fosse um contrato temporário, o direito promovia a
estabilidade das situações. Nos arrendamentos de casas, interpretava o direito régio
como estabelecendo – contra a regra do direito comum – a renovação tácita. No
arrendamento rústico, fazia equiparar o arrendamento de longo tempo (mais de 10
anos) a um contrato enfitêutico, com transmissão do domínio útil para o colono.
Mesmo para arrendamentos mais curtos, a doutrina entendia que o colono que o
fosse por vários anos, embora não tivesse direito à renovação, gozava de um direito
de preferência de tanto por tanto3181. Entendia-se, além disto, que o herdeiro – mas
não o legatário3182 – não poderia despejar os inquilinos3183. Em contrapartida, a
venda da coisa locada fazia cessar o arrendamento, mas o locador-vendedor ficava
obrigado pelos danos causados pelo termo do contrato 3184. Por vezes, a estabilidade
da posição do arrendatário era reforçada por hipoteca: o senhorio hipotecava ao
arrendatário a coisa locada, com o que ele cumulava as garantias de locatário com as
de credor hipotecário3185.
§ 1785. Uma espécie de locação era, como se disse, a locação de obras ou
serviços. Obedecia, em geral, ao regime da locação, sendo o locador o que prestava
as obras ou serviços (opera) e o locatário o que os recebia, contra o pagamento de
uma mercê ou salário3186. No entanto, no tratamento geral do contrato, os autores
fixavam-se normalmente na locação de coisas, não cuidando muito da prestação de
serviços, talvez por esta não ser frequentemente contratualizada, já que o trabalho
ou decorria no âmbito do cumprimento de deveres domésticos (“obséquios” dos

3176 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 21.
3177 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, ns. 22-22. A remissão
ou redução da renda devia ser pedida antes da colheita, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Locatio conductio”, n. 22.
3178 V. Ord. fil.4, 27, 1.

3179 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 27, 2, n. 2.

3180 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 27, n.3.

3181 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., dec. 157, n. 33.

3182 Salvo no caso de colono da igreja, que devia ser mantido, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit.,

cons. 40, ns.- 1-2.


3183 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n. 28.

3184 Salvo se outra coisa tivesse sido convencionada (“arrendo enquanto não venda”). No

arrendamento de longo tempo, a venda não prejudicava o domínio útil, que se entendia ter sido
transferido para o locatário, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Locatio conductio”, n.
27. Também a venda em hasta pública não poria termo aos arrendamentos preexistentes (Bento Pereira,
Promptuarium [...], cit., 1094; Miguel de Reinoso, Observationes […], obs. 35, ns. 2-3).
3185 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 76.

3186 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 125, n. 2.

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filhos e enteados, dos que viviam por favor no âmbito da casa) ou era prestado
como uma troca de favores entre vizinhos (facio ut facias, facio quia fecistis).
§ 1786. Assim, nem toda a prestação de serviços dava direito a uma
recompensa: os meninos só tinham direito a ser pagos depois dos catorze anos
completos (Ord. fil.4,31,8)3187; os aprendizes não tinham que ser pagos pelo trabalho
prestado3188; os criados de estudantes a quem tivesse sido dado tempo para estudar
não venciam salário3189; as moças recolhidas em conventos e que aí trabalhassem
não eram remuneradas3190; os criados admitidos sem necessidade do patrão e
apenas por instâncias deles próprios não ganhavam salário até que o patrão tirasse
deles algum proveito3191; os cantores, músicos, contadores de histórias, lutadores,
bobos, que se exibiam para divertir o senhor, não tinham salário, a menos que isso
fosse convencionado, bastando que se lhes desse de comer, cama e roupa 3192; os
enteados apenas deviam vencer metade dos salários prestados a seus padrastos ou
madrastas, pois a outra metade corresponderia a deveres domésticos3193; não se
deviam salários a quem não costumasse fazer trabalho mercenário 3194.
§ 1787. Dos que trabalhavam para outros, a situação mais dura era a dos criados
domésticos. A própria terminologia (“servo(a)”, “servir”) aproximava a situação
dos criados da dos escravos. Enquanto que o trabalhador diferenciado, cujo
trabalho supunha o domínio (mestria) de uma arte, era designado pela palavras
“artífice” ou “mestre”, o trabalhador indiferenciado era o “mecânico” (mechanicus)
ou “obreiro” (operarius). Mas o criado doméstico era o servo, próximo do escravo.
De facto, no latim, a palavra servus (ou famulus) designava uns e outros, assim como
a palavra dominus era usada tanto para o dono (proprietário) como para o senhor
(patrão). Embora as Ordenações garantissem a liberdade de trabalhar (Ord.
fil.4,28)3195, a lei e a doutrina estabeleciam regras bastante draconianas sobre os
deveres dos criados quanto ao cumprimento dos seus deveres de serviço. Uma
delas era a de que os criados mecânicos tomados por certos anos, se fugissem,
servissem outros tantos anos, se o senhor assim quisesse 3196. Também era proibido
por lei o trabalho sem paga (Ord. fil.4,29). Mas a ordenação bastava-se com um

3187 Ord. fil. 4, 31, 8; Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 n. 162, n. 5. As moças ganhavam a

partir de 12 anos (Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil. 4, 1, 8.


3188 “O aprendiz de um oficial é quem deve, não o patrão”, escreve Jorge de Cabedo, Decisiones

[...], cit., n. 1 dec. 162, n. 4.


3189 Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 dec. 162, n. 3. Decerto porque o tema era familiar

aos autores, o tema dos criados dos estudantes – que por vezes também eram estudantes – era bastante
tratado pela doutrina, com expressa referência aos costumes de Coimbra: em Coimbra, os criados
(estudantes) dos estudantes tinham direito a ficar com o calçado que os patrões lhes dessem, Manuel
Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad 4, 29, pr..
3190 Melchior Febo, Decisiones […], cit., p. 1, aresto 49.

3191 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil. 4, 31, 9, n. 2.

3192 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, 31, 5, n. 2.

3193 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 32; Miguel de Reinoso, Observationes […], cit.,

obs. 27, n.28.


3194 Miguel de Reinoso, Observationes[…], cit., obs. 27, n. 11; mas o ter trabalhado de graça para

um não obrigava a fazer o mesmo a outros, ibid. 14.


3195 O criado que tivesse adoecido não era obrigado, depois de curado, a servir o amo por outro

tanto tempo, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil. 4, 28.
3196 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., dec. 155, n. 2.

524
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

qualquer pagamento acordado entre o patrão e o serviçal 3197, na falta do qual


vigoraria o uso da terra para estes contratos “a bem fazer”3198. No caso de se ter
convencionado um pelote e uma capa, isso obrigava a trabalhar um ano para o
patrão; só um pelote ou só uma capa obrigavam a meio ano de trabalho (Ord.
fil.4,30). Noutros casos, a lei taxava os salários (Ord. fil.4,31). Mas as dádivas ou
legados dos amos eram tidos como correspondendo a pagamentos de salários, pelo
que, nestes casos em que tinham sido beneficiados, os criados não podiam reclamar
em juízo salários não pagos3199.
§ 1788. A regra para a fixação dos salários era, como se viu, a do consenso,
completada pela do costume3200.
§ 1789. Os salários eram pagos no fim do trabalho (no fim do dia, da semana,
do ano), salvo pacto em contrário3201. No caso de se justar a realização de uma
tarefa, como a feitura de uma casa, uma torre, um navio, o momento do pagamento
dependia dos costumes ou da natureza do trabalho 3202. Se o pagamento incluísse
somas para despesas da obra, estas deveriam ser pagas antes ou
escalonadamente3203. Os salários dos oficiais a tempo deviam ser pagos no
início3204; o mesmo valia nos emissários do príncipe 3205; os dos corregedores e dos
juízes pagavam-se aos quartéis3206; o médico era pago quando o doente sarasse 3207.
§ 1790. A regra geral quanto à obrigação de prestar serviços era a de que o
patrão não ficava desobrigado se o trabalhador não os prestasse por caso
fortuito3208. Assim, os lentes que não tivessem dado as lições por causa da guerra,
da peste ou por caso fortuito, deviam ser pagos 3209. Porém, havia autores a
defender que o trabalhador doente – ou que se ausentasse sem licença do senhor -
não cobrava salário3210.

3197 Valiam aqui os princípios da lesão, pelo que o contrato podia ser anulado se o salário fosse

inferior a metade do salário justo, ou o patrão acionado pelo que faltava (Cf. Manuel Barbosa,
Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil. 4, 31, 9, n. 3).
3198 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil. 4, 19, 1, n. 4.

3199 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil. 4, 31, 10-11.

3200 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 27, ns. 7-8.

3201 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Salarium”, ns. 2 e 7. Sobre os tempos e

condições dos pagamentos de salários, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, per totam.
3202 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Salarium”, n. 3, Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, n. 5.


3203 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Salarium”, n. 5.

3204 Sobre a ordem de pagamento dos tesoureiros régios, António de Sousa de Macedo, Decisiones

[…], cit., dec. 79; se os assentamentos eram de salários; se se podiam prejudicar os salários assentados
por novos assentamentos, ibid. decs. 84, 85, 87.
3205 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, ns. 3-4.

3206 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, n. 8.

3207 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Salarium”, n. 10; mas não dependia do

êxito da cura, Diogo Marchão Themudo, Decisiones […], cit., dec. 245, ns. 1-2 e 5; devia tratar os
pobres de graça, ibid. n. 4.
3208 A não ser que o trabalhador prestasse, nessas circunstâncias, os serviços a outrem, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Salarium”, n. 6.


3209 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Salarium”, n. 5.

3210 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 dec. 8, n. 30. Já o desembargador, segundo o

mesmo, podia cobrar os salários se estivesse doente (ibid. ).

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§ 1791. Os criados respondiam pelos danos causados aos amos, sendo o


prejuízo descontado de seus salários (Ord. fil.4,35)3211.
§ 1792. A mudança de patrão estava frequentemente condicionada ao
consentimento do antigo (Ord. fil.4,30,2-3).
§ 1793. O despedimento estava regulado nas Ordenações (Ord. fil.4,34). A regra aí
expressa era a de que o prazo do contrato devia ser respeitado e que qualquer
denúncia antes do prazo obrigava a pagar os salários até ao fim3212. No caso de o
criado se despedir antes do prazo, tinha que devolver o salário correspondente ao
tempo em falta. No caso de morte do trabalhador, o princípio era o de que teria
direito a receber os salários até ao fim do tempo, pois a morte era um caso
fortuito3213; mas não seria isso o que se geralmente se decidia3214.
§ 1794. A ação sobre salários era sumária3215. As condições processuais dos
servidores eram, em geral, tão fracas, que alguns autores lhes reconheciam o direito
de se pagarem a si mesmos pelos bens dos patrões, desde que o fizessem sem
escândalo3216. A lei dispunha que o direito aos salários prescrevia num prazo de 3
anos (Ord. fil.4,32-33)3217. Em matéria de prova, dizia-se que não era de acreditar no
testemunho dos próprios sobre os seus salários 3218. Singularmente, opina-se que os
trabalhadores tinham uma hipoteca a garantir os salários: tal seria o caso se o patrão
do navio tivesse pago outras despesas com o dinheiro que recebera para satisfazer
os salários dos marinheiros3219.
6.9.2.2.4 A sociedade ou companhia.
§ 1795. O contrato de sociedade era aquele em que duas ou mais pessoas
convencionavam participar nos riscos e ganhos de uma atividade para aumentarem
os respetivos benefícios3220. O direito romano insistia nesta ideia de uma finalidade

3211 Os oficiais públicos podiam ser removidos por faltas, perdendo os respetivos salários, Jorge

de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, n. 34.


3212 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Salarium”, n. 8.

3213 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, n. 9 (“non stetit per eum quominus ad

finem temporis operas suas praestitisset”).


3214 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 8, 21-22, embora o rei por vezes fizesse

mercê aos herdeiros do resto do quartel, n. 23.


3215 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., n. 46. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...],

cit., p. 2, cap. 38 (acerca da ação sumaria de serviços de moços e moças).


3216 "Nota quod famulum, cui non fuit solutum justum salarium a domino, nec dominus vult

solvere, si certo faciat sibi deberi, & debitum in rei veritate sit liquidum, & via iustitiae non potest
recuperare, vel quia deficiunt probationes, vel quia expendet magis, quam sibi debetur de salario,
potest cum bona conscientia suum salarium recuperare de bonis domini, veluti ea oculte, et sine
scandalo auferendo resoluit [...] etiam elapso trienio posse tuta conscientia hoc facere”, Manuel Barbosa,
Remissiones [...], cit., 4, ad Ord. fil.4, 32, n. 3.
3217 Só valia para criados, mas não para os que servissem a outro título, Gabriel Pereira de Castro,

Decisiones […], cit., dec. 46, 2 ss.; não valia se o prazo fosse interrompido, se se tivessem feito contas
ou se o pagamento tivesse sido prometido por escrito [tratava-se apenas de uma presunção de
pagamento], ibid. ns. 4 ss..
3218 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit., p. 1 dec. 167, n. 6.

3219 Estes teriam uma hipoteca tácita sobre a soma paga, com direito de prelação, Gabriel Pereira

de Castro, Decisiones […], cit., dec. 45, ns. 1-8.


3220 “Societas est fortunae et periculi participatio inita tacite vel per conventionem inter duos, vel

plures, ob commodiorem usum et uberiorem quaestum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,

526
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

comum, para distinguir o contrato de sociedade da simples compropriedade, em


que várias pessoas se encontravam na situação de serem (com-)proprietários da
mesma coisa.
§ 1796. A sociedade podia compreender todos os bens (societas omnium bonorum,
aparentemente a forma mais antiga) ou apenas os afetados a um negócio ou
atividade3221. Quanto à sua duração, podia durar por certo tempo, ser constituída
sem termo ou durar na pendência de certa atividade (v.g. exploração de certa coisa
comum, como campos, olivais ou vinhas) ou de certo negócio lícito 3222(v.g. gerir
uma taberna, realizar uma viagem comercial, explorar o arrendamento de um
tributo)3223. No caso de constituição por um tempo certo, mantinha-se até ao seu
transcurso; no caso de participação num negócio ou empresa, só podia desfazer-se
se se extinguisse a causa que tivesse dado origem à atividade comum ou esta
deixasse de ser proveitosa. Se convencionada sem termo, rescindia-se por comum
acordo ou unilateralmente, se sobreviesse inimizade entre os sócios ou se um deles
fosse chamado para tarefa da república; de qualquer modo, um sócio não podia sair
se disso decorresse um prejuízo injusto para os outros 3224.
§ 1797. A sociedade apenas compreendia as atividades de cada sócio
relacionadas com o seu objetivo, pelo cada sócio não obrigava os outros 3225 em
negócios estranhos à sociedade3226.
§ 1798. O estatuto de sócio implicava uma certa igualdade e solidariedade, de tal
modo que não eram válidas as sociedades em que houvesse uma repartição
desproporcionada, na qualidade ou na quantidade, dos proventos e dos encargos
(sociedades leoninas)3227; estas eram inválidas ou por contrariarem a natureza do
contrato ou por estarem feridas de lesão enorme. Mas podia convencionar-se que,
quanto às aportações dos sócios, houvesse uma especialização, contribuindo, por
exemplo, um com o trabalho e indústria e outro com o capital 3228
§ 1799. O contrato de sociedade não dava lugar, como acontece hoje, a uma
nova entidade ou pessoa jurídica3229. Por isso, na gestão social, o princípio geral era

s. v. “Societas", n. 1 (fonte: D. 17, 2, Pro socio; Ord. fil.4, 44); “a sociedade é um contrato de obrigações
recíprocas pelas quais todos se obrigam por facto de um”, Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec,
198, n. 3.
3221 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 3.

3222 “Societas rei turpis non obligat”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 32-33. V.

Ord. fil.4, 44, 3.


3223 O testador podia instituir uma sociedade temporária entre os herdeiros, mas estes podiam

libertar-se se a sociedade fosse instituída no seu interesse (mas não no da alma do testador); a sociedade
perpétua não era válida, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 8.
3224 V. Ord. fil.. 4, 44, 5 a 8. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 6. Se saísse, respondia

pelos prejuízos causados aos outros, não ficando estes, por sua vez, obrigado a repartir com ele os
lucros, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 7.
3225 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 98, per totam.

3226 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 98. Se a sociedade era de todos os bens, a regra

era, porém, a de uma responsabilização da sociedade por todos os atos não exclusivamente pessoais de
cada sócio.
3227 V. Ord. fil.4, 44, 9; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 9.

3228 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 4. Mas, opina António da

Gama (Decisiones […], cit., dec. 253, n. 1), quando houvesse um sócio capitalista não se podia
convencionar que o risco do dinheiro não recaísse sobre ele.
3229 “Universitas nihil aliud est nisi singuli homines qui ibi sunt”, dispunha a Glosa ordinária

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o de que cada sócio, sem o consentimento (expresso ou tácito) dos outros, apenas
podia dispor da sua parte no casco dos bens sociais (res communis)3230, embora se
entendesse que podia dispor por inteiro dos produtos com os quais a sociedade
comerciava (rei venales)3231. Correspondentemente, cada sócio não podia acionar o
devedor da sociedade senão pela sua parte, a não ser que fosse procurador do
consócio3232. Nem podia, da mesma forma, ser acionado um só sócio pelo conjunto
das obrigações da sociedade, se todos possuíam pro indiviso3233.
§ 1800. Esta regra da responsabilidade conjunta tinha exceções. Assim, se os
sócios gerissem um negócio estando cada um em seu lugar, cada um decidia in
solidum e era responsável também in solidum, sendo como que procurador dos
outros3234; o mesmo acontecia se tivessem dividido o negócio por ramos 3235. A
mesma regra da solidariedade valia nos banqueiros, cambistas e prestamistas 3236.
Também os que eram sócios na administração de coisas públicas (ou no exercício
da tutela) respondiam in solidum perante a república, mas não perante privados 3237.
§ 1801. Eram imputáveis à sociedade as negociações em que todos os sócios

(Glossa ad D.3, 4, 7, 1). Porém, o direito justinianeu já continha alguns traços que antecipavam a
personalidade coletiva: Digesto, 3, 4, Quod cuiuscumque, 7, 1 e 2 – “si quid universitati debetur
singulis non debetur, nec quod debet universitas singuli debent; in decurionibus vel aliis universitatibus
nihil refert, utrum omnes iidem maneant vel omnes mutati sint”. A personalidade coletiva é, no
entanto, sobretudo promovida pelo direito canónico, a partir da ideia de “corpo místico”, aplicada a
igrejas, mosteiros, abadias, paróquias, confrarias, que assim ganhavam a possibilidade de ser
proprietárias, devedoras, credoras, herdeiras; em suma, de serem titulares de direitos e deveres, como
as pessoas físicas (“collegium in causa universitatis fingatur una persona”), embora se chamasse a
atenção para o caráter ficcional do conceito (“proprie non est persona: tamen hoc est fictum positum
pro vero, sicut ponimus nos iuristae”).
3230 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 15. “Socii mercatores

exercentes unum traficum seu apothecam non obligantur in solidum, sed pro rata nisi consuetudo locit
fit in contrarium”, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 143, n. 4, numa consulta que trata dos
vários aspetos da questão dos poderes e responsabilidade dos sócios (v. também a sua consulta n. 98,
per totam). Casuística: podia arrendar casa ou prédio comum, ainda que com oposição do consócio, se
se costumava arrendar, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", cit., n. 16; o
mesmo quanto ao cultivo de prédio comum, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., n. 18.
3231 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 13. Porém, o fisco,

sendo sócio, podia dispor de toda a coisa comum por privilégio especial, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 14.
3232 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 21.

3233 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 22. Isto valia mesmo para

os sócios gerentes que não fossem procuradores dos outros, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Societas", n. 23. Também os sócios de um navio comandado por um terceiro (patrão,
capitão) respondiam cada um pela sua parte, ibid. n. 25; mas os sócios de um negócio gerido por um
feitor, responderiam in solidum (Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. n. 7).
3234 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 26; Álvaro Valasco, Decisiones

[...], cit., cons. 98, ns. 4 a 7.


3235 “Tratando um da lã e outro dos panos”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Societas", cit., n. 26
3236 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 143, n. 5.

3237 Mas se um pagasse´, tinha ação contra os outros, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,

s. v. “Societas", cit., ns. 27-28, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 98, ns. 7 ss.; a questão dos
poderes e capacidade judicial, ativa e passiva, dos sócios é tratada em Álvaro Valasco, Decisiones [...],
cit., cons. 143 (“An et quando ex pluribus mercatoribus sociis unius funditii, possit agere in solidum
contra debitores ejusdem negotiationibus, seu funditii; et an et quando unus ex sociis rem societatis
alienare, & valeat alienatio”.

528
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

interviessem ou que tivessem sido registadas nos livros de contas ou de escrita da


sociedade3238.
§ 1802. Na partilha das despesas, todas as que fossem relativas ao objeto da
sociedade deviam ser imputadas a todos os sócios 3239, a não ser que fossem
causadas por um deles, por dolo ou culpa grave 3240. Nas sociedades de todos os
bens, todas as despesas (mesmo os dotes das filhas dos sócios) se reputavam da
sociedade3241. Os prejuízos fortuitos – como o furto ou o perecimento marítimo de
coisas da sociedade - recaíam sobre a sociedade, a não ser que tivesse havido
negligência de algum dos sócios na geração desses prejuízos 3242. Havia a obrigação
de prestação mútua de contas3243.
§ 1803. A sociedade extinguia-se com a morte, natural ou civil de um sócio, não
podendo passar aos herdeiros, pois a sociedade constituía-se em função da indústria
de cada pessoa3244. Porém, havendo mais de dois sócios, a morte de um não
extinguia a sociedade, a não ser que se convencionasse o contrário. Aquela que se
constituísse para um negócio dissolvia-se findo o negócio3245, ou quando os bens
sobre que incidia a empresa comum se perdessem, por exemplo pelo confisco 3246.
§ 1804. O contrato de sociedade era – como o de seguro - um dos contratos
típicos dos comerciantes3247.
6.9.2.2.5 Contrato de seguro.
§ 1805. Os contratos aleatórios eram aqueles em que a prestação de uma das
partes dependia de um facto incerto3248, entre eles se computando os de seguro, de
empréstimo náutico, de jogo e apostas e de vendas de coisas futuras.
§ 1806. Pelo contrato de seguro (assecuratio) uma das partes aceitava o risco de
perecimento ou deterioração de uma coisa transportada contra o pagamento de
uma certa quantia (prémio)3249.

3238 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 12.
3239 V. Ord. fil.4, 10 e 11. Por exemplo, as despesas com viagens devem ser pagas do acervo social,
António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 110, n. 2
3240 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 10. Os sócios estavam

obrigados a ser tão diligentes nas coisas comuns como nas próprias, ibid. n. 5.
3241 Exceto as despesas delituais ou culposas dos sócios, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons.

118, n. 5 ss.
3242 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 11; porém, António da

Gama (Decisiones […], cit., dec. 253, n. 1-2) era de opinião que cada sócio respondia pela negligência e
pelo risco das coisas que gerisse).
3243 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 20.

3244 V. Ord. fil.4, 44, 4. Este caráter “pessoal” da sociedade fazia parte da natureza do contrato. Por

isso é que uma decisão da Casa da Suplicação julgou que a sociedade não continuava nos herdeiros,
mesmo que os sócios originários tivessem disposto o contrário, v. Melchior Febo, Decisiones […], dec.
198, n. 1. Esta regra não valia nas sociedades de contratadores de impostos, ibid, ns. 19-20; 46 a 51.
3245 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 35.

3246 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Societas", n. 35.

3247 Sobre os contratos dos comerciantes, v. Pedro de Santarém, Tractatus de assecurationibus et

sponsionibus mercatorum […]; Miguel B. Salon, Controversiae de iustitia, et iure, atque de contractibus, et
commerciis humanis licitis ac illicitis: […], cit., Historiografia: Carlos Petit, “Del usus mercatorvm al uso de
comercio. Notas y textos sobre la costumbre mercantil”, cit..
3248 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 21.

3249 Fontes: D.22, 1 e 2; C.4, 32-33, Decretales, 5, 19; Sextum, 5, 5; e Clementinae, 5, 5; Part. 1, 6, 46;

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§ 1807. Como contrato baseado no consenso, o seguro exigia que as partes


fossem capazes de contratar e permitia a aposição de pactos modificativos que não
contrariassem a natureza do contrato.
§ 1808. O objeto do seguro podiam ser coisas ou pessoas. No transporte, não
eram apenas as coisas transportadas que podiam ser seguradas, mas também o
próprio navio3250. O objeto segurado podia já não existir no momento do seguro,
desde que isso não fosse conhecido do segurado3251.
§ 1809. O facto incerto de que dependia a prestação de uma das partes era um
facto fortuito, que não se podia relacionar com vícios da própria coisa (não podia
ser, por exemplo, a azedia do vinho ou o aparecimento de caruncho na madeira).
Podia limitar-se o risco a um certo tipo de facto fortuito (v.g. perigo de mar, o
incêndio, o assalto de piratas, rebaldaria [= velhacaria] do patrão).
§ 1810. As formalidades e processos dos seguros marítimos em Portugal
estavam estabelecidos nos “Estilos mercantis da Praça de Lisboa, e Reyno de
Portugal”3252. Os seguros eram feitos na Casa dos seguros e o processo corria
perante o ouvidor da alfândega.
§ 1811. O pagamento do prémio não era considerado usurário porque o
segurador como que comprava o risco, que deixava de correr pelo dono da coisa,
como seria normal (res perit domino) para passar a correr pelo segurador3253. O
prémio era fixado na convenção ou, em muitas praças comerciais, nas leis sobre
seguros (ver, em Portugal, o alv. 11.8.1791).
6.9.2.2.6 O empréstimo náutico.
§ 1812. O empréstimo náutico (foenus nauticus)3254 era uma espécie de mútuo em
que o mutuante suportava o risco de transporte por mar ou por terra, contra o
pagamento, pelo mutuário, de uma quantia para além do capital mutuado (juros,
interesses, usura, crescimento). O efeito prático era que o devedor (dono da coisa
transportada) só pagava ao credor se a coisa chegasse ao destino sã e salva. Do
ponto de vista dogmático este efeito era explicado dizendo que a propriedade da
coisa segurada se transferia para o mutuante durante o transporte, de modo que

Ord. fil. 4, 67. Fontes doutrinais: São Tomás, Summa theologica, 2a.2ae, qu.78; Petrus Santerna (Pedro de
Santarém), Tractatus de assecurationibus et sponsionibus mercatorum […], cit.; Luís de Molina, Tractatus de
iustitia et de iure […], cit., tract. 2. disp. 303 ss.; Fernão Rebelo, Opus de obligationibus iustitiae, religionis et
charitatis [...], cit., p. 2, liv. 8; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 22. Sobre o tratado
de seguros de Pedro de Santarém, Moses Benzabat Amzalak, “O Tratado de Seguros de Pedro de
Santarém”, Anais da Universidade Técnica de Lisboa. Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, vol.
26, t. 2 (1958).
3250 O segurador ficava obrigado pelo seu valor se ele se perdesse totalmente (mas já não se apenas

se danificasse, salvando-se a querena ou corpo da nave, carina manente, corpore exstante), Gabriel Pereira
de Castro, Decisiones […], cit., dec. 56, n. 6 e 7.
3251 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons 64, n. 8; presumia-se que não tinha notícia,

sobretudo se o transporte se fazia para paragens longínquas, salvo se intermediasse entre o perecimento
e o seguro um tempo tal que permitisse a chegada de algum aviso, ibid. n. 10; também António da
Gama, Decisiones […], cit., dec. 181, n.1.
3252 Em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 5, ad. Ord. fil. 1, 51, gl. 4.

3253 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 56, ns. 1-3, 8.

3254 Miguel B. Salon, Controversiae de iustitia, et iure, atque de contractibus, et commerciis humanis licitis ac

illicitis: […], cit.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 23.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

recaísse sobre ele o risco do seu perecimento fortuito.


§ 1813. Neste caso, os juros podiam exceder o capital e mesmo os juros
lícitos3255, pois ter-se-ia verificado uma compra do risco.
6.9.2.2.7 O contrato de jogo.
§ 1814. O regime das obrigações contratuais de um contrato de jogo dependiam
de o jogo ser permitido ou proibido.
§ 1815. O jogo era tratado com desconfiança pela teologia moral, de acordo
com uma tradição moral que já vinha do Antigo Testamento. Embora constituísse
uma atividade lícita de recreação do espírito 3256, transformava-se normalmente num
vício, levando a exageros (excessus modi), que punham em risca o património e
induzia a condutas imorais ou criminosas (fraudes, roubos, superstição). Isso levava
o direito a reprimir aqueles em que o ganho fosse menos legítimo, por depender
exclusivamente ou sobretudo da sorte e do azar, não protegendo juridicamente os
ganhadores e, eventualmente, punindo tais jogos como crime 3257.
§ 1816. Assim, o regime jurídico do jogo era dual. Nos jogos permitidos – em
regra, os que dependiam do engenho dos jogadores e que eram lícitos a leigos ou
clérigos -, valiam as regras de um contrato sob condição incerta 3258. Nos jogos de
azar - que eram, por regra geral, os de pura sorte, com intuito de lucrar (alearum et
azardi, fortunae et infortunae)3259 -, a proibição era a regra. O direito local (lei, estatutos,
costumes) podia alterar esta regra, nomeadamente permitindo certos jogos; isso
aconteceu com tômbolas ou loterias, nomeadamente a favor de finalidades
públicas.
§ 1817. No direito romano, como era desconhecida esta proibição de jogo, o
ganhador tinha uma ação para reclamar o que tivesse ganhado, ao passo que o
perdedor não podia recuperar o que tivesse pago (por uma conditio indebiti; D. 11,5,
De aleatoribus, 1, ult.; C. 11,43, De aleae ludu et aleatoribus). No período do direito
comum, o direito castigava os dois jogadores destes jogos ilícitos: privava o
ganhador da ação para reclamar os ganhos, e também não autorizava o perdedor a
repetir o que tivesse pagado. Apenas se tivesse havido batota no jogo por parte do
ganhador (engano, dolus malus), ou se este tivesse incentivado o perdedor a jogar,
ou, finalmente, se as perdas fossem desmedidas, prejudicando a família do
perdedor3260, se protegia o perdedor, permitindo-lhe repetir como indevido o que
tivesse perdido. Há porém notícia de que a prática portuguesa protegia mais o
perdedor-devedor, autorizando-o a repetir o que tivesse pagado3261, mesmo que
este tivesse prometido, por um outro pacto, pagar as suas perdas 3262. Pela mesma

3255 Ord. fil.4, 67, 6; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 23.
3256 S. Tomas, Summa […], 2a.2ae, qu. 168, art.3.
3257 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, 1.

3258 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, 2.

3259 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, 2.

3260 Levando o devedor a pagar com coisas suas, como joias ou roupas,

3261 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, ns. 4 e 6. Esta prerrogativa

de repetir prescrevia por 50 anos; subsidiariamente, o fisco podia pedir a repetição a seu favor da
quantia perdida ao jogo, para a aplicar a bem da utilidade pública, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones
[...], cit., dec. 88, n. 1. O pai e o senhor podiam repetir somas perdidas pelo escravo ou pelo filho,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, 5.
3262 Nem que tivesse havido um compromisso de pagar o que se perdera Gabriel Pereira de Castro,

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lógica, não se consideravam válidos os contratos feitos entre os jogadores no


contexto do jogo, por se presumirem dolosos, encobrindo dívidas de jogo 3263.
§ 1818. Os jogos proibidos ainda eram punidos como crime 3264. Por direito
comum, a pena era arbitrária, devendo o julgador considerar a qualidade dos
jogadores e as quantias jogadas3265. Também o incitamento ao jogo era punido com
a mesma pena3266. As casas onde se fizessem habitualmente jogos públicos
(tavolagens) deviam ser confiscadas. Nessas casas, os injuriados ou roubados não
tinham ação para exigir os danos que lhes fossem causados 3267. E o clérigo que
mantivesse uma casa de jogo tornava-se indigno de receber um benefício, para além
de dever ser punido com pena arbitrária 3268.
§ 1819. As apostas3269 eram permitidas pelo direito romano 3270, mas restringidas
pelo direito comum3271 e proibidas pelo direito português 3272, a não ser que o
resultado dependesse do valor, força ou engenho do apostador ou que fossem
autorizadas em face de um interesse público, como as loterias. Incluíam-se nas
apostas as lotarias particulares, ou “panelas de sorte” dos jogadores de feira (“rifas”,
“vermelhinha”).
6.9.2.2.8 Compra de esperança ou de coisa futura.
§ 1820. Era licita a compra e venda de coisa futura 3273, como compra e venda
de algo que se esperava (em que se tinha esperança que viesse a existir) - uma
pescaria, uma caçada, uma parição, uma colheita. O comprador ficava com uma
obrigação firme de pagar o preço. Mas o vendedor só teria que entregar a coisa se
ela efetivamente viesse a existir 3274. Era nisto que o contrato era aleatório, já que a
entrega da coisa dependia de um evento futuro e incerto. O direito português
proibia certas vendas de coisas futuras (Ord. fil.5,76,4), que podiam ser prejudiciais
para os vendedores. Tal era o caso da venda da produção de trigo futura, em que os
lavradores, obrigados pelas premências das despesas de sustento vendessem de
antemão as colheitas. Porém, podiam vender-se os frutos já aparentes ou
pendentes, bem como a seara já crescida e apenas não colhida.
6.9.2.3 Convenções assessórias.

Decisiones [...], cit., dec. 88, n. 3.


3263 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, 6.

3264 V. Ord. fil. 5, 82.

3265 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, 3.

3266 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, n. 7.

3267 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, n. 4. Embora esta não fosse a

prática, em Portugal, ibid..


3268 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Ludum”, n. 8.

3269 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 25.

3270 D.11, 5, De aleatoribus, 3.

3271 V. Luís de Molina, Tractatus de iustitia et de iure, tom. 2, tract. 2, de contractibus, disp. 109.

3272 Ord. fil.5, 82; alv. 16.5.1755, sobre jogos de cartas.

3273 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 26; D.18, 1 De contrahenda emptione, 8, § 1.

3274 Salvo, claro, se a não produção da coisa lhe fosse imputável por dolo ou culpa, segundo os

princípios gerais.

532
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

6.9.2.3.1 A fiança.
§ 1821. A garantia das obrigações tinha uma longa e conturbada história no
direito romano3275, onde tinha evoluído de uma coobrigação do fiador a par com o
devedor3276 para uma obrigação autónoma do fiador, constante de um pacto3277 que
se acrescentava ao do devedor principal. Neste pacto, o garante obrigava-se ao
mesmo que o devedor e com as mesmas condições, vinculando os seus herdeiros.
Na época pós clássica e justinianeia, estavam estabelecidos os traços gerais que
encontraremos no direito comum, nomeadamente: o caráter acessório da garantia,
que a limitava aos termos e condições da obrigação principal3278; o caráter solidário,
que permitia pedir a cada garante a totalidade da dívida3279; o caráter subsidiário,
que colocava o fiador como um obrigado de último recurso 3280.
§ 1822. Para a doutrina do ius commune tardio, fiador (fideiussor) era o que garantia
uma obrigação alheia, mesmo que natural, por uma convenção suplementar, aposta
ao mesmo tempo ou depois da promessa inicial3281. Segundo a etimologia
(comprometida com a dogmática) destes juristas, fideiussio viria de “ordem assente
na boa-fé”3282). O fiador recomendaria ao credor a aceitação da obrigação do
devedor principal, comprometendo-se perante a deusa Fides a assumir os riscos
dessa recomendação. Nesta estrutura imaginada, a fideiussio estava estruturalmente
próxima de outras formas de responsabilização por ordens, como o mandato ou a
responsabilização do pater pelos negócios que tivesse cometido a filhos ou escravos
(actiones quod iussum).
§ 1823. O seu regime jurídico assentava nos princípios estabelecidos pelo
direito romano pós clássico e justinianeu (acessoriedade, solidariedade,
subsidiariedade), que em geral se mantinham.
§ 1824. A obrigação do fiador era uma obrigação acessória, não apenas no
sentido de que provinha de uma convenção que se acrescentava à da constituição
da dívida original, mas também no sentido de que não subsistia sem a obrigação
principal, nem em termos mais gravosos do que esta 3283. Isto queria dizer várias

3275 Os conceitos centrais são os de satisdatio (no direito mais antigo) e intercessio, género de que a

fideiussio é uma espécie.


3276 Por meio de uma dupla promessa sacral (sponsio), em que ambos prometiam, num só ato, a

mesma coisa e se obrigavam como co-devedores (co-rei). Sobre a evolução do direito romano das
garantias, v. Ernst Levy, Sponsio, Fidepromissio, Fideiussio: Einige Grundfragen zum Römischen
Burgschaftsrechte, reimpr. Nabu Press 2013; Reinhard Zimmermann, The Law of Obligations: Roman cit., p.
118 ss..
3277 "Quod Maevius mihi debet, id fide tua iubes ?". "Fideiubeo". Este pacto não consistia num

juramento formal como a sponsio, mas antes numa promessa sob invocação da deusa Fides e, por isso,
acessível a não romanos.
3278 "Horum [scl. fideiussorum] obligatio accessio est principalis obligationis", Inst. Gaii, 3, 126. O

adjetivo accessorius, porém, foi criado pelos glosadores ("in accessione... id est in accessoria obligatione").
3279 "[...] inter sponsores [...] lex Appuleia quondam societatem introduxit", Inst Gaii, 3, 122.

3280 C.8, 40, 28). ("[creditor] veniat primum ad eum qui [...] debitum, [...] contraxit" (beneficium

excussionis vel ordinis).


3281 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 1; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 28. Fonte: D.45, 1 de verborum obligationibus, 1, 4.
3282 “Fideiussor dicitur a bona fide iubendo”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Fideiussio”, n. 1.
3283 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 131, n. 12 (a fiança é uma convenção acessória,

nunca principal).

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coisas. A primeira era a de que a fiança supunha a validade da obrigação principal e


não subsistia sem esta. Assim, era válida a fiança das obrigações de menores,
embora estas obrigações fossem naturais (e, por isso, inexigíveis); mas era preciso
que as obrigações originais fossem válidas3284. A segunda era a de que a obrigação
do fiador não podia ser mais gravosa do que a do devedor inicial, nem quanto ao
seu objeto, nem quanto ao seu modo ou circunstâncias 3285. Discutia-se, por
exemplo, se a obrigação do fiador subsistia se o prazo da obrigação fosse
prorrogado, estendendo a obrigação do fiador para além do período temporal
inicial. A generalidade dos autores desonerava o fiador neste caso, ou porque a
prorrogação configurava uma novação da obrigação inicial 3286, ou – numa
argumentação menos conceitual – porque o alargamento do prazo da dívida
originava um ónus maior para o fiador3287. Em todo o caso, admitia-se – como se
viu - a garantia por fiança de uma obrigação natural e, com isto, concedia-se ao
credor uma ação contra o fiador, ainda que ele não a tivesse contra o devedor
original3288. Uma terceira consequência da subsidiariedade era a de que competiam
ao fiador todas as ações e exceções que competiriam ao devedor principal. Assim, o
fiador gozava da ação por lesão que competisse ao devedor3289, o mesmo valendo
para qualquer ação ou causa de extinção que competisse ao devedor principal (v.g.
prescrição)3290.
§ 1825. A obrigação dos fiadores, quando fossem vários, era solidária 3291,
respondendo cada um deles por toda a dívida garantida, sem o benefício da divisão,
mas sendo atribuídas ao que pagasse as ações necessárias para efetivar contra os
outros (e contra o devedor principal 3292) o seu direito de regresso pelo que
houvesse pago3293. Este regime estava consagrado nas Ordenações filipinas que, aqui,

3284 A obrigação do fiador era exigível pelo credor. E também era exigível a obrigação do menor ou

escravo de restituir ao fiador o que ele tivesse pago (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Fideiussio”, ns. 4 e 5).
3285 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, ns. 2 a 5.

3286 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 20.

3287 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 132, ns. 15-16.

3288 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 6. Ou seja, se garantisse

um empréstimo de dinheiro a um menor, o fiador não se podia valer da exceptio Sanatusconsulti


Macedoniani, a qual, porém, aproveitava ao devedor principal (menor).
3289 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 162, n. 5.

3290 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 7; Gabriel Pereira de

Castro, Decisiones [...], cit., dec. 17, n. 15. Mas não pode usar de uma restitutio in integrum ob aetatem, que
competisse ao devedor menor (cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 6).
3291 Este fora o regime originário da fiança no direito romano, pois o garante ou se obrigava na

mesma promessa com o devedor ou assumia para si tudo aquilo que ele devesse. Isto também
correspondia ao interesse do credor, pois ele não podia facilmente saber quantos eram os fiadores, de
modo a poder acioná-los pro rata.
3292 Para isso, o fiador podia obrigar o credor a transferir para ele as ações que tivesse contra o

devedor, para exigir deste o principal e os juros, com as eventuais garantias reais que tivesse, v. Bento
Pereira, Promptuarium [...], cit., n. 677; Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 180, ns. 6 e 9. Outros
autores atribuem ao fiador uma ação de mandato contra o devedor principal, que, assim, era equiparado
ao mandante nas obrigações que este tinha de ressarcir o mandatário pelas despesas que este tivesse tido
em função do mandato (Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.. p. 1, d. 122, n. 1); outos, preferiam falar
de uma ação semelhante à do gestor de negócios (Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3,
38).
3293 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 14.

534
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

contrariavam o direito comum (Ord. fil.4,59)3294.


§ 1826. Por fim, a obrigação do fiador era subsidiária, não podendo ser
acionado o fiador sem que, previamente, o pagamento tivesse sido exigido ao
devedor principal3295. A isto se chamava o benefício da excussão ou da ordem,
consagrado nas Ordenações (Ord. fil.4,59, pr.; Ord. fil.4,3,pr.)3296. Era tão efetivo que a
sentença condenatória do fiador era título executivo contra o devedor 3297; o fiador
podia nomear à penhora os bens do devedor, prosseguindo a ação contra ele à sua
custa3298. Casos havia em que este benefício não funcionava. Não funcionava,
naturalmente, se o devedor principal não pudesse pagar ou estivesse ausente 3299.
Depois, cessava quando o fiador se tivesse obrigado como devedor principal, pois
isto equivalia a renunciar ao referido privilégio3300. Ou quando o fiador não o
invocasse como meio de defesa (exceção dilatória) antes da litis contestatio3301.
Finalmente, não havia subsidiariedade se a fiança era contratada entre
comerciantes3302.
§ 1827. Podia dar fiança todo aquele que pudesse obrigar-se e dispor dos seus
bens3303.
§ 1828. Porém, as mulheres que garantissem dívidas de outrem (de outros
homens) dispunham da exceptio Senatusconsulti Velleiani3304. Este Senatusconsulto
tinha proibido as mulheres de prestarem garantias (intercedere), já que, devido à sua
fragilidade e imprudência, facilmente seriam seduzidas ou enganadas por devedores
sem credibilidade. Isto aplicava-se, mesmo se o homem era o marido, pois este
ainda seduziria mais facilmente a pobre mulher. E, também, mesmo que a mulher
renovasse a fiança passado um tempo razoável para possibilitar uma melhor
reflexão (dois anos). Embora a responsabilização da mulher pudesse gerar, como
ato de vontade, uma obrigação natural, o direito civil teria afastado este efeito, pelo

3294 E modificavam neste ponto o que antes estava estabelecido nas Afonsinas (Ord. af.4, 54); cf.

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 28.


3295 No direito romano clássico, o credor podia dirigir-se, indiferentemente, contra o devedor

principal ou contra o fiador. Mas isto originava um risco, em virtude da regra processual de que não
podia haver duas ações sobre a mesma obrigação (non bis in idem). Como as obrigações do devedor
principal e do fiador ou eram a mesma (unus actus) ou versavam sobre o mesmo, a ação contra um (desde
que ultrapassasse a fase da litis contestatio) precludia a ação contra o outro.
3296 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 15; António da Gama,

Decisiones [...], cit., dec. 379, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 28.
3297 Conforme fora julgado na Casa da Suplicação, segundo Melchior Febo, Decisiones […], cit.,

dec. 180, n. 8.
3298 V. Ord. fil.4, 59, pr.; Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], a esta Ord. n. 3; Manuel Álvares

Pegas, Commentaria […], t. 12, ad 2, 52, 9, 18 ss.).


3299 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 16. O mesmo acontecia

se a obrigação principal fosse inexigível, como no caso das obrigações naturais (Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 28).
3300 V. Ord. fil.4, 59, 2; Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec 185, n. 1; António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 16. Também não aproveitava a quem negasse
dolosamente ser fiador (Ord. fil.4, 59, 1).
3301 Conforme Ord. fil. 3, 49, 2.

3302 Segundo Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 28.

3303 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 8; Álvaro Valasco,

Allegationes […], cit., all. 57, n. 1.


3304 V. Ord. fil.4, 6; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 29.

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que nem naturalmente a mulher ficaria obrigada. O benefício do Velleiano cessava


sempre que: (i) a mulher tivesse exigido uma quantia pela prestação da fiança, pois
isto provava que não era ingénua3305; (ii) a mulher se tivesse feito passar por
homem3306; (iii) a fiança garantisse a manumissão de um escravo ou o pagamento de
um dote3307; (iv) a mulher fosse nobre e desempenhasse algum cargo de autoridade
ou jurisdição3308; (v) a mulher fosse comerciante, pois nessa qualidade de mulheres
não era de presumir a imprudência e fragilidade. O direito comum admitia ainda
que a mulher não se pudesse valer desta exceção se tivesse renunciado a ela. Mas o
direito português não admitia esta renúncia, pois valeria para a renúncia a mesma
consideração sobre a fraqueza das mulheres que valia para a fiança 3309.
§ 1829. O clérigo não devia afiançar o leigo; mas, se o fizesse, ficava
obrigado3310. De resto, a identidade, qualidade e fiabilidade do fiador dependiam
dos critérios do credor, que não se poderia, mais tarde, queixar da sua má escolha.
§ 1830. A fiança podia ser dada em troco de uma remuneração3311.
§ 1831. A obrigação do fiador subsistia enquanto a dívida não fosse paga, a não
ser que se convencionasse um certo prazo para a garantia3312. O fiador não se podia
livrar se não excecionalmente 3313 (por exemplo, se o devedor se tivesse ausentado
para partes longínquas ou remotas, onde fosse difícil acioná-lo para pagamento ou
para regresso)3314. A obrigação de garantir a dívida transmitia-se aos herdeiros do
fiador, que por ela respondiam conjuntamente (unusquisque pro sua parte), ao
contrário do que acontecia com os cofiadores 3315.
§ 1832. O garante não ficava obrigado à prestação estrita prometida pelo
devedor principal3316, respondendo apenas pelo valor em que ela fosse avaliada
(pelo interesse)3317.
§ 1833. Diferente da fiança era a garantia prestada por aqueles que se
obrigassem conjuntamente com o devedor principal (correi)3318. Tinham regresso
por meio de uma ação de gestão de negócios3319. Esta responsabilidade correal

3305 V. Ord. fil.4, 61, 4 a 6.


3306 V. Ord. fil.4, 61, 3.
3307 Ord. fil.4, 61, 1 e 2; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 9.

3308 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 29.

3309 V. Ord. fil.4, 61, 6 e 9-10; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n.

9.
3310 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 10. Já o fiador leigo de

clérigo deveria responder perante o foro secular, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Fideiussio”, n. 11.
3311 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 18, n. 2.

3312 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 20, n. 4.

3313 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., dec. 36, ns. 1 e 2.

3314 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 21.

3315 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 22.

3316 Não era, de todo, obrigado a cumprir, como fiador, obrigações torpes ou imorais, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 26.


3317 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 64, n. 2.

3318 Cf. I.3, 16. De duobus reis stipulandi et promittendi; Ord. fil.4, 59, 4; Pascoal de Melo, Institutiones

iuris civilis [...], cit., 4, 3, 30.


3319 D.12, 1, De rebus creditis, 32.

536
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

contraía-se por pacto anexo ao do devedor principal.


§ 1834. Também se podia criar uma obrigação de garantia, mandando a alguém
uma carta com instruções de entregar a outrem uma coisa ou quantia 3320. Mas a
carta tinha que conter uma ordem formal (iussum) de entregar por conta e risco do
remetente (sua fide et periculo), não bastando uma recomendação ou um pedido, nem
uma carta abonatória da fiabilidade daquele que pretendia tornar-se devedor3321. Na
verdade, tratava-se de uma situação próxima daquela de quem encarregava outrem
de um negócio e que, perante terceiros, ficava responsável pelas obrigações do
encarregado no âmbito desse negócio (por ações do tipo quod iussu3322)3323.
§ 1835. Além de obrigações creditícias, havia outros comportamentos que
podiam ser garantidos por fiança. Era o caso das comparências em juízo, garantidas
por fiadores judiciais3324.
§ 1836. O regime destas fianças acompanha de perto o das anteriores: o fiador
livrava-se com a apresentação do garantido (normalmente, o réu) em juízo3325; a
subsidiariedade da obrigação fazia com que a fiança caducasse se o réu fosse
preso3326. Também estas fianças não podiam ser prorrogadas e, assim, a fiança dada
para a primeira instância não se prorrogava à segunda3327
§ 1837. A exigência de fiadores, nestes casos, decorria da lei, cabendo ao juiz
avaliar da sua necessidade e suficiência. Numa sociedade dominada pelas ideias de
honra e de pundonor, a exigência de fiadores implicava um juízo negativo sobre a
pessoa sobre quem recaía a obrigação, já que se suspeitava ou da sua capacidade
(patrimonial) para cumprir ou da sua fiabilidade moral. Daí que, para alguns
autores, a exigência injustificada de fiadores ou a sua recusa como inadequados
podia configurar injúrias e disparar as consequentes ações por parte dos injuriados.
A doutrina tinha fixado algumas regras sobre a necessidade e suficiência das fianças.
Assim, a pessoa com bens e idónea 3328 não era obrigada a dar fiador3329; uma pessoa
honesta e cumpridora, ainda que pobre, não tinha que dar fiador 3330; os poderosos,
os quezilentos, os advogados cavilosos e, em geral, todos aqueles que fossem

3320 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 24; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 31.


3321 O que aconselhasse a conceder crédito a um pobre dizendo que ele era rico respondia pelo

mau conselho e, se tivesse aceitado dinheiro do devedor para o abonar, era obrigado pelo actio furtiva,
cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Creditor”, n. 15.
3322 Para as relações entre o mandante-fiador e o mandatário-devedor principal existiam as ações

directa e reversa de mandato.


3323 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 3, 32.

3324 A doutrina designava este tipo de fianças por fideiussio in sisti, isto é, garantia de que alguém

comparece (sisto, sistere, stiti, statum, estar [de pé], aparecer; cf. to stand, stehen).
3325 Realmente, com a primeira apresentação, Melchior Febo, Decisiones […], cit., 194, n. 12;

mesmo que se tivesse comprometido a comparecer as vezes que fosse preciso, o fiador livrava-se com
uma primeira apresentação perante aquele juiz ou tribunal, ibid. 19.
3326 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 131, n. 6.

3327 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 109, n.3.

3328 Era idóneo quem tinha bens imóveis (ou móveis que não pudessem ser facilmente sonegados,

como um rebanho, um estabelecimento na praça) suficientes para cobrir a dívida, António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 31.
3329 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 29.

3330 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, ns. 29 ss..

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difíceis de trazer a juízo ou de executar nos seus bens, não eram suficientes como
fiadores3331; o fiador devia ser da mesma província que o réu 3332; podia reformar-se
a fiança, pedindo novo fiador, se o inicial se tivesse tornado não idóneo 3333.
6.9.2.3.2 O penhor e a hipoteca.
§ 1838. O penhor ou contrato penhoratício era um pacto acessório pelo qual
era designada uma coisa especial ou todos os bens em geral para que o credor sobre
eles tivesse direitos preferenciais de execução de modo a aumentar a segurança de
que uma obrigação (principal) seria cumprida 3334. Como pacto acessório,
pressupunha a existência do pacto principal, dando origem a uma ação3335 (actio
pigneraticia ou hypothecaria) que ficava na disponibilidade do credor, a par da ação que
lhe competisse em razão do crédito principal (actio personalis).
§ 1839. A distinção entre penhor e hipoteca relacionava-se com o facto de a
coisa dada em garantia passar (penhor) ou não (hipoteca) para a posse do
credor3336. Independentemente da tradição da coisa, o credor adquiria um direito
real sobre ela, que lhe permitia persegui-la mesmo nas mãos de um terceiro, embora
não fosse título bastante para adquirir por usucapião a coisa empenhada 3337. A coisa
empenhada transitava para o credor com todos os seus ónus 3338.
§ 1840. A constituição deste direito real, que se limitava a dar ao credor direitos
especiais de execução, não era aparente. Quando a coisa era entregue ao credor, ele
passava a possui-la e isso era um sinal, embora ambíguo ( pois não era aparente o
título de posse) de que a propriedade plena já não estava no seu dono originário, o
devedor, e isso poderia alertar quem a quisesse adquirir. Mas se a coisa nem sequer
era entregue, como aconteceria frequentemente nas coisas imóveis, o direito real de
garantia do credor ficava oculto, podendo ocasionar uma incómoda surpresa para
quem adquirisse do devedor o bem sujeito a penhor. Este foi um contínuo
problema das hipotecas, origem de uma certa instabilidade no mercado fundiário,
que só virá a ser resolvido com a criação do registo predial, já no séc. XIX 3339.

3331 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 31.
3332 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec 17, n.1.
3333 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Fideiussio”, n. 32.

3334 “Est accessorium quoddam inductum ad maiorem securitates actus alterius, seu obligationis

principalis, actu principali manente in sua natura”, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 61,
n. 4; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 1)
3335 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., 61, ns. 5 e 7.

3336 I.4, 6 De actionibus, 7; D.20, 1 De pignoribus, 17;“Pignus dicitur a pugno, quoniam res, quae

pignori dantur manu traduntur, et proprie constituitur in re mobili improprie tamen in re immobili [...]
pignus transit ad creditorem, hypotheca vero non transit, sed nuda convencione remanet obligata”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 1
3337 Um terceiro podia adquiri-la por usucapião; mas, claro, onerada com o penhor, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 24.


3338 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.. cons. 186, n. 4.

3339 Ainda em 1845, Manuel António Coelho da Rocha (Instituições […], II, Nota DD ao § 633) se

queixava da complexidade do direito das hipotecas, nomeadamente por causa do caráter obscuro dos
direitos que elas geravam, bem como da incerteza na precedência dos créditos hipotecários no concurso
de credores. “Este artigo é dos mais importantes da jurisprudência, não só pelos grandes interesses, que
continuamente se debatem em taes questões, como pela influencia, que a legislação relativa a estes
objectos exerce sobre o gyro dos capitaes, e por tanto sobre o crédito e economia publica”.

538
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1841. De ambos os contratos, independentemente, portanto, da tradição da


coisa dada em garantia, nascia uma mesma ação para a reclamar a quem quer que a
tivesse – a ação hipotecária3340. Tratava-se de uma ação real, pois se incorporava no
estatuto jurídico da coisa e a perseguia mesmo na mão de terceiro adquirente3341.
Esta ação não precludia o uso da ação pessoal do credor contra o devedor, fundada
na obrigação principal.
§ 1842. Já no direito romano justinianeu, não havia uma diferença prática entre
penhor e hipoteca, pois ambos os contratos permitiam o uso da actio pigneraticia3342
§ 1843. O direito real adquirido pelo credor penhoratício/hipotecário não
prejudicava o domínio direto sobre a coisa, que continuava no devedor (Ord.
fil.4,10,1)3343.
§ 1844. De acordo com o facto que lhe dava origem, o penhor podia ser
convencional, judicial, testamentário ou legal.
§ 1845. Penhor convencional ou voluntário era o constituído por contrato inter-
vivos, acompanhado ou não da tradição da coisa, com já se viu. O penhor judicial
era o que, no âmbito de uma ação, fosse ordenado pelo juiz sobre o património do
devedor a fim de que se procedesse à execução patrimonial ou se garantisse o
pagamento das custas3344. Penhor testamentário era o constituído em testamento
para garantir obrigações nele estabelecidas, como, por exemplo, a de cumprir os
legados3345.
§ 1846. O penhor legal existia quando o direito afetava em especial certos bens
à garantia de um crédito, atribuindo ao credor um direito de prioridade na execução
desses bens ou concedendo-lhe mesmo o poder de os reter enquanto a dívida não
fosse paga. Estes direitos penhoratícios eram concedidos: (i) ao senhorio de prédio
para cobrar as rendas, sobre os frutos do prédio rústico ou os móveis de prédio
urbano3346; (ii) à mulher casada com dote, para a prestação dos bens dotais, sobre o
património do pai dela3347; (iii) ao credor de empréstimo para construção ou
reparação de edifício, sobre o edifício a reparar3348; (iv) à Fazenda Real, nos bens
dos seus devedores3349 ou sobre os bens dos rendeiros de rendas reais e
contratadores fiscais, por dívidas ao fisco, ou ainda sobre os bens dos chefes

3340 “Hypotheca habere ius in re, et potest rem ipsam prosequi, in quemcumque transeat
possessorem”, Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 61, n. 8; v. Ord. fil.4, 3, pr.; 10, 1
3341 Para além da actio pignoratitia, o credor gozava ainda de outras ações que competissem ao

possuidor legítimo de uma coisa, como a actio furtiva, para recuperar uma coisa penhorada que lhe
tivesse sido roubada, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 21.
3342 Cf. I. 4, 6 De actionibus, 7; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 1.

3343 No direito germânico o domínio transmitia-se, pelo que o penhor era semelhante a uma venda

com pacto de retrovendendo.


3344 Ord. fil.3, 86; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 7.

3345 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 8.

3346 Cf. CL. 20.6.1774; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 5;

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 10.


3347 Cf. D.20.2 In quibus causis pignus vel hypotheca tacite contrahitur.

3348 Em idênticas circunstância, mas relativas a arroteamento ou compra de prédio rústico, ou

construção ou reparação de navio para fábrica de navio; v. CL. 20.6.1774; cf. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 10.
3349 Ord. fil.2, 52, 5 a 7.

539
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militares (primipili) para se compensar de uma má administração militar3350); (v) à


Igreja, para se ressarcir da má gestão dos bispos, sobre os bens pessoais destes 3351;
(vi) aos pupilos, para serem indemnizados por má administração da tutela, sobre os
bens dos tutores3352; (vii) aos legatários, sobre os bens da herança, para garantir o
cumprimento dos legados3353; (viii) aos titulares de direitos a alimentos, sobre os
bens de quem os devesse prestar3354; (ix) ao capitão do navio, sobre as coisas
transportadas, para se pagar do frete3355; mas não ao devedor de um negócio
usurário, para obter do credor a restituição dos juros indevidos 3356.
§ 1847. Já na segunda metade do séc. XVIII, Pascoal de Melo destaca uma nova
classificação do penhor, assente na fiabilidade do documento que documentava a
sua convenção3357. Aparentemente o que agora estava principalmente em causa – e
que determinava uma boa parte do regime jurídico do penhor, nomeadamente a
hierarquia no concurso de credores e a sua oponibilidade a terceiros – era a
publicidade e fiabilidade do título de constituição. Esta nova classificação decorria
da CL de 20.6.1774, que revogara a ordenação que regulava o concurso de credores
no caso de penhor (Ord. fil.3,91,pr.).
§ 1848. O penhor3358 podia ser geral, se se nomeavam todos os bens para a
garantia da dívida, atribuindo a esse credor, a mais da garantia geral que consistia na
possibilidade de executar o património do devedor no caso de incumprimento,
ainda o direito de perseguir os bens do devedor mesmo se este os alienasse 3359. Na
universalidade dos bens do devedor cabiam os seus bens móveis, os imóveis bem
como outros seus direitos (nomina creditorum)3360 3361. Ou podia ser especial, se se
nomeava uma certa coisa como particularmente obrigada à satisfação do credor 3362.
§ 1849. Existindo a favor do mesmo credor os dois tipos de penhor, este devia
satisfazer-se prioritariamente pelo penhor especial e, só na insuficiência deste podia
executar o resto do património do devedor3363.
§ 1850. Podiam ser objeto de penhor (geral ou especial) todas as coisas que
estivessem no comércio. Daí que não pudessem ser dadas em penhor ou

3350 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 5.


3351 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 5.
3352 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 5.

3353 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 5.

3354 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 63, n. 4.

3355 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 330, n. 1.

3356 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 271, n. 1.

3357 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 9.

3358 Seguidamente, usa-se a palavra penhor para designar genericamente qualquer das duas
garantias reais.
3359 O penhor geral compreendia todas as coisas existentes no momento da convenção

penhoratícia, bem como as que se adquirissem de novo, existindo no património do devedor no


momento da ação penhoratícia: Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 23, n. 4.
3360 D.42, 1 De re judicata, 15, 2; Ord. fil.3, 86, 7-

3361 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 23, n. 4.

3362 Ord. fil.4, 9, pr.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 4.

3363 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 23, ns. 1 e 2; Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 4.

540
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

penhoradas judicialmente: o homem livre3364; os vasos, livros, ornamentos sagrados


ou eclesiásticos3365; os bens que não pudessem ser alienados, como os de morgado
ou de capelas3366; os bens dotais3367.
§ 1851. Para além disso, não se aceitava ou permitia a penhora das coisas
essenciais à vida quotidiana: vestidos, armas e camas, cavalos de fidalgos, cavaleiros
e desembargadores que não tivessem outros bens 3368; esta impenhorabilidade foi
estendida pela doutrina mais tardia aos bois, arados, armas e vestidos de plebeus, se
estes tivessem outros bens3369.
§ 1852. Podiam convencionar a constituição de penhor todos aqueles que
pudessem alienar os bens penhorados 3370. Isto excluía, em princípio, a entrega em
penhor de bens alheios3371 ou sujeitos a algum tipo de compropriedade ou divisão
do domínio. Assim, eram absolutamente impenhoráveis os bens dotais, ainda que e
mulher consentisse; os bens vinculados a morgado ou a capelas; os bens da coroa;
as mercês reais (como juros, tenças, assentamentos e moradias, Ord. fil.4,55); os
ofícios da justiça ou da fazenda3372; os ordenados dos juízes e seus oficiais3373, ou
porque estes não eram do donatário ou por causa da dignidade pública a que estes
bens estivessem ligados (um pouco como nas coisas sagradas). Relativamente
impossível era o penhor dos bens comuns ou próprias da mulher, que não valia
sem consentimento desta3374; o das coisas dos pupilos, que não valia sem
autorização dos tutores ou do juiz3375; o do domínio enfitêutico útil, que não valia
sem autorização do senhorio (Ord. fil.4,38,pr. e 1)3376.
§ 1853. Também não se podiam penhorar coisas litigiosas3377.
§ 1854. Do penhor nascia um direito real contra quem quer que fosse que
tivesse a coisa penhorada, que se fazia valer pela ação hipotecária (actio
hypothecaria3378). Dirigida ao devedor, pedia, em alternativa, o pagamento ou entrega

3364 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 4; era punido com o exílio

quem o aceitasse como penhor.


3365 V. Ord. fil.2, 24; “Nisi justissima causa urgente”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit.,

s. v. “Pignus”, n. 3.
3366 Sim nas servidões pessoais, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 2.

3367 Ainda que a mulher consentisse, António Cardoso Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n.

2.
3368 V. Ord. fil.3, 86, 23; "Determinou-se que o leito de um cavaleiro fidalgo não era dos bens do

seu uso, e que se fizesse penhora nelle, e isso porque foi achado sem estar nele a cama”, Melchior
Febo, Decisiones […], cit., p. 1. ar. 64.
3369 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3, 14, 11.

3370 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 2.

3371 Porém, a doutrina admitia-a no caso de o dono a autorizar, António da Gama, Decisiones [...],

cit., dec. 321, n. 1 e 2.


3372 Cf. decr. 26.6.1688.

3373 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 4, 13, 11.

3374 Mas valia se o penhor fosse estabelecido por lei, cf. António da Gama, Decisiones [...], cit.,

dec. 319.
3375 V. Ord. fil.1, 88, 25 e 26; Ord. fil.3, 41 e 42; Ord. fil.4, 102 e 103.

3376 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit.. cons. 186, n. 2.

3377 Ord. fil.4, 10, 3, 3; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 199, n. 2.

3378 V. Ord. fil.4, 10, 1. A actio hypothecaria substituíra, no direito romano, as ações Serviana e Quasi

Serviana. A primeira era dada ao senhorio de um prédio rústico, para pedir as coisas que, expressa ou

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da coisa para execução (Ord. fil.4,3,pr.). Em relação a um terceiro, que estivesse na


posse da coisa, a actio hypothecaria supunha a prévia execução do património do
devedor sem resultados suficientes para a satisfação do credor. O credor podia
reclamar apenas a entrega da coisa, mas não o cumprimento da obrigação, porque
este terceiro não era devedor. Por sua vez, o terceiro podia livrar-se pagando, em
vez de devolver a coisa3379. Como a ação hipotecária coexistia com a ação pessoal, o
credor podia preferir esta última, se o penhor não lhe parecesse bastante3380. Pelo
direito português, a actio hypothecaria podia ser intentada num prazo de 10 anos sobre
a data da constituição do penhor3381
§ 1855. No caso de concurso de credores, os credores penhoratícios tinham
preferência sobre os credores simples 3382, pois estes dispunham de um direito real
sobre a coisa (D.50,17,25)3383. A precedência dos credores privilegiados era matéria
complicada e incerta. Os juristas portugueses seiscentistas tinham-na simplificado,
adotando como regra generalíssima a regra da antiguidade, preferindo os penhores
mais antigos aos mais recentes, independentemente de se tratar de penhores gerais
ou especiais3384 ou de se tratar de penhor (com tradição da coisa) ou de hipoteca
(sem tradição)3385. Esta regra aplicava-se mesmo em concorrência com o fisco 3386.
Exceção era o caso de o credor mais antigo ter consentido na sua preterição ou,
devidamente citado para a execução não tivesse comparecido ou não se tivesse
oposto3387; ou o caso de credores pelas dívidas de doença do de cujus ou do seu
funeral3388
§ 1856. Tudo isto foi muito modificado pela carta de lei de 20.6.1774 3389. Esta
lei atribuía ao penhor/hipoteca constituído por escritura pública efeitos mais fortes,
nomeadamente no concurso de credores. De acordo com o novo regime, o
penhor/hipoteca convencionado por escritura pública preferia o penhor
formalizado por um escrito particular3390, apenas cedendo face ao penhor legal 3391.

tacitamente, garantiam a renda; a segunda era dada ao credor para pedir a coisa penhorada (I. 4.6 De
actionibus, 7).
3379 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 99, n. 3 a 5.

3380 Mas então perde a qualidade de credor privilegiado, António Cardoso do Amaral, Liber [...],

cit., s. v. “Pignus”, n. 15.


3381 Cf. António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 21, n. 5.

3382 Entre os credores simples, tinha prioridade o primeiro que tivesse cobrado, desde que não

tivesse usado de violência na cobrança, pois se entendia que nenhum deles podia ser prejudicado pela
negligência dos outros, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Creditor”, n. 19.
3383 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 6.

3384 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 23, ns. 1 e 2.

3385 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 6 e 26 (“A hipoteca geral

anterior prefere à hipoteca especial posterior, pois, quando vários concorrem com títulos diversos, o
primeiro no tempo é o primeiro no direito”); Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 107, n. 1.
3386 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Creditor, n. 17. Porém, a CL de

22.12.1761 reavivou a preferência da Fazenda Real (tit. 3, § 14).


3387 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Creditor”, n. 18.

3388 Manuel Mendes de Castro, Remissiones […], cit., liv. 3, p. 2, cap. 21, n. 178 e p. 1, liv. 3, cap. 21,

n. 78.
3389 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,14.

3390 Entre os do mesmo tipo, vigorava a anterior regra da prioridade temporal, Pascoal de Melo,

Institutiones iuris civilis [...], cit., 4,13,12.

542
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Quanto aos credores não penhoratícios, valia a regra da qualidade do título de


dívida (escritura pública, escrito de fidalgo ou de comerciante, sendo irrelevante
haver ou não escrito de menor qualidade, por estes não oferecerem qualquer
fiabilidade) e, depois, a precedência temporal da dívida. Mesmo assim, a matéria
seguiu sendo conturbada até ao Código civil 3392.
§ 1857. O penhor visava assegurar a satisfação do credor pela venda da coisa
penhorada. O direito romano não estabelecia as formalidades da venda, embora se
determinasse que a venda só podia ter lugar, salvo convenção diversa, estando
devedor em mora e sendo notificado para pagar. Se fosse antecipadamente
convencionada a venda, não havendo pagamento até certa data (ou findo certo
prazo) (addictio in diem), o vendedor devia, mesmo assim, notificar o devedor antes
de se proceder à venda3393. Se se tivesse convencionado que as coisas penhoradas
não podiam ser vendidas, este pacto tinha que ser reduzido, de modo a não frustrar
a garantia do credor. Então, autorizava-se a venda, mas só após três notificações
mediadas por um intervalo que, na prática portuguesa, era de um dia 3394 decorrido
certo prazo sem pagamento (substituível por uma citação perante o juiz e um
mandato deste para que pagasse)3395. A venda, que devia ser feita em hasta pública,
para garantir um preço justo3396, tinha que ser notificada aos credores penhoratícios
(eventualmente por pregão), para que comparecessem, declarando e confrontando
os seus créditos e direitos sobre os bens vendidos 3397. A sua não comparência
significava desistência dos seus direitos privilegiados. A venda devia começar pelos
móveis, só depois se vendendo os imóveis e restantes ativos (nomina debitorum); não
se devia vender uma coisa valiosa para cobrir um débito pequeno, a não ser que
não se encontrasse outra facilmente vendável3398.
§ 1858. Eram permitidos pactos (ou condições) no penhor, desde que não
alterassem a natureza deste3399. Destes pactos, alguns eram comuns. Era o caso do
pacto de anticrese, convencionando que o credor pudesse usar da coisa ou colher os
seus frutos, desde que a estimação deste uso não excedesse os juros legítimos e
com a condição de entregar ao devedor ou descontar na dívida os frutos excedentes
(Ord. fil.4,67,4). O pacto de anticrese encobria um empréstimo com juros (para além
da garantia real do penhor) e facilmente podia degenerar num negócio usurário.
Outro pacto era o da addictio in diem, convencionando a venda da coisa se não se

3391 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,4,13. Entre os penhores legais, preferia o mais

antigo, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,13.


3392 Cf. Manuel António Coelho da Rocha, Instituições […], cit., II, Notas DD e EE.

3393 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 8.

3394 “Non una vice, videlicet ‘Solve, solve, iterum solve’” [a não apenas uma vez, como “Paga, paga,

e, de novo, paga”), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 8.


3395 No direito romano, três notificações, espaçadas de dois anos (C.8,27 De distractione pignorum, 3,2;

I. 2,8 Quibus alienare licet, 1); receção do direito português, em Ord. fil.3,78,7).
3396 Ord. fil. 4,57; António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 199; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis [...], cit., 3,14,18.


3397 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 12.

3398 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, ns. 13-14; de outro modo, a

venda era nula António da Gama, Decisiones [...], cit., dec. 199, n.1.
3399 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,19. Um exemplo de pacto impossível era o

de que a coisa não fosse vendida a favor do credor, pelo que, sendo aposto, tinha que ser reduzido.

543
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pagasse a dívida garantida dentro de certo prazo (Ord. fil.4,56)3400. Mas não se podia
apor o chamado pactum commisorium (pacto comissório), convencionando a pura
entrega da coisa ao credor, se a dívida não fosse paga, porque isto podia prejudicar
uma avaliação justa da coisa e configuraria, normalmente, um negócio usurário,
pois, por regra, a coisa valia mais do que o montante garantido 3401.
§ 1859. Enquanto se mantivesse o penhor, o credor penhoratício respondia
danos ou perda por culpa e dolo, mas não pelo risco 3402.
§ 1860. O penhor terminava3403 com o pagamento da dívida3404, com a
desistência do credor (por remissão ou por resgate pelo devedor) 3405, com o fim do
prazo por que fora constituído, com a perda da coisa imputável ao credor, com a
venda da coisa pelo credor3406 ou pelo devedor com o conhecimento do credor3407.
Também se extinguia por caducidade3408.
§ 1861. O penhor era também, como se disse, uma das fases da execução
judicial – penhora (v. cap. 7.1.11).
6.10 Os quase contratos. Introdução.
§ 1862. Depois de tratar das obrigações contratuais (v. cap. 6.8), as Instituições de
Justiniano (I.3,27) agrupam um conjunto de obrigações que nem se fundam num
contrato nem num delito3409, mas antes de circunstâncias semelhantes a uma ou
outra destas categorias de contrato. Na obra de Gaius esta ideia de quase contrato
não aparecia, arrumando-se as obrigações que não provinham nem de contrato
nem de delito sob a rubrica nas “obrigações que provém de várias tipos de causas”
(obligationes ex variis causarum figuris 3410), dizendo-se que provinham do própria direito
que as criava em função de certas circunstâncias do caso. Porém, um texto de
Ulpianus já explica a existência destas obrigações por convenções implícitas,

3400 Podia convencionar-se a venda por justo preço a arbitrar pelo juiz ou homem bom, decorrido

certo tempo, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 7.


3401 V. Ord. fil.4,56, in princ.; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 7 (é

torpe e injusto); cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,14,19.
3402 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 16. Por exemplo, os danos

causados pela tinha (salitre) nas paredes da casa ou a magreza das ovelhas causada pela fome imputam-se
ao credor a quem as coisas tivessem sido entregues, “quia sua culpa pereunt”; responde tanto pelo dano
como pelo interesse, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 17.
3403 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis [...], cit., 3,4,20.

3404 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 23.

3405 Mas a entrega do penhor ao devedor, antes do pagamento da dívida, não induzia renúncia,

antes apenas uma entrega precária, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Creditor” 22.
3406 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 1, n. 5

3407 Equivalia à remissão, ficando o devedor com uma exceção (interventionis) contra a ação

penhoratícia do credor António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, ns. 9 e 10.
3408 O direito do credor sem a posse (hypothecaria) prescrevia em trinta anos contra estranho e

quarenta contra o devedor, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Pignus”, n. 25.
3409 I. 3, 27 De obligationibus quasi ex contractu: “Post genera contractuum enumerata dispiciamus

etiam de his obligationibus, quae non proprie quidem ex contractu nasci intelleguntur, sed tamen, quia
non ex maleficio substantiam capiunt, quasi ex contractu nasci videntur”. As obrigações ex delicto e ex
quasi delicto são tratadas em I.4 e 5.
3410 D.44.7.1. Gaius libro secundo aureorum, pr. Obligationes aut ex contractu nascuntur aut ex

maleficio aut proprio quodam iure ex variis causarum figuris.

544
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

embebidas em comportamentos dos sujeitos ou em situações objetivas em que


estes se colocavam, convenções que a equidade e a confiança exigiam que se
cumprissem3411.
§ 1863. Os racionalistas, com a sua visão consensualista do direito 3412,
valorizaram muito esta ideia de que, onde os direitos não se pudessem explicar
pelas vontades explícitas – contratuais -, se explicavam por vontades implícitas –
quase contratuais -, diferindo apenas enquanto uns destacavam mais o consenso
como génese da obrigação e outros mais a boa fé ou equidade. Pascoal de Melo
enuncia umas regras que conteriam os tais princípios da boa fé que explicavam o
surgir destas obrigações criadas diretamente pelo direito: (i) ninguém deveria
locupletar-se à custa alheia, com prejuízo de outrem; (ii) o exercício do dever não
deveria prejudicar ninguém; (iii) a ninguém deveria aproveitar a má intenção (dolo);
(iv) quem tivesse querido os antecedentes deveria querer as consequências; (v) devia
presumir-se que cada um aprovava o que lhe fosse útil3413. Estes princípios – cuja
relacionação com uma vontade presumida é, por vezes, bastante forçada – eram o
cimento que aproximaria os vários casos em que a tradição jurídica romanística
criava obrigações independentemente de uma convenção explícita ou de um delito
(malefício, dano intencionalmente causado); como era o caso da Ord. fil. 3,6,4 – que
falava expressamente de quase contrato para descrever umas quantas situações de
obrigações não convencionais, já reguladas da mesma maneira no direito romano.
Algumas dessas situações eram semelhantes ao mandato, obrigando uma pessoa
pelos atos de outra (casos das obrigações do menor, do pupilo ou do dono do
negócio no que respeita à indemnização do tutor, do curador ou do gestor pelos
atos praticados em seu favor). Outras dessas situações relacionavam-se com os
deveres de comproprietários ou vizinhos de dividir (actio communi dividundo, actio
familiae erciscundae) ou de fixar as extremas de prédios (actio finium regundorum), ou do
herdeiro quanto ao pagamento aos credores do de cujus e quanto à entrega dos
legados (actio legati). Outras, com situações variadas – e aparentemente pouco
ligadas à vontade presumida – em que sobre alguém impendia um dever de
prestação a outrem, como a de devolver a coisa entregue sem ser devida (condictio
indebiti) ou sem uma causa atendível (condictio ob causam dati causa non secuta, ob turpem
causam), como a de indemnizar aquele a quem se entregara uma coisa que não
pertencia a quem a entregou (evictio) o prestador, ou como a de restituir as coisas
que tivessem sido entregues a outrem a título precário (actio de receptis). No título
seguinte das Institutiones3414, trata-se daquelas obrigações que o direito imputa a
alguém em virtude de um facto de outrem. Pela contiguidade nas fontes e também
porque a vontade do obrigado não esteve na origem da obrigação, a doutrina

3411 “2.14.1. Ulpianus libro quarto ad edictum. pr. Huius edicti aequitas naturalis est. Quid enim tam

congruum fidei humanae, quam ea quae inter eos placuerunt servare? […] 3. Conventionis verbum
generale est ad omnia pertinens, de quibus negotii contrahendi transigendique causa consentiunt qui
inter se agunt: nam sicuti convenire dicuntur qui ex diversis locis in unum locum colliguntur et veniunt,
ita et qui ex diversis animi motibus in unum consentiunt, id est in unam sententiam decurrunt. Adeo
autem conventionis nomen generale est, ut eleganter dicat Pedius nullum esse contractum, nullam
obligationem, quae non habeat in se conventionem, sive re sive verbis fiat: nam et stipulatio, quae verbis
fit, nisi habeat consensum, nulla est.”
3412 Cf. Helmut Coing, Europäisches […], v. 1, 394/5.

3413 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,1.

3414 I. 3,28 Per quas personas nobis obligatio adquiritur.

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aproxima-as das obrigações quase contratuais.


§ 1864. Como esta categoria era residual, nem sempre apareciam aqui listadas as
mesmas situações. Havia, no entanto, um certo consenso quanto à inclusão de
certas obrigações.
6.10.1 Gestão de negócios.
§ 1865. A gestão de negócios3415 contemplava as obrigações recíprocas daquele
que geria um negócio3416 de outrem - sobretudo de um ausente - sem que este
soubesse e do dono (ou beneficiário) desse negócio. A gestão de negócios de
outrem era permitida, desde que o dono do negócio não se opusesse. Ao passo que
o gestor estava obrigado a prestar contas, o dono do negócio tinha a obrigação de
indemnizar o gestor pelas despesas necessária feitas no âmbito da gestão do
negócio ou na utilidade dele. Ambos dispunham da actio de negotiis gestis, a directa,
para exigir a prestação de contas; a contraria, para pedir a indeminização pelas
despesas de gestão. Os deveres de boa gestão e as responsabilidades por ela que
recaíam sobre o gestor eram as mesmas do mandatário a título gratuito 3417.
§ 1866. Idênticos direitos e deveres tinham aqueles que administravam em
proveito de outrem um negócio marítimo ou terrestre. Para além disso, o dono do
negócio (armador) podia ser acionado pelas obrigações contraídas pelo
administrador do negócio (capitão ou mestre da nau) no âmbito da sua
administração (actio exercitoria). A actio institutoria era paralela, mas aplicável no caso
de transportes por terra3418.
6.10.2 A administração da tutela e curatela.
§ 1867. A ação de tutela e de curadoria nasciam de um quase contrato porque o
tutor ou curador administravam, nos mesmos termos que um mandatário, o
negócio do menor ou pupilo. Por isso, deviam prestar contas e tinham o direito de
ser indemnizados pelas despesas necessárias e úteis feitas com a gestão3419.
§ 1868. Já as ações de pecúlio eram, do ponto de vista estrutural, uma coisa
diferente: ações em que uma pessoa respondia por outra 3420. Davam-se contra o
pai, pelas dívidas do filho que gerisse um pecúlio, quando não fosse possível
satisfazê-las pelas forças do pecúlio3421 e quando o pai tivesse autorizado o filho a
contratar em seu nome ou por seu mandato. Originariamente, os credores
dispunham das ações de in rem verso e quod jussu. Mais tarde, da ação de mandato3422.
Pascoal de Melo informa que esta responsabilidade do pai pela gestão dos pecúlios
dos filhos tinha caído em desuso, pois se entendia que o filho que se ocupasse em

3415 D.3.5 De negotiis gestis; C.2.18. De negotiis gestis; Ord. fil.3,6,4; I. 3, 27 De obligat. ex quasi contractus, 1;

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,2,2; H. Coing, Europäisches […], v. 1, 497 ss.
3416 Negócio é um trabalho, o contrário de ócio (negatur otium, sine otio), António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Negotium”, n. 2.


3417 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Negotium”, n. 3.

3418 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,4.

3419 I. 3, 27 De obligationibus ex quasi contractu, 2; Ord. fil.3,6,4,2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis, cit., 4,4,3.


3420 Cf. I.3,28 Per quas personas nobis obligatio adquiritur.

3421 Ord. fil.4,50,3.

3422 D.15,3; v. Helmut Coing, Europäisches […], 1, 498.

546
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

qualquer comércio tinha sido emancipado. A menos que o pai, expressamente, se


tivesse responsabilizado pelo filho3423.
6.10.3 As obrigações estabelecidas pela Lex Rhodia de jactu3424.
§ 1869. A lex Rhodia de jactu (lei de Rodes sobre o lançamento ao mar de
mercadorias) mandava ressarcir aqueles cujas mercadorias tivessem tido que ser
lançadas ao mar para salvar o barco, à custa dos proprietários dos bens que
tivessem sido salvos por isso. A ação dava-se contra o patrão da nau, tendo este
regresso contra os proprietários dos bens salvos. Mais tarde, estende-se a situações
de desastre (v.g. incêndio) em que se tivessem causado danos a terceiros para salvar
as coisas em perigo3425.
6.10.4 As obrigações derivadas da aceitação da herança (adhitio
haereditatis)3426.
§ 1870. A aceitação da herança pelo herdeiro gerava, objetivamente, obrigações,
como as de pagar aos credores do de cuius e de entregar os legados ao legatário3427.
6.10.5 A divisão de coisa comum.
§ 1871. Como ninguém era obrigado a permanecer numa situação de
compropriedade, certas situações deste tipo geravam obrigações de dividir ou de
demarcar, exigíveis por ações. Era o caso da ação de divisão de coisa comum (I.3.27
De obligationibus quasi ex contractu, 3), de partilha de herança (v. cap. 5.2.11), de
fixação de extremas (actio finium regundorum, Ord. fil.5,67) 3428.
6.10.6 A restituição de coisas recebidas.
§ 1872. Constituía uma obrigação independente de consenso a restituição
daquilo que se tivesse recebido em certas situações objetivas, como a de se dar
alojamento, estabulação, transporte. Esta obrigação recaía sobre os estalajadeiros,
estabuladores, lojistas (caupones), armadores (nautae) e outros transportadores, que –
segundo o direito pátrio - respondiam por culpa ou dolo (Ord. fil.5,64) 3429.
6.10.7 O pagamento indevido.
§ 1873. Idêntica obrigação de restituir recaía sobre o que tivesse recebido de
alguém algo que não fosse devido. A isto correspondia, para quem tivesse pago algo
de indevido, sem saber que o era, uma ação para repetir o indevido (condictio
indebiti)3430. O direito justinianeu excetuava pagamentos indevidos feitos à Igreja;

3423 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,6.


3424 Ord. fil.2,32; D.14.2.2.pr.; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,5.
3425 Cf. relacionado, Ord. fil.2,32; D.14.2 De lege Rhodia de iactu, 2.pr.; cf. António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “ Naufragium”, ns. 3-4 (a ação dava-se contra o mestre da nau, tendo este
regresso contra os proprietários dos bens transportados). Cf. Helmut Coing, Europäisches […], 1, 497.
3426 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,7.

3427 I. 3,27 De oblig ex quasi contractu; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,7.

3428 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,8.

3429 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,9.

3430 D.12,6 De condictione indebiti, 1: “1. Et quidem si quis indebitum ignorans solvit, per hanc

actionem condicere potest: sed si sciens se non debere solvit, cessat repetitivo”; I. 3, 27 De oblig. quae ex
quasi contract. 6); Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,10.

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mas o última doutrina moderna não sufragava este favor 3431.


§ 1874. Pressupõe-se um erro sobre a dívida, que se cria existente 3432. Mas este
erro tinha que ser sobre os factos e não sobre o direito 3433, pois, de acordo com os
princípios gerais sobre o erro, o erro sobre o direito não era relevante 3434. Na idade
média, apenas era tido como irrelevante o erro sobre o direito que consistisse em se
julgar ser civil (e, logo, exigível) uma obrigação de facto natural. No entanto, esta
restrição da irrelevância do erro sobre o direito vai decaindo, até desaparecer no
período racionalista. No entanto, Pascoal de Melo, argumentando com o facto de
que, depois da receção do direito comum, o direito se tinha tornado hermético,
porque escrito em língua estrangeira e pouco ordenado, defende a relevância
irrestrita do erro sobre o direito.
6.10.8 A repetição de entregas sem causa legítima.
§ 1875. Também estava obrigado a restituir aquele que tivesse recebido algo
sem que houvesse uma causa, ou em que houvesse causa, mas esta se tivesse
frustrado3435 ou fosse torpe3436 (sine causa, ob causam dati causa non secuta, ob turpem
causam (de quem recebeu, não de quem deu)3437.
6.10.9 A evicção.
§ 1876. O entrega do preço de coisa vendida ou dada em troca por não dono
(evicção) também era devida3438, pois a boa fé não permitiria o locupletamento à
custa alheia (Ord. fil.3,45, D.21,2 De evictionibus). O dever de evicção só existia nos
contratos onerosos, Ord. fil.3,45,ult.3439).
6.11 Obrigações delituais (ex delictu).
§ 1877. Referidas as obrigações que tinham por fonte um contrato (v. cap. 6.8)
e uma situação considerada como quase contrato (v. cap. 6.10), passamos àquelas

3431 I,3,27,7: "7. Ex quibusdam tamen causis repeti non potest, quod per errorem non debitum

solutum sit […] tantummodo in his legatis et fideicommissis quae sacrosanctis ecclesiis, ceterisque
venerabilibus locis quae religionis vel pietatis intuitu honorificantur, derelicta sunt, quae si indebita
solvantur non repetuntur”.
3432 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,10; Helmut Coing, Europäisches […], v. 1, 494.

3433 Por exemplo, julgar-se válido um contrato, que todavia era nulo.

3434 V. D.22,6 De juris et facti ignorantia, 2. V. aplicação à condictio indebiti em C.1,18,10: “Cum quis ius

ignorans indebitam pecuniam persolverit, cessat repetitio. Per ignorantiam enim facti tantum
repetitionem indebiti soluti competere tibi notum est.”.
3435 A obrigação de restituir uma coisa, recebida para certo fim que não se verificou é obrigado a

devolvê-la ou pela condictio, ou pela ação do contrato [v.g. actio commodati], ou pela ação praescriptis verbis,
ou por uma ação in factum concepta.
3436 Discutia-se sobre se o cliente podia pedir à prostituta o que lhe tivesse pago. Ulpiano, no

Digesto (D. 12,5 De condictione ob turpem vel iniustam causam,4,3) entendia que não, pois ela, embora se
dedicasse a atividades torpes, não as contratava torpemente justamente porque era essa a sua profissão.
No direito romano, não se podia repetir o que se desse à concubina ou à meretriz registada perante os
edis, pois essas relações não eram ilícitas. Mas o parente mais próximo prejudicado podia repetir, pois o
concubinato e a prostituição estavam proibidas aos cristãos, e o terceiro não tinha que ser castigado pelo
delito de quem tinha pago à concubina ou prostituta.
3437 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,11;; H. Coing, Europäisches […], vol. 1, 495.

3438 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4,12.

3439 O vendedor podia chamar a juízo (“louvar”) aquele de quem tivesse adquirido a coisa, para que

possa auxiliar o possuidor (Ord. fil.3,45,ult.).

548
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

que derivavam de um delito.


§ 1878. O dano causado por um facto contrário ao direito (delictum, iniuria,
maleficium) era uma fonte de obrigações. No direito romano, tal como nos é
transmitido num texto das Institutiones de Gaius3440, havia três fontes de obligatio ex
delicto – o furto e o roubo, ofendendo o direito de propriedade; a injúria [quod iure
non fit] ou prática de algo contra direito que ofendesse a integridade física ou moral
de alguém; e a produção de um elenco de danos ilícitos (damnum iniuria datum)
previstos numa lei republicana do séc. III d.C. - Lex Aquilia de damnis,
possivelmente um plebiscito de 286 a.C. 3441 -, sucessivamente alargada pelo direito
pretório. Nestes casos, o que causava o dano (nocens) era obrigado a pagar uma pena
(poena) ao lesado. No período do Império, o direito pretório começou a conceder
ações pretórias in factum conceptae para obrigar alguém a indemnizar outrem no caso
de praticar outros factos danosos e ilícitos. É a estes novos factos geradores de
responsabilidade que a doutrina jurídica chama quase delitos3442.
§ 1879. Também a razão de ser e natureza da pena variaram, do direito mais
antigo ao direito justinianeu. Na origem, a pena era uma soma pactada entre o autor
do dano e o lesado para que este último desistisse da vingança (vindicta) Sendo
fixada pelo lesado, era normalmente mais alta do que o valor do dano, pois
comportava também um resto da punição privada, ou vingança. Frequentemente,
fixava-se, não no simplex, mas no duplum, ou quadruplum3443. Esta natureza pessoal da
reparação fazia com que: (a) ela fosse intransmissível aos herdeiros do lesante; (b)
fossem cumuláveis várias penas quando os lesantes fossem vários; (c) ela pudesse
ser substituída por uma entrega da pessoa do lesante nas mãos do lesado (se in
nexum dare). Com o aparecimento de juízos públicos para punir ações que
causassem um prejuízo à comunidade, alguns dos atos delituais começaram a ser
puníveis sob dois aspetos: enquanto ofensas a particulares, davam origem a ações
destinadas a compensar os danos sofridos pelos lesados (actio iniuriarum, actio damni
iniuria dati, actio legis Aquiliae, actio reipersecutoria); enquanto lesivas da comunidade, a
outras (actiones poenales) destinadas a punir o ato com uma pena, a favor do lesado ou
do titular da jurisdição (da respublica).
§ 1880. A imputação do dano ao lesante era, originalmente, uma imputação
objetiva que se satisfazia com o facto de que o dano se produzira por facto do
autor, não exigindo a possibilidade de imputação subjetiva desse facto ao autor, em
termos de uma censura pelo menos por falta de cuidado. A lei Aquilia apenas exigia
uma culpa ligeira3444. Havia casos de responsabilidade sem culpa, sempre que
alguém não agisse como objetivamente era esperado que agisse, respondendo então
pelos danos fortuitos; era o caso do guarda (custos), do estalajadeiro, do estabulador

3440 “Transeamus nunc ad obligationes, quae ex delicto nascuntur, veluti si quis furtum fecerit,

bona rapuerit, damnum dederit, iniuriam commiserit: quarum omnium rerum uno genere consistit
obligatio, dum ex contractu obligationes intres genera diducantur, sicut supra exposuimus” (Gaii
Institiones, 3, 182; idem, D.44,7,4).
3441 Cf. D.9,2,1.

3442 Originariamente, contemplava-se apenas a morte de escravo ou animal ou o dano de coisa

animada ou inanimada (D.9.2.2, Gaius libro septimo ad edictum provinciale, pr. Lege Aquilia capite primo
cavetur: ‘Ut qui servum servamve alienum alienamve quadrupedem vel pecudem iniuria occiderit, quanti
id in eo anno plurimi fuit, tantum aes dare domino damnas esto’").
3443 I.4,3 De lege Aquilia, 9.

3444 D. 9, 2, 44 pr. Ulp. 42 ad Sab.: “in lege Aquilia et levissima culpa venit”.

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(caupo) ou do mestre do barco (nauta) que respondiam pelos danos fortuitos


sofridos pelas coisas guardadas, abrigadas ou transportadas; o do dono de animais
que provocassem danos (actio de pauperie): o do dono de coisas penduradas ou
encostadas, suscetíveis de cair, que devia indemnizar pelos estragos que estas
causassem; o dos que lançassem coisas líquidas ou sólidas e, com isso, lesassem
alguém (actiones de effusis et dejectis, positis et suspensis).
§ 1881. A construção de um princípio geral segundo o qual o que causa um
dano estaria obrigado a indemnizar o lesado, desde que esse dano lhe fosse
imputável em termos de intenção (dolo) ou de falta do cuidado exigível (culpa) não
aparecia, nem sequer no direito justinianeu 3445, embora este tivesse generalizado
ainda mais a ideia de responsabilidade por danos, sempre repartida, porém, em
categorias distintas, conforme o antigo sistema de ações.
§ 1882. A evolução ulterior, no direito comum medieval e moderno seguirá
uma linha de evolução que tende a: (a) separar as ações que derivam dos delitos
públicos das que emergem de delitos privados, orientando estas últimas para a
indemnização do dano3446; (b) flexibilizar a determinação do quantum da pena, em
função do dano sofrido e das circunstâncias do caso, na esteira de uma ideia que já
estava presente no direito romano 3447 e que era dominante no direito canónico 3448;
(c) vincular o dano à intenção e à culpa considerando como casos apenas
semelhantes a delitos (quase delitos, quod maleficium est proximum) aqueles casos de
ações que, de acordo com uma determinação da lei, geravam deveres de indemnizar
sem culpa; (d) simplificar as particularidades das diversas situações, subsumindo-as
a um princípio geral de que quem causasse danos ilícitos, com intenção ou
negligência censurável, devia indemnizar num montante equivalente aos prejuízos.
No plano processual, esta simplificação correspondia ao abandono da
multiplicidade de ações para obter a indemnização e ao uso de uma só ação em que,
com base nos factos, se pedia uma indemnização correspondente aos danos
efetivos (id quod interest), aqui compreendendo quer os prejuízos causados (danos
emergentes), quer aquilo que, por causa do delito, se tivesse deixado de ganhar
(lucros cessantes). Mas o resultado final desta evolução não se consumará antes da
última fase do direito comum.
§ 1883. Na doutrina portuguesa dos sécs. XVI e XVII nota-se esta linha de
evolução, ainda em curso.
§ 1884. A produção de prejuízos no património de outrem era descrito como
um ato ilícito3449 ou delito - palavra que também aparecia como sinónimo de crime
(malefício). E, de facto, os seus aspetos penais – relacionados com o castigo ou

3445 Síntese, com o trânsito para o direito comum e mais moderno, H. Coing, Europäisches […], §

100, p. 503-518
3446 Corolários desta evolução era a transmissibilidade do dever de indemnizar aos herdeiros e a

impossibilidade de acumular penas de vários lesantes relativas ao mesmo dano.


3447 D.48,19,13: D.48.19.13: “Ulpianus libro primo de appellationibus, Hodie licet ei, qui extra ordinem

de crimine cognoscit, quam vult sententiam ferre, vel graviorem vel leviorem, ita tamen ut in utroque
moderationem non excedat”.
3448 Decretum, II, causa XII, qu. 2, c. 11, § 1.

3449 “ Qui facit quod lex permittit nulli facit damnum nec iniuriam ”, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., s. v. “Damnum” 8.

550
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

vingança pela perpretação de um ato contra o direito - e civis – relacionados com a


prática de atos ilícitos que causassem prejuízos a um particular -3450 apareciam
tratados conjuntamente, o que contribuía para uma grande falta de nitidez quanto a
questões centrais.
§ 1885. O dano era definido como uma perda ou diminuição do património 3451,
pela qual era responsabilizado aquele que a tinha causado. Já se formulava o
princípio geral de que estava obrigado a satisfazer o dano aquele por causa de quem
o dano se tinha produzido3452. Esta formulação estendia a responsabilidade aos
casos de dolo, de culpa (compreendendo a imperícia), mas também de um tipo de
relação objetiva de causalidade (aquele que deu lugar ao dano, “ope, est datum
damnum”)3453. A responsabilidade era objetiva, sem necessidade de dolo ou culpa, se
o dano tinha sido causado por uma atividade ilícita (“aut dabat operam rei illicitae”).
E, de qualquer modo, sempre se teria que atender ao princípio geral do não
enriquecimento à custa alheia3454, o qual, neste domínio, podia gerar ambiguidades
(v.g. que decidir se, sem dolo ou culpa, se tivessem causado prejuízos a outrem,
lucrando com isso ?).
§ 1886. Esta regra geral adequava-se ao que a lei e a doutrina estipulavam para
os casos concretos. Assim, entendia-se que não causava dano aquele que usasse
licitamente as suas coisas3455. Este princípio era muito relevante na determinação
dos poderes do proprietário fundiário; em princípio, podia fazer no seu prédio o
que quisesse, mesmo com prejuízo dos vizinhos, salvo se tivesse procedido com
intenção de prejudicar ou se tivesse violado as prescrições da lei relativa aos deveres
de vizinhança. Podia construir livremente (desde que não tirasse a luz ao vizinho,
mas podia tirar as vistas, segundo alguns3456), podia abrir poço (desde que o fizesse
a mais de cinco pés da parede do vizinho), mesmo que o poço prejudicasse poços
ou fontes particulares (mas não públicas), podia cortar árvores do vizinho que se
projetassem sobre o seu prédio, já que as suas extremas iam até ao céu 3457. Também
estavam excluídas de indemnização as situações de caso fortuito ou de força maior
(v.g. danos causados por um barco arrastado por corrente fortíssima 3458). E, mais

3450 A distinção entre delitos penais e delitos civis não correspondia à que era feita entre delitos

penais públicos e delitos penais privados, pois esta relacionava-se com a capacidade para acusar
judicialmente: no primeiro caso, a acusação competia a qualquer pessoa do povo; no segundo, só à parte
lesada; no direito canónico todos os delitos penais eram públicos, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Delictum” 1.
3451 “Damnum, sive damnatio a demptio sive diminutio patrimonii”, António Cardoso do Amaral,

Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 1


3452 “Damnum non tantum dicitur datum ab illo qui da damnum intullit, set etiam ab illo qui

causam damni dedit, si non adhibuit diligentiam, quam debuit, aut dabat operam rei illicitae”, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 3; Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...],
cit., 7,2; 7,9.
3453 “Damnum tenetur satisfacere ille, cuius culpa, imperitia, aut ope, datum est damnum, pro illo

quod fecit, aut ex illo quod fuit secutum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”,
n. 4.
3454 Cf. Locupletari nemo debet cum jactura aliena, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Damnum”, n. 12.
3455 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 8.

3456 Cf Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 35, ns. 5 a 7.

3457 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones [...], cit., dec. 35, per totam.

3458 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 296.

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ainda, nos casos em que os danos tivessem sido causados pelo próprio prejudicado
ou por sua culpa (negligência)3459.
§ 1887. Pelo contrário, os danos culposos ou dolosos geravam deveres de
indemnização: v.g. ferimentos em animal doméstico ou bravio (que costumasse
voltar), ou a deterioração de coisa de outrem3460.
§ 1888. O tratamento indistinto dos aspetos penais e indemnizatórios
provocava incertezas quanto à relevância da intenção má (dolo), exigível para os
aspetos penais (v. cap. 8.2.6.1), mas eventualmente dispensável para os aspetos civis
de indemnizar pelo prejuízo. Em geral, a doutrina dizia, como se disse, que o dano
não era apenas causado por uma prática intencional, mas ainda pela culpa ou
imperícia que causou ou deu ocasião a um dano. Alguma regras particulares,
embora formuladas na perspetiva da punição penal, cabiam neste princípio geral: a
pessoa irada ou embriagada era responsável, embora devesse ser punida mais
levemente se a ira lhe fazia perder ou diminuir a razão 3461; o furioso e a criança na
fase da infância eram irresponsáveis3462; o bêbedo era punido quando a bebedeira
lhe tirasse o entendimento, embora a pena devesse ser reduzida, até ao ponto de
não dever ser punido se estivesse bêbado sem culpa 3463.
§ 1889. Porém, havia regras relativas aos delitos penais que não se aplicavam
aos delitos civis: por exemplo, a de que a simples intenção, desde que exteriorizada,
era punível, ainda que não se seguisse a concretização 3464. Ou, pelo contrário, havia
regras que só se aplicavam à indemnização civil: por exemplo, a de que se podia
punir sem culpa o proprietário de casa superior pelos danos causados na
inferior3465. Esta relativa indistinção entre responsabilização penal e civil também se
projetava sobre o âmbito da responsabilidade civil. As Ordenações previam
expressamente que se aceitasse querela e se abrisse devassa se alguém cortasse
árvores (Ord. fil.1,65,32) ou danificasse horta ou pomar (Ord. fil.5,117)3466. Se se
punha a questão se saber se estas disposições eram extensíveis à destruição de uma
semeadura, a resposta da doutrina era negativa, pois a lei penal não se podia
estender por analogia3467. Mas, porventura, isto só dizia respeito à punição pública,
mas não à indemnização de danos.

3459 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 5 (o que alguém sofre por

própria culpa não deve ser imputado a outros, embora não se presuma que alguém danifique as suas
próprias coisas).
3460 Por exemplo, a mistura de algo no óleo ou azeite, causando a sua deterioração, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 6.


3461 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 45 e 47.

3462 “Cum non habeant intellectum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”,

n. 46.
3463 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 47.

3464 A intenção no delito penal era punida ainda que não se seguisse a consequência; a menos que a

intenção não tivesse nenhuma manifestação externa (proposita in mente retenta; conatus deductus in actum
exteriorem proximum e immediatum), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 55.
3465 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 39.

3466 Aqui havia também uma componente pública, que justificava a criminalização do

comportamento.
3467 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 2, Aresto 60. Sobre as regras de interpretação e

integração na lei penal, cap. 8.2.1.2.

552
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1890. A combinação de aspetos penais ou civis oferecia ainda uma dupla


justificação para o regime da distribuição da responsabilidade entre pessoas que
tivessem comparticipado, uns direta outros indiretamente, na produção do dano.
§ 1891. A obrigação de prestar podia recair sobre outro que não o agente
lesante, como se alguém tivesse dado ordem a um criado seu para causar danos
num prédio alheio3468. Isto era compatível com a responsabilização penal do
mandante, mas também com a responsabilização civil de alguém pela ordem ou
mandato dada (actio quod jussu)3469. Ao contrário do que acontecia na pena criminal,
na pena civil o seu pagamento por um dos lesantes liberava todos os outros, para
evitar o locupletamento sem causa do lesado3470.
§ 1892. Já a transmissibilidade aos herdeiros das responsabilidade pela
indemnização dos danos dependia da ênfase que se pusesse no caráter penal ou no
caráter indemnizatório da prestação do lesante. Se se destacasse a natureza penal,
triunfava a intransmissibilidade, pois, morto o delinquente, por regra a sua pena
criminal não se transmitia aos herdeiros3471. Se se tivesse em vista a compensação
dos prejuízos, a indemnização pecuniária compensatória devia passar para os
herdeiros3472.
§ 1893. A doutrina portuguesa admitia, ao lado dos delitos, os quase delitos, a
que as Ordenações se referiam (como quase malefícios, Ord. fil.4,76,5). Pascoal de
Melo3473 define os quase delitos como aqueles factos danosos cometidos ou só por
culpa, ou por um acaso combinado com culpa 3474. A categoria surgiu a partir da
distinção que já era feita nas Institutiones entre obrigações provindas de delito (I.4,1)
e obrigações provindas de quase delito (I.4,5), agora reinterpretada de forma a
responder à necessidade – que emergia num contexto teórico voluntarista, de
relacionação entre responsabilidade e vontade - de distinguir factos intencionais de
factos não intencionais no âmbito da teoria do delito. Serve, a partir daí, para
agrupar uma série de factos não intencionalmente danosos que geravam
responsabilidade pelo dano. Pascoal de Melo enumera situações que correspondiam
às previstas nas Institutiones, tais como: a decisão judicial dada por ignorância (Ord.
fil.1,5,4; 1,65,9; 1,60); o despejo ou arremeço de coisas com dano alheio; o

3468 O causador direto do dano não ficava isento de responsabilidade se, antes de praticar os atos,

estivesse consciente do seu caráter ilícito e danoso, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Damnum”, n. 9.
3469 Se a ordem para causar dano provinha de alguém com poder de mando (imperium), o inferior

ficava excuso, nos crimes leves (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 38); nos
mais graves, eram ambos responsabilizados, porque ninguém tinha que obedecer forçosa e
invariavelmente àquele que tivesse direito de dar ordens (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Delictum”, n. 38).
3470 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 54 (a pena que impende sobre

vários, se paga por um liberta todos se visa apenas o interesse do que a recebe [isto é, se é uma pena
civil]).
3471 Os delitos dos pais não oneravam os filhos, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Delictum”, n. 33; os delitos extinguiam-se com a morte do delinquente, ibid. n. 34; a exceção era o
crime de heresia, punido também com a confiscação dos bens, que afetava os herdeiros, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 34
3472 Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 71, n.3; António Cardoso do Amaral, Liber

[…], cit., s. v. “Poena”, ns. 34 e 35.


3473 Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...], cit., 11,1.

3474 Exs. em Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...], cit., 11, 6.

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tratamento médico incompetente que lese o doente; os estragos nos bens dos
hóspedes causados por criados da estalagem. A fonte legal da responsabilidade de
indemnizar, nestes casos, provinha de títulos das Institutiones, que se consideravam
recebidos, até pela referência expressa das Ordenações a quase malefícios (Ord.
fil,4,76,5).
§ 1894. O dano podia ser causado por homem livre, escravo, animal ou coisa 3475
(v.g. uma telha que caísse do telhado, um barco levado pela corrente, uma casa que
pegasse fogo à vizinha).
§ 1895. Quanto ao montante do dano, havia relutância em admitir que ele
pudesse abranger mais do que os prejuízos causados na coisa ou no capital (danos
emergentes), excluindo-se que se tivesse que indemnizar pelos eventuais lucros, se a
coisa ou capital não se tivessem perdido3476. A exceção era a de dano causado a
comerciante, que empregasse usualmente a coisa deteriorada ou perdida num giro
comercial determinado e cujos proventos pudessem ser estimados 3477. Nesse caso,
haveria lugar a uma indemnização pelos lucros cessantes. O mesmo acontecia, mas
como castigo pela malícia do lesante, no caso de danos causados com intenção
(dolus malus)3478. Em geral, portanto, podia dizer-se que o montante do dano não
incluía senão os prejuízos que consistissem numa diminuição efetiva do património
(“perdas e danos”)3479, não se computando como tal um seu aumento apenas
previsível3480.
§ 1896. Havia duas ações que decorriam da produção do dano, uma criminal,
ou seja, para a aplicação de uma pena corporal ou pecuniária a favor do fisco, e
outra civil, relativa ao interesse e reintegração da coisa 3481. Apesar de, no direito
português, o nome das ações não ter que ser indicado na petição inicial e, portanto,
todas as ações fossem baseadas na descrição dos factos e na formulação do pedido,
a doutrina ainda recordava a variedade de ações que o direito romano foi
sucessivamente conhecendo para obrigar à indemnização de danos. A esta
diversidade não correspondiam, no entanto, consequências processuais
significativas3482. As Ordenações continham uma série de crimes de dano, causados
por homens livres3483 por escravos e por animais3484. Porém, estes preceitos, todos
eles no âmbito do livro V, sobre crimes e penas, contemplam quase só a pena
criminal. Para fazer valer a indemnização por danos, não se usava de nenhuma das
ações existentes no direito romano3485, que não tinham sido recebidas no foro

3475Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...], cit., 1,7,3.


3476Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 9, ns. 3, 5 e 10.
3477 Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 9, n. 9 a 12.

3478 Cf. Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 9, n. 14.

3479 “Demptio sive diminutio patrimonium”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Damnum”, n. 1; Miguel de Reinoso, Observationes […], cit., obs. 9, n. 13.


3480 “Si lucrum iam erat radicatum, bene dicitur, qui lucrum perdit, damnum pati, si vero lucrum

non erat radicatum, sed erat quaerendum, non dicitur, tunc damnum pati, dum non est quaesitum”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 1.
3481 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 169, n. 17.

3482 Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis [...], cit., 7,6.

3483 Ord. fil.5,78,1; Ord. fil.5,75,pr.; Ord. fil.5,86,5.

3484 Ord. fil.5,87,pr.1 e 3.

3485 Actio (directa, utilis ou in factum) ex lege Aquilia (danos causados livre dolosamente); actio noxalis

554
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

português, mas antes se recorria a uma ação inominada, em que com fundamento
na situação que causara o dano, se pedia aquilo em que se estimava a sua
compensação.
§ 1897. O dano provava-se pelos meios usuais de prova; se tivesse sido
praticado com violência, provava-se por juramento da vítima3486.
§ 1898. Como delito penal, o dano prescrevia no prazo de 20 anos, segundo o
direito civil, sendo imprescritível pelo direito canónico.

(danos causados por escravo ou animal); actio de pauperie, actio de pascu (idem); actio iniuriarum (civilis).
3486 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum” 7.

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7 As ações.
7.1 O sentido social e político do direito processual do reino.
§ 1899. O processo vinha regulado no livro 3 das Ordenações e, para as
especialidades do processo criminal, no livro 5 (Ord. fil.5,117 ss.).
Complementarmente, as chamadas “reformas da justiça” – modificaram alguma
coisa ao disposto nas Ordenações. Só a última, de 6.12.16123487, não foi incorporada
nas Ordenações, por ter sido posterior à sua promulgação.
§ 1900. Embora a doutrina processualista portuguesa de Antigo Regime esteja
continuamente a citar as fontes de direito comum, o processo é uma das matérias
em que havia particularidades importantes no direito pátrio.
§ 1901. Em 1736, Mateus Homem Leitão publicou uma obra com pretensões, a
que deu o título de Sobre o direito português3488, em que tratava de três matérias
“difíceis e quotidianas” que, a seu ver, caracterizavam o direito particular do reino.
Todas elas eram de direito processual – os agravos, as cartas de seguro e as
devassas – e, realmente, marcaram muito a prática do direito, o seu impacto social e
a distribuição de poder que por ele era feito.
§ 1902. Segundo este autor, a combinação destas três peculiaridades do direito
português tornavam os processos mais longos e mais incertos, contribuindo para o
descrédito da justiça. Nós acrescentamos que esses mesmos institutos aumentavam
muito o poder dos juízes ou, generalizando, o poder das figuras que dominavam o
foro – juízes, advogados, assessores, escrivães.
§ 1903. Os agravos alargaram enormemente as possibilidades de recurso em
relação àquilo que era o sistema romano de litigar, permitindo recorrer de
praticamente todos os atos do processo, por vezes com efeitos suspensivos,
enredando a lide em discussões intermináveis sobre matérias jurídicas obscuras. É
difícil encontrar um instituto processual que mais tenha contribuído para aumentar
a litigiosidade e prolongar as demandas, um traço que leigos e juristas, já na época,
davam como característico do direito português. Por isso, a generosidade de
recurso, somada à incerteza do direito e das jurisdições, tornava os processos numa
meada de expedientes, de que os advogados – porventura mais do que as partes –
se aproveitavam e que os escrivães – porventura mais do que os juízes – ou
propiciavam ou impediam, conforme os seus interesses.
§ 1904. Esta difusão e alongamento dos processos judiciais, além de
prejudicarem a efetividade da condenação, promoveram muito o poder social dos
juristas e dos funcionários que dominassem o desenrolar da lide.
§ 1905. As cartas de seguro (Ord. fil.1,58,40), outra novidade do direito processual
português, permitiam aos réus evitar a prisão depois da acusação, mantendo-se

3487 Cf. texto e comentário em António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, no fim do

volume, onde também se pode ver uma lei sobre matérias de Justiça, de 26.6.1696.
3488 Mateus Homem Leitão, De jure lusitano tomus primus in tres utiles tractatus divisus. 1. De gravaminibus;

2. De securitatibus; 3. De inquisitionibus, Emmanuelis de Carvalho, 1645, 3 tomos


(https://bdigital.sib.uc.pt/bg1/UCBG-4-A-25-2-5/UCBG-4-A-25-2-5_item1/index.html). Está editada
em português (Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2009).

556
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

livres até à sentença final. Talvez uma forma de um aparelho judicial débil se
acomodar à realidade da sua debilidade, coonestando, deste modo, a
impossibilidade de assegurar mais eficazmente a comparência em juízo, jogando na
cooperação do próprio acusado, ligado por uma promessa de vir a tribunal. Fosse
como fosse, a carta de seguro protegia os acusados e foi apresentada pela doutrina
iluminista (e alguma anterior) como uma notável, mas prejudicial, particularidade do
direito do reino.
§ 1906. As devassas eram averiguações ordenadas oficiosamente e dirigidas
pelos juízes numa lista vasta de crimes (Ord. fil.1,65,31), a fim de combater o crime
e expulsar do seu território os homens malvados (facinorosos) (cf. Ord. fil.1,58,5-15 e
31). Proibidas as devassas gerais (Ord. fil.1,65,31), consideradas prejudiciais e fonte
de insegurança e abusos, as Ordenações cometiam aos juízes uma larga competência
para inquirir oficiosamente de certos crimes. Esta especialidade do direito pátrio
também era uma fonte singular de poder para os juízes, letrados ou leigos, pois
colocava as populações perante uma ameaça permanente de perseguição criminal,
uma vez que a iniciativa de devassar dependia do arbítrio dos magistrados.
§ 1907. Que acontecia aos processos de devassa (particular ou especial) em que
não sobrevinha querela de parte ? Na maior parte dos casos, acabavam sem
acusação particular (querela) e extinguiam-se. No séc. XVIII e início de XIX, numa
zona remota do interior beirão (Montemuro), dos processos iniciados por devassa,
apenas em cerca de 1/3 havia querela de parte. Ao notar que, no livro de registo
das querelas, só se tinham registado 18, entre 1720 e 1834, um corregedor, na
correição do pequeníssimo concelho de Cabril de Ester, observa: "por este andar
temos livro enquanto durar o mundo” 3489. Apenas 14 % dos autos iniciados eram
finalmente julgados por um juiz ordinário; 13% eram decididos pelo corregedor,
quando ia em inspeção; 20% destes chegavam à Relação do Porto que,
normalmente, decidia de forma mais branda3490. Mas, entretanto, a querela
atemorizara e inquietara as pessoas, assinalando-lhes a dependência em que se
encontravam em relação à gente do tribunal. E o processo, prolongando-se no
tempo e em segredo de justiça, constituía um monstro adormecido que ameaçava
continuamente reanimar-se.
§ 1908. Já nos inícios do séc. XIX, logo depois da Revolução, o despotismo do
“tribunal” continuava a ser apontado como um dos males do país: “Os Advogados
passavam por melhores, quando excogitavam mais pontinhos[…]; a chicana era a
molla real dos processos. O Escrivão só olhava aos meios de fazer mais pingue o
officio, e tanto, que chegarão a passar por synonimos entre a Plebe Escrivão, e
Ladrão. O Julgador hora complicado com muitos negócios, hora com o seu socego,
hora com …, demorava o despacho dos autos, que se cobrião de pó na conclusão,
tempos, e tempos”3491.

3489 Anabela Ramos, Violência justiça em terras de Montemor. 1718-1820, Viseu Palimagem Editora,

1998, nota 67; acrescenta, a propósito de outro livro de registos que indiciava a arbitrariedade na
condução do processo: “Neste livro acho muito assentos de em aberto sem procedimento algum contra
os culpados", p. 98.
3490 Anabela Ramos, Violência […], cit., p. 108.

3491 Vicente Nunes Cardoso, “Advogado em Chaves”, “Projecto de hum Systema de Regulamento

para o Processo Civil de Primeira Instancia, por …”, em O Cidadão Literato. Periodico moral, e politico, nº I.
vol. I. 1 de Janeiro de 1821, 2 ss. (https://bdigital.sib.uc.pt/bg4/UCBG-misc365-nr5854/UCBG-
misc365-nr5854_item1/P23.html).

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§ 1909. Embora a obra de Homem Leitão destaque três institutos


especialmente importantes no processo criminal, pode ser referida para salientar o
que há de novo e de central no direito processual pátrio. Alguns dirão já na segunda
metade do séc. XVIII, que estas particularidades não tinham trazido nada de bom.
É o caso de Pascoal de Melo que, ao caracterizar os defeitos do direito processual
português, refere como suas causas precisamente estes pontos em que ele mais se
destacava do processo de direito comum: “concessão das diversas e múltiplas
dilações, […] desmesurada frequência e facilidade do juramento, […] diversos
privilégios do foro, muito nocivos à República, […] diversos modos de apelar e
agravar, e outras coisas pequenas e insignificantes deste género […]”, sobretudo
pela latitude que nestes caos se abria ao arbítrio dos juízes (ibid.: “De facto, se todas
as questões fossem tratadas no foro conforme elas determinam, acabariam em
poucos meses, e, normalmente, dentro de um ano ou pouco mais”) 3492.
§ 1910. E, realmente, as especialidades do direito processual pátrio exprimiam-
se em dois níveis. Por um lado, havia normas – nas matérias acima referidas – que
se afastavam do direito comum. Por outro lado, essas normas estabeleciam um
espaço de discreção do juiz – ao decidir os recursos, ao dispensar o réu da prisão -
que favorecia a emergência das práticas processuais, jurídicas e sociais locais. Este
duplo processo de “localização” do processo civil marcou, seguramente, a prática
jurídica de então, como também foi notado, no sentido de uma cultura jurídica e
social de litigância chicaneira, de predomínio social dos homens do foro, desde os
escrivães até aos advogados e aos juízes, servindo (ou servindo-se) dos seus clientes
naturais, as elites comunitárias. Algumas destas características podem ter marcado
de forma duradoura a cultura do senso comum. Talvez não por acaso, a sociedade
caraterizada por esta matriz da prática jurídica mantém ainda hoje uma conceção
chicaneira do conflito, assente em expedientes processuais, muitas vezes apenas
dilatórios ou de acinte, imaginados por grupos de “especialistas” em direito e por
estes propostos aos titulares dos interesses em litígio. A sociologia brasileira dos
anos ’50 do séc. XX falou, a este propósito, de “bacharelismo”3493 ou, de forma
ainda mais plástica, da coligação entre o “coronel” – o fazendeiro tradicional, titular
de interesses comunitários dominantes – e o “genro” – o bacharel em direito,
provindo de grupos emergentes urbanos, que se casara com a filha do coronel e que
o ajudava a traduzir esses interesses em fórmulas jurídicas 3494. Como autor ou como
réu, todos participavam neste processo de judicialização do conflito e no
aprendizado das formas de agir e de reagir que ele incorporava.
§ 1911. Seja como for, o processo parece constituir um ramo do direito tudo
menos adjetivo, quer quanto ao seu impacto na ordem social e política de Antigo
Regime, quer do ponto de vista da dogmática do direito, como veremos.
7.1.1 Uma compreensão mais profunda dos expedientes processuais.
§ 1912. O direito processual romano era um direito ritualista 3495. As ações eram

3492 Institutiones juris […] criminalis, Prefácio “Aos estudantes …”, último parágrafo
3493 Pedro Paula Filho, O Bacharelismo Brasileiro. Da Colônia a República, Campinas, 1997.
3494 Victor Nunes Lela, Coronelismo, enxada e voto. O município e o regime representativo no Brasil,

Campinas, 1949, p. 21 ss..


3495 Para uma primeiríssima noção acerca da estrutura do processo em Roma e sua evolução, v.

http://it.wikipedia.org/wiki/Lege_agere; http://it.wikipedia.org/wiki/Agere_Pascoal de Melo,

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

como que fórmulas mágicas para obter um efeito. Tal como as obrigações, estavam
relacionadas com palavras, declarações e comportamentos típicos fortemente
ritualizados. A sua eficácia não se relacionava com a existência ou não de um direito
prévio, mas apenas com a recitação rigorosa da fórmula cumprimento rigoroso do
ritual, o qual propiciava a produção do efeito. Na sistematização das ações
sobrelevavam estes aspetos formais. A grande partição das ações assentava na sua
forma. Nomeadamente, no facto de a sua concessão se basear na ocorrência das
precisas condições estabelecidas na lei (das Doze Tábuas) (legis actiones, ações da lei)
ou antes, como aconteceria mais tarde, de ter sido ordenada pelo magistrado, por
consideração de oportunidade (utilitas, aequitas), apesar de não se verificarem os
pressupostos legais para a sua concessão, nomeadamente, a falta de um título ou
negócio formais exigidos pela lei (actiones praetoriae, ações do pretor).
§ 1913. A escolha de actiones como epígrafe da terceira parte da sistematização
de Gaius-Justinianus traduz esta ideia de que as ações eram institutos jurídicos que
tinham o princípio em si mesmos, num ato fundador da lei que as concedia. E não,
como mais tarde se considerará, expedientes processuais para dar realidade a algo
que lhes subjazia – um direito, um contrato, um delito. As ações eram formais e
não causais, no sentido de que nelas não se tinha que identificar a causa da
pretensão do autor, mas apenas que cumprir os requisitos formais que a lei exigia
para que a ação pudesse ser concedida. Por isso, o que era indispensável na fórmula
era a designação do nome da ação que se pedia (intentio) e não tanto a descrição da
situação de facto que fundaria a pretensão (demonstratio), a qual só se tornava
necessária quando a intentio (o pedido) era incerta3496, e justamente para precisar o
pedido.
§ 1914. A diluição deste formalismo inicia-se na fase clássica do direito romano,
ainda antes da lex Aebutia de formulis (c. 150 a.C.), e teve várias consequências.
§ 1915. A primeira foi a de enfraquecer a ideia de que o fundamento da ação

Institutiones iuris civilis, 2_formulas. Indicações bibliográficas para desenvolvimentos: Max Kaser, Direito
privado romano, tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle, Lisboa, Fundação. Calouste
Gulbenkian,1999; id. Das römische Zivilprozessrecht. Handbuch der Altertumswissenschaft. Abteilung 10:
Rechtsgeschichte des Altertums. Vol. 3.4. München 1996; outra bibliografia -
http://books.google.com.br/books?id=iklePELtR6QC&pg=PA791&lpg=PA791&dq=procedura+civil
e+romana&source=bl&ots=OhY-CyzP0n&sig=IhN7mLyTLoP0NDQFjaXnDwPXc90&hl=pt-
PT&sa=10&ei=X9WLUfGDE4z89gSf8oCQAg&redir_esc=y#v=onepage&q=procedura%20civile%20
romana&f=false.
3496 Gai Institutiones, 4.39. Partes autem formularum hae sunt: demonstratio, intentio, adiudicatio,

condemnatio. 4.40. Demonstratio est ea pars formulae, quae principio ideo inseritur, ut demonstretur
res, de qua agitur [aquela parte da fórmula, por isso inserida no início, em que se descreve aquilo por que
se age em juízo], velut haec pars formulae: quod Aulus Agerius Numerio Negidio hominem vendidit,
item haec: quod Aulus Agerius <apud> Numerium Negidium hominem deposuit. 4.41. Intentio est ea
pars formulae, qua actor desiderium suum concludit [aquela parte da fórmula em que o autor indica a
sua pretensão] velut haec pars formulae: Si paret Numerium Negidium Aulo Agerio sestertium x milia
dare oportere; item haec: Quidquid paret Numerium Negidium Aulo Agerio dare facere <oportere>;
item haec: Si paret hominem ex iure quiritium Auli Agerii esse. 4.42. Adiudicatio est ea pars formulae,
qua permittitur iudici rem alicui ex litigatoribus adiudicare, uelut si inter coheredes familiae erciscundae
agatur aut inter socios communi diuidundo aut inter vicinos finium regundorum. nam illic ita est:
Quantvm adiudicari oportet, iudex, Titio adiudicato. 4.43. Condemnatio est ea pars formulae, qua iudici
condemnandi absolvendiue potestas permittitur, velut haec pars formulae: Iudex, Numerium Negidium
Aulo Agerio sestertium x milia condemna. si non paret, absolve; item haec: Iudex, N. Negidium A.
Agerio dumtaxat x milia condemnato. si non paret, absolvito; item haec: Iudex, N. Negidium A. Agerio
condemnato et reliqua, ut non adiciatur dumtaxat.

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estava numa certa liturgia de atos ou de palavras, permitindo assim que emergisse a
ideia de que o fundamento da ação era a vontade, o consentimento, o pacto ou o
contrato, a relação jurídica subjacente, que se tornava na “substância” do direito
(direito substantivo), reduzindo o plano processual a um aspeto apenas adjetivo 3497.
Com isto, na sistematização temática do direito proposta por Gaius, a pré-história
da ação ganha protagonismo: genéticos passam a ser o contrato e o delito que estão
na origem das pretensões do autor. Então a epígrafe dos “terceiros livros” das
Institutiones passa a ser, não a ação, mas a obrigação ou, como em A. Vinnius, a
obrigação e o delito, o que leva à divisão do livro 3 em dois. Em Melo Freire, mais
limitadamente, mantém-se a unidade do “terceiro livro”, mas as obrigações ganham
primazia sobre as ações, sendo tratadas em primeiro lugar.
§ 1916. Em segundo lugar, a decadência do formalismo fez com que a
explicitação do nome da ação no libelo (intentio) se tornasse quase irrelevante,
cedendo a primazia a uma descrição substancial da matéria de facto que gerara a
pretensão do autor3498. A determinação do modelo de ação que se pedia passou a
ser secundário, podendo cumular-se ou usar-se alternativamente ações, desde que
isso contribuísse melhor para a satisfação do desiderato do autor. Nesse sentido,
todas as ações passaram a ser modeladas pela factualidade, pela situação em que
surgia a demanda, correspondendo àquilo que no processo romano clássico se
chamava actiones in factum conceptae. Em contrapartida, as ações formais, com nome e
modelos fixos (actiones legis), tendem a desaparecer. Em Portugal, as Ordenações (Ord.
fil.3,1,13) dispensam a nomeação do nome da ação no libelo, substituindo-a por
uma descrição suficiente dos factos em que se baseava a pretensão do autor.
§ 1917. Depois, a desformalização e desritualização do processo fomentou uma
exposição menos atomística das formas de processo, cada qual ligada a uma ação
particular, o que culminou na identificação de princípios gerais comuns a todas as
ações. No seu Tratado da forma dos libelos (1549)3499, uma obra confessadamente
prática, Gregório Martins Caminha trata uma por uma as ações, tais como vinham
enumeradas nas Institutiones de Justiniano, sem se abalançar a uma visão de conjunto
que salientasse traços comuns ou princípios gerais3500. Mas João Martins da Costa
(15--/16--), que anota copiosamente a mesma obra c. de 50 anos depois (1610), já
tenta libertar-se desta descrição atomística de cada ação (libelo) para tentar

3497 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,VI,26: “todas as obrigações derivam do

consenso e não de palavras orais ou escritas”. Cf. também a nota ao texto. Num outro passo, ao
justificar que o livro 4, cujo tema tradicional eram as ações, incluísse as obrigações e até começasse por
estas, pondera que as obrigações são “como que as mães das ações” (“Prefácio” ao Livro 4).
3498 Modelo que o direito romano clássico conhecia, mas apenas para um certo tipo de ações, as

actiones praescriptis verbis ou as ações pretórias in factum conceptae.


3499 Coimbra, António de Mariz, 1558 (http://purl.pt/23247, 14.08.2013; a primeira edição é de

1549; o A. foi corregedor em Cabo Verde, de 1560-1562). Nova edição, com anotações de João Martins
da Costa, a partir da ed. de 1610; ed. de 1764, p. 3 (http://bibdigital.fd.uc.pt/H-D-22-11/H-D-22-
11_item2/H-D-22-11_PDF/H-D-22-11_PDF_01-C-R0120/H-D-22-11.pdf, 2013.8.12; foi sendo
reeditado até 1824).
3500 O mesmo faz Manuel Mendes de Castro, na sua célebre Practica lusitana […], cit., no seu livro 4

(De actionibus, et quae in unaquaque earum de stylo requirantur), embora comece o livro por dizer que muitas
das distinções tradicionais das ações se tinham tornado escusadas na prática, pois o nome da ação não
tinha que se exprimir no libelo. A fórmula das ações hoje não é necessária, bastando a exposição dos
factos que fundavam o pedido (Ord. fil.3,63, fin.); e, de facto, no livro 3 (Practica saecularis. De modo, et
forma procedendi in causis civilibus, p. 77-139), adota uma exposição geral da ordem e atos do processo.

560
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

identificar princípios gerais comuns a todas ou, pelo menos, a um grupo delas.
Segundo ele (Adnotatio I. ns. 1 e 2), os juízes discretos e os advogados conhecedores
mais antigos costumavam examinar diligentemente a forma dos libelos e a
qualidade da ação proposta, justamente porque a sentença se formaria de acordo
com o teor do libelo, conforme a Ordenação - (lib. 3, tit. 66, § 2: "Conforme ao libelo").
Em contrapartida, os juristas “mais modernos”, teriam mostrado “de forma
elegante” que “mais do que descer aos particulares dos libelos, convém antecipar
algumas coisas a partir de proposições universais, pois, na verdade, os progressos
de todas as disciplinas são deduzidos corretamente a partir de preceitos gerais. As
coisas gerais ou universais são sem dúvida o fundamento de todas as especialidades
e necessárias ao conhecimento das coisas individuais”. “E assim – acrescenta (n. 2)
-, para o esclarecimento de todos os libelos, é de observar, em geral” uma série de
definições e regras gerais3501.
§ 1918. Por fim, a desformalização do processo trouxe para primeiro plano
outros elementos da ação, nomeadamente o seu objetivo – obter uma coisa, obrigar
a um comportamento (pagamento, prestação de coisa ou de facto) -, o seu
destinatário, os seus requisitos (por exemplo, quanto a prova). São estes elementos
que vão passar a constituir os critérios de agrupamento das ações em géneros,
embora subsistam ainda resíduos das classificações antigas (v.g. a distinção entre
ações diretas e ações úteis, entre ações de direito estrito e ações de equidade, entre
ações civis e ações pretórias). Porém, à medida que ganhava relevo a finalidade da
ação, as distinções formais iam, progressivamente, sendo consideradas como
irrelevantes.
§ 1919. Com este progressivo processo de desformalização do processo, nesta
fase tardia do direito comum muito pouco restava já dos elementos puramente
rituais do processo romano.
§ 1920. Um resíduo das ações sujeitas a ritos (neste caso, ao rito da escrita) era a
ação chirografica, concedida para fazer valer as reclamações fundadas numa escritura
pública, sempre que a essa fosse reconhecido o valor de título executório direto.
Neste caso, para exigir os direitos constantes da escritura, bastava apresentá-la, sem
necessidade de outra demonstração (demonstratio) do direito3502. A causa da
pretensão era a mera existência de um documento e não qualquer situação de facto
anterior a este. Em Portugal, porém, a escritura pública não tinha esse valor
executório, dando apenas lugar a uma ação chamada assinação de dez dias, em que,
citado o devedor e apresentada a escritura, ao devedor era dado um prazo de 10
dias para provar o pagamento ou opor e provar as exceções disponíveis, algumas
das quais se podiam relacionar, não com o título executivo, mas com a causa
substancial que o antecedia. A assinação de 10 dias garantia também as obrigações
constantes de outros “títulos executivos”3503: letras de câmbio3504, livros dos

3501 “Plusquam ad particularia libellorum descendamus, ex universalibus nonnulla praelibare operae

pretium erit; enim vero omnis disciplinae progressus a generalibus praeceptis recte deducitur [...] ubi
eleganter exornat noviores. Generalia quippe, seu universalia sunt veluti cujusque artis fundamenta ad
omnium speciarum, atque individuorum congnitionem omnino necessaria. 2. Igitur ad evidentiam
omnium libellorum generaliter observandum est [...].”.
3502 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,27.

3503 A assinação de 10 dias não era uma ação executiva e, por isso, estes escritos que a autorizavam

não eram verdadeiros títulos executivos (v. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv.
3,21,10, n. 57; Alexandre Caetano Gomes, Dissertações […], Diss. 6 a Ord. fil. 3,25.

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mercadores (para provar obrigações de quem os escrevesse), testamentos solenes,


sentença judicial transitada em julgado (Ord. fil.3,258), escritura de dote, uma vez
contraído o matrimónio3505, escrito particular reconhecido pelo autor 3506. Era
necessário que destes documentos constasse o montante da dívida líquida e a sua
causa, sem o que se teria que recorrer à ação ordinária. Eram oponíveis as exceções
ordinárias, que deviam ser provadas dentro do prazo assinado. A apelação não
suspendia a execução da sentença, mas o recorrente devia prestar fiança para
prevenir a restituição, no caso de a decisão superior lhe ser desfavorável 3507.
§ 1921. No processo criminal, restava o elenco formal dos crimes (nomina
criminis), que fazia com que o caráter criminal de uma ação dependesse da expressa
definição pela lei daquele comportamento como crime (tipicidade, v. cap. 8.1.2).
Porém, esta exigência funda-se, não na ideia de que havia um número fixo de ações,
cada qual com os seus requisitos no formalismo, mas na de tipicidade dos crimes –
nullum crimen sine lege – que obstava a que houvesse “crimes arbitrários”, ou seja,
estabelecidos pelo arbítrio do juiz3508.
§ 1922. O desaparecimento de certas categorias de ações relaciona-se, também,
com novos equilíbrios quanto ao poder social de dizer o direito. As ações menos
rigorosas quanto a requisitos formais (ações in factum conceptae, utiles, aequitatis,
arbitrariae), que alargavam o poder dos magistrados, adequavam-se a períodos em
que o poder de dizer o direito (jurisdição) era difuso. Enquanto que, nos períodos
de concentração do poder jurisdicional no legislador, a liberdade de iniciativa e de
conformação dos magistrados tendia a ser reduzida. Esta antipatia pela
discricionariedade dos magistrados e a preocupação em os amarrar a normas
jurídicas objetivas nota-se bem nas Institutiones de Pascoal de Melo, que tendia a
classificar todas as ações como de direito estrito, embora considerasse como direito
bastante mais do que aquilo que a lei expressava, incorporando aí os estilos dos
tribunais e, até, a doutrina por eles recebida. É, porém, certo que todos estes tipos
menos formais de ações tinham provindo da necessidade de ultrapassar o
formalismo das legis actiones. Desaparecido este, todas as ações se fundavam nos
factos alegados, na utilidade dos seus propósitos e num largo arbítrio do juiz para
avaliar tudo isto. E, por isso, a distinção entre as ações baseadas em razões formais,
deixava de fazer sentido, mesmo do ponto de vista dogmático.
§ 1923. Nas Ordenações, caiu a distinção entre ações diretas e úteis (Ord.
fil.3,63,3), que apenas tinha sentido no sistema formalista do processo romano por
fórmulas (per formulas), em que os magistrados supriam a impossibilidade de aplicar
uma ação prevista na lei (actio legis) ao caso sub judice; criando então uma extensão da
ação (actio utilis) adequada às circunstâncias do caso e que permitisse salvaguardar os
interesses/utilidades que a lei queria proteger na ação direta (actio directa).

3504 Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 76; Melchior Febo, Decisiones […], cit., p. 1, Aresto 37.
3505 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,28.
3506 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,29 (desde que a obrigação não passasse de

60.000 rs.; a prática era complacente quanto a este limite).


3507 Ord. fil.3,25; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,28.

3508 Em contrapartida, havia penas arbitrárias, sempre que no estabelecimento de um crime não se

estabelecia a sua pena.

562
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

7.1.2 O novo entendimento da ação na dogmática jusracionalista.


§ 1924. Segundo a conceção moderna do direito, que se vem a impor
plenamente na dogmática jurídica do séc. XVIII, as ações não eram direitos, mas
meios de prosseguir os direitos. Por isso, eram institutos adjetivos ou instrumentais
para efetivar direitos pré-existentes (abstratos, virtuais) a certos bens ou situações.
E não dispositivos que exprimiam diretamente a titularidade de pretensões
jurídicas. A diferença é: “eu tenho uma coisa e, para garantir isso, uma ação para a
reclamar” ou “eu tenho uma ação para obter uma coisa e, por isso, tenho essa
coisa”. O contrário era verdade na tradição romana, em que as ações eram
dispositivos colocados pela lei nas mãos dos litigantes permitindo-lhes satisfazer as
suas pretensões. A sua origem estava no direito, que as outorgava ou negava, e não
em situações anteriores (“direitos”), já existentes na esfera jurídica de cada um,
apenas carecendo de um processo de efetivação.
§ 1925. Com o advento do legalismo iluminista, a ideia romana antiga de que as
ações tinham origem nas disposições da lei (legis actiones) foi recuperada, pois
convinha a uma política do direito que pretendia cercear os poderes de juristas e
juízes. Assim, passou a afirmar-se enfaticamente que todas as ações eram “civis” ou
“legítimas”, pois, agora, todas tinham origem na lei. As antigas ações pretórias,
concedidas pelo pretor, não existiam mais, já que os magistrados tinham que
obedecer à lei e não podiam criar ações com base em outra coisa que não nela. Isto
valia, nomeadamente, para a equidade, que não podia ser invocada a não ser
quando autorizada pela lei, por costume antigo ou pelo uso do foro. Os tópicos
iluministas de reação contra os juízes e os juristas refletem-se, assim, na dogmática
processual.
§ 1926. O antiformalismo dominante levava a que não se distinguissem mais as
ações baseadas no direito estrito e as baseadas na boa fé, reduzindo a boa fé àquilo
que a lei tinha em conta, ou seja, apenas a vontade das partes. Assim, todas as ações
geradas por contratos provinham deles mesmos, como encontro de vontades, e não
de extensões da vontade das partes, excogitadas pelos magistrados, de acordo com
o que chamavam os princípios da boa fé. Todos os contratos eram realmente
conformes à boa fé, porque a boa fé era o respeito efetivo pela vontade das partes.
Numa palavra, e combinando os dois princípios, os juízes nem podiam estender a
força da lei, criando ações “pretórias”, nem tão pouco estender a força da vontade
das partes, em nome de cláusulas que as partes não tinham convencionado.
§ 1927. Existia, no entanto, algum arbítrio dos tribunais. Não podiam criar
ações, mas podiam acertar o pedido nelas feito pelo demandante, sempre que isto
fosse indispensável. Era o que acontecia nas ações arbitrárias, em que o juiz, por si
ou com recurso a árbitros, podia tornar certo, a seu arbítrio, aquilo que estivesse
incerto na petição (ou libelo). Isto era comum quando aquilo que se pedia fosse
incerto na quantidade, dependendo de uma avaliação dos dados de facto (partilha,
frutos, ganhos ou interesses - id quod interest -, valor de benfeitorias).
7.1.3 A classificação das acções.
§ 1928. Nos processualistas mais antigos, a classificação das ações continuava a
ser marcada pela que se encontrava nas fontes romanas, nomeadamente nas
Institutiones de Justiniano, estruturadas a partir das conceções formalistas que

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acabamos referimos.
§ 1929. Em Manuel Mendes de Castro3509, o tratamento das ações segue uma
ordem menos atenta a uma classificação por objeto ou finalidade do que à estrutura
romana do processo e às suas categorias.
§ 1930. Primeiro trata das ações civis (actiones legis) pessoais (dirigidas contra
alguém individualizado), enumerando a condictio (c. 1)3510 e a actio furtiva (ou actio furti,
c. 1)3511. Depois, trata das ações civis reais (dirigidas a quem quer que estivesse em
certa situação objetiva relacionada com uma coisa), enumerando a reivindicatio
(c.2.1)3512, as actiones confessoria ou negatoria (c. 2.2)3513. Finalmente, trata das ações
civis mistas (c. 3), como a actio familiae erciscundae (c. 3.1)3514, a actio communi dividundi
(c. 3.2)3515, a actio finium regundorum (c. 3.3)3516.
§ 1931. Seguidamente, Castro trata das ações pretórias, de que refere a
revocatoria (c. 4.1.)3517, as Clavisiana e Fabiana3518, a Serviana hypothecaria (e
pignoratitia) (c. 4.2)3519 e outras ações pessoais pretórias (v. cap. 6.9.2.3.2), que
alargaram a responsabilidade do pagamento a outros que não o devedor originário,
ou porque estas pessoas se obrigaram a isso (por meio de um pacto, constitutum,
donde actio de pecunia constituta), ou porque mandaram outrem obrigar-se (actio
quod iussu), ou porque tinham entregue a outrem um conjunto de bens para que
este os gerisse (actio institutoria, exercitoria 3520, c. 6.2; actio de peculio, c. 6.13521),

3509 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 4.


3510 Pela qual se pedia algo certo (de dar ou de fazer) a alguém, por uma causa relevante segundo o
direito civil.
3511 Pela qual se pedia uma coisa roubada, ao ladrão, a seus herdeiros ou a alguém que lhes tivesse

comprado a coisa.
3512 Pela qual se pedia a entrega de uma coisa com fundamento num direito de propriedade

relevante para o direito civil.


3513 Na confissoria, pedia-se ao réu que confessasse ser o autor titular de um direito (de servidão ou

de outro direito incorporal, como o de cobrar décimas, de apresentar, de eleger) e que prometesse
abster-se de o perturbar; na negatoria pedia-se que o réu negasse ser titular do direito com fundamento no
qual perturba a propriedade do autor.
3514 Para dividir a herança, a pedido de um co-herdeiro, testamentário ou abintestado.

3515 Para pedir a divisão de coisa comum, por um dos comproprietários ou sócios.

3516 Para pedir a marcação ou remarcação das extremas de um prédio, em relação aos confinantes,

recorrendo à fama ou testemunhas.


3517 Ou actio Pauliana. Para revogar uma venda simulada em fraude dos credores, dos filhos ou do

fisco. Tinhas que se provar o débito e a intenção de fraude.


3518 Estas duas ações competiam aos patronos para revogar alienações feitas por libertos em fraude

dos patronos. Tinha que se provar a intenção de fraude.


3519 Dava-se para o proprietário (inicialmente, apenas de um prédio rústico) pedir do devedor ou de

terceiros adquirentes o prédio e as coisas que lá estivessem (invecta et illata) ou os frutos produzidos, nos
casos de incumprimento da dívida garantida. Também se usava para pedir os frutos que se encontrassem
no prédio arrendado, como compensação das rendas em dívida, pois o colono ou arrendatário só
adquiria os frutos uma vez paga a renda. A actio quasi serviana era uma extensão da actio serviana a todos os
bens - rústicos ou não - arrendados ou hipotecados.
3520 Dadas contra aquele que constitui um estabelecimento (taberna, negotium; actio institutoria) ou

contra o dono do navio (actio exercitoria), pelas obrigações contraídas pelo administrador do
estabelecimento ou patrão do navio e relacionadas com o exercício do negócio.
3521 Dava-se contra o pai, pelas obrigações contraídas pelo filho no âmbito da gestão dos bens que

o pai lhe tivesse concedido (peculium).

564
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ou porque tinham adquirido algo que não lhes era devido e que deviam reembolsar
ao seu dono (actio de in rem verso), ou porque tinham uma qualidade (ou estavam
numa situação) que criava responsabilidades (a de pai do devedor, actio adjectitiae
qualitatis).
§ 1932. Depois de uma referência às ações praetoriae praejudiciales (praetoriae quae
ad poenam competunt, c. 7) que visavam apenas uma declaração e não uma
condenação3522, tratava das ações de boa fé (actiones bonae fidei, c. 8.1), quase todas
decorrentes de contratos não (completamente) tutelados pelo ius civile. Refere a actio
ex empto (§ 1)3523, a evictio (§ 2)3524, a actio redhibitoria (§ 3)3525, a actio ex vendito (§ 5)3526,
a actio locati, conducti (§ 6)3527, a actio pro socio (§ 7)3528, a actio depositi (§ 8)3529, a actio
mutui (§ 9)3530, a actio commodati (§ 10)3531, a actio mandati (§ 11)3532, a actio negotiorum
gestorum (§ 12)3533, as actiones tutellae (§ 13)3534, a actio petitionis hereditatis (§ 14)3535, a
actio pro dote (§ 15)3536 e ação de rescisão de contrato sinalagmático por lesão.
§ 1933. Seguidamente, trata das actiones arbitrariae personales in rem scriptis (c. 9),
destinadas a impedir ações legítimas fundadas em contratos nulos: actio quod metus
causa (§ 1)3537; actio ex dolo (§ 2)3538. E, por fim, trata de algumas ações sumárias e de
interditos: actio ad exhibendum (§ 3)3539, interdictos (c. 10) possessórios3540. Fechava (c.

3522 Muito frequentemente, eram ações sobre o estado das pessoas.


3523 Dada ao comprador para reclamar a entrega da coisa vendida e frutos vencidos.
3524 Pedindo o preço da coisa vendida que tivesse um defeito ou que não fosse do vendedor.

3525 Dada ao comprador de uma coisa defeituosa (veluti si vendatur domus, quae habet phantasmata [!!!],

vel qua habet malos vicinos) para resolver o contrato recuperando o preço (ou reduzir este: actio quanti
minoris, n. 4).
3526 Inversa à actio ex empto, para obter o pagamento do preço.

3527 Competia ao dono da coisa para ser indemnizado dos danos causados pelo locatário à coisa

(móvel, imóvel, trabalho) locada ou para obter a sua restituição findo o tempo do contrato; ou para
pedir o uso convencionado da coisa locada (D.19,2).
3528 Para um sócio obter do outro aquilo que lhe competisse segundo o contrato ou segundo a

equidade (ex aequo et bono).


3529 Para reclamar a coisa depositada e os seus frutos (directa) ou para pedir a coisa dada em

depósito (contraria).
3530 Para reclamar as prestações recíprocas de um contrato de empréstimo de dinheiro.

3531 Para reclamar as prestações recíprocas de um contrato de empréstimo de uma coisa.

3532 Para reclamar o cumprimento de um contrato de mandato.

3533 Para exigir o cumprimento das obrigações – de prestar contas, de pagar as despesas - que a boa

fé criava sempre que alguém gerisse um negócio de outrem sem mandato (I. 3.27, 1; D.3, 5, 1, 3).
3534 Do pupilo contra o tutor para que prestasse contas (directa) ou para que o tutor exigisse do

pupilo o pagamento das suas despesas na gestão (contraria).


3535 Dada a um herdeiro, com a qualidade já provada, para pedir a entrega da herança de alguém

que a possui.
3536 Para o genro pedir o dote ao sogro que consentiu no casamento, embora o dote não tivesse

sido prometido.
3537 Para que aquele sobre quem foi exercida coação se liberte da obrigação
(http://eprints.ru.ac.za/988/1/Metus.pdf).
3538 Para libertar das promessas aquele que foi enganado.

3539 Ação sumária dada ao proprietário, ao possuidor ou a alguém que tivesse interesse nisso para

reclamar do detentor de uma coisa a sua exibição.


3540 Unde vi - ordem para restituir uma posse antiga perturbada pela força, embora se presumisse

que qualquer posse nova, que não pudesse coexistir com a antiga, era clandestina ou viciada; uti possidetis
- ordem para manter uma posse pacífica e pública (nec vi nec clam nec precario), que tivesse sido perturbada;

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11) com as ações que provinham de malefícios: actio iniuriarum (§ 1)3541; actio legis
Aquiliae (§ 2)3542; actio noxalis3543.
§ 1934. Mais tarde, a ordem das exposições da matérias das ações terá mais em
conta o conteúdo da ação – aquilo que se pede – do que estas categorias formais
legadas pela história do processo romano. Assim, Pascoal de Melo já simplifica e
substancializa bastante a ordem expositiva. Para ele, são apenas quatro os tipos de
ações: (i) ações sobre o estado das pessoas (ou prejudiciais), (ii) ações em que se
reclamam (de qualquer pessoa que seja) coisas (reais, reivindicationes), (iii) ações em
que se reclamam direitos a certa(s) pessoa(s) (pessoais, in personam, condictiones
[reclamações]), (iv) acções mistas, participando das duas últimas categorias (Ord. fil.
3,15)3544.
§ 1935. É destes grupos que se trata em seguida. Mas o que é certo é que a
memória dos modelos romanos e do seu formalismo continuou a pesar sobre a
dogmática processual, sobrecarregando-a de nomes, de modelos, de formalidades e
de distinções que já não estavam em uso na prática.
7.1.3.1 As ações prejudiciais.
§ 1936. As ações prejudicais, relativas ao estado das pessoas, serviam para
reivindicar um dos três tipos de “estado” reconhecidos pelo direito civil: de
liberdade, de cidadania (ou civil, civitatis) e de família. Embora o estado não fosse
uma “coisa”, há uma certa semelhança entre estas ações e as ações reais, pois umas
e outras tinham uma eficácia geral, em relação a todos (erga omnes), e não apenas em
relação à pessoa de quem se reclamava o reconhecimento do estado 3545. Entre as
ações do primeiro tipo contam-se as ações de liberdade, frequentes nas regiões
onde a escravatura era corrente, e que serviam para o alegado escravo requerer a
liberdade contra o seu senhor 3546. As ações sobre o estado civil compreendiam a
reclamação/o reconhecimento, não apenas da qualidade de cidadão, mas também
de outras situações civis relevantes numa sociedade de estados (qualidade de
cidadão ou de vizinho3547, titularidade de ofício, de dignidade ou de privilégio). As
ações sobre o estado de família visavam o reconhecimento de um estado familiar
(de filho [actio de partu agnoscendo], de titular de direito a alimentos, de outra qualidade
ou estado relativo à família)3548.

adipiscendae hereditatis - ordem para que o herdeiro já reconhecido como tal adquirisse a posse da herança
vacante:
http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Interdictum.html,
14.08.2013.
3541 Pedia uma certa soma como compensação do dano (damnum) causado por injúria (ato ilícito:

"quod non jure factum est, hoc est contra jus,” D.9, 2, 5.1;
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.04.0063:id=injuria-cn) ao injuriado.
3542 Pedia uma indemnização pelo dano causado por morte ou ferida infligidos culposamente ao

autor.
3543 Ação dada ao injuriado contra o dono ou pai do escravo ou filho injuriante. No caso de dano

causado por animais ou coisas competia a actio de pauperie.


3544 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 4,2,4.

3545 Pascoal de Melo, Institutiones […] civilis, cit., 4,7, nota.

3546 D. De liberali causa (D.40,12; C.7,16).

3547 Ord. fil. 2,55 e 56; D. ad municipalem (D.50,1).

3548 Ord. fil. 3,9,4.

566
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

7.1.3.2 As ações reais.


§ 1937. As ações reais destinavam-se a reclamar a propriedade de uma coisa
contra uma posse que o autor considerava abusiva 3549. No conceito de propriedade
cabia o direito direto sobre uma coisa, com a latitude que o conceito de direito
direto (in re) então tinha, abrangendo direitos adquiridos por herança, servidões,
mas também os direitos do credor sobre os bens penhorados ou hipotecados
(dados em garantia real3550). Estas ações eram dirigidas contra o usurpador de coisa,
pelo que pressupunham a prova do direito real ofendido (do autor), bem como a da
posse abusiva (do réu). No caso de propriedade plena sobre uma coisa certa e
determinada, a ação disponível era a reivindicação, pela qual se pedia ao possuidor
(ou simples detentor, como o depositário) a coisa e os seus frutos3551.
§ 1938. Tanto em relação à coisa reivindicada, como aos seus frutos,
funcionavam como defesa várias exceções específicas, que contrariavam o direito do
proprietário ou justificavam a posse ou detenção. Era o caso da exceção de venda
ou outro tipo de transação a favor do possuidor, da de usucapião, ou da de direito
de retenção. Estas podiam ser usadas pelo réu para justificar a improcedência total
ou parcial do pedido em relação à coisa reivindicada ou aos seus frutos 3552. O réu,
caso fosse mero detentor, podia nomear [“louvar”] aquele de quem tinha obtido a
coisa, livrando-se da ação. Como a prova do domínio era difícil, esta ação
costumava ser cumulada com a ação publiciana (v. abaixo).
§ 1939. Havia outras ações reais, para cobrir outros casos em que os direitos do
autor não cumpriam os requisitos da propriedade quiritária (ou segundo o direito
estrito).
§ 1940. Assim, ficcionava-se que existia a propriedade para permitir a
recuperação da propriedade por aquele que, estando ausente por causa justificada, a
tivesse perdido para outrem, por usucapião. Neste caso, a ação a usar não poderia
ser a reivindicação, pois a propriedade do autor já tinha sido perdida (por
usucapião). Assim, na base de uma ficção de que a usucapião não ocorrera, usava-se
uma outra ação real – a ação rescisória3553. No entanto, no caso de o direito dispor
que a usucapião não podia correr contra ausentes ou impedidos por justa causa, a
ação rescisória era inútil, podendo usar-se a reivindicação, pois a propriedade se
mantinha no autor.
§ 1941. Outra ação real era a ação pauliana (ou ação revogatória pauliana)3554,
utilizada pelos credores para perseguir os bens que o devedor tivesse alienado a
terceiros para, em conivência com estes, defraudar os credores. Como os credores
não eram proprietários dos bens alienados, mas apenas contavam com eles como
garantia dos seus crédito, o direito3555 autorizava-os a reivindicar os bens do

3549 Cf. Anotação (Adnot. II) de João Martins da Costa a Caminha, Tratado da forma dos libelos, ed.

1764, p. 5. Fontes: Ord. fil. 4,10 ("se hum homem demandasse a outro alguma cousa, dizendo ser sua").
3550 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3,1,12.

3551 I.4 De actionibus,6,1; D.6,1 De rei vindicatione; C.3,32.. V. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,

cit., 4,6,10.
3552 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis […], cit., 4,6,10.

3553 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones […] civilis, cit., 4,6,14.

3554 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado […], cit., ed. 1764, “Libello sobre a acção revogatória

pelos bens, que o devedor alheou em prejuízo do credor” e Annot. V (p. 11 ss.).
3555 D.42,8 Quae in fraudem creditorum, 9 e 10.

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devedor como se fossem o devedor e a alienação fraudulenta não tivesse tido lugar.
Em alternativa, podia usar-se uma ação pessoal contra o devedor, para anular todos
os atos em que tivesse diminuído o seu património – alienando bens ou perdoando
dívidas - em fraude dos credores, com a cumplicidade dos terceiros beneficiados.
§ 1942. Um outro caso de ação real com fundamento num direito que não era a
propriedade plena era a ação publiciana, que se usava no caso de o autor ter um
direito sobre a coisa a reivindicar que não era ainda a propriedade – por exemplo,
era seu possuidor em condições suficientes para a adquirir por usucapião 3556. O
autor tinha que provar a posse, a sua duração, o justo título. O demandado podia
opor, por exceção, uma posse melhor.
§ 1943. Como o direito à herança era considerado como quase propriedade, o
herdeiro (legitimo, testamentário ou pactício3557) ou o legatário também podiam
usar de uma ação real para pedir a herança contra alegados sucessores e,
assessoriamente, para serem reconhecidos como sucessores válidos – a ação de
petição da herança3558. O réu podia defender-se com exceções relativas à invalidade
ou revogação do testamento ou da cláusula testamentária ou quanto à legitimidade
sucessória do autor. Uma forma especial de petição de herança era a querela de
testamento inoficioso em que se pedia a herança contra um pretenso sucessor
testamentário beneficiado por uma cláusula testamentária inválida 3559. Semelhante
era a querela de doação inoficiosa.
§ 1944. Reais eram ainda as ações em que o dono do prédio dominante
(servido) reclamava o reconhecimento de uma servidão, real ou pessoal (serviços;
v.g. direitos banais), a favor desse prédio (ação confessória). Ou em que aquele de
que se pretendia a servidão exigia do dono do prédio dominante o reconhecimento
da não existência da servidão (ação negatória) 3560 3561. Aqui, o fundamento era um
direito real não pleno, pelo que a reivindicação, em sentido estrito, não poderia ser
usada. O fundamento da ação negatória era também um direito real – a presumida
plenitude da propriedade (ou liberdade natural dos prédios) -, que ficaria
prejudicada pela existência de uma servidão passiva. Como se tratava de ações reais,
pressupunham que a servidão já estava constituída (por usucapião, contrato,
testamento). As exceções a esta ação relacionam-se com nulidades no título de
constituição da servidão, como a sua extinção, a sua desnecessidade, o seu caráter
excessivo ou, simplesmente, a não existência da servidão no momento da ação.
Caso a servidão não existisse, sendo apenas pedida a sua constituição, a ação a usar
era antes uma ação pessoal (v. cap. 4.3.7).
§ 1945. Equiparada à propriedade plena era o direito do marido sobre os bens
dotais na constância do matrimónio. Assim, estes podiam ser por ele
reivindicados3562.

3556Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,13.


3557Isto é, instituído por pacto sucessório.
3558 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,16.

3559 D.5, 2 De inoficioso testamento; C.3,28 De inoficioso testamento.

3560 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., ed. 1764, Libelo na ação

confessória para pedir serventia, p. 6; Libelo na acção negatória para pedir serventia, p. 9.
3561 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,17.

3562 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,12. Excecionalmente, a reivindicação cabia à

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 1946. Outra ação real era a ação hipotecária, pela qual os credores
hipotecários pediam ao devedor ou a terceiros possuidores das coisas dadas em
hipoteca, o pagamento da dívida ou a entrega dessas coisas (Ord. fil.4,3) 3563. As
exceções oponíveis baseavam-se ou em circunstâncias relacionadas com a validade
ou permanência da dívida ou com o caráter subsidiário da garantia hipotecária, que
exigia que, antes de ser acionada, se esgotasse o património do devedor, como
garantia comum dos credores (privilégio de excussão prévia). Note-se que a ação do
devedor para obter de volta as coisas penhoradas, uma vez paga a dívida, era uma
ação pessoal, o que é consistente com a ideia de que o direito do credor sobre elas
era um verdadeiro direito real, tutelado por uma ação real.
§ 1947. Também no caso de o autor não-ser titular da propriedade plena, como
nos casos de domínio dividido (v.g. a enfiteuse), não estariam reunidas as condições
para usar da reivindicação direta, mas apenas da útil 3564. Esta aproveitava a qualquer
dos titulares do domínio dividido. No caso da enfiteuse, por exemplo, qualquer dos
donos (senhorios) podia reivindicar o senhorio de que não estivesse em posse, se
entendesse pertencer-lhe (o senhorio direto podia reivindicar o domínio útil e o
foreiro o senhorio direto). Havia quem entendesse que esta distinção era inútil, pois
as ações úteis apenas existiam devido a especialidades do sistema processual
romano e, na prática, tinham os mesmos efeitos.
§ 1948. Uma ação relacionada com a reivindicação era a de mera exibição da
coisa (ad exhibendum). O seu interesse era pequeno, já que se podia pedir a exibição
na petição da ação reivindicatória3565, embora houvesse casos em que o interesse
em que a coisa fosse exibida era autónomo (v.g. para exercer a opção ou escolha
entre várias coisas, quando se tivesse essa faculdade).
7.1.3.3 As ações pessoais.
§ 1949. Uma outra categoria de ações era a das ações pessoais.
§ 1950. As ações pessoais nasciam de uma obrigação pessoal, por sua vez
originada num facto lícito – contrato ou quase contrato - ou ilícito – delito ou
quase delito – embora esta enumeração de fundamentos da ação deixasse de fora
algumas causas de pedir3566.
§ 1951. A ação geral para pedir o cumprimento de um pacto era a actio ex
pacto3567. As exceções que lhe podiam ser opostas estavam relacionadas com factos
que afetassem a validade do contrato – como a invocação de erro, simulação, dolo,
coação -, a impossibilidade ou imoralidade da promessa -, o defeito de forma, a não
verificação de uma condição aposta no pacto (v.g. si nupseris, se casares) –, a
cessação da causa de dever – como o pagamento, a prescrição extintiva, a
verificação de uma condição resolutiva, etc..
§ 1952. Se a causa do débito era um contrato, a ação para o exigir era a ação
relativa a esse contrato (ação de mútuo, de escambo ou troca, de locação de obras,

mulher (Ord. fil. 4,48 e 60).


3563 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,18.

3564 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,11.

3565 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,9.

3566 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,1,3.

3567 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,19.

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etc.)3568. As ações derivadas de contrato (ex contractu) tinham uma estrutura


semelhante às ações ex pacto, apenas com uma ou outra especialidade. Sempre que o
pedido era certo (v.g. quantia certa [condictio certae creditae pecuniae], quantidade certa
de coisa genérica [v.g. condicito triticaria], coisa certa [condictio certae rei]), as acções
tomavam o nome e regime das condictiones, cuja particularidade era a de não
necessitarem de demonstratio3569, ou seja, de uma explicação sobre aquilo que o réu
devia fazer por força do contrato, pois bastava indicar no libelo a coisa ou quantia
certa por ele devida.
§ 1953. A defesa por exceção contemplava os casos de pagamento,
compensação com outro débito de sentido oposto, perdão ou prescrição extintiva.
A estes acresciam as exceções próprias de cada ação relativa a um contrato
específico. Como exemplo: para a ação por contrato de mútuo, existia a exceção de
violação do Senatusconsulto Macedoniano, que proibia o mútuo a menores (Ord.
fil.. 4, 50, 2).
§ 1954. O tribunal competente era o do lugar da celebração do contrato que
fundamentava a ação.
§ 1955. As ações provenientes de contratos eram estendidas para poderem ser
dirigidas contra réus com quem não se tinha celebrado qualquer contrato, como as
dirigidas contra o mandante de um contrato para lhe exigir as prestações
prometidas contratualmente pelo mandatário. Aqui, o fundamento da ação não era
o contrato, mas a equidade, que responsabilizava o mandante pelas promessas do
mandatário (ou procurador) desde que essas promessas estivessem dentro do
âmbito do mandato (actio quod iussum)3570.
§ 1956. No caso de ações por negócios formalmente semelhantes a contratos
(quasi contractus) e aos quais o direito conferisse os efeitos próprios desse contrato,
esses efeitos eram tutelados por ações pessoais especiais, denominadas pelo nome
da situação para a qual o direito concedia estas ações. Estas ações fundavam-se no
direito, e não no contrato, pois não havia contrato. Por exemplo, a gestão de
negócios sem contrato de mandato gerava ações (actiones negotiorum gestorum) que não
decorriam de contrato, pois não o tinha havido, mas diretamente do direito, que
concedia a ação em virtude da natureza da situação de facto. O gestor tinha uma
ação pessoal para pedir ao dono do negócio o ressarcimento por despesas feitas na
gestão ou por benfeitorias no negócio gerido, enquanto que o dono do negócio
tinha uma ação pessoal contra o gestor para pedir contas da gestão e para ser
indemnizado de prejuízos do negócio sofridos por dolo ou culpa do gestor 3571.
Havia outras situações em que a natureza da própria situação – neste sentido,
alguns falam de direito natural, ou de natureza das coisas - fazia com que o direito
criasse ações para sanar prejuízos injustos ou enriquecimento sem causa 3572. É o
caso de algumas ações (condictiones) famosas: condictio indebitii, para reclamar aquilo
que fora pago, por erro, sem ser devido; conditio ex lege¸ para revogar uma doação

3568 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,20.


3569 Inst. Gaii, 4.40.
3570 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,20,3. Tratava-se do mesmo tipo de fundamento

que responsabilizava os pais pelos negócios dos filhos no âmbito do pecúlio.


3571 D. De negotiis gestis (D.3,5; C.2, 28); Ord. fil. 4,99, 6.

3572 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,4.

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

por ingratidão do donatário (Ord. fil. 4, 63).


§ 1957. As ações praescriptis verbis eram um resíduo do formalismo do processo
civil romano. Destinavam-se a reclamar prestações devidas por contratos sem
nome no ius civile e em que, portanto, não podiam ser usadas as ações próprias de
um contrato previsto (com nome) na lei. Na sua proposição (fórmula; mais tarde,
libelo, petição inicial), relatava-se a situação de facto, justificando-se com ela o que
se pedia na ação (actiones in factum conceptae). Com a desformalização do direito
contratual, estas ações tornaram-se as mais comuns. No libelo, embora se pudesse
invocar um contrato determinado e enquadrar o pedido na ação respetiva, o que se
fazia era descrever a situação de facto ou citar as palavras do contrato feito,
justificando-se com isso o pedido ).
§ 1958. Certas ações participavam de características de ações reais e de ações
pessoais. Era o caso da ação de partilha, fundada num direito sobre as coisas, como
era o direito do herdeiro (ou legatário), mas também em obrigações pessoais de
fazer ou de prestar que recaem sobre o administrador da herança. Ou da ação de
divisão de coisa comum3573.
7.1.3.4 Interditos.
§ 1959. No conceito de ação cabiam também os interditos, ordens sumárias do
tribunal dirigidos a alguém para fazer ou se abster de certo comportamento ou,
vistas as coisas do ponto de vista do autor, pedidos dirigidos a um juiz para que tais
ordens fossem emitidas.
§ 1960. Os interditos relacionavam-se frequentemente com questões de posse,
enquanto esta não pudesse ser defendida por uma ação que averiguasse a substância
dos direitos sobre a coisa. Tratava-se, portanto, de medidas cautelares, que
asseguravam provisoriamente uma situação de facto existente, enquanto a sua
legitimidade não fosse discutida em juízo. Consoante a finalidade e conteúdo da
ordem judicial distinguiam-se em retinendae possessionis (para conservar a posse),
recuperandae possessionis (para recuperar a posse) ou adspiciendae possessionis (para a
entrega da posse).
§ 1961. No interdito retinendae possessionis ou uti possidetis (como possuis) o autor
pedia que o réu respeitasse a sua posse, tal como ela existia, enquanto não se
provasse judicialmente a sua insubsistência. Aplicava-se a direitos sobre coisas
móveis ou imóveis, ou sobre estados. Podia-se-lhe opor a exceção de que o réu era
proprietário ou tinha uma posse mais antiga ou melhor. Processava-se com menos
formalidades do que as do processo ordinário, podendo ser sumário quando se
temesse a força armada por parte do réu, caso em que se ordenava que ele se
abstivesse disso3574.
§ 1962. O interdito recuperandae possessionis (ou unde vi, onde houve força)3575
visava a recuperação da posse por alguém que dela tinha sido expulso pela força
(por exemplo, a expulsão violenta do colono ou rendeiro pelo senhor, cabendo
também ao proprietário negligente ou ausente cuja propriedade foi ocupada de má
fé ou cujos rendeiros não abandonassem o prédio arrendado no termo do

3573 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,624.


3574 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,30; Ord. fil. 3,48.
3575 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6, 31.

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contrato)3576. Este interdito não protegia apenas coisas imóveis, mas também coisas
móveis e incorporais como a jurisdição, a honra ou qualquer outro direito 3577. Na
prática foi introduzida a ação de esbulho, para reintegrar na posse aquele que
tivesse sido objeto de esbulho (força nova)3578. Ambos os expedientes processuais
eram sumários, bastando a narração dos factos.
§ 1963. O prazo para a sua instauração era de ano e dia3579.
§ 1964. O interdito adipisciendae possessionis destinava-se a pedir a entrega da
posse dos bens da herança, sempre que esta estivesse na posse de outrem que não o
testamenteiro3580. O possuidor podia opor todas as exceções que invalidassem a
sucessão (v.g. não falecimento do de cujus) ou o título sucessório (nulidade do
testamento ou cláusula testamentária, falta de qualidade de sucessor por parte do
autor), bem como a não pertença do bem à herança.
§ 1965. Havia outros interditos. Destacam-se, pela sua frequência na prática, os
que visavam acautelar a disciplina jurídica das edificações urbanas, disciplina que
decorria ou de regulamentações camarárias ou dos direitos dos prédios vizinhos
(direitos à luz e sol, às vistas, à privacidade, à proteção contra as chuvas que caiam
dos beirados vizinhos). O interdito de denunciação de obra nova (operis novi
nuntiatio)3581 pedia que o juiz intimasse o que estava a construir um edifício para
parar a obra enquanto não se provasse que tinha o direito de construir por não
haver impedimentos públicos (edilícios) ou particulares (nomeadamente,
impedimentos por direitos dos vizinhos). Este interdito só podia ser intentado
durante a obra, sendo substituído por um outro, este para pedir a demolição de
construção feita às escondidas ou usando de violência sobre o possível denunciante
(quod aut vi aut clam3582), se a obra já tivesse terminado. O edificante podia continuar
a obra se prestasse caução para garantir que a demoliria caso fosse considerada
contra o direito3583.
7.1.4 Conclusão.
§ 1966. As ações tratadas por Pascoal de Melo correspondem às referidas por
Manuel Mendes de Castro ou por Gregório Martins Caminha. Já estes, que ainda se
acomodavam à ordem romana de exposição, notavam como o tratamento da
matéria processual segundo os nomes e classes do direito romano se tinha tornado
artificial no foro . Com o desuso do formalismo processual romano - que obrigava
a indicar, na petição inicial (libelo) o tipo de ação que se pedia -, o meio processual
que o tribunal iria desencadear passou a decorrer apenas da própria narração dos
factos feita pelo autor na petição. Se lermos as fórmulas de libelo de Caminha,
verificamos que elas nada contêm sobre os meios de direito para satisfazer o autor,
apenas descrevendo os factos e enunciando a pretensão do autor. Nesse sentido,

3576 C. De adquirenda vel amittenda possessione (C.7.32; D.41.2).


3577 Cf. Domingos Antunes Portugal, De donationibus [.], cit., p. 2, cap. 13, n. 139.
3578 Ord. fil. 3,48.

3579 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1. dec. 82, n. 3.

3580 Cf. Manuel Mendes de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., 4, cap. 10, n. 3.

3581 D.39, 1, 12; Ord. fil. 1,66, 23 e 25; 3, 78, 4. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,33.

3582 D.43.24 Quod vi aut clam,3-4.

3583 V. L. de 24.7.1713.

572
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

todas as ações eram modeladas pelos factos (todas eram in factum conceptae). E,
assim, os dados de facto alegados podiam desencadear várias ações
cumulativamente, que se desenrolariam à medida que a averiguação mais detalhada
e certa dos factos se fosse verificando3584. Era o chamado concurso de ações, que se
ia simplificando com o apuramento dos factos e a verificação da insubsistência de
algumas delas. O processo deixara de ter uma espessura e dinamismo próprios, em
que um rito processual gerava “magicamente” um resultado material; passando,
progressivamente, a constituir um meio instrumental, adjetivo, para efetivar
pretensões tuteladas pelo direito (substantivo).
7.1.5 Os elementos do processo.
§ 1967. Independentemente dos modelos tradicionais a que obedeciam os
meios processuais (ações, interditos), a forma de discutir juridicamente uma causa e
de a decidir – o juízo 3585, a palavra que então designava o que hoje chamamos de
processo - tinha certos elementos comuns, algo que parecia corresponder a uma
ordem natural de processar uma pretensão jurídica. Foi sobre esta ideia que se
construiu a noção de que existia um processo ordinário (ou comum) e uma teoria
unificada do processo3586.
§ 1968. No clássico Vocabularium iuris (1559), de Antonio de Nebrija, registam-
se vários sentidos da palavra “juízo” (iudicium), sendo o correspondente ao que nos
interessa o seguinte: “instância ou ordem de discutir uma causa em direito, perante
o juiz […] É um ato legal de três pessoas, ou seja, o juiz, o autor e o réu, incidindo
sobre a mesma questão e sobre o mesmo juízo” (“instantia vel ordinatione causae
discutendae in iure coram iudicem […] Est actus legitimus trium personarum,
scilicet iudicis, actoris, & rei, super eadem quaestione aut super eodem iudicium
contractus”), v. “iudicium”). Cerca de um século depois, um dicionarista português
famoso define o juízo “como que a posição jurídica, na qual é discutida a justiça [de
uma situação] por aquele que tem jurisdição” (“Dicitur iudicium quasi iuris status,
quo discutitur justitia ab illo, qui habet iurisdictionem [...]”)3587. Já na segunda
metade do séc. XVIII, a definição é similar: “a discussão jurídica de uma causa e a
sua decisão feita por juiz competente” 3588. Os juízos eram classificados segundo as
causas, as pessoas dos litigantes, e os modos de litigar, sendo, por isso, cíveis ou criminais,
eclesiásticos ou seculares, ordinários ou sumários.
§ 1969. Os elementos necessários de qualquer juízo eram: (i) uma certa ordem
processual, pela qual se decidia o modo de discutir; (ii) um juiz competente; (iii)
autores e réus3589.
7.1.6 A ordem do processo.
§ 1970. A ordem processual podia ser de direito natural, válida para todas as
causas, estabelecendo tudo aquilo que, por natureza, devesse fazer parte de uma
controvérsia jurídica. A ordem processual civil compreendia, para além disto, as

3584 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,6,34.


3585 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,1.
3586 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,2.

3587 Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Iudicium”.

3588 A definição é de Heinéccio, citada por Pascoal de Melo.

3589 Ord. fil. 3,20, Pr.

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particularidades estabelecidas por um direito específico de uma cidade ou reino.


Elementos processuais indispensáveis (naturais) eram: (i) a propositura da ação
(libelo, petição inicial); (ii) o chamamento a juízo (in ius vocatio, citação); (iii) a
resposta do réu (contestação, defesa; podia seguir-se a réplica do autor e a tréplica
do réu); (iv) a prova; (v) o termo para a defesa apresentar as suas provas; (vi) a
decisão3590.
7.1.6.1 O processo ordinário.
§ 1971. O processo ordinário era o processo comum, tal como ele resultava das
Ordenações.
§ 1972. Embora houvesse especialidades para o processo criminal, o caráter
comum do processo civil fazia com que este fosse o regime supletivo no processo
criminal, sempre que não houvesse uma determinação especial para este. Adiante se
especificarão as suas fases, no direito português 3591 (v. caps. 7.1.6.1, 8.1.6).
7.1.6.2 O processo sumário.
§ 1973. A forma processual mais próxima do processo natural era o processo
sumário.
§ 1974. O processo sumário3592 aplicava-se às causas que requeressem um
processamento rápido, ou pela urgência de decisão ou pelo seu exíguo valor. Nestes
casos, as formalidades deviam ser apenas as da ordem natural do processo 3593.
Como o seu âmbito de aplicação não estava expressamente determinado, a
circunscrição da ordem sumária dependia da doutrina, que aí incluía as ações
prévias ou prejudiciais, as cambiais, as agrárias, as politicas (de polícia), as
possessórias, as executivas, as de obras pias, as de pequena importância e as
notórias. Ou seja, as preparatórias ou conclusivas de outras, as de pequena monta
ou muito simples (como aquelas em que o resultado fosse notório) e aquelas em
que a rapidez fosse um valor essencial (como acontecia nas cambiais ou, na fase
final do Antigo Regime, as relacionadas com o governo político).
§ 1975. A principal fonte para a determinação das formalidades do processo
sumário era uma constituição pontifícia compilada nas Clementinas (Clem.5,11,2
Saepe contingit)3594, que determinava as formalidades que se deviam manter e as que

3590 Para a ordem judiciária romana justinianeia, que veio substituir o agere per formulas, v. Nov. 53,

c. 3; Nov. 112, c. 2 e 3. Mais influente no processo medieval e moderno foi a ordem processual do
direito canónico, contida nas Decretais (l. II). Cf. as leis pelas quais são recebidos em Portugal e
sucessivamente modificados os modelos processuais do direito comum (L. 21.7.1310, L. 15.9.1352, em
Ord. af. 3,20; Ord. man. 3, 15; L. 5.7.1526, Leis extravagantes de Duarte Nunes de Leão; Ord. fil. 3,20).
3591 V. Ord. fil. 5,117 ss..

3592 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., Acções sumárias, p. 1, cap. 5, n. 2 ss.;

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,13.


3593 Fixada nas Ords. Para a assignação de 10 dias, Ord. fil. 3,25.

3594 Clem.5,11,2: “Saepe contingit causas committimus, & in earum aliquibus simpliciter & de

plano, ac sine strepitu, & figura iudicii procedi mandamus: de quorum significatione verborum a multis
contenditur, & qualiter procedi debeat dubitatur. Nos autem dubitationem hujusmodi (quantum nobis
est possibile) desidere cupoientes hac in perpetuum validatura constitutione sancimus, ut iudex, cui
taliter causam committimus, necessario libellum non exigat, litis contestationem non postulet, tempore
etiam feriarum ob necessitates hominum indultarum a iure, procedere valeat: amputet dilationum
materiam, litem quantum poterit faciat breviorem, exceptiones, appelationes dilatorias & frustratorias
repellendo: partium advocatorum & procuratorum contentiones & iurgia, testisque superfluam

574
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

podiam ser omitidas ou simplificadas. A manter eram: a citação, a petição escrita, o


juramento de dizer a verdade (juramento de calúnia ou de malícia), os
procedimentos de prova (embora simplificados), a sentença escrita. Todos os
outros atos processuais podiam ser simplificados ou omitidos: acusação de parte,
contestação da lide, prazos processuais, número de testemunhas, exceções dilatórias
ou peremptórias. Porém, se se baixasse para além deste mínimo de formalidades, o
tratamento da questão deixava de corresponder a um processo jurídico (sine figura vel
forma iudicii). Quando muito, poder-se-ia chamar um processo “tumultuário”, o que,
na verdade, não correspondia a processo algum.
7.1.7 Os elementos necessários do juízo.
§ 1976. Entre os elementos do juízo, destacam-se os seguintes.
7.1.7.1 Autor.
§ 1977. O autor3595, que é aquele que intenta ação para obter algum benefício,
seja este uma coisa (nas ações reais) ou uma prestação de alguém (nas ações
pessoais)3596.
§ 1978. A capacidade processual ativa era a regra. A incapacidade, a exceção,
que devia estar expressa na lei. Entre as incapacidades processuais ativas contavam-
se as que atingiam: os banidos (Ord. fil.5,126,7), os excomungados (Ord. fil.3,49), os
menores e os filhos família (ou equiparados, como as mulheres casadas, em ações
sobre todos os bens que não fossem próprios seus), agindo por si sós (Ord. fil. 3,41)
(v. cap. 3.2.4), os magistrados, na área da sua jurisdição (Ord. fil.3,9). Embora a
propositura da ação dependesse da vontade do autor, em certos casos podia-se ser
demandado para que se propusesse uma ação: por exemplo, o alegado escravo
podia citar o alegado senhor para que propusesse uma ação contra ele para provar a
sua qualidade servil. Também o fiador podia citar o credor para que intentasse uma
ação contra o devedor principal para provar o seu crédito.

multitudinem refraenando. Non sic tamen iudex litem abbreviet, quin probationes necessariae, &
defensiones legitimae admittantur. Citationem vero ac praestationem iuramenti de calumnia vel malicia,
sive de veritate dicenda, ne veritatis occultetur, per commissionem hujusmodi intelligimus non excludi.
Verum quia iuxta petitionis formam pronuntiatio sequi debet, pro parte agentis, et etiam rei, si quid
petere voluerit, est in ipso litis exordio petitio facienda, sive in scriptis, sive verbo, actis tamen continuo
(ut super quibus positiones & articuli formari debeant, possit haberi plenbior certitudo, & ut fiat
deffinitio clarior) inferenda. Et quia positiones ad faciliorem expeditionem litium propteer partium
confessiones & articulos ad clariorem probationem usus longaevus in causis admisit. Nos usum
hujusmodi observari volentes, statuimus, ut iudex sic deputatus a nobis (nisi aliud de partium voluntate
procedat) ad dandum simul utrosque terminum dare possit, & ad exhibendam omnia acta & munimenta
quibus partes uti volunt in causa post dationem articulorum diem certam, quandocunque sibi videbitur,
valeat assignare: eo salvo, quo ubi remissionem fieri contingeret, pro testibus producentis possint etiam
instrumenta produci, assignatione hujusmodi non obstante. Interrogabit etiam partes, sive ad earum
instantiam, sive ex officio ubicunque hoc aequitas suaderit. Sententiam vero deffinitivam (citatis ad id
licet non peremptorie partibus) in scriptis, & (prout magis sibi placuerit) stans, vel sedens proferat: etiam
(si ei videbitur) conclusione non facta, prout ex petitione, & probatione, & aliis actitatis in causa fuerit
faciendum. Quae omnia etiam in illius casibus, in quibus per aliam contitutionem nostram, vel alias
procedi potest simpliciter & de plano, ac sine strepitu & figura iudicii, volumus observari. Si tamen in
praemissis casibus solemnis ordo iudiciarius in toto vel parte non contradicentibus partibus observetur,
non erit processus propter hoc irritus, nec etiam irritandus. Data Avinione 13 Kalen. Decembris,
Pontificatus nostri anno secundo. FINIS” (http://digital.library.ucla.edu/canonlaw /librarian?
ITEMPAGE=CJC3&PREV).
3595 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 1, c. 2.

3596 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,15.

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§ 1979. O autor devia limitar-se a pedir aquilo que era autorizado pelo direito,
embora o conteúdo deste fosse sempre controverso. Por isso, a petição claramente
abusiva – pelo seu montante, por antecipação no tempo, ou por não se ter realizado
a condição a que a dívida estava sujeita - era penalizada, podendo implicar a
condenação agravada nas custas (singela ou agravada, v.g. dobro ou “tresdobro”,
i.e. três vezes)3597. Um outro meio de limitar a litigância excessiva era obrigar o
autor a prestar caução pelas custas, a pedido do réu (Ord. fil.3,20,6).
7.1.7.2 O réu.
§ 1980. O segundo elemento do processo era o réu, aquele de quem se exigia
um comportamento3598.
§ 1981. A capacidade processual passiva abrangia todos os que podiam
administrar os seus bens. Como o direito de defesa era considerado um direito
natural, a incapacidade passiva era mais restrita do que a ativa; e, assim, os
excomungados (Ord. fil.3,49) e os banidos (Ord. fil.5,126,7) podiam estar em juízo
para se defenderem.
7.1.7.3 O juiz (competente).
§ 1982. Finalmente, o juiz era o magistrado ou homem bom 3599 constituído por
autoridade pública no poder de julgar uma ação (v. cap. 2.6). Como era um
magistrado da república, o seu comportamento devia exprimir disponibilidade para
com todos, mas, ao mesmo tempo, uma gravidade e serenidade que excluíam a
excessiva familiaridade e a leviandade de gestos e postura 3600.
§ 1983. O juiz dispunha de competências que não dependiam de pedido das
partes (ex offcio) e que correspondiam àquilo que se chamava o seu officium nobile: dar
ordem ao processo, averiguar a verdade, administrar a justiça. Daqui decorria que
devesse interrogar os litigantes e testemunhas no que fosse relevante para a causa,
rejeitar os pedidos não pertinentes ou formulados de forma obscura, recusar
testemunhas inábeis, não permitir alegações contra o direito ou feitas de maneira
conflituosa, não permitir manobras dilatórias. Para além disso, tinha que julgar
estudar a causa (Ord. fil.3,66,pr.), em conformidade com o direito (Ord. fil.1,5,4) e
com os factos que estivessem nos autos (Ord. fil. ibid.). Podia ainda suprir ex officio
deficiências formais do processo. A pedido das partes, i.e. no exercício do seu
officium mercenarium, o juiz podia praticar todos os atos que fossem reclamados pelo
interesse de um só dos contendores. E, assim, tratando-se de atos deste tipo, só os
podia praticar sendo requerido 3601. Vigorava quanto a estes atos, em pleno, o
princípio do acusatório, que considerava os atos processuais como expedientes
exclusivamente na disposição das partes.
§ 1984. Os juízes podiam ser ordinários ou delegados.
§ 1985. Os juízes ordinários eram os que detinham uma jurisdição ordinária ou
própria, sendo esta a que tivesse sido conferida, pelo povo, por costume ou

3597 Ord. fil. 3,34-36; C.3,10 De plus petitionibus.


3598 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 47,18.
3599 Aquele que cumpre os seus deveres, o seu officium.

3600 Cf. D.1,18 De officio praesidis, 19.

3601 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,22, com exemplos.

576
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

determinação do príncipe ou de uma coletividade (universidade), para o


conhecimento perpétuo (em todo o tempo) de todas as causas ou de negócios. A
definição provinha da glosa e comentários (nomeadamente de Bártolo), ao texto do
Digesto, 2, 1, De iurisdictione, L. 5, more maiorum. Era como que uma jurisdição
própria e universal, apenas restringida pelo universo do corpo a que dizia respeito
(o reino, uma certa circunscrição territorial, uma certa corporação) 3602. Se houvesse
vários juízes concorrentes, seria ordinário o que se antecipasse aos outros no
conhecimento da questão (prevenindo a jurisdição, efetuando a citação antes dos
outros).
§ 1986. Os juízes delegados eram aqueles que apenas dispunham de jurisdição
especialmente delegada por um juiz ordinário 3603. Como especial, a jurisdição do
juiz delegado estava delimitada pela carta de delegação, não podendo ser estendida
a outros casos (nomeadamente, prorrogada), nem subdelegada3604). Como delegada,
podia ser avocada pelo delegante, era exercida em nome destes e dava recurso para
ele3605.
§ 1987. O juiz (o foro) devia ser competente para conhecer da causa. O foro era
competente em razão das causas gerais que determinavam o foro: domicílio, lugar
3606
do contrato, situação da coisa litigada, lugar de prática do ato ilícito em causa . O
foro geral era o do domicílio do réu. O foro do domicílio (próprio) era o lugar da
residência. Portanto, era no tribunal do concelho de residência do réu que ele devia,
por princípio, ser demandado. Quando ele fosse demandado na qualidade de como
que extensão de outra pessoa (o herdeiro, em vez do de cujus; a viúva, em vez do
falecido marido) seguia-se o foro dessa pessoa. Quem tivesse dois domicílios tinha
dois foros e quem não tivesse nenhum (vagabundos) podia ser demandado onde se
encontrasse. Além do foro do domicílio próprio, todos os naturais de um reino
tinham como foro comum (patria communis) o tribunal régio, onde podiam ser
demandados, se se encontrassem na cidade onde este sediasse 3607. O lugar do
contrato fixava aí o foro, porque se entendia que isso fora tacitamente
convencionado3608. Todavia, era necessário que o réu aí se encontrasse 3609.
§ 1988. Nas ações reais, o foro era determinado pelo lugar da coisa (Ord.
fil.3,11,5-6; 45,10). E nas criminais, pelo lugar de prática do delito (Ord. fil.1,76,1; 3,
6, pr. e 4).
§ 1989. A jurisdição (ou foro) podia ser prorrogada, quando as partes
pacticiamente acordassem sujeitar a causa a uma jurisdição diferente daquela em
que se tinha apresentado a petição inicial 3610. Ou, por disposição da lei, quando a
ação (reconventio) nascia de uma outra anterior (conventio), como nos casos em que, no

3602 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 2, c. 2.


3603 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 2, c. 3.
3604 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 52, n. 11.

3605 Cf. cap. 2.3. Enumeração dos juízes (jurisdições) em Portugal, Manuel Mendes de Castro,

Practica lusitana […], liv. 1, cap. 2. Iudicibus hujus regni.


3606 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,23.

3607 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,25-26.

3608 Ord. fil. 3,6,2; 2,1-3,

3609 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,27.

3610 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,30. Cf. cap2.3.

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mesmo processo e pela mesma causa, o réu pede algo contra o autor (non ego in te sed
tu contra me)3611.
§ 1990. Estas regras de determinação do foro competente podiam ser afastadas
por privilégios de foro. Estes podiam ser em razão da causa ou em razão da pessoa.
Os primeiros prevaleciam sobre os segundos.
§ 1991. Na sociedade de ordens de Antigo Regime, os privilégios pessoais eram
inúmeros, estabelecendo foros especiais para certos estados. Na prática, era
impossível enumerá-los exaustivamente, sendo também muito controversa a sua
ordem hierárquica. Isto era uma das causas da confusão jurisdicional, contra a qual,
no séc. XVIII, reagem os juristas iluministas. Em Portugal, Pascoal de Melo
escreve: “[…] segundo eu posso entender, nada mais funesto se pode conceber
para a República que este privilégio do foro, pois, além de as demandas se
tornarem imortais, difíceis e complicadas, por se costumarem pôr infinitas
dúvidas sobre a competência de tal privilégio, que coisa há, pergunto, mais
alheia às razões da justiça e humanidade do que fazer vir de longe à Corte, os
agricultores, artífices, etc.? E sobretudo a requerimento dos mais poderosos que
aí moram, e aí desfrutam de muita autoridade e abundam em muitas
riquezas?”3612.
§ 1992. Causas privilegiadas eram: as “meramente eclesiásticas”, que incidiam
sobre matérias espirituais (Ord. fil.2,20,pr.); as da almotaçaria, que pertenciam à
jurisdição dos almotacés (Ord. fil.2,1,20); as do fisco (Ord. fil.1,9-10; 3,5,5); e as que,
por determinação do rei, geral (lei) ou especial (privilégio), fossem cometidas a
certo juiz.
§ 1993. Em Portugal, tinham ainda privilégio de foro, nas ações em que fossem
autores, nomeadamente: (i) os clérigos3613; (ii) os cavaleiros das ordens militares 3614 -
nas causas criminais, pois nas cíveis seguiam o foro comum 3615; (iii) os cavaleiros de
Malta, em todas as causas3616; (iv) os soldados, nas causas crime (só após os alvs.
24.10.1764 e 14.2.1772, sobre a jurisdição do Conselho de Guerra); (v) os
estudantes da Universidade de Coimbra (Ord. fil.3,12,1). Gozavam de foro
privilegiado, como autores ou como réus: (i) os moedeiros (Ord. fil.2,62, Alv.
25.5.1733); (ii) os desembargadores (Ord. fil.1,1,8,6; 2, 59,10-13; 3, 5, pr.); (iii) os
juízes deputados, oficiais e tesoureiros do Tribunal da Bula da Cruzada3617; (iv) os
menores órfãos de pai, as viúvas, as mulheres (honestas) e as pessoas miseráveis
(Ord. fil.3,5,3 e 5), que podiam escolher ou o juiz ordinário do lugar, ou o
Corregedor do Cível da Casa do Porto, como juiz das auções novas (Ord. fil.3,39,5), ou

3611 Cf. Cassiano Malacarne, “A reconventio: uma exceção canônica ao privilégio do foro eclesiástico

e sua regulamentação em Portugal no começo do século 14”, em


http://www.revistas.ufg.br/index.php/Opsis/article/view/18355/12830#.UaydKEDvuuI.
3612 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,7,32.

3613 Em que casos respondiam perante os juízos seculares, cap. 77. Competência dos tribunais

seculares sobre eclesiásticos (Ord. fil..2,1; comentário em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit.,
tom. 8, ad Ord. fil.2,1); António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 77. Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 1,30,2.
3614 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3,48.

3615 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 1,11,12.

3616 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 3,54.

3617 Cf. o seu Regimento de 10.5.1634, § 84.

578
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

os Corregedores do Cível da Corte. Este privilégio não valia contra privilégios em


razão da causa (v.g. fiscais ou de almotaçaria); nem aproveitava aos privilegiados
nos litígios com outro privilegiado mais forte, como os desembargadores (Ord.
fil.2,59,13)3618.
§ 1994. Os privilégios de foro davam origem a foros (juízos ou tribunais)
privilegiados, para julgar as causas isentas da jurisdição comum.
§ 1995. O mais importante foro privilegiado era o foro eclesiástico (v. cap.
2.4.4.4)3619, sempre objeto de contestação e de tentativas de limitação pela coroa e
pela literatura jurídica regalista, cujo principal representante em Portugal é Gabriel
Pereira de Castro, especialmente pela sua obra Tractatus de manu regia, de 16223620.
Os principais argumentos da controvérsia podem ver-se no “duelo escolástico”
entre este autor e Francisco Suarez3621.
§ 1996. O foro eclesiástico era o foro comum para as causas eclesiásticas, ou em
razão da matéria (“meramente eclesiásticas”) ou em razão das pessoas3622.
§ 1997. O principal tribunal eclesiástico era o tribunal ordinário do bispado
(câmara episcopal, cúria episcopal, tribunal do bispo, tribunal da mitra). Apesar da
tendência tardia de não reconhecer aos juízos episcopais uma ordem processual
especial, a doutrina jurídica anterior aos meados do séc. XVIII defendia que, nos
tribunais eclesiásticos, vigorasse o processo canónico ordinário3623. Este conhecia
um conjunto de ações que não existiam no foro secular, relacionadas com as suas
competências (nomeadamente, causas relativas a esponsais ou matrimónios) e tinha
procedimentos processuais específicos3624.
§ 1998. Os bispos tinham jurisdição eclesiástica ordinária sobre os fiéis das suas
dioceses3625. Nos casos de foro misto, exerciam a jurisdição se os tribunais
episcopais se adiantassem aos tribunais seculares no conhecimento da causa
(prevenção, praeventio).
§ 1999. No exercício das suas funções jurisdicionais, os bispos eram
assessorados por outros oficiais. O principal oficial de justiça dos bispos era,
porém, o vigário geral, que atuava como delegado do bispo para as questões de
justiça eclesiástica3626. Os vigários gerais tinham uma competência muito extensa, a

3618 A lei também podia restringir o privilégio em certas situações; por exemplo, não o concedendo

à viúva que fosse donatária de bens da coroa (Ord. fil. 2,35,5), ou que tivesse renunciado ao privilégio.
3619 Cf. António Manuel Hespanha, “O Poder Eclesiástico. Aspectos Institucionais”, em José

Mattoso (dir.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). v. 4. cit.; José Pedro Paiva, Os bispos de
Portugal e do Império (1495-1777), cit.; Patricia Ferreira dos Santos, Carentes de justiça, cit.; Pollyanna
Gouveia Mendonça, Parochos imperfeitos: Justiça eclesiástica e desvios do clero no Maranhão colonial, cit., max. p. 43
ss..
3620 Que, no entanto, viu a sua impressão suspensa por ordem régia, até que se expurgasse de

matérias que ofendiam as pretensões jurisdicionais do rei (v. alv.de 20.5.1622, no início). Em 1640, a
obra é incluída no Index, como acontece, no Index romano, com todas as obras de cariz regalista.
3621 Patricia Ferreira dos Santos, Carentes de justiça: juízes seculares e eclesiásticos […], cit., p. 71 ss..

3622 Cf. sobre os juízos eclesiásticos, Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib.

2); Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, caps. 50 ss..
3623 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (= liv. 2).

3624 Sobre eles, Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, caps. 56 a 74.

3625 Cf. Conc. Trento, sess. 6, De reformat. cap. 5; sess. 14, cap. 2; Manuel Mendes de Castro, Practica

lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 1; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 8, disp. 18.
3626 Oficiais subalternos eram o promotor, o escrivão da câmara, o notário apostólico, o

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ponto de alguma doutrina os equiparar a juízes eclesiásticos ordinários 3627. No


entanto, parece que, em rigor, não era assim. Nem a sua competência era geral, pois
não compreendia as causas matrimoniais e criminais, reservadas aos bispos, nem
davam justiça em nome próprio, mas antes em nome do bispo 3628, pelo que o bispo
tinha sempre o poder de avocar e confirmar as suas decisões 3629.
§ 2000. No âmbito da diocese, havia outros juízes eclesiásticos. Podia, desde
logo, haver outros vigários episcopais (vigários forenses, ou da vara), que eram
juízes delegados para causas especiais3630. Mas também o juízo dos abades, prelados
inferiores aos arcebispos, que podiam deter jurisdição eclesiástica por costume ou
privilégio3631, com o âmbito determinado por tal direito especial (normalmente, o
de uma comunidade regular). Em todo o caso, não podiam exercer a sua jurisdição
sobre causas matrimoniais e criminais, reservadas aos bispos 3632 e a sua jurisdição
era cumulativa com a destes, sendo exercida por uns ou outros de acordo com a
regra da prevenção3633. O bispo podia ter um vigário geral, separado, para os
assuntos meramente espirituais, a que se chamava provedor (provisor) 3634; mas,
geralmente, era o vigário geral que acumulava estas atribuições.
§ 2001. Em alguns bispados havia uma mesa de juízes eclesiásticos, ou
assessores dos bispos, reunindo estes magistrados episcopais. A sua existência,
competência e funcionamento vinham regulados nas constituições do bispado 3635.
Os tribunais episcopais eram designados, por vezes, por tribunais da mitra. Nos
casos em que os bispos gozassem também de jurisdição secular, como senhores de
terras (como era, por exemplo, o caso dos bispos de Coimbra, a quem os reis
tinham concedido senhorios), havia uma certa confusão entre a jurisdição senhorial
do bispo e a sua jurisdição eclesiástica, ambas residindo no tribunal episcopal3636.
§ 2002. Os arcebispos dispunham, além da jurisdição episcopal ordinária, para
conhecimento de causas em primeira instância, de uma jurisdição ordinária de
recurso (em apelação), que abrangia os fiéis das dioceses sufragâneas 3637. Por isso,

distribuidor, o inquiridor, o contador, os meirinhos, com funções semelhantes aos seus correspondentes
nos tribunais seculares. Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 54.
3627 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 52, ns. 3 a 5 (o vigário geral faz

tribunal com o bispo e é juiz ordinário). Atribuições dos vigários gerais, ibid. cap. 53.
3628 “Vicarius generalis venit sub nomie ordinarii”, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv.

8, disp. 10, § 4, n. 4; no entanto, “potest omnia quae episcopus, exceptis iis quae sunt ordinis
episcopalis”, ibid. n. 6; sobre os limites das suas competências jurisdicionais, ibid. n. 15.
3629 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 3, n. 2.

3630 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 52, n. 6.

3631 Cf. Conc. Trento, sess. 24, De reformat. cap. 20; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […]

ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 2, n. 5.


3632 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 2, n. 6.

3633 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 2, n. 7; João

Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 2, liv. 11, disp. 24.


3634 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, c. 52, n. 14; também Manuel

Álvares Pegas, Resolutiones forenses […], cap. 18.


3635 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 52, n. 16.

3636 Sobre a Mitra de Coimbra e a sua jurisdição, v.


http://www.uc.pt/auc/fundos/ficheiros/DIO_MitraEpiscopalCoimbra, 21.3.2014.
3637 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 5, n. 13; João

Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., 2, liv. 7, disp. 17.

580
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

as relações eclesiásticas, instituídas nas arquidioceses (ou sés metropolitanas),


julgavam os recursos dos tribunais episcopais 3638.
§ 2003. O Tribunal da Legacia ou Tribunal da Nunciatura Apostólica (ou do
Collector) era um tribunal de recurso das sentenças dadas nas causas eclesiásticas das
metrópoles e dos isentos. Julgava em 2ª instância as causas eclesiásticas das
metrópoles e dos isentos, e em 3ª instância as das outras dioceses 3639. Constituiu-se
por Breve de Júlio 3, em 21 de Julho de 1554, para evitar a expatriação da jurisdição
e diminuir os recursos à Santa Sé3640. O primeiro Legado da Santa Sé em Portugal
foi o Cardeal D. Henrique. Do Juízo da Nunciatura recorria-se para a coroa.
Interposto recurso, devia o juiz Eclesiástico (ainda que fosse o núncio, ou o seu
auditor) cumprir imediatamente a sentença, mandando reparar a usurpação ou
violência. Os principais órgãos eram o núncio apostólico, o auditor geral das causas
ou auditor da legacia, o juiz comissário (executor das causas e negócios), o notário e
o escrivão. Este tribunal foi extinto por Decreto de 23 de Agosto de 18333641..
Dado que a sua competência era apenas de recurso, este juízo não se devia imiscuir
– sob pena de recurso de “proteção régia” – na jurisdição dos juízes ordinários
eclesiásticos, avocando causas em 1ª instância, visitando mosteiros isentos ou
sujeitos ao ordinário, intervindo no governo das ordens religiosas 3642. A política
regalista, sobretudo na segunda metade do séc. XVIII, tendeu a reduzir e fixar a
jurisdição deste tribunal. Assim, circunscrevia a sua jurisdição aos casos
expressamente previstos nas cartas que lhe fossem concedidas pelo rei, dando
recurso extraordinário para o Desembargo do Paço, ou ordinário para os Juízes dos
feitos da Coroa da Casa da Suplicação no caso de abuso de jurisdição. Para além de
que se lhe proibia a imposição de censuras aos magistrados temporais e a execução
das sentenças, sem recurso ao auxílio do braço secular 3643.
§ 2004. Também a capela-mor real tinha o seu juízo eclesiástico especial, o do
capelão-mor da capela real3644, com jurisdição cível e criminal sobre os eclesiásticos
membros da capela, em virtude de concessões papais (de Leão X, Clemente VII,
Júlio 3 e Pio IV3645). A sua jurisdição era cumulativa com a jurisdição temporal

3638 Cf. para a da Bahia (criada em 1676), Regimento do Auditório Eclesiástico, do Arcebispado da Bahia,

metrópole do Brasil e da sua Relação, e Oficiais da Justiça Eclesiástica, e mais cousas que tocam ao bom Governo do dito
Arcebispado, ordenado pelo Ilustríssimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide, São Paulo, Typographia 2 de
dezembro, 1853, p. 5-148.
3639 Tratava-se de um recurso extraordinário (súplica, de terceira instância), teoricamente dirigido

ao Papa, mas julgado por este seu legado. Cf. cap. 1, § 6, n. 15; João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p.
2, liv. 4, disp. 10; António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 79.
3640 António Manuel Hespanha, “O Poder Eclesiástico. Aspectos Institucionais”, em, José Mattoso

(dir.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807), v. 4. cit., 288; Graça Salgado (coord.). Fiscais e
meirinhos […], cit.. 119-120.
3641 V. http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4335877.

3642 A não ser no caso em que estes fossem negligentes, conforme as disposições do Conc. Trento,

sess. 24, De reformat, cap. 20; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, §
6, n. 15.
3643 Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit., de 1647); Gabriel Pereira de

Castro, De manu regia tractatus […], cit., de 1622-1625; António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit.,
p. 1, c. 78; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,7,34.
3644 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cit., cap.1, § 3; Jorge de

Ataíde, Privilegia, facultates, jurisdictiones [...] Cappelani maioris regio, cit..


3645 Jorge de Cabedo, De patronatibus […], cap. 43.

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(neste caso, dos corregedores da corte da Casa da Suplicação) 3646.


§ 2005. Um juízo eclesiástico mais relevante era o do Juiz das Três Ordens
Militares
Gozava de jurisdição crime3647 eclesiástica sobre os cavaleiros-comendadores3648
dessas ordens, como pessoas eclesiásticas, e sobre as comendas, como benefícios
eclesiásticos3649, por concessão Pio IV (papa de 1559-1565) aos reis de Portugal,
como grão-mestres das Ordens e delegados ad hoc do Papa.
§ 2006. Também os cavaleiros da Ordem Militar de S. João de Jerusalém (do
Hospital ou de Malta) dispunham de um juízo privativo3650 que conhecia
privativamente das causas acerca de pessoas ou coisas da ordem 3651. Neste caso, e
ao contrário do que acontecia com o juiz das outras ordens militares, o foro
privativo incluía as ações crimes e cíveis.
§ 2007. Um outro juízo eclesiástico era o da Bula da Cruzada, que conhecia das
questões referentes a este imposto, como as relativas à cobrança das suas rendas 3652.
A instância jurisdicional era o Tribunal ou Junta da Bula da Cruzada, que conhecia,
por apelação ou agravo, das decisões dos Comissários da Bula, bem como dos
recursos das decisões dos provedores, quando atuassem como juízes especiais dos
oficiais e pessoas privilegiadas da Bula (alv. De 28.9.1761).
§ 2008. Finalmente, o Tribunal da Inquisição (do Santo Ofício da Inquisição),
com competência exclusiva em matéria de heresia, apostasia, blasfémia e sacrilégio,
bem como em certos crimes sexuais, como a sodomia 3653. Os seus tribunais de
primeira instância, eram os de Lisboa, Coimbra, Évora e Goa. Como instância de
recurso, o Conselho Geral. Junto de cada um destes tribunais existia um Juízo do
Fisco, que decidia as questões relativas ao confisco dos bens dos acusados e de
certas questões incidentais, como os crimes de falso e de resistência, bem como as
causas em que uma das partes fosse um oficial da Inquisição ou um seu privilegiado
(“familiar do Santo Ofício”). Dando recurso para o Conselho Geral
7.1.8 Elementos acessórios do juízo.
§ 2009. Os processualistas falavam ainda de elementos acessórios do juízo.
§ 2010. Elemento acessório do juízo eram os que podiam patrocinar uma causa:
advogados e procuradores3654, defensores, assistentes e opositores, árbitros.

3646 Cf. decisão de 1617, em Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1,
§ 3, n. 9.
3647 As causas cíveis em que fosse parte um cavaleiro-comendador eram da competência do

corregedor da corte da Casa da Suplicação (Ord. fil.2,12,1).


3648 Ord. fil. 2,12,2.

3649 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap.1, § 4.

3650 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, § 8; Ord. fil. 2,2.

3651 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, 8, n. 18.

3652 Cf. Regimento da Bula da Cruzada, de 10.5.1634, ns. 11, 12 e 16.

3653 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […] ecclesiastica (lib. 2), cap. 1, § 6; João Baptista

Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 2, liv. 5, disp. 13. Regimentos em 15.3.1570, 10.6.1620, 3.10.1630,
22.10.1640, 1.9.1774. Sobre ele, José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci, História Geral
da Inquisição Portuguesa, 1536-1821 […], cit..
3654 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,3,10-11.

582
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 2011. Os procuradores ou advogados encarregavam-se da defesa técnica das


partes, podendo ser leigos (“procuradores do número”) ou letrados
(“advogados”)3655. Os defensores eram admitidos nas causas criminais (Ord.
fil.3,7,2-3)3656, para justificar a ausência do réu que, tendo sido citado, não tivesse
comparecido (Ord. fil.3,7,3; Ord. fil.5, 126, 4; Ord. fil. 3,20,3). Os assistentes eram os
que participavam numa causa alheia para defender o réu, mas também o seu
próprio interesse, pois a condenação do réu lhes seria diretamente prejudicial. Para
que a sua intervenção fosse autorizada era necessário que provassem o seu interesse
direto na decisão da causa (Ord. fil.3,20,32). O opositor intervinha na causa para
excluir ambos os litigantes (Ord. fil.3,20,31)3657. Alguns autores incluem ainda as
testemunhas entre os elementos pessoais do processo. Mas a opinião comum era a
de que não deviam ser consideradas como tal, já que podiam não existir 3658.
§ 2012. A decisão de um diferendo (iudicium) podia ainda ser deferida a árbitros
eleitos por um acordo (compromissum) das partes. A doutrina definia o árbitro como
"aquele juiz, escolhido por acordo das partes, para julgar segundo a ordem do
direito"3659. Era considerado como juiz, gozando de jurisdição "como que delegada"
(quasi delegata), seguindo a ordem de juízo (salvo convenção das partes em
contrário), tendo os atos praticados perante ele os mesmos efeitos que os
praticados perante o juiz ordinário3660 e dando recurso das suas sentenças para as
mesmas instâncias de recurso dos juízes ordinários (os desembargadores dos
agravos das relações)3661. Em suma, os árbitros eram equiparados a juízes
ordinários, com todas as funções destes 3662. Esta jurisdição compromissória
representava, no fundo, um expediente dogmático para integrar na ordem judicial
os processos informais de composição de litígios que decorressem do acordo das
partes (inter volentes) e que eram muito frequentes na sociedade de Antigo
Regime3663.
7.1.9 As fases do juízo.
§ 2013. A ordem de juízo nos tribunais seculares não era a mesma nas causas
cíveis e nas causas crime. Na exposição seguinte, seguimos a ordem processual

3655 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], v. “Advocatus”; cf. Jerónimo da Silva Araújo, Perfectus

advocatus […], cit..


3656 Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 13,6.

3657 Sobre todos estes intervenientes, António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v.

“Oppositio”, n. 8: “Uma pessoa pode opor-se a outrem por três razões: ou para remover aquele que
iniciou a causa, ou para o assistir, ou para impedir a sentença de execução”; Pascoal de Melo, Institutiones
iuris civilis, cit., 4,8.
3658 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Iudicium”, n. 3.

3659 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 5, d. 14, n. 1, p. 709, 1; Manuel Gonçalves da

Silva, Commentaria [...], cit., tom. 1, ad Ord. fil.3,16, ad rubr. n. 1, p. 21.


3660 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, liv. 5, d. 14, p. 727, ns. 46 e 47: a sua sentença,

porém, não constituía título executivo, pois os árbitros não tinham império, tendo que ser executada
pelo juiz ordinário (ibid. p. 1, p. 712, ns. 14 ss.; Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., vol. 1,
ad Ord. fil. 3,16,2, p. 29).
3661 Ord. fil.1,6,12; 1,37,pr.; 3,16,pr..

3662 Manuel Gonçalves da Silva, Commentaria [...], cit., vol. 1, ad Ord. fil.3,16,ns. 7/8; João Baptista

Fragoso, Regimen [...], cit., pt. 1, p. 730, n. 63.


3663 Cf. António Manuel Hespanha, “Justiça e administração.[…]”, cit., p. 155 ss.; mais geral,

António Manuel Hespanha, Lei, justiça, litigiosidade […], cit..

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cível, anotando especialidades da ordem crime3664.


7.1.9.1 A citação.
§ 2014. A ação iniciava-se com o chamamento a juízo (in ius vocatio, citação), a
ordem pela qual o juiz mandava, a pedido do autor, chamar o réu a juízo, a fim de
se defender3665, ordem sem a qual o processo era nulo, pois o réu não citado não
teria a possibilidade de se defender (Ord. fil. 3,63,5; 3,75). A citação podia ser verbal
(por palavra ou por escrito, direta ou por edital público) ou real (de res, coisa, por
apreensão da pessoa ou da coisa: arresto). Tinha que conter os nomes do juiz, dos
autores e dos réus, a causa por que estes eram chamados a juízo e o lugar e dia em
que as partes deviam comparecer (Ord. fil. 3,1,5). A citação inepta, por falta de
competência do juiz ou por falta de qualquer destes elementos, não produzia
efeitos, mas a cautela mandava que se comparecesse para alegar essas deficiências.
§ 2015. Embora a citação fosse o início formal do processo, ela não caía do céu,
tendo fundamento num conhecimento da situação de facto sobre a qual se litigava.
§ 2016. Nas causas cíveis, este conhecimento provinha de uma petição do autor
para que o tribunal interviesse em certo diferendo. Nas causas criminais, este
conhecimento podia provir de uma denúncia ou querela (v. cap. 8.1.6). Mas, além
disso, também de uma investigação oficiosa (da iniciativa do juiz, “devassa”)
perante a fama ou rumor de que se dera um crime3666.
§ 2017. A citação devia ser feita na pessoa do réu. Estando o réu escondido
para a evitar, a citação podia ser feita em sua casa, perante familiares ou vizinhos,
que eram notificados para lhe comunicarem o facto. Podia ainda ser feita no
procurador do réu, se este o tivesse (Ord. fil.3,1,9). A citação por edital afixado nos
lugares próximos do domicílio do réu ocorria quando se citava pessoa incerta ou
pessoa certa em lugar incerto ou de acesso perigoso ou impossível (v.g. onde havia
peste ou guerra, em casa de poderosos ou em território coutado às justiças que
citavam) (Ord. fil.3,1,8; 2,53,1). Quando o lugar onde o réu se encontrava pertencia
à jurisdição de outro magistrado, este era requerido, por carta precatória (rogatória,
deprecada ou requisitória), a fazer a citação3667. A citação inicial obrigava à
comparência em juízo e em todos os atos processuais subsequentes. Apenas a
apresentação de testemunhas, a dedução de recurso e a execução exigiam uma nova
citação3668.
§ 2018. Um tipo especial de citação era a citação da alma (in animam), na qual se
intimava o réu a jurar pela alma que não estava obrigado àquilo que o autor
pretendia. No caso de o réu se recusar a jurar, o juramento era deferido ao autor
que, para obter ganho de causa, deveria jurar que o réu lhe estava obrigado naquilo

3664 Sobre a ordem judicial nas causas crime. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.

1, cap. 32.
3665 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 1; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis, cit., 4,9,I.


3666 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 1, cap. 33 (“Por que meio se

descobrem os crimes”).
3667 Pena que tinha se não cumprisse a deprecada, Ord. fil. 5,119,4.

3668 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,9,11.

584
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

que era pedido na ação (Ord. fil.3, 59, 6; 1,49,1)3669.


§ 2019. O réu devia comparecer no tribunal no dia fixado, ou no prazo de três
dias. Caso contrário era condenado à revelia (contumácia). Se aparecesse depois, era
obrigado a aceitar o processo no estado em que este se encontrasse (Ord. fil.3,15,pr.
e 1). Por isso, se a sentença já tivesse sido dada, mas ainda não tivesse passado em
julgado, podia recorrer. Se já houvesse caso julgado, o réu podia, ainda assim,
embargar a execução (Ord. fil.3,87,3). Se o contumaz ou revel fosse o autor, ou se
prosseguia a ação sem a sua audição ou se absolvia o réu da instância; se, citado
mais duas vezes, não comparecesse, punha-se termo à ação (Ord. fil.3,20,18). O
autor podia recorrer da absolvição da instância por agravo, por instrumento ou por
petição (Ord. fil.3,14)3670.
§ 2020. Havia pessoas que não podiam ser chamadas a juízo, como as crianças,
os menores impúberes, os menores púberes sem os tutores ou curadores e os
mentecaptos (Ord. fil.3,29,1; 41,8). Outras, não o podiam ser apenas durante
impedimentos temporários: os clérigos enquanto celebrassem a missa ou os fiéis
que a ouvissem (Ord. fil.3,9,7)3671; os noivos durante os nove dias seguintes ao
casamento (Ord. fil.3,9,8); os cônjuges viúvos, a mulher, os filhos e os irmãos dentro
também dos nove dias destinados ao luto (Ord. fil.3,9,9); os que participavam em
funerais até o corpo ser sepultado (ibid.); os enfermos, enquanto a doença se
mantivesse (Ord. fil.3,9,10); os detidos em cárcere público ou em casa sob custódia
(Ord. fil.3,9,12).
§ 2021. Razões de decência, relacionadas com as posições relativas de autores e
réus, impediam a citação de certas categorias de pessoas sem autorização do juiz.
Era o caso das pessoas a quem o autor devesse reverência, como os pais, naturais
ou adotivos, os padrinhos e madrinhas, os patronos (de servos libertos) (Ord.
fil.3,9,1 ss.)3672. Também em matéria de citações se refletia a estrutura corporativa
ou estamental do direito, pois havia categorias de pessoas que tinham o privilégio
de não ser citadas sem licença régia, passada pelo Desembargo do Paço (§ 46 do
respetivo Regimento): (i) as câmaras (Ord. fil.3,8); (ii) os magistrados temporários
(como os juízes ordinários ou de fora, os juízes dos órfãos, os corregedores,
etc.3673), nas causas cíveis, durante os seus mandatos (Ord. fil.3,8 e 9)3674; já os
magistrados perpétuos, como os Desembargadores, etc. podiam citar e ser citados
em todas as causas sem necessidade de licença.
§ 2022. Além de tornar obrigatória a presença do citado em juízo, a citação
marcava o início da causa (Ord. fil.4,10), bem como da litispendência3675,

3669 Cf. Manuel Álvares Pegas, Resolutiones forenses practicabiles, cit., pt. 1, cap. 2, p. 64.
3670 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,9,15.
3671 Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 81.

3672 Sobre o tempo da citação, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,9,19. Sobre quem pode

fazer a citação, ibid. 20, 21. Sobre a citação da mais alta nobreza, “por carta de câmera”, ibid. 22.
3673 Os juízes pedâneos, os vereadores e os almotacés não eram considerados como verdadeiros

magistrados, pois apenas exerceriam uma jurisdição económica. Cf. Melchior Febo, Decisiones […], p. 2;
Aresto 19, n. 2.
3674 Nos feitos crimes não era necessária licença régia, podendo eles ser citados perante o

Corregedor do Crime da Corte, sendo suspensos do ofício (Ord. fil. 3,6, 5; 1, 7, 6; 1, 100; 3, 9); cf. Jorge
de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1. dec. 209.
3675 Ou seja, do período em que a pendência daquela causa impedia que fosse proposta outra

idêntica, com os mesmos autores, réus, pedido e causa de pedir, ou que fosse alterado o estado jurídico

585
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interrompia a prescrição sobre a coisa litigiosa (Ord. fil.4,79,1) e determinava como


competente o juiz que ordenara a citação quando houvesse uma competência
alternativa entre dois juízes.
7.1.9.2 Libelo. Contradita e exceções.
§ 2023. Citado o réu, seguia-se a apresentação, pelo autor, do libelo ou petição
inicial, da qual deviam constar a descrição do facto, o fundamento da ação (ou
causa de pedir) e a pretensão (ou pedido)3676. Não era necessário indicar o nome da
ação, pois se perdera o formalismo das legis actiones fixas, tal como existia no direito
romano (Ord. fil. 3,63). Mas, em contrapartida, devia ser descrita a situação de facto
que dera lugar à pretensão (um direito real determinado, nas ações reais, ou uma
causa do débito, nas ações especiais), pois, desaparecido o formalismo antigo em
que o nome da ação determinava o seu desenvolvimento, era necessária a descrição
da situação que dera origem a esta para estabelecer o que devia ser discutido,
provado e avaliado juridicamente.
§ 2024. O libelo devia ser breve, omitindo a antecipação de expedientes
processuais futuros (como as respostas a eventuais exceções opostas pelo réu),
claro e certo, de modo a poder ser entendido pelo réu (Ord. fil.320,5), adequado ao
assunto (apto) (Ord. fil.3,20,16), simples e bem ordenado, podendo ser organizado
por artigos (articulado).
§ 2025. A estrutura do libelo era descrita pelos autores setecentistas como um
silogismo judiciário, “em que a premissa maior é a narração dos factos, a menor, a
causa de pedir, e a conclusão, a condenação do réu”. Note-se que a expressão
silogismo judiciário, que viria a ter tanto sucesso no legalismo, tem, aqui, outra
estrutura. A premissa maior não é a lei (ou um conceito jurídico), mas a situação de
facto, o que é consistente com a ideia de que a solução não decorre de uma regra
jurídica, mas antes do direito imanente a uma situação concreta 3677. Dos exemplos
dados3678 conclui-se, também, que por “descrição dos factos” se entendia uma
situação de facto típica e as suas consequências normativas (v.g. o comprador a
quem a coisa comprada foi entregue deve pagar o preço combinado). O silogismo
judiciário consistia, então, na subsunção da situação de facto concreta a uma norma
imanente a uma situação de facto típica, o que permitia deduzir que a solução
jurídica prevista nesta última se devia aplicar à situação concreta descrita no libelo.
Entre os finais do séc. XVI e o séc. XIX pontificou, na praxística portuguesa, o
modelo de redação das fórmulas dos libelos de Jerónimo Martins Caminha, na sua

da coisa em litígio. A litispendência também marcava o período de vigência dos acordos feitos pelas
partes para valerem enquanto a questão fosse litigiosa, Decretais, 2, 16; Clementinas, 2, 5; Sexto, 2, 8, Ut liti
pendente nihil innovetur; Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Lis”, n. 1083.
3676 Manuel Mendes de Castro, Practica […], cit., liv. 3, c. 2; Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,

cit., 4,10,1 ss.; Ord. fil. 3,20.


3677 “Non ex regula ius sumatur, sed ex iure quod est regula fiat” [Paulo, D.50.17.1.]

3678 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,10, II, nota: “Diz-se que o libelo tem três partes: a

narração dos factos, a causa da conclusão e a própria conclusão. A isto chamam não sem razão silogismo
jurídico […]. Por exemplo na ação de compra: tudo quanto constitui a substância do libelo se encontra
neste silogismo. [1] Aquele que compra e a quem a coisa comprada é entregue deve pagar o preço
convencionado. Eis a premissa maior, que contém a narração dos factos. [2] Titius num certo dia
comprou tal coisa, que lhe foi entregue. Eis a premissa menor, cujo fundamento é a causa especial do
devido [do pedido]. [3] Portanto, é obrigado a pagar o preço convencionado”.

586
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

obra, muitas vezes reeditada, Tractado da forma dos libellos e da forma das allegações
iudiciaes e forma de proceder no iuizo secular e ecclesiastico e da forma dos contractos com suas
glosas e cotas de dereito (1549).
§ 2026. Embora pudesse ser clarificado até à pronúncia da sentença, o libelo
não podia ser alterado (por exemplo, mudando o pedido ou nomeando outro réu)
depois da litiscontestação. O libelo devia ser escrito, exceto nas causas sumárias, em
que o escrivão ia anotando os elementos relevantes, a partir da exposição oral do
autor.
§ 2027. Juntamente com o libelo, o autor devia juntar os instrumentos em que a
pretensão se fundava (v.g. a escritura pública ou os livros de contas dos
mercadores, Ord. fil.3,20 a 23), sob pena de absolvição de instância. O mesmo valia
para o réu, ao contestar o libelo ou ao aduzir um meio de defesa (exceção).
§ 2028. Ao oferecimento do libelo seguia-se a oposição de exceções (Ord.
fil.3,20), visando inutilizar a ação. Podiam consistir: (i) na oposição de uma exceção
que inutilizasse o pedido (exceção perentória, Ord. fil.3,20,15), a que o autor devia
responder num prazo de 10 dias ou (ii) na oposição de uma exceção que apenas
diferisse para mais tarde a obrigatoriedade de satisfazer o pedido ou alegasse a
incompetência do foro (exceção dilatória).
7.1.9.3 Contestação da lide.
§ 2029. Na contestação da lide, o réu respondia à substância do pedido do
autor, opondo exceções perentórias dirigidas a inutilizar a sua pretensão (como
sentença anterior a seu favor, transação, pagamento, prescrição) ou aceitava o
pedido do autor3679. Avaliadas os pontos de vista de cada uma das partes (no libelo
e nas réplicas do réu), ficavam fixos – e jurados por ambas as partes - os termos do
litígio, constituindo-se – na litis contestatio - como que o seu resumo essencial, a sua
pedra de fecho ou fundamento (lapis angularis et fundamentum judicii)3680, de acordo
com o qual se desenvolveria a atividade do juiz, na segunda fase do processo.
§ 2030. Por direito comum, a contestação da lide continuou a ser considerada
como um ato essencial, que dava conta da petição do autor e da reação do réu,
sobretudo nas causas criminais3681. Esta reação do réu era tão indispensável como o
libelo do autor. Por isso, a lide deve ser contestada, sob pena de nulidade. Se o réu
nada dissesse, a lide não podia ser dada por contestada, pois se exigia uma
declaração expressa dele.
§ 2031. Mas, na verdade, esta fase perdia a dramaticidade que tinha no direito
romano, porque a causa continuava a correr diante do mesmo juiz, não transitando

3679 V. Ord. fil. 3,20,5; 5,124,pr.. Fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado […], cit., Adnot. 40-

41; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., 3, cap.. 10; Manuel Antonio Monteiro {…] da
Costa Franco, Tractado practico jurídico civel, e criminal […], cit, pt. 1, cap. un. n. 20 (pg. 4); Pascoal de Melo,
Institutiones iuris civilis, cit., 49, 12.
3680 No processo romano, a litis contestatio era um momento importantíssimo, em que culminava a

fase in iure, fixando-se o programa processual da fase apud iudicem. Discutidos os aspetos jurídicos perante
o pretor (na petição inicial e nas exceções, fixava-se aquilo que estava em causa e que teria que ser
averiguado e provado pelo juiz.
3681 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Lis”, n. n. 6 (“a litis contestatio é a

narração do negócio principal, feita por um e por outro, feita a narrativa seguida de resposta, ou
negando ou confessando” [est negocii principalis hinc inde [de um lado e de outro] apud iudicem facta
narratio, & subsecuta responsio, sive negando sive confitendo]).

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– como em Roma – de um magistrado com poderes de configuração da lide para


um juiz cujo programa de atuação ficara traçado na contestatio. Daí que, no direito
português, as Ordenações permitissem ao juiz dar a lide por contestada uma vez
recebido e aceite o libelo, embora o réu continuasse a poder apresentar a sua
versão, confessando ou negando (Ord. fil. 3,20,5; 5,124,pr.). Mesmo por direito
comum, a contestação da lide não existia em todas as ações: por exemplo, não
existia nas causas sumárias em que se procedia de plano et sine figura iudicii, não se
oferecendo libelo escrito3682; ou quando os contornos da causa eram fixados pelo
juiz, como no processo inquisitório3683; ou quando o objeto da lide tivesse sido
fixado antes, por transação ou por confissão do réu; ou em tipos de causas em que
isso estivesse estabelecido, em função de outras circunstâncias (certas causas sobre
benefícios, ofícios e dignidades, causas de décimas, de usuras, de extremas, certas
causas matrimoniais3684
§ 2032. A litiscontestação tinha efeitos importantes: entre outros, invertia a
propriedade dos frutos da coisa pedida, interrompia a prescrição, constituía o réu
em má fé3685.
§ 2033. O autor respondia à contestação do réu ou às exceções por este
opostas, mediante réplicas, admitidas apenas nas ações ordinárias (mas não nas
sumárias, Ord. fil.3,18,3 ss.). A réplica devia ser alegada na audiência seguinte (Ord.
fil.3,20,19 a 21); este prazo – como todos os prazos judiciais – era perentório, ou
seja, o seu não cumprimento fazia vencer a posição do réu (em geral, da outra
parte).
§ 2034. Tanto a contestação como as réplicas enquadravam-se na figura geral
das exceções3686, ou seja, eram alegações de uma das partes para a sua defesa3687.
Umas tinham por objetivo resolver a causa (exceções perentórias 3688). Como
quando se atacava o processo por nulidade essencial (suspeição ou corrupção do
juiz3689, a falta de citação) ou se atacava o pedido, por total insubsistência (nulidade
do negócio, caso julgado, pagamento, prescrição extintiva, Ord. fil.3,50). Estas
exceções podiam ser opostas em qualquer momento do processo ou mesmo depois
da sentença, como no caso das exceções que arguiam a nulidade do processo.
Outras apenas diferiam a causa para outro momento ou juízo (exceções apenas
dilatórias3690); podiam ser referidas à jurisdição do juiz (incompetência 3691,

3682 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Lis”, n. 11.
3683 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Lis”, n. 12.
3684 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Lis”, ns. 14 a 25.

3685 V. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Lis”, n. 8.

3686 Ord. fil. 3,20, ss.; Manuel Mendes de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 3;

Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,13.


3687 No direito romano, as exceções, tal como as ações, estavam tipificadas na lei e tinham nomes

(cf. D.44,1 De exceptionibus; C.8,35 De exceptionibus; I.4,13).


3688 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 3, c. 4:

3689 Sobre a competência para conhecer destas exceções, Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis,4,13.
3690 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 3, c. 3.

3691 A declinatio fori alegava a incompetência do tribunal em que ação fora intentada e indicava outro

como competente; se aceite ou não contestada dava lugar à prorrogatio jurisdictionis, ou seja, a atribuição da
competência a um tribunal diferente do indicado no libelo.

588
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

pendência de outra ação com o mesmo pedido, suspeição), à capacidade processual


do autor (excomunhão), do réu (inabilidade) ou do procurador de qualquer deles
(falta de mandato), à validade de atos processuais (ineptidão do libelo, não
observância das férias judiciais) ou, finalmente, a uma circunstância do negócio
discutido (moratória, pacto de não pedir, Ord. fil.3,49). As exceções apenas
dilatórias deviam ser opostas antes da contestação da lide.
§ 2035. Era muito frequente que estas peças processuais revestissem a forma de
articulados numerados, especificando em artigos separados os vários pontos de
facto e de direito.
§ 2036. Este processo contraditório, que podia ser muito complicado se se
confrontassem exceções de parte a parte, está regulado nas Ordenações (Ord.
fil.3,20). O princípio geral era o de que a cada posição de uma das partes, uma vez
recebida pelo juiz, devia seguir-se a vista à outra, para resposta.
7.1.9.4 Prazos.
§ 2037. O ritmo da ação era marcado pelos prazos (dilationes)3692, uns
determinados pela lei, outros por convenção das partes, outros pelo juiz. Os prazos
mais importantes eram o prazo para comparecer em juízo (dilação citatória, Ord.
fil.3,1,5), o prazo para o réu deliberar se queria contestar a demanda ou ceder
(dilação deliberatória, Ord. fil.3,20,2), o prazo para apresentação de prova (dilação
probatória, Ord. fil.3,54) e o prazo para recorrer. O prazo probatório ordinário era
de 20 dias, que, nas ações ordinárias, se prorrogava a pedido da parte por mais 10
dias, se houvesse justa causa e se a parte prestasse caução (juramento de malícia) (Ord.
fil.3,54,1). Se a prova fosse feita fora da cidade e, nomeadamente, no ultramar, o
prazo era fixado em função das circunstâncias dos lugares (Ord. fil.3,20,26; 3,54, 2 a
8 e 13). O pedido de prova fora do reino presumia-se malicioso e não suspendia o
processo. A prática, porém, era muito mais permissiva. As férias eram um prazo
especial, em que se suspendiam as atividades forenses (Ord. fil.3,18).
7.1.9.5 As provas.
§ 2038. As provas3693 eram os atos pelos quais as partes tentavam demonstrar
ao juiz a sua versão sobre um facto controverso. Podiam ser feitas: (i) por
testemunhas; (ii) por instrumento ou documento; (iii) por juramento; e (iv) por
confissão.
§ 2039. Na época moderna não subsistiam já as provas por sortes nem o duelo
probatório.
§ 2040. Não se tinha que provar o que fosse notório ou o que fosse
inevitavelmente incerto. Também o direito comum (ou o direito comum do reino),
que o tribunal devia conhecer (ius novit curia), não tinha que ser provado (Ord.
fil.3,53,7 a 9), mas apenas o direito particular e os costumes não escritos.
Excecionalmente, a prova podia ser feita fora de uma causa: era o caso da prova
para memória futura (ad perpetuam rei memoriae), requerida pelo interessado quando
temesse que a possibilidade de provar desaparecesse (Ord. fil.3,55,7 a 8).
§ 2041. A demonstração dos factos podia fazer-se a partir dos factos

3692 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4, 14,1 ss..


3693 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,16,

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conhecidos, como no caso das coisas notórias ou das presunções, baseadas na


evidência natural ou na verosimilhança. Outras provas requeriam mais do que isso,
como a produção de testemunhos ou de documentos.
§ 2042. Certos meios de prova tinham uma força plena (prova plena), como os
documentos dotados de fé pública ou o testemunho concorde de duas testemunhas
acima de qualquer dúvida, pois produziam uma carga de convencimento bastante
para fundar, por si só, a decisão da causa. “Semiplena”, em contrapartida, era a
prova que, não sendo suficiente em si mesma, teria de ser conjugada com outros
subsídios para servir de base à convicção do juiz. Era o caso de um único
testemunho3694 (ou de dois menos fiáveis), a confissão extrajudicial, o escrito
particular, a semelhança da letra, as presunções simples (que criavam uma
verosimilhança que podia ser elidida por prova mais forte em contrário).
§ 2043. Central era, neste domínio, a distribuição pelas partes da obrigação de
provar (ónus da prova). As regras gerais eram duas. A primeira era a de que tinha
que provar aquele que alegasse um facto e a quem aproveitasse essa alegação (onus
probandi incumbit ei qui dicit, actor probat actionem, reus exceptionem)3695. A segunda era a
de que quem não conseguia provar aquilo que alegava decaía na sua pretensão
(allegatio et non probatio, quasi non allegatio).
§ 2044. Estas regras tinham algumas limitações. A primeira era a de que aquele
a quem aproveitavam factos que não tinham que ser provados não decaía se não os
provasse. A segunda era a de que aqueles a quem aproveitasse uma presunção não
tinham que provar as consequências dessa presunção, mas apenas aguardar que o
adversário não provasse o contrário (v. Ord. fil.3,79,2). Outra limitação referia-se à
prova negativa, à prova de que certo facto não aconteceu – v.g. que não se é herege,
que não se praticou um facto, etc.. Segundo a lição dos canonistas, só o diabo podia
provar (daí, probatio diabolica) que uma coisa não acontecera: uma testemunha podia
assegurar que não vira o réu cometer o crime, mas seria praticamente impossível
testemunhar que o réu não o cometera. Neste caso, quem tinha que provar era
quem afirmava que o facto se produzira: “paguei”, “cometeu este crime”, “está de
má fé”, “usei a coisa de forma pública e pacífica” (Ord. fil.3,53,10). O processo
perante a Inquisição não acolhia este princípio, obrigando o réu a provar que não
cometera o crime de que era acusado, o que correspondia a adotar uma presunção
de culpabilidade. Esta foi uma das principais razões pelas quais os juristas reagiram
contra a ordem processual da Inquisição – outra foi a admissibilidade de
testemunhas únicas e secretas.
§ 2045. Na avaliação da prova, a evolução foi a de uma conceção mágica, em
que a prova valia segundo critérios fixos e obrigatórios, estabelecidos pelo direito,
para uma conceção psicológica, em que dominava a livre apreciação pelo juiz,
embora vinculado ao saber comum. Pascoal de Melo representa bem o termo final
desta evolução, hostil ao valor tarifado das provas: “§ X - Embora nos factos
humanos o juiz dificilmente possa obter uma certeza absoluta, salvo se viu com
seus próprios olhos, pois as testemunhas ainda as mais honestas podem errar e
enganar, e os próprios instrumentos públicos também podem ser falsificados,

3694 Daí a razão de ser da oposição dos juristas à regra da suficiência do testemunho único (e

secreto) que vigorava no processo da Inquisição.


3695 D.22,3 De probationibus; C.4,19 De probationibus.

590
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

todavia, como o facto duvidoso em litígio tem que acabar por ser certo e provado,
há necessariamente que definir na vida civil um modo certo de prova que se
aproxime o mais possível da verdade no consenso geral das pessoas; para tal efeito,
deve admitir-se em juízo esta certeza e prova plena, parecendo que o juiz deve
manter aquela que se pode e costuma admitir pelo consenso das pessoas; tal é a que
se faz por instrumentos públicos ou testemunhas acima de toda a dúvida. As
presunções de direito são havidas como prova verdadeira e perfeita, se não forem
elididas por outras provas, e é de harmonia com elas que se deve pronunciar a
sentença. Pelo contrário, as presunções dos homens as chamadas provas
semiplenas nem fazem prova perfeita e fé plena se não se apoiarem noutros
elementos, nem tornam o juiz tão seguro de que pode julgar por elas”3696.
§ 2046. Esta convicção do juiz não era, porém, um facto puramente
psicológico, mas antes uma hermenêutica do senso comum. Senso comum que
incorporava valores e visões do mundo. Isto ficava claro nas regras heurísticas
quanto ao valor relativo de provas de sentido contrário. Por exemplo, a fé das
testemunhas aferia-se pela sua dignidade, nobreza, riqueza ou outra qualidade
externa; a testemunha de visu devia ser preferida a outra (Ord. fil. 1,86,1); o
testemunho imediato valia mais do que o mediato (de outiva, de ouvir dizer,
embora este, na verdade, correspondesse ao testemunho de uma série de pessoas
que sucessivamente abonavam algo que tradicionalmente era tido como
verdade3697); em coisas antigas, a outiva era tida como mais natural e mais credível;
a fama pública e os rumores eram relevantes, embora constituíssem apenas um
indício; o documento escrito tendia a provar mais do que o testemunho3698. A esta
hierarquização estão subjacentes representações culturais sobre a fiabilidade dos
sentidos, bem como - na valorização da fama – uma certa ideia acerca das relações
entre parecer e ser característica das sociedades tradicionais: aquilo que é geral e
continuamente tido como verdadeiro vai criando verdade jurídica e, mesmo,
realidade substancial (a tradição gera natureza).
7.1.9.5.1 As presunções.
§ 2047. Um primeiro meio de prova era a invocação de presunções, uma
espécie de prova automática, que não exigia a atuação das partes.
§ 2048. As presunções eram, segundo a doutrina da época, conjeturas
verosímeis, induzidas a partir de sinais (“do próprio âmago da situação de facto”,
escreve Pascoal de Melo), de acordo com a natureza das coisas ou com o que
acontece o mais das vezes (id quod plerumque accidit) e assumidas com o fim de provar
uma coisa 3699.
§ 2049. As presunções podiam ser estabelecidas ou pelo direito (praesumptiones
iuris) ou pelos homens (praesumptionis hominis), pelo conhecimento comum que têm
da ordem do mundo - da natureza das coisas (tem que se provar o anormal, o
monstro, o inaudito), daquilo que acontece o mais das vezes (tem que se provar o

3696 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,16,10.


3697 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,17,13.
3698 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,16,11.

3699 “Conjecturae ex signo verisimill ad probandum assumptae”, J. Voigt, Com. ad Pand, lib. 22, tit.

31, nota 14; Cf. Guido Donatuti, Le praesumptiones iuris in diritto romano, Perugia, Tipografia G. Guerra,
1930.

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excecional), da estabilidade das situações (tem que se provar a mudança), da


bondade do mundo (presume-se o mais favorável) 3700. Daí que: se presuma que o
filho nascido na constância do matrimónio é legítimo; que os pagamentos feitos
correspondem a dívidas existentes; que o recibo do credor corresponde ao efetivo
pagamento do devedor; que é mãe aquela que se opõe ao mal do filho (exemplo do
julgamento de Salomão)3701, que o pai é o marido da mãe (pater est quem nuptias
demonstrant), que o acusado é inocente.
§ 2050. A força probatória das presunções variava. Umas apenas indiciavam um
facto, valendo como um sinal a avaliar em conjunto com outros; era o caso das
presunções baseadas no conhecimento comum (ou naturais), cuja força dependia
do seu grau de evidência (avaliado pelo juiz): as presunções jurídicas simples ou
comuns eram vencidas por prova do adversário em contrário (“tamdiu verae
sunt, donec probetur contrarium”), significando uma inversão do ónus da prova
(praesumptiones iuris tantum). A chamada presunção forte, veemente ou violenta
(praesumptio violenta), só era vencida por prova evidente em contrário. Outras
presunções eram forçosas, impostas pelo direito (praesumptiones iuris et de iure)3702 e
não admitindo prova em contrário (ex.: Ord. fil.1,60 3).
7.1.9.6 As testemunhas.
§ 2051. Entre os meios de prova, avultavam as testemunhas3703. A capacidade
para testemunhar era geral (Ord. fil.3,56,pr.), mas a lei impunha incapacidades aos
furiosos e mentecaptos (Ord. fil.56,5); às crianças e impúberes (ibid. § 6), aos
escravos (ibid. § 3), aos judeus e mouros, testemunhando contra cristãos (ibid.
§ 3)3704, aos presos por crimes graves (ibid. § 9); aos infames (D. 22,5 De testibus, 3).
Inábeis para testemunhar em certas causas eram: o autor e o réu, os seus amigos
chegados ou inimigos capitais, os pais, filhos, irmãos e sócios. Mas eram
testemunhas hábeis os membros da comunidade doméstica, seja, os da mesma casa,
linhagem, família ou corporação (Decretais, De testibus et adtestarionibus, n. 7). As
testemunhas deviam ser apresentadas depois da litiscontestação, dentro do prazo
probatório (Ord. fil.3,54,16), sendo obrigadas a depor (Ord. fil.3,55,11)3705.
§ 2052. Eram convocadas pelo juiz da causa ou por carta precatória dirigida ao
juiz do território onde vivessem ou do seu foro privilegiado, devendo ser
ajuramentadas antes de depor (Ord. fil.1,86) segunda uma fórmula tirada das
Decretais (cap. 5 do tit. De testibus): “que não são levadas a tal juramento por ódio ou
amizade particular, nem por qualquer proveito que tenham tido, tenham, ou hajam
de ter; que hão de dizer a verdade sobre a matéria a que forem interrogadas”.
Seguia-se o interrogatório pelo juiz, que, para isso, gozava de grande liberdade, no

3700 As presunções assentavam num saber prático, ou arte; daí que estas presunções se chamem

artísticas ou artificiais (feitas pela arte).


3701 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,16,8.

3702 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,16,7.

3703 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 12, § 1; Pascoal de Melo, Institutiones

iuris civilis,4,17.
3704 Pascoal de Melo discorda: Institutiones iuris civilis,4,17,2.

3705 Mas não se fosse pais, filhos, irmãos, sogros e genros daquele contra quem depunham (D.22,5

De testibus, 4).

592
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

sentido de melhor apurar a verdade3706.


§ 2053. A doutrina setecentista desvalorizava os antigos privilégios das pessoas
ilustres quanto a deporem em suas casas 3707, mantendo estes privilégios apenas para
os velhos e enfermos (Ord. fil.3,55,7). As testemunhas podiam ser recusadas pelo
adversário (reprova, refutação, contradita), como sendo infames, falsárias, inimigas,
instruídas, rogadas ou subornadas pelas partes (Ord. fil.3,58), mas apenas antes da
publicação do depoimento (inquirição), ou seja, antes de o impugnante saber o teor
do depoimento. As Ordenações e a prática do foro restringiram expedientes dilatórios
neste ponto, como o de se refutarem testemunhas sobre testemunhas, de se
interrogarem as testemunhas das refutações sobre temas relativos, não à
testemunha, mas à causa, de se fazerem articulados sobre a refutação de
testemunhas 3708.
§ 2054. A inquirição das testemunhas podia ser feita pelos inquiridores, salvo
nas causas crime capitais e nas cíveis mais importantes (Ord. fil. 1,86,3), em que
competia pessoalmente ao juiz.
§ 2055. A avaliação da prova testemunhal era feita pelo juiz, de acordo com a
convicção que tinha da sua credibilidade, em face do interrogatório de vita et moribus
(“aos costumes”, i.e. nas perguntas do costume: idade, qualidade, amizade,
consanguinidade ou afinidade com as partes) e do seu comportamento 3709. Duas
testemunhas faziam prova plena, a menos que a lei exigisse mais (Ord. fil. 1,62,21).
Mas as Ordenações previam alguns casos em que uma só testemunha bastava (Ord. fil.
1,24,17; 66,27; 4,18). Pelo direito comum, dignidades eclesiásticas ou oficiais
seculares faziam prova plena sobre matéria dos seus ofícios (embora se admitisse
prova em contrário).
§ 2056. Publicadas as inquirições das testemunhas, seguiam-se as disputas ou
alegações das partes (Ord. fil. 3,20,40), findas as quais os autos eram conclusos (i.e.
fechados e entregues) ao juiz.
7.1.9.7 Instrumentos ou documentos.
§ 2057. O direito era um dos domínios da vida em que a comunicação escrita
tinha uma maior relevância. Pertencia ao núcleo da forma então mais moderna, mas
também socialmente mais controversa, de comunicar. Isso refletia-se no valor
atribuído à prova por documento escrito3710.
§ 2058. Na linguagem jurídica, o “documento” (etimologicamente, aquilo que
ensina) era também designado como "instrumento" (com idêntico sentido
etimológico)3711, constituindo um escrito feito para provar o conteúdo de um ato.
Podia ser público ou particular, original ou traslado. Os documentos públicos
possuíam, para a doutrina mais consistente, autoridade e fé pública, ou seja, faziam
prova plena, bastante, indestrutível por outra prova e apenas inutilizável por

3706 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,17,6.


3707 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,17,7.
3708 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,17,9.

3709 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,17,12.

3710 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 12, § 2.

3711 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Instrumentum”; Bento Pereira,

Promptuarium […], v. “Instrumentum” (n. 837).

593
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arguição de defeito de forma ou falsidade do documento (regime, Ord. fil.3,60,5).


Além dos autos judiciais, eram documentos públicos os escritos elaborados por
escrivães públicos ou tabeliães, feitos com as formalidades exigidas3712, os
documentos existentes (ou trasladados, por ordem do juiz 3713) em arquivos
públicos. Os escritos particulares, mesmo os de natureza jurídica, existentes em
arquivos particulares, tinham uma eficácia probatória mais reduzida, provando
apenas contra os autores ou constituindo meros indícios (C. 4,19 De probationibus,
7).
§ 2059. Numa sociedade onde a capacidade de escrita e de arquivar documentos
era rara e estava muito frequentemente aliada ao poder, a questão da eficácia dos
documentos escritos, nomeadamente, dos particulares, era politicamente
estratégica. Os poderosos, que os podiam fazer, guardar e, também, falsificar,
procuravam valorizar o seu valor probatório. Nessa estratégia participavam os
escrivães e os juristas, agentes privilegiados do mundo da escrita. O meio dos
comerciantes, que usavam da escrita para comunicar entre si, num comércio que se
alargava no espaço, participavam também desta galáxia da comunicação escrita. Aí,
as letras de câmbio faziam prova plena e o conteúdo dos livros de contas constituía
um indício forte, se invocado contra o que escreveu 3714. Em contrapartida, os
iletrados tinham interesse em desvalorizar os documentos escritos ou, no extremo,
em os destruir. Por isso, a queima dos arquivos era um rito característico das
revoltas populares. Entre os letrados, o rei, os seus oficiais e os letrados regalistas
apostavam no cerceamento do valor probatório dos documentos particulares,
rodeando, em contrapartida, os documentos públicos de muitas cautelas: a
nomeação dos escrivães e tabeliães era uma regalia só excecionalmente concedida
("tabelião por el-rei"), a falsificação de documentos era crime 3715. Não admira, por
isso, que se discutisse muito, não apenas o âmbito do conceito de documento
público, mas mesmo a sua eficácia probatória. A regra era a do caráter pleno da
prova por documento público3716, o que se justificava pela natureza pública do
cargo de tabelião e pela atestação expressa por testemunhas. Porém, era muito
enfraquecida pela opinião doutrinal de que cabia no arbítrio do juiz avaliar a força
de prova testemunhal contra o conteúdo de um documento público 3717. Por muito
importantes que fossem como meio de prova, os documentos públicos não eram
senão isso, um meio de prova, podendo ser substituídos, no caso de perda ou
destruição, por outra prova, uma vez cumpridas certas formalidades processuais3718.

3712 Nome do tabelião data, assinatura das partes (Ord. fil. 178,4; 4,19,1; 5,117, 6), transcrição nos

protocolos ou livros de notas. As escrituras eram distribuídas entre os tabeliães das terras pelos
distribuidores, tanto para garantir a sua imparcialidade, como para distribuir equitativamente os réditos
notarias (emolumentos). Os livros de notas, onde se transcreviam e assinavam os atos notariais, também
se chamavam “protocolos” (etimologicamente, primeira página de um livro de folhas coladas). Os
tabeliães deviam arquivá-los e manter o seu arquivo, Ord. fil.. 1,78,5.
3713 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,8.

3714 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,13; também, dubitativo, Álvaro Valasco,

Decisiones [...]. cit., cons. 177, ns. 7 e 8.


3715 V. Ord. fil. 3,59, 15; 5, 53; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,5-7.

3716 As coisas tornavam-se notórias por constarem de instrumento público [“Notoriae dicuntur res

per publicum instrumentum”], afirma Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., cons. 27.
3717 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,12.

3718 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,18,11.

594
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

7.1.9.8 O juramento.
§ 2060. Uma outra forma de prova era o juramento 3719, ou seja, uma declaração
solene, invocando a vingança de Deus ou dos santos, a saúde do jurante ou de
entes queridos3720, para o caso de ela não ser verdadeira (juramento assertório) ou
de não vir a ser cumprida pelo jurante (juramento promissório). O juramento das
testemunhas pertence a esta categoria, sem grandes especificidades. Havia ainda o
juramento estimatório, em que o autor declarava o valor objetivo ou estimativo da
coisa pedida (Ord. fil. 3,86,16) ou roubada (juramento zenoniano, Ord. fil. 3,52,5).
§ 2061. Além de meio de prova, o juramento podia ser um expediente
processual destinado a resolver uma demanda. Tal era o caso do juramento
assertório, feito por uma das partes, desafiada pela outra para que o fizesse3721. A
parte que provocava a outra ao juramento - por não ter provas ou preferir não as
usar - comprometia-se a aceitar o resultado do juramento, fosse ele qual fosse.
Tornava-se obrigatório se o desafio fosse feito perante o juiz e deferido por este,
constituindo uma forma frequente de abreviar a demanda. Por meio do juramento,
também se podia decidir uma causa em que as provas das partes se equilibrassem.
Era o caso do juramento purgatório, em que o juiz ordenava ao réu, a pedido do
autor, que jurasse a exceção (ou seja, a sua tese), mas apenas no caso de só haver
uma prova semiplena da ação (ou seja, da tese do autor) (Ord. fil. 3,52, pr.; Decretais,
2,24. De jurejurando).
§ 2062. A parte a quem se deferia o julgamento podia devolver à outra parte o
dever de jurar, comprometendo-se a aceitar o resultado. Este jogo de provocações
cruzadas ao juramento refletia dificuldades de prova. A solução era, então, a de uma
das partes se entregar à honra ou piedade do adversário, aceitando a sua palavra,
num ou noutro sentido.
§ 2063. O juramento de calúnia3722 não dizia respeito ao objeto da ação, mas ao
estado de espírito dos litigantes, que nele juravam litigar por estarem convencidos
de que tinham razão (Ord. fil. 3,43; N. Nov. 49, tit. De jurejuramdo propter calumniam).
A consequência da violação deste juramento - obrigatório -, feito antes da
contestação da lide, era a perda da ação pelo autor ou a condenação do réu,
conforme aquele que o violasse3723).
7.1.9.9 A confissão.
§ 2064. A rainha das provas era a confissão 3724, ou admissão pelo réu daquilo
que o autor pretendia (“manifestatio proprium actum coram judicem
competentem”3725). Podia ser autêntica, consistindo numa declaração do réu, ou ficta,
induzida pelo direito, a partir de certos factos, como a contumácia, o silêncio do
réu, a recusa em prestar juramento. Era judicial ou extrajudicial, conforme fosse

3719 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 2, § 5.


3720 Diferente era o juramento "à la fé", ou pela honra, que, por ser frequentemente leviano ou
irrefletido, era proibido pelas Ordenações (Ord. fil. 4,73).
3721 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,19,2).

3722 Calúnia era agir (estar em juízo) de má fé, i.e. sabendo que não se tinha razão.

3723 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,19,8.

3724 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 3, § 3.

3725 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Confessio. De confessione iudiciali, &

extraiudiciali”.

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feita em processo ou fora dele3726. A extrajudicial, feita perante a outra parte,


aproximava-se, no seu valor, da judicial3727.
§ 2065. A confissão fazia prova plena, conduzindo a uma sentença que punha
termo à lide. No caso de confissão de dívida, o juiz passava logo à fase executiva,
através do mandato "de solvendo" (Ord. fil. 3,66,9, "sentença de preceito")3728. Daí
que se dissesse que, nas causas cíveis, a confissão era uma prova pleníssima, pois a
sua força suplantava a de todas as outras provas, equivalendo à condenação 3729. Nas
causas crime, porém, tinha que ser confrontada com provas em contrário, não
conduzindo automaticamente à execução da pena3730
§ 2066. A confissão extrajudicial constituía uma prova apenas semiplena (Ord.
fil. 3,52,pr.), devendo, por isso, ser completada por outras provas (ibid. n. 3).
§ 2067. A confissão requeria uma vontade sã e uma expressão clara.
§ 2068. Os factos confessados deviam ser possíveis. Aparte estas restrições,
tudo era confessável e, mais do que isso, o silêncio perante acusações do autor
poderia equivaler à confissão. Isto significava que a lide era fundamentalmente vista
como um despique em torno de posições livremente disponíveis.
§ 2069. A confissão tinha que ser aceite pelo adversário, momento em que se
tornava irrevogável.
§ 2070. Na suas atribuições de dirigir o processo, o juiz podia pedir
esclarecimentos às partes3731; isto era mais frequente nas causas sumárias, em que os
expedientes processuais das partes eram mais simplificados.
7.1.9.9.1 A tortura:
§ 2071. A tortura ou tormentos era um meio de obter provas reconhecido pelo
direito, embora apenas verificados certos requisitos.
§ 2072. A doutrina seiscentista era bastante cautelosa quanto ao uso da tortura.
António Cardoso do Amaral, escrevendo no início do séc. XVII, limita a
legitimidade do seu uso ao caso de haver apenas indícios ou uma única testemunha
e não se dispor de outro meio para se achar a verdade. E alerta para os perigos
deste meio de prova: “É que este género de tormentos, em Portugal e noutros
lugares, é cruel e terrível, a tal ponto que não há maior suplício, a não ser a morte, e
não poucos morrendo sob tortura. Donde, apesar de também ser admitido de
direito, uma vez que serve para extrair a verdade, é uma pena grave, que se deveria
dar apenas em delito grave, se clarissimamente provado [ ,,] se não for provado
clarissimamente o delito, não me parece haver razão de infligir tal pena, mas antes

3726 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,20.


3727 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Confessio. De confessione iudiciali, &
extraiudiciali”.
3728 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Confessio. De confessione iudiciali, &

extraiudiciali”, n. 5.
3729 “Confessio judicialis habet tantam efficatiam, ut superet omnem probationem, factam per

testes, et etiam per instrumentum probans contrarium, quia nula est maior probatio quam oris confessio,
& dicitur plenissima probatio”, Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Confessio. De
confessione iudiciali, & extraiudiciali”, n. 15.
3730 Ibid. n. 17.

3731 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,15.

596
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

outra pena, pois na dúvida é melhor deixar impune um delinquente do que


condenar um inocente”3732. Cem anos depois, António Vanguerve Cabral salienta
que, para além disto, os tormentos (ou tratos) põem em risco o apuramento da
verdade, pois sob tortura o acusado confessa o que for preciso para aliviar o seu
sofrimento3733.
§ 2073. O direito regulava apertadamente a sujeição a tormentos, dispondo
sobre quando se podiam usar3734; sobre que graves indícios e provas se requeriam
para tal3735; sobre pessoas isentas de tormentos 3736; sobre a superintendência e
processamento do ato de tortura3737; sobre a repetição dos tormentos 3738
§ 2074. Antes de se mandar sujeitar à tortura, o juiz devia apelar da sua decisão,
para que ela fosse confirmada por um juiz superior (Ord. fil. 3,69,1), de donde
alguma doutrina inferir que, na verdade, o juiz inferior não podia ordenar os
tormentos3739. A parte sujeita a eles devia ser notificada e podia embargar a
decisão3740. Uma vez aplicados e caso o réu não confessasse, devia ser absolvido 3741.
7.1.10 A sentença e o caso julgado.
§ 2075. Feitas as provas de ambas as partes e concluída (conclusa, fechada) a
causa, o juiz proferia a sentença3742: definitiva, se decidisse a lide principal e lhe
pusesse fim, condenando ou absolvendo, ou interlocutória (o “decreto” ou
“mandato” do direito romano), se consistia numa decisão do juiz sobre algum
ponto do processo.
§ 2076. A sentença era dada pelo juiz, depois de estudados os elementos do
processo. O juiz podia consultar um assessor letrado3743, mas não era obrigado a

3732 Cf. Antonio Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Delictum”, n. 56: "hoc enim genus

tormentorum in nostra Lusitania, & alibi, est crudele, et terribile, ita ut non sit maius suplicium, praeter
mortem, et nonulli moriuntur in torturis quo propter etiam de iure sit expositum, quod sit ad eruendam
veritatem, est gravis poena, quae dari debebat pro gravi delicto, si clarissime fuit probatum […] si non
probatur delictum clarissime, non videbatur mihi esse ratio, quod talis poena infligeretur, sed alia extra
ordinaria in dubio, enim sanctius est nocentem impunitum relinqueree, quam innocentem condemnare”.
3733 António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 52, n. 2.

3734 Ord. fil.5,6,29; Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], p. 2, liv. 5, § 8, ns. 89-90;

António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p.. 3, cap 23, n. 15
3735 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], p. 2, liv. 5, cap 1, § 8, ns. 91-98, António

Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, cap 23, 20; indícios claros e provados, ibid. p. 3, cap 23,
n. 18; dois cúmplices, uma testemunha e outros indícios, ibid. p. 3, cap 23, n. 28.
3736 O menor e mulher prenha não podiam ser postos a tormento; nem o nobre, o constituído em

dignidade, ou o doutor, António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, cap 23, n. 17.
3737 Pelo corregedor do crime da corte, Ord. fil.1,7,17 (propunha ao Regedor da Casa da Suplicação

e este nomeava dois desembargadores para presidir ao auto); das perguntas que se deviam fazer ao réu
sem tormentos, António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 53 n. 1 ss. e cap. 54.
3738 Quando se podiam repetir, Ord. fil.5,134, 1 Sobre os exames médicos que se deviam fazer nas

feridas e nódoas e inchaços, por médicos ajuramentados, havendo-os, ou cirurgiões e barbeiro (refere-se
também a exames post mortem), António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 54.
3739 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 2, cap. 52, n. 3.

3740 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, cap 23, n. 31.

3741 Cf. António Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p.. 3, cap 23, n. 29; e não, como

acontecia na tortura administrada no processo perante a Inquisição, ser considerado inconfidente,


impenitente ou relapso, uma circunstância que ainda agravaria o crime.
3742 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 17.

3743 Cf. António Cardoso do Amaral. Liber […], cit., s. v. “Assessor”. Embora Amaral os refira

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isso. Não respondia senão por erros dolosos (Ord. fil. 1,65,93744).
§ 2077. A sentença devia ser fundada no direito vigente (Ord. fil. 1,5,4), ser dada
segundo as provas constantes dos autos (Ord. fil. 3,66,pr.), ser conforme ao libelo
(Ord. fil. 3,66,1), condenar em quantia certa, condenar o vencido em custas, ser
motivada (Ord. fil. 3,66,7), ser escrita pelo juiz (Ord. fil. 1,1,13) e ser publicada (Ord.
fil. 3,19,1; 3,66,6). O juiz podia revogar a sua sentença, acolhendo embargos, ou
esclarecê-la (cf. Ord. fil. 3,66,6).
§ 2078. Sendo a sentença da competência de um tribunal coletivo, a exposição
da causa e a redação do projeto de sentença cabia a um relator. Os outros juízes da
causa votavam, por ordem inversa da idade e da antiguidade, para evitar a
ascendência dos mais velhos, mas também para os colocar numa posição de melhor
avaliar os votos anteriores. A decisão final era tomada por contagem de votos (vota
3745
numerantur, non ponderantur ; Ord. fil. 1,1,13), não havendo voto de qualidade do
presidente (voto de Minerva); assim, em caso de empate (raro, pois o número dos
juízes devia ser ímpar, Ord. fil. 1,1,7), o réu devia ser absolvido3746.
§ 2079. Caso julgado ou coisa julgada dizia-se da decisão do juiz que se tornava
irrevogável, por não terem sido usados os expedientes de recurso disponíveis ou
por estes se terem esgotado. Depois de passada em julgado, a sentença tornava-se
definitiva, não podendo ser suspensa, revogada ou anulada, nem invocando a
salvação da República.
§ 2080. Excecionalmente, algumas sentenças nunca passavam em julgado. Este
era caso das sentenças nulas, como as preferidas contra direito ou contra os casos
julgados, das fundadas em testemunhos ou provas falsas, ou das sentenças
proferidas por juiz peitado ou incompetente. Não passavam, ainda, em julgado as
sentenças criminais condenatórias. Assim, era sempre possível impugná-las.
§ 2081. Também não passavam julgado as decisões meramente interlocutórias,
conforme se disse, pelo que podiam ser recorridas durante toda a lide. Outras, por
se terem fundado numa verdade apenas provável, podiam ser sempre recorridas
com fundamento em prova em contrário. Era o caso das sentenças baseadas no
juramentados supletório ou no juízo técnico de médicos, cirurgiões, parteiras,
agrimensores, sobre matérias da sua arte3747.
§ 2082. Os efeitos do caso julgado restringiam-se às partes no processo, não

como letrados, em Portugal estes assessores não tinham, frequentemente, graus universitários (já que a
avaliação da sua perícia “tota in conscientia judicis relinquit”, ibid. n.2); eram habituais nos pequenos
concelhos; v. Anabela Ramos, Violência e Justiça em terras do Montemuro (1708-1820). Viseu, Palimage
Editores, 1998. Frequentemente, eram advogados, embora não os da causa (ibid. n. 6). Os assessores
deviam ser pagos pelos juízes; em terras pequenas e pequenas causas, a situação era propícia a que os
juízes recompensassem os advogados-assessores com um tratamento favorável noutras causas por eles
patrocinadas.
3744 Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 26; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 1, ar. 15.

3745 O tópico mais corrente era o inverso: vota non numerantur sed ponderantur; no caso de tribunais

coletivos, supunha-se que a qualidade dos votos era igual, pelo que decisiva era a contagem.
3746 Sobre a redução das sentenças, Ord. fil. 1,1, 8, Ass. 29.4.1659, Jorge de Cabedo, Decisiones […],

cit., p. 1. dec. 7.
3747 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 4,21,15.

598
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

afetando terceiros que nele não tivessem tido intervenção 3748.


§ 2083. As sentenças deviam ser assinadas e seladas na chancelaria, naqueles
tribunais que a tivessem. Esta certificação da sentença devia ser recusada quando
ela fosse mal escrita ou dada contra direito (Ord. fil. 1,4,1). A regulamentação da
assinatura e selagem da sentença pelo chanceler aparecem nas Ordenações que tratam
do ofício do Chanceler-mor do Reino (Ord. fil. 1,4; v. também, 2,39 a 41, sobre as
portarias régias). Este regime aplicava-se, adaptado, a todos os tribunais régios que
tivessem chancelaria (Casa da Suplicação, Casa do Cível, corregedores e provedores
das comarcas, corregedores da cidade de Lisboa, Torre do Tombo, Juiz da Mina e
da Índia, Ouvidor da Alfândega)3749.
7.1.11 A execução.
§ 2084. Uma vez julgada a causa, a decisão tinha que ser executada. A execução
era feita a pedido da parte vencedora (Ord. fil. 3,86,pr.), pedido que o juiz deferia
por meio de um mandato.
§ 2085. A execução era uma diferente fase processual, que não tinha que ser
decretada pelo mesmo juiz que lavrou a sentença declaratória, sendo competente
para a fazer correr qualquer juiz que tivesse jurisdição ordinária3750. Era decretada
contra o réu, bem como contra todos aqueles cujos direitos dependessem do direito
do réu ou que fossem com ele solidários na causa julgada: herdeiros, pai de família
em relação ao filho condenado, fiadores e até devedores do devedor3751.
§ 2086. A execução obrigava a uma série de atos processuais: citação do
executado, fixação de prazo para pagar, designação das coisas a executar e modo de
as vender, tomada de penhores e sua venda, dedução de eventuais exceções que
impedissem execução, prisão do devedor, etc..
§ 2087. O devedor devia ser citado para esta nova fase processual (Ord.
fil.2,53,1; Ord. fil.3,86, pr.) Em certos casos, a citação do executado não bastava. Por
exemplo, no caso de execução de bens de raiz seria também necessária a citação da
sua mulher. Uma vez citado, o devedor tinha certo prazo para pagar. Segundo a
regra geral das Ordenações, este prazo era de dez dias para pagamento de coisa certa
(Ord. fil. 3,86,15), não havendo prazo para pagamento de coisa fungível, embora na
prática fosse de estilo concederem-se 24 horas. Uma vez esgotado este prazo,
procedia-se à penhora dos bens, para ulterior venda. A penhora devia começar
pelos bens móveis, seguindo-se os imóveis e, finalmente, os direitos (Ord. fil.
3,86,9). Esta ordem, que se destinava a proteger o devedor, começando pelos bens
considerados menos importantes, podia ser alterada a pedido deste.
§ 2088. Nem todos os bens eram penhoráveis. Não o podiam ser certas coisas,
ou em atenção à qualidade do devedor penhorado (armas, livros e vestes dos
nobres e desembargadores, destinados a uso pessoal; Ord. fil. 3,86,23), ou para lhe
manter os instrumentos de trabalho (alfaias agrícolas, sementes, cavalos; Ord. fil.
3,86,24), ou por respeitos religiosos (coisas sagradas, embora estivessem no

3748 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,21,16.


3749 V. Ord. fil. 1,61; cf. Manuel Álvares Solano do Vale, Index generalis […], cit., s. v. “Cancellaria”.
3750 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], cit., liv. 3, c. 21; Antonio Vanguerve Cabral,

Pratica […], cit., p. 1, cap. 27; p. 3, caps. 6 e 14.


3751 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,22,4.

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comércio). O mesmo acontecia com os soldos dos militares, os vencimentos e


emolumentos dos juízes e oficiais, os salários dos marinheiros, artífices e
serventes3752. Em contrapartida, podiam penhorar-se os frutos dos morgados,
capelas e benefícios eclesiásticos, apesar de o casco destes bens não o poder ser.
§ 2089. A tomada de penhores (nomeação de bens para a venda judicial) tinha
certas formalidades3753. Uma vez tomados os penhores, devia proceder-se à sua
venda, ordenada pelo juiz, como detentor da jurisdição e como que administrador
dos bens penhorados, o que o sujeitava a deveres, tanto jurídicos (observar as
formalidades do direito), como económicos (agir com a prudência de um bom pai
de família). A venda devia ser precedida de avaliação e ser feita em público,
normalmente por leilão. Os bens eram arrematados por quem fizesse a melhor
oferta e, sendo a venda feita com espera de preço, prestasse fiador capaz. Não
havendo comprador, os bens eram adjudicados ao credor, com um pequeno
abatimento (pois ele podia não estar interessado neles, mas apenas no seu valor,
Ord. fil.3,86 e seus parágrafos). A venda dos bens tornava-se perfeita com a
arrematação, embora o comprador somente entrasse na posse deles mais tarde.
Não existia, no direito português, a possibilidade conferida ao devedor pelo direito
romano de, num prazo de dois anos, resgatar os bens executados (C. 8.33. De iure
dominii impetrando, 3,3).
§ 2090. Só excecionalmente a execução podia ser impedida por alguma exceção.
Não se admitiam exceções que impedissem a sentença 3754, pois o conteúdo desta
estava fixado pelo caso julgado. Aceitavam-se exceções relativas à execução ou ao
seu processo (Ord. fil. 3,87,12: nomeadamente, exceções relativas a causas
supervenientes de extinção da obrigação, como o pagamento, a compensação, a
retenção, a divisão, a transação, o pacto de não pedir, etc.), mas estas não
interrompiam o curso da execução (Ord. fil. 36,3). Se as exceções fossem deferidas,
os bens voltavam ao condenado, para serem sujeitos a novo processo de execução.
O rigor do direito quanto às restrições à oposição de exceções à execução e quanto
ao prazo em que estas devem ser propostas justificava-se pela necessidade de pôr
fim às demandas, uma vez atingido o esclarecimento do caso na sentença, e pela
suspeita que havia quanto à seriedade desta litigância de última hora 3755.
§ 2091. As Ordenações previam a prisão do devedor no caso de, condenado por
sentença passada em julgado, não haver bens suficientes para o pagamento da
dívida (Ord. fil. 3,86,13-18; Ord. fil.4,76,pr.)3756. Estava expressamente excluído o
cárcere privado (se in nexis dare)3757, tal como a prisão das mulheres (honestas) por
dívidas civis3758. Nos finais do séc. XVIII, Pascoal de Melo entende que a

3752 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,22,9.


3753 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,22,10.
3754 Ressalvavam-se os casos de nulidade da sentença já referidos.

3755 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, 4,22,13 a 16.

3756 No caso de ter havido dolo do devedor na ocultação ou venda dos bens, ou atraso, por dolo

ou culpa sua, na execução a prisão podia ocorrer mesmo antes do trânsito em julgado da sentença
condenatória (Ord. fil. 4,76,pr.). Também no caso de dívidas resultantes de delitos ou quase delitos, a
prisão era automática (Ord. fil. 4,76,5).
3757 Sobre o regime de direito romano e sua evolução, António Menezes Cordeiro, Perspectivas […].

3758 Ord. fil. 4,76,6.

600
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ordenação fora revogada para os casos em que não tivesse havido dolo ou culpa do
devedor no prejuízo dos credores3759.
§ 2092. A preferência dos credores nas execuções estava regulada pelas regras
do concurso de credores estabelecidas nas Ordenações (Ord. fil. 2,52). O princípio
geral era o de que preferiam os credores mais antigos, embora também fosse
relevante o tipo de sentença condenatória, preferindo aquelas que tinham feito um
exame mais profundo do caso sobre as mais sumárias3760.
7.1.12 As execuções fiscais.
§ 2093. As execuções fiscais tinham algumas especialidades, que as tornavam
mais rigorosas, a favor deste credor privilegiado que era o fisco 3761.
§ 2094. O privilégio do fisco consistia, antes de tudo, em ter juízes espaciais
para julgar as suas causas, mesmo na fase executiva (“Juízes dos feitos da fazenda”)
e funcionários também especiais para fazer a execução dos bens (“Sacadores” e
“porteiros”, Ord. fil. 2,52)3762. Porém, este privilégio não importava uma ordem
processual distinta da das execuções comuns, nomeadamente quanto aos princípios
básicos do processo de execução (citação ou audição do credor, princípio da
excussão prévia do devedor principal, etc.) 3763. Era isto que levava a doutrina a
afirmar que o fisco gozava do mesmo direito do que os restantes credores 3764.
§ 2095. Outra questão era a da graduação do fisco entre os restantes credores.
A jurisprudência corrente opinava que o fisco tinha privilégios no concurso de
credores, um dos pontos-chave do direito da insolvência. Neste ponto, a
hierarquização dos credores fazia-se, como se disse, pela ordem da nomeação dos
bens à penhora. No entanto, a doutrina tinha estabelecido, desde o séc. XIII, que o
fisco gozava de uma “hipoteca tácita” sobre os bens dos devedores e que “nos
tributos e coletas, o fisco era anterior, preferindo a todos os credores do devedor”,
mesmo à mulher que reclamasse os bens dotais. Por isso, o fisco só era preterido
pelos credores que reclamassem despesas por eles feitas necessárias para a
conservação da coisa e pelos credores hipotecários mais antigos 3765. Este regime de

3759 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,22,18. Funda-se na Carta de Lei de 10.6.1774 e numa

decisão da Casa da Suplicação.


3760 Cf. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 12, ad. Ord. 2,52; Antonio Vanguerve

Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 3, cap. 14.


3761 V. Ord. fil. 2,52-53; Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.3, cap. 10. “Como se

procede nas execuções da fazenda real”. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,22,18.
3762 V. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.3, cap. 10, n. 1.

3763 A base textual era, Ord. fil. 2,52,6 "guardar-se-ha na dita arrematação toda a solenidade, que se

deve guardar nas execuções, que se fazem pelas dívidas de quaesquer outras pessoas particulares" (cf.
Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad 2,52,6 gl.8:
3764 V. Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 12, ad 2,52,6, gl. 8, ns.16 a 19.

3765 “[…] quod pro tributibus seu collectis Fiscus est anterior, & praefertur omnibus debitoris

creditoribus, qui Fisco anteriores esse non possunt, cum tributorum praestatio omnem contractumetiam
temporis antiquitate praecedat […] tardit enim contra dotem, non vero contra creditores, qui in
necessitariam rei consevationem impenderunt”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit, tomo 12,
ad. 2,52,4, gl. 6, p. 377/378. O princípio abrangia ainda os serviços militares e as sisas. Mas não as
dízimas eclesiásticas devidas ao rei, enquanto mestre das ordens militares; no ultramar, Antonio
Vanguerve Cabral, Pratica judicial […], cit., p. 3, caps. 10 e 14. A base textual era D.20, 2, In quibus causis
pign. vel hypoth. tacite contrahitur; D.49, 14, De jure fisci; C.10, 1 De iure fisci, 1; C.8.14. In quibus causis pignus
tacite contrahitur. No direito português, usava-se Ord. fil. 2,52,4, com uma interpretação forçada (“ …
façam as penhoras, e execuções primeiro nos bens …”, ibid. n.1 fin. p. 378).

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privilégio no concurso de credores aplicava-se a todas as dívidas de impostos,


contribuições ou fintas, reclamadas pela coroa, donatários ou contratadores, pelo
que tinha um vasto alcance3766.
§ 2096. Em 1761, a Carta de Lei em que se faculta ao Conselho da Real Fazenda
privativa jurisdição […], de 22 de Dezembro, que completava outra do mesmo dia
criando o Erário Régio e reformando o Conselho da Fazenda, reuniu e sistematizou
o regime do julgamento e execução das dívidas à fazenda régia. Esta nova
ordenação visava concentrar num único tribunal – o Conselho da Real Fazenda -
todas as questões relativas ao fisco, atribuindo-lhe prerrogativas extraordinárias,
nomeadamente no que respeita ao caráter executivo dos títulos da fazenda 3767. Para
começar, as contas efetuadas pelo Erário Régio eram havidas como justas, uma vez
passados os prazos da sua impugnação, e constituíam título executivo (referida
Carta de lei de 22.12.1761, tit. 3, § 5 ss.). Depois, alargava-se o universo dos
executados: solidariamente, os devedores, seus herdeiros, adquirentes de seus bens
depois de contraída a dívida fiscal, seus devedores. Estabeleciam-se, ainda, prazos
estritos para a execução e venda dos bens. Finalmente, os devedores do fisco que
não pagassem ou dessem bens para a penhora no prazo de 10 dias eram presos,
uma vez que a liquidação da dívida pelo fisco equivalia a título executivo (Ord. fil.
4,76,3). Pouco disto representava, porém, uma verdadeira alteração do direito mais
antigo, que já continha princípios semelhantes 3768.
§ 2097. No resto, o fisco seguia a ordem executiva comum. Apesar da força que
a ideia de interesse público ganhou na cultura jurídica iluminista, Pascoal de Melo
resiste ainda a agravar os privilégios do fisco: "Em tudo o mais - escreve - o fisco
usa do direito comum, Ord. fil. 2,52, § ult.); com efeito, não é próprio do bom
príncipe aumentar os direitos fiscais com razão ou sem ela, nem do bom cidadão
dar maus conselhos no sentido de tal aumento, nem do bom intérprete estendê-los,
contra ou à margem da lei, a outros casos, por mais parecidos que sejam; e também
não creio cometer um delito aquele que, nas questões duvidosas, opinar contra o
fisco [...]"3769.
§ 2098. Em suma. Os privilégios do fisco consistiam apenas em dois regimes
especiais. Por um lado, num privilégio de foro. Por outro, num privilégio de
graduação em caso de concurso de credores. Mas não já em formas processuais
menos garantidas para os executados ou mais expeditas.
7.1.13 As dízimas e as custas.
§ 2099. Era na fase da execução que se liquidavam e cobravam as dízimas das
sentenças, uma quantia equivalente a 10% do valor constante do libelo, a pagar pelo
condenado, correspondente a um tributo devido ao titular da justiça (o rei), por um
uso injustificado dessa justiça, já que se concluía que o condenado mostrara que
não tinha tido razão na litigância. Nem todos os juízos cobravam dízimas; em geral,

3766 Muitas sentenças sobre o tema em Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 12, ad. Ord.
2,52.
Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,22, 19.
3767

Que, já antes, era admitido por direito, Regimento da Fazenda, cap. 173, António Vanguerve
3768

Cabral, Pratica […] cit., p.3, cap. 10, n. 1.


3769 “As causas do fisco são sempre más, mesmo sob um bom príncipe” (“fisci causa sempre mala

sub bono Principe”, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], tomo 12, ad. Ord. 2,35, cap. 30.

602
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

elas existiam nas justiças ordinárias cíveis3770.


§ 2100. As dízimas pertenciam ao Rei, como regalia; porém, frequentemente,
estavam doadas aos senhores das terras. Tratando-se de um tributo geral, não havia
grupos isentos, excetuando os pobres e as pessoas miseráveis que agissem de boa-fé
(alv. 8.5.1755), bem como o procurador da coroa (Regimento da Chancelaria, § 16).
As dízimas eram liquidadas e executadas na chancelaria do tribunal, onde se
procedia ao ato de assinatura e selagem das sentenças.
7.1.14 Os recursos. Apelações e agravos.
§ 2101. As sentenças eram recorríveis.
§ 2102. No direito dos recursos combinaram-se influências contraditórias. O
processo romano, muito formalista, não era pródigo nos recursos. Para além de que
a ordem judiciária romana não conhecia uma hierarquia das instâncias de justiça.
Uma decisão judicial, obtida mediante o cumprimento de ritos, fórmulas e
exigências processuais estritas, devia tender a tornar-se definitiva3771. Em
contrapartida, o processo canónico assentava numa conceção material, substancial,
da justiça, e na permanente possibilidade de corrigir a justiça formal pela justiça
material ou mesmo pela graça e pela misericórdia. Estas ideias dos canonistas
favoreciam uma permanente reapreciação e revisibilidade das decisões. Assim,
tendiam a multiplicar-se os recursos, concebidos como graças livres de uma
instância superior; final, tendia a ser apenas o Juízo do fim dos tempos.
7.1.15 A apelação.
§ 2103. O recurso ordinário de um juiz (de primeira instância) para o tribunal
de apelo superior3772 era, genericamente, chamado apelação3773.
§ 2104. A apelação não era possível senão de decisões que afetassem o
resultado final da demanda (“interlocutória mista”). Daí que as decisões
interlocutórias meramente processuais (“interlocutórias meras”) não fossem
apeláveis (Ord. fil. 3,69,pr.). Porém, a dificuldade de encontrar decisões processuais
que não afetassem de algum modo o resultado final levava a uma certa
complacência na admissão de apelações de decisões dadas no decurso do processo
(decisões interlocutórias)3774.
§ 2105. Excecionalmente, não se admitia apelação em relação a alguns juízos.
Da Casa da Suplicação não se admitia apelação, por ser tribunal supremo (embora
se admitisse o recurso extraordinário de revista, bem como qualquer recurso
extraordinário – súplica - para o rei) (Ord. fil. 3,95). Igual privilégio tinham outros
tribunais, como a Casa do Cível, os corregedores da Corte, o Conservador da
Universidade de Coimbra (Ord. fil. 3,84) ou, em casos singulares, os juízos a quem

3770 Detalhes em Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,22,10.


3771 Sobre a supplicatio romana e a sua excecionalidade, cf. Max Kaser, Das römische Zivilprozessrecht,
cit., (2 ed.), ps. 617-623.
3772 Os tribunais superiores eram as Relações dos respetivos distritos e, nas terras senhoriais, os

próprios senhores ou seus ouvidores. Mas esta jurisdição senhorial de recurso nunca constituía uma
última instância. E foi extinta pela CL de 19.7.1790, o que transformou as relações na única instância de
recurso ordinário.
3773 Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 3, c. 19; Pascoal de Melo, Institutiones iuris

civilis,4,23,1.
3774 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23,6.

603
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fosse casuisticamente concedido o privilégio de julgar sem recurso (remota


adpellatione, D.49.2 A quibus appellari non licet, 1, 4). Esta proibição de apelação não
abrangia recursos especiais como a recusa de juiz, a querela de nulidade, etc..
§ 2106. Para que se pudesse recorrer, era necessário que a causa, pelo seu valor,
medido pelo pedido no libelo, não coubesse no espaço de decisão definitiva (alçada
> lat. altiare, levantar3775) do tribunal (Ord. fil. 3,70,6 e ss.; Extravagante de
26.6.1696)3776. Nas causas crime, não havia alçada, pois tinham uma natureza
pessoal e, nas pessoas (nos direitos pessoais), não havia avaliação (in corpore non datur
aestimationem). O mesmo se diga das causas que tivessem por objeto a jurisdição,
pois esta também não tinha preço.
§ 2107. Nas terras senhoriais, o direito de conhecer das apelações dos juízes de
primeira instância cabia aos senhores, por si ou seus ouvidores. Mas, sendo a
jurisdição suprema inseparável do rei, estes tinham sempre que dar apelação para os
tribunais da coroa, sendo por isso chamada de "intermédia" a sua jurisdição (Ord.
fil. 3, 77, 23777).
§ 2108. No foro eclesiástico, recorria-se do bispo (ou seu vigário geral) para o
arcebispo ou, omisso medio, para o Papa3778. No caso dos bispos, enquanto
donatários, seguia-se a regra de recurso das justiças senhoriais.
§ 2109. O direito de recorrer era concedido a todos os que tivessem recebido
um prejuízo com a sentença (Ord. fil. 3,81, pr.), desde que não tivessem renunciado
a recorrer (Ord. fil. 3,69,4; 3,70,pr.; 3,79,2), aproveitando todos da decisão do
recurso de um. Assim, podiam apelar as partes, os seus mandatários com mandato
bastante, os fiadores, os vendedores da coisa litigiosa 3779.
§ 2110. O prazo para apelar era de 10 dias (“prazo fatal”), a contar do
conhecimento da sentença (Ord. fil. 3,69,4; 3,70; 3,79). A apelação interpunha-se
perante o juiz de quem se recorria, o qual marcava um prazo (“atempava”), não
superior a um mês (“dias de aparecer”) para propor o recurso junto do juiz
superior. Proposto o recurso junto deste, devia ser prosseguido dentro de seis
meses (Ord. fil. 3,69,3 ss.). O não recebimento do recurso pelo juiz era fundamento
para recurso de agravo (Ord. fil. 3,69; 3,70; 3,74). Para efeito deste recurso, o
apelante podia pedir aos escrivães uma “carta testemunhável” de como apresentara
o pedido de recurso perante o juiz (Ord. fil. 3,69,7; 3,74,5; 3,78,pr. e 5).
§ 2111. O primeiro efeito da apelação era o de suspender os efeitos da decisão
recorrida. Esta regra de direito romano foi excluída, embora excecionalmente, no
direito pátrio, nomeadamente para causas em que era prejudicial a demora 3780.
Pendente o recurso, ficava suspensa a jurisdição do juiz recorrido, que nada podia
inovar na causa (Ord. fil. 3,73,pr.) pois a sua jurisdição fora "devolvida" ao juiz

3775 Dizia-se da posição das varas dos juízes, quando usavam do seu poder de jurisdição: “de vara
alçada”
3776 Sobre as alçadas dos juízos em Portugal, Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.
3, cap. 9.
3777 Cf. Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p. 2, dec. 40.
3778 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 2, caps. 1 e segs..
3779 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23,12.

3780 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,17.

604
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

superior, para quem transitara o processo (primeiro, por traslado, depois [CL
18.8.1747], os próprios autos). Suspensa a sentença, a causa retornava ao estado em
que estava na contestação da lide, abrindo-se de novo a admissão de exceções e a
alegação e prova de razões sobre a nova matéria (Ord. fil. 3,83).
§ 2112. O tribunal de recurso podia confirmar ou reformar, no todo ou em
parte, a sentença recorrida, mesmo para além do pedido do recorrente.
§ 2113. Decidido o recurso, a sentença voltava ao juiz inferior para ser
executada. Nos recursos por apelação, o vencido era condenado nas custas das duas
instâncias; nos agravos, apenas nas da primeira instância (Ord. fil. 3,68,1).
§ 2114. As sentenças nulas ipso jure eram revogadas sem necessidade de recurso
(Ord. fil. 3,75; D. 49,8 Quae sententiae sine adpellatione rescindantur), por meio de uma
"querela de nulidade" intentada perante o juiz inferior ou o superior num prazo de
30 anos.
7.1.15.1 O agravo.
§ 2115. Para a generalidade dos casos em que não fosse possível a apelação, o
direito pátrio previa outra forma de recurso – o recurso de agravo. Este instituto
era uma das singularidades do direito pátrio em confronto com o direito
comum3781.
§ 2116. Os agravos alargavam a possibilidade de recurso em dois sentidos.
§ 2117. Por um lado permitiam a interposição de recurso de decisões de certos
juízes inferiores, das quais não se podia apelar. A origem da distinção das duas
formas de recurso está no facto de o direito romano não permitir a apelação de
certos juízos nem das decisões interlocutórias, ao passo que o direito canónico
concedia recursos com maior generosidade. Daí que, no direito pátrio, se tenha
usado a figura do agravo para permitir recursos em casos em que a apelação não era
possível se se seguisse a tradição mais rigorosa do direito romano. Assim, admitiu-
se o agravo das decisões da Casa do Cível, dos Corregedores da Corte e de outros
magistrados superiores, de quem não se podia apelar (Ord. fil. 1,6,pr.; Ord. fil.
3,20,28; Ord. fil. 3,84 [prazos e regulamentação]). Estes agravos – chamados
ordinários - eram muito semelhantes, no seu processo e efeitos, às apelações.
Porém, diferiam quanto aos efeitos suspensivos, já que só suspendiam a sentença
por seis meses (Ord. fil. 3,84,ult. e 73,5,1), ou por dois anos no Brasil (Alvará de
5.12.1801).
§ 2118. Em segundo lugar, possibilitavam o recurso de decisões não
determinantes do resultado final da causa, ao admitir os agravos das decisões
interlocutórias de todos os juízes (agravo por petição ou instrumento)3782. Usava-se
o agravo por petição quando o juiz superior estava dentro de 5 léguas; o agravo por
instrumento, quando estava mais longe (Ord. fil.. 1, 7, 16; 1,9, pr.; 1,58,25)3783. Em
rigor, isto só era possível no caso de as decisões processuais afetarem a sentença

3781 Cf. Mendes Mendes de Castro, Practica Lusitana […], cit., liv. 2, cap. 19; Antonio Vanguerve

Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 2, c. 48 (agravos ordinários); Mateus Homem Leitão, De jure Lusitano
[...], cit., qu. 6, n. 4; cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,23.
3782 Ord. fil. 3,20, 46; fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado [...] cum adnotationes de João

Martins da Costa, cit., ed. 1746, p. 120 ss..


3783 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,24.

605
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final3784, mas a dificuldade do diagnóstico quanto a isto tornava a prática muito


complacente. Já quando se concluía que o despacho interlocutório era puramente
processual (interlocutória mera) podia-se reclamar no processo, mas sem figura de
recurso.
7.1.15.2 A revista.
§ 2119. A revista3785 era um recurso extraordinário, dirigido ao príncipe, não
tanto como senhor da justiça, mas como senhor da graça3786. Nele se pedia uma
revisão da causa, por nulidade ou injustiça notória (Ord. fil. 3,95). Arguindo-se a
injustiça da sentença recorrida, tal injustiça havia de ser grave e notória 3787, embora
este conceito não estivesse concretizado nas Ordenações. A doutrina pendia para
entender que seria o caso de decisão baseada numa opinião singular ou que fosse
contra a razão natural3788.
§ 2120. A doutrina mais antiga distinguia a revista de justiça, em que se arguia a
nulidade da sentença provinda de falsas provas ou de peita do juiz, da revista de
graça especial, pedida com fundamento em qualquer injustiça ou na suspeição do
juiz, desde que este não pudesse ser recusado (Ord. fil. 3, 21, 5), e da de graça
especialíssima, a que ocorresse sempre que as anteriores fossem impossíveis. Neste
último caso, era dispensado mesmo o fundamento da revista (v.g. a notoriedade da
injustiça) e o prazo para a deduzir (CL. 3.11.1768) 3789. Na revista de justiça,
admitiam-se novas provas e alegações (como na apelação) 3790.
§ 2121. Como remédio de graça, a revista devia ser requerida ao Príncipe,
através do Desembargo do Paço – o tribunal competente para conhecer dos
assuntos de graça em matéria de justiça -, uma vez esgotados os meios ordinários
de recurso. Sendo um recurso de graça, não tinha efeitos no âmbito da lide (no
plano da justiça): não suspendia a sentença, nem admitia a aposição de exceções ou
a produção de nova prova. Em contrapartida, implicava o pagamento de uma multa
se a sentença fosse confirmada. O prazo para a pedir era de dois meses a contar da
publicação da sentença (Ord. fil. 3,95; 3,8,10,11 e 12, Regimento do Paço, §§
32,33,34 e 35)3791. Para garantir a sua pertinência, dois desembargadores do Paço e

3784 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,25.por Mateus Homem Leitão, De jure

lusitano […], cit., qu. 5, desde o n. 41.


3785 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], liv. 2, c. 20.

3786 Cf. Bento Pereira, Promptuarium […], cit., s. v. “Sententia quoad revisionem”; Álvaro Valasco,

Decisiones [...], cit., cons. 51; Tomé Valasco, Allegationes […], all. 90.
3787 Ord. fil. 3,75, pr.; 3, 87, 1; Gregório Martins Caminha, Tratado [...], cit., ed. 1746, p. 126.

3788 Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis, cit., 4,23,28; Gregório Martins Caminha, Tratado […],

cit., ed. 1764, annot. LVI (com formulário e notas); Ignacio Pereira de Sousa, Tractatus de revisionibus, cit.,
caps. 65 e ss. Mendes de Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana […], Liv. 3, cap. 20.); Álvaro
Valasco, Decisiones […], cit., pt. 1, cons. 6; Jorge de Cabedo, Decisiones […], p. 1. dec. 13.
3789 Sobre a distinção, Álvaro Valasco, Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 51, n. 9 ss.. Na prática, os

principais casos de revista de graça especialíssima eram a extinção do prazo em quaisquer causas e, nas
causas criminais, a denegação da licença para a revista ou a proibição da faculdade de dispensar (CL
3.11.1768; v. para o período anterior, Jorge de Cabedo. Decisiones […], p. 2, Arest. 42. e Ignatio Pereira
de Sousa, Tractatus de revisionibus, cit., cap. 17, com muitos exemplos de revista nas causas criminais.
3790 Cf. Álvaro Valasco, Decisiones […], p. 1. dec. 51; Ignacio Pereira Sousa, De revisionibus […], cit.,

cap. 7.
3791 Dois anos, no caso de revistas da Relação de Goa (Tomé Valasco, Allegationes, cit., all. 90, n. 10-

12).

606
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

dois da Casa da Suplicação eram ouvidos previamente à sua aceitação 3792.


7.1.15.3 Os recursos extraordinários.
§ 2122. A revista apenas podia ser usada em relação a juízes seculares. Assim,
não era uma revista - mas antes um recurso ordinário de justiça, que suspendia a
jurisdição do juiz recorrido e era possível a qualquer tempo - a faculdade de
recorrer para o rei por um abuso da justiça eclesiástica (ajuda do braço secular, Ord.
fil. 2, 8)3793.
§ 2123. Tão pouco o recurso chamado “de terceira instância” em relação a
sentenças do Tribunal da Legacia ou da Nunciatura para a Mesa da Consciência e
Ordens (cf. carta de lei de 10.11.1561) era uma verdadeira revista, mas um último
recurso de justiça.
§ 2124. Mas havia recursos extraordinários, feitos fora da ordem de juízo, com
fonte no direito canónico (Decretais, De adpellationibus, cap. 5). Era o caso dos
recursos em que se impugnavam os atos das câmaras dos concelhos ou, em geral,
de qualquer corporação com jurisdição autónoma que tivesse causado um prejuízo
ao apelante (Ord. fil. 3,78,pr.) ou de qualquer ato de jurisdição voluntária, praticado
por terceiros (composição ou partilha extrajudicial) e prejudicial ao apelante. A
doutrina aproximava estes recurso dos atos de graça, já que a instância para que se
apelava não tinha jurisdição sobre a apelada. Um exemplo era o já referido recurso
ao braço secular3794.

3792 Cf. sobre outras formalidades, Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23,28.
3793 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris civilis,4,23, 29; este recurso não era admitido, porém, em
relação às decisões do Conselho Geral do Santo Ofício, Manuel Álvares Pegas, Commentaria […] cit.,
tomo 3, ad Ord. fil.1,9,12, n. 621; Francisco Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione, p. I. cap. II, §
5, n. 5.
3794 Sobre este instituto, cf. Gabriel Pereira de Castro, Tractatus de manu regia […], cit.; Francisco

Salgado de Somoza, Tractatus de regia protectione […], cit..

607
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8 Crimes e penas.
8.1 A dogmática penal.
§ 2126. O direito penal é um ramo mais tardio e mais pobre da dogmática do
direito comum.
§ 2127. No próprio direito romano, as questões penais foram sempre tratadas
fora da ordem judiciária ordinária, ou por tribunais especiais de natureza política
(quaestiones perpetuae) ou por magistrados agindo como que administrativamente,
segundo um trâmite processual especial, a que se chamava a extra ordinem cognitio3795,
que se tornou no único processamento para estas questões no ano 342 da nossa
Era3796. O facto de esta forma de cognição extraordinária conceder um extenso
espaço ao arbítrio do juiz3797 ainda atrasou mais a fixação de princípios dogmáticos
nesta área. Isto explica que a dogmática penal fosse tão subsidiária da dogmática do
direito privado e a teoria do crimen (como delictum publicum) tão dependente da teoria
do delictum (privatum). Esta pobreza das fontes romanísticas relativamente a um
conceito autónomo de crime e de direito criminal explica também que o direito
penal fosse uma disciplina tardia na evolução do direito comum 3798, sendo os seus
inícios datáveis do séc. XVI (principalmente com Tiberio Deciano; mas também
com Giovanni Menochio, Julio Claro, Antonio Matteus, Prospero Farinaccio) 3799.

3795 A cognitio extra ordinem constituía um rito processual muito diferente do da ordo iudiciaria do

processo per formulas, seguida pelos pretores urbanos (aquela que os juristas clássicos tinham em vista nos
seus escritos e que constituía, por isso, a referência fundamental do direito romano). Era um processo
escrito, dirigido por um magistrado, que, instado por uma acusação (libellus) ou oficiosamente,
investigava (inquiria, inquisitio) os factos denunciados e julgava os seus autores.
3796 Cf. C.2,57,1. Na fase mais arcaica do direito romano, segundo parece, um crime era uma

violação de normas religiosas ou cívicas fundamentais da comunidade [inicialmente, a traição - perdvellium


-, sendo o elenco progressivamente alargado (peculato, violação dos muros da cidade, homicídio, fogo
posto, roubo noturno, feitiçaria)], punido com pena capital pelos pontífices ou pelos magistrados
dotados do máximo poder de império. Na raiz da punição não estava um procedimento jurisdicional (i.e.
fundado na declaração do direito por um magistrado dotado de iurisdictio), mas um puro ato de coerção
(coercitio) ou de mero império, embora o condenado tivesse a possibilidade de apelar para os comícios
(provocatio ad populum). Ao lado destes atos que lesavam bens públicos fundamentais havia outros atos
lesivos de bens particulares castigados nos quadros da vingança privada ou, depois, de ações legais (legis
actiones) requeridas pelo ofendido, visando a reparação do dano. A partir da Lex Calpurnia (149 a.C.),
várias leis foram criando tribunais especiais - separados da jurisdição ordinária - para julgar determinados
delitos de incidência pública (quaestiones perpetuae). Com o Império, esta jurisdição criminal caíu sob a
alçada do imperador, que a delegava no praefectus urbi, no praefectus poraetori, ou nos governadores
provinciais. Estudos clássicos sobre o direito penal romano: Th. Mommsen, Römisches Strafrecht, 1899; P.
Girard, Histoire de l’organisation judiciaire des romains, 1901; J. L. Strachan-Davidson, Problems of the Roman
Criminal Law, Oxford, Clarendon Press, 1912 (https://archive.org/details/cu31924021166925; síntese
em English Historical Review, April. 1902); W. Kunkel, Untersuchungen zur Entwicklung des römischen
Kriminalverfahren in sullinisher Zeit, München, 1962; síntese interessante do ponto de vista aqui adotado, W.
D. Aston, “Problems of Roman Criminal Law”, Journal of the Society of Comparative Legislation, New Series,
Vol. 13, No. 2 (1913), pp. 213-231; ou o artigo “Criminbal Law” no sempre útil Adolf Berger,
Encyclopedic dicitionary of Roman Law […], cit..
3797 Quanto ao mérito da questão, quanto à avaliação da prova, quanto à pena a aplicar.

3798 Síntese muito informada, Frederico de Lacerda da Costa Pinto, A categoria da punibilidade […],

cit., 1, 64 ss.
3799 Cf. Mario Sbriccoli, “Lex delictum facit., Tiberio Deciani e la criminalística italiana nella fase

cinqucentesca del penale egemonico”, cit..

608
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

8.1.1 O delito.
§ 2128. Delito era, no direito romano e no direito comum, uma categoria geral
que compreendia a prática de um ato proibido pelo direito, com isso ofendendo
bens privados ou bens públicos. A proximidade entre delito e crime explicava que
um comportamento pudesse caber nas duas categorias e dar origem, ao mesmo
tempo, a uma pena destinada a castigar a ofensa pública (ad vindictam) e a outra
dirigida à compensação dos danos privados 3800.
§ 2129. Embora se note uma grande indeterminação no uso das expressões
“delito” e “crime”, delito era a categoria mais geral: todos os crimes eram delitos,
mas nem todos os delitos eram crimes. Na verdade, a palavra crime apontava para a
violação de um bem público fundamental. Tomé Valasco era de opinião de que
seriam delitos públicos os crimes de falso e todos aqueles em que fosse imposta
uma pena pelo menos de açoites ou de degredo por certo tempo. Do ponto de vista
processual, o caráter público do bem ofendido explicava que os crimes e delitos
públicos tivessem um regime processual especial, marcado pelo conhecimento
oficioso-inquisitório da matéria3801, e pudessem ser levados a tribunal por uma
acusação feita por qualquer pessoa, enquanto que o julgamento dos delitos privados
dependia da acusação e da parte lesada3802. A dogmática de direito canónico
equiparava o delito ao pecado e, por isso, considerava todos os delitos como
públicos3803.
§ 2130. Apareciam nos autores outras classificações do delito, estas relacionadas
com a natureza do ato praticado. Falava-se em delitos leves, que se cometiam sem
dolo ou que tinham pouca gravidade e que se deviam julgar de forma simples e sem
grandes formalidades (simpliciter et de plano); em delitos graves (gravia), os cometidos
com intenção (dolose), que traziam grande prejuízo a um particular ou à República e
nos quais se devia agir com severidade; e em delitos gravíssimos ou atrozes, pela
gravidade e qualidade, nos quais se aplicava a pena capital3804. Havia autores que
falavam de delitos maus por natureza (como o furto, o estupro e a blasfémia), nos
quais se devia presumir que o autor tinha agido com intenção má (dolus malus)3805.
§ 2131. Os delitos eram considerados como atos maus (ex sua natura), praticados
por homens maus3806. A utilidade pública exigia a sua punição, devendo os juízes
estar atentos à sua vigilância e punição célere, sem o que ficaria comprometida a
paz da república3807. A maldade dos atos e dos criminosos aparecia como ligada à
natureza e não a uma declaração da lei do príncipe, que não podia fazer do bem mal
nem do mal bem3808. Nas fontes doutrinais portuguesas usadas, a criminalização

3800 “Ex delicto oritur duplex actio, altera criminalis ad poenam corporalem, vel pecuniariam, altera

civilis in factum ad interesse & persecutionem rei”, Álvaro Valasco, Decisiones […], cit., cons. 169, n. 17.
3801 Modelo: D.48,18 De quaestionibus.

3802 Tomé Valasco, Allegationes […], all. 13, 63.

3803 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” n. 1. Sobre a teoria criminal do

direito canónico, v. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, A catategoria da punibilidade […], cit., p. 70 ss..
3804 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” ns. 10 e 20.

3805 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 4.

3806 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 4 e 5.

3807 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 9 e 13.

3808 Que a vontade do príncipe não podia mudar a natureza criminal dos comportamentos

explicava que um crime cometido a mando do príncipe não deixasse de o ser (“Delinquens iussu illius,

609
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dos atos maus e a punição dos que os praticassem obedecia ainda a um modelo
tradicional do direito penal, não aparecendo especialmente cometida ao direito
régio – à lei; antes se deixando entender que a criminalização de comportamentos
competia à comunidade, que expressaria de muitas formas a sua sensibilidade
acerca da maldade desses comportamentos.
§ 2132. Os atos maus deviam ser castigados. Esse castigo era a pena criminal –
de natureza diferente da pena civil (v.. cap. 6.11) - que, por isso tinha uma natureza
pessoal. Consequência desta natureza pessoal da pena era a sua
intransmissibilidade3809 - aos filhos, ao cônjuge, aos herdeiros -, embora esta regra
tivesse exceções, provenientes de uma ideia de alastramento da maldade aos
próximos, mas, sobretudo, de uma simples consequência lógica da pena. Assim, nos
crimes de heresia ou de lesa majestade, punidos também com confisco, as
consequências patrimoniais recaíam naturalmente sobre os herdeiros, que ficavam
privados da herança3810. Nos casos de coautoria ou de cumplicidade, todos os
implicados eram puníveis, porque aqui não se tratava de estender a
responsabilidade penal a outrem, mas de responsabilizar todos os criminosos. O
mesmo no caso da punibilidade do mandante 3811. No entanto, as leis podiam
determinar, em certos casos, que as penas (por exemplo, a infâmia) se continuassem
nos descendentes até certa geração; nesses casos, entendia-se que as mulheres – que
entravam apenas “politicamente” nas famílias daqueles com quem casavam -
escapassem a essa mancha3812.
§ 2133. Este caráter pessoal da censura e da pena criminais explicava também
que a pena não devesse prejudicar terceiros cujos patrimónios fossem
administrados pelo delinquente. Por isso, os delitos dos prelados não prejudicavam
a Igreja, os dos tutores não prejudicavam os pupilos, os dos pais não prejudicavam
os filhos3813.
8.1.2 A ilicitude e tipicidade.
§ 2134. Para haver delito, o comportamento do agente tinha que ser contrário
ao direito. E, acrescentavam os autores - afirmando uma regra que não era
específica do direito penal mas que aqui aparecia como um princípio muito
importante -, ao direito expresso. Isto explica que só houvesse um delito se existisse
um comportamento proibido pelo direito ou, pondo as coisas de outro modo,
explicava que não houvesse delito nem contrariedade (iniuria) com o direito quando
uma norma jurídica3814 expressa permitisse tal comportamento3815. No delito penal,

qui habet ius imperandi, excusatur in eo, quod iure fit, & in levibus delictis, quoniam in gravibus non
excusantur […] quia in gravibus delictis nullus tenetur obedire illi, qui habet ius imperandi”, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 38).
3809 Cf. “Actio qui tendit ad vindictam non transit in haeredes”, Gabriel Pereira de Castro, Decisiones

[...], cit., dec. 119, n. 8.


3810 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 34 e 37.

3811 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 27 (a pena estendia-se ao

mandante, a menos que isso fosse expressamente excluído pela lei).


3812 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 38.

3813 A não ser nos tais casos em que a natureza da pena os prejudicasse como herdeiros, António

Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 32.


3814 Por vezes, os textos falam de “lei”. Mas a palavra tem um sentido amplo, que abarca, por

exemplo, as normas contidas do Corpus iuris (muitas das quais nem eram originariamente leis).

610
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

que atinge bens de todos, ainda é preciso que o direito proteja expressamente estes
bens, declarando também expressamente como crimes a sua violação (tipicidade).
Os corolários desta regra refletem-se nas proibições da aplicação analógica da
norma penal incriminatória3816 e da sua interpretação extensiva 3817.
§ 2135. Tem sido realçado pela historiografia mais recente que esta exigência de
criminalização expressa das condutas não equivale ao princípio da legalidade
estabelecido no séc. XIX. Neste, a exigência de que o crime esteja previsto
expressamente na lei representa uma garantia para o cidadão, pois se entende a lei
como a forma cidadã de estabelecer o direito. Em contrapartida, no direito anterior
a exigência de que o comportamento delitivo estivesse expressamente previsto na
lei servia para indiciar a suma gravidade do desrespeito do criminoso pelo direito da
comunidade3818.
§ 2136. No entanto, havia aberturas para a extensão da lei penal. Por um lado,
considerava-se que a analogia ou similitude das situações podia corresponder a uma
identidade dos motivos racionais para as punir, pelo que, em certos casos, se devia
aplicar a um caso o tratamento penal que o direito previa para outro em que as
razões subjacentes à decisão fossem as mesmas, pois, verdadeiramente, não se
tratava de casos análogos, mas antes racionalmente dos mesmos 3819.
§ 2137. Menos subtis eram outras das exceções à regra da não extensibilidade
da incriminação. Assim, entendia-se que esta não teria lugar se o interesse da
república requeresse que se estendesse a incriminação, para que os delitos fossem
mais completamente punidos3820, ou se o favorecimento da Igreja ou da fé
requeressem o mesmo3821.
8.1.3 A imputabilidade penal: menores, furiosos, bêbados e irados.
§ 2138. Como o delito implica um castigo, não comete delito quem não deva
ser castigado, por carência absoluta de inteligência dos seus atos (cum non habeant
intellectum)3822. Esse é o caso dos loucos (furiosi) (v. cap. 3.1.10) e das crianças até ao
termo da infância (v. cap. 3.1.9). Quanto aos outros (bêbados, pessoas perturbadas
pela ira), o direito era bastante exigente. Responsabilizava o bêbado, desde que a
bebedeira não lhe trastornasse a mente, embora o punisse mais levemente ou, até, o

3815 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber […], cit., s. v. “Damnum”, n. 8 (“Qui facit quod lex

permittit nulli facit damnum nec iniuriam”). Muito mais escuso estava da responsabilidade penal quem
atua por imperativo da lei, Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 87, n. 12.
3816 Miguel de Reinoso, Obervationes [...], cit., 73, n. 28 (“Poena a lege imposita in uno casu non

potest ad alium extendi”).


3817 Cf. Melchior Febo, Decisiones [...], cit., p. 1, dec. 72, n. 7 (as leis penais são de direito estrito e

não podem ser interpretadas extensivamente).


3818 Cf. Mario Sbriccoli, “Lex delictum facit., Tiberio Deciani e la criminalística italiana nella fase

cinqucentesca del penale egemonico”, cit..


3819 “De similibus ad similia quando detur identitas retionis”, Melchior Febo, Decisiones [...], cit.. p.

1, dec. 72 n. 11. António Cardoso do Amaral é um pouco mais restritivo, exigindo que a razão esteja
expressa na lei; só nesses casos seria claro que “ex mente legis comprehenduntur omnes casus etiam
poenales, in quibus concurrit illa omnimoda ratio”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Poena”, ns. 25 e 26.
3820 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 21.

3821 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, ns. 22-24.

3822 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 46.

611
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escusasse se estivesse bêbado sem culpa 3823. E, salvos os casos de debilidade


intelectual extrema, declarava todos imputáveis, embora autorizasse o juiz a
modular as penas em função das fraquezas que caracterizavam certas categorias das
pessoas, considerando a meninice, a imprudência, o sexo, a condição, a
senilidade3824.
8.1.4 A imputação.
§ 2139. Os factos delitivos tinham que poder ser relacionados com uma pessoa,
por meio de um nexo causal que ligasse o agente ao ato, mas também por uma
ligação psicológica que permitisse que o castigo se justificasse. A doutrina
enumerava vários tipos possíveis de laços psicológicos, averiguando da sua
pertinência para justificar o castigo penal. O delito, dizia-se, comete-se ou por
intenção (proposito), ou por arrebatamento (impetu) ou por casualidade (casu)3825.
8.1.4.1 Dolo.
§ 2140. O dolo (v. cap. 6.4.2) era a intenção deliberada, aberta3826 ou
traiçoeira3827, de cometer o delito3828. A doutrina falava ainda de crimes cometidos
por ímpeto (impetus), distinguindo-o do dolo, pois aqui ao ímpeto da ação não
correspondia, porém, uma firmeza da vontade 3829, o que podia tornar problemática
a sua punição (pelo menos com a pena ordinária).
§ 2141. Por influência do direito canónico, este elemento interior da intenção
ganhava uma grande relevância. Ao passo que, no direito romano, os atos
criminosos tinham que ser atos exteriores3830 e não meras disposições internas 3831,
os juristas do direito comum hesitavam quanto à punição de atos interiores.
António Cardoso do Amaral começava por declarar que “os delitos ocultos apenas
são punidos por Deus, pois só Deus, e não o homem, é o seu juiz [...]”; mas, de
seguida, parecia transferir a questão do plano da punibilidade dos atos interiores
para o plano da possibilidade de os provar, pois acrescentava que, se se pudessem
provar, “bem se podem punir, embora de forma mais leve do que aqueles que são
cometidos à vista de todos”3832. No número seguinte (ibid. n. 55), a indecisão

3823 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 46 e 47.
3824 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 44
3825 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 1.

3826 “[…] Quando erat suus inimicus, & contra te habebam rancorem, & ex proposito te percussit”,

António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 2.


3827 “[…] Quando unum in actibus ostendebas, & aliud in mente gerebas te fingebas amicum, aut

ambulabas cum aliquo, tanquam amicus et domus eius eras, & illum de retro persusistis, sive sub colore
animicitiae aliquod delictum contra illum commisisti”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 2.
3828 “[…] ex proposito, qui animo deliberato aliquod delictum commisit”, António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 2.


3829 “[…] impetu vero dicit delinquere, quando per iracundiam, sive ebrietatem, ad manus, aut ad

ferrumn, venitur, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 2. Os delinquentes
irados não deixavam de ser condenados, a menos que tivessem perdido o juízo, caso em que seriam
punidos mais levemente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 45.
3830 Um facto, um dito, um escrito, um conselho (cf. D.48,19,16,pr.); mas não um simples

propósito interior (Cf. D.48,19,18)


3831 Cf. D.48,19,18 (“Cogitationis poenam nemo patitur”).

3832 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 54.

612
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mantém-se. Começava por afirmar que “a intenção (affectus) é punida nos delitos,
apesar de não se seguirem os efeitos” (“tamen in delictis punitur, quamvis non
sequatur effectus [...]”, embora não com a pena ordinária, mas com uma
extraordinária. O que se requeria era um ato exterior a partir do qual essa intenção
se deduzisse. Se este ato não existia, “o delinquente não deve ser punido no foro
exterior, pois a intenção, como ato interior, não é punida a não ser no tribunal
divino”. De novo, a oscilação entre a ideia da impunibilidade, no foro temporal,
dos atos interiores por uma razão de princípio e a sua impunibilidade pela
impossibilidade de provar o que se passasse apenas na consciência. A tentativa
(conatus), em que uma intenção se exteriorizava em atos próximos e imediatos,
embora não conduzindo ao resultado projetado, era um destes casos em que a
disposição interior se podia provar e, por isso, em que devia haver uma punição
dirigida à disposição interior do agente (para castigar a malícia e prevenir que ela
gerasse novas tentativas de delinquir3833), embora também dirigida ao mundo
exterior (evitar o mau exemplo3834). A tentativa era punida ela mesma como crime,
com a pena ordinária que a lei tivesse especificamente previsto para o caso (a
menos, no entanto, que o delinquente por sua espontânea vontade desistisse do
intento e se arrependesse antes de consumar o delito) 3835.
§ 2142. Eram punidos os delitos cometidos por brincadeira ou por tontice 3836.
8.1.4.2 Culpa.
§ 2143. No direito romano3837, havia quatro categorias de delitos (malefícios
que causavam danos), individualizados como tal nas Institutiones: o furto e a rapina,
ambos ofendendo o direito de propriedade; a injúria [i.e. “quod non iure fit”, Inst.
Gaii, 3, 223], ofendendo a integridade física ou moral de alguém; e um complexo de
danos causados por uma ofensa não dolosa (damnum iniuria datum), cuja reparação
estava prevista na Lex Aquilia de damnis (c. 286 a.C. D. 9, 2, 1, 1 ou nas suas
extensões pretorianas (originariamente, morte de escravo ou de animal de outrem;
dano a coisa de outrem, animada ou inanimada). Nestes casos, a responsabilidade
pela indemnização baseava-se não apenas no dolo, mas também na culpa. Porém, a
culpa não consistia na imputação subjetiva do facto ao autor, em termos de uma
censura (pelo menos, por falta de cuidado), podendo bastar uma imputação
objetiva: o dano verificara-se por facto do autor (“in lege aquilia et levissima culpa
venit”, D. 9, 2, 44 pr.). Nestes últimos casos, havia responsabilidade sem culpa,
como no caso do guarda (custos), do empregador pelo facto dos seus empregados,
do estalajadeiro, do estabulador, do barqueiro, sempre que se comportassem de
forma não esperada; o mesmo se passava na produção de danos causados pelo
arremesso de objetos líquidos ou sólidos, ou por coisas apoiadas ou suspensas de

3833 Neste caso em que a intenção se podia provar, por ter sido suficientemente exteriorizada; cf.

“Malicia hominis non est indulgendum sed potius obviandum”, António Cardoso do Amaral, Liber [...],
cit., s. v. “Delictum”, n. 7.
3834 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 48 (refere-se aos

envenenadores que falhassem nos seus propósitos).


3835 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 55.

3836 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 6 e 9 (“qui fuit stultus in culpa

erit sapiens in poena, quoniam poena facit stultos sapientes”, n. 6).


3837 “Transeamus nunc ad obligationes, quae ex delicto nascuntur, veluti si quis furtum fecerit,

bona rapuerit, damnum dederit, iniuriam commiserit […]” (Inst. Gaii, 3, 182).

613
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propriedade do autor (actio de effusis et dejectis, positis et suspensis).


§ 2144. Assim, a teoria do delito considerava que bastava a culpa para se ser
punido, sempre que houvesse uma falta da diligência exigida, seja na realização de
alguma obra (in operando), seja na escolha ou vigilância de algum trabalhador
subordinado (in elegendo, in vigilando). A responsabilidade pelos danos causados por
animais domésticos (actio de pauperie) também supunha essa falta de cuidado na sua
guarda ou condução. Noutros caos, a teoria do delito era ainda menos exigente na
imputação subjetiva, pois as circunstâncias objetivas podiam dispensar a culpa
subjetiva. Por exemplo, o proprietário da casa que estava sobre outra respondia
pelos danos (infiltrações de águas, desabamento) que a casa superior causasse na
inferior3838. A doutrina classificava estes casos de responsabilidade como “quase
delitual”.
§ 2145. Também a guerra ou outro motivo similar de força maior afastavam a
punição3839. Mais complicada era a questão de saber se a obediência devida afastava
a punição. O princípio geralmente aceite era o de que a obediência só excusava se o
mandante tivesse poder de imperium e, mesmo assim, apenas nos crimes leves. Nos
mais graves, a ordem de praticar um crime responsabilizava tanto o mandante
como o executante, pois ninguém era obrigado a obedecer a uma ordem no sentido
de praticar um crime grave3840.
§ 2146. Porém, estes princípios, que tinham sido estabelecidos para os delitos
“civis”, visando a reparação do dano, não se adequavam à punição penal que, ainda
mais por causa da influência do direito canónico, tendia a exigir um elemento
subjetivo que justificasse o castigo3841. Daí que, por regra, a responsabilidade
criminal exigisse a intenção3842.
8.1.4.3 O acaso.
§ 2147. Já o facto de se produzir um dano, ao fazer uma coisa lícita e com a
diligência necessária não induzia em responsabilidade penal (civil ou criminal), pois
o dano só se podia imputar ao acaso (casus). Era o que acontecia quando um
caçador matava uma pessoa ao lançar uma lança a um animal 3843. Pelo contrário, o
agente respondia pelo dano, se o acaso ocorrera quando praticava um ato ilícito,
quando omitira algum dever de cuidado ou quanto se intrometia em algo que não
lhe cabia3844.

3838 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 39.
3839 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 74, n. 4.
3840 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 38.

3841 De qualquer modo, algumas das penas civis – quando a pena se correspondia a um múltiplo do

dano (o “dobro” ou o “tresdobro”) - continham um elemento de castigo (criminal, ad vindictam), o que


ainda contribuía para complicar a distinção entre factos geradores de responsabilidade civil e factos
geradores de responsabilidade criminal.
3842 “Statutum puniens aliquam corrumpere, intellegitur de eo qui voluntarie corrumpit in effectu”,

Tomé Valasco, Allegationes […], all. 21, n, 31.


3843 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” 2 e 3.

3844 “Pois não se pode dizer sem culpa quem se mete em coisa alheia, embora não deva ser punido

com a pena ordinária”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” 3.

614
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

8.1.5 Punibilidade.
§ 2148. Os delitos puniam-se tantas vezes quantas se repetissem, embora cada
um apenas uma vez (non bis in idem)3845 3846. Havia, porém casos em que os crimes
não deviam ser punidos. Por um lado, se tivessem prescrito; o que, pelo direito civil
(mas não pelo direito canónico), ocorria no caso de não ter havido denúncia
(accusatio, libellum oblatio) por mais de 20 anos3847. Por outro lado, a punição estava
dependente do juízo sobre se os seus efeitos não eram piores do que a não punição.
Assim, se o escândalo da divulgação do delito fosse mais grave do que a não
punição, o delito devia ficar por punir, salvo se constituísse pecado mortal 3848. Por
fim, certos crimes pelo direito comum correspondiam a ações lícitas, em certas
circunstâncias, pelo direito natural. Tal era o caso do furto em estado de
necessidade: embora fosse crime, obrigando a restituição logo que possível, não
devia ser punido, por corresponder a um direito natural (v. cap. 8.2.6.2).
§ 2149. A responsabilidade penal extinguia-se com a morte do delinquente 3849;
por isso, os delitos dos pais em geral não oneravam os filhos 3850. A
responsabilidade criminal também era extinta pela prescrição, por vinte anos,
segundo o direito civil. Pelo direito canónico, os crimes nunca prescreviam 3851.
8.1.6 O processo e a prova.
§ 2150. Ao tratar da ordem do processo (cf. 7.1.9), já se aludiu à ordem
processual crime3852. Esta começava pela denúncia, podia requerer acusação (libelo)
de parte (nos crimes particulares)3853, continha alguma especialidade no relativo à
prova3854, nomeadamente quanto a presunções3855 e uso da tortura3856.

3845 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, ns. 12 e 14; Diogo Marchão

Themudo, Decisiones […], cit., dec. 81, n. 11.


3846 Alguém punido pelo juiz eclesiástico pode ser punido pelo juiz secular, António Cardoso do

Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” 15. Na reincidência não se tratava de condenação pelo mesmo
crime, mas por outro da mesma natureza, pelo que o resultado era antes o agravamento da pena (v.g. a
condenação num segundo furto levava à forca, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 16).
3847 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 35. A denúncia era a forma

de levar o juiz a inquirir de um crime, ibid. n. 28.


3848 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 36.

3849 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 34; não no caso de heresia,

que dava lugar à confiscação de bens, mesmo post mortem, ibid..


3850 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 33. Porém, a lesa majestade

gerava infâmia que se transmitia aos descendentes.


3851 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 35.

3852 Sobre a ordem judicial nas causas crime, António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.

1, cap. 32.
3853 Nos crimes particulares, a falta de acusação particular extinguia a lide; nos crimes públicos,

podia levar à atenuação da pena, cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 27.
3854 Para se aplicar a pena ordinária, os crimes deviam provar-se por provas meridianas, e não por

mera fama ou testemunhas crédulas. Na dúvida, seria melhor deixar de punir um culpado do que punir
um inocente, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” 25.
3855 Os crimes presumiam-se nos homens notoriamente maus. Mas presumia-se a inocência nas

pessoas constituídas em dignidade, nas pessoas de letras ou nas pessoas de idade (desde que tivessem
sido maduros e honestos quando jovens), cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 6.
3856 O direito comum permitia o uso da tortura, “mas este género dos tormentos, em Portugal e

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§ 2151. Detalhemos um pouco mais, seguidamente3857.


8.1.6.1 Introdução.
§ 2152. Vista desde hoje, a ordem penal, incluindo o processo penal, pode
parecer uma ordem opressiva e cruel; e assim tem sido descrita desde os meados do
séc. XVIII. A propósito da aplicação da pena de morte, já há anos que propus uma
leitura diversa, menos enfeudada a essa lenda negra do direito penal de Antigo
Regime. Aqui, acrescentarei aos argumentos de então – a importância doutrinal da
graça e da misericórdia, a falta de uma logística que permitisse a punição efetiva, a
necessidade de manter a coesão social numa sociedade de poderes débeis – mais
algumas considerações sobre a natureza pouco invasiva da ordem penal da coroa.
§ 2153. Volto ao livro de Mateus Homem Leitão sobre as particularidades do
direito português (cf. cap. 7.1.1), que ele focaliza em três institutos – agravos, cartas
de seguro e devassas. A partir destes três pontos, que de facto parecem centrais na
modelação de um uso social do direito e da justiça, abordo de novo a questão da
efetividade e crueldade da ordem penal da coroa.
§ 2154. Os agravos alargaram enormemente as possibilidades de recurso em
relação àquilo que era o sistema romano de litigar, permitindo recorrer de
praticamente todos os atos do processo, por vezes com efeitos suspensivos,
enredando a lide em discussões intermináveis sobre matérias jurídicas obscuras. É
difícil encontrar um instituto processual que mais tenha contribuído para aumentar
a litigiosidade e prolongar as demandas, um traço que leigos e juristas, já na época,
davam como característico do direito português antigo. Os processos tornavam-se
uma silva de agravos e embargos, que se somavam às apelações e, por fim, às
revistas. Tendo os embargos como fundamento vícios formais, que incluíam a
competência do tribunal e a capacidade das partes, eles incidiam sobre questões em
que a sociedade de Antigo Regime era muito complicada e incerta, baseada em
tradições e regras de uso de interpretação variada, como a pluralidade das
jurisdições e a diversidade dos estatutos pessoais e da capacidade jurídica das
pessoas. Por isso, a generosidade de recurso, somada à incerteza do direito e das
jurisdições, tornava os processos numa meada de expedientes, de que os advogados
– porventura mais do que as partes – se aproveitavam e que os escrivães –
porventura mais do que os juízes - propiciavam ou impediam.
§ 2155. E, realmente, esta difusão e alongamento dos processos judiciais
promoveram muito o poder social dos juristas. Desde logo, de advogados letrados
e procuradores rábulas, que ideavam os recursos e os insinuavam às partes; mas
também dos escrivães, que os escreviam nos autos e que, frequentemente, os
propiciariam, e dos juízes que os concediam ou negavam. Num estudo sobre uma
das regiões mais rústicas e arcaicas de Portugal – a zona serrana do Montemuro, a
que Aquilino Ribeiro chamou “as terras do Demo” e que caracterizou em romances
etnograficamente riquíssimos -, Anabela Ramos3858 destaca o poder social destes

noutros lugares, é cruel e terrível, de tal forma que não existe um suplício maior, a não ser a morte,
morrendo alguns na tortura”. Por isso, a tortura só se devia usar nos crimes graves, desde que houvesse
indícios ou uma só testemunha e não se dispusesse de outro meio para descobrir a verdade, António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” n. 56.
3857 Sobre a história do processo penal, v. Giorgia Alessi, Il processo penale […], cit..

3858 Anabela Ramos, Violência e justiça em terras de Montemor. 1718-1820, cit.. Também: Irene

616
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

letrados, muitas vezes de poucas letras, na montagem, condução ou desmontagem


de lutas judiciais que prolongavam por outros meios e com referência a outros
espaços e a outras armas as lutas comunitárias de sempre. Mostra como os
escrivães montavam as demandas ou, desinteressados, as deixavam morrer à
míngua de registos nos processos3859, como os assessores ditos letrados eram
abundantes, mesmo nestas terras do fim do mundo 3860, como os juízes leigos,
frequentemente analfabetos, eram expropriados pelo poder dos que liam e
escreviam direito.
§ 2156. O segundo tema do livro de Mateus Homem é o das cartas de seguro
(Ord. fil. 1,58,40)3861, outra novidade do direito processual penal português, que
permitia aos réus evitar a prisão depois da acusação, mantendo-se livres até à
sentença final. Há uma lenda acerca do seu aparecimento: as cartas de seguro teriam
sido introduzidas nos tempos do Mestre de Aviz, para evitar que os acusados, para
escapar à prisão, preferissem juntar-se à hoste de D. João de Castela. Talvez se
tenha tratado apenas de uma forma de um aparelho judicial débil se acomodar à
realidade da sua debilidade, coonestando, deste modo, a impossibilidade de
assegurar mais eficazmente, a comparência em juízo, jogando na cooperação do
próprio acusado, ligado por uma promessa a vir a tribunal. Fosse como fosse, a
carta de seguro protegia os acusados e foi apresentada pela doutrina iluminista (e
alguma anterior) como uma notável, mas prejudicial, particularidade do direito do
reino.
§ 2157. Finalmente, as devassas, um instituto que o autor salienta não existir no
direito comum nem nos direitos de outros reinos e que, portanto, tratará como uma
novidade do direito pátrio (Liv. III, “Praefatio”). Refere-se não à inquirição das
testemunhas num processo criminal particular, a pedido das partes, mas à devassa
feita pelos juízes, oficiosamente, sobre uma lista vasta de crimes constante da lei
(Ord. fil.1,65,31), a fim de combater o crime e expulsar do seu território os homens
malvados (facinorosos) (cf. Ord. fil.1,58,5-15 e 31). As devassas gerais eram
consideradas prejudiciais e fonte de insegurança e abusos; mas os Ordenações
acabavam por cometer aos juízes uma larga competência para inquirir
oficiosamente de certos crimes3862, competência esta que não teria paralelo nem no
direito comum, nem nos direitos de outros reinos 3863, embora fosse clara a sua
filiação nas visitas episcopais. Esta especialidade do direito pátrio também era uma
fonte singular de poder para os juízes, letrados ou leigos, pois colocava as
populações perante uma ameaça permanente de perseguição criminal. O expediente
também tem sido visto como um meio de controlo do poder oficial sobre o espaço

Vaquinhas, Violência, justiça e sociedade rural: os campos de Coimbra, Montemor-o-Velho e Penacova de 1858 a
1918, cit., tese policop.
3859 "Neste livro acho muito assentos em aberto sem procedimento algum contra os culpados

[…]", censura um Corregedor dos finais do séc. XVIII, na correição dos pequenos concelhos de Cabril e
Parada de Ester (p. 98). A A. diz que, pelas suas contas, isto se passava em mais de 10 % dos registos de
abertura de querelas (ibid. 98, 101).
3860 Segundo a mesma obra 80 em 114 juízes têm assessor (p. 93). Notando que os assessores -

muitos deles, possivelmente, antigos estudantes de Coimbra com cursos incompletos (cf. Joana
Estorninho de Almeida [….] cit.) - abundavam por aqui.
3861 Cf. § 2185

3862 Era proibida em geral: Ord. fil.1,65,31.

3863 Cf. Mateus Homem Leitão, De jure lusitano […], cit., “Praefatio” ao livro 3.

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e sobre as populações 3864. O ponto de vista parece pertinente, mas sobretudo se se


considerar que esse poder é o dos magistrados que diretamente dispõem da
competência para devassar, e não tanto das instâncias centrais de poder, como a
coroa.
§ 2158. Nota-se, porém, que esta iniciativa oficiosa de proceder parece nunca
ter suscitado a simpatia das populações. Há capítulos de cortes pedindo a sua
extinção. A ênfase da proibição das devassas gerais nas Ordenações deve responder
a isso. Voltando ao exemplo de Montemuro, Para os processos iniciados por
devassa, apenas cerca de 1/3 havia querela de parte.
§ 2159. O traço comum destes institutos, tal como funcionavam na prática, é o
de diminuir muito a efetividade da coação penal do direito régio.
§ 2160. O processo penal não era, é certo, um processo puramente acusatório.
Ao contrário do que acontece no processo civil, o juiz podia inquirir e acusar ex
officio, quer nas devassas especiais, quer ao devassar crimes graves (“casos de
devassa”) de que tivesse conhecimento (Ord. fil.65,31-38). Porém - mesmo não
considerando que, em bastantes crimes muito comuns na vida quotidiana, a
acusação particular era indispensável, levando a sua falta à extinção da lide – o que
parece que acontecia era que a colaboração particular através da querela de parte
ocorria raramente, o que daria um baixo dinamismo a estes processos em que a
comunidade não parecia interessada. A pergunta a fazer às fontes é, então: o que
acontecia aos processos de devassa (particular ou especial) em que não sobrevinha
querela de parte ? Se a resposta for que, geralmente, estes processos ou não
prosseguiam ou terminavam em absolvição, então teremos que concluir que o
projeto de intervenção oficiosa na punição penal sugerida pela possibilidade de
acusação pública (inquisitio, denúncia) estava, na prática, condicionado pela
colaboração da comunidade por meio de querela de parte. E que, por isso, a
distinção entre um processo penal inquisitório e um processo civil acusatório acaba
por não ser tão nítida.
§ 2161. A instituição das cartas de “seguro” protegia o acusado contra a prisão.
Somavam-se a outros institutos com o mesmo sentido de obstar à prisão
(homenagem para nobres e equiparados, fiança). As próprias fontes doutrinais
reconhecem o excesso da sua concessão e o modo como tornavam pouco
atemorizadora a justiça real.
§ 2162. Afora estes institutos singulares, o processo penal – tal como
desenhado pela doutrina e praticado nos tribunais era relativamente doce. Escusava
o réu de juramento, para não o fazer incorrer em perjúrio, desonerava-o do encargo
da prova negativa ou diabólica, obrigando à prova apenas a parte que afirmava um
facto, requeria duas testemunhas fiáveis e concordes para a prova plena, rodeava os
tormentos de cautelas e, ainda mais, a admissibilidade da confissão do réu sujeito a
tortura, aconselhava a absolvição em caso de dúvida e a condenação apenas quando
fosse feita a prova plena. Condenado o réu, multiplicava os recursos. Esgotados

3864 Paolo Napoli, "La visita pastoral: un laboratorio de la normatividad administrativa", cit.; José

Pedro Paiva, "As visitas pastorais", cit.; Id."Inquisição e visitas pastorais. Dois mecanismos
complementares de controle social", cit.; Literatura de época: Mateus Soares, Practica e ordem pera os
visitadores dos bispados […], cit.; Lucas de Andrade, Visita geral que deve fazer um prelado no seu bispado, […],
cit..

618
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

estes, frequentemente o livrava, por perdão ou por livramento concedido nas


audiências gerais do Regedor da Casa da Suplicação.3865
§ 2163. Tudo isto nos leva a encarar o processo penal como orientado para a
aquietação das populações quanto à ameaça da justiça régia. Tornando-a pelo
menos mais aceitável, menos desleal e menos traiçoeiro do que os processos de
justiça informal local. Saliente-se que esta “suavidade” do processo penal não tinha
a ver como uma conceção humanista ou garantista do processo, mas com esta
política de tornar mais atrativa a justiça régia do que a justiça penal local ou do que
a vingança. A sociedade dispunha já de meios de resolver as suas disputas: a
vergonha pública, a assuada, as rixas e pancadas. Tudo isto continuava a vigorar na
resolução dos conflitos a propósito das regas, dos pastos, do forçamento de
mulheres, etc.3866. Só que, agora, algumas dessas práticas usurpavam a justiça do rei
e se tornavam crimes. Daí que, se se quisesse preservar o máximo dos equilíbrios
tradicionais, havia que desativar ou enfraquecer a punição régia para esses casos.
Era isso que se obtinha pelo funcionamento conjunto das “garantias” dos acusados
no processo penal da justiça régia. Como já antes escrevi, o direito penal ameaçava
com dureza e crueldade, mas o processo penal desativava-o através de múltiplos
expedientes que abriam espaço para que se manifestassem os processos
espontâneos das comunidades.
8.1.6.2 O juiz competente.
§ 2164. O processo criminal segue, em geral, a ordem do processo civil, com as
especialidades assinaladas na sua regulamentação específica, que consta do livro 5
das Ordenações3867.
§ 2165. O foro competente era o do local onde o delito fora cometido (Ord.
fil.1,7,4 e 6,3)3868.
§ 2166. Havia, porém, foros privilegiados, que preferiam ao foro criminal
comum.
§ 2167. Uns destes privilégios eram pessoais, concedidos em razão das pessoas,
de acordo com a lógica das sociedades de Antigo Regime 3869. Eram, inclusivamente,
mais frequentes no domínio penal do que no domínio cível. Em razão da pessoa,
tinham privilégio de foro os soldados (a partir do alv. 21.10.1761, que estabeleceu a
jurisdição privativa do Conselho de Guerra); os eclesiásticos de ordens sacras (Ord.
fil.1,1;88,16), bem como os clérigos menores que fossem beneficiados ou que
usassem hábito ou tonsura (Ord. fil.2,1,4; 2,21 e 22; 2,27), e que tinham como foro o
do seu prelado3870; os desembargadores, que tinham, em geral, como foro os

3865 No estudo que se tem citado sobre Montemuro, dos réus querelados, 49 % são absolvidos, 10

% perdoados, 10 % fogem e, tirando os que morrem de morte natural, só 1% é referido como


condenado (p. 110).
3866 Cf. Anabela Ramos, A violência e a justiça, cit, 31 ss..

3867 Fontes doutrinais: Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit.; Manuel

Lopes Ferreira, Practica criminal […], cit.


3868 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 41. Apesar de regra

contrária de direito comum, se o criminoso fugisse para outro território e jurisdição e aí fosse preso, a
prisão valia (Ord. fil.1,73,7); mas se aí estabelecesse domicílio, devia ser o juiz desse território a ordenar a
prisão, por precatória, ibid. n. 43.
3869 Sobre privilégios, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal […], cit., c. 1, n. 8.

3870 Os eclesiásticos sem superior no Reino respondiam perante o foro secular, para evitar a

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corregedores do crime da corte (Ord. fil.2,59,10-14); os cavaleiros das ordens


militares (Cristo, Santiago e Aviz, Malta) que recebessem tença (Ord. fil.2,12,1; 2,25)
e que respondiam (só no crime) perante o Juízo das Ordens3871; os professores e
estudantes da Universidade de Coimbra (Estatutos da Universidade, l. 1,27), que
eram julgados pelo conservador da Universidade, dando apelação para os ouvidores
do crime da Casa da Suplicação; os oficiais e familiares (de número) do Santo
Ofício, que como autores ou réus3872 respondiam perante o Juiz do Fisco da
Inquisição; os moedeiros (Ord. fil.2,62,8), que eram julgados pelo seu conservador;
as viúvas honestas (Ord. fil.3,5,3), que respondiam, no cível e no crime, perante o
tribunal da corte; os rendeiros de rendas reais (Ord. fil.2,63), que respondiam, como
réus (e como autores nas causas de injúria relacionadas com a sua qualidade de
arrendadores fiscais, perante os contadores das comarcas; os oficiais de saúde,
julgados pelo seu provedor mor (alv. 17.1.1739); os oficiais da Bula da Cruzada, que
respondiam perante a respetiva Junta (Reg. da Bula de 13.6.1672, § 11 e 84); os
súbditos das nações aliadas, que respondiam perante os seus conservadores 3873.
§ 2168. Decorrentes da natureza da causa eram os privilégios das causas de
falsidade, de erros de ofício, da almotaçaria (Ord. fil.1,65), das falências (alv.
16.12.1771), da Fazenda Real (com jurisdição privativa de todas as outras: Ord. fil.
3,1,17-18; 1,12,63,3; 3,5,5), da Índia e da Mina (Ord. fil.1,52), da Alfândega (Ord.
fil.1,32), de contrabando e descaminho; e outros, que foram sendo criados com a
especialização da administração, na segunda metade do séc. XVIII.
§ 2169. No caso de conflito de foros privilegiados, havia regras de
preferência3874. Os privilégios de causa preferiam sempre os pessoais, exceto os dos
estrangeiros, estabelecidos por tratado (alv. 22.5.1733). Nos casos de jurisdição
cumulativa (em que vários juízos eram competentes), valia a regra da prevenção -
conhecia da causa o tribunal que primeiro prendesse o réu ou, não tendo este sido
preso, que primeiro conhecesse do caso (alv. 25.12.1698 3875 3876).
§ 2170. Os casos em que a pena fosse a de pena capital (morte, desterro ou
prisão perpétuos, cortamento de membro) eram julgados em primeira instância
pelos corregedores do crime da corte, para onde as causas deviam ser enviadas
(Ord. fil.1,24,35; 1,65,3, Ass. 10.10.3877), de onde se conclui um traço singular do
processo penal em Portugal, a privação dos tribunais locais de jurisdição penal
significativa. Mais tarde, certos crimes graves passaram a poder ser conhecidos por
qualquer justiça do reino (L. 290.10.1763, relativa a homicídios voluntários e
assaltos de estrada).
§ 2171. Havia uma certa especialidade dos casos crime quanto ao princípio geral
do caráter territorial da jurisdição. Assim, os casos em que a pena fosse a de pena

expatriação do juízo (Ord. fil.2,1,pr.)


3871 Assento 21.6.1611; Manuel Álvares Pegas, Commentaria […], cit., tomo 7, ad Ord. fil. 2,12,1.

3872 Alv. 14.12.1562; Diogo Guerreiro Camacho de Aboim, Opusculum de privilegiis familiarium

officialiumque Sancta Inquisitionis, cit., c.3, ns. 40 e 53.


3873 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, n. 8 notas.

3874 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, n. 8.

3875 Detalhes, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 10.

3876 Detalhes, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 10

3877 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 8, nota final.

620
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

capital (morte, desterro ou prisão perpétuos, cortamento de membro) eram


julgados em primeira instância pelos corregedores do crime da corte, para onde as
causas deviam ser enviadas (Ord. fil.1,24,35; 1,65,33878), de onde se conclui um traço
singular do processo penal em Portugal, a privação dos tribunais locais de jurisdição
penal significativa.
§ 2172. Mais tarde, certos crimes graves passaram a poder ser conhecidos por
qualquer justiça do reino (L. 29.10.1763, relativa a homicídios voluntários e assaltos
de estrada).

8.1.6.3 A ordem processual. Processo ordinário.


8.1.6.4 Averiguação.
§ 2173. As causas criminais podiam ser intentadas por qualquer pessoa, sendo
públicas, ou apenas pela parte ofendida, sendo particulares. As primeiras incidiam
sobre os crimes públicos, previstos nas Ordenações (Ord. fil.5,117,pr.). As segundas,
sobre crimes particulares (adultério, feridas simples em rixa nova, injúria que não
fosse de bofetadas, danos que não fossem arrancamento de marcos ou cortamento
de árvore ou danos em horta ou pomar, furto não violento abaixo de 300 rs.) 3879.
§ 2174. O conhecimento do crime começava ou por uma averiguação oficiosa
(devassa), ou por participação particular, sob a forma de querela ou de denúncia.
8.1.6.4.1 A devassa
§ 2175. A devassa (inquisitio) era uma iniciativa do juiz para conhecer de um ou
mais crimes, ou incertos ou sabidos. Os crimes incertos eram objeto de devassas; as
gerais eram proibidas pela Ordenação aos juízes (Ord. fil.1,65,31); mas as que
incidissem sobre certos crimes (devassas especiais) eram autorizadas, em certos
meses do ano (Ord. fil.1,65,39-69) 3880 3881. Os crimes sabidos de que o juiz tivesse
conhecimento e que fossem denunciados por alguém (Ord. fil.65,31-38)3882 seriam
objeto de devassa “particular”, desde que figurassem na lista dos crime de devassa
das Ordenações3883. Esta lista (casos de devassa) era longa: morte, força de mulheres,
fogo posto, fuga de presos e quebra de cadeia, moeda falsa, resistência, ofensa da
justiça, cárcere privado, furto de mais de um marco de prata 3884, roubo em

3878 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 8, nota final.
3879 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 1, § 12 nota 2; também c. 39,
§ 296 ss..
3880 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 2, § 18 e notas.
3881 Devassas dos corregedores (ou Ouvidores com poderes de correição): Ord. fil.1,58,31.
3882 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c.3; Mateus Homem Leitão, De

jure lusitano: Tractatus tertius: De Inquisitionibus, cit., III, qu. 21; José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de
processo criminal, cit., c. 21, § 22
3883 O mesmo acontecia com os que o rei extraordinariamente ordenasse averiguar; cf. Jorge de

Cabedo, Decisiones […], p. 1, dec. 52.


3884 O marco era uma unidade de medida de massa, que correspondia a 1/2 arrátel (= 229.5 /

233,856 gramas); o arrátel correspondia à libra, lira, arrátel. O valor real do arrátel flutuou durante a

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caminho, arrancamento de arma em igreja ou procissão, ferimento feito de noite,


ferida no rosto ou aleijão em membro, ferida com besta ou espingarda 3885.
Desconhecida do direito romano (sine accusatore nemo potest condemnari), a devassa fora
introduzida pelo direito canónico e passara, com um regime bastante singular, ao
direito português3886. As devassas tinham prazo para começar e acabar e um limite
de testemunhas a serem ouvidas, já que eram consideradas como prejudiciais à paz
civil.
8.1.6.4.2 A querela.
§ 2176. A querela (querimonia) era e a participação ou queixa que alguém, não
proibido de querelar3887, fazia de um facto criminoso de certa gravidade.
§ 2177. A enumeração dos casos de querela constava das Ordenações (Ord.
fil.1,65,31)3888. A queixa devia ser justificada, requerendo-se que o juiz conhecesse
do caso mediante devassa especial (Ord. fil.1,65,33)3889, prestando-se juramento de
calúnia e, se o crime fosse público, dando-se fiança pelas custas3890.
§ 2178. Da querela deviam constar: (i) o juramento de calúnia, em que o
queixoso jurava que a querela era verdadeira, sob pena de condenação por calúnia
(Ord. fil.5,117,6); (ii) o nome do queixoso e do acusado e identificação suficiente
deste; (iii) a nomeação de testemunhas; (iv) a indicação do lugar e tempo do delito;
(v) a caução por custas e danos, no caso de querela por pessoa que não fosse o
ofendido (Ord. fil.5,2,118,32); (vi) a assinatura do queixoso e do juiz (Ord. fil. 1,79).
§ 2179. No caso de crimes particulares (v. 8.1.6.4), a dedução de querela por
parte dos ofendidos condicionava a ação.
8.1.6.4.3 Denúncia.
§ 2180. A denúncia era a participação de um crime público feita em juízo para
se averiguar e se proceder ex officio contra o delinquente. Era feita por quem não
tivesse um interesse particular no caso3891. No caso de denúncia de crimes que
fossem casos de devassa, o denunciante não tinha que provar o crime. Nos outros
casos (denúncia de crimes públicos que não fossem casos de devassa), as
obrigações do denunciante eram as mesmas da querela. Em causas sumárias, de
natureza sobretudo fiscal, a participação não equivalia à denúncia criminal formal,
tendo outros requisitos e efeitos3892.

idade média, até que foi fixado por D. Manuel I em uma libra (libra ibérica). A libra tinha 20 soldos ou
dinheiros.
3885 Ord. fil.1,65,31.

3886 Cf. Mateus Homem Leitão, De jure Lusitano, cit., III, “Praefatio”.

3887 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 3, § 32 a 37; em certos casos,

de crimes particulares, só podiam querelar as partes, ibid. c. 1, § 37.


3888 Enumeração em Ord. fil.1,65,31; cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit.,

c. 3, § 30 nota 2. Melchior Febo, Decisiones […], cit, p. 1, dec. 69, ns. 1 a 3.


3889 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 3, § 27 ss..

3890 Sobre a formula da querela, Gregorio Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], p. 82

ss.).
3891 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 4, § 43; Manuel Mendes de

Castro, Practica […], cit., liv. 5, c.2, n. 1.


3892 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 4, § 46

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

8.1.6.4.4 A pronúncia.
§ 2181. A existência do facto delituoso provava-se pelo corpo de delito, no qual
assentava todo o processo. Este extraía-se da observação, nos crimes que deixassem
sinais, por conjeturas estabelecidas na lei e por depoimentos de testemunhas.
§ 2182. Uma vez estabelecido o facto, restava relacioná-lo com um agente,
indiciando este, ou seja, reunindo indícios 3893 que permitissem, com alguma
verosimilhança avaliada pelo arbítrio do juiz, imputar o crime àquele réu.
§ 2183. Tendo-se reunido indícios bastantes, segundo o prudente arbítrio do
juiz, para pronunciar o réu, seguia-se a pronúncia, um despacho do juiz que
declarava o réu suspeito de delito, "pondo-o no número dos culpados" 3894. Deste
despacho o réu podia interpor agravo (de injusta pronúncia); e da despronúncia,
poderia haver apelação da parte queixosa, pois a despronúncia era como uma
decisão definitiva.
8.1.6.4.5 Prisão, segurança, fiança, sequestro.
§ 2184. A pronúncia podia levar à prisão do réu ou à sua saída em liberdade
como “seguro”. A prisão tinha lugar nos casos de delitos a que correspondesse
pena corporal ou aflitiva (Ord. fil.5,117,187-19; Ord. fil.5,119), por se recear a fuga
do réu. Era ordenada por mandato do juiz (Ord. fil.5,75), com indicação da culpa
formada (Ord. fil.5,117). Mas podiam ser presos sem culpa formada os réus
apanhados em flagrante delito, quando o crime fosse capital3895. Se os réus se
acoitassem em Igreja (adro, cemitério, mosteiro) gozavam de imunidade (Ord.
fil.2,5) exceto nos casos em que a imunidade não era aceite3896.
§ 2185. A prisão não tinha lugar no caso de seguro 3897, ou seja, da “segurança”
do réu em liberdade, contra promessa judicial deste de que compareceria a
julgamento. No pedido da carta de seguro, o réu podia negar o crime (negativa, Ord.
fil.5,35; 5, 38; 5, 127,8) ou confessando-o mas invocando a legítima defesa
(confessativa). As cartas de seguro (ou cartas tuitivas) 3898, que permitiam ao réu
continuar solto até à conclusão da causa, eram normalmente concedidas pelos
corregedores das comarcas (ou ouvidores com poder de correição) ou pelos
corregedores do crime das Relações, cabendo agravo da sua recusa, exceto nos
crimes considerados graves3899. Caducavam se o réu quebrasse a sua promessa e
não comparece em tribunal.
§ 2186. Os réus nobres (fidalgos, desembargadores, cavaleiros, doutores,
escrivães régios e suas mulheres ou viúvas) 3900 também tinham o privilégio de
homenagem, ou seja, de evitar a prisão em cárcere público, salvo no caso de crimes

3893 Sobre a qualidade e probabilidade dos indícios, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo

criminal, cit., c. 6, § 55 e 56.


3894 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 4, libellus accusationis.

3895 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 8, § 62.

3896 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., c. 1, § 2; José J. Pereira e Sousa, Primeiras

linhas de processo criminal, cit., c. 8, § 64 nota 2.


3897 Cf. Manuel Homem Leitão. De jure lusitano, liv. II. De securitatis, cit..

3898 Fórmulas, Gregório Martins Caminha & João Martins da Costa, Tratado da forma dos libelos […] e

allegações judiciais (ed. 1764), p. 132 s.; António Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 2, c. 47.
3899 Listagem, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c.9, § 69.

3900 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 10, § 75.

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capitais ou muito graves. A quebra da homenagem importava a prisão e a perda da


nobreza (Ord. fil. 5,120).
§ 2187. No caso de não ter o privilégio da homenagem nem ter obtido carta de
seguro, o réu podia manter-se em liberdade dando fiança ou sendo autorizado a
prestar fiadores idóneos que garantissem a sua apresentação em juízo ("fiéis
carcereiros")3901. A fiança, por sua vez, era a prestação de caução, autorizada como
graça pelo Desembargo do Paço3902, desde que a natureza do crime o não
impedisse3903. Também a fiança se quebrava pela falta de comparência.
§ 2188. Nos casos graves, podia decretar-se a medida suplementar de sequestro
dos bens do réu (Ord. fil.5,127,11; 5,128), estando este ausente ou cabendo ao delito
a pena de confisco, para segurar os interesses do fisco. O sequestro também se
aplicava aos falidos, para segurança dos credores.
8.1.6.4.6 Acusação e fixação da ordem do processo.
§ 2189. Formada a culpa na pronúncia e tomadas as descritas medidas
cautelares relativas ao réu e aos seus bens, dava-se início à acusação.
§ 2190. Nos crimes particulares a acusação era privativa dos ofendidos ou seus
parentes até ao 4º grau (Ord. fil.5,124,9), pelo que a instância decaía na falta de
acusação particular. Nos crimes públicos, qualquer um podia acusar.
§ 2191. Não podiam ser acusados nem impúberes (cf. Ord. fil.5,135) nem
dementes furiosos.
§ 2192. Deduzida a acusação pelo juiz, seguia-se uma de duas formas de
processo. Ou a sumária, própria dos crimes leves ou dos muito graves 3904, ou a
ordinária.
§ 2193. O processo ordinário guardava a ordem e solenidades do direito. Estava
regulado em Ord. fil. 5,124 e, subsidiariamente, na regulação do processo cível (Ord.
fil.3). Os atos do processo ordinário eram ou preparatórios 3905, médios3906 ou
últimos3907.
8.1.6.4.7 Citação
§ 2194. Pela citação, o magistrado chamava alguém a juízo, por editos (citação
pública) ou pessoal, na pessoa ou em familiar de sua casa (familiar até ao 4º grau,
citação particular); sem isso, o processo era nulo (Ord. fil.3,1,13). Citadas as partes
(réus e autores), marcava-se ao queixoso um prazo para deduzir a acusação. Não a
apresentando, a causa seguia por parte da justiça, se o crime fosse público (Ord.
fil.5,117,16; 5,124,pr. e 15-18) ou extinguia-se, sendo particular. No caso de o

3901 v. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 11, § 81 nota
3902 Regimento do Desembargo do Paço, § 24; Ord. fil.5,131,1.
3903 Crimes em que não havia lugar a fiança, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo

criminal, cit., c. 11, § 86.


3904 Aqui a simplificação da forma correspondia à atrocidade do crime. Porém, esta ideia entrou em

crise com o pensamento iluminista.


3905 (i) Citação; (ii) libelo; (iii) exceção; (iv) dilação ou prazo.

3906 (v) Contestação; (vi) contrariedade; (vii) réplica; (viii) tréplica; (ix) provas; (x) publicação; (xi)

alegações; (xii) sentença.


3907 (xiii) Embargos; (xiv) apelação; (xv) execução.

624
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

queixoso estar ausente, era citado por carta citatória, sabendo-se onde estava, ou
por editais. No caso de estar fora do Reino (este incluía as ilhas adjacentes)
prescindia-se da citação, seguindo a causa por parte da justiça, se o crime fosse
público (Ord. fil.5,124,9).
8.1.6.4.8 Libelo de Acusação
§ 2195. Seguia-se a apresentação do libelo escrito3908, em que o autor
apresentava o pedido, indicava o seu fundamento, narrava circunstanciadamente o
facto e concluía3909. Na falta de libelo, o acusador era "lançado da acusação" e a
causa prosseguia por parte da justiça, sendo pública (mas o acusador podia manter-
se na causa, como "ajudador da justiça", com as prerrogativas do promotor, Ord.
fil.1,15,26)3910. Recebido o libelo, o juiz mandava apregoá-lo e convidava o réu a
contraditá-lo3911. Não comparecendo o réu, procedia-se contra ele à revelia (Ord. fil.
5, 126, pr. e 13912).
8.1.6.4.9 Exceções
§ 2196. Antes da contestação da lide (contradita, contrariedade), o réu podia
deduzir exceções, ou dilatórias3913ou perentórias3914. Do não recebimento das
exceções podia-se agravar nos autos do processo (Ord. fil. 3,20,9 e 15)3915. Se o réu
não conseguisse diferir ou extinguir a causa por meio das exceções, devia contestar
o libelo.
8.1.6.4.10 Contestação da lide (contradita).
§ 2197. A contestação (da lide, litiscontestatio) fixava a demanda, excluindo novas
exceções e tornando-a pronta para o conhecimento do juiz. Nesta fase, o réu
contrariava, por artigos, o libelo, negando a acusação ou admitindo-a
parcialmente3916.
8.1.6.4.11 Réplica do Autor e tréplica do réu
§ 2198. Recebida a contradita, também articulada (Ord. fil.5,124, pr. e 1)3917, o
autor devia replicar, impugnando a contradita (Ord. fil. 5, 124, pr. e 3), podendo o
réu treplicar, com o que se encerrava o contraditório.
§ 2199. Seguia-se a notificação às partes de um prazo para indicar a prova
(ordinariamente, de vinte dias, Ord. fil.3,54; 5,124,2), apontando os artigos sobre

3908 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 4, libellus accusationis; José J.

Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit.. c. 16.


3909 Cf. Gregório Martins Caminha & João Martins da Costa, Tratado da forma dos libelos […], cit.,

(ed. 1764), p. 82 ss..


3910 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 16, § 122 nota.

3911 Fórmulas: Gregório Martins Caminha & João Martins da Costa, Tratado da forma dos libelos […] e

allegações judiciais (ed. 1764), p. 89 s..


3912 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 4; José J. Pereira e Sousa,

Primeiras linhas de processo criminal, cit.. c. 40.


3913 Incompetência, suspeição, inabilidade do acusador.

3914 Prescrição e caso julgado. Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana, cit., liv. 5, c. 1, § 5, n.

60; fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 103 ss..
3915 Fórmulas: Gregorio Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 108.

3916 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 89 s..

3917 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 6, ns. 62 e 63.

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que incidia e as testemunhas a ouvir3918.


§ 2200. Fornecidos a cada uma das partes os nomes das testemunhas da outra,
o juiz esperava delas eventuais embargos ou recusas3919.
8.1.6.4.12 Prova
§ 2201. A prova3920 visava estabelecer a certeza metafísica, física ou moral 3921 de
um facto. De acordo com a sua firmeza no estabelecimento da certeza, a prova
podia ser perfeita ou plena e semiplena (como a confissão extrajudicial e o
testemunho único).
§ 2202. Só a prova plena e clara podia levar a condenação.
§ 2203. A prova devia ser feita pelo acusador, pois a prova incumbia a quem
afirmasse (D. 22.3 De probationibus et praesumptionibus; C.4,19 De probationibus, 10) e se
presumia a boa fé de uma pessoa até prova em contrário. Na dúvida, não se devia,
portanto, condenar (D.34,5 De rebus dubiis, 10, 1; D. 50,17 De regulis iuris, 192,1), não
bastando para a imposição da pena, a prova semiplena ou os indícios (D. 48,19 De
poenis, 5). Esta regra deveria, segundo alguns, valer ainda mais nos delitos mais
graves.
§ 2204. O caráter notório de um facto não fazia prova.
§ 2205. A prova fazia-se por confissão, por documentos ou por testemunhas.
§ 2206. Nem o réu nem o autor eram obrigados a depor. O réu porque não era
obrigado a alegar nada e o autor para não ser forçado ao juramento de calúnia, que
o fazia correr o risco de pagar as custas no caso de a acusação ser insubsistente
(Ord. fil.3,53,11).
§ 2207. O juramento não tinha lugar nos depoimentos do acusado nas causas
criminais, para não fomentar os perjúrios.
8.1.6.4.13 Confissão.
§ 2208. A confissão, que podia ser judicial e extrajudicial, para conduzir à prova
plena tinha que ser clara, espontânea (i.e. não forçada ou por outrem ou pela ira),
fundada em argumentos prováveis, séria e judicial (ou seja, feita no juízo onde
corria a causa)3922.
§ 2209. Embora fosse considerada como a rainha das provas, não bastava para
a condenação na pena ordinária3923, pelo que precisava de ser confirmada por
fatores complementares de prova: constar dos factos do corpo delito, ser
confirmada por indícios e ser circunstanciada (D.42,2,8).

3918 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 94.
3919 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 95.
3920 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 7.

3921 Esta fundava-se naquilo que acontecia o mais das vezes ou em que a maioria convinha, sendo

esta bastante para condenar em pena ordinária, se ficasse estabelecida por prova perfeita.
3922 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 24.

3923 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 8, n. 89

626
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

8.1.6.4.14 Tormentos
§ 2210. O réu podia ser posto a tormentos 3924 nos crimes graves (crimes
punidos com a morte natural, ass. Rel. Porto, 16.8.1661) para que dissesse a
verdade. O uso do tormento requeria corpo delito e indícios suficientes segundo a
decisão arbitrária do juiz (de que se devia apelar por parte de justiça, Ord.
fil.5,122,3). Não podiam ser postos a tormentos os loucos, os velhos, as grávidas, os
soldados, os vereadores, os nobres e os menores de 14 anos3925.
§ 2211. A confissão só era válida se feita depois de terminados os tormentos.
8.1.6.4.15 Documentos.
§ 2212. Os documentos podiam ser públicos, fazendo prova plena se não
fossem arguidos de falsidade (Ord. fil.3,60,3) ou particulares, só a fazendo sendo
reconhecidos pelo réu (D,22.04, C,04.21; Ord. fil.3,25,9). Podiam ser originais ou
traslados.
8.1.6.4.16 Testemunhas.
§ 2213. As testemunhas faziam prova plena quando fossem capazes
(absolutamente: Ord. fil.3,56; Ord. fil.4,85, pr.; Ord. fil. 3,56; ou relativamente: Ord.
fil.3,56), em número legítimo (2 ou 3, Ord. fil.1,78,4; D,22.5; C.4,20), juradas,
concordes, fidedignas, circunstanciadas e concludentes. Não faziam prova plena os
testemunhos defeituosos, prestados por amor (familiares, domésticos, amigos
íntimos, advogados, interessados, sócios de crime3926), ódio (inimigos e seus
parentes) 3927, os dos infames (sem fama, banidos, meretrizes, ébrios, falidos de má
fé, jogadores; mas não os dos pobres) e os dos menores 3928. Estas testemunhas
podiam ser recusadas ou contraditadas (Ord. fil.3,58,5; 5,124,4).
§ 2214. Os depoimentos das testemunhas eram avaliados pelo juiz segundo o
seu prudente arbítrio; mereciam pouco crédito as testemunhas crédulas, de ouvir
dizer, contraditórias, inseguras, circunstanciais e espontâneas 3929.
§ 2215. As testemunhas podiam ser confrontadas entre si, com o réu ou com os
corréus (acareação, de "pôr cara a cara").
8.1.6.4.17 Perguntas ao réu
§ 2216. O juiz podia, em qualquer momento da causa, fazer perguntas ao réu
(Ord. fil.3,32,1-3)3930. As perguntas deviam ser feitas de modo leal, sem insinuações
de resposta, sem dolo, violência ou falsas promessas, sem juramento. O termo de
perguntas e respostas devia ser assinado pelo réu (Ord. fil.1,79,30; 5,117,11). A
recusa a responder equivalia à confissão.

3924 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv.5. c.1, § 8.
3925 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 28, §208.
3926 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 26.

3927 As testemunhas que se apresentassem espontaneamente eram de desconfiar.

3928 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c.26, n. 186 e notas.

3929 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit..c.26, § 187 e notas.

3930 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., c. 1, § 3; Manuel Lopes Ferreira, Pratica

criminal […], cit., t. 3, c.21, n.10.

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8.1.6.4.18 Alegações
§ 2217. Uma vez terminado prazo das provas, estas eram publicadas, para
conhecimento das partes (Ord. fil.3,62,1; 5,124,5-8)3931.
§ 2218. Reunidas as provas e juntas aos autos, era dada vista destes às partes,
para fazerem as respetivas alegações de facto e de direito (Ord. fil.3,20,42)3932. Feitas
estas, o processo ficava concluso ao juiz, para decisão, pela sentença final ou
definitiva.
8.1.6.4.19 Defesa.
§ 2219. A defesa do réu podia ser interposta em qualquer momento da causa
(Ord. fil.5,144,8), mesmo depois da conclusão do processo 3933, sendo
irrenunciável3934. Os artigos da defesa deviam ser provados. Como defesa, o réu
podia invocar falta de corpo delito, falhas na acusação, irregularidade da confissão,
ou causas de exclusão do delito, como a falta de intenção ou a legítima defesa.
8.1.6.4.20 Sentença.
§ 2220. Conclusos os autos, o juiz dava a sentença.
§ 2221. A sentença3935 devia basear-se na matéria que constava dos autos
(judicata secundum allegata et probata) e não na ciência ou consciência do juiz (Ord. fil.
3,66,pr.; D,1.18,6,1). Devia, por outro lado, ser conforme à lei, não contrariar outra
sentença passada em julgado, não ser dada por peita ou por provas falsas; aliás,
seria nula (Ord. fil.5,138,pr.)3936.
§ 2222. Nos casos capitais3937, as sentenças deviam ser dadas em relação, por
seis juízes, incluindo o relator, carecendo de quatro votos a favor (Ord. fil.1,1,6)3938.
Neste caso, só eram passíveis de agravo (mas não de apelação, segundo as regras
gerais)3939. Nos casos não capitais, eram dadas pelos juízes ordinários das terras,
com apelação para os ouvidores das apelações crime das Relações (Ord. fil.1,11,pr.;
1,68,83940).
§ 2223. A condenação devia ser certa quanto à pena, ordinária ou arbitrária. No
caso de penas arbitrárias essa fixação fazia-se inteiramente por arbítrio (= avaliação
concreta) do juiz. O juiz devia apelar por parte da justiça (Ord. fil.5,122; para os

3931 Cf. Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 97.
3932 Fórmulas em Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 97
3933 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c.33, § 238. Pode

inclusivamente apresentar provas, uma singularidade fundada no direito comum e não proibida pelas
Ordenações (Ord. fil.5,124,7, ibid. nota).
3934 Cf. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv.5. c. 1, § 5.

3935 Fórmula em Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 98.

3936 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 242.

3937 Incluem penas de açoutes ou mais graves; e de degredo por mais de 5 anos.

3938 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], p. 1, ar. 253; João Martins da Costa, Domus Supplicationis styli,

supremique Senatus consulta […], letra C, p. 191; letra S, p. 216. Percebe-se, assim, que a decisão final não
discriminava a opinião de um ou de outro desembargador, funcionando como a opinião da Casa da
Suplicação e adquirindo autoridade como tal Melchior Febo, Decisiones […], p. 1, dec 106.
3939 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 250.

3940 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 251, nota 4.

628
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ouvidores das apelações do crime da Relação). Se a pena estabelecida na lei fosse


arbitrária, o arbítrio do juiz devia ser justo e prudente, isto é, considerar a analogia
da lei ou do direito3941.
8.1.6.4.21 Custas.
§ 2224. Decaindo na causa, o acusador calunioso ou temerário era condenado
em custas, simples, em dobro ou em tresdobro, ou ainda em pena extraordinária,
conforme o seu dolo (Ord. fil.3,67,pr.), bem como nas perdas e danos do réu (Ord.
fil.5,118,pr.). O réu devia pagar as custas quando vencido (Ord. fil.1,67,pr.), bem
como no caso de recurso por parte da justiça (Ord. fil.1,64,34; 1,67,6, por força de
Ord. fil.5,124,27).
8.1.6.4.22 Embargos ou agravos.
§ 2225. Os embargos (ou agravos, suplicatio) eram um recurso feito perante o
juiz da causa, pedindo a reforma da sentença, interlocutória ou definitiva (Ord.
fil.3,65,2; 3,66,6; 3,88). O prazo para embargar era de um dia, tendo os embargos
efeito suspensivo3942.
§ 2226. Os embargos das causas crime eram conhecidos pelos corregedores da
corte do crime (Ord. fil.1,7,15).
8.1.6.4.23 Apelação
§ 2227. A apelação era um recurso contra a sentença, dirigido ao superior do
juiz que a ditou. Geralmente, apelava-se para os ouvidores das apelações do crime
da Relação3943. Tinha sempre lugar nas causas criminais (“apelação por parte da
justiça”, Ord. fil.3, 79,6; 5,122), salvo nos casos de: perdão de parte em ferida leve,
perdão do marido em adultério da mulher, perdão no caso de desfloração, no caso
de furto módico e não agravado, etc.. O prazo para a intentar era de 30 dias (Ord.
fil.5,124)3944.
§ 2228. Na apelação podiam apresentar-se novas razões e voltar a ouvir-se as
testemunhas3945.
§ 2229. Conheciam das apelações das sentenças da primeira instância os
ouvidores das apelações crime das Relações (Ord. fil.1,11,pr.)3946.
8.1.6.5 Circunstâncias atenuantes e perdão.
§ 2230. A medida da pena caraterizava-se por uma grande indeterminação. O
juiz podia aumentar ou diminuir a pena de direito comum, só estando obrigado a
obedecer à de direito positivo próprio (lei ou estatuto), pois alterar esta implicava a
titularidade do poder de fazer leis3947. Se o direito previsse um crime, mas não

3941 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 39, § 242, nota 3.
3942 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 36, §267.
3943 Outros juízos competentes, Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv. 5, c. 1, § 9;

José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit.. c. 37, § 281 nota. Fórmulas: Gregório
Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 100.
3944 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 37, § 273.

3945 Fórmulas: Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 102 ss..

3946 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 36,§ 281 (com indicação de

outros juízos de recurso das apelações crime).


3947 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 13; “aqueles que exercem a

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estabelecesse a pena para ele, o juiz podia impor uma qualquer, corporal ou
pecuniária (poena arbitraria)3948. Esta indeterminação – que não correspondia à
arbitrariedade irrestrita - obrigava à formulação de princípios gerais que guiassem o
juiz, como o da adequação da pena ao crime 3949, ou outros baseados na finalidade
geral das penas3950 ou no tempero da justiça com a misericórdia3951.
§ 2231. Para além disto, o direito considerava uma vasta série de circunstâncias
que atenuavam ou agravavam a pena ordinária, em função do grau de certeza acerca
da responsabilidade do réu3952 ou de circunstâncias subjetivas3953 e objetivas3954. Por
meio delas, os juízes adequavam a medida punitiva abstrata ao caso concreto.
§ 2232. Estabelecida a pena e julgado o réu, o rei gozava de uma ampla
faculdade de perdão, a que já nos referimos e que constituía um dos traços
estruturais do sistema punitivo do direito comum.
§ 2233. Um dos tratamentos mais completos do regime do perdão na doutrina
portuguesa é o de Domingos Antunes Portugal 3955, onde se discutem os requisitos
a que devia obedecer a sua concessão. Em primeiro lugar, é destacada a sua
natureza de regalia (mesmo de regalia maiora ou quae ossibus principis adhaerent) 3956 3957.
Em segundo lugar, indica-se a necessidade de uma justa causa para a sua concessão,

jurisdição régia não podem decidir arbitrariamente as penas que impõem”, Jorge de Cabedo, Decisiones
[...], cit., p. 2, dec. 60, n. 6.
3948 Cf. D.48,19,13: 48.19.13: “Hodie licet ei, qui extra ordinem de crimine cognoscit, quam vult

sententiam ferre, vel graviorem vel leviorem, ita tamen ut in utroque moderationem non excedat”. No
direito canónico, Decreto, II, causa XII, qu. 2, c. 11; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 30.
3949 Nas penas “civis”, a medida da pena era o dano (damnum, id quod interest, interesse). Mas algumas

continham um elemento de punição, que explicava que a pena pudesse ser um múltiplo do dano (penas
de simples, duplum, triplum e quadruplum, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 13).
3950 Nomeadamente, o fim da prevenção geral (“a pena não deve ser muito leve, pois serve de

exemplo e de ameaça”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 46).
3951 Era muito importante a invocação da misericórdia como contrapeso da justiça (cf. António

Manuel Hespanha, "Da 'iustitia' à 'disciplina' […]”, cit.; “juiz deve ser benigno nas causas leves e
rigoroso nas causas graves”, embora com aliquo temperamentum benignitatis, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 19).
3952 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n. 25.

3953 “Magis tamen puniuntur delicta in una persona quam in alia, quoniam debant attendi sexus, &

locus delicti, & tempus, & locus delicti”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum”, n.
10. Por exemplo, ser da família do réu podia implicar uma pena mais leniente (v.g. no crime de
recetação), pois os sentimentos familiares podiam atenuar a culpa, ibid. v. “Delictum”, n. 44. § 1. A regra
de que ao mais digno se devia aplicar uma pena mais pesada afIora frequentemente nas fontes romanas e
canónicas. Baldo (§ si quis vero usu temerario do tit. II, 53, de pace tenenda dos Libri feudorum) distinguirá: “ou
pela nobreza se aumenta a qualidade do delito, sendo o nobre mais punido; ou pela nobreza não se
aumenta a qualidade do delito e então o nobre é mais punido do que o plebeu se se tratar de pena
pecuniária; mas, tratando-se de pena corporal, o plebeu é mais punido”.
3954 Os delitos cometidos na Igreja ou na presença da Santa Eucaristia deviam ser punidos de

forma gravíssima, com pena capital ou desterro, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Delictum”, n. 11. A pena podia ser agravada pela reincidência (preserverantia), ibid. v. “Delictum”, ns. 15
e 16. (v. Ord. fil. 5,60,3).
3955 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatus de donationibus [...], cit..

3956 Cf. Domingos Antunes Portugal, Tractatusde donationibus [...], cit., pt. 2, c. 18, p. 264 ss..

3957 Logo, insuscetível de doação (ns. 1-5; o príncipe podia, no entanto, cometer a certos

magistrados a instrução dos processos de perdão, v. Ord. fil. 1, 3; Regimento do Desembargo do Paço, §18).

630
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

embora se adiante que “justa, et magna causa est principis voluntas” (uma justa e
grande causa é a mera vontade do príncipe) (n. 11); em terceiro lugar, aponta-se a
necessidade de precedência do perdão de parte (Ord. fil.1 3, 9; III, 29), embora se
excetuassem os casos em que o perdão fosse concedido pro bono pacis (para pacificar
[uma “rixa velha”, por exemplo]) ou em que o príncipe usasse, com justa causa, a
sua potestas absoluta, n. 40 ss. max. n. 47) 3958.
§ 2234. A doutrina atestava uma prática de perdão mais permissiva do que o
faziam supor as determinações legais e, mesmo, doutrinais. Manuel Barbosa
informa que era estilo comutar as penas sem o perdão de parte, decorrido um terço
do seu cumprimento (está a referir-se, decerto, ao degredo). E que, embora Jorge
de Cabedo aconselhasse em sentido contrário, se perdoavam mesmo os crimes
mais graves, recordando casos ocorridos na sua terra, de perdão de penas capitais,
sem perdão de parte: “eu próprio vi, no entanto, perdoar a pena capital a um nobre
de Guimarães, sem perdão de parte, e ouvi dizer que o mesmo acontecera a um
certo homem de Monção, mas para isto deve ocorrer grave causa, pois o príncipe
não pode facilmente perdoar contra o direito da parte lesada 3959.
8.1.6.5.1 Execução.
§ 2235. Admitidos ou recusados eventuais recursos3960 e passada a sentença em
julgado, era dada execução à pena3961. A execução era ordenada pelo juiz que dava a
sentença, devendo ser pública. 3962.
8.1.6.5.2 Extinção da causa.
§ 2236. O processo criminal extinguia-se nos casos que excluíam a punibilidade
- prescrição do crime (em regra, de 20 anos, Ord. fil.1,84,23; 1,96,2), falecimento do
delinquente ou do acusador, perdão do príncipe 3963.
8.1.6.6 Processo sumário
§ 2237. O processo sumário era aquele em que as formalidades ordinárias não
eram observadas, seguindo-se a "ordem natural" dirigida ao conhecimento do delito

3958 “Princeps potest delictorum poenas delinquentibus remittere & indulgere”, Jorge de Cabedo,

Decisiones [...], cit., pt. 1, dec. 75, n. 2. O perdão régio pressupunha o perdão das partes, ibid. 3 a 5; porém,
em Portugal, era de estilo que o degredo fosse comutado em desterro sem licença das partes, ibid. 6.
Domingos Antunes Portugal referia ainda que, em Portugal, o rei não costumava perdoar os crimes mais
atrozes, mesmo com o perdão de parte (n. 48); que os criminosos reincidentes não costumavam ser
perdoados; e que o rei podia perdoar contra o pagamento de certa quantia (Reg. Desemb. Paço, §§ 21 e 23;
n. 124). O regime da concessão do perdão fora modificado por este regimento (de 27.7.1582), num
sentido mais rigorista. Sobre o regime do perdão, v. além do comentário de Manuel Álvares Pegas a este
regimento (Comentaria […], cit., tomo 7, ad Ord. fil.1,3,8 ss. e ad Reg. Sen. Pal. caps. 19 a 21; Jorge de
Cabedo, Decisiones […], cit., pt. 1, dec. 75. V. ainda Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p.
3, cap.30.
3959 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones doctorum […], cit., ad 1, 3, 9, n. 2 [pg. 8]. No mesmo sentido,

Manuel Mendes de Castro, Practica Lusitana […], cit., pt. 2, liv.1. c. 2, n. 19 ss. [pgs. 13/14]; justificando a
praxe “ob delinquentis merito, & beneficio in rem publicam” [por mérito do delinquente e em benefício
do interesse da república] invocando o direito comum: D.49, 16, 5, 8.
3960 Fórmulas, Gregório Martins Caminha, Tratado da forma dos libelos […], cit., (ed. 1764), p. 117 ss..

3961 Sobre penas honestas e vis, José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 38,

§ 282 nota.
3962 Cf. Antonio Vanguerve Cabral, Pratica judicial [...], cit., p. 3, cap. 23. Lugares de suplício de

penas corporais.
3963 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 42.

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e do seu autor3964.
§ 2238. Procedia-se sumariamente nos casos de crimes graves (homicídios e
roubo de estrada processados nas relações, resistência, desafio, contrabando de
cereais, crimes capitais agravados) processados nas relações (Ord. fil.1,1,6). Além
destes, nos casos de réus presos há mais de três meses e nos processados no foro
militar, no Juízo dos contrabandos, no dos falidos e no juízo de residência 3965.
§ 2239. Sumários eram ainda os processos aquando das visitas mensais do
Regedor da Justiça aos cárceres de Lisboa3966, os processos por injúrias não atrozes
e as decisões sobre cauções de termos de bem viver (cauções prestadas para
prevenir crimes entre vizinhos, Ord. fil.1,65,26; 3,78,5; 5,128,pr.).
§ 2240. O processo começava pela audição do réu, marcando-se um breve
termo para a sua defesa. Prescindia-se de citação de parte e de testemunhas
judiciais. Faziam-se os autos conclusos, sendo a sentença dada por seis juízes,
havendo quatro votos conformes. O réu tinha 24 horas para embargar a sentença.
8.1.7 A pena.
§ 2241. A pena era o castigo do delito3967. Em sentido genérico, o conceito
compreendia tanto as penas corporais, como as pecuniárias, tanto as que visavam
compensar o dano (“civis”) como as que castigavam os malefícios (“criminais”).
Mas, em sentido estrito, penas eram somente as corporais aflitivas – ou sejam, as
destinadas a fazer sofrer o corpo 3968, tanto as capitais (último suplício,
desnaturalização [degredo, amissio civitatis] e perda da liberdade), como as não
capitais3969.
§ 2242. O fim da pena (“criminal”) era o de favorecer o bem estar da república,
para que esta se conservasse em paz e os bons pudessem viver tranquilamente entre
os maus3970.
§ 2243. A pena devia ser adequada (comensurata) à gravidade do delito e à
culpa3971. Esta dupla adequação entende-se melhor se se entender a gravidade do
delito, não de um ponto de vista objetivo (a gravidade do mal causado), mas de um
ponto de vista subjetivo (a gravidade moral da maldade que esteve na sua origem).

3964 Cf. José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 41.
3965 Sobre ele, v. Manuel Mendes de Castro, Practica lusitana [...], cit., liv.5,c.5; José J. Pereira e
Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 41,§ 307 nota.
3966 Cf. João Martins da Costa, Domus Supplicationis styli, supremique Senatus consulta […], cit., Adn. 2,

n. 42; José J. Pereira e Sousa, Primeiras linhas de processo criminal, cit., c. 41, § 315 nota.
3967 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 1.

3968 As penas corporais não aflitivas eram aquelas que incidiam sobre o corpo, mas como meio de

produzir um valor (por exemplo, a escravização a favor do prejudicado, se in nexum dare), nos casos em
que o corpo do devedor funcionava como uma extensão do seu património..
3969 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 2.

3970 “[…] ut in Republica sit quies, & boni inter malos tranquille et quiete vivant, et hominum

malitiam reprimatur, quoniam per legem nemo benefacere cogitur, sed male agere prohibetur", António
Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 29; “Delicta punienda ut delinquens metu poena
arctantus et emendientur a suis criminibus, et alii metu aliorum pertimescat commitere alia facinora”,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Delictum” 8.
3971 Cf. Miguel de Reinoso, Decisiones […], dec. 59, n. 16, Jorge de Cabedo, Decisiones [...], cit.. I. dec.

20, n. 4: “Poena comensuranda est delicto. Est enim mensura culpae”.

632
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 2244. As penas em sentido estrito eram odiosas, pelo que tinham que estar
previstas no direito. Pelo contrário, as penas “civis” dependiam do arbítrio do
juiz3972. Em todo o caso, esta previsão da pena pelo direito não equivalia ao
moderno princípio da legalidade, pois existiam penas consuetudinárias (“quando in
similibus delictis est consuetudo, ut certa poena imponatur”) e penas arbitrárias,
que dependiam do arbítrio do juiz quando o direito estabelecia uma pena sem
especificar a sua natureza3973. No domínio das penas “civis”, as partes podiam
convencionar, mesmo extrajudicialmente, o montante da pena de um
comportamento ilícito (iniuria); mas isto era impossível no caso de crimes3974.
§ 2245. As penas canónicas (poenae canonicae) eram a degradação e consequente
deferimento da causa para o tribunal secular; a privação perpétua de ofício,
benefício ou honra, perpétua ou temporária; a expulsão do mosteiro; a demissão ou
suspensão do benefício, a excomunhão e a privação de comunhão 3975.
§ 2246. As penas de direito civil (poenae legales) podiam ser penas capitais (morte
natural ou civil3976 e degredo) ou não capitais (penas pecuniárias, castigos
corporais).
8.2 O sistema axiológico do direito penal de Antigo Regime
§ 2247. O objetivo deste capítulo é o de descrever os principais tipos penais do
ius commune tardio, agrupando-os em função daqueles que parecem ser os valores
protegidos pela proteção penal, tal como os juristas letrados os entendiam.
§ 2248. O crime é produzido por uma prática social de censura, discriminação e
de marginalização, prática mutável e obedecendo a lógicas sociais muito complexa.
Sobre os resultados desta primeira atividade de constituição dos “objetos criminais”
projeta-se uma segunda grelha de classificação, esta doutrinal, produzida pelo
discurso jurídico penal. Este redefine os “crimes vividos”, construindo novos
conceitos (“tipos penais”), e organiza e inter-relaciona estes últimos em grandes
categorias, referidas a certos valores (religião, vida, segurança, propriedade).
§ 2249. Na descrição que se segue, tomaremos como base as grandes categorias
definidas, já nos finais do século XVIII, por Pascoal de Melo, com o cuidado de
estar atento à reconfiguração dos valores a proteger e da função penal na cultura
iluminista3977.
8.2.1 Crimes contra a ordem religiosa.
§ 2250. Foi apenas nas Ordenações filipinas (1604) que os “crimes religiosos”
apareceram agrupados. Nas Manuelinas (1521), estes tipos penais ainda surgiam

3972 “Non habent locum, nisi in casibus a iure expressis [...] omnes casus poenales sunt stricti iuris,

in illis nulla fit extensio, & potius sunt restringnedi, quam ampliandi”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Poena”, n. 18; cf. também, ibid. n. 2.
3973 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 6; n. 45 (o arbitrium do juiz não

deveria estender-se até à aplicação da pena de morte, segundo a melhor – mas não unânime - doutrina).
3974 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 14.

3975 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 3.

3976 Aqui se incluía a pena de galés, o degredo perpétuo (de mais de dez anos, Melchior Febo,

Decisiones […], dec. 156, n. 6 ss.; mas não o inferior ou o desterro), a condenação à condição de carrasco,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Poena”, n. 4.
3977 Sobre as ideias penalistas de Pascoal de Melo, v. António Manuel Hespanha, "Le projet de

Code pénal portugais de 1786 […]”, cit..

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dispersos. Aparentemente, a emergência deste objeto “crime religioso” no discurso


legislativo português ocorreu na segunda metade do século XVI, ou por influência
da Nueva Recopilación castelhana (1567) ou na sequência do aparecimento de um foro
especial para estes delitos, o Tribunal do Santo Ofício, cuja competência (privativa
da jurisdição ordinária, quer civil, quer eclesiástica) abrangia todos os “negócios
atinentes à fé”3978. Num regimento mais tardio do tribunal - o de 1640, que
sistematiza e explicita a prática anterior - lá aparece a série de crimes com que abre
o Livro V das Ord. fil.- apostasia (tit. VII), renegação (tit. VII), heresia (tit. VII),
cisma (tit. VIII), discussão de matérias religiosas (tit. XI), blasfémia (tit. XII),
desrespeito do Santíssimo Sacramento ou dos Santos (tit. XIII), feitiçaria (tit. XIV),
bigamia (tit. XV), falsidade em assuntos religiosos (tit. XVI), detenção de livros
proibidos (tit. XX), perjúrio (tit. XXIV) e sodomia (tit. XXV) 3979. Ou seja, a partir
daqui, os crimes cujo conhecimento pertencia à Inquisição destacavam-se, em
virtude desta particularidade jurisdicional, formando uma categoria a que o
legislador passou a ser sensível na arrumação dos títulos do livro terribilis das
Ordenações.

8.2.1.1 Heresia
§ 2251. A heresia3980 tinha uma longa tradição textual no direito comum, em
textos de direito romano (v. C.1,5) ou em textos de direito canónico. No direito
peninsular, ela aparece na legislação desde o início do século XIII 3981.
§ 2252. Distinguia-se a ofensa à religião católica feita por um batizado ou por
um não batizado. Tal distinção tinha sentido, na medida em que a heresia, como
violação da ortodoxia, não podia recair senão num crente. No entanto, a extensão
do conceito aos não crentes tinha uma antiga tradição no direito português (lei de
3.1.1416, baseada num costume anterior e num texto do Corpus iur. Canon.: Sextum,
5, 13).
§ 2253. Nas suas grandes linhas, era o seguinte o regime da heresia segundo o
direito comum.
§ 2254. A heresia era, sobretudo, um delito “da vontade” (de eleição) 3982 e não
“do entendimento”. Embora fosse definida como um “erro”, ela só era punida
quando com o erro concorressem a firmeza do ânimo e a pertinácia no errar3983.
Por isso, não era herege o que reconhecia o seu erro e estava disposto a emendar-
se3984. Os que abjurassem (não sendo relapsos), não eram enviados para o tribunal

3978 Sobre este tribunal, José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci, História Geral da Inquisição Portuguesa
[…], cit..
3979 Cf. Col. cronol. lega. (J.J.A.S.), vol. respetivo; sobre a competência do Santo Ofício, em Portugal

e em geral, João Baptista Fragoso, Regimen […], p. 2, liv. 5. disp. 13 per totam.
3980 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […],cit., ad Ord. fil. 5,1; fontes de direito canónico, Decreto, 23,

qu.7; 24,q.3.
3981 Cf. lei de 1211, lei 3; Livro das leis e posturas, 10/11; Partidas, 7, 26, pr. e ss.

3982 A palavra vinha do grego αἵρεσις, "escolha" ou "opção".

3983 “Eligit disciplinam, quam putat esse meliorem, & intelligit scripturam aliter, quam sensus

Spiritus Sancti, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 1.


3984 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 4.

634
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

secular, mas postos em cárcere perpétuo, para penitência, ou enviados para as galés
por tempo arbitrário. Eram, além disso, obrigados a usar um traje especial,
sambenito (saccum benedictum), em sinal do seu crime e da sua penitência pública 3985.
§ 2255. O erro herético devia incidir sobre um artigo de fé ou um sacramento
da Igreja3986. Os livros dos heréticos eram condenados, independentemente de
terem erros, por causa da heresia do seu autor 3987.
§ 2256. A heresia era, em princípio, um delito de batizados, ou seja, de pessoas
pertencentes ao grémio da Igreja, pois só então estavam sob a disciplina desta, da
qual a disciplina temporal se entende como subsidiária 3988. O direito distinguia a
heresia da apostasia e da infidelidade. A segunda só excecionalmente era punida. A
terceira não era, em geral, punida. O estatuto penal destes comportamentos
religiosos reflete uma situação de pluralismo religioso. Na verdade, o que se punia
não era a diversidade de religião, mas a violação da ortodoxia pelos que
permaneciam no seio da Igreja. Nem a Igreja se arrogava o direito de punir os não
crentes, nem o poder temporal considerava o pluralismo religioso incompatível
com a unidade política da sociedade. Estas oposições ir-se-ão esbatendo, à medida
que se vai estabelecendo a ideia de “religião do reino” (cujus regio eius religio [Siga-se a
religião daquele de quem é a região]), segundo a qual a violação do princípio da
unidade religiosa equivalia ao crime de lesa majestade. O que voltava ao grémio
católico mas recaía na heresia era relapso e via agravada a sua condição
(nomeadamente, não podendo voltar a arrepender-se)3989.
§ 2257. Só era punida a heresia manifesta, mas não já a cometida “nullo signo
oris aut facti” (sem sinal de palavra ou de facto), pois a Igreja não julgaria coisas
ocultas3990.
§ 2258. A heresia era um delito cujo conhecimento competia aos tribunais da
Igreja. Mas como estes não podiam aplicar penas de sangue, deviam entregar ao
braço secular os réus a punir corporalmente (Decretais, v. 13, 1; 15, 1), embora
esconjurando os juízes a que não aplicassem penas de sangue. Segundo uma
opinião comum em Portugal no século XV, o juiz secular a quem se recorria não
devia reapreciar o processo, mas apenas limitar-se a aplicar a pena; mas as Ordenações
afonsinas e manuelinas prescreviam um papel mais interveniente do juiz secular, na
esteira de uma opinião de Bártolo3991. No séc. XVII, a doutrina volta a limitar as
atribuições do tribunal secular, que devia aplicar prontamente a sentença
condenatória sem a apreciar

3985 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus, n. 38.
3986 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 2.
3987 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus” n. 34.

3988 No entanto, um cânone do Sextum (V, 13) prevê a punição dos judeus convertidos ao

cristianismo e novamente tomados ao judaísmo. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Haereticus”, n. 7.
3989 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 36. Típico, o casos dos

judeus que se reconciliavam com o cristianismo, mas voltavam a judaizar (ibid. n. 33).
3990 Os pensamentos não expressos, ainda que abomináveis, não eram heresia. Bater na imagem de

Cristo ou deitar ao chão a eucaristia era apenas um forte indício de heresia, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 18.
3991 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haeresia”, n. 16.

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§ 2259. As penas previstas na tradição jurídica eram várias e cumulativas 3992: a


excomunhão; proibição de sepultura cristã; a incapacidade para contratar e para ter
bens; a incapacidade para ser herdeiro por testamento ou ab instestato; a privação de
ofícios e benefícios; a privação de todos os privilégios; o confisco 3993; a infâmia até
à segunda geração; a morte pelo fogo (eventualmente prisão perpétua e galés, para
os reconciliados); a destruição das suas casas3994. A condenação podia ser póstuma,
aplicada até quarenta anos depois da morte 3995.
§ 2260. As Ordenações receberam o regime do direito canónico, reconhecendo a
jurisdição da Igreja neste domínio3996. O crime era puramente eclesiástico 3997,
embora a sentença fosse executada por um tribunal secular 3998 Mas, de facto, o
tribunal competente acabava por ser um tribunal régio, o da Inquisição, a quem os
tribunais seculares asseguravam toda a cooperação (Ord. fil.2,6). Os inquisidores
eram considerados como juízes delegados, sendo a sua jurisdição especial e
improrrogável3999. O processo continha algumas especialidades que acumulavam
mais poder nas mãos dos juízes. As causas eram sumárias e desenrolavam-se sine
strepitu et figura iudicii, e sem advogado4000 Por isso mesmo, a doutrina recomendava
cautelas na averiguação – observância do segredo da investigação, exame cuidado
das testemunhas, recurso a assessores doutos -, cominando a pena de excomunhão
para os que abusassem das suas prerrogativas4001.
§ 2261. O crime de sacrilégio, previsto no direito canónico, não constituía um
tipo penal do direito civil4002.
§ 2262. A apostasia4003 correspondia ao abandono da religião ou da
obediência4004. Assim, tanto incluía o abandono da fé católica, correspondendo à
heresia4005, como a desobediência ao Papa ou a outro superior religioso. A
desobediência ao Papa tanto podia consistir na negação da sua qualidade de vigário
de Cristo e nos poderes que daí decorriam, e então correspondia à heresia, ou na

3992 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, ns. 1 a 11.
3993 O confisco dava-se a favor do fisco secular, precedendo sentença do juizo eclesiastico (no caso
português, da Inquisição), António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus” 12; âmbito do
confisco, v. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.5,1,pr. a 4.
3994 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad rubr. n. 3.

3995 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 25.

3996 Plenamente, só as Ord. fil. 5,1.

3997 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus” 14

3998 Primeiro, os tribunais dos bispos; depois, os juízes delgados do papa (inquisidores); mais tarde,

os tribunais régios especializados. Os bispos mantinham com estes uma jurisdição cumulativa, devendo
haver colaboração entre as duas jurisdições, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Haereticus”, ns. 14 e 15.
3999 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, ns. 42 ss.

4000 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, n. 14.

4001 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Haereticus”, ns. 41 e 48.

4002 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”.

4003 Do grego apostasis, composto de apo, que significa afastamento, e stasis, estar, estado.

4004 Fontes jurídicas: Decreto, cap. 2, qu. 7; cap. 11, qu. 7; Decretais, Cf. 9, de apostat. C.1,7, de

apostat.; António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Apostasia”; Manuel Barbosa, Remissiones [...],
cit., ad Ord. fil. 5,1, n. 6.
4005 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Apostasia”, ns. 1, 2.

636
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

mera desobediência por qualquer outra razão. Neste último caso, o apóstata era
punido com a perda de ofício eclesiástico e com a excomunhão 4006. A
desobediência a outro superior eclesiástico podia consistir em atitudes muito
diversas. Típicas eram o abandono da qualidade eclesiástica (eventualmente, para se
amancebar), ou o abandono de hábito regular 4007. Nestes últimos casos, a pena era a
excomunhão, a infâmia, a perda do estado eclesiástico, a remoção de ofício
eclesiástico e, para os regulares, a sujeição a suplícios (não cruentos: v.g. jejuns) e
prisão eclesiástica, para incentivar à obediência4008. O apóstata que cometesse atos
graves contra a fé estava sujeito a confisco (por direito civil, apenas se não tivesse
filhos ou descendentes)4009.
§ 2263. O que mais importa destacar, na ulterior evolução histórica deste
campo penal é que, com a secularização do direito, que se nota na segunda metade
do século XVIII, o regime destes crimes passa a ser fundado na ofensa feita, não à
religião verdadeira, mas à religião estabelecida e à ordem social de que esta faz parte.
Neste sentido, não interessava, por um lado, que a religião estabelecida fosse
verdadeira4010; e, por outro, qualquer crime contra a ordem social podia ser
considerado como crime religioso. Pascoal de Melo chega a definir como
antirreligiosos todos os atos que atentem contra os bons costumes, as leis divinas,
as naturais e até as civis4011.
§ 2264. Assim, a heresia tornava-se, antes de tudo, num “crime público civil,
pois se entendia que todo aquele que ofendesse ou desprezasse a religião pública
destruía os mais fortes vínculos sociais” 4012, originando “infinitas desordens,
tumultos e perturbações, que a mesma sociedade deve acautelar” 4013). Daí que a
punição civil deste crime não considerasse os aspetos espirituais, pois “os homens
não foram postos para vingar as ofensas feitas a Deus” (ibid.) e, por isso, a
gravidade do crime não fosse avaliada pela magnitude espiritual ou teológica das
ofensas, mas pela medida das perturbações sociais provocadas (v. g. sedições ou
criação de partidos religiosos), pelo escândalo causado 4014 ou pelo mal real
provocado4015.

4006 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Apostasia”, n. 3.


4007 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Apostasia”, n. 1.
4008 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Apostasia”, ns. 3 e 6. Se vivesse com

mulher, era suspeito de heresia. Não era considerado apóstata o clérigo menor que abandonasse o estado
eclesiástico.
4009 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Apostasia”, n. 10.

4010 Cf. Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 2, 1 “[...] a Nação, a qual dificilmente se

pode conceber sem alguma religião, verdadeira ou falsa”; critica ao ateísmo dos livres-pensadores, ibid. 2,
8).
4011 “Todos os delitos podem ser chamados eclesiásticos, estando sujeitos, no foro da consciência,

à punição da Igreja, às penitências, censuras e penas canónicas”, Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis,
cit., II, 2.
4012 Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 2, 4.

4013 Pascoal de Melo, Codigo criminal [...], cit., 15.

4014 Cf. Pascoal de Melo, Codigo criminal [...], cit., 24.

4015 Cf. g. os feiticeiros não são punidos senão pela malícia e sofrimentos físicos a que as

beberagens derem causa, Pascoal de Melo, Codigo criminal [...], cit., 9495; os perjúrios, pelos prejuízos
provocados a terceiros, ibid. 7,1.

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§ 2265. No plano da tipificação4016, a secularização levou a que se prescindisse


de traços que apenas tinham significado numa conceção puramente religiosa ou
teológica do crime, como, por exemplo, a distinção entre hereges confitentes e
inconfitentes. E, pelo contrário, se introduzissem novas distinções, estas relacionadas
com a perigosidade social dos atos (v. g, a distinção entre heresia simples e heresia
sediciosa, Proj. cod crim. 5, 6).
§ 2266. No plano da natureza e medida da pena, as consequências desta
laicização do conceito de crime religioso eram também importantes. A pena devia
corresponder, não à magnitude da ofensa feita a Deus, mas à perturbação da ordem
social4017. Por outro lado, o simbolismo religioso perdia todo o sentido: a morte
pelo fogo, que se ligava a uma antiga ideia de purificação, passou a ser considerada
como cruel e sem proporção com o delito. Por isso, vão ser propostas novas penas,
não apenas mais brandas, mas, sobretudo, com uma nova simbologia, espelhando a
ofensa, não a Deus, mas aos vínculos sociais. Estas novas penas irão, então,
encenar as consequências do delito, numa dramatização em que o criminoso é o
protagonista: ele, que pôs em risco os vínculos sociais, irá ser objeto de uma des-
socialização, perder a consideração pública (infâmia), a capacidade jurídica
(confisco, incapacidade sucessória, perda de ofícios) e, finalmente, irá ser expulso
do convívio social (degredo).
§ 2267. Finalmente, no que respeita à competência jurisdicional, a secularização
do conceito de crime religioso exigiu que o seu conhecimento competisse a
tribunais seculares. É por isso que o próprio Pascoal de Melo elaborou um projeto
laicizante e estatizante de regimento da Inquisição4018. O Tribunal do Santo Ofício
acabou por ser extinto por uma lei de 5.4.1821.
8.2.1.2 Sacrilégio.
§ 2268. O sacrilégio era a violação ou usurpação de uma coisa sagrada4019.
§ 2269. Cometia-se em razão de uma pessoa sagrada ou religiosa, como quando
se ofendia fisicamente (mas não por palavras) ou se prendia um clérigo ou pessoa
de ordens sagradas4020. O mesmo acontecia se alguém tinha relações íntimas com
uma freira ou depunha do seu ofício um eclesiástico 4021. Sacrilégio em razão do
lugar era a violação da imunidade ou a ofensa de um lugar sagrado, igreja ou
cemitério, forçando a entrada desse lugar, cometendo aí um crime, tirando daí
pessoas pela força4022. Sacrilégio em razão da coisa era apropriar-se (ocupar ou
usurpar, perturbar a posse) de coisa sagrada ou existente em lugar sagrado 4023.
Compreendia as coisas ou direitos da Igreja, mas não os de clérigos 4024.

4016 Isto é, da definição das condutas que integram certo tipo penal e a que, portanto, corresponde

uma certa pena.


4017 Cf. Pascoal de Melo, Codigo criminal [...], cit., 20.

4018 Cf. Regimento do Santo Officio da Inquisição dos Reinos de Portugal […] (1774), cit..

4019 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, n. 1.

4020 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, ns. 2 a 6.

4021 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, n. 18.

4022 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, n. 7.

4023 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, n. 8.

4024 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, ns. 11 e 14.

638
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 2270. O direito do reino não previa um tipo conjunto e autónomo para este
crime. Mas várias das suas modalidades aparecem tipificadas ao longo do livro V
das Ordenações (v.g. Ord. fil.5,15). O sacrilégio era punido, de direito comum, com a
pena de excomunhão ou com pena arbitrária, cumulativamente com a pena
correspondente a outro crime conjuntamente cometido 4025.
§ 2271. Era crime de foro misto, seguindo a regra da prevenção4026.
§ 2272. Próximo do crime de sacrilégio estava o de simonia, também específico
do direito canónico (como pecado e como crime)4027, e que consistia na vontade ou
desejo de vender ou comprar uma coisa (bem, direito ou jurisdição) espiritual. Nela
se incluía a venda de ofícios eclesiásticos, o seu provimento em troca de dinheiro, e
outros comportamentos que consistissem na patrimonialização de prerrogativas
eclesiásticas4028.
8.2.1.3 Blasfémia.
§ 2273. A blasfémia4029 era o insulto a Deus, à Virgem ou aos santos ou a
destruição ou desrespeito às suas imagens. A punição da blasfémia tem também
uma longa tradição jurídica4030. Na Península, as Partidas (VII, 28) estabeleciam um
sistema hierarquizado, que se comunicará às fontes ulteriores. Esta hierarquização
verifica-se, em primeiro lugar, quanto ao autor da blasfémia (“quanto mas honrado,
e mejor lugar tiene, tanto peor es el yerro”), estabelecendo-se uma gradação que ia
de rico homem a “otro ome de los menores”4031. No plano do destinatário da
ofensa, distinguia-se entre ofensa a Deus, à Virgem e aos santos. Distinguia-se
ainda entre a blasfémia por palavras e a blasfémia por atos (v. g. cuspir na cruz ou
feri-la com pedra ou faca).
§ 2274. Em Portugal, uma lei de 6.7.1315 (Ord. af. 5,99,1) aplicava aos que
blasfemassem contra Deus ou contra a Virgem a pena de corte da língua e morte
pelo fogo. Nas Ordenações (Ord. af. tit. cit. Ord. man. 5,34 e Ord. fil. 5,2) retomavam-
se, nos seus traços gerais, as distinções das Partidas4032.
§ 2275. A blasfémia era punida com multa, açoites ou pena ordinária, de acordo
com a gravidade da ofensa ou com o estado da pessoa. Em princípio, eram
inimputáveis deste crime, os bêbados, os menores, as mulheres e os rústicos 4033. Se
não contivesse heresia, a blasfémia era um crime de misto foro4034.
§ 2276. Neste sistema de tipificação e de punição, que se manterá até ao
iluminismo, os traços mais interessantes são os seguintes:

4025 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, n. 9 e 18.
4026 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sacrilegium”, n. 15.
4027 Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 13, n. 141 ss..

4028 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Simonia”, n. 1 ss.. Fontes: Decretais, 5,3;

Extravag. Comuns, 5,1..


4029 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad. Ord. fil.5,2, n. 1.

4030 Levítico, c. 24; D.12,2, de jurejurando; Decretais, v. 26, c. 2.

4031 Partidas, 7, 28.

4032 Sobre os blasfemos, Ord. fil.5,2; e seu comentário por Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad

Ord. fil.5,2, proem. n. 2; penas de direito comum e próprio de vários reinos, ibid. n. 3.
4033 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.5,2, ns. 5 ss..

4034 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad 5,2,3.

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§ 2277. Em primeiro lugar, a promoção de uma visão hierarquizada, quer da


sociedade terrena, quer da sociedade celeste. O grande é mais punido, não apenas
porque sobre ele recai uma maior responsabilidade, mas também porque a sua
punição constitui um exemplo para o pequeno (“punitio maior est exemplum,
timor et metus minorum”). Diferenciando a pena segundo a qualidade do ofendido,
destaca-se também a natureza hierarquizada da própria sociedade celeste, de que a
da terra é o reflexo e, com isso, o carácter sagrado da ordem.
§ 2278. Em segundo lugar, e agora no plano do sistema das penas, é
interessante notar, não apenas a gradação das penas em função do estatuto do
criminoso, mas ainda a lógica desta gradação. Com efeito, há penas que se aplicam
a nobres - multa e degredo - e penas que se aplicam a vilãos - açoites, multa e galés.
Ou seja, os nobres punem-se no património (mais fortemente do que os vilãos) ou
na honra (degredo). Os vilãos punem-se no património, ou no corpo (por castigos
físicos ou trabalhos forçados). Não se trata apenas de um sistema punitivo
estatutário, mas ainda de uma manifestação da hierarquização dos bens
honra/corpo/fortuna que não é o mesmo para todos os homens. Para os nobres, o
bem mais caro é a honra, enquanto que o corpo, mero suporte da honra, não
constitui um objeto autónomo de punição. Para os vilãos, não sendo a honra
relevante, o bem mais caro é o corpo.
8.2.1.4 Feitiçaria, benzas e vigílias nas igrejas.
§ 2279. A feitiçaria 4035 era um outro dos crimes religiosos. Compreendia
práticas muito variadas, desde a invocação do demónio, para adivinhar, a
administração de filtros ou recitações amorosos (pocula vel carmina amatoria), a
explicação de sonhos, a necromancia [magia negra], a leitura da sina (com agulhas,
pregos, facas, paus, ossos, penas, ou a feita pelas linhas da mão, por ciganas) 4036.
§ 2280. Em Portugal, uma lei de 19.3.1401 (em Ord. af, 5,42,pr.) punia as
adivinhações para achar ouro e prata. Mas deviam ser também punidas muitas
outras práticas que se encontram tipificadas, quer na tradição do direito comum,
quer nas Partidas4037. Estas Ordenações (5,4,4) alargam a punição (com a morte) a
todo o tipo de feitiçaria. Na longa justificação aí contida não se invocam só os
argumentos clássicos das fontes romanas sobre os prejuízos que da feitiçaria
adviriam à saúde e tranquilidade dos homens, mas também o seu carácter de
pecado, pela participação demoníaca que haveria em todas essas atividades.
§ 2281. Ao sistema das penas subjaz o mesmo princípio estatutário, embora

4035 Tradição textual: Dec. Grat. II, C. 26, qu. 1, C. 1 (“os feitiços são aquelas artes pelas quais, sob a

capa de uma religião fingida, se chamam os santos, se usa da ciência da adivinhação ou se promete uma
qualquer visão do futuro”; a definição é de Santo Isidoro de Sevilha, Ethim. 8, c. 9); C.9, 18; Partidas, 7,
23), Ord. afons. 5,42; Ord. man. 5, 33; Ord. fil. 5,3 3. A feitiçaria era um crime de foro misto, punido com
penas eclesiásticas e civis. V. Ord. fil. 5,3; Decr. 24, qu. 5. Literatura; António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Sortilegium"; Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,3; João Baptista Fragoso,
Regimen [...], cit., p. 1, I. lI, p. 161 (dec. 4, § 6).
4036 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad 5,3,2, ns. 3 a 5. Mas não a astronomia (ibid. ).

4037 Adivinhar em espelho, água, cristal ou coisa luzente, cabeça de homem morto, animal, ou na

palma da mão de menino ou mulher virgem; encantamentos; feitiços de amor; beberagens. Permitidos
são a astronomia e os encantamentos benéficos (tirar demónios, desfazer nuvens de granizo, matar
gafanhotos ou pulgões). Uma lei de 22.3.1499 (v. Ord. man. 5, 33) acrescenta-lhes práticas
especificamente portuguesas (v. g. benzer com espada que tivesse passado três vezes o Douro e Minho).

640
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

atenuado, e a mesma gradação dos bens já antes encontrada.


§ 2282. Pascoal de Melo dá como ridículos as feitiçarias, encantamentos, filtros
e augúrios punidos pelas Ordenações e como desproporcionadas as penas aí
estabelecidas4038. O que acontecera fora que, para o racionalismo das Luzes, a magia
deixara de ser crível. No direito anterior - apesar da insistência de algumas das
fontes anteriores no tópico dos prejuízos “naturais” (doenças, burlas) causados
pelos feitiços -, é evidente que, por detrás da punição de certas práticas -
nomeadamente daquelas que apenas consistiam em rituais e palavras (mala carmina) -
, estava a convicção da sua eficácia, agravada pelo carácter insidioso e imparável dos
processos. Agora, essa crença tinha entrado em crise.
§ 2283. As benzeduras de animais eram punidas nas Ordenações (Ord. fil.5,4),
assim como as vigílias e representações teatrais em igrejas (Ord. fil.5,5), que já
estariam em desuso e proibidas pelas constituições dos bispados nos finais do séc.
XVI4039.
8.2.2 Crimes contra a ordem moral
§ 2284. Sob a rubrica de crimes “morais”, reúnem-se os crimes que se agrupam
nas Ordenações (Ord. fil.5,13 a 33) em torno do que se entendia ser a defesa da
moralidade das relações sexuais.
8.2.2.1 Sodomia (relações homossexuais, bestialidade e masturbação).
§ 2285. O mais grave dos crimes sexuais era a sodomia, considerado como uma
ofensa a Deus e à natureza, mais torpe do que o adultério ou do que o incesto com
a própria mãe, e do qual nem se devia falar (nefando) 4040. A sodomia era o ato torpe
contra a ordem natural que consistia na ejaculação de que não podia resultar a
geração4041.
§ 2286. Abrangia uma vasta gama de práticas sexuais. O coito homossexual,
entre homens ou entre mulheres4042; o coito heterossexual em que o varão tem
relações ou insemina a mulher numa posição perversa (ordine perverso4043); a excitação
usando um instrumento ou as mãos; a simulação do coito usando uma covinha no

4038 Cf. Pascoal de Melo, Codigo […], cit., “Provas”, p. 28.


4039 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.5,5.
4040 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sodomia”, n. 1-2. Fontes: Partidas,7,21,2;

Ord. fil.5,13 (v. o respetivo comentário de Manuel Barbosa, Remissiones […], cit.). A sodomia desaparece
de alguns códigos do séc. XIX, não por a prática deixar de ser crime, mas justamente com o argumento
de que dele nem falar se devia (o exemplo mais conhecido é o do Code penal francês de 1805).
4041 “Sodomia est turpitudo contra naturalem ordinem, et seminatio, ex qua generatio sequi non

potest, et dicitur peccatum nefandum, quasi de eo loqui non posset”, António Cardoso do Amaral, Liber
[...], cit., s. v. “Sodomia”, n. 1; v. também, com detalhes interessantes, António Gomez, Opus […] super
legibus Tauri [.], cit., ad 1,80, ns. 33 ss..
4042 “Primo modo, si foemina agit cum foemina mediante aliquo instrumento materiali; et relatum

est mihi quod iste casus jam continguit de facto in quibusdam monialibus qui fuerunt comnbustae [...]
Secundum modo, si foemina agit cum alia foemina sine aliquo instrumento: nam secundum medicus &
naturales, foeminae inter se coire possunt delectando", António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.],
cit., ad 1,80, n. 40.
4043 "[...] Si foemina habet accesum viro tanquam agens: puta si ipsa ascendit supra virum"

(Antonio Gomes, Opus […] super legibus Tauri [.], cit., ad 1,80, n. 34); ou “si quis habet accessum ad alium
non per vas exterius, sed intra crura vel in alia parte corporis, vel manibus abutendo, et semen
emitendo", ibid. n. 35.

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chão4044; o coito com animais irracionais (bestialidade)4045.


§ 2287. A tipificação da sodomia revela a extensão da “natureza” em questões
de sexualidade: esta abrangia o género dos parceiros no coito, as posições usadas
para a cópula, a função procriativa da ejaculação, a subordinação do prazer à
finalidade de gerar (v. cap. 3.2.3).
§ 2288. Os sodomitas eram punidos com as penas mais cruéis: morte pelo fogo,
confisco dos bens, infâmia até à 2ª geração (filhos e netos) (Ord. fil.5,13, pr.)4046. No
caso de bestialidade, o animal devia ser também morto, não por merecer pena, mas
para que não ficasse memória de tal crime 4047. Em alguns dos casos anteriores,
menos claramente previstos nos textos legais ou menos graves, a sodomia deveria
punir-se com pena arbitrária4048, o mesmo acontecendo no caso de o crime não se
consumar4049 ou dos sodomitas serem menores4050
§ 2289. A punição canónica de clérigos sodomitas foi sendo aliviada. Os
clérigos eram suspensos do ofício, mandados para um convento em penitência
perpétua e separados do convívio com os monges. Nos finais do séc. XVI, o
regime punitivo abrandara: excluíra-se dos atos sodomíticos a mera pollutio
extraordinaria (ou seja, a ejaculação meramente luxuriosa, provocado por
pensamentos torpes carnais, conversas ou afagos do corpo, ou excitação com as
mãos - masturbação)4051; a reclusão perpétua fora substituída por pena arbitrária;
quando o crime era oculto, a pena passou a ser dispensada 4052). Por um moto proprio
de Pio V, de 3.9.1568, o clérigo sodomita passou a ser entregue à justiça secular 4053.
8.2.2.2 Adultério.
§ 2290. A punição do adultério4054 tinha obedecido a duas lógicas diferentes,
uma de direito romano, outra de direito canónico.
§ 2291. No direito romano, o adultério era considerado como uma violação da
“lei conjugal”, ou seja, da exclusividade que a mulher deveria ao marido quanto às
relações sexuais4055. O que estava em causa era, fundamentalmente, o interesse

4044 "[…] Fecisse foramen in terra, & ibi coire & emittere semen, ac si cum foemina coirent",

António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], cit., n. 40


4045 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sodomia”, ns. 3 a 5.

4046 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sodomia”, ns. 5 ss..

4047 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sodomia”, n. 5; António Gomez, Opus

[…] super legibus Tauri […], cit., ad 1, 80, n. 35 ss..


4048 Cf. António Gomez, Opus […] super legibus Tauri […], cit., ad 1, 80, n. 35 ss..

4049 "[...] Aconteceu, de facto, nesta cidade de Salamanca, em que um certo marido, frígido e

impotente, tentou corromper a mulher por meio de um pau fabricado por ele para isso; a mesma gritou
e vieram os vizinhos, e ele foi preso pelo juiz [...], cit., mas como o delito apenas foi tentado, puniram-no
na pena de açoites, com aquele instrumento de madeira pendurado ao pescoço, e na de desterro [...] o
mesmo acontecendo na cidade de Córdova, em que um marido, na noite de núpcias, julgando ser
impotente, quiz corromper a mulher da mesma forma [...]”, António Gomez, Opus […] super legibus Tauri
[…], cit., ad 1, 80, n. 40.
4050 Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad 5,13, princ..

4051 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sodomia”, n. 8.

4052 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sodomia”, n. 8.

4053 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Sodomia”, n. 10.

4054 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.5,38.

4055 Sobre o impensado das obrigações sexuais dos cônjuges, cf. supra.

642
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

familiar em impedir a turbatio sanguinis, a dúvida quanto à paternidade dos filhos


nascidos na constância do matrimónio4056. Por isso, para que houvesse relações
adúlteras, requeria-se a consumação das relações sexuais ou, mesmo, a gravidez 4057.
§ 2292. No direito canónico, pelo contrário, o adultério era considerado como a
violação da fidelidade conjugal (Decretum, C. 32, qu. 5, c. 15; C. 20-23), podendo,
por isso, ser cometido por ambos os cônjuges. O critério de avaliação dos atos era
diferente e menos rigoroso, aceitando-se o adultério por pensamentos4058.
§ 2293. Este diferente tratamento do adultério relacionava-se, possivelmente,
com duas economias da sexualidade e da família, em conflito na cultura europeia
desde a baixa Antiguidade. Uma, que alguns autores fazem corresponder a um
ambiente de recessão demográfica, de maior permissibilidade sexual, embora
limitada pela lógica da defesa da identidade da família, enquanto instituição política.
Outra, correspondente a áreas ou épocas de pletora demográfica, dominada por
uma conceção negativa e restrita da sexualidade, que a procurava confinar ao
âmbito da família rigorosamente organizada em termos monogâmicos 4059. O direito
canónico e a disciplina eclesiástica da família encarnavam a promoção e defesa
deste segundo modelo, desenvolvendo uma ação combinada para extirpar dos
costumes europeus a sexualidade extrafamiliar, profundamente enraizada.
§ 2294. As Ordenações (Ord. af. 5,25; 28; Ord. man. 5,15; 25; Ord. fil. 5,7; 12; 20)
seguiram, fundamentalmente, a via do direito romano, com todas as suas
consequências. Assim, o adultério do marido não era, por via de regra, punido 4060; e
o da mulher só era considerado relevante quando tivesse havido consumação de
relações sexuais. Mas, neste caso, a lei era muito severa na proteção dos interesses
político-familiares, o que era característico de uma sociedade onde prevaleciam
valores casticistas e linhagísticos: o adultério era, em geral, punido com a morte,
sendo o marido ofendido autorizado a tirar desforço por suas próprias mãos (Ord.
fil. 5,38). Legislação extravagante da segunda metade do século XVIII (alv. de
26.9.1769) reforçará ainda o carácter “familiar” dos interesses protegidos, ao tornar
a perseguição do crime totalmente dependente de acusação do marido.
§ 2295. A análise do regime penal do concubinato reforça ainda a impressão de
que, no seio desta tradição de enquadramento penal das práticas sexuais, o que
estava em causa não era tanto a defesa de uma ordem moral, como a defesa dos
interesses da família enquanto grupo político. De facto, o concubinato era

4056 “O adultério comete-se na mulher casada, sendo o seu nome assim composto a partir de

“parto concebido com outro”, D.48, 5, 34, 1. Consequentemente, o adultério apenas podia ser cometido
pela mulher casada e pelo seu amante, já não por homem casado com mulher solteira. Nem por mulher
casada de mau porte.
4057 A doutrina estabelecia uma complicada casuística das relações amorosas que configuravam o

adultério, bem como dos factos que o indiciavam. Neste último plano, os juristas eram bastante estritos,
não se contentando alguns sequer com o facto de os amantes serem encontrados na cama, sozinhos e
despidos (solus cum sola, nudus cum nuda). Com este rigor probatório que se encontra também noutros
crimes sexuais (v. g. bestialidade e sodomia, António Gomez, Opus […] super legibus Tauri […], cit., ad 1,
80, n. 33 ss.) - procurava-se decerto limitar a perseguição penal destes atos. Mas outros, mais rigoristas,
consideravam já como adulterinos os atos preparatórios do coito, como a troca de beijos e abraços
(“veluti mutuis amplexibus, & osculis”, Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.5,38,2).
4058 Jaime de Corelia, Pratica de confessionario, cit., p. 66, ns. 1-2.

4059 Cf. Jack Goody, “The evolution of the family”, cit..

4060 Ord. fil. v. 28, pr. (concubina “teúda e manteúda” no domicílio conjugal).

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permitido pelo direito romano (D. 25, 7 De concubinis), tendo sido proibido apenas
pelo direito canónico. Embora, de acordo com o “critério do pecado“ (formulado
pela doutrina medieval acerca da hierarquia entre os dois direitos e recolhido em
Ord. fil. 3, 64), tal proibição devesse ter passado para o direito civil, o certo é que a
nossa lei só punia o concubinato de homem casado e, ainda assim, só no caso de
decorrer com escândalo público e, sobretudo, com dissipação, a favor da
concubina, do património familiar4061. Tão pouco eram punidos o “coito vago” e o
meretrício.
§ 2296. Apesar deste tom um tanto laxista da legislação - pelo menos, em
relação à sexualidade masculina - desenvolvia-se, paralelamente, uma política sexual
mais repressiva, amparada, sobretudo, pelo aparelho disciplinar da Igreja. De facto,
nas visitações, os bispos deviam inquirir dos casos de concubinato e barregania,
procedendo contra eles criminalmente, nos termos do direito canónico (cf. Ord. fil.
2,1,13). Por influência destas visitações, surge legislação que comete aos
magistrados seculares o encargo de devassar sobre os “pecados públicos“4062 e,
segundo Pascoal de Melo, juízes “moralistas” chegavam a punir o adultério
“simples” (de homens casados com mulher solteira)4063. É justamente contra este
rigorismo - que perturbava, muitas vezes, a ordem familiar estabelecida, levantando
suspeitas falsas ou importunas - que reage a legislação pombalina 4064 e, em geral,
toda a doutrina iluminista.
§ 2297. No projeto de Codigo criminal, de Pascoal de Melo (tit. XI) acolhia-se
uma conceção totalmente diferente da ordem sexual, recebendo-se, em geral, a
conceção canónica de adultério, como violação da fidelidade conjugal; com isto,
passava a punir-se, tanto o adultério do marido, como o da mulher, embora com
penas diferentes, adequadas à diferente natureza do sexo segundo o “pensar geral
da nação” (mas, afinal, mais duras para a mulher) (cf. 6 e “Provas”, pp. 33-34). A
punição do adultério tendia a libertar-se da primazia dos interesses político-
familiares (i. e. de defesa da legitimidade dos filhos da mulher casada). Agora que a
natureza contratual do casamento começava a ser destacada, tornava-se decisiva a
fidelidade, como manifestação do respeito pela palavra dada (pacta sunt servanda). Ao
mesmo tempo, o Estado chamava a si a defesa de uma certa ordem sexual, até aí
mantida pelo direito canónico. Com isto se anunciava o puritanismo da sociedade
burguesa, que identificava a sexualidade permitida com a sexualidade entre os
cônjuges, embora admitisse, como válvula de escape, uma promiscuidade sexual
policiada e “exterior” à sociedade oficial, proporcionada pela prostituição 4065.
8.2.2.3 Estupro.
§ 2298. O regime penal do estupro confirma o modelo de valorização da
sexualidade a que nos vimos referindo.

4061 Isto acontecia quando o marido sustentasse a concubina (Ord. fil. 5,28, pr.), mas já não quando

ele “tivesse o hábito da promiscuidade carnal” (António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Concubinatus”, p. 218, col. 1).
4062 Cf. alvs. 25.12.1608, ns.21 e 22.

4063 Pascoal de Melo, Codigo […], cit., “Provas”, 32.

4064 Cf. C.L. 19.8.1769, n. 12.

4065 O “coito vago” ou o “meretrício” não eram punidos no projecto de Código de Pascoal de

Melo, embora fossem sujeitos a medidas de polícia (Proj. cod. crim. 11, 3).

644
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 2299. O direito romano punia como estupro dois tipos de conduta: ou as


relações sexuais com virgem menor (puellae defloratio, D. 48,6,34) ou as relações
sexuais impostas a uma mulher com violência (D. 48,5,6, 2 e Nov. 141 e 150),
enquadrando-as no crime de violência. O direito moderno tendia a enfatizar mais a
defesa dos valores familiares do que a defesa da “inocência”. António Cardoso do
Amaral, fundando-se numa opinião comum, defendia que “quem estupra uma
virgem na casa do pai, comete rapto de virgindade e aleivosia, mesmo que a não
leve para outro lugar, devendo ser punido com as penas dos raptores [...]; pois com
o estupro não se ofende apenas a virgem, mas também os seus pais e
consanguíneos [... Em contrapartida], quem estupra uma virgem que o quer e
consente, a nada está obrigado para com essa mulher, nem no foro da consciência,
nem no foro contencioso, desde que a rapariga não esteja sob o poder do pai, mãe,
tutor, curador ou afim; pois a mulher emancipada tem poder sobre o seu corpo
quanto ao foro externo e, nas suas coisas, cada um é o moderador e o árbitro” 4066.
Apenas se exigia que se não usasse fraude (dona, presentes, blanditiae, carícias) para
obter o consentimento. Os únicos limites da sexualidade fora do casamento, para
solteiros, eram, portanto, as limitações impostas pela ordem familiar e a proibição
da violência ou do engano4067.
§ 2300. Outra era a perspetival dos canonistas, subsidiária da moral sexual da
Igreja. Aqui, o princípio era o do carácter ilícito e pecaminoso do coito, sobretudo
se praticado fora do matrimónio (“todo o outro coito é ilícito e reprovado pela lei
divina [...] de onde se deve fugir da fornicação como da peste” 4068).
§ 2301. As Ordenações (Ord. af. 5,5; Ord. man. 5,14; Ord. fil. 5,18 e 23)4069
recolhiam, no fundamental, o sistema romano, punindo como estupro as relações
sexuais com violência (Ord. fil. 5,18, 3) ou com virgem ou viúva, honesta e menor
de 25 anos in patris potestate (ibid. 5,23, 3). A legislação extravagante mais importante
era constituída pelas leis de 19.6.1775 e de 6.10.1784 (A.D.S.). A primeira visava
proteger a família contra a utilização do estupro como expediente para forçar
casamentos que os pais, de outro modo, não consentiriam. Para isso, à estratégia
canónica de reparar o pecado pelo matrimónio subsequente opôs-se a de devassar
oficialmente de tais crimes e de aplicar aos culpados penas civis. O pecado
permaneceria, mas os interesses políticos das famílias ficariam mais salvaguardados.
A segunda estratégia era a de, além de impedir a queixa de estupro a mulheres
(maiores de 17 anos) que tivessem consentido nas relações sexuais, diferenciar as

4066 António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Stuprum”, ns. 11-12.
4067 Alguns autores introduziam ainda outras restrições à sexualidade inter volentes: as ordens
clericais, certas relações político-sociais (v. g. entre ama e escravo ou criado, entre tutor e tutelada, etc.), a
diversidade de religião, bem como aquilo que era considerado como a natureza do sexo (sobre este
último ponto, v. António Gomez, Opus […] super legibus Tauri […], cit., ad 1, 80, ns. 5 ss.).
4068 Mesmo no matrimónio, a castidade era a virtude máxima, pecando venialmente o marido “que

só por causa do prazer e voluptuosidade tenha trato com a mulher”, António Gomez, Opus […] super
legibus Tauri […], cit., ad 1, 80, n. 3.
4069 As Ord. fil. tipificavam em títulos sucessivos várias situações de relações sexuais ilícitas: infiel

com cristã e cristão com infiel (t. 14), coito com freiras (que era uma forma de sacrilégio, tit. 15), com
mulher da corte, virgem, viúva honesta ou escrava branca (tit. 16), com parenta (tit. 17), coito forçado
(tit. 18), coito de oficial com mulher da sua jurisdição (tit. 20), coito com órfã ou menor a cargo (tit. 21),
coito forçado com mulher virgem in patria potestate (tit. 22), coito consentido com virgem ou viúva
honesta (tit. 23), coito (ou casamento) com parenta, criada ou escrava da pessoa com quem vive (tit. 24),
coito com mulher casada (tit. 25 e 26).

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penas aplicadas em função da idade das mulheres. Afinal, reforça-se a proteção dos
interesses familiares, mesmo com o sacrifício da ordem “moral”. Tal é, também, a
orientação do projeto de Pascoal de Melo (tit. XII) que, porém, descriminaliza o
estupro de donzela com quinze anos feitos (XII,10).
8.2.3 Os crimes contra a ordem política.
§ 2302. Nos crimes contra a ordem política incluem-se a lesa-majestade e a
violência.
8.2.3.1 Lesa-majestade.
§ 2303. O tratamento penal da lesa-majestade remonta a dois títulos do Corpus
iuris civilis, D. 48,4 ad legem Juliam de magestatis, e C. 9, 8, id.. Nestes textos, a
configuração do crime era pronunciadamente estatalista: o crime era definido como
um delito contra o povo romano e a sua segurança. Esta tradição fora recolhida no
Cód. visigótico (2,1,8), no direito canónico4070 e, mais tarde, nas Partidas (VII, 2)4071.
§ 2304. É justamente nas Partidas que surge uma segunda tradição textual,
bastante importante para o direito português, em que o crime de lesa-majestade é
integrado no delito mais geral de traição, este despido de qualquer conotação
estatalista e feito equivaler a uma ofensa praticada com falsidade e vileza (VII,2,20).
Em todo o caso, o texto distingue a lesa-majestade ou traição (contra o rei, ou seu
senhorio, ou contra o bem comum da terra) do aleive (contra qualquer outro
homem).
§ 2305. No direito português, a primeira providência legislativa sobre a lesa-
majestade aparece com D. Afonso II (cf. Ord. af. 5,2), numa lei em que a traição
aparece confundida, quer com a aleivosia, quer com a heresia: “[...] a saber, se os
davanditos trabalharam em nossa morte, ou de nosso filho, ou de nossos parentes
achegados, os quais temos que são parte do nosso corpo, ou em morte de seu
senhor, ou hereges [...]” (Ord. af. 5,2,1).
§ 2306. As Partidas influenciam decisivamente as Ord. af. bem como o conceito
aí subjacente de poder e de delito político. Terminada a enumeração dos casos de
lesa-majestade, o texto afonsino passa - aplicando-lhe um regime punitivo
semelhante - para um crime que, embora se não chame “traição” ou “aleive”,
corresponde ao ato aleivoso ou traiçoeiro típico, ou seja, o ato daqueles que
cometem alguma ofensa contra seu amigo ou senhor, com traição ou aleivosia (n.
22). O traço mais característico do regime das Ord. af. é justamente esta não
autonomização da ofensa feita ao rei em relação a outras ofensas praticadas
aleivosamente contra uma pessoa comum. Dir-se-ia que, na escala de valores que
subjaz à fixação do tipo penal, o vínculo entre súbdito e rei se não distingue
fundamentalmente do vínculo entre o homem e Deus, entre o vassalo e o seu
senhor, entre o amigo e o seu amigo e, mesmo (como se comprovaria por outros
textos, mesmo posteriores, que aproximam o traidor do parricida), entre o filho e o
pai. Com isto, é toda uma matriz de compreensão dos vínculos políticos que se

4070Decretais, c. 6, qu. 1, c. 22; De poenit. d. 1, c. 9.


4071Ord. fil.5,6; Partidas,7,2; Nueva Recopilación, 8,18. Sobre a história da lesa-majestade na doutrina
do direito comum moderno, cf. Mario Sbriccoli, Crimen Laesae Maiestatis […], cit.. Fontes, para Portugal:
Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,6, proem. n. 1; Jorge de Cabedo, Decisiones […], cit., p.
2, dec. 82.

646
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

exprime. Pois estes aparecem justificados, ao mesmo tempo, pelos deveres da


religião, da obediência, da amizade e da piedade familiar. Nestes termos, qualquer
atentado contra este complexo resultava no mesmo crime; embora, no seio do tipo
penal, se estabeleçam gradações. Se contrastarmos o texto das Ordenações com a
tradição anterior, parece que assistimos a uma progressiva regressão do conceito de
“Estado”, desde os textos “publicistas” do Corpus iuris, passando pelas versões já
menos nítidas das Partidas, até desembocar num estado de obliteração da
especificidade do supremo poder e dos vínculos de dependência em relação a ele.
§ 2307. Já as Ordenações seguintes marcaram o advento, neste plano, da
consciência da especificidade do poder real. A lesa-majestade era, agora4072, um
crime especificamente dirigido contra o poder supremo, embora a sua gravidade
conheça gradações consoante o carácter mais ou menos direto, mais ou menos
grave, da ofensa. Os conselheiros régios e os magnates deixaram de aparecer entre
os protegidos pela punição, o mesmo se passando com os senhores ou os oficiais
subalternos4073. Por outro lado, a lesa-majestade aparecia, agora, claramente distinta
da aleivosia, a que era dedicado um texto independente mais adiante (tit. 37). O
poder supremo era concebido como intimamente relacionado com a pessoa do rei.
Enquanto que os textos romanos falavam do populus ou da civitas, os textos
medievais e modernos falam do rei, do seu corpo, da sua família (Ord. fil.5,6, ns. 1 e
21), do seu palácio (ibid. n. 24), da sua imagem (ibid. n. 8), da sua presença pessoal
(ibid. n. 7), das suas ordens diretas e pessoais (ibid. ns. 2-6, 23, 25 e 26). No
conjunto, o que sobrelevava era uma conceção personalizada do poder, em que o
crime político era configurado, não como uma ofensa feita à ordem política, fosse
quem fosse que a atuasse, mas como uma ofensa pessoal ao rei.
§ 2308. Com o iluminismo4074 manifesta-se, em primeiro lugar, a ideia da
especificidade dos laços que ligam o vassalo ao imperante. Isto salienta-o Pascoal
de Melo, logo no início da justificação do articulado relativo à lesa-majestade do seu
Projeto de Código criminal: a principal obrigação do súbdito era a fidelidade; e, por isso,
o maior crime que ele podia cometer era a traição, que Pascoal de Melo distinguia
da traição privada: “e lhe chamo alta em diferença dos crimes particulares; porque o
amigo infiel ao seu amigo e benfeitor, o criado ao amo, o clérigo ao seu bispo, e o
súbdito ao superior, não é tão criminoso e infiel, como aquele, que o é à sua
Pátria”4075.
§ 2309. Por outro lado, o poder político despersonaliza-se. O crime de alta
traição ou lesa-majestade deixa de visar principalmente a pessoa do rei, passando a
dirigir-se contra a república, como todo politicamente organizado. Sendo assim,
embora o soberano desempenhe na organização política um papel central e, por
isso, seja aqui especialmente contemplado, todas as instituições e todos os
magistrados são agora defendidos pela punição da lesa-majestade. Daí que se passe

4072 V. Ord. fil. 5,6.


4073 Embora a questão fosse discutida (Cf. Prospero Farinnacius, Praxis […], cit., qu. 112, n. 136
ss.). As Ord. fil. reservavam outros títulos para a ofensa à justiça real (lesa majestade “de segunda
cabeça”, Ord. fil.5,6, ns. 22 e ss.) e para as ofensas aos magistrados (v.g. Ord. fil.5,48 ss.). Outros atos de
desrespeito ao rei: Ord. fil.5,7 a 12 (inclui-se aqui a moeda falsa, como ofensa a uma regalia régia e à
própria imagem e título reais inscritos nas moedas). V. os respetivos comentários de Manuel Barbosa,
Remissiones […], cit..
4074 Cf. Arno dal Ri Júnior, “Entre lesa-majestade e lesa-república […]”, cit..

4075 Pascoal de Melo, Codigo criminal intentado por (..), cit., “Provas”, 36/37.

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a punir, nesta sede, a sedição, o tumulto, a resistência aos magistrados, delitos que,
nas Ordenações, eram punidos noutros títulos (tits. 44 a 51).
8.2.3.2 Os crimes contra a ordem pública - a violência
§ 2310. A punição da violência tinha uma longa tradição textual4076. No direito
romano, as leges Plautia de vi (c. 65 a.C) e Julia de vi (17 a.C.), criaram ações criminais
(quaestiones) para o julgamento dos crimes de violência contra a comunidade política
(vis publica), tais como organização de bandos, ocultação de armas, sedição
[perturbação do exercício de funções públicas], constrangimento a magistrados e
senadores; bem como para o julgamento dos crimes de vis privata, atos que
conturbassem o funcionamento dos juízos privados ou que consistissem em
violência contra particulares (autodefesa arbitrária, sequestro, estupro). Para os
delitos de vis publica, previa-se a pena de morte ou de exílio e para os de vis privata a
expropriação dos bens (publicatio bonorum). A lex Julia de Annona, c. de 50 a.C.
criminalizava o açambarcamento.
§ 2311. A tradição medieval portuguesa da punição da violência é constituída
por leis recolhidas nas Ordenação afonsinas (cf. Ord. af. 5,35; 45; 50; 66; 76 e 77; 95 a
97; 106). Ao lado desta tradição legislativa, existia também uma tradição letrada 4077
que adaptava a casuística das fontes romanas ao contexto político-social medieval,
dando um novo relevo aos tipos penais que atentavam contra a política régia de
instauração de uma paz do rei, como a proscrição da violência nos juízos, repressão
de violência dos clérigos, dos senhores e dos oficiais (sobretudo “fiscais”),
regulamentação das tréguas e pazes. Em suma, o rei, como fonte da justiça (i. e. do
equilíbrio da ordem social “natural”), impõe a sua paz; ou seja, proíbe qualquer
ofensa desta ordem, sobretudo por meios violentos graves.
§ 2312. No século XVI, Jacques Cujas define a violência pública como “aquela
que, contra o direito, se exerce contra as pessoas públicas, que detêm império e
poder”. Ou seja, a violência toma-se mais grave, não já quando se manifesta pelo
uso das armas, mas quando é “sediciosa”, isto é, dirigida contra um magistrado 4078.
Também nas Ordenações manuelinas e filipinas, a violência tende a ser, sobretudo, a
ofensa de pessoas públicas - nomeadamente, ofensas ao corpo ou honra dos
magistrados (cf. Ord. af. 5,91;104; Ord. man. 5,36;75; Ord. fil. 5,48 a 51).
§ 2313. Porém, as Ordenações previam, genericamente, a usurpação violenta
(roubo) de uma coisa privada (Ord. fil.5,61). No caso de a coisa valer mais de mil
réis, esta ofensa do património privado era considerada como um crime e punida
com a morte. Mas, se a coisa valesse menos, a usurpação era tratada como furto,
sendo punida com as penas privadas do furto (restituição no quádruplo ou no
duplo, a favor do dono da coisa). Também os assaltos de noite ou em estradas eram
punidos como crime, merecendo pena capital ou degredo perpétuo para o Brasil,
consoante o valor da coisa. Outras violências contra pessoas privadas eram tratadas
noutros contextos - v. g. a violação e o estupro, no dos crimes sexuais; a usurpação
violenta de posse, no dos meios processuais de tutela da posse.
§ 2314. Um grupo importante de crimes de violência pública era constituído

4076 D.48, 6 ad legem Corneliam de vi publica; D.48, 7 ad legem Corneliam de vi privata.


4077 Baseada no Cod. visig. 8,1 de invasionibus et direptionibus, e nas Partidas, 7, 10.
4078 É também este o sentido da distinção no projecto de Pascoal de Melo (tits. 16-24).

648
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

por perturbações graves da ordem pública ou de desafio à paz do rei. Alguma da


legislação que criminalizava estes atos vinha do início do séc. XV, referindo-se à
violência de bandos senhoriais, a disputas violentas de parcialidades urbanas ou a
manifestações de banditismo, que já seriam raras nos finais do séc. XVI. Uma lei de
D. João I referia o caso concreto do banditismo que grassaria na Beira, Minho e
Trás-os-Montes: “Item nos foi dito que em nosso Senhorio, especialmente nas
Comarcas da Beira, & dantre Douto e Minho & detrás os Montes homens de pé
escudados se lançam nas matas, & continuamente andam valdios pela terra,
comendo o alheio pelas terras chãs, forçando muitas moças virgens, & fazendo
muitos males. E isso mesmo os fidalgos, e Abades os ajuntam a si, e fazem com
eles andando assunadas, uns contra os outros, em tal guisa que os ditos homens de
pé, & escudados não curam de ter outros officios, de que se segue desserviço”. No
tempo de Manuel Barbosa, já não se ouvia há muito falar disso. Semelhante era a
organização ou chefia de bandos para fazer mal a alguém (“assuadas”), o apelar
para o auxílio de comparsas em confrontos entre bandos rivais, a manutenção de
homens armados4079.
§ 2315. Outro grupo de crimes de violência protegia a paz nos tribunais. Tal era
o caso da resistência à justiça4080, das injúrias dirigidas ao juiz ou seus oficiais no
exercício das suas funções4081, dos tumultos levantados durante um julgamento 4082
ou dos que tirassem presos à justiça ou das cadeias4083.
8.2.3.3 Crimes contra as pessoas - a honra
8.2.3.4 As injúrias.
§ 2316. No direito romano, todos os valores pessoais não patrimoniais estavam
protegidos pela punição das injúrias4084. Apesar da tendência pós-clássica para a
punição criminal de certas categorias de injúrias, o sistema romano tendia a tratar as
injúrias apenas sob o ponto de vista, “privatístico”, de ofensa de interesses
meramente individuais, ofensa compensável por uma indemnização “de direito
privado”4085. Além do caso do membrum ruptum (amputação ou inutilização de
órgão), a Lei das XII Tábuas previa outros dois tipos de delito de iniuria: os fractum
ou conlisum (fratura do osso) e a iniuria pura e simples (outras lesões menores): nesse
caso a pena era de apenas 25 asses. Discute-se, entre os romanistas, acerca da
identificação dos atos que não entravam nestes dois casos concretos mas que eram

4079 Cf. chamar por outrem que não Elrei, Ord. fil.5,44; assuada, Ord. fil.5,45; trazer consigo homens

“escudados” (salvo em tempo de guerra), Ord. fil.4,47; e respetivos comentários de Manuel Barbosa.
4080 V. Ord. fil.5,49 e respetivo comentário de Manuel Barbosa. Podia-se, porém, resistir ao juiz

incompetente ou que não observasse o processo, ou ao juiz não exibisse os sinais do seu poder (a “vara
alçada”), Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.5,49, n. 3.
4081 V. Ord. fil.5,50 e respetivo comentário de Manuel Barbosa. Aplicava-se também aos oficiais de

fazenda, mas não aos advogados, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil.5,50, n. 4.
4082 V. Ord. fil.5,51 e respetivo comentário de Manuel Barbosa.

4083 V. Ord. fil.5,50 e respetivo comentário de Manuel Barbosa. Não se aplicava à mulher que tira o

marido da cadeia, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad pr. n. 1. Discutia-se se incluía o caso de a
prisão ser notoriamente injusta e não haver meio de justiça para a obviar, Manuel Barbosa, Remissiones
[...], cit., ad pr. n. 2; ad 3, n. 3. Sobre os duelos ou desafios, Ord. fil.5,43.
4084 Cf. D.47, 10 De iniuriis et famosis libellis.

4085 Não eram indemnizáveis senão os danos morais, mesmo no caso da ofensa corporal, pois os

danos físicos não poderiam ser objeto de avaliação, já que o corpo de um homem livre não tinha preço
(in hominis liberi corpore nulla corporis aestimatio fieri potest; cf. D.9,3; max. D.9,3,7; I.1,6,7 [liberdade]).

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qualificados com o termo técnico de iniuria. Havia dois tipos de actio iniuriarum; uma
legitima (ex lege XII tabularum, 8,3-4), outra honoraria, introduzida pelo pretor. Esta
última era concedida para todos os atos ilícitos, contrários aos costumes
tradicionais romanos (adversus bonos mores), que acarretavam lesões físicas ou morais
a uma pessoa (no sentido de que comprometiam a honra e a reputação desta). A lex
Cornelia de iniuriis (81 a.C.) sujeitou a pena pública (criminal, quaestiones perpetuae) os
tipos mais graves de iniuria, sobretudo as lesões pessoais. Na época clássica, foram
introduzidos tipos de injúria que atentavam contra a honra do ofendido: convicium
(insulto em público); ne quid infamandi causa fiat ("que não se faça nada com intuito
de desonrar outra pessoa"); adtemptata pudicitia (atentado ao pudor e bons costumes
sobretudo de mulheres casadas e de menores).
§ 2317. Estes traços do regime do direito romano pesaram sobre o direito
medieval4086 e moderno.
§ 2318. A doutrina do direito comum tardio definia a injúria, em sentido lato,
como aquilo que era feito contra o direito; mas, em sentido estrito, como uma
afronta injusta, cometida por atos, palavras ou escritos, com o intuito de difamar
outrem4087. Consoante a sua gravidade, a injúria podia ser: (i) atroz, como a feita em
público ou perante pessoa investida de dignidade (magistrado, eclesiástico), a feita
por pessoa humilde a pessoa nobre, por filho aos pais, pelo liberto ao patrono, pelo
escravo ao senhor4088; (ii) a enorme ou gravíssima, como bater com a mão ou com
chicote, dar bofetadas, ou mesmo apenas levantar a mão para alguém; (iii) leve,
como qualquer outro tipo de afronta, nomeadamente chamar nomes (ladrão,
bastardo, herege)4089.
§ 2319. A injúria podia ser considerada do ponto de vista penal (quatenus
maleficium) ou do ponto de vista civil, como facto que causa danos 4090. A primeira
dava azo a uma ação criminal, a segunda a uma ação civil de ressarcimento de
danos. O direito comum seguia uma construção “privatista”, ao classificar as
injúrias como um delito privado, sujeito, antes de tudo, a uma ação civil (e não
penal), visando uma indemnização ao ofendido. Na prática, o móbil de muitas
acções de injúria era, decerto, o interesse económico. Mas, na imagética dos textos,
a actio iniuriarum não prosseguia recompensas pecuniárias, pois “a honra não se
paga”. As fórmulas de estimação da indemnização constituíam então prodígios de
retórica que visam avaliar [...] o inavaliável - “antes queria ter perdido ou não ter
ganho tal soma do que ter sofrido esta injúria”4091. Por outro lado, a honra deixou
de ser, nesta sociedade fortemente corporativa, um bem puramente individual, pois
existiam grupos de pessoas de tal modo ligadas que a ofensa feita a uma se refletia
no património moral das outras. É o que se passa com a comunidade doméstica 4092;
mas a doutrina tinha identificado outros grupos do mesmo tipo.
§ 2320. As Ordenações portuguesas não se ocupavam expressamente das injúrias

4086 Cf. Partidas, 7,9.


4087 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 1.
4088 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 2.

4089 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, ns. 2, 3 e 14.

4090 Cf. Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all 16, ns. 7 a 10.

4091 Cf. por todos, António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], cit., ch. 4, n. 7.

4092 Cf. D.47, 10,1,3 e 4..

650
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

não corporais4093, recebendo implicitamente o sistema do direito comum.


Recebiam, nomeadamente, o regime “privatista” da punição. Longe de se
comprometer na vingança da honra de cada um, estabelecendo punições
“públicas”, “criminais”, a coroa deixava subsistir o sistema de indemnização
“privada”, canalizando todos os seus esforços no sentido de evitar meios violentos
de reparação, como o duelo ou a vingança privada. A não ser que se tratasse de
injúria a oficiais públicos (v. antes, cap. 8.2.3.2)
§ 2321. Estava sujeito à ação de injúrias aquele que ferisse outrem, proferisse
palavras difamatórias ou escrevesse ou divulgasse escritos do mesmo género (libella
famosa4094), bem como o que persuadisse ou mandasse alguém fazer isso 4095.
§ 2322. A injúria exigia a intenção de difamar (animus iniuriandi), que se presumia
se as palavras, em si mesmas, fossem injuriosas). Por isso, a actio iniuriarum não se
dava contra incapazes de dolo4096, como o furioso ou o impúbere. Se aquilo que se
dizia era verdade e fosse dito, não com intenção de injuriar, mas para se defender
em juízo, não havia crime; mas se a acusação não fosse verdade ou não houvesse
necessidade de invocar esses factos desabonatatórios em juízo, havia
responsabilidade criminal4097. Proferida no calor da ira, a difamação não deixava de
ser punível, mas deveria sê-lo mais levemente. Já se fosse provocada por palavras
ou atos injuriosos do ofendido, não era crime4098.
§ 2323. A actio iniuriarum competia ao injuriado, ao seu paterfamilias, ao seu
patrono ou ao seu dono4099, ao marido4100, ao herdeiro (por injúrias ao cadáver), ao
prelado (por injúria feita a um monge, já que este carecia de capacidade processual
ativa)4101.
§ 2324. As injúrias eram punidas com pena arbitrária, considerados os factos, o
que se disse, o lugar e as pessoas do ofensor e do ofendido4102. No direito comum,
existia a regra de que, nos libelos famosos, o ofensor devia ser punido com a pena
correspondente ao crime de que se acusava injustamente 4103. Como ação crime, a
ação de injúrias caducava se não fosse intentada no prazo de um ano, pois se
presumia que o transcurso deste tempo equivalia ao perdão. Mas, como ação civil,
era uma ação perpétua4104.
§ 2325. Em Portugal, a ação de injúrias era primariamente uma ação civil,
tendendo à indemnização do dano4105.

4093 Exceções Ord. fil. 5,42 a 50; 5, 84.


4094 Cartas difamatórias, v. Ord. fil.5,84.
4095 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 7 e 9.

4096 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 4 e 5.

4097 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 11.

4098 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 14 e 15.

4099 Só no caso de injúria atroz ou quando a ofensa ao escravo ofendesse também o dono.

4100 Porém, a mulher não podia tirar desforço judicial de injúrias feitas ao marido.

4101 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 6. As injúrias verbais

requeriam acusação de parte (v. Ord. fil.5,117), Ibid. v. “Iniuria”, n. 7.


4102 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 16.

4103 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 9.

4104 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Iniuria”, n. 20.

4105 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 71, n. 11.

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8.2.4 Crimes contra as pessoas - o corpo.


8.2.4.1 Homicídio.
§ 2326. O homicídio era definido como a destruição do corpo de um homem
vivo, causada por outro4106.
§ 2327. Esta tipificação básica era estendida ou restringida por circunstâncias
suplementares. Algumas dessas circunstâncias afastavam a criminalização, outras
agravavam-na4107.
§ 2328. Entre as circunstâncias que permitiam que se desse a morte a outrem
estava a defesa legítima. Podia matar aquele que o fazia para defender a vida, no
caso de ela estar em perigo atual e iminente, e não apenas por causa de ameaças4108.
Matar para defender bens próprios não era considerada legítimo, a não ser no caso
de roubo noturno4109. Porém, alguma doutrina alargava mais a legitimidade da
defesa, opinando que se podia matar para defender os bens, a vida do próximo ou a
honra e pudícia das mulheres4110. A invocação da legitima defesa pelo autor
justificava a morte do agressor, desde que a defesa não fosse excessiva 4111. A
provocação equivalia, até certo ponto, à legítima defesa, atenuando a pena 4112.
§ 2329. Também o adúltero podia ser morto pelo marido, se fosse encontrado
em adultério em casa do marido e se fosse pessoa vil 4113. O mesmo podia fazer o
pai da esposa, se encontrasse os adúlteros em sua casa ou na do genro, desde que
matasse também a filha4114. Neste caso, o homicida nem sequer incorria em
excomunhão. Segundo António Cardoso do Amaral, o direito português ainda era
mais permissivo, pois se bastava com a prova de que houvesse adultério, para que o
marido pudesse matar os adúlteros 4115.
§ 2330. O conceito de homicídio era estendido a outras situações que não a
morte de homem.
§ 2331. Assim, era homicida aquele que causasse aborto ou desse poção

4106 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 1.


4107 Sobre o tema, v. Ord. fil.5,35, “Dos que matam ou ferem, ou tiram com arcabuz ou besta” e
Ord. fil.5,35,6, respetivo comentário de Manuel Barbosa, Remissiones […], cit; António Cardoso do
Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”. Fontes romanas: 48.8. Ad legem Corneliam de siccariis et veneficis;
48.9. De lege Pompeia de parricidiis.
4108 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, ns. 8 e 9.

4109 O clérigo, porém, nem neste caso podia matar para defender bens temporais António Cardoso

do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, ns. 7 e 8.


4110 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.5,35,pr. ns. 15 a 17.

4111 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.5,35,pr. n. 19 ("salvo se nelle excedeu a

temperança", no modo, no tempo e na causa). O que fosse a defesa “temperada” dava lugar a uma larga
casuística (ibid. ns. 20 ss.).
4112 Era o caso daquele que matasse por ter sido chamado de traidor, judeu ou cornudo, v. Manuel

Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.5,35,pr. n. 11.


4113 Incluindo se fosse clérigo ou magistrado. Mas se fosse nobre e o marido vil, já não podia ser

morto, sendo, todavia, o assassino punido com uma pena mais branda, António Cardoso do Amaral,
Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 10.
4114 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 10.

4115 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 10; Manuel Barbosa,

Remissiones […], cit., ad Ord. fil. 5,38.

652
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

abortiva a mulher prenha, depois de o feto ter alma (animatus esse), o que acontecia
nos machos depois de 40 dias a partir da conceção e nas fêmeas após 80 dias. Antes
disso, o aborto era punido mais levemente, com pena arbitrária 4116.
§ 2332. A venda de veneno também era considerada como homicídio, e a morte
pela administração de veneno como homicídio e injúria atroz 4117. O mesmo aleive
que a morte por envenenamento tinha a morte por arremeço de seta ou disparo de
bala, a tal ponto que já era punido como homicida, embora com pena arbitrária, o
que perseguisse alguém com armas deste tipo, independentemente de consumar o
crime4118.
§ 2333. Equivalia ainda ao homicídio a produção de feridas de que o ofendido,
embora tivesse sobrevivido, nunca tivesse convalescido, embora se levassem em
consideração causas posteriores – doença, descuido ou imperícia do médico no
tratamento das feridas4119.
§ 2334. Mais grave do que o homicídio era o assassínio, tipificado à parte4120. O
assassínio era o homicídio praticado (por infiéis, diz António Cardoso do Amaral) a
troco de dinheiro ou outra recompensa. Neste caso, eram punidos os assassinos, os
mandantes e os cúmplices, quer se tivesse seguido a morte ou não 4121. A
qualificação dos assassinos como infiéis fazia com que eles fossem considerados
como fora de lei (sacer), podendo ser mortos ou desapropriados dos seus bens por
qualquer pessoa, nem sequer podendo recorrer à imunidade da Igreja 4122. A pena
era a capital4123, mesmo que a morte não se seguisse. Esta atrocidade do assassínio
justificava ainda que bastasse uma prova apenas provável 4124.
§ 2335. O homicídio voluntário requeria dolo (ou seja, vontade deliberada).
Existiam ainda o homicídio por casualidade (não voluntário), o que ocorria para
além da vontade do agente (ou preter-intencional)4125 e o necessário, ou seja, o que
se justificava por o homicida ter tido a necessidade de matar o ofendido (legítima
defesa)4126. Neste último caso, era discutido quando é que essa necessidade ocorria,
nomeadamente, se era necessária a defesa quando o agente podia ter evitado o
crime, fugindo. A doutrina entendia que a possibilidade de fuga só era relevante

4116 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 22. Ministrar poção

para causar a esterilidade era punido com degredo, ibid.


4117 Cf. v. Ord. fil.5,35,2; 5,92; cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”,

n. 26; Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,35,2.


4118 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 27.

4119 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 18; Manuel Barbosa,

Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,35, n. 5.


4120 V. Ord. fil.. 5,35,3.

4121 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Assassinium”, ns. 1 e 2.

4122 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Assassinium”, ns. 3 e 4. O clérigo

assassino ficava sujeito a ambos os foros, ibid. n. 9.


4123 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Assassinium”, ns. 5 e 6.

4124 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Assassinium”, n. 8.

4125 Ou seja, caso a morte não tivesse sido querida, resultando porém dos ferimentos. Em

contrapartida, se a morte tivesse sido querida, mas não tivesse sobrevindo, o autor era punido por
injúrias, devendo indemnizar o ofendido dos dias de trabalho que este perdeu por causa dos ferimentos,
bem como das despesas de tratamento, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”,
n. 20.
4126 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Assassinium”, ns. 4, 5 e 6.

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quando ela pudesse ter lugar sem quebra do decoro, pois a quebra da honra
equivalia à perda da vida4127. Assim, no caso de militares e pessoas nobres, para
quem a fuga seria indecorosa, existiria sempre legítima defesa 4128.
§ 2336. A exigência de dolo fazia com que os homicídios perpetrados por
menores na infância (v. cap. 3.1.9) ou por loucos furiosos (v. cap. 3.1.10) não
fossem punidos4129. Em alguns casos, podiam ser punidos homicídios não
intencionais: o pai respondia pela morte do filho devida a abandono recusa de
alimentos4130; aquele que levava a cabo um ato ilícito ou que não agisse com a
diligência necessária respondia pelo homicídio casual4131; quem montasse um cavalo
buccadurus (bravo) e matasse alguém respondia pelo acidente 4132; o médico que
causou a morte do doente por negligência ou imperícia4133.
§ 2337. Se vários tivessem causados feridas, só era punido com a pena ordinária
o autor da ferida mortal, sendo os outros punidos só com penas extraordinárias4134.
§ 2338. A doutrina considerava que o homicídio podia ser cometido por ação
(facto), aconselhamento (consilio) ou ordem (mandato). O incitamento genérico ao
homicídio era punido, embora com uma pena arbitrária mais branda 4135.
§ 2339. No homicídio, a tentativa (conatus), deduzida de factos externos e não
apenas de uma presumida intenção interior, era punida, embora não com a pena
ordinária, de acordo com a regra dolus pro facto accipitur (cf. D.48,7,pr.). Há autores,
no entanto, que defendem a punição da tentativa com a pena ordinária pela
natureza atroz do crime, que autorizava a punição com a pena ordinária desde que a
intenção pudesse ser deduzida de atos exteriores4136.
§ 2340. Por direito civil, a pena do homicídio era a morte, por decapitação (para
os nobres) ou enforcamento (para plebeus), acompanhada de confisco, se o autor
não tivesse descendentes ou ascendentes até à terceira geração4137. Por direito
canónico, incapacitava para receber a ordem ou benefícios, e sujeitava a pena de
prisão em mosteiro por 5 a 7 anos (em pena perpétua, no caso de homicídio de

4127 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 5 (“periculum famae

aequiparetur periculum vitae”).


4128 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,35,pr. n. 14.

4129 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 31; sobre o bêbado,

Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,35,pr. ns. 1 ss. (aqui, também, referências sobre a
punição das pessoas que tivessem prestado serviços à república ou dos especialistas insignes numa arte).
4130 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 17.

4131 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 11.

4132 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 13, mas não já o que

fazia corridas a cavalo num lugar em que isso era habitual e matasse outro que se tivesse metido à frente,
ibid. n. 13 (“nulla culpa, nulla poena”).
4133 Mas não o era com a pena ordinária, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.

“Homicidium”, n. 19; Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,35, n. 17.
4134 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium” 19. Se não se pudesse

determinar qual a ferida fatal ou quem a infligira, eram todos punidos com pena extraordinária, ibid.;
Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord. fil. 5,35, n. 2.
4135 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 14.

4136 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Assassinium”, n. 7.

4137 A mulher, em contrapartida, conservava o dote, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.

v. “Homicidium”, n. 24.

654
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

filho ou parente chegado). Em Portugal, os juízes eclesiásticos condenavam a


degredo para África por 5 anos4138. O homicídio involuntário era punido com pena
arbitrária mais leve4139. O assassínio era ainda punido com a excomunhão e a
privação de ofício, mesmo que a morte não se seguisse 4140. Além disto, o homicídio
incapacitava o homicida para suceder ao morto 4141.
8.2.4.2 Ofensas corporais.
§ 2341. Salvo no que respeita ao homicídio, a tradição textual sobre os crimes
contra o corpo das pessoas provinha dos textos romanos relativos às injúrias (cf. D.
47,10). As ofensas corporais eram, portanto, apenas uma das espécies de injúrias,
pelo que para elas valia tudo o que antes se disse sobre injúrias, quer sobre a
natureza “simbólica” das ofensas, quer sobre o carácter “privatista” da punição.
§ 2342. Pelo que toca ao primeiro ponto, é interessante destacar que a doutrina
do direito comum punia duramente condutas que, do ponto de vista da ofensa
física, eram quase irrelevantes - como as bofetadas, ou mesmo a ameaça de as
dar4142. Como punia com extrema dureza a deformação do rosto (“dar cutilada no
rosto”, Ord. fil. 5,35,7), pois no rosto do homem se refletiria a formosura de Deus.
§ 2343. Tudo isto leva a uma conclusão mais geral. O corpo, durante todo o
período do direito comum, foi considerado como um apêndice e suporte da honra.
Por isso, as ofensas infligidas ao corpo eram apenas encaradas - salvo nos casos
extremos - como atentados à consideração social devida. Daí que as consequências
físicas das feridas não fossem, em princípio, consideradas para a fixação da
indemnização4143; como, por outro lado, à mesma ofensa pudessem corresponder
punições diferentes, considerada a qualidade das pessoas envolvidas.
§ 2344. Pelo que respeita ao carácter privatista, o regime das ofensas não se
libertou facilmente deste traço típico do regime das injúrias. Uma lei portuguesa da
segunda metade do século XIV (cf. Ord. af, 5 32) estabeleceu uma punição
“criminal” para todas as feridas dolosas; mas as Ord. af. (5,32,4) voltam ao sistema
romano, que se manteve nas seguintes (as quais, todavia, estabelecem sanções
“criminais” para as feridas “atrozes”).
§ 2345. Os critérios de classificação das feridas são, também, interessantes,
sobretudo se confrontados com os do projeto iluminista de Código Criminal de
Pascoal de Melo. Com efeito, para a determinação da atrocidade das feridas são

4138 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 23 e 28.
4139 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 25.
4140 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Homicidium”, n. 29.

4141 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 36, ns. 5 a 11.

4142 Para a doutrina dominante, dar bofetadas constituía uma injúria atroz, que dava lugar a uma

pena que podia ir até à de morte, “de acordo com o estado da pessoa que comete a injúria e do da que a
recebe” (António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], ad cap. 4, n. 5).
4143 A base textual era uma já citada lei do Digesto D, 9,3,7 – “cicatrix autem aut deformitas nulla

fit aestimatio quia liberum corpus nullat recipit aestimationem” (a cicatriz ou deformidade não é objeto
de avaliação pois ao corpo de um homem livre não pode ser dado preço). A doutrina do direito comum
introduzia uma exceção a este princípio: devia avaliar-se a cicatriz ou deformidade causada a uma
rapariga solteira, aos escravos (e aos animais), pois nestes casos a integridade física tinha um valor
económico (v. António Gomez, Opus […] super legibus Tauri [.], III, ch. 4, n. 12). No entanto, a doutrina
mais moderna (Zasius, Covarrubias, Farinaccius, Antonio Gomez) tendia a valorizar, por meio de
expedientes dogmáticos rebuscados, as consequências físicas das injúrias corporais.

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relevantes: a intenção do agente (v.g. ferir a soldo, Ord. fil. 5,35,3), o local da ferida
(v.g. a face, Ord. fil. 5,35,7), o lugar do delito (v.g. o palácio real, Ord. fil. 5,39,2), a
arma utilizada (v.g. as armas de arremeço, Ord. fil. 5,35,4), a qualidade do ofendido
(v.g. o pai, o oficial, o companheiro de prisão, Ord. fil. 5,41,1; 6,25; 35,6). Em
contrapartida, a gravidade física ou fisiológica das feridas não interessava para a
fixação da pena civil4144. O que confirma o que já se disse sobre a imagem implícita
do corpo na antropologia cultural medieval e moderna: os critérios da valorização
das ofensas - e, portanto, dos valores corporais atingidos - não se relacionam com
uma conceção fisiológico-funcional do corpo, mas, antes, com várias hierarquias
simbólicas sobrepostas, umas provindas dos usos culturais do corpo, outras de
antigas tradições textuais (como, v.g. a da especial punição das ofensas feitas com
arma de arremesso, que provém das Decretais, 5,15, De sagitariis).
8.2.5 Crimes contra a verdade.
§ 2346. Os crimes de falso tipificavam, desde a época romana, os atentados
contra a verdade das coisas, cometidos intencionalmente para causar prejuízo a
outrem. Esta ideia base mantém-se na época moderna. António Gomez define o
crime de falsidade como “delictum publicum, quod committitur quando quis
sciente et dolose mutat substantiam veritatis in praeiudicium alterius” 4145.
§ 2347. Tratava-se, na conceção da época, de um crime gravíssimo. Isto
compreende-se bem a partir de duas considerações.
§ 2348. A primeira é a de que a sociedade medieval e moderna não dispunha de
meios muito eficientes de garantir a autenticidade de certas coisas em que, em
contrapartida, a ordem social repousava fortemente. A falsificação de documentos
era fácil, mas a sociedade estava assente na fiabilidade deles. O estado das pessoas
não era objeto de registos públicos, mas a sociedade assentava na divisão das
pessoas em estados. A própria identidade das pessoas estava apenas baseada na
afirmação do próprio e na sua credibilidade social. As moedas podiam ser
facilmente falsificadas, no metal que continham ou no seu peso. Mas a economia
estava cada vez mais dependente da mediação de uma moeda com valor garantido.
§ 2349. A segunda consideração é acerca do valor que as aparências ganham
numa sociedade, como esta, desprovida de processos muito eficientes de averiguar
e garantir a natureza das coisas. Nomeadamente, faltavam registos públicos a que se
pudesse recorrer com facilidade. Nesta situação, tudo o que se sabia acerca das

4144 Na doutrina do direito comum, encontravam-se referências à vulneris magnitudo, como critério

de agravamento da injuria, na esteira de D, 47,10,8 (“Vulneris magnitudo atrocitatem facit, &


nonunquam locus vulneris, veluti oculo percusso” [a atrocidade depende do tamanho da ferida e muitas
vezes do seu sítio, como no caso de se bater num olho]), mas recebe muito menos atenção do que os
elementos simbólicos, enumerados logo no texto seguinte do Digesto (D.47,10,9), tanto mais que o já
citado D.9,3,7 expressamente excluía a avaliação pecuniária da gravidade da ferida. Note-se, porém, que
António Cardoso do Amaral afirma que aquele que, numa tentativa de homicídio, produziu feridas que
causaram doença que manteve o ofendido de cama e o impediram de trabalhar, deve pagar os dias que o
lesado deixou de ganhar, bem como as despesas médicas, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.
v. “Homicidium”, n. 20.
4145 Cf. Antonio Gomez, Opus […] ad leges Tauri […], cit., ad lega. 83 finalem, p. 337. As principais

fontes são D.48,10,3, que contempla a falsificação de testamento, de documentos, de moeda, o uso de
nome falso, a venda da justiça, a venda dupla da mesma coisa, o parto suposto, a redação de
documentos que não correspondem à vontade das partes. Cf. ainda, Partidas, VIl,7.

656
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

pessoas, das situações e das coisas decorria de aparência sociais compartilhadas. Daí
a importância de situações de facto que fossem aceites pelo consenso de todos. Era
por isso que o facto material da posse pacífica e pública constituía a forma
excelente de legitimar situações como a titularidade de uma coisa (“posse”) ou de
um estatuto social (“posse de estado”). Isto era consistente com uma imagem então
corrente que identificava a aparência com a essência, a forma com a matéria, a
tradição com a natureza, o significante com o significado, o nome com a coisa ou
com a pessoa. A verdade – ou seja, a correspondência entre o que as coisas
pareciam ser e aquilo que elas eram – tinha, assim, uma marca ontológica; tinha a
ver com o modo como o mundo era. Para além de ser um fator central da ordem
estabelecida.
§ 2350. Atentar contra a verdade era, por isso, atentar contra a ordem do
mundo e contra a ligação, que se cria ontológica, entre o parecer e o ser. Ou seja ,
tratava-se de um crime muito gravede, equiparável à quebra da fé, à impiedade.
Como ofensa feita a Deus – antes de ofender a confiança dos outros homens -,
4146
devia ser punido com rigor equiparado . Tanto mais que a fiabilidade nesses sinais
que representavam as coisas (os documentos, as moedas) estava protegida por
símbolos da divindade neles inscritos, como a cruz que figurava nas moedas ou
com que se subscreviam ou se dava fé pública aos documentos. Tratava-se de um
crime público, pois ofendia a qualquer um e, por isso, qualquer um podia denunciá-
4147
lo ou acusar, independentemente de ter sofrido um prejuízo específico com ele .
O dano, aqui, era essa ofensa grave à verdade que distinguia o crime de falso da
simples mentira ou fraude que apenas ofendesse interesses particulares, e cuja
reparação podia ser efetuada por uma indemnização, pedida por uma ação civil de
4148
danos. Pelo contrário, o crime de falso era um crime público
§ 2351. A principal fonte era o título D. 48,10, de lege Cornelia de falsis et de senato
consulto Liboniano, fonte da maior parte da doutrina e legislação medieval e moderna
sobre o tema. A Novela 73, uma constituição de Justiniano de 538, ocupava-se
4149
também da falsidade, mas referindo-se sobretudo à falsificação de documentos .
As Partidas (VII,7) seguiam de perto a casuística e tipificação que dominava o titulo
do Digesto, apesar de bastante mais libertas da temática da falsificação do

4146 Morte pelo fogo, infâmia (cf. o nobre perde a nobreza pelo crime de falsidade, Tomé Valasco,

Allegationes […], all 13, n. 33). A perda da nobreza tinha uma natureza espelhada: como a honra (honor,
honestas) era o conhecimento e amor da ordem do mundo, quem atentava contra a verdade mostrava não
conhecer nem amar essa ordem.
4147 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 1.

4148 Como era um crime, o falso exigia dolo (cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad 5,54, ad,

pr, ns. 3 e 4). À medida que esta especificidade criminal se for esbatendo, o falso começa a ser
aproximado de outras formas de mentira ou fraude, que apenas causam prejuízo a outrem, como o
estelionato, i.e. a alteração ou supressão da verdade em fraude de outrem; cf. a criminalização genérica
em Ord. fil.5,65, “Dos bulrões e inlicitadores, e dos que se levantam com fazenda alheia”, punidos com a
reparação do dano, mais um terço de pena, degredo ou poena arbitrária, excluindo a morte; cf. Pascoal
de Melo, Institutiones iuris criminalis, cit., 5, § 1, aproximando o estelionato do crime de falso.
4149 Nov. 73: “De instrumentorum cautela et fide, et primum de deposito et mutuo et aliis

documentis private quidem scriptis habentibus autem testes, et de non habentibus testes, et de
instrumentis publice confectis, et de collationibus manus propriae scripturae, et de expositis instrumentis
ab illitteratis aut paucas litteras scientibus, et de ex non scripto contractibus, et de contractibus usque ad
unam auri libram, et de contractibus qui in auris fiunt, et ut in documentis et contractibus futuris locum
habeat lex”.

657
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testamento que dominava esse título. As Ord. fil. dedicavam aos crimes de falso os
tits. 52 a 58..
8.2.5.1 Falsificação de cartas do papa, do imperador ou do rei.
§ 2352. O subtipo mais grave destes crimes de falso era o da falsificação de
cartas do papa e do imperador, a que se equiparava o rei. Por direito comum, quem
falsificasse estes documentos – ou quebrasse os selos, ou os rasurasse de modo a
que afetasse a sua parte substancial – ficava excomungado e era punido de pena
arbitrária, que em regra era, sendo homem livre, o degredo (deportatio) e o confisco,
desde que não houvesse ascendentes ou descendentes até ao terceiro grau;
4150
tratando-se de escravo, a morte . Se fosse clérigo, perdia o ofício ou benefício,
bem como o estatuto eclesiástico, sendo entregue aos tribunais seculares para ser
4151 4152
punido como leigo . Estas penas estavam também contidas na Bula da Ceia . As
Ord. fil. adotavam basicamente o regime de direito comum (cf. Ord. fil.5,52; 5,58).
§ 2353. A falsificação das cartas de juízes dos tribunais superiores ou mesmo de
juízes inferiores era equiparada à anterior, mas podia punir-se com pena
4153
arbitrária . A falsificação por clérigo de cartas de juiz apostólico delegado ou do
bispo era punida pelo direito comum com a perda das ordens, ofícios e benefícios e
4154
prisão em mosteiro . Quando falsificasse carta ou selo do imperador ou rei, perdia
4155
as ordens, era marcado com ferrete e desterrado para fora do episcopado .
§ 2354. O uso ou apresentação de documentos públicos falsos era punido com
a perda do ofício ou benefício, embora quem os tivesse apresentado não os tivesse
falsificado. O que os invocasse apenas se livraria se denunciasse o falsário ou o
citasse para que confessasse a falsificação. A simples posse de documentos públicos
4156
falsos não era crime . Saber se era necessária a consciência, por parte do
apresentante, de que os documentos eram falsos era questão discutida. A
generalidade exigia a consciência disso e mesmo que a ciência da falsidade fosse
provada com claridade meridiana, não bastando indícios nem uma “presunção
4157
violenta”, que apenas seria aceitável nas causas civis . Alguma doutrina, porém,
defendia que a alegação de que o apresentador não sabia que os documentos eram
4158
falsos não lhe aproveitava, pois teria o dever de os examinar . O documento não
4159
valia, mas fazia fé contra quem o tinha apresentado .
§ 2355. Os documentos podiam também ser falsificados por quem legalmente

4150 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 2 e 6.


4151 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 3 e 4.
4152 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 13.

4153 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 4 e 6. V. Ord. fil.5,52.

4154 Esta pena de prisão em mosteiro estaria a cair em desuso, v. António Cardoso do Amaral, Liber

[...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 9 e 10. O que falsificasse cartas de cabido era suspenso do ofício ou
benefício até que merecesse perdão, ibid. n. 11.
4155 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 7

4156 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 12.

4157 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 14. Cf. Manuel Barbosa,

Remissiones […], cit., ad 5,53; Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri. ad lega. 83, n. 6.
4158 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. ibid..

4159 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad 5,54, tit. n. 6.

658
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

os confecionava, dando-lhe conteúdos falsos. Isto não se presumia; antes, perante


um conteúdo que não correspondia à verdade, se presumia que se tratara de erro do
escrivão ou notário4160. Mas, se se provasse a intenção de falsificar, o ato era
punido, com a morte e confisco (Ord. fil.5,53,1)4161. O mesmo valia para o
mandante e para as testemunhas. Além disso, o apresentante do documento perdia
a causa4162. As Ord. fil. não previam, em especial, a falsificação (ou descaminho) de
testamento, pelo que este crime era punido com pena arbitrária.
8.2.5.2 O perjúrio ou falso testemunho.
§ 2356. O perjúrio era a violação de juramento (“aquele que voluntariamente
viola juramento; mentira produzida contra juramento) 4163. Pelo direito civil,
produzia infâmia (C. 2,4,41; D. 3,2,21) e era castigado com a flagelação (D.
12,2,13,6). No direito português, a punição apareceu com uma lei de 11.1.1302 (cf.
Ord. af. 5,57,1 e 2), em que se punia o falso testemunho com a decepação de pés e
mãos. D. Afonso V, considerando estas penas excessivas, estabeleceu os açoites e o
corte da língua (“porque pecam com ela”, ib. n. 4). Nas Ordenações seguintes (Ord.
man, 5,8; Ord. fil. 5,54), a aproximação do perjúrio dos crimes religiosos mantém-se.
Mas começam a notar-se sinais de laicização, quando se multiplicam as ligações do
perjúrio a outros crimes de falso. Assim, a doutrina começou a entender que ele
podia ser cometido mesmo por pessoas não ajuramentadas 4164.
§ 2357. Nas Ordenações filipinas, o falso testemunho que tivesse levado à
condenação à morte de um inocente era punido com a pena capital; isto era a
aplicação de uma ideia mais geral de que a pena devia ser a mesma em que incorria
4165
o réu . Em outras circunstâncias, a pena era arbitrária, mas as Ord. fil. fixavam-na
em degredo por toda a vida e confisco, se não houvesse ascendentes ou
4166
descendentes (Ord. fil.5,54,1; v. também Ord. fil. 3,60,5 ). No caso de testemunho
falso em causa de adultério, discutia-se se a pena devia ser a de morte, por ser essa a
punição que o marido normalmente aplicava à mulher. Porém, alguma doutrina
considerava que a pena devia ser antes arbitrária, pois também o marido punia a
4167
mulher segundo o seu arbítrio . Nas causas civis, a pena do falso testemunho era a

4160 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad 5,5,3, ad tit. n. 2 a 5.


4161 Se o objeto da escritura valesse mais de um marco de prata; se valesse menos, a pena seria
arbitrária (Ord. fil.5,53,1). Por direito comum, a pena era, segundo alguns, corte da mão direita, perda de
ofício e infâmia, Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri, ad lega. 83, n. 6. O marco era uma unidade de
medida correspondente a 1/2 arrátel (= 229.5 / 233,856 gramas); o arrátel correspondia à libra ou lira. O
valor real do arrátel flutuou durante a idade média, até que foi fixado por D. Manuel em uma libra (libra
ibérica). A libra tinha 20 soldos ou dinheiros. Sobre a denominação e valor das moedas, Manuel Barbosa,
Remissiones […], cit., ad Ord. fil. 4,21, ns. 8 ss..
4162 Ord. fil.5,54; Manuel Mendes de Castro, Practica […], liv. 3, cap. 19, § 3, n. 37.

4163 Por sua vez, o juramento era definido como “pedido, dirigido formalmente ou virtualmente a

Deus para que servisse como testemunha para confirmar a verdade daquilo que se afirmava ou se
prometia, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Juramentum”, n. 36 ss.; João Baptista
Fragoso, Regimen […], p. 630, n. 115.
4164 Manuel Barbosa, Remissiones […] ad. Ord. fil. 5,54, n. 7.

4165 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri ad lega. 83, n. 7. Em geral, Pascoal de Melo,

Institutiones iuris criminalis […], cit., 2, 18-19


4166 E respetivos comentários de Manuel Barbosa, Remissiones […], cit..

4167 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri, ad lega. 83, n. 9.

659
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4168
indemnização do prejuízo, acrescida de pena arbitrária . Para além disso, o
4169
testemunho declarado falso não valia em juízo .
§ 2358. Por direito estrito, o falso testemunho não abrangia o das mulheres, dos
4170
rústico e dos idiotas , por supor um discernimento para distinguir a verdade do
erro que faltaria a estas pessoas. O falso testemunho não podia ser perdoado nem
pela parte nem pelo rei (v. Ord. fil.5,54,2)
8.2.5.3 Falsificação de moeda.
§ 2359. A falsificação de moeda podia ser de três tipos: cunhagem ilegal,
4171
falsificação da liga metálica ou cerceamento das moedas .
§ 2360. A cunhagem ilegal era a feita por qualquer pessoa que não tivesse esse
direito que, por direito comum, era um direito real dos maiores (regalia major),
inalienável da pessoa do rei ou que apenas se podia adquirir por concessão ou por
prescrição imemorial. Daí que a falsificação de moeda constituísse uma espécie da
4172
lesa-majestade . De mais a mais, em qualquer das suas formas, implicava a
profanação de símbolos divinos ou régios cunhados nas moedas (cruz, efígie ou
escudo de armas do rei). A pena para qualquer dos crimes era, por direito comum, a
4173
mesma: pena capital , confisco, perda da casa em que se tivesse feito a falsificação.
Punia-se igualmente a falsificação de moeda de entidade inferior ao rei, que tivesse
4174
direito de cunhagem .
§ 2361. O cerceamento de moeda tinha as mesmas penas, por direito comum.
Mas, as Ord. fil. estabeleciam a pena de morte para quem cerceasse moeda num
valor superior a 1000 reis/maravedis punido com a morte; em quantia menor, seria
4175
deportado ,
§ 2362. Passar moeda falsa ou adulterada cientemente punia-se com a pena da

4168 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri. ad lega. 83, n. 10; hoje, pena arbitraria, ibid. ad lega.
83, n. 13.
4169 A este propósito António Gomez narra um litígio que teve em Salamanca com um colega

(Gabriel de Velasco), a propósito do concurso para uma cátedra, decidido por votação de um grupo de
1000 colegas e alunos dos concorrentes. Um deles terá declarado falsamente que fora aluno de António
Gomez, sendo contado na eleição o seu voto contra este. Mais tarde, tendo sido condenado à morte por
outra razão, confessa o falso testemunho, ao passar pela casa de Gomez, no seu caminho para a forca.
4170 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad 5,54, in pr. n. 1; nem o do homem probo, pois se

presumia ser antes um erro do depoente.


4171 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, 5; Antonio Gomez, Opus [...]

ad leges Tauri, ad lega. 83, n. 12.


4172 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, ns. 16 e 17.

4173 No tempo dos romanos, sendo o falsário um homem livre, era condenado às feras (ad bestias);

sendo escravo, à morte. Com o desaparecimento dos espetáculos circenses, a condenação às feras fora
substituída pela condenação às galés, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 19;
Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri, ad l. 83, ns. 3 e 4. Em França, o que falsificasse moeda régia era
morto em água a ferver ou pelo fogo, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 18.
4174 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 17; a casa onde se fizesse

moeda falsa era confiscada, ainda que fosse de terceiro, a menos que este o ignorasse ou fosse viúva ou
menor, ibid.
4175 V. Ord. fil.5,12,3 e 4. Os que desfizessem (fundissem) moeda perdiam metade da soma e eram

degredados por 10 anos para Africa, Ord. fil.5,12,5). Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Falsarius”, n. 19.

660
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750
4176
Lex cornelia de falsis, que era o degredo (deportatio) e o confisco de todos os bens ; a
4177
mesma pena se usava em Espanha . O clérigo perdia as ordens, ofícios ou
benefícios e era condenado a cárcere perpétuo em mosteiro (pois a pena de morte
para civis equivalia à prisão perpétua nos eclesiásticos). Na prática portuguesa, o
delito era punido com a morte, sendo o réu um leigo ou, sendo eclesiástico, com
4178 4179
degredo para Africa . O réu livrava-se, denunciando o falsificador .
8.2.5.4 Falsificação de pesos e medidas.
§ 2363. A falsificação de medidas ou de pesos, além de constituir um pecado
4180
mortal e obrigar à indemnização dos danos causados pela fraude , era punida com
pena arbitrária pelo direito comum. As Ord. fil. estabeleciam a condenação no duplo
do dano e o degredo para as ilhas. O uso de medidas falsificadas (ou não
contrastadas) estava previsto nas Ord. fil.5,58, sendo punido com a morte, se o
prejuízo fosse superior a 1000 rs. e, sendo menor, com degredo perpétuo para o
Brasil, a mesma pena do furto.
8.2.5.5 Simulação ou ocultação de partos.
§ 2364. A simulação de partos ou a ocultação da gravidez e do parto, bem
como a afirmação pela mãe de que o marido não era o pai do seu filho constituíam
os comportamentos que integravam a noção de “parto suposto”, prevista em
C.9,22 Lex Cornelia de falsis, 1, e em Ord. fil. 5,55. Por direito comum, a pena era a de
4181
deportação, no caso de mulher livre, ou a morte, caso de escrava . Pelo direito
4182
português, o parto suposto era punido com o degredo perpétuo para o Brasil .
8.2.5.6 Uso de nomes falsos, estatutos jurídicos, brasões, trajos
estatutários, falsos.
§ 2365. Todos estes comportamentos, em que se usava um nome ou
4183
identificativo falso para enganar ou prejudicar pessoas , configuravam a mesma
alteração da ordem do mundo, no que respeita à identidade e estatuto das pessoas.
4184 4185
A simulação do nome e do estado – incluindo o uso de brasões ou de títulos
falsos, o envergar de trajos que indicassem um estado (como o clerical, o de
4186
cavaleiro de ordens militares, o de mulher ) criavam expetativas sociais falsas,
mas, sobretudo, baralhavam as hierarquias naturais entre as pessoas. O nome
também podia ser alterado apenas para iludir a responsabilidade contratual, como

4176 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 20.
4177 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad lega. 83, n. 5.
4178 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 21.

4179 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad lega. 83, n. 5,

4180 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 22.

4181 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad lega. 83, n. 13.

4182 V. Ord. fil.5,55.

4183 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […]. ad lega. 83, n. 11.

4184 V. Ord. fil.5,92. A mudança de nome poda ser legal, C.9.25 De mutatione nominis; Ord. fil.5,92.

4185 O registo dos brasões estava a cargo do Rei de Armas Portugal, criado por D. João II.

4186 V. Ord. fil.5,35 (uso de trajos de outro sexo), Ord. fil.5,93 (uso de trajos estatutários a que não se

tivesse direito), Ord. fil.5,94 (não usar os sinais de mouro ou de judeu).

661
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4187
quando se usavam nomes falsos nos contratos . Mas este era o tipo de
comportamento menos caraterístico do crime de falso.
§ 2366. A pena era arbitrária, para poder cobrir um conjunto de situações muito
variadas
8.2.5.7 Adulteração de coisas.
§ 2367. As mesmas penas da falsificação de medidas eram aplicadas aos que
corrompessem alimentos – deitando água no vinho, vinho novo no vinho velho,
água ou terra nos cereais – ou que enganassem na sua qualidade – v.g. pondo as
4188 4189
maçãs maiores no cimo do cesto -, falsificassem remédios , etc.. Algo
semelhante era engastar pedras falsas numa jóia (v. Ord. fil.5,56) ou mudar as
4190
extremas dos prédios .
§ 2368. A descrição falsa de uma coisa não configurava, em si mesma, um crime
4191
de falso, pois não modificava a natureza dessa coisa .
8.2.5.8 A extensão do conceito de falso. O estelionato.
§ 2369. No séc. XVIII, o conceito de crime de falso tende a alargar-se a todos
os casos de alteração ou supressão da verdade levada a cabo com intenção de
prejudicar outrém. A intenção de prejudicar outro sobreleva sobre a intenção de
alterar aspetos fundamentais da ordem do mundo. Isto permitia aproximar do
antigo crime de falso outras situações em que alterando ou suprimindo a verdade se
causavam prejuízos a terceiros.
§ 2370. Deste tipo eram os comportamentos que caíam no âmbito do
4192
estelionato, uma designação genérica para todo o tipo de fraude nos negócios ,
4193
prevista em Ord. fil.5,65 e punida com pena arbitrária. Num ambiente propício à
liberdade negocial, como era já o final do séc. XVIII, a tendência foi a de restringir
o âmbito deste crime, pois ele comprometeria a liberdade negocial e o direito de
4194
propriedade .

4187 Cf. Antonio Gomez, Opus [...] ad leges Tauri […], ad l. 83, n. 11.
4188 V. Ord. fil.5,57 a 59.
4189 V. Ord. fil.5,57.

4190 Cf. D. 47.21 De termino moto. A Ord. fil.5,67 fixava a pena em dois anos de degredo para a

África.
4191 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Falsarius”, n. 23.

4192 No direito romano, o estelionato andava ligado à ideia de causar prejuízo mediante fraude. Não

era um crime público, nem dava automaticamente lugar a uma ação penal (D.47,20,2: “Poena autem
stellionatus nulla legitima est, cum nec legitimum crimen sit”); v. A. Berger, Encyclopedic Dictionary …, cit.,
s. v. “Stellionatus”.
4193 O título é significativamente seguido pelo relativo à falência fraudulenta; v. v. Tomé Valasco,

Allegationes […], cit., all. 13, ns. 129 ss..


4194 Tal como do crime de açambarcamento ou outras restrições à liberdade de comerciar. Cf.

Pascoal de Melo, Institutiones iuris criminalis […], cit., 5, 6 (açambarcamento): “Com tantos impedimentos
das Ordenações citadas quase se proíbe inteiramente, ou pelo menos restringe-se para além do justo, o
negócio de géneros; por isso, essas leis mais coarctam o abastecimento e promovem mais a carestia que
a abundância; além disso, opõem-se à propriedade dos cidadãos e à liberdade de comércio. Se estas duas
coisas fossem prudente e devidamente harmonizadas e adequadas ao interesse público, facilmente
podíamos dispensar as leis mencionadas”.

662
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

8.2.5.9 Os crimes dos oficiais.


§ 2371. Os crimes dos oficiais aproximam-se dos crimes de falso, enquanto
consistiam numa violação da função (officium) do magistrado. O conceito genérico
que pode englobar todos os crimes dos oficiais é, porventura, o de apropriação ou
desvio de jurisdição (litem sua facere). Esta expressão aparece no Corpus iuris para
descrever a atuação do iudex privado que viola intencionalmente os seus deveres de
julgador (nomeadamente desrespeitando a fórmula de julgamento dada pelo pretor
ou sendo parcial) e que, com isso, comete um delito contra as partes envolvidas no
4195
julgamento . Litem suam facere (apropriar-se da lide, do litígio) exprime essa ideia de
que o magistrado que julga mal – por carecer de jurisdição, por não seguir o
processo devido, por favorecer interesses particulares ou por não respeitar a lei –
substitui à decisão justa uma decisão sua. Por isso a apropriação da lide era uma
forma de usurpação da jurisdição e, por isso, um crime.
§ 2372. Progressivamente, porém, a expressão passa a compreender também o
juiz público que, no julgamento, se afasta intencionalmente das normas processuais
ou substanciais de decidir. E, com isto, a apropriação da lide vai transitando da
esfera dos delitos meramente privados, que davam apenas origem ao dever de
indemnizar, para a dos delitos públicos, criminalizando o comportamento de um
juiz que violasse a sua função de magistrado, por dolo ou mesmo por algum grau
mais forte de negligência ou imprudência.
§ 2373. Na doutrina do direito comum, a expressão litem suam facere corresponde
4196
à violação por um juiz, privado ou público, do seu ofício de julgador . Se esta
violação não era intencional, mas apenas culposa (devida a negligência ou
imprudência atendível), e trazia prejuízo às partes, o juiz estava obrigado a
indemnizá-las. Se era intencional configurava um pecado e um crime e, para além
desta responsabilidade civil, dava origem a uma pena criminal.
§ 2374. Dado que o ius commune era uma ordem jurídica aberta – tanto no plano
das fontes como no da interpretação –, os juízes dispunham de uma amplitude de
decisão. Uma (relativa) certeza do direito – que, mais tarde, se obtém pela
submissão dos juízes à lei – repousava, neste período, na garantia de imparcialidade
dos juízes, na observância de critérios formais e materiais de julgamento e também

4195 Cf. D. 5,1,15,1: “Iudex tunc litem suam facere intellegitur cum dolo malo in fraudem legis

sententiam dixerit (dolo malo autem videtur hoc facere si evidens arguatur eius gratia vel inimicitia vel
etiam sordes ut veram aestimationem litis praestare cogatur”. Cf. também Inst. Gaii, 4.52. Sobre o tema,
v. Álvaro d’Ors, “Litem suam facere”, em Studia et documenta storiae iuris, 48(1982), pp. 368-394);
Francesca Lamberti, “Riflessini in tema di ‘Litem suam Facere’”, em Labeo, 36 (1990), pp. 218-266; Jaime
Meira do Nascimento Junior, “Considerações acerca do ‘Iudex qui litem suam fecit’”, em Revista da
Faculdade de Direito USP, 96(Jan.-Dez. 2001), pp. 103-118; Matteo Giusto,” Per una storia del litem suam
facere”, Roma, Pontificia Universitas Lateranensis, 2005 (v. síntese em Matteo Giusto, “Per una storia
del litem suam facere”, em Studia et documenta storiae iuris, 71(2005) 457-476; Riccardo Fercia, “Litem
suam facere da Adriano ai Severi”, em http://dirittoestoria.it/10/Tradizione-Romana/Fercia-Litem-
suam-facere-Adriano-Severi.htm; (outra bibliografia:
http://www1.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_ju
diciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1677-
065x/v8n15n16/A_responsabilidade_civil_do_Juiz_no_direito_romano.pdf).
4196 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus […], rub. 9, an. 8, n. 6; sobre o tema, Gabriele

Fornasari e Nicola Demetrio Luisi, "La corruzione: profili storici, attuali, europei e sovranazionali",
Milano, CEDAM, 2003; sobretudo, Carlo Venturini, “La corruzione: complessità dell’esperienza
romanística”, pp. 5-36; e Diego Quaglione, “’Delinquens in officio’. Spunti dal diritto comune”, 27-56.

663
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na sujeição dos juízes a critérios rigorosos quanto ao desenvolvimento do processo,


4197
quanto ao respeito do direito estabelecido e à integridade ética dos magistrados .
§ 2375. Isto explica a dureza da punição do juiz – e, por extensão, do
magistrado e do oficial público – que violasse os seus deveres deontológicos,
apropriando-se, em seu favor, da autoridade e das prerrogativas de mando inerentes
às suas funções.
§ 2376. A averiguação do cumprimento pelos juízes das normas de bem julgar
era uma das atribuições estabelecidas para os corregedores, nas Ordenações (Ord.
fil.1,58,5-6 e 8); assim como era um dos aspetos de que os juízes ordinários e das
terras deviam averiguar acerca dos seus antecessores (Ord. fil.1,65,39 a 53), ao fazer
as devassas gerais no início das suas funções.
§ 2377. A apropriação da jurisdição podia consistir em diversos tipos de
comportamentos.
8.2.5.9.1 O julgamento contra direito.
§ 2378. O julgamento contra direito estava previsto nas Ordenações,
nomeadamente no que respeita à nulidade da sentença (v. Ord. fil.3,754198; v. caps.
7.1.10 e 7.1.14). Algumas das modalidades de incumprimento do estatuto
deontológico dos juízes estavam contempladas na lei, como a condenação numa
pena diferente da prevista nas Ordenações (v. Ord. fil. 5,136), o suborno, a concussão,
a apropriação de coisas do rei pelos oficiais.
§ 2379. O julgar mal representava a corrupção do ofício do juiz público, pois o
desviava do serviço da república para o serviço dos seus interesses particulares. A
função de dizer o direito era usurpada, ao ser posta ao serviço destes interesses. E,
como o juiz julgava em nome do rei, o senhor supremo da justiça, julgar mal
tornava-se numa forma de usurpação de uma prerrogativa real, equiparável a outras
formas de ofensa dos direitos do rei. Esta aproximação da apropriação da justiça
(litem suam facere) em relação aos crimes de ocupação de direitos reais é feita por
alguns juristas. É o caso de António Garcia Mastrillo, que considera que, sendo a
jurisdição um direito real, o seu desvio pelo oficial era semelhante à ocupação de
4199
um direito real (regalia) incorpóreo ; do mesmo tipo, por isso, da apropriação de
outros direitos régios e partilhando o regime geral da ocupação da jurisdição real,
4200
embora com especialidades . Por isso, o oficial que contrariasse as leis e

4197 Sobre a centralidade da observância das normas deontológicas dos juízes numa época de

standards jurídicos aberto e flexíveis, como no ius commune, v. Carlos Garriga, “La recusación judicial: del
derecho indiano al derecho mexicano, em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/1/133/12.pdf; id,
“Orden jurídico y poder político en el antiguo régimen”, em http://www.
istor.cide.edu/archivos/num_16/dossier1.pdf; Carlos Garriga y Marta Lorente, "El juiz y la ley: la
motivación de las sentencias (Castlilla, 1489 - Espanha, 1855)”, em Anuario de la Facultad de Derecho de la
Universidad Autónoma de Madrid, 1 (1997), p. 97-142 ( http://www.uam.es/
otros/afduam/pdf/1/garriga_lorente.pdf). Sobre o regime disciplinar dos magistrados no período
constitucional, Maria Julia Solla Sastre, La discreta práctica de la disciplina […], cit..
4198 “[…] E he por direito a sentença nenhuma […]quando foi dada contra direito expresso […] ou

outra coisa semelhante, que seja contra nossas Ordenações, ou contra direito expresso” (Ord. fil. 3,75, pr.
in fine).
4199 Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 88 ss. maxime, n. 104.

4200 Uma dessas especialidades era a de que a ocupação de jurisdição devia consubstanciar-se em

mais de um ato jurisdicional e em inequívoco sinal de que o usurpador reclamava para si a jurisdição

664
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

regimentos podia ser objeto de sindicância. Tanto mais que, ao tomar posse dos
4201
seus ofícios, tinham jurado guardar as leis do rei . Para além do julgamento contra
direito, a usurpação do ofício de julgar podia ter lugar de várias formas; denegação
da justiça, exceder os prazos de proceder, não perseguição de crimes, etc..
§ 2380. Julgar de forma imprudente, omitindo ou seguindo de forma
descuidada as regras do saber jurídico (jurisprudência), era também uma forma de
exercício ilegítimo da jurisdição. A imprudência era considerada como próxima da
intenção de julgar mal, como um quase delito, que criava para o juiz a obrigação de
4202 4203
indemnizar as partes : “Judicis negligentia dolus est, seu proxima dolo [...] Sed
4204
qui per dolum male judicat, litem suam facit, & ad totale partis interesse tenetur” .
§ 2381. Sendo grave, a negligência equiparava-se à intenção de julgar
4205 4206
injustamente , ao dolo, e dava origem a pecado mortal e a crime, devendo ser
incluída nos comportamentos que os magistrados encarregues de supervisionar os
4207
juízes deviam averiguar . A sua pena, por direito comum, era a mesma pena dos
4208
que falseassem documentos .
§ 2382. Já o julgamento errado por imperícia, ou falta de conhecimentos
técnicos para julgar tinha consequências menos drástica. É certo que a ignorância
4209
daqueles que deviam saber era um pecado e que, em direito, a imperícia equivalia
à culpa. Por isso, a sentença dada por um juiz ignorante obrigava à reparação civil
do dano. Mas não era geralmente aceite que a mera ignorância bastasse para
4210
configurar o crime de usurpação da justiça .
§ 2383. Ainda menos grave do que a imperícia era o erro involuntário de
direito, por deficiência de raciocínio ou interpretação; na opinião mais provável,
4211
nem sequer obrigava a indemnização . A menos que o erro fosse motivado por
uma atitude intelectual imprudente, como perfilhar uma opinião contrária à
geralmente seguida. Na verdade, a opinião comum e a lei constituíam os padrões
comuns de julgamento, dos quais não seria sensato apartar-se. Alguns chegavam a
opinar que a sentença dada contra a opinião comum devia ser considerada

régia (exercendo-a em nome próprio, usando sinais externos desse exercício [v.g. erigindo forcas]),
Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 94 e 95.
4201 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 111.

4202 Cf.Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 18, 19 e 26: refere a

constituição do código que equiparava a negligência dos juízes a usurpação da justiça (C. de pactis, 29:
“Omnes itaque iudices [...] pedaneos [...] compromissarios [...] arbitros electos [...] scituros quod si
nglexerint, etiam litem suam facere intelligantur”). A negligencia seria pior do que a imperícia, porque o
negligente omitia o que devia fazer, enquanto que o ignorante apenas fazia o que ignorava; embora
houvesse culpa nos dois, a do imprudente seria maior, ibid. n. 23.
4203 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n. 20.

4204 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n..21.

4205 Cf. Siete Partidas, 3,22,24: “juzgar tuerto a sabendas”.

4206 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n. 24.

4207 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns.26 e 33.

4208 Cf. Antonio Gomez, Opus […] ad leges Tauri […], cit., l. 83, n.10.

4209 Cf. S. Tomás, Summa […], cit., 1a.2ae, qu 76, a.2.

4210 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 35 e 37. Em todo o caso,

o que tivesse condenado à morte por imperícia devia ser condenado, embora em pena arbitrária.
4211 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 42 a 44.

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4212
absolutamente nula, tal como o era a dada contra a lei , fazendo incorrer no crime
4213
de usurpação da justiça e no dever de indemnização da parte prejudicada .
Outros, porém, eram mais comedidos, argumentando que o juiz, ao julgar, era livre
e que, por isso, podia desviar-se da opinião comum, embora apenas quando a isso
4214
obrigasse uma evidente razoabilidade .
4215
§ 2384. Mais graves eram os casos em que o juiz (por extensão, o oficial )
violava os seus deveres funcionais para obter uma vantagem, nomeadamente de
ordem económica. Era o que se passava na prevaricação.
8.2.5.9.2 A prevaricação.
§ 2385. Em sentido genérico, a prevaricação abrangia todos os
comportamentos de todos os que se afastavam dos deveres do ofício
(estalajadeiros, médicos, soldados). Em sentido estrito, “era uma espécie de crime
de falsidade, que cometem não só os acusadores, que traindo a causa, ajudam à
absolvição do réu, mas também os que de qualquer modo não cumprem o seu
dever e agem com dolo mau para favorecerem alguém, o que se pode dar com os
advogados, procuradores, juízes, etc.”, escreve Melo Freire, citando o Digesto
(D.47,15 De praevaricatione, 1). Originalmente, a prevaricação contemplava,
sobretudo, o acusador que se conluiava com o acusado para que este fosse
absolvido ou o advogado que se conluiava com a outra parte, prejudicando o seu
constituinte. O direito comum compreendia, porém, sob esta epígrafe toda a falta
aos deveres de ofício por parte de oficiais públicos, violando os seus deveres de
imparcialidade, julgando ou decidindo com a intenção de favorecer ilegitimamente
uma das partes. Nas leis, as modalidades de prevaricação aparecem frequentemente
dispersas, como violação dos deveres particulares de cada ofício.
§ 2386. Apesar das estritas normas deontológicas dos oficiais, este crime era,
segundo as fontes literárias e mesmo jurídicas, frequentíssimo. Para isso contribuía
a complacência doutrinal perante as faltas dos oficiais, categoria profissional de que
estavam próximos os autores de tratados sobre o direito que se lhes aplicava. Para
nos darmos conta das multiplicidade de situações em que a conduta inadequada dos
oficiais era juridicamente justificada pela doutrina basta ler o capítulo em que
Antonio Garcia Mastrillo enumera as situações em que a culpa de oficiais por erros
4216
de ofício deveria ser afastada pelos juízes sindicantes .

4212 “Communis opinionis sequendae convenientia seu etiam obligatio urget; ut dixerint multi,

sententiam contra communem latam, pariter atque si contra legem lata foret, mullius esse momenti”,
Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n. 49.
4213 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, n.49.

4214 Cf. Gabriel Alvarez Velasco, Judex perfectus [...], cit., rub. 15, adn. 1, ns. 51 a 53.

4215 Esta extensão baseia-se no facto de que o exercício do poder era considerado como exercício

da jurisdição.
4216 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 2 a 7; e, sobretudo,

cap. 10. A razão desta proteção dos oficiais era a presunção da sua honestidade, a sua defesa contra
calúnias e a preservação da sua autoridade social. § 1. A sindicância era um processo de inspeção dos
juízes, a cargo de um magistrado régio. O sindicante devia inquirir de todos os comportamentos
criminosos do juiz, por obrigação de ofício ou a instância de partes (ibid. cap. 8, n. 1). No entanto, a
doutrina aconselhava o juiz sindicante a “fazer o mínimo, em relação aos oficiais inquiridos”,
nomeadamente quanto a comportamentos apenas negligentes ou de culpa leve (ibid. n. 3; mais
detalhadamente, todo o cap. 10).

666
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

8.2.5.9.3 A peita ou suborno e a extorsão.


§ 2387. Mais grave do que o simples favorecimento ilegítimo era a aceitação ou
4217
extorsão de dinheiro para julgar de certo modo (barataria) .
4218
§ 2388. O suborno (repetundarum, de repetendi, De lege Julia repetundarum ) ou
extorsão de dinheiro pelos magistrados, (Ord. fil. 5,71, “Dos oficiais delRei, que
recebem serviços, ou peitas, e das partes, que lhas dão, ou prometem”) era o
recebimento de quantias dadas espontaneamente pelas partes ou exigidas, direta ou
4219
indiretamente, pelo oficial, para ser favorável ou mais rápido no despacho .
Independentemente de qualquer pacto entre o oficial e o postulante, a prestação de
favores a um oficial fazia sempre correr o risco de distorcer, pelas paixões da
4220
gratidão ou da ganância, os sentimentos de verdade e de justiça . Os próprios
advogados que pediam às partes dinheiro alegadamente para subornar os julgadores
4221
deviam ser punidos como infames . As Ordenações (Ord. fil. 5,83) também puniam
os “vendedores de fumo”, ou seja, aqueles que presumiam familiaridade com
pessoas junto das quais, a troco de dádivas, poderiam intervir para obter despachos
favoráveis às partes.
§ 2389. A extorsão (ou concussão) não diferia do suborno e cabia no conceito.
4222
Na extorsão, porém, a dádiva era exigida pelo oficial, com pedidos ou ameaças .
§ 2390. A discussão doutrinal deste crime abria uma detalhada casuística sobre
o que se podia ou não receber. Uns estabeleciam como limite a dádiva de alimentos
(osculenta et poculenta) que a família do oficial pudesse consumir num dia, outros
exigiam moderação na aceitação dos presentes, de modo que não parecesse que o
oficial usava o seu ofício como um lugar de mercado, outros aconselhavam a
4223
ponderação ("nem tudo, nem sempre, nem de todos”) . As Ordenações
estabeleciam também um critério flexível, baseado no que era ou não uso oferecer
em razão da familiaridade ou da amizade (Ord. fil. 5,71, pr.).
§ 2391. Por direito comum, a pena dos oficiais que se vendessem era a mesma
4224 4225
pena dos que falseassem documentos . As Ordenações (Ord. fil.5,71 ) estabeleciam
as penas que deviam sofrer os que recebessem ou pagassem peitas. As situações
eram diversas, variando a gravidade das penas com a qualidade dos oficiais e com a
situação do corruptor. Tratando-se de juízes, peitados por pessoas que tivessem

4217 Cf. Gabriel Alvarez de Velasco, Judex perfectus […], rubr. 9, adn. 1 a 13 (per totam); Antonio

Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, maxime ns. 11 a 17; 35 e 36; 38 a 50.
4218 Cf. D.48,11 (D.48.11.3: “Lege Iulia repetundarum tenetur, qui, cum aliquam potestatem

haberet, pecuniam ob iudicandum vel non iudicandum decernendumve acceperit:”; 48.11.4 “Vel quo
magis aut minus quid ex officio suo faceret”), C.9,27 e C.7,49).
4219 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8 53 e 54 (prometer

resultado, diligência ou rapidez).


4220 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 22 (as paixões da

gratidão fazem parecer justo o que é injusto e falso o que é verdadeiro).


4221 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 24.

4222 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 24 a 29 (v. ainda ns.

33 e 52).
4223 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 14 a 20.

4224 Cf. Antonio Gomez, Opus […] ad leges Tauri, cit., l. 83, n.10.

4225 Cf. Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil. 5,71.

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processos ou despachos pendentes deles, a pena era a de perda do ofício, confisco e


degredo ou morte, consoante o valor da peita. Pena em que incorriam também os
corruptores (ibid. n. 1). Tratando-se de outros oficiais que não tivessem funções de
julgar, a pena era a perda de ofício e a multa de trinta por um (ibid. n. 2). Se o que
ofereceu a peita não tivesse pendente nenhum despacho perante o oficial, ainda
assim era punido com confisco, perda de ofícios ou mercês e degredo, sofrendo o
4226
oficial uma pena de perda de ofício e multa de vinte por um (ibid. pr.) .
§ 2392. Próximo da prevaricação estava o crime de âmbito, que consistia na
corrupção para obter lugares ou honras (C. 9.26. Ad legem Iuliam de ambitu) que,
incidindo sobre ofícios eclesiásticos, configurava também o crime de simonia
(C.1.3. De episcopis et clericis et orphanotrophis et brephotrophis et xenodochis et asceteriis,
Decretais liv. 5, tit. 10). O âmbito incluía a compra de votos em eleições, como, por
4227
exemplo, nas municipais .
8.2.5.9.4 O locupletamento com bens públicos.
§ 2393. Outra forma de improbidade dos oficiais era o crime de peculato, ou
seja, a apropriação de coisas (coisas ou direitos) do rei. À apropriação de coisas
públicas era assimilada a não cobrança de penas aplicadas ao fisco, a falta de registo
4228
de verbas públicas recebidas .
§ 2394. No direito romano, esta apropriação de coisas públicas, equiparadas às
coisas sagradas, era punida com a mais grave das penas, a expulsão da comunidade
ou morte civil (poena aquae et ignis interdictionem, interdição de uso da água e do
4229 4230
fogo ). Por direito comum, este crime era punido com degredo e confisco . À
4231
apropriação de coisas públicas estava equiparado o desleixo na sua gestão
8.2.6 Crimes contra o património.
§ 2395. Também o sistema moderno dos crimes contra o património é
fortemente estruturado pela tradição textual romana.
§ 2396. No direito romano, as ofensas patrimoniais davam origem a acções
civis dirigidas à indemnização do ofendido (actio legis Aquiliae, actio furti, actio
iniuriarum), que correspondiam aos três tipos de comportamentos danosos do
património de outrem), todas elas de carácter fundamentalmente “privatista”, ou
seja, dirigidas à indemnização do ofendido.

4226 Eram ainda contempladas outras situações de possível favorecimento de oficiais; empréstimos,

compras e vendas, etc..


4227 Parecendo admitir a compra de votos, l. un de C.4.3. De suffragio (porém, Nov. 8,124,161).

4228 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 62 a 70.

4229 Crime de peculato: D. 48,13 Ad legem Iuliam peculatus et de sacrilegis et de residuis (“1. Lege Iulia

peculatus cavetur, ne quis ex pecunia sacra religiosa publicave auferat neve intercipiat neve in rem suam
vertat neve faciat, quo quis auferat intercipiat vel in rem suam vertat, nisi cui utique lege licebit: […] 3.
Peculatus poena aquae et ignis interdictionem, in quam hodie successit deportatio, continet”); C. 9.28.
De crimine peculatos (“Imperatores Theodosius, Arcadius, Honorius. Iudices, qui tempore administrationis
publicas pecunias subtraxerunt, lege Iulia peculatus obnoxii sunt et capitali animadversioni eos subdi
iubemus: his nihilo minus, qui ministerium eis ad hoc adhibuerunt vel qui subtracta ab his scientes
susceperunt, eadem poena percellendis”).
4230 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, ns. 67, 71-73, 75 e 76..

4231 Cf. Antonio Garcia Mastrillo, De magistratibus [...], cit., II, liv. 6, cap. 8, n. 86.

668
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 2397. As sanções “criminais” que se encontram no sistema moderno de


punição destes delitos documentam uma progressiva “publicização” do campo 4232.
Já desde o direito medieval (entre nós, os forais) que se previam sanções criminais
para quem causasse intencionalmente danos patrimoniais a outrém. No caso do
simples dano, a sanção penal era excecional e reservada para comportamentos que,
para além de causarem danos a particulares, ofendiam interesses da comunidade,
como pôr fogo - o que causava um risco para todos -, cortar árvores de fruto (mas
não outras árvores), destruir hortas ou prejudicar culturas com a passagem de gados
– que afetava o abastecimento em mantimentos. Ou seja, a criminalização do dano
é excecional4233.
§ 2398. O furto libertou-se mais cedo deste registo privatista. Daí que o direito
comum medieval, em vez de considerar o furto sobretudo como um delito privado,
ressarcível por meio de uma poena (compensação do dano sofrido, por vezes
agravada ao duplum ou ao quadruplum4234), o encarasse, predominantemente, como
uma ofensa à paz, cumulando a pena civil com uma sanção criminal (pena de
morte, cortamento de membro, degredo, flagelação pública).
8.2.6.1 O dano.
§ 2399. No direito romano, o dano era a diminuição do património ou a
despesa (damnum emergens), avaliável em dinheiro. No dano cabia também a perda de
um lucro que se pudesse prever com razoabilidade (lucrum cessans); mas estas duas
expressões não existiam no vocabulário jurídico de então. Ao dano patrimonial era
assimilado o prejuízo da honra.
§ 2400. O dano intencional4235, ilícito4236 e não consentido pelo lesado era um
delito privado, conferindo ao ofendido – mas apenas a ele4237 - uma das ações ex lege
Aquilia4238. Uma destas era a actio iniuriarum, que visava reparar as ofensas à honra.
O dano devia ser atual, mas um dano apenas virtual (damnum infectum) podia
justificar a concessão ao lesado de certas medidas cautelares para o evitar ou
assegurar a indemnização (cautio damni infecti, missio in possessionem).
§ 2401. O montante da indemnização era fixado pelo juiz, nos limites daquilo
que fora pedido pela parte injuriada. No caso de ofensas à honra, o juiz podia, no
entanto, fixar equitativamente (ex aequo et bono) penas mais graves, segundo a
gravidade da injúria ou a importância social da pessoa. Mas, ainda aqui, tratava-se
da reparação do ofendido, satisfazendo o seu desejo de vingança.

4232 Esta publicização já se notava em textos romanos pós-clássicos, sobretudo para ofensas

patrimoniais violentas (roubo).


4233 Discutiu-se na Casa da Suplicação se a destruição de uma seara de trigo era punível com as

penas estabelecidas (Ord. fil.5,75; v. Ord. fil.1,65,32) para a destruição de pomares e hortas. Julgou-se que
“nam se podia estender a dano de semeada, & que só tinha lugar na perda ou dano de pomar, ou horta,
por ser ley penal, que se não estende” (Melchior Febo, Decisiones […], cit., Ar. 80).
4234 Como dizem as Partidas (7, 14,17): “tomar [...] la cosa furtada [...] pechar quatro tanto como

aquello que valia [...] Otrosi deven os judgadores [...] escarmentar os furtadores publicamente com
feridas de açotes”.
4235 A intenção de causar danos - ou a omissão das cautelas normalmente exigidas para os evitar -

era necessária, o que excluía a indemnização por danos inevitáveis (damnum fatale).
4236 Ou seja, contra direito, causado por uma ação que o ofensor não podia juridicamente praticar.

4237 O pater tinha uma ação relativamente aos danos causados ao filho sob o seu poder paternal.

4238 Cf. I.4,4,pr.; D.47,10; C.9,35.

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§ 2402. Tratava-se, por isso, de um delito privado, perseguível por uma ação
apenas na disponibilidade do lesado e visando satisfazer unicamente os seus
interesses privados.
§ 2403. Os juristas modernos mantiveram, no fundamental, este regime. Para
eles, o dano (damnum) era também definido como uma diminuição do património
ou perda de alguma vantagem ou comodidade, a que se equiparava a privação de
um lucro já garantido (ou radicatum) 4239. O prejuízo podia relacionar-se com
escravos, animais domésticos ou mesmo bravios que costumassem voltar (abelhas,
pombas, pavões) ou coisas inanimadas que se fossem destruídas ou adulteradas 4240.
§ 2404. O que procedesse licitamente não causava iniuria4241, a menos que a sua
ação visasse intencionalmente causar danos a terceiro4242 ou omitisse as cautelas
adequadas a evitá-los4243. Mas era injúria não respeitar servidões negativas 4244
adquiridas por terceiro ou prejudicar uma fonte pública 4245. Já o comportamento
danoso ilícito originava responsabilidade4246.
§ 2405. O patrão ou dono respondiam por danos causados por criados,
escravos ou animais seus4247. Um caso especial era o do capitão ou mestre de nave,
que respondia pelos danos que esta causasse, ao ser levada pelas correntes ou pelos
ventos4248.
§ 2406. O dano e seu montante provavam-se por juramento do prejudicado4249.
§ 2407. No direito pátrio português, os únicos casos em que os danos eram
considerados como crime eram a destruição de horta ou pomar (Ord. fil.5,75,1), o
fogo posto (Ord. fil..5, 86) e os danos causados por gados (Ord. fil.5,87). Destes
casos excecionais e insuscetíveis de extensão analógica4250 emergia uma ação pública
e uma pena pública (açoites, degredo).
8.2.6.2 Furto.
§ 2408. O direito romano considerava furto a subtração de uma coisa de
outrem, com a intenção de realizar um lucro ilícito pela sua posse (furtum ipsius rei)

4239 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, cit., ns. 1 e 2.
4240 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 6.
4241 “Nemo iniuria facit qui iure suo utitur” (ninguém que usa do seu direito comete um ilícito): cf.

D.47.10, De iniuriis et famosis libellis, 13,1). Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Damnum”, n. 8; por exemplo, abrindo um poço no seu terreno (a mais de 5 pés da extrema).
4242 Por exemplo, abrir um poço em terreno seu, mas com a intenção de secar ou prejudicar um

poço do vizinho.
4243 Devia satisfazer o dano aquele que por Acão com culpa ou imperícia deu origem, direta ou

indiretamente, ao dano, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 4.


4244 Cf. v.g. altius non tollendi, de estilicídio, de vistas.

4245 Cf. Gabriel Pereira de Castro, Decisiones […], cit., dec. 35, ns. 4 a 9.

4246 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 3.

4247 Cf. A menos que o criado causador do dano tivesse sido avisado pelo lesado, António Cardoso

do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “damnum”, ns. 8 e 9.


4248 Cf. António da Gama, Decisiones […], cit., dec. 296.

4249 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Damnum”, n. 7. Mas mantinha-se a

discrição do juiz no estabelecimento do montante da pena.


4250 Cf. Melchior Febo, Decisiones […], cit., Aresto 80.

670
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

ou pelo seu uso (furtum usus)4251. O furto dava origem a ações civis de restituição da
coisa ou de indemnização pelo dano (condictio furtiva, reivindicatio4252) e a uma ação
penal (actio furti), visando a condenação numa pena privada, a favor do dono da
coisa. Esta pena estava fixada pelo direito pretório, inspirado em leis da fase final
da República. Para o furto manifesto (ou seja, aquele em que o ladrão era apanhado
em flagrante) a pena era do quádruplo; para o não manifesto, do duplo (Gaius,
Institutiones, 3,190). Estas ações cabiam ao proprietário ou também a quem
possuísse a coisa por um título contratual (como depositário, como credor
hipotecário, como arrendatário, como usufrutuário); e dirigiam-se contra o ladrão
ou contra os seus herdeiros. Já a ação penal, que era infamante, dirigia-se apenas
contra o ladrão. Ou seja, tratava-se de delitos privados, pois mesmo a sanção penal
destinava-se ao proprietário da coisa furtada. Para além de que as ações apenas
competiam ao lesado.
§ 2409. O direito romano distinguia ainda o furto violento (rapina, vi bona
rapta)4253, que considerava como uma forma agravada de furto de coisas móveis 4254.
Dava origem a uma ação de vi bonorum raptorum ou a uma ação crime ex lege Julia de vi
privata. Mas as penas, que eram as do furto manifestum, também se destinavam ao
ofendido4255.
§ 2410. Os juristas modernos receberam a tradição romanística do instituto 4256.
Definiram o furto como a subtração de uma coisa alheia contra a vontade do seu
dono, deslocando-a (subtrahere) do lugar onde estava, com a intenção de usurpar o
seu uso ou posse4257.
§ 2411. Por direito comum, requeria-se a efetiva subtração da coisa, não
bastando atos preparatórios, como arrombar as portas ou cavar em terreno alheio,
sem levar nada daí. Mas o direito pátrio português criminalizava autonomamente
alguns destes atos4258.
§ 2412. A subtração da coisa era o seu transporte para outro lugar. Porque os
imóveis não se podem deslocar (subtrair), não havia furto de coisas imóveis. Mas o
furto podia cometer-se nos seus frutos (árvores, lápidas, cal 4259). Era a subtração

4251 D.47.2 De furtis, 1,3; C.6.2 De furtis et de servo corrupto; I. 4,4.


4252 A reivindicatio era porventura mais conveniente pois não exigia a prova da coisa furtada, mas
apenas da propriedade dela.
4253 Cf. I. 4,2 De vi bonorum raptorum; D.47,8, De vi bonorum raptorum et de turba; C.9,33 De vi bonorum

raptorum.
4254 A ocupação violenta de imóveis configurava outro delito: a vis ou violência (D.47,8,2,1). No

nosso direito, a usurpação violenta era punida com a morte, açoites ou degredo, consoante o valor da
coisa e a qualidade das pessoas (Ord. fil.5,61).
4255 Cf. Alessandro Doveri, Istituzioni di diritto romano, Firenze, 1866 (rist.), vol. 2, §§ 466-470 (furto),

§§ 471-2 (rapina); Cesare Sanfilippo, Istituzioni di diritto romano, 10ª ed. 2002, Saveria Mannelli,
Rubbettino, p. 316.
4256 Tradição intermédia: Decretum, p. 2, caus. 14, qu. 5 e 6; p. 2, caus. 33, qu. 3; Decretais, tit. De

furtiis; Siete Partidas, 7,14,1. Fundamentos jurídicos e teológicos, Luís de Molina, De iustitia et de iure […],
cit., tract. 2, disp. 681 a 693.
4257 “Contrectatio fraudulenta rei alienae invito domino, animo retinendi rem furatam, usum seu

possessionem”, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 1; “motio de loco ad
locum est substantia”, ibid. n. 2
4258 Entrar em casa fechada para roubar, Ord. fil.5,60; arrombar portas, ainda que não se roubasse

nada, Ord. fil.5,60,2.


4259 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 36.

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que distinguia o furto do dano: o último só implicava a corrupção da coisa; o


primeiro, a sua deslocação4260. Porém, havia comportamentos equiparados à
subtração. Assim, furtava aquele que, sem mandato ou licença do dono, vendesse
coisa alheia4261; o depositário ou comodatário, tutor ou curador, que escondesse a
coisa ou que a usasse contra a vontade do dono 4262; o que subtraísse do credor
coisa sua empenhada ou a vendesse a outrem4263; o que recebesse de um
depositário mais do que o que era devido4264; o que usasse para si dinheiro que lhe
tinha sido entregue para outra finalidade4265; o que encontrasse coisa de outrem e
não a entregasse (ou apregoasse) 4266. O escravo que fugisse fazia furto de si
mesmo4267.
§ 2413. Em contrapartida, não cometia furto aquele que recuperasse às
escondidas coisa furtada ou emprestada, desde que o comodatário já não tivesse
direito a retê-la; bem como o credor que subtraísse a coisa ao devedor desde que
não houvesse outro modo de a reaver4268. Também não furtava aquele que julgava
sua a coisa4269. Também não se dava a actio furti (não era furto) a subtração de coisa
comum por um dos sócios (comproprietários) ou de coisa do casal por um dos
cônjuges4270. Finalmente, não cometia furto o que subtraísse coisas a mouros,
turcos ou outros inimigos da fé católica, pois estes tinham roubado aos cristãos
tudo quanto tinham; os seus bens eram, afinal, património comum dos cristãos 4271.
§ 2414. Também se requeria a intenção de furtar (animus furandi). No caso de
furto manifesto, ou em flagrante delito4272, presumia-se em absoluto essa
intenção4273.
§ 2415. O furto era punido civilmente, sempre. Criminalmente, só nos casos de
furto agravado, pela violência, pela natureza da coisa roubada, pelo lugar, como se
verá.
§ 2416. Do ponto de vista civil, o ladrão era obrigado a restituir a coisa furtada
ou o seu preço, se a coisa já não existisse 4274. A quantidade furtada provava-se por

4260 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 54.
4261 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 9.
4262 Mas não já o que se negasse a entregá-la ao dono António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.

v. “Furtum”, n. 14. V. Ord. fil.5,60,8.


4263 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 15.

4264 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 17.

4265 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 18.

4266 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 38; v. Ord. fil.5,62 (sobre a

não entrega de escravos, aves e outras coisas achadas). Não cometia furto o que guardasse em caso
animal alheio, não sabendo quem era o dono António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”,
n. 52; mas sim, se retivesse preso animal selvagem daqueles que voltam ao redil, ibid. n. 53.
4267 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 43 (v. Ord. fil. 5,62-63).

4268 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 10.

4269 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 11.

4270 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 33.

4271 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 48.

4272 Sobre o conceito, que era o do direito romano, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s.

v. “Furtum”, n. 28.
4273 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 9.

4274 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 20.

672
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

instrumentum damnum (documento comprovativo do dano)4275. Para além disso, o


ladrão – que era considerado como um devedor em mora – estava obrigado à
restituição dos frutos da coisa e respondia pela perda ou deterioração, ainda que
por caso fortuito4276.
§ 2417. A ação de furto competia ao dono da coisa contra o ladrão. Realmente,
a ação de furto podia ser usada por aquele que tivesse o maior interesse em reavaer
a coisa. Normalmente, esse era o dono dela; mas podia ser outrem (o herdeiro, o
usufrutuário)4277.
§ 2418. Quanto ao sujeito passivo das ações de furto, ele era, em princípio, o
ladrão4278. No caso da ação penal, era-o mesmo exclusivamente ele. Mas, na ação
cível, também se podia pedir a restituição ou indemnização aos patrões de navios,
estalageiros ou estabuladores, à guarda dos quais estivessem as coisas roubadas;
porém, não podiam ser perseguidos criminalmente. Em contrapartida, o ladrão não
tinha ação (de reivindicação) para recuperar de terceiro as coisas por ele
furtadas4279.
§ 2419. Os encobridores de furto eram punidos com a pena de furto4280. Os
recetadores ou os que comprassem coisas verosimilmente furtadas era equiparados
ao ladrão4281; mas não cometia furto o que comprasse coisa furtada sem saber que o
era4282. O auxílio ao furto – com atos ou conselho - era punido4283.
§ 2420. O ladrão não se livrava pelo arrependimento (poenitentia) e a restituição
da coisa, uma vez consumado o crime, pois, tal como num contrato, a conclusão do
ato impedia o arrependimento4284.
§ 2421. O furto era criminalmente punido, apenas quando o valor da coisa
excedesse um marco de prata ou o furto fosse qualificado em função da natureza
da coisa furtada (coisa pública 4285, coisa sagrada, documento de cartório eclesiástico,
Ord. fil.5,60,4; marcos de extremas de terrenos, Ord. fil.5,67) ou do lugar do furto
(igreja, Ord. fil.5,60,4).

4275 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 21.
4276 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 22.
4277 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 47.

4278 Se eram vários os ladrões, ficavam, no cível, obrigados solidariamente, sendo cada um

responsável pela indemnização de todo o furto. Mas, criminalmente, cada um era punido com a sua pena
de furto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 25.
4279 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 23; excetua o caso do alfaiate

que emprestou as coisas que lhe tinham sido dadas para arranjar.
4280 Mas não encobria quem apenas não denunciasse. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...],

cit., s. v. “Furtum”, n. 44; recompensa do que prendesse ladrão, Ord. fil.5,60, 7.


4281 Ord. fil.5,60,5 e Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., a este texto. O que detivesse a coisa

furtada era considerado ladrão, se tivesse má fama, Manuel Barbosa, Remissiones [...], cit., ad Ord.
fil.5,60,5, n. 7.
4282 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 46.

4283 Mesmo se o furto não fosse um delito, como o de filho ao pai, aconselhar a praticá-lo era

punido como tal. Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 6 e 8.
4284 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 24.

4285 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 40 (punição capital). A

mesma pena para o que assinou instrumento alheio [furto do nome]; ibid. n. 41. Também o furto da
liberdade (v.g. rapto de escrava não meretriz) era punido com a morte, António Cardoso do Amaral, ibid.
n. 42; o mesmo para o que comprasse ou furtasse homem livre, ibid. n. 49.

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§ 2422. Em Portugal, existia uma tradição antiga de punição criminal do


furto4286. Nas Ord. man. (5, 37), estabelecia-se o regime que se vai manter durante os
séculos seguintes (Ord. fil. 5, 60): o furto é sempre objeto de uma punição criminal,
agravada no caso em que se verifiquem circunstâncias especiais, já previstas pelo
direito comum clássico (reincidência, natureza da coisa furtada, lugar do furto, valor
da coisa). Importa realçar o significado da consideração do valor da coisa como
circunstância agravante do crime. Com isto, o furto ganha a dimensão de um crime
patrimonial, em que os principais valores ofendidos são não a paz (como nos
crimes de violência, dos quais eram aproximados as espécies mais graves de furto),
mas valores económicos. O património emerge, agora claramente, como um objeto
autónomo de proteção também criminal4287.
§ 2423. Por direito comum, o ladrão de mais de 5 soldos (que corresponde ao
marco de prata das Ordenações, Ord. fil.5,60,pr.) era condenado à morte na
forca4288. Equiparado a este era o furto com violência e o furto qualificado em
razão da coisa furtada ou do lugar em que fosse cometido. Por direito canónico, era
ainda punido com a excomunhão 4289. Pelas Ordenações, aplicava-se a pena capital aos
furtos de maior quantia (superior a um marco de prata); a pena de açoites aos de
quantia menor (de 400 rs. a um marco de prata 4290); e, daqui para baixo, aplicava-se
uma pena arbitrária (Ord. fil.5,60)4291. Não se puniam os furtos leves domésticos, de
escravos, libertos ou criados; mas já era possível punir os furtos grandes, sendo
comum a condenação de domésticos por roubos aos patrões 4292.
§ 2424. A subtração de coisas de pequena monta também era, portanto, punida
como furto4293. No entanto, o furto em situação de extrema necessidade não era
punível, pois seria de direito natural que todos pudessem apropriar-se das coisas
absolutamente necessárias, de tal modo que, no estado de necessidade, tudo era de
todos. O furto continuava a ser crime, mas não era punível; a extrema necessidade
não excluía a ilicitude do furto, mas excluía a sua punibilidade. Daí que, superadas
as dificuldades, reconstituía-se o dever de restituir a coisa furtada ou o seu valor 4294.

4286 V. Ord. af. 5, 65.


4287 Embora apareçam elementos de tipificação que remetem, ou para a proteção de outros bens -
nomeadamente, valores religiosos (Ord. fil. 5,60,4) ou a paz (Ord. fil. 5,60,1; 61) - ou para antigas tradições
textuais - v. g. a especial punição da treincidência.
4288 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 31.

4289 O furto na Igreja com violação das portas ou muros dava lugar a excomunhão. Sem isto, era

sacrilégio, mas a excomunhão não tinha lugar ipso facto, António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v.
“Furtum”, n. 30 e 31. Por serem excomungados, estes ladrões não podiam ser sepultados na Igreja,
António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 51.
4290 O marco era uma unidade de medida de massa, que correspondia a 1/2 arrátel (= 229.5 /

233,856 gramas); o arrátel correspondia à libra, ou lira. O valor real do arrátel flutuou durante a idade
média, até que foi fixado por D. Manuel em uma libra (libra ibérica). A libra tinha 20 soldos ou
dinheiros. Sobre a denominação e valor das moedas, Manuel Barbosa, Remissiones […], cit., ad Ord. fil.
4,21, ns. 8 ss..
4291 Sobre as penas do furto em direitos próximos, v. Tomé Valasco, Allegationes […], cit., all. 13,

ns. 77-9.
4292 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 35.

4293 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 50.

4294 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 50.

674
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 2425. Podia matar-se o ladrão de estradas ou o ladrão noturno4295, mas não o


diurno, a não ser que se defendesse com armas ou quando se matasse para
recuperar as suas próprias coisas (mas não as de outrem) 4296.
8.3 O direito penal das monarquias corporativas.
§ 2426. O direito penal da monarquia portuguesa tinha como fonte principal o
livro V das Ordenações. Embora com algumas variações, esta codificação do direito
penal pátrio já vinha das Ordenações afonsinas, dos meados do séc. XV4297. Apesar da
ênfase que se nota na doutrina dos finais do séc. XVI quanto ao caráter real da
definição dos crimes4298, havia outras fontes de definição dos delitos, desde o
direito canónico e os costumes locais até aos próprios juristas que, com base em
argumentos doutrinais, estabeleciam crimes e penas (crimina et poenae arbitraria).
8.3.1 Punição e disciplina.
§ 2427. De acordo com a mais moderna historiografia do direito penal
moderno, inspirada decisivamente por Mario Sbricolli, esta pluralidade de instâncias
de definição do crime e da pena seria justamente o traço caraterístico da dogmática
penal das monarquias corporativas. Ao passo que a marca da nova criminalística
inaugurada por Tibério Deciano teria sido a reivindicação de que a criação de
crimes era um atributo do príncipe que, livre e exclusivamente, definia os delitos
que, por porem em causa a disciplina pública e a obediência ao príncipe, deviam ser
considerados como crimes.
§ 2428. Nos mundos políticos tradicionais, o direito penal oficial não era,
portanto, o único meio com que a sociedade procurava disciplinar as condutas
desviantes. Pelo contrário, ela fazia-o por múltiplos mecanismos, desde a ameaça de
punições extraterrenas ao escárnio e à troça, passando pelos mecanismos da
disciplina doméstica. Na sociedade de Antigo Regime, a função da repressão penal
era ainda mais nitidamente subsidiária de mecanismos quotidianos e periféricos de
controlo. Isto explicará o carácter pouco efetivo da punição penal, a que nos
referiremos adiante. Bem como a resistência doutrinal em aceitar a exclusiva
dependência do crime em relação à lei.
§ 2429. Deve ainda ser sublinhado que, justamente em função desta sua falta de
efetividade, o direito penal de Antigo Regime desempenhava não tanto uma função
de disciplina efetiva da sociedade, mas sobretudo de afirmação enfática -
consagrada em normas explícitas, apoiada por aparelhos organizados e públicos de

4295 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 15.
4296 Cf. António Cardoso do Amaral, Liber [...], cit., s. v. “Furtum”, n. 27.
4297 As Ord. af. constituem a primeira grande codificação do direito penal europeu, na época

moderna, antecedendo as codificações penais europeias do século seguinte: Constitutio criminalis


Bambergensis, 1507; Constitutio criminalis Carolina, 1532; Constitutio criminalis Brandeburgensis, 1582; Ordonnance
sur le fait de la justice, 1539; Constitutiones dominii Mediolanensis, 1541, Crimineele Ordonnantien, 1570.
4298 Foi Mario Sbricolli quem destacou esta novidade da dogmática penal dos finais do séc. XVI,
salientando embora que esta ligação essencial entre crime e lei régia tinha um significado diverso do
princípio da legalidade, tal como foi inventado do séc. XIX (nullum crimen sine lege, expressão criada por A.
Feuerbach também nesse século). O principio não valia, no direito comum tardio, como uma garantia
dos cidadãos, mas como a expressão da afirmação do poder real e da ideia de que o crime era, antes de
tudo, um ato de desobediência à lei do príncipe. Cf. Mario Sbricolli, “Lex delictum facit., Tiberio Deciani
e la criminalística italiana nella fase cinqucentesca del penale egemonico”, em Mario Sbricolli, Per la storia
del pensiero giuridico moderno, Milano, Giuffrè, 2009, p. 233 ss..

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constrangimento, embebida em liturgias e espetáculos públicos - de um conjunto de


valores sociais essenciais à ordem política. Daí que tenha sentido encarar as normas
penais como manifestações de um sistema axiológico subjacente, que o poder
implicitamente promete/ameaça impor, como condição mínima da convivência
social. Através do direito penal, podemos, então, surpreender aquilo que se entende
serem os valores indispensáveis da convivência, em termos tais que a sua defesa
devesse ser assumida pelo poder público. Na prática, porém, o grau de realização
desta garantia mínima acabava por ser muito baixo. Pelo que o direito penal
desempenhava, afinal, uma função muito mais simbólica do que disciplinar.
8.3.2 Pluralismo disciplinar.
§ 2430. Também no domínio da repressão dos comportamentos, se
sobrepunham diversos sistemas punitivos – desde o doméstico, o comunitário, o
eclesiástico, a uma multiplicidade de ordens corporativas, entre as quais, a das
universidades. Assim, direito penal oficial não era o único meio com que a
sociedade procurava disciplinar as condutas desviantes. Pelo contrário, ela fazia-o
por meio de múltiplos mecanismos, desde a ameaça de punições extraterrenas ao
escárnio e à troça da comunidade, passando pelos mecanismos muito efetivos da
disciplina doméstica. Na sociedade de Antigo Regime, a função da repressão penal
era, por isso, ainda mais nitidamente do que hoje, subsidiária de mecanismos
quotidianos e periféricos de controlo. Isto explicará o caráter pouco efetivo da
punição penal, a que nos referiremos adiante.
§ 2431. Por outro lado, o pluralismo penal reforçava-se na medida em que
sobre o imperativo da justiça pairavam os imperativos da misericórdia e da graça,
que pertenciam também à deontologia de reinar.
§ 2432. Por fim, deve ser sublinhado que, justamente em função desta sua falta
de efetividade, o direito penal das monarquias corporativas desempenhava não
tanto uma função de disciplina efetiva da sociedade, mas sobretudo de afirmação
enfática de valores sociais essenciais.

8.3.3 A prática da punição.


§ 2433. O sistema penal da monarquia corporativa caracterizava-se por uma
estratégia correspondente à própria natureza política desta. Ou seja, se, no plano
político, o poder real se confronta com uma pluralidade de poderes periféricos,
frente aos quais se assume sobretudo como um árbitro, em nome de uma
hegemonia apenas simbólica, também no domínio da punição, a estratégia da coroa
não está voltada para uma intervenção punitiva exclusiva, quotidiana e efetiva.
§ 2434. De facto, a função político-social determinante do direito penal real não
parece ser, na sociedade “sem Estado” dos séculos XVI e XVII, a de realizar, por si
mesmo, uma disciplina social. Para isso lhe falta tudo - os meios institucionais, os
meios humanos, o domínio efetivo do espaço e, por fim, o domínio do próprio
aparelho de justiça, expropriado ou pelo “comunitarismo” das justiças populares ou
pelo “corporativismo” dos juristas letrados. A função da punição parece ser, em
contrapartida, a de afirmar, também aqui, o sumo poder do rei como dispensador,
tanto da justiça como da graça.
§ 2435. É nesta perspetiva que deve ser lido o direito penal da coroa. Feita esta
leitura, não deixaremos de convir que, em termos de normação e punição efetiva, o
676
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

direito penal se caracteriza, mais do que por uma presença, por uma ausência.
Vejamos como e porquê.
§ 2436. Comecemos por aspetos ligados à efetivação positiva, por assim dizer, da
ordem real.
§ 2437. Com esta se relaciona, desde logo, a questão da capacidade que os
juristas têm, no sistema do ius commune, de estabelecer autonomamente o direito. No
entanto, como esta questão nos irá sobretudo interessar num ulterior momento,
deixemo-la por agora. Fixemo-nos, para já, no grau de aplicação prática da ordem
penal legal.
§ 2438. Os dispositivos de efetivação da ordem penal, tal como vinha na lei,
careciam de eficiência. Primeiro, pela multiplicidade de jurisdições (v. cap.
7.1.7.3)4299, origem de conflitos de competência - descritos por muitas fontes como
intermináveis -, que dilatavam os processos e favoreciam fugas de castigo. Depois,
pelas delongas processuais - de que todas as fontes nos dão conta 4300-, combinadas
com o regime generoso de “livramento” dos arguidos (v. cap. 8.1.6, 8.1.6.4).
Finalmente, pelos condicionalismos de aplicação das penas.
§ 2439. Condicionalismos de dois tipos. De natureza política, isto é,
relacionados com o modo como a política penal da coroa se integrava numa
política mais global de disciplina régia; ou de natureza prática, relacionada com as
limitações dos meios institucionais, logísticos e humanos na disponibilidade da
coroa. Comecemos por estes últimos e, no final, concluiremos com os primeiros.
§ 2440. Tomemos para exemplo a pena de degredo. Quando aplicada para o
ultramar, ela obrigava a espera, por vezes durante meses ou anos, de barcos para o
local do exílio 4301; o réu ficava preso à ordem da justiça, nas cadeias dos tribunais
de apelação, tentando um eventual livramento, aquando das visitas do Regedor da
Justiça. De qualquer modo, uma vez executada a deportação, faltavam os meios de
controlo que impedissem a fuga do degredado do lugar para onde tinha sido
mandado.
§ 2441. As mesmas dificuldades existiam nas medidas, preventivas ou penais,
que exigissem meios logísticos de que a administração da justiça carecia. Era o que
se passava com a prisão - de resto, raramente aplicada como pena -, que obrigava à
existência de cárceres seguros, à organização de operações onerosas de transporte
de presos (as odiadas levas de presos), à disponibilidade de meios de sustento dos

4299 Cf. António Manuel Hespanha, As vésperas […], cit..


4300 O tema das “delongas processuais necessita de estudos empíricos. Um estudo empírico
realizado sobre uma fonte do final do séc. XVII onde está registada a duração da prisão antes de
julgamento nos cárceres da Casa da Suplicação (cf. António Manuel Hespanha, “Da ‘iustitia’ à
‘disciplina’ […], cit.) fornece testemunhos contraditórios: ao lado de presos com vários anos de cárcere,
há outros que tinham os seus processos conclusos para julgamento ao fim de dois ou três meses. O
preâmbulo do alvará de 31.3.1612 (Col. Legisl. Extravagante […], 1, 442 ss.) refere as deficiências da
aplicação da justiça, mesmo na capital: falta de estruturas de vigilância e controlo da ordem pública, as
“inumeráveis industrias e subterfúgios” com que se podia iludir o castigo ou adiar a sua execução e a
demora dos processos (nomeadamente, no caso de réus pobres, os escrivães não tinham interesse em
realizar atos de que sabiam não ir ser pagos; o mesmo acontecia naqueles processos onde não havia
acusação de parte).
4301 Isto levou a que se determinasse que o lugar do degredo fosse fixado genericamente (“para

Angola”, “para o Brasil”), embora conheça decisões de degredo “para Bissau”, “para Cacheu”, “para a
ilha do Príncipe”, “para o Maranhão”.

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detidos, embora parte deste sustento corresse à conta destes ou de instituições de


caridade. As únicas penas facilmente executáveis eram as de aplicação momentânea,
como os açoites, o cortamento de membro ou a morte natural. Mas, como veremos
de seguida, mesmo estas parece terem sido, por razões diferentes, raramente
aplicadas.
§ 2442. Vejamos agora o que acontecia com a mais visível das penas - a pena de
morte natural, prevista pelas Ordenações para um elevado número de casos, em todos
os grandes tipos penais. Prevista tantas vezes que, nos fins do século XVIII, se
conta que Frederico o Grande, da Prússia, ao ler o livro V das Ordenações, teria
perguntado se, em Portugal, ainda havia gente viva (a prática da masturbação era
punida com a morte …4302). Na prática, todavia, os dados disponíveis parecem
aconselhar uma opinião bem diferente da mais usual quanto ao rigorismo do
sistema penal. Na verdade, a pena de morte natural era, em termos estatísticos,
muito pouco aplicada em Portugal. Na base de estudos feitos para as condenações
ao nível dos tribunais da corte – por onde todos os crimes com penas superiores às
de açoites tinham que passar, em apelação “por parte da justiça” 4303 - chega-se à
conclusão de que a pena de morte, durante os sécs. XVI a XVIII era muito
raramente aplicada4304. Outros testemunhos apontam no mesmo sentido de uma
escassíssima aplicação efetiva da pena de morte. Entre 1601 e 1800, uns anos pelos
outros, foram levadas a cabo em Portugal (no Sul da metrópole, mais exatamente)
cerca de duas execuções capitais por ano 4305. E, de facto, um autor que escrevia já
nos inícios do séc. XIX referia que em Portugal se passava “ano e mais” sem se
executar a pena capital 4306.
§ 2443. Esta não correspondência entre o que estava estabelecido na lei e os
estilos dos tribunais não deixou de ser notado pelos juristas. Conhecem-se
tentativas de, por via da interpretação doutrinal, pôr o direito de acordo com os
factos. Uma delas foi através da interpretação da expressão “morra por ello”,
utilizada nas Ordenações, jogando com o facto de que, para a teoria do direito
comum, a morte podia ser “natural” e “civil” e que esta última correspondia ao
degredo por mais de 10 anos 4307. O desembargador Manuel Lopes de Oliveira

4302 Embora, no séc. XVIII, a Inquisição, para onde estes criminosos eram remetidos pelos juízos

seculares, se contentassem, sensatamente, com umas brandas penas espirituais.


4303 A lei previa a apelação oficiosa nos casos de “querela” (Ord. fil. 5, 122, pr.; cf. ainda ibid. 5, 117,

pr.), ou seja, naqueles em que a pena prevista era superior à de açoites).


4304 Cf. António Manuel Hespanha, “Da ‘iustitia’ à ‘disciplina’ […]”, cit..

4305 Por exemplo. As Ord. punem a bigamia com a morte (Ord. fil. 5,19); no entanto, uma fonte dos

finais do séc. XVIII informa que “hoje, entre nós esta pena raramente se pode praticar, pois os
Inquisidores da depravação herética, que conhecem deste crime pelo direito de prevenção [pois se
tratava de um delito de misto foro], punem os réus com penas de açoites, de desterro temporário e, por
vezes, com penas de galés [Repertorio das ordenações e leis do reino de Portugal, Coimbra, Na Real Imprensa da
Universidade, 1795, v. “Pena de morte”, IV, 27(a)]. A mesma fonte, [(I, 443(d)] refere que um réu
condenado à morte natural na primeira instância por tomar pela força os bens do devedor viu, em
embargos, essa pena comutada em morte civil (degredo).
4306 Francisco Freire de Melo, Discurso sobre os delictos e as penas e qual foi a sua proporção nas differentes

epocas da nossa jurisprudência, cit, p. 50. Outra fonte (D. Luís da Cunha, Testamento político […], Lisboa, 1820,
p. 27) refere que era ponto de honra dos mordomos da Misericórdia que “no seu ano fosse inútil a
forca”, “piedade” que o autor censura, exprimindo uma sensibilidade típica das ideias de disciplina do
despotismo esclarecido.
4307 Melchior Febo, Decisiones […], cit., dec. 156, ns. 5-10; Manuel Barbosa, Remissiones doctorum […],

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

apelidava os juízes que aplicavam indistintamente a pena de morte física a todos os


casos em que as Ordenações estabelecessem a pena de morte natural como “práticos
ignorantes” (imperiti pragmatici) e “carniceiros monstruosos” (innanissimi carnifices). Os
argumentos do desembargador eram débeis e a sua opinião, apesar de ter reunido
alguns sufrágios (nomeadamente de Paulo Rebelo, num Tractatus iure naturali
manuscrito), e de ser cotada de “a mais pia”, não chegou a triunfar 4308. Mas não
deixa de ser curioso que, na polémica gerada por esta opinião, ninguém tenha
acusado o desembargador de laxismo ou a sua opinião de perigosa para a ordem
social. Na verdade, o que ele tentava fazer era justificar com argumentos legais uma
prática geral, por outros menos provocatoriamente fundada no poder arbitrário do
juiz de adequar a pena às circunstâncias do delito e do delinquente. Esta diversidade
de justificação não era, em si mesma, de pouca monta. Pois o segredo da eficácia do
sistema penal do Antigo Regime estava justamente nesta “inconsequência” de
ameaçar sem cumprir. De se fazer temer, ameaçando; de se fazer amar, não cumprindo.
Ora, para que este duplo efeito se produzisse, era preciso que a ameaça se
mantivesse e que a sua não concretização resultasse da apreciação concreta e
particular de cada caso, da benevolência e compaixão suscitadas ao aplicar a norma
geral a uma pessoa em particular. Por isso, qualquer solução que abolisse em geral a
pena de morte - v. g. por meio de uma interpretação genérica dos termos da lei -
comprometia esta estratégia dual de intervenção do direito penal da coroa. Juízes
havia, no entanto, que se gabavam de, em toda a vida, nunca terem ordenado
ninguém à morte, antes terem dela livrado muitos réus 4309. Pelo seu pitoresco,
merece a pena transcrever a seguinte decisão: "Padre Francisco da Costa, prior de
Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e
arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e
postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido
e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de ter dormido com vinte e nove
afilhadas e tendo delas noventa e sete filhas e trinta e sete filhos; de cinco irmãs
teve dezoito filhas; de nove comadres trinta e oito filhos e dezoito filhas; de sete
amas teve vinte e nove filhos e cinco filhas; de duas escravas teve vinte e um filhos
e sete filhas; dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas,
da própria mãe teve dois filhos. Total: duzentos e noventa e nove filhos, sendo
duzentos e catorze do sexo feminino e oitenta e cinco do sexo masculino, tendo
concebido em cinquenta e três mulheres. El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o
mandou pôr em liberdade aos dezassete dias do mês de Março de 1487, com o
fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao
tempo, e mandou arquivar os papéis da condenação" 4310.
§ 2444. O que se passava com a pena de morte, parece ter-se passado - em grau
porventura diferente - com algumas outras penas corporais, de que as fontes
também oferecem poucos testemunhos de aplicação. Tais são os casos dos açoites

cit., ad Ord. fil. 5,18,3, n, 10 [p. 298]; Domingos Antunes Portugal, De donationibus […], liv. 2, c 25, n.
53/5.
4308 Sobre esta discussão, com exposição e crítica dos diferentes argumentos, v. Repertório às

Ordenações, maxime, IV, 40(a) e 1, 434(b).


4309 António Luís Henriques Seco, Memórias do tempo passado e presente para lição dos vindouros, Coimbra,

Imprensa da Universidade,1880, 672.


4310 Sentença proferida em 1487 no processo contra o Prior de Trancoso (Arquivo Nacional da

Torre do Tombo, Armário 5, Maço 7; agradeço a Elena Burgoa o ter-me enviado esta referência).

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que, num rol dos detidos da cadeia de Lisboa nos finais do séc. XVII 4311, não são
mais aplicados do que a pena capital. Na mesma fonte, a marca é usada em dois
casos, um de roubo e outro de furto, cumprindo a conhecida funções de registo
criminal no próprio corpo do delinquente, nomeadamente nos crimes em que era
relevante, para a medida da pena, saber se o criminoso era reincidente ou não 4312.
Os açoites, por sua vez, aparecem em três casos – um de entrada violenta em casa
de mulher branca e dois de furto. O cortamento de membro nunca aparece 4313.
§ 2445. Em vista disto, o leque das penas praticadas no plano do sistema
punitivo régio ficava afinal muito reduzido e, sobretudo, carecido de medidas
penais intermédias. Como a mais grave, embora quase apenas virtual, a pena de
morte; mas, sobretudo, o degredo, com todas as dificuldades de aplicação - e
consequente falta de credibilidade - a que nos referimos. Na base, as penas de
açoites - inaplicáveis a nobres e, em geral, aparentemente pouco usadas, pelo menos
a partir dos fins do século XVII - e as penas pecuniárias.
8.3.4 A economia da Graça: perdão, comutação e livramento.
§ 2446. Assim, e ao contrário do que muitas vezes se pensa, a punição no
sistema penal efetivamente praticado pela justiça real do Antigo Regime - pelo
menos até ao advento do despotismo iluminado - não era nem muito efetiva, nem
sequer muito aparente ou teatral. Os malefícios ou se pagavam com dinheiro, ou
com um degredo de duvidosa efetividade e, muitas vezes, não excessivamente
prejudicial para o condenado. Ou, eventualmente, com um longo e duro
encarceramento “preventivo”.
§ 2447. Ou seja, mais do que em fonte de uma justiça efetiva ou quotidiana, o
rei constitui-se em dispensador de uma justiça apenas - e, acrescente-se, cada vez
mais - virtual. Independentemente dos mecanismos de graça e da atenuação
casuística das penas, que estudaremos a seguir, o rigor das leis - visível na legislação
quatrocentista e quinhentista (a legislação manuelina tende a agravar o rigor e
crueldade" da punição) - fora sendo temperado com estilos de punir cada vez mais
brandos.
§ 2448. Passemos, agora, ao polo oposto da punição: o perdão ou, mais em
geral, as medidas que, na prática, traduziam a outra face da intervenção régia em
matéria penal - o exercício da Graça.
§ 2449. Tem sido posto em evidência o caráter massivo do perdão na prática
penal da monarquia corporativa 4314. E tem sido mesmo destacado que o exercício
continuado do perdão destruía o seu caráter imprevisto e gracioso e o transformara,
pelo menos para certos crimes, num estilo e, com isto, num expediente de rotina.

4311 Cf. António Manuel Hespanha, “Da ‘iustitia’ à ‘disciplina’ […]”, cit..
4312 No furto, a treincidência era duramente punida, pois o furto triplum era equivalente ao furtum
magnum; daí que se estabelecesse a marcação dos ladrões no primeiro furto com um L ou um P,
consoante a condenação fosse feita em Lisboa ou no Porto. Mas o segundo já com uma forca, pré-
anunciando o que poderia acontecer num eventual terceiro (Lei da Reformação da Justiça, de 6.12.1612,
§ 20. No entanto, a marca já não se usava nos finais do séc. XVIII (v. Joaquim José Pereira e Sousa,
Classes dos […], cit., 1, § 22, nota 35).
4313 “Há muito que estão entre nós em desuso”, Joaquim J. C. Pereira e Sousa, Classes dos crimes

[…], cit., 1, § 22, nota 35.


4314 Cf. Luís Miguel Duarte, Justiça e criminalidade […], cit..

680
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

§ 2450. No plano doutrinal, este regime complacente do perdão radica, por um


lado, no papel que a doutrina do governo atribuía à clemência e, por outro, no que
a doutrina da justiça atribuía à equidade. Quanto à clemência como qualidade
essencial do rei, ela estava relacionada com um dos tópicos mais comuns da
legitimação do poder real - aquele que representava o príncipe como pastor e pai
dos súbditos, que mais se devia fazer amar do que temer 4315. Embora constituísse,
também, um tópico corrente que a clemência nunca poderia atingir a licença,
deixando por punir os crimes (justamente porque um dos deveres do pastor era,
também, “perseguir os lobos” que ameaçam ou atacam o seu rebanho 4316),
estabelecia-se como regra de ouro que, ainda mais frequentemente do que punir,
devia o rei ignorar e perdoar (“Principem non decere punire semper, nec semper
ignoscere, punire tamen saepe, ac saepius ignorare officium regium esse; miscere
clementiam, & severitatem pulchrius esse” [o príncipe não deve punir sempre, nem
sempre ignorar, mas punir frequentemente e, ainda mais frequentemente, ignorar: é
esse o dever dos reis; combinar a clemência com a severidade é o mais bonito) 4317,
não seguindo pontualmente o rigor do direito (“Ex praedicitis infertur non esse
sequendum regulariter, quod praecipuit jus strictum […] summum ius, summam
crucem [vel] injuriam”4318 [infere-se do que se disse que aquilo que prescreve o
direito entendido rigidamente não deve ser seguido regularmente […] pois um
direito absoluto seria o mesmo que uma cruz ou uma justiça absolutas]). Este
último texto aponta já para um outro fundamento teórico da moderação da punição
- ou seja, o contraste entre o rigor do direito e a equidade de cada caso.
Fundamento que, valendo para todos os juízes, valia ainda mais para o juiz
supremo que era o rei.
§ 2451. O perdão e a comutação da pena combinavam-se, de resto, com uma
outra medida de alcance prático semelhante – a concessão de alvarás de fiança
(liberatio sub fidejussoribus), que permitiam aos réus aguardar em liberdade o
julgamento ou o “livramento” por perdão ou comutação 4319. Também aqui o
Regimento do Desembargo do Paço procura estabelecer um maior rigor para evitar
que tais alvarás “deem ocasião aos delinquentes cometerem os delitos tão
facilmente com esperança de haverem os ditos Alvarás para se livrarem soltos”.
Mas, na prática, o regime parece ter continuado a ser bastante permissivo. No rol

4315 Cf. sobre o tema, largamente, João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3:

“principem pastoris nomen, imperioque adornat, et sic nomen imperi superbum pastoris nomine
dulcescit: quasi dicat imperare populo, ac pascere populo idem esse […] ex quo manifestum est
clementiam, mansuetudinem, & misericordiam maxime competere in principibus, atque illorum vices
tenetibus”, n. 37 [pg. 22], com fonte na Sagrada Escritura e em Santo Ambrósio; “magis decere
principem amari, quam metui” (ibid. n. 44).
4316 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3, n. 42-42, 52, in fine, p. 53 e 60-62.

Na literatura clássica, estabelecera-se uma larga polémica com os estoicos, para quem a clementia em
relação aos criminosos equivalia à licença. Mais tarde, penalistas iluministas reagirão, de novo, contra o
perdão, com idêntico fundamento.
4317 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3, n. 53.

4318 João Baptista Fragoso, Regimen [...], cit., p. 1, 1.1, disp. 1, § 3, n. 57.

4319 Sobre os alvarás de fiança, v. por todos, Sobre as cartas de segurança, seu regime e espécies,

além das fontes legais, v. por todos, Manuel Mendes de Castro, Pratica lusitana […], cit., pt. 1, liv. 5, c. 1,
app. II, n. 19 [pg. 172] e pt. 2, liv. 5, c. 1, app. II ([pg. 255]; Mateus Homem Leitão, De jure Lusitano in tres
tractatus. […], cit.; para além dos comentários de Manuel Barbosa e de Manuel Álvares Pegas ao
parágrafo do regimento do Desembargo do Paço (com ulteriores indicações de literatura sobre o tema.

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dos presos à ordem da Casa da Suplicação, a que já nos temos referido, quase
metade (mais exatamente, 48%) daqueles de que se sabe o destino saem soltos por
perdão, fiança ou, eventualmente, por falta de culpas; e, em relação a muitos outros,
“corria livramento” pelos meios ordinários.
§ 2452. Além das cartas de fiança e dos alvarás de fiança, existiam ainda as
cartas de seguro (securitatis ou assecurationis litterae), passadas pelos corregedores e
outros juízes, que garantiam o acusado contra a prisão até à conclusão da causa4320.
Do relevo prático deste instituto na criação de um clima de permissividade criminal
diz-nos o testemunho de Manuel Mendes de Castro: “Digo-te que em nenhuma
outra parte estão em uso senão neste reino, embora este costume português pareça
um pouco alucinado […] se o meu juízo vale algo, penso que seria melhor aboli-las
completamente […]” 4321.
§ 2453. Esta situação de permissividade era incentivada pelo poder. Um
influente valido de D. João V recomendava rispidamente ao Desembargador Inácio
da Costa Quintela: “Sua Majestade manda advertir V. M. que as leis são feitas com
muito vagar e sossego, e nunca devem ser executadas com aceleração: e que nos
casos crime sempre ameaçam mais do que na realidade mandam […], porque o
legislador é mais empenhado na conservação dos súbditos do que no castigo da
Justiça, e não quer que os ministros procurem achar nas leis mais rigor do que elas
impõem”4322.
§ 2454. Concluindo. Pelos expedientes de graça realizava-se o outro aspeto da
inculcação ideológica da ordem real. Se ao ameaçar punir (mas punindo,
efetivamente, muito pouco), o rei se afirmava como justiceiro, dando realização a
um tópico ideológico essencial no sistema medieval e moderno de legitimação do
poder; ao perdoar, ele cumpria um outro traço da sua imagem - desta vez como
pastor e como pai -, essencial também à legitimação. A mesma mão que ameaçava
com castigos impiedosos prodigalizava, chegando ao momento, as medidas de
graça. Por esta dialética do terror e da clemência, o rei constituía-se, ao mesmo
tempo, em senhor da Justiça e mediador da Graça. Se investia no temor, não
investia menos no amor. Tal como Deus ele desdobrava-se na figura do Pai
justiceiro e do Filho doce e amável.
§ 2455. Assim, o perdão e outras medidas de graça, longe de contrariarem os
esforços de construção positiva (pela ameaça) da ordem régia, corroboram esses
esforços, num plano complementar, pois esta ordem combinada da Disciplina e da
Graça constitui o instrumento e a ocasião pelos quais se afirma ideológica e
simbolicamente, em dois dos seus traços decisivos - summum ius, summa clementia -, o
poder real. Da parte dos súbditos, este modelo de legitimação do poder cria um
eficaz habitus de obediência, tecido, ao mesmo tempo, com os laços do temor e do
amor. Teme-se a ira regis; mas, até à consumação do castigo, não se desespera da sua
misericórdia. Antes e depois da prática do crime, nunca se quebram os laços (de um

4320 Ord. fil. 5,124 a 129; Alv. 21.1.1564 (em Duarte Nunes de Leão, Leis extravagantes […]); Alv. 6-

12-1612, §§ 3-4; Ord. fil. 5, 128; um outro tipo de garantia, ainda mais genérica – a segurança real.
4321 Manuel Mendes de Castro, Pratica lusitana […], cit., pt. 1, liv.5. cap. 1. app. III.

4322 Francisco Freire de Melo, Discurso sobre os delitos […], p. 9. A censura reportava-se à condenação

à morte de um moço que roubara coisas numa Igreja (cf. Alexandre de Gusmão, Collecção de vários escritos
inéditos […], Porto 1841, 31).

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António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

tipo ou de outro) com o poder. Até ao fim, o rei nunca deixa de estar no horizonte
de quem prevarica; que, se antes não se deixou impressionar pelas suas ameaças, se
lhe submete, agora, na esperança do perdão. Trata-se afinal de um modelo de
exercício do poder coercitivo que evita, até à consumação final da punição, a
“desesperança” dos súbditos em relação ao poder; e que, por isso mesmo, tem uma
capacidade quase ilimitada de prolongar (ou reiterar) a obediência e o consenso,
fazendo economia dos meios violentos de realizar uma disciplina não consentida.
§ 2456. Em comunidades em que os meios duros de exercício do poder eram
escassos, modelos que garantissem ao máximo as condições de um exercício
consentido do poder eram fortemente funcionais.
§ 2457. Tudo combinado - no plano da estratégia punitiva, do funcionamento
do perdão ou do livramento e da escala de penas efetivamente aplicável e aplicada -,
o resultado era o de um sistema real/oficial de punição pouco orientado para a
aplicação de castigos e, finalmente, pouco crível neste plano. O controlo dos
comportamentos e a correspondente manutenção da ordem social só se verificava
porque, na verdade, ela repousava sobre mecanismos de constrangimento situados
num plano diferente do da ordem penal real.
§ 2458. A disciplina social baseava-se, de facto, mais em mecanismos
quotidianos e periféricos de controlo, ao nível das ordens políticas infra estaduais -
a família, a Igreja, a pequena comunidade 4323. Neste conjunto, a disciplina penal
real visava, sobretudo, uma função política - a da defesa da supremacia simbólica
do rei, enquanto titular supremo do poder punitivo e do correspondente poder de
agraciar.
§ 2459. Para isto, nem era preciso punir todos os dias, nem sequer punir
estrategicamente do ponto de vista dos interesses de disciplina da vida social (i. e.
punir os atentados mais graves ao convívio social). Disto se encarregavam usando
tecnologias disciplinares diversas, os níveis infrarreais de ordenação. À justiça real
bastava intervir o suficiente para lembrar a todos que, lá no alto, meio adormecida
mas sempre latente, estava a suprema punitiva protestas do rei. Tal como o Supremo
Juiz, o rei devolvia aos equilíbrios naturais da sociedade o encargo de instauração da
ordem social.
§ 2460. Por outro lado, para se fazer lembrar e reconhecer, para manter a carga
simbólica necessária à legitimação do seu poder, o rei dispõe de uma paleta
multímoda de mecanismos de intervenção. Pode decerto punir; mas pode também
agraciar, assegurar ou livrar em fiança; como pode, finalmente, mandar prender.
Pode optar, isto é, tanto pelo meio desgastante da crueza, como pelo meio
económico do perdão. Ao fazer uma coisa ou outra, o príncipe afirma-se na
plenitude do seu poder e no cabal exercício das suas funções. Pois - segundo uma
conhecida máxima do início do Digesto - a realização da justiça (leia-se, da
disciplina social) exige uma estratégia plural, em que, ao lado do medo das penas,
figuram os prémios e as exortações (non solum metu poenarumn, verum etiam premiorum
quoque exhortatione, D. 1,1,1,1.) [não só pelo medo das penas, mas também pela
exortação por meio de prémios].

4323 Sobre os poderes punitivos destas ordens infrarreais: sobre o poder punitivo do pater, João

Baptista Fragoso, Regimen […], cit., pt. 1, disp. 1, 4 n.º 89 e III, disp. 3, §. 2; sobre o poder punitivo da
Igreja, cf. o vol. 2 da mesma obra, per totum.

683
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§ 2461. Sem se ter em conta esta dupla eficiência do poder, entende-se mal esta
natureza aperentemente contraditória do direito penal de Antigo Regime.

684
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9 Epílogo.
§ 2462. Sugeri na introdução que a visão jurídica do mundo que acaba de ser
descrita seria típica da Europa “latina”, com isto querendo significar o corpus
literário dos juristas italianos, ibéricos e, em parte, franceses, da primeira época
moderna. Tenho consciência do arriscado da afirmação e, por isso, vou tentar
esclarecê-la um pouco mais.
§ 2463. Não creio, desde logo, que se possa dizer que haja (ou alguma vez
houvesse) algo como um “espírito latino” (ou “do Sul”), relacionado com
condições étnicas ou mesológicas. Nem mesmo uma “cultura latina”, dotada de
uma identidade independente de contextos vários. Nem o contexto religioso – a
Europa “católica” – parece poder explicar os traços comuns desta visão do mundo
partilhada pelos juristas modernos. Como disse no respetivo capítulo (v. caps. 2.5.1
ss.), a cultura jurídica desta época não é uma cultura integrista, em que o direito
religioso se projete implacavelmente sobre os direitos temporais. A Natureza tem o
seu espaço independente da Graça, o que aponta para um proto-laicismo que
autonomizava o direito e as instituições (a propriedade, a validade dos pactos, o
senhorio político) dos dados da fé.
§ 2464. Parece, por isso, mais prudente limitarmo-nos a constatar que a
identidade “do Sul” é antes uma identidade induzida por um círculo de
comunicação – ou um corpus literário - partilhada por estes juristas, incorporado
num arquivo textual comum, que progressivamente se diferencia de outros
universos de referências dogmáticas, como os dos juristas ingleses e, depois, dos
juristas holandeses e alemães. Como já dissemos (v. cap. 1.1.5), o arquivo de
referências dos juristas modernos de que tratámos era esmagadoramente
constituído por textos italianos e ibéricos, estando dele ausentes os textos dos
juristas do Norte. A cisão religiosa da Europa vem ainda sublinhar esta fronteira,
pois o “Norte” passa a ser anglicano, luterano ou calvinista. Porém, não parece que
a origem da divisão seja esta. Mesmo antes, os juristas do “Sul” citavam e discutiam
os seus pares do “Sul”, até porque o corpo literário do Centro e do Norte tinha
uma expressão muito mais reduzida. Foi este habitus literário que se cristalizou nos
livros impressos a partir da segunda metade do séc. XVI, saídos de prelos italianos,
ibéricos, do sul de França e da borda ocidental do Império, onde se imprimiam
indistintamente os autores que formaram as gerações seguintes de juristas desta
Europa do Sul. Estava, assim, instalado um sistema industrial de reprodução
dogmática, que propõe a visão do mundo e do direito que foi comum a estes
autores, estabelecendo um paradigma conceitual e um estilo de discutir.
§ 2465. Neste paradigma, o legado do direito comum clássico era muito
importante. Nele pesava fortemente uma conceção naturalista da sociedade e uma
representação corporativa do poder. A primeira desvalorizando muito os elementos
voluntaristas ou arbitrários do direito; a segunda, subordinando indivíduos a
“estados” (corpora).
§ 2466. É claro que o séc. XVI, com a emergência de monarquias e principados
mais auto-suficientes e mais afirmativos das suas prerrogativas políticas e com
alguma emergência de sentimentos de autonomia pessoal, fazem com que apareçam
novos elementos de sensibilidade jurídica.
§ 2467. Esta necessidade de descrever um novo contexto em que começam a
avultar entes políticos unificadores dotados pelo direito próprio de novas e
exclusivas prerrogativas institucionais, leva os juristas a valorizar o estatuto dos
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príncipes como representantes da res publica. Os juristas portugueses – que


encontravam nas Ordenações muitas manifestações da superioridade do príncipe
como cabeça da república e muitos poderes reais próprios e indelegáveis que daí
derivavam - tendiam a valorizar categorias que encontravam na tradição e que
podiam servir para dar cobertura dogmática aos direitos específicos dos reis. Era o
caso da categoria de “público”, aplicada ao património do rei, aos contratos por ele
celebrados, aos oficiais por ele criados, aos escritos que reclamassem a sua
autoridade (ou confiança, “fé”). Mas, como vimos, a distinção “público”-“privado”
continuava a ser atormentada e as suas consequências institucionais eram pouco
relevantes (v. cap. 2.3.1). O caráter público das questões podia dar origem a um
foro especial (v.g. “Juízes dos feitos da Coroa e da Fazenda”), mas os trâmites
processuais do julgamento eram os do processo comum, sem que a preeminência
do titular “público” originasse privilégios na organização e marcha do processo (v.
cap. 7.1.12). Por outro lado, como repúblicas havia muitas e de vários níveis, o
“público” escalonava-se em sucessivos âmbitos, não podendo os âmbitos mais
vastos anularem a especificidade dos interesses comuns dos âmbitos inferiores (v.
cap. 2.4.1). Em suma, a construção jurídica da super-eminência política (“maioria”,
majestas) não se libertou das vinculações políticas particularistas que vinham de trás.
§ 2468. O direito penal é, porventura, um dos bons pontos de observação deste
sistema de regular sem creditar ao centro a plenitude do poder. Apesar do caráter
enfático com que se afirma a lei e o natureza real do poder de punir, continua a ser
comum a ideia de que a fonte dos delitos é a natureza e não a vontade do rei (v.
cap.8.1.1) e de que, no coração do rei (e do juiz), a vontade de disciplinar competia
com a misericórdia. Por isso, o processo penal era muito permissivo em relação aos
acusados (v. caps. 8.1.6.1, 8.1.6.4.5) e a punição tendia a ser muito leniente (v. cap.
8.3).
§ 2469. Noutros espaços de comunicação jurídico-doutrinal, este modelo
corporativo de descrever o mundo político também existia. Mas terá sido possível
adaptá-lo a corpos sociais de natureza diferente, como sociedades, companhias e
repúblicas instituídas por pacto (respublica per contractum), com projetos sociais e
políticos mais dinâmicos e, sobretudo, com origem na vontade dos sócios e não na
natureza objetiva do mundo social. Neste contexto foi-se tornando mais fácil
relacionar este direito e prerrogativas dos corpos com a vontade dos sócios e
preparar, assim, um modelo individualista e voluntarista de sociedade. Nos nossos
juristas, em contrapartida, estas entidades jurisdicionais inferiores são corpos
naturais, constituídos pela força das coisas e não pela vontade das partes.
§ 2470. Alguns autores (Michel Villey, Wim Decock) têm notado como a
Escola peninsular de direito natural introduziu na discussão jurídica alguns temas
proto-individualistas, antecipando construções dogmáticas do jusracionalismo e da
pandectística. Isto teria acontecido com a valorização do papel constitutivo da
vontade, tanto no direito privado, como no direito público. Em todo o caso, o peso
de uma visão objetiva do direito (v. cap. 2.5.4.3), assente na estrutura objetiva do
mundo ou na capacidade geradora das fórmulas ou dos rituais (v. caps. 6.2 e 6.3),
continua a ser enorme. A família assentava sobre sentimentos e relações naturais (v.
caps. 3.2, 3.3.1.1). Os contratos tinham núcleos indisponíveis que a vontade não
podia alterar (v. cap. 6.9.1). A propriedade tinha conteúdos e usos objetivos (v. cap.
4.3.2.2), que limitavam os poderes de disposição e, frequentemente, faziam do
“proprietário” um mero administrador (como sucedia no caso dos morgados e
capelas, mas também no do donatário de bens da coroa, no do administrador de
686
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

bens eclesiásticos, no da enfiteuse ou dos bens dotais). A mesma limitação existia,


por outro lado, nos poderes do senhorio direto: o senhor era obrigado a renovar os
prazos (v. cap. 4.3.3.10); a mulher dotada quase não podia dispor dos bens dotais; a
Igreja não podia vender os bens eclesiásticos (v. cap. 4.2.2.1), o rei devia confirmar
as doações de bens da coroa (v. cap. 6.9.2.1.2). Era neste sentido que um jurista dos
finais do séc. XVI afirmava que todo o reino é um grande prazo (ou enfiteuse),
sendo do interesse da república que se mantivessem esses limites de disposição das
coisas, pois eles correspondiam a direitos e expetativas que era crucial respeitar (v.
cap. 4.3.3.10).
§ 2471. Esta imagem “solidarista” da sociedade também constituíu um
obstáculo de peso ao estabelecimento de uma versão individualista da sociedade.
Mesmo no séc. XIX, várias versões comunitaristas e solidaristas da cultura jurídica
(como o krausismo, o comtismo e outras correntes sociologistas) continuaram a
emperrar a disseminação dos novos modelos individualistas 4324.
§ 2472. Ainda hoje há quem caraterize as sociedades do Sul da Europa como
corporativas, solidaristas (amiguistas), casuístas e falhas de rigor. É uma tentação
relacionar isto com um modelo de direito que as educou durante séculos e à
sombra do qual se terão estabelecido padrões de cálculo social e arranjos políticos
muito duradouros. Se assim for, analisar este direito comum “de sabor latino” é
estudar camadas arqueológicas da nossa vida comum ainda hoje

4324 Cf. António Manuel Hespanha, Cultura jurídica europeia […], cit..

687
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688
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10 Bibliografia citada.

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714
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

11 Índices
Indice temático

Abade, 143, 283 Actio confessoria servitutis, 565


Abandono, 350 406 Actio quanti minori, 511, 513
Aborto, 649 Actio damni iniuria dati, 547 Actio quanti minoris, 562
Absolutismo, 210 Actio de in rem verso, 561 Actio quanti minoris ou id
Açambarcamento, 644, Actio de mandato, 534 quod interest, 516
659 Actio de negotiis gestis, 543 Actio quasi serviana, 561
Ação (nome da), 583 Actio de partu agnoscendo, Actio quod iussum, 531, 534,
Ação confessória (de 563 544, 550, 561, 567
servidão), 565 Actio de pascu, 552 Actio quod metus causa, 562
Ação de alimentos, 294 Actio de pauperie, 552, 563, Actio redhibitoria, 516, 562
Ação de dote, 294 611 Actio Serviana hypothecaria (e
Ação de esbulho, 569 Actio de peculio, 561 pignoratitia), 561
Ação de petição da Actio depositi, 505, 562 Actio spolii, 358
herança, 565 Actio directa, 559 Actio utilis, 559
Ação de rescisão por lesão, Actio empti, 516 Actio vectigalis, 389
562 Actio empti e actio venditi, Actiones (praetoriae)
Ação hipotecária, 536, 565 510 praeiudiciales, 562
Ação negatória (de Actio ex contractu, 566 Actiones bonae fidei, 562
servidão), 565 Actio ex dolo, 562 Actiones de in rem verso, 544
Ação pauliana, 564 Actio ex empto, 562 Actiones ex lege Aquilia, 666
Ação rescisória, 564 Actio ex lege Aquilia, 552 Actiones in factum conceptae,
Acareação, 624 Actio ex pacto, 566 557, 568
Acaso (casus), 611 Actio ex vendito, 562 Actiones in factum conceptae
Acessão industrial, 364 Actio exercitoria, 561 ou actiones praescriptis verbis,
Acessão natural, 363 Actio exercitoria ou actio 568
Achado, 350 instituria, 544 Actiones legis. Consulte Legis
Ações, 308 Actio familiae erciscundae, actiones
Ações (classificação), 560 283, 561 Actiones poenales, 547
Ações (classificações), 558 Actio finium regundorum, 561 Actiones praescriptis verbis,
Ações (nomes das), 557 Actio furt, 361 557, 567
Ações civis (actiones legis) Actio furti, 505, 534, 667 Actiones praetoriae, 556
pessoais, reais e mistas, Actio furti (furtiva), 561 Actiones tutellae, 562
561 Actio hypothecaria, 539 Actus legitimi, 480
Ações de liberdade, 563 Actio iniuriarum, 547, 563, Acusação, 621
Ações e obrigações, 557 646, 666 Acusatório, 573
Ações mistas, 568 Actio institutoria, exercitoria, Addictio in diem, 514, 541
Ações pessoais, 566 561 Adipiscendae hereditatis, 562
Ações pessoais e ações Actio legis Aquiliae, 547 Administração ativa, 69
reais, 309 Actio Legis Aquiliae, 563 Administração central ou
Ações prejudicais, 563 Actio locati, conducti, 562 palatina, 81
Ações reais, 563 Actio mandati, 562 Administração dos bens
Ações sumárias, 571 Actio mutui, 500, 562 próprios da coroa, 80
Actio. Consulte Ação, ações Actio negotiorum gestorum, Administração militar, 80
Actio ad exhibendum, 562, 562 Administradores (de
566 Actio noxalis, 552, 563 morgado), 437, 452
Actio adjectitiae qualitatis, Actio Pauliana, 561 Adoção, 274
561 Actio petitionis hereditatis, Adrogação, 433
Actio chirografica, 558 562 Adulteração de coisas, 658
Actio Clavisiana e Fabiana, Actio pigneraticia ou Adultério, 267, 639
561 hypothecaria, 535 Adultério (como cuasa de
Actio comissi, 390 Actio praescriptis verbis, 508, separação), 268
Actio commodati, 562 517 Advogados, 241, 506, 579
Actio communi dividundi, 561 Actio pro dote, 562 Advogados letrados, 179
Actio confessoria ou negatoria, Actio pro socio, 562 Aerarium e fiscum, 99
561 Actio publiciana, 378, 509, Aes alienum, 425

715
Erro! Use a guia Página Inicial para aplicar Cabeçalho 1 ao texto que deverá aparecer aqui.

Afinidade, 267 Aristocratização, 439 Brocardos, 12


Agnados, 441 Armas, 644 Bula da Ceia, 131, 148, 654
Agnados e cognados, 430 Arras, 300 Bula da Cruzada, 130, 579,
Agravo ordinário, 162 Arrependimento 617
Agravo por petição ou (poenitentia), 669 Bula in coena Domini.
instrumento, 602 Arresto, 581 Consulte Bula da Ceia
Agravos, 553, 602, 625 Articulados, 583, 585 Bulas papais de divisão do
Agravos ordinários, 602 Ascendentes, 434 mundo, 163
Ajuda do braço secular, Assassínio, 649 Cabeça de casal, 456
137 Assessor, 594 Cabido, 138
Alçada, 600 Assignação de 10 dias, Caça, 361
Alcaides mores dos 428, 571 Caducidade (da enfiteuse),
castelos, 58, 249 Assistentes, 580 390
Aldeias índias, 225 Assuadas, 645 Câmara ou curia episcopal,
Alegações, 624 Autor, 572 136
Aleivosia, 643 Azenhas e moinhos, 333 Câmbio, 503
Alfândegas, 79 Bacharelismo, 555 Canonica portio, 322
Alfândegas e portos secos, Banditismo, 644, 645, 671 Capacidade processual
336 Banhos ou Proclamas, 267 ativa, 572
Alfinetes, 302 Batismo, 118, 225 Capacidade processual
Alma, 420 Bebedeira, 549, 609, 650 passiva, 573
Alma (personificação da), Bêbedos, 259 Capela-mor real, 129, 578
207 Beneficiados (seleção), 326 Capelas, 347, 436, 454
Almotacés, 404 Benefício da excussão, 532 Capelas de D. Afonso V,,
Almoxarifes, 78, 344, 347 Benefício de inventário, 455
Alódio, 344 427 Capitães, 346
Alternativa, 134 Benefícios, 133, 322 Capitão dos Índios, 225
Aluvião, 363 Benefícios (venda de), 327 Caráter pessoal das
Âmbito, 664 Beneplácito régio, 131 obrigações, 477
Anatas, 336 Benesses, 141 Carrasco, 630
Animais (personificação), Benfeitorias (enfiteuse), Carta testemunhável, 601
208 389 Carta tuitiva, 358
Animais domesticáveis, Bens alodiais, 335 Cartas de expectativas, 325
361 Bens da coroa, 100, 339 Cartas de fiança, 677
Animais domésticos, 361 Bens da coroa (do reino), Cartas de seguro (ou cartas
Animais selvagens, 350 335, 340 tuitivas), 553
Animus iniuriandi, 647 Bens da coroa Cartas de seguro (ou cartas
Animus possidendi, 353 (iluminismo), 100 tuitivas), 620
Aniversários, 140 Bens de avoenga, 510 Cartas de seguro
Annonnae, 322 Bens do rei, 335 (securitatis ou
Ano do morto, 136 Bens do rei (patrimoniais), assecurationis litterae), 678
Ano e dia, 569 343 Cartas tuitivas, 358
Anticrese, 541 Bens dos concelhos, 349 Casa da Índia e da Mina,
Apanágio, 302 Bens eclesiásticos, 322 336
Aparelho administrativo Bens esponsalícios, 302 Casa da Índia e da Mina,
(Portugal, séc. XVII), 199 Bens parafernais, 293, 298 145
Apelações, 600, 626 Bens vagos ou desertos, Casa da Suplicação, 85
Apelações (para os 337 Casa do Cível, 85, 602
senhores), 106 Bibliotecas de juristas, 10 Casa dos Catecúmenos, 225
Apostas, 530 Bimester, 270 Casa e Igreja, 283
Aquisição derivada, 367 Bispos, 135, 425, 576 Casa e república, 282
Arbítrio judicial (na Blasfémia, 635 Casa Real, 82
criação de ações), 560 Boa fé (bona fides) na Casamento, 264
Arbitrium, 376 prescrição, 369 Casamento (finalidades),
Árbitros, 580 Bombardeiros, 242 270
Arbor iurisdictionum, 37 Bonorum possessio contra Casamento (liberdade),
Arcas das [obras] pias, 244 tabulas, 423 276
Arcedíagos, 136, 137 Brasil, 23, 215, 219, 222, Casamento (uso honesto
Arciprestes, 136 230, 252, 347, 348, 401, do), 271
Áreas de governo (da 504, 555, 602 Casamento por "palavras
coroa), 63 Brasões, 658 de futuro", 269
716
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Casamento por “palavras Coisas corpóreas, 351 59


de presente”, 269 Coisas de ninguém (res Concelhos (jurisdição), 53
Caso (casus). Consulte Acaso nullius), 350 Concílio de Constância
Caso fortuito, 549 Coisas de uso comum, 348 (1414 e 1418), 163
Caso fortuito (renúncia a), Coisas dos infiéis, 351 Concubina, 493
476 Coisas e utilidades, 314 Concubinato, 640
Caso julgado ou coisa Coisas eclesiásticas, 320 Concurso (provimento de
julgada, 595 Coisas em espécie, 352 benefícios), 326
Castelos, 439 Coisas em mão comum, Concurso de credores,
Catecumenato, 225 351 539, 597
Categorias obsoletas, 569 Coisas genéricas, 352 Condenação, 625
Categorias obsoletas, 563 Coisas hereditárias, 351 Condes, 240
Cativos, 435 Coisas imóveis, 351 Condição (conditio), 479
Causa de pedir, 583 Coisas incorpóreas, 351 Condictio, 561, 567
Cautio Muciana, 479 Coisas indivisíveis, 457 Condictio furtiva, 667
Cavaleiros das ordens Coisas litigiosas, 351 Condictio indebiti, 491, 500
militares, 240 Coisas públicas, 333 Condictio indebitii, 567
Cavaleiros das ordens Coisas religiosas, 320, 321 Condictio mutui, 500
militares, 242 Coisas sagradas, 320 Conditio ex lege, 567
Cavaleiros das ordens Coisas santas, 320, 321 Cónegos, 137
militares, 617 Colação, 324, 434 Cónegos regulares, 137
Cavaleiros de ordens Colação (de ofício), 133 Conezia, 133, 325
(sucessão nos morgados), Colecta (ou procuração), Conezias (ou canonicatos),
443 136 137
Cemitérios, 320 Colegiadas, 138 Confisco, 403
Censo, 397 Colégios, 435 Confissão, 124, 592, 623
Chanceler-Mor do Reino, Colheita futura (venda de), Confusão, 366, 481
156 530 Côngrua, 139
Chanceler-Mor do Reino, Collector. Consulte Tribunal Cônjuges (como
161 da Legacia herdeiros), 435
Chicana, 555 Colonia, 372, 381 Conquista, 362
Cidadania, 224 Colonia (Madeira), 400 Conquistas, 41, 223
Cidadãos, 223 Colonia simples, 381 Conselho da Fazenda, 87
Cidades, 51 Colono, 381 Conselho da Índia, 90
Citação, 580, 621 Comarca, 51 Conselho de Estado, 83
Citação da alma, 581 Comenda, 135, 330 Conselho de Guerra, 91
Clausula depositaria, 506 Comerciantes, 502, 533 Conselho de Portugal, 84
Cláusulas, 12 Comerciantes (contratos Conselho Geral do Santo
Cláusulas acessórias, 478 de), 502 Ofício, 91
Clemência, 677 Comissão, 174 Conselho Ultramarino, 90
Clérigos, 126 Comisso, 380, 387, 390, Consensualismo, 462, 466,
Clérigos (capacidade 399 467, 510, 515
testamentária), 418 Comissões (comissiones, Conservador da
Clérigos (e leigos), 120 curationes), 174 Universidade, 617
Clérigos (fianças), 533 Comodato, 498 Conservadores das Nações
Clérigos (sucessão dos Compensação, 481 Estrangeiras, 617
morgados), 442 Competência (do foro), Constituto possessorio, 353,
Clérigos regulares (na 574 516
sucessão dos morgados), Compra e venda (emptio Constitutum, 486
442 venditio), 509 Constitutum. Actio pecunia
Coadjutores, 139 Compra e venda de coisa constituta, 561
Code civil (propriedade), futura, 530 Consulado, 80
317 Compromissum, 324, 580 Consulado marítimo, 336
Codicilo, 415 Compropriedade (e Contadores, 56, 78
Coercitio e iurisdictio, 605 sociedade), 524 Contestação da lide, 622
Cognados, 281, 445, 446 Comunhão de bens, 284 Contestação da lide, 584
Coisas, 307 Comunidades (perfeitas e Contexto textual ou
Coisas (espécies de), 319 imperfeitas), 157 intertexto, 18
Coisas abandonadas, 350 Comunidades (perfeitas e Contextualização, 18
Coisas comuns, 346 imperfeitas), 51 Continuidade, 6
Coisas comuns de todos, Concelhos, 157 Contradita, 622
332 Concelhos (autogoverno), Contradita (de

717
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testemunhas), 589 Danos (enfiteuta), 389 147


Contrato, 264 Danos (herdeiro), 426 Direito catedrático (ou
Contrato de trabalho. Danos (locatário), 519 ceras), 136
Consulte Locação de Danos (mandatário), 507 Direito civil, 147, 152
serviços Danos (penhor), 541 Direito comum, 154
Contratos, 485 Danos (por vícios ocultos), Direito comum e direito
Contratos (natureza e 518 próprio, 145, 153
substância), 487 Danos (possuidor), 357 Direito comum tardio, 8
Contratos aleatórios, 527 Danos (tutor), 257, 304 Direito das gentes, 151
Contratos beneficiais, 488 Danos emergentes, 548, Direito de acrescer, 424,
Contratos de boa fé, 486 551 428
Contratos de direito Datio e donatio, 490 Direito de asilo, 131
estrito, 471, 486 De ciência certa e poder Direito de pasto (pascua),
Contratos gratuitos, 498 absoluto, 498 409
Contratos nominados e Deão, 137 Direito de prelação, 390
inominados, 485 Débito conjugal, 217, 270 Direito de regresso, 532
Contratos promessas, 486 Décima, 133 Direito de representação,
Contubernium, 431 Décimas eclesiásticas. 433, 439, 447
Convicção do juiz, 588 Consulte Dízimos Direito de representação
Corpo, 651 Décimas velhas do (nos morgados), 448
Corpo de delito, 619 pescado, 337 Direito divino, 148
Corporativismo, 681 Declinatio fori, 585 Direito divino (noção e
Corpus literário (do ius Defesa do réu, 624 espécies), 147
commune), 9 Definição, 15 Direito do reino mais
Corpus possessionis, 352 Defunto, 207 próximo, 156
Corregedor, 73 Degredo, 673 Direito dos rústicos, 13,
Corregedores, 60 Degredo e desterro, 630 Consulte Rústicos, Iura
Correição (concessão da), Delictum, 546 rusticorum
106 Delito (delictum), 606 Direito e fé, 163, 681
Corrupção, 493 Dementes, 443, 621 Direito eclesiástico.
Costume, 158 Denegação da justiça, 661 Consulte Direito canónico
Costume e lei, 159 Denegatio iustitiae, 129 Direito estrangeiro, 448
Costume imemorial, 348 Denúncia, 619 Direito natural, 149
Costumes gerais, 155 Depósito, 505 Direito natural (dispensa
Costumes locais (e lei), 228 Desaforo, 173 do), 150
Cota, 331 Desamortização, 384 Direito natural (e direito
Crescimento. Consulte Desamortização (leis de), comum), 169
Juros, Usuras 140 Direito positivo, 149, 151
Criados, 220, 282 Descendentes (sucessão Direito processual
Crimes contra o dos), 431 (princípios gerais), 557
património, 665 Desconhecimento Direito processual como
Crimes de falso, 652 (nescientia), 469 direito adjetivo, 308
Crimes dos oficiais, 659 Descrição densa, 16 Direito processual pátrio
critério do pecado, 127 Desembargadores, 242, (especificidades), 553
Critério do pecado, 369, 616 Direito próprio, 154
640 Desembargo do Paço, 85 Direito público
Cruzada, 163 Deserdação, 277, 421, 422 (modernidade), 49
Culpa, 547 Desnaturalização (degredo, Direito público e direito
Culpa (direito penal), 610 amissio civitatis), 629 privado, 44
Culpa (homicídio), 650 Despedimento, 523 Direito subsidiário, 156
Curado, 139 Despejo, 519 Direitos (tutela dos), 161
Curatela, 305 Detenção (mera), 353, 356 Direitos “de foral”, 374
Custas, 625 Devassa, 581 Direitos reais (do rei), 97
Damnum infectum, 666 Devassa (inquisitio), 618 Direitos reais (do rei), 335
Damnum iniuria datum, 546 Devassas, 554 Disciplina, 69
Dano, 546, 665 Diffamatio, 445 Discurso jurídico
Dano (ações), 552 Dignidade, 133 moderno, 16
Dano (avaliação), 551 Dignidade (dignitas), 325 Dispensa (da lei), 161
Dano (civil, definição), 548 Direito (localismo), 555 Distribuidores, 56, 590
Dano (damnum), 666 Direito à esmola, 244 Divórcio. Consulte
Danos (criados), 523 Direito canónico, 123, 127, Separação
718
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Dízima nova do pescado, Entradas e saídas, 42, 376 Exceções, 584


336 Envenenamento, 649 Exceptio plurium, 275
Dízimos, 140 Equidade, 393, 677 Excomunhão, 501
Doação, 17, 489 Equidade bartolina, 392, Execução, 596
Doação (causa), 492 396 Execução da pena, 628
Doação para casamento, Erário régio, 89 Execuções fiscais, 597
300 Erro, 265, 468 Exempti nullius diocesis, 135,
Doação pura ou simples, Erro (doações), 491 136
490 Erro na sentença (julgar Expansão (recurso à
Doações de bens da coroa, mal), 661 violência), 168
496 Esbulho ou espólio, 358 Expropriação, 376, 510
Doações entre cônjuges, Escrava, 289 Extinção (do processo
301 Escravas (partos das), 501 penal), 628
Doações inoficiosas, 494 Escravatura, 151, 152 Extorsão (ou concussão),
Documentos, 590, 623 Escravidão. Consulte 663
Doentes, 261 Escravos, Escravatura, Extra ordinem (ou
Doidos, 258 Escravização extraordinaria) cognitio, 605
Dolo, 472, 542, 547 Escravidão como pena, Extremas dos prédios, 658
Dolo (direito penal), 609 211 Fábrica da Igreja, 322
Dolus malus, 606 Escravização no Brasil, Falência, 617, 659
Domínio, 377 214 Falidos, 262
Domínio (aquisição), 360 Escravização, legitimidade Falsificação de
Domínio (caducidade), da, 167 documentos públicos, 654
360 Escravo da pena, 211 Falsificação de medidas ou
Domínio (limitações), 376, Escravos, 311, 363 de pesos, 657
377 Escravos (preço justo), Falsificação de moeda, 656
Domínio (multiplicidade), 214 Familiares do Santo
313 Escrita (e oralidade), 583 Ofício, 579, 617
Domínio e Graça, 315 Escritura, 387 Fateusim, 384
Domínio eminente, 314 Escritura pública, 540 Fazenda, 87
Dominium directum, 377 Escrivães, 56 Feitiçaria, 636
Dominium eminens, 377 Escrivão da puridade, 83 Feitor, 79
Dominium utile, 377 Escudeiros, 241 Feridas, 649
Domnium iurisdictionis, 377 Espaço e poder, 50 Feudalismo, 92, 110
Donatários da coroa, 103, Espólio, 355, 375, 435, 438 Feudos, 94, 380
Consulte Senhorios Esponsais, 269 Feudos (direito dos), 94
Dote, 293 Estado (acções de), 563 Fiadores judiciais, 535
Doutrina e lei, 11 Estado (status), 203 Fiança, 530
Ecclesia triumphans e militans, Estado de direitos Fiança (processo criminal),
117 (Rechtsbewährungsstaat), 310 620
Eclesiásticos, 616 Estado do meio, 239 Ficções discursivas, 19
Emancipação, 278 Estatuto e lei, 156 Fidalgos (de solar, de cota
Embargos, 162, 625 Estatutos, 154 de armas), 240
Emolumentos, 590 Estatutos (das cidades), 52 Fidalgos da casa real, 242
Empréstimo náutico (foenus Estelionato, 658 Fideicomissos, 428, 429,
nauticus), 528 Estilos, 156, 160 436
Encomienda, 331 Estirpes, 433 Fideiussio, 531
Enfatiota, 384 Estrangeiros, 223, 229, 617 Filhos, 274
Enfiteuse, 378 Estrangeiros (foro Filhos (capacidade
Enfiteuse (e locação de privilegiado), 145 patrimonial), 285
longo tempo), 517 Estrangeiros foederati, 229 Filhos (dever de
Enfiteuse (renovação), 390 Estupro, 641 obediência), 276
Enfiteuse de nomeação, Europa “católica”, 681 Filhos (deveres dos pais),
385 Europa “latina”, 681 275
Enfiteuse eclesiástica, 331, Europa do Sul, 9 Filhos (igualdade), 280
383, 386 Evicção, 511, 515, 546 Filhos adotivos, 433
Enfiteuse familiar, 385 Evictio, 562 Filhos de “de coito
Enfiteuse hereditária, 385 Ex certa scientia, 497 danado”, 432
Enriquecimento à custa Ex officio, motu proprio, 175 Filhos espúrios, 386, 432
alheia, 548 Exceção dilatória, 584, 585 Filhos ilegítimos ou
Enriquecimento sem Exceção perentória, 584, naturais, 431
causa, 546 585 Filhos incestuosos, 386

719
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Filhos legitimados, 431 Guerra justa, 164, 166, 210 Infanções, 240
Filhos legítimos, 385 Guerras nativas, 213 Infantes, 254
Filhos legítimos (sucessão Haeredes extranei, 425 Ingratidão, 567
dos), 431 Haeredes sui, 425 Ingratidão (dos filhos), 421
Filhos naturais (sucessão Haeredes sui et necessarii, 430 Inimigos (hostes), 229
nos morgados), 443 Herança, 404, 425, 569 Injúria (e fiança), 535
Filhos póstumos, 431 Herança jacente, 306, 361 Injúrias, 646
Fisco, 598 Herdades (do rei), 337 Inoficioso (legado,
Fisco (como herdeiro), 435 Herdeiro (instituição de), doação), 459
Fontes de direito, 145 413, 420 Inquirição "aos costumes",
Força maior, 549 Herdeiro (obrigações do), 590
Força maior (damnum 544 Inquirição "de costumes",
fatale), 665 Herdeiros forçosos, 430 590
Força nova. Consulte Herdeiros forçosos, 427 Inquiridores, 56, 590
Esbulho, ação de esbulho Herdeiros forçosos, 433 Insinuação das doações,
Formalidades das Herdeiros forçosos, 458 491
obrigações, 477 Heresia, 501, 631 Insinuação das doações,
Fornos, 337 Hereus (hereo), 420 301
Foro competente, 574 Hesitação (titubatio), 469 Instituições indígenas,
Foro eclesiástico, 128, 576 Homenagem, 620 legitimidade das, 165
Foro misto, 129, 502, 576 Homicídio, 648 Institutiones, 6, 15
Foros do Algarve, 400 Honras (indivisibilidade), Institutiones Iustiniani
Fraterna (charitativa) 439 (sistematização), 461
compositio, correctio, 131 Hospital de Todos os Intentio fundata, 133
Fraude, 473 Santos, 145 Intercessio, 533
Fraude dos credores, 219, Id quod interest, 508 Interdição de água e fogo,
493, 494, 515 Idade núbil, 265 649
Freguesia, 139 Idolatria, 164 Interdição de uso da água
Frutos, 363 Ignorância, 468, 482 e do fogo, 664
Frutos extantes e Ignorância (de facto e de Interdicta, 310
pendentes, 512 direito), 545 Interdicta recuperandae
Fuga, 650 Ignorância da lei, 155 possessionis, 568
Funcionários (dos Igreja, 117 Interdicta retinendae
concelhos), 55 Igreja (conceito de), 118 possessionis, 568
Fundata intentio, 324 Igreja (direitos da), 148 Interdictum. Consulte
Fundus instructus, 512 Igualdade (dos côjuges), Interdito, interditos
Funerais, 320 272 Interdictum adipisciendae
Furto, 665, 667 Ilicitude, 607 possessionis, 569
Furto de uso, 498, 505 Iluminismo, 6, 168, 560, Interdito unde vi, 568
Furto violento (roubo, 575, 621, 630, 637, 640, Interdito uti possidetis, 568
rapina), 667 644, 652, 676 Interditos, 568
Garantia correal, 534 Impedimentos, 265 Interditos possessórios,
Garantia das obrigações, Imperícia (do juiz), 661 162, 358, 407, 568
530 Império (graus), 38 Interlocutária. Consulte
Generosidade, 490 Império (moderno), 40 Sentença interlocutória
Gestão de negócios, 543 Império português, 41 Interlocutória, 600,
Governador, 223 Imperium, 38, 40 Consulte Sentença
Governo dos não Imperium e Império, 40 interlocutória
europeus, 165 Ímpeto (impetus), 609 Interlocutória mera, 602
Governo económico, 62, Impúberes, 621 Interpretação
67 Imputabilidade (penal), (testamento), 423
Governo político, 68 608 Interpretação textual, 170
Graça, 66, 118, 394, 501, In diem addictio, 481 Interpretação usual, 170,
677 In nexum dare, 547 171
Grandes, 242 Incitamento, 650 Inventário, 427, 456
Gratidão, 464 Incorporação (nos bens da Ira, 609, 647
Gratidão (dever de), 275 coroa), 99 Irregularidades canónicas,
Graus (de parentesco), 445 Indissolubilidade, 264 121
Graus (de parentesco), 435 Individualismo, 439 Isentos, 136
Guerra (como título de Indivídualismo, 681 Iudicium, 42, 65
escravização), 210 Indivisibilidade, 341 Iura ad rem, 352
720
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Iura rusticorum, 226, Consulte Jusracionalismo, 462, 471, longuíssimo tempo, 371
Rústicos 560 Lotarias, 530
Iurisdictio, 21 Jusracionalistas, 510 Louvados ou avaliadores,
iurisdictio ecclesiastica Justiça, 63 457
adventicia, 129 Justiça (centralidade da), Lucro, 502
iurisdictio ecclesiastica 35 Lucros cessantes, 548, 551
essentialis, 128 Justiça e poder político, 35 Lutuosa, 143, 435
Ius ad rem, 309 Justo preço, 513 Lutuosas, 140
Ius in re, 309 Laudémio, 379, 388, 390 Magistrados (deontologia),
Ius publicum (alcance), 47 Legados, 427 660
Jogo, 305 Legados pios, 411, 416 Magistrados e oficiais (dos
Jogo (contrato de), 528 Legis actiones, 556 concelhos), 53
Judeus, 211 Legítima, 433 Magistraturas ordinárias e
Jugadas, 79, 337, 343 Legítima defesa, 648 delegadas, 198
Jugadas (isenções), 343 Lei, 155 Maiores, 258
Jugadas (livros de), 343 Lei (Santo Isidoro de Malefício, 543
Juiz (Officium mercenarium), Sevilha), 152 Mamposteiros dos cativos,
573 Lei declaratória, 451 211
Juiz (officium nobile), 573 Lei Mental, 94, 248, 341, Mancipatio, 509
Juiz (poder discricionário), Consulte Senhorios Mandato, 506
555 Lesa-majestade, 387, 642 Manumissão (e
Juiz competente, 573 Lesão, 513 naturalidade), 225
Juiz das Três Ordens Lesão enorme, 400, 474, Manumissão tácita, 210
Militares, 578 478 Marca de ferro quente, 676
Juiz dos feitos da coroa da Lesão enorme (sociedade), Margens, 333
Casa da Suplicaçâo, 136 525 Masculinidade, 108, 110,
Juiz dos órfãos, 427 Letra de câmbio. Consulte 441
Juízes (corrupção), 181 Câmbio Masculinidade (morgados),
Juízes (dos concelhos), 55 Letras de câmbio, 591 446
Juízes de fora, 61, 62, 71 Lex Aquilia de damnis, 610 Massa falida, 306
Juízes delegados, 574 Lex commissoria, 481 Matos maninhos, 337
Juízes ordinários, 59, 573 Lex Rhodia de jactu, 544 Matrimónio. Consulte
Juízo, 570 Lezírias e pauis, 80 Casamento
Juízo (ordem de), 580 Libella famosa (escritos Matrimonium ratum et
Julgamento contra direito, difamatórios), 647 consumatum, 268
661 Libelo (processo criminal), Maus tratos (como causa
Juntas, 68 621 de separação), 268
Juramento, 393, 464, 500, Libelo ou petição inicial, Meação ou dimidia, 400
591, 655 583 Mecânicos, 242
Juramento de calúnia, 619 Liberal, 490 Médico (responsabilidade),
Jurisdição (avocação), 574 Liberalidade, 464 649, 650
Jurisdição (conceito), 36 Liberdade, 150 Médicos, 241
Jurisdição (graus), 39 Liberto, 219 Meia anata, 327
Jurisdição (senhorial), 96, Libertos, 215 Meninos (pueri impuberes),
107 Linha, 445 254
Jurisdição (teoria da), 35 Linha transversal, 439 Menores, 286, 609
Jurisdição Linhagem, 110, 236 Menores (capacidade
compromissória, 580 Linhas familiares, 281 jurídica), 256
Jurisdição delegada, 44, Linhas paterna e materna, Menores (crianças), 252
174, 198 434 Menores (responsabilidade
Jurisdição dos concelhos, Litem suam facere, 659 penal), 257
53 Livros de contas, 591 Menoridade, 265
Jurisdição intermédia, 601 Livros jurídicos, 9, 12 Mesa da Consciência e
Jurisdição ordinária, 43 Locação, 381, 517 Ordens, 89, 130
Jurisdição ordinária e Locação (e parceira, Mesas de justiça, 136
delegada, 43 sociedade), 517 Ministerium, 175, 325
Jurisdição prorrogada, 574 Locação de obras ou Miseráveis, 243
Jurisdição voluntária, 131 serviços, 521 Misericórdia de Lisboa,
Jurisdictio quasi delegata, Locação de serviços, locatio 145
580 conductio operarum, 518 Missionação, 166
Juristas (poder social), 553 Locupletamento à custa Mistura (commixtio), 366
Juros, 399, 501 alheia, 546 Mitra, 136

721
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Modelo corporativo, 20 Obligatio naturalis, 286 os), 180


Modica coertio, 37 Obradas, 141 Ofícios (provimento), 185
Moedeiros, 242, 617 Obras pias, 143 Ofícios (regime jurídico),
Moendas e azenhas, 337 Obrepção, 162 183
Monges, 143 Obreptio, 472 Ofícios (renúncia), 195
Montados, 81 Obrigações (conceito Ofícios (transmissão), 189
Mora, 482, 669 objetivista), 463 Ofícios (venalidade), 191
Morgado (poderes do Obrigações (conceito), 461 Ofícios da fazenda, 78
possuidor), 453 Obrigações (espécies), 466 Ofícios honorários, 54
Morgados, 132, 347, 436 Obrigações (extinção), 481 Ofícios manuais ou
Morgados (autorização Obrigações (fontes das), obedenciais, 323
réegia), 439 542 Ofícios municipais
Morgados (bens de), 440 Obrigações (fontes), 462 (provimento), 59
Morgados (ordem Obrigações (fundamentos Ofícios naturais ou
sucessória), 444 "objetivos"), 466 honorários, 174
Morgados de eleição, 447 Obrigações (teoria geral Ónus da prova. Consulte
Morgados e bens da coroa, das), 466 Prova
451 Obrigações antidorais ou Operis novi nuntiatio, 569
Morgados jurisdicionais, remuneratórias, 465 Opinião comum, 662
443 Obrigações e ações, 461 Opinio iuris, 160
Morte com arma de Obrigações meramente Ordem, 205
arremeço, 649 civis, 465 Ordem (sacramento), 121
Morte natural (e morte Obrigações naturais, 463, Ordem expositiva, 14
civil), 278 531 Ordem Militar de S. João
Mortulhas, 140 Obrigações naturais e de Jerusalém, 579
Motu proprio, 497 civis, 466 Ordem sistemática, 461
Mouros de pazes, 211 Obséquio, 285 Ordenação (como
Mulher, 246, 303 Obséquios, 275 impedimento
Mulher (incapacidade), 491 Ocupação, 361 matrimonial), 266
Mulheres, 17, 533 Oeconomia, 282 Ordenanças, 58
Muros das cidades, 320, Ofensas corporais, 651 Ordens mendicantes
321 Ofertas de mão beijada, (propriedade), 315
Mútuo (e locação de coisa 142 Ordens Militares, 578
consumível), 517 Officium mercenarium, 175, Ordens militares (foro),
Mútuo oneroso. Consulte 573 129
Usura Officium mercenarium(do Órfãos, 221, 302
Nascituro, 207, 306 juiz), 37 Órfãos (ofícios dos), 57
Natura contractus, 487 Officium nobile, 175, 573 Pacta sunt servanda, 486
Naturais, 222 Officium nobile(do juiz), 37 Pacto, 465, 483
Naturalidade, 222 Oficiais (crimes de ofício), Pacto acerca de herança de
Naturalismo, 681 182 pessoa viva, 419
Naufrágios, 362 Oficiais (crimes), 659 Pacto constitutum, 514
Negligência (do juiz), 661 Oficiais de saúde, 617 Pacto de protimense (de
Negócio fiduciário, 505 Oficiais militares, 58 prelação), 514
Nobreza (categorias), 239 Oficio, 133 Pacto de quota litis, 478
Nobreza dativa e Ofício (conceito), 172 Pacto de retrovendendo, 513
generativa, 235 Ofício (traços dogmáticos Pacto e contrato, 483, 485
Nobreza materna, 237 essenciais), 177 Pacto nu, 485
Nomes falsos, 658 Ofícios (criação de), 183 Pacto vestido, 485
Nomina debitorum, 541 Ofícios (deveres e paga), Pacto vestido e pacto nu,
Non bis in idem, 612 180 484
Notários, 241, Consulte Ofícios (dignidade dos), Pactos sucessórios, 419
Tabeliães 177 Pactum commisorium, 541
Novação, 481 Ofícios (dignidade e Pactum de non petendo, 481
Nulidade, 161 mérito), 178 Padroado, 132, 134, 327
Nulidade (da sentença), Ofícios (extinção e Padroado (sucessão), 329
601 privação), 187 Padroado real, 326
Objeto da obrigação Ofícios (hereditariedade), Padroado régio, 135
(possibilidade e licitude), 190 Pagamento, 481
478 Ofícios (hierarquia), 195 Pagamento indevido, 482
Oblatas, 139, 141 Ofícios (pertinência para Pagus ou villa, 50
722
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Pai dos Cristãos, 225 Pobres, 221, 243 tempo, 371


Papa (poderes temporais), Pobres (viúvas), 408 Prescrição do costume,
164 Poder doméstico, 284 160
Papado, 120 Poder espiritual, 125 Prescrição extintiva do
Parentesco (como Polícia, 74 direito a intentar ações,
impedimento Políticos, 69 371
matrimonial), 266 Pombalismo, 61, 63, 70, Prescrição imemorial, 371
Parentesco (graus 169, 191, 277, 384, 438, Prescrição ordinária, 370
canónicos), 267 440, 445, 455 Presunções, 587
Pároco, 138 Porção, 138, 325, Consulte Preterição (de herdeiros),
Partilha, 455 Pensão 421
Partos simulados (ou Porção canónica, 143 Preter-intencionalidade,
supostos), 657 Porção funerária. Consulte 650
Partus sequitur ventrem, 209 Porção canónica Prevaricação, 662
Pastos comuns, 409 Portagens, 337 Prevenção, 576, 577, 617
Paterna paternis, materna Portio canonica, 435 Prevenção e alternativa,
maternis, 434 Portos, 333 129
Patria communis, 574 Posse, 309, 352, 568, 653 Prevenção, jurisdição
Pátria comum, 222 Posse (aquisição da), 353 preventa, 574
Patrono, 220 Posse (perda), 353 Primazias capitulares (ou
Patrono (como herdeiro), Posse (proteção provisória canónicas, canonicatos), 137
435 da), 355 Primogenitura, 108, 279,
Pecados públicos, 640 Posse (prova da), 356 341, 385, 439
Peculato, 664 Posse (responsabilidade do Princípio do indigenato,
Pecúlio (ações de), 544 possuidor), 357 227
Pecúlio (dos filhos), 285 Posse (transmissão da), Prisão, 620, 674
Peculio adventício, 286 354 Prisão do devedor, 597
Pecunia numerata, 505 Posse (valor económico Prisão perpétua, 657
Pedido, 583 da), 357 Prisão sem culpa formada,
Peitas e jantares, 337 Posse civil, 352, 353 620
Pena (criminal), 629 Posse de estado, 356, 653 Privilégio geral, 205
Pena capital, 617 Posse legítima, 371 Pro expressis, 497
Pena civil, 546 Posse natural, 352 Processo (e poder social e
Pena criminal e pena civil, Posse pacífica, 356 político), 555
607 Posse útil, 353 Processo (especificidades
Pena de morte, 674 Possuidor (de morgado). no direito português), 553
Penhor, 535 Consulte Administrador Processo criminal
Penhor judicial, 537 Postlimínio, 211, 418 ordinário, 621
Penhor legal, 537 Posturas, 52, 157, 158 Processo ordinário, 570,
Pensão, 133, 325, 327, 331, Praebendae, 322 571
397 Prazo ou emprazamento. Processo penal sumário,
Perdão, 481, 626, 677 Consulte Enfiteuse 628
Perdão (penal), 627 Prazo perentório, 585 Processo sumário, 571
Perdão de rendas, 481 Prazos (dilationes), 586 Procuradores do número,
Perguntas ao réu, 624 Prebenda, 138, 325 579
Periferias, 13 Precário, 504 Produto líquido, 400
Perjúrio, 655 Preço justo, 398 Professores e estudantes
Personalidade coletiva, 525 Pré-compreensões, 16 da Universidade, 617
Personatus, 133, 325 Pregação, 124 Propriedade, 376, 564
Personificação, 207 Presas (de guerra), 362 Propriedade (e liberdade),
Pesca, 333, 361 Prescrição, 357, 368, 481 316
Pescarias, 337 Prescrição (do costume), Propriedade (limitações à),
Pessoa, 204 160 404
Pessoa jurídica Prescrição (senhorios), 104 Propriedade (modelo
(sociedade), 525 Prescrição centenária, 371 “proprietário” ou
Pessoas coletivas, 208 Prescrição das servidões, individualismo
Pinhais, 81 370 possessivo), 318
Pintores, 241 Prescrição de breve Propriedade e fé, 360
Plebeu, 242 tempo, 371 Propriedade particular, 150
Plenitudo potestatis, 154, 196 Prescrição de direitos ou Propriedade perfeita, 316
Pluralidade, 7 bens do rei, 373 Propriedade privada, 152
Pluralismo, 36 Prescrição de longuíssimo Propriedade, conceção

723
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individualista, 317 Quota litis, 507 Responsabilidade (de


Próprios da coroa, 344 Rábulas, 13 vários), 550
Prorrogatio jurisdictionis, 585 Racionalismo, 168 Responsabilidade
Prostituição, 640 Rapazes (adolescentes, aquiliana, 610
Prostituta, 545 puberes), 255 Responsabilidade civil (de
Proteção régia (Regia Rapto, 267 oficiais), 550
protectio), 578 Ratio scripta, 170 Responsabilidade civil
Protocolos, 590 Razão de Estado, 69 objetiva, 547
Prova, 622 Real de água, 336 Responsabilidade conjunta
Prova (avaliação da), 590 Reconventio, 574 (sociedade), 526
Prova (avaliação da), 587 Recuperandae possessionis, 358 Responsabilidade objetiva,
Prova (ónus da). Consulte Recurso “de terceira 548
Prova instância”, 603 Respublica, 349
Prova do direito (ius novit Recursos, 599 Restitutio in integrum [ob
curia), 586 Recursos eclesiásticos, 577 aetatem], 256
Prova negativa ou Regalia, 334, 335, Consulte Retinendae possessionis, 358
diabólica, 587 Direitos reais (do rei) Revelia (contumacia), 581
Prova para memória, 586 Regalia maiora et minora, 336 Revista, 153, 602
Prova plena, 586 Regalismo, 127, 576, 578 Revista de graça especial,
Prova pleníssima, 592 Regedor da Justiça, 628 603
Provas, 586 Regia protectio, 131, 136 Revista de graça
Provas (publicação), 624 Regime dotal. Consulte especialíssima, 603
Provas semiplenas, 587 Dote Revista de justiça, 603
Provedor (episcopal), 577 Registo paroquial, 138 Revocatoria, 561
Provedor mor de Saúde, Registos públicos, 653 Ribeiras, 333
617 Regra, 15 Ricos-homens, 240
Provedores, 60, 75, 425 Reguengos, 132, 337, 343 Rios, 333
Província, 223 Regulamentação edilícia, Riqueza (e nobreza), 238
Províncias, 51, 223 376 Ritualismo (processo), 555
Provocação, 648 Rei (papel do), 677 Roubo, 645
Público, 305, 682 Rei (Título real), 42 Rústicos, 223, 226, 257
interesse, 393 Reino, 51, 157, 621 Rústicos (testamento), 414
Público (interesse), 393 Reino e província, 197 Rutura, 6
Público (ordem pública), Reivindicação, 564 Sacer, 649
478 Reivindicatio, 310, 561 Sacramentos, 118, 264
Público e privado, 314 Relação jurídica, 14 Sacrilégio, 635
Pueritia, 254 Relações eclesiásticas, 136, Salaio, 337
Punibilidade, 612 577 Salários, 221, 522
Quaestiones perpetuae, 605 Relapso, 632 Sanatusconsultumi
Quarta falcidia, 429 Relator, 595 Macedonianum, 532
Quarta Falcidia, 427 Religião (como fator de Secretarias de Estado, 83
Quarta ou terça episcopal, diferenciação do direito), Secretários (do rei), 83
141 681 Sedição, 644
Quarta trebellianica, 429 Remédios possessórios, Seguro (contrato de,
Quase contrato, 542 358 assecuratio), 527
Quase delitos, 546, 548, 551 Rendas régias (não Seguro ou segurança, 620
Quase propriedade, 565 consignadas), 337 Senatusconsulto
Quase usufruto, 407 Rendeiros da Fazenda, 617 Macedoniano, 500
Quasi contractus, 567 Renúncia, 476 Senatusconsulto
Quasi dominium, 378 Renúncia a toda a Macedonianum, 464
Quasi possessio, 352, 406 proteção do direito, 476 Senatusconsulto
Querela, 581 Reprova (de testemunhas), Velleianum, 464, 533
Querela (querimonia), 618 589 Senhores de terras, 240
Querela de doação Repúblicas índias, 225 Senhorios, 112, Consulte
inoficiosa, 495, 565 Res suo domino perit, 500 Lei Mental
Querela de nulidade, 162, Resgate de cativos, 211 Senhorios (confirmação),
601 Residências, 182 112
Querela de testamento Resíduos, 142 Senhorios (constituição),
inoficioso, 423, 424, 565 Resistência à justiça, 645 104
Quota disponível, 439, 441 Responsabilidade (civil ou Senhorios (dada de
penal), 549 ofícios), 107
724
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Senhorios (direitos contractus, 487 Título justo, 370


senhoriais), 96 Substituições, 422 Titulus coloratus vel putativus,
Senhorios (iluminismo), Sucessão, 411 356
114 Sucessão legítima ou ab Tombo ou livros “dos
Senhorios intestato, 429 próprios”, 343
(inalienabilidade), 110 Superficies solo cedit, 364 Tormentos, 623
Senhorios Surdos-mudos, 260, 265, Tornas, 457
(indivisibilidade), 109 444 Torpeza (objeto das
Senhorios (masculinidade), Tabeliães, 56, 183, 590 obrigações), 464
109 Tavolagens, 529 Torus, 268
Senhorios (poder Temor reverencial, 474 Tradição (traditio), 367
senhorial), 91 Tentativa (conatus), 610, Tradição jurídica, 6
Senhorios (primogenitura), 651 Traditio, 515
109 Teoria estatutária, 230 Traição, 643
Senhorios (reforma Terça, 434, Consulte Quota Treincidência, 676
iluminista), 115 disponível Tribunal da Bula da
Senhorios (regime jurídico Terças, 141 Cruzada, 91, 130
e político), 94 Terças dos concelhos, 336 Tribunal da Inquisição,
Senhorios (transmissão), Terças dos mortos, 140 579
108 Terças dos testamentos, Tribunal da Legacia, 578,
Senhorios (venda de), 113 143 Consulte Tribunal da
Senso comum (como Termo, 304 Nunciatura
prova), 588 Termo (nas doações), 495 Tribunal da Legacia ou da
Sentença, 594, 625 Terras jugadeiras, 344 Nunciatura, 604
Sentença interlocutória, Terras reguengas, 344 Tribunal da mitra, 576, 577
594 Terras tributárias ou Tribunal da Nunciatura,
Separação, 292, 435 fiscais, 346, 347 136, Consulte Tribunal da
Sequestro, 355, 360, 505, Tesouros, 362 Legacia
620 Testamentaria, 425 Tribunal do Santo Ofício
Serventias, 518 Testamento (capacidade da Inquisição, 130
Servidões, 208, 404 ativa), 418 Tribunal ou Junta da Bula
Servidões (locação de), 518 Testamento (capacidade da Cruzada, 579
Servidões pessoais, 404 passiva), 420 Troca (permutatio), 508
Servidões reais, 404 Testamento (condição), Turbatio sanguinis, 639
Servos adscritícios, 220 480 Tutela, 302
Servos por natureza, 166 Testamento (instituição de Tutela (como quase
Sesmarias, 345 herdeiro), 420 mandato), 544
Sesmarias do Brasil, 348 Testamento (nulidada), Tutores, 347
Sexo contra natura, 270 423 Ultramar, 21
Silogismo judiciário, 583 Testamento aberto, 415 Unde vi, 358, 562
Simonia, 141, 327, 508, Testamento cerrado, 415 Universidade, 348
635 Testamento de Universidade de Coimbra,
Simulação, 473 estrangeiros, 416 145
Sindicância, 663 Testamento de mão Universitas, 525
Sisas, 57 comum, 417 Uso honesto, 376
Soberania, 69 Testamento inoficioso, Uso honesto (do
Sociedade, 524 424 casamento), 270
Sociedade universal (dos Testamento militar, 414, Usu receptio, 170
familiares), 281 416 Usuais, 143
Sodomia, 271, 320, 637 Testamento místico, 415 Usucapião, 150
Soldados, 616 Testamento nuncupativo, Usucapião (locação), 519
Status civitatis, 204 415 Usucapião (usucapio), 368
Status familiae, 204 Testamento piedoso, 416 Usucapião de direitos, 368
Status legales, 170 Testamento público, 413 Usufruto, 404, 407
Status libertatis, 203 Testamento roto, 423 Usufruto (e locação), 518
Stylus curiae, 170 Testamento tabeliónico, Usura, 397, 500, 501, 514
Súbditos territoriais, 229 413 Usuras, 500
Subenfiteuse, 388 Testemunhas, 589, 622, Uti possidetis, 358, 562
Suborno ou peita, 663 624 Vacatio legis, 156
Subrepção, 162 Testemunhas (testamento), Validos, 68
Subreptio, 472 412 Varonia ou linha
Substantia ou substantialia Tipicidade, 608 masculina, 385

725
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Vassalos, 240 Vereadores, 53 Vínculos. Consulte


Vedores da Fazenda, 87 Vi armata, 358 Morgados
Velhice, 260 Vícios da vontade, 467 Vindicatio servitutis, 406
Venda a contento, 514 Vícios ocultos (locação), Violência (crime de), 644
Venda a retro, 514 518 Violência e coação sociais,
Venda da liberdade de si Vícios ocultos (ou 475
mesmo, 212, 214 redibitórios), 516 Visitas, 124
Venda forçada, 510 Vigararias, 323 Viúvas, 262, 302, 617
Ventre livre, lei de Vigário geral, 576 Vizinhança, 404
16.1.1773, 210 Vigários forenses, ou da Vizinho, 228
Verdade (valor social da), vara, 577 Voluntarismo, 467, 681
653 Vim, clam, precario, 406 Votos, 144, 595

726
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

Índice sistemático.

1 Introdução. 3
1.1 Apresentação. 3
1.1.1 “Uma sociedade construída sobre o direito”. 3
1.1.2 Como reconstruir o direito antigo ? 5
1.1.3 Uma tradição jurídica, na Europa ? 6
1.1.4 Pluralidade de direitos, pluralidade de tradições. 7
1.1.5 A tradição livresca do direito comum tardio da Europa do Sul. 8
1.1.6 Um direito doutrinal. 11
1.1.7 O impacto social do direito letrado. 12
1.1.8 Que ordem expositiva ? 14
1.1.9 Os vários níveis da “descrição”. 16
1.1.10 A “contextualização”. 18
1.1.11 O aparato crítico e os instrumentos de leitura. 19
1.1.12 O modelo corporativo do direito e do poder. 20
1.1.13 Conclusão. 24
1.2 Abreviaturas. 25
1.3 Indicações sobre fontes. 27
1.3.1 Sistematização e forma de citação do Corpus Iuris Civilis. 27
1.3.2 Sistematização e sistemas de citação do Corpus Iuris Canonicis. 27
1.3.3 Fontes de história jurídica on-line. 28
2 As jurisdições e o direito. 35
2.1 A ideia de jurisdição. 36
2.2 Espécies e graus. 37
2.2.1 O legado da ideia de imperium. 40
2.3 Jurisdição ordinária e delegada. 43
2.3.1 O público e o privado. 45
2.4 A jurisdição dos concelhos, da coroa e da Igreja. 50
2.4.1 Os concelhos. 50
2.4.1.1 Os fundamentos doutrinais da autonomia de governo das comunidades territoriais 50
2.4.1.2 Posturas, costumes locais e lei 52
2.4.1.3 Jurisdição concelhia e jurisdição senhorial. 53
2.4.1.4 Magistrados e oficiais dos concelhos. 53
2.4.1.5 Dimensões do autogoverno 59
2.4.1.6 O controlo do centro. 60
2.4.1.7 O poder municipal nos fins do Antigo Regime 61
2.4.2 A administração da Coroa. 64
2.4.2.1 O modelo jurisdicionalista do poder. 64
2.4.2.1.1 A Justiça. 64
2.4.2.1.2 A Graça. 66
2.4.2.1.3 O governo económico. 67
2.4.2.1.4 O governo político. 69
2.4.2.2 Administração periférica da coroa 71
2.4.2.2.1 Os oficiais de justiça. 72
2.4.2.2.1.1 Os juízes de fora. 72
2.4.2.2.1.2 Os corregedores. 73
2.4.2.2.1.3 Os provedores. 76
2.4.2.2.2 Os oficiais da fazenda. 78
2.4.2.2.3 Os oficiais da milícia. 80
2.4.2.2.4 Administração dos próprios da coros da coroa 80
2.4.2.3 A administração central 82
2.4.2.3.1 Casa Real. 82
2.4.2.3.2 Secretários. 83
2.4.2.3.3 Conselho de Estado. 84
2.4.2.3.4 Conselho de Portugal. 85
2.4.2.3.5 Desembargo do Paço. 85
2.4.2.3.6 Casas da Suplicação e do Cível. 86
727
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2.4.2.3.7 Conselho da Fazenda. 87


2.4.2.3.8 Mesa da Consciência e Ordens. 89
2.4.2.3.9 Conselho da Índia e Conselho Ultramarino. 90
2.4.2.4 Conselho de Guerra. 91
2.4.2.5 Tribunais eclesiásticos. 91
2.4.3 Jurisdição senhorial. 92
2.4.3.1 Introdução 92
2.4.3.2 O regime político-jurídico dos senhorios. 94
2.4.3.3 O que era um senhorio e qual o seu conteúdo institucional. 96
2.4.3.3.1 Jurisdição 96
2.4.3.3.2 Direitos reais 97
2.4.3.3.3 As categorias dos bens e direitos do rei. Bens privados, fiscais e da coroa. 98
2.4.3.3.4 A doutrina iluminista sobre o património régio. 101
2.4.3.4 Donatários e senhores 103
2.4.3.5 A constituição dos senhorios. 104
2.4.3.6 Conteúdo das doações 106
2.4.3.6.1 Correição 107
2.4.3.6.2 Apelações 107
2.4.3.6.3 Jurisdição 107
2.4.3.6.4 Dada das justiças. 108
2.4.3.6.5 Dada dos ofícios. 108
2.4.3.6.6 Foros, tributos e direitos reais. 108
2.4.3.7 Transmissão dos direitos senhoriais. 108
2.4.3.8 A política da coroa quanto aos senhorios 112
2.4.3.9 O regime senhorial nos últimos anos do Antigo Regime 114
2.4.4 A Igreja. 117
2.4.4.1 A Igreja como sociedade eclesial 117
2.4.4.2 Os clérigos 121
2.4.4.3 O direito eclesiástico. 123
2.4.4.4 A jurisdição. 129
2.4.4.4.1 As pequenas vitórias do outro gládio 132
2.4.4.5 Uma malha político-administrativa. Benefícios, padroados e comendas. 133
2.4.4.5.1 Bispos 136
2.4.4.5.2 Cónegos 137
2.4.4.5.3 Párocos 139
2.4.4.5.4 Abades 144
2.4.5 Outras jurisdições corporativas (conservatórias). 146
2.5 O direito. 146
2.5.1 Entre teologia e direito. 146
2.5.2 O direito divino. 148
2.5.3 O direito natural e o direito positivo. 149
2.5.4 O direito positivo. 151
2.5.4.1 O direito das gentes. 152
2.5.4.2 O direito civil. 153
2.5.4.3 Direito comum e direitos próprios. 154
2.5.4.3.1 A lei. 155
2.5.4.3.2 Os estatutos (ou posturas). 157
2.5.4.3.3 Costume. 159
2.5.4.3.4 Os estilos. 161
2.5.5 A dispensa de uma norma. 161
2.5.6 Os direitos particulares. 162
2.5.7 O pluralismo jurídico moderno na Europa e Ultramar. O direito e a fé. 163
2.5.7.1 O direito e a fé. 163
2.5.7.2 O direito e a natureza. 166
2.5.8 A interpretação. 170
2.6 Magistrados e oficiais 173
2.6.1 Definição 173
2.6.2 Consequências normativas da natureza dos ofícios. 178
2.6.3 A capacidade para exercer ofícios públicos. 181
2.6.4 O exercício dos ofícios. Deveres deontológicos e retribuição. 181
2.6.5 Regime dos ofícios. 184
728
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

2.6.5.1 Criação e dada dos ofícios. 184


2.6.5.2 Extinção e privação de ofícios. 188
2.6.5.3 Transmissibilidade dos ofícios por morte do titular. 189
2.6.5.4 Venalidade dos ofícios. 192
2.6.5.5 Arrendamento dos ofícios (serventias). 195
2.6.5.6 Vacatura de ofícios. 195
2.6.6 Hierarquia dos ofícios. 196
2.6.6.1 O príncipe e os magistrados “colaterais”. 196
2.6.6.2 Magistraturas ordinárias com jurisdição territorial ou corporativa. 197
2.6.6.3 Magistraturas ordinárias de competência especializada. 199
2.6.6.4 Magistraturas delegadas (ou comissariais). 199
2.6.7 Os ofícios no reino de Portugal. 200
2.6.7.1 Súmula 200
3 Direito das pessoas. 204
3.1 Estados e pessoas. 204
3.1.1 Escravos. 210
3.1.1.1 Títulos de escravização. 210
3.1.1.2 O direito dos escravos. 216
3.1.1.3 Servos adscritícios e criados. 221
3.1.1.4 Outras fidelidades domésticas. 222
3.1.2 Naturais. 223
3.1.2.1 Extensões da naturalidade. 226
3.1.2.2 Restrições da naturalidade. 227
3.1.2.3 O relevo jurídico da naturalidade. 228
3.1.3 Vizinhos. 229
3.1.4 Estrangeiros. 230
3.1.5 Nobres. 232
3.1.5.1 O imaginário jurídico nobiliárquico. 234
3.1.5.2 Títulos de aquisição ou de prova. 235
3.1.5.3 Categorias. 240
3.1.5.4 Efeitos da nobreza. 243
3.1.6 Plebeus e outros estados. 244
3.1.7 Pessoas miseráveis. 244
3.1.8 Mulheres. 248
3.1.9 Menores. 254
3.1.9.1 A natureza dos menores. 254
3.1.9.2 As idades: infantes, impúberes e púberes. 255
3.1.9.3 O direito dos menores. 257
3.1.9.4 Os quase menores, os maiores e os quase maiores. 258
3.1.9.5 O trabalho dos menores. 259
3.1.10 Os doidos. 260
3.1.10.1 Os estados próximos da demência: velhos, doentes, pródigos e falidos. 261
3.2 Família. Relações pessoais 265
3.2.1 O casamento. 265
3.2.2 Os esponsais. 270
3.2.3 Marido e mulher. 271
3.2.4 Filhos. 276
3.2.5 Restante parentela. 281
3.2.6 Criados. 283
3.2.7 A expansão do modelo familiar. 284
3.3 Relações patrimoniais. 285
3.3.1 Os regimes de bens do casamento. 288
3.3.1.1 A comunhão geral de bens. 289
3.3.1.2 O regime dotal 294
3.3.1.3 As arras. 302
3.3.1.4 As doações entre os cônjuges. 302
3.3.2 Tutelas e curatelas. 304
3.3.2.1 Das tutelas. 304
3.3.2.2 Das curatelas. 307
4 Direito das coisas 309
4.1 O conceito de “coisa” 309
729
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4.1.1 As coisas na sistematização tradicional das matérias jurídicas. 309


4.1.2 A “coisifcação” das relações sociais e políticas. 310
4.1.3 As coisas como entidades conceptuais, antes que empíricas. 312
4.1.4 Pessoas e coisas. 313
4.1.5 Da multiplicidade de utilidades à universalização da propriedade. 316
4.1.6 O modelo proprietário das relações dos homens com as coisas. 318
4.2 As espécies de coisas. 321
4.2.1 Coisas sagradas, religiosas e santas. 322
4.2.1.1 Os bens eclesiásticos. 324
4.2.1.1.1 Benefícios. 324
4.2.1.1.2 Padroados. 329
4.2.1.1.3 Comendas. 332
4.2.1.2 A enfiteuse eclesiástica. 334
4.2.2 Coisas comuns, públicas, de ninguém e privadas. 334
4.2.2.1 Coisas comuns de todos. 334
4.2.2.2 Coisas públicas ou do rei (regalia). 337
4.2.2.3 Bens da coroa. 341
4.2.2.4 Reguengos. 345
4.2.2.5 A concessão de coisas públicas. 347
4.2.2.6 Sesmarias. 347
4.2.3 Comuns de todos. 351
4.2.4 De uma universidade. 351
4.2.5 Coisas de ninguém. 353
4.2.6 Coisas particulares. 353
4.2.7 Outras divisões da coisas. Coisas corpóreas e incorpóreas, móveis ou imóveis. 354
4.3 Os direitos sobre as coisas. 354
4.3.1 A posse. 354
4.3.2 O domínio. 362
4.3.2.1 Os modos de adquirir o domínio. 362
4.3.2.1.1 Ocupação (occupatio). 363
4.3.2.1.2 Conquista. 364
4.3.2.1.3 Achamento. 364
4.3.2.1.4 Aquisição dos frutos. 365
4.3.2.1.5 Acessão natural (accessio naturalis). 366
4.3.2.1.6 Acessão por facto humano ou industrial (accessio artificialis vel industrialis). 366
4.3.2.1.7 Especificação (specificatio). 367
4.3.2.1.8 Confusão (confusio) e mistura (mixtura). 369
4.3.2.1.9 Tradição. 369
4.3.2.1.10 Usucapião (usucapio) ou prescrição (praescriptio) aquisitiva. 370
4.3.2.1.10.1 Boa fé. 371
4.3.2.1.10.2 Justo título. 372
4.3.2.1.10.3 Posse contínua. 373
4.3.2.1.10.4 Posse legítima (não viciosa). 374
4.3.2.1.10.5 Coisas imprescritíveis. 375
4.3.2.1.10.6 Contra quem não corria a prescrição. 377
4.3.2.1.10.7 Termos, suspensão e interrupção. 378
4.3.2.2 Os poderes do proprietário. 378
4.3.3 A enfiteuse. 381
4.3.3.1 Natureza da enfiteuse 382
4.3.3.2 Contra distinção entre enfiteuse e outras situações fundiárias. 383
4.3.3.2.1 Enfiteuse e locação (colonia simples). 384
4.3.3.2.2 Enfiteuse e censo. 384
4.3.3.2.3 Enfiteuse e feudo. 385
4.3.3.2.4 Enfiteuse e concessões precárias de coisas eclesiásticas. 385
4.3.3.3 Espécies de enfiteuse. 386
4.3.3.4 Quem podia emprazar e quem podia ser chamado a suceder no prazo. 388
4.3.3.5 Que coisas se podiam aforar. 389
4.3.3.6 Como se constituía e como se provava. 389
4.3.3.7 Como se extinguia. 390
4.3.3.8 Direitos do enfiteuta. 390
4.3.3.9 Direitos do senhorio. 391
730
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

4.3.3.10 Renovação e consolidação. 393


4.3.4 Os censos. 399
4.3.5 A colonia. 402
4.3.6 As situações agrárias. Quadro sinótico. 406
4.3.7 As servidões. 406
4.3.8 O usufruto 409
4.3.9 Uso e habitação. 411
4.3.10 Direito de superfície. 411
4.3.11 Direito ao pasto. 411
5 As sucessões. 413
5.1 Fontes do regime sucessório no direito comum. 413
5.2 O testamento e a sucessão testamentária. 414
5.2.1 O testamento. Noção. 414
5.2.2 Espécies de testamento e suas formalidades. 415
5.2.3 Requisitos substanciais do testamento. 419
5.2.4 A instituição de herdeiro. 422
5.2.5 A preterição de herdeiro. 423
5.2.6 A deserdação. 423
5.2.7 As substituições. 424
5.2.8 A interpretação dos testamentos. 425
5.2.9 Testamentos nulos, rotos, inoficiosos e vazios. 425
5.2.10 A execução dos testamentos. 427
5.2.11 A herança. 427
5.2.12 A aceitação da herança. 427
5.2.13 A situação jurídica do herdeiro. 428
5.2.14 Os legados. 429
5.2.15 Os fideicomissos. 431
5.3 A sucessão legítima ab intestato ou legítima. 431
5.3.1 A ordem sucessória. 432
5.3.1.1 Os descendentes. 432
5.3.1.2 Os ascendentes. 436
5.3.1.3 Os colaterais. 436
5.3.1.4 Os cônjuges. 437
5.3.1.5 O fisco. 437
5.4 Os morgados. 438
5.4.1 Noção 438
5.4.2 Instituidor e instituição. 440
5.4.3 Bens de morgado. 442
5.4.4 Chamados à posse ou administração. 443
5.4.5 Ordem sucessória. 446
5.4.6 O direito de representação. 450
5.4.7 Poderes do possuidor 454
5.5 As capelas. 456
5.6 Partilhas e colações. 458
6 As obrigações. 463
6.1 Introdução. 463
6.2 A fonte do vínculo obrigacional. 464
6.3 A ascensão do consensualismo. 468
6.4 Os vícios da vontade. 469
6.4.1 A ignorância ou erro. 470
6.4.2 O dolo. 474
6.4.3 A fraude ou simulação. 475
6.4.4 A coação. 476
6.4.5 A renúncia à invocação dos “vícios da vontade”. 478
6.5 Outras consequências do consensualismo. 479
6.6 Limites do consensualismo: possibilidade e licitude. 480
6.7 As cláusulas acessórias dos contratos. 480
6.7.1 A condição. 481
6.7.2 O modo. 483
6.7.3 O termo. 483
6.8 A extinção das obrigações. 483
731
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6.9 As obrigações contratuais (ex contractu). 485


6.9.1 Os pactos e os contratos. 485
6.9.2 As espécies de pactos e contratos. 490
6.9.2.1 Os contratos gratuitos. 491
6.9.2.1.1 A doação. 491
6.9.2.1.2 As doações de bens da coroa ou doações régias. 498
6.9.2.1.3 O comodato ou empréstimo. 500
6.9.2.1.4 O mútuo. 502
6.9.2.1.5 A usura. 503
6.9.2.1.6 O lucro legítimo dos comerciantes. O contrato de câmbio. 504
6.9.2.1.7 O precário. 506
6.9.2.1.8 O depósito. 507
6.9.2.1.9 O mandato. 509
6.9.2.2 Os contratos onerosos 510
6.9.2.2.1 A troca (permutatio). 510
6.9.2.2.2 A compra e venda (emptio venditio). 511
6.9.2.2.3 A locação (locatio conductio). 519
6.9.2.2.4 A sociedade ou companhia. 526
6.9.2.2.5 Contrato de seguro. 529
6.9.2.2.6 O empréstimo náutico. 530
6.9.2.2.7 O contrato de jogo. 531
6.9.2.2.8 Compra de esperança ou de coisa futura. 532
6.9.2.3 Convenções assessórias. 532
6.9.2.3.1 A fiança. 533
6.9.2.3.2 O penhor e a hipoteca. 538
6.10 Os quase contratos. Introdução. 544
6.10.1 Gestão de negócios. 546
6.10.2 A administração da tutela e curatela. 546
6.10.3 As obrigações estabelecidas pela Lex Rhodia de jactu. 547
6.10.4 As obrigações derivadas da aceitação da herança (adhitio haereditatis). 547
6.10.5 A divisão de coisa comum. 547
6.10.6 A restituição de coisas recebidas. 547
6.10.7 O pagamento indevido. 547
6.10.8 A repetição de entregas sem causa legítima. 548
6.10.9 A evicção. 548
6.11 Obrigações delituais (ex delictu). 548
7 As ações. 556
7.1 O sentido social e político do direito processual do reino. 556
7.1.1 Uma compreensão mais profunda dos expedientes processuais. 558
7.1.2 O novo entendimento da ação na dogmática jusracionalista. 563
7.1.3 A classificação das acções. 563
7.1.3.1 As ações prejudiciais. 566
7.1.3.2 As ações reais. 567
7.1.3.3 As ações pessoais. 569
7.1.3.4 Interditos. 571
7.1.4 Conclusão. 572
7.1.5 Os elementos do processo. 573
7.1.6 A ordem do processo. 573
7.1.6.1 O processo ordinário. 574
7.1.6.2 O processo sumário. 574
7.1.7 Os elementos necessários do juízo. 575
7.1.7.1 Autor. 575
7.1.7.2 O réu. 576
7.1.7.3 O juiz (competente). 576
7.1.8 Elementos acessórios do juízo. 582
7.1.9 As fases do juízo. 583
7.1.9.1 A citação. 584
7.1.9.2 Libelo. Contradita e exceções. 586
7.1.9.3 Contestação da lide. 587
7.1.9.4 Prazos. 589
732
António Manuel Hespanha, Como os juristas viam o mundo. 1550-1750

7.1.9.5 As provas. 589


7.1.9.5.1 As presunções. 591
7.1.9.6 As testemunhas. 592
7.1.9.7 Instrumentos ou documentos. 593
7.1.9.8 O juramento. 595
7.1.9.9 A confissão. 595
7.1.9.9.1 A tortura: 596
7.1.10 A sentença e o caso julgado. 597
7.1.11 A execução. 599
7.1.12 As execuções fiscais. 601
7.1.13 As dízimas e as custas. 602
7.1.14 Os recursos. Apelações e agravos. 603
7.1.15 A apelação. 603
7.1.15.1 O agravo. 605
7.1.15.2 A revista. 606
7.1.15.3 Os recursos extraordinários. 607
8 Crimes e penas. 608
8.1 A dogmática penal. 608
8.1.1 O delito. 609
8.1.2 A ilicitude e tipicidade. 610
8.1.3 A imputabilidade penal: menores, furiosos, bêbados e irados. 611
8.1.4 A imputação. 612
8.1.4.1 Dolo. 612
8.1.4.2 Culpa. 613
8.1.4.3 O acaso. 614
8.1.5 Punibilidade. 615
8.1.6 O processo e a prova. 615
8.1.6.1 Introdução. 616
8.1.6.2 O juiz competente. 619
8.1.6.3 A ordem processual. Processo ordinário. 621
8.1.6.4 Averiguação. 621
8.1.6.4.1 A devassa 621
8.1.6.4.2 A querela. 622
8.1.6.4.3 Denúncia. 622
8.1.6.4.4 A pronúncia. 623
8.1.6.4.5 Prisão, segurança, fiança, sequestro. 623
8.1.6.4.6 Acusação e fixação da ordem do processo. 624
8.1.6.4.7 Citação 624
8.1.6.4.8 Libelo de Acusação 625
8.1.6.4.9 Exceções 625
8.1.6.4.10 Contestação da lide (contradita). 625
8.1.6.4.11 Réplica do Autor e tréplica do réu 625
8.1.6.4.12 Prova 626
8.1.6.4.13 Confissão. 626
8.1.6.4.14 Tormentos 627
8.1.6.4.15 Documentos. 627
8.1.6.4.16 Testemunhas. 627
8.1.6.4.17 Perguntas ao réu 627
8.1.6.4.18 Alegações 628
8.1.6.4.19 Defesa. 628
8.1.6.4.20 Sentença. 628
8.1.6.4.21 Custas. 629
8.1.6.4.22 Embargos ou agravos. 629
8.1.6.4.23 Apelação 629
8.1.6.5 Circunstâncias atenuantes e perdão. 629
8.1.6.5.1 Execução. 631
8.1.6.5.2 Extinção da causa. 631
8.1.6.6 Processo sumário 631
8.1.7 A pena. 632
8.2 O sistema axiológico do direito penal de Antigo Regime 633
8.2.1 Crimes contra a ordem religiosa. 633
8.2.1.1 Heresia 634
733
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8.2.1.2 Sacrilégio. 638


8.2.1.3 Blasfémia. 639
8.2.1.4 Feitiçaria, benzas e vigílias nas igrejas. 640
8.2.2 Crimes contra a ordem moral 641
8.2.2.1 Sodomia (relações homossexuais, bestialidade e masturbação). 641
8.2.2.2 Adultério. 642
8.2.2.3 Estupro. 644
8.2.3 Os crimes contra a ordem política. 646
8.2.3.1 Lesa-majestade. 646
8.2.3.2 Os crimes contra a ordem pública - a violência 648
8.2.3.3 Crimes contra as pessoas - a honra 649
8.2.3.4 As injúrias. 649
8.2.4 Crimes contra as pessoas - o corpo. 652
8.2.4.1 Homicídio. 652
8.2.4.2 Ofensas corporais. 655
8.2.5 Crimes contra a verdade. 656
8.2.5.1 Falsificação de cartas do papa, do imperador ou do rei. 658
8.2.5.2 O perjúrio ou falso testemunho. 659
8.2.5.3 Falsificação de moeda. 660
8.2.5.4 Falsificação de pesos e medidas. 661
8.2.5.5 Simulação ou ocultação de partos. 661
8.2.5.6 Uso de nomes falsos, estatutos jurídicos, brasões, trajos estatutários, falsos. 661
8.2.5.7 Adulteração de coisas. 662
8.2.5.8 A extensão do conceito de falso. O estelionato. 662
8.2.5.9 Os crimes dos oficiais. 663
8.2.5.9.1 O julgamento contra direito. 664
8.2.5.9.2 A prevaricação. 666
8.2.5.9.3 A peita ou suborno e a extorsão. 667
8.2.5.9.4 O locupletamento com bens públicos. 668
8.2.6 Crimes contra o património. 668
8.2.6.1 O dano. 669
8.2.6.2 Furto. 670
8.3 O direito penal das monarquias corporativas. 675
8.3.1 Punição e disciplina. 675
8.3.2 Pluralismo disciplinar. 676
8.3.3 A prática da punição. 676
8.3.4 A economia da Graça: perdão, comutação e livramento. 680
9 Epílogo. 685
10 Bibliografia citada. 689
11 Índices 715

734

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