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NITERÓI
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA – ICHF
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA – PPGS
Orientador:
Prof. Dr. Marcos Otávio Bezerra
NITERÓI
2016
AGRADECIMENTOS
165 f. : il.
Bibliografia: f. 154-158.
A presente dissertação se propõe a fazer uma reflexão a respeito da utilização da bicicleta enquanto
um problema público em Niterói. Partimos do postulado de que é preciso considerar que a disposição
do espaço físico de certa forma representa a posição da bicicleta no espaço social. Para entendermos
esta disposição, levamos em conta tanto o histórico político-institucional, considerando também a
infraestrutura instalada, quanto aspectos morais e emocionais, que influem nos entendimentos que
determinam a disposição material e comportamental do mundo social. O trabalho demonstra que o
estabelecimento de novas ciclovias/faixas, o aumento dos ciclistas e campanhas de estímulo à
utilização da bicicleta têm exigido uma mudança no padrão de comportamento durante os
deslocamentos. Tal mudança não acontece de forma harmoniosa, pois tanto nas ruas quanto nas
instituições públicas há um cenário conflituoso. Neste aspecto, a ação dos coletivos da cidade é
fundamental, pois além de constituir comunidades morais, produz constrangimentos públicos que
contribuem para remodelar comportamentos. A reivindicação dos coletivos de ciclistas não é apenas
por espaço e reconhecimento na via, mas também por um tipo de condicionamento dos hábitos dos
motoristas, que é entendido pelos empreendedores morais dos movimentos como benéfico para a
sociedade como um todo. Mas, ao exigir mudanças restritivas, como a redução de velocidade nas
vias, também tenciona ainda mais os conflitos entre modais. Assim, os comportamentos durante os
deslocamentos vão sendo remodelados não pela simples existência de um código de conduta, mas
pela ação de constrangimentos durante conflitos, gerando julgamentos e sentimentos em torno das
condutas. Além disso, a análise de políticas voltadas para os deslocamentos na cidade mostra que
seu entendimento precisa ir além do que a legislação prevê e da impessoalidade do “poder público”.
Por trás destas abstrações há uma infinidade de conflitos entre agentes que buscam fazer de seus
entendimentos a expressão do Estado, sobretudo entre a Nittrans e o Niterói de Bicicleta. Esta
disputa, tanto na rua quanto nas instituições públicas, envolve tanto aspectos discursivos quanto
materiais, sendo que o vocabulário e as emoções acionadas não podem ser ignorados. A inclusão da
bicicleta em políticas de deslocamento está inserida dentro de uma discussão maior, que é a
apropriação do espaço urbano. O que está em jogo não é apenas a inclusão e o reconhecimento do
ciclista enquanto parte do trânsito, mas também a reivindicação de uma nova concepção da cidade e
seus usos, presente tanto em textos legais, quanto na ação de coletivos da cidade. Esta discussão,
latente em Niterói, requer o recondicionamento de práticas que não estão estritamente ligadas a
presença do ciclista, mas também ao entendimento do papel do pedestre e ao comportamento dos
motoristas. Desta forma, todos estes conflitos fazem parte de um processo civilizador que ocorre
sobre os deslocamentos em Niterói.
CORREA, AS. From cycling to the cyclist: the building of a public problem in Niterói.
Niterói: Universidade Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas, Programa
de Pós-Graduação em Sociologia.
This work aims to make a reflection about the bicycle as a public problem in Niterói. We start from the
premise that the character of the physical space indicates the bike's position in the social space. To
understand this character, we consider both the political and institutional history also considering the
installed infrastructure, and moral and emotional aspects by which the understandings are influenced
and determine the material and behavioral aspects of the social world. The work shows that the
establishment of new bike paths/tracks, the increase of cyclists and the campaigns for the use of
bicycle have required a change in the behavior pattern during the daily traffic. This change does not
happen smoothly, there is a confrontational scenario both on the streets and in the public institutions.
In this regard the action of the city's collective is fundamental, as well as being moral communities, it
produces public constraints that help to reshape behaviors. The claim of cyclist collectives is not just
for space and recognition on the streets, but also for a new conditioning of the driver’s habits, which is
understood by the moral entrepreneurs of the movements as beneficial to the society as a whole. But
as they demand restrictive changes, such the reduction of speed, they also increase the conflicts
between the modals. Thus, the behaviors during the daily traffic are being remodeled not by the mere
existence of a code of conduct, but by the action of constraints during conflicts, creating judgments
and feelings around the behaviors. Furthermore, the analysis of policies for the mobility in the city
shows that our understanding must go beyond what the law provides and the impersonality of "public
power". Behind these abstractions there is a multitude of conflicts between agents who seek to make
their understandings the official state expression, especially among the Nittrans and Niterói de
Bicicleta. This dispute, both on the streets and in the public institutions, involves discursive and
material aspects, and the vocabulary and emotions should not be ignored. The inclusion of bicycle
policy is embedded within a larger discussion, which is the appropriation of urban space. What is at
stake here is not only the inclusion and recognition of the cyclist as part of the traffic, but also the
demand for a new conception of the city and it’s uses, which is present both in legal texts as in the
demands of the bike collectives. This discussion requires reconditioning practices that are not strictly
linked to the presence of the cyclist, but also the understanding of the role of the pedestrian and driver
behavior. Accordingly, all such conflicts are part of a civilization process occurring in the Niterói
mobility system. Keywords: Niterói, bicycle, moral, public policy.
1
1. INTRODUÇÃO
2
Fonte: Nitnews
1
Dados do IBGE. Disponíveis em:
http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=330330&search=rio-de-
janeiro|niteroi|infograficos:-informacoes-completas . Acesso em: Junho, 2015.
2
Disponível em: http://nitnews.com/caracteristicas.html Acesso em: Novembro, 2015
1
IMAGEM 2: MAPA CONEXÃO COM A CAPITAL
Fonte: OpenStreetMap
3
Idem.
4
Disponível em:
http://www.sejaniteroi.com.br/novo/materiasouniteroi.php?id=201853&idTema=8&subtema= Acesso
em Junho de 2015.
5
Disponível em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/05/com-frota-de-carros-50-maior-
desde-2000-transito-atormenta-niteroi-rj.html Acesso em: Junho, 2015.
6
Disponível em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2012/08/14/niteroi-com-crescimento-desordenado-
tem-serios-problemas-de-mobilidade/ Acesso em: Junho de 2015.
7
Porcentagem obtida através dos dados divulgados pelo DENATRAN. Disponíveis em:
http://www.denatran.gov.br/frota.htm Acesso em: Junho, 2015.
2
preocupações, tanto políticas quanto de quem vive o cotidiano das grandes
cidades brasileiras.
Quando me mudei para Niterói em 2013, logo percebi que sua dinâmica
de trânsito intenso faz com que seja impossível calcular as distâncias através
do tempo de percurso. O congestionamento é um fator surpresa cotidiano. Com
as longas filas e o tempo perdido no trânsito na região das praias da baia, onde
resido, minha decisão de comprar uma bicicleta não tardou muito.
Depois de três meses morando na cidade, ao passear pelo calçadão da
Praia de Icaraí, localizada na região das praias da baia, me deparei pela
primeira vez com figuras importantes que hoje fazem parte deste trabalho. Em
uma noite de dezembro, havia um telão a céu aberto, com várias bicicletas
estacionadas ao redor e um grupo de cerca de 40 pessoas assistindo um filme
sobre a origem do coletivo Massa Crítica, em São Francisco, Estados Unidos,
que buscava chamar a atenção para a presença da bicicleta no trânsito. Fiquei
sabendo depois que se tratava de uma edição de mostra de filmes sobre
bicicleta, o Ciclocine, puxado pelo Argus Caruso, então coordenador do
programa Niterói de Bicicleta. A partir daí, comecei a acompanhar de forma
despretensiosa os eventos ligados à bicicleta pela cidade, até que a partir do
segundo semestre de 2014 este espaço social passou a ser meu objeto de
estudo.
Esta investigação me trouxe elementos que possibilitaram entender
como o deslocamento por bicicleta tem sido tomado como um problema
público. Busco aqui explorar não apenas as impressões, as vivências e os
impactos sobre aqueles que fazem o deslocamento em si, mas tentando
localizá-lo no campo que tem se formado ao redor desta prática em Niterói.
Não somente com relação a prática dos agentes e disposições dos meios
físicos, mas também ao campo semântico que mobilizam. Considerar tais
fatores ao se pensar os deslocamentos é algo muito importante.
Os deslocamentos são muitas vezes tratados como uma mera
movimentação de A para B. Mas o movimento é sempre mais significativo do
que isso (Peters, 2005) e as nossas experiências de deslocamento demandam
uma análise mais fina. Estes deslocamentos envolvem num momento ou em
outro, todos os habitantes da cidade. A forma como as pessoas se movem pela
cidade gera julgamentos, relações, disputas, concepções de status e
3
significados não apenas nas próprias ruas, mas também estampando jornais e
envolvendo agentes nos vários locais onde ocorre a tomada de decisão sobre
as políticas de deslocamentos. Além disso, como aponta Vivanco (2013),
diferentes formas de se locomover são carregadas de diferentes níveis de
prestigio, investimentos econômicos e apoio político baseados na posição que
ocupam no arranjo hierárquico do sistema de mobilidade local (VIVANCO, p.
14).
A oportunidade de realizar um trabalho etnográfico sobre esta questão
em Niterói parece especialmente propícia, porque está em curso toda uma
negociação sobre os espaços para a circulação de bicicletas, que tem se dado
nos mais variados contextos e espaços da cidade e que é muito recente. Tenho
circulado em vários eventos, locais e grupos, passando nos órgãos da
prefeitura, na câmara, lojas de bicicletas, coletivos, garagem de ônibus,
eventos e reuniões públicas onde a bicicleta e outros problemas de mobilidade
são debatidos, como palestras, fórum de discussões, grupos e páginas do
Facebook, além das próprias ruas onde acontecem os deslocamentos através
de bicicleta.
Minha inserção no campo foi tranquila. Antes de começar minha
pesquisa eu já estava andando de bicicleta pela cidade e acompanhando os
eventos marcados pelo Pedal Sonoro e pela Massa Crítica, que são os grupos
de maior mobilização na cidade de Niterói e agregam, em uma hora ou outra,
todos aqueles que se mobilizam pela causa ciclística na cidade. Ou seja, antes
de me conhecerem como pesquisadora, os grupos haviam me conhecido como
aliada da causa. Acredito que esta forma de inserção eliminou as barreiras de
comunicação entre eu e os participantes, de forma que nunca tive dificuldades
nem para o diálogo ou ao acesso à informação. Durante 2015 eu participei de
praticamente todos os eventos da Massa Crítica Niterói, fossem pedaladas,
plenárias, ações ou reuniões com agentes públicos. Também contei com
encontros com a Ana Carboni e o Sergio Franco, do Mobilidade Niterói, que me
receberam muito bem, repassando suas estratégias de ação, além de todo o
levantamento de dados que haviam feito, as atividades junto ao comércio, à
Prefeitura e a sociedade civil em geral. Tive acesso, inclusive, ao e-mail do
coletivo e ao grupo secreto da equipe no Facebook.
4
O início da minha pesquisa acontecia num momento de transição no
Programa Niterói de Bicicleta, da Prefeitura de Niterói. O ex-coordenador Argus
Caruso estava de saída e se despedia dos grupos de pedaladas e ativismo a
favor da bicicleta na cidade, dando lugar à nova coordena, Isabela Ledo.
Encontrei Isabela Ledo em sua apresentação aos coletivos, feita pelo Argus
Caruso, mas neste primeiro momento não tive a oportunidade de lhe falar
sobre minha pesquisa. Para conseguir acesso interno ao programa Niterói de
Bicicleta fiz contato através de e-mail, aproveitando o momento de mudanças,
quando a Isabela Ledo havia acabado de assumir a coordenação do programa.
Ela se mostrou super solícita e marcamos uma reunião para a mesma semana.
Como ela também estava no processo de conhecimento e adaptação ao
ambiente de trabalho e ao funcionamento do programa, fomos descobrindo
juntas muitas das informações que precisava. Tivemos doze encontros dentro
da Prefeitura, somados aos encontros públicos em eventos da cidade, além de
e-mails trocados e plenárias junto aos coletivos da cidade e encontros
informais. No início, a Isabela manteve uma postura bastante institucionalizada
e defensiva, como porta voz oficial do programa municipal. Foi um pouco difícil
transpor esta barreira entre o que ela queria passar de atividades do programa
e como era a colocação de fato do programa dentro da prefeitura, sua relação
com outros departamentos e secretarias. Mas, conforme o tempo foi passando,
a confiança aumentava e nossas conversas foram ficando menos formais,
sendo que estas informações apareceram de forma espontânea.
Durante todo o ano de 2015 fui ao menos em dois eventos por semana
ligados à bicicleta, fossem reuniões na prefeitura, plenárias nas ruas, reuniões
do Mobilidade Niterói, protestos e passeios. Esta vivência, a intensidade e
frequência dos encontros mostra como este assunto está em pauta na cidade.
É importante salientar que o reconhecimento do deslocamento através
da bicicleta como parte do trânsito nas dinâmicas cotidianas não tem
acontecido de forma hierarquizada, ou seja, não parte unicamente de uma
iniciativa da Prefeitura ou de dispositivos de um código legislativo que se
cumprem automaticamente na sociedade. Este reconhecimento se dá de forma
transversal, tanto por estímulos públicos, quanto pela própria prática da
utilização da bicicleta, espaços destinados e as suas mais variadas relações no
decorrer dos deslocamentos cotidianos. Neste trabalho busco abordar este
5
tema, tentando entender como este deslocamento tem sido encarado na vida
social da cidade.
Esta é uma abordagem bastante diferente dos poucos estudos sobre
bicicleta que têm sido feitos até então. No Brasil, boa parte da produção
acadêmica sobre o assunto está ligada a área de arquitetura, urbanismo,
saúde, educação física e engenharia, mas já temos algum material na área de
humanas. Os estudos desta área, de forma geral, se fixam em questões de
análise de infraestrutura, ambientais, legislativas, além daqueles que
relacionam o seu uso com questões de gênero, aspectos geracionais e
ativismo. É interessante perceber como as categorias “ciclista” e “mobilidade”
aparecem relacionadas com certa naturalidade nos trabalhos (LIBERATO,
2004; XAVIER, 2011; MELO E SCHETINO, 2009; BASTOS, 2012; QUEIROZ,
2012; FLORIANI, 2013; RODRIGUES, 2013; NERI E COSTA, 2014; BATISTA,
SILVA, ET ALL, 2013; RAQUEL, 2009). Proponho aqui que esta naturalidade
seja desfeita. Embora estas categorias estejam hoje intrinsecamente ligadas ao
ato de andar de bicicleta, o estabelecimento destes termos (assim como de
outros que se relacionam a eles) merece atenção. Pois, como nos alerta Lenoir
(1998):
6
McClintock, 2002) ou na produção de designs específicos de bicicleta
(Burrows, 2004; Wilson e Papdopolous, 2004). Existem também abordagens
médicas, que se concentram nos efeitos positivos que a bicicleta trás para a
saúde (British Medical Association, 1992; Hillman, 1993; Pucher e Dijkstra,
2003) ou a análise de dados de segurança e acidentes (Hewson, 2005; Hagel
et al, 2006;. Robinson, 2006, 2007).
Na área de humanas, a bicicleta tem sido explorada mais amplamente
através de perspectivas históricas, como as obras de Alderson (1972), Tobin
(1974), Ritchie (1975 e 1996), McGurn (1999), Lloyd-Jones e Lewis (2000),
Norcliffe (2001), Simpson (2001), Thompson (2002), Herlihy (2004). Estes
trabalhos de interesse histórico reúnem dados focados em regularidades
internacionais com relação à tecnologia, fabricantes, questões ligadas ao
esporte e às inovações. Sociólogos do esporte (Albert, 1991, 1999; Palmer,
2000; Wieting, 2000; Butryn e Masucci, 2003), têm se focado no estudo de
competições, cross-cycling e no desenvolvimento recente de modalidades
esportivas como triátlon e downrill.
Para a sociologia, uma das principais referências internacionais é o
Cycling and Society, organizado por três cientistas sociais que têm se dedicado
ao tema: ROSEN, COX e HORTON(2007). O livro reúne artigos de diferentes
disciplinas, que partilham o comum interesse de investigação sobre a bicicleta.
Nesta obra podemos encontrar uma revisão teórica multidisciplinar e bastante
ampla relacionada ao uso da bicicleta. Assim, Justin Spinney (2007) explora as
experiências corporais dos ciclistas ao negociar as ruas de Londres,
concentrando-se na experiência de andar de bicicleta da cidade. Clare S.
Simpson (2007) trabalha com as questões de gênero ligadas à bicicleta,
abordando as diferenças dos quadros masculinos e femininos, acessórios, etc.
John Parkin, Tim Ryley e Tim Jones (2007) analisam os fatores que favorecem
ou não o uso da bicicleta no Reino Unido, combinando abordagens
quantitativas e qualitativas dos dados. Oddy (2007) se dedica ao surgimento da
bicicleta e como as condições históricas incentivaram a sua estabilidade
tecnológica. Também numa abordagem histórica, Cox e Van de Walle (2007)
problematizam a concepção de que a bicicleta inevitavelmente deu lugar a
outros meios de locomoção. Phillip Mackintosh e Glen Norcliffe (2007), por sua
vez discutem a relação entre o feminismo e a bicicleta no final do século XIX,
7
analisando como a bicicleta foi utilizada na luta das mulheres para “domesticar
a cidade”. ROSEN, COX e HORTON (2007) fazem um paralelo, comparando
outros grupos que usam a bicicleta a favor de suas pautas, como os
ambientalistas que tentam tornar as cidades mais “verdes" através do uso de
bicicletas (Horto, 2006) (Ferral, 2001; Carlsson, 2002).
Além destes, temos o trabalho de David Skinner e Paul Rosen (2007),
que investiga a dimensão discursiva de funcionários de várias organizações ao
redor de Cambridge, na Inglaterra. Este estudo é particularmente interessante
para nossa reflexão, pois parte da análise de como os usuários se referem a si
mesmos e aos outros enquanto ciclistas e motoristas e aborda questões
referentes à identidade e representação. Os autores concluem que a identidade
“ciclista” não é homogênea no universo estudado, sendo que os trabalhadores
por vezes não se identificavam com a categoria "ciclista" nem tampouco com a
de “motorista”, mostrando que o vocabulário utilizado pelos agentes revela
muito sobre sua atuação e como o fator identitário não se dá automaticamente
pelo uso da bicicleta.
A forma de se referir e de representar o andar de bicicleta também são
fatores importantes para Dave Horton (2007), que aponta que as barreiras para
a utilização da bicicleta também estão num nível ideológico e discursivo. Horton
concentra-se na generalização e na difusão do medo de pedalar, explorando
como tal medo é rotineiramente construído até mesmo nas próprias
campanhas de estímulo ao uso da bicicleta, como o excessivo uso de
equipamentos de proteção, alertando que a construção de representações do
que é o deslocamento de bicicleta é fundamental para a concretização ou não
das próprias práticas de deslocamento.
Num olhar mais cauteloso sobre o ativismo, Ben Fincham (2007) se
concentra em grupos que advogam pela bicicleta, explorando os significados,
motivações e moralidades centrais que circulavam pelos agentes e
movimentos. Para ele a investigação sociológica sobre a bicicleta tem deixado
uma lacuna no que se refere à motivação dos agentes à integrarem os
movimentos ativistas. É interessante atentar para o que o estudo de Fincham
demonstra, ao apontar como estes agentes produzem múltiplas
representações, que exercem efeitos poderosos sobre o que é entendido
como o deslocamento por bicicleta na cidade, e também problematizando como
8
estes agentes entendem o que ele é, como é visto, como poderia ser e o que
se entende como ideal.
Algumas destas pesquisas nos auxiliam a pensarmos como o
deslocamento de bicicleta se torna um problema público em Niterói. Para tanto,
precisamos levar em conta aspectos da dimensão discursiva e de como os
agentes se mobilizam em torno desta causa. Mas estes fatores entram na
análise de forma auxiliar. Minha curiosidade vai para além da decisão ou não
de participar de um movimento ou de utilizar a bicicleta enquanto meio de
deslocamento, não se limitando à rua onde as interações acontecem. Busco
entender como os processos políticos, sociais e culturais que têm acontecido
na cidade produzem entendimentos específicos sobre o espaço e o papel da
bicicleta nos deslocamentos cotidianos da cidade, a ponto de tal ato passar a
ser debatido e considerado na esfera pública.
Para que este trabalho seja capaz de oferecer o quadro que proponho,
alguns níveis acabam se relacionando. Luis A. Vivanco (2013), em seu livro
“Reconsidering the bicycle: An Antropological perspectiv about a new (old)
thing” traduz um pouco dos questionamentos que busco elucidar. Como aponta
Vivanco (2013), mesmo que a decisão de se locomover de bicicleta pareça
uma decisão puramente individual, as condições materiais, a forma como uma
pessoa andando de bicicleta na rua é recebida, as representações sociais,
ideológicas e históricas do ato de se locomover, assim como a sensação de
segurança, o tipo de interação com outros meios de locomoção e o próprio
status que isso gera podem ser determinantes. Todas estas questões
envolvem um emaranhado de interações atravessado pela ação pública, mas
que não se limita nem à vontade política de um governo, nem à uma escolha
individual. Isto depende fundamentalmente de uma concepção socialmente
construída em torno do que é entendido por este ato e a forma como se dá
importância ou não à medidas públicas voltadas para este fim.
Por isso, ao abordar as medidas e instituições da prefeitura, não o
faremos tomando por análise apenas seu regimento e seus posicionamentos
oficiais. O faremos de forma mais ampla, considerando seu contexto geral. Não
nos direcionaremos apenas às estruturas políticas e à gestão do Estado, mas
nos concentraremos nos “modos de ação mais ou menos refletidos e
calculados”, entendo a instituição da prefeitura de forma multifacetada, como
9
estruturadora do “eventual campo de ação dos outros” (FOUCAULT, 1995 p.
244). Assim, a atuação da prefeitura será entendida através de sua ação
política, por meio dos métodos, técnicas e mecanismos que suas instituições
dispõem para a aplicação prática das normalizações e procedimentos
administrativos. Neste sentido, a ação do agentes é essencial, pois é através
deles que as ações da prefeitura se concretizam. Portanto, tomaremos sempre
o cuidado de “analisar racionalidades específicas mais do que evocar
constantemente o progresso da racionalização em geral” (FOUCAULT, 1995 p.
233).
Esse olhar se dará, então, de forma mais cautelosa, buscando entender
como os regimentos e posicionamentos gerais da prefeitura são entendidos,
interpretados e aplicados pelos seus agentes quando leem a política de
Estado, pois como nos ensina Fassin (2013), os agentes não só implementam
a política de Estado “eles a fazem; eles são o Estado.” (FASSIN, 2013 p. 17)
Os agentes não estão isolados da sociedade onde vivem. Seus
julgamentos e valores são atravessados por suas vivências fora de suas
competências oficiais. As suas práticas, tanto pessoais quanto profissionais
estão envoltas numa dinâmica de julgamentos e valores atrelados ao espaço
social onde vivem, que de forma geral direciona seus atos.
A transformação do deslocamento através da bicicleta em um problema
público traz consigo uma gama de significados, valores, afetos e ações que
desafiam, dependem e se dão dentro de uma certa moral vigente, mas que só
podem ser entendidos dentro de um quadro analítico cauteloso, que aborde
estas questões num plano transversal que não é tão aparente. Para tanto, se
faz necessário entendermos o momento histórico da cidade e quem são os
agentes envolvidos.
10
2. QUANDO UM CICLISTA SE VAI
Este é o alerta publicado pelo jornal local O Globo no dia seis de abril de
2015. Sob o título de “Acidentes de trânsito acendem luz amarela em vias de
Niterói: Morte de ciclista chama a atenção para perigo em rua de Santa Rosa”,
podemos ver que a bicicleta já está sendo tratada como um elemento do
trânsito e problematizada na cidade. O atropelamento causou a indignação
pública e foi ainda mais alarmado pela ação de coletivos organizados na
cidade, que logo após o ocorrido puxaram um protesto em memória ao
falecido, que também foi veiculado na mídia local:
8
MATTOS, Thiago. “Acidentes de trânsito acendem luz amarela em vias de Niterói: Morte de ciclista
chama a atenção para perigo em rua de Santa Rosa”. O Globo, Niterói – 06 abril, 2015. Disponível em:
http://oglobo.globo.com/rio/bairros/acidentes-de-transito-acendem-luz-amarela-em-vias-de-
niteroi-15771045#ixzz3rl7ACEDy Acesso em: Maio, 2015.
9
“Ato é realizado após morte de ciclista em Santa Rosa”. O Fluminense, 02 abril, 2015. Disponível em:
http://www.ofluminense.com.br/editorias/cidades/ato-acontece-em-icarai-apos-morte-de-ciclista Acesso
em: Maio, 2015.
10
O Globo (http://oglobo.globo.com/rio/bairros/protesto-em-niteroi-pede-reducao-de-velocidade-em-
vias-apos-atropelamento-morte-de-ciclistas-15752838), O Fluminense
(http://www.ofluminense.com.br/editorias/cidades/ato-acontece-em-icarai-apos-morte-de-ciclista), O
Gonçalense (http://www.ogoncalense.com/noticia/11117/ato---realizado-ap-s-morte-de-ciclista-em-santa-
rosa.html), Jornal de Niterói (http://www.jornaldeniteroi.com.br/2015/04/01/ciclista-morre-atropelado-
em-santa-rosa/), O Dia (http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-03-31/acidentes-na-regiao-
metropolitana-deixam-tres-mortos-e-quatro-feridos.html), Bike é legal
11
O ato a que se refere a matéria foi o “Ato pela vida”, organizado por um
coletivo atuante na cidade, o Massa Crítica Niterói, sendo apoiado e divulgado
também pelos grupos Pedal Sonoro e Mobilidade Niterói. Seu início se deu no
calçadão da Praia de Icaraí, na altura da rua Miguel de Frias, zona sul da
cidade, em um ponto de encontro conhecido entre os ciclistas e batizado como
“cicloponto”. Lá o microfone ficou aberto a quem quisesse falar. Enquanto
alguns ciclistas faziam suas falas, outros estendiam faixas de protesto. Uma
dizia “Omissão e descaso. Um ciclista a menos. Prefeitura de Niterói, até
quando?”, apontando para o entendimento de que o ocorrido não foi um fato
isolado, mas fruto da negligência da Prefeitura com relação a circulação de
bicicletas no trânsito. Outra faixa, que os manifestantes estendiam em frente as
carros quando o sinal fechava, solicitava “Compartilhe a via, respeite 1,5
metros”, num tom educativo direcionado aos motoristas.
Após a concentração, o ato seguiu em cortejo de bicicletas até o local do
acidente. No início do cortejo, os manifestantes gritavam entre os prédios do
Bairro de Icaraí “atropelar ciclista não é acidente!”. Os gritos chamavam a
atenção dos moradores da vizinhança que espiavam de suas janelas e
sacadas, de quem estava nos bares e lanchonetes do local, que por vezes
aplaudiam ou manifestavam apoio. Os participantes do ato foram aos poucos
parando os gritos, chegando em total silêncio ao local do atropelamento, onde
foram feitas duas barreiras para impedir a circulação de veículos na quadra em
que uma Ghost Bike foi instalada.
As primeiras Ghost bikes foram criadas em St. Louis, cidade do estado
americano Missouri, em 2003. Atualmente o ato se estende por todo o mundo,
contando com mais de 650 homenagens espalhadas por um total de 28 países,
segundo o site oficial da Ghost Bike. As Ghost bikes são homenagens à
memória de ciclistas mortos ou atingidos na rua, que consistem na fixação de
uma bicicleta completamente pintada de branco no local do acidente. Em
Niterói, esta foi a segunda instalada, sendo que a primeira está localizada na
Rua General Castrioto no Barreto, zona norte da cidade, na altura do Largo do
Barradas, instalada em 21 de novembro de 2014, em homenagem ao ciclista
http://bikeelegal.com/video/2435/niteroi_-pedalada-em-protesto-a-atropelamentos-reune-centenas-de-
ciclistas) e ATNP(http://www.antp.org.br/website/noticias/show.asp?npgCode=2EBA6EBA-EF8B-
4CC9-BC42-74A934AA1A4E).
12
Luiz Carlos da Conceição, falecido no dia 18 de novembro de 2014, numa
colisão envolvendo três outros veículos. Já a Ghost Bike instalada durante o
cortejo relatado, está localizada na Rua Doutor Mário Viana na altura do
número 264, no bairro de Santa Rosa, Zona Sul de Niterói. Ela foi feita em
homenagem a Edvaldo Souza, de 43 anos, que no dia trinta de março, ao
andar de bicicleta, foi atropelado e morreu na hora.
Enquanto a bicicleta branca era pendurada em um poste, num muro à
sua frente era pichada a frase “Atropelar ciclista não é acidente” e
simultaneamente se desenhava no chão o entorno de um corpo em branco,
fazendo referência a marcas de investigação criminal. Após a quadra ter sido
fechada, um carro da Guarda Municipal apareceu e deu cobertura aos
manifestantes, fiscalizando e apoiando o desvio dos carros. Depois da
instalação da bicicleta, as barreiras foram desfeitas e os manifestantes
seguiram, fazendo uma última parada em um posto de gasolina, próximo ao
local. Neste momento, o microfone foi novamente aberto. Retomo aqui algumas
das falas, que foram selecionadas em um vídeo feito por um dos participantes
do evento11.
13
evidenciando que não percebe nesta interação o reconhecimento da bicicleta
enquanto ocupante legítima da via por parte dos motoristas. Além disso, retrata
o ciclista enquanto vítima da falta de respeito à sinalização e legislação de
trânsito.
A segunda fala aponta para a responsabilidade de agentes que não
estão diretamente, ou ativamente, participando das interações ocorridas nos
deslocamentos cotidianos, apontando para o papel que “o poder público” e o
“empresário de ônibus” tem nas ocorrências ligadas com os deslocamentos por
bicicleta. Isso nos mostra que, segundo sua percepção, a interação na
circulação não é um fato isolado, desconectado de outras relações. O
manifestante não se dirige somente para aqueles que participam ativamente
das interações ocorridas nos deslocamentos cotidianos (carros, motos, ônibus,
pedestres, bicicletas), mas também entende a responsabilidade das
ocorrências dos deslocamentos por aqueles que estão (ou deveriam estar) por
trás delas. Essa percepção de responsabilidade do “poder público” e
empresários nas interações de deslocamentos por bicicleta já aponta para o
entendimento do conflito como um problema público, que precisa ser tomado
enquanto tal.
Além disso, podemos perceber o investimento do manifestante em
qualificar positivamente o ciclista, defendendo sua imagem como “pai de
família”, não sendo um “ciclista maluco”. Por que é necessária esta
qualificação? O que isso nos revela? Este cuidado de construir uma imagem
positiva, as palavras escolhidas para falar sobre quem se refere e como se
refere, revelam também uma certa percepção de como quem se locomove de
bicicleta é encarado no cotidiano da cidade e qual a imagem que se tenta
passar pelo movimento.
A morte ocorrida, além de estampar os jornais e mobilizar os
manifestantes, também contou com a manifestação do Programa municipal
Niterói de Bicicleta. O programa, criado pela vice-prefeitura do presente
mandato municipal (2012-2016) visa “a melhoria da mobilidade urbana focada
no uso da bicicleta como meio de transporte”12. Com a repercussão do
12
Descrição feita com base no texto de apresentação do programa em sua página de Facebook.
Disponível em: https://www.facebook.com/NiteroiDeBicicleta Acesso em: Março, 2015.
14
acidente, no dia 31 de Março o Programa divulgou a seguinte nota oficial em
sua página oficial do Facebook:
13
Disponível em: https://www.facebook.com/NiteroiDeBicicleta/posts/1051965164820020" Acesso em:
Abril, 2015.
15
formalizado para também apreender os valores e emoções que atravessam as
políticas e práticas dos agentes. Este incidente, a mobilização de um grupo em
torno dele, a repercussão midiática e o entendimento dele enquanto um
problema público desempenhou uma agencia importante na cidade, ao ponto
de constranger o programa responsável pelas políticas para bicicleta a se
pronunciar publicamente sobre o assunto e parar a câmara municipal num
minuto de silêncio. Assim, argumenta Fassin (2013), devemos ir além de uma
dimensão abstrata e neutra que o Estado busca passar, para uma realidade
que se dá de forma concreta e situada, que se materializa nos indivíduos e se
inscreve em uma dada temporalidade. Portanto, ao examinar as relações que
se estabelecem entre a população e os agentes, ao invés de "pessoa coletiva"
desmaterializada, “poder público” ou a "administração", vamos nos concentrar
nos indivíduos que as constituem, seu contexto e suas razões históricas.
Ao falar da questão da bicicleta em Niterói, não podemos nos restringir à
análise das medidas da prefeitura, pois isso nos impediria de entender o
momento histórico e o emaranhado de relações em que o tema do
deslocamento por bicicleta está inserido. O que acontece nas ruas e o
entendimento destes acontecimentos pelos agentes é fundamental.
Precisamos também entender quem são os agentes que trabalham dentro da
prefeitura e o que consideram sobre as políticas que implementam (FASSIN,
2013 p. 13-15).
Ao andar pelas ruas e também ao acompanhar o grupo de Facebook do
Niterói de Bicicleta, não raras vezes me deparei com denúncias de carros
oficiais invadindo as ciclovias da cidade. Este é um ponto a se considerar: se o
carro de um agente da prefeitura invade uma ciclovia, que é um espaço
destinado exclusivamente ao tráfego de bicicleta, o ato em determinado
momento passa por um julgamento moral, sendo que no momento vivido o
agente não julgou ser um problema suficientemente grande para impedi-lo de
fazê. O Estado também está presente na ação deste agente, que não somente
aplica a política de Estado, mas ao mesmo tempo produz a ação pública. E
vemos aí uma dinâmica transversal – a moral criada na sociedade em que o
agente vive dá a ele as regras de suas ações. Assim, afirma Fassin (2013):
“não é apenas o estado que dita a política aos agentes, mas também são os
agentes que fazem a política do Estado” (FASSIN, 2013 p. 18).
16
Assim, para entender o contexto das relações expostas, não podemos
nos ater aos simples pronunciamentos do programa como a posição geral da
prefeitura. Esta se configura como um campo (Bourdieu, 2003) onde existem
oposições entre seus agentes, departamentos e instituições – que
desempenham os mais variados papéis no planejamento e execução de seu
funcionamento. Não podemos ignorar também a agencia de outros órgãos,
instituições da sociedade civil e eventos que se relacionam diretamente com as
ações e posicionamentos das instituições prefeitura, como pudemos ver com a
Ghost Bike.
Há na instauração de regras, na criação de programas e nas ações das
instituições públicas a influência direta de questões morais, que estão sempre
associadas ao racional e ao emocional, sendo que não podem ser entendidas
sem considerarmos os agentes envolvidos. Fassin (2013) aponta para a
importância das economias morais e subjetividades morais e seu papel nas
instituições públicas. As economias morais representam a produção, circulação
e apropriação de valores e emoções, caracterizadas por um momento histórico
e um mundo social específicos. Elas se dão na forma que uma sociedade é
constituída através de julgamentos e sentimentos, criando uma espécie de
senso comum e apreensão coletiva de determinado problema. Isto fica bem
ilustrado com o advento da morte do ciclista e a forma como ela foi abordada. A
morte do homem que se locomovia de bicicleta, mobilizou emocionalmente o
grupo de ciclistas num ato. Este pesar não somente se restringiu aos
manifestantes, sendo inclusive partilhado na nota veiculada pelo programa, que
se “solidariza neste momento de grande dor”, além do minuto de silêncio na
Câmara. O entendimento do incidente como um problema público, que
compete ao “poder público” também é partilhado para além dos manifestantes,
sendo que as medidas anunciadas pelo programa futuramente seriam para
evitar situações semelhantes. Não podemos desconsiderar esta carga
emocional do evento, pois isso nos impediria de entender a ação do programa.
Vemos então que as questões morais não se limitam e nem se
produzem somente no interior do Estado, elas perpassam toda a sociedade.
Para entender os trabalhos morais das instituições é preciso analisar a tensão
no espaço público. Por isso, não podemos ignorar a produção de significados,
valores e afetos que ocorrem fora de seu funcionamento.
17
Todos estes fragmentos e situações descritas até agora, nos levam a
compreensão de que o deslocamento através da bicicleta tem sido refletido e
tem envolvido diversas pessoas que nas mais variadas situações da vida
urbana pensam, agem, sentem e julgam a seu respeito. Este tipo de
deslocamento é parte do cotidiano da cidade, estando imerso nas mais
variadas relações sociais, refletindo até mesmo naqueles que não fazem o seu
uso. É impossível apreender o espaço social ligado aos deslocamentos através
de bicicletas considerando isoladamente o deslocamento em si. Assim,
buscaremos entender, mas ao mesmo tempo nos afastar das unidades pré-
construídas dentro de programas e instituições, para ampliar a visão sobre o
campo de relações que na prática ocorrem, para construir os espaços sociais
que se dão através das relações objetivas que, como nos ensina Bourdieu
(2003), se dão de forma muito abstratas, sem que possamos “tocá-las nem
apontá-las a dedo”, mas é o que constitui toda a realidade do mundo social
(BOURDIEU, 2003. p. 30).
Desta forma, o campo não se define pelas posições oficiais, regras e leis
ditadas por uma instituição, mas a partir das interações que geram e se
consumam através de suas próprias regras, princípios e hierarquias dadas,
sobretudo, na prática das relações. Por mais que o código brasileiro de trânsito
diga que a prioridade é de veículos não motorizados sobre os motorizados
(CTB, 2007) e que o Programa Niterói de Bicicleta se comprometa com a
sinalização adequada em sua nota, o que foi relatado por um dos
manifestantes é que os motoristas dirigem “como se a rua fosse exclusiva dos
carros”. A hierarquia se dá na prática e não no código. A realidade social é
assim, construída por espaços em que ocorrem relações, conflitos e tensões
entre os agentes sociais, sendo que estes são determinantes e determinados,
influenciados e modificados através das próprias ações dos envolvidos (direta
ou indiretamente).
Não podemos esquecer do contexto da situação exposta. Esta Ghost
bike é a segunda homenagem prestada a um ciclista morto, sendo que um dos
manifestantes do ato chama a atenção para o pequeno intervalo entre duas
mortes envolvendo a bicicleta. Se formos analisar a ocorrência de morte de
ciclistas, usando como base um levantamento elaborado a partir dos dados do
Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde,
18
veremos que em alguns anos anteriores o número de mortes de ciclistas na
cidade foi superior. Assim, em 2003 foram registrados cinco óbitos, em 2006
foram quatro registros e em 2010, três.14
Por que, então, nos anos citados acima não houveram protestos? Por
que a veiculação de notícias relacionadas a essas ocorrências não ganhou
anteriormente o mesmo destaque na mídia? A homenagem ao homem morto
poderia ter sido feita em sua casa, no cemitério, em seu ambiente de trabalho.
Mas por que, então, acontece ali, na rua onde ocorreu sua morte? Por que
pessoas que não o conhecem se reúnem para prestar tal homenagem? Por
que um manifestante se diz triste por alguém que não conhecia? Por que o
programa Niterói de Bicicleta manifesta seu pesar? Por que estas pessoas
saem de suas rotinas cotidianas para participarem deste ato? Por que, ao se
referir a ele, usam a denominação ciclista?
Todas estes fatores apontados até aqui nos fazem perceber que há,
envolto ao simples ato de se deslocar de bicicleta, uma grande mobilização de
pensamentos, julgamentos, sentimentos, afetos, disputas e tensões. Utilizar a
bicicleta para se locomover em Niterói parece ter deixado de ser visto como um
ato isolado. Somente neste pequeno quadro apresentado, já é possível ver,
através das falas citadas, faixas e da própria existência de um ato, do advento
de um programa municipal criado apenas para lidar com este deslocamento,
em seu pronunciamento em nota pública e da cobertura da mídia, que está em
curso uma politização do ato de andar de bicicleta.
A Nota Pública do Programa Niterói de Bicicleta a respeito da morte de
Edvaldo Souza, só foi feita após certa pressão na página do programa, feita por
perfis de coletivos e de agentes ligados aos mesmos. Não apenas o
depoimento do manifestante, mas a própria pressão para o pronunciamento do
programa mostram que os agentes atuantes entendem este acontecimento
enquanto uma consequência da ausência do poder municipal, enquanto um
problema de sua responsabilidade. A homenagem feita não é desconectada de
seu contexto, ela é fruto da transformação do ato de andar de bicicleta em um
problema público. Desta forma, a homenagem é, antes de mais nada, um ato
14
Disponívem em: http://www.deepask.com/goes?page=niteroi/RJ-Acidente-de-transito-com-morte-
de-ciclista:-Veja-o-numero-de-obitos-e-a-taxa-por-100-mil-pessoas-no-seu-municipio Acesso em: Abril,
2015.
19
político, que quer chamar a atenção para a presença do ciclista, caracterizá-lo
positivamente e apontar para a sua fragilidade na dinâmica de interações
cotidianas estabelecidas nos deslocamentos urbanos.
Este momento é de fundamental importância, pois neste contexto
podemos perceber como este tipo de deslocamento está sendo
problematizado. Houve todo um “trabalho social” que envolveu o
reconhecimento do “problema” enquanto tal. Tal reconhecimento, como afirma
Lenoir (1998) deve “tornar visível uma situação particular” e torná-la “digno de
atenção” – o que pressupõe a ação “dos grupos socialmente interessados em
produzir uma nova categoria de percepção do mundo social” e a legitimação,
que “não é necessariamente induzida pelo simples reconhecimento público do
problema, mas pressupõe uma verdadeira operação de promoção para inseri-lo
no campo das preocupações ‘sociais’ do momento” (LENOIR, 1998, p. 84).
Neste sentido, a morte do ciclista e a mobilização em torno do feito pelos
ciclistas, sua ampla divulgação e o posicionamento dos agentes públicos sobre
o ocorrido contribuem para a que sua problematização tenha sido reconhecida
e legitimada.
Mas, para entendermos melhor as percepções e relações que permitem
que isto seja entendido enquanto um problema público em Niterói, precisamos
analisar mais de perto quem são os agentes que atuam nesta área e como se
inserem no contexto da cidade.
20
3. A BICICLETA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
15
A Nittrans é o órgão que gere o trânsito da cidade até hoje. Na configuração atual, as competências da
Nittrans se referem ao planejamento e gerenciamento técnico-operacional do sistema de transportes e
trânsito e do sistema viário do município, em conformidade com as políticas públicas adotadas pelo
Governo Municipal. As competências da empresa são divididas em cinco diretorias: Diretoria da
Presidência, Diretoria de Administração, Diretoria de Finanças, Diretoria de Planejamento de Transportes
e Trânsito, Diretoria de Infraestrutura Viária, sendo a empresa administrada por um Conselho de
Administração. Sua ação se volta para o planejamento e desenvolvimento de projetos de educação e
regulamentação da circulação de pedestres, motoristas e ciclistas em vias públicas; implantação,
manutenção e operação do sistema de sinalização e dos dispositivos e equipamentos de controle viário;
desenvolvimento e implantação de medidas para redução da circulação de veículos e reorientação do
tráfego, visando à qualidade do meio ambiente; coleta de dados estatísticos e elaboração de estudos
técnicos sobre os acidentes de trânsito e suas causas. (NITEROI, 2005)
16
Sergio Marcolini se formou em Engenharia Civil pela Universidade Federal Fluminense (UFF) em 1976,
dela se afastando apenas em 1980 para se especializar em Hidrologia na Universidade de Padova, na
Itália. Marcolini concluiu a pós-graduação em Planejamento Ambiental na UFF em 1985, sendo que em
2005 especializou-se em Administração Pública na mesma instituição. Em 2011 concluiu mestrado em
Engenharia Urbana pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trajetória Pública - Marcolini é
engenheiro de carreira do Estado. Trabalhou na Serla que, na fusão com a Feema e o IEF, deu origem ao
Instituto Estadual do Ambiente (Inea). Foi superintendente da Serla de 1983 a 1984, e em 1989 foi
cedido à Prefeitura de Niterói, onde foi secretário de Desenvolvimento da Região Oceânica (1989-1992);
secretário de Urbanismo (1992); chefe de gabinete do Prefeito João Sampaio (1993-1994); secretário de
Serviços Públicos (1995-1996); secretário Regional de São Francisco, Charitas e Jurujuba (1997-2002);
secretário de Serviços Públicos e presidente da Sutran (2003-2004); e presidente da NitTrans
(2009/2012). Atualmente, além de presidir a Ceasa-RJ, Marcolini responde pela presidência da
Companhia Central de Armazéns e Silos do Rio de Janeiro, a Caserj.
21
Em sua explanação, falou sobre um estudo feito pela Nittrans para o
estabelecimento de “rotas cicláveis” que seriam vias compartilhadas com
sinalização para a circulação de ciclista. O circuito foi definido com base numa
pesquisa realizada nas ruas da cidade para identificar os principais trajetos
feitos pelos usuários de bicicletas. Em sua apresentação ainda defendeu a
necessidade de se pensar o trânsito para além dos automóveis:
17
Transcrição feita por Fabíola Mar. Disponível em: http://www.felipepeixoto.com.br/?noticias&c=1-
915&q=Seminario+debate+alternativas+para+uma+mobilidade+urbana+sustentavel Acesso em:
Fevereiro de 2015.
18
O PAC 2 se refere ao Pacto de Aceleração de Crescimento lançado pelo Governo Federal em março de
2010 pelo governo federal. O Pacto que previa a distribuição de recursos para segmentos como
transporte, energia, cultura, meio ambiente, saúde, área social e habitação, dispostos em seis áreas de
investimentos: Cidade Melhor; Comunidade Cidadã; Minha Casa, Minha Vida; Água e Luz para todos
(expansão do Luz para Todos) e Transportes e Energia. A questão da mobilidade está localizada da na
22
projetos, dos quais 70% contemplavam o uso de ciclovias ou ciclofaixas. Ele
destaca:
área do PAC “Cidade Melhor”, com o objetivo de enfrentar desafios dos grandes centros urbanos.
Dentro desta área estão o “PAC Mobilidade Urbana” (ou PAC da Copa ): “PAC 2 - Mobilidade Grandes
Cidades” e “PAC 2 - Mobilidade Cidades Médias”
19
Transcrições das falas feitas por Fabíola Mar. Op. Cit.
23
IMAGEM 3 – Plano cicloviário de Niterói do Programa Rio –Estado da Bicicleta
24
(ciclovias, ciclofaixas, faixas compartilhadas e rotas ciclísticas); pontos de
estacionamento de bicicletas; serviço de aluguel de bicicletas públicas e
20
sinalização vertical e horizontal (NITEROI, LEI 2832/2011. Artigo 1). Além
disso, o descumprimento das proibições estabelecidas no art. 4º da lei (que fala
sobre a proibição de tráfego de motorizados nas ciclovias) prevê penalidades
como advertência, multa, remoção e apreensão do veículo, sendo que o
responsável pela regulamentação e fiscalização é o Poder Executivo, através
da autoridade municipal de trânsito e pela guarda municipal (NITERÓI, LEI
2832/2011, Artigos 5 e 6).
Glauston Pinheiro, Arquiteto e Urbanista, pós-graduado em Gestão,
Educação e Segurança de Trânsito e Mestre em Engenharia Urbana (UFRJ),
foi assessor técnico da Presidência da NITTRANS na gestão de Marcolini,
participando da Oficina Ampliada do Programa Bicicleta Brasil, em Brasília. Sua
atuação foi importante nas políticas voltadas para a bicicleta dentro da Nittrans,
sendo que auxiliou o primeiro planejamento cicloviário da cidade e na
confecção da primeira cartilha para o ciclista em Niterói. O Glauston foi uma
importante ajuda no levantamento de dados sobre o que aconteceu na Nittrans,
tanto na gestão de Marcolini quanto após a transição para o atual presidente.
Segundo ele, durante o primeiro seminário a Nittrans não tinha nenhuma rede
cicloviária.
20
Disponível em: < https://www.leismunicipais.com.br/a/rj/n/niteroi/lei-ordinaria/2011/284/2832/lei-
ordinaria-n-2832-2011-institui-o-estatuto-da-bicicleta-e-da-outras-providencias> Acesso em: Dezembro,
2014
25
citados em inglês, o que sugere que as políticas voltadas para o deslocamento
através de bicicleta ainda estão sendo definidas como uma área de política
pública no Brasil.
Este seminário foi a porta de entrada para a bicicleta enquanto política
pública na cidade. É interessante perceber que a Nittrans se esforçou em reunir
as “autoridades” do assunto. Em seu curso de 25 de janeiro de 1990 Bourdieu
aborda a questão das nomeações:
“Se há um ato estatal é justamente a nomeação – de um conjunto de
pessoas reconhecidas como habilitadas, socialmente designadas
para cumprirem certa função; em seguida, a designação de um
problema digno de ser tratado por pessoas dignas de administrar os
problemas públicos. O problema público é o que merece ser
abordado publicamente, oficialmente. (BOURDIEU, 2014, p.56)”
26
circuito.21 Além disso foram implantadas duas ciclofaixas, ou seja, faixas sem
segregação física, mas com demarcações horizontais que estabelecem um
espaço exclusivo para bicicletas, nos bairros de Icaraí, São Francisco e
Charitas, com aproximadamente 8 quilômetros. Ao longo da Estrada Leopoldo
Fróes, via de mão única que liga Icaraí a São Francisco, a ciclofaixa foi
demarcada horizontalmente, com taxas luminosas e placas indicativas para
orientação dos motoristas quanto à necessidade de respeito à sinalização
existente. Já em São Francisco e Charitas, a ciclofaixa foi feita junto ao
canteiro central das pistas. Esta ciclofaixa foi feita para praticantes de triatlo,
tendo um horário de funcionamento entre as 06h às 11 horas ao longo de 6
quilômetros. Fora desse horário as pistas ficam livres para a circulação do
trânsito. Ao todo, até o fim da gestão de Marcolini, 15 quilômetros de estruturas
cicloviárias foram instaladas. Da seguinte forma:
21
Mais informações disponíveis em:
http://www.sejaniteroi.com.br/novo/materiasouniteroi.php?id=202480 Acesso em: Abril, 2015
27
IMAGEM 4: CICLOVIAS GESTÃO MARCOLINI (EM AZUL)
28
Desenvolvimento (ITDP23), trazendo um seminário reduzido em comparação ao
primeiro. O evento aconteceu em apenas um dia (13/06/2012) e contou com a
organização da contratada I-Fluxo (empresa de consultoria e engenharia de
mobilidade urbana), que estruturou o seminário com trabalhos interativos. O
evento contou com representantes da GIZ (Agência Alemã de Cooperação
Internacional), ITDP (Institute for Transportation and Development Policy),
Sinergia, Rio Estado de Bicicleta, TA (ONG - Associação Transporte Ativo),
UFRJ, UFF, e da própria prefeitura de Niterói.
Segundo o relatório final apresentado pela I-Fluxo24, 237 participantes
estiveram presentes no seminário, apontando as seguintes demandas: mais
espaços de circulação para pedestres e ciclistas, mais campanhas de
promoção de políticas de mobilização; aprimorar o transporte público, mais
corredores de ônibus, melhor serviço e com informações aos usuários; gestão
de demanda de automóveis por restrições e taxação de estacionamento, taxas
de congestionamento e prioridade para pedestres, ciclistas e transporte
público; melhorar a acessibilidade universal na cidade toda e mais ações de
planejamento participativo.
Ao final do evento aconteceu o ato formal de assinatura do Convênio de
Cooperação no Desenvolvimento de Ações nas Áreas do Transporte e
Mobilidade Urbana entre a Prefeitura de Niterói e o ITDP. O fim do evento foi
comemorado com uma bicicletada do Museu de Arte Contemporânea em
Niterói, até o Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro, no dia 17/06/2012.
Segundo o Glauston, a dinâmica do segundo seminário foi diferente porque a
cidade já tinha avançado com relação ao primeiro, que tinha a intenção de
explorar que estava sendo pesquisado e feito com relação à bicicleta no Brasil
e no exterior. Na ocasião do segundo seminário, Niterói já contava com uma
rede implantada, tinha a intenção de trocar experiências, mas também ter a
participação efetiva do público. Por isso o workshop. Para saber mais das
23
Fundado em 1985, o ITDP - Institute for Transportation and Development Policy é uma entidade sem
fins lucrativos age na promoção de transporte sustentável e equitativo, buscando reduzir as emissões de
carbono, poluição atmosférica, acidentes de trânsito e a desigualdade social. O ITDP está no Brasil desde
2009, tendo um escritório no Rio de Janeiro. É conhecido mundialmente pela sua consultoria em cidades
como Nova Iorque e Bogotá. Mais informações disponíveis em: http://itdpbrasil.org.br/quem-somos/
Acesso em: Abril, 2015.
24 Disponível em:
<http://ifluxo.com.br/media/Downloads/120904%20II%20SEMINARIO%20DE%20MOBILIDADE%20
SUSTENTAVEL%20BY.pdf > . Acesso em: Dezembro de 2014.
29
experiências dos ciclistas nas ruas de Niterói e também dos processos
ocorridos em outros lugares – por isso o ITDP e a GIZ da Alemanha foram
convidados.
Nessa época, Marcolini deu uma entrevista para um jornal local falando
das iniciativas e da possibilidade de Niterói se tornar uma referência em
planejamento cicloviário no Brasil25. É interessante notar que sua fala foi
repetida pelos principais candidatos à prefeitura de Niterói nas eleições.
Ainda em 2012, os dois principais candidatos à prefeitura (Felipe Peixoto
e Rodrigo Neves) falavam sobre a bicicleta como alternativa para a mobilidade.
Mas cada um sob uma perspectiva diferente.
26
Fonte: Site de campanha Felipe Peixoto
25
ARAÚJO, Pamela. Após a implantação, nos últimos meses, de duas ciclofaixas nos bairros de Icaraí,
São Francisco e Charitas, novo projeto pretende ampliar a malha cicloviária da cidade. O FLUMINENSE.
Niterói, 24 de abril, 2011.
26
Disponível em: www.felipeprefeito12.com.br/niteroidofuturo . Acesso em: 26/12/2014
30
implantação efetiva de ciclovias, ciclofaixas e vias compartilhadas em
toda a cidade. Assim como melhorar a sinalização e a iluminação das
vias. Oferecer serviço público de aluguel de bicicletas e intensificar as
campanhas de educação para o trânsito, garantindo mais respeito
27
aos ciclistas” (PEIXOTO, 2012).
27
Disponível em: http://blog.felipepeixoto.com.br/tag/estatuto-da-bicicleta/ Acesso em: Maio, 2015.
28
Entrevista para o Jornal A Tribuna-RJ. Disponível em:
http://www.atribunarj.com.br/noticia.php?id=9349&titulo=ELEI%C7%D5ES%202012%20-
%20NITER%D3I . Acesso em: 23/12/2014.
29
http://www.fecierj.org.br/novosite/imagens/niteroi_bicileta.pdf
31
pedestres, com fechamento de vias públicas para área de lazer nos domingos
e feriados”.
IMAGEM 6 – Campanha Rodrigo Neves
30
Fonte: Blog Axel Grael
“Acredito muito que Niterói pode ter uma malha cicloviária segura e
eficiente e não as ciclofaixas que o Jorge Roberto fez, que são um
absurdo. O (meu candidato a vice) Axel Grael, como ambientalista,
ajudou a projetar as ciclovias do Rio. Já estamos com um programa
chamado Niterói Bicicleta e vamos fazer de Niterói a cidade da
31
bicicleta” (NEVES, 2012).
30
Disponível em: http://axelgrael.blogspot.com.br/2012/09/rodrigo-neves-e-axel-grael-lancam.html.
Acesso em: 26/12/2014.
31
Entrevista para o Jornal O Dia. Disponível em: http://odia.ig.com.br/portal/brasil/eleições-2012/vou-
iniciar-novo-ciclo-na-história-de-niterói-afirma-rodrigo-neves-1.498323 . Acesso em: 23/12/2014.
32
subalterno à outras secretarias, mas diretamente ligado ao vice-prefeito, Axel
Grael, que teve 13 anos de experiência na administração pública, tanto
municipal quanto estadual, além de ter trabalhado 10 anos com consultoria
ambiental. Sua família é conhecida pela relação com os esportes de vela,
sendo que é presidente do Projeto Grael, um projeto social que ensina crianças
de comunidades a velejar.
Enquanto Rodrigo Neves, chamava a atenção para um tipo de gestão
participativa através da criação de um programa específico, contando com a
inclusão da bicicleta não apenas nas vias já existentes, mas na implementação
de um novo projeto urbanístico, Felipe Peixoto, por sua vez, se comprometia a
fazer com que as disposições do Estatuto da Bicicleta fossem cumpridas
através das estruturas políticas já existentes. O destaque da presença da
bicicleta nas campanhas municipais aponta para o reconhecimento do caráter
público do tema. Os agentes políticos, neste contexto, anunciam as propostas
de políticas públicas para lidar com a questão.
Assim, se a bicicleta não somente passou a ser considerada dentro da
administração pública pela Nittrans, como também passou a ser ponto de
destaque nos debates e disputas políticas eleitorais na cidade.
33
por gerir o trânsito da cidade – a Nittrans. Todas as medidas até então estavam
sendo planejadas e executadas através dos esforços no interior desta
instituição. Com a entrada do novo corpo executivo da cidade esta situação
muda. As políticas para bicicleta ficaram concentradas no âmbito do Programa
Niterói de Bicicleta, vinculado à vice-prefeitura e sem repasse de recursos.
Para lidar com este problema, o vice-prefeito propôs um grupo de trabalho, que
seria composto pela vice-prefeitura, secretarias de Meio Ambiente, Urbanismo
e Mobilidade Urbana, Obras, Conservação e Serviços Públicos, Ordem Pública,
Educação, Nittrans, Esporte e Guarda Municipal. O organograma cedido pelo
programa nos ajuda a entender como ficariam distribuídas as funções e
responsabilidades entre os órgãos:
32
Argus Caruso Saturnino é arquiteto formado pela UFMG e mestre em Design pela PUC-RJ. Ficou
conhecido nacionalmente pela sua viagem pelo mundo de bicicleta que durou 3 anos e meio, durante a
qual fez seu projeto “Pedalando e educando”, em que passava por escolas no seu caminho ensinando
história e geografia dos países que já tinha visitado.
34
precisava lidar com questões relativas à instalação do novo e manutenção do
sistema cicloviário já existente na cidade. Dos que estão no organograma
acima, os que influem mais sobre o sistema cicloviário são a SECONSER
(Secretaria Municipal de Conservação e Serviços Públicos), que é a secretaria
responsável por questões relativas à preservação das estruturas (buracos,
rachaduras no asfalto, bueiros, etc.) e a Nittrans é o órgão que cuida da
pintura, fiscalização e sinalização de trânsito. Além disso ainda tem a EMUSA
lida com as licitações de projetos.
No primeiro ano de atividade do programa foram instalados 15 km de
malha cicloviária na cidade, incluindo as primeiras ciclovias. As primeiras
ciclovias, exclusivas para circulação de ciclos (veículos de propulsão humana:
patins, skate e bicicleta) e com segregação física foram a da Rua Timbiras, em
São Francisco, e duas em importantes avenidas da cidade: Ernani do Amaral
Peixoto, no Centro, e Roberto Silveira, em Icaraí. Além das ciclovias, houve a
demarcação das ciclofaixas do Circuito Universitário, que possui sete
quilômetros e abrange um circuito entre os bairros do Centro, Ingá, Boa
Viagem, São Domingos e Gragoatá.
35
No dia quatro de dezembro de 2014 o Programa foi contemplado com
dez mil reais pela Fetranspor33 pelo Prêmio Mobilidade Urbana 2014 na
categoria de Responsabilidade Social e Meio Ambiente. Segundo Argus o
prêmio era o primeiro recurso que entrava para o Programa. A utilização do
recurso ganho foi decidida junto ao coletivo Massa Crítica.
Argus ficou apenas até janeiro de 2015 no Programa, anunciando sua
saída através de uma carta compartilhada publicamente em seu perfil pessoal
e pela página do programa no Facebook. Enquanto Argus estava a frente do
Programa, seu contato com a população era intenso. Primando pelo bom
relacionamento com a população, o coordenador buscava encaminhar e
orientar às pessoas a dirigir suas demandas e denúncias para as devidas
secretarias e instituições envolvidas. Dado o crescimento do número de
denúncias e participação ativa da população, a própria ouvidoria da
SECONSER34 passou a frequentar e ser solicitada no grupo de Facebook do
Niterói de Bicicleta para verificar as denúncias e responder às demandas.
Na carta de despedida de Argus, que marcou sua saída do Programa,
Argus prestava conta de suas ações:
33
Federação das Empresas de Transportes de Passageiros do Estado do Rio de Janeiro. A federação
congrega dez sindicatos de empresas de ônibus de transporte urbano, interurbano, de turismo e
fretamento, sendo que os sindicatos, por sua vez, representam mais de 200 empresas de ônibus,
corespondendo a 81% do transporte público regular no Estado do Rio de Janeiro.
34
Secretaria de Conservação e Serviços Públicos (SECONSER), criada no início de 2013 afim de
concentrar e coordenar os serviços de manutenção e conservação da infraestrutura urbana, incluindo
praças e parques naturais, além da prestação do serviço de iluminação pública.
35
CARUSO, Op.cit.
36
“Logo na primeira ciclovia, a da Amaral Peixoto, precisei comprar
uma grande briga dentro da prefeitura. Contei com o apoio do Axel,
que sempre esteve comigo. A Nittrans insistiu em não fazer a ciclovia
e somente com a intervenção do prefeito, conseguimos realizar o
36
projeto.” (CARUSO, 2013 )
36
CARUSO, Idem.
37
sua atuação em uma organização holandesa de consultorias de políticas
públicas voltadas para bicicleta.
Segundo a Isabela, o que está previsto para o ano letivo de 2015 é a
finalização do Projeto Básico Cicloviário de Niterói, a implantação da ciclofaixa
temporária na Marquês do Paraná, a manutenção dos 30 km de infraestrutura
cicloviária já existente, a implantação de 10 a 15 km de nova infraestrutura
cicloviária e a finalização e licitação do Projeto do Bicicletário das Barcas. Junto
a esta meta, ainda se somam as atividades do programa do Programa até
2016, que estão divididas da seguinte forma:
IMAGEM 9 – CRONOGRAMA
38
esteve atuando junto ao Niterói de Bicicleta para servir de ponte até a
autarquia. Esta foi tida como uma conexão importante, ressaltada por Axel
Grael, pois grande parte da execução de medidas estipuladas pelo Niterói de
Bicicleta é dependente das ações da Nittrans. Antes da entrada da Isabela
Ledo no Niterói de Bicicleta, Argus já tinha uma relação mais íntima com o
Glauston, como relata:
37
Homenagem prestada ao Glauston, que faleceu em Março de 2016.
39
Para licitar o projeto básico da malha cicloviária, dez meses. Por
38
conta disso, existiu um vácuo” (CARUSO, 2013 ).
38
CARUSO, Op.cit.
40
ainda assim, um efeito, pois apesar de tudo consegue fazer crer que
é aquilo que quer fazer crer” (BOURDIEU, 2014, p.60).
3.3. Nittrans
42
trânsito, fazendo pesquisas de origem /destino e meios de locomoção nos
condomínios da cidade, além de promover meios alternativos de transporte,
tendo um entendimento de trânsito que englobava também pedestres e
ciclistas, contando com projetos de ampliação de faixas de pedestre, a
elaboração das ciclorrotas no centro da cidade e o esforço para debater a
questão da bicicleta, como se pode acompanhar nos dois seminários sobre
mobilidade sustentável promovidos pela autarquia em sua gestão. Segundo
Glauston, enquanto a Nittrans estava sob a presidência de Marcolini havia uma
equipe técnica capacitada, que estudava e que estava se especializando nos
temas relacionados ao deslocamento por bicicleta para aprimorar os projetos e
estudos.
No fim de 2012, com a saída de Marcolini e a entrada do Coronel Paulo
Afonso da presidência da Nittrans, a autarquia passa por uma grande mudança
de atuação. Paulo Afonso Cunha ingressou na Polícia Militar com 15 anos.
Dentro da corporação iniciou sua formação em direito em 1969, dando
seguimento a uma carreira militar, tornando-se coronel e tendo passado pelo
comando do 9º Batalhão da Polícia Militar (BPM) de Rocha Miranda, do 19º
BPM de Copacabana e do 23º BPM do Leblon na cidade do Rio de Janeiro. Em
dezembro de 1996, enquanto ainda comandava o 23º BPM, Paulo Afonso
Cunha foi convidado pelo prefeito eleito do Rio de Janeiro, Luiz Paulo Conde,
para ser Secretário de Trânsito Municipal, cargo que exerceu a partir de 1997
até 2001. Entre 2007 e 2011 trabalhou na Diretoria Técnica de
Relacionamento com o Mercado da Central de Abastecimento do Estado,
ocupando o cargo de diretor técnico de Relacionamento das Centrais de
Abastecimento do Estado do Rio (Ceasa). Em dezembro de 2012, foi
convocado pelo prefeito recém eleito, Rodrigo Neves, para presidir a Nittrans.
Sua posse foi complicada, pois enquanto era Secretário de Trânsito do
Rio de Janeiro, Paulo Afonso foi condenado por improbidade administrativa por
contratar irregularmente empresas de reboque pertencentes a policiais
militares. O Tribunal de Justiça declarou sua perda da função pública em 2001,
além da suspensão dos direitos políticos e a proibição de contratar ou receber
benefícios, incentivos fiscais ou creditícios do poder público, por três anos. Sua
43
posse só se concretizou porque o processo estava em andamento e por isso
coube recurso39.
Além da nomeação para a presidência da Nittrans, Paulo Afonso
assumiu também o cargo de subsecretário de Trânsito e Transportes. Em
janeiro de 2013, logo no início de suas atividades, anunciou publicamente que
a Nittrans deixaria de ser uma empresa de engenharia de trânsito para se
tornar operacional, sendo que os agentes estariam passando por um
treinamento intensivo de 60 horas na Polícia Militar, que lhes daria maior poder
de ação nas ruas da cidade40. Este anúncio marca sua posição frente à forma
como Sergio Marcolini estava gerindo a autarquia em seu mandato, deixando
claro a militarização da corporação e as ações voltadas para garantir a fluidez
dos veículos, com enfoque maior no que acontece na rua do que em
planejamentos de engenharia. Glauston conta que a equipe técnica
especializada nas questões de deslocamento via bicicleta deixou de existir
nesta gestão. Além disso, afirmou que as sinalizações horizontais das ciclo-
rotas que fez na gestão anterior estão sendo apagadas “a fim de deixar para a
trás a marca do governo anterior, sem pensarem na população e nos
benefícios que a mesma trouxe a cidade”. Segundo ele em 2011 Niterói estava
mais avançada que o Rio de Janeiro em termos de velocidade de implantações
e inovações ligadas a mobilidade. A atual gestão tem se concentrado na
formação de agentes para apitar o trânsito.
O Cel. Paulo Afonso tem um histórico bastante polemizado
publicamente. Além do processo já citado no evento de sua nomeação, em
1997, O GLOBO publicou uma matéria denunciando Paulo Afonso enquanto
ainda era secretário de Trânsito do Rio de Janeiro. Neste período ele
supervisionava de moto o tráfego pela zona sul da cidade, mas possuía
somente a carteira de categoria B, que autoriza condutores brasileiros a dirigir
apenas carros. Além disso, em 1999, enquanto ainda ocupava o cargo de
Secretário Municipal de Trânsito do Rio de Janeiro (SMTU) houveram fraudes
39
ONOFRE, Renato. Reforma Administrativa: secretário de Niterói na Justiça. O Globo, mar. 2013.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/reforma-administrativa-secretarios-de-niteroi-na-
justica-7926557#ixzz3qen5a9za Acesso em: jun. 2015.
40
ARAUJO, Paulo Rua Niterói quer dar mais fluidez ao trânsito. Jornal O Globo, Niterói, 23 jan. 2013.
Disponível em:
http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:zxzr8UNcCAYJ:oglobo.globo.com/rio/niteroi-
quer-dar-mais-fluidez-ao-transito-7374653+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br Acesso em: Junho, 2015.
44
nas suspensões de multas de trânsito. Em outubro daquele ano, foram emitidas
465 multas e 336 delas foram suspensas, sendo que só houve registro de 138
recursos. Na investigação o Detran afirmou que o único órgão que poderia
alterar e suspender as multas era SMTU41.
No mesmo ano em que assumiu a presidência da Nittrans, o jornal O
Globo publicou uma matéria sobre a condenação de Paulo Afonso pela 13ª
Câmara do Tribunal de Justiça a pagar 53 multas de trânsito decorrentes de
infrações de trânsito cometidas entre 2007 e 2011. A Justiça já havia
determinado até a penhora de seus bens para que fosse feito o pagamento das
multas. Paulo Afonso recebeu nove multas gravíssimas que, se somadas, já
equivaleriam a 63 pontos na carteira de motorista (sendo 21 pontos o máximo
que um motorista brasileiro habilitado pode ter). Além destas, o Coronel
também teve nove infrações graves por circular em faixa exclusiva e outras
quatro por dirigir sem cinto de segurança (cada infração grave equivale a 5
pontos na carteira), 21 infrações médias por transitar em velocidade superior à
permitida e mais duas por falar no celular ao dirigir (infrações médias
equivalem a 4 pontos cada)42. Em setembro de 2013, numa entrevista com a
Câmara de Dirigentes Lojistas de Niterói, Paulo Afonso ainda declarou ser
contrário à implantação de radares (“eu sou contra radar [...] antes tem que vir
a conscientização, tem que vir a sinalização, tem que vir os operadores
orientando e trabalhando no trânsito e em última instância o radar”) e à Lei
Seca (“Eu obedeço, já fui parado pela Lei Seca, vejo algumas irregularidades
na operação, mas sou frontalmente contrário”)43.
Em diversos momentos da minha pesquisa ouvi que o Coronel é uma
pessoa “difícil”. Isabela Ledo (atual coordenadora do Programa Niterói de
Bicicleta) falava da dificuldade de diálogo com ele, que não escuta o que os
outros têm a dizer. Glauston comentou que após sua entrada a Nittrans “virou
de ponta cabeça” e “todo mundo ficou louco lá dentro”. Este histórico, a postura
41
Diário do grande ABC, 21 Nov. 1999. Disponível em:
http://www.dgabc.com.br/Noticia/392552/secretaria-apura-fraude-em-multas-de-transito-no-rj Acesso
em: Junho, 2015.
42 SCHIMITT, Gustavo. Autoridade máxima do trânsito em Niterói, presidente da NitTrans recebeu 53
multas. Jornal O Globo, Niterói, out. 2014. Disponível
em: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/autoridade-maxima-do-transito-em-niteroi-presidente-da-
nittrans-recebeu-53-multas-14136198#ixzz3qeT4du89 Acesso em: jun. 2015.
43
Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uZXNg7jwh78 Acesso em jun. 2015.
45
e a orientação da nova presidência da Nittrans não tem sido problematizada só
por quem trabalha dentro da autarquia e da prefeitura, mas também pelos
movimentos ligados à bicicleta, que perceberam a diferença entre as duas
gestões. Seu rosto chegou a ser colado em cartazes pela cidade em abril de
2015, poucos dias após a instalação da Ghost Bike relatada anteriormente.
IMAGEM 10 – CARTAZ
Fonte: O Globo44
4. OS GRUPOS DO PEDAL
44
Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/protesto-em-icarai-coloca-presidente-da-
nittrans-em-cartaz-de-procurado-inimigo-do-ciclista-15984678 Acesso em: Abril de 2015.
45
O grupo se organizava através de uma comunidade na extinta rede social Orkut, denominada
“Bicicletada em Niterói”. Posteriormente abriu um Google Groups
<https://groups.google.com/forum/?hl=en#!forum/bicicletadaniteroi> e um grupo no Facebook.
46
hajam muitos grupos atuantes na cidade, existem agentes que circulam entre
vários deles.
Assim, paralelamente às atividades da prefeitura voltadas para a
circulação através de bicicleta, todos estes grupos, de uma forma ou de outra
se envolvem com o deslocamento por bicicleta. Tais grupos atuam na cidade,
produzindo diferentes percepções e relações com o ato de pedalar. Entender
suas ações e concepções é fundamental, pois de uma forma ou de outra
ajudam a constituir aquilo que é socialmente entendido como ciclista e
contribuem para a formação de uma nova economia moral em torno do
deslocamento via bicicleta.
Os grupos têm protagonismos e capacidades de mobilização diferentes.
Alguns têm uma atuação mais política, sendo que comunicam aos outros o que
o ciclista é, seu espaço, direitos, deveres e funções na cidade. Outros são mais
vinculados estritamente à prática do deslocamento em si, mas apesar de não
veicularem campanhas, é importante considerá-los, pois a sua própria
existência e a forma como circulam na cidade, formam seus grupos e
interagem, ajudam na construção dos espaços e dos entendimentos do que é
deslocar-se de bicicleta em Niterói. Além disso, por mais que não produzam
mensagens, muitas vezes compartilham informações sobre outros grupos e
acontecimentos na cidade.
47
Cultura de São Paulo, buscou incentivar a prática da leitura através de uma
biblioteca itinerante (em um caminhão) que percorria praças da cidade
emprestando livros. A Cicloteca é uma biblioteca montada em uma bicicleta
que recolhe doações e distribui livros de forma gratuita.
4.2. CSCNit
4.3. Fecierj
46
http://www.fecierj.org.br/novosite/upload/estatutos2004.pdf
47
O pedido foi considerado pelo 12º Batalhão da Polícia Militar e a corporação anunciou o reforço no
início de novembro de 2015, afirmando que pretende ampliar sua malha de policiamento na cidade a
unidade solicitou ao Batalhão de Policiamento em Áreas Turísticas (BPTur) a capacitação de 20 policiais
48
4.4. Ciclistas de Niterói
49
Na época o Glauston era Chefe de Divisão de Projetos da Nittrans e trabalhava
com assuntos relacionados à mobilidade por bicicleta.48 Em 2015, o Bike Anjo
passou a fazer a Escola Bike Anjo em Niterói, reunindo bike anjos para ensinar
quem quiser aprender a andar de bicicleta todo terceiro domingo do mês, atrás
do Museu Popular, no centro da cidade.
4.7. BikeIt
48
O depoimento sobre o acompanhamento pode ser visto no site do Bike Anjo. Disponível em:
http://bikeanjo.org/2011/02/02/bike-anjo-no-niteroi/ Acesso em: Abril, 2015.
50
4.8. Mobilidade Niterói
49
Presta serviços de entrega com bicicleta.
51
ciclistas e palestras na cidade. Neste um ano de atuação o coletivo já visitou as
instalações da Nittrans, sendo recebido pelo próprio presidente; participou de
pesquisas em parceria com o Niterói de Bicicleta e com apoio das Secretarias
de Meio Ambiente e Educação, também foi convidado à palestrar para a
Guarda Municipal e em um evento do Serviço Social do Comercio (Sesc), além
de integrar as mesas de lançamento da campanha “Motorista amigo do
ciclista”50 e da campanha municipal de educação no trânsito. O grupo tem
investido na campanha “Por Que Bicicleta?”, com o objetivo de explicar para os
não ciclistas o benefício da bicicleta para a cidade, tanto através de
publicações quanto em stands de eventos como no Circuito das Artes e na
Semana do Meio Ambiente.
As atuações do Mobilidade Niterói tem sido reconhecidas numa
pluralidade de espaços, sendo que seus dados têm sido utilizados pelo Niterói
de Bicicleta e até mesmo requisitados em jornais locais.
50
A campanha tem o objetivo de estimular a boa convivência entre condutores profissionais e aqueles
que usam a bicicleta no dia a dia. O lançamento da campanha foi promovido pela Universidade
Corporativa do Transporte (UCT) - Fetranspor em parceria com o Sindicato das Empresas de Transportes
Rodoviários do Estado do Rio de Janeiro (Setrerj).
52
O Pedal Sonoro tem uma proposta lúdica, de juntar as pessoas para
pedalar pelas ruas da cidade ouvindo música em edições temáticas e busca
encorajar os ciclistas a ocuparem as ruas. Mas para além de sua proposta, ele
tem uma função educativa. Antes de cada evento os organizadores dão
orientações sobre como o ciclista deve se portar, seus direitos e deveres de
acordo normas do Código de Trânsito Brasileiro e distribuem ocasionalmente
uma versão de bolso do código. Além disso, o Luís Araújo também é um dos
principais mobilizadores do Massa Crítica e, a cada evento do Pedal Sonoro
fala sobre as ações do outro coletivo, pedindo por participação. Além do Luís
Araújo, as pessoas que puxam o Pedal Sonoro são: Graça; Muru; Marcelo;
Thais, Vivian, Leo e Camila – que também participam de eventos da Massa
Crítica, sendo que Vivian, Thais, Leo e Camila são também do Bike Anjo.
A grande parte dos eventos do Pedal Sonoro se concentra na Zona Sul
e central da cidade, onde a maioria dos organizadores moram, sendo que o
ponto de encontro é sempre no calçadão da Praia de Icaraí. Mas já
aconteceram edições que partiram para outras localidades, como uma ida ao
Rio de Janeiro (contando com aproximadamente 300 participantes) e para a
Região Oceânica de Niterói.
Hoje o Pedal Sonoro é o grupo que mais mobiliza participantes na
cidade. Algumas edições já chegaram a reunir centenas de ciclistas, como na
edição do Outubro Rosa de 2014 em prol da conscientização do câncer de
mama. Fora os passeios pela cidade, também fazem bimestralmente o
Pedalzinho Sonoro, para incentivar as crianças a andarem de bicicleta, fazendo
a edição sempre dentro do Campo de São Bento, parque localizado no bairro
de Icaraí, Zona Sul da cidade. Além de pedalar as criança podem brincar de
bambolê, corda, bola, elástico, peteca, etc. O pessoal do grupo que também
faz parte do Bike Anjo ensina as crianças a pedalarem sem rodinhas.
Este é o coletivo mais antigo da cidade, que já estava nas ruas desde
2009. A Bicicletada Niterói, hoje está como “Bicicletada/Massa Crítica Niterói”
faz parte de um conjunto de movimentos que integram o Critical Mass. Iniciado
53
em 1992, em San Francisco-EUA, hoje acontece na última sexta-feira do mês
em mais de 300 cidades no mundo inteiro.(VIVANCO, 2013) Em Niterói, para
não coincidir com a Massa Crítica do Rio de Janeiro, ela acontece na penúltima
sexta-feira do mês. A Massa Crítica é um passeio em que usuários de bicicleta
se deslocam pela cidade ocupando as vias sem uma rota previamente
determinada, com uma proposta de passeios pensados na forma de
celebração, com o intuito de alertar a população para a presença das bicicletas
no trânsito. Após o primeiro ano de atividades, a bicicletada foi sendo
esvaziada, até que no final de 2013, Luís Araújo passou a investir na
mobilização do grupo, utilizando também as conexões que havia formado
através do Pedal Sonoro.
A partir de 2014 o viés político do grupo se potencializou em Niterói,
contando com dois abaixo-assinados: um que reuniu cerca de 3600 assinaturas
reivindicando um bicicletário público, seguro e gratuito na Praça Araribóia, em
frente à estação das Barcas no centro, conforme a promessa de campanha
eleitoral da atual gestão da prefeitura; e um de 700 assinaturas pedindo a
abertura de uma estrada militar que liga o bairro de Jurujuba à Piratininga. 51.
Além disso, houveram bicicletadas expondo as suas demandas, como “Ato por
segurança nas vias” (maio/2014); “Luto -| Respeitem 1,5m” (outubro/2014);
“Educação é prioridade” (Novembro/14) e “Paz no trânsito” (Dezembro/2014).
E, entre novembro de 2014 e julho de 2015, o grupo também organizou
“plenárias”, ou seja, encontros entre os participantes para discutir o movimento,
suas ações e o que acontece na cidade. Estas plenárias não tiveram
periodicidade exata e sempre ocorreram em local público, sendo que a maioria
delas acontecem no centro da cidade, ao lado da ciclovia entre a Amaral
Peixoto e Marquês de Paraná. Também foram marcadas “CicloAções” no mês
de Setembro, em decorrência da instalação de ligação provisória entre os
bairros da zona sul, centro e zona norte julgada insuficiente e outra discutindo
acidentes ocorridos no mês (inclusive um grave envolvendo Thais Finochio,
participante tanto da Massa Crítica quanto do Pedal Sonoro). Estes encontros
tiveram uma participação reduzida em comparação com as bicicletadas – o
51
Disponível em: https://www.change.org/p/general-de-ex%C3%A9rcito-francisco-carlos-modesto-
liberar-acesso-para-pedestres-e-ve%C3%ADculos-n%C3%A3o-motorizados-entre-jurujuba-e-piratininga-
niteroi Acesso em:junho, 2015.
54
passeio da bicicletada mobiliza uma média de 20 a 30 ciclistas por edição e as
plenárias e cicloAções uma média de 10 pessoas. O público varia bastante,
mas é neste momento que os porta-vozes do movimento têm debatido suas
ideias entre si e com pessoas ligadas à instituições públicas. Entre os que mais
frequentam o grupo estão Luís Araújo, Leandro Carmelini, Lilian Rabelo, Thais
Fiochino, Ana Carboni, Pedro Málaga, Guilherme Farkas, Lanna Luccheti, Leo
Pressi, Muru e Vinícius Moço.
Já aconteceram dez plenárias desde 2014. É importante salientar que
Argus esteve muito presente nas discussões da Massa Crítica enquanto era
coordenador do Niterói de Bicicleta. A primeira plenária foi proposta por Luís
Araújo e feita dentro do Campus Gragoatá da Universidade Federal
Fluminense (UFF), no dia 05 de novembro de 2014. Ali foram definidas
algumas prioridades de ação, assim como foram angariados fundos entre os
participantes para fazer um “caixa” para impressão de material. Segundo o
Luís, esta reunião definiu a pauta a ser discutida na segunda plenária, ocorrida
no dia 18/11/2014, no instituto de Artes da UFF: Infraestrutura (ciclovia,
ciclofaixa, segregadores, redutores, sinalização, semáforos, etc.),
conscientização/educação (elaboração e distribuição de matérias, ação nas
escolas do município, campanhas publicitárias, postura do ciclista, etc.) e
fiscalização (autuação de veículos, Nittrans / GM, limite de velocidade, pardais
eletrônicos, etc.).
Entre a segunda e terceira plenária o grupo se informou sobre a votação
da Lei Orçamentária Anual (LOA) e encaminhou a proposta de uma emenda
aditiva de um milhão e quinhentos mil reais, que deveria sair do Fundo de
Reserva do município, para a realização de campanhas de conscientização e
educação no trânsito52.
A terceira plenária foi em dezembro de 2014, na Praça Cantareira, no
Bairro de São Domingos, na Zona Sul da cidade e teve mais ou menos
dezesseis participantes, sendo que discutiu as questões com relação à pressão
a ser feita para a inclusão da emenda na LOA, confecção de cartazes e
presença na câmara para a votação. Esta reunião contou com a presença das
52
A iniciativa foi feita em conjunto com o Pedal Sonoro, Bike Anjo Rio, Mobilidade Niterói, Ciclista
Aprendiz, Federação de Ciclismo do Estado do Rio de Janeiro, CSCNIT - Comissão de Segurança no
Ciclismo na Cidade de Niterói e Ciclistas de Niterói
55
pessoas mais ativas no coletivo: Leandro Carmelini (importante mobilizador da
Massa Crítica), Luís Araújo, Daniel Marques (na época Secretário do Meio
Ambiente, atualmente vereador, tem participado de um bom número de
reuniões), Isabela Ledo, Argus Caruso, Muru, Vinícius Moço (presente nas
reuniões desde a primeira plenária, hoje é candidato à vereador), Sergio
Franco, Ana Carboni, Gisella Chinelli (Dep. de arte da UFF, faz parte do Pedal
Sonoro e esposa de Luís Araújo) e Muru (membro do Pedal Sonoro também).
Nesta reunião Argus também decidia junto aos ciclistas o que faria com o
prêmio de dez mil reais ganho da Fetranspor. Foi decidido por unanimidade
que 50% do valor ficaria com o Programa Niterói de Bicicleta e que os outros
50% seriam divididos igualmente entre grupos de ciclistas em reconhecimento
ao trabalho por eles realizado. Os grupos contemplados foram: o Pedal Sonoro,
Mobilidade Niterói, Ciclista Aprendiz, Bike Anjo Niterói e a própria Massa
Crítica, com mil reais cada um. A emenda da LOA foi votada no dia onze de
dezembro de 2014, sendo que cerca de dez ciclistas compareceram à câmara,
quando a emenda foi aprovada, com recursos de aproximadamente 100 mil
reais.
A plenária de janeiro também foi um momento importante, contando com
a presença da Isabela Ledo, já como coordenadora do Niterói de Bicicleta. Os
ciclistas presentes deram início a um Grupo de Trabalho (GT) para elaborar um
material de educação no trânsito para ser divulgado na cidade, sendo que o
grupo elegeu Isabela para ser a coordenadora do GT. Os encontros deste
grupo passaram a ser feitos dentro da prefeitura, sendo que contou com
membros do Mobilidade Niterói, Bicicletada/Massa Critica Niterói, Bike Anjo,
Ciclistas de Niterói, Pedal Sonoro, Fundação Municipal de Educação,
Secretaria de Meio Ambiente, FECIERJ e Niterói de Bicicleta, que durante
meses discutiram a elaboração que acabou virando uma campanha de
Marketing da Prefeitura, lançada em junho de 2015.
A quinta plenária ocorreu em março deste ano, na esquina das avenidas
Marquês de Paraná com a Amaral Peixoto, no centro da cidade, onde têm
ocorrido desde então. Nesta plenária foram discutidos tópicos relativos à
criação de passeios e eventos paralelos na Zona Oceânica de Niterói, que a
partir deste encontro passou a ter suas próprias bicicletadas e plenárias,
fazendo com que o movimento passasse a ter duas bicicletadas mensais –
56
53
uma no centro e outra na Região Oceânica . Este evento teve a presença de
Rodrigo Rosa e da Railane Borges, que são hoje dois dos principais
articuladores da bicicletada na Região Oceânica. Além disso, houve o debate
de como seriam usados os recursos que o coletivo ganhou do Programa Niterói
de Bicicleta e as ações do GT de Educação para o trânsito, com informes sobre
a reunião de 25/02 acontecida na prefeitura e também a questão da emenda
aditiva.
Nesta altura o distanciamento entre o Programa Niterói de Bicicleta e os
ciclistas já estava virando assunto batido entre os participantes da Massa.
Apesar de eu ter participado de algumas pedaladas e encontros desde 2013,
eu comecei a participar das plenárias e me aproximado mais dos grupos após
a saída de Argus. Nos encontros, a comparação das duas gestões tem sido
recorrente, sendo que os participantes relataram em diferentes momentos que
ele sempre estava nos eventos da cidade, fosse nas bicicletadas, plenárias da
Massa Crítica ou Pedal Sonoro e que sempre lhes atendia, respondia os
tópicos do Facebook e mantinha os ciclistas informados do que estava
fazendo, como estavam os processos de negociação dentro da prefeitura e
dando dicas de onde fazer pressão. Com a entrada da Isabela Ledo essa
proximidade foi diminuindo. Com uma postura mais institucional, embora as
atividades do Grupo de Trabalho estivessem acontecendo, ela tem mantido
certo distanciamento dos movimentos, não seguindo as atividades dos grupos
como Argus o fazia e nem está tão presente nas redes sociais. A sensação de
abandono tem frustrado as expectativas dos agentes mais mobilizados.
No fim de março de 2015 o coletivo Massa Crítica foi convidado para
uma reunião com o prefeito, que queria informar sobre a verba direcionada
para uma campanha de trânsito, que seria construída junto aos ciclistas.
Estiveram presentes alguns dos principais articuladores da cidade: Luís Araújo,
Ana Carboni, Sergio Franco, Vinícius Moço, Railane Borges, entre outros que
esporadicamente frequentam os encontros da Massa Crítica, além do vereador
Daniel Marques, o Vice-Prefeito Axel Grael e Isabela Ledo. Os ciclistas
reclamavam do distanciamento da prefeitura, da falta de atuação da Nittrans na
53
Os encontros do grupo aconteciam sempre na região sul e central, sendo acessível para quem vem da
Zona Norte da cidade também, pois o percurso não é acidentado. Mas, entre a Zona Sul e a Região
Oceânica de Niterói há uma serra íngreme que dificulta a locomoção de ciclistas. Desde então já
ocorreram seis plenárias na região
57
fiscalização das ciclovias e do descomprometimento da autarquia com os
ciclistas. Pediam assim que a função de fiscalização fosse repassada para a
Guarda Municipal, que era mais simpática à causa. Além disso, cobravam por
mais infraestrutura, sobretudo no trecho crítico da Marquês de Paraná, entre as
ciclovias da Roberto Silveira, São Lourenço e Amaral Peixoto, que fazem a
conexão entre a zona norte, sul e central da cidade. Além disso, cobravam pela
sinalização, manutenção das ciclovias existentes e uma campanha de trânsito
que alertasse os motoristas para a presença dos ciclistas no trânsito.
Logo depois da reunião, no início de abril, a bicicletada fazia a chamada
para o “Ato em defesa da vida” com a instalação da Ghost bike que foi relatada
no início deste trabalho. Com este cenário e a questão da bicicleta sendo
debatida em vários espaços da cidade, Luis Araújo e os perfis da Massa Crítica
e do Pedal Sonoro foram publicando mensagens cada vez mais indignadas
contra a prefeitura, sendo que as palavras “omissão” e “descaso” se repetiam
em muitas de suas postagens.
No dia 28 de abril, numa nova plenária da Massa Crítica, Axel Grael e
Isabela Ledo estiveram presentes, além de Luís Araújo, Pedro Málaga, Ana
Carboni, Roberto Carlos, Lilian Rabelo ciclistas articulados através da
Bicicletada Niterói/Massa Crítica se reuniram com o vice prefeito Axel Grael e
Isabela Ledo. O encontro teve como pauta o acompanhamento das demandas
apresentadas durante a reunião com o prefeito e informar sobre os acidentes
que estavam ocorrendo na cidade. Numa postagem de Facebook, o grupo dizia
que buscava “sensibilizar o poder público quanto ao crescente número de
‘acidentes’ envolvendo ciclistas na cidade, incluindo vítimas fatais”, chamando
atenção para a responsabilidade pública frente as ocorrências. Esta publicação
nos remete a mudança do cenário a respeito das políticas para bicicleta: há
uma inversão na atuação dos agentes. No início do mandato a Prefeitura
estava investindo em infraestrutura e no incentivo à população para o uso
bicicleta, reforçando sua ambição de tornar Niterói “a cidade das bicicletas”.
Anos depois, a prefeitura passa a ser cobrada pelos grupos organizados, que
buscam exatamente sensibilizá-la para a segurança da circulação da bicicleta
na cidade.
A morte do ciclista e a repercussão do ato em sua homenagem foi
grande, sendo que os organizadores estavam ansiosos por uma resposta dos
58
agentes públicos. Axel informou que a partir de maio uma pessoa da Nittrans
passaria a integrar o Niterói de Bicicleta para fazer o diálogo entre as medidas
do programa e a atuação da Nittrans, que ele sabia que estavam desalinhadas.
Informou também que 10 agentes terceirizados (portanto, sem o poder de
multar) passariam a percorrer de bicicleta as ciclovias/ciclofaixas da cidade,
priorizando o circuito universitário. Esta notícia desanimou um pouco os
ciclistas – Luís indignado, levantava os braços considerando “de que adianta,
se eles não vão poder multar?” e Ana sugeria “Então que conversem com a
Nittrans e passem a responsabilidade para guarda! Nós (o Mobilidade Niterói)
palestramos para eles e vimos que eles tem interesse em fazer esta
fiscalização!”. Ao responder porque não poderia fazer isso, afirmou que o
Coronel Paulo Afonso permaneceria na Nittrans, pois ele é competente na
garantia da fluidez do trânsito. Os ciclistas questionaram sobre as outras
atribuições como a fiscalização e educação para o trânsito, que fazem parte de
suas demandas e que na percepção deles são insuficientes, mas não tiveram
resposta. Axel ainda afirmou que não poderia passar a fiscalização para a
Guarda Municipal porque em uma pesquisa feita pela prefeitura a população
dizia que a prioridade deveria ser a segurança. Esta afirmação revela uma
concepção de segurança pública que está apartada, pensada paralelamente ao
trânsito. Os incidentes com vítimas no sistema de mobilidade da cidade não
são entendidos, desta forma, como um problema de segurança pública.
Neste momento houve uma maior exaltação entre os ciclistas. Luís
visivelmente irritado questionou na hora: “e as pessoas que morrem no
trânsito? Isso não envolve a segurança?”. Grael respondeu que a segurança se
direcionava para questões que envolviam a polícia civil e eles não poderiam
deslocar agentes da guarda para fiscalizar ciclovias. Ana ainda argumentou
que estes agentes não precisariam ficar unicamente responsáveis pelas
ciclovias, mas que poderiam fiscalizá-las paralelamente às suas atividades.
Grael finalizou o assunto respondendo que as questões de trânsito eram de
responsabilidade da Nittrans e que a prioridade deste órgão continuaria sendo
a fluidez do trânsito. O que levantou uma indignação generalizada.
Desde então o relacionamento entre a Massa Crítica e as instituições
executivas da prefeitura tem sido mais distante, desacreditando na
potencialidade do Programa Niterói de Bicicleta e sua capacidade de atuação
59
junto aos outros órgãos municipais. Em contrapartida, as plenárias da Massa
têm sido alvo de interesse da casa legislativa. Dos cerca de dez participantes
de cada plenária, três da câmara tem aparecido: além da presença do assessor
ou do próprio Daniel Marques, vereador que já se envolvia com a massa desde
o início do ano; Daniel Vieira, assessor do vereador Henrique Vieira e a Cynthia
Gorham, assessora do vereador Paulo Eduardo Gomes estão quase sempre
presentes. É importante ressaltar que a presença, o diálogo e a própria
articulação, tanto do corpo executivo municipal quanto dos vereadores junto à
Massa Crítica, mostra o reconhecimento e a legitimação política dos debates
das plenárias.
Em junho de 2015, Daniel Vieira e Daniel Marques propuseram uma
audiência pública para discutir os assuntos relacionados à bicicleta em Niterói.
Este assunto ocupou o grupo de junho à agosto, quando a audiência pública
aconteceu. Após este período as plenárias e cicloações do grupo envolviam
denúncias a respeito da instalação daquilo que foi apelidado pelos ciclistas de
“Ciclofalsa” e dos acidentes que se seguiram.
Além da atuação nas ruas da cidade, a Massa Crítica tem circulado
imagens e textos sobre questões políticas envolvendo a bicicleta na cidade de
Niterói através de uma página de alcance de aproximadamente 25.500 e de um
grupo de discussão de aproximadamente 1100 membros no Facebook 54.
Tão importante quanto entender quem são os agentes, sua forma de
organização e circulação entre os grupos, é entender também sobre o que
falam, como falam, o que falam e para quem falam. Um dos principais pontos
que tem sido levantado pelos grupos é a questão da educação. Mas o que
significaria esta educação no trânsito?
54
Dados de setembro de 2015.
60
5. BICICLETA NO QUADRO LEGAL
55
Código Nacional de Trânsito de 1941 se deu pelo Decreto-Lei nº 2.994, de 28 de janeiro de 1941 e foi
republicado no Decreto-Lei no. 3.651, de 25 de setembro de 194. O Código Nacional de Trânsito de 1966
se deu pela Lei nº 5.108, de 21 de setembro de 1966, sendo complementado pelo Decreto-Lei nº 237, de
28 de fevereiro de 1967 e regulamentado pelo Decreto nº 62.127, de 16 de janeiro de 1968.
62
veículos que transitem em sentido contrário pela pista da via da qual
vai sair, respeitadas as normas de preferência de passagem.
Art. 214. Deixar de dar preferência de passagem a pedestre e a
veículo não motorizado:
I – que se encontre na faixa a ele destinada;
II – que não haja concluído a travessia mesmo que ocorra sinal verde
para o veículo;
(…)
Infração – gravíssima;
Penalidade – multa.
IV – quando houver iniciado a travessia mesmo que não haja
sinalização a ele destinada;
V – que esteja atravessando a via transversal para onde se dirige o
veículo:
Infração – grave;
Penalidade – multa.
Art. 201. Deixar de guardar a distância lateral de um metro e
cinquenta centímetros ao passar ou ultrapassar bicicleta:
Infração – média;
Penalidade – multa.
Art. 220. Deixar de reduzir a velocidade do veículo de forma
compatível com a segurança do trânsito:
(…)
XIII – ao ultrapassar ciclista:
Infração – grave;
Penalidade – multa (BRASIL, CTB, 2007).
63
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, atuaria até que a cidade se
tornasse o modelo ideal desejado. Os movimentos da reforma urbana
questionavam sobretudo a relação da legislação com a cidade real e sua
responsabilidade com a cidade irregular, informal e clandestina (GRAZIA,
2003). Assim, o Estatuto da Cidade sugere um Plano Diretor que considere o
que a cidade é de fato e que lide com a cidade como processo político
(BRASIL, Estatuto da Cidade, 2001).
Segundo as diretrizes do Estatuto, é necessária a participação popular
nos Planos Diretores, não apenas no processo de elaboração e votação, como
também na implementação e gestão das decisões. A intenção é que o Plano,
então, passe a se constituir como um espaço de debate e negociação dos
cidadãos, que deve ser revisto pelo menos a cada dez anos (BRASIL, Estatuto
da Cidade, 2001. p.38-42).
O Estatuto da Cidade estabelecia que apenas as cidades com mais de
500 mil habitantes deveriam elaborar um Plano de Transporte Urbano
Integrado, compatível com o Plano Diretor ou nele inserido. A questão da
mobilidade passou a ganhar um destaque maior a partir da Lei n.12.587/2012
de Mobilidade Urbana, que ampliou não apenas o universo de cidades que
devem elaborar o Plano Diretor e um planejamento de mobilidade urbana, mas
o próprio enfoque do Plano em si, como veremos mais adiante. Esta lei foi
resultante de um longo processo, que foi favorecido sobretudo com o início das
atividades do Ministério das Cidades.
Com a mudança do governo federal, a criação do Ministério das Cidades
em 2003 foi também resultante das articulações dos movimentos pela reforma
urbana. A última proposta de política urbana do governo federal havia sido
implementada pelo regime militar (1964-1985) e desde 1986 esteve dispersa
no âmbito do governo federal.
Dentro do Ministério há um órgão que trata das questões de transporte e
mobilidade, a Secretaria Nacional do Transporte e da Mobilidade Urbana –
SeMob. A SeMob visa a implementação de uma Política Nacional de
Mobilidade Urbana Sustentável. Cabe ressaltar que o Ministério das Cidades,
define as diretrizes da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, mas é no
município que ela é executada. Desta forma, segundo o Planmob 2015:
64
“Cabe ao governo federal, por meio do Ministério das Cidades, definir
as diretrizes gerais da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano,
entretanto cabem ao município (ou aos gestores metropolitanos,
definidos por lei estadual) o planejamento e a gestão urbanos e
metropolitanos. É nas cidades que os objetivos de participação
cidadã e de garantia do direito à cidade para todos podem ser
concretizados.
O Ministério das Cidades atua no fortalecimento dessas
competências, não apenas por meio de apoio financeiro, mas
principalmente oferecendo a capacitação técnica de quadros da
administração pública municipal e estadual, além de agentes sociais
locais” (BRASIL, Ministério das cidades, 2015, p. 18).
56
Embora tenha sido feito antes da promulgação da Lei, o trabalho de Xavier (2011) explora bem a
tramitação desta lei, além de abordar a transição e ampliação da uma concepção de transporte para a de
mobilidade na produção da Lei.
65
A nova lei trouxe consigo a grande maioria de princípios e diretrizes da
Política Nacional da Mobilidade Urbana Sustentável, elaborados no âmbito do
Ministério das Cidades em 2004, mas que só tinham a capacidade de
influenciar a política municipal de transporte urbano através de condições para
financiamento e apoio do governo federal para políticas locais de transportes
urbanos. A partir da promulgação da Lei nº 12.587 em 2012, passam a ter força
de lei federal, sendo válida para todos os municípios brasileiros. Assim, entre
os elementos que a lei prioriza, podemos destacar para este trabalho fatores
como a acessibilidade universal, o desenvolvimento sustentável, acesso
igualitário ao transporte público; transparência e participação social no
planejamento, controle e avaliação da política; segurança nos deslocamentos,
equidade no uso do espaço público de circulação, vias e logradouros;
prioridade dos modos de transportes não motorizados sobre os motorizados e
dos serviços de transporte público coletivo sobre o transporte individual
motorizado; integração da política de mobilidade com a de controle e uso do
solo; a complementaridade e diversidade entre meios e serviços
(intermodalidade).
O artigo Artigo 5º da Lei 12597/2012 define a “equidade no uso do
espaço público de circulação, vias e logradouros” e a “justa distribuição dos
benefícios e ônus decorrentes do uso dos diferentes modos e serviços” como
princípio da política. Desta forma, a Lei prescreve que a Política de Mobilidade
Urbana dos municípios deve reconhecer a existência das desigualdades no uso
das vias e logradouros, assim como os custos do uso dos diferentes modos de
transportes.
A noção de equidade exposta na lei se configura como uma busca pela
correção das externalidades negativas geradas pelos meios de transporte
urbano, pelo uso intensivo dos meios de transporte individuais motorizados,
que segundo as pesquisas do IPEA (2003, 2011) são seus principais
causadores.
A promulgação da lei dá, então, segurança jurídica para que os
municípios possam adotar políticas de priorização aos meios não-motorizados
e coletivos em detrimento ao individual motorizado. Tal princípio no corpo da lei
dá sustentação jurídica para que os municípios apliquem taxas ou subsídios
visando priorizar modos de transporte de menor impacto (como “pedágios
66
urbanos”, cobrança de estacionamento na via pública, subsídio às tarifas etc.).
Tais mecanismos de desestímulo do uso de veículos motorizados são versados
no artigo 23:
67
Oliveira Jr. (2012) nos alerta que quando a Lei 12.587 reforça a norma já
estabelecida no CTB, dando a primazia dos transportes não motorizados sobre
os motorizados e do transporte público coletivo sobre o individual por
automóvel, isso não se trata somente do cumprimento de regras de circulação
do trânsito. Com a prioridade estipulada e reforçada na Lei da Mobilidade, os
recursos orçamentários e de financiamento devem passar a ser destinados a
políticas voltadas ao transporte público coletivo e ao não motorizado
(OLIVEIRA JR, 2012 p. 23-25).
Um ponto importante desta nova abordagem é que amplia a abordagem
de questões relativas à acessibilidade e mobilidade, que até então eram
consideras apenas dentro de políticas de transportes urbanos. Com a nova lei,
tais categorias são pensadas além do transporte público de passageiros,
buscando abranger todas as modalidades de transporte, sejam elas
motorizadas ou não. Além disso, prima pela integração de políticas que
estavam sendo pensadas isoladamente, integrando a mobilidade urbana com
as outras políticas relativas ao desenvolvimento urbano – habitação,
saneamento, planejamento e gestão do uso do solo que, como já foi
ressaltado, recaem sobretudo na esfera municipal.
A partir deste entendimento, o município deve integrar a política de
mobilidade no planejamento urbano, conjugando o transporte e o trânsito numa
política que engloba também princípios de inclusão social e sustentabilidade
ambiental. Portanto, dentro deste quadro legislativo, o município é parte
fundamental nas atribuições referentes à mobilidade.
Para facilitar o planejamento de mobilidade por parte dos Municípios, o
Ministério das Cidades publicou dois Cadernos de referência para elaboração
de Plano de Mobilidade Urbana (PlanMob) – um em 2007 e outro em 2015 –
através da Semob. Não devemos esquecer que o primeiro PlanMob foi
publicado em 2007, quando a lei da mobilidade ainda não havia sido aprovada.
O Guia PlanMob surgiu, então, como uma contribuição do Ministério das
Cidades para estimular e orientar os municípios no processo de elaboração dos
Planos Diretores de Transporte e da Mobilidade, que na época deveriam ser
criados com base no Estatuto da Cidade. Mesmo sendo publicado antes da Lei
12.587/2012, o PlanMob já sugeria a importância estratégica do Plano de
Mobilidade Urbana, incentivando sua elaboração em cidades com mais de 100
68
mil habitantes, de regiões metropolitanas e em regiões de desenvolvimento
integrado.
Em tais cidades ainda seria possível reorientar modelos de urbanização
e de circulação de maneira preventiva. Além disso, já dispunha de uma
abordagem mais ampla do conceito de mobilidade:
57Niterói não cumpriu o prazo. Em nota de esclarecimento divulgada em seu Blog, o Vice-prefeito Axel
Grael afirma que isso se deve porque o Plano de Mobilidade Urbana Sustentável deve estar de acordo
com o Plano Diretor de Transporte Urbano que abrange toda a região metropolitana, que está ainda sendo
elaborado pelo governo estadual. O prazo não atendido por grande parte dos municípios do país e a
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara de Deputados aprovou a prorrogação do
prazo para a apresentação dos Planos de Mobilidade, sendo que a proposta ainda irá ao plenário.
69
famosas as fotos dos reis da Holanda e Dinamarca pedalando, publicadas nos
principais jornais do mundo com o slogan de “Nós temos uma boa alternativa
de transporte”. Foi neste contexto que a Empresa Brasileira de Planejamento
de Transportes – GEIPOT – passou a pensar na bicicleta como meio de
transporte.
Em março de 1976, o GEIPOT, então como Empresa Brasileira de
Planejamento de Transportes (mas mantendo sua sigla) publicou o
“Planejamento Cicloviário – Uma Política para as Bicicletas”. Tal publicação
tratava do uso da bicicleta no Brasil, reconhecendo a insuficiência de casos
nacionais para a política cicloviária e trazendo exemplos internacionais para
uma política nacional de incentivo ao uso da bicicleta como opção de
transporte, contando também com recomendações às prefeituras. A partir
daquela publicação, alguns projetos pontuais de infraestrutura cicloviária foram
sendo implantados no país. Assim, segundo a SeMob:
70
Apesar de terem sido os documentos mais densos que já haviam sido
publicados pelo governo, com a extinção da GEIPOT no mesmo ano de sua
publicação, estes documentos só foram distribuídos para os municípios em
2004. Neste ano o Brasil passa a ter, pela primeira vez, um programa voltado
exclusivamente para a bicicleta – o Programa Bicicleta Brasil, no âmbito da
SeMob (Portaria n° 399/2004). O programa visava estimular os governos
municipais a implantar sistemas cicloviários e um conjunto de ações que
garantissem a segurança de ciclistas, inserir e ampliar o transporte por
bicicletas na matriz de deslocamentos urbanos, integrar o sistema de
transporte por bicicletas aos transportes coletivos, reduzir o custo com
transporte, principalmente da população de menor renda, estimular o uso de
meios não-motorizados. Além disso, previa a capacitação pessoal para
elaboração de projetos e implementação de sistemas cicloviários (BRASIL,
2012c).
Após a instauração do Programa Bicicleta Brasil em 2004, foram
distribuídos através da SeMob os dois cadernos sobre mobilidade em bicicleta
elaborados no âmbito da GEIPOT. O objetivo do Programa é integrar a bicicleta
nos sistemas de transportes, com equidade no uso dos espaços, promovendo
a segurança para os ciclistas e demais agentes da circulação urbana. Para
tanto, as suas metas são inserir e ampliar o transporte por bicicleta na matriz
de deslocamentos urbanos, promovendo sua integração aos sistemas de
transporte público. Além disso busca estimular os municípios a implantar
sistemas cicloviários e difundir o uso de meios não motorizados, inserindo-os
no desenho urbano.
Em setembro de 2009, no Dia Mundial sem Carro a Semob lançou o
“Projeto Bicicleta Brasil ", como parte integrante do Programa Bicicleta Brasil,
com o objetivo de fomentar atividades para a elaboração participativa de um
Plano de Ação. O projeto nunca foi concluído. Ele previa quatro etapas, mas
apenas duas foram realizadas. Assim, tinha a etapa de Conferência Virtual, que
foi realizada e contou com 159 propostas de 67 municípios direcionadas ao
desenvolvimento do programa. Passando pela etapa de Oficinas, com a
realização de duas oficinas de trabalho. A primeira interna, contando apenas
com os servidores da SeMob, resultou em vinte e duas propostas a serem
inseridas no plano de ação. A segunda oficina foi realizada com a presença de
71
56 pessoas, tanto de representantes estatais como da sociedade civil. A oficina
sistematizou as propostas da conferência virtual e oficina anterior, resultando
em 57 propostas finais para o plano de ação. As outras duas etapas, referentes
à Consolidação do Plano de Ação, lançamento e divulgação do plano foram
canceladas (XAVIER, 2011).
A SeMob publicou um documento com a lista das atividades realizadas e
previstas no âmbito do programa, sendo introduzido pela seguinte nota:
“Ainda que não tenha sido concluído o Projeto, tal como previsto, a
Semob deseja tornar públicos os resultados alcançados até o
momento por julgar serem de interesse dos 129 diretamente
envolvidos e corresponderem desde já como amplo leque de
possibilidades no âmbito do Programa Bicicleta Brasil” (BRASIL,
58
Portal do Mcidades).
58
Disponível em: http://www.cidades.gov.br/index.php/progsemob/1370-conclusoes.html Acesso em:
Março, 2015.
72
5.2. O Estado do Rio de Janeiro no fomento de políticas para
bicicleta
73
cicloviária e bicicletários em estações de metrô, trem e terminais de ônibus a
fim de estimular a intermodalidade.59
59
O texto completo da Lei está disponível em:
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/CONTLEI.NSF/c8aa0900025feef6032564ec0060dfff/a3c1e32d64ad
ea0b83257f020056e84a?OpenDocument Acesso em: Novembro, 2015.
60
O anuncio foi feito pelo portal da Secretaria de Urbanismo e mobilidade. Disponível em:
http://urbanismo.niteroi.rj.gov.br/niteroi-firma-acordo-com-ongs-internacionais-para-elaborar-plano-
de-mobilidade/ Acesso em: Março, 2016.
74
Estatuto da Cidade. Desde então nenhuma mudança foi feita. O município
segue com o Plano Diretor já defasado se considerarmos o crescimento
populacional e as novas demandas. Mas, será que se pode dizer que a política
da cidade está defasada por conta de um Plano Diretor? Com base em
depoimentos de Axel Grael e Isabela Ledo, parece este documento se tornou
um pedaço de papel de muito pouca influência nas ações políticas da
prefeitura.
Nos últimos anos houve uma movimentação da Prefeitura para a
elaboração de um novo Plano Diretor. Prevendo sua conclusão até o fim de
2015, o Município efetuou a contratação da FGV para o planejamento urbano
da cidade. Porém, questionando a falta de licitação, o Ministério Público
estadual abriu uma investigação para apurar a contratação. A investigação
continua tramitando. Segundo matéria do jornal O Globo:
61
Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/mp-investiga-contratacao-da-fgv-sem-licitacao-
para-realizacao-do-plano-diretor-de-niteroi-14755946 Acesso em: Fevereiro, 2015.
6262
Plano Urbanístico Regional é o instrumento de planejamento territorial de Niterói da Secretaria de
Urbanismo e Mobilidade (SMU). Ele define as regras de parcelamento, uso e ocupação do solo, sendo
que possui etapas participativas, tendo como objetivo o ordenamento do território e o desenvolvimento
sustentável da Região.
75
pensando para as estratégias e prioridades políticas para os próximos 20
anos.63
Tendo ou não peso jurídico e mesmo que o Estatuto da Cidade
determine que o Plano Diretor deva ser o orientador da política do município,
ele de fato não tem sido. Isso é um dos demonstrativos de como a prática de
governo não se dá estritamente através de dispositivos legais.
Isso ainda repercute nas medidas para a mobilidade de forma bem
evidente em Niterói. O Plano Diretor estipulou a criação de Plano Diretor Viário
e de Transportes Públicos. Com isso houve certo investimento neste âmbito,
que resultaram de fato em documentos neste sentido. Niterói passou por três
diferentes planos referentes ao deslocamento (PITT, PDTT e Plano Lerner),
sendo que o Plano de Transporte e Trânsito vigente é o Plano Lerner64. Ele,
assim como os antecessores, versa principalmente sobre a questão dos
transportes coletivos e organização do tráfego viário.
Este plano foi estipulado antes da Lei 12.587 de Mobilidade Urbana, não
incorporando muitos dos seus aspectos obrigatórios pela lei em seu
planejamento, sendo que medidas voltadas para meios de transporte não
motorizados estão ausentes dele. Mas, mesmo assim, a prefeitura tem
investido em projetos que priorizam tais aspectos, como a requalificação do
Centro de Niterói (que “segue princípios de desenvolvimento orientado ao
transporte, com a criação de espaços públicos acessíveis e com tratamento
paisagístico que formarão uma grande rede caminhável e cicloviária” 65), o
estabelecimento do uma ciclovia no projeto do Túnel que ligará os bairros
Charitas e Cafubá, além do próprio Plano Cicloviário que está em elaboração.
O vice-prefeito Axel Grael até mesmo afirmou repetidas vezes em duas
plenárias da Massa Crítica, que a política da Prefeitura está vinculada em torno
dos 32 projetos estruturadores previstos no Plano Estratégico66. Isabela Ledo
(atual coordenadora do programa Niterói de Bicicleta) me disse a mesma coisa
na primeira reunião que tivemos, apontando que o Programa Niterói de
6363
Disponível em: http://www.seplag.niteroi.rj.gov.br/documentos/book_baixa.pdf Acesso em:
Fevereiro, 2015.
64
Para mais informações sobre estes planos, ver MARCOLINI (2011).
65
Trecho da apresentação do projeto .Disponível em:
http://centro.niteroi.rj.gov.br/oprojeto/ocentroquequeremos.php Acesso em: Junho de 2015.
66
NITERÓI. Niterói que queremos: Plano Estratégico 2013-2033. Prefeitura de Niterói: Niterói, p. 20
76
bicicleta estava entre estes projetos, fazendo parte das prioridades da
prefeitura. Isso mostra que houve entre os agentes da prefeitura uma
determinada liberdade de ação que permitiu esta reorientação das suas
prioridades, direcionando-as para o Plano Estratégico.
Relembrando que Niterói conta com um Estatuto da Bicicleta desde
2011, que foi elaborada por Felipe Peixoto, o principal concorrente do atual
prefeito na última eleição. O texto da Lei, além de primar pela infraestrutura,
previa que o Poder Executivo Municipal instituísse campanhas publicitárias de
educação para promoção do transporte por bicicleta e que as alterações e
revisões do Plano Diretor de Niterói, dos Planos Urbanísticos Regionais e do
Plano Diretor de Transportes e Trânsito deveriam “considerar as demandas do
transporte por bicicleta, incentivando-o e priorizando-o”67. Para que o estatuto
realmente tivesse força de lei, era preciso que houvesse um decreto do prefeito
regulamentando-o, mas até o momento tal decreto não foi instituído. Tal
decreto foi completamente invisibilizado institucionalmente nos últimos anos,
embora seja lembrado recorrentemente pelos coletivos.
67
LEI 2832 - ESTATUTO DA BICICLETA. NITERÓI, 2011. Disponível em:
https://leismunicipais.com.br/a/rj/n/niteroi/lei-ordinaria/2011/284/2832/lei-ordinaria-n-2832-2011-
institui-o-estatuto-da-bicicleta-e-da-outras-providencias Acesso em: agosto, 2015.
77
5.4. Para além do que os textos legais dizem: o que eles criam
78
Através da exposição do contexto político geral, me esforcei para
demonstrar como o andar de bicicleta foi sendo incluído no regimento, cartilhas
e publicações oficiais ligados ao trânsito e posteriormente à mobilidade.
Gostaria de propor que não nos limitássemos nas disposições e
regulamentações ali contidas. Gostaria que entendêssemos a importância
deste agrupamento para a legislação sobre estes fenômenos, mas que
fossemos além. Assim, proponho que nos esforcemos para usar alguns dos
princípios metodológicos propostos por Foucault (2008). Tentaremos passar
por fora da instituição, não querendo simplesmente entender o funcionamento
ou aplicabilidade de sua legislação direcionada a determinado público, mas
buscando localizar a sua análise num ponto de vista externo a ela, que prime
pela identificação de suas técnicas, estratégias e tecnologias de poder. Desta
forma, nos precavemos de assumir um ponto de vista de um objeto já
determinado pelas instituições. (FOUCAULT, 2008).
Isso nos permite entender o papel da criação do agente “ciclista”, que
revela um pouco do que Foucault (2008) tratava em sua aula de 1º de
Fevereiro de 1978, no curso de “Segurança, Território, População” no Collège
de France. Este conjunto normativo não só legisla, mas cria uma série de
relações que desbloqueiam o governo sobre o conjunto de relações que se
estabelecem em torno do deslocamento por bicicleta. Ao transformar o
deslocamento de bicicleta numa variável da população – um fenômeno que é
agrupado dentro da mobilidade, em que os sujeitos que andam de bicicleta
passam a ser denominados sob a categoria “ciclistas” e que a bicicleta é vista
como “transporte não motorizado” – há o desbloqueio da ação do poder público
e seu governo sobre os fenômenos relacionados à ação deste sujeitos.
O que precisamos entender é que a simples criação destas categorias
não garante este governo. Isto só pode acontecer quando houver o
reconhecimento social deste agente nas práticas cotidianas do mundo social.
Assim, é óbvio que uma pessoa que dirige um carro é um motorista. Mas não é
óbvio ainda, que uma pessoa que ande de bicicleta é um ciclista Como então
isso acontece? Como podemos analisar esta criação? É sobre isso que
precisamos nos debruçar.
Gostaria que nos atentássemos para o sentido de palavras e expressões
contidas na análise dos textos legais e documentos levantados na sessão
79
sobre o contexto político geral, como por exemplo: ciclistas, a distinção entre
veículos motorizados e não-motorizados, mobilidade, mobilidade sustentável,
democratização da via, ciclovias, ciclofaixas, etc. Tais termos, de certa forma,
já fazem parte de nosso cotidiano, mas precisam ser desnaturalizados.
Precisamos compreender como tais denominações e categorias se inserem,
influem e impactam o cotidiano das relações de deslocamento.
Ao não nos atermos ao cumprimento ou não das disposições legais e
dos regimentos, é possível entender que estas categorias não somente
dispõem sobre a vida social, mas a categorizam, criam sujeitos, divisões,
oposições e disputas no território urbano, que vão para além das instituições.
O Código de Transito Brasileiro passa a reconhecer um novo sujeito no
trânsito: “o ciclista”. Com a criação e atuação da Secretaria de Mobilidade, o
trânsito passou a ser tomado nacionalmente dentro de uma categoria maior: “a
mobilidade”. A mobilidade passou a ser abordada sob prismas que se
relacionam também com “a sustentabilidade”. A bicicleta passa a ser vista
como “veículo de propulsão humana”. O uso da via por “motorizados” e “não-
motorizados” está dentro de uma discussão sobre a “democratização da via” –
que se dirige aos próprios agentes sociais descritos por estas legislações. Nas
distinções feitas entre o “veículo motorizado” e o “não motorizado” há a
proposta de uma inversão da hierarquia que se observa não somente no
território onde as interações de deslocamento acontecem, mas nos próprios
investimentos públicos. Há também um estímulo por parte do governo nacional
para a criação de categorias de espaço exclusivamente destinadas aos “não
motorizados” – “ciclovias” ou “ciclofaixas”. Estes termos não aparecem neutros
no contexto político, eles impactam não somente nas instituições do município,
mas também (e sobretudo) na organização física do espaço e na própria
subjetividade dos indivíduos, introduzindo em suas vidas novos
pertencimentos, demandas e configurações que serão incorporadas dentro de
economias morais (FASSIN, 2011).
É importante salientear que há uma luta em torno destas classificações
que envolve direitos, como por exemplo, o direito do ciclista de utilizar a faixa
de rolamento. Ao acionar e reivindicar esta disposição legal, aqueles que se
mobilizam pela causa da bicicleta na cidade buscam alterar a visão e as
divisões do mundo social no qual se inserem, como a redistribuição e reflexão
80
sobre os espaços, investimentos em infraestrutura para deslocamento “não
motorizado”. Assim, como argumenta Lenoir (1998), isso contribui para a
formação de certa “consistência social” na categoria dos ciclistas, pois “a
defesa dos direitos pode se tornar um fator de mobilização quando estes estão
ameaçados” (LENOIR, 1998, p. 73).
Por isso, seguimos para além da aplicabilidade de leis e regimentos.
Atentaremos aqui para a prática da reordenação da vida social em curso,
atentando para a forma como as categorias passam a ser acionadas e fazer
parte deste campo semântico, sendo incorporados ou não no cotidiano do
município, assim como entender sua apropriação na construção das
instituições e agentes e de que forma isto acontece.
É interessante perceber como as categorias de divisão entre
“motorizados” e “não-motorizados” foi incorporada ao vocabulário dos grupos
do pedal. Antes de cada passeio do Pedal Sonoro, por exemplo, há a
explicação de como o ciclista deve se portar no trânsito. Esta é uma fala de
Thais Fiochino, mas os termos se repetem em praticamente todas as
orientações que antecedem o passeio:
“Pessoal, é importante lembrar que somos um veículo de propulsão
humana não motorizado. Ciclista não pode andar na calçada, a
calçada é lugar de pedestre, bicicleta é na rua. Quando for fazer
qualquer conversão, sinalize pra onde está indo pra evitar acidente”.
(Fala de Thais durante a concentração de um encontro do Pedal
Sonoro)
81
reflexão sobre o espaço destinado a carros e bicicletas, ou o alerta para não
disputar espaço com o pedestre, remetem à legislação e faz uso das oposições
nela contidas. Não apenas versa sobre direitos, mas também disciplina o andar
de bicicleta.
Além disso, não é apenas este vocabulário que é acionado. A própria
concepção dos deslocamentos através de um entendimento de mobilidade que
ultrapassa a visão estrita de trânsito toma conta de discussões acaloradas na
Massa Crítica. O grupo chegou até a fazer um evento para discutir a campanha
“Niterói para pessoas” em que a temática era discutir como transformar Niterói
numa cidade “para pessoas e não para motores”, ampliando as reivindicações
para além das bicicletas, chamando atenção para a disparidade de como o
espaço urbano tem sido ocupado pelos “motores” em alusão aos “motorizados”
e outros modais descritos no código de trânsito. Os envolvidos na campanha
chegaram a criar uma página e a rashtag #niteroiparapessoas para
compartilhamento de conteúdo que reflete a relação dos diferentes modais de
deslocamento com o espaço urbano:
82
campanhas não somente a bicicleta, mas também o pedestre, quem utiliza
transporte público e o motorista. Além disso, é interessante perceber que a
discussão sobre a “democratização das vias”, presente nas publicações da
SeMob, também está presente nestas reivindicações. A proposta da reflexão
sobre como as vias são utilizadas, que está altamente naturalizada, propõe a
inversão da hierarquia de espaços destinados a cada modal. Há também, nesta
apropriação não apenas a circulação de ideias e a popularização de categorias
e oposições, mas também um trabalho moral, que cria sentimentos, percepção
de injustiças, indignações e novas categorias de percepção e condicionamento
de comportamentos nos deslocamentos urbanos.
83
6. NITERÓI E A EDUCAÇÃO PARA O TRÂNSITO
“Muita gente apoia as bicicletas, mas não querem abrir mão das
vagas próximas às suas moradias. Motociclistas usam de forma
irregular apenas para “ganhar” alguns minutos nos seus itinerários e
colocam em risco os ciclistas. Os usuários de carro parecem não
compreender que o uso das magrelas está previsto no código de
68
trânsito brasileiro e estacionam, cortam, atropelam e matam .”
(MARQUES, Daniel)
68
MARQUES, Daniel. Para não malhar a malha. Disponível em:
http://www.danielmarquesdopv.com.br/para-nao-malhar-malha/ Acesso em: agosto, 2015.
84
“No desenho da malha e no debate muitos são ativistas, porém
quando a malha passa na sua porta, na frente do seu comércio, ou
acaba com as vagas de carros a revolta se inicia. Lembro a você a
luta que foi remover os estacionamentos da Amaral Peixoto onde
Juízes e desembargadores tinham seus estacionamentos elitistas e
cômodos. Acredita ter sido fácil conduzir esse debate? E diminuir
uma mão na Roberto Silveira quando reversível? As coisas são bem
complicadas e vejo significativos avanços.” (MARQUES)
Mas não foi só a Amaral Peixoto que deixou pessoas descontentes. Axel
Grael, na ocasião do lançamento de uma campanha de trânsito feita pela
prefeitura, também relembrou que haviam algumas casas com panos pretos
pendurados nas janelas para expressar o descontentamento com a instalação
da ciclovia da rua Timbiras, no bairro de São Francisco, enquanto ela estava
sendo inaugurada.
69
SANTOS, Claudio. Programa Niterói de Bicicleta Enfrenta "Poderosos". 14 de dez. 2013. Disponível em:
http://www.fecierj.org.br/novosite/detalhe.asp?codigo=390&canal=8 Acesso em: ago, 2015.
85
trânsito a que se referem as instituições municipais e os coletivos é entendida
da mesma maneira? Como as campanhas surgiram e tem sido feitas na
cidade? Retomar a implantação do circuito universitário nos ajuda a entender
como se deu este início.
70
Carta de despedida de Argus Caruso, publicada na página do Programa Niterói de Bicicleta. Disponível
em: https://www.facebook.com/NiteroiDeBicicleta/posts/983682114981659 Acesso em: Janeiro, 2015.
86
ciclovia que liga as regiões norte e sul às barcas (Amaral Peixoto). 71 Mas, o
andar de bicicleta para muitas destas pessoas não mobiliza fatores identitários,
de pertencimento a determinada categoria, nem está carregado deste sentido
pautado por um código específico de mobilidade. Este andar de bicicleta, que
sempre aconteceu de forma livre de legislação, que não precisava se
referenciar pelas mesmas tecnologias e regras de trânsito que os automóveis e
pedestres utilizam na cidade, tem sido alvo de múltiplas campanhas. Tanto
gestores públicos quanto grupos de ciclistas organizados têm debatido, feito
campanhas e circulado materiais e ideias a respeito da locomoção via bicicleta
pela cidade nos mais diversos ambientes da cidade. Mas, é importante
compreender que a educação para o trânsito é entendida de diferentes
maneiras, em diferentes espaços.
71
Dados disponíveis em: http://mobilidadeniteroi.blogspot.com.br/ Acesso em: out. 2015.
87
características da cidade que favorecem seu uso, como o relevo e as curtas
distâncias, dando destaque para “os conflitos recorrentes entre motoristas,
motociclistas e ciclistas”.
É importante lembrar que tanto o Niterói de Bicicleta quanto o Mobilidade
Niterói foram convidados pela própria Guarda Municipal para falar sobre a
questão da bicicleta na cidade para um grupo de 73 guardas, que estavam em
fase treinamento desde dezembro. Esta abordagem como parte do
treinamento, mostra o reconhecimento da bicicleta enquanto elemento da
cidade por parte da corporação, explicitando a construção de um trabalho
moral entre as instituições da prefeitura e a maneira como tal formação se deu
de forma transversal, com a participação tanto de um coletivo externo - o
Mobilidade Niterói, quanto uma instituição governamental paralela: o Niterói de
Bicicleta.
Ainda com relação à atuação do Mobilidade Niterói, devemos atentar ao
tipo de dados que o grupo tem produzido. Houveram pesquisas que foram
facilitadas pelos órgãos da prefeitura, como por exemplo o estudo sobre “A
bicicleta nas Escolas Municipais de Niterói”. Esta pesquisa foi realizada através
do Mobilidade Niterói, o Niterói de Bicicleta, a Secretaria de Meio Ambiente,
Recursos Hídricos e Sustentabilidade e contou com o apoio da Fundação
Municipal de Educação. A pesquisa buscava produzir dados sobre o uso de
bicicleta como meio de locomoção nas Escolas Municipais participantes do
projeto.
Ao todo foram respondidos 517 formulários, sendo que 481 foram
respondidos pelos alunos e 45 por funcionários e professores de seis escolas
municipais ao redor da cidade. Os alunos entrevistados tinham entre 11 e 17
anos e cursavam entre o 5º e o 9º anos. Foi constatado que 54% dos alunos
possuem bicicleta, mas somente 7% a usam como meio de transporte para ir à
escola. Entre os alunos que possuem bicicleta e moram dentro do raio de 5 km
da escola, 38% utilizam ônibus, carro ou van para irem para escola. A pesquisa
constatou que 39% destes alunos não usam a bicicleta por conta da falta de
uma estrutura cicloviária segura. (sendo que as respostas variavam entre:
“porque a escola não tem onde guardar a bicicleta”; “porque eu tenho medo do
trânsito” e “porque meus pais tem medo do trânsito”). 61% dos alunos que
88
possuem bicicleta responderam que a adotariam como meio de transporte se
houvessem ciclovias e bicicletários seguros.72
Podemos ver na pesquisa o direcionamento para uma demanda que é
contida pela falta de estrutura cicloviária, afim de pressionar para políticas e
investimentos públicos na área. No mesmo sentido, o “Relatório Preliminar
sobre as bicicletas na cidade de Niterói” (2014), além de traçar o perfil, origem
e destino dos usuários, contava com uma pesquisa sobre “Demanda Reprimida
e Percepções Sobre o Uso Da Bicicleta”. A pesquisa foi feita na estação das
Barcas do Centro de Niterói, entre os meses de setembro a novembro de 2014
em parceria com o programa Niterói de Bicicleta, contando 226 entrevistados
que não utilizam a bicicleta como meio de transporte. Entre as informações
levantadas estava o percentual de pessoas que concordam que uso da
bicicleta é uma boa opção como meio de transporte no dia-a-dia (87%);.que
concordam que uso da bicicleta melhora o trânsito nas ruas e avenidas (90%);
que concordam que o uso de bicicleta não é restrito a alguns perfis/tipo de
pessoas (63%); e que usariam a bicicleta como meio de transporte se
determinadas demandas fossem atendidas (94%), como mais ciclovias (pista
exclusiva e segregada para circulação de bicicletas, placas e demarcações de
sinalização, mais bicicletários seguros e mais respeito aos ciclistas.73 O estudo
ainda conclui que:
72
Pesquisa disponível em: http://www.mobilidadeniteroi.com/#!estudos-e-pesquisas/c1zo5 Acesso em:
Setembro, 2015.
73
Dados disponíveis em: https://drive.google.com/file/d/0BzvrL-ZNi5iNNmdKZGtJb0VvaTQ/view?pli=1
Acesso em: Outubro, 2015.
89
O relatório é finalizado com uma série de recomendações de ações a
serem tomadas pela prefeitura, como a implantação de ciclovias interligadas
que se conectem ao centro da cidade; campanhas educativas e informativas,
que não se limitem à “legislação aplicada mas as formas de conduta de
pedestres, ciclistas e motoristas para o bom convívio”; e implantação de
bicicletários. No mesmo sentido, o grupo redigiu um relatório sobre o Dia
Mundial De Bike Ao Trabalho74 e a Ciclofaixa Na Marques de Paraná, que
visava apontar para a demanda por este espaço. O relatório expõe os dados da
contagem de ciclistas que passavam pelo trecho de uma ciclofaixa provisória
na Rua Marquês de Paraná, apontando aspectos positivos e negativos,
concluindo que:
90
Lourenço à Ciclovia da Av. Amaral Peixoto e Icaraí”; e “capacitação dos
controladores de trânsito da NitTrans visando o entendimento da importância
da bicicleta para a mobilidade da cidade”.
Neste sentido, é possível perceber que a atuação do Mobilidade Niterói
com relação à educação se dá através da produção de dados, que colocam a
circulação de bicicletas numa variável da população, tornando casos isolados
em estatísticas de deslocamento. Estes dados desbloqueiam a demanda por
estruturas específicas. Além disso, como se pode observar nas sugestões dos
relatórios, seus textos buscam constante diálogo com as instituições públicas
ao sugerir ampliação ou melhora na infraestrutura, campanhas de educação ou
até mesmo na avaliação de campanhas.
Neste sentido, se considerarmos o ato de se deslocar por automóvel o
comportamento padrão e o andar de bicicleta como o desviante, o grupo é o
que mais se enquadra naquilo que Becker (2008) chama de empreendedor
moral. O grupo age como empreendedor moral a partir da produção de dados e
da divulgação de pesquisas sobre o benefício do uso da bicicleta em vários
setores da sociedade, como comércio, segurança, etc., pois em sua atuação
empreende um tipo de cruzada moral contra as situações que prejudicam o
bem-estar da cidade, de acordo com sua própria concepção, que valoriza o
deslocamento por bicicleta em detrimento de outros tipos de deslocamento.
Até o fim de 2013, a Massa Crítica se dava só por seus passeios, uma
vez por mês. Os ciclistas se encontravam em frente à estação das barcas, na
região central de Niterói e saíam pedalando, cantando em coro e advogando
pela presença das bicicletas nas ruas com gritos e músicas como: “Mais amor,
menos motor!” “não é só esporte, é também transporte”; “Bicicleta todo dia: eu
não pago academia!”; “Bicicleta: um carro a menos!” e em ritmo carnavalesco:
“se você acha que a bike a lenta, a bike não é lenta não. De bicicleta chega
rapidinho, de carro leva um tempão!”. Naquela época, o papel do movimento na
educação para o trânsito era chamar a atenção dos motoristas para a presença
dos ciclistas nas vias e os benefícios de seu uso.
91
A partir de 2014, além da bicicletada, os ciclistas engajados passaram a
se dedicar ativamente à política envolvendo a bicicleta na cidade. Assim, as
plenárias passaram a ser periódicas e o contato com representantes políticos
se intensificou. As cobranças do movimento passaram a ser divulgadas através
de campanhas virtuais e panfletagem para a população, sendo promovidos
também encontros com gestores públicos do Niterói de Bicicleta. A página do
grupo passou a circular uma série de mensagens e imagens que ajudavam na
construção casos que ligavam incidentes envolvendo bicicletas com a política
pública. Este é um papel bastante relevante, pois o grupo passa a agrupar
situações que estavam envoltas a um certo tipo de invisibilidade, dentro de
casos de responsabilidade pública. A análise destas imagens nos é
interessante para entendermos as campanhas do grupo e o seu entendimento
e narrativa sobre as ações e políticas públicas. Podemos dividir estas imagens
em três categorias: denúncias, demandas e normativas.
As denúncias correspondem a uma dimensão fundamental da ação do
coletivo, pois é a partir delas que as percepções do grupo a respeito das ações
públicas e dos demais agentes relacionados ao deslocamento através da
bicicleta são circuladas para uma audiência maior, para além do grupo.
Começamos com as denúncias e demandas ligadas à Nittrans e à Prefeitura. A
primeira campanha circulada foi em abril de 2014, com a divulgação da
hashtag #acordanittrans:
92
IMAGEM 12 – #acordanittrans
75
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
75
Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso em: ago, 2015.
93
IMAGEM 13 – Desmilitarização da Nittrans
76
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
76
Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso em: ago, 2015.
94
IMAGEM 14 – Nova ciclovia, velhos problemas
77
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
77
Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso em: ago, 2015.
95
IMAGEM 15 – MOTOVIA
78
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
79
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
78
Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso em: ago, 2015.
96
Nesta publicação há a crítica ao entendimento do trânsito direcionado
exclusivamente aos automóveis. Segundo o grupo, mesmo na presença de
agentes, a circulação pela ciclovia é negligenciada. Na sessão de comentários
ainda há um depoimento que diz “Passo por lá todos os dias e é sempre isso.
Esses operadores e nada são a mesma coisa.” Esta discussão é tema
recorrente nas plenárias do grupo, sendo que já questionam há muito tempo a
atuação da Nittrans junto à prefeitura. As cobranças do grupo são importantes
para entendermos o quadro daquilo que entendem como ideal.
80
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
79
Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso em: ago, 2015.
80
Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso em: ago, 2015.
97
IMAGENS 17 – SEGREGADORES
81
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
81
Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso em: ago, 2015.
98
IMAGEM 18 – DEMANDAS 1
82
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
IMAGEM 19 – DEMANDAS 2
82
Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso em: ago, 2015.
99
83
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
83
Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso em: ago, 2015.
100
alertar para a existência da bicicleta neste contexto e que sua circulação
precisa ser reconhecida. A nós, cabe a análise de como o grupo torna
acontecimentos individuais em casos de demanda pública. Uma estratégia
interessante pode ser vista na campanha “Poderia ter sido eu”, de 2014. A
campanha foi em decorrência do atropelamento da professora Patrícia Petrone,
de 48 anos. Patrícia estava com outros dez ciclistas, quando foi atropelada por
um ônibus, da Viação Pendotiba. Segundo um relato publicado no jornal
Extra84, o motorista que a atropelou só parou por impedimento dos colegas que
pedalavam junto a ela, ainda afirmando que “Aqui (a rua) não é lugar para
ciclista”. A campanha criada pelo coletivo era para chamar a atenção da
população com relação à fragilidade do ciclista na via. Para envolver mais
pessoas na luta, o coletivo lançou uma campanha de solidarização entre os
ciclistas, pedindo para que os mesmos colocassem suas manifestações de
repúdio no canal do Niterói de Bicicleta, marcando com hashtag o prefeito:
85
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
Além dos grupos dos coletivos, a campanha foi circulada pela mídia local
e a atuação do grupo foi fundamental para a criação de um certo tipo de
entendimento do ocorrido. Ao invés de isolar o ocorrido, o coletivo o
84
PINTO, Ana C. Ciclistas cobram segurança no trânsito após mulher ser atropelada por ônibus em
Niterói. Extra, 5 de maio de 2014. Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/rio/ciclistas-cobram-
seguranca-no-transito-apos-mulher-ser-atropelada-por-onibus-em-niteroi-
12386546.html#ixzz3rn62Rp4w Acesso em: Ago, 2015.
85
Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso em: ago, 2015.
101
transformou num caso que “poderia ter sido” com qualquer ciclista, criando uma
sensibilização entre os ciclistas e chamando a atenção para a ausência de
ação das instituições públicas. Para pressionar, houve a marcação do prefeito
Rodrigo Neves nas postagens. Assim, afastando-se de um entendimento do
ocorrido como uma injustiça individual num caso entre dois agentes isolados, o
coletivo direciona a opinião pública para um problema de injustiça coletiva,
chamando a atenção para a fragilidade dos ciclistas nos seus deslocamentos
cotidianos.
Ao abordar os acontecimentos, o coletivo não os considera de forma
isolada, responsabilizando individualmente os envolvidos. Ao transformar os
acidentes e ocorrências em casos específicos, o grupo os situa num quadro
mais abrangente, responsabilizando a “omissão” e o “descaso” da prefeitura e
da Nittrans frente a todo o conjunto de ocorrências como a em questão. Não se
pode ignorar também o recurso utilizado para se referenciar aos ciclistas
atingidos por acidentes: a condição de vítima. Este entendimento de si e dos
ciclistas enquanto vítima é fundamental na mobilização dos grupos de pressão
na cidade.
Nos encontros do Pedal Sonoro e da Massa Crítica, sempre há
momentos de desabafo sobre as situações vividas no cotidiano do trânsito. Em
quase todas as plenárias que fui, sempre ouvi histórias de motoristas gritando
“vai pra calçada!”, “sai da rua!” ou ainda passando muito perto do ciclista (fina)
ou fazendo conversão fechando o caminho do ciclista. Esse compartilhamento
acontece tanto nas redes sociais, quanto em conversas formais das reuniões e
em grupos paralelos que se formam antes ou depois das discussões. Nestes
momentos, os ciclistas não só dividem as suas experiências, mas também
reafirmam seus direitos. O compartilhamento público de sua experiência com a
violência no trânsito são essenciais na mobilização, pois este testemunho se
torna um ato político.
A foto de Patrícia Petrone, segurando a placa “Eu fui atropelada. Chega
de vítima!”, a campanha lançada pela Massa Crítica “E se a vítima fosse você?”
e as fotos dos demais ciclistas compartilhando suas frases ilustra bem esta
situação. A vivência de um ato isolado do cotidiano, toma coro num grupo que
reconhece e se identifica com os casos narrados. Esta situação vai de encontro
com o que Jimeno (2010) descreve como comunidades emocionais. A
102
campanha se transforma num movimento de vítimas que agenciam a sua
própria participação “em uma tentativa de romper as barreiras — legais,
institucionais, de interesses criados — a respeito do seu reconhecimento” e
103
IMAGEM 21: PANFLETO FRENTE E VERSO
86
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
IMAGEM 22 – CONTRAMÃO
87
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
86
Panfleto distribuído pela Massa Crítica nos seus eventos, elaborado a partir da iniciativa de “Educação
para o trânsito” no início de 2014. Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso
em: ago, 2015.
87
Panfleto distribuído pela Massa Crítica nos seus eventos, elaborado a partir da iniciativa de “Educação
para o trânsito” no início de 2014. Disponível em: https://www.facebook.com/BicicletadaNiteroi Acesso
em: ago, 2015.
104
IMAGEM 23 – CERTO x ERRADO
88
Fonte: Bicicletada / Massa Crítica Niterói
105
também passam suas demandas e novidades com relação à circulação de
bicicletas. A página do Pedal Sonoro também faz chamadas e compartilha as
postagens da Massa Crítica.
O Pedal Sonoro tem menos postagens politizadas do que a Massa
Crítica, mas isso não quer dizer que não faça campanhas. Durante os passeios
do Pedal Sonoro que acompanhei, quase sempre haviam “chamadas
educativas” para os motoristas. Como destaque, em uma edição que contava
com aproximadamente cem ciclistas, nos depararmos com um carro
estacionado na ciclovia da rua Tiradentes, no bairro do Ingá, Zona Sul de
Niterói. Neste momento todo o grupo parou e começou a buzinar. Gisella
Chinelli, uma das organizadoras do passeio, no microfone dizia: “Alô você,
dono do carro X placa Y estacionado aqui na ciclovia! O Senhor está passando
vergonha! Ciclovia não é estacionamento! Vem tirar seu carro daqui!” E o grupo
buzinou até o dono aparecer e retirar seu veículo. No mesmo passeio, em
frente à sede da concessionária de energia da cidade, no bairro de São
Domingos, encontramos uma fila de mais ou menos sete táxis estacionados na
ciclovia. Os ciclistas buzinavam, aos gritos: “ciclovia não é estacionamento!”
“respeite o ciclista!”. Em outra edição, o grupo parou em frente ao Shopping
Plazza – o maior da zona sul de Niterói, para reivindicar espaço para o
estacionamento das bicicletas. Luís Araújo dizia “é uma vergonha que um
shopping como este ainda não tenha estrutura para atender os ciclistas!”.
A ação educativa do coletivo é, então, chamar a atenção para a
presença do ciclista e coagir os motoristas à respeitar o seu espaço. Essa
campanha nas ruas também é feita nas bicicletadas da Massa Crítica e
reivindica que os motoristas tenham um novo modo de se relacionar com as
estruturas criadas para a circulação da bicicleta e com o ciclista. Muito mais do
que vinculada à operação de uma legislação de trânsito a ser respeitada, é
influenciada por uma nova economia moral (FASSIN, 2013) que se estabelece
ao seu redor, que julga e coage o motorista à refletir sobre espaços certos e
errados para sua circulação ou estacionamento – reflexão esta que antes
estava ausente. Ela cria sentimento de indignação e julgamentos a cerca do
que é certo ou errado na postura durante os deslocamentos. Ao reprimir e
vigiar o comportamento dos motoristas num grupo grande de ciclistas, o
coletivo acaba passando duas mensagens principais: a primeira é a chamada
106
de atenção para a presença do ciclista no trânsito e a segunda é o
constrangimento público daqueles que não respeitam o espaço destinado aos
ciclistas nas vias.
Por vezes o Pedal Sonoro também se engaja na circulação de
campanhas online. Uma delas foi em abril, sendo fortemente debatida na
Massa Crítica e abrindo uma grande discussão sobre o tipo de campanha a se
fazer. Esta discussão tomou conta das plenárias da Massa Crítica e a sua
repercussão foi bastante polêmica:
89
Fonte: Pedal Sonoro
107
entre os ciclistas estava tenso. A discussão ficava acirrada entre dois principais
interlocutores: Luís Araújo e Leandro Carmelini. Alguns presentes se alinhavam
à defesa de Luís, que sob o argumento de que “é preciso respeitar para ser
respeitado”, o grupo deveria difundir o regimento do CTB considerando a
bicicleta como veículo, com todas as suas implicações. Já Leandro Carmelini e
alguns outros questionavam a forma como o CTB estava sendo interpretado,
não concordando em equiparar bicicletas e carros, pois com a cidade ainda
sendo pensada para carros, existem situações em que o ciclista se vê obrigado
a ir contra o regimento. Além disso, sustentava Leandro, campanhas de tom
repreensivo à ciclistas ajudariam mais os usuários de carro em sua
argumentação contra o deslocamento por bicicleta, do que a causa defendida
pelos ciclistas. Os dois lados não chegaram a consenso sobre a interpretação
do CTB, mas concordaram que as campanhas da Massa Crítica deveriam
seguir na cobrança por políticas voltadas à bicicleta e para a educação da
população em geral para a presença do ciclista na cidade e não na
normatização de sua conduta.
Este foco na presença da bicicleta nos deslocamentos cotidianos da
cidade em detrimento da normatização do comportamento do ciclista tem sido
mantido desde junho deste ano, sendo que os momentos de maior mobilização
se dão quando acontece algum acidente ou restrição à circulação de bicicletas.
De forma geral, estes períodos de maior e menor mobilização indicam
que a ação política destes grupos está atrelada à simpatia e identificação
emocional daqueles que acompanham suas campanhas. Por isso, a categoria
vítima possui uma alta expressividade cumprindo um papel fundamental neste
tipo de atuação. Assim, o papel de educação destes grupos se dá através da
construção de comunidades emocionais (JIMENO, 2010), que atuam
politicamente em prol de objetivos comuns.
108
6.3. Campanha de educação no trânsito: Prefeitura + ciclistas
Este artigo foi publicado logo após a morte do PM reformado Luiz Carlos
da Conceição, de 56 anos enquanto andava de bicicleta. O acidente aconteceu
na esquina das ruas Benjamim Constant e General Castrioto, no bairro Barreto
(Zona Norte de Niterói) no dia 18 de novembro, sendo que o caso foi veiculado
por várias mídias locais e o ciclista foi homenageado com a primeira Ghost
Bike da cidade. A morte do ciclista aconteceu bem no momento em que os
grupos organizados estavam mais fortificados, não só com relação à própria
mobilização e organização, mas em sua representação na cidade e diálogo
com a prefeitura, através do Niterói de Bicicleta.
Pouco após o acidente, no dia 22 de novembro, estava sendo
inaugurada a ciclovia da avenida Roberto Silveira, em Icaraí, Zona Sul da
cidade. Nesta ocasião foi entregue ao prefeito um abaixo-assinado com mais
de 3700 assinaturas, reivindicando a instalação de um bicicletário “público,
seguro e gratuito”, ao lado da estação das barcas, na Praça Araribóia. O
abaixo-assinado foi circulado pelos integrantes do Pedal Sonoro e da Massa
Crítica até ser assinado pelo prefeito, que se comprometeu a trocar o
bicicletário por um equipamento maior. A entrega do abaixo-assinado foi
também veiculada na mesma matéria da epígrafe acima. A necessidade de
campanhas de educação no trânsito deixava de ser somente uma demanda de
ativistas, para ser também de conhecimento de figuras públicas.
A questão do deslocamento via bicicleta estava no alvo da mídia local. O
momento, marcado pelo acidente fatal, assim como a crescente atuação dos
grupos organizados nas ruas da cidade e a inauguração da ciclovia na Roberto
Silveira, importante via da cidade, estava auxiliando a visibilidade da causa.
90
SODRÉ, Leonardo. Morte de ciclista em Niterói acende alerta para a falta de segurança nas vias
destinadas às bicicletas: Desrespeito a ciclofaixas faz surgir os cicloativistas. O Globo, 02 dez, 2014.
Disponível em: http://oglobo.globo.com/rio/bairros/morte-de-ciclista-em-niteroi-acende-alerta-para-
falta-de-seguranca-nas-vias-destinadas-as-bicicletas-14695724#ixzz3rqapVxts Acesso em: Ago, 2015
109
Matérias sobre as pedaladas noturnas e denúncias de automóveis
estacionados ou circulando em ciclovias, antes invisibilizadas, passavam a
estampar as páginas dos jornais. Este conjunto de acontecimentos fez com que
as políticas para bicicleta fossem pensadas até mesmo por aqueles que não
faziam seu uso.
Este foi o clima em que acontecia a primeira plenária de 2015 da Massa
Crítica, no dia 27 de janeiro. No encontro, os participantes acordaram que o
foco de seus esforços seria uma campanha educativa e demandaram uma
campanha aos representantes da prefeitura presentes. Isabela Ledo, já como
coordenadora do projeto Niterói de Bicicleta esteve presente e foi convidada
pelos ciclistas para organizar um grupo de trabalho com foco na educação para
o trânsito - o “GT de Educação”. Paralelamente às atividades do GT de
Educação, a Massa Crítica produziu os panfletos educativos para motoristas e
ciclista expostos anteriormente, que foram distribuídos durante as bicicletadas,
Pedal Sonoro e panfletados pelos participantes.
Durante a plenária, foi combinado que o GT de Educação seria formado
por representantes da prefeitura e dos grupos organizados da cidade. Assim,
participariam das discussões um representante do Mobilidade Niterói (Sergio
Franco), da Bicicletada/Massa Critica Niterói (Leandro Carmelini), Bike Anjo
(Ana Carboni), Ciclistas de Niterói (Bruno May), Pedal Sonoro (Luís Araújo),
Fundação Municipal de Educação (André Valim), Secretaria de Meio Ambiente
(Daniel Marques), FECIERJ (Claudio Santos), Niterói de Bicicleta (Isabela
Ledo), e Nittrans (Priscila Rocha e Glauston Pinheiro).
Os encontros do GT aconteceram na sede da Prefeitura, sendo que o
primeiro aconteceu no dia 25 de fevereiro. Neste encontro estavam Isabela
Ledo, Luís Araújo, Sergio Franco, Ana Carboni, André Valim, Bruno May,
Priscila Rocha e Gabriel Cunha (representante de Daniel Marques). As
decisões da primeira reunião foram registradas na seguinte ata:
110
revisto e será apresentado à Nittrans pelo Niterói de Bicicleta na
próxima semana. A quantidade de faixas e placas dependerá das
áreas selecionadas e da verba levantada. A Nittrans será responsável
por fixar e provavelmente por confeccionar (parte) desse material. A
Fundação Municipal de Educação (FME) também sinalizou a
possibilidade de custear parte deste material (faixas).
2 - Confecção de material impresso (flyers) a serem distribuídos na
rua, com dicas de segurança para motoristas e ciclistas.
3 - Elaboração de 10 posts para serem compartilhados nas redes
sociais com dicas de segurança para motoristas e ciclistas, algo
simples, sem muito texto, que chame a atenção. O conteúdo será
também discutido e definido pelos grupos de ciclistas e enviado em
até uma semana à FME que fará a arte e a disponibilizará para
divulgação.
4 - Propaganda em Radio Comunitária (Região Oceânica) com
mensagens de respeito ao ciclista. A Secretaria do Meio Ambiente
(SMRHS) se disponibilizou a organizar esta ação.
5 - Colocação de BusDoors com mensagens educativas sobre
respeito ao ciclista. A Nittrans colocará o Niterói de Bicicleta em
contato com a FETRANSPOR.
6 - Inserção de mensagens educativas sobre respeito ao ciclista em
letreiros na Ponte Rio-Niterói e nas estações das Barcas. A Nittrans
colocará o Niterói de Bicicleta em contato com a CCR Barcas.
Paralelamente à preparação destas ações de curto prazo será
levantado o orçamento de cada Secretaria para custear as mesmas.
A Secretaria do Meio Ambiente está revisando esta planilha.
As ações de longo prazo serão discutidas no próximo encontro e
serão provavelmente focadas em eventos específicos como a
Semana do Meio Ambiente, a Semana da Mobilidade entre outros. O
grupo Mobilidade Niterói já está confeccionando uma cartilha voltada
aos motoristas, ciclistas e pedestres para ser usada nestas ocasiões.”
111
[“Ciclista na pista tem preferência. Respeite o 1.5m"]
8. São Lourenço
[“Lugar de bicicleta é na rua, no sentido do trânsito e nas
ciclofaixas/ciclovias onde existirem”] (imagem: ciclista na ciclofaixa
com carro parado na mesma e uma interrogação na cabeça do
ciclista)
9. Praia de Icaraí
[“Lugar de bicicleta é na rua, no sentido do trânsito e nas faixas
laterais da via”] (imagem 1.5m - ciclista na lateral direita da pista e
não da sarjeta - para referencia: ciclistas devem se posicionar na
linha de 1/3 da pista)
112
IMAGEM 25 – Localização das faixas
113
ciclista, por conta dos perigos que ficariam expostos se andassem sempre
conforme a legislação. No dia 7 de abril, Isabela Ledo e Ana Carboni saíram
pelas ruas da cidade junto ao gerente responsável pela sinalização horizontal e
vertical de Niterói na Nittrans para definir os pontos de fixação das faixas. As
sugestões feitas a partir deste encontro foram de que nos lugares tecnicamente
impossíveis, poderiam ser colocados banners nos postes ou faixas em sinais
de trânsito, seguradas por pessoas. Ainda na mesma semana a agência
PROLE enviou os seguintes modelos de faixa para o grupo:
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única opção possível, principalmente para pessoas sem muito tempo
de pedal. E, quanto aos sinais, na maior parte das vezes, é mais
seguro para o ciclista sair antes dos carros arrancarem, ou seja, com
o sinal ainda vermelho.
Penso que, enquanto não tivermos condições dignas de circulação,
as mensagens direcionadas aos ciclistas devem se limitar à questão
do respeito ao pedestre.”
115
IMAGEM 27 – FAIXAS E BANNERS CAMPANHA
116
IMAGEM 28 – CAMPANHA NAS RUAS
117
Segundo os dados que a Isabela Ledo passou, a veiculação das peças
foi dividida da seguinte maneira:
O Dia Niterói:
28/06/2015, 05/07/2015, 12/07/2015, 19/07/2015 e
26/07/2015
O Fluminense:
05/07/2015 , 12/07/2015 e 19/07/2015
JORNAIS IMPRESSOS
A Tribuna: 04/07/2015, 11/07/2015 e 18/07/2015
“Niterói ganhou uma nova via, que melhora o trânsito, respeita o meio
ambiente e ainda faz bem para a saúde. É a ciclovia: a infraestrutura
de transporte e lazer das mais modernas metrópoles, mas para a
91
Disponível em:
https://www.facebook.com/PrefeituraMunicipaldeNiteroi/videos/vb.467413180040037/805132579601
427/?type=2&theater
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ciclovia ser segura e o transito melhorar, temos que nos respeitar. Os
ciclistas têm o direito de trafegar junto aos carros, os motoristas tem
que manter distância segura das bicicletas e não podem estacionar
na ciclovia. Quanto mais a moda pega, melhor para todo mundo. O
comércio fatura mais. Quem vai para o trabalho de bicicleta fica
menos doente e a simples presença de ciclistas nas ruas, melhora a
segurança. Vamos respeitar a ciclovia! Afinal, o trânsito é feito de
pessoas como você” (NITERÓI, 2015 ).
92
92
Disponível em:
https://www.facebook.com/PrefeituraMunicipaldeNiteroi/videos/vb.467413180040037/802830003165
018/?type=2&theater
119
trânsito não tinham sido vistas em nenhum dos pontos levantados. Então o
grupo passou a questionar a presença das faixas:
120
IMAGEM 31 – CRITICA À CAMPANHA 1
121
feita a partir de placas permanentes, como proibido estacionar, conversão
proibida, preferencial, etc. Apenas as sinalizações referentes à presença do
ciclista na rua foram feitas através destas faixas, que não duraram muito –
cerca de dois meses após a instalação das faixas, quase nenhuma perdurou e,
muitas delas estavam deterioradas ou fixadas de forma que impossibilitavam
sua leitura.
Neste sentido, o que os ciclistas estavam esperando como o efeito de
divinização do Estado, não foi eficaz. Isso porque ele dependeria da
capacidade de fazer crer que aquele não é um ponto de vista, mas o “certo”.
Porém, num ambiente em que o certo e o errado são pautados
majoritariamente pela sinalização vertical através de placas permanentes, as
faixas não foram suficientes para generalizar esta concepção de “certo”. Essa
execução deixou os ciclistas envolvidos na produção da campanha
desconfiados, como Carmelini pontuou na audiência pública que aconteceria
meses mais tarde:
122
estruturas sociais. Para ele, essas estruturas se materializam através da
conduta, dos hábitos, valores e representações sociais.
Em sua concepção, a civilização ocidental passou por mudanças do
comportamento que se deram vagarosamente, através de processos psíquicos
gradualmente moldado durante séculos. Elias concebe que todo ser humano é
influenciado pelo comportamento dos outros, por isso buscou nos manuais de
etiqueta, livros de comportamento e documentos históricos como foi sendo
moldado o comportamento humano.
Os manuais ensinavam como se comportar na mesa (lavar as mãos
antes da refeição, não limpar o nariz com as mãos, não cuspir por cima da
mesa, não limpar os dentes com a faca, etc.). O conceito de courtoesie
(cortesia) ia além da normatização da vida aristocrática, também influindo na
mentalidade e nos sentimentos do homem medieval. Esse condicionamento
teve continuidade na renascença, quando a vergonha e a repugnância
começaram a fazer parte das relações sociais e o conceito de civilité
(civilidade) substitui o conceito de (cortesia). Neste período Elias chama
atenção para o tratado de Erasmo, que fez um retrato de como as formas de
comportamento e as situações sociais e de convívio estavam adquirindo
sentido e significado no mundo moderno. Elias alerta para a naturalidade dos
comportamento dos medievais, que eram naturais e socialmente aceitáveis e
de como o sentimento de nojo, repugnância ou vergonha foram construídos
socialmente, são típicos do homem moderno civilizado. Ao analisar manuais
produzidos até o século XVIII, Elias percebeu que embora as formas de
comportamento ensinadas nesses manuais tivessem surgido na classe
aristocrática, elas foram se difundindo por toda sociedade. Além disso, a
mudança de hábitos não se deu por questões de higiene, mas pelos impulsos e
emoções como a repugnância, o medo ou a vergonha que foram alimentados e
reproduzidos tornando-se ritualizados. Assim, explica Elias:
123
Desta forma, Elias utilizou-se dos manuais de boas maneiras para
entender como os padrões de hábitos e comportamentos foram condicionados
em cada época, coagindo os indivíduos para agirem de acordo com as regras e
tabus do comportamento vigente.
Podemos dizer que o que se vive hoje em Niterói é uma espécie de
processo civilizador nos hábitos e regras de conduta nos deslocamentos
cotidianos. Se nos voltarmos para as ações de educação, tanto da prefeitura
quanto dos coletivos, podemos perceber que o que buscam é exatamente
desnaturalizar certos padrões de comportamento vigentes no trânsito da
cidade, fazendo uso do código de trânsito – que, para além de regular e
legislar, nada mais é que um manual de comportamento que condiciona as
situações sociais de convívio durante os deslocamentos.
Com o estabelecimento de novas ciclovias/faixas e o estímulo para a
utilização da bicicleta enquanto solução de sustentabilidade e mobilidade, a
cidade tem passado por mudanças na disposição física da infraestrutura viária
e também feito campanhas pró-bicicleta. Estas mudanças têm exigido uma
mudança no padrão de comportamento, através de processos psíquicos que
estão sendo gradualmente remodelados, não somente através da iniciativa de
órgãos públicos, mas também através da popularização e assimilação destes
costumes. Mas como estes costumes são assimilados?
Durante a volta de um evento organizado pelo Bike Anjo, estávamos no
centro de Niterói, num grupo de aproximadamente 15 pessoas. Na ciclofaixa
onde estávamos haviam dois carros estacionados, em frente a uma barraca de
cachorro-quente. Todos nós paramos em frente aos carros, sem falar uma
palavra. Alguns apertaram as campainhas das bicicletas e nada mais. Houve
constrangimento geral e um silêncio, tanto entre os ciclistas como entre
aqueles que estavam lanchando. Algumas pessoas começaram a filmar com o
celular. Após cerca de dois minutos com todas as bicicletas paradas, os
motoristas vieram e retiraram seus carros da pista e os ciclistas continuaram
seu caminho, ainda em silêncio.
Esta batalha silenciosa pelo espaço da ciclovia é um bom exemplo do
papel fundamental dos constrangimentos nos processos civilizatórios. As
pedaladas da Massa Crítica e do Pedal Sonoro, que constrangem os
motoristas a tirarem seus carros estacionados nas ciclofaixas (como já descrito
124
anteriormente) também cumprem este papel. Assim, como descreve Elias
(2006) os comportamentos vão sendo remodelados por serem considerados
são feios, ou constrangedores à vista e geram associações desagradáveis. O
termo “mautorista” por exemplo, é um pejorativamente utilizado pelos ciclistas
para descrever aqueles motoristas que “não respeitam o ciclista”. A vergonha
de dar esse espetáculo, antes ausente, e o medo de provocar tais associações,
vai aos poucos se difundindo dos círculos que estabelecem este padrão (os
ciclistas) para outros mais amplos, através da ação do constrangimento e
embaraço, mas também da ação de numerosas autoridades e instituições.
As frases das faixas escolhidas para educar os motoristas também são
um bom material para se pensar este processo. Então, enunciados como
“Respeite a preferência do ciclista quando o sinal estiver aberto. Sinal fechado?
A preferência é do pedestre!”; “Ciclista na pista tem preferência. Respeite o
1.5m"; “Lugar de bicicleta é na rua, no sentido do trânsito e nas faixas laterais
da via”; “Precisa parar? Faça isso ao longo da ciclovia e não sobre ela. Infração
grave” expõem situações que os ciclistas mobilizados já cobram nas ruas, mas
que não são costumes dos motoristas. Isso evidencia o caráter gradual de um
processo civilizador. Se a mudança nas normas de etiqueta começava pelos
nobres e só depois foi sendo disseminada por outras camadas da sociedade
ocidental, as mudanças de comportamento no trânsito em Niterói tem sido
reivindicadas por ciclistas, que conseguiram um respaldo público para suas
campanhas de ‘conscientização’ e que gradualmente passam a ser
incorporadas pelos outros agentes envolvidos nos deslocamentos diários (mas
não sem conflitos, como veremos mais à frente). O que causa indignação e os
ciclistas consideram como “falta de respeito”, muitas vezes nem se passa pela
consciência do motorista. Hoje é um consenso que dirigir na contramão é um
absurdo, pois pode colocar vidas em risco. Porém, ao passar muito próximo a
um ciclista, o motorista também coloca uma vida em risco, mas não é consenso
que isso seja um absurdo, porque ainda não há consenso sobre o ciclista como
um agente que tem o direito de ocupar a pista. Evidência disso é o que contou
a Andrea Tlaruiz:
125
calçada é lugar de pedestre....o motorista foi sem prestar socorro e
ameaçando me bater.” (conversa no Niterói de Bicicleta)
126
6.5. A audiência pública
127
As faixas foram carregadas para dentro da casa e expostas onde
ocorreu a audiência sobre o sistema cicloviário de Niterói. Na mesa de
discussão, estavam presentes os vereadores Daniel Marques e Henrique
Vieira; o vice-prefeito Axel Grael e a coordenadora do Niterói de Bicicleta,
Isabela Ledo. Além destes, a audiência também contava com a presença de
outros agentes da prefeitura fora da mesa: Glauston Pinheiro, o novo secretário
do meio ambiente e o subsecretário da secretaria de urbanismo (que revisou o
lugar na mesa com a Isabela ao final da sessão). O Cel. Paulo Afonso foi
convidado à participar, mas não apareceu. A audiência durou mais de cinco
horas, sendo que além dos representantes da prefeitura já citados, o evento
reuniu as principais figuras dos coletivos que têm se envolvido e pensado a
bicicleta na cidade. Além do debate sobre a questão, também foram entregues
moções de aplausos para os coletivos Mobilidade Niterói, Bike Anjo, Massa
Crítica e Pedal Sonoro.
A audiência começou com a apresentação do programa Niterói de
Bicicleta pela coordenadora Isabela Ledo, passando para Leandro Carmelini
que fez a apresentação dos coletivos da cidade e das demandas levantadas
pelos participantes nas plenárias da Massa Crítica. Rodrigo Rosa fez a defesa
da bicicleta como objeto de política pública, passando a fala para outros
ciclistas presentes e contando posteriormente com a defesa de Axel Grael e da
participação do subsecretário de Urbanismo e Mobilidade.
Esta audiência nos serve sobretudo, para mostrar como os agentes que
estão pensando a bicicleta na cidade percebem o que tem ocorrido em Niterói
com relação ao deslocamento através da bicicleta. As falas nos dão uma ideia
dos entendimentos sobre as relações entre as instituições na prefeitura, a
campanha de trânsito e a percepção das condições materiais para o andar de
bicicleta em Niterói. Interessante neste ponto é analisar como Rodrigo Rosa fez
a defesa da bicicleta enquanto política pública:
“A nossa causa não é uma causa própria, é uma causa para a cidade.
Os benefícios são para a cidade, para as pessoas, para a população,
não só para o ciclista.”
Esta crença numa causa que é para todos e não apenas uma
reivindicação de um grupo isolado, nos coloca frente ao empreendedorismo
128
moral (BECKER, 2008) de Rodrigo, que chama a atenção para o benefício da
bicicleta não apenas para quem pedala, para todos os cidadãos.
Já Carmelini, ao fazer a análise da atuação da prefeitura, aponta para a
percepção da Massa Crítica com relação às negociações internas e suas
consequências nas políticas públicas.
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E a gente fez o que? A gente se reuniu com a Isabela, foram quatro
encontros. Junto com a empresa de publicidade contratada tentamos
explicar ao máximo o é a bicicleta e na hora de execução disso, que
era de responsabilidade da Nittrans junto à empresa de publicidade,
do nosso ponto de vista foi um completo fracasso, também. Era pra
ser uma campanha voltada completamente, ou 90% para a
conscientização do motorista para a presença do ciclista e dos
demais não motorizados e virou uma campanha de internet, uma
campanha irrisória, de mensagens subjetivas, filosóficas.
As mensagens de mais impacto: "respeite o ciclista"; "respeite 1,5"
ficaram em mídias muito reduzidas, né. As mensagens mais
impactantes ficaram nas menores mídias. Você vai ali perto da
rodoviária, tem a fachada de um prédio inteiro, deve ter uns 20
metros aquele outdoor, escrito "O trânsito somos todos nós". Isso não
muda uma cidade. O que muda a vida de um ciclista é "respeite um
1,5m". As mensagens que mudam o conceito de cidade são estas,
que são mais fortes.(...)
Esta campanha que a prefeitura fez está circulando é voltada, pelo
que eu estou vendo, para o ciclista e para o pedestre e tão
esquecendo do motorista, do motorista de ônibus, que são a maior
ameaça para o ciclista.(...)
A faixa de São Lourenço é um exemplo da campanha. Eu postei no
Niterói de Bicicleta pedindo para ser refeita. Algum funcionário me
respondeu que fariam no dia seguinte. Desde então tiraram e nunca
mais foi posta”
130
“Por que não temos mais ciclistas em Niterói? Por que Niterói está
perdendo seu espaço natural de bicicleta pra carros? Porque
ninguém teme. Não tem fiscalização (...) hoje se a situação de Niterói
é essa é porque a impunidade está presente. Uma cidade onde os
operadores de trânsito não estão capacitados para orientar os
próprios motoristas. Eu passo todo dia na Roberto Silveira e é muito
comum ver um carro com pane, parado na ciclofaixa achando que ali
é local de reparo, pra aguardar o reboque. Eu paro mais a frente,
chamo a atenção do guarda de trânsito e ele diz que sim, foi ele que
orientou o carro a parar ali. Eu quero saber: se o pneu da minha
bicicleta furar eu posso fazer o reparo no meio da Roberto Silveira?”
A grande parte das críticas feitas pelos ciclistas foi direcionada para a
Nittrans, o que nos coloca frente à percepção de uma descontinuidade das
políticas públicas voltadas para a bicicleta, que se planejam dentro do Niterói
de Bicicleta, mas dependem da Nittrans, que não operacionaliza as ideias de
inclusão divulgadas pelo Niterói de Bicicleta.
Outros dois pontos interessantes aqui são as demandas dos ciclistas e
as concepções de cidade. Leandro Carmelini fez um resumo destas demandas
no início de sua fala, as elencando em tópicos:
131
sociedade como um todo, ressaltando que “o pedestre precisa se sentir a
vontade, o ciclista precisa se sentir a vontade, o cadeirante” também.
Axel Grael, em resposta às reivindicações chamou atenção para os
aspectos culturais dos deslocamentos na cidade:
Nesta fala ela chama a atenção para o fato de que o hábito de andar de
bicicleta foi sendo deixado de lado pelas condições impostas pelo sistema de
trânsito, em resposta à concepção “cultural” de Axel. Para ela, o que afastou a
bicicleta das ruas é que o sistema viário tornou o ciclista “invisível” e que para
reverter esta situação a ação do “poder público” é necessária. Axel não
respondeu pontualmente a cada reivindicação, mas defendeu o projeto da
Prefeitura desta forma:
132
o projeto, que está em fase de conclusão e já tivemos uma versão
que foi apresentada aos cicloativistas. (...) fizemos um
estabelecimento de metas públicas e divulgadas, nesta gestão já
chegamos a 30 km de ciclo-rotas, faixas e vias e vamos até o final da
gestão chegar a 60 km”.
133
IMAGEM 34 – CICLOFAIXA PERÍODO - MANHÃ
134
ciclofaixa, fechando uma média de 86 ciclos por hora ou 1,43 ciclos por minuto.
Em comparação com os dados da contagem de janeiro feita na mesma
avenida, o grupo constatou um aumento de 47% no fluxo.
Após esta realização, nas reuniões do Pedal Sonoro e da Massa Crítica,
houveram discussões sobre a possibilidade de se fazer a interligação das vias,
sem prejudicar o trânsito. Este ponto foi levantado também por Leandro
Carmelini na audiência pública, que também pressionou para a extensão da
iniciativa para a rua São Lourenço, que liga os bairros da Zona Norte ao centro
da cidade:
135
IMAGEM 36 – Ciclofaixa temporária
Fonte:Elaboração própria
93
Disponível em:
http://www.niteroi.rj.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3319:2015-08-28-21-37-
47 Acesso em: Setembro, 2015.
136
acompanhamento da atuação dos agentes da Nittrans e publicou um relatório
sobre a execução:
“Desde o primeiro dia de implantação, que foi até muito bem recebido
por novos ciclistas e até pelos mais experientes, começaram os erros.
Ao longo do dia a ciclofaixa ia se estreitando até o ponto de mal haver
espaço para um único ciclista; A curva da Rua Dr. Celestino com Av.
Marquês do Paraná foi negligenciada, apesar dos avisos; O mesmo
ocorrendo com a Rua São João esquina com a mesma Av. Marquês
de Paraná; Total ausência de orientação para ciclistas, motoristas e
pedestres; Total ausência de fiscalização (muito importante neste
período)”
Sei que serei mais uma batendo nessa tecla, mas não consigo conter
minha indignação. Há algumas semanas atrás tinha uma ciclofaixa
temporária linda, nos bordos da pista e contrafluxo, que estava
servindo para conscientizar os carros além de incentivar os novos
ciclistas. E eis que NO MEIO DA SEMANA DA MOBILIDADE (que
ironia), colocam a ciclofaixa na calçada!
E não é qualquer calçada: é um trecho super crítico, com trânsito
intenso do lado, pouco espaço para as pessoas andarem (quem
passa ali sabe que 3 pessoas não andam lado a lado num trecho
dessa calçada), cheia de degraus e buracos. (...)
137
Sério, Nittrans, Niterói de Bicicleta, Seconser, alguém. POR FAVOR
APENAS TIREM essa ciclofaixa da calçada, parem de prejudicar os
94
pedestres e coloque-a de volta no trânsito."
94
Disponível em:
https://www.facebook.com/groups/1377943472427961/search/?query=Sei%20que%20serei%20mais%
20uma%20batendo%20nessa%20tecla Acesso em: setembro, 2015.
138
IMAGEM 38 – 90cm
139
Henrique Vieira, Paulo Eduardo Gomes, Renatinho <todos os
vereadores> e outros representantes eleitos: Precisamos de vocês!
Alguém sabe como podemos acionar o poder público para intervir
nesse descaso e desrespeito que a Prefeitura nos está impondo?
Advogados do grupo, alguém pode ajudar? Não podemos, nem
95
devemos tolerar isso. Chega!”
95
Disponível em: https://www.facebook.com/groups/1377943472427961/search/?query=90%20cm
Acesso em: Outubro, 2015.
96
Disponível em: http://mobilidadeniteroi.blogspot.com.br/2015/09/90-cm.html Acesso em: Outubro
de 2015.
140
IMAGEM 40 – mensagem ao Niterói de Bicicleta
141
IMAGEM 41 – Cones da Marquês de Paraná
Fonte:Pedal Sonoro
142
Quando acompanhei a instalação, logo nos primeiros dias, foi uma
verdadeira dança dos cones: no início da manhã os cones eram postos com
uma largura. Motoristas esbarravam nos cones (alguns propositalmente) e
recorrentemente e mostravam insatisfação com a ciclofaixa ali. Ao recolocar os
cones, os agentes iam diminuindo a faixa e por fim, alguns ciclistas que
passavam afastavam os cones para abrir mais caminho. Alguns chegavam a
chutar para o lado os cones que deixavam a faixa muito estreita. Essa situação
perdurou, até que a ciclofaixa fosse reposicionada parcialmente para a calçada,
quando muitos ciclistas deixaram de utilizá-la.
Podemos ver aqui a operacionalidade de diferentes entendimentos sobre
qual o espaço da bicicleta no trânsito e como estas operações auxiliam a
formação de uma economia moral sobre o trânsito na cidade. A presença da
bicicleta é admitida: se separa um espaço para ela em vias arteriais da cidade
e há toda uma negociação pública a seu respeito. Porém a forma e o espaço
destinado à sua circulação são dependentes das concepções de agentes
específicos localizados nas estruturas públicas.
Esta economia moral está sendo formada por várias frentes: pelo papel
de empreendedorismo moral dos grupos de ciclistas organizados na cidade,
pela publicidade política da prefeitura, pela disposição de espaços destinados à
sua locomoção pelas ruas, pela veiculação de matérias nas mídias e até pelo
posicionamento dos agentes de trânsito com relação à presença de ciclistas.
Não podemos ignorar também que há um trabalho moral dentro das
instituições do governo. Os julgamentos e concepções de prioridades na
administração e a distribuição de recursos escassos (tanto no quesito
operacional, espacial e econômico), são pontos importantes para nossa
reflexão, sobretudo no que diz respeito à atuação da Nittrans. O realocamento
dos segregadores de ciclovias em outros contextos, os cones abandonados, a
indiferença dos agentes à circulação dos ciclistas e o constante estreitamento
da ciclofaixa temporária e posterior reposicionamento para a calçada não
apenas apontam para sua concepção prática do lugar que o pedestre e o
ciclista ocupam no trânsito, como também contribuem para a formação da
opinião pública daqueles que vivem o trânsito da cidade em seus
deslocamentos cotidianos.
143
Este fator é especialmente importante, pois nesta operacionalização das
instituições não são apenas recursos físicos ou econômicos que estão em jogo.
Há também a produção e distribuição de normas sociais, pois não havendo
sinalização ou investimentos na manutenção de certas estruturas e em outras
sim, há a produção de percepção do que é ou não prioritário no trânsito. Além
disso, com a publicidade e o aumento da estrutura viária destinada ao
deslocamento por bicicleta, o número de ciclistas vem aumentando e, com isso,
também os conflitos entre pedestres, ciclistas e motoristas. Estes conflitos
merecem uma atenção especial.
“FUI AGREDIDO
Com um soco caí da bike, levei chutes, levantei e levei mais socos,
estou bem fisicamente, mas não psicologicamente, estou triste e
indignado pois o agressor era um motorista que estava na ciclovia
estacionado em frente a uma barraca de cachorro quente na Av.
Amaral Peixoto, como o carro estava atrapalhando minha passagem,
perguntei para um casal próximo se o carro era deles e ele me disse
que não e que jamais faria aquilo (estacionar em ciclovia), eu saí com
a bicicleta e quando peguei o celular comecei a ser agredido por
outro homem, mais alto que eu e um pouco mais velho, me
ameaçava com xingamentos e com a mão na cintura como se
estivesse armado, dizia que o carro era dele, que não ia tirar dali, não
tive tempo de tirar foto do carro e fui até a delegacia que é próxima,
em frente à delegacia na hora em que ele estava fugindo consegui
marcar a placa, era um Fiat bravo branco, não vou colocar a placa
aqui (não sei o que pode acontecer se divulgar), depois de fazer o
boletim de ocorrência, voltei até lá e o dono da barraca me disse que
eu tive sorte, pois ele achou que o cara me daria um tiro, pois ele
estava realmente armado e é da polícia, tanto o dono da barraca,
quanto o responsável pelo B.O me disseram que eu devia ter ficado
97
quieto” (depoimento de Alex Tietre ).
97
Disponível em:
https://www.facebook.com/groups/1377943472427961/permalink/1685231418365830/ Acesso em:
Jan. 2016
144
ocorrências? Como conflitos que se dão de forma tão particular como esta
pode nos trazer para a análise sociológica? Para responder estas questões,
Elias (2002) nos dá uma boa pista. Para ele, a regra de que “o que é ‘social’
não pode ser ‘individual’ e o que é ‘individual’ não pode ser ‘social’” tende a ser
aceita por consequência de todos a aceitarem, mas ela desaparece quando a
análise é feita sem preconceitos. Assim, segundo ele, as “sociedades não são
nada além de indivíduos conectados entre si; cada indivíduo é dependente de
outros(...). Até mesmo os conflitos de classe são também – independentemente
do que mais possam ser – conflitos entre seres humanos individuais”. Desta
forma, um conflito entre duas pessoas, por mais que possa ser algo único e
pessoal, pode ser, ao mesmo tempo, “representativo de uma luta entre
diversos estratos sociais” (Elias, 2006, p. 71).
Em "Estudos sobre a gênese da profissão naval", Elias expõe esta
relação íntima entre as esferas individual e social através da narrativa de um
conflito entre Drake e Doughty, que se passava durante uma expedição que
partiu de Falmouth, em 1577, para regiões do Pacífico Sul que ainda não
pertenciam à Espanha. Na embarcação haviam cerca de 160 homens, dos
quais 12 eram gentlemen ligados às operações militares. Drake era um
marítimo profissional e self made man, enquanto Doughty era militar
profissional e gentleman, tendo fazendo parte da corte de Elizabeth. Naquele
período a profissão naval ainda não estava definida e era raro que navegação
e operações militares fossem lideradas por um marítimo. Assim, descreve
Elias:
145
modelo em pequena escala da situação em que se encontravam os
seres humanos e dos problemas com os quais se confrontavam
quando o quadro institucional de suas funções profissionais ainda mal
havia se desenvolvido.” (ELIAS, 2006, p.73)
Em sua descrição, Elias mostra que o conflito entre eles não se tratava
apenas de uma desavença pessoal, mas também era consequente de uma
disputa social de categorias. Neste sentido, não eram apenas dois indivíduos
que competiam pelo comando, mas também pelas posições sociais ocupadas
por eles e, consequentemente, do desenvolvimento da profissão marítima.
Portanto, a ação individual estaria indissociavelmente ligada ao posicionamento
social de ambos. Um ponto que não devemos deixar escapar em sua análise é
a atenção para as desigualdades de poder e status, que a partir de uma
questão aparentemente sem importância sociológica, Elias faz uma análise
densa, não se limitando ao caso em particular, mas discutindo o próprio
desenvolvimento das profissões e da sociedade.
A briga, que resultou no assassinato de Doughty pelas mãos de Drake,
vai muito além de uma desavença individual. Doughty frequentava a corte,
pertencia à classe dominante, além de ser militar formado em boas escolas,
enquanto Drake fez carreira, acumulou fortuna, mas não tinha títulos, era
origem camponesa. Na embarcação que comandava, Drake estava invertendo
a hierarquia social. Portanto, esse conflito não só expressava uma disputa por
um campo novo de atuação profissional, como também influiu no próprio
desenvolvimento das profissões navais inglesas. Para Elias “o conflito é uma
das características básicas de uma instituição nascente”(ELIAS, 2006, p. 110),
e eles se dão no interior da nova categoria e entre categorias, numa tentativa
de consolidar posições de poder.
Voltando ao nosso caso, podemos entender a cobrança de Alex sobre o
carro estacionado no caminho, não apenas como algo isolado, mas como a
materialização de uma inversão da lógica rodoviária da cidade. Os
investimentos em infraestrutura rodoviária em toda a cidade têm sido pensados
para a circulação de automóveis. As ruas contam com sinalização e inclusive
fiscalização voltada especificamente para este tipo de modal. As políticas para
a bicicleta são recentes, sendo que o modal ainda não conquistou o
reconhecimento que um automóvel tem. Apesar disso, além de sua circulação
146
nas vias, são estes 30 km de ciclovias que estão sendo reivindicados. Alex
sabe que ali é o espaço exclusivo dele enquanto ciclista. A resistência do
motorista é a revindicação pelo espaço perdido. Até pouco tempo atrás ali era
estacionamento.
Este conflito não é apenas uma disputa isolada, mas parte do
desenvolvimento de novas categorias, tanto de espaço quanto de modal de
locomoção, que interferem na própria concepção do que significa se locomover
pela cidade. O conflito é parte da instituição nascente – a categoria de espaço
reservada para a bicicleta está em disputa no espaço urbano e todos os
envolvidos estão buscando consolidar posições de poder. Os ciclistas tem suas
próprias opiniões, assim como os motoristas, motociclistas e pedestres. Dentro
da administração pública, este embate também é evidente: o Axel Grael e a
Isabela Ledo, enquanto representantes do Niterói de Bicicleta tem suas
posições sobre o papel da bicicleta na cidade, o Cel. Paulo Afonso, também.
Mas, a circunscrição oficial dos direitos de utilização da pista, das
políticas de inclusão deste modal e dos recursos destinados à sua circulação
ainda é vaga e gera uma infinidade de conflitos devido a essa nova situação de
convivência, na qual participam todos aqueles que se deslocam cotidianamente
pelo espaço urbano e dá margem a várias interpretações contraditórias. Ainda
não é possível recorrer a um padrão de comportamento já estabelecido. Tem
muitas pessoas que utilizam a bicicleta mas não se reconhecem como ciclistas
nem como parte do trânsito e trafegam pelas calçadas, na contramão, não
respeitam a sinalização, etc. Também não há sinalização de regras que
determinem claramente uma norma de conduta.
Não podemos esquecer, também, que não há consenso sobre como a
bicicleta deve se portar no trânsito até mesmo entre aqueles que advogam pelo
seu uso. Em algumas plenárias houveram discussões sobre isso. Com isto,
recordo de uma plenária da Massa Crítica, em que se falava sobre o Código de
Trânsito Brasileiro. Enquanto Luís Araújo defendia o respeito de toda a
legislação, Pedro Málaga explicava que saía pouco antes do sinal abrir por sua
segurança, e Leandro Carmelini explicava que a cidade não estava preparada
para o ciclista e que era preciso agir em desacordo com a lei algumas vezes.
Estes desacordos até mesmo entre aqueles que advogam pela bicicleta,
147
mostra que sua inclusão no sistema de deslocamentos da cidade ainda é um
processo que está sendo negociado nos mais variados espaços sociais.
Estes conflitos revelam mudanças macroestruturais, mesmo sendo
evidências de microestruturas. Em sua análise, Elias (2006) fala sobre o
surgimento de uma nova profissão, mas podemos substituir aqui pela
reconfiguração do entendimento do que é o espaço urbano. As disputas
cotidianas e a própria repercussão midiática que elas têm mobilizado, estão
criando entendimentos que vão muito além dos casos isolados. Há aí o
surgimento de uma nova concepção do uso e dos agentes que se deslocam no
espaço urbano. Quem vive esta mudança, vive estes conflitos. Assim critica
Elias (2006):
“A atenção, em geral, volta-se mais para a face institucional, para a
forma como ela se configura em um dado período, no seguinte e
finalmente no presente e menos para as relações humanas reais por
trás dessa face. No entanto, somente considerando essas instituições
parte de uma extensa rede de relações humanas, recuperando para a
nossa própria compreensão as dificuldades e os conflitos recorrentes
com os quais os indivíduos lutaram no interior dessa rede, pode-se
compreender por que e como a própria estrutura surgiu e mudou de
um período para outro” (ELIAS, 2006, p.90)
148
por que e como as estruturas surgem e mudam de um período para outro
(ELIAS, 2006, p.90).
149
7. CONCLUSÃO
150
espaços de circulação e entre os modais, mas também dentro da
administração pública, além de entre seus órgãos e coletivos da cidade, que
reivindicam seu espaço acionando seus direitos.
Ao acionar e reivindicar estas disposições legais, aqueles que se
mobilizam pela causa da bicicleta na cidade buscam alterar a concepção e as
divisões do mundo social no qual se inserem. Em suas campanhas pela
reordenação das vias e investimentos em infraestrutura para deslocamento
“não motorizado”, há também a reflexão sobre os espaços públicos. Toda essa
pauta se baseia numa linguagem que reivindica direitos. Isso contribui para a
formação de certa “consistência social” na categoria dos ciclistas, pois “a
defesa dos direitos pode se tornar um fator de mobilização quando estes estão
ameaçados” (LENOIR, 1998, p. 73).
Como podemos perceber, estas campanhas não se limitam à dimensão
física. A apropriação material do espaço (a via) envolve também uma disputa
de julgamentos sobre o certo e o errado, o que é e quem faz parte do trânsito.
Disputas, inclusive, que perpassam a sociedade como um todo, incluindo as
próprias instituições do Estado através de seus agentes.
O governo produz, por sua vez, ao criar grupos de trabalho, comissões e
nomear especialistas para pensar o deslocamento por bicicleta, uma certa
oficialização de que o problema é percebido e reconhecido publicamente em
Niterói, mesmo que estas comissões representem na prática menos do que
anunciam (BOURDIEU, 2014).
Os diferentes entendimentos que determinam a disposição material e
comportamental do mundo social, também são perpassados por uma dimensão
emocional e moral que não pode ser subjulgada. Através do trabalho moral das
campanhas da prefeitura e sobretudo dos coletivos da cidade, está
acontecendo uma produção de concepções, julgamentos, pertencimentos e
sentimentos relacionados ao andar de bicicleta pela cidade.
A ação dos grupos organizados na cidade têm formado comunidades
emocionais (JIMENO, 2010), que através da partilha de experiências, têm
questionado conjuntamente eventos que antes eram vistos isoladamente. Esse
agrupamento de denúncias coloca um problema que antes era percebido como
particular num panorama maior, chamando a atenção para seu caráter
estrutural e servindo de evidência para a cobrança sobre a falta de ação
151
pública. Assim, quando denunciam a ausência da Nittrans na sua função de
fiscalização das estruturas cicloviárias, evidenciam o caráter público do
problema.
O estabelecimento de novas ciclovias/faixas, o aumento dos ciclistas e
campanhas de estímulo à utilização da bicicleta têm gerado conflitos e exigido
uma mudança no padrão de comportamento. Esta mudança se dá de forma
gradual, não somente através do próprio reordenamento e da iniciativa de
órgãos públicos, mas também através da popularização e assimilação destes
costumes. Essa assimilação não acontece de forma harmoniosa e é aí agem
os constrangimentos públicos feitos pelos coletivos. A cobrança de um grande
grupo de ciclistas que motoristas retirem seus carros estacionados das
ciclofaixas, por exemplo, geram um sentimento de vergonha e cumprem um
papel civilizador. Assim, os comportamentos vão sendo remodelados não pela
existência de um código de conduta, mas por serem considerados negativos ou
constrangedores, gerando associações desagradáveis (ELIAS, 1994).
É preciso, portanto, que se analise os deslocamentos da cidade para
além do que a legislação prevê, ou da impessoalidade das instituições
públicas. Por trás delas existem pessoas lutando para que seus entendimentos
sobre o universo de relações sejam a expressão do Estado, tentando ajustar as
falhas da estrutura institucional que herdaram, ao que elas entendem como
ideal. Nesta disputa, que envolve tanto aspectos discursivos quanto materiais,
a atuação dos grupos, o vocabulário e emoções acionadas não podem ser
ignorados.
A inclusão da bicicleta nos deslocamentos está inserida dentro de uma
discussão maior, que é a apropriação do espaço urbano. Portanto, o que está
em jogo não é apenas a inclusão e o reconhecimento do ciclista enquanto
categoria de deslocamento. É também a reivindicação de uma nova concepção
da cidade e seus usos, daquilo que os textos legais e os coletivos organizados
chamam de democratização das vias. Isso requer o recondicionamento de
práticas que não estão estritamente ligadas ao ciclista, como a redução da
velocidade nas vias. Este é um ponto que está presente em diversas
campanhas da Massa Crítica e do Pedal Sonoro, tendo como expressão
máxima a campanha #niteroiparapessoas. A reivindicação não é apenas do
espaço na via, mas também por um tipo de condicionamento dos hábitos dos
152
motoristas, que é entendido pelos empreendedores morais (BECKER, 2008) do
movimento como benéfico para a sociedade como um todo. Por outro lado, é
um aspecto das campanhas que aumenta ainda mais a tensão, tanto entre
instituições do governo, quanto entre motoristas e ciclistas.
Estes conflitos fazem parte das mudanças estruturais. O aumento da
infraestrutura cicloviária e do número de pessoas que usam a bicicleta é visível
na cidade. Porém, ainda não existe um padrão de comportamento já
estabelecido – não havendo consenso sobre como o ciclista deve se portar ou
dos espaços que pode ocupar, nem mesmo entre aqueles que advogam pelo
seu uso ou entre os órgãos governamentais.
O que fica evidente, então, é que a criação de categorias de espaço,
programas e eventos não garante o governo sobre esta população. Isto só
acontece quando há o reconhecimento social da questão nas práticas
cotidianas do mundo social. Este curso implica num processo que age
remodelando comportamentos através da generalização de concepções e
julgamentos através de elementos civilizadores, como o constrangimento,
indignação, vergonha, percepção de injustiças, etc.
A atuação destas relações na cidade de Niterói já chegaram a constituir
certo consenso – não sobre o que o ciclista significa, mas sobre a existência
deste agente social no contexto urbano. O reconhecimento desta categoria,
não só por parte daqueles que utilizam este meio de locomoção, mas pela
sociedade em geral é um ponto fundamental. Com isso, não só o agente é
identificado, mas também os espaços de circulação passam a ser
problematizados e discutidos em diversas esferas da vida social. Aí está o
papel do conflito enunciado por Elias, como a evidência básica de um padrão
de comportamento nascente.
153
8. REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
154
FLORIANI, Thiago T. Transporte Cicloviário: Uma opção complementar
para mobilidade urbana em Florianópolis. 2013. (Monografia) Departamento
de Economia e Relações Internacionais. Centro socioeconômico, Universidade
Federal de Santa Catarina, Santa Catarina.
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Cesar de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lúcio (org.) Reforma urbana e gestão
democrática: promessas e desafios do Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro:
Revan: FASE, 2003.
155
MARCOLINI, Sergio. Ambiente Urbano e geração de viagens: Niterói, um
estudo de caso. 2011 1v Dissertação (Engenharia Urbana). Escola
Politécnica, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
ROSEN, Paul; HORTON, Dave, COX, Peter. Cycling and Society. Aldershot,
Hants, e Burlington, Ashgate, 2007,
156
(Ciência Política). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo.
DOCUMENTOS:
157
http://www.cidades.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=242
:cadernos-do-ministerio-das-cidades&catid=73&Itemid=107. Acesso em: Março,
2015.
158
156
NITERÓI. LEI 1157/1992 ALTERADA PELA LEI 2123/2004. Institui o PLANO
DIRETOR.
159