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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE

CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E ENSINO

BRUNA MARIA DE SOUSA SANTOS

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA ENTRE A ASFIXIA E A RESISTÊNCIA:


POLÍTICA DE SIGNIFICAÇÃO DOS MOVIMENTOS “ESCOLA SEM PARTIDO” E
“PROFESSORES CONTRA O ESCOLA SEM PARTIDO”

Campina Grande
2018
BRUNA MARIA DE SOUSA SANTOS

A EDUCAÇÃO BRASILEIRA ENTRE A ASFIXIA E A RESISTÊNCIA:


POLÍTICA DE SIGNIFICAÇÃO DOS MOVIMENTOS “ESCOLA SEM PARTIDO” E
“PROFESSORES CONTRA O ESCOLA SEM PARTIDO”

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Linguagem e Ensino, do Centro de
Humanidades da Universidade Federal de Campina
Grande, como pré-requisito para obtenção do grau de
Mestre em Linguagem e Ensino, na área de
concentração Estudos Linguísticos.
Orientador: Prof. Dr. Washington Silva de Farias

Campina Grande
2018
S237e Santos, Bruna Maria de Sousa.
A educação brasileira entre a asfixia e a resistência : política de
significação dos movimentos “Escola sem partido” e “Professores contra o
Escola sem partido” / Bruna Maria de Sousa Santos. - Campina Grande,
2018.
133 f. : il. color.

Dissertação (Mestrado em Linguagem e Ensino) - Universidade Federal


de Campina Grande, Centro de Humanidades, 2018.
"Orientação: Prof. Dr. Washington Silva de Farias".
Referências.

1. Política de Significação. 2. Discurso Educacional. 3. Escola sem


Partido. 4. Professores contra o Escola sem partido. I. Farias, Washington
Silva de. II. Título.

CDU 37.014.5(043)
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO BIBLIOTECÁRIO GUSTAVO DINIZ DO NASCIMENTO CRB - 15/515
A todos os professores
entrincheirados na mesma resistência.
AGRADECIMENTOS

Mais uma vez, e de modo mais intenso, a Análise do Discurso veio me inquietar,
envolvendo-me na pesquisa sobre essa trama equívoca que é a linguagem. Nessa inquietação,
tantos outros se inquietaram comigo – e se assim não fosse, não teria o suporte necessário para
realizar este empreendimento que toma a forma de uma Dissertação. Por isso, agradeço de modo
especial ao meu bom Deus por Sua presença que fala em mim, capacitando-me diariamente e
sacudindo para longe meus medos e angústias.
Agradeço a Washington Farias, orientador querido, a quem respeito e admiro
profundamente pela competência, sensibilidade e entusiasmo com o campo das discursividades.
Sou grata, sobretudo, pelo aprendizado que me proporcionou na escrita deste trabalho ao me
mostrar, na teoria e na prática, que a (minha) falha é o lugar do (meu) possível.
Agradeço ao admirável Marco Antônio Costa por compor nossa banca examinadora,
fazendo avançar esta pesquisa com seu olhar incisivo, sempre atento aos sentidos. De igual
modo, agradeço à Evandra Grigoletto, referência em Análise do Discurso, que, tão gentilmente,
honra a mim e a meu trabalho com seu gesto de avaliação e contribuição.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Linguagem e Ensino (POSLE) e a todos
os professores nele envolvidos, que me concederam a oportunidade de testemunhar, durante
esses dois anos, a força do docente pesquisador que, mesmo em tempos sombrios, teima em
(r)existir. Aproveito para agradecer aos meus colegas de turma, também professores/aprendizes
inspiradores.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES,
pela bolsa de mestrado concedida para a realização da pesquisa.
Agradeço a meu amado Arthur (Tutu), que soube, como ninguém, compreender
minhas ausências e meus silêncios, oferecendo, despretensiosamente, todo o apoio e incentivo
que eu precisava.
Sou grata também aos meus irmãos e melhores amigos, Breno e Jéssica, meus caçulas
amados que são tudo aquilo que eu sou. Cada um, a seu modo, sempre cuidando de mim e
compartilhando meus sonhos, planos e realizações.
Agradeço, por fim, aos meus sempre tão amados pais, Marcone e Aparecida,
entusiastas da minha vida acadêmica. Eu sou porque vocês foram antes. Obrigada pela presença
fortalecedora em cada passo dessa caminhada, obrigada por acreditarem e confiarem em mim.
RESUMO

Esta Dissertação traz à luz a luta ideológica de movimento contemporânea em torno do


imaginário sobre a educação nacional. Tomamos como representantes desse conflito os
movimentos Escola sem Partido (MESP) e Professores contra o Escola sem Partido (MPCESP),
que enunciam a partir de diferentes políticas de significação, colocando em jogo sentidos
antagônicos sobre os objetos de ensino, o sujeito-aprendiz e o sujeito-professor. Nossa hipótese
é a de que o funcionamento do discurso do MESP se caracteriza por uma política de asfixia dos
sujeitos da educação e seus objetos de ensino, reduzindo as possibilidades de subjetivação e
significação no espaço escolar, uma vez que interdita determinados temas, conteúdos e práticas
docentes em sala de aula, sob alegação de sua “contaminação ideológica”. O discurso do
MPCESP, por seu turno, obedece a uma política de resistência, por produzir efeitos que
resistem à asfixia, permitindo que os sujeitos e os sentidos da educação circulem em espaços
polissêmicos de significação. Partindo dessas hipóteses, buscamos compreender os processos
discursivos (asfixia e resistência) que caracterizam as políticas de significação em confronto.
O trabalho se ancora teórica e metodologicamente no quadro geral da Análise do discurso
pecheuxtiana, tomando como referencial teórico-analítico as reflexões sobre sentido e silêncio
(ORLANDI, 1993); modalidades de funcionamento subjetivo (PÊCHEUX, 1975 [2014]), e as
teorizações discursivas sobre resistência (PÊCHEUX, 1990; ORLANDI, 2016). Nosso corpus
foi composto por dois arquivos, sendo o Arquivo I referente ao discurso do MESP, e o Arquivo
II relativo ao discurso do MPCESP. Para cada um, estabelecemos três recortes que contemplam
o modo como os movimentos representam: (1) os objetos de ensino, (2) o sujeito-aprendiz e (3)
o sujeito-professor. As materialidades significantes que compõem os recortes são compostas
por textos, imagens e vídeos disponibilizados nas Redes Sociais dos movimentos (Facebook),
sites, blogs, bem como na plataforma de compartilhamento de vídeos YouTube. Nosso gesto de
análise contemplou a descrição-interpretação dos efeitos engendrados pelos processos
discursivos de asfixia e resistência. A partir dessa análise, pudemos constatar que a política de
asfixia do MESP trabalha de modo a limitar os sujeitos da educação e seus objetos de ensino
no percurso dos sentidos, “sufocando-os”, isto é, restringindo-os, pelo viés da imposição do
silêncio local (censura) e do discurso de ódio. Nesse sufocamento, atualizam-se saberes de
formações discursivas educacionais de tendências tradicionais e neoliberais, nas quais
prevalecem sentidos de educação ligados à moralidade/religiosidade e à preparação para o
mercado de trabalho. Quanto à política de resistência do MPCESP, observamos a produção de
efeitos que reinscrevem o imaginário educacional na ordem do político, por meio de uma
discursividade polêmica (ORLANDI, 2013) que desloca o discurso do MESP, fazendo irromper
gestos de resistência inscritos em uma formação discursiva educacional de tendência
progressista, na qual filiam-se sentidos de uma educação engajada e política.

Palavras-chave: Política de significação. Discurso educacional. Escola sem Partido.


Professores contra o Escola sem partido.
ABSTRACT

This dissertation brings to light the contemporary ideological struggle around the imaginary of
national education. We take as representatives of this conflict the movements Partyless School
(MPS) and Teachers Against Partyless School (MTAPS) whose discourses are based on
different politics of signification, putting into play different senses for education, the subject-
apprentice and the subject-teacher. Our hypothesis is that the MESP's discourse is characterized
by a politics of asphyxiation of the education subjects and their educational contents, reducing
the possibilities of subjectivation and signification in the school space, since it prohibits certain
themes, contents and teaching practices in the classroom, on grounds of their "ideological
contamination". The speech of the MPCESP, on the other hand, follows a politics of resistance,
producing effects which resist the asphyxiation, allowing the subjects and the senses of
education to circulate in polysemic spaces of signification. Based on these hypotheses, we seek
to understand the discursive processes (asphyxiation and resistance) that characterize these
confronting politics of signification. This work is anchored by the general framework of
Pêcheux’s Discourse analysis theory and methodology, taking as theoretical and analytical
references the reflections on sense and silence (ORLANDI, 1993); and the discursive
theorizations on resistance (PECHEUX, 1990; ORLANDI, 2016). Our corpus was composed
of two files, with File I referring to the MESP speech, and File II to MPCESP's speech. We
assigned three snippets to each that illustrate how the movements represent: (1) the educational
contents, (2) the subject-apprentice and (3) the subject-teacher. The significant materialities of
the snippets are composed of texts, images and videos made available on the Social Networks
of the movements (Facebook), websites, blogs, as well as on the YouTube video sharing
platform. Our analysis contemplated the description-interpretation of the effects engendered by
the discursive processes of asphyxiation and resistance. Based on this analysis, we could verify
that the MESP’s politics of asphyxiation works in a way that suffocates the education subjects
and their educational contents through the imposition of local silence (censorship) and hate
speech. In this suffocation, knowledges about educational discursive formations update to
having traditional and technicist tendencies, prevailing senses linked to morality/religiosity and
preparation for the job market. As for MPCESP's politics of resistance, we observed the
production of effects that reinsert the imaginary of education in the political spectrum, through
a polemical discursivity (ORLANDI, 2013) that displaces the MESP discourse, surfacing
resistance points inscribed in an educational discursive formation of progressive tendencies,
which is tied to the senses of an engaged and political education.

Keywords: Politics of signification. Educational discourse. Partyless School. Teachers Against


Partyless School.
.
SUMÁRIO

EDUCAÇÃO BRASILEIRA: UM OBJETO PARADOXAL ............................................ 11

1. POLÍTICA DE SIGNIFICAÇÃO E A DIVISÃO CONSTITUTIVA DO SENTIDO . 17


1.1. Língua e ideologia, sujeito e sentido ................................................................................. 17
1.2. Sentido e silêncio ............................................................................................................... 23
1.3. O político no (do) discurso ................................................................................................ 26

2. DISPOSITIVO ANALÍTICO ............................................................................................ 32


2.1. Condições de produção dos discursos em confronto ......................................................... 33
2.1.1 Condições de produção do discurso do MESP ............................................................ 33
2.1.2. Condições de produção do discurso do MPCESP ..................................................... 40
2.2. Constituição do corpus e construção do arquivo ............................................................... 43
2.3. Procedimentos analíticos ................................................................................................... 44

3. A POLÍTICA DE ASFIXIA NO DISCURSO DO MESP ............................................... 46


3.1. A asfixia dos objetos de ensino: o que (não) pode/deve ser ensinado ............................... 46
3.2. A asfixia do sujeito-aprendiz: quem o aprendiz (não) pode/deve ser................................ 58
3.3. A asfixia do sujeito-professor: quem (não) pode/deve ensinar ......................................... 63

4. A POLÍTICA DE RESISTÊNCIA NO DISCURSO DO MPCESP ............................... 80


4.1. A resistência à asfixia dos objetos de ensino: o que (não) pode/deve ser ensinado. ......... 83
4.2. A resistência à asfixia do sujeito-aprendiz: quem o aprendiz (não) pode/deve ser ........... 91
4.3. A resistência à asfixia do sujeito-professor: quem (não) pode/deve ensinar ..................... 94

EFEITO DE FIM... OU EDUCAÇÃO: LUGAR DO (IM)POSSÍVEL ........................... 106


REFERÊNCIAS.................................................................................................................... 112
ANEXOS................................................................................................................................ 120
11

EDUCAÇÃO BRASILEIRA: UM OBJETO PARADOXAL

Ao refletir sobre os processos de reprodução/transformação das relações de classe, o


filósofo francês Michel Pêcheux (1982 [2014]) propôs pensar a noção de lutas ideológicas de
movimento, definidas como uma série de embates móveis, travados em torno de objetos
ideológicos (tais como educação, família, religião), também chamados de objetos paradoxais,
por possuírem a singularidade de serem idênticos e antagônicos consigo mesmos, devido ao seu
funcionamento baseado "em relações de força móveis, em mudanças confusas, que levam a
concordâncias e oposições extremamente instáveis" (PÊCHEUX, 1982 [2014], p. 115-116).
Partindo dessa reflexão, consideramos, neste trabalho, pensar a educação como um objeto
paradoxal, tal como definido por Pêcheux, uma vez que tem se constituído, historicamente,
como uma arena de disputa entre diferentes projetos de sociedade que polemizam o lugar da
escola e do sujeito-professor na formação do sujeito-aprendiz.
Desde o período colonial, o Brasil tem experimentado diferentes concepções de
educação e tendências pedagógicas, passando por aquelas que visavam à “formação integral do
homem cristão” (GHIRALDELLI, 2006, p. 25), sob o regime da Companhia de Jesus, até
chegar àquelas que tinham por finalidade “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1996, p. 01). Tais
tendências, que atravessaram o modo de pensar a educação no país, instauraram-se não
arbitrariamente, mas a partir de um jogo de relações de força marcado por interesses políticos
e ideológicos de conjunturas históricas específicas.
De modo especial, após o fim do regime militar, o Brasil passou a vivenciar uma
“autêntica ‘era de direitos’” (MONDAINI, 2008, p. 103) na qual políticas de inclusão e
legitimação de minorias sociais passaram a se fazer presentes no país. Essa “era de direitos” foi
impulsionada, entre outros fatores, pela perspectiva progressista da Constituição de 1988, que
assumiu o compromisso com a universalização dos direitos sociais e individuais, pautando-se
nos valores de uma sociedade fraterna, pluralista e livre de preconceitos. Na esteira da
Constituição, a homologação da LDB, em 1996, foi um passo importante para a consolidação
desse ideal e se legitimou apresentando à sociedade um discurso educacional ligado aos
princípios de liberdade, respeito às diferenças e pluralidade, com vistas ao preparo para o
exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.
Desde então, o discurso educacional brasileiro tem assumido uma perspectiva
socialmente engajada na construção de uma sociedade democrática e plural, de modo que os
12

direitos (humanos, políticos, sociais) possam ser assegurados a todos os cidadãos, respeitando
suas diferenças e especificidades. Por essa razão, temas como sexualidade, deficiência, raça,
religião, cultura, gênero etc. – fatores relacionados às práticas de segregação, violência e
preconceito – foram incluídos no currículo escolar com a finalidade de uma formação
democrática. A educação brasileira, desse modo, passou a se inscrever em uma rede de sentidos
de filiações progressistas. É preciso evidenciar, no entanto, que essa inscrição não se deu a
partir de um consenso na sociedade, mas foi o cerne de disputas e confrontos, estabilizando-se
de forma tensa no contexto educacional.
As forças de oposição à perspectiva progressista, filiadas a diferentes posições
ideológicas, mantiveram-se nessa disputa tensionando o imaginário de educação e sociedade
brasileira, articulando-se e ganhando, gradualmente, expressividade na conjuntura
contemporânea1 através de uma forte onda conservadora2 vinculada às esferas política,
religiosa, midiática, jurídica e de parte da sociedade civil. Essa onda conservadora apresenta o
traço característico de reacionarismo às políticas inclusivas e de ampliação de direitos que,
mesmo de forma vacilante, vinham-se afirmando na vida nacional, desde o período de
redemocratização (MIGUEL, 2016).
Nos últimos anos, foi possível observar a atuação do conservadorismo em diferentes
pautas da política brasileira, incluindo os protestos pró-impeachment de 2015, que
corroboraram com o golpe parlamentar responsável por destituir Dilma Rousseff da presidência
da república em 2016 (SOUZA, 2016). No âmbito da educação, a onda conservadora é
representada, dentre outras vozes, pelo Movimento Escola sem Partido (MESP), que contesta
o debate em sala de aula referente a temas atravessados por questões políticas e socioculturais,
como orientação sexual e identidade. Segundo o movimento, a abordagem pedagógica dessas
temáticas se caracteriza como um processo de doutrinação ideológica “de esquerda” que
pretende destruir os princípios morais e religiosos das famílias tradicionais brasileiras. Há,
desse modo, uma tomada de posição com relação à moralidade e à religião, em detrimento da
politização do espaço escolar através do tratamento de problemáticas sociais que remetem à
inclusão e valorização da diversidade.
Esse discurso de filiações conservadoras e religiosas obteve grande visibilidade,
sobretudo a partir do ano de 2014 quando Projetos de Lei (PL) inspirados nas propostas do

1
Segundo Miguel (2016), a onda conservadora de que falamos, estabeleceu-se no contexto sociopolítico brasileiro
a partir dos anos 2010.
2
Entendemos o conservadorismo segundo Botelho e Ferreira (2010, p. 11), como um “movimento consciente de
oposição ao movimento “progressista”, ou ao pensamento liberal-burguês”.
13

MESP passaram a tramitar na Câmara dos Deputados e em Assembleias Legislativas de todo o


país, chegando, mais recentemente, ao Senado Federal. De forma geral, os PL procuram
reorientar os princípios político-pedagógicos da LDB, instituindo a neutralidade política,
ideológica e religiosa como princípio basilar da educação, de modo a refrear o “abuso da
liberdade de ensinar” (BRASÍLIA, 2014, p. 07) que, segundo o MESP, consiste na influência
exercida pelo sujeito-professor na cooptação dos alunos a suas convicções político-partidárias
e ideológicas, majoritariamente de “esquerda”.
Para além do campo da política institucional, o MESP atua fortemente nas redes sociais
e em seus sites, orientando pais e alunos sobre as maneiras de combater e denunciar a
“doutrinação” nas salas de aula, produzindo uma espécie de patrulhamento à prática docente.
Em reação a esse discurso, surgiu em 2015 o Movimento Professores contra o Escola
sem Partido (MPCESP) que, numa posição de resistência ao MESP, atua de forma a
problematizar o ideal conservador e as ações do movimento, marcando forte oposição na
participação de debates, seminários e audiências públicas para discussões sobre os Projetos de
Lei “Escola sem Partido”, além de oferecer, em seu blog3 e em sua página de Facebook4, um
espaço de reflexão sobre a educação e monitoramento geral de propostas de políticas públicas
norteadas pelo MESP.
Na compreensão do MPCESP, o MESP promove a despolitização do espaço escolar,
além de propiciar o silenciamento docente. Sua resistência está na tentativa de manutenção e
expansão dos direitos já conquistados, e na defesa de uma educação democrática que ofereça a
formação de cidadãos críticos, tolerantes e pluralistas. Nessa perspectiva, o movimento sustenta
a ideia de uma escola que tome partido, promovendo reflexões e práticas que possam colocar
em xeque as desigualdades, preconceitos e opressões, ainda sofridas por uma parcela expressiva
da sociedade.
Emerge, desse modo, um “duelo” pelo objeto paradoxal da educação, circunscrito às
lutas ideológicas de movimento, que permitem observar o funcionamento de um discurso
polêmico (ORLANDI, 2013) no qual o referente (a educação) é disputado pelos interlocutores.
Observando tal confronto, verificamos certas regularidades como o fato de que a disputa se dá
em função de três eixos temáticos principais: (1) os objetos de ensino, (2) a formação do
estudante e (3) o papel do professor no processo de ensino-aprendizagem. Em torno desses
temas, fervilha uma produção de diferentes sentidos para a educação nacional, particularizando
pontos de vista antagônicos.

3
https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com
4
https://www.facebook.com/contraoescolasempartido
14

Devemos mencionar que os sentidos produzidos pelo MESP e pelo MPCESP, embora
antagônicos, não se constituem em relação de antítese, isto é, não são simetricamente opostos,
mas estabelecem uma correlação mais complexa em que cada discurso obedece a uma política
de significação distinta. Sobre essa noção, podemos explicitá-la5 como sendo o jogo que está
na base de todo processo discursivo pela divisão dos sentidos, dirigindo-os ideologicamente.
Pensando na dimensão política e histórica do sentido e sua tensão constitutiva entre “o que
significa e o que não significa” (ORLANDI, 1993, p. 93), podemos precisar que a política de
significação é a própria política do dizer que direciona certos sentidos e apaga outros, afetando
seus modos de constituição no jogo das formações discursivas.
Examinando, pois, as políticas de significação dos discursos em análise, observamos
que a discursividade do movimento Escola sem Partido funciona a partir de uma política que
“dirige” os sentidos por meio do silêncio local (ORLANDI, 1993), isto é, a partir da interdição
da significação, tendo em vista que censura sentidos ligados a um imaginário do processo
educacional enquanto prática política, controlando/determinando o modo como os sujeitos da
educação podem significar-se. Nos movemos, então, em direção à hipótese de que o discurso
do MESP funciona a partir do que propomos chamar de uma política de asfixia dos sujeitos e
dos sentidos, dada sua inscrição na ordem do calar pelo sufocamento do político, da polissemia.
Quanto ao discurso do MPCESP, presumimos que seu funcionamento se submete a uma política
de resistência à asfixia da educação, através da tentativa de reafirmar o caráter político e
polissêmico do processo de ensino-aprendizagem.
Buscando compreender os funcionamentos acima delineados, nossa pesquisa parte do
seguinte questionamento: Qual o modo de funcionamento das políticas de asfixia e de
resistência no contexto da disputa pelos sentidos sobre a educação brasileira? Em função desse
questionamento, definimos como objetivo geral de nosso estudo compreender os processos de
asfixia e resistência que caracterizam as políticas de significação em confronto.
Como objetivos específicos, pretendemos analisar o funcionamento dos processos
discursivos de asfixia e resistência descrevendo seus efeitos e mecanismos de produção de
sentido em relação aos três eixos delimitados: (1) Objetos de ensino; (2) Sujeito-aprendiz; e (3)
Sujeito-professor. Pensando na noção de Formação Discursiva (FD), definida por Pêcheux
(1975 [2014, p. 147]) como “[...] aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de
uma posição dada numa conjuntura dada, [...] determina o que pode e deve ser dito”,
mobilizamos o conceito para nossa escrita, definindo tais eixos como sendo (1) O que (não)

5
Explicitamos tal noção pautando-nos nos estudos orlandianos sobre as relações entre silêncio e sentido.
15

pode/deve ser ensinado na escola; (2) Quem o aprendiz (não) pode /deve ser; e (3) Quem (não)
pode/deve ensinar.
Pretendemos, ainda, discutir sobre o modo como os efeitos engendrados pelos
processos de asfixia e resistência se inscrevem no interdiscurso, identificando as filiações
político-ideológicas onde cada política de significação se vincula.
Para tanto, lançamos mão dos princípios e procedimentos da Análise do Discurso
(AD), inscrita no campo das ciências da interpretação, por considerar a relação dos sentidos
com o simbólico, num movimento que oferece abertura à falha, aos deslizamentos, aos sentidos
outros – espaço profícuo à interpretação. O quadro teórico geral da pesquisa está ancorado nos
pressupostos da AD pecheuxtiana, que toma o discurso como objeto específico, sendo
compreendido como “efeito de sentido entre locutores” (ORLANDI, 2013, p.21). O escopo da
análise, a partir dessa filiação teórica, é compreender os processos de significação e descrever
as condições sócio-histórico-ideológicas pelas quais emergem os sentidos e sujeitos enquanto
efeitos de linguagem.
De modo mais específico, mobilizaremos conceitos e questões do campo discursivo
referentes às relações entre sentido e silêncio (ORLANDI, 1993), para compreender os efeitos
de interdição/censura produzidos no discurso do MESP. Também levaremos em conta as
modalidades de funcionamento subjetivo (PÊCHEUX, 1975 [2014]), de modo a identificar as
posições construídas no confronto entre os movimentos. Por fim, nos apoiaremos na teorização
discursiva sobre a resistência (PÊCHEUX, 1990; ORLANDI, 2016), para interpretar as formas
e os gestos de resistência que atingem as posições-sujeito inscritas na FD a partir da qual
enuncia o MPCESP.
Partindo da compreensão de que os discursos são a materialidade específica da
ideologia e que esta prescreve práticas concretas dos sujeitos, a pesquisa aqui desenvolvida
sinaliza para as possíveis implicações de ordem política que essa movimentação nas redes de
filiação do discurso educacional poderá acarretar para a prática educacional brasileira.
Buscamos contribuir, ainda, para a compreensão das determinações linguístico-históricas a
partir das quais reemerge a discussão sobre o papel da escola, do aprendiz e do professor no
processo de ensino-aprendizagem.
Este trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro, apresentamos nosso
referencial teórico, abordando conceitos e categorias concernentes às relações entre o discurso,
o silêncio e o político, de modo a oferecer sustentação teórica para a compreensão da divisão
constitutiva do sentido (e do sujeito) e do funcionamento das políticas de significação do MESP
e do MPCESP. É importante mencionar que a teoria discursiva a qual nos filiamos não está
16

circunscrita apenas ao Capítulo I, atravessando, inevitavelmente, todos os outros capítulos deste


trabalho, desde a construção do nosso dispositivo analítico, até as análises propriamente ditas.
No segundo capítulo, seção metodológica, descrevemos os passos que realizamos para
desenvolver a análise, incluindo a construção do arquivo 6, a delimitação do corpus e a definição
dos procedimentos de análise.
Nos capítulos analíticos, buscamos compreender o funcionamento das políticas de
significação que regem os discursos do MESP (Capítulo III) e do MPCESP (Capítulo IV),
descrevendo de que modo operam os processos discursivos de asfixia e resistência (da
educação) a partir dos três eixos temáticos referentes aos objetos de ensino, sujeito-aprendiz e
sujeito-professor. Para tanto, descrevemos os efeitos de sentido, as posições-sujeito e as
filiações ideológicas que emergem a partir do funcionamento de tais processos. Por fim,
apresentamos as considerações finais, propondo, como assevera Orlandi (2013), uma
interpretação sobre os resultados da análise que empreendemos.

6
O arquivo, em AD, constitui um “campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão”
(PÊCHEUX, 1994 [2014, p. 59]), reunidos pelo analista de modo a observar o funcionamento de determinado
processo discursivo.
17

1. POLÍTICA DE SIGNIFICAÇÃO E A DIVISÃO CONSTITUTIVA DO SENTIDO

A entrada no simbólico é irremediável e


permanente: estamos comprometidos com
os sentidos e o político.

Eni Orlandi

Considerando que a questão central deste estudo está na compreensão das políticas de
significação que orientam os funcionamentos dos discursos do MESP e do MPCESP, neste
capítulo, buscamos retomar pressupostos basilares do campo da Análise do Discurso, de forma
a compreender a dimensão política dos sentidos (e dos sujeitos), sua natureza dividida, e o modo
como são dirigidos ideologicamente. Para tanto, empreendemos um percurso teórico a fim de
observar as relações entre língua e ideologia, sujeito e sentido; silêncio e sentido e, por fim, o
político no (do) discurso.

1.1. Língua e ideologia, sujeito e sentido

Visando lançar as bases de uma teoria materialista do discurso, o filósofo Michel


Pêcheux deslocou o estudo da ideologia de uma esfera sociológica/filosófica para o campo
discursivo. Nesse deslocamento, passou a observar a relação dos processos ideológicos com a
constituição dos sujeitos e dos sentidos em sua relação com a linguagem. Em consequência, o
autor chegou à noção de discurso, redefinindo os conceitos de língua e sujeito, já cristalizados
pelas tradições logicistas, sociologistas e psicologistas. À guisa de esclarecer esse processo de
redefinição teórica que demarcou a posição epistemológica da Análise de Discurso francesa,
faremos uma breve digressão buscando demonstrar o modo como a noção de ideologia foi
concebida teoricamente para, então, chegar à perspectiva discursiva.
Segundo Chauí (1980), a noção de ideologia foi originalmente empregada em 1801,
no livro Elementos de Ideologia, de Destrutt de Tracy, que pretendia traçar um quadro geral de
uma ciência da gênese das ideias. Propondo um método exato e rigoroso que relacionava a
origem das ideias às faculdades sensíveis do homem (vontade, razão, percepção e memória) e
ao próprio cérebro, a obra inaugural conferiu ao estudo da ideologia um caráter científico. Esse
projeto, no entanto, possuía certa ingenuidade, pois, de acordo com Dunker (2008), confiava a
resolução de impasses da filosofia política à neutralidade da ciência moderna. Além da
fragilidade teórica, os estudiosos da ideologia esbarraram em outro problema: contemporâneos
de Napoleão Bonaparte, foram intimidados pelo imperador, que atribuía aos ideólogos a causa
18

das pressões promovidas pelos opositores ao seu Regime. Foi quando Napoleão passou a se
apropriar do termo ideologia de maneira pejorativa, associando-a a uma espécie de doutrina
fantasiosa, perigosa à ordem.
Em Marx e Engels (1965), na obra A ideologia alemã, o sentido de ideologia também
aparece imbuído de carga negativa, sendo ela uma espécie de mascaramento da realidade
necessário à dominação de classes. Nessa concepção marxista, a ideologia figura sob a forma
de “aparência social”, como um espelho que reflete a realidade de maneira invertida. Essa
aparência social evidencia, segundo os autores, o pleno funcionamento da ideologia ao inculcar
valores, regras e normas da classe dominante, determinando o que os membros de uma
sociedade podem ou não fazer, mantendo, assim, a classe dominada sob condições de submissão
e exploração.
Na esteira da tradição marxista de base materialista, Althusser (1974), em Ideologia e
Aparelhos Ideológicos do Estado, apresenta, na segunda parte da obra, uma nova abordagem
para a questão, pensando-a não a partir de uma concepção negativa, mas entendendo-a como
elemento inerente às práticas sociais. Nessa perspectiva, passa a refletir sobre a ideologia a
partir de uma tese central e duas específicas. Iniciemos pelas específicas: a) “A ideologia
representa a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência”
(ALTHUSSER, 1974, p.77).
Diferente de Marx e Engels (1965), o filósofo passa a refletir sobre a ideologia não
mais com base na classe dominante, mas a partir de uma “ideologia em geral” buscando definir
sua estrutura e funcionamento. Nesse sentido, pensa a instância ideológica como mecanismo
que promove a relação imaginária entre o homem e o real. Fazendo um jogo entre ilusão e
alusão, o autor admite que, mesmo não correspondendo à realidade (ilusão), a ideologia
promove sua alusão que, de acordo com a intepretação de cada indivíduo, integra a
representação, sempre imaginária, do real.
Essa atuação da ideologia, no entanto, requer uma existência específica, uma vez que,
segundo o autor, não se trata de uma instância espiritual, transcendente ou metafísica, o que
oferece margem para a sua segunda tese: b) “A ideologia tem uma existência material”. De
acordo com essa tese, a ideologia existe nas práticas e, por essa razão, possui existência
material. Isso significa que a ideologia prescreve práticas de sujeitos que agem segundo suas
representações da realidade. É nesse ponto em que Althusser (1974, p. 91) chega a uma síntese
da segunda tese, introduzindo a noção de sujeito como categoria essencial para a existência da
ideologia: “1- Só existe prática através e sob uma ideologia; 2- Só existe ideologia através do
sujeito e para sujeitos”. Desse modo, o sujeito passa a ser considerado como categoria
19

constitutiva de toda ideologia, uma vez que esta possui existência material nas práticas
exercidas por – e para – sujeitos.
A partir dessas proposições, o autor apresenta sua tese principal: a ideologia interpela
os indivíduos como sujeitos. Conforme essa tese, é pela interpelação que o indivíduo se insere
em práticas reguladas por aparelhos ideológicos, transformando-se e reconhecendo-se como
sujeito que tem sua existência a partir de si. Esse reconhecimento é resultado da atuação da
ideologia, dissimulada pela produção da evidência de uma existência espontânea dos sujeitos:

Como todas as evidências, incluindo as que fazem com que uma palavra “designe uma
coisa” ou “possua uma significação” (portanto incluindo as evidências da
“transparência” da linguagem), esta “evidência” de que eu e você somos sujeitos – e
que esse fato não constitui um problema – é um efeito ideológico, o efeito ideológico
elementar (ALTHUSSER, 1974, p.95).

Esse efeito ideológico, assim, dissimula o funcionamento da ideologia, uma vez que a
evidência de sermos sempre já sujeitos (de direito, livres, etc.) apaga o fato de que, para o
sermos, estamos sob os efeitos de interpelações ideológicas reguladoras de todas as nossas
práticas. Desse modo, a ideologia passa a ser concebida não como ocultação ou mascaramento,
mas como produção de evidências que permitem aos sujeitos significar o mundo e, a um só
tempo, significar-se.
Como um desdobramento da reflexão althusseriana, Pêcheux (1975 [2014]) inaugura
a teoria materialista dos processos discursivos, na qual a ideologia passa a ser observada através
de sua materialização na língua, isto é, a partir do discurso7. O modo como a ideologia funciona
na língua, por meio do discurso, é explicitado por Pêcheux (1975 [2014]) a partir da segunda
tese althusseriana que traz à tona o trabalho ideológico na produção de evidências. O autor
chama atenção para o fato de que Althusser (1974), ao explicar a evidência do sujeito como
origem de si, acaba por aproximá-la à evidência dos sentidos, quando toca na questão da
“transparência” da linguagem, aquilo que faz com que uma palavra possua uma significação
específica, como se os sentidos fossem estáticos e imutáveis.
Partindo dessa aproximação entre os efeitos de evidência dos sujeitos e dos sentidos,
Pêcheux (1975 [2014, p. 140]) endossa que “a questão da constituição do sentido se junta à da
constituição do sujeito [...] na figura da interpelação”. Por essa razão, ao significar, o sujeito se
significa. Sujeito e sentido, assim, constituem-se mutuamente, pela ideologia, por sua
encarnação na língua, pelo discurso. Nessa mútua constituição, a evidência do sujeito dissimula

7
O discurso, nessa perspectiva, constitui o ponto de articulação entre língua e ideologia. É no (e pelo) discurso
que a ideologia opera na língua. Por essa razão, compreende-se que “a materialidade específica da ideologia é o
discurso e a materialidade específica do discurso é a língua” (ORLANDI, 2013, p. 17).
20

a interpelação ideológica, produzindo nos sujeitos a impressão de que o seu dizer vem de seu
interior, de sua subjetividade. Isso explica a ilusão de alguns que acreditam falar de lugares
neutros, fora da ideologia, como é o caso do MESP, que afirma não sofrer coerções ideológicas
de nenhuma ordem.
A evidência do sentido, por sua vez, naturaliza a relação palavra-coisa, apagando o
caráter material do processo de significação, isto é, tornando transparente um sentido que não
é evidente, mas, constituído a partir da inscrição dos sujeitos em formações ideológicas8 que,
no plano da linguagem, são representadas pelas formações discursivas (FD), definidas como
aquilo que, “a partir de uma posição dada numa conjuntura dada, [...] determina o que pode e
deve ser dito” (PÊCHEUX, 1975 [2014, p. 147]).
Essa produção de evidências está na base do funcionamento daquilo que Pêcheux e
Fuchs (1975 [2014]) chamaram de esquecimentos. Conforme os autores, o esquecimento nº 1 é
da ordem do inconsciente, e dissimula a interpelação ideológica, sendo responsável por produzir
a evidência do sujeito como causa de si mesmo. Já o esquecimento nº 2 é da ordem da
enunciação, onde o sentido se produz como evidente, apagando o fato de sua dependência à
uma FD. Nas palavras dos autores, “o sentido de uma sequência só é materialmente concebível
na medida em que se concebe esta sequência como pertencente necessariamente a esta ou aquela
formação discursiva” (PÊCHEUX; FUCHS, 1975 [2014]).
Assim, é pela inscrição em determinada formação discursiva que os sentidos fazem
sentido, por meio de um sistema de evidências experimentadas na/pela língua. Por essa razão,
lembra-nos Pêcheux (1975 [2014, p. 146]) que os sentidos das palavras, expressões,
proposições etc., não são pré-estabelecidos, mas determinados “pelas posições ideológicas
colocadas em jogo no processo sócio-histórico”. Isso significa que os sentidos são determinados
pelas FD nas quais os sujeitos se inscrevem. Constata-se, desse modo, que a ideologia é
condição para a significação. É nessa perspectiva que concebemos o sentido não como
conteúdo, mas como efeito de um trabalho ideológico produzido no interior das diferentes FD.
O mesmo ocorre para o sujeito que, pelo processo de interpelação, identifica-se com
determinada formação discursiva, reconhecendo-se e subjetivando-se nesse espaço.
Essa constituição da subjetividade, todavia, não é estável, mas aberta aos deslizes, às
falhas, no interior de um jogo contraditório e, ao mesmo tempo, constitutivo. Por esse motivo,
o sujeito é heterogêneo, mutável e dividido. Apesar dessa feição contraditória, existe, no

8
Por formação ideológica compreende-se “um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são
nem ‘individuais’ nem ‘universais’, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classe em conflito
umas em relação às outras” (HAROCHE et al., 1971 apud BRANDÃO, 2004, p. 47).
21

entanto, uma “ilusão” que faz com que essa subjetividade pareça imóvel, cristalizada, criando
um efeito de identidade. Essa ilusão é produto de um imaginário ideológico que garante a
unidade dos processos identitários, para que o sujeito se identifique como “ocupante” de
determinadas posições e senhor de certos sentidos. É a necessidade de pertencimento a
determinados lugares ideológicos que faz transparecer o efeito da unidade das identidades.
Desse modo, o movimento da identidade se dá na relação entre unidade imaginária e dispersão
real. A identidade do sujeito é, assim, um efeito do trabalho ideológico.
É nesse sentido que falamos de um efeito-sujeito – o sujeito do discurso – resultante
do processo de interpelação que pressupõe, segundo Henry apud Pêcheux (1975 [2014, p. 198])
“um desdobramento constitutivo do sujeito do discurso, de forma que um dos termos representa
o ‘locutor’, ou aquele a que se habituou chamar o ‘sujeito da enunciação’ [...] e o outro termo
representa ‘o chamado sujeito universal’”, ou a forma-sujeito, que, em poucas palavras, é o
sujeito do saber de determinada formação discursiva. A identificação ocorre quando o locutor
se vê representado na forma-sujeito de uma FD, constituindo-se, nesse processo, enquanto
sujeito do discurso. Esse processo, no entanto, é complexo e contraditório, podendo assumir
diferentes modalidades, a saber, identificação, contra-identificação e desidentificação
(PÊCHEUX, 1975 [2014]).
No processo de identificação, há uma superposição, ou recobrimento, entre o sujeito
da enunciação e o sujeito universal, refletindo o “bom sujeito”, aquele que espelha,
“cegamente”, a forma-sujeito da FD na qual está inscrito. Não há questionamentos, apenas
consentimento. Na segunda modalidade, a contra-identificação, existe uma relação mais tensa
do locutor com a forma-sujeito. Nesse caso, sua tomada de posição reflete contestação, dúvida,
revolta, em relação aos sentidos que o sujeito universal lhe oferece. Desse modo, o “mau
sujeito” se contraidentifica com a FD a ele imposta, produzindo, assim, um contradiscurso. Na
desidentificação, o que ocorre é um trabalho, uma transformação-deslocamento da própria
forma-sujeito, através de um “desarranjo-rearranjo” entre formações discursivas.
Esta última modalidade foi retomada mais à frente por Pêcheux num exercício de
autocrítica e reconhecimento de que, embora desidentificado com determinada formação
discursiva, o sujeito não está livre do inconsciente e da ideologia. O assujeitamento continua
pela identificação desse sujeito com uma nova FD, “o que não supõe o ‘apagamento’ total dos
saberes com os quais ele está se desidentificando” (GRIGOLETTO, 2005, p. 65). Veremos
exemplos desse processo, especialmente, nas análises sobre o discurso do MPCESP, no qual
esse duplo movimento de (des)identificação é evidenciado.
22

Ainda sobre a desidentificação, Indursky (2008) propõe pensar três aspectos


implicados em seu funcionamento. O primeiro é o de que a desidentificação pressupõe um
espaço de manobra, uma “brecha” que permite a movimentação e o possível rompimento do
sujeito com determinado domínio de saber. Ao romper com esse domínio, o sujeito,
inconscientemente, já está identificado com um outro, fato que constitui o segundo aspecto
observado por Indursky (2008), que significa que toda desidentificação pressupõe uma
identificação, e vice-versa. O terceiro aspecto diz respeito à natureza dos processos de
identificação e desidentificação. Segundo a autora, ambos funcionam pela imbricação entre
inconsciente e ideologia.
Dessas diferentes modalidades que se estabelecem na relação entre o sujeito
enunciador e o sujeito universal, emerge a posição-sujeito resultante das formas de
assujeitamento. Desse modo, diferentes indivíduos podem se identificar com a mesma forma-
sujeito, assumindo posições semelhantes ou distintas, que podem se modificar/deslocar no
interior de uma mesma FD. Essa possibilidade de se deslocar discursivamente é consequência
da própria natureza das formações discursivas que não constituem espaços fechados e estáveis.
São, antes, constituídas pela contradição, possuindo um caráter móvel e heterogêneo. Por essa
razão, configuram-se e reconfiguram-se incessantemente, podendo “fornecer elementos que se
integram em novas formações discursivas, constituindo-se no interior de novas formações
ideológicas” (PÊCHEUX; FUCHS, 1975 [2014, p. 165]).
As formações discursivas ainda possuem a particularidade de “dissimular, na
transparência do sentido que nela se forma, [...] o fato de que ‘isso fala’ sempre antes, em outro
lugar, ou independentemente” (PÊCHEUX, 1975 [2014, p. 147]). Isso significa dizer que, por
representar a instância ideológica, as FD camuflam sua dependência ao interdiscurso – “rede
de sentidos”, materialidade significante exterior e anterior aos discursos.
Este algo que fala “antes, em outro lugar, independentemente” (op. cit., p. 142) é o
interdiscurso que funciona como memória da significação na medida em que se estrutura e
sedimenta pelo esquecimento: “esquecemos como os sentidos se formam de tal modo que eles
aparecem como surgindo em nós” (ORLANDI, 2012, p. 28). Assim, no momento de formulação
de um discurso, o sujeito discursivo filia-se a determinados sentidos em uma rede de memória
e só desse modo é possível significar: é porque já foi dito (já foi inscrito na história) que o novo
dizer faz sentido.
Nessa perspectiva, o interdiscurso constitui o saber que sustenta os processos
discursivos, possibilitando o acesso ao pré-construído, ao já-dito. Uma memória pela qual
retornam os dizeres que significam em cada nova prática de linguagem. Essa memória do dizer,
23

intrincada no complexo das formações ideológicas (PÊCHEUX, 1975 [2014]), consiste no


exterior constitutivo dos sujeitos e dos sentidos, sendo, no entanto, ocultada pelo efeito de
evidência que produz uma forma-sujeito “fantasmagórica”, de existência espontânea, com um
interior, sem exterior.
Insistimos na explicitação da noção de efeitos de evidência pela possibilidade que esta
oferece à compreensão de determinado discurso, pois, ao remeter tais efeitos às formações
discursivas a partir das quais são produzidos, podemos compreender o processo discursivo de
onde eles emergem. Os efeitos, assim, funcionam como indicadores da relação constitutiva
entre sentido, sujeito e ideologia.
Essa relação pode ser ainda explicada com base em Orlandi (2012), que propõe pensar
a articulação entre ideologia e interpretação. Segundo a autora, o caminho pelo qual o sujeito
se submete à ideologia é a interpretação. Assim, o processo de interpelação ideológica reside
no fato de que o sujeito é instado a interpretar, identificando-se com certos sentidos – e não
com outros. Nesse processo, frente a qualquer objeto simbólico o sujeito, inevitavelmente, é
levado a se perguntar: o que isso quer dizer? E a partir desse questionamento, atribui sentidos
ao objeto, num duplo movimento onde o significa e se significa.
Uma vez que somos instados a interpretar, não há como não nos assujeitarmos à
linguagem, com suas falhas e equívocos. E porque a interpretação é sempre um processo
ideológico, “não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos”
(ORLANDI, 2013, p. 09). Nessa perspectiva, os sentidos possuem sempre um direcionamento
orientado por um “regime ideológico” que é a política de significação, atestada na relação que
se dá entre o dizer e o não dizer, o que significa e o que não significa, permitindo entrever o
funcionamento discursivo do silêncio.

1.2. Sentido e silêncio

O silêncio, enquanto categoria teórica, ganha uma especificidade discursiva a partir


das reflexões produzidas por Orlandi (1993, p. 70), ao defini-lo como condição de significação,
configurando o “lugar que permite à linguagem significar”. Sob esse ponto de vista, a autora
elucida que o silêncio não é o vazio, mas tem significância própria, garantindo o movimento
dos sentidos, já que o próprio falar pressupõe o silêncio de modo que o dito possa fazer sentido.
O silêncio é, assim, “um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o
sentido faça sentido” (ORLANDI, 1993, p. 13).
Nessa perspectiva, ao negar a concepção de silêncio como aquilo que não possui
sentido e buscando trazer a noção para um terreno essencialmente discursivo, a autora
24

estabelece a diferenciação entre silêncio e implícito, demonstrando que este apenas remete o
não-dito ao dito, diferentemente daquele que é, em si, a condição para a produção do dito, mas
também do não-dito e daquilo que pode vir (ou não) a significar.
Se nos fazemos entender em nossa interpretação da abordagem orlandiana sobre o
silêncio, estará claro que este é próprio princípio da significação por atravessar a materialidade
das palavras, colocando em evidência o fato de que os sentidos sempre podem ser outros. Nessa
perspectiva, o silêncio é a indicação de um todo significativo. Por essa razão, a autora o define
como silêncio fundador, espaço onde se sustenta um horizonte de sentidos, com múltiplas
possibilidades de significação.
Sendo assim definido, como a condição do dizível (dos sentidos possíveis), o silêncio,
na categoria de matéria histórica significante, integra a constituição de sujeitos e sentidos, uma
vez que em seu continuum abrem-se as possibilidades de significar e significar-se.
Paralelamente à noção de silêncio fundador, Orlandi (1993, p. 14) define “os modos
de se apagar sentidos, de se silenciar e de se produzir o não-sentido onde ele se mostra algo que
é ameaça”. Esses modos de instaurar um não-sentido, ou simplesmente, o silenciamento, a
autora denomina de política do silêncio que se define como o apagamento necessário de
sentidos possíveis, mas indesejáveis, quando enunciamos em uma situação discursiva
específica. Nessa política, o silêncio encontra duas diferentes formas de existência, sendo elas
o silêncio constitutivo e o silêncio local.
O silêncio constitutivo é o da ordem da produção de sentido, designando "o mecanismo
que põe em funcionamento o conjunto do que é preciso não dizer para poder dizer" (ORLANDI,
1993, p. 76). Ele trabalha nos limites das formações discursivas, estabelecendo o que deve ou
não ser dito e determinando a exclusão de certos não-ditos. O silêncio constitutivo, nessa
medida, estabelece recortes sobre o que se diz e o que não se diz. Dessa maneira, se diz "x" para
não se dizer "y", delimitando o sentido que se deve descartar.
No silêncio local, tem-se, efetivamente, a interdição do dizer. Essa forma do silêncio
constitui uma manifestação mais explícita do silenciamento em que a relação do sujeito com o
"dizível" é alterada na medida em que o "dizer possível" é transformado em "dizer devido",
excluindo, nesse movimento, os dizeres proibidos. Esse é o caso da censura que, como assinala
Orlandi (1993, p. 78), “não é um fato circunscrito à consciência daquele que fala, mas um fato
discursivo que se produz nos limites das diferentes formações discursivas que estão em
relação". Nessa perspectiva, a censura instaura uma produção de sentidos proibidos,
delimitando a inscrição do sujeito em determinadas formações discursivas. Desse modo, a
25

identidade do sujeito é drasticamente afetada, dada a proibição de que ele ocupe diferentes
lugares discursivos que possam fazê-lo produzir sentidos não autorizados.
É pensando nessa relação entre linguagem e censura que a autora introduz a noção de
língua-de-espuma definida como uma língua em que os sentidos não ecoam. Uma língua falada
pelas expressões totalitárias que trabalham o poder de silenciar, impedindo que sentidos e
sujeitos se desdobrem. No contexto brasileiro, explicita a autora, essa língua foi falada pelos
militares no período ditatorial que se instalou no país em 1964.
A língua-de-espuma, ao calar os sentidos, instaura um trabalho de asfixia, pois
interdita, manifestadamente, a possibilidade que o sujeito possa circular em diferentes espaços
de significação por meio das formações discursivas. O sujeito, assim, é destinado a ocupar “o”
lugar e não um lugar, dentre muitos possíveis. A rarefação do sentido, nessa perspectiva, é a
consequência da imposição de uma única forma de significar a sociedade, o que Orlandi (1993)
denomina de narcisia social.
A autora assinala, no entanto, que “se há um silêncio que apaga [os da instância da
política do silêncio], há um silêncio que explode os limites do significar [o silêncio fundador]"
(op. cit., p. 87). E, nessa dinâmica, o silêncio fundador proporciona um contínuo de significação
que, mesmo na censura, torna possível ao sujeito discursivo produzir sentidos, “fazendo
significar, por outros jogos de linguagem, o [...] que lhe foi proibido" (op. cit., p. 89), abrindo
espaço para o que a autora chama de retórica da resistência.
Desse modo, o sujeito responde ao silêncio local da censura através do silêncio
fundador, produzindo outros sentidos a partir de outras regiões do dizer. Em outras palavras, o
não-sentido (o proibido) acaba por ser dito de uma outra forma, exatamente pela movência dos
sentidos e suas sempre novas formas de significar.
É importante sinalizar que, embora esse estudo tenha se debruçado sobre o fato
histórico-linguístico da censura exercida pelo autoritarismo do regime militar, a autora chama
atenção para o fato de que pensar a censura em sua interface com o silêncio possibilita alargar
a noção para compreender “qualquer processo de silenciamento que limite o sujeito no percurso
dos sentidos” (op. cit., p. 13). É nessa compreensão que observamos o funcionamento da
censura no interior da política de asfixia do MESP através da interdição de sentidos que
atribuem à educação um caráter plural e democrático. Essa interdição, diferente da ditadura,
não se impõe pelo autoritarismo de um regime totalitário, mas pelas relações de força
simbolizadas no (pelo) discurso.
Partindo dessas considerações que problematizam o dizer e o calar, podemos concluir
que o silêncio é, ele mesmo, sentido, atravessando a multiplicidade de significações e, ao
26

mesmo tempo, podendo desempenhar a imposição do silenciamento. Ele está presente no calar
e no dizer: há uma relação necessária entre palavras e silêncio. É nessa reflexão que irrompe a
questão da política de significação, dado que o sentido se constitui na tensão entre o que
significa e o que não significa, entre o dito e o “a significar”, de forma que, nesse jogo, os
sentidos se dirigem a uma direção e não a outra, num tensionamento que atesta sua dimensão
política, isto é, dividida.
Nas palavras de Orlandi (1993, p. 111), o “silêncio está na base da divisão dos sentidos,
tendo consequências que se inscrevem na política do dizer”, isto é, na política de significação,
pelo fato de que seu funcionamento se dá entre o mesmo e o diferente, entre a paráfrase e a
polissemia, produzindo os efeitos contraditórios que emergem da relação entre o dito e o não-
dito.

1.3. O político no (do) discurso

Há uma distinção fundamental realizada em diversos estudos discursivos que é a


diferenciação/aproximação entre a política e o político. Particularizar teoricamente esses
conceitos é uma tarefa primordial para que se possa demarcar suas afinidades sem incorrer no
erro de tomá-los como sinônimos. É o que buscamos desenvolver nas linhas que seguem,
estabelecendo uma articulação entre trabalhos do campo discursivo e do filosófico, numa
tentativa de abordar discursivamente esses conceitos que, continuamente, são revisitados e
deslocados no interior das diferentes esferas do conhecimento.
Na teoria política aristotélica, existe uma definição clássica do homem enquanto zoon
politikon, isto é, animal político. Tal designação originou o que Arendt (2006) observa como
uma tradição de incompreensões que concebiam a política como sendo uma propriedade
inerente à essência humana. É nesse sentido que a autora evidencia o desacerto teórico
explicitando o fato de que a noção de politikon, a que se referia Aristóteles, não estava
relacionada à natureza do homem em si, não era uma característica intrínseca, já que o próprio
filósofo excluía dessa definição os escravos, bárbaros, asiáticos etc., rejeitando a ideia de uma
substância política inerentemente humana. A política, assim, não existia no homem, mas surgia
entre os homens. Nas palavras da filósofa, “a política surge no intra-espaço e se estabelece
como relação (ARENDT, 2006, p. 08).
Dessa relação entre homens, nasce a política enquanto convivência entre diferentes,
organizando “as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa em contrapartida
às diferenças relativas” (ARENDT, 2006, p. 08). A relativização da igualdade e da diferença
27

marca o traço caraterístico da pluralidade humana constituída por esse duplo aspecto da
igualdade/distinção. Em outro texto, a autora explica esse raciocínio afirmando que

Se não fossem iguais, os homens não poderiam compreender uns aos outros e os que
vieram antes deles, nem fazer planos para o futuro, nem prever as necessidades
daqueles que virão depois deles. Se não fossem distintos, sendo cada ser humano
distinto de qualquer outro que é, foi ou será, não precisariam do discurso nem da ação
para se fazerem compreender (ARENDT, 2017, p. 217).

É nesse sentido que igualdade e distinção são relativas, sendo o discurso e a ação 9
atividades políticas que revelam a distinção entre os homens. Nessa distinção, a autora afirma
que o sujeito jurídico se realiza na política “na forma de direitos iguais que os absolutamente
diferentes garantem uns aos outros. Essa garantia voluntária e essa outorga do direito à
igualdade jurídica reconhecem a pluralidade dos homens” (ARENDT, 2008, p. 146).
A pluralidade, dessa forma, é atestada na política que, por sua vez, só existe entre os
homens por meio do discurso e da ação. Quando perguntado sobre “quem é”, o homem se revela
tanto por suas palavras como pelos seus atos, distinguindo-se dentre os demais. Ação e discurso,
nessa medida, estão intimamente relacionados. Sem o discurso, lembra a autora, a ação perderia
seu caráter revelador, e ao mesmo tempo, o seu sujeito. Ela deixaria de ser ação, uma vez que
esta só se torna significativa por meio da palavra na qual o sujeito “se identifica como ator,
anuncia o que faz, fez e pretende fazer” (ARENDT, 2017, p. 221). Por outro lado, o discurso,
sem a ação, exerce um papel secundário de meio de comunicação ou de emissão de sons que
acompanham uma ação que poderia ser realizada silenciosamente.
É preciso, nesse ponto, efetuar um distanciamento necessário entre a perspectiva
discursiva, a qual nos filiamos, e a arendtiana, quanto às noções de discurso e sujeito. Em AD,
não consideramos esse vínculo constitutivo entre discurso e ação, mas entre discurso, língua e
ideologia. Nessa perspectiva, o discurso é concebido enquanto prática simbólica, efeito de
sentido entre locutores. O sujeito, por seu turno, não é um indivíduo dotado de intenções, mas
afetado pela ideologia e pelo inconsciente, atravessado pela falta, pela contradição.
Retornando ao conceito de política arendtiano, destacamos, ainda, o resgate da
tradição grega quando a autora define a política como liberdade. O sentido de liberdade, nesse
contexto, relaciona-se, em uma conotação positiva, a “um espaço que só pode ser produzido
por muitos, onde cada qual se move entre iguais” (ARENDT, 2006, p. 18). O exercício da

9
Para Arendt (2017, p. 09), a ação é a atividade política por excelência caracterizada por ser a “única atividade
que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas ou da matéria”, correspondendo “à condição
humana da pluralidade, ao fato de que os homens, e não o Homem, vivem na terra e habitam o mundo”. A
pluralidade, citada pela autora, é a condição específica de toda a vida política, no entanto, não é sinônimo de
alteridade, caracterizando-se pelo duplo aspecto igualdade/distinção.
28

política, desse modo, é o próprio exercício da liberdade que considera a pluralidade humana,
na coexistência com o diferente, presumindo movimentos de convergências/associações e/ou
divergências/disjunções.
Esse espaço comum, que é a liberdade de Aristóteles e de Arendt, pode ser aproximado
à cena comum pensada por Rancière (1996). Essa cena comum está na base da definição de
política rancieriana que corresponde, em uma primeira instância, ao “conflito em torno da
existência de uma cena comum” (RANCIÈRE, 1996, p. 39). Sob essa ótica, a política pressupõe
uma disputa que compreende os sujeitos e a situação a partir da qual enunciam. Buscando
compreender o caráter litigioso da política, o autor apresenta a noção de desentendimento,
concebido como uma situação de tomada de palavra em que os interlocutores se entendem e, a
um só tempo, desentendem-se. Para explicitar esse conceito, Rancière (1996, p. 11) elucida que

O desentendimento não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto.
É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco mas não entende a
mesma coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o
nome de brancura.

Pensando a definição numa esfera discursiva, elucida Cazarin (2013) que o


desentendimento opera quando, frente a um mesmo enunciado, palavra, proposição etc., os
interlocutores produzem sentidos diferentes a partir das formações discursivas nas quais estão
inscritos. Tomemos como exemplo o conflito entre o MESP e o MPCESP que, perante o mesmo
objeto – o ideário de educação nacional – produzem sentidos distintos sobre os princípios do
processo educacional. Tais princípios significam diferentemente para as duas posições
colocadas em jogo.
É importante destacar que, como ressalta Rancière (1996), o desentendimento não se
confunde com o desconhecimento, de modo que o litígio entre as partes não se dá pela falta de
conhecimento sobre o que o outro diz. O desentendimento também não pode ser compreendido
como um mal-entendido, uma vez que este pressupõe, segundo o autor, uma discordância
causada pela imprecisão das palavras. Imprecisão esta compreendida em AD como o fato
linguístico do equívoco (PÊCHEUX, 2006) que confere à língua abertura à falha, aos
deslizamentos.
Voltando à noção de desentendimento, diz Rancière (1996) que sua ocorrência se dá
porque um dos interlocutores não vê o objeto sobre o qual o outro fala, ou, de fato, o vê, mas
busca fazer com que o outro enxergue um objeto distinto sobre a mesma palavra. Voltemos ao
confronto discursivo entre os movimentos. O debate gerado em torno do ensino da teoria de
gênero nas escolas gerou uma querela, onde de um lado se via a possibilidade de promover um
29

ensino mais inclusivo e democrático, e, de outro, via-se a destruição da família e da moral. O


desentendimento, nesse caso específico, reside no fato de que sobre uma mesma palavra
(gênero), objetos diferentes foram mobilizados, isto é, sentidos diferentes foram produzidos.
Assim, ao passo que o MESP enxergava o objeto sobre o qual o MPCESP falava, buscava fazer
ver um outro objeto, e vice-versa.
O desentendimento, assim compreendido, explica a natureza da política enquanto
instituição do litígio entre as partes da sociedade (RANCIÈRE, 1996). Essa compreensão mais
complexa sobre política, tanto nesse autor como em Arendt (2006; 2008; 2017), contrapõe-se
ao que comumente se entende por essa noção, a que Rancière (1996, p. 41) denomina de polícia,
noção que define “o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o
consentimento das coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e
funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição”. A polícia, isto é, a noção ordinária
que se tem de política, também aparece nos escritos de Corten (1999) que a reduz à área
funcional especializada na qual se realizam as atividades políticas.
O político, por sua vez, é definido por Schmitt (2008) como construção da realidade
estabelecida pela discriminação entre amigos e inimigos. Tal discriminação tem a finalidade de
caracterizar o limite que demarca a associação ou desassociação entre sujeitos. No que tange
aos movimentos de desunião/dissenso, o autor esclarece a noção de inimigo político
demonstrando que este não pode ser pensado enquanto adversário privado, objeto de antipatia
pessoal, ou mesmo alguém que seja moralmente mau ou esteticamente feio. O inimigo é,
precisamente, “o outro, o desconhecido e, para sua essência, basta que ele seja, [...] algo
diferente e desconhecido, de modo que, em caso extremo, sejam possíveis conflitos com ele”
(SCHMITT, 2008, p. 28). Pensando discursivamente, o inimigo pode ser compreendido como
aquele que significa o mundo (e a si) diferentemente.
Nesse quadro da inimizade, o autor ainda salienta que, no interior de um conflito, o
diferente pode ser interpretado como sendo a negação da própria existência do outro. Nesse
aspecto, o diferente passa a ser combatido de modo que o outro assegure sua existência. O
político, desse modo, pressupõe a divergência. Para Schmitt (2008), mesmo as representações,
palavras e conceitos são considerados políticos quando possuem um sentido polêmico, isto é,
divergente. Tal afirmativa aproxima-se da concepção discursiva, segundo a qual, os sentidos
são, em sua constituição, marcadamente polêmicos, vez que encerram em si a possibilidade de
outras significações, podendo sempre ser outros.
O pensamento de Schmitt (2008), portanto, suscita a reflexão sobre a natureza do
político situando-o em um quadro de tensão que incorpora a divisão entre o amigo e o inimigo,
30

entre o dissenso e o consenso, entre o eu e o outro. Retornando a Corten (1999), dessa vez
quando o autor fala sobre o político, podemos identificar em seus escritos esse mesmo lugar de
tensão onde se embatem forças políticas. Na definição do autor, o político é entendido como
representação que compreende “a cena das forças políticas construídas pelo discurso”
(CORTEN, 1999, p. 37). Nesse sentido, o político é, ele mesmo, a cena produzida pelo discurso
em sua circulação.
A exemplo de Cazarin (2013), aproximamos essa noção de cena de representação do
político à cena discursiva de interlocução proposta por Maingueneau (1989), definida como
prática social em que os sujeitos realizam um ritual de linguagem. Essa cena discursiva é
tomada como lugar de tensão e confronto (INDURSKY, 2002), uma vez que, nesse ritual,
jogam as diferentes formações discursivas, os diferentes gestos de interpretação10.
Essa acepção do político enquanto cena discursiva é bastante produtiva para a AD,
uma vez que elege o discurso como lugar de representação onde relações de força se
estabelecem na disputa entre diversas versões sobre um mesmo objeto. Nessa perspectiva, o
litígio de que fala Rancière (1996) está, também, presente no político através do confronto, das
relações de força simbolizadas no/pelo discurso. O político, assim concebido, é o resultado “da
trama de diferentes processos discursivos atravessados pelo interdiscurso e recortados por
diferentes formações discursivas” (INDURSKY, 2002, p. 117).
Nesse prisma, o político pode ser atestado “no fato de que os sentidos têm direções
determinadas pela forma da organização social que se impõem a um indivíduo ideologicamente
interpelado” (ORLANDI, 2012, p. 34), isto é, inscrito em determinada FD. A Análise do
Discurso, desse modo, permite observar a textualização do político nas diferentes manifestações
de linguagem.
O político, em uma última definição, é a própria divisão. Os sentidos e os sujeitos
afetados pela língua e pela ideologia, são constitutivamente divididos: “divididos em si e entre
si” (ORLANDI, 2014, p. 27). Divididos em si porque sempre podem ser outros, e divididos
entre si porque, quando significam, entram em disputa com os demais sentidos, incluindo
aqueles que se deseja silenciar. Concluímos, assim, que a linguagem é, também, política, vez
que os sentidos, sempre cindidos em sua constituição, são dirigidos politicamente (inscrevem-
se numa política de significação), pressupondo o litígio.
Partindo desses pressupostos teóricos, embasamos nossa compreensão sobre o sentido
em sua dimensão política, buscando compreender o modo como os processos de significação

10
Ao aproximar as noções de interpretação e de gesto, Orlandi (2012) busca considerar “a interpretação como
prática simbólica, uma prática discursiva que intervém no mundo, que intervém no real do sentido” (p. 25).
31

são dirigidos no contexto do desentendimento entre o MESP e o MPCESP, em torno da


educação nacional.
32

2. DISPOSITIVO ANALÍTICO

[...] estando no entremeio, estamos suspensos


no plural, no movimento, na polissemia.

Eni Orlandi

Este capítulo abrange nosso dispositivo analítico, descrevendo as condições de


produção dos discursos em questão, bem como a construção do arquivo da pesquisa,
delimitação do corpus e procedimentos analíticos desenvolvidos.
Como já mencionado, situamo-nos, enquanto pesquisadores, no domínio das ciências
da interpretação. Assim sendo, assumimos um trabalho de entremeio que, frente à dispersão e
variança dos sentidos, não se pretende exato, mas teoricamente preciso. Lembra-nos Orlandi
(2013) que essa precisão teórica requer do analista a construção de um dispositivo analítico que
reúna teoria e método visando à compreensão do funcionamento de determinado discurso.
Embora o dispositivo não seja pré-estabelecido, deve contemplar procedimentos necessários
para chegar ao processo discursivo sob observação.
O ponto de partida é a definição de uma questão e objetivos de ordem discursiva que
orientem o pesquisador “na construção do fato que ele vai analisar, determinando assim as
características do material simbólico que ele submeterá à sua observação” (ORLANDI, 2013,
p. 81). Seguindo essa orientação, definimos nossa pergunta da seguinte forma: Qual o modo de
funcionamento das políticas de asfixia e de resistência no contexto da disputa pelos sentidos
da educação brasileira? A partir desse mote, buscamos compreender o funcionamento dessas
políticas de significação, descrevendo seus processos discursivos, levando em conta os efeitos
de sentido e posições-sujeito neles implicados.
Definida a questão e os objetivos, passa-se à constituição do corpus que deve ser
organizado a partir de suas propriedades discursivas de modo a responder ao questionamento
levantado pelo analista. Com relação ao nosso corpus, o processo de sua constituição e
procedimentos para análise estão descritos nas seções 2.2 e 2.3 deste capítulo.
O passo seguinte deve consistir na passagem da superfície linguística para o objeto
discursivo. Nesse momento, leva-se em consideração o processo de enunciação, isto é, procura-
se compreender as condições de produção, buscando identificar “o como se diz, o quem diz,
em que circunstâncias etc.” (ORLANDI, 2013, p. 78). Nessa de-superficialização, o material
linguístico passa a objeto discursivo servindo de observatório para que o pesquisador
identifique o modo como determinado discurso se textualiza. Essa etapa está descrita nas
seções 2.1.1 e 2.2.2 onde delineamos as condições de produção dos discursos do MESP e do
33

MPCESP, destacando as circunstâncias sócio-históricas, politicas e ideológicas a partir das


quais esses discursos são produzidos.
Concluídos os passos, chega-se à passagem do objeto para o processo discursivo. É o
ponto em que, efetivamente, inicia-se a análise da discursividade, fazendo-se necessário um
constante ir-e-vir entre teoria, corpus e gesto analítico a partir dos vestígios que o texto oferece.
Passa-se, assim, “do delineamento das formações discursivas para sua relação com a ideologia,
o que nos permite compreender como se constituem os sentidos desse dizer” (ORLANDI, 2013,
p. 67). Essa etapa compreende o movimento de análise aqui empreendido e desenvolvido nos
capítulos III e IV.

2.1. Condições de produção dos discursos em confronto

Diz Pêcheux (1969 [2014, p. 76]) que “um discurso é sempre pronunciado a partir de
condições de produção dadas”. Daí a inviabilidade de tomá-lo como um elemento fechado em
si, sendo necessário referi-lo ao “conjunto de discursos possíveis a partir de um estado definido
das condições de produção” (ibid, p. 78). Assim, é preciso estabelecer relações entre o discurso
analisado e o já dito, ou seja, é necessário demarcar suas filiações de sentido na cadeia do
interdiscurso, a partir de condições de produção específicas. Tais condições são definidas pelo
autor como um mecanismo de colocação dos protagonistas e do objeto de discurso. Em outros
termos, como aponta Orlandi (2014), as condições de produção (CP) funcionam como um
objeto simbólico que traz a reboque os sujeitos e a situação, levando em conta a memória do
dizer.
A autora ainda salienta que as CP podem ser consideradas em seu sentido restrito,
referente às circunstâncias da enunciação, e num sentido lato, que corresponde à exterioridade
constitutiva (interdiscurso e conjuntura sócio-histórica, política e ideológica). Pensadas desse
modo, as CP integram a constituição do discurso, e não apenas o seu contexto de produção.
Neste tópico, em particular, apresentamos as condições de produção dos discursos do
MESP e do MPCESP em seu sentido lato. Nas análises propriamente ditas, faremos menção às
circunstâncias da enunciação das sequências discursivas sob observação (sentido restrito das
CP). Seguindo essa organização, descrevemos, a seguir, as condições sócio-históricas, políticas
e ideológicas a partir das quais os discursos dos movimentos são produzidos, evidenciando seus
lugares de filiação na complexa rede do interdiscurso.

2.1.1 Condições de produção do discurso do MESP


34

O efeito de início do discurso do MESP emergiu no ano de 2003, a partir de uma


indignação pessoal do advogado Miguel Nagib,11 que relata ter ouvido de sua filha que seu
professor de história havia comparado o guerrilheiro Ernesto Che Guevara a São Francisco de
Assis, por ambos terem dedicado suas vidas em função de um ideal. Na compreensão de Nagib,
"as pessoas que querem fazer a cabeça das crianças associam as duas coisas e acabam dizendo
que Che Guevara é um santo" (NAGIB, 2016). Esse fato o teria convencido da necessidade de
combater o que ele nomeia de doutrinação político-ideológica (ou doutrinação de esquerda) nas
escolas. Assim, cria, em 2004, o Movimento Escola sem Partido que, de modo a combater os
“doutrinadores”, propõe afixar cartazes nas salas de aula contendo seis “deveres” do professor,
segundo os quais, o docente não tratará de política em suas aulas, nem poderá expor suas
opiniões e convicções ideológicas, religiosas, morais e partidárias no exercício de sua função.
O “verdadeiro” professor, nesse sentido, deve apresentar uma postura neutra frente à política e
à sociedade.
O movimento, no entanto, só obteve visibilidade nacional anos depois de sua fundação,
quando passou a ser um porta-voz da agenda conservadora do país, ganhando mais adeptos e
se envolvendo em debates polêmicos sobre assuntos concernentes à educação e aos direitos dos
pais sobre a educação de seus filhos. A primeira grande polêmica que conferiu mais visibilidade
ao movimento aconteceu no ano de 2011, quando o MESP, juntamente com deputados da base
conservadora12 da Câmara, como Jair Bolsonaro (PSC/RJ), encabeçou um intenso
enfrentamento ao kit lançado pelo Ministério da Educação do governo Dilma Rousseff,
composto por um conjunto de filmes e cartilhas contra a homofobia, que seriam distribuídos
nas escolas para promover a conscientização dos alunos. O principal argumento levantado pelo
movimento foi o de que o material serviria como instrumento do Partido dos Trabalhadores
(PT), ao qual a então presidenta é filiada, para promover a doutrinação de esquerda,
disseminando o “gayzismo e o bissexualismo” e estimulando “crianças a partir de 9 e 10 anos
a fazerem sexo”13.
Em 2014, a votação do Projeto de Lei nº 13.010/2014, hoje a já sancionada Lei Menino
Bernardo (ou “Lei da Palmada”), também gerou um intenso debate, uma vez que alterava o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), acrescentando a proibição do castigo físico e do

11
Miguel Nagib é procurador do estado de São Paulo e coordenador/fundador do Movimento Escola sem Partido.
12
Entendemos por base conservadora ou bancada conservadora o grupo de parlamentares brasileiros vinculados a
partidos e frentes parlamentares mobilizadas a combater o avanço de pautas referentes à conquista/manutenção de
direitos sociais ligados a grupos minoritários, como homossexuais, negros, mulheres etc. Essa base busca
conservar o modelo da família tradicional e os princípios religiosos enquanto pedras angulares da política e da
organização social.
13
Trechos retirados do artigo escrito por Sandro Guidalli para o Portal Fé em Jesus e reproduzido no site do MESP.
35

tratamento cruel ou degradante a crianças e adolescentes. Novamente articulados, MESP e


bancada política conservadora, opuseram-se à alteração do ECA sob alegação de que, caso
aprovada, o Estado impediria que os pais disciplinassem seus filhos da maneira que achassem
mais adequada.
Nesse contexto, o MESP passou a ganhar visibilidade no cenário político nacional,
alinhando-se a parlamentares de filiações conservadoras. Através dessa relação, surgiu o
primeiro Projeto de Lei baseado nas propostas do MESP, que teve sua origem a partir de um
anteprojeto elaborado por Miguel Nagib atendendo à solicitação do deputado estadual Flávio
Bolsonaro (Partido Social Cristão/RJ). Trata-se do PL nº 2974/2014 que propõe a criação do
programa Escola sem Partido no âmbito do sistema de ensino do estado do Rio de Janeiro. Com
isso, o discurso do movimento passou a se amparar na argumentação jurídica para disseminar
suas posições de defesa da autoridade dos pais sobre seus filhos, combatendo o que chamam de
“doutrinação ideológica”. A partir de então, diversas versões do mesmo Projeto passaram a
tramitar na Câmara e em Assembleias Legislativas de todo o país, chegando ao Senado Federal
no ano de 2016, com o Projeto nº 193/201614, assinado pelo senador Magno Malta (Partido da
República/ES), que propõe a inclusão do Programa Escola sem Partido entre as Diretrizes e
Bases da Educação Nacional.
É importante assinalar que esses fatos não ocorriam de forma isolada, mas articulados
a uma conjuntura sócio-histórica de intensa polarização que se acentuou com o período da crise
política no Brasil, iniciada em 2013 com a diluição dos propósitos das jornadas de junho,
passando pelos protestos pró-impeachment de 2015 e chegando ao Golpe de 2016. Nessa
conjuntura, a polarização a que nos referimos foi resultado de uma cena construída por parte
expressiva da classe política juntamente ao que Souza (2016) chama de parceiros do golpe: o
complexo jurídico-policial do Estado e a mídia conservadora. Esta última responsável por
incutir na classe média dois sentimentos decisivos: o protagonismo heroico na “luta contra a
corrupção” e o ódio ao Partido dos Trabalhadores (ou o antipetismo), através da manipulação
dos acontecimentos de modo a personificar o espectro corrupto na figura dos representantes do
PT, sobretudo Dilma e Lula. O complexo jurídico-policial, por seu turno, promoveu, segundo
o autor, uma espetacularização das investigações, permitindo vazamentos seletivos e adotando

14
Em novembro de 2017, o senador Magno Malta retirou o PL de tramitação no Senado por uma questão
estratégica: tendo o relator do Projeto, Cristovam Buarque (Partido Popular Socialista, PPS), apresentado relatório
por sua rejeição, o PL possuía poucas chances de ser aprovado. Sendo assim, o senador optou por tirá-lo de
tramitação e aguardar sua aprovação na Câmara dos Deputados para que chegasse com mais força ao Senado
Federal. Ver declaração do senador sobre o assunto em: https://www.youtube.com/watch?v=M6YkTTangyQ.
36

procedimentos claramente interessados em desmantelar o PT e todo o ideal de “reforma social”


que ele representa.
Ainda pelas lentes de Souza (2016) é possível admitir que, nesse cenário, a mídia
tradicional ao mesmo tempo que engendrou o golpe, ainda construiu para si um lugar de
“representante do povo” – um povo também selecionado: a classe média conservadora que,
vestida de verde e amarelo, saia às ruas pelo combate ao PT, sendo legitimada pela mídia como
“cidadãos de bem”, ordeiros e pacíficos. Por outro lado, manifestantes que denunciavam o golpe
– aqueles que usavam vermelho – eram designados pela mídia como “militantes”,
“sindicalistas”, nunca como legítimos manifestantes. Construiu-se, desse modo, o cenário da
polarização: mocinhos contra vilões, conservadores contra progressistas, direita contra
esquerda, uma oposição maniqueísta popularmente conhecida como o embate entre “coxinhas
x petralhas”. Esse antagonismo foi tão fortemente produzido nessa conjuntura que marcou e
vem marcando o modo de identificação dos sujeitos na esfera política brasileira.
Com o golpe ainda em curso, a classe média conservadora, inebriada pelos efeitos da
manipulação midiática, viu-se protagonista de um momento histórico, orgulhando-se de sua
posição e de suas demandas, descortinando, sem embaraço, o seu ódio aos pobres e às políticas
de inclusão (SOUZA, 2016). Essa parcela da sociedade, cada vez mais segura de si, alavancou
o crescimento do conservadorismo no campo político brasileiro. Segundo levantamento do
Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar15, após as eleições de 2014, o país passou
a apresentar o Congresso mais conservador desde 1964.
Possuindo maior representatividade na Câmara, grupos conservadores da sociedade,
incluindo políticos, juristas, líderes religiosos, empresários e parte da sociedade civil,
organizaram-se de modo a impor suas pautas através de protestos, lobbies e articulações
políticas, resultando numa forte onda reacionária contra as políticas de ampliação e manutenção
de direitos sociais que já vinham se consolidando como bases para alcançar a cidadania, desde
o período de redemocratização, sobretudo com a Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Carvalho (2017) ressalta que, embora com algumas frustrações, o retorno à
democracia, pós 64, foi marcado por claros avanços dos direitos civis, sociais e políticos
advindos da CF/88. Entre esses avanços, o autor cita a restituição do direito à liberdade de
expressão, de imprensa e organização – este último possibilitou o surgimento do Movimento
dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) que reforçou a democratização do sistema na
medida em que, enquanto grupo tradicionalmente marginalizado, conseguiu “adentrar” na arena

15
Ver em http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,congresso-eleito-e-o-mais-conservador-desde-1964-
afirma-diap,1572528
37

política, reivindicando seu direito à terra e ao trabalho. Outro avanço importante trazido pela
CF/88 foi a criminalização do racismo e da tortura como crime inafiançável e não anistiável,
conquistas imprescindíveis para a manutenção dos direitos humanos e sociais.
Em se tratando de educação, a Constituição Cidadã propiciou a luta contra as
desigualdades e a universalização dos direitos, ganhando uma forte aliada em 1996 com a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que garantia, no
âmbito educacional, a valorização das diferenças, o apreço à tolerância, incluindo, em 2013, a
diversidade étnico-cultural. Seguindo essa perspectiva, os Parâmetros Curriculares Nacionais
(1997) apresentam para o Ensino a noção de Temas Transversais, firmando o compromisso de
“uma prática educacional voltada para a compreensão da realidade social e dos direitos e
responsabilidades em relação à vida pessoal, coletiva e ambiental” (BRASÍLIA, 1997, p.15).
Tais temas deveriam atravessar o ensino das disciplinas, contemplando, entre outras questões,
o tema da orientação sexual, entendida como natural e inerente à vida e à saúde, necessitando
ser abordada em sala de aula para tratar de temáticas como as relações de gênero 16 e o respeito
a si e ao outro, de modo a superar “tabus e preconceitos ainda arraigados no contexto
sociocultural brasileiro” (op. cit., p. 287).
Desde então, temas como sexualidade, raça e cultura se consolidaram nos documentos
oficiais e diretrizes educacionais como tópicos necessários à educação e formação de cidadãos.
Contudo, em 2014 – na conjuntura conservadora antes descrita – o tema da sexualidade na
educação foi revisitado num grande debate nacional em função das metas estipuladas pelo Plano
Nacional de Educação (PNE) que versavam sobre a redução das desigualdades e a valorização
da diversidade, trazendo à baila a questão das relações de gênero.
O tema foi vetado do PNE (2014/2024) como resultado da pressão de bancadas
conservadoras e religiosas que se opuseram a abordagens pedagógicas do que passaram a
chamar de “ideologia de gênero”, na concepção de que o trabalho com esse conteúdo em sala
de aula tinha apenas a finalidade político-ideológica de deturpar “os conceitos de homem e
mulher, destruindo o modelo tradicional de família” (CARVALHO, 2015)17. A partir desse
momento, os Projetos de Lei inspirados no MESP passaram a acrescentar às suas formulações
a proibição do ensino da “ideologia de gênero” nas escolas.

16
Na perspectiva do documento, as relações de gênero abarcam questões concernentes à sexualidade, a identidade,
bem como à violência de gênero.
17
Ver em http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2015-12-26/exclusao-de-genero-do-plano-nacional-de-
educacao-e-retrocesso-diz-educador.html
38

Em 2017, o mesmo debate foi levantado com a votação da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC) que passa a nortear as aprendizagens essenciais à formação do estudante da
Educação Básica. Nesse contexto, MESP, bancada conservadora e intelectuais de direita, como
o professor Olavo de Carvalho, encabeçaram uma forte campanha para retirar do texto da
BNCC qualquer referência às questões de gênero e orientação sexual, obtendo êxito e fazendo
com que o Conselho Nacional de Educação (CNE) removesse do documento trechos que
fizessem menção a esses temas. Além da interdição às menções a gênero, o documento
aprovado incluiu orientações sobre ensino religioso nas escolas.
Vale constar que o MESP continuou a criticar a presença da “ideologia de gênero” nas
escolas, afirmando que a simples retirada da temática no documento não impediria que a mesma
estivesse nas salas de aula. Mantiveram, assim, os esforços para invisibilizar, no âmbito escolar,
problemáticas sociais concernentes não só às relações de gênero, mas aos avanços dos direitos
de minorias sociais.
Com o avanço das vozes conservadoras na conjuntura brasileira, incluindo a voz do
MESP, tornou-se visível o entendimento de que a garantia dos direitos humanos funciona como
“uma fórmula que concede proteção indevida a pessoas com comportamento antissocial”
(MIGUEL, 2016, p. 592). Nesse cenário, os interesses de minorias como mulheres, negros e
população LGBT 18 voltaram a ser cada vez menos representados e até mesmo questionados, o
que evidencia um processo contemporâneo de recuo na história da nossa democracia.
Esse refluxo democrático tem atravessado o discurso do MESP por meio de um
constante combate ao que chamam de “imposição do politicamente correto”. O assunto trouxe
à tona a obrigatoriedade do respeito aos direitos humanos na redação do Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM). Segundo o edital do certame, o candidato que desrespeitasse os direitos
humanos teria sua redação anulada. O MESP, então, que há algum tempo já se posicionava
contra a determinação, moveu uma ação civil pública em outubro de 2017 alegando que a norma
não apresentava critério objetivo, mas um caráter de policiamento ideológico que coibia a
manifestação do livre pensamento19. O argumento foi aceito pelo Supremo Tribunal Federal,
que suspendeu a regra em questão. Marcou-se, nesse sentido, a possibilidade de sujeitos
ingressarem no Ensino Superior defendendo a interdição aos direitos do outro, do diferente –
reflexos de uma memória ditatorial que ressoa no discurso do MESP e de seus apoiadores.

18
Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
19
Ver em https://g1.globo.com/educacao/enem/2017/noticia/justica-suspende-regra-que-zera-redacao-do-enem-
com-desrespeito-aos-direitos-humanos.ghtml
39

Mais influências dessa memória podem ser observadas no posicionamento do MESP


em estabelecer fortes articulações entre líderes do movimento e a família Bolsonaro20 que tem
por principal representante o deputado federal Jair Messias Bolsonaro (PSC/RJ), nacionalmente
conhecido por suas declarações machistas, racistas, homofóbicas e de apoio a
ditadores/torturadores. Outro vestígio que parece aproximar o MESP da memória da ditadura
está nas diversas justificativas dos projetos de lei “Escola sem Partido” que apresentam,
basicamente, o mesmo texto, segundo o qual, os professores e autores de livros “doutrinadores”,
têm, nos últimos vinte ou trinta anos, aproveitado-se de suas aulas e obras para “fazer com que
eles [os alunos] adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral
sexual” (BRASÍLIA, 2014, p.05). O espaço de tempo descrito (vinte ou trinta anos) corresponde
ao período posterior ao ciclo militar, o que sugere a insatisfação do MESP com relação à fase
da educação brasileira decorrente da redemocratização.
É nessa conjuntura sócio-histórica e ideológica onde circula o discurso do Movimento
Escola sem Partido, levantando bandeiras como a neutralidade no ensino, combate à
“doutrinação de esquerda”, rejeição à abordagem pedagógica sobre gênero nas escolas; direito
à autoridade da família e defesa de valores morais/religiosos no âmbito escolar. Ao defender
essas questões, o discurso do MESP se vincula a uma formação discursiva conservadora e,
sobretudo, fundamentalista21 por trabalhar de modo a refrear a laicização e secularização da
sociedade, fazendo retornar a religião como princípio norteador da organização social,
excluindo o lugar do político, da divergência, do sentido outro.
Esse movimento de retorno do religioso encontra eco em diversos lugares do mundo,
a partir de diferentes vozes, épocas e conjunturas socioculturais que se entrecruzam na rede da
memória discursiva. Dizeres já-lá que clamam pela primazia da moralidade religiosa em
detrimento do avanço democrático, filiando-se às mesmas regiões do interdiscurso.
Exemplares desses dizeres podem ser observados nos discursos de movimentos como
o Macarthismo e o Moral Majority, ambos de origem norte-americana. O primeiro foi
conhecido por uma forte repressão política aos comunistas/esquerdistas promovida pelo
senador republicano Joseph McCarthy na década de 1950. À época, as principais suspeitas eram
direcionadas, sobretudo, às categorias dos professores, artistas e sindicalistas – muitos
perseguidos sob acusação de serem filiados ou simpatizantes de ideais de esquerda. O segundo,

20
Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=uy4vMMbuv7w;
https://www.youtube.com/watch?v=MO5zpjnmZLQ; https://www.youtube.com/watch?v=BlAksR5b-q8.
21
Entendemos essa noção pela ótica de Künzli (1995, p. 66) segundo o qual o fundamentalismo é um movimento
de retorno à origem, à tradição. É “a tentativa fanática de uma compensação [...] da ‘perda de Deus’ na nossa
modernidade desencantada, desmitologicizada”.
40

surgido no final dos anos 1970 e responsável por eleger candidatos republicanos como Ronald
Reagan e Bush (pai e filho), foi caracterizado por um programa de “rearmamento moral”
contrário à “legislação dos Estados que permitem o aborto e a emancipação das mulheres em
geral, contra manifestações públicas e os direitos dos homossexuais, contra as leis que afetam
a autoridade dos pais [...]” (SCHLEGEL, 2009, p. 105).
O retorno desses sentidos de perseguição à esquerda e combate aos direitos das
minorias se atualizam na conjuntura contemporânea brasileira, e marcam a crescente dominação
do conservadorismo e do fundamentalismo na esfera sociopolítica, alastrando-se para o campo
educacional através do discurso do MESP e sua política de asfixia que interdita, censura e
restringe os sujeitos e os sentidos sobre a educação nacional. Contudo, como elucida Pêcheux
(1975 [2014]), se há dominação, há, também, resistência. Acrescentamos, com Orlandi (1993),
que a resistência aparece onde trabalha a censura. E é sobre a resistência ao discurso do MESP
que trataremos nas linhas que seguem.

2.1.2. Condições de produção do discurso do MPCESP

Com a disseminação do Movimento Escola sem Partido e seus Projetos de Lei, em


2014, alunos, professores, entidades e associações do setor educacional passaram a se articular
produzindo um discurso de resistência ao movimento. No ano de 2015, surgiram algumas das
primeiras textualidades institucionais de enfrentamento ao MESP: um conjunto de manifestos,
notas e moções22 que passou a circular em sites e redes sociais. Ainda no mesmo ano, o
professor Fernando Penna, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense
(UFF), juntamente com membros do corpo docente e discente da instituição, fundou o
movimento Liberdade para Educar que, em seguida, cedeu espaço ao Movimento Professores
contra o Escola sem Partido (MPCESP). Por uma questão estratégica, resolveram “adotar um
nome que fosse um contraponto” (PENNA, 2017b), chamando a atenção das pessoas que
buscassem se informar sobre o MESP e os PL por ele orientados.
Organizado institucionalmente, o MPCESP passou a problematizar as propostas e
ações do MESP, mediante participação em debates, seminários e audiências públicas sobre os
PL Escola sem Partido, além de oferecer, em seu blog e em sua página de Facebook, um espaço
de discussão e monitoramento geral de propostas de políticas públicas norteadas pelo
movimento. Em consonância com a resistência do MPCESP, também foram criadas, em 2016,

22
Parte desses manifestos está reunida em dossiê organizado pelo site Marxismo21. Link para acesso:
https://marxismo21.org/escola-sem-partido/
41

Frentes23 de combate ao que denominaram “Lei da Mordaça”, denunciando o MESP e seus PL


na compreensão de que estes se constituíam como um mecanismo ditatorial de silenciamento
docente.
De forma geral, as mobilizações dos movimentos de resistência ao MESP, incluindo o
MPCESP, eram de enfrentamento direto aos Projetos de Lei que apresentavam o combate à
“doutrinação ideológica nas escolas”. Esses Projetos, no entanto, foram incorporando, como
vimos, a proibição ao tratamento pedagógico da chamada “ideologia de gênero”. Nesse
contexto, que incluía as votações do PNE e da BNCC, o MPCESP passou a denunciar o uso do
tema “gênero” para fins políticos a partir da instauração de um “pânico moral” causado pela
desinformação ao afirmar que “a discussão de gênero tem como objetivo destruir a família
tradicional, ensinar sexo para as crianças, etc.” (PENNA, 2017b).
O discurso do MPCESP, nessa perspectiva, foi assumindo um caráter pedagógico
buscando esclarecer controvérsias sobre o ensino de gênero nas escolas, bem como sobre a dita
“doutrinação ideológica”, de modo a oferecer contrapontos aos argumentos do MESP,
reiterando e ampliando os valores democráticos e pluralistas da educação, através de
publicações em seu blog e página do Facebook. Além desses espaços de circulação, o MPCESP
se utilizou da produção de textos acadêmicos24 publicados em livros e periódicos que traziam
à tona o discurso do Movimento Escola sem Partido e suas implicações para a educação
nacional.
Dentre esses textos acadêmicos, estão o livro Escola “sem” Partido – Esfinge que
ameaça a educação e a sociedade brasileira, organizado pelo professor da UERJ, Gaudêncio
Frigotto, no ano de 2017, e a coletânea de artigos intitulada A ideologia do movimento Escola
Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso, organizada pela Ação Educativa Assessoria no
ano de 2016. Os textos, em geral, apresentam uma orientação progressista que aponta para a
necessidade de combate ao MESP, entendido como ameaça à educação nacional.
Outra publicação relevante, nessa perspectiva, é o artigo do professor Fernando Penna
(2017a) intitulado “Escola sem Partido” como ameaça à Educação Democrática: fabricando
o ódio aos professores e destruindo o potencial educacional da escola, que problematiza a

23
Frente Nacional Escola Sem Mordaça, Frente Nacional contra o Projeto ESP, entre outras.
24
Alguns desses textos estão reunidos no site do movimento Professores contra o Escola sem Partido, disponível
em: <https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/documentos/>. Além dos textos do professor
Penna estão outras referências importantes como a dissertação da professora Fernanda Pereira de Moura,
apresentada, em 2016, ao Curso de Mestrado Profissional do Programa de Pós-graduação em Ensino de História
do Instituto de História da UFRJ, que analisa os Projetos de Lei do tipo Escola sem Partido observando-os enquanto
“mecanismos de contenção que agem em conjunto com os mecanismos de imposição (ensino religioso e moral e
cívica) contra os avanços da laicidade do estado e da secularização da cultura (MOURA, 2016, p. 05).
42

burocratização do ensino – subjacente ao discurso do MESP – na redução da figura do professor


a um replicador de conteúdo, transformando a educação em um mero processo se instrução. O
artigo ainda objetiva "compreender como o Mesp se aproveita de circunstâncias conjunturais
para fomentar o medo e, consequentemente, o ódio aos professores" (PENNA, 2017a, p. 248).
A tese do ódio aos professores tem sido defendida com bastante ênfase pelo professor Penna
em palestras e trabalhos acadêmicos através da análise de textualidades publicadas pelo MESP
que, de forma direta ou indireta, incitam o ódio à figura do professor, imputando-lhe uma
imagem de violador dos direitos dos estudantes.
O ódio aos professores, em particular, tem sido uma das maiores preocupações do
movimento, uma vez que, como o próprio nome indica, trata-se de uma mobilização de
professores contra o MESP. Nesse sentido, o MPCESP fala em nome do sujeito-professor,
defendendo a posição de educador comprometida com uma educação plural e democrática.
Com base nessa concepção de educação, o MPCESP decidiu assumir uma postura mais
propositiva que ultrapassasse a simples oposição, fundando em 29 de junho de 2017 associação
Movimento Educação Democrática (MED).
Desloca-se, então, a posição do MPCESP que, associado ao MED, passa a não apenas
enfrentar o MESP, reiterando valores e princípios educacionais já estabilizados, mas ampliando
a concepção de educação ao propor um modelo cujos princípios estão baseados na defesa da
laicidade, pluralidade e gratuidade de uma educação nacional capaz de articular as dimensões
da qualificação, socialização e subjetivação dos estudantes25.
Buscando reafirmar e ampliar valores democráticos que hoje se encontram ameaçados
e interditados pelo discurso mespiano, o MPCESP resiste à asfixia, inscrevendo-se na rede de
memória da educação crítica, marcada por dois principais acontecimentos discursivos: a
Constituição de 1988, e a LDB, que, como realçamos anteriormente, projetam um ideário de
educação democrática e engajada na luta contra as desigualdades. Outras discursividades
também se inscrevem nessa rede de memória, como as chamadas tendências pedagógicas
progressistas, onde há o reconhecimento do caráter social e político da educação (ARANHA,
2006) e, portanto, da impossibilidade de neutralizar o processo de ensino-aprendizagem. Nessas
tendências estão os pressupostos da Pedagogia Libertadora, que toma a neutralidade como mito
e agente despolitizante da prática educativa (FREIRE, 1989), e da Pedagogia da Autonomia,
que apregoa a rejeição a qualquer forma de discriminação e respeito ao saber e à autonomia dos
educandos (FREIRE, 1996).

25
Ver em: https://www.facebook.com/moveducacaodemocratica/videos/1916943675232308/
43

Outra vertente das tendências progressistas, que reverbera no discurso do MPCESP é


a Pedagogia Crítico-Social que concebe o processo educativo a partir de sua relação com as
realidades sociais. O professor adepto a essa prática precisa intervir no processo de
aprendizagem de maneira que os conteúdos por ele ministrados tenham ressonância na vida dos
educandos, fazendo com que possam compreender suas realidades para, posteriormente,
transformá-las (LIBÂNEO, 1995).
A partir dessa filiação discursiva, marca-se, assim, o funcionamento de uma política
de resistência à asfixia da educação. Resistência porque, frente à interdição e apagamento de
sentidos concernentes à pluralidade em sala de aula, o MPCESP toma posição em favor da
educação crítica, procurando reiterar seus valores e princípios sobre inclusão, diversidade e
pluralidade, na busca por promover a circulação de diferentes sentidos e formas de
subjetivação/identificação no espaço escolar.

2.2. Constituição do corpus e construção do arquivo

Previne Mazière (2007) que o corpus discursivo não se caracteriza como um


aglomerado estanque de textos, mas um conjunto de materialidades reunidas em função de
certas regularidades, nas quais irrompe o interdiscurso. Em conformidade com as regularidades
observadas nos discursos do MESP e do MPCESP no que tange à temática sobre os sujeitos da
educação nacional e seus objetos de ensino, delimitamos nosso corpus a partir da construção
de dois arquivos específicos, sendo o Arquivo I concernente à política de asfixia do discurso do
MESP e o Arquivo II referente à política de resistência do discurso do MPCESP.
O arquivo, em AD, é definido como um “campo de documentos pertinentes e
disponíveis sobre uma questão” (PÊCHEUX, 1994 [2014, p. 59]). É no arquivo onde se
inscrevem os efeitos materiais das discursividades. Construí-lo, portanto, é trabalho do analista
que, em função de seus objetivos de pesquisa e segundo o seu gesto de leitura, organiza essa
materialidade dispersa, definindo o corpus que será analisado.
Organizamos, pois, o Arquivo I reunindo materialidades dispersas em três espaços de
significação representativos do discurso do MESP: 1º) Os Projetos de Lei nº 7.180/2014 e nº
867/2015, que dentre tantos outros, textualizam, a partir de um discurso jurídico, as proposições
do Movimento Escola sem Partido; 2º) Vídeos que divulgam os debates sobre os PL “Escola
sem Partido”, realizados em audiências públicas na Câmara dos Deputados ou em Assembleias
Legislativas do país; e 3º) Dizeres de representantes/apoiadores do MESP que circulam de
modo mais fluido na internet, por meio de postagens no Facebook do movimento, em sites,
portais de notícias, blogs e vídeos publicados no YouTube.
44

A partir desses espaços de significação, reunimos as seguintes materialidades: dois


Projetos de Lei; uma entrevista publicada em um portal de notícias; seis vídeos postados no
YouTube; duas publicações retiradas do site do MESP; um cartaz compartilhado na página do
Facebook do movimento; e quatro imagens/montagens publicadas também no Facebook, sendo
uma retirada da página pessoal de Miguel Nagib e três da página oficial do movimento Escola
sem Partido.
Para o Arquivo II, observamos os seguintes espaços de significação: 1º) Primeiras
materialidades institucionais de oposição ao MESP, compostas, majoritariamente, por notas,
manifestos e moções de repúdio ao movimento; 2) Gravações de debates sobre os PL “Escola
sem Partido”, nos quais o MPCESP se pronuncia em audiências públicas; 3) Pronunciamentos
de representantes/apoiadores do MPCESP que circulam na internet por meio do YouTube,
Facebook, sites, blogs e portais de notícias.
Desses três espaços, então, retiramos as seguintes materialidades: duas moções de
repúdio ao Escola sem Partido; uma entrevista divulgada no YouTube; uma matéria publicada
em um portal de notícias; dois debates: um, realizado em um canal de televisão e outro
divulgado em um blog, sob a forma de podcast; duas gravações de audiências públicas postadas
no YouTube; um artigo de opinião publicado em um portal de notícias; duas publicações do site
do MPCESP; um cartaz divulgado no Facebook do movimento e mais três imagens também
retiradas do Facebook.
Por essa diversificação de textos, nosso corpus pode ser classificado como do tipo
complexo, conforme nomeia Courtine (2014), uma vez que é heterogêneo, composto por
sequências discursivas (SD) diversas, produzidas por diferentes sujeitos, em diferentes
situações enunciativas, não seguindo necessariamente uma ordem cronológica.

2.3. Procedimentos analíticos

De modo a operacionalizar a análise, definimos, para cada arquivo, três recortes


discursivos que funcionam como “fragmentos da situação discursiva” (ORLANDI, 1984, p.
14), possibilitando a observação das políticas de significação dos movimentos no que concerne
aos três eixos “temáticos” já mencionados: (1) O que (não) pode/deve ser ensinado na escola;
(2) Quem o aprendiz (não) pode/deve ser; e (3) Quem (não) pode/deve ensinar.
No caso do Arquivo I, os recortes foram organizados da seguinte forma: 1) Asfixia dos
objetos de ensino (AO); 2) Asfixia do sujeito-aprendiz (AA); 3) Asfixia do sujeito-professor
(AP). Para o Arquivo II, consideramos os recortes: 1’) Resistência à asfixia dos objetos de
45

ensino (RAO); 2’) Resistência à asfixia do sujeito-aprendiz (RAA) e, 3’) Resistência à asfixia
do sujeito-professor (RAP).
É importante elucidar o fato de que, como defende Grigoletto (2002), os recortes que
realizamos não equivalem ao procedimento de segmentação utilizado na linguística, como se o
discurso pudesse ser dissecado, ou compartimentado para se chegar à sua compreensão. O
recorte é, sobretudo, uma porção indissociável do processo discursivo em sua relação com a
memória do dizer, tornando-se o observatório da produção discursiva.
Descritos os procedimentos analíticos da pesquisa, passemos ao nosso gesto de
interpretação que busca compreender a produção dos sentidos no interior da disputa que
tensiona o imaginário sobre a educação nacional, colocando em jogo a política de asfixia do
MESP e a política de resistência do MPCESP.
46

3. A POLÍTICA DE ASFIXIA NO DISCURSO DO MESP

[...] a situação típica da censura traduz


exatamente esta asfixia: ela é a interdição
manifesta da circulação do sujeito, pela decisão
de um poder de palavra fortemente regulado.

Eni Orlandi

Neste capítulo, analisamos a política de asfixia no discurso do MESP, entendida, de


modo geral, como um processo engendrado por uma discursividade conservadora, que produz
o efeito de esvaziamento político e moralização da educação, o que nos parece ser um sintoma
do esquecimento da política em proveito da moral, caracterizado pela substituição das funções
e dos deveres da política, como prática que visa ao bem comum, por funções e deveres
orientados por princípios morais específicos (WOLFF, 2007).
Observaremos, pois, esse processo discursivo a partir dos recortes relativos à asfixia
dos objetos de ensino (AO), à asfixia do sujeito-aprendiz (AA) e à asfixia do sujeito-professor
(AP).

3.1. A asfixia dos objetos de ensino: o que (não) pode/deve ser ensinado

Propomos pensar a asfixia dos objetos de ensino no discurso do MESP como um


processo discursivo de despolitização e cristianização da relação de ensino-aprendizagem a
partir dos efeitos de interdição/censura de abordagens pedagógicas que problematizam
questões concernentes às esferas políticas e socioculturais, bem como efeitos de
restrição/redução dos sentidos sobre o que pode e deve ser ensinado na escola. Tais efeitos
inscrevem o discurso sob análise em uma política de silenciamento que põe em evidência o
confronto entre MESP e MPCESP em torno do imaginário sobre a educação nacional.
Iniciamos nosso gesto analítico evocando o termo “Ideologia de gênero”,
frequentemente utilizado por representantes do MESP ao discutirem questões relacionadas à
abordagem pedagógica de temas como gênero e sexualidade na escola. Há controvérsias sobre
o lugar de onde a expressão se originou e quando passou a encontrar ressonância no Brasil.
Contudo, é possível indicar uma série de publicações em livros26 e em redes sociais, bem como

26
Alguns exemplos: Você sabe o que é ideologia de gênero?, escrito por Felipe Aquino; Identidade de gênero e a
crise de identidade sexual, escrito pelo padre Rafael Solano; Ideologia de gênero, organizado por Ives Gandra e
Pedro Carvalho; Famílias em perigo: o que todos devem saber sobre a ideologia de gênero, e-book escrito por
Marisa Lobo, entre outros.
47

em vídeos27 que circulam na internet, entre outras materialidades, que popularizaram o termo
alertando para os males promovidos pela “ideologia de gênero”, como, por exemplo, a
“destruição” da família tradicional. As vozes que alertam sobre o tema são constituídas,
majoritariamente, por lideranças religiosas e conservadoras. Entre elas, está o advogado
argentino José Rafael Scala que publicou o livro Ideologia de Gênero: neototalitarismo e a
morte da família, lançado no Brasil em 2011. De acordo com o advogado, as ideologias
constituem um feixe de ideias orientadas por um princípio sempre falso, ilusório, que se impõe
por meio do sistema educacional e da publicidade.
Sob esse ponto de vista, produz-se sentidos sobre a ideologia na condição de embuste,
enganação, aproximando-se da perspectiva napoleônica que a concebeu como doutrina
fantasiosa perigosa à ordem, e da visão de Marx e Engels (1974) que a definiram enquanto
realidade invertida, mecanismo de alienação. Vista por esse ângulo, a expressão ideologia de
gênero se justificaria pelo argumento de que há uma imposição de uma falsa teoria cujo
princípio básico é o de que

o sexo seria o aspecto biológico do ser humano, e o gênero seria a construção social
ou cultural do sexo. Ou seja, que cada um seria absolutamente livre, sem
condicionamento algum, nem sequer o biológico -, para determinar seu próprio
gênero, dando-lhe o conteúdo que quiser e mudando de gênero quantas vezes quiser
(SCALA, 2012).

Essa compreensão bastante difundida pelo MESP28, indica a produção de um efeito


metafórico, uma “substituição contextual” (PÊCHEUX, 1969 [2014 p. 96]), que marca a
passagem de teoria para ideologia de gênero, não equivalendo a uma relação de sinonímia, uma
vez que os referentes dos lexemas não são os mesmos: a designação teoria, utilizada pelos
pesquisadores de gênero, é legitimada por remeter a um valor científico; ao passo que a
ideologia, empregada no discurso de Scala e do MESP, equivale a uma doutrina ilusória.
O gesto de interpretação do advogado, que faz derivar os sentidos de teoria para
ideologia, desloca os postulados da Teoria de Gênero do interior de sua formação discursiva –
historicamente filiada a um modo progressista de fazer ciência, articulada a movimentos sociais,
como o Movimento Feminista –, e os importa para uma formação discursiva conservadora,
reacionária ao ideal de igualdade e de respeito às diferenças, produzindo uma outra deriva, não
tão evidente, que é a passagem de determinação para opção. Nessa mudança de FDs,

27
Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=7jyereeXn2A; https://www.youtube.com/watch?v=CD8hh85C9A
I; https://www.youtube.com/watch?v=KtjXD2PbHTc&t=60s; https://www.youtube.com/watch?v=GmLEg9QP9
LE; https://www.youtube.com/watch?v=xdLYvuJHuR8; https://www.youtube.com/watch?v=7l348rFl7_o;
https://www.youtube.com/watch?v=ir-bFmGZgB8.
28
Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=F-8BxIIhdrA
48

ocasionada pelo gesto interpretativo, apaga-se o sentido de gênero enquanto


construção/determinação, fixando-lhe o sentido de conteúdo/opção (“cada um seria
absolutamente livre, sem condicionamento algum, nem sequer o biológico -, para determinar
seu próprio gênero, dando-lhe o conteúdo que quiser”).
Nesse ponto, é preciso situar, brevemente, o posicionamento teórico que atravessa os
Estudos de Gênero. Embora seu caráter social já fosse uma questão problematizada pelos
chamados estudos da mulher29, a categoria gênero só passa a ser concebida, como tal, anos
depois, num primeiro movimento de diferenciação entre gender e sex, empreendido por
estudiosas feministas anglo-saxãs, dentre as quais, citamos Joan Scott que evidenciava em seus
estudos "o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo" (SCOTT, 1995,
p.72). Sob esse ponto de vista, um preceito básico passa a sustentar esse quadro teórico: o
entendimento de que o gênero não constitui um elemento definido biologicamente, mas
construído socialmente. Assim,

Para que se compreenda o lugar e as relações de homens e mulheres numa sociedade,


importa observar não exatamente seus sexos, mas sim tudo o que socialmente se
construiu sobre os sexos. O debate vai se constituir, então, através de uma nova
linguagem, na qual gênero será um conceito fundamental (LOURO, 2003, p. 21).

O gênero, assim concebido, assume o atributo de categoria de análise sociocultural,


funcionando como observatório das práticas sociais e históricas que determinam o que é
masculino e feminino. Sob esse ponto de vista, portanto, o gênero não constitui uma opção ou
um conteúdo que pode ser facilmente modificado, como afirma Scala, mas uma determinação
sócio-histórica que escapa aos moldes binários e heteronormativos, tendo em vista que, entre o
masculino e o feminino, há diferentes espaços de subjetivação/identificação que podem ser
ocupados pelos sujeitos a depender da forma como são afetados pelas determinações
socioculturais, tanto em relação à sua identidade quanto ao que constitui seu objeto de desejo.
Assim, a deriva de determinação para opção, marca um desencontro com os
pressupostos teóricos dos Estudos de Gênero, criando, desse modo, uma outra maneira de
pensar o conceito (como opção), o que atesta a contradição constitutiva da noção de ideologia
de gênero que tem origem no interior da própria formação discursiva que a rejeita, numa lógica
shelleyana em que o criador despreza a criatura. Esse fenômeno ocorre dado o traço
característico de toda FD em apresentar heterogeneidade em relação a si mesma, evocando “o
‘outro’ sentido que ela não significa” (ORLANDI, 1993, p. 21).

29
Estudos que emergiram com o desdobramento da Segunda Onda do Movimento Feminista, iniciada na década
de 60. À época, estudiosas passaram a problematizar a desigualdade entre os gêneros a partir de publicações como
Le deuxième sexe, de Simone Beauvoir (1949) e Sexual politics, de Kate Millett (1969).
49

Além do termo “ideologia de gênero”, trazemos à baila duas outras noções mobilizadas
no discurso do MESP, recorrentemente marcadas em relação de antagonismo: doutrinação e
neutralidade. No site do movimento, é possível encontrar inúmeras referências ao que chamam
de doutrinação ideológica nas escolas, como a que destacamos a seguir:

É fato notório que, nos últimos 30 anos, um número cada vez maior de professores e
autores de livros didáticos vem-se utilizando de suas aulas e de suas obras para
doutrinar ideologicamente os estudantes, visando à formação e propagação de uma
mentalidade social favorável a partidos e organizações de esquerda. Sob o pretexto de
transmitir aos estudantes uma “visão crítica” da realidade, esses professores e autores
se prevalecem da liberdade de cátedra, da cortina de segredo das salas de aula, da
imaturidade, da inexperiência e da falta de conhecimento dos alunos para impingir-
lhes a sua própria visão de mundo, quase sempre identificada com a perspectiva
marxista (ESCOLA SEM PARTIDO, 2018).

Fazendo equivaler “doutrinação” e “ensino crítico”, o MESP estigmatiza trabalhos


pedagógicos que abordem perspectivas socialmente engajadas, representando-as enquanto
práticas de inculcação das ideias de “esquerda”. A presença da Teoria de Gênero no ensino,
aliás, constitui, para o movimento, um instrumento dessa doutrinação. A neutralidade, desse
modo, figura nesse discurso como uma fórmula profilática à prática doutrinária que pretendem
combater:
Nossa proposta se baseia (A) no princípio constitucional da neutralidade política e
ideológica do Estado -- que impede que a máquina do Estado seja colocada a serviço
desse ou daquele partido, dessa ou daquela corrente política e ideológica; e (B) na
liberdade de consciência dos estudantes (obviamente, se os alunos são OBRIGADOS
a assistir às aulas de um professor, esse professor não pode se aproveitar dessa
circunstância para tentar fazer a cabeça dos alunos, para tentar transformá-los em
réplicas ideológicas de si mesmo; se fizer isso estará violentando a liberdade de
consciência dos alunos) (ESCOLA SEM PARTIDO, 2018).

Buscando, pois, compreender o modo como o MESP mobiliza as noções de “ideologia


de gênero”, doutrinação e neutralidade, produzindo a asfixia dos objetos de ensino, voltamo-
nos ao primeiro espaço de significação que integra o Arquivo I: Projetos de Lei que, em
referência direta ou indireta ao MESP, propõem a incorporação dos preceitos do movimento no
sistema educacional. De modo mais específico, compõem o Arquivo I dois desses Projetos que
receberam parecer favorável pela Comissão de Educação, da Câmara dos Deputados, em maio
de 2018. São eles: PL nº 7.180/2014 e um de seus apensados, o PL nº 867/2015, que possuem
em comum a proposta de alteração do artigo 3º da LDB, relativo aos princípios da educação
nacional.
Iniciamos a análise tomando a textualidade do PL nº 867/2015, Projeto que leva o
nome do Escola sem Partido. O PL, de autoria do deputado federal Izalci Lucas (PSDB/DF),
foi apresentado à Câmara em março de 2015 e constitui uma das muitas versões do anteprojeto
50

de lei elaborado por Miguel Nagib30, ao qual fizemos referência no capítulo anterior. Sua
proposição é a de incluir entre as diretrizes e bases da educação nacional o Programa Escola
sem Partido que, em linhas gerais, consiste em uma proposta educacional defensora de um
ensino pretensamente neutro.
O Projeto é constituído por nove artigos que dispõem sobre i) os princípios que o
MESP procura instituir para a educação; ii) a proibição de atividades pedagógicas que possam
entrar em conflito com as convicções morais e religiosas dos pais; iii) deveres do professor; iv)
afixação de cartazes na escola que exponham tais deveres, e, por fim, v) a criação de um canal
de denúncias anônimas para delações de possíveis práticas de doutrinação.
Um fator importante a mencionar sobre o Projeto é o acréscimo de uma série de novos
princípios educacionais, além da ocultação daqueles já consolidados pela LDB e pela
Constituição Federal, como a pluralidade de concepções pedagógicas; valorização do
profissional da educação escolar; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as
práticas sociais; e o direito de ensinar, pesquisar, divulgar a arte, a cultura e o saber31. Dentre
os princípios acrescentados pelo Projeto, estão a neutralidade política, ideológica e religiosa
do Estado; liberdade de consciência e de crença; reconhecimento da vulnerabilidade do
educando como parte mais fraca na relação de aprendizado; e direito dos pais a que seus filhos
recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
Esse duplo movimento de acréscimos e retiradas de princípios educacionais já sinaliza,
de pronto, para a política de asfixia do discurso do MESP, uma vez que silencia sentidos que
politizam e pluralizam o espaço escolar e, a um só tempo, restringe o processo educacional,
condicionando-o à neutralidade e a valores morais e religiosos das famílias. Retornaremos a
esses princípios e demais artigos do Projeto ao longo das análises, de modo a observar o
processo discursivo de asfixia dos objetos de ensino e dos sujeitos da educação (professor e
aprendiz). Por ora, dirigimos nossa atenção à asfixia dos objetos de ensino, recortando do PL
as a SD.

SD1: Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e
ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que

30
Tal anteprojeto tem passado por diversas reformulações desde que veio a público, circulando por meio da internet
(nos sites e páginas do Facebook do MESP) e nos debates sobre os PL. Embora tenha sofrido algumas mudanças
textuais, o anteprojeto conservou as proposições do MESP, reproduzindo, quase que integralmente, o teor de suas
primeiras versões.
31
Dos princípios da educação nacional presentes na LDB, ainda foram excluídos do PL: igualdade de condições
para o acesso e permanência na escola; respeito à liberdade e apreço à tolerância; coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino; gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; gestão democrática do
ensino público; garantia de padrão de qualidade; valorização da experiência extra-escolar e consideração com a
diversidade étnico-racial (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013).
51

possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou


responsáveis pelos estudantes (BRASÍLIA, 2015).

O próprio modo como o discurso se textualiza, isto é, na forma de uma lei,


imaginariamente imparcial e justa, marca o funcionamento de uma discursividade jurídica que
produz para si um lugar neutro, não afetado por processos ideológicos. A evidência da
neutralidade é ainda produzida na SD1 pela censura de práticas de doutrinação política e
ideológica e de conteúdos/atividades que possam entrar em conflito com as convicções
religiosas ou morais de pais/responsáveis dos estudantes. Com efeito, no plano da transparência
do sentido, o discurso parece imparcialmente preocupado com práticas docentes intolerantes e
impositivas que venham a ferir as crenças e convicções dos estudantes e de seus familiares.
Contudo, se considerarmos a opacidade das expressões “doutrinação política e ideológica” e
“convicções religiosas ou morais” veremos que estas são irremediavelmente equívocas.
Frente a essa equivocidade, pode-se questionar: O que significa doutrinar política e
ideologicamente? Que conteúdos e atividades podem entrar em conflito com as convicções
religiosas e morais dos familiares? Que convicções são essas? E as convicções dos estudantes?
São as mesmas dos pais? Perguntas que podem ser respondidas de múltiplas maneiras, a partir
de inscrições em diferentes formações discursivas. Temos, assim, que doutrinação política e
ideológica, bem como convicção religiosa e moral podem apresentar diversos referentes,
atestando o fato de que “as palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo
as posições sustentadas por aqueles que as empregam” (PÊCHEUX, 1975 [2014, p. 146-147]).
Localizando, pois, a posição-sujeito a partir da qual essas expressões são enunciadas,
isto é, a posição conservadora e fundamentalista do MESP, inscrita na FD cristã, observamos
que, conforme apontamos anteriormente, a doutrinação política e ideológica, a qual o artigo do
PL faz referência, diz respeito às práticas pedagógicas que contemplam conteúdos de cunho
político e sociocultural que, de algum modo, possam vir a tensionar convicções religiosas e
morais dos familiares. Tais convicções, de modo análogo, não possuem referentes vazios, mas
se inscrevem na FD do MESP, sendo, assim, convicções cristãs e conservadoras. E é exatamente
a partir dessa posição que o movimento se coloca como porta-voz dos familiares dos estudantes,
produzindo um efeito de indistinção desses sujeitos, como se todos os pais estivessem
identificados no lugar de onde fala o MESP.
Evidencia-se, portanto, o fato de que, embora esfumada pelo efeito de neutralidade, a
interdição do MESP, no que se refere aos objetos de ensino, realiza-se pela designação de
doutrinação política e ideológica práticas docentes engajadas socialmente. Estigmatiza-se,
desse modo, qualquer prática escolar voltada a problemáticas sociais, coibindo-as em nome de
52

valores religiosos e morais. Assim, o efeito de neutralidade produzido pelo MESP na proibição
da “doutrinação” e respeito às “convicções dos pais” funciona de modo a silenciar e interditar
uma maneira específica de se pensar a educação. Determina-se, desse modo, o que não
pode/deve ser ensinado: temáticas que tensionem os saberes do cristianismo e do
conservadorismo, como por exemplo, a temática da homossexualidade. Logo, o que pode/deve
se constituir enquanto objeto de ensino fica subordinado à moral e à religião cristã, produzindo
o efeito fundamentalista de primazia do religioso sobre o laico, da moral familiar sobre o
processo educacional. Esse funcionamento marca o que Wolff (2007, p. 76) chama de
“esquecimento da política em proveito da moral”, onde não se espera da prática política boas
ações concernentes a valores democráticos, mas boas ações em matéria de moral. Assim, a luta
política contra as discriminações, cede lugar à luta em favor da moralidade, como é possível
observar na SD2, recortada do artigo 1º do PL 7.180/2014 que acrescenta aos princípios da
educação o

SD2: XIII – respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os


valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos
relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou
técnicas subliminares no ensino desses temas (BRASÍLIA, 2014).

O PL 7.180/2014 é assinado pelo deputado federal Erivelton Santana, filiado ao partido


Patriota (PATRI) e representante do Estado da Bahia. Santana é pastor evangélico ligado à
igreja Assembleia de Deus e compõe a base conservadora da Câmara. O PL em questão foi
apresentado pelo pastor em fevereiro de 2014. Trata-se de um texto curto, que propõe
acrescentar um único inciso ao artigo 3º da LDB: o inciso XIII, em destaque na SD2, a partir
do qual é possível observar explicitamente aquilo que não pode/deve ser ensinado, isto é, a
educação moral, sexual e religiosa.
Evidenciamos, nessa materialidade, o funcionamento de uma discursividade
fundamentalista na produção do efeito de prevalência dos valores familiares sobre a educação
escolar, fazendo-se impor o privado sobre o público, e interditando, no âmbito escolar,
temáticas importantes para o respeito à diversidade.
Ainda nessa perspectiva de interdição a temas que envolvam questões sobre
sexualidade e religiosidade, analisamos a SD3, retirada do segundo espaço de significação do
Arquivo I, referente ao debate público sobre os PL Escola sem Partido. O trecho em análise
materializa a fala de Miguel Nagib em audiência pública promovida pela Comissão de
Educação da Câmara dos Deputados em junho de 2017. O objetivo da audiência era discutir
53

sobre a presença de temas como orientação sexual, religião e gênero na Base Nacional Comum
Curricular (BNCC).
SD3: Quando, por exemplo, o currículo, ou um professor, por sua própria iniciativa,
utiliza seu cargo e o espaço da sala de aula para defender que ninguém nasce
homem... e que as pessoas se tornam... nem homem, nem mulher... e isso é uma
construção cultural [...] e dessa premissa decorrem outras consequências de
natureza moral, de natureza moral. E consequências, conclusões que se chocam
com alguns princípios fundamentais da moralidade cristã. Então, ao promover
esta visão dentro do sistema educacional, o Estado está deixando de ser neutro em
relação à moralidade cristã e, portanto, está ferindo o princípio da laicidade do Estado
que é um princípio constitucional (NAGIB, 2017a).

A SD3 recupera a reivindicação do MESP pela neutralidade do Estado no que se refere


à educação. Destacamos aqui um funcionamento que marca uma relação contraditória entre
laicidade e religiosidade, uma vez que, sob o pretexto de garantia da neutralidade, submete-se
a Educação ao ponto de vista da moral cristã, justificando assim a censura à temática da
identidade de gênero.
Convém ressaltar que o princípio da laicidade instaura a separação entre Estado e
religião, de modo que os diferentes credos não interfiram na política/administração do país. O
que ocorre na SD3, no entanto, é a produção de um efeito de distorção desse princípio, como é
possível observar no trecho “ao promover esta visão dentro do sistema educacional, o Estado
está deixando de ser neutro em relação à moralidade cristã32 e, portanto, está ferindo o princípio
da laicidade do Estado”. Produz-se, nessa formulação, um deslizamento de sentido do
significante “laicidade”: de indiferença do Estado em relação à religião (neutralidade), desliza-
se para reverência (subordinação) a valores morais religiosos. Assim, converte-se a ausência da
religião na escola em presença necessária. Eis o efeito ideológico fundamental do discurso
mespiano: a conversão da educação em religião; do conhecimento em dogma ou valor moral,
sob a evidência da reivindicação por neutralidade.
A exigência de um ensino neutro, desse modo, funciona como mecanismo de
silenciamento das questões de gênero na escola. Verifica-se, assim, uma tomada de posição do
MESP pela moralidade cristã, produzindo o efeito de primazia do religioso sobre o laico,
embora no plano da evidência, a laicidade esteja sendo reivindicada. Os objetos de ensino, desse
modo, ficam representados como lugares de repetibilidade de normas universais religiosas

32
Entendemos a moral como um conjunto de saberes de determinada formação discursiva, produzindo um efeito
de universalidade para os sujeitos e os sentidos. Por isso, a moral “expressa a tentativa de manter o mesmo, o
desejável, e conter o diferente, o indesejável” (GRANTHAM, 1999, p. 213). Com relação às questões de gênero e
sexualidade, há, no interior da Formação Discursiva Cristã, a determinação moral de que o gênero é definido pelo
sexo biológico e que a única configuração legítima para as relações afetivas e sexuais é o par homem e mulher.
Qualquer outra forma de existência do sujeito que se insurja a essa ordem é considerada pecaminosa, passível de
punição. Por essa razão, a ideia de aceitação da diversidade de gênero é interditada no interior da FD Cristã, e,
portanto, censurada no discurso mespiano.
54

ligadas à heteronormatividade, impondo ao discurso escolar um lugar único para se falar de


determinados temas. Há assim um processo de despolitização e cristianização do processo
educacional, num movimento que subverte o princípio da laicidade.
A pretensão do MESP de subordinar a educação à moral familiar/religiosa, mediante
interdição de certos temas, também pode ser observada no modo como o movimento aborda a
questão da homofobia, como podemos observar na SD4, recortada de uma entrevista feita com
Miguel Nagib para o portal eletrônico HuffPost Brasil:

SD4: O Estado pode fazer uma política contra homofobia usando os meios de
comunicação. O Estado tem uma verba bilionária para isso. Ele vai fazer propaganda
na televisão porque ninguém é obrigado a assistir essas propagandas. Na sala de
aula é diferente porque o pai é obrigado a colocar o filho na escola (NAGIB, 2017b).

A interdição à temática da homofobia na escola emerge na SD4 a partir de um efeito


de desresponsabilização da escola frente a problemáticas sociais. Ao definir que os meios de
comunicação constituem o espaço adequado para a divulgação de políticas contra a homofobia
porque ninguém é obrigado a assistir, o discurso do movimento acaba por restringir o combate
à homofobia a uma questão opcional. Este efeito de desresponsabilização fica mais evidente
quando se considera que o Plano Nacional de Educação (PNE) tem como meta a “superação
das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de
todas as formas de discriminação” (BRASIL, 2017, p. 32).
O efeito de desresponsabilização da escola no combate à discriminação traz à tona um
outro, o de supremacia de objetos de ensino que contemplem saberes técnicos, pondo em
evidência uma concepção de educação enquanto instrução, a serviço da
conservação/reprodução da estrutura social. É o que se pode observar a partir da SD5:

SD5: [...] essa nefasta ideologia de gênero, esse lixo que atrasa o Brasil e que faz as
nossas crianças aqui emburrecerem porque enquanto aqui a gente fica aprendendo
esse tipo de besteira, na Coreia do Norte, no Japão, os alunos lá estão com doze anos
de idade, fazendo contas que os nossos universitários não fazem. Então, senhor
presidente, temos, sim, que aprovar essa lei, colocá-la adiante pra acabar com esse
tipo de besteira e ensinar que na escola é lugar de aprender matemática, física,
biologia para que sejam bons profissionais e boas pessoas em suas casas porque
uma família que não tem problema, ela é rentável ao Estado (BOLSONARO, 2016).

A SD5 foi recortada de uma fala do deputado federal do estado de São Paulo, Eduardo
Bolsonaro, em uma Comissão de Educação, realizada na Câmara dos Deputados. As
formulações dessa SD colocam em jogo uma suposta divisão entre conteúdos ideológicos e
conteúdos neutros, a qual redunda num processo de restrição/redução dos sentidos dos objetos
de ensino e numa concepção de escola como lugar de instrução de conteúdos “não
55

ideologizados”, isto é, conteúdos técnicos, imaginariamente estáveis, transparentes e neutros.


Note-se que a SD5 reforça o efeito de deslegitimação produzido na SD3 quanto à abordagem
pedagógica dos estudos de gênero, definida agora como ideologia de gênero, “nefasta”, “lixo”
e “besteira”; por outro lado, legitima os objetos de ensino ligados ao campo profissional-
técnico. Com isso, contorna-se o caráter material do sentido e, portanto, dos objetos de
conhecimento que, como observa Pêcheux (1990), se inscrevem em espaços discursivos não
logicamente estabilizados, dando margem a interpretações divergentes ou contraditórias. Nessa
perspectiva, a polissemia do processo de ensino-aprendizagem é sufocada pela instrução.
Diante do que precede, podemos postular a filiação da SD5 a uma FD neoliberal da
educação, que significa o processo de ensino-aprendizagem como reprodutor das relações de
produção capitalistas. O vestígio dessa filiação está nas expressões “bons profissionais” e
“rentáveis para o Estado”, que representam a escola como lugar de formação de profissionais
bem adaptados às relações de trabalho/exploração capitalistas, das quais o Estado é parceiro.
Por essa razão, na SD5, o tratamento pedagógico de temas como gênero e orientação sexual
figura como um desfalque na educação, por não ser um conteúdo “neutro”, nem técnico e,
portanto, não rentável, emburrecendo os alunos e atrasando o Brasil.
Analisando, ainda, os efeitos de interdição à chamada “ideologia de gênero”,
recorremos ao terceiro espaço de significação que integra o Arquivo I, de onde retiramos um
vídeo divulgado no YouTube que veicula a fala de uma das representantes do MESP, Bia Kicis.

SD6: [...] Gente, o que é importante aqui? Entrou aqui a palavra gênero, no sentido
de diversidade sexual, quando o Plano Nacional de Educação, né, vetou, vetou o
termo gênero. Ou seja, o Congresso Nacional, ao votar a lei, o Plano Nacional de
Educação, proibiu o uso dessa teoria, da ideologia de gênero. Que todo mundo já
conhece. Que é tão nefasta para as crianças. Que deixa as crianças perturbadas.
Essa ideologia que diz que criança não nasce menino, nem menina. Então, assim, a lei
proibiu. E o MEC, né, por intermédio do presidente da república agora, por um
decreto, está enfiando goela abaixo dos brasileiros essa ideologia de gênero. [...]
Ministro, tome pulso nessa situação. Revogue. Consiga que o presidente da
república altere esse decreto. Revogue, extirpe do decreto esse artigo 25, inciso II
porque isso é ilegal, é imoral e afronta a vontade soberana do povo (KICIS, 2017).

A SD em destaque recorta a fala da procuradora do Distrito Federal, Bia Kicis. O


contexto imediato de produção do seu dizer remete à homologação do Decreto nº 9.005, de
março de 2017, assinado pelo então presidente Michel Temer. Em seu inciso II, artigo 25, o
documento apresenta uma perspectiva educacional de respeito à diversidade de gênero e
orientação sexual, contrariando o MESP e opositores da ideologia de gênero que se viam
vitoriosos com a retirada de qualquer menção ao termo no PNE (2014-2024).
56

Um aspecto importante na fala da procuradora – e que ressoa no discurso do MESP de


uma forma geral – é o de que a expressão ideologia de gênero passa a designar não apenas os
Estudos de Gênero, mas, também, qualquer perspectiva política/pedagógica que coloque em
pauta questões sobre gênero e sexualidade com vistas ao combate às desigualdades e violências.
Nesse contexto, o objeto de indignação da procuradora reside na aparição da palavra
“gênero no sentido de diversidade sexual”. Note-se que, ao longo da argumentação, o seu dizer
estabelece uma relação parafrástica entre gênero, diversidade sexual e ideologia de gênero,
produzindo o efeito de equivalência entre os vocábulos no plano semântico. Em seguida, a
advogada atribui à chamada ideologia de gênero a adjetivação de nefasta, permitindo-nos inferir
que, no interior desse discurso, também gênero e diversidade sexual possuem sentidos ligados
ao nefasto/pernicioso.
A nocividade a que se refere Bia Kicis está direcionada às crianças que, a seu ver,
ficam confusas e perturbadas com relação a sua identidade e orientação sexual, em face a uma
abordagem pedagógica sobre diversidade sexual e de gênero. Aqui, novamente, o gênero e a
sexualidade aparecem como opção e não como determinação. O apelo à figura da criança, aliás,
é uma constante no discurso do MESP que se vale de um efeito de “defesa” da infância para
produzir seu discurso contrário ao tratamento das questões de gênero na escola, marcando uma
oposição entre gênero/ideologia de gênero/diversidade sexual x criança.
Ao recorrer ao imaginário de infância que ativa sentidos já-lá referentes à pureza e
inocência, o discurso do MESP, textualizado na fala de Bia Kics, produz um antagonismo
maniqueísta onde, de um lado está a criança pura e inocente e, de outro, a confusão, a
nefasticidade promovida pela ideologia de gênero. Considerando a relação de paráfrase já
mencionada, evidenciamos o fato de que essa dicotomização promove um efeito de
deslegitimação e negação de uma abordagem pedagógica sobre diversidade sexual e de gênero
na escola.
Esse efeito é ainda potencializado por outra dicotomia construída na SD6 que é a
oposição entre Ministério da Educação (MEC) e povo brasileiro: “O MEC [...] está enfiando
goela abaixo dos brasileiros essa ideologia de gênero”. Nesse sentido, produz-se uma cena
onde o Estado exerce seu poder impondo uma perspectiva educacional que contraria “a vontade
soberana” dos brasileiros. O MESP simula aqui a posição de porta-voz do povo, produzindo a
impressão de que fala “diante dos seus e parlamenta com o adversário” (PÊCHEUX, 1982
[1990, p.17]). Como se vontade do MESP e vontade do povo confluíssem para uma única
direção: a rejeição ao tratamento da diversidade sexual e de gênero nas escolas. O confronto
estabelecido pode, então, ser deslizado de MEC x povo para gênero x povo. Cria-se, nesse
57

aspecto, um efeito de consenso, de “rejeição em massa” que confere legitimação ao


posicionamento do movimento, e, a um só tempo, deslegitima e nega um ensino que considere
o tema em questão. A produção do consenso é estratégica, por ser “considerada um ideal para
solucionar satisfatoriamente os conflitos sociais, pela instituição de um nós coletivo"
(ORLANDI; ALCALÁ, 2008, p.11).
Os processos discursivos até aqui evidenciados são articulados no discurso do MESP
de modo a justificar uma interdição explícita à abordagem das questões de gênero no ensino
formal. Obedecendo a esse funcionamento é que o dizer da procuradora engendra processos de
deslegitimação, negação e rejeição, para então instaurar a censura do tema. Nesse sentido,
destacamos, ainda na SD6, a solicitação da enunciadora de que o ministro da educação “tome
pulso nessa situação” e faça com que o presidente “altere”, “revogue” e “extirpe” do decreto o
inciso II do artigo 25. As formas imperativas tome (tome pulso) e faça revelam uma
ordem/súplica de que o ministro atenda ao protesto fazendo com que o presidente
altere/revogue/extirpe do documento o inciso que traz à tona o termo gênero.
Nesse caso, a censura se faz entrever a partir do uso de três formas verbais em seu
modo subjuntivo (“que o presidente da república altere, revogue e extirpe”) que, no plano da
evidência, parecem fazer referência apenas ao inciso, abrindo, no entanto, um espaço equívoco
em que o objeto da alteração, revogação e extirpação é também a diversidade sexual e de gênero
na escola. Nesse pedido de extirpação do sentido indesejado, é possível observar não apenas o
desejo de silenciá-lo, mas de aniquilá-lo, evidenciando um discurso de ódio que será
problematizado mais à frente, quando nos debruçarmos sobre a asfixia do sujeito-professor.
Similarmente, a equivocidade encontra lugar no uso do dêitico “isso” utilizado no
trecho “porque isso é ilegal, imoral e afronta a vontade soberana do povo”. Na cadeia
intradiscursiva33 que se estabelece na formulação destacada, o isso remete, a um só tempo, ao
inciso, mas também ao jogo parafrástico que se dá entre gênero, ideologia de gênero e
diversidade sexual. Temos, assim, que o inciso, o gênero, a ideologia de gênero e a diversidade
sexual são ilegais, imorais e afrontam a vontade soberana do povo. Desse modo, soma-se aos
outros processos discursivos já elencados os efeitos de criminalização e desmoralização do
tratamento da diversidade sexual na escola.
Por esses processos, pois, chega-se à interdição que se materializa no pedido de
extirpação da “ideologia de gênero”. Assim, a política de asfixia dos objetos de ensino é posta

33
O intradiscurso corresponde ao eixo horizontal do dizer, é o “eixo da formulação, isto é, aquilo que estamos
dizendo naquele momento dado, em condições dadas” (ORLANDI, 2013, p. 33). No eixo vertical, está o
interdiscurso, lugar onde se estratificam todos os dizeres já ditos, formando, assim a possibilidade do dizível.
58

em funcionamento estabelecendo os sentidos que não podem, nem devem se fazer presentes no
ensino, num movimento que escamoteia, abafa e interdita os sentidos ligados à diversidade e
pluralidade sexual e de gênero no âmbito educacional.
Como pudemos sublinhar no decorrer das análises até aqui empreendidas, o processo
discursivo de asfixia dos objetos de ensino, constitutivo do discurso do MESP, ocorre pelo viés
da restrição/redução desses objetos, bem como pela interdição de sentidos ligados aos domínios
do político e do sociocultural, como as questões sobre diversidade e sexualidade.

3.2. A asfixia do sujeito-aprendiz: quem o aprendiz (não) pode/deve ser

Conforme realçamos no Capítulo I, mobilizar a noção de sujeito, partindo do lugar


teórico ao qual nos filiamos, significa entendê-lo enquanto produto histórico, efeito de discurso.
Nesse sentido, retomamos Pêcheux (1975 [2014]) e Courtine (2014) para ratificar a
compreensão de que o sujeito não é pensado como uma entidade linguística ou psicológica, mas
como uma posição que emerge a partir das diferentes modalidades de identificação entre o
sujeito enunciador e o sujeito do saber de uma formação discursiva (a forma-sujeito).
O sujeito, assim entendido, como “uma posição entre outras” (ORLANDI, 2012, p.
99), é colocado, em nossa formação social, enquanto autor e responsável pelos seus atos e
palavras, constituindo o que Pêcheux (1975 [2014]) vai definir como “sujeito-responsável”.
Essa autoria que atribui responsabilidade àquele que se submete à linguagem é pensada por
Foucault (2014) como uma função desempenhada pelo sujeito do discurso, sendo definida como
“princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como
foco de sua coerência” (FOUCAULT, 2014, p. 25). Corroborando com a discussão
empreendida pelo filósofo, Orlandi (1996) vai afirmar que a função-autor funciona de modo a
colocar o sujeito, imaginariamente, na origem do seu dizer e, por esse motivo, “o autor responde
pelo que diz ou escreve, pois é suposto estar em sua origem” (ORLANDI, 1996, p. 69). A
autoria, assim, atribui ao sujeito responsabilidade sobre seu modo de significar a si e o mundo.
Partindo dessa noção, propomos pensar a asfixia do sujeito-aprendiz como um
processo decorrente do esvaziamento de sua função-autor, isto é, de sua desresponsabilização
quanto aos sentidos que o constituem e constituem seu dizer. Observamos a produção desse
processo no discurso do MESP a partir da representação de duas posições-sujeito específicas
para o aluno, identificadas com uma forma-sujeito não autora, que aqui denominamos de
aprendiz-reprodutor (ou repetidor).
59

É preciso efetuar um esclarecimento quanto ao conceito de reprodução/repetição que


atribuímos à representação do sujeito-aprendiz no discurso do MESP. Diferente de como ela é
entendida no quadro teórico da AD, a repetição, tal como é projetada pela política de asfixia,
não se abre para a autoria, tendo em vista que se trata de uma repetição empírica, exercício
mnemônico (ORLANDI, 2007), não possibilitando deslocamentos ou rupturas. Tal repetição,
portanto, remete, apenas, a uma posição do estudante enquanto réplica da posição dos pais ou
dos professores “doutrinadores”. São elas: 1) Aprendiz-reprodutor do discurso do professor
(efeito da “doutrinação”) e 2) Aprendiz-reprodutor do discurso dos pais (efeito da autoridade
familiar).
A representação dessas posições-sujeito engendra efeitos de sentido específicos para
o sujeito-aprendiz enquanto vítima/refém do professor, ou como posse e extensão da posição-
sujeito dos pais. Na base desses efeitos está o funcionamento do silêncio local (ORLANDI,
1993) que constrói um imaginário no qual o estudante é sufocado, não podendo circular em
outros espaços de significação. Nesse sufocamento, tem-se, de um lado, a produção do sentido
que se pretende silenciar, isto é, aquilo que o estudante não pode/deve ser – vítima da
doutrinação do professor –; e, de outro, há a produção do sentido permitido, aquilo que o
aprendiz pode/deve ser – posse e projeção da posição dos pais.
Iniciemos nossa análise pelo sentido interditado tomando como materialidade a SD7,
retirada do terceiro espaço de significação do Arquivo I, que se refere à circulação social do
discurso do MESP em páginas virtuais. A SD em questão foi recortada de uma seção do site do
MESP, intitulada Síndrome de Estocolmo34, onde é possível observar a representação de uma
relação de submissão que se estabelece entre o professor doutrinador e o aluno doutrinado,
produzindo o efeito de esvaziamento do sujeito-aprendiz.

SD7: Vítima de um verdadeiro “sequestro intelectual”, o estudante doutrinado quase


sempre desenvolve, em relação ao professor/doutrinador, uma intensa ligação
afetiva. Como já se disse a propósito da Síndrome de Escocolmo [Estocolmo],
dependendo do grau de sua identificação com o sequestrador, a vítima pode negar
que o sequestrador esteja errado, admitindo que os possíveis libertadores e sua
insistência em punir o sequestrador são, na verdade, os responsáveis por sua situação.
De modo análogo, muitos estudantes não só se recusam a admitir que estão sendo
manipulados por seus professores, como saem furiosos em sua defesa, quando
alguém lhes demonstra o que está acontecendo (ESCOLA SEM PARTIDO, 2017).

Note-se que o gesto de interpretação do MESP lança mão de uma analogia entre a
Síndrome de Estocolmo e a relação doutrinador-doutrinado, produzindo o efeito de
equivalência entre os sentidos de sequestrador e professor e entre vítima e aprendiz. Desse

34
Ver em http://www.escolasempartido.org/sindrome-de-estocolmo)
60

modo, projeta-se uma imagem do professor como “sequestrador intelectual” e o aprendiz como
a vítima do sequestro, mas que se recusa a admitir sua situação de subordinação. O fato de o
aluno defender seu professor e negar que haja uma prática doutrinária de sua parte, evidencia,
segundo o MESP, a intensa ligação afetiva que o refém desenvolve por seu algoz, apoiando-o
sem se dar conta de sua prática abusiva.
Essa evidência do aluno-vítima, no entanto, apaga o fato de que tal sujeito é fruto de
determinações sócio-históricas e de que pode identificar-se ou não com o discurso do professor
sem que para isso submeta-se a um processo de “doutrinação ideológica”. Contudo, identificar-
se com a posição do professor, nesse discurso, equivale a ser doutrinado. O sujeito-aprendiz,
portanto, é despojado de sua autoria, sendo representado como uma espécie de reprodutor do
discurso do professor, transformando-se em vítima do crime que o MESP pretende combater:
o “sequestro” ideológico.
Ainda sobre a vitimização e desresponsabilização do aprendiz, retornamos ao PL
“Escola sem Partido” de modo a evidenciar a produção desses efeitos em seu Artigo 2º, que
dispõe sobre os princípios da educação nacional.

SD8: Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios: [...] V -
reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação
de aprendizado (BRASÍLIA, 2015).

De início, é importante pontuar que o inciso em destaque estabelece uma relação


parafrástica com o Código de Defesa do Consumidor35, de 1990, cujos princípios contemplam
o “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo” (BRASIL,
1990 [2012]). Partindo dessa articulação intradiscursiva, evidenciamos um gesto que desloca
sentidos da esfera do consumo para a esfera educacional, produzindo o efeito de equivalência
entre esses espaços e colocando, por conseguinte, o sujeito-aprendiz na posição de “consumidor
do saber”, um sujeito que, assim como na relação de compra e venda, “adquire” do fornecedor
(o professor) o conhecimento.
Os efeitos de vitimização e desresponsabilização são novamente produzidos pela
representação do aprendiz enquanto um sujeito fraco e vulnerável exposto a uma relação
desigual de ensino-aprendizagem, na qual não pode responder por si, necessitando de proteção
legal frente à influência exercida pelo “fornecedor do saber”, que tem o poder de extorquir sua

35
Essa relação de paráfrase entre os documentos é admitida por Miguel Nagib em Audiência pública da Comissão
Especial do projeto de lei ESP, na Câmara dos Deputados, 14/2/2017. Ver em:
https://www.youtube.com/watch?v=jwGErV-1zUo&feature=youtu.be
61

subjetividade, doutrinando-o, fazendo-o ocupar a posição de aprendiz-reprodutor do discurso


do professor – aquele quem o aprendiz não pode/deve ser.
Por outro lado, o movimento apresenta em seu discurso a produção de um sentido
legitimado para a posição do estudante, inscrevendo-o em um espaço de significação
correspondente àquele de onde emergem as convicções morais e religiosas dos pais, como
podemos observar na SD9.

SD9: Os pais têm direito de dar a seus filhos, perdão, a que seus filhos recebam a
educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas convicções. Meus filhos,
minhas regras. [...] O estudante tem direito de... a que seu conhecimento da realidade
não seja manipulado pela ação dos seus professores [...]. Liberdade de ensinar
significa... liberdade de ensinar do professor... a liberdade que o professor tem de
ensinar alguma coisa, um determinado conteúdo... o conteúdo para o qual ele está
habilitado. Ele fez um curso de matemática e está habilitado para ensinar matemática.
É disso que se trata. Esta é a liberdade do professor. É liberdade de ensinar alguma
coisa. A coisa para a qual ele se preparou (NAGIB, 2017c).

O dizer do coordenador do MESP, Miguel Nagib, remonta ao primeiro trimestre do


ano de 2017, quando foi realizada uma audiência pública organizada pela Comissão de
Educação da Câmara dos Deputados com o objetivo de discutir sobre o Projeto de Lei Escola
sem Partido. No contexto da SD9, Nagib versava sobre o artigo 12, inciso IV, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, segundo o qual os pais possuem o direito a que seus filhos
sejam educados de acordo com suas próprias convicções morais e religiosas. O contexto em
que se encontra o enunciado da lei, no entanto, faz referência à proteção contra práticas de
intolerância religiosa. Ao retomar esse dizer, contudo, o representante do MESP produz
deslocamentos, fazendo deslizar um discurso político-jurídico, voltado à manutenção dos
Direitos Humanos, para um discurso privado das relações familiares. O direito enunciado pelo
inciso da lei, desse modo, passa a equivaler à autoridade dos pais sobre a educação de seus
filhos, de maneira indiscriminada.
A autoridade, a propósito, desempenha um papel central no discurso do MESP,
enquanto reguladora da subjetividade, pondo em cena um jogo de posições que, de um lado,
são des(autor)izadas a significar-se enquanto “sujeitos-responsáveis” (aprendiz/filho) e, de
outro, são autorizadas a controlar a relação desses sujeitos com o dizível (pais e familiares). Há,
ainda, a projeção de uma posição que “usurpa” a autoridade naturalmente legitimada aos pais,
o professor doutrinador, que toma de assalto o comando da subjetividade de seu aprendiz,
fazendo-o reproduzir o seu discurso.
Nesse espaço de “controle subjetivo”, a autoridade ganha feição autoritária por conter
a polissemia dos sentidos. A autoridade dos pais, em particular, funciona no discurso do MESP
62

como uma espécie de autoria do outro, origem, lugar de “criação” daquele por quem se é
responsável, remetendo a uma memória bíblica da gênese humana. Assim como Deus fez o
Homem à Sua imagem e semelhança, de modo análogo, o MESP constrói para os pais o lugar
do Criador, sujeito universal da FD cristã, projetando para o filho uma réplica dessa posição.
Há, desse modo, um recobrimento entre as posições projetadas para os pais, filhos e a forma-
sujeito cristã, o que evidencia um processo de identificação plena, colocando o aprendiz na
posição do “bom-sujeito”, isto é, aquele que reproduz o discurso dos pais terrenos e do Pai
Celeste.
É, portanto, valendo-se da posição de autor do outro que Nagib enuncia uma sentença
bastante recorrente no discurso do MESP: “Meu filho, minhas regras”. Essa formulação
estabelece uma relação interdiscursiva com um enunciado do discurso feminista – “Meu corpo,
minhas regras” –, retomando, contraditoriamente, uma memória de resistência e luta pela
autonomia do corpo feminino, e deslocando-a para o discurso do MESP na reivindicação pelo
direito a uma educação moral e religiosa dos filhos que esteja alinhada às convicções familiares.
Marca-se, dessa forma, uma substituição de corpo por filho que sinaliza um deslocamento de
FD. Nesse deslocamento, os sentidos passam a derivar: diferente do enunciado feminista, não
há na formulação produzida pelo MESP o efeito de domínio de si, empoderamento, mas de
propriedade do outro – dos filhos.
Outro aspecto relevante na SD é o fato de que, ao se referir ao sujeito-aprendiz, o
discurso do MESP não o toma como estudante (exceto em um único trecho), mas como filho.
Fala-se, portanto, da posição de pai, tomando como sinônimos aluno e filho, e dissolvendo,
assim, a esfera pública (posição social de aluno) na esfera privada (posição social de filho),
fazendo prevalecer convicções particulares (morais e religiosas) no âmbito público que é a
escola.
Ainda sobre a formulação “Meu filho, minhas regras”, é importante notar que o uso
dos pronomes possessivos produz o efeito de um sujeito-aprendiz enquanto posse, na medida
em que estabelecem uma relação entre o possuidor (pais) e a coisa possuída (filhos). Na mesma
formulação, ainda é possível observar uma cadeia de “paráfrase plausível” (PÊCHEUX, 2006)
textualizada em dizeres como: Meu filho segue minhas regras; Meu filho segue minhas
convicções religiosas e morais; Meu filho deve seguir minhas regras; Meu filho deve seguir
minhas convicções religiosas e morais; etc. Esses são dizeres possíveis que encontram eco na
formulação “meu filho, minhas regras”, produzindo o efeito de obrigatoriedade de que o
estudante esteja alinhado às convicções de seus pais. Dito de outra forma, tais formulações
atestam a produção de um efeito que projeta o imaginário de estudante como um prolongamento
63

do núcleo familiar. O sujeito-aprendiz, desse modo, é destituído, mais uma vez, de sua autoria,
figurando enquanto posse e projeção das convicções paternas. Legitima-se, assim, o sentido
permitido, isto é, quem o estudante pode e deve ser: reprodutor do discurso dos pais, com seus
valores e convicções.
Evidenciamos, portanto, o funcionamento de um discurso autoritário com relação às
formas de subjetivação do estudante, uma vez que “não há reversibilidade possível no discurso,
isto é, o sujeito não pode ocupar diferentes posições” (ORLANDI, 1993, p. 81), nem no espaço
escolar, nem no familiar. Funcionando pela imposição, a afirmação da autoridade dos pais sobre
os filhos é, pois, contraditoriamente simétrica à suposta doutrinação do professor. Esse viés
autoritário asfixia o sujeito-aprendiz, por interditar que este exerça a função-autor encarregada
de colocar, imaginariamente, o sujeito na origem do seu dizer, atribuindo-lhe responsabilidade
pelo que diz (ORLANDI, 2012). O aprendiz, nessa medida, é destituído de qualquer
responsabilização sobre seu modo de interpretar a si e ao mundo. Sua posição fica aprisionada
a um espaço de repetição, condenado a reproduzir as convicções dos pais e a assimilar os
conteúdos.

3.3. A asfixia do sujeito-professor: quem (não) pode/deve ensinar

No que se refere ao sujeito-professor (SP), propomos analisar dois processos de asfixia


distintos. O primeiro pode ser evidenciado pela construção de uma cena discursiva em que o
MESP projeta um confronto de duas posições para o sujeito-professor, sendo elas, a posição do
professor-educador36 (intitulada pelo movimento de professor militante/doutrinador), aquela
que se deseja silenciar, e a posição do professor-instrutor/burocrata, a posição legitimada nesse
discurso. Essas posições construídas pelo MESP engendram, de um lado, efeitos de restrição
das formas de subjetivação/identificação pela (im)posição do instrutor-burocrata, e de outro,
efeitos de censura/interdição da posição do educador.
O segundo processo de asfixia, embora também inscrito na ordem do calar, funciona
de modo distinto do primeiro, podendo ser pensado, metaforicamente, a partir do próprio ato
de asfixiar, movido pelo desejo de agredir o outro. Dito diferentemente, essa outra modalidade

36
A posição do educador, na rede de memória educacional progressista, é caracterizada por sua politicidade e
criticidade. O educador é entendido como um interventor no processo educacional, de modo a construir, com o
aprendiz, o conhecimento necessário para promover a transformação da sociedade. A essa posição, é negada a
mera instrução e a neutralidade, uma vez que “ensinar exige compreender que a educação é uma forma de
intervenção no mundo” (FREIRE, 1996, p. 61). Essa posição é atacada no discurso do MESP, uma vez que
pressupõe, ao fazer pedagógico, pensar a política, questionar as relações de poder e os processos de exclusão e
desigualdade.
64

de asfixia é o resultado da agressão sofrida, é o efeito da violência ao divergente na tentativa de


desumanizá-lo, tirar-lhe a voz, o que atesta o funcionamento de um discurso de ódio. Para
definir tal discurso, tomamos de empréstimo da esfera do Direito sua definição que consiste na

manifestação de ideias intolerantes, preconceituosas e discriminatórias contra


indivíduos ou grupos vulneráveis, com a intenção de ofender-lhes a dignidade e incitar
o ódio em razão dos seguintes critérios: idade, sexo, orientação sexual, identidade e
expressão de gênero, idioma, religião, identidade cultural, opinião política ou de
outra natureza, origem social, posição socioeconômica, nível educacional, condição
de migrante, refugiado, repatriado, apátrida ou deslocado interno, deficiência,
característica genética, estado de saúde física ou mental, inclusive infectocontagioso,
e condição psíquica incapacitante, ou qualquer outra condição (SCHÄFER; LEIVAS;
SANTOS, 2015, p. 149-150).

Partindo dessa definição, julgamos pertinente incluir nesses grupos vulneráveis a


categoria profissional do magistério, historicamente desvalorizada e desprestigiada, e que, no
contexto sócio-histórico contemporâneo, tem sofrido ataques37 movidos pelo ódio à posição
política daqueles professores identificados enquanto educadores. Esse ódio, no plano
discursivo, pode emergir, segundo Rosenfeld (2001), a partir de dois diferentes tipos
específicos: o hate speech in form, que constitui dizeres explicitamente odiosos, e o hate speech
in substance, correspondente à forma dissimulada do discurso de ódio.
De acordo com o mesmo autor, o hate speech in substance pode figurar como pretexto
de defesa à moral e à sociedade. A partir dessa compreensão, observaremos, no dizer do MESP,
o funcionamento da forma dissimulada do discurso de ódio na defesa da moralidade,
produzindo os efeitos de intimidação e demonização das posições identificadas com a forma-
sujeito própria da FD educacional progressista, aqui designada de professor-educador.
Para analisar o primeiro processo de asfixia, tomaremos como observatório os três
espaços discursivos do Arquivo I, recortando três sequências discursivas (SD10, SD11 e SD12)
que textualizam os efeitos de restrição e interdição de formas específicas de subjetivação do
professor. A SD10 consiste no recorte de um vídeo publicado no YouTube38, e reproduzido no
site do MESP39, que veicula a fala de Armindo Moreira, escritor do livro “Professor não é
educador”. A SD11 apresenta uma fala de Miguel Nagib em comissão especial realizada na
Câmara dos Deputados que analisava um dos Projetos de Lei “Escola sem Partido”. Na SD12,
apresentamos um cartaz contendo aquilo que o MESP chama de “deveres do professor”. Tal
materialidade é citada nos PL “Escola sem Partido” como item obrigatório às escolas, tendo por

37
É o que observaremos nas análises das SDs 13, 14, 15, 16 e 17.
38
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GeZl6gLykYk
39
Disponível em: http://escolasempartido.org/educacao-moral/415-professor-nao-e-educador
65

função “esclarecer” a comunidade escolar sobre os limites do fazer docente e sobre a liberdade
de consciência do aluno.
Iniciemos nosso gesto analítico a partir do primeiro processo de asfixia que restringe
a identidade do SP, interditando a possibilidade de que este se inscreva na posição de educador.

SD10: É preciso que alguém se toque e deixe de dizer [...] que o professor educa.
Isso não é verdade, e se for verdade é uma desgraça. Quem educa é a família. E
os professores? Ensinam história, geografia, matemática, língua nacional, que é
a tarefa deles. Eu conheço pessoas quase analfabetas, sem instrução, que são muito
bem-educadas. Conheço. E conheço pessoas com curso superior que são de uma má
educação tremenda. Insuportável. Então, educação e instrução não é a mesma coisa
(MOREIRA, 2013).

Primeiramente, é preciso destacar que a SD10 apresenta um tema bastante recorrente


no discurso do MESP: a diferenciação entre educação e instrução. Se retornamos às SD
anteriores, poderemos observar que a educação, no interior desse discurso, está relacionada às
esferas religiosa e moral, ao passo que a instrução está ligada ao ensino de conteúdos. Essa
diferenciação, cada vez mais realçada pelo MESP, é estratégica na medida em que confere
aparência transparente a noções tão equívocas, especificando, assim, a função do professor
como instrutor para impedir o risco de que ele promova um confronto com as convicções dos
pais ao tratar de assuntos referentes a dimensões éticas, morais, religiosas etc., em sala de aula.
Seguindo essa lógica, o enunciador produz a evidência de que a função do professor é
instruir, ensinar o conteúdo das disciplinas (“é a tarefa deles”). Note-se que o artigo definido
individualiza a função do professor, isto é, particulariza sua atribuição única de instruir: não se
trata de uma tarefa, mas a tarefa. Evidencia-se, desse modo, um trabalho de restrição,
sufocamento dos deveres do professor e, consequentemente, de sua própria identidade por
limitá-lo no percurso dos sentidos, enquadrando-o numa posição identificada com a forma-
sujeito própria da FD educacional tecnicista, designada aqui de professor-instrutor. Determina-
se, assim, quem pode e deve ensinar: apenas o “bom sujeito” identificado com o professor-
instrutor. Semelhante ao que ocorre com a asfixia do sujeito-aprendiz, também não há, aqui,
reversibilidade, isto é, o professor é sufocado, desautorizado a ocupar diferentes posições
filiadas à forma-sujeito do professor-educador.
O enunciador define, ainda, o que não é tarefa do SP: a função de educar. No seu dizer,
“Quem educa é a família”. A ideia de um professor educador é para ele falsa (“isso não é
verdade”) e mais: uma “desgraça”. Educar, desse modo, é uma ação não-autorizada no interior
desse discurso. Interdita-se, assim, a possibilidade de que o professor ocupe a posição de
educador – posição essa, desidentificada com a forma-sujeito imposta no discurso do MESP. O
professor-educador, desse modo, é definido como aquele que não pode e nem deve ensinar.
66

Atesta-se, portanto, o próprio funcionamento da censura que “impede o sujeito de circular em


certas regiões determinadas pelas suas diferentes posições” (ORLANDI, 1993, p. 107).
A censura à posição identificada com a forma-sujeito professor-educador ainda pode
ser evidenciada na formulação “É preciso que alguém se toque e deixe de dizer que o professor
educa”. Num outro modo de falar o mesmo, temos que “é preciso não dizer que professor
educa” ou que “é preciso que não se diga que o professor educa”. Há, aqui, uma evidente
proibição da produção de sentido: não se pode dizer que o professor educa. Joga-se desse modo
com o interditado (professor-educador) e o permitido (professor-instrutor), isso porque a
censura remete ao discurso outro para produzir o sentido autorizado e o não autorizado.
Reforçando essa evidência de que a função do SP é instruir, outro efeito de restrição
às formas de subjetivação desse sujeito produz a asfixia pelo viés da interdição do dizer.

SD11: Quem diz o que é moral ou imoral é o padre ou o pastor. É o pai e a mãe.
Não é o funcionário público. O funcionário público só faz aquilo que a lei determina.
[...] Burocrata não faz sermão. Burocrata aplica a lei. O professor é um burocrata.
Ele transmite aos alunos o conteúdo do currículo. Aquilo que está escrito e que foi
aprovado pelas autoridades competentes. Não lhe cabe dizer aos filhos dos outros o
que é certo e o que é errado em matéria de moral (NAGIB, 2017d).

A fala de Miguel Nagib foi recortada da mesma situação enunciativa da SD9, na qual
se realizava uma audiência pública que promovia o debate sobre o PL “Escola sem Partido”.
Na SD em destaque, o dizer de Nagib produz um jogo de imagens autorizadas e desautorizadas
a falar sobre moral aos filhos “dos outros”, isto é, aos filhos das famílias cristãs, as quais o
MESP se coloca como representante. Nesse sentido, de um lado, está a posição ocupada pelas
famílias e líderes religiosos, posições autorizadas a dizer o que é certo e o que é errado em
matéria de moral. Por outro lado, está a posição do professor/funcionário público/burocrata que
não é autorizada a tratar de questões morais com “os filhos dos outros”, por não estar inscrita
no espaço da religião, nem da família, mas do funcionalismo público. Nas palavras do
coordenador do MESP, quem diz o que é moral ou imoral é o padre, o pastor, o pai e a mãe,
não é o funcionário público.
Nesse jogo de imagens construído no discurso do MESP, a relação do sujeito-professor
com o dizível é alterada por meio da censura: a ele não é permitido enunciar dizeres, sentidos,
ligados à moral. É importante pontuar que a moral a que se refere o MESP está diretamente
ligada à “moral sexual”, como frisado ipsis litteris na justificativa do próprio PL inspirado nas
proposições do movimento. Desse modo, é possível interpretar que a interdição de que o
professor fale sobre moral faz referência indireta às abordagens pedagógicas sobre gênero e
sexualidade.
67

Ainda no plano do poder dizer, a formulação Não lhe cabe dizer [...] o que é certo e o
que é errado permite evidenciar o funcionamento da estrutura negativa como um vestígio da
interdição de sentidos não autorizados a esse sujeito, representado enquanto burocrata que faz
aquilo que a lei determina, aplica a lei e transmite aos alunos o conteúdo do currículo.
Silenciam-se, assim, outras posições para o SP. Desse modo, o dizer possível se torna o dizer
devido que exclui, obrigatoriamente, o sentido proibido de que o professor ocupe a posição
designada aos pais e líderes religiosos.
Constrói-se, assim, uma cena em que pais e religiosos estão para a moral, assim como
o sujeito-professor está para as leis e os conteúdos. É nessa medida que a censura intervém,
impedindo que o SP trabalhe a sua história de (e com os) sentidos, identificando-se, ou não,
com o imaginário de professor que trate de questões morais em sala de aula. Esse sentido, no
entanto, é interditado no discurso do MESP para que não ganhe densidade histórica,
legitimidade, ou “força identitária” no interdiscurso e na realidade social.
Nesse jogo de (des)autorização do dizer é onde reside a restrição da identidade e
consequente asfixia do professor, dado que não há possibilidade de deslocamento, apenas
repetição. Sua identidade é engessada no discurso do MESP, transitando entre as posições de
instrutor e burocrata. Outras possíveis posições para esse sujeito, sobretudo as posições
identificadas com o professor-educador, são proibidas e desqualificadas no interior desse
discurso, como é possível observar na próxima análise. Para tanto, retornamos à materialidade
do PL 867/2015, o Projeto Escola sem Partido, que propõe a afixação de um cartaz contendo
seis “deveres” do professor.

§ 1º. Para o fim do disposto no caput deste artigo, as escolas afixarão nas salas de aula,
nas salas dos professores e em locais onde possam ser lidos por estudantes e
professores, cartazes com o conteúdo previsto no Anexo desta Lei, com, no mínimo,
70 centímetros de altura por 50 centímetros de largura, e fonte com tamanho
compatível com as dimensões adotadas (BRASÍLIA, 2015).

O PL, no entanto, apresenta esses deveres no próprio corpo do texto, em seu artigo 4º,
não anexando o cartaz, que pode ser encontrado na página do Programa Escola sem Partido no
Facebook.

SD12: “Deveres do professor”


68

Fonte: Página do Facebook do MESP. Disponível em:


https://www.facebook.com/escolasempartidooficial/photos/a.498441666973496.1073741830.3
36441753173489/1042947032522954/?type=3&theater. Acesso em: 20 de maio de 2018.

Como ponto de entrada, é interessante observar as cores verde e amarela que se


alternam na enumeração de cada “dever do professor”. Tais cores não só remetem à onda
conservadora que tem avançado na conjuntura brasileira contemporânea, conforme
mencionamos no Capítulo II, mas também trazem em si a memória de um outro movimento
conservador, em âmbito nacional, conhecido como Marcha da família com Deus pela
liberdade, que corroborou com o Golpe de 64. Em semelhança ao que culminou com o Golpe
de 2016 (SOUZA, 2016), a marcha foi protagonizada pelas classes média e alta e pelos setores
mais conservadores do país, que protestavam contra as políticas de esquerda defendidas pelo
então presidente João Goulart (DREIFUSS, 1981). As cores da bandeira brasileira apareciam
em faixas e em cartazes com dizeres como “Verde Amarelo, sem foice e sem martelo”, que
colocavam o nacionalismo e o comunismo como polos antagônicos. Nesse contexto, o
69

anticomunismo foi um dos pontos predominantes do movimento de 64, assim como nos
protestos contra o governo Dilma Rousseff, em 2015, como evidenciado nas análises
empreendidas por Indursky (2016).
Outro ponto de articulação entre as conjunturas dos golpes de 64 e 2016 foi o discurso
da moralidade e da religiosidade enquanto elementos basilares para a estrutura social brasileira.
Conforme narra Dreifuss (1981, p. 298), na ocasião da Marcha conservadora de 64, o General
Nelson de Mello, ex-ministro da Guerra de João Goulart e participante da Articulação Civil-
Militar, fez um pronunciamento que não só falava à multidão, mas também sobre ela: "Nós
estamos presentes nesta demonstração a favor da consciência cristã do Brasil. Este é um dia
decisivo para a existência do Brasil. Nós temos fé nas Forças Armadas; nós temos fé na
Democracia". A defesa à “consciência cristã” é também sustentada no discurso do MESP, como
pudemos evidenciar em análises anteriores, servindo como justificativa para impor sua política
de asfixia que atualiza a memória de 64 pela perseguição às políticas de esquerda e culto à
moralidade e religiosidade.
O verde e o amarelo ostentados no cartaz, portanto, marcam uma posição conservadora
com relação à sociedade e, de modo mais específico, com relação à educação, fazendo retornar,
sob forma de um pré-construído, a discursividade produzida tanto nos protestos pró-
impeachment, quanto nos eventos que marcaram a Marcha da família com Deus pela liberdade,
evidenciando o combate à esquerda e a imposição do moral e do religioso. Um outro aspecto
relevante a se mencionar é o caráter coercitivo do cartaz que se mostra pela própria função que
ele assume: a de advertir sobre os “deveres do professor”, fazendo-se impor uma série de
proibições à prática docente. As proibições/interdições se materializam nas estruturas negativas
“não se aproveitará”, “não favorecerá, nem prejudicará”, “não fará, nem incitará”, “não
permitirá”, obedecendo uma mesma ordem sintática em que o adjunto adverbial de negação
antecede o verbo, remetendo a uma mesma estrutura oracional presente na memória bíblica dos
Dez Mandamentos: “não matarás”, “não furtarás” etc.
A relação entre a Lei de Deus e a “Lei” do MESP transcende, ainda, a organização
sintática, fazendo irromper no plano simbólico, um efeito que faz soar como pecaminosas as
práticas docentes reprovadas pelo movimento. Mas, quais pecados seriam esses, segundo o
MESP? Tentaremos explicitá-los, chamando atenção para os “deveres” nº 1 e 340.

40
A escolha por analisar apenas esses dois “deveres” se justifica pelo fato de que, os “deveres” 2 e 4 já são
princípios éticos da profissão docente, não apresentando neles a proposta do MESP. O “dever” 5, por sua vez, trata
da problemática que já discutimos com as análises da SD9. Já o “dever” 6, é apenas uma reiteração dos outros.
70

No “dever” nº 1 do cartaz, o “pecado” proibido é o de que o professor se aproveite da


audiência cativa de seus alunos para promover suas próprias convicções. Tal proibição faz
referência à conduta daquele que o MESP denomina de professor doutrinador, ou professor
militante: um sujeito que faz uso de sua liberdade de expressão para manifestar sua posição
política, ideológica, religiosa etc. em sala de aula – prática terminantemente interditada no
discurso do MESP, segundo o qual, “não existe liberdade de expressão no exercício estrito da
atividade docente” (BRASÍLIA, 2015, p. 05). O movimento, desse modo, produz uma
representação do sujeito-professor despolitizado, destituído de sua liberdade de expressão.
Nessa esteira, as formas verbais se aproveitará e promover funcionam de modo a estigmatizar
a posição do professor enquanto sujeito político, isto é, aquele que se posiciona frente aos
sentidos, ao passo que o advérbio de negação interdita essa posição que se pretende combater.
No “dever” nº 3, o “pecado” proibido está em fazer propaganda partidária e incitar
os alunos a participar de manifestações. Destacamos, aqui, implicações discursivas
interessantes na relação coordenativa que se estabelece entre as orações que compõem o
“dever” nº 3. Se tomarmos o período completo (O professor não fará propaganda político-
partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos
públicos e passeatas), veremos que a coordenação oracional, introduzida pela conjunção nem,
marca uma relação de adição àquilo que foi dito anteriormente, produzindo o efeito de soma,
continuidade, das ideias expressas nas orações.
Tal construção, a nosso ver, parece constituir uma estratégia discursiva produtora do
efeito de despolitização da prática pedagógica, tendo em vista que a primeira oração aponta
para a proibição de propagandas partidárias em sala de aula, prática que, de fato, não possui
fins educacionais, sendo rejeitada, também, no discurso educacional progressista. A essa
prática, no entanto, soma-se, por meio da conjunção nem, a proibição de que o professor incite
seus alunos a participarem de manifestações populares, produzindo o efeito de equivalência
entre a propagada partidária e o ensino politizado que estimule a livre manifestação democrática
no espaço público. O próprio modo de dizer (incite) já marca uma escolha lexical que negativiza
a participação dos alunos em diferentes manifestações democráticas. Proíbe-se, desse modo, o
partidarismo, mas também, a politicidade da educação, de modo que as duas noções ficam
representadas como sinônimas. Nessa interdição, pois, define-se aquele que pode/deve ensinar:
um professor detentor de uma prática pedagógica despolitizada e descomprometida com a
preparação para o exercício da cidadania.
Para analisar o segundo processo de asfixia, utilizaremos o terceiro espaço de
significação do Arquivo I, mais especificamente, o Facebook e site do MESP, dos quais foi
71

possível retirar cinco sequências discursivas que permitem observar os efeitos de e intimidação
e demonização já mencionados. As duas primeiras (SD13 e SD14) textualizam os efeitos de
intimidação a partir do recorte de um artigo41 escrito por Miguel Nagib, publicado no site do
MESP, e de uma imagem veiculada na página do Facebook do mesmo movimento. As três
últimas sequências são imagens publicadas nas páginas do Facebook do MESP (SD15 e SD16)
e do coordenador do movimento, Miguel Nagib (SD17) que constroem uma representação
específica do professor-educador enquanto um ser maléfico e sombrio, evidenciando os efeitos
de demonização.
Iniciemos pelo processo de intimidação, evidenciado nas SDs 13 e 14, a seguir.

SD13: Prezado Militante Disfarçado de Professor:


[...] A cada dia mais gente fica sabendo quem você é e o que você faz no segredo
das salas de aula. E o que é pior: essas pessoas já entenderam que aquelas práticas,
além de covardes e antiéticas, são ilegais, o que significa que você pode acabar
tomando um processo nas costas. [...] calcule o tamanho do risco a que você está
se expondo e expondo as escolas onde trabalha, que respondem solidariamente
pelos danos que você causar aos usuários dos serviços que elas prestam. É por isso
que professores com o seu perfil passarão a encontrar cada vez mais dificuldade
para arrumar emprego nas escolas particulares. [...] Se você soubesse como é fácil,
no Brasil, processar outra pessoa, ficaria bastante preocupado. [...] Enfim, tudo vai
depender das suas vítimas. Se elas não se acovardarem ou se omitirem, você vai
receber tantas intimações que pode acabar ficando amigo do carteiro ou do
oficial de justiça. De minha parte, continuarei me esforçando para que molestadores
empedernidos como você sejam expelidos do sistema. Desejo-lhe, portanto, um
2017 cheio de denúncias e processos. Que seus alunos não caiam na sua conversa, e
os pais deles estejam sempre de olho em você. Estes são os meus votos de Ano Novo
para você e seus colegas de militância. Sem o menor respeito ou admiração, Miguel
Nagib (NAGIB, 2016).

O gesto de dizer em destaque materializa a construção de uma posição de


deslegitimação para o professor, denominada de militante disfarçado de professor. Essa
imagem construída representa posições outras não identificadas com o imaginário do professor
instrutor ou burocrata. São posições que se deseja calar pelo viés da intimidação, que, como
dissemos, realiza-se pelo discurso de ódio “dirigido a estigmatizar, escolher e marcar um
inimigo, manter ou alterar um estado de coisas, baseando-se numa segregação” (SCHÄFER;
LEIVAS; SANTOS, 2015, p. 147) (grifo nosso).
Mobilizando a definição para a sequência discursiva em análise, podemos evidenciar,
inicialmente, a estigmatização do inimigo – o “professor militante” – marcado a partir de
adjetivações, tais como ilegal, covarde, antiético, abusivo e molestador empedernido. O estado
de coisas que se deseja alterar é o imaginário do professor que se insurja contra a ordem da
instrução. Nesse sentido, o dizer em análise instaura uma segregação que, se retomarmos

41
Disponível em: http://escolasempartido.org/sindrome-de-estocolmo-categoria/647-mensagem-de-fim-de-ano-
do-coordenador-do-escola-sem-partido-ao-militante-disfarcado-de-professor
72

Schmitt (2008), pode ser descrita como uma discriminação entre amigos e inimigos, segundo a
qual, os amigos são representados pelas posições do MESP, dos pais e alunos (designados de
vítimas); e os inimigos, pela posição dos “professores militantes”. Os vestígios dessa oposição
podem ser observados a partir de formulações como “se elas (vítimas/alunos) não se
acovardarem ou se omitirem, você vai receber tantas intimações...”; “De minha parte
(Nagib/MESP), continuarei me esforçando para que molestadores empedernidos como você
sejam expelidos do sistema”; “Que seus alunos não caiam na sua conversa e os pais deles
estejam sempre de olho em você”. Elabora-se, desse modo, uma cena de antagonismo onde se
produz a intimidação que busca amordaçar, censurar o inimigo.
Como elucida Orlandi (1993, p. 110), a censura põe em jogo a identidade social do
indivíduo e sua relação com o Estado por meio do princípio da autoria, remetendo “à
responsabilidade do sujeito (autor) quanto ao que ele diz”. Nesse sentido, o sujeito é
responsabilizado pelo seu dizer, diante da lei. É por essa via que a censura irrompe no dizer de
Nagib, responsabilizando o “professor militante” quanto ao seu dizer/fazer pedagógico,
atribuindo-lhe caráter ilegal e remetendo-o, assim, à responsabilização de seu dizer/fazer, a
partir do aparelho jurídico punitivo.
Chega-se, assim, às ameaças de processos judiciais, de denúncias e, até mesmo, de
desemprego, como é possível verificar em formulações como “você pode acabar tomando um
processo nas costas”, “calcule o risco a que você está se expondo”, “professores com o seu
perfil passarão a encontrar cada vez mais dificuldade para arrumar emprego nas escolas
particulares”, “Se você soubesse como é fácil, no Brasil, processar outra pessoa, ficaria
bastante preocupado”, “você vai receber tantas intimações que...”. Note-se que as estruturas
destacadas em negrito como “se você soubesse... ficaria bastante preocupado”, produzem um
efeito de ameaça e intimidação ao inimigo que se pretende calar. Mas, o dizer de Nagib vai
além: ele não pretende apenas amedrontar/calar a posição do “professor militante”, mas a
“expelir do sistema”. Nessa medida, censura e ódio caminham juntos.
Ao teorizar sobre o ódio, Glucksmann (2007, p. 50) enuncia que este se constitui
enquanto uma “sede fundamental de destruir”. O desejo de que o inimigo seja expelido,
eliminado, desse modo, configura essa sede de destruição, também presente na fala de Bia Kicis
(SD1) pela ordem/súplica de que a “ideologia de gênero” fosse extirpada do Decreto nº 9.005/17
e da própria escola. Podemos evidenciar, portanto, o funcionamento de um discurso de ódio na
tentativa de não apenas calar o inimigo, representado como o “professor militante”, mas de
aniquilá-lo. Um funcionamento que também pode ser observado nos discursos totalitários,
como no fascismo e no nazismo.
73

É importante mencionar que o discurso de ódio “entoa uma fala articulada, sedutora
para um determinado grupo, que articula meios de opressão” (SCHÄFER, LEIVAS e SANTOS,
2015, p. 147). Nesse sentido, ainda apoiado na discriminação entre amigos e inimigos, o
discurso do MESP se direciona aos pais dos alunos a partir de uma fala atrativa por instaurar
um estado de alerta nos pais e de ameaça aos professores, produzindo mais efeitos de
intimidação e, ao mesmo tempo, instigando o ódio a esses sujeitos, como é possível verificar
na SD14.

SD14: “Processem por dano moral”

Fonte: Página do Facebook do MESP. Disponível em:


https://www.facebook.com/escolasempartidooficial/photos/a.346888065462191.107374182
9.336441753173489/903357033148622/?type=3&theater. Acesso em: 8 de outubro de 2017.

A materialidade em análise permite observar que a intimidação e incitação ao ódio são


produzidas a partir das estruturas imperativas como “processem por dano moral” e “Não dê
moleza para o abusador disfarçado de professor”. Tais estruturas funcionam pela injunção da
defesa ao direito dos pais de educarem moral e religiosamente seus filhos. O MESP assume
para si um lugar de amigo dos pais, ao passo que coloca os professores como possíveis inimigos.
Apesar de ser direcionado aos pais, esse dizer possui como referente os professores,
dialogando diretamente com esses sujeitos e produzindo o efeito de intimidação pela ameaça
de processo judicial. A asfixia, desse modo, resulta da intimidação que intensifica o efeito de
74

segregação ao colocar em polos opostos amigo e inimigo (SCHMITT, 2008), convocando pais
a enfrentarem professores.
Os efeitos de intimidação até aqui analisados atestam o funcionamento coercitivo do
discurso de ódio presente no dizer do MESP, pondo em cena a construção de uma rivalidade
entre os pais e a posição-sujeito do professor, caracterizado como militante disfarçado. Essa
posição é “atacada” nesse discurso na tentativa de sufocá-la, via ameaça e coerção.
Nas sequências discursivas que analisaremos adiante, o sufocamento ocorre pela
demonização do sujeito-professor não identificado com o imaginário docente construído pelo
MESP, representado, nesse discurso como uma figura sombria, vampiresca, intensificando e
instigando o ódio e, até mesmo, a violência a essa posição, de modo a apagá-la, silenciá-la.

SD15: “A doutrinação se dá no segredo da sala de aula”

Fonte: Página do Facebook do MESP. Disponível em:


https://www.facebook.com/escolasempartidooficial/photos/a.346888065462191.1073741829
.336441753173489/829773610506965/?type=3&theater. Acesso em 12 de outubro de 2017.

A SD15 constitui uma representação do ambiente de sala de aula como lugar de


suspeição, onde atua o “professor militante”. Nesse espaço representado, os professores
figuram como seres sombrios, vestidos de preto e com chapéus que lhes encobrem a face. Esses
75

sujeitos são retratados “doutrinando” clandestinamente seus alunos “no segredo da sala de
aula”. O ambiente, igualmente sombrio, apresenta ainda a figura do que parece ser um boneco,
simulando a posição do sujeito-aprendiz, destituído de rosto, cabisbaixo e imobilizado por uma
camisa de força.
Um primeiro gesto analítico dessa materialidade nos remete às análises das SDs 7 e 8,
a partir das quais o estudante é representado enquanto um sujeito replicador, desprovido da
função de autoria, sem “face” própria, assim como na figura. Esse sujeito, em situação de
vulnerabilidade, encontra-se preso, não podendo movimentar-se, nem sair da posição em que
foi colocado. A ele cabe apenas a opção de deixar-se doutrinar pelos “militantes”. Esse retrato,
por si só, produz o efeito de demonização do professor, colocando-o numa posição
maquiavélica e agressiva de doutrinador, ao mesmo tempo que incita o ódio dos pais contra os
professores, sujeitos que, pela cena construída, violentam seus filhos, privando-os de liberdade.
Os dizeres enunciados pelas figuras sombrias sintetizam três temas recorrentes no
discurso mespiano – gênero (“ideologia de gênero”), politicidade/neutralidade da educação e a
relação escola/família –, remetendo, cada um a seu modo, à posição construída para o
“professor militante”, representado enquanto um sujeito que doutrina moral, ideológica e
politicamente os aprendizes.
Na formulação “ninguém nasce homem ou mulher”, retoma-se o enunciado “Ninguém
nasce mulher, torna-se mulher”, da feminista e filósofa estruturalista Simone de Beauvoir,
deslocando-o de uma discussão teórica sobre gênero enquanto construção sociocultural, para
dar-lhe outro sentido, o de doutrinação sobre a sexualidade e a identidade de gênero dos
estudantes, fazendo referência às práticas pedagógicas que abordam tais temáticas. Há, desse
modo, um efeito de distorção sobre o debate de gênero nas escolas, representado enquanto
prática doutrinária de sujeitos sombrios e mal-intencionados.
Já a formulação “Diga: fora Temer” evidencia a prática de doutrinação político-
partidária que o MESP atribui aos professores “militantes”, marcando para esses sujeitos uma
posição “de esquerda”, contrária ao governo de Michel Temer, produzindo o efeito de que os
militantes/doutrinadores são “esquerdistas”. Temos, aqui, um outro efeito de deturpação que
estigmatiza uma posição política específica para o professor, interditando-a pelo viés da
desqualificação.
No terceiro dizer (Seus pais não sabem nada. Nós sabemos o que é bom para você!),
o MESP traz à tona a relação escola-família, produzindo efeitos de rivalidade entre essas
instâncias ao construir uma cena de confronto entre pais e professores (Seus pais x Nós, os
professores) potencializada por uma provocação (Já olhou o material didático do seu filho
76

hoje?) que incita à fiscalização quanto aos conteúdos ministrados, reforçando uma atmosfera
de desconfiança a práticas doutrinárias com relação à política, gênero e sexualidade. Instaura-
se, desse modo, um discurso de suspeição sobre a atividade docente e uma espécie de embate
entre pais e professores, alimentando a divisão e contenda social pelo recurso ao discurso de
ódio, que se sustenta pela “arte de conservar, nutrir, ampliar uma cólera” (GLUCKSMANN,
2007, p. 55).
Seguindo a narrativa do ódio produzida no discurso do MESP, observamos, na SD16,
mais um efeito de demonização que visa asfixiar a posição do educador, enquadrando-a numa
representação vampiresca que subtrai sua feição humana, transformando-o em um monstro
sanguinário, uma ameaça social.
SD16: “Professor vampiro”

Fonte: Página do Facebook do MESP. Disponível em:


https://www.facebook.com/escolasempartidooficial/photos/a.3468880654
62191.1073741829.336441753173489/615011868649808/?type=3&theat
er. Acesso em 12 de outubro de 2017.

O contexto da SD16 nos remonta ao primeiro trimestre de 2017, quando o deputado


federal Flávio Bolsonaro coletava assinaturas para instaurar a “CPI da Liberdade”, também
intitulada pelo MESP de “CPI da doutrinação”, que teria o objetivo de apurar casos de
“doutrinação, partidarização, pornografia e desvios dentro da escola”. Na ocasião, o MESP
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aderiu à campanha para instalação dessa CPI, compartilhando a imagem representada na SD16
em sua página do Facebook.
A figura em análise reproduz a imagem de um vampiro, uma figura ameaçadora, de
olhos arregalados e sangue escorrendo pelos lábios. Essa criatura, representando o chefe da
militância disfarçada de docência (expressão indicada na postagem), convoca seus iguais a
combaterem a instalação da CPI a partir dos dizeres: Atenção vampirada! Agora é todo mundo
contra a CPI da doutrinação! – palavras destacadas em vermelho que remetem ao sangue das
vítimas, retratadas no discurso do MESP como sendo os estudantes.
A imagem vampiresca se vale do uso político da memória do medo, ativando sentidos,
no interdiscurso, referentes ao terror, o que provoca um efeito de repulsa aos professores ditos
doutrinadores. É preciso lembrar que esse “sujeito doutrinador”, objeto do discurso de ódio,
não é o indivíduo em si, mas um grupo social, posições-sujeito identificadas com a forma-
sujeito educadora progressista, ou “de esquerda”, como nomeia o MESP. Produz-se, desse
modo, o que Silva et al. (2011) chamam de vitimização difusa, que é resultado de um ataque
de ódio, o qual não permite distinguir nominal ou numericamente suas vítimas, atingindo, direta
ou indiretamente, toda a categoria docente.
O ódio, desse modo, dirige-se aos professores, tendo em vista “expelir do sistema”
aqueles não identificados no discurso do MESP. A asfixia, nesse caso, se realiza via efeito de
demonização do professor-educador, retirando-lhe a qualidade humana, denegrindo e
violentando a posição onde ele se inscreve. Esse ódio, no entanto, não é produzido
arbitrariamente, mas possui raízes históricas, que podem ser evidenciadas a partir da análise da
SD 17.
SD17: “Vampiro com estaca”

Fonte: Página do Facebook do MESP. Disponível em:


https://www.facebook.com/photo.php?fbid=425336157671680&set=pb.100005858980838.-
2207520000.1517454823.&type=3&theater. Acesso em 12 de outubro de 2017.
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O vampiro retratado na imagem possui o rosto do filósofo marxista Antônio Gramsci


que agoniza na tentativa de retirar uma estaca de seu peito, na qual se inscreve o nome do
movimento “Escola sem Partido”. Ao lado da imagem, Miguel Nagib enuncia: “Conde
Gramsci, o vampiro que vampiriza a educação brasileira, com a ajuda de Paulo Nosferatu
Freire, pode estar com os dias contados”.
As designações, “Conde” e “Nosferatu”, ativam sentidos já-lá relacionados a
personagens fílmicos, que representam criaturas malignas bebedoras de sangue. A comparação
entre tais criaturas e os dois pensadores inscritos em uma FD que aqui designamos “de
esquerda”, demonstra a relação de equivalência construída no interior do discurso do MESP em
que tais sujeitos e os “professores militantes” são representados de uma única maneira: como
monstros aproveitadores. O que nos faz concluir que o ódio ao “professor militante” deriva do
ódio ao campo político-intelectual de esquerda. Um ódio que tem ressonância na histeria
anticomunista, “que tomou conta do Brasil, sobretudo na década de 60, a partir da tresloucada
propagação dos ideais reacionários” (CAZARIN; MENEZES, 2016, p. 107), e reverbera hoje
no antipetismo (SINGER, 2016), estabelecido na conjuntura pós-golpe de 2016.
Retornando à imagem da SD17, note-se que a estaca com a identificação do MESP
funciona como um índice intensificador do ódio, por incitar o combate ao inimigo por meio da
violência, sendo o MESP o agente da prática violenta, representando aquele que elimina a
ameaça, numa apologia explícita à brutalidade. Esta é uma das características do discurso de
ódio, “a capacidade de instigar a violência, ódio ou discriminação” (BRUGGER, 2007, p. 118).
A asfixia pela demonização, portanto, é produzida por meio da construção dessa cena de ódio
e violência ao monstro representado, o professor.
Os dois processos de asfixia aqui problematizados, podem ser resumidos em duas
tendências: 1) a tentativa de controle da posição do professor por meio da restrição e 2) o
silenciamento das outras formas possíveis de interpretar a docência, por meio da intimidação e
demonização.
A análise que empreendemos neste primeiro Capítulo nos possibilitou compreender o
funcionamento da discursividade conservadora e autoritária do MESP, orientada por uma
política de asfixia, que produz, de modo geral, um efeito de despolitização e moralização do
imaginário educacional, o que para nós, evidencia um sintoma do esquecimento da política em
proveito da moral (WOLFF, 2007).
A análise do primeiro Recorte (AO) evidenciou o trabalho da política do silêncio
(ORLANDI, 1993) numa interdição de ordem moral que sufoca o caráter político-social do
ensino, buscando apagar qualquer referência ao tratamento das questões de gênero/sexualidade
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na escola. O efeito produzido é o de um ensino determinado pela moralidade religiosa, no qual


os objetos de ensino são representados como conteúdos “neutros”, estanques, sem a
possibilidade de deslocamentos.
No Recorte AA, referente à asfixia do sujeito-aprendiz, observamos a construção de
um imaginário de estudante enquanto um sujeito não-autor, desprovido de determinações sócio-
históricas e ideológicas, figurando como posse dos pais. O efeito produzido para o educando
restringe-o a um assimilador de conteúdos e a uma existência que, ora aparece como
“refém”/”vítima” do professor, ora alinhada às convicções dos pais, não podendo circular em
outros espaços de significação, senão aquele relativo à posição familiar.
As análises do Recorte AP evidenciaram o fato de que, ao legitimar a existência de um
“professor verdadeiro”, com o traço característico da neutralidade, o MESP engessa a posição
do professor como um mero instrutor/burocrata, ao mesmo tempo em que produz um não-
sentido, isto é, aquilo que se pretende apagar: a possibilidade de que o professor se mostre em
sua subjetividade política e ideológica (de esquerda) dentro da sala de aula. Para negar e
deslegitimar essa posição, projeta-se a imagem do professor doutrinador, representado como
monstro, aproveitador e usurpador do direito dos pais de oferecerem a educação que desejam a
seus filhos. A análise demonstrou, ainda, que essa representação, em particular, atesta o
funcionamento de um discurso de ódio contra os professores, produzindo um efeito de
demonização e intimidação da categoria.
Nessa perspectiva, pelo viés da censura e do ódio, o discurso do MESP sufoca a
possibilidade de significação no espaço escolar, impondo uma inscrição subordinada às
posições e sentidos de uma FD conservadora, a pretexto da neutralidade. Instaura-se, assim, o
que podemos chamar de narcisia social (ORLANDI, 1993), isto é, rarefação do sentido,
imposição/perpetuação de um sentido único para a sociedade, calcado na moral religiosa e na
lógica capitalista.
80

4. A POLÍTICA DE RESISTÊNCIA NO DISCURSO DO MPCESP

... falar quando se exige silêncio...

Michel Pêcheux

Neste capítulo, analisamos a política de significação do discurso do MPCESP. Antes,


no entanto, empreendemos uma discussão teórica sobre a noção de resistência no campo
discursivo de modo a evidenciar a perspectiva a partir da qual mobilizamos o conceito.
Ao refletir sobre o discurso revolucionário, Pêcheux (1982 [1990]) assinala que a
questão histórica das revoluções toca precisamente a relação entre “o visível e o invisível, entre
o existente e o alhures, o não-realizado ou o impossível, entre o presente e as diferentes
modalidades de ausência” (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 08]). E essa relação diz sobre o próprio
funcionamento da linguagem, dado que no confronto entre o real e o imaginário, em que se
tocam o existente e o não-realizado, a língua abre para o sujeito a possibilidade de entrada no
simbólico. E mais: a própria estrutura das línguas, conforme o filósofo, estabelece relações com
o além, o ausente e o invisível, como, por exemplo, as formas linguísticas de negação ou do
hipotético.
Fazendo avançar essa reflexão, Pêcheux (1982 [1990]) propõe pensar as relações da
linguagem com a revolução buscando compreender “de onde vêem os discursos
revolucionários, como eles se constituem historicamente, na sua relação com o inexistente, com
a irrealidade e com o impossível” (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 16]). Para dar conta desses
objetivos, o autor alerta para o que chama de “interpretações populistas do discurso
revolucionário”, que produzem dois “efeitos religiosos complementares”: o primeiro
responsável por localizar no discurso teórico a fonte do processo revolucionário; e o segundo
caracterizado pela pressuposição de que, no interior do mundo existente, haveria um “germe
revolucionário” independente e latente, prestes a surgir e dominar em momento oportuno.
Esses efeitos, segundo o teórico, incorrem no erro de pensar as ideologias dominadas
como independentes da ideologia dominante. Dito de outro modo, levam a crer que cada grupo
sócio-histórico é detentor de “sua própria ideologia”, subordinada apenas externamente,
perdendo de vista o fato de que a dominação se exerce na própria organização interna das
ideologias dominadas. Superar esses efeitos religiosos significa, para Pêcheux, reconhecer que
“as ideologias dominadas se formam sob a dominação ideológica e contra elas, e não em um
‘outro mundo’, anterior, exterior ou independente” (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 16]). Ainda
sobre a questão da ideologia, o autor ratifica a compreensão althusseriana que a concebe como
81

ritual, acrescentando que esse entendimento “supõe o reconhecimento de que não há ritual sem
falha, desmaio ou rachadura” (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 17]). É nesse ponto em que é possível
articular linguagem e revolução, linguagem e irrupção do irrealizado, através da figura da
interpelação ideológica: a tomada de “uma palavra por outra”, movimento que designa a
metáfora, evidencia, também, o ponto de ruptura do ritual no lapso ou no ato falho. Dessa
compreensão, decorre a definição discursiva de resistência:

Não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens; não repetir as litanias ou
repeti-las de modo errôneo, falar quando se exige silêncio; falar sua língua como uma
língua estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido das palavras e
das frases; tomar enunciados ao pé da letra; deslocar as regras na sintaxe e
desestruturar o léxico jogando com as palavras (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 17]).

Nessa quebra de ritual, o simples questionamento de uma ordem pode oferecer


margem para a insurreição ao ciclo de repetibilidade imposto pelo dominante, podendo chegar
a produzir um acontecimento histórico. É nesses moldes que Pêcheux propõe pensar a
resistência: como possibilidade de deslocamento produzido nos furos e falhas da própria
dominação através da tomada da palavra, da produção do sentido outro. Assim sendo, a
resistência não pode estar centrada na vontade de um sujeito ou de um grupo sócio-histórico
que, fora da ideologia, buscaria combatê-la. Descarta-se, ainda, a concepção de que a resistência
pressupõe o confronto de dois mundos diferentes, como se as ideologias dominadas tivessem
uma ideologia distinta e independente.
Pelo contrário, a resistência é produzida, contraditoriamente, no interior da ideologia
dominante, podendo oferecer aos sujeitos a possibilidade de despedirem-se “do sentido que
reproduz o discurso da dominação, de modo que o irrealizado advenha formando sentido do
interior do sem-sentido” (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 17]). Desse modo, a resistência se
constitui pela contradição e pelo equívoco, surgindo na reprodução ideológica, no momento em
que o ritual se estilhaça.
Assumir que a resistência encontra seu lugar nas falhas da ideologia traz à tona outras
implicações problematizadas por Orlandi (2016) que dizem respeito às formas atuais de
assujeitamento em nossa sociedade capitalista. Lembra a autora que o processo de
individua(liza)ção e identificação dos sujeitos passa, necessariamente, pelo seguinte
movimento: 1) a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia constitui a forma-sujeito-
histórica. Essa forma histórica do sujeito, na conjuntura capitalista, é individuada pelo Estado
através das discursividades e instituições, produzindo o sujeito jurídico, detentor de direitos e
deveres, livre e responsável frente à sociedade. 2) É esse sujeito individuado que vai identificar-
se com uma formação discursiva, constituindo sua posição-sujeito na formação social. Se é
82

nesses moldes que a interpelação ideológica ocorre em nossa conjuntura, e se é nas rachaduras
da interpelação/individuação que a resistência emerge, Orlandi (2016) conclui que

a questão da resistência está, de um lado, vinculada à relação entre forma-sujeito-


histórica e a individuação pelo Estado; de outro, pelo processo de identificação do
sujeito individuado com a formação discursiva em sua vinculação ao interdiscurso
(ORLANDI, 2016, p. 230).

Nesse movimento, o rompimento pode ocorrer quando o sujeito individuado se


identifica com uma e não com outra FD, produzindo deslocamentos/rupturas no próprio modo
pelo qual o Estado o individualiza42. A autora assume, desse modo, que a falha que atravessa o
processo de interpelação ideológica, também atravessa o processo de individuação. Assim,
Estado e ideologia abrem-se em ruptura, dando lugar à resistência que, por seu turno, assume
formas específicas a partir das condições de produção de nossa conjuntura histórica capitalista.
Sobre essas formas de resistência que se originam sob a ideologia dominante do
capitalismo e contra ela, vale retomar o questionamento feito por Orlandi (2016, p. 234): “essas
formas de resistência que atingem as posições-sujeito são capazes de abalar a forma-sujeito-
histórica capitalista?”. Isto é, são capazes de quebrar a lógica do Capital e transformar as
relações de produção, promovendo o “furo no social” (PÊCHEUX, 1975 [2014])? Tomando
como referência o discurso do MPCESP, a resposta é negativa: a forma de resistência do
movimento não rompe com o dominante, tendo em vista que suas posições, ancoradas nas leis
e no discurso jurídico do Estado, reiteram a forma-sujeito-histórica capitalista, o sujeito-de-
direito.
É preciso insistir, no entanto, que é na própria reprodução que a resistência toma seu
lugar. Nesse sentido, retornamos à discussão teórica que empreendemos na introdução deste
trabalho, chamando atenção para aquilo que Pêcheux (1991 [2014], p. 97) denominou de lutas
ideológicas de movimento, caracterizadas por “uma série de disputas e embates móveis (no
terreno da sexualidade, da vida privada, da educação, etc.) pelos processos por meio dos quais
a exploração-dominação da classe burguesa se reproduz, com adaptações e transformações”. À
diferença da resistência revolucionária que põe em evidência a luta de classes, buscando romper
com a dominação, a resistência que emerge das lutas ideológicas de movimento, embora
também inscrita nesse embate de classe, constitui-se em torno de objetos ideológicos tais como
a educação, a família, a religião.

42
Sobre esse deslocamento no modo de individuação, a autora reflete sobre os sujeitos que rompem com a ordem
jurídica, individuando-se pela falha do Estado. É o caso, por exemplo, dos pichadores, chamados “delinquentes”.
83

Esses objetos implicados nas lutas ideológicas de movimento constituem aquilo que
Pêcheux (1991 [2014]) vai chamar de objetos de paradoxo lógico, ou objetos paradoxais, por
apresentarem a propriedade de, a um só tempo, serem antagônicos e idênticos entre si. Tais
objetos “existem como relações de forças historicamente móveis” (PÊCHEUX, 1991 [2014],
p. 97), funcionando como unidades divididas. No caso do confronto discursivo entre o MESP
e o MPCESP, a educação constitui um objeto paradoxal, que, ao mesmo tempo, é representado
pelos movimentos de modo idêntico e antagônico, dado que os sentidos atribuídos à educação
significam diferentemente nesses discursos, dividindo-se entre a despolitização (neutralidade)
e a politização, entre a religiosidade e a laicidade, entre o social e o individual.
Nessa perspectiva, pensamos a política de significação do MPCESP como o lugar de
uma resistência circunscrita à luta ideológica de movimento em torno da educação. Nessa luta,
o discurso do MPCESP resiste à política de asfixia do MESP, produzindo choques de
deslocamento que reinscrevem o imaginário educacional no campo do político. Chegamos,
assim, à definição do que propomos chamar de Política de Resistência do MPCESP: um
processo discursivo que trabalha de modo a conter a Política de Asfixia do MESP, produzindo
pontos de resistência aos efeitos de i) despolitização dos objetos de ensino, ii) esvaziamento da
função-autor do sujeito-aprendiz e de iii) restrição e demonização do sujeito-professor.

4.1. A resistência à asfixia dos objetos de ensino: o que (não) pode/deve ser ensinado.

Buscando observar o modo como a resistência à asfixia dos objetos de ensino é


produzida, mobilizamos materialidades do primeiro e do terceiro espaço de significação que
compõe o Arquivo II: um referente às primeiras textualidades institucionais de enfrentamento
ao MESP43, constituídas por moções, notas de repúdio e manifestos, de onde recortamos as
SD18 e SD19; e outro concernente ao discurso do MPCESP disperso na internet em blogs,
podcasts, redes sociais e em entrevistas publicadas em portais virtuais – lugar de onde
recortamos as SD20, SD21 e SD22.
Nas cinco sequências que compõem este recorte analítico, é possível evidenciar no
discurso do MPCESP a produção de deslocamentos que marcam gestos de resistência,
engendrando efeitos de sentido, dos quais destacamos um efeito de rejeição à despolitização

43
É importante pontuar que, embora essas textualidades tenham sido produzidas por instituições e associações não
vinculadas diretamente ao MPCESP, suas posições, identificadas com a forma-sujeito educadora/progressista,
coincidem com a posição do movimento. Por essa razão, tomamos tais materialidades como representativas da
política de resistência à asfixia do MESP.
84

dos objetos de ensino e um efeito de reiteração dos sentidos já legitimados pela legislação
vigente, que evidenciam o caráter político do processo de ensino-aprendizagem. Vejamos como
esses efeitos são produzidos.

SD18: O movimento Escola sem Partido confunde propositalmente política com


política partidária, desconhecendo que não se faz educação sem dimensão política
e que discutir aspectos como sustentabilidade, igualdade de gênero, diversidade de
orientações sexuais, entre outros pontos combatidos pelo movimento, não constitui
doutrinação partidária. Ao limitar a discussão em sala de aula acerca da diversidade
de ideias, valores e atitudes existente na sociedade brasileira, o movimento Escola
sem Partido e os PLs por ele patrocinados, embora sejam supostamente contrários à
doutrinação, constituem, na verdade, uma forma particularmente violenta de
doutrinação que atinge nossas escolas, mina a possibilidade de um trabalho docente
de qualidade e esvazia a educação de sua função social44.

Logo de início, chamamos atenção para o fato de que, por se constituir enquanto um
contradiscurso, o dizer do MPCESP é marcado pela regularidade de evocar a presença de seu
opositor, realçando a posição daquele contra quem se luta (PÊCHEUX; WESSELIUS, 1973
[1977]). Exemplos dessa regularidade podem ser observados nas cinco SD que integram esse
recorte analítico, através de referências ao nome e à posição do movimento Escola sem Partido.
Nessa retomada do discurso antagônico, é possível observar o funcionamento da
resistência na produção de um deslocamento que faz derivar o sentido de doutrinação
construído pelo MESP. Como nos fala Pêcheux (1982 [1990, p. 17]), o gesto de “mudar,
desviar, alterar o sentido das palavras e das frases”, constitui um modo de resistir. No dizer em
destaque, discutir aspectos como sustentabilidade, igualdade de gênero, diversidade de
orientações sexuais não constitui doutrinação partidária, do contrário: essas temáticas são
defendidas na SD18 como aquilo que pode/deve ser ensinado, uma vez que abarcam a dimensão
política, destacada como critério para que haja educação: não se faz educação sem dimensão
política. Destacamos, aqui, o funcionamento da negação que, conforme Lagazzi-Rodrigues
(1999, p. 129), “produz diferentes lugares discursivos, diferentes posições de sujeito, diferentes
fatos”. Nesse sentido, assumimos que a negação possui um duplo funcionamento no qual
produz-se uma posição, rejeitando outras. A estrutura negativa, desse modo, funciona nessa
formulação num movimento de mão dupla que rejeita a despolitização dos objetos de ensino,
reafirmando, ao mesmo tempo, seu caráter político.

44
Moção de repúdio elaborada em Assembleia Geral Ordinária, durante o X Encontro de Pesquisa em Educação
em Ciências (ENPEC), no dia 26/11/2015 pela Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências
(ABRAPEC) e a Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio). Disponível em:
http://abrapecnet.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2015/12/Escola-sem-partido.pdf.
85

Por outro lado, a prática doutrinária é designada, no dizer em análise, como o ato de
limitar a discussão em sala de aula acerca da diversidade de ideias, valores e atitudes
existentes na sociedade brasileira. Nesse deslocamento, produz-se uma inversão que marca
outro ponto de resistência: aqui, o agente doutrinador não é o professor, mas o MESP, por conter
a diversidade (de ideias, valores e atitudes), contendo, em consequência, o sentido outro.
Evidencia-se, assim, uma tomada de posição inscrita em uma FD progressista que
produz um imaginário de educação política, aberta à polissemia dos sujeitos e dos sentidos por
significar os objetos de ensino como espaços que privilegiam a diversidade. Aqui, é importante
pontuar que “toda tomada de posição implica um gesto de resistência” (GRIGOLETTO; DE
NARDI, 2016, p. 280), tendo em vista que, ao se identificar com determinada posição, os
sujeitos e os sentidos, necessariamente, resistem a tantas outras. Nessa tomada de posição, o
MPCESP resiste à posição do MESP, marcando para si um lugar autointitulado contrário ao
Escola sem Partido (Movimento Professores contra o Escola sem Partido), ou, como veremos
na SD19, contrário à Escola com Mordaça.

SD19: Nós da Frente Goiana pela Escola sem Mordaça, formada por sindicatos de
trabalhadores da educação, movimentos sociais e coletivos de luta, defendemos que
a educação e a escola devem formar cidadãos através do debate sobre
diversidades culturais, de gênero e sexualidade, além de questões políticas e
sociais. A Lei da Mordaça quer na verdade impedir a livre organização social,
ameaçando o próprio direito constitucional de liberdade, pensamento e expressão,
bem como eliminando a autonomia de trabalho do professor45.

Note-se que a própria autodesignação da Frente evidencia uma resistência produzida


pelo efeito de antagonismo entre um nós, a Escola sem Mordaça, e um ela, a Lei da Mordaça,
ou a Escola com Mordaça, que faz referência ao MESP. Esse nós que marca a posição do
MPCESP ainda é representado na SD19 como parte integrante de grupos sociais legitimados
por uma memória de resistência e militância política, como sindicatos, trabalhadores da
educação, movimentos sociais e coletivos de luta. Ao falar desse lugar de resistência, o
MPCESP produz o efeito de reiteração do caráter político da educação, definindo como objetos
de ensino necessários à formação cidadã o debate sobre diversidades culturais, de gênero e
sexualidade, além de questões políticas e sociais.
Outro aspecto importante a se destacar no discurso do MPCESP é o gesto de resistência
produzido pelo efeito de denúncia, introduzido nas SD18 e SD19 pelo uso da locução adverbial
“na verdade” que funciona de modo a denunciar, isto é, “anunciar, propagar, dizer (a verdade)”

45
Manifesto de repúdio à Lei da Mordaça, Frente Goiana por uma Escola sem Mordaça. Disponível em:
http://sintef.org.br/wp/wp-content/uploads/2016/08/Manifesto-de-Rep%C3%BAdio-%C3%A0-lei-da-
morda%C3%A7a.pdf.
86

(PAYER, 2006, p. 64) sobre o “real propósito” do MESP que, segundo o movimento, seria o
de minar a possibilidade de um trabalho docente de qualidade; esvaziar a educação de sua
função social (SD18); impedir a livre organização social; ameaçar os direitos constitucionais
da liberdade, pensamento e expressão; e eliminar a autonomia do professor (SD19).
Os verbos em destaque que (d)enunciam, imaginariamente, a “verdade” sobre o MESP
fazem referência a ações coercitivas de censura (minar, esvaziar, impedir, ameaçar e eliminar),
uma censura que, conforme formulado nas SD18 e SD19, impõe-se à qualidade e autonomia
do trabalho docente, à função social da educação, à livre organização social, aos direitos de
liberdade, pensamento e expressão. Tal censura é denunciada nesse discurso por afetar
diretamente a posição do professor-educador, na qual o MPCESP se inscreve. Nesse sentido, a
denúncia à censura irrompe no dizer em análise como um gesto de resistência que, além de
marcar o antagonismo ao MESP, reafirma a posição-sujeito do MPCESP.
A própria designação “Lei da Mordaça” que aparece na SD19, fazendo referência aos
Projetos de Lei Escola sem Partido, evidencia uma escolha lexical que produz esse efeito da
denúncia de que há, nos PL, uma tentativa de amordaçar, isto é, censurar os professores, bem
como a função política e social do processo de ensino-aprendizagem. Em contraposição a essa
censura, o movimento toma para si o título de Escola sem Mordaça, reafirmado sua posição de
resistência.
É preciso lembrar que o efeito de denúncia também é produzido no discurso do MESP,
mas a partir de outro funcionamento, o da asfixia, que denuncia a “doutrinação” de modo a
silenciar/sufocar a posição do professor educador/progressista, ou silenciar os sentidos que
politizam o imaginário sobre a educação nacional, ao passo que, no discurso do MPCESP, a
denúncia aparece como um gesto de resistência a esse silenciamento, um gesto que (d)enuncia
quando o MESP impõe seu silêncio.
Na SD20, a resistência à asfixia dos objetos de ensino se realiza a partir de um
deslocamento dos sentidos produzidos pelo MESP referentes à imposição da moral familiar
sobre aquilo que pode/deve ser ensinado. Nesse deslocamento, o MPCESP representa os
objetos de ensino enquanto elementos não subordinados às convicções familiares, mas às
demandas sociais.
SD20: Se uma família não aceitar a justiça social, por exemplo, não considero justo
e adequado a moral familiar se sobrepor à missão da educação escolar. Se a família
tiver uma postura discriminatória, por exemplo, a moral familiar deve ser
enfrentada e não pode se sobrepor à educação escolar. A família precisa ser
considerada como parte da sociedade. Mas não pode ser maior do que o todo
(CARA, 2018).
87

A SD20 (e próximas SD que integram este tópico analítico) se inscreve no terceiro


espaço de significação do Arquivo II e recorta uma matéria, publicada no site do Centro de
Referência em Educação Integral, que apresenta o posicionamento de educadores sobre os
Projetos de Lei Escola sem Partido. Dentre os educadores entrevistados, está o coordenador
geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Daniel Cara, que, em seu dizer, traz à
tona a problemática sobre a relação família-escola, em especial, a questão da moral familiar
impondo-se no contexto educacional.
O deslocamento ao qual nos referimos pode ser observado, inicialmente, a partir da
problematização que se coloca na SD20 sobre o papel da família na educação escolar, num
gesto de resistência ao discurso do MESP que questiona a função da escola no processo
educacional. Nessa inversão, a família é destituída do lugar de autoridade inquestionável
projetado no discurso mespiano e é (re)inscrita no espaço público como parte da sociedade, não
sendo superior a ela. No dizer de Cara, a família precisa ser considerada como parte da
sociedade. Mas não pode ser maior do que o todo. Nessa perspectiva, a fala do educador produz
o efeito de soberania da escola em referência às convicções familiares (a moral familiar não
pode se sobrepor à educação escolar). Marca-se, portanto, o que não pode/deve se fazer
presente em sala de aula: a sobreposição da moral familiar ao processo educacional.
Se na análise da Política de Asfixia, evidenciamos um efeito de primazia da moral
familiar sobre os princípios pedagógicos, aqui, evidenciamos um gesto de resistência produzido
por um deslocamento que representa a instância educacional como soberana e independente da
instância familiar. Nesse deslocamento, a Educação é esboçada como um espaço de luta política
para alcançar a justiça social. Aquilo que pode/deve ser ensinado, portanto, é projetado como
um elemento não subordinado à família, mas às demandas da sociedade, pautando-se no
combate à discriminação: Se a família tiver uma postura discriminatória, por exemplo, a moral
familiar deve ser enfrentada. Reafirma-se, desse modo, o caráter político-social do ensino e a
rejeição à sua moralização.
Na SD21, é possível evidenciar o efeito de rejeição a um imaginário de educação
neutra, e o efeito de reafirmação do caráter político dos objetos de ensino. Tais efeitos são
produzidos a partir de gestos de resistência que colocam em cena um antagonismo marcado
entre os ideários de neutralidade e de politização.

SD21: Quando se diz [...] "homofobia não é tema da sala de aula", quanto
sofrimento isso não vai gerar pra alunos que inclusive vão sair da escola, deixar de
aprender por conta disso? Quando você coloca que racismo não é tema da sala de
aula, quantos alunos não vão continuar sofrendo racismo? E isso vai gerar um
ambiente no qual uma grande parcela da nossa sociedade não vai ter condições de
88

aprender o que quer que seja. Então, essa neutralidade, quando você, o professor,
como se o professor só pudesse transmitir conhecimento, ele deixaria que a sala de
aula se tornasse um espaço onde todos os piores elementos da nossa sociedade sejam
reproduzidos. Se o aluno faz, então, um comentário de ódio voltado ao outro.
Racismo! Ele faz um comentário racista. Dentro da lógica do Escola sem Partido,
o professor teria que falar "olha, esse comentário é impertinente porque tá
atrapalhando a nossa transmissão do conhecimento, então, por favor, parem com isso
senão vocês vão ser penalizados". Como pensa o educador? Esse, quando você vê um
caso de homofobia, de machismo, de racismo, você não vai parar a sua discussão de
história, de geografia, sociologia, matemática, física, pra trabalhar esses temas.
Aquilo ali é um tema, se você é um educador. [...] Você vai pegar aquele caso de
racismo e tentar entender historicamente porque na nossa sociedade, hoje, e essa é
uma decisão democrática, nós não aceitamos o racismo como uma prática. E isso é
importante na formação de todos os alunos que estão em sala de aula na criação desse
espaço democrático. E com relação a essas temáticas, não pode existir neutralidade.
A nossa Constituição, todos os documentos que nós assinamos internacionalmente,
eles garantem que a educação, ela deve combater as formas de desigualdade, inclusive
a de gênero. E ela deve formar pra uma educação democrática. [...] Com relação a
isso, não há neutralidade. O professor deve mobilizar os valores do diálogo com a
diferença, convívio democrático, espaço público. Esses são valores que o professor
mobiliza, deve mobilizar em sala de aula, sim (PENNA, 2017c).

A fala em destaque faz referência à problemática da neutralidade proposta pelo MESP.


Seu contexto de produção imediato remete a uma entrevista feita com Fernando Penna,
publicada no YouTube, no canal Tarcísio Motta46. No gesto de dizer do professor, é interessante
notar, de início, o modo como, reiteradamente, a posição do MESP é evocada através de
estruturas como “Quando você diz que homofobia não é tema de sala de aula...; Dentro da
lógica do Escola sem Partido...; essa neutralidade”. O uso dessas estruturas linguísticas traz
para o dizer do movimento a presença de seu opositor, marcando, assim, uma relação de
antagonismo.
O modo como a oposição entre MPCESP e MESP é construída na fala de Penna pode
ser melhor visualizado a partir da produção de sentidos sobre aquilo que pode (e deve) e o que
não pode (e nem deve) ser ensinado. No recorte em análise, o professor elenca uma série de
temas que podem/devem ser trabalhados em sala de aula. Entre esses temas, destaca o
machismo, o racismo e a homofobia, apontando para o fato de que discutir tais problemáticas
possibilita a criação de uma “educação democrática” que possua os valores do “convívio” e
“diálogo com a diferença”. Tais expressões evidenciam a inclusão e defesa do outro, do
diferente, enquanto objeto de reflexão no espaço escolar, produzindo, assim, o efeito de
politização dos objetos de ensino. Tais temas, desse modo, são autorizados no discurso do
MPCESP, determinando aquilo que pode e deve ser ensinado.

46
Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=nNw91eltCCw.
89

Por outro lado, o enunciador aponta para aquilo que não pode estar presente no ensino:
a neutralidade. No dizer de Penna, manter-se neutro frente a manifestações de intolerância que
podem ocorrer, inclusive, na própria sala de aula, significa reproduzir a desigualdade. Há, aqui,
a produção de um deslocamento com relação ao discurso do MESP: o sentido de neutralidade
não se refere à justiça, mas, do contrário, à perpetuação das injustiças. Produz-se, assim, um
efeito de rejeição à neutralidade (“não pode haver neutralidade”) que põe em funcionamento
um gesto de resistência: o que pode e deve se fazer presente na escola (a política a e diversidade)
se coloca, no dizer de Penna, como sendo aquilo que resiste à asfixia do MESP (a neutralidade
que reproduz a desigualdade). Emerge, assim, o confronto entre politização e neutralidade,
imaginários sobre a educação que sustentam as posições dos movimentos antagônicos.
Outra oposição evidente na SD21 diz respeito à construção de uma cena onde figuram
as representações do instrutor e do educador. Nessa cena, a fala de Penna põe em funcionamento
um jogo de imagens que evidencia o confronto entre essas posições-sujeito, trabalhando, em
consequência, o embate entre as FD nas quais elas se inscrevem. Novamente, o confronto
politização x neutralidade é destacado de modo a problematizar o discurso do MESP e, a um
só tempo, apresentar um ponto de ruptura a ele, fazendo emergir a resistência. Um exemplo
desse funcionamento pode ser observado na formulação como se o professor só pudesse
transmitir conhecimento. Aqui, a forma verbal no subjuntivo somada a expressão “como se”
produz um efeito que remete ao plano hipotético, ao não realizado. Assim, numa paráfrase da
mesma formulação, seria possível dizer: Como se o professor pudesse apenas transmitir
conhecimento, descolado das dimensões políticas e sociais, mas não pode. Nega-se e, portanto,
resiste-se à posição de instrutor e ao imaginário de um ensino destituído de sua feição política,
fazendo irromper o confronto politização x neutralidade.
A resistência à asfixia dos objetos de ensino aparece, ainda, na SD21, pela produção
de um efeito de aliança entre o discurso oficial do Estado e o do MPCESP, como podemos
evidenciar no trecho: A nossa Constituição, todos os documentos que nós assinamos
internacionalmente, eles garantem que a educação, ela deve combater as formas de
desigualdade. É interessante notar que, ao se colocar enquanto “nós”, o enunciador evidencia
um recobrimento entre a sua posição e a posição oficial do Estado, no que se refere à esfera
educacional, evocando a Constituição e os documentos oficiais. É importante lembrar que a
chamada Constituição Cidadã é marcada por uma memória de resistência à ditadura e à
desigualdade, filiando-se à FD educacional progressista. Identificando-se, pois, com a
discursividade constitucional, o dizer em análise legitima sua posição de resistência à
desigualdade. Assim, as formas de desigualdade são colocadas nesse discurso como objetos de
90

ensino que devem ser problematizados em sala de aula, de modo a construir caminhos para a
sua superação.
Na SD22, o tema do combate à desigualdade é também trazido à tona no dizer do
professor Penna por meio de um debate orientado pela temática da “Democracia Radical”. O
debate, organizado pelo MPCESP, textualiza-se na forma de um podcast publicado no blog
“Sobre História”47. A SD em destaque nos chama a atenção por apresentar dois diferentes
movimentos de resistência: a resistência à asfixia dos objetos de ensino e uma outra resistência
que se desloca do embate direto com o MESP, trazendo à tona uma oposição entre a escola
existente e a escola que vai se lutar para construir.

SD22: [...] é papel da escola construir essa cultura democrática, e aí é necessário o


combate a todas as formas de desigualdade na escola: racismo, machismo,
homofobia... tudo. Todas essas... tudo isso tem que ser problematizado na escola.
[...] E aí o discurso que a gente tá problematizando [...] ele é um discurso que diz que
a escola não pode, por exemplo, falar de gênero. Então, é uma ameaça a essa
concepção de uma escola democrática, de uma educação democrática. Uma pergunta
muito boa que foi feita pra mim esse ano num debate [...], eu tava falando, justamente
fazendo essa defesa de uma educação democrática [...] e aí uma pessoa perguntou pra
mim: cê acha que nós temos essa educação democrática? Eu falei: Em alguns pontos,
sim, mas certamente isso ainda é algo que a gente tá lutando para construir. [...]
Então não é "Ah, a gente tá defendendo a escola que existe”. Não! A gente tá
defendendo as práticas interessantes que existem, mas a gente ainda tem que
construir muita coisa. [...] A escola que a gente vai lutar para que seja, né?
(PENNA, 2018).

De início, destacamos na SD22 a produção de sentidos sobre um irrealizado, aquilo


que pode vir a ser, isto é, a construção de uma cultura/educação/escola democrática, colocada
na fala de Penna como algo que ainda não existe plenamente, mas que o movimento luta pra
construir. Como requisitos necessários para a realização desse alhures, o dizer em análise
evidencia a necessidade de combater todas as formas de desigualdade na escola.
O combate à desigualdade, desse modo, é representado enquanto um objeto de ensino
que pode/deve atravessar a sala de aula, de modo a construir essa cultura democrática. Produz-
se, aqui, não apenas um efeito de politização dos objetos de ensino que resiste à neutralidade
(significada como ameaça à educação democrática), mas também um efeito de onipotência
desses objetos, representados como sendo capazes de problematizar todas as formas de
desigualdade existentes na sociedade.
Este último efeito está na base daquilo que Orlandi (2016, p. 213) denomina de ilusão
da onipotência do domínio social, sintetizada na formulação “juntos podemos tudo”. Nessa

47
Ver em: http://www.sobrehistoria.blog.br/podcast/pcesp2-democracia-radical/
91

ilusão de que a coletividade tudo pode realizar, o MPCESP busca construir uma
cultura/educação/escola democrática que combata todas as desigualdades.
Ainda na SD22, destacamos o gesto de resistência que se desloca do embate direto
com o MESP, produzindo uma outra oposição entre a Escola que existe e a Escola que vai se
lutar para que seja. Nesse embate, o enunciador produz um efeito de distanciamento entre a
posição do MPCESP e a posição na qual a “Escola existente” se inscreve (Então não é "Ah, a
gente tá defendendo a escola que existe”. Não!), produzindo, em contrapartida, o efeito de
proposição de um novo ainda em elaboração: a gente tem que construir ainda muita coisa.
Nesse sentido, a escola que se quer, ainda irrealizada, é projetada no espaço equívoco do vir a
ser. A resistência do MPCESP, desse modo, irrompe não apenas pelo efeito de politização dos
objetos de ensino, mas na proposição de um outro imaginário de educação a ser construído:
uma educação democrática que combata todas as formas de desigualdade.
Como pudemos evidenciar, a resistência à asfixia dos objetos de ensino irrompe no
discurso do MPCESP por meio de gestos de resistência à despolitização, que reinscrevem a
educação no campo do político, produzindo uma abertura dos sentidos sobre o imaginário
educacional, em contraposição ao fechamento e a univocidade evidenciada no discurso do
MESP. Passemos, agora, ao processo de resistência à asfixia do sujeito-aprendiz.

4.2. A resistência à asfixia do sujeito-aprendiz: quem o aprendiz (não) pode/deve ser

O que estamos propondo chamar de resistência à asfixia do sujeito-aprendiz é o


processo pelo qual o discurso do MPCESP resiste ao esvaziamento simbólico-político da
posição do estudante, de modo a representá-lo enquanto “sujeito-responsável” pelo seu dizer,
isto é, autor dos sentidos que produz, ou, parafraseando Pêcheux ([1975] 2014), um sujeito que
ousa pensar por si mesmo.
Para observar esse processo discursivo, mobilizamos materialidades concernentes ao
segundo e terceiro espaços de significação que integram o Arquivo II. Iniciamos, pois, com a
SD23, recortada de um pronunciamento do professor Fernando Penna, realizado em audiência
pública sobre os PL “Escola sem Partido”, na Câmara Municipal da cidade de Ribeirão Preto,
em abril de 2017.

SD23: Então, quando um professor, um educador, ele fala que o aluno não é uma
folha em branco não existe nenhuma tentativa de hierarquizar as capacidades críticas
de ninguém, comparar a do aluno com outros alunos, ou entre o aluno e professor.
Existe uma tentativa de dizer que o aluno é capaz de fazer críticas, ele é capaz de
92

entender a realidade na qual ele convive e que a escola tem um papel importante nessa
discussão (PENNA, 2017d).

Note-se que o dizer em análise estabelece uma disjunção entre quem o aluno não é e
quem o aluno é. Destacamos, inicialmente, a designação sobre quem esse sujeito não é: uma
folha em branco. Essa metáfora, trazida no dizer de Penna, constitui uma formulação inscrita
na rede de memória educacional progressista, que reverbera no discurso de educadores,
produzindo o efeito de rejeição ao imaginário do aprendiz enquanto um sujeito despossuído de
determinações sociais, culturais e ideológicas que orientam seu modo de interpretar a si e ao
mundo. Por essa metáfora, assim, resiste-se ao imaginário do aprendiz não-autor.
Por outro lado, o estudante é projetado como um sujeito de densidade histórica,
trazendo para a escola, saberes e sentidos próprios da sociedade na qual está inserido e, desse
modo, não pode/deve ser uma folha em branco. Esse imaginário do aluno encontra eco em
correntes pedagógicas progressistas como a Pedagogia da Autonomia, de Paulo Freire (1996),
que concebe o reconhecimento da autonomia do estudante como um imperativo ético para a
escola e o professor. Produz-se, assim, o efeito de autoria do sujeito-aprendiz como alguém que
pensa por si mesmo.
O mesmo efeito de autoria pode ser observado na SD24, retirada de um artigo escrito
pelo colunista Contardo Calligaris, publicado na Folha de São Paulo e compartilhado na página
do Facebook do MPCESP.

SD24: Sou contra doutrinação, de todo tipo. Justamente por isso, parece-me bom que
os professores proponham conteúdos diferentes do que os pais já pensam e já tentam
impor às crianças. Sem isso, ir para a escola para o quê? Aluno bom é o que critica
a casa graças ao que aprende na escola, e a escola graças ao que aprendeu em
casa (CALLIGARIS, 2016).

Inicialmente, é interessante notar os deslocamentos produzidos, na SD24, em relação


ao discurso do MESP. Nesse recorte, a posição do doutrinador é atribuída aos pais, uma vez
que tentam impor “conteúdos” às crianças. Desloca-se, ainda, sentidos sobre o dever da escola
e do professor, que no discurso mespiano, é, entre outros, o de conservar, em sala de aula, as
convicções dos familiares. Já no dizer em análise, tais convicções devem ser tensionadas na
escola, por meio de conteúdos diferentes do que os pais já pensam. A escola, desse modo,
aparece enquanto espaço polêmico, onde o aprendiz possa lidar com diferentes sentidos,
identificando-se com uns e resistindo a outros, de modo que critique a casa graças ao que
aprende na escola, e a escola graças ao que aprendeu em casa.
Desse modo, o aluno bom, isto é, quem o aprendiz pode/deve ser, é representado como
aquele que não é nem reprodutor do discurso dos pais, nem reprodutor do discurso do
93

professor/escola, mas, embora afetado por essas instâncias, constitui-se enquanto um sujeito
crítico, autor do próprio dizer. Nesse deslocamento, família e professor/escola, figuram como
instituições não antagônicas, mas complementares na formação do bom aluno: um sujeito
crítico e autônomo.
O efeito de criticidade e autonomia do sujeito-aprendiz ainda pode ser visualizado na
SD25, recortada de uma publicação do site do MPCESP intitulada “7 perguntas e respostas
sobre o Escola sem Partido”.

SD25: As alunas e alunos precisam aprender a pensar a política e a sociedade, a


debater e a defender seus pontos de vista (desde que não firam a legislação, como
por exemplo um discurso de ódio). [...] É importante que o aluno seja capaz de utilizar
o que aprende para pensar filosoficamente, sociologicamente e historicamente o
que acontece no mundo, em seu país, seu estado, sua cidade, sua escola, sua família
etc. É para isso que os alunos devem frequentar a escola e não para decorar uma
lista de nomes e datas (PROFESSORES CONTRA O ESCOLA SEM PARTIDO,
2018).

Na SD25, a resistência à asfixia do sujeito-aprendiz é produzida pela definição sobre


quem ele pode/deve ser: um sujeito crítico que aprende na escola a debater e defender seus
pontos de vista de forma democrática, utilizando os conhecimentos que constrói em sala de aula
para pensar filosoficamente, sociologicamente e historicamente o que acontece no mundo, em
seu país, seu estado, sua cidade, sua escola, sua família etc. Nesse sentido, o aprendiz é
autor(izado) a ser um cidadão que reflete sobre a política e a sociedade. Há, desse modo, um
outro deslocamento com relação ao discurso do MESP. Aqui, a política não representa
partidarismo, ameaça ou tentativa de doutrinação do aluno, mas um modo de compreensão da
vida em comunidade. É, pois, para isso que os alunos devem ir à escola.
Em contrapartida, marca-se, nesse discurso, o motivo pelo qual o aluno não deve ir à
escola: decorar uma lista de nomes e datas. Evidencia-se, aqui, o caráter redutor que subjaz a
essa prática de ensino-aprendizagem, e define-se, portanto, quem o aprendiz não pode/deve ser:
um mero assimilador de conteúdos formais. Produz-se, desse modo, um efeito de rejeição ao
imaginário do estudante enquanto uma folha em branco a ser preenchida por conteúdos de
português, matemática e ciências, esvaziados de sua significação política e social.
Da mesma publicação retirada do site do MPCESP, recortamos a SD26, que contesta
o efeito de vulnerabilidade do sujeito-aprendiz produzido no discurso mespiano.

SD26: Ao mesmo tempo que o discurso do “Escola Sem Partido” ataca e cria uma
campanha de ódio aos professores, ele também atinge os alunos, que têm muito a
dizer sobre a escola onde estudam e a sociedade onde vivem. Ao tratá-los como
“audiência cativa” nas escolas, ou como “presas indefesas” da tão falada mas nunca
explicada “doutrinação ideológica”, as vozes desses alunos são caladas. Dizer que
os estudantes só se engajam politicamente porque professores os manipulam é evitar
94

as questões e demandas estudantis (PROFESSORES CONTRA O ESCOLA SEM


PARTIDO, 2018).

A SD em análise problematiza sentidos que se apresentam como saturados no discurso


do MESP: 1) o de que o aprendiz é um sujeito vulnerável à doutrinação; 2) e, o de que, na
esteira dessa vulnerabilidade, o aprendiz engajado politicamente foi doutrinado, sequestrado
intelectualmente, pelo professor. A resistência, aqui, é produzida pelo efeito de contestação
desses sentidos através do reconhecimento de que os educandos possuem voz própria, são
autores de si, e, por isso mesmo, têm muito a dizer.
Um outro efeito produzido é o de denúncia ao silenciamento dos estudantes por meio
da representação desses sujeitos como audiência cativa e presas indefesas da doutrinação
ideológica. Para o MPCESP, dizer que os estudantes só se engajam politicamente porque
professores os manipulam é evitar as questões e demandas estudantis. Tal formulação põe em
causa o efeito de vitimização do estudante engendrado no discurso do MESP, trazendo à tona
a memória de resistência e politicidade histórica desses sujeitos, abafadas sob o rótulo da
vulnerabilidade.
Assim, a resistência à asfixia do sujeito-aprendiz irrompe no discurso do MPCESP
por meio dos efeitos de denúncia ao silenciamento desses sujeitos e contestação do
esvaziamento simbólico-político de sua função-autor. Ao enunciar a partir de uma FD
progressista, o MPCESP reconhece, em seu dizer, a autonomia e politicidade do estudante,
representando a escola como um lugar de fala e de escuta desses sujeitos que têm muito a dizer.

4.3. A resistência à asfixia do sujeito-professor: quem (não) pode/deve ensinar

Pensamos a resistência à asfixia do sujeito-professor como um processo discursivo no


qual a resistência irrompe na/pela produção de efeitos nos quais estão implicados os processos
de identificação e desidentificação. Entre esses efeitos, destacamos: 1) o efeito de rejeição à
posição do instrutor/burocrata, bem como à posição do militante/sequestrador/monstro
projetadas pela política de asfixia do MESP; e 2) o efeito de (re)afirmação da posição do
educador.
Chamamos atenção para o fato de que a resistência não se produz na “forma heroica a
que estamos habituados a pensar, mas na divergência desarrazoada, de sujeitos que teimam em
(r)existir” (ORLANDI, 2016, p. 234). É sobre essa (r)existência, isto é, uma existência que
95

resiste, que gostaríamos de refletir neste tópico, tomando a posição-sujeito do professor-


educador como lugar de resistência à posição do burocrata engendrada no discurso do MESP.
Iniciamos nosso gesto analítico com a SD27 que compõe o primeiro espaço de
significação do Arquivo II, referente às primeiras textualidades de enfrentamento ao MESP. A
SD foi recortada de uma moção contra o Programa Escola sem Partido, assinada pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e publicada em 2016, no site da instituição.
Destacamos, nesse recorte, o duplo funcionamento da negação que irrompe no discurso do
MPCESP enquanto gesto de resistência, produzindo os efeitos de rejeição à posição do
instrutor/burocrata e de (re)afirmação da posição de educador.

SD27: O Programa Escola Sem Partido tem uma visão limitada da docência. Encara-
se o professor como um profissional, meramente, transmissor do conhecimento aos
alunos, não levando em conta a reflexão, a crítica, a dúvida e o questionamento. A
docência não se resume somente à transferência de conhecimento e reprodução
padronizada de livros didáticos. Professores são também educadores e, por isso, não
têm apenas um papel mecânico como profissão, mas, sim, a capacidade de educar
jovens e transformar a sociedade em que vivemos (UNIVERSIDADE DO ESTADO
DO RIO DE JANEIRO, 2016).

Evidenciamos, nessa materialidade, a recorrência de uma estrutura linguístico-


discursiva sintetizada na construção “o professor não é só x, mas x+y” que pode ser observada
em: 1) não se resume somente à transferência de conhecimento e reprodução padronizada de
livros didáticos [...] (mas), também, educadores; e 2) não têm apenas um papel mecânico [...]
mas, sim, a capacidade de educar jovens e transformar a sociedade em que vivemos.
Em tais formulações, o funcionamento da negação irrompe a partir dos vestígios
linguísticos “não se resume somente” e “não tem apenas” que produzem o efeito de rejeição à
posição do instrutor, representando-a como insuficiente, redutora. Por outro lado, na mesma
estrutura, a conjunção adversativa introduz sentidos outros que (re)afirmam a posição do
educador, num movimento que tensiona e desestabiliza os sentidos de instrutor/burocrata,
produzindo, aí, um gesto de resistência no qual o professor passa a ser representado como
sujeito político, agente de transformação social, educador. Nesse deslocamento de sentidos,
produz-se um efeito polêmico de contestação do discurso antagônico, ao mesmo tempo em que
se promove uma “abertura” da posição asfixiada do educador.
Em contraste à SD27, na SD28, os efeitos de rejeição e (re)afirmação são produzidos
a partir de estruturas afirmativas:

SD28: Vão seguir existindo, sim, professores com diferentes ideologias, diferentes
pontos de vista, em todas as escolas do Brasil. E vão existir, sim, professores com
liberdade pedagógica, se utilizando de todo e qualquer método e falando de todo e
96

qualquer assunto porque isso é um princípio pra garantir qualquer condição mínima
pra educação (BOMFIM, 2017).

A SD28 integra o segundo espaço de significação do Arquivo II, concernente ao debate


público sobre um dos PL defendidos pelo MESP, o PL 7180/14, do deputado Erivelton Santana
(PATRI), que prevê a precedência de valores familiares sobre a educação escolar, no que diz
respeito a questões morais, sexuais e religiosas. O dizer em análise foi proferido pela docente e
vereadora de São Paulo, Sâmia Bomfim, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), em
audiência pública na Câmara dos Deputados, ocorrida em novembro de 2017. No contexto
imediato de onde o recorte foi retirado, a vereadora se pronunciava contra o PL em debate,
argumentando que a pretensa lei constituía uma ameaça à educação por negar ao professor seu
direito à liberdade de ensinar.
Observamos, nesse recorte, o funcionamento discursivo da afirmação que, de modo
análogo à negação, permite que o sujeito se inscreva (se afirme) em certos espaços, negando,
em consequência, outros nos quais ele não está inscrito. Esse trabalho de (des)identificação
emerge na SD28 por meio de um dizer que reafirma a existência/resistência dos professores
identificados enquanto educadores, negando, por conseguinte, a posição do instrutor.
O gesto de interpretação que produz esse duplo movimento pode ser evidenciado nas
formulações vão seguir existindo, sim e vão existir, sim que afirmam a posição do educador
enquanto um sujeito político, não-neutro, e livre para exercer sua função autonomamente. Essa
identidade profissional ainda é afirmada no dizer em análise sendo representada como um
requisito, condição mínima, para que haja ensino.
Por outro lado, o “sim” que afirma, também nega, colocando-se em oposição ao
imaginário de um professor neutro e destituído de sua liberdade pedagógica. Desse modo, pela
afirmação, rejeita-se sentidos, afirmando outros: um gesto de interpretação por meio do qual o
MPCESP se identifica com a FD educadora/progressista e se desidentifica com a FD
tradicional/tecnicista. Marca-se, aqui, uma resistência na qual existir (já) é resistir, nas palavras
de Orlandi (2016), uma (r)existência.
Passemos, agora, ao terceiro espaço de significação do Arquivo II, correspondente à
circulação do discurso do MPCESP na internet por meio de Redes Sociais, sites e blogs.
Iniciamos nossa investida nesse espaço com a SD29, na qual o efeito de (re)afirmação do
professor-educador emerge na representação de um profissional capacitado para trabalhar
questões políticas e sociais em sala de aula. A identidade profissional do professor-educador,
aqui, aparece como aquela que resiste ao efeito de demonização que coloca o professor como
um sujeito vil, mal-intencionado.
97

SD29: Às vezes eu imagino que nós estamos dizendo que o professor, os


professores, são monstros. [...] Acredito que um professor deva estar preparado não
só pra propor um tema, mas pra ter uma intervenção pedagógica imediata num
momento de preconceito, de discriminação, de homofobia. E aí nós precisamos
confiar nos profissionais que são formados no Brasil (MORAES, 2015).

O contexto imediato no qual o dizer em destaque foi produzido remete a um debate


promovido pelo programa Entre Aspas, do canal Globo News, tendo como participantes o
coordenador do movimento Escola sem Partido, Miguel Nagib, e a pedagoga da prefeitura de
Guarulhos, Silvia Moraes. O debate, publicado no YouTube, trazia à tona a problemática do
ensino sobre sexualidade nas escolas e a fala da pedagoga, recortada na SD29, ia de encontro à
propagação de um clima de desconfiança ao fazer docente, no que tange ao trabalho pedagógico
das questões de gênero.
Destacamos, nesse dizer, uma tomada de posição em defesa do professor que se coloca
na SD29, a partir do uso de um “nós” que apresenta um valor referencial ambíguo. Conforme
Indursky (2013, p. 82), “o ‘nós’ designa conjuntos lexicalmente não-nomeados” e por isso é
entendido como uma não pessoa discursiva. Assim, o eu se associa a um nós não especificado
linguisticamente, produzindo uma ambiguidade.
No dizer em análise, o eu enunciador integra-se a um nós que parece remeter à
sociedade, na qual ele se coloca como parte integrante. No entanto, se considerarmos a
opacidade no uso do pronome, veremos que, na primeira ocorrência do nós, projeta-se a posição
do discurso antagonista, ao passo que, na segunda ocorrência, a posição representada é a do
MPCESP. A primeira ocorrência pode causar certo estranhamento, dado que, comumente, o
opositor é representado no discurso como o outro, um tu ou um ele. Como diria Sartre, o inferno
são os outros, nunca o eu/nós. Contudo, o equívoco da língua se mostra nessa estrutura na qual
a educadora formula uma crítica ao MESP, enunciando que nós estamos dizendo que os
professores são monstros, sem com isso, incluir-se nessa posição. O nós, aqui, assume a função
de eles, possibilitando uma paráfrase desse dizer na qual se (d)enuncia que eles (MESP) estão
dizendo que os professores são monstros. Confrontamo-nos, assim, com um funcionamento
inverso no qual o discurso antagonista está representado em primeira pessoa (nós) e a posição
a partir da qual se fala está representada em terceira (os professores).
Já na segunda ocorrência do nós, produz-se um efeito de valorização do professor por
meio de um apelo: nós precisamos confiar nos profissionais (professores) que são formados no
Brasil. Embora a posição do professor seja colocada, novamente, como um eles, Moraes fala
do lugar de educadora, não marcando, no entanto, essa posição esfumada pela não pessoa
discursiva. O nós, por sua vez, parece remeter à sociedade, na qual a enunciadora se coloca
98

como parte integrante, representando o professor não pelo predicativo de monstros, mas como
profissionais confiáveis, qualificados para intervir em casos de discriminação. Seu dizer de
valorização ao professor, assim, é formulado do lugar da sociedade e do lugar do educador. Há,
portanto, a produção de um efeito de aliança entre MPCESP e sociedade que evidencia um
recobrimento de posições, o que nos parece ser uma estratégia discursiva que produz o efeito
de identificação entre povo e MPCESP.
Nesse sentido, a partir do uso desse nós, que traz a reboque as posições antagônicas do
MESP e do MPCESP, o dizer em análise resiste à asfixia do sujeito-professor através da
denúncia ao efeito de demonização engendrado no discurso do MESP e da inversão desse efeito
que faz deslizar a posição de monstros para profissionais de credibilidade. Uma palavra por
outra(s), um gesto de resistência.
Seguimos a análise com a SD30, constituída por um cartaz publicado na página do
Facebook do MPCESP em resposta aos “deveres do professor”. Aqui, observamos diferentes
gestos de resistência que se articulam de modo a ressignificar essa materialidade, produzindo
os efeitos de (re)afirmação e valorização do professor-educador.
99

SD30: “Direitos do professor”

Fonte: Página do Facebook do MPCESP. Disponível em:


https://www.facebook.com/contraoescolasempartido/photos/a.1501216993
503945.1073741828.1500492200243091/1805340813091560/?type=3&th
eater. Acesso em 05 de março de 2018.

Para efetivar nosso gesto analítico da SD30, retornamos à definição pecheuxtiana


sobre as formas de resistência que trouxemos na abertura deste capítulo:

As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as ordens; não repetir
as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar quando se exige silêncio; falar sua
língua como uma língua estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o
sentido das palavras e das frases; tomar enunciados ao pé da letra; deslocar as regras
na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as palavras (PÊCHEUX, 1982 [1990,
p. 17]).
100

Dessa definição, interessa-nos destacar as formas de resistência produzidas pelos


gestos de não repetir as litanias, ou repeti-las de maneira errada, deslocando seus sentidos.
Entendemos que é na/pela falha da Política de Asfixia que esses gestos irrompem, apropriando-
se do discurso do MESP, para, então, ressignificá-lo.
Nessa apropriação, o MPCESP reproduz o cartaz dos Deveres do Professor, em suas
cores e forma, repetindo-o, no entanto, de modo “errôneo”: de deveres, desliza-se para direitos
do professor, evidenciando, aí, um efeito metafórico que resiste às proibições/restrições ao fazer
docente, materializadas no cartaz do MESP. Esse gesto que produz “sentido do interior do sem-
sentido” (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 17]) faz emergirem demandas, prerrogativas e
reinvindicações da categoria docente, evidenciando um modo de resistir que produz o efeito de
(re)afirmação e valorização da posição do professor-educador.
Se retornarmos à SD12, no Capítulo anterior, veremos que, nos deveres 1, 4 e 5 da
“Lei do MESP”, projeta-se uma imagem do professor enquanto um sujeito suspeito, possível
aproveitador da audiência dos alunos e usurpador do direito dos pais a educarem seus filhos.
Em um movimento oposto, na SD30, os direitos correspondentes a esses deveres são
ressignificados, produzindo efeitos que remetem à valorização profissional, deslocando os
sentidos pela projeção do professor como um sujeito a quem se deve apoiar e respeitar, não
temer/acusar.
De modo análogo, os deveres 2 e 3, que representam o professor como aquele que
impõe aos alunos suas convicções político-partidárias, são ressignificados nos direitos 2 e 3 da
SD30, através de uma retomada à LDB e à Constituição. Nessa retomada, (re)afirmam-se os
direitos apagados no PL 867/2015, referentes à liberdade de ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a cultura a arte e o saber e ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas. A
retomada a esses direitos silenciados, evidencia um gesto que resiste ao apagamento simbólico-
político da posição do educador pela (re)afirmação desse lugar sustentado/legitimado na
discursividade jurídica do Estado.
É, então, pela repetição “errônea” das litanias difundidas pelo MESP, que, na SD30, a
resistência do discurso do MPCESP irrompe, por meio de uma “substituição contextual”, que
faz dever derivar para direito, deslocando os sentidos dessa materialidade do interior de uma
FD conservadora para uma FD progressista. Os “deveres” do professor, assim, são
desestabilizados nos furos e falhas da política de asfixia, evidenciando o fato de que “cada ritual
ideológico continuamente se depara com rejeições e atos falhos de todos os tipos, que
interrompem a perpetuação das reproduções” (PÊCHEUX, [1982] 2014, p.115).
101

Nas materialidades significantes que seguem (SD31, SD32 e SD33), chamamos


atenção para a regularidade que apresentam em produzir gestos de resistência através do
discurso de humor. É importante pontuar que concebemos a discursividade humorística como
um “jogo de linguagem” que não se esgota no riso e no divertimento, produzindo espaços
profícuos para a crítica, a contestação, a resistência. Morais (2008) elucida que o humor possui
um caráter político, por ser ele “uma forma de desconstrução, pelas beiradas, do poder
instituído, para que o sujeito reafirme o seu desejo e restaure o seu direito de existir numa
comunidade social” (MORAIS, 2008, p. 122).
É justamente sobre esse movimento de reafirmação/restauração do direito de existir
dos sujeitos que lançamos nosso olhar analítico, buscando observar, nas textualidades a seguir,
o modo como o MPCESP, ao falar da posição de educador, reafirma sua forma de (r)existência
na comunidade social. Observemos, pois, as SD31, SD32 e SD33, publicadas na página do
Facebook do MPCESP.

SD31: “Direitos humanos não é coisa de ‘esquerdalha’”

Fonte: Página do Facebook do MPCESP. Disponível em:


https://www.facebook.com/contraoescolasempartido/photos/a.1842192976073010.1073741831.15004
92200243091/1843413135950994/?type=3&theater. Acesso em 05 de março de 2018.
102

SD32: “Candomblé não é coisa do demônio”

Fonte: Página do Facebook do MPCESP. Disponível em:


https://www.facebook.com/contraoescolasempartido/photos/a.1842192976073010.1073741831.1500
492200243091/1843413142617660/?type=3&theater. Acesso em 05 de março de 2018.

SD33: “Violência de gênero é um problema estrutural”.

Fonte: Página do Facebook do MPCESP. Disponível em:


https://www.facebook.com/contraoescolasempartido/photos/a.1842192976073010.1073741831.1500
492200243091/1843413139284327/?type=3&theater. Acesso em 05 de março de 2018.
103

As materialidades destacadas produzem um jogo de construção de imagens que


representam a posição politicamente engajada do educador. Nesse espaço de representação, o
riso é provocado pelas expressões descontraídas dos sujeitos-professores, que esboçam reações
de felicidade, contentamento e aprovação em situações nas quais o aprendiz demonstra adotar
uma postura crítica e democrática em relação a problemáticas socioculturais, como violência
de gênero, intolerância religiosa e desprezo aos direitos humanos.
De acordo com Bergson (2004, p. 08), “o nosso riso é sempre o riso de um grupo”. Por
esse motivo, constitui-se enquanto prática compartilhada entre sujeitos, possuindo, dessa forma,
uma significação social. Um primeiro significado evidente do riso, no contexto das sequências
discursivas em análise, está na reafirmação da posição do educador, legitimada pela postura
democrática de seu aprendiz. Por outro lado, o riso também produz um efeito de provocação à
posição antagônica: ao mesmo tempo em que se ri entre os seus, reafirmando sua posição, ri-se
de seu antagonista, de modo a confrontar e desestabilizar o discurso mespiano.
A (r)existência à asfixia do sujeito-professor, assim, irrompe no discurso do MPCESP
através da representação lúdica de um profissional não-neutro em relação a processos de
exclusão e desigualdade. Como assevera Freud (1974, p. 100), "o humor não é resignado, mas
rebelde". Não se conforma, portanto, com a estabilização dos sentidos, jogando com os espaços
logicamente estabilizados pelo discurso dominante. Nesse sentido, a discursividade
humorística, que aqui observamos, constitui uma “forma crítica de relação do sujeito com o
mundo e com os sentidos, uma possibilidade de resistência do sujeito” (FARIAS; SILVA, 2016,
p. 152). É, pois, pelo humor, que o MPCESP resiste à posição do instrutor/burocrata,
assumindo, no discurso, uma posição combativa aos processos de exclusão e discriminação, aos
quais o MESP impõe o silêncio da neutralidade.
Aquele que pode/deve ensinar, assim, é representado como um sujeito político,
engajado, que prepara os alunos para o convívio democrático, combatendo a desigualdade e
legitimando sua posição quando o aluno entende a sociedade a partir de uma ótica democrática
e pluralista. Retomemos os dizeres expressos nas imagens das SD sob análise para melhor
observar de que modo essa representação é produzida:

SD31: A serenidade que bate quando o aluno entende que direitos humanos não é
"coisa de esquerdalha".
SD32: Minha reação quando meu aluno entende que candomblé não é coisa do
demônio.
SD33: Como eu me sinto quando o aluno entende que violência de gênero é um
problema estrutural.
104

Note-se que, pelo modo como as orações estão formuladas, a estrutura “quando o
(meu) aluno entende” se repete, como numa cadeia parafrástica, na qual o complemento ao
verbo entender vai assumindo diferentes sentidos filiados a uma mesma rede de memória
progressista. Produz-se, assim, um efeito de contentamento do educador quando o aluno
entende que os direitos humanos devem ser defendidos por todos, independentemente de sua
filiação político-ideológica (SD 31); que o candomblé é uma religião como qualquer outra (SD
32); e que a violência de gênero é um problema que está na base de nossa formação social (SD
33). A posição do educador, desse modo, se reafirma nesse discurso, quando o aluno entende,
de modo democrático, as diferenças socioculturais.
Por essa representação política do sujeito-professor, nega-se, portanto, o pré-
construído do discurso do MESP, no qual a diversidade é interditada. Ao negar esse pré-
construído, o discurso do MPCESP faz trabalhar, pelo humor, outros saberes e sentidos que se
inscrevem na FD educacional progressista, onde é produzido o entendimento de que “qualquer
discriminação é imoral e lutar contra ela é um dever” (FREIRE, 1996, p. 35).
Como pudemos evidenciar, a resistência à asfixia do sujeito-professor irrompe no
discurso do MPCESP pelos efeitos de (re)afirmação da posição de educador e rejeição à posição
do burocrata/instrutor, bem como à posição que desumaniza o professor
(monstro/aproveitador/sequestrador). Há, portanto, uma tomada de posição do movimento pela
valorização da identidade profissional do educador, como forma de resistência a sua restrição e
demonização.
O investimento analítico que empreendemos neste Capítulo pôde ilustrar o
funcionamento de uma discursividade polêmica que refuta, contesta, desloca e joga com o
discurso antagônico, de modo a resistir à asfixia que se impõe. De modo mais específico, no
Recorte RAO, verificamos o processo de resistência aos efeitos de despolitização dos objetos
de ensino, por meio da reiteração dos valores e princípios preconizados pela Constituição e pela
LDB, que realçam o caráter político do processo educacional. Observamos, ainda, a produção
de efeitos de rejeição à neutralidade, significada, nesse discurso, como mecanismo de
reprodução das desigualdades.
Pelo Recorte RAA, pudemos observar uma construção discursiva da posição do
aprendiz enquanto um sujeito autor de si, autônomo e responsável pelos sentidos que produz.
Um sujeito de densidade histórica, que tem muito a dizer. O efeito de um estudante folha em
branco é denunciado no discurso do MPCESP como meio de calar questões e demandas
estudantis.
105

Com o Recorte RAP, foi possível verificar a defesa da posição política do educador,
que teima em (r)existir frente à asfixia materializada na imagem do instrutor/burocrata ou do
sequestrador/monstro. Essa (r)existência se produz, ainda, pelo efeito de denúncia à
demonização do sujeito-professor, e pelo efeito de valorização da identidade profissional do
educador.
Retornando à epígrafe que abre este Capítulo, diríamos que o discurso do MPCESP
fala quando o MESP exige silêncio, jogando com as palavras, “formando sentido do interior do
sem-sentido” (PÊCHEUX, 1982 [1990, p. 17]), implicando, nesses deslocamentos, gestos de
resistência à asfixia. Essa resistência, de modo geral, faz recordar a política esquecida pelo
MESP, produzindo o efeito de politização do imaginário educacional.
106

EFEITO DE FIM... OU EDUCAÇÃO: LUGAR DO (IM)POSSÍVEL

...Um pouco de possível senão eu sufoco...


Gilles Deleuze

As condições de produção pelas quais os discursos analisados emergem e tomam força


estão situadas numa conjuntura sócio-histórica marcada por uma onda mundial de
conservadorismo (SINGER, 2016), na qual o esquecimento da política se realiza, sobretudo,
pelo viés da moral religiosa, responsável por fazer deslizar o politicamente adequado para o
moralmente aceito (WOLFF, 2007). Somado ao crescente conservadorismo, presenciamos, de
modo particular, no Brasil, o avanço do que Singer (2016) denomina de antipetismo,
caracterizado por um discurso reacionário às políticas de justiça social e potencializado pelos
escândalos de corrupção envolvendo o Partido dos Trabalhadores. Nesse contexto sócio-
político conservador e reacionário, a educação, enquanto objeto ideológico, passou a ser um
lugar de problematização sobre (1) os conteúdos a serem ensinados na escola, (2) a formação
do aprendiz e (3) o trabalho docente.
Diferentes grupos sociais estão envolvidos nesse debate nacional sobre os limites e
propósitos do processo educativo, dentre os quais destacamos os movimentos Escola sem
Partido (MESP) e Professores contra o Escola sem Partido (MPCESP). O primeiro, constituído
por um discurso conservador que reivindica um ensino neutro, apagando o caráter político da
escola, em nome da moral religiosa e da autoridade familiar. O segundo, marcado por um
discurso progressista de esquerda, que concebe a educação como prática política e ideológica,
comprometida com o combate aos processos de exclusão e desigualdade.
Nesse embate de posições, a educação é (re)inscrita em um espaço polêmico,
tensionado entre a moralidade religiosa/familiar e a laicidade. A partir dessa problemática,
buscamos compreender o modo de funcionamento dos discursos do MESP e do MPCESP, no
interior dessa disputa que tensiona o imaginário sobre a educação nacional. Para tanto,
trouxemos à baila a noção de política de significação, entendida enquanto política do dizer,
processo de significação constituído na relação entre linguagem e silêncio, pela qual sentidos
são afirmados, confrontados ou interditados, determinando, assim, os modos de constituição e
representação de sujeitos e sentidos no jogo das formações discursivas.
Pensar esse conceito nos permitiu observar, no discurso do MESP, o funcionamento
de uma política de asfixia que “dirige” os sentidos a partir do silêncio local (ORLANDI, 1993),
isto é, a partir da interdição da significação, tendo em vista que censura sentidos ligados a um
107

imaginário do processo educacional enquanto prática política e pluralista,


controlando/determinando o modo como os sujeitos da educação podem significar-se.
Descrevemos, pois, esse funcionamento a partir da produção de efeitos de sentido em relação
aos (1) objetos de ensino, ao (2) sujeito-aprendiz e ao (3) sujeito-professor.
Sobre os objetos de ensino (AO), pudemos evidenciar movimentos de asfixia
produzidos pela interdição de sentidos que polemizam o espaço escolar e tensionam a moral
religiosa, como a temática da sexualidade e das identidades de gênero. Observamos, também,
efeitos de restrição/redução dos sentidos sobre o que se pode/deve ensinar na escola, limitando-
os a conteúdos formais esvaziados de sua dimensão social e histórica.
A asfixia do sujeito-aprendiz (AA) foi observada a partir da representação do estudante
enquanto um sujeito desprovido de autoria e, portanto, reprodutor da posição dos pais ou dos
professores, sendo destituído de responsabilização pelo seu dizer. O sufocamento desse sujeito
se dá no engessamento de suas posições enquanto aprendiz-reprodutor, impedindo que este
circule em diferentes espaços de significação.
O mesmo ocorre para o sujeito-professor (AP), representado a partir de duas posições-
sujeito antagônicas: a do professor-instrutor/burocrata – aquele que pode/deve ensinar –, e a do
professor-educador, denominada de professor-militante – aquele que não pode, nem deve
ensinar. Observando a construção discursiva dessas posições no discurso do MESP, pudemos
evidenciar, de um lado, o efeito de restrição das formas de subjetivação do sujeito-professor,
legitimado na figura de um instrutor/burocrata, e, de outro, os efeitos de interdição, intimidação
e demonização da posição rejeitada nesse discurso (a do professor educador), atestando o
funcionamento de um discurso de ódio ao professor.
Nesse sufocamento dos sujeitos da educação e seus objetos de ensino, atualizam-se
saberes de FD educacionais neoliberais e tradicionais, onde prevalecem sentidos de educação
ligados, sobretudo, à moralidade/religiosidade e à preparação para o mercado de trabalho.
Como evidenciado no Capítulo II, essa discursividade também se inscreve numa rede de
memória conservadora e fundamentalista, marcada pelo desejo de retorno do poder religioso
sobre o modo de organização social. Dentre os movimentos inscritos nessa rede, citamos o
movimento Moral Majority, que prega o “rearmamento moral” contra a laicização e
secularização da sociedade. Essas filiações ideológicas trabalham no discurso do MESP de
modo a neutralizar a historicidade do espaço escolar, por meio de um funcionamento
autoritário, no qual a polissemia é contida pela imposição de um sentido único para a sociedade,
calcado na moral e na religião, produzindo o efeito de narcisia social, de repetição do mesmo
e exclusão do diferente. Aqui, a afirmação e expansão do direito do outro é visto como ameaça.
108

Pudemos evidenciar, ainda, que o discurso do MESP, enquanto discurso conservador,


conserva e reproduz os processos de exclusão e desigualdades, uma vez que a escola por eles
defendida, dita “sem partido”, é uma escola que toma partido em favor da cristianização e
mercantilização da educação. Essa posição ideológica, no entanto, é esfumada pelo apelo à
neutralidade, que funciona como uma estratégia discursiva de direção política da educação, de
sua partidarização. Entendemos que esse ensino “neutro” defendido pelo MESP figura como
um instrumento de domesticação dos aprendizes para a manutenção da estrutura social, baseada
nos princípios patriarcais/religiosos e nas relações de trabalho/exploração capitalistas. Sob essa
perspectiva, constrói-se um imaginário educacional para a submissão e conformismo, e,
portanto, para a perpetuação do status quo.
Quanto à política de resistência do MPCESP, observamos um funcionamento
polêmico, no qual a polissemia é controlada e a posição antagonista se mantém em presença na
disputa pelos sentidos da/sobre a educação. Essa política é marcada pela produção de choques
de deslocamento que irrompem nos furos e falhas da política de asfixia de modo a resistir àquilo
que se apresenta como saturado no discurso do MESP: i) objetos de ensino neutros; ii) aprendiz
não-autor; iii) professor instrutor/educador monstro. Assim, pelo jogo com as palavras, pela
inversão e deslocamento de sentidos, resiste-se à asfixia, reinscrevendo o imaginário
educacional na ordem do político.
Na resistência à asfixia dos objetos de ensino (RAO), pudemos evidenciar gestos de
resistência que irrompem no discurso do MPCESP produzindo os efeitos de rejeição e denúncia
à despolitização do ensino, bem como os efeitos de reafirmação do papel político do processo
de ensino-aprendizagem.
A resistência à asfixia do sujeito-aprendiz (RAA) é produzida no discurso do
MPCESP por meio dos efeitos de denúncia ao silenciamento desses sujeitos e contestação do
esvaziamento simbólico-político de sua função-autor. Ao enunciar a partir de uma FD
progressista, o MPCESP reconhece, em seu dizer, a autonomia e politicidade do estudante,
representado como um sujeito que ousa pensar por si mesmo.
Sobre a resistência à asfixia do sujeito-professor (RAP), pudemos observar a produção
dos efeitos de (re)afirmação da posição de educador e rejeição/contestação à posição do
burocrata/instrutor. Vimos, ainda, os efeitos de denúncia à posição que desumaniza o professor
na imagem de monstros, aproveitadores e sequestradores. Vimos, assim, uma tomada de
posição do MPCESP pela valorização da identidade profissional do educador, como forma de
resistência à demonização.
109

A discursividade progressista do MPCESP se inscreve numa rede de memória do


ensino crítico, gestado como meio de “proporcionar aos estudantes habilidades e informações
necessárias para pensarem criticamente sobre o conhecimento que adquirem e sobre o que pode
significar para eles desafiar formas antidemocráticas de poder” (GIROUX, 2003, p. 21). No
Brasil redemocratizado, os principais acontecimentos discursivos que marcam essa rede de
memória crítica são a Constituição Federal de 1988 e a LDB, daí a constante defesa e reiteração,
no discurso do MPCESP, dos valores e princípios democráticos preconizados pelos
documentos.
Pudemos evidenciar, ainda, no dizer do MPCESP, o atravessamento de uma outra
discursividade, historicamente marcada por uma memória de resistência: a Pedagogia da
Autonomia, de Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira, segundo o qual, a educação é uma
forma de intervenção no mundo, portanto, crítica, política e engajada. Dirá Freire (1996):

Por que não estabelecer uma necessária "intimidade" entre os saberes curriculares
fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Por
que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos
dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso?
Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que
ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los
aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos (FREIRE, 1996, p. 17) (GRIFO
NOSSO).

Temos, assim, que a resistência que irrompe no discurso do MPCESP já produzia seus
efeitos na pedagogia freireana, atualizando-se nessa rede de memória, de modo a conter a
asfixia pela reiteração de uma (r)existência democrática, pluralista e crítica da educação
brasileira.
Feitas essas considerações, caminhamos para o efeito de fecho de nosso gesto
analítico, que é, também, um gesto de linguagem, e, por isso mesmo, incompleto. Por essa
razão, abre-se a novas leituras e interpretações, constituindo uma via, dentre tantas outras
possíveis, para refletir sobre o discurso político-educacional contemporâneo.
Nessa reflexão que empreendemos, o batimento entre descrição e interpretação nos
possibilitou contribuir para a compreensão do modo como as discursividades do MESP e do
MPCESP se inscrevem na luta ideológica de movimento em torno da educação nacional,
tensionando, assim, um espaço antes assentado sob filiações progressistas. Entre a asfixia e a
resistência, o imaginário sobre a educação tem sido trabalhado na/pela linguagem, e pudemos
evidenciar esse funcionamento pela reflexão sobre silêncio, sentido e resistência.
Não poderíamos, todavia, concluir nosso gesto analítico sem tomar posição, ou tomar
partido, frente aos sentidos que se colocam na conjuntura contemporânea sobre o imaginário
110

educacional, como, aliás, já o fizemos a partir da definição de nossas hipóteses e categorias


analíticas.
É inegável que a escola seja esse lugar onde saberes legitimados se sedimentam e se
inscrevem na ordem do repetível. No entanto, a educação, ao mesmo tempo em que reproduz
os sentidos já estabilizados da sociedade, deve oferecer a possibilidade de transformá-los. Como
assevera Orlandi (2016, p. 165), a educação tem um lugar privilegiado de “criar condições para
que possa(m) irromper outra(s) discursividade(s) que atravesse(m) a produção existente de
sentidos ‘evidentes’, atingindo assim e rompendo com a interpretação da ideologia já-lá”.
Dito isso, retornamos à política de asfixia do MESP, pela qual foi possível observar o
modo como a reprodução e perpetuação da desigualdade se realiza pelo viés da aparente
neutralidade, interditando e obstruindo a relação dos sujeitos com o dizível e, por conseguinte,
impedindo a irrupção de outras discursividades que possam vir a romper com a dominação.
Frente a esse funcionamento, a questão que parece se colocar cada vez mais forte é: como não
resistir a um discurso que asfixia a possibilidade do novo, do diferente? É novamente Orlandi
(2016, p. 165) quem nos orienta para o fato de que a educação não pode ser neutra, nem pode
se conformar com o já posto, uma vez que ela é “capaz de produzir este espaço em que os
sujeitos possam se significar politicamente de modo que tanto os sujeitos como os sentidos
sejam não mera reprodução mas transformação, resistência, ruptura”.
Por essa razão, voltamos nosso olhar para a política de resistência do MPCESP, na
qual verificamos uma produção de sentidos que apontam, imaginariamente, para a pluralização
dos sujeitos e dos sentidos da educação, permitindo que mais e mais sujeitos sejam
autor(rizados) a tomar a palavra, possibilitando, nesse movimento, o lugar de irrupção da
resistência, tal como definida por Pêcheux – aquela que permite aos sujeitos despedirem-se da
dominação através da possibilidade de tomar a palavra, deslocando sentidos já-lá:
Basta uma nova palavra para desembaraçar o espaço duma pergunta, aquela que não
tinha sido posta. A nova palavra abala as antigas, e faz o vazio para a nova pergunta.
A nova questão põe em questão as antigas respostas, e as velhas questões adormecidas
debaixo delas. Ganha-se aí uma nova visão da coisa (ALTHUSSER, 1979, p.34).

Tomar a palavra, dessa maneira, possibilita o funcionamento da resistência, uma vez


que esse gesto promove uma “agitação” nas redes de sentido, produzindo uma nova visão que
pode vir a romper com a antiga. Diríamos, então, que a resistência produzida no discurso do
MPCESP trabalha de modo a pluralizar a escola, fazê-la lugar de fala e de escuta de alunos e
professores, abrindo possibilidades para que irrompa o irrealizado.
A educação, portanto, não deve ser o lugar do devido, mas lugar do (im)possível, não
podendo ser inerte aos processos de exclusão e discriminação, tampouco um lugar de
111

sufocamento das possibilidades de subjetivação de aprendizes e professores. Do contrário, deve


ser um lugar aberto à polissemia, concedendo o direito à voz, à autoria, permitindo, assim, que
os mais diferentes sujeitos “tomem a palavra”, questionando espaços logicamente estabilizados,
oferecendo margem à irrupção do impossível, fazendo-nos não perder de vista o fato de que é
preciso “pensar por si mesmo”, é preciso “ousar se revoltar” (PÊCHEUX, 1975 [2014], p. 281).
112

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Trad. J.J. Moura Ramos.


Lisboa: Presença, Martins Fontes, 1974.

______. Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas. São Paulo: Martins Fontes; Lisboa:
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120

ANEXOS

ANEXO A – Projeto de Lei “Escola sem Partido”

PROJETO DE LEI Nº 867, DE 2015


(Do Sr. Izalci)

Inclui, entre as diretrizes e bases da


educação nacional, o "Programa Escola
sem Partido".

O Congresso Nacional decreta:

Art.1º. Esta lei dispõe sobre a inclusão entre as diretrizes e bases da


educação nacional do "Programa Escola sem Partido”.
Art. 2º. A educação nacional atenderá aos seguintes princípios:
I - neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado;
II - pluralismo de ideias no ambiente acadêmico;
III - liberdade de aprender, como projeção específica, no campo da
educação, da liberdade de consciência;
IV - liberdade de crença;
V - reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais
fraca na relação de aprendizado;
VI - educação e informação do estudante quanto aos direitos
compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença;
VII - direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que
esteja de acordo com suas próprias convicções.
Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política
e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que
possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou
responsáveis pelos estudantes.
§ 1º. As escolas confessionais e as particulares cujas práticas educativas
sejam orientadas por concepções, princípios e valores morais, religiosos ou
121

ideológicos, deverão obter dos pais ou responsáveis pelos estudantes, no ato da


matrícula, autorização expressa para a veiculação de conteúdos identificados com os
referidos princípios, valores e concepções.
§ 2º. Para os fins do disposto no § 1º deste artigo, as escolas deverão
apresentar e entregar aos pais ou responsáveis pelos estudantes material informativo
que possibilite o conhecimento dos temas ministrados e dos enfoques adotados.
Art. 4º. No exercício de suas funções, o professor:
I - não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de
cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária;
II - não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas
convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;
III - não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará
seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;
IV - ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas,
apresentará aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e
perspectivas concorrentes a respeito;
V - respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação
moral que esteja de acordo com suas próprias convicções;
VI - não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam
violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.
Art. 5º. Os alunos matriculados no ensino fundamental e no ensino médio
serão informados e educados sobre os direitos que decorrem da liberdade de
consciência e de crença assegurada pela Constituição Federal, especialmente sobre
o disposto no art. 4º desta Lei.
§ 1º. Para o fim do disposto no caput deste artigo, as escolas afixarão
nas salas de aula, nas salas dos professores e em locais onde possam ser lidos por
estudantes e professores, cartazes com o conteúdo previsto no Anexo desta Lei, com,
no mínimo, 70 centímetros de altura por 50 centímetros de largura, e fonte com
tamanho compatível com as dimensões adotadas.
§ 2º. Nas instituições de educação infantil, os cartazes referidos no § 1º
deste artigo serão afixados somente nas salas dos professores.
Art. 6º. Professores, estudantes e pais ou responsáveis serão
informados e educados sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente,
especialmente no que tange aos princípios referidos no art. 1º desta Lei.
122

Art. 7º. As secretarias de educação contarão com um canal de


comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao
descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato.
Parágrafo único. As reclamações referidas no caput deste artigo deverão
ser encaminhadas ao órgão do Ministério Público incumbido da defesa dos interesses
da criança e do adolescente, sob pena de responsabilidade.
Art. 8º. O disposto nesta Lei aplica-se, no que couber:
I - aos livros didáticos e paradidáticos;
II - às avaliações para o ingresso no ensino superior;
III - às provas de concurso para o ingresso na carreira docente;
IV - às instituições de ensino superior, respeitado o disposto no art. 207
da Constituição Federal.
Art. 9º. Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.

ANEXO

DEVERES DO PROFESSOR

I - O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de


cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária.

II - O Professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas


convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.

III - O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará
seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.

IV - Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor


apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e
seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a
respeito.

V - O Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação
moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

VI - O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam
violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.
123

JUSTIFICAÇÃO

Esta proposição se espelha em anteprojeto de lei elaborado pelo


movimento Escola sem Partido (www.escolasempartido.org) – “uma iniciativa
conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-
ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao superior”
–, cuja robusta justificativa subscrevemos:48

“É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se


utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a
determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem
padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual –
incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis.

Diante dessa realidade – conhecida por experiência direta de todos os


que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos –, entendemos que
é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação
política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos
recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

Trata-se, afinal, de práticas ilícitas, violadoras de direitos e liberdades


fundamentais dos estudantes e de seus pais ou responsáveis, como se passa a
demonstrar:

1 - A liberdade de aprender – assegurada pelo art. 206 da Constituição


Federal – compreende o direito do estudante a que o seu conhecimento da realidade
não seja manipulado, para fins políticos e ideológicos, pela ação dos seus
professores;

48
http://escolasempartido.org/component/content/article/2-uncategorised/484-anteprojeto-de-lei-
estadual-e-minuta-de-justificativa
124

2 - Da mesma forma, a liberdade de consciência, garantida pelo art. 5º,


VI, da Constituição Federal, confere ao estudante o direito de não ser doutrinado por
seus professores;

3 - O caráter obrigatório do ensino não anula e não restringe a liberdade


de consciência do indivíduo. Por isso, o fato de o estudante ser obrigado a assistir às
aulas de um professor implica para esse professor o dever de não utilizar sua
disciplina como instrumento de cooptação político-partidária ou ideológica;

4 - Ora, é evidente que a liberdade de aprender e a liberdade de


consciência dos estudantes restarão violadas se o professor puder se aproveitar de
sua audiência cativa para promover em sala de aula suas próprias concepções
políticas, ideológicas e morais;

5 - Liberdade de ensinar – assegurada pelo art. 206, II, da Constituição


Federal – não se confunde com liberdade de expressão; não existe liberdade de
expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a
liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula,
uma audiência cativa;

6 - De forma análoga, não desfrutam os estudantes de liberdade de


escolha em relação às obras didáticas e paradidáticas cuja leitura lhes é imposta por
seus professores, o que justifica o disposto no art. 8º, I, do projeto de lei;

7 - Além disso, a doutrinação política e ideológica em sala de aula


compromete gravemente a liberdade política do estudante, na medida em que visa a
induzi-lo a fazer determinadas escolhas políticas e ideológicas, que beneficiam, direta
ou indiretamente as políticas, os movimentos, as organizações, os governos, os
partidos e os candidatos que desfrutam da simpatia do professor;

8 - Sendo assim, não há dúvida de que os estudantes que se encontram


em tal situação estão sendo manipulados e explorados politicamente, o que ofende o
art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), segundo o qual “nenhuma
criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de exploração”;

9 - Ao estigmatizar determinadas perspectivas políticas e ideológicas, a


doutrinação cria as condições para o bullying político e ideológico que é praticado
125

pelos próprios estudantes contra seus colegas. Em certos ambientes, um aluno que
assuma publicamente uma militância ou postura que não seja a da corrente dominante
corre sério risco de ser isolado, hostilizado e até agredido fisicamente pelos colegas.
E isso se deve, principalmente, ao ambiente de sectarismo criado pela doutrinação;

10 - A doutrinação infringe, também, o disposto no art. 53 do Estatuto da


Criança e do Adolescente, que garante aos estudantes “o direito de ser respeitado por
seus educadores”. Com efeito, um professor que deseja transformar seus alunos em
réplicas ideológicas de si mesmo evidentemente não os está respeitando;

11 - A prática da doutrinação política e ideológica nas escolas configura,


ademais, uma clara violação ao próprio regime democrático, na medida em que ela
instrumentaliza o sistema público de ensino com o objetivo de desequilibrar o jogo
político em favor de determinados competidores;

12 - Por outro lado, é inegável que, como entidades pertencentes à


Administração Pública, as escolas públicas estão sujeitas ao princípio constitucional
da impessoalidade, e isto significa, nas palavras de Celso Antonio Bandeira de Mello
(Curso de Direito Administrativo, Malheiros, 15ª ed., p. 104), que “nem favoritismo nem
perseguições são toleráveis. Simpatias ou animosidades pessoais, políticas ou
ideológicas não podem interferir na atuação administrativa e muito menos interesses
sectários, de facções ou grupos de qualquer espécie.”;

13 - E não é só. O uso da máquina do Estado – que compreende o


sistema de ensino – para a difusão das concepções políticas ou ideológicas de seus
agentes é incompatível com o princípio da neutralidade política e ideológica do
Estado, com o princípio republicano, com o princípio da isonomia (igualdade de todos
perante a lei) e com o princípio do pluralismo político e de ideias, todos previstos,
explícita ou implicitamente, na Constituição Federal;

14 - No que tange à educação moral, referida no art. 2º, VII, do projeto


de lei, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vigente no Brasil, estabelece
em seu art. 12 que “os pais têm direito a que seus filhos recebam a educação religiosa
e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”;

15 - Ora, se cabe aos pais decidir o que seus filhos devem aprender em
matéria de moral, nem o governo, nem a escola, nem os professores têm o direito de
126

usar a sala de aula para tratar de conteúdos morais que não tenham sido previamente
aprovados pelos pais dos alunos;

16 - Finalmente, um Estado que se define como laico – e que, portanto


deve ser neutro em relação a todas as religiões – não pode usar o sistema de ensino
para promover uma determinada moralidade, já que a moral é em regra inseparável
da religião;

17. Permitir que o governo de turno ou seus agentes utilizem o sistema


de ensino para promover uma determinada moralidade é dar-lhes o direito de
vilipendiar e destruir, indiretamente, a crença religiosa dos estudantes, o que ofende
os artigos 5º, VI, e 19, I, da Constituição Federal.

Ante o exposto, entendemos que a melhor forma de combater o abuso


da liberdade de ensinar é informar os estudantes sobre o direito que eles têm de não
ser doutrinados por seus professores.

Nesse sentido, o projeto que ora se apresenta está em perfeita sintonia


com o art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que prescreve, entre
as finalidades da educação, o preparo do educando para o exercício da cidadania.
Afinal, o direito de ser informado sobre os próprios direitos é uma questão de estrita
cidadania.

Urge, portanto, informar os estudantes sobre o direito que eles têm de


não ser doutrinados por seus professores, a fim de que eles mesmos possam exercer
a defesa desse direito, já que, dentro das salas de aula, ninguém mais poderá fazer
isso por eles.

Note-se por fim, que o projeto não deixa de atender à especificidade das
instituições confessionais e particulares cujas práticas educativas sejam orientadas
por concepções, princípios e valores morais, às quais reconhece expressamente o
direito de veicular e promover os princípios, valores e concepções que as definem,
exigindo-se, apenas, a ciência e o consentimento expressos por parte dos pais ou
responsáveis pelos estudantes.”

Frisamos mais uma vez que projetos de lei semelhantes ao presente –


inspirados em anteprojeto de lei elaborado pelo Movimento Escola sem Partido
127

(www.escolasempartido.org) – já tramitam nas Assembleias Legislativas dos Estados


do Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás e Espírito Santo, e na Câmara Legislativa do
Distrito Federal; e em dezenas de Câmaras de Vereadores (v.g., São Paulo-SP, Rio
de Janeiro-RJ, Curitiba-PR, Vitória da Conquista-BA, Toledo-PR, Chapecó-SC,
Joinville-SC, Mogi Guaçu-SP, Foz do Iguaçu-PR, etc.), tendo sido já aprovado nos
Municípios de Santa Cruz do Monte Carmelo-PR e Picuí-PB.

Pelas razões expostas, esperamos contar com o apoio dos Nobres


Pares para aprovação deste Projeto de Lei.

Sala das Sessões, em 23 de março de 2015.

Deputado IZALCI
PSDB/DF

ESP.MFUN.NGPS.2015.03.18
128

ANEXO B – Projeto de Lei nº 7180

PROJETO DE LEI Nº , DE 2014


(Do Sr. ERIVELTON SANTANA)

Altera o art. 3º da Lei nº 9.394, de 20


de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1º O art. 3º da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa


a vigorar acrescido do seguinte inciso XIII:

“Art. 3º...........................................................................
.......................................................................................
XIII – respeito às convicções do aluno, de seus pais ou
responsáveis, tendo os valores de ordem familiar
precedência sobre a educação escolar nos aspectos
relacionados à educação moral, sexual e religiosa,
vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no
ensino desses temas.” (AC)

Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

JUSTIFICAÇÃO

Na Convenção Americana de Direitos Humanos, estabelecida por


meio do Pacto de San José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, os Estados
Americanos reafirmam seu propósito de consolidar no continente, dentro do quadro
129

das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social,


fundado no respeito dos direitos humanos essenciais. A Convenção foi ratificada pelo
governo brasileiro por meio do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992.

O art. 12 da citada Convenção dispõe sobre a liberdade de


consciência e religião. Esse direito implica a liberdade da pessoa de conservar sua
religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a
liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou
coletivamente, tanto em público como em privado. Para subsidiar a análise da
presente proposta, interessa-nos particularmente o inciso IV do art. 12 em que se lê:

“Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que


seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral
que esteja de acordo com suas próprias convicções.”

Os Estados membros estão obrigados a adotar medidas legais ou


de outro caráter para que o exercício dos direitos e liberdades assegurados pelo Pacto
de São José da Costa Rica venha a tornar-se efetivo.

É precisamente o que desejamos com a presente proposição.


Somos da opinião de que a escola, o currículo escolar e o trabalho pedagógico
realizado pelos professores em sala de aula não deve entrar no campo das convicções
pessoais e valores familiares dos alunos da educação básica. Esses são temas para
serem tratados na esfera privada, em que cada família cumpre o papel que a própria
Constituição lhe outorga de participar na educação dos seus membros.

Assim sendo, convidamos os nobres pares a apoiar e aprovar o


projeto de lei que ora trazemos a esta Câmara dos Deputados.

Sala das Sessões, em de de 2014.

Deputado ERIVELTON SANTANA


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ANEXO C – Páginas do Facebook e sites dos movimentos MESP e MPCESP

Fonte: Página do Facebook do movimento Escola sem Partido. Disponível em: https://pt-
br.facebook.com/escolasempartidooficial/. Acesso em 10 de maio de 2018.

Fonte: Página do Facebook do movimento Professores contra o Escola sem Partido. Disponível em: https://pt-
br.facebook.com/contraoescolasempartido/. Acesso em 10 de maio de 2018.
131

Fonte: Site do Programa Escola sem Partido. Disponível em: https://www.programaescolasempartido.org/


Acesso em 10 de maio de 2018.

Fonte: Site do movimento Escola sem Partido. Disponível em: http://www.escolasempartido.org. Acesso em 10
de maio de 2018.
132

Fonte: Site do movimento Professores contra o Escola sem Partido. Disponível em:
https://professorescontraoescolasempartido.wordpress.com/Acesso em 10 de maio de 2018.

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