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Eduardo S. R.

Freitas, Quilombo Cafundá


Astrogilda - Rio de Janeiro/RJ
Analógica, 35mm
Artigo

TWO-SPIRITS:
DA ADMIRAÇÃO AO ESCÁRNIO

Two-Spirits:
From admiring to the escarn

Dandriel Henrique da Silva Borges1

1 Graduando do curso de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: dandriel.


henrique@gmail.com

Revista Outrora, Rio de Janeiro, Vol. 2, N. 1, p. 137-153, jan./jun. 2019


Two-Spirits: da admiração ao escárnio
Dandriel Henrique da Silva Borges 139

Resumo: O seguinte artigo propõe-se, através da análise de fontes escritas por médicos,
naturalistas, etnólogos, antropólogos, acadêmicos e indivíduos de povos originários, a fazer
uma breve e introdutória análise da realidade dos povos originários da América do Norte
(principalmente no que hoje é território correspondente aos Estados Unidos da América), com
foco no que tange questões de identidade e sexualidade, antes e depois das intervenções do
“homem branco”, enfatizadas no período de expansão do território estadunidense, conhecido
como Marcha ou Expansão para o Oeste.

Palavras-chave: Povos originários, América do Norte, EUA, Sexualidade, Two-Spirits,


Expansão para o Oeste.

Abstract: The following article proposes, through the analysis of sources written by
physicians, naturalists, ethnologists, anthropologists, academics and natives americans,
to make a brief and introductory analysis of the reality of the natives of North America
(especially in what is now territory taken by the United States of America), with a
focus on issues of identity and sexuality, before and after the interventions of the
“white man”, emphasized in the period of expansion of the USA territory known as
Westward Expansion or March.

Keywords: Native americans, North America, USA, Sexuality, Two-Spirits, Westward


Expansion.

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Introdução

Expulsos, escravizados, mortos, assimilados e apagados. Há todo um conjunto de


sofrimentos históricos, infelizmente, comum entre as populações dos povos originários
dos mais diversos locais do mundo que passaram por processos de colonização por parte
de potências imperialistas.

Diversos são os relatos de exploradores que, após “descobrirem” novas terras, escravizam
e/ou matam (se não chacinam) aqueles habitantes os quais, por terem uma pele ou traços
físicos distintos dos seus, além de ricas culturas consolidadas localmente, são considerados
bárbaros por fugirem das normas e padrões imperialistas europeus (a partir de certos momentos
também adotados por potências imperialistas de outros continentes, como os Estados Unidos
da América). O mesmo processo repetia-se, agravando-se, com o estabelecimento de colonos
e sua incursão “novo território” a dentro.

O apagamento histórico dessas culturas, usualmente vistas como inferiores, é um processo


comum que dificulta muito o estudo da história desses diversos povos. Processo que ocorre
por interesses e influências governamentais e daqueles que, muitas vezes, foram os únicos
responsáveis pela propagação das fontes escritas preservadas, os missionários. Não à toa
tivemos constantes omissões de particularidades culturais que pudessem ser consideradas
afrontosas as interpretações baseadas pelo cristianismo.

Na América do Norte, após o processo de ocupação territorial e as expansões internas


nos séculos XVIII e XIX, um aspecto do processo exploratório não muito conhecido é a
resposta à ação, além de suas consequências, desses “homens brancos” em relação aos
indivíduos que, até o meio do século passado, ainda eram frequentemente confundidos e
tratados como hermaphrodites. Se no passado foram conhecidos nos mais diferentes povos
originários norte-americanos, reverenciados e admirados em muitas deles, esses indivíduos,
que apresentavam hábitos e papéis distintos daqueles usualmente executados por alguém de
seu sexo em suas comunidades, que hoje são chamados de two-spirits, tornaram-se motivo
de vergonha para esses mesmos povos, figuras do passado a serem esquecidas e alvos de
preconceito, ameaças e até morte após a interferência do “homem branco”.

Two-Spirits antes da expansão territorial dos EUA


Há quanto tempo exatamente existem indivíduos two-spirits nos povos originários da
América do Norte é difícil afirmar com plena certeza. Ainda sim, Will Roscoe defende
que pinturas localizadas em kindas2 no sítio arqueológico de Pottery Mound, que fica em
Rio Puerco, New Mexico, datadas entre 1400 a 1500 anos atrás, representariam já esses
indivíduos3. Avaliando isso, é possível estipular que two-spirits existiriam, pelo menos,
desde esse tempo, demonstrando-se enquanto indivíduos consideravelmente ancestrais.

2 Espécie de sala ou quarto arredondado usado por povos originários para diferentes tipos de cerimônias.
3 ROSCOE, Will. Changing Ones: Third and Fourth Genders in native North America. New York: St.
Martin’s Griffin, 1998. p.202.

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Quando surgiu o primeiro two-spirits pode ser difícil datar, mas é mais fácil quanto a
quando eles começaram a serem mortos por expressarem quem são. Joan Rougharden nos
relata sobre as violências contra aqueles indivíduos dos povos originários que aparentavam
expressar suas identidades de um jeito que os colonizadores já no século XVI, baseados em
valores cristãos, julgavam imorais, passíveis de serem mortos com requintes de crueldade:

In 1530 Nuño de Guzman said the last person he captured in battle who
“fought most courageously, was a man in the habit of a woman, for which I
caused him to be burned.” While in Panama, Vasco Núñez de Balboa saw men
dressed as women and threw them to his dogs to be eaten alive. Calancha,
a Spanish official in Lima, later praised Balboa for the “fine action of an
honorable and Catholic Spaniard.4”

Segundo Will Roscoe, estima-se que na época da chegada dos primeiros europeus em territórios
da América do Norte existissem cerca de 400 povos originários extremamente diversificados no
que tangia os ambientes que viviam e o modo como se adaptavam a eles, organização de suas
sociedades, composições familiares, línguas, modo de subsistência e religiosidades5.

Já pelo final do século XVIII, Bernard Romans, em seu livro que falava sobre os povos
originários no território do leste dos Estados Unidos e do oeste da Flórida, argumentava
que tais povos seriam de uma espécie diferente daqueles de qualquer outra parte do globo6,
numa clara tentativa de “desumanizar” os tais no que pode ser interpretado como uma
tentativa de justificação de todo um processo de colonização que subjugava, muitas vezes
no sentido mais físico da palavra, as populações dessas comunidades. Quanto mais longe
da ideia dos povos originários serem “racionais”, mais fácil seria justificar tal processo de
colonização e cristianização7.

Se naquela época, ainda na figura de Treze Colônias britânicas, os Estados Unidos da


América sofressem constantemente a pressão europeia ao leste e a instabilidade das relações
com os povos originários a oeste, o cenário mudaria após sua independência e a leve
estabilidade vivida pelo país nos anos após a aprovação de sua Constituição e a eleição de
seus primeiros Presidentes. Nas décadas seguintes, o governo estadunidense começaria a
incentivar, através da oferta de terras a um preço muito baixo, um processo de expansão
de seu território8 que só finalizar-se-ia em 1912 com a incorporação do estado do Arizona,
formando o território que conhecemos atualmente. Esse crescimento territorial ficaria

4 Em 1530, Nuño de Guzman disse que a última pessoa que ele capturou na batalha que “lutou mais
corajosamente, era um homem com vestes de mulher, por isso eu fiz com que ele fosse queimado.” Enquanto
no Panamá, Vasco Núñez de Balboa viu homens vestidos como mulheres e jogou-os aos seus cães para serem
comidos vivos. Calancha, oficial espanhol em Lima, mais tarde elogiou Balboa pela “boa ação de um honrado
católico espanhol”. ROUGHGARDEN, Joan. Evolution’s rainbow: Diversity, gender, and sexuality in nature
and people. Berkley, University of California Press, 2004. p.335, tradução nossa.
5 ROSCOE, Will. op. cit., p.6.
6 Assim como também dizia o mesmo de chineses, negros, mouros e outros povos mais, distintos
etnicamente dos europeus. ROMANS, Bernard. A Concise Natural History of East and West Florida. Florida:
University of Florida Press, 1962.p. 38.
7 ROUGHGARDEN, Joan. Evolution’s rainbow: Diversity, gender, and sexuality in nature and people.
Berkley, University of California Press, 2004. p.335.
8 Na época, ainda composto apenas pelas treze primeiras colônias oriundas da colonização inglesa.

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conhecido como “Marcha para o Oeste”, construído na base de negociações9, existindo


diversos territórios comprados10 de outros países e conflitos, nesse caso, tanto a Guerra do
México (1846 – 1848)11 e quanto a anexação, usualmente na base da violência, de terras das
populações nativas.

Two-spirits dentre seus povos antes do “homem branco”

Indivíduos designados homens ao nascer de acordo com seu sexo (ou seja, por possuírem
pênis) que apresentaram comportamentos, hábitos e/ou diferentes funções atribuídas às
mulheres daquele povo, unicamente ou em conjunto com aquelas tidas como papéis dos
homens perante suas comunidades no decorrer da vida, foram comuns em quase todas os povos
originários documentados. Por outro lado, aquelas pessoas designadas mulheres ao nascer de
acordo com seu sexo (ou seja, por possuírem uma vulva) que apresentaram comportamentos,
hábitos e/ou diferentes funções atribuídas aos homens daquele povo, unicamente ou em
conjunto com aqueles tidos como papéis das mulheres, demonstravam-se muito mais raras12.
Em alguns casos também eram atribuídos a esses indivíduos funções específicas13. Seja como
for, era regular a percepção desses indivíduos demonstrarem atitudes distintas daquelas cujas
suas sociedades esperavam de alguém de seu sexo, ainda em idades pré-púberes, atribuídas
por aqueles que relataram esses processos como infância14 e para confirmação existiam
rituais específicos. Comum também era a ideia desses indivíduos tornarem-se two-spirits
após sonhos específicos com determinadas atribuições sobrenaturais15.

Os povos originários tinham uma considerável liberdade sexual. Esses indivíduos


que atualmente chamamos de two-spirits, usualmente relacionavam-se com indivíduos
de sexo idêntico, ou seja, indivíduos que, na maioria das vezes, executavam papéis
sociais distintos do seu, embora também tenham existido aqueles que se relacionaram

9 O território de Oregon foi cedido pela Inglaterra em 1846, por meio do chamado Tratado do Oregon. SAGE,
Walter N. The Oregon Treaty of 1846. The Canadian Historical Review, Toronto, vol.27 n. 4, dec. 1946, p. 349-367.
10 Luisiana, comprada por 15 milhões de dólares da França em 1803; Flórida, comprada por 5 milhões
de dólares da Espanha em 1819 e o Alasca, comprado por 7,2 milhões de dólares da Rússia em 1867. Para mais
informações do processo de expansão estadunidense checar: McNEIL, Allison (Cord.). Westward Expansion
Reference Library Cumulative Index: Almanac. Detroid: U.X.L., 2001.
11 Como resultado desse conflito o México teve de ceder os seguintes territórios aos EUA: as regiões
do Arizona, Califórnia, Novo México, Nevada, Texas, Utah, além de parte do Colorado. Para uma análise
aprofundada da Guerra do México, ver: JOHANNSEN, Robert W. To the Halls of the Montezumas: The
Mexican War in the American Imagination. New York: Oxford University Press, 1985.
12 HILL, W. W., The status of the hermaphrodite and transvestite in navaho culture. American
Anthropologist, vol.37, n.2, abr./jun. 1935, p274-275; ROSCOE, Will. We’wha and Klah: The american indian
berdache as artist and priest. American Indian Quartely, Lincoln, vol.12, n.2, abr./jun., p.127; ROSCOE, Will.
Changing Ones: Third and Fourth Genders in native North America. New York: St. Martin’s Griffin, 1998. p.7-
8,26,70-76,128-130,132. Para uma análise detalhada sobre os quais gêneros eram reconhecidos em quais povos
originários checar: ROSCOE, Will. Changing Ones: Third and Fourth Genders in native North America. New
York: St. Martin’s Griffin, 1998. p. 223-247.
13 ROSCOE, Will. op.cit., p.129.
14 HOLDER, A. D. the Bote: Description of a peculiar sexual perversion found among North American
Indians. New York Medical Journal, New York, vol.50, jul./dez. 1889, p.623; BROWN, Lester. Two Spirit
People: American Indian Lesbian Women and Gay Men. New York: The Haworth Press, 1997. p.23; HILL,
W. W. Note on the pima berdache. American Anthropologist, Hoboken, vol.40, n.2, abr./jun.1938, p. 340;
ROSCOE, Will. op. cit., p.8,92.
15 Para conhecer mais sobre rituais, sonhos e do aspecto sobrenatural ver: LURIE, Nancy. Winnebago
Berdache. American Anthropologist, Hoboken, vol.55, n.5, dez. 1953, p. 708; ROSCOE, Will. op. cit., p.8-
11,14-15,124,132,137-165.

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com pessoas de sexo distinto e, consequentemente, papéis sociais semelhantes aos seus
na comunidade16. Vale enfatizar que em nenhum momento no decorrer do processo
de pesquisa para a elaboração deste artigo encontraram-se fontes que mencionassem
relações sexuais/românticas entre indivíduos two-spirits.

Embora muitos desses indivíduos dos povos originários hoje se reconheçam pelo termo
two-spirits, mesmo já em tempos após intervenções do “homem branco”, diferentes povos
tinham termos próprios17 para esses indivíduos membros de suas comunidades: winkte (no
povo Lakota), boté (no povo Crow), lhamana (no povo Zuni), nadle ou nadleehí (no povo
Navaho), alyha e hwame (no povo Mohave) etc.

As pessoas two-spirits eram figuras, pelo menos, toleradas em todas os povos originários
documentados, além de serem frequentemente considerados indivíduos respeitados e
honrados18. Nos Navahos, onde eram particularmente admirados, significavam riqueza e
prosperidade para suas famílias19. Havia também povos onde não eram tão bem quistos a
exemplo do povo Pima20 e dos Dakota21.

Não raramente ocupavam funções proeminentes22 em suas comunidades, como


curandeiros, shamans ou Chefes, por exemplo.


Confusões terminológicas
Breves comentários devem ser feitos sobre as variedades de termos usados pelos
colonizadores nos primeiros contatos e pelos pesquisadores em si no decorrer da história.
Nos contatos iniciais, julgando-os com base numa ótica europeia fortemente enraizada no
cristianismo e, até o século XX, com base numa cultura estadunidense “descendente” da
primeira, foram descritos como abnormals, anomalous, anomaly, hermaphrodites, inverts,
perverts, primitives, sodomites, transvestites23, e diversos outros vocábulos, muitos dos quais
chocantes aos olhos dos leitores do século XXI.

16 HILL, W. W. The status of the hermaphrodite and transvestite in navaho culture. American
Anthropologist, Hoboken, vol.37, n.2, abr./jun. 1935, p276; ROSCOE, Will. op. cit., p.10,92.
17 HOLDER, A. D. op. cit., p.623; HILL, W. W. op. cit., p.273; LURIE, Nancy. op. cit., p. 709; .ROSCOE,
Will. We’wha and Klah: The american indian berdache as artist and priest. American Indian Quartely, Lincoln,
vol.12, n.2, abr./jun. 1988, p.127; BROWN, op. cit., p.24-26; ROSCOE, Will. Changing Ones: Third and
Fourth Genders in native North America. New York: St. Martin’s Griffin, 1998. p.7. Para uma relação mais
completa desses termos ver: ROSCOE, Will. op. cit., p.214-222.
18 LURIE, Nancy. Winnebago Berdache. American Anthropologist, Hoboken, vol.55, n.5, dez. 1953,
p. 708; BROWN, Lester. Two Spirit People: American Indian Lesbian Women and Gay Men. New York:
The Haworth Press, 1997. p.24; ROSCOE, Will. Changing Ones: Third and Fourth Genders in native North
America. New York: St. Martin’s Griffin, 1998. p.4,7,11,13; FAIMAN-SILVA, Sandra. Anthropologists
and Two Spirit People: Building Bridges and Sharing Knowledge. Anthropology Faculty Publications,
Bridgewater, Paper 23, 2011, p.4,10;
19 HILL, W. W. The status of the hermaphrodite and transvestite in navaho culture. American
Anthropologist, Hoboken, vol.37, n.2, abr./jun. 1935, p.274.
20 HILL, W. W. Note on the pima berdache. American Anthropologist, Hoboken, vol.40, n.2, abr./jun
.1938, p. 338-340.
21 BROWN, Lester. op. cit., p.23
22 BROWN, Lester. op. cit., p.26-27; ROSCOE, Will. op. cit., p.15,90.
23 HOLDER, A. D. the Bote: Description of a peculiar sexual perversion found among North American
Indians. New York Medical Journal, New York, vol.50, jul./dez. 1889, p.623-624; HILL, W. W. The status of
the hermaphrodite and transvestite in navaho culture. American Anthropologist, Hoboken, vol.37, n.2, abr./
jun. 1935, p.273-275; HILL, W. W. Note on the pima berdache. American Anthropologist, Hoboken, vol.40,
n.2, abr./jun .1938, p. 338-340; LURIE, Nancy. op. cit., p. 708-709.

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No final do século XIX e no decorrer do século XX, os termos mais chocantes foram
dando espaço, mais restritamente, para hermaphrodites, transvestites e berdaches, até
que já após a metade do século XX começa a surgir certo consenso acadêmico quanto a
utilização do termo berdache24. Gregory Smithers disserta o seguinte sobre a origem e
o significado desse vocábulo:

Berdache has its etymological origins in Arabic-speaking regions of the


world. The ancient Arabic terms bardaj or barah defined a ‘‘kept boy,’’
‘‘male prostitute,’’ or ‘‘catamite.’’ By the early modern period in Europe,
these terms continued to be associated with sodomy and pederasty. The
English term berdache, the French bardache, the Italian berdasia, and the
Spanish bardaxa or bardaje referred variously to a slave or ‘‘kept boy,’’
and by the eighteenth century to men engaged in sodomy with boys or
other adult males. As these definitions operated in European culture, and
as various forms of colonialism extended into virtually every corner of
the Americas by the end of the eighteenth century, berdache became
in the European (and ultimately Euroamerican) imagination a way to
both designate and denigrate Native American cross-dressers (or what
modern readers might recognize as ‘‘gender benders’’), ‘‘transvestites,’’
‘‘hermaphrodites,’’ ‘‘androgynes,’’ and homosexual behavior25.

No decorrer da década de 1990, com o crescimento da atuação de indivíduos dos povos


originários na luta pelos direitos das pessoas que expressavam identidades e/ou sexualidades
destoantes daquelas tidas como normais pela sociedade estadunidense, enraizada com
o preconceito decorrente de sua construção cultural histórica, aboli-se num processo não
espontâneo, mas gradual, a utilização do termo berdache, tido pelos povos originários como
termo estigmatizado e pejorativo usado por aqueles que haviam invadido e tomado suas
terras, os expulsado de seus lares, escravizado e chacinado seus povos e apagado sua história.
Começou-se então a utilizar-se o termo two-spirits26.

Esse termo é descrito por Qwo-Li Driskill, autor autointitulado Cherokee e two-spirits como:

24 ANGELINO, H. e SHEDD, C. L. A Note on Berdache. American Anthropologist, Hoboken, vol.57,


n.1, fev.1955. p. 121-126.
25 Berdache tem suas origens etimológicas nas regiões de língua árabe do mundo. Os termos árabes
antigos bardaj ou barah definiam um “menino mantido”, “prostituto masculino” ou “catamita”. No início do
período moderno na Europa, esses termos continuavam sendo associados à sodomia e à pederastia. O termo
em inglês berdache, a bardache francesa, a berdasia italiana e o bardaxa ou bardaje da Espanha referiam-se
de forma variada a um escravo ou “menino mantido”, e no século XVIII a homens envolvidos em sodomia
com meninos ou outros homens adultos. Como essas definições operavam na cultura europeia, e como várias
formas de colonialismo estendiam-se a praticamente todos os cantos das Américas no final do século XVIII,
berdache tornou-se na imaginação europeia (e em última instância euroamericana) uma forma de designar e
denegrir os indígenas cross-dressers (ou o que os leitores modernos podem reconhecer como “gender bender”),
“transvestites”, “hermaphrodites”, “ androgynes “ e comportamento homossexual. SMITHERS, Gregory
D.“Cherokee “Two Spirits”: Gender, Ritual, and Spirituality in the Native South.” Early American Studies: An
Interdisciplinary Journal, Philadelfia, vol. 12 n. 3, out./dez. 2014, p. 630-631, tradução nossa.
26 ROSCOE, Will. Changing Ones: Third and Fourth Genders in native North America. New York:
St. Martin’s Griffin, 1998. p.109; FAIMAN-SILVA, Sandra. Anthropologists and Two Spirit People: Building
Bridges and Sharing Knowledge. Anthropology Faculty Publications, Bridgewater, Paper 23, 2011.p.11.

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(...) a contemporary term being used in Native communities to describe


someone whose gender exists outside of colonial logic. It is an umbrella
term that references Indigenous traditions for people who don’t fit into
rigid gender categories. It also, depending on the context, refers to Native
people who identify as Gay, Lesbian, Bisexual, Transgender, and Queer27.

O próprio Qwo-Li Driskill, em artigo ainda do início do século atual, apresenta uma
definição bem mais pessoal e passional do porquê identificar-se enquanto two-spirits,
além das problemáticas de utilização de termos definidos pelo “homem branco” para
pessoas como ele:

I find myself using both the words “Queer” and “Trans” to try to translate my
gendered and sexual realities for those not familiar with Native traditions,
but at heart, if there is a term that could possibly describe me in English, I
simply consider myself a Two-Spirit person. The process of translating Two-
Spiritness with terms in white communities becomes very complex. I’m not
necessarily “Queer” in Cherokee contexts, because differences are not seen
in the same light as they are in Euroamerican contexts. I’m not necessarily
“Transgender” in Cherokee contexts, because I’m simply the gender I am.
I’m not necessarily “Gay,” because that word rests on the concept of men-
loving-men, and ignores the complexity of my gender identity28.

Dito tudo isso, vale enfatizar que nada impede alguém de um dos povos originários de não
identificar-se enquanto two-spirits, adotando rótulos que podem parecer problemáticos para o
autor citado (e outros mais), mas que lhe sejam confortáveis. Independentemente de rótulos
impostos pela sociedade, cada indivíduo tem o direito de identificar-se como preferir.

Intervenções governamentais e missionárias


sobre corpos e as identidades nativas

Se desde os primeiros contatos com as populações nativas os “homens brancos” sempre


apresentavam os mais diversos julgamentos morais, por vezes transformando-se em violência

27 (...) um termo contemporâneo usado em comunidades indígenas para descrever alguém cujo gênero
existe fora da lógica colonial. É um termo abrangente que faz referência às tradições indígenas para pessoas que
não se encaixam em categorias rígidas de gênero. Também, dependendo do contexto, refere-se a pessoas nativas
que se identificam como gays, lésbicas, bissexuais, transgêneras e queer. DRISKILL, Qwo-li. Asegi Stories:
Cherokee Queer and Two-Spirit Memory. Tucson: The University of Arizona Press, 2016. p.5, tradução nossa.
28 Eu me vejo usando as palavras “Queer” e “Trans” para tentar traduzir minhas realidades sexuais e
de gênero para aqueles que não estão familiarizados com as tradições nativas, mas, no fundo, se há um termo
que poderia me descrever em inglês, eu simplesmente me considero uma pessoa Two-Spirit. O processo de
traduzir minha identidade Two-Spirit com termos em comunidades brancas torna-se muito complexo. Eu não
sou necessariamente “Queer” nos contextos Cherokee, porque as diferenças não são vistas da mesma forma
como nos contextos euro-americanos. Eu não sou necessariamente “Transgênero” nos contextos Cherokee,
porque eu sou simplesmente o gênero que sou. Eu não sou necessariamente “gay”, porque essa palavra se
baseia no conceito de homens que amam homens e ignora a complexidade da minha identidade de gênero.
DRISKILL, Qwo-li. Stolen From Our Bodies. First Nations Two-Spirits/Queers and the Journey to a Sovereign
Erotic. Studies in American Indian Literatures, Nebraska, vol.16, n.2, jun./ago. 2004. p.52, tradução nossa.

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física, abuso sexual, tortura, remoções de suas terras e até morte, durante o processo de
expansão do território dos EUA para o Oeste a situação agravou-se. Dentre o final do século
XVIII e decorrer do XIX os povos originários foram sistematicamente eliminados, tendo
seus territórios reduzidos a pequenas áreas de reservas constantemente diminuídas. Dentro
dessas reservas, o governo dos Estados Unidos da América teve a liberdade para junto com
missionários cristãos e outras forças, que mesmo nem sempre estando em pleno acordo29,
efetivaram - através do controle da infância, da língua, dos territórios, da cultura e da vida
dos povos originários em si - executar um projeto que resultou numa incrustação impositiva
de lógicas de uma cultura ocidental cristã sobre toda aquela população que se encontrava nos
territórios entendidos pelo governo estadunidense como seus. Nas palavras de Will Roscoe,
essa intervenção travestida de supervisão “meant rigorous regulation of the religious and
social life by Indian agentes, school teachers, missionaries, and the military”30.

Com o objetivo de “civilizar” os povos originários tidos até então como “bárbaros”,
o governo dos EUA começou a financiar atividades missionárias que iam estabelecendo-
se nesses territórios de reserva. Para certas povos, como os Cherokee, essa atividade
missionária era vista com expectativas, principalmente devido a promessas em relação à
abertura de escolas. As lideranças esperavam que, a partir do momento que suas crianças
aprendessem como escrever, falar e ler o inglês, teriam uma maior chance de resistência
em relação ao governo estadunidense e suas práticas de tomada de terras nativas31. Os
missionários embora fornecessem esses ensinamentos, segundo Qwo-Li Driskill, eles
tinham suas próprias preocupações, principalmente no que tangia “opposite-sex gender and
sexuality, naked (or near-naked) bodies, the commingling of men and women, gendered
labor, matrifocal family structures, and polygamy were the targets of missionary efforts to
control and civilize Cherokee bodies” 32.

Will Roscoe, ao abordar os Crow nos traz relatos de práticas parecidas, disserta também
sobre a intervenção direta de agentes do Estado sobre two-spirits, buscando obrigá-los a vestir
roupas atribuídas a indivíduos de seu sexo, além de interferir sobre o cabelo (cortando-o) e
com o que trabalhavam, por vezes até prendendo-os. Nos Crow houve resistência de outros
membros daquele povo e até de figuras de liderança em relação a certos ataques, defendendo
que seus comportamentos eram de sua natureza e que não deveriam ser desrespeitados. Ainda
sim, em outros povos originários, devido a toda a interferência governamental e missionária,
as pessoas tornaram-se relutantes em defender seus two-spirits33

O próprio Will Roscoe nos descreve como funcionava o controle efetuado ainda na infância
dos indivíduos dos povos originários, por meio das escolas dirigidas pelos missionários:

29 ROSCOE, Will. Changing Ones: Third and Fourth Genders in native North America. New York: St.
Martin’s Griffin, 1998. p.35.
30 “significava rigorosa regulamentação da vida religiosa e social por agentes indígenas, professores de
escola, missionários e militares”. ROSCOE, Will. op. cit., p.34-35,129, tradução nossa.
31 DRISKILL, Qwo-Li. Asegi Stories: Cherokee Queer and Two-Spirit Memory. Tucson: The University
of Arizona Press, 2016. p.115.
32 “Gênero em não conformidade com o esperado para o sexo do indivíduo e sua sexualidade, corpos
nus (ou quase nus), a mistura de homens e mulheres, trabalho de gênero, estruturas familiares matrifocais e
poligamia foram os alvos dos esforços missionários para controlar e civilizar os corpos Cherokee”. DRISKILL,
Qwo-Li. op. cit., p.122, tradução nossa.
33 ROSCOE, Will. Changing Ones: Third and Fourth Genders in native North America. New York: St.
Martin’s Griffin, 1998. p.35.

2019 Revista Outrora, Rio de Janeiro, Vol. 2, N. 1, p. 137-153, jan./jun.


Two-Spirits: da admiração ao escárnio
Dandriel Henrique da Silva Borges 147

Children were required to attend government-run boarding schools in which any


expression or use of native language and customs was severely punished, boys
and girls were segregated, and girls were not allowed to leave the school until
husbands had been found for them. In such an environment children with boté34
tendencies were quickly identified35.

In government- and church-run boarding schools children with third or fourth


gender tendencies were quickly spotted and severely sanctioned. Indeed, many
of the punishments use at these schools had the effect of completely inverting
traditional values (...)36 .

Ambos os trechos demonstram o claro interesse externo em suprimir a cultura ancestral


dos povos originários, dando espaço para nada mais que os valores euro-americanos,
num projeto de apagamento da identidade desses povos norte-americanos. Projeto
este que contava com violência contra crianças para controlá-las, sendo punidas pelas
demonstrações de quaisquer aspectos de sua cultura, seja idioma, adereços, segregando
as tais pelo sexo, o que facilita a identificação e rápidas medidas de controle sobre
aqueles que apresentassem sinais de comportamentos e hábitos que levassem a serem já
associados a possibilidade de serem two-spirits.

Holder, ainda em fins do século XIX, relatava: “One little fellow while in the Agency
Boarding Scholl was found frequently surreptitiously wearing female attire. He was
punished, but finally escaped from school and became a boté, wich voaction he has since
followed”37. Nos trazendo um relato de resistência, onde uma jovem pessoa two-spirits
resistiu às punições que sofrera, mas só a partir de sua fuga pôde começar a viver e expressar
sua identidade como entendia necessário.

Não é nem um pouco surpreendente as mudanças radicais decorrentes dessas violentas


intervenções sobre a cultura dos povos originários, como veremos a seguir.

34 Como o povo Crow chamava os seus indivíduos que viviam em não conformidade com os papéis
sociais que aquela sociedade atribuía aos nascidos aquele sexo.
35 As crianças eram obrigadas a frequentar internatos administrados pelo governo nos quais qualquer
expressão ou uso da língua e costumes de povos originários eram severamente punidos, meninos e meninas
eram segregados e as meninas não podiam sair da escola até que lhes fossem encontrados maridos. Em tal
ambiente, as crianças com tendências boté eram rapidamente identificadas. ROSCOE, Will. op cit., p.35,
tradução nossa.
36 Em internatos administrados pelo governo e pela igreja, as crianças com terceira ou quarta tendências
de gênero eram rapidamente identificadas e severamente punidas. De fato, muitas das punições usadas nessas
escolas tiveram o efeito de inverter completamente os valores tradicionais (...). ROSCOE, Will. op. cit., p.102,
tradução nossa.
37 “Um pequeno garoto enquanto esteve na agência de embarque Scholl foi frequentemente encontrado
usando trajes femininos. Ele foi punido, mas finalmente escapou da escola e tornou-se um bote, cuja vocação
seguiu desde então”. HOLDER, A. D. the Bote: Description of a peculiar sexual perversion found among North
American Indians. New York Medical Journal, New York, vol.50, jul./dez. 1889, p.624, tradução nossa.

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Two-Spirits: da admiração ao escárnio
148 Dandriel Henrique da Silva Borges

Consequências das intervenções do “homem branco” sobre corpos


e as identidades nativas

Sandra Faiman-Silva nos traz que, no passado, “[native american] people had revered
gender non-conformists had been largely lost to later generations, due to post-contact
subjugation of Indian peoples as a result of colonization, Christianization, and stigmatization
of everything that was not Euro-American”38. Lembrando da, já citada, admiração vivida pelos
two-spirits na maior parte dos povos originários da América do Norte, a qual devido a fatores
externos (alguns dos quais discutidos anteriormente) advindos do governo estadunidense e
da atividade missionária transformaram drasticamente a cultura nativa, resultando, dentre
outras coisas, na desaprovação/reprovação de tudo aquilo que não se enquadrasse em
premissas advindas da cultura europeia ou estadunidense.

Mais especificamente no que tange papéis sociais desses indivíduos em suas comunidades
e sua sexualidade, Qwo-Li Driskill afirma que “[t]he invaders continue to enforce the ideia
that sexuality and non-dichotomous genders are a sin, recreating sexuality as illicit, shocking,
shameful, and remover from any positive spiritual context. Queer sexualities and genders are
degraded, ignored, condemned, and destroyed”39, em outras palavras, toda expressão de
identidade que não fosse aquela esperada de ser demonstrada de acordo com o sexo daquela
pessoa e/ou toda sexualidade que não fosse estritamente aquela definida numa relação
monogâmica entre dois indivíduos de sexo distintos passou a ser considerada anormal por
aquelas mesmas populações que, no passado cada vez mais distantes, chegavam a ter essas
pessoas, por vezes, até como fonte de sorte, riqueza, etc.

Em 1953, Nancy Lurie, ao analisar ao povo que ela chamou de Winnebago, já afirmava
que aquelas pessoas, que no passado honravam e respeitavam os seus indivíduos two-
spirits, tornaram-se envergonhados sobre a existência desses indivíduos muito devido
aos “homens brancos” terem lhes feito pensar que eram pessoas advindas do mal. A
pesquisadora nos relata ainda o caso de último two-spirits que tivera conhecimento
da existência, um indivíduo designado do sexo masculino, que ao tentar expressar
uma identidade tida como feminina, através de vestimentas habitualmente usadas por
mulheres, foi ameaçado de morte pelo próprio irmão40. Quase 20 anos antes, W. W. Hill
nos trazia um relato de Albert Sandoval, um Navaho que lhe contara que os two-spirits
já não eram mais muito respeitados em seu povo, a antiga admiração transformara-se em
vergonha e qualquer criança que demonstrasse os mínimos sinais de que poderia tornar-

38 “[nativos americanos] reverenciaram pessoas em não conformidade de gênero, o que foi perdido
em grande parte nas gerações posteriores, devido à subjugação dos povos indígenas como resultado da
colonização, cristianização e estigmatização de tudo o que não fosse euro-americano”. FAIMAN-SILVA,
Sandra. Anthropologists and Two Spirit People: Building Bridges and Sharing Knowledge. Anthropology
Faculty Publications, Bridgewater, Paper 23, 2011. p.4, tradução nossa.
39 “Os invasores continuaram a reforçar a ideia de que a sexualidade e pessoas em não conformidade
de gênero eram um pecado, recriando a sexualidade como ilícita, chocante, vergonhosa e removendo-a de
qualquer contexto espiritual positivo. As sexualidades e sexos queer foram degradados, ignorados, condenados,
e destruídos ”. DRISKILL, Qwo-li.. Stolen From Our Bodies. First Nations Two-Spirits/Queers and the Journey
to a Sovereign Erotic. Studies in American Indian Literatures, Nebraska, vol.16, n.2, jun./ago. 2004. p.54,
tradução nossa.
40 LURIE, Nancy. O. Winnebago Berdache. American Anthropologist, Hoboken, vol.55, n.5, dez.
1953, p. 708.

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Two-Spirits: da admiração ao escárnio
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se uma pessoa two-spirits era desencorajada41.

Qwo-Li Driskill reforça a questão do trauma cultural dos povos originários em relação às
consequências do colonialismo do “homem branco” afirmando que:

(...) sexual assault, sexism, homophobia, and transphobia are entangled with
the history of colonization. Sexual assault is an explicit act of colonization that
has enormous impacts on both personal and national identities and because of
its connections to a settler mentality, can be understood as a colonial form of
violence and oppression42.

While homophobia, transphobia, and sexism are problems in Native communities,


in many of our tribal realities these forms of oppression are the result of
colonization and genocide that cannot accept women as leaders, or people with
extra-ordinary genders and sexualities. As Native people, our erotic lives and
identities have been colonized along with our homelands43.

Tais trechos são bem explícitos ao apresentarem problemáticas sociais cada vez mais
pensadas na atualidade. Para esse autor, as opressões vividas pelos povos originários no que
tange papéis sociais e sexualidade, que ele nomeia de transfobia44 e homofobia45, seriam
resultado das opressões, já descritas, vividas pelos povos, defendendo não só que as suas
terras natais foram colonizadas, mas também suas sexualidades e identidades. Não só isso,
também há a apresentação do sexismo46 e da violência sexual47; questões que não eram
toleradas na maioria desses povos antes das intervenções do “homem branco”, mas que no

41 HILL, W. W. The status of the hermaphrodite and transvestite in navaho culture. American
Anthropologist, Hoboken, vol.37, n.2, abr./jun. 1935, p.274.
42 (...) agressão sexual, sexismo, homofobia e transfobia estão emaranhados na história da colonização.
A agressão sexual é um ato explícito de colonização que tem enormes impactos nas identidades pessoais e
nacionais e, por causa de suas conexões com uma mentalidade de colonos, pode ser entendido como uma forma
colonial de violência e opressão. DRISKILL, Qwo-li.. Stolen From Our Bodies. First Nations Two-Spirits/
Queers and the Journey to a Sovereign Erotic. Studies in American Indian Literatures, Nebraska, vol.16, n.2,
jun./ago. 2004, p.51, tradução nossa.
43 Embora a homofobia, a transfobia e o sexismo sejam problemas nas comunidades nativas, em muitas
de nossas realidades tribais, essas formas de opressão são o resultado da colonização e do genocídio que não
pode aceitar mulheres como líderes ou pessoas com gêneros e sexualidades extraordinárias. Como pessoas
nativas, nossas vidas e identidades eróticas foram colonizadas junto com nossas terras natais. DRISKILL,
Qwo-li.. op. cit., p.52, tradução nossa.
44 A transfobia é uma repulsa emocional em relação a indivíduos que não estão em conformidade com
as expectativas de gênero da sociedade. (...) a transfobia envolve a sensação de repulsa às mulheres masculinas,
homens femininos, cross-dressers, transgêneros e/ou transexuais. HILL, Darril B.; WILLOUGHBY Brian L.
B. The Development and Validation of the Genderism and Transphobia Scale. Sex Roles, [online], vol. 53, n.
7/8, oct. 2005, p.533, tradução nossa.
45 De acordo com o English Oxford Living Dicionaries homofobia pode ser por “aversão ou preconceito
contra pessoas homossexuais (tradução nossa)”. Para uma análise sobre a ampla variação de significados para
esse termo ver: SMITH, I.; OADES, L. G; McCARTHY, G. Homophobia to heterosexism: constructs in need
of re-visitation. Gay and Lesbian issues and Psychology Review, [online], vol.8, n.1, 2012, p.34-44.
46 Geralmente refere-se a preconceito ou discriminação baseado em sexo ou gênero, especialmente
contra mulheres e meninas. MASEQUESMAY, Gina. “Sexism”. In O’BRIEN, Jodi. Encyclopedia of Gender
and Society, London: SAGE Publications, 2008, p. 748, tradução nossa.
47 Segundo o World report on violence and health divulgado em 2002 pela Organização Mundial
da Saúde, violência sexual pode ser definida como “qualquer ato sexual, tentativa de obter um ato sexual,
comentários ou avanços sexuais indesejados, ou atos com movimentos, ou direcionados de outra forma, contra
a sexualidade de uma pessoa usando coerção, por qualquer pessoa independente de sua relação com a vítima,
em qualquer ambiente, incluindo mas não limitado a casa e trabalho (tradução nossa)”.

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Two-Spirits: da admiração ao escárnio
150 Dandriel Henrique da Silva Borges

século XXI encontram-se em graus alarmantes em boa parte das atuais reservas indígenas48.

Essas questões refletem muito no processo de pessoas nativas não heterossexuais


ou viventes em não conformidade com o papel social esperado para alguém de seu sex,
assumirem-se para suas famílias e/ou comunidades. Nas palavras de Sandra Saiman-Silva:
“The ‘coming out’ journey for most Native Americans was not easy, although it may have been
easier in the urban settings that on the reservation”49. Embora a LGBTfobia50 esteja presente,
em diferentes graus, em todas as sociedades contemporâneas, no que tange especificamente
os povos originários nos EUA, há um agravo maior do que no resto da sociedade não nativa
devido a todo esse histórico de imposição violenta e genocida sobre suas culturas.

Um aspecto que não deve ser esquecido e que dificulta um tanto a produção de estudos
sobre o histórico de questões envolvendo papéis sociais e sexualidade nas populações nativas
em regiões da América do Norte é a clara tentativa de apagamento desses aspectos infligida
por “homens brancos” sobre essa parte da história, além de outras mais que não lhes fossem
interessantes passar a diante. Segundo Qwo-Li Driskill:

Current racial constructions of the United States cleave apart Native and
Black struggles and histories in ways that obscure enslavement, settler
colonialism, and genocide as facets of a larger, single-minded project. This
cleaving erases more complicated histories of genocide and enslavement
of African, Native, and Black Indian bodies51.

Esse apagamento sobre certos aspectos da história dos povos originários, tal qual sobre
seus passados envolvendo papéis sociais distintos daqueles comumente associados a seus
sexos e sexualidade não heterossexuais, fruto também de séculos de forte influência das
visões hegemônicas europeias sobre os escritos a respeito desses povos52, é paralelo ao
sofrido por outros povos que passaram por opressões parecidas, como os africanos. Vale
até refletir que embora muito mais já se reconheça a realidade brutal e o preço incalculável
da escravidão dos povos africanos, suas lutas contra a violência, a opressão advindas dos
colonizadores, além dos genocídios ocorridos, pouco se lembra ou se reflete ainda sobre
esses mesmos aspectos nos povos originários, não só das regiões da América do Norte,
mas também de quase todas as demais regiões que passaram por processos de invasão e
colonização por povos externos.

48 DRISKILL, Qwo-li.. Stolen From Our Bodies. First Nations Two-Spirits/Queers and the Journey to
a Sovereign Erotic. Studies in American Indian Literatures, Nebraska, vol.16, n.2, jun./ago. 2004, p.53.
49 “A jornada de ‘sair do armário’ para a maioria dos nativos americanos não foi fácil, embora possa ter
sido mais fácil nos ambientes urbanos que nas reservas”. FAIMAN-SILVA, Sandra. Anthropologists and Two
Spirit People: Building Bridges and Sharing Knowledge. Anthropology Faculty Publications, Bridgewater,
Paper 23, 2011, p.7, tradução nossa.
50 Termo genérico que representa o conjunto de discriminações e preconceitos direcionados aqueles
indivíduos em virtude de questões envolvendo identidades e/ou sexualidades
51 As atuais construções raciais dos Estados Unidos separam as lutas e histórias nativas e negras de
formas que obscurecem a escravização, o colonialismo de colonos e o genocídio como facetas de um projeto
maior e único. Esta clivagem apaga histórias mais complicadas de genocídio e escravização de corpos africanos,
nativos e negros indígenas. DRISKILL, Qwo-Li. Asegi Stories: Cherokee Queer and Two-Spirit Memory.
Tucson: The University of Arizona Press, 2016. p.111, tradução nossa.
52 ROSCOE, Will. Changing Ones: Third and Fourth Genders in native North America. New York: St.
Martin’s Griffin, 1998. p.120.

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Conclusão

O artigo aqui presente buscou analisar comparativamente, de modo mesmo que introdutório, a
vida dos povos originários da América do Norte - essencialmente aqueles que se encontravam
em territórios hoje tomados pelos Estados Unidos da América -, principalmente as pessoas
que atualmente chamamos de two-spirits, antes das invasões e, consequentes, intervenções
sobre suas terras, hábitos, culturas, sociabilidades, identidades e sexualidade e após as tais.
Para isso, abordou-se desde antes da virada do século XVIII, tendo enfocado-se mais nos
acontecimentos do período de expansão territorial dos EUA, a chamada “Marcha para o Oeste”,
e o encarceramento desses povos em limitados e, cada vez menores, territórios de reserva.

Para avaliar-se o conjunto de problemáticas, foi usado um amplo conjunto de fontes


elaboradas por médicos, naturalistas, etnologistas, antropólogos, escritores acadêmicos e
indivíduos de povos originários. As tais nos relataram sobre um conjunto de perseguições,
ameaças e intervenções violentas sobre os corpos e as sexualidades desses povos, num projeto
sistematicamente executado no decorrer dos séculos desde a chegada do “homem branco”
nas Américas e reforçados nos anos da expansão pelo governo dos EUA em conjunto com
missionários cristãos. Os efeitos consequentes desse processo foram indivíduos antes tão
importantes e respeitados naquelas culturas, tornarem-se figuras desprezadas, representantes
da vergonha para seu povo e constantemente apagados da história. Em contrapartida, as
publicações vêm mostrando que, desde o final da década de 1980, executam-se conjuntos de
esforços pelas mais diferentes frentes para relembrar desse passado e da importância desses
indivíduos, além de combater todo o preconceito trazido pelo “homem branco”.

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Revista Outrora, Rio de Janeiro, Vol. 2, N. 1, p. 137-153, jan./jun. 2019


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