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Souza, Rosa Cristina Ferreira de; Amábille das Neves, Inácio. Entre os muros do abrigo: compreensões do
processo de institucionalização em idosos abrigados

Entre os muros do abrigo: compreensões do processo de institucionalização


em idosos abrigados

Inside the shelter walls: understanding the institutionalization process of


elderlies sheltered

Entre los muros del abrigo: comprensiones del proceso de


institucionalización en mayores abrigados

Rosa Cristina Ferreira de Souza1

Amábille das Neves Inácio2

Resumo

Este estudo buscou compreender o processo de institucionalização em idosos abrigados, em uma


cidade do Sul de Santa Catarina, na perspectiva da Psicologia Social. Quanto ao método, a pesquisa
assumiu abordagem qualitativa, do tipo estudo de caso. Para a coleta de dados, utilizou-se observação
participante acerca da dinâmica institucional e entrevistas semiestruturadas com cinco residentes. Os
dados foram analisados por meio da técnica de Análise de Conteúdo. Foi possível constatar que a
institucionalização produz efeitos negativos – mortificação do eu e disciplinamento – nas dimensões
identidade/corpo dos idosos. Efeitos esses, intensificados à medida que se estende o tempo de
permanência do idoso na instituição. Essas compreensões se traduzem em necessidade de se repensar
as perspectivas e práticas inerentes às instituições de longa permanência (ILPIs), no sentido de
transformar positivamente esses espaços e oferecer ao idoso institucionalizado um cuidado que
promova bem-estar biopsicossocial.

Palavras-chave: abrigo; idosos; institucionalização; psicologia social.

Abstract

In this study we searched understand the institutionalization process of sheltered elderlies in a town in
Southern Santa Catarina, under the Social Psychology perspective. Regarding to the method, the
research had qualitative approach in a case study. For data collection we used participating
observation on the institutional dynamics and semi structured interviews with five residents. The data
were analyzed through the Content Analysis technique. It was possible notice that institutionalization
produces negative effects – mortification of the self and disciplining – on elderlies’ identity/body
dimensions. These effects are intensified according as the length of stay in the institution is extended.
These comprehensions are traduced in necessities to re-think the perspectives and practices on the
Elderly Institutions for long length in order to change these spaces in a positive way and offer a care
that promote biopsychosocial welfare to institutionalized elderlies.

1
Doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Mestre em Psicologia
Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Psicóloga e Professora do Curso de Psicologia da
Unisul. E-mail: rosa.cristina@unisul.br
2
Graduada em Psicologia pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Psicóloga. E-mail:
amabille_ni@hotmail.com

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Souza, Rosa Cristina Ferreira de; Amábille das Neves, Inácio. Entre os muros do abrigo: compreensões do
processo de institucionalização em idosos abrigados

Keywords: shelter; elderlies; institutionalization; social psychology.

Resumen

Este estudio he buscado comprender el proceso de institucionalización de mayores que viven en


abrigos en una ciudad del Sur de Santa Catarina en la perspectiva de la Psicología Social. La
investigación fue de abordaje cualitativa del tipo estudio de caso. Para la colección de datos fue
utilizada la observación participante sobre la dinámica institucional y entrevistas semiestructuradas
con cinco residentes. Los datos fueron analizados por medio del Análisis de Contenido. Fue posible
observar que la institucionalización produce efectos negativos – mortificación el yo y disciplinamiento
– en las dimensiones identidad/cuerpo de los mayores. Esos efectos son intensificados en la medida
que el tiempo de permanencia del mayor se extiende en la institución. Esas comprensiones se traducen
en la necesidad de repensar las perspectivas y prácticas acerca de las Instituciones de Larga estancia
para mayores, con el objetivo de cambiar, de manera positiva, eses espacios y ofrecer cuidados que
puedan traer el bienestar biopsicosocial a los mayores institucionalizados.

Palabras-clave: abrigo; mayores; institucionalización; psicología social.

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Introdução conceituações que pudessem clarificar o


envelhecimento como processo inerente ao
A longevidade é um fenômeno cada ser humano. Conforme Zimmerman
vez mais observado mundialmente, (2000), envelhecer implica em
emergindo em diferentes contextos e sendo transformações biopsicossociais, sendo
vivenciada de múltiplas formas pela entendido como um processo multifatorial,
população idosa. Para o Ministério da natural e gradativo, logo, à medida que a
Saúde, o envelhecimento populacional é idade de uma pessoa avança, tornam-se
um processo natural e irreversível, mais intensos os traços do envelhecimento.
marcado pela mudança da estrutura etária Vitta (2003) endossa essa perspectiva
da população, que resulta em um maior considerando que, concomitante ao
número de pessoas acima de uma idade processo de envelhecer – universal a todos
estabelecida como critério na definição de os seres humanos – é possível que o
idoso (Brasil, 2010). No Brasil, com a indivíduo continue em um processo de
conquista da Política Nacional do Idoso, desenvolvimento, envelhecendo de forma
Lei nº 8.842, considera-se idosa a pessoa saudável e ativa.
com sessenta anos ou mais (Brasil, 1994). Diferenciar o envelhecimento que
Essa determinação se mantém no Estatuto segue um curso “normal” ou “patológico”
do Idoso, Lei nº 10.741 (Brasil, 2003). A também tem sido objeto de discussão. Neri
Organização Mundial de Saúde (OMS, (2003, p. 34) explica que
2005) corrobora esse parâmetro – sessenta
anos – para países em desenvolvimento, Velhice normal significa ausência de
porém nos países desenvolvidos o critério patologias biológicas, em contraposição à
patológica, caracterizada por
aumenta para sessenta e cinco anos. degenerescência associada a doenças
Estatisticamente, segundo o crônicas, a doenças e síndromes típicas da
Instituto Brasileiro de Geografia e velhice e à desorganização biológica que
Estatística (IBGE, 2014a), em 2012, os pode acometer os idosos. Falar em velhice
idosos (a partir dos sessenta anos) ótima significa tomar como fonte de
referência algum estado ideal de bem-estar
representavam 12,6% da população total. pessoal e social. (grifos da autora)
Em 2013, essa representação subiu para
13,0% da população total, sendo a Região Pelegrino (2009) pontua que a
Sul com o índice mais expressivo (14,5%) senescência se refere ao modo normal de
e a Região Norte, menos expressivo envelhecer, quando o corpo passa por
(8,8%). Quanto à expectativa de vida do transformações esperadas de acordo com
brasileiro, em 2013 estimou-se uma média sua idade. Difere de senilidade – modo
de 74,9 anos para ambos os sexos, sendo patológico de envelhecer, marcado por
para o sexo masculino 71,3 anos, e para o doenças comprometedoras da
sexo feminino 78,6 anos (IBGE, 2014b). funcionalidade. Em uma perspectiva de
Esses dados confirmam a tendência do desenvolvimento, “envelhecer
envelhecimento populacional no Brasil, satisfatoriamente depende do delicado
que está intimamente relacionado a uma equilíbrio entre as limitações e as
reorganização na constituição familiar – potencialidades do indivíduo o qual lhe
mulheres ocupando mais o mercado de possibilitará lidar, em diferentes graus de
trabalho e diminuição do número de filhos eficácia, com as perdas inevitáveis do
por família, ou seja, menor índice de envelhecimento” (Neri, 2003, p. 13).
natalidade – e maior expectativa de vida Nesse sentido, compreende-se que
(Camarano, 2014). a velhice demanda cuidados especiais, o
A partir da ampliação dos estudos que inclui atenção à dimensão física,
sobre o tema, foram construídas diversas

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psicológica e social, de forma integrada. que abordam a institucionalização. Uma


Quanto às especialidades desenvolvidas intitulada Qualidade de vida em
em relação ao envelhecer, Zimerman Instituições de Longa Permanência:
(2000) destaca a diferença entre considerações a partir de um modelo
gerontologia, um estudo geral do assistencial, de autoria de Queiroz (2010),
envelhecimento; de geriatria, referente à em que se buscou investigar a qualidade de
área da medicina dedicada aos processos vida dos idosos residentes em uma ILPI. A
de doença que ocorrem nessa faixa-etária. outra, intitulada Vivendo no asilo: uma
Muitas são as exigências a etnografia sobre corporalidade e velhice,
propósito de garantir o bem-estar da pessoa de Limont (2011), em que se buscou
idosa e o contexto brasileiro, que, embora compreender a ligação entre corpo e
com avanços, ainda está distante de suprir envelhecimento dentro de uma instituição.
de forma integrada as reais necessidades Conceitualmente, a Agência
dessa parcela da população (Camarano & Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa,
Mello, 2010). Diante disso, não se pode 2004, p. 2) define uma ILPI como
deixar de pensar os lugares onde o idoso
recebe cuidados e vivencia sua velhice. Instituição mantida por órgãos
Nesse estudo, o olhar será direcionado às governamentais e não governamentais,
destinada a propiciar atenção integral em
Instituições de Longa Permanência para caráter residencial com condições de
Idosos (ILPIs), que se constituem, cada vez liberdade e dignidade, cujo público alvo são
mais, como uma alternativa de moradia aos as pessoas acima de 60 anos, com ou sem
idosos. suporte familiar, de forma gratuita ou
Estudos acerca de idosos mediante remuneração.
institucionalizados ou da
institucionalização de idosos têm sido É importante destacar que a
produzidos com maior ênfase nos últimos Resolução nº 109, de 11 de novembro de
dez anos. O Conselho Federal de 2009, aprova a Tipificação Nacional de
Psicologia (CFP, 2008a) produziu o Serviços Socioassistenciais, classificando o
“Relatório de Inspeção a Instituições de abrigo institucional para idosos (Instituição
Longa Permanência para Idosos”, de Longa Permanência para Idosos) como
buscando avaliar as condições de algumas Serviço de Proteção Social de Alta
instituições do País. Foi lançado o livro Complexidade, oferecido pelo Sistema
Cuidados de Longa Duração para a Único de Assistência Social (Brasil, 2009).
População Idosa: um novo risco social a De acordo com Camarano, Kanso,
ser assumido?, organizado por Camarano Mello e Carvalho (2010), a denominação
(2010), em parceria com o Ipea, abordando Instituições de Longa Permanência para
os vários aspectos que envolvem o idoso Idosos foi proposta pela Sociedade
na atualidade, especialmente a Brasileira de Geriatria e Gerontologia em
institucionalização (no que se refere ao substituição às diversas nomenclaturas
preconceito, ao “abrigar ou retirar”, à existentes – asilos, abrigos, retiros, casa de
fiscalização das condições da instituição). repouso. A nova denominação é derivada
Esse livro ainda traz uma pesquisa da expressão lançada pela Organização
importante de caráter censitário, intitulada Mundial de Saúde: Long-Term Care
“Condições de funcionamento e Institution, e foi sugerida no sentido de
infraestrutura das Instituições de Longa estimular uma nova configuração de
Permanência para Idosos no Brasil”, instituição para idosos, que articule a rede
produzida por Camarano et al. no período de assistência social e a rede de saúde –
de 2007 a 2009. No meio acadêmico, assumindo uma função híbrida –, na
podem-se citar duas dissertações relevantes construção de um espaço multidisciplinar e

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integrado. No entanto, a realidade mostra ela vivencia o cotidiano na instituição?


que a maioria das instituições não se Como sua identidade e seu corpo vão
autodenomina ILPI, como é o caso do local sendo marcados pelo estar
onde se desenvolveu esta pesquisa, institucionalizado? Nessas inquietações,
denominado “abrigo”. deseja-se caminhar.
Embora muitas vezes vistas com No movimento de compreender o
preconceito, essas instituições emergem de processo identitário do ser humano,
um contexto social em que a família e o Ciampa (1987) caminha com uma
Estado, por diversos motivos, não afirmação fundamental: “Identidade é
assumem as demandas dos idosos, metamorfose. E metamorfose é vida” (p.
tornando-se, para muitos deles, a opção 128). Metamorfose remete a uma
que lhes garantirá cuidado e um lugar transformação, um desenvolvimento que se
seguro para viver. Assim, trata-se de uma estende por toda a vida, e nesse
alternativa que não tem função – ao menos metamorfosear, a identidade de cada
não deve ter – de retirar as pessoa é construída nas relações sociais.
responsabilidades do núcleo familiar, mas Assim, uma identidade é produto e
reorganizar os papéis de cada instância da produtora de um contexto social. Em
sociedade, de modo que a proteção à primeira instância, tem-se uma concepção
pessoa idosa seja garantida (Camarano & de identidade como um conjunto de traços
Scharfstein, 2010). indeléveis, cristalizados em cada qual.
Diante da crescente demanda às Posteriormente, ao contrário de estática, é
ILPIs e, por conseguinte, de idosos possível percebê-la como um processo
institucionalizados, somos provocados a contínuo, incessante.
compreender como esses sujeitos Aqui, a identidade de cada idoso
vivenciam o cotidiano na (da) instituição. emerge de um contexto – o abrigo –
Parte-se do pressuposto que, além de considerado, em traços suaves, uma
experimentar seu envelhecer, a pessoa instituição total, já que para Goffman
idosa é submetida aos aspectos (2005, p. 16) “em primeiro lugar, há
institucionalizantes que produzem efeitos instituições criadas para cuidar de pessoas
negativos em sua identidade. Tais aspectos que, segundo se pensa, são incapazes e
são aqui delimitados a partir dos conceitos: inofensivas; nesse caso estão as casas para
identidade, em Antônio Ciampa (1987); cegos, velhos, órfãos e indigentes”. Entre
mortificação do eu, em Erving Goffman as características desse tipo de instituição,
(2005); e disciplinamento, em Michel existe a tendência de “fechamento”.
Foucault (1996). Significa dizer que existe uma barreira –
Trata-se, portanto, de uma que vai além da solidez dos muros, existe
preocupação que vai além da dimensão aí uma barreira social – entre o mundo
individual: a dimensão social. “Entre os interno da instituição e o mundo externo.
muros do abrigo” existe uma dinâmica Além disso, todas as atividades, cada passo
inerente, própria do lugar que “institui”. do indivíduo acontecem dentro de um
Porém, o enfoque desse estudo está no único ambiente, em uma mesma atmosfera
“instituído”: os idosos. cerceada pela coletividade, obedecendo a
uma estrita rotina, sob a imposição de
O idoso institucionalizado: identidade e regras e uma única direção.
corpo Em consequência da permanência
nessas instituições, o sujeito inicia um
Do que é feita a pessoa que processo de distanciamento de si que
atravessou as barreiras do tempo e agora Goffman (2005, p. 24) nomeia como
vive entre os muros de um abrigo? Como mortificação do eu.

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O novato chega ao estabelecimento com atividade corresponde ao estabelecimento


uma concepção de si mesmo que se tornou de horários, criando uma rotina que irá
possível por algumas disposições sociais
estáveis no seu mundo doméstico. Ao entrar,
otimizar o tempo (Foucault, 1996).
é imediatamente despido do apoio dado por Diante do exposto, pressupõe-se
tais disposições... O seu eu é que, no idoso institucionalizado, a
sistematicamente, embora muitas vezes não identidade metamorfoseada dê lugar ao
intencionalmente, mortificado... A barreira processo de mortificação do eu,
que as instituições totais colocam entre o
internado e o mundo externo assinala a
perpassando um corpo que sofre
primeira mutilação do eu. disciplinas. Nesse sentido, nosso estudo
caminha com a seguinte pergunta: como se
A vida dentro de uma instituição dá o processo de institucionalização em
pressupõe regras, normas, condutas idosos abrigados em uma cidade do sul de
adequadas ou consideradas aceitáveis, Santa Catarina? A partir dessa questão
portanto a forma como o interno encontra estabeleceu-se como objetivo geral:
de lidar com essas diretrizes poderá compreender o processo de
resultar em dois tipos de ajustamentos, institucionalização em idosos abrigados. E
conceitualmente divididos em ajustamento como objetivos específicos: descrever a
primário e ajustamento secundário. rotina à qual o idoso abrigado é submetido;
Quando o sujeito incorpora naturalmente identificar, nas práticas inerentes ao
as imposições da instituição, mantendo funcionamento do abrigo, os aspectos da
uma conduta que colabore na organização institucionalização; identificar, nas
do seu ambiente, pode-se dizer que ele se expressões verbais e não verbais do idoso
ajustou primariamente. No entanto, se o abrigado, os aspectos da
sujeito não aceita as imposições (mesmo institucionalização; comparar os aspectos
que parcialmente) e se comporta por meio da institucionalização entre os idosos com
da transgressão, ou seja, burlando aquilo diferentes períodos de permanência no
que está posto (mesmo que muitas vezes abrigo.
de forma imperceptível), então seu
ajustamento é considerado secundário Método
(Goffman, 2005).
Além da mortificação do eu trazida Quanto ao delineamento, trata-se de
por Goffman (2005) – em que a identidade uma pesquisa de campo do tipo estudo de
do sujeito é submetida ao movimento da caso, de cunho exploratório. O estudo
instituição total, portanto mortificada –, assume abordagem qualitativa,
existe para Foucault (1996) um salientando-se que, “além de ser uma
disciplinamento que dociliza o corpo. O opção do investigador, justifica-se,
disciplinamento utiliza dispositivos que sobretudo, por ser uma forma adequada de
limitam a atividade corporal, produzindo, entender a natureza do fenômeno social”
por meio do controle, corpos dóceis. (Richardson, 1999, p. 79). A abordagem
Para garantir uma disciplina que qualitativa, muitas vezes, “dirige-se à
exerça poder e autoridade, são dispostas análise de casos concretos em suas
duas regras fundamentais: “a arte das peculiaridades locais e temporais, partindo
distribuições” e “o controle da atividade”. das expressões e atividades das pessoas em
A arte das distribuições compreende a seus contextos locais” (Flick, 2009, p. 37).
forma funcional como o indivíduo é A instituição pesquisada constitui-
distribuído no espaço, ou seja, definir se em um abrigo para idosos, entidade de
estrategicamente o local que ele irá ocupar, cunho assistencial e filantrópico,
organizando o ambiente. Já o controle da localizado em uma cidade com
aproximadamente 100 mil habitantes, ao

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sul de Santa Catarina. O abrigo possui totalidade, em sua dinâmica de


capacidade para 50 internos. As instalações funcionamento – incluindo equipe diretiva,
são divididas em 1º pavimento, 2º funcionários, residentes e seus familiares.
pavimento, anexo e área externa. No 1º No que se refere à entrevista
pavimento, encontram-se cozinha semiestruturada, do total de 47 residentes
equipada, refeitório, sala de estar, quatro do abrigo, seis foram selecionados,
dormitórios com instalações sanitárias, constituindo uma amostra intencional, ou
dois quartos individuais, duas enfermarias seja, “os elementos que formam a amostra
com instalações sanitárias, farmácia e relacionam-se intencionalmente de acordo
posto de enfermagem, vestiário com com certas características, no plano e nas
instalação sanitária para os servidores, sala hipóteses formuladas pelo pesquisador”
de visitas, sala da presidente, área interna, (Richardson, 1999, p. 161). Para tanto,
onde está localizada a gruta para orações e utilizou-se como critério de seleção dos
reflexões. No 2º pavimento, estão entrevistados: diferentes períodos de
localizados uma sala de estar, dois permanência do residente na instituição,
banheiros e três quartos. Anexo ao prédio ser legalmente autônomo e ter
sede há uma lavanderia, uma sala para disponibilidade para responder à
assistência social, uma sala de costura, entrevista. Dos seis idosos selecionados,
uma sala para fisioterapia, um depósito cinco aceitaram participar (a idosa com
para equipamentos e ferramentas e mais tempo de permanência no abrigo – 20
produtos de limpeza, um banheiro e dois anos – se negou a responder à entrevista).
lavabos. A área externa é ampla e Os cinco idosos entrevistados estão na
arborizada. faixa etária entre 65 e 94 anos, com
No período de realização da diferentes períodos de permanência no
pesquisa, a instituição abrigava quarenta e abrigo, a saber: P1, Sr. de 86 anos
sete internos, 23 homens e 24 mulheres. A (residente do abrigo há quatro meses); P2,
equipe de funcionários contava com nove Sra. de 65 anos (residente do abrigo há seis
auxiliares de limpeza, seis técnicas de meses); P3, Sra. de 85 anos (residente do
enfermagem, uma enfermeira, uma abrigo há um ano e meio); P4, Sra. de 69
assistente social, uma nutricionista, um anos (residente do abrigo há três anos); P5,
motorista e um auxiliar administrativo. Sra. de 94 anos (residente do abrigo há seis
anos).
Coleta de dados
Aspectos éticos
Quanto ao procedimento de coleta
de dados, optou-se pela observação Norteando-se pela Resolução CNS
participante e pela entrevista nº 466/12 do Comitê Nacional de Ética em
semiestruturada, objetivando ampliar a Pesquisa, os aspectos éticos implicados
identificação de elementos que foram problematizados e a pesquisa foi
oferecessem consistência ao estudo. aprovada pelo Comitê de Ética em
Segundo Neto (2001, p. 57), “entre as Pesquisa da Universidade do Sul de Santa
diversas formas de abordagem técnica do Catarina (CEP – Unisul). As instituições
trabalho de campo, destacamos a entrevista envolvidas – universidade e abrigo –
e a observação participante, por se tratarem assinaram a Declaração de Ciência e
de importantes componentes da realização Concordância das Instituições Envolvidas.
da pesquisa qualitativa”. A observação Além disso, os participantes da entrevista
participante foi realizada durante seis receberam orientação sobre os
meses, sendo quatro horas semanais, com o procedimentos e autorizaram a coleta dos
objetivo de olhar a instituição em sua dados por meio de Termo de

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Consentimento Livre e Esclarecido, além tempo: uma acelerada,3 assumida pela


de consentirem a gravação de voz. equipe diretiva e funcionários que
transitam com o objetivo de fazer
Análise dos dados funcionar a engrenagem da instituição;
outra desacelerada,4 assumida pelos idosos
Analisaram-se os conteúdos das que ali fazem morada, instigando-nos a
observações e das respostas das entrevistas compreender como eles vivenciam o
com a utilização da técnica de Análise de envelhecimento dentro do abrigo. Esses
Conteúdo (Bardin, 1994). As categorias de dois movimentos num mesmo local
análise foram determinadas a priori. revelam a essência de uma instituição total:
Os dados obtidos na observação “um híbrido social, parcialmente
participante e na entrevista semiestruturada comunidade residencial, parcialmente
são aqui apresentados e analisados à luz da organização formal” (Goffman, 2005, p.
fundamentação teórica proposta, 22).
especialmente nos conceitos: identidade, A rotina diária no abrigo é bem
em Ciampa (1987); mortificação do eu, em estruturada com horários demarcados,
Goffman (2005); e disciplinamento, em especialmente os momentos das refeições.
Foucault (1996). Para tanto, foram Os idosos acordam entre 6h e 8h30min. Os
estabelecidas duas categorias de análise: banhos acontecem pela manhã, iniciando
mortificação do eu e disciplinamento do por volta das 7h. O café da manhã é
corpo. servido às 8h. O almoço dos acamados
começa às 11h, e a partir das 11h30min é
Resultados e discussão servido para os demais. No período das
12h às 14h, a maioria dos residentes
No decorrer da coleta de dados, descansa. Os idosos são chamados para o
foram identificados na dinâmica do abrigo: café da tarde por volta das 14h30min. O
clara divisão entre a equipe dirigente (que jantar dos acamados começa às 17h, e a
exerce controle) e os instituídos (que são partir das 17h30min é servido para os
submetidos ao controle); realização de demais. Por volta das 20h é oferecida aos
todas as atividades em um mesmo local, idosos a ceia. Entre as refeições principais
existindo uma ruptura com o mundo são disponibilizados lanches àqueles que
externo; o estabelecimento de uma rotina desejam.
diária; o fator coletividade é marcante, por Percebeu-se que os residentes
vezes causando a perda da privacidade e dificilmente questionam a rotina
determinando práticas que possam atender estabelecida pelo abrigo, embora em
a um maior número de pessoas possível. entrevista tenham emergido
Essas características corroboram o descontentamentos. Sobre o horário do
conceito de instituição total proposto por banho, P4 diz: “De manhã que eu não
Goffman (2005). Entende-se que estar gosto! De manhã, bem cedo, quatro ou
submetido à institucionalização pressupõe cinco horas é a hora do banho. Aí é frio. É
transformações na identidade, de forma bem cedo! Devia de ser mais tarde, né?
que nela gere um apagamento gradual, ao Mais quentinho” (P4, Sra. de 69 anos). Já
qual o autor define como mortificação do em relação ao intervalo entre as refeições,
eu. P5 expressa: “Eu não gosto porque é cedo
Inicialmente, foi possível perceber,
entre os muros do abrigo, duas lógicas de 3
Termo empregado pela autora para descrever uma
observação.
4
Termo empregado pela autora para descrever uma
observação.

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demais e eu não tenho fome, é muito justo, indicando a primeira mutilação do eu,
é muito perto” (P5, Sra. de 94 anos). como propõe Goffman (2005).
A forma de seguir essa rotina está Com frequência, os idosos
ligada ao nível de dependência de cada manifestam também o desejo de ir embora
idoso. Assim, aqueles com mais do abrigo e, principalmente, retornar às
autonomia, por exemplo, podem escolher o suas casas de origem. Falam de suas
momento de tomar banho ou chegar um famílias que, por diversos motivos, não
pouco depois para as refeições. podem lhes oferecer cuidado. Sabem da
Dos idosos emergem falta de condições financeiras para manter
descontentamentos e desejos que se um cuidador, e são gratos pela assistência
entrelaçam, misturam-se. Entre os desejos, oferecida pelo abrigo. Mas, ainda assim,
um é marcante: o desejo de liberdade. Uma desejam ir embora. Não fazem da
idosa diz que a semana foi a “pau e pedra”, instituição um lar. É como se não houvesse
“parada”, por isso estava se sentindo o sentimento de pertença. É como se ali
trancada e desejava sair um pouco do não criassem raízes.
abrigo. Observou-se que, quando se trata Entre os entrevistados, todos foram
de alguma atividade externa – passear na unânimes em declarar que ali residem não
casa dos familiares, ir ao médico, ir ao por vontade própria, e sim por não terem
banco –, os idosos ficam ansiosos e outra opção. Na fala a seguir, embora o
animados, porém, quando propostas idoso tenha sua própria casa, os familiares
atividades internas – jogos, pintura, (com seu consentimento) optaram por
recreação –, eles se mostram sem interesse encaminhá-lo ao abrigo, já que não
ou desmotivados. Grande parte do tempo, poderiam oferecer o cuidado necessário.
os residentes estão comendo, assistindo
televisão ou dormindo, o que revela Se a gente puder sair daqui é muito melhor...
ociosidade. Cá pra nós... Eu não tô aqui na marra. Se eu
quiser eu peço pra elas me tirar daqui,
Ainda sobre as limitações do ir e entendeu? Mas eles acham, eles têm uma
vir, a entrevistada P4 diz: “Ó, me sinto intenção que a gente é obrigado a viver aqui
presa! Me sinto numa cadeia... Não posso porque aqui que é a casa do idoso. Mas eu
pegar o ônibus aqui na frente e ir lá na casa sou proprietário de duas moradas... Ah! Nem
da minha mãe” (P4, Sra. de 69 anos). se compara!... Eu preferia minha casa
porque lá eu tinha uma vizinhança de
Outra entrevistada endossa, associando a qualidade boa, bastante gente da família.
instituição a um internato. (P1, Sr. de 86 anos)

Não era nada do que eu pensei de bom... Por diversas vias, manifestam
Aqui eu tô comparando assim como aquelas
meninas que foram pro (colégio interno),5
insatisfações. Seja pela fala, pelo olhar, ou
diz que ficavam lá, e quando saíam de lá até mesmo por um sorriso que oculta
diziam que era um horror... Achei que eu sentimentos desagradáveis. Expressões
fosse ter uma vida mais liberada, que eu verbais e corporais revelam “apagamentos
nunca tive. (P2, Sra. de 65 anos) do eu” muitas vezes imperceptíveis. Uma
idosa reclamou das roupas escolhidas para
Essas falas ilustram a ruptura ela naquele dia. Chorando, definiu suas
existente entre os idosos e os vestes como “indecentes”, pois eram muito
acontecimentos além dos muros do abrigo, largas no corpo. Isso se deve ao fato de os
idosos compartilharem os guarda-roupas,
fazendo com que as roupas se misturem.
5
Colégio interno: termo utilizado pela Outra vez, a mesma idosa falou
entrevistadora como substituto, pois entrevistada sobre suas louças e talheres, nunca
cita nome de uma instituição.

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Souza, Rosa Cristina Ferreira de; Amábille das Neves, Inácio. Entre os muros do abrigo: compreensões do
processo de institucionalização em idosos abrigados

utilizadas por ela, e sobre o desejo de dificuldade em poder conversar com a


comer com garfo e faca. No abrigo, pratos responsável do abrigo.
e canecas são de plástico e são
disponibilizadas apenas colheres, com a Ó, pra reclamar eu não tenho liberdade. Eu
justificativa de serem instrumentos mais já sentei naqueles bancos ali da salinha,
umas três vezes, esperando ela conversar.
seguros e de fácil manuseio para os idosos. Quando eu cheguei na porta dela pra entrar,
Porém, muitos idosos teriam condições de aí ela disse que tinha muito papel pra
se alimentar com garfo e faca, sendo o uso assinar, foi o mesmo que me dar um
da colher inapropriado para determinados empurrão assim. Ela não disse assim: espera
alimentos (como espaguete e alimentos um pouquinho que a gente te atende. Ela
disse assim: eu tô cheia de papel pra assinar!
mais sólidos). Dessa forma, a padronização (P2, Sra. de 65 anos)
e a dificuldade em reconhecer as
singularidades reforçam o processo de Na instituição, existe um olhar
mortificação do eu. voltado muito mais para suprir as
Conforme Goffman (2005), além necessidades básicas dos idosos (como
da perda identitária e emocional sofrida em alimentação, higiene, cuidados médicos,
uma instituição total, existe a perda moradia), em uma dimensão assistencial
material (daquilo que não pôde trazer ou material,6 do que escutá-los em seus
manter consigo), surgindo a necessidade de desejos e inquietações, buscando
objetos que assegurem traços próprios da proporcionar bem-estar psicossocial.
identidade. Assim, quando a escuta é negada, a
identidade também é negada, existindo aí
Um conjunto de bens individuais tem uma
relação muito grande com o eu. A pessoa
um encurvamento aos desejos que não são
geralmente espera ter certo controle da próprios de cada um, e sim pertencentes ao
maneira de apresentar-se diante dos outros. coletivo.
Para isso, precisa de cosméticos e roupas, Ciampa (1987) conceitua a
instrumentos para usá-los, ou consertá-los, identidade como um processo de
bem como de um local seguro para guardar
esses objetos e instrumentos – em resumo, o
metamorfose, de constante
individuo precisa de um “estojo de desenvolvimento, em que o dispositivo
identidade” para o controle de sua aparência mantenedor dessa constante transformação
pessoal. (Goffman, 2005, p. 28) é chamado reposição. Ou seja, a partir da
posição em mim (aquilo que de meu já está
É importante salientar que cada posto), a reposição alimenta e atualiza
idoso possui sua cama (de solteiro) e um meus traços identitários. Condizente com
criado mudo com chave, ambos com esse pensamento, espera-se que uma
modelo padrão. Fazem desse criado mudo pessoa idosa tenha sua identidade em
um “estojo de identidade”, onde guardam constante transformação, metamorfoseada,
aquilo que ainda podem chamar de seu, já que se pressupõe desenvolvimento
mesmo diante de tantas perdas emocionais também no envelhecer. Porém, diante do
e materiais.
Dessa forma, o cotidiano dos
6
idosos é permeado por desejos e É importante esclarecer que a Política Nacional de
descontentamentos que não assumem Assistência Social (consonante ao Estatuto do
Idoso) atua na garantia dos direitos dos cidadãos, o
função de reivindicação. Segundo os que inclui, além da segurança material, o
residentes, é inútil expressar sentimentos e fortalecimento dos vínculos (especialmente os
pensamentos, pois já perceberam que não familiares), o respeito à dignidade humana e o
são ouvidos. Em entrevista, P2 fala sobre a estímulo ao protagonismo social. No entanto, neste
caso, a prática limita-se à dimensão assistencial
material.

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Souza, Rosa Cristina Ferreira de; Amábille das Neves, Inácio. Entre os muros do abrigo: compreensões do
processo de institucionalização em idosos abrigados

encurvamento ao qual essa pessoa é muita coisa né, porque aqui sou mandada,
submetida em uma ILPI, a metamorfose dá né? Na minha casa eu fazia como eu
lugar ao apagamento do “ser”, à queria. Aqui eu sou mandada, né?” (P3,
mortificação do eu. Sra. de 85 anos). Quando respondeu sobre
Para um eu mortificado, um corpo como é viver no abrigo, P5 define: “É
docilizado, uma identidade lentamente viver como um doente, né?” (P5, Sra. de
mutilada habita um corpo que sofre 94 anos). Essas falas revelam a submissão
disciplinas. Um processo alimenta o outro e desempoderamento vivenciados pelos
e vice-versa. Torna-se uma tarefa idosos.
complexa dissociar esses dois processos, já Nesse sentido, dispositivos como a
que uma linha tênue os separa. rotina estruturada – descrita anteriormente
Com o intuito de otimizar o tempo, – e práticas que não estimulam a
o abrigo adota práticas que resultam em autonomia, nem respeitam as
disciplinamento dos idosos. Aqueles que singularidades dos idosos, constituem uma
possuem mais dependência, como os instituição que, por meio do controle,
cadeirantes, são, por sua vez, mais mortifica o eu e dociliza o corpo. Portanto,
docilizados. Estes, mesmo possuindo o compreende-se que tanto a mortificação do
controle dos esfíncteres, vão habituando-se eu quanto o disciplinamento do corpo
a usar fraldas, pois os funcionários – aparecem no idoso institucionalizado,
sobrecarregados – não podem levá-los ao variando a intensidade entre os residentes,
banheiro cada vez que necessitam. Outra levando em consideração dois fatores: o
situação que configura disciplinamento é o nível de dependência e o tempo de
momento das refeições. Os idosos, mesmo permanência no abrigo. Quanto mais
aqueles com autonomia, aguardam ser dependente o idoso, mais encurvado ao
servidos na mesa. Essa contenção, esse desejo da instituição ele se torna.
impedir a atividade dos corpos – neste caso Além disso, os idosos com menos
de ir buscar seu próprio alimento –, no tempo de permanência no abrigo mostram-
intento de manter a ordem, configuram o se mais resistentes à dinâmica da
disciplinamento. instituição se comparados àqueles que lá
estão há mais tempo. Durante a
Métodos que permitem o controle minucioso observação, duas idosas recém-chegadas
das operações do corpo, que realizam a apresentavam náuseas e vômitos
sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade, são o
frequentes e negavam-se a comer as
que podemos chamar as disciplinas... A refeições oferecidas, alimentando-se pouco
disciplina fabrica assim corpos submissos e ou solicitando café e biscoito no lugar dos
exercitados, corpos dóceis. A disciplina alimentos salgados. Durante o dia, ficavam
aumenta as forças do corpo (em termos a maior parte do tempo deitadas. Essa
econômicos de utilidade) e diminui essas
mesmas forças (em termos políticos de
resistência a incorporar a dinâmica da
obediência). Em uma palavra: ela dissocia o instituição demonstra o ajustamento
poder do corpo; faz dele por um lado uma secundário proposto por Goffman (2005).
aptidão, uma capacidade que ela procura Ao permanecerem no abrigo, os
aumentar; e inverte por outro lado a energia, idosos passam por um processo de
a potência que poderia resultar disso, e faz
dela uma relação de sujeição estrita.
resistência/negação e, lentamente, com o
(Foucault, 1996, p.126-127) processo de mortificação do eu, começam
a se ajustar à nova realidade. Esse
Uma das entrevistadas, quando lhe ajustamento ao funcionamento da
perguntaram sobre as coisas que desejaria instituição indica o ajustamento primário.
fazer, mas não podia, respondeu: “Ah, é Com o longo tempo de permanência,
aparecem os sinais de cansaço e desgaste,

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processo de institucionalização em idosos abrigados

representado também nas relações idosos, já que a metamorfose – no sentido


interpessoais, muitas vezes conflitantes. P5 de desenvolvimento – dá lugar ao processo
diz: “Até que no começo foi bem, não senti de mortificação do eu, perpassando um
problema nenhum, mas ao viver com o corpo que sofre disciplinas, um corpo
pessoal vem, ao viver com o pessoal vem, dócil.
boba. Essas mulher brigam comigo... Mas Ainda sobre o processo de
é só ao correr do tempo e do dia que institucionalização, a partir da mortificação
aparece, tu entende?” (P5, Sra. de 94 do eu e o disciplinamento, observou-se que
anos). os idosos recém-chegados apresentam
Por fim, vale pontuar que a idosa resistência em relação à nova realidade; já
residente há vinte anos no abrigo justificou aqueles com mais tempo de permanência
não querer participar da entrevista, pois já mostram-se mais ajustados à dinâmica da
estava cansada de ser objeto de estudo. instituição. No entanto, aqueles com longo
Enfatizou que no início gostava de morar tempo de permanência apresentam um
no abrigo, porém com o tempo a vida intenso desgaste emocional. Mesmo sendo
tornou-se mais “pesada”. gratos aos cuidados oferecidos pelo abrigo,
com frequência expressam o desejo de ir
Considerações Finais embora, permitindo compreender que
quanto maior o tempo de permanência no
Essencialmente, desejou-se nesta abrigo, maiores são os efeitos da
pesquisa compreender o processo de institucionalização.
institucionalização em idosos abrigados. Sabe-se que as Instituições de
Ainda que diante da complexidade e rigor Longa Permanência para Idosos têm
inerente à produção de saberes, algumas função importante no contexto atual e, a
compreensões foram possíveis. seu modo, dentro das possibilidades,
Verificou-se o quanto o envelhecer oferecem o cuidado à pessoa idosa. Nesse
é permeado de preconceitos construídos caso, observou-se que o abrigo assume um
culturalmente. Mesmo com os avanços e caráter assistencial material, priorizando
transformações da sociedade, a velhice suprir as necessidades básicas dos idosos,
continua sendo associada a limitações e o que indica a dificuldade dessas
ausência de desenvolvimento, à instituições em se adequarem, em estarem
estagnação. Essa perspectiva é deflagrada compatíveis com os avanços da Política
na dinâmica do abrigo, o que inclui equipe Nacional de Assistência Social. Além
diretiva, funcionários, residentes e seus disso, pouca atenção é direcionada à
familiares. A instituição possui dificuldade dimensão psicológica, às necessidades
em reconhecer as potencialidades dos emocionais dos idosos, comprometendo o
idosos. Estes, por sua vez, fazem da seu bem-estar biopsicossocial. Essa
instituição o lugar de espera para os compreensão se traduz na necessidade de
últimos anos de vida. repensar perspectivas e práticas
Constatou-se que o abrigo se institucionais, transformando
constitui, em traços suaves, uma instituição positivamente esses espaços.
total. O modo como os conceitos Outra questão a ser repensada é o
identidade metamorfoseada, mortificação fato de o abrigo não contar com psicólogo
do eu e disciplinamento estão conectados, em sua equipe técnica. A presença desse
permitiram uma leitura enriquecedora do profissional – aqui especialmente com
universo do idoso institucionalizado e do enfoque psicossocial –, compondo a equipe
processo de institucionalização em si. multiprofissional, é fundamental no
Nesse caso, envelhecer em uma instituição sentido de pensar estratégias e oferecer
produz efeitos negativos na identidade dos atenção psicológica norteada pelo principio

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processo de institucionalização em idosos abrigados

da humanização, devendo as demandas Agência Nacional de Vigilância Sanitária.


individuais ou coletivas ser acolhidas e (2004). Consulta Pública nº 41, de
trabalhadas de forma especializada. Essa 18 de janeiro de 2004. Recuperado
atenção pode ser direcionada a todos os em 8 junho, 2015, de
envolvidos no contexto da instituição – http://www4.anvisa.gov.br/base/visa
equipe diretiva, funcionários, idosos e seus doc/CP/CP%5B7626-1-0%5D.PDF
familiares –, primando pelo bem-estar e, Bardin, L. (1994). Análise de conteúdo.
consequentemente, contribuindo na fluidez Lisboa: Edições 70.
do funcionamento institucional. Os idosos Brasil. (1994). Lei nº 8.842, de 4 de
– protagonistas deste estudo – necessitam Janeiro de 1994. Dispõe sobre a
de profissionais essencialmente dispostos a Política Nacional do Idoso, cria o
se conectarem ao mundo deles, a escutá- Conselho Nacional do Idoso e dá
los atentamente em seus desejos e outras providências. Recuperado em
inquietações, a promover 8 junho, 2015, de
desenvolvimento. Mesmo diante de um http://www.planalto.gov.br/ccivil_03
ambiente coletivo, é preciso respeitar as /leis/l8842.htm
singularidades. Brasil. (2003). Lei nº 10.741, de 1º de
Sobre as limitações da pesquisa, a Outubro de 2003. Dispõe sobre o
maior dificuldade se deu nas entrevistas, já Estatuto do Idoso e dá outras
que os idosos por vezes apresentaram providências. Recuperado em 18
dificuldades em manter o foco diante das maio, 2015, de
questões propostas, exigindo ainda mais http://www.planalto.gov.br/ccivil_03
habilidade por parte da entrevistadora. /leis/2003/l10.741.htm
Este estudo não se encerra em si Brasil. (2009). Resolução nº 109, de 11 de
mesmo, mas abre possibilidades para novembro de 2009. Aprova a
outras pesquisas, principalmente na área da Tipificação Nacional de Serviços
Psicologia, que muito tem a contribuir. Socioassistenciais. Recuperado em
Uma sugestão é a realização de pesquisa 24 novembro, 2015, de
em ILPIs que tenham psicólogos em sua http://www.mds.gov.br/webarquivos/
equipe multiprofissional, com o intuito de legislacao/assistencia_social/resoluc
conhecer suas formas de atuação. oes/2009/Resolucao%20CNAS%20n
É pertinente findar esse ciclo com a o%20109-
seguinte reflexão: uma sociedade que %20de%2011%20de%20novembro
caminha para as relações “descartáveis”, %20de%202009.pdf
esqueceu-se de olhar o “velho” de um jeito Brasil. (2010). Atenção à saúde da pessoa
“novo”. Impregnado na cultura, envelhecer idosa e envelhecimento. Série Pactos
ainda significa perdas, improdutividade, pela Saúde 2006, v. 12. Brasília:
doença e morte. Esta pesquisa, usando as Ministério da Saúde. Recuperado em
palavras de Madre Tereza de Calcutá, “é 20 maio, 2015, de
uma gota no oceano”, porém o que se http://bvsms.saude.gov.br/bvs/public
desejou e se deseja é olhar além, é acoes/atencao_saude_pessoa_idosa_
considerar a velhice com todas as suas envelhecimento_v12.pdf
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