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O Intérprete Schenkeriano e o Conceito de Organicidade

Guilherme Sauerbronn de Barros (UDESC) e Cristina Capparelli Gerling (UFRGS)

Resumo: a proposta desta comunicação é definir conceitualmente o intérprete schenkeriano e verificar quais
as implicações do conceito de coerência orgânica para a interpretação de obras musicais. Ao final do artigo,
realizamos uma análise schenkeriana do prelúdio BWV 927 de J. S. Bach, procurando relacionar aspectos
formais revelados pela análise com as escolhas interpretativas que se colocam para o intérprete.

Palavras-chave: análise schenkeriana; interpretação; organicidade; J. S. Bach

Abstract: our purpose in this paper is the conceptual definition of the Schenkerian Performer and the
importance of the concept of Organic Coherence for the art of performance. We realized a Schenkerian
Analysis of the Prelude BWV 927 of J. S. Bach, trying to relate formal features and interpretative choices.

Keywords: Schenkerian Analysis; Performance; Organicism; J. S. Bach

1 – Introdução

“Freedom of opinion, freedom to perform! The more ability man possesses, the more freedom does he also have.”
(Schenker, The Masterwork in Music, v.I, 1994, p.117)

Nossa pesquisa tem como objetivo uma avaliação crítica da obra de Heinrich
Schenker (1868-1935) e abrange diversos aspectos de seu pensamento, desde os
fundamentos filosóficos de sua teoria aos processos composicionais que servem de suporte
para a análise. Nesta comunicação limitaremo-nos ao estudo do conceito de organicidade e
suas implicações para a atividade do intérprete. Nesse caso, não estamos pensando na
análise como um fim em si, mas como uma ferramenta para o instrumentista, que pode
encontrar ali um elemento estruturador da interpretação. Acreditamos que o tipo de análise
que Schenker propõe é particularmente interessante para o intérprete pela aproximação que
promove dos processos composicionais através do contraponto e da harmonia. Há que
considerar ainda a ênfase de Schenker no repertório dos séculos XVIII e XIX, base da
formação do instrumentista erudito.

Segundo Schenker, o verdadeiro analista é aquele que percebe a coerência orgânica


da estrutura musical; o intérprete schenkeriano é, portanto, aquele que apresenta ou expõe a
música segundo este mesmo princípio. A fim de compreendermos o significado do conceito
de coerência orgânica, recorreremos a três importantes textos deste autor: “Composição
Livre” (Der Freie Satz, 1935), última obra de Schenker, publicado postumamente na
Áustria e traduzido para a língua inglesa em 1979, por seu aluno Ernst Oster, e os artigos
“A Organicidade na Forma Sonata” (Vom Organischen der Sonatenform) e “A Natureza
Orgânica da Fuga como Demonstrado na Fuga em Dó menor do Cravo Bem Temperado de
J.S. Bach, livro I” (Das Organische der Fuge aufgezeigt an der I. C-Moll-Fugeaus dem
Wohltemperierten Klavier von Joh. Seb. Bach), que fazem parte do segundo volume do
anuário “As Obras-Primas na Música” (Das Meisterwerk in der Musik, 1926).

2 – Coerência Orgânica

A proposta de Schenker contrasta com o enfoque analítico dos autores referenciais


de seu tempo, em particular A.B. Marx (1795-1866) e Hugo Riemann (1849-1919).
Segundo Charles Rosen, "antes de Schenker, a análise de uma obra musical era em grande
medida uma articulação das partes que a compunham (...). Schenker procurou, em vez
disso, mostrar não como a peça pode ser dividida, mas como ela se unificava." (ROSEN,
2004, p.202) A esta unidade apontada por Rosen, Schenker dará o nome de "organicidade"
ou "coerência orgânica" da obra. Em Der Freie Satz ele anuncia: "... apresento um novo
conceito, inerente às obras dos grandes mestres; de fato, constitui a verdadeira fonte e
segredo de sua existência: o conceito de coerência orgânica." (SCHENKER, 1979, pxxi,
grifo nosso)

Esta noção está vinculada ao reconhecimento de princípios elementares regendo


todas as etapas de formação da obra:

"Os princípios da condução das vozes, organicamente fundados, permanecem os mesmos no nível
fundamental, nível intermediário e nível externo, mesmo quando ocorrem transformações. Neles está
baseado o mote do meu trabalho, semper idem sed non eodem modo (sempre o mesmo, mas nunca do
mesmo modo). Nada de novo deve ser esperado (...), nada realmente novo se manifesta: tudo o que
testemunhamos é uma sucessão de transformações." (ibid, p.6)

Reunidos sob o termo Contraponto, os princípios da condução das vozes são,


juntamente com o baixo cifrado, a base da formação do intérprete schenkeriano. Segundo
Schenker, o contraponto tem origem no processo natural de prolongamento da tríade
fundamental da série harmônica. O próprio termo "composição livre" (Freie Satz), que dá
nome à principal obra de Schenker, indica como processos harmônicos de longo prazo são
prolongados por processos lineares localizados, ou como o contraponto elementar
manifesta-se numa forma complexa. Conforme sugere Felix Salzer, aluno de Schenker e
autor de obras referenciais sobre o assunto, os termos "contraponto estrito" e "contraponto
livre" deveriam ser substituídos por "contraponto elementar" e "contraponto elaborado", de
modo a tornar evidente a unidade e a continuidade dos processos composicionais, desde os
rudimentos até a maestria consumada nas obras dos grandes mestres. (SALZER &
SCHACHTER, 1969, p.xix)

O estudo das obras-primas revela o fundamento comum a todas elas, ao mesmo


tempo em que traz à tona os processos peculiares de cada compositor: "(...) o fato de todas
as obras-primas manifestarem leis de coerência idênticas de modo algum impede uma
diversidade de natureza entre os mestres. Ou seja, os mestres alcançaram variedade e
novidade sem buscar fundamentalmente novos princípios de coerência." (SCHENKER,
1979, p.160)

Esta variedade que os compositores criaram a partir de princípios perenes só poderá


ser apreciada em todo seu esplendor a se iluminada por uma interpretação que, do mesmo
modo, tenha como fundamento princípios mais profundos do que noções estilísticas ou
clichês interpretativos. Ao tomar como base uma visão unificada das leis da arte e uma
concepção orgânica da forma musical, o intérprete schenkeriano garante o equilíbrio entre
sua própria liberdade interpretativa e a fidelidade à obra.

"Uma interpretação, fundada nas noções de nível fundamental, nível intermediário e nível externo pode
empregar uma enorme variedade de cores. Até mesmo as mais ricas e variadas fontes da interpretação
musical podem ser ensinadas - e aprendidas - com enorme exatidão. Por outro lado, o compromisso
com o nível fundamental, o nível intermediário e o nível externo exclui toda e qualquer interpretação
pessoal arbitrária" (SCHENKER, 1979, p.xxiii)

Portanto,

"A interpretação [performance] de uma obra musical pode basear-se apenas na percepção da coerência
orgânica desta obra. (...) O instrumentista que tem consciência da coerência de uma obra encontrará
meios interpretativos que possibilitam tornar essa coerência audível. Aquele que executa desta forma
tem o cuidado de não destruir as progressões lineares; uma vez destruídas, nossa participação [como
ouvintes] seria interrompida. Tampouco ele irá superestimar o valor da barra de compasso, que não
indica nem as progressões nem sua direção. Consequentemente, o conceito de nível fundamental, nível
intermediário e nível externo tem uma importância prática decisiva para a interpretação" (ibid, p.8)

Os artigos a seguir ilustram de maneira exemplar a relação fecunda entre princípios


fundamentais imutáveis – que consistem basicamente nas leis de condução das vozes e nos
processos de diminuição – e a variedade de formas nas quais estes se manifestam. Schenker
reconhece na origem da Sonata e na origem da Fuga uma só lei de coerência, uma mesma
organicidade.

3 – Forma e Organicidade

"um poema ou mesmo uma outra obra de arte resulta da Idéia do todo e não pode ser composta de uma maneira meramente atomística."
(Schlegel, Philosofie der Sprache und des Wortes. KA, XVIII, P.367-368 in Suzuki, 1998, p.205)

No início do artigo sobre A Organicidade na Forma Sonata, Schenker é categórico:

"Ao conceito de forma sonata, conforme os teóricos ensinaram até hoje, falta precisamente o principal
- a noção de organicidade - que determina o surgimento das vozes a partir da unidade da tríade
fundamental, i.e., o desdobramento da Urlinie e o arpejamento do baixo. A percepção desta
característica do acorde fundamental é privilégio dos gênios, que a Natureza graciosamente lhes
concedeu. (...) Tal sentimento não pode ser alimentado artificialmente; em outras palavras, somente a
criatividade baseada na improvisação pode garantir a unidade do processo composicional. Portanto, o
conceito de forma sonata, para fazer jus ao geral, deve incluir o seguinte: o todo deve originar-se da
improvisação, caso contrário trata-se apenas de uma mera colagem de partes independentes e motivos,
segundo um conjunto de regras." (SCHENKER, 1996, p.23)

Nesta passagem deparamos com o conceito de improvisação, ao qual Schenker


recorre para explicar o modo segundo o qual a forma orgânica brota das mãos do gênio1.
Este conceito não deve ser compreendido meramente no sentido corrente, como
"improviso", i.e., como criação e execução simultâneas de uma peça. Não, em Schenker
este termo adquire um significado profundo e diz respeito à composição musical segundo
os princípios universais da estrutura fundamental - em oposição à simples obediência a
regras criadas artificialmente.

Conforme ensinou Kant, o gênio é a faculdade através da qual a natureza fornece as


regras à arte e “consiste, propriamente, num feliz acordo entre a imaginação e o
entendimento, que nenhuma ciência pode explicar, que não se pode adqüirir mediante
nenhum ofício.” (C.J., §49) Kant apenas aponta para o processo, mas não pode explicá-lo
efetivamente. O mesmo ocorre com Schenker: "Eu não me atreveria a explicar como a
inspiração chega até o gênio, a declarar com certeza qual porção do nível intermediário ou
do nível externo se apresenta primeiro à sua imaginação: os derradeiros segredos
permanecerão eternamente inacessíveis para nós." (SCHENKER, 1979, p.9)

Diante da impossibilidade de expor positivamente a mágica da criação artística,


Schenker caracteriza o modus operandi do gênio como improvisação. No artigo sobre a
forma sonata, no qual examina a Sonata em Gm Hob XVI, Schenker descreve Haydn: "A
linha fundamental [Urlinie] e o arpejamento do baixo [Bassbrechung] governavam-no com
um poder instintivo, e, a partir deles, desenvolveu uma engenhosa capacidade para criar
tensão ao longo de uma obra, como se esta fosse uma entidade." (SCHENKER, 1996, p.24)
Após demonstrar que o primeiro e o segundo temas da sonata, apesar de diferenças
superficiais, foram construídos sobre estruturas análogas - arpejamentos do baixo em
processo imitativo - Schenker pergunta: "poderia Haydn ter desenvolvido esses dois
arpejamentos sem um impulso improvisatório a mostrar-lhe o caminho? (...) Onde, na obra
de um não gênio, poderíamos encontrar tal poder de coesão, semelhante arpejamento que
conecta diversos elementos da forma em um só todo?" (ibid, pp.24 e 25)

Se a improvisação é o modo segundo o qual o artista externa sua fantasia, é


igualmente por meio da improvisação que o intérprete deve alcançar o significado profundo
da obra. Ao refazer os passos que conduzem do arpejamento estrutural à configuração
definitiva do tema na sonata de Haydn, o intérprete refaz os passos do compositor que

1
Schenker, assim como os românticos, aprendeu a "lição kantiana que liga gênio e totalidade orgânica."
(SUZUKI, Marcio. O Gênio Romântico – Crítica e História da Filosofia em Friedrich Schlegel, São Paulo:
Iluminuras, 1998, p.6)
improvisa.

Schenker pergunta provocativamente: "Terá, alguma vez, uma interpretação desta


sonata impresso este milagre em nossos corações?" (ibid, p.27) O "milagre" da
organicidade do todo e das partes, deve, portanto, ser revelado na interpretação,
apresentação (expositio) da obra. Para que tal ocorra, é necessário uma participação intensa
do intérprete e um uso genial de sua criatividade:

"(...) para conceber algo [a nível de interpretação] que se equipare ao plano mais elevado da
criatividade musical, é necessário o conceito de um espírito genial que, criado secretamente a partir do
nível fundamental de uma Ursatz, domina todos os arpejos dos muitos acordes individuais e todas as
diminuições das progressões lineares.

E ainda assim, obviamente, esta interpretação da idéia do compositor é apenas eventualmente


satisfatória: uma obra musical aparece, para o leitor ou executante, apenas como nível externo, e este é,
por assim dizer, análogo ao presente e à vida cotidiana. Assim como é geralmente difícil compeender o
significado de um evento no presente se não tivermos consciência do seu background no passado,
assim também é difícil para um executante ou leitor compreender o presente de uma obra musical sem
ter consciência do seu nível fundamental. Assim como as exigências do dia-a-dia empurram-no ora
para um lado ora para o outro, o nível externo de uma obra musical faz o mesmo com ele: a cada
mudança de acorde, a cada diminuição, cromatismo ou nota vizinha, tudo lhe parece novo e cada
novidade o afasta para longe da coerência do nível fundamental." (ibid, p.28)

O intérprete que não consegue perceber o nível fundamental da obra e ainda não
descobriu o seu próprio fundamento (background) é duramente criticado por Schenker:

"Aqueles que buscam temas e melodias na sonata, como se buscassem momentos de prazer na vida,
estão assumindo uma posição baseada num modo de vida vulgar da vida cotidiana. O leigo aspira por
melodias em busca de gratificação imediata. (...)

A melodia, da maneira equivocada que a concebem o leigo e os teóricos, nasceu do estabelecimento


das menores relações na arte; a sonata, em contrapartida, representa competência no maior dos mundos
imagináveis no relacionamento tonal, na era de seu maior desenvolvimento.” (ibid, p.29)

Os "motivos" e as células temáticas, extremamente importantes na visão de outros


teóricos e na execução de tantos intérpretes, são, para Schenker, resultado das
"diminuições", cuja principal função é prolongar a estrutura fundamental.

"As chamadas melodias, temas e motivos dos teóricos anteriores não apontam o caminho para a forma
sonata. Aquilo que deveria ser compreendido como motivos-diminuições da forma sonata foi
apresentado nos exemplos acima, juntamente com muitos outros. Estes consistem, independentemente
do escopo da obra, em arpejamentos, acoplamento de oitavas e unidades em níveis mais altos,
estabelecidas por repetição, como, por exemplo, as notas vizinhas [bordaduras] nas figuras 3 e 5 e nas
figuras 4h e 4g, e assim por diante. Porém, sem uma compreensão dos motivos neste sentido, o escopo
e a abrangência da improvisação, a única capaz de criar coerência orgânica na forma sonata, jamais se
realizaria." (ibid, pp.29 e 30)

O estudo dos processos de elaboração motívica ou “diminuições” é, juntamente com


as leis de condução das vozes, o cerne da formação do intérprete schenkeriano. A relação
desses processos com a estrutura fundamental é comentada nesta passagem:

“Para o intérprete a linha fundamental [Urlinie] é, acima de tudo, um meio de orientação, da mesma
forma que o mapa de uma trilha para o montanhista; assim como o mapa da trilha poupa ao escalador a
necessidade de levar em consideração cada encruzilhada, cada pedra e cada pântano, assim também a
linha fundamental escusa o intérprete de atravessar cada diminuição do nível externo.” (SCHENKER,
1994, p.109)

Schenker observa, no entanto, que o intérprete não deve induzir o ouvinte à percepção
da linha fundamental simplesmente eliminando as diminuições que a encobrem. É
justamente por meio das diminuições que o compositor confere individualidade e caráter a
sua obra, ainda que em níveis mais profundos elas não estejam presentes.

“Palavras não podem expressar a extraordinária qualidade de uma interpretação que [re-]cria as
progressões lineares e diminuições a partir da linha fundamental! Mas onde se pode ouvir tal
interpretação? Podemos esperar encontrá-la hoje, quando o ouvido do intérprete falha até mesmo em
variações sobre um tema, isso sem mencionar as complexas diminuições que, nas obras dos mestres,
ultrapassam os limites da variação, no curso dos movimentos de sonata e rondó?” (ibid)

A valorização das diminuições do nível externo deve estar articulada pela


compreensão da estrutura fundamental que sustenta a obra em níveis mais profundos. É
justamente a coordenação desses níveis que caracteriza a interpretação schenkeriana. Não
apenas as análises realizadas a partir das teorias correntes, mas as interpretações
superficiais e as obras compostas segundo os tratados de composição convencionais são, na
visão de Schenker, estruturas mortas, cadáveres desprovidos da chama vital que somente a
verdadeira arte do gênio possui.

No artigo sobre a Organicidade na Fuga, Schenker inicia com uma longa citação de
Schumann e a escolha deste autor não é casual. As atividades de compositor, editor
musical, editor literário, a formação abrangente, que incluía de Jean Paul e Hoffman a
Schlegel, conferem à produção crítica de Schumann brilho, profundidade e alcance
dificilmente encontrados em outros autores. Seu artigo sobre as fugas de Mendelssohn trata
justamente da distância existente entre as regras propostas pelos métodos escolásticos que
ensinam a compor fugas, o de Marpurg, por exemplo, e aquilo que se pode verificar nas
fugas de Bach. Schumann comenta ainda que obras criadas a partir desses métodos são
caricaturas grotescas de uma arte que se perdeu no passado. Mendelssohn, entretanto, teria
conseguido realizar algo menor, porém digno, em seus Prelúdios e Fugas op.35.

Schumann aponta três atitudes básicas diante das fugas: a primeira é a do ouvinte
que repudia essa forma, fugindo sempre que possível da execução deste tipo de obra; a
outra é a do estudante de composição que se baseia nos tratados e, por conta disso,
considera as fugas de Bach, Beethoven e Haendel imperfeitas porque demasiadamente
livres; por fim, Schumann se confessa partidário de uma terceira atitude, a daqueles que se
“deliciam por horas nas fugas de Bach, Beethoven, Haendel” (SCHENKER, 1996, p.31) e
que não acreditam que, no presente, seja possível voltar a compor fugas. Todavia, ele
reconhece o valor relativo das fugas de Mendelssohn, que ele compara a singelas “flores”,
se consideradas ao lado das “florestas de carvalhos gigantes” que Bach cultivou. Schenker,
aproveitando esta imagem, dirá que Marpurg, com sua visão estreita, baseada em regras
artificiais, “não tem noção da ‘flor’ que Schumann viu.” (ibid, p.32) Ele diz ainda que a
fuga, “assim como todas as outras formas de vida, segue seu próprio curso.” A variedade de
imagens orgânicas que Schenker utiliza é marcante: ele fala em “organismos fugais”,
explica que a “vida da tríade” (ibid, p.34) decorre do desejo ou da necessidade desta
manifestar sua vida na dimensão horizontal e aponta a existência de “harmonias naturais”
que emergem do nível fundamental no momento da criação e das quais, por sua vez, brotam
as melodias que ornamentam o nível externo. (ibid, p.35) Nesta visão da música como
entidade orgânica, a percepção da unidade viva que é uma fuga contrasta com outras
interpretações analíticas:

"Como pode tal interpretação [a de Bruyck] e outras do mesmo tipo diferir tão absolutamente da
minha? Será que a diferença está apenas na terminologia, ou estará para além desta ou daquela 'teoria'
e depende de um modo completamente diferente de escuta? Um autor escuta três seções; eu, apenas
uma. Outro ainda escuta notas vibrando, intensificação e efeito poético; eu ouço uma linguagem
racional de sons, mais racional do que a própria linguagem falada. E, se aplicada à fala, poderá alguém
conceber tal diferença nos modos de escuta? Deixo que o leitor tire suas próprias conclusões." (ibid,
p.53)

A título de conclusão, reproduzimos um pequeno trecho da entrevista concedida por


Murray Perahia a John Rink, no qual o pianista comenta a necessidade de um fundamento
racional, construído a partir de bases consistentes, para guiar a interpretação:

“existem diversas abordagens que podem ser úteis para se tentar descobrir a essência da música,
inclusive aquelas baseadas na emoção e no caráter. Entretanto, se o entendimento [racional] não está
presente ali, o caráter [da música] permanecerá num nível superficial e Schenker é um dos poucos
autores que trata dos fundamentos contrapontísticos e harmônicos da música, ou seja, naquilo em que
ela se baseia

(…)

Até mesmo o compositor está sujeito a outras leis – às leis da música, leis da consonância e
dissonância, suas relações, suas preparações e suas resoluções; sujeitar-se a estas leis não é algo
subjetivo.” (RINK, 2001)

Perahia afirma não utilizar modelos formais tais como “forma sonata” na
abordagem das obras que executa. Segundo ele, em se tratando de repertório tonal, a chave
está na estrutura funcional da própria tonalidade.

4 – Análise do Prelúdio BWV 927 de Bach

A escolha do prelúdio se deve, em primeiro lugar, a suas modestas dimensões; em


segundo lugar, por ilustrar de forma exemplar a possibilidade de correspondência entre
figurações melódicas de curto e longo prazo.

Numa primeira redução da obra, podemos notar a subida inicial que conduz do
quinto até o primeiro grau Fá (c1-2) e, após insistir na repetição desta nota (c.3), prossegue
terceiro grau melódico, a nota Lá (c.4). Este é valorizado por uma dupla appoggiatura,
superior e inferior, que se configura como um momento particularmente expressivo no
contexto desta primeira frase. Do ponto de vista da harmonia, constata-se a permanência da
Tônica, o que se confirma pelo pedal do baixo sobre o grau I durante os três primeiros
compassos e pela resolução cadencial sobre a tônica no quarto compasso.

figura 1

Apesar da continuidade no movimento da melodia, há uma inversão da figuração


rítmica entre mão esquerda e mão direita nos compassos 1-2 e 2-4. O intérprete vê-se entre
duas escolhas, entre ressaltar o caráter uniforme da subida melodia ou valorizar o aspecto
imitativo do trecho.
Na seção seguinte, o aspecto imitativo é abandonado e a mão esquerda delineia uma
longa caminhada ascendente rumo a mais uma confirmação cadencial do grau I (c.5-8). A
melodia do soprano, porém, desce todos os degraus que galgara na subida inicial e continua
a descer até chegar no terceiro grau melódico (Lá) na oitava inferior. Desse modo,
configura-se um procedimento que Schenker identifica como transferência de registro.
Neste ponto cabe ao intérprete-analista perguntar-se qual é afinal o registro obrigatório2 da
peça. Ainda é cedo para uma resposta definitiva, mas podemos adiantar desde já que o final
desta peça é de uma engenhosidade ímpar. Outro detalhe que não pode passar em branco é
a replicação da appoggiatura ou nota vizinha superior do motivo inicial na voz do
contralto, na descida dos compassos 5 a 8, que perfaz a distância de uma oitava (F-E; E-D;
D-C; C-Bb; Bb-A; A-G; G-F).

Diferentemente do trecho inicial, no qual observamos uma troca de papéis entre as


mãos, nesta seção a uniformidade da figuração em colcheias na mão esquerda e
semicolcheias na direita impulsiona a música adiante, ainda que seja para concluir
novamente no grau I. O intérprete pode, neste ponto, enfatizar o ponto médio da peça, que
coincide com a chegada da voz superior no terceiro grau melódico uma oitava abaixo do
registro inicial. Uma nova simetria é estabelecida, portanto, entre a primeira seção (c.1-4) e
a seguinte (c.5-8), na medida em que a nota melódica inicial (Kopfton) é apresentada no c.4
e replicada no c.8.

A partir do compasso 9 prepara-se um longo trecho sobre a Dominante, reforçado


por um pedal sobre o grau V, que conduz à resolução final sobre a tônica (c.10-15). Mais
uma vez a condução das vozes ressalta a configuração motívica inicial, caracterizada pela
appoggiatura, que se repete em três momentos distintos: C-Bb (c.9); D-C (c.10); F-E
(c.11). Essa subida é uma variante do primeiro trecho da subida inicial da peça (C-F; c.1-2)

A partir do Fá na voz do soprano, no último tempo do compasso 10, tem início uma
descida até o terceiro grau melódico no segundo tempo do compasso 13, coincidindo com
uma resolução na tônica no baixo. Esta resolução no tempo fraco do compasso tem caráter
provisório e uma nova subida melódica conduzirá, uma vez mais, ao terceiro grau melódico
no registro agudo (c.14), o mesmo que havia sido alcançado no início da peça (c.4),
configurando-se, portanto, uma nova transferência de registro sobre a nota lá.

A semelhança deste trecho com o início da peça (c.4) é reforçada pela repetição
enfática da appoggiatura temática. O mesmo desenho será repetido pelo contralto, que
ajuda a prolongar o segundo grau melódico até a resolução final.

2
O conceito de registro obrigatório implica no reconhecimento do grau melódico inicial (Kopfton) e sua
resolução na nota fundamental dentro do limite da oitava.
figura 2

Se observarmos o gráfico da redução desta peça, encontraremos, tanto no nível


externo como no nível intermediário, a presença significativa da appoggiatura
característica do tema. Consciente dessas relações, o intérprete schenkeriano dará ênfase à
prolongação do terceiro grau melódico ao longo de ¾ da peça, e ao engenhoso jogo de
espelhos entre os registros médio e agudo.

Conclusão

Schenker deixa bem claro que o conhecimento das notas tais como se apresentam
na partitura é insuficiente pois impede que o executante expresse o conteúdo verdadeiro da
composição. Ao mesmo tempo, o autor justifica a necessidade do estudo aprofundado, pois
discute a tarefa do pianista como sendo mais complexa do que a do violinista ou cantor,
dada a multiplicidade de vozes contidas em um única voz como é o caso a peça analisada
nesse trabalho (SCHENKER, 2000, p.7). Portanto, o intérprete schenkeriano levará em
consideração não só os aspectos dos toques, articulações, do pedal, da condução das frases,
enfim todas as exigências de uma execução pautada na mais refinada técnica pianística,
mas pode ainda ampliar o sentido desse termo tão mal compreendido.

Conforme vimos no início desta comunicação, sua formação deverá incluir, além do
estudo da técnica instrumental, as disciplinas de contraponto de baixo cifrado. Somente a
intimidade com os processos de condução de vozes permitirá que ele perceba em toda sua
complexidade a perfeição estrutural das obras primas. A esse respeito, o próprio Schenker
manifesta-se "distorcer a composição no momento da execução é mais fácil do que
preencher todas as árduas condições para uma apresentação apropriada". (ibid, p.3) O autor
deixa muito claro que essas dificuldades podem ser sanadas através do conhecimento
aprofundado das leis que regem a composição visto que o conhecimento superficial da obra
de arte é insuficiente. Schenker exorta a uma busca metódica do conhecimento essencial e
completo das leis que regem a composição. Ele afirma que o conhecimento que possibilitou
ao compositor criar, de uma maneira diferente, vai possibilitar ao executante não só recriar
a composição, mas também aproximar-se do compositor e da realização mais verdadeira de
cada obra de arte. (ibid, p.4)

Ao mesmo tempo, sua intuição deverá ser trabalhada no sentido da fluência e da


espontaneidade que caracterizam a improvisação genial, processo central na teoria
schenkeriana do gênio musical. É a improvisação quem garante o encadeamento orgânico
das idéias, é ela quem confere a unidade, a coerência orgânica da obra.

O intérprete schenkeriano é ainda aquele que não reproduz clichês interpretativos


sem que estes atendam a uma profunda necessidade musical. Para além das convenções
estilísticas, está o compromisso com a estrutura fundamental que dá sustentação à obra. É
ele quem dialoga com os grandes mestres do passado e atualiza as obras-primas em
interpretações que devolvem o frescor improvisatório original.

Referências Bibliográficas

RINK, John “Perahia’s Musical Dialogue”, Musical Times. Winter 2001. FindArticles.com.
30 Sep. 2007. http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3870/is_200101/ai_n8934128

ROSEN, Charles, Poetas românticos, críticos e outros loucos, SP: Ateliê Editorial; Editora
da Unicamp, 2004

SALZER, Felix & SCHACHTER, Carl. Counterpoint in Composition – The Study of Voice
Leading, New York: McGraw-Hill Book Company, 1969, p.xix

SCHENKER, Heinrich. Free Composition (Der Freie Satz) – Volume III of New Musical
Theories and Fantasies, 2 v., New York: Longman Inc., 1979

___________. The Masterwork in Music, v.1, New York: Cambridge University Press,
1994

___________. The Masterwork in Music, v.2, New York: Cambridge University Press,
1996

___________. The Art of Performance, New York: Oxford University Press, 2000
Currículo dos autores: Guilherme Sauerbronn de Barros possui graduação em Piano pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (1994), mestrado em Música pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (1998) e doutorado em Musicologia pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2005). Atualmente é professor adjunto
da Universidade do Estado de Santa Catarina, onde orienta trabalhos de mestrado. Tem
vasta experiência como camerista e desenvolve pesquisa nas áreas de análise musical,
estética e interpretação musical.

Graduada em Música pela Universidade Federal de Uberlândia (1972), recebeu o grau de


Master of Music - New England Conservatory (1975) e de Doctor of Musical Arts - Boston
University (1985). Atualmente é professora titular da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul onde orienta trabalhos de mestrado e doutorado. Foi representante do comitê de
Artes no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (2002-2004).
Pianista com CDs gravados e intensa atividade artística, seus alunos tem recebido prêmios
expressivos em concursos nacionais e internacionais. Como pesquisadora desenvolve um
trabalho com o repertorio latino-americano que reúne os seguintes temas: análise musical,
compositores brasileiros e latino-americanos e execução instrumental.

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