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Daniel Martineschen
Guilherme Gontijo Flores
Tradução
Adalberto Müller
Erick Felinto
Revisão Técnica
© 1986, Brinkmann & Bose Verlag
© 2019, Editora UFMG, EdUERJ
Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.
_______________________________________________________________________________________________
414 p.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-423-0279-0 (Editora UFMG)
ISBN: 978-85-7511-512-1 (EdUERJ)
CDD:
302.2 (22. ed.)
301.16 (19. ed.)
CDU:
659.3
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Sumário
Prefácio 17
Introdução 21
GRAMOFONE 45
Jean-Marie Guyau: memória e fonógrafo (1880) 57
Rainer Maria Rilke: “O som primordial” (1919) 69
Maurice Renard: “O homem e a concha” (1907) 86
Salomo Friedlaender: “Goethe fala ao fonógrafo” (1916) 96
FILME 173
Salomo Friedlaender: “A máquina fata morgana” (c. 1920) 197
Richard A. Bermann: “Lira e máquina de escrever” (1913) 248
TYPEWRITER 257
Martin Heidegger: sobre a mão e a máquina de
escrever (1942-1943) 276
Carl Schmitt: “Os buribunkes. Um ensaio de filosofia
da história” (1918) 319
Notas 359
Referências 393
Prefácio à edição brasileira
7
meios). Trabalhando a partir do conceito foucaultiano de arqueologia,
Kittler vai realizar uma pioneira arqueologia das mídias, demons-
trando como, na virada do século XIX para o XX, essas três mídias
destronaram as dominantes no século XIX: Literatura e Filosofia. Ele
as havia estudado em seu livro anterior, Aufschreibesysteme 1800/1900
(1985), nas suas relações com o sistema de ensino na Alemanha. Já no
livro atual, ele quer provar que aquelas três mídias, de alguma forma,
“determinam”, ou melhor, definem, nossa situação atual; mas elas
guardam, em seus modos de disposição e de agenciamento, mesmo
que sejam usadas como mero entretenimento, a sua origem militar.
Este será o mote de Kittler: a maneira como o universo multimidiá-
tico em que vivemos está comprometido com a tecnologia e com a
indústria de guerra. O fato de que, hoje, os drones sejam usados como
brinquedos, e até mesmo em filmes ditos “de autor”, não faz mais do
que confirmar o que Kittler escreveu há mais de quarenta anos.
Desse modo, a tecnologia do celular que usamos hoje foi desen-
volvida para teleguiar mísseis, assim como os nossos computadores
guardam em sua genealogia as marcas de um passado ligado à deco-
dificação de códigos militares. Mesmo a televisão e o cinema, sobre-
tudo na sua vertente mais massiva, tiveram participação decisiva nas
duas grandes guerras do século XX. E hoje sabemos que não existem
guerras que não estejam associadas, de algum modo, à sua exibição em
alguma tela. Ao contrário do que afirmava Walter Benjamin em “O
narrador”, já não é mais preciso narrar a guerra. A própria guerra “se
narra” na televisão, no cinema, na internet. Essa é a nossa situação e é
para ela que Friedrich Kittler quer direcionar nossos olhos e ouvidos.
A obra de Kittler se relaciona fortemente com o que, nos países
de língua alemã em meados dos anos 1980, vai se chamar de “teoria
da mídia” (Medientheorie), contra a qual ele tinha não poucas reser-
vas, aliás. Influenciados pelo pós-estruturalismo, alguns intelectuais
revisitam o pensamento da Escola de Toronto (Marshal McLuhan,
Harold Innis, Walter J. Ong). McLuhan, em particular, destaca como
os meios (ou mídias) modificaram a vida no planeta: do machado
à máquina de escrever, do trem à televisão, as mídias, enquanto
Adalberto Müller
Erick Felinto
17
perdem poder quando os fluxos reais de dados circulam, ignorando
a escrita e os escritores, como séries numéricas entre computadores
interligados em rede. No entanto, as tecnologias que não apenas
subvertem a escrita, mas também absorvem e levam consigo o assim
chamado ser humano, tornam impossível a sua própria descrição.
Mais e mais fluxos de dados, antes compostos por livros, depois por
discos ou filmes, desaparecem nos buracos negros ou caixas-pretas
que, como inteligências artificiais, nos dão adeus enquanto partem
para Altos Comandos anônimos. Nessa situação, só restam retros-
pectivas, isto é, narrativas. O modo como isso se deu – algo que não
se encontra mais em livro algum – ainda pode ser anotado em livros.
Levadas aos seus limites, até as mídias obsoletas serão sensíveis o
suficiente para registrarem os sinais e indícios de uma situação. Assim
surgem, como nos planos de corte de duas mídias óticas, áreas raste-
rizadas e moirés: mitos, ficções científicas, oráculos…
Este livro é uma narrativa a partir de tais narrativas. Ele reúne,
comenta e interrelaciona passagens e textos em que a novidade das
mídias tecnológicas se inscreveu no antigo papel dos livros. Muitos
desses papéis estão velhos ou até mesmo esquecidos; porém, justa-
mente na era fundadora das mídias tecnológicas, o seu horror operava
de modo tão avassalador que a literatura o registrava de maneira
mais precisa do que no aparente pluralismo midiático atual, onde
tudo pode seguir operando, desde que não perturbe os circuitos do
Vale do Silício e o seu incipiente domínio global. Por outro lado, uma
tecnologia de comunicação, cujo monopólio agora vai chegando ao
fim, registra exatamente essa notícia: uma estética do horror. O que os
escritores maravilhados punham no papel entre 1880 e 1920 a respeito
do gramofone, do cinema e da máquina de escrever – as primeiras
mídias técnicas – nos oferece um retrato fantasmagórico tanto do
nosso presente como do futuro.3 Com esses primeiros aparelhos
aparentemente inofensivos, capazes de registrar e, portanto, de separar
sons, visões e textos, iniciou-se uma tecnologização da informação,
que, num retrospecto das narrativas, possibilitou o fluxo numérico
autorrecursivo de hoje.
Prefácio | 19
a guerra era chamada de pai de todas as coisas: ela, numa versão livre
de Heráclito, teria gerado o maior número de invenções tecnológi-
cas.6 E, no mais tardar desde 1973, quando foi publicado Gravity’s
Rainbow (Arco-íris da gravidade)7 de Thomas Pynchon, ficou claro
que as verdadeiras guerras não se travam por povos ou pátrias, mas
que são guerras entre mídias, tecnologias e comunicação e fluxos de
dados diferentes. Áreas rasterizadas e moirés de uma situação que
nos esqueceu…
De qualquer modo, sem as pesquisas e contribuições de Roland
Baumann, este livro não teria sido escrito. Ele também não teria sido
publicado sem Heidi Beck, Nobert Bolz, Rüdiger Campe, Charles
Grivel, Anton (Tony) Kaes, Wolf Kittler, Thorsten Lorenz, Jann
Matlock, Michael Müller, Clemens Pornschlegel, Friedhelm Rong,
Wolfgang Scherer, Manfred Schneider, Bernhard Stiegert, Georg
Christoph (Stoffel) Tholen, Isolde Tröndle-Azri, Antje Weiner, David
E. Wellbery, Raimar Zons e Agia Galini.
F.K.
Setembro de 1985
21
Mas já agora, antes do fim, algo chega ao fim. Na digitalização
geral de comunicações e canais, desaparecem as diferenças entre
mídias individuais. É somente como efeito superficial, conhecido por
consumidores pelo belo nome de interface, que existem som e imagem,
voz e texto. Os sentidos e o sentido se tornam prestidigitação. O seu
glamour, tal como as mídias o criaram, sobrevive por um tempo como
subproduto de programas estratégicos. Já nos próprios computado-
res, tudo é número: quantidade sem imagens, sons e palavras. E se o
cabeamento até agora transporta todos os fluxos distintos de dados
numa série numérica digitalmente padronizada, então toda mídia
pode ser transferida para outra. Com os números, nada é impossí-
vel. Modulação, transformação, sincronização; adiamento, registro,
chaveamento; embaralhamento, escaneamento, mapeamento: um
composto total de mídias em base digital vai desbancar o próprio
conceito de mídia. Em vez de conectar tecnologias a pessoas, o saber
absoluto corre em loop infinito.
◁▷
Porém ainda há mídias, há entretenimento
Sabe-se o estado atual das coisas – sobretudo, infelizmente,
devido às aeronaves de grande porte. No Jumbo, as mídias, massivas
e raras, ocorrem em sistemas interligados, que ainda permanecem
diferenciados segundo padrão e frequência, distribuição e interface.
A tripulação depende de telas de radar, LEDs, radiofaróis e faixas de
frequência fechada, que também ganharam fones de ouvido profis-
sionais. A sua troca por computadores é apenas uma questão de
tempo. Por outro lado, os passageiros são entretidos por uma mistura
de mídias antigas enlatadas. Para além dos livros, esse meio milenar
com ausência de luz, todas as técnicas de entretenimento estão juntas.
Os ouvidos dependem de apáticos fones de ouvido descartáveis, que
por sua vez dependem de fitas cassete e, portanto, da indústria de
discos. Os olhos dependem de filmes hollywoodianos que, por sua
vez, dependem do orçamento de publicidade da indústria da aviação
– o que explica tantos filmes começarem com embarques e pistas
de pouso. Isso sem falar do meio técnico da indústria de alimentos,
Introdução | 23
Uma combinação de rosto e voz que mantém a calma frente a um
adversário de debate televisivo chamado Richard M. Nixon, é conside-
rada telegênica e pode ganhar as eleições presidenciais, como no caso
Kennedy. Por outro lado, vozes – que em close óptico se tornariam
imediatamente traidoras – são chamadas radiofônicas, e dominam o
VE 301, o receiver popular da Segunda Guerra Mundial. Pois, como
reconhecia o aluno de Heidegger, dentre os primeiros pensadores
do rádio da Alemanha, “um tema radiofônico primário é a morte”.3
◁▷
Essas percepções sensoriais tiveram, primeiro, que ser produ-
zidas. O domínio e a interconexão das mídias técnicas pressupõem
uma arbitrariedade (Zufall) no sentido lacaniano da palavra: que algo
cessou de não se escrever. Muito antes da eletrificação das mídias,
antes ainda do seu fim eletrônico, aparelhos modestos eram mecânica
pura. Não conseguiam ampliar, não conseguiam transmitir e mesmo
assim tornaram possível pela primeira vez registrar dados sensoriais:
o filme mudo registrou os rostos; e o fonógrafo de Edison (que,
diferente do gramofone berlinense que viria depois, era um aparelho
capaz também de registro, e não somente de reprodução), os ruídos.
Em 6 de dezembro de 1877, Thomas Alva Edison – senhor do
primeiro laboratório de pesquisa da história da tecnologia – apresen-
tou o protótipo do fonógrafo. Em 20 de fevereiro de 1892, veio do
mesmo Menlo Park, perto de Nova Iorque, o chamado cinetoscópio,
ao qual os irmãos Lumière, na França, e os irmãos Skladanowski, na
Alemanha, tiveram que adicionar uma possibilidade de projeção para
fazerem cinema a partir do desenvolvimento de Edison.
Desde essa viragem epocal, existem armazenadores capazes de
gravar e reproduzir dados acústicos e ópticos no seu próprio fluxo
temporal. O ouvido e o olho se tornaram autônomos. E isso modificou
o estado das coisas reais mais do que a litografia e a fotografia, que no
primeiro terço do século XIX só levaram, segundo Benjamin, a obra
de arte à era da sua reprodutibilidade técnica. As mídias “definem o
que realmente é”;4 sempre estão além da estética.
Introdução | 25
A Europa não possuía outros registradores de tempo além de
textos e partituras. Ambos repousavam sobre uma escrita cujo tempo,
nos termos de Lacan, é simbólico. Por meio de projeções e retrocessos,
esse tempo memoriza a si mesmo – como uma corrente formada por
outras correntes. Por outro lado, o que se passa por tempo no nível
físico ou, novamente alinhado a Lacan, real, às cegas e imprevisível,
era absolutamente impossível de codificar. Todos os fluxos de dados
tinham, se fossem realmente fluxos de dados, que passar pelo funil
do significante. Monopólio alfabético, gramatologia.
A imagem mais antiga de uma imprensa (1499) – como uma dança dos mortos
Introdução | 27
literatura. E também as lendas, esse corte falado do que aconteceu,
sobrevivem sob condições pré-tecnológicas, mas literárias, somente
na forma escrita. Desde que se tornou possível gravar em fita os épicos
daqueles bardos que, como últimos homéridas, ainda vagueavam pela
Sérvia e pela Croácia, as mnemotécnicas ou culturas orais se torna-
ram reconstruíveis de uma maneira totalmente diferente.10 Mesmo a
Aurora dedirrósea de Homero se converte de deusa em um pedaço
de dióxido de cromo que circulava armazenado na memória dos
rapsodos e se combinava com outros elementos para compor épicas
inteiras. Oralidade primária ou oral history são sombras tecnológicas
dos aparelhos que passam a documentá-las pela primeira vez, ao fim
do monopólio da escrita.
Introdução | 29
sentidos, o reino dos mortos – para o qual aqueles nos seduzem –
coincide com o livro. Quando o estoico Zenão perguntou ao oráculo
de Delfos qual seria o melhor modo de viver, recebeu a resposta:
“‘Casando-se com os mortos.’ Ele entendeu que isso seria a leitura
dos antigos.”15
Como as orientações de um deus que ensinou o uso da pena
chegaram, depois de Moisés e Maomé, a pessoas cada vez mais simples
– essa história morosa não pode ser escrita por ninguém, porque ela
seria a própria história. Da mesma forma que em breve, na guerra
eletrônica, as capacidades de registro dos computadores coincidirão
com a guerra, gigabyte por gigabyte, e excederão toda a capacidade de
processamento dos historiógrafos.
Basta dizer que um dia – na Alemanha, talvez tenha sido o caso
já na época de Goethe – a mídia homogênea da escrita também tenha
se tornado homogênea na esfera socioestatal. A escolarização compul-
sória soterrou as pessoas com papel. Elas aprendiam uma escrita que,
como “abuso de linguagem”, segundo Goethe, já não tinha mais que
lutar com câimbras musculares e letras isoladas, mas ainda corria em
êxtase e escuridão. Elas aprendiam uma “leitura silenciosa”, que podia
consumir caracteres sem esforço como o “triste substituto da fala”,16
contornando as ferramentas orais. O que essas pessoas enviavam e
recebiam também era escrita. E porque só existe o que pode ser posi-
cionado, os próprios corpos caíram sob o regime do simbólico. Hoje
é impensável, mas já foi real um dia: nenhum filme armazenava os
movimentos que elas faziam ou viam; nenhum fonógrafo, os ruídos
que produziam ou ouviam. Pois o que existia colapsava antes do tempo.
Silhuetas ou pinturas em pastel determinavam o jogo gestual, e o papel
de anotações falhava com os ruídos. Porém, quando uma mão segurava
a pena, acontecia o milagre. Aí o corpo, que ainda não tinha parado de
não se escrever, deixava rastros estranhamente inevitáveis.
Introdução | 31
Por volta de 1800, o livro se tornou filme e disco ao mesmo
tempo – não na realidade tecnomidiática, mas no imaginário das
almas leitoras. A escolarização compulsória e as novas técnicas de
alfabetização ajudaram. Como substitutos dos fluxos de dados não
armazenáveis, os livros conquistaram poder e glória.21
Em 1774, um editor chamado Goethe trouxe para impressão
cartas manuscritas, ou Os sofrimentos do jovem Werther. Mesmo “à
ignota multidão” (como consta na “Dedicatória” do Fausto) devia
“soar um canto” que evocasse “amores, amizades, do olvido como
um conto meio extinto”.22 A nova receita de sucesso da poesia: trans-
formar imperceptivelmente as vozes ou caligrafias de uma alma em
gutenberguiana. A última carta de Werther antes do suicídio, ainda
selada mas jamais postada, dá à sua amada a própria promessa da
poesia: enquanto vivesse, ela teria que pertencer a Albert, um marido
indesejado, porém se reencontraria com seu amado depois disso, “em
presença do Eterno, num abraço infinito”.23 E de fato: a uma destina-
tária de cartas manuscritas – que então um mero editor levou do autor
à prensa – só lhe é concedida a imortalidade do próprio romance. Ele
e somente ele constituía o “mundo belo”24 no qual, em 1809, os aman-
tes das Afinidades eletivas de Goethe, “um dia, despertarão juntos”25
segundo as esperanças do romancista. É que Eduard e Ottilie tiveram
já durante as suas vidas uma e a mesma caligrafia, o que já é bastante
miraculoso. A morte deles teria que arrebatá-los a um Paraíso que,
sob o monopólio de registro da escrita, levaria o nome de poesia.
E talvez esse paraíso fosse mais real do que nossos sentidos
controlados pelas mídias jamais poderiam sonhar. Os suicidas entre
os leitores do Werther podem ter percebido o seu herói – bastava
que lessem como se deve ler – num mundo real e verdadeiro feito
à imagem das palavras. E as amantes dentre as leitoras de Goethe,
tal como Bettina Brentano, podem ter morrido com a heroína das
Afinidades eletivas, para então “renascer numa juventude mais bela”
graças ao “gênio” de Goethe.26 Talvez os alfabetos perfeitos de 1800
tenham sido uma resposta viva à questão dos cineastas, com a qual
Chris Marker conclui seu ensaio cinematográfico Sans Soleil, de 1983:
◁▷
A própria eletricidade deu um fim nisso. Quando lembranças e
sonhos, mortos e fantasmas se tornam tecnicamente reprodutíveis,
então a força da alucinação se torna desnecessária, tanto nos escrito-
res quanto nos leitores. Nosso reino dos mortos deixou os livros nos
quais habitou por tanto tempo. Não é mais “só por meio da escrita que
os mortos permanecem no pensamento dos vivos”, como certa vez
escreveu Diodoro Sículo. O nosso reino dos mortos transformou-se
num espetáculo midiático.
O escritor Balzac foi acometido de um novo medo frente à foto-
grafia, como ele mesmo confessou a Nadar, o pioneiro da fotografia.
Se o corpo humano, segundo Balzac, em primeiro lugar é composto
de diversas camadas superpostas infinitamente finas de “espectros”
e, em segundo lugar, se a mente humana não consegue criar nada a
partir do nada, então o daguerreótipo tem que ser um truque maligno:
Introdução | 33
ele fixa, ou seja, rouba, essas camadas uma a uma, até que finalmente
não sobra nada dos “espectros” e, com isso, do corpo ilustrado.31
Álbuns de fotografia criam um reino dos mortos infinitamente mais
preciso do que seria dado ao empreendimento literário concorrente
balzaquiano da Comédie humaine. As mídias, em contraposição às
artes, não se limitam justamente a terem que trabalhar com a grade
do simbólico. Elas reconstroem corpos, isto é, não apenas no sistema
de palavras ou cores ou intervalos de tons. As mídias, e só elas, preen-
chem muito mais a “demanda exigente” que segundo Rudolf Arnheim
“colocamos na ilustração”, desde a invenção da fotografia: “Ela não
deve somente ser semelhante ao objeto, como dar a garantia dessa
semelhança por ela ser, digamos assim, um produto do objeto, ou seja,
mecanicamente criada por ele – assim como os objetos iluminados
da realidade gravam sua imagem mecanicamente sobre a película
fotográfica”,32 ou as curvas de frequência dos ruídos inscrevem suas
formas de onda no disco fonográfico.
Introdução | 35
As vozes paranormais em fitas ou no rádio, como aquelas pesqui-
sadas por espíritas desde 1959 e eternizadas no rock de Big Science,
disco de Laurie Anderson de 1982,37 anunciaram aos seus pesquisado-
res tão somente em que frequências de rádio elas são difundidas. Isso
já ocorrera com Schreber, o presidente do senado, em 1898 – episódio
em que uma “linguagem básica ou neural” paranormal simplesmente
revelou, em bela autonomia, seu código e seus canais de difusão38 –, o
canal e a mensagem coincidem. “Basta escolher um programa falado
em ondas médias, curtas ou longas, ou o chamado ‘ruído branco’,
um ruído que se encontra entre duas emissoras, ou então a ‘onda de
Jürgenson’, que se encontra, diferindo localmente, de 1.450 a 1.600
kHz entre Viena e Moscou”,39 colocar uma fita no rádio para gravar e
ouvir, ao tocá-la novamente, várias vozes de espíritos que de fato não
vêm de nenhuma emissora conhecida, mas que surgem feito repórte-
res estatais em anúncios da própria rádio. Pois se existe de fato uma
onda de Jürgenson e onde ela se encontra, é porque a experimentou
o próprio “Friedrich Jürgenson, o Nestor da pesquisa vocal”.40
O reino dos mortos é tão grande quanto as possibilidades de
registro e difusão de uma cultura. As mídias, segundo lemos em
Klaus Theweleit, são também sempre aparelhos para voar até o além.
Se lápides serviram de símbolos nos primórdios da cultura,41 a nossa
tecnologia de mídias traz de volta todos os deuses. De um golpe calam-
-se as antigas queixas sobre a transitoriedade, que sempre estiveram
escritas e ditaram a medida da distância entre escrita e percepções
sensoriais. Na paisagem das mídias, imortais voltam a existir.
War on the Mind (Guerra à Mente) é o título de um relatório
sobre as estratégias psicológicas do Pentágono. Ele relata que os oficiais
planejadores da guerra eletrônica (que por sua vez só dá seguimento à
guerra marítima no Atlântico42) já prepararam listas com os dias que,
segundo as crenças de cada um dos povos, trazem sorte ou desgraça.
Assim, a força aérea americana pode “‘sincronizar’ o momento de
um bombardeio com as previsões de quaisquer deidades”. As vozes
desses deuses também foram gravadas em fita para, de cima do heli-
cóptero, “assustar guerrilhas de nativos primitivos e os manter em
◁▷
Obviamente o Pentágono não mantém uma lista manuscrita
dos dias bons e ruins. A tecnologia burocrática acompanha o ritmo
da tecnologia das mídias. O cinema e o fonógrafo, as duas grandes
invenções de Edison com as quais o presente começou, foram comple-
mentados pela máquina de escrever. Os autores e editores de livros
estão tão acostumados ao tiposcrito que as histórias culturais, antes
adoradas, estão esquecidas. Como os grandes pensamentos, pequenos
aparelhos também chegam sorrateiros. Desde 1865, segundo a conta-
gem europeia, ou desde 1868, segundo a americana, a escrita não é
mais aquele traço a tinta ou a lápis de um corpo cujos sinais ópticos e
acústicos se perdiam sem salvação, fugindo – ao menos para os leito-
res – para a percepção substituta da escrita manual. Para que séries de
ruídos e rostos pudessem encontrar os seus próprios armazenadores,
a única tecnologia de registro da velha Europa teve que ser finalmente
mecanizada. Hans Magnus Johan Mailing Hansen, em Copenhague, e
Christopher Latham Sholes, em Milwaukee, desenvolveram máquinas
de escrever prontas para produção em série.
“Uma coisa promissora”, comentou também Edison quando
Sholes o procurou em Newark para lhe apresentar seu modelo recém-
-patenteado e para convidar o homem que tinha inventado a própria
invenção a trabalhar com ele.44 Mas Edison recusou a oferta – como se
o fonógrafo e o cinetoscópio esperassem por seu futuro inventor em
1868 e, assim, limitassem o seu tempo. Em vez disso, entrou na jogada
uma fábrica de armamentos que sofria com uma baixa no consumo
desde o fim da guerra civil americana, em 1865. Foi a Remington, e
não Edison, que assumiu a metralhadora discursiva de Sholes.
Não se chegou a criar uma única personagem milagrosa a
partir da qual teriam surgido as três mídias da modernidade. Pelo
Introdução | 37
contrário, o começo da nossa era foi marcado por separação ou
diferenciação.45 De um lado estão duas mídias técnicas que fixam
pela primeira vez os fluxos de dados irregistráveis, e do outro, “uma
‘coisa intermediária’ entre a ferramenta e a máquina”, como preci-
samente escreveu Heidegger sobre a máquina de escrever.46 De um
lado, está a indústria de entretenimento com suas novas percepções
e, do outro, uma escrita que, já na sua produção e não mais só na
reprodução – como os tipos móveis de Gutenberg –, separa papel
e corpo. As letras, em conjunto com sua ordenação, são padroni-
zadas como tipos e teclado desde o princípio, enquanto as mídias
se encontram no ruído do real – como o desfocado das imagens no
cinema, como nível de ruído de fundo na gravação de sons.
Introdução | 39
a reação jubilosa de crianças pequenas com relação aos seus duplos
especulares com os meios comprobatórios do documentário.52
Finalmente, a partir do real não se pode trazer à luz mais do que
aquilo que Lacan pressupunha com sua condição – ou seja, nada.53
Ele constitui o resto ou descarte que nem o espelho do imaginário,
nem a grade do simbólico podem capturar – arbitrário fisiológico,
desordem estocástica dos corpos.
Claramente, as distinções metodológicas de uma psicanálise
moderna coincidem com as distinções técnicas de nossa paisagem
midiática. Cada teoria tem o seu a priori histórico. E o estruturalismo
enquanto teoria apenas soletra aquilo que, desde a virada do século,
corre nos dados por meio dos canais de comunicação.
Só a máquina de escrever fornece uma escrita como a seleção
do estoque contado e ordenado do seu teclado. A partir dela vale
literalmente o que Lacan ilustra com a antiquada caixa de tipos.54
Em oposição ao fluxo da caligrafia, aparecem lado a lado elementos
discretos e separados por espaços. Assim, o simbólico tem o status
das letras de forma. Só o filme armazena os duplos móveis nos quais
as pessoas, diferentemente de outros primatas, conseguem (des)reco-
nhecer55 seus corpos. Assim, o imaginário tem o status de cinema. E
só o fonógrafo fixa os ruídos que as laringes emitem antes de qual-
quer ordenação de símbolos e todos os significados de palavras. Para
sentir prazer, os pacientes de Freud não precisam mais querer o Bem
dos filósofos. Estes podem simplesmente dizer blá-blá-blá.56 Assim,
o real – particularmente na talking cure chamada psicanálise – tem
o status de fonografia.
Com a diferenciação tecnológica entre óptica, acústica e escrita –
da maneira como ela explodiu o monopólio de registro de Gutenberg
por volta de 1880 –, o assim chamado ser humano se tornou factível.
Sua essência transborda para equipamentos. As máquinas conquistam
funções do sistema nervoso central, e não somente, como todas as
máquinas antes disso, da musculatura. E é só com isso – não com a
máquina a vapor ou a estrada de ferro – que se chega à separação limpa
entre matéria e informação, entre real e simbólico. Para ser possível
◁▷
Em 1950, Alan Turing, o prático entre os matemáticos ingleses,
vai dar a resposta à questão de Nietzsche. Ela diz, com elegância
formal, que essa pergunta na verdade não existe. O artigo de Turing
“Can a Machine Think? – Computing Machinery and Intelligence”
(“Pode uma máquina pensar? Computadores e inteligência”),60
publicado justamente na revista de filosofia Mind, propõe para a
resolução dessa questão que se construa um experimento chamado
de teste de Turing.
Introdução | 41
Um computador A e um ser humano B se encontram em
intercâmbio de dados por meio de algum tipo de interface, como
o teletipo. O intercâmbio de textos é monitorado por um censor
C, que obtém somente informações escritas. Assim, ambos A e B
agem como se fossem humanos; C deve decidir qual dos dois não
está simulando, e quem é só a máquina de pensar, de escrever e de
calcular de Nietzsche. Porém, como a máquina consegue otimizar
seu programa por aprendizado a cada vez que ela se trai – seja por
erros ou, muito mais provável, justamente pela falta deles –, a disputa
fica para sempre em aberto.61 No teste de Turing, o assim chamado
ser humano coincide com a sua simulação.
E claramente isso só acontece porque ao censor não chegam
manuscritos, mas sim textos plotados ou datilografados. Decerto os
programas de computador também poderiam simular mãos humanas
com suas rotinas e falhas de tendões, daí sua chamada individuali-
dade – contudo Turing, o inventor da máquina discreta universal,
datilografava. Não era especialmente hábil ou melhor do que seu
gato Timothy, que podia pular sobre as teclas no escritório caótico
de Turing no serviço secreto,62 só um pouco menos desastroso do
que se escrevesse à mão. Nem mesmo os professores da honrosa
Public School Sherborne conseguiam “perdoar” seu aluno pelo modo
caótico em que vivia e pelo quanto borrava tinta ao escrever. Traba-
lhos de classe brilhantes em matemática recebiam terríveis censuras,
só porque a sua caligrafia era “a pior que já se viu”.63 Os sistemas
escolares se mantêm fiéis à antiga tarefa de produzir indivíduos – no
sentido literal da palavra – forçando-os a se habituarem a uma cali-
grafia bonita, coerente e individual. Porém Turing – um mestre em
minar toda formação – desviou-se, pois fazia planos de inventar uma
máquina de escrever “tremendamente primitiva”.64
Esses planos não deram em nada. Porém, quando lhe veio a
ideia da máquina discreta universal nos campos de Grantchester –
os campos de toda a lírica inglesa, dos românticos até Pink Floyd –,
o sonho deste aluno estava realizado e transformado. A patente da
máquina de escrever de Sholes, de 1868, emaciada até o princípio puro,
Introdução | 43
passo que todos os aparelhos imagináveis de processamento de dados
são somente estados N da máquina discreta universal. Alan Turing
provou isso matematicamente em 1936, dois anos antes de Konrad
Zuse ter montado em Berlim o primeiro computador programável
juntando simples relés. E com isso o mundo do simbólico se tornou
de fato um mundo da máquina.66
A era das mídias – diferente da história, que aquela termina –
anda bruscamente como a fita de papel de Turing. Da Remington,
passando pela máquina de Turing, para chegar à microeletrônica;
da mecanização, passando pela automatização, até chegar à imple-
mentação de uma escrita que é algarismo e não sentido – bastou um
século para transladar o antigo monopólio de registro da escrita para
uma onipotência dos circuitos. Como os correspondentes de Turing,
todos migram de máquinas analógicas para as discretas. O CD digi-
taliza o gramofone, a câmera de vídeo, o cinema. Todos os fluxos de
dados desembocam em estados N da máquina universal de Turing;
números e figuras se tornam (à revelia do Romantismo) a chave para
todas as criaturas.
O cabeamento da República Federal pode avançar.