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ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA:
A IRONIA COMO RECURSO ESTILÍSTICO
NOS CONTOS MACHADIANOS
João Pessoa
2011
MARINA RODRIGUES DE OLIVEIRA
ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA:
A IRONIA COMO RECURSO
ESTILÍSTICO NOS CONTOS
MACHADIANOS
João Pessoa
2011
O48e Oliveira, Marina Rodrigues de.
Escravidão e resistência: a ironia como recurso estilístico
nos contos machadianos / Marina Rodrigues de Oliveira. --
João Pessoa, 2011.
110f.
Orientadora: Zélia Monteiro Bora
Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCCHLA
1. Assis, Machado de – Contos - Crítica e interpretação.
2. Literatura e Cultura. 3. Escravidão – Brasil. 4. Escravidão –
história – cultura.
Resumo: Esta dissertação tem, como objetivo, investigar o valor da ironia romântica
como recurso estilístico e crítico na representação da visão machadiana sobre o
problema da escravidão na sociedade brasileira. Para efeito didático, serão estudados os
seguintes contos: Virginius (1864), Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da
vara (1891) e Pai contra mãe (1906). A referida abordagem constitui-se como uma
tentativa em elucidar a “possível” falta de criticidade da obra machadiana, no tocante ao
problema da escravidão, conforme foi afirmado, durante muito tempo, pela Crítica
Literária. Portanto, tratar a respeito do negro na escravidão brasileira compreende
entendê-lo não como uma engrenagem motivadora de um mero sistema econômico-
social que perdurou por três séculos – do XVI ao XIX – mas, antes de tudo, como um
sujeito representado à margem, explorado desumanamente e excluído em uma
sociedade em vias de modernização. Assim, a trajetória do negro, nos contos
machadianos, nesse contexto, deve ser vista a partir da perspectiva literária, como um
aspecto bastante significativo, além dos contextos histórico e cultural.
Abstract: This dissertation aims to investigate the value of irony as a stylistic and
critical resource in the representation of Machado's vision on the problem of slavery in
Brazilian society. For didactic purposes, the following short stories will be studied:
Virginius (1864), Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da vara (1891) and
Pai contra mãe (1906). This approach constitutes an attempt to elucidate the "possible"
lack of criticism in Machado's work regarding to slavery, as critics have stated for a
long time. Therefore, dealing with black slavery in Brazil means to understand it not as
a motivating gear of a mere economic-social system that lasted for three centuries –
from the sixteenth to the nineteenth century – but, above all, as a subject represented at
the margin, ruthlessly exploited and excluded within a society undergoing
modernization. Thus, in this context, the trajectory of the black in Machado‟s short
stories should be seen, by the literary perspective, as a very significant aspect in
addition to the historical and cultural contexts.
Introdução 10
1. Machado de Assis e as 15
representações literárias da
escravidão
1.1. O negro e a literatura brasileira 23
1.2. Machado de Assis e a escravidão 27
1.3. Revisão crítica sobre a escravidão 34
em Machado de Assis
2. A ironia como recurso estilístico 48
2.1. Percurso histórico da ironia: da 49
Antiguidade Clássica à Idade
Contemporânea
2.2. A ironia em Machado de Assis: 63
revisão crítica
3. Ironia e escravidão através dos 76
contos de Machado de Assis
3.1. Virginius (1864): o embrião da 77
representação escravocrata
3.2. Mariana (1871): a prisão em meio à 83
liberdade
3.3. Encher tempo (1876): uma narrativa 86
pouco conhecida
3.4. O caso da vara (1891): escravidão e 91
relações de poder no sistema
escravagista.
3.5. Pai contra mãe: “Nem todas as 96
crianças (escravas) vingam”
3.6. Virginius, Mariana, Encher tempo, 101
O caso da vara e Pai contra mãe: pontos
de convergência e divergência
Conclusão 103
Referências bibliográficas 106
INTRODUÇÃO
1
“(...) Ó terra do Brasil, terra querida, /Quantas vezes do mísero Africano /Te regaram as lágrimas
saudosas? /Quantas vezes teus bosques repetiram / Magoados acentos / Do cântico do escravo, /
Ao som dos duros golpes do machado! (...)”. (GONÇALVES DE MAGALHÃES, 1986, p. 348)
11
2
GLEDSON, John. Machado de Assis: Contos, uma antologia.
13
hesita em entregar a escrava ao seu senhor, fazendo-a abortar e, com isso, puni-la
pelo “delito” cometido.
Para embasar teoricamente os estudos sobre ironia, serão aqui utilizadas as
contribuições de Kierkegaard (1991), D. C. Mueke (1995), Berel Lang (1996) e
Beth Brait (2008), que privilegiaram aspecto histórico, fazendo um percurso sobre
as mudanças de conceito e de categorização pelas quais passou a ironia, como, no
caso particular de Lang, que enfatiza uma determinada tipologia, a ironia
romântica.
Para efeito de organização de nossa discussão, o trabalho será dividido em
três capítulos. O primeiro estabelecerá uma correlação entre o ambiente sócio-
cultural brasileiro e a literatura de Machado de Assis, especialmente no que se
refere ao contexto escravagista. Além desses aspectos, também serão considerados
outros antecedentes literários sobre as representações do negro, principalmente na
Literatura Brasileira.
O segundo capítulo objetiva mapear um estudo sobre a Ironia como recurso
estilístico e suas utilizações através do discurso literário, em alguns momentos,
desde a Antiguidade Clássica até o Romantismo, concluindo com as abordagens
sobre a sua retomada por Machado de Assis.
Como instrumentos acessórios, na nossa discussão sobre ironia, serão
retomados alguns estudos críticos sobre a obra machadiana, entre eles os de Lúcia
Miguel Pereira (1936), Raymond S. Sayers (1958), Helen Caldwell (1960), José
Aderaldo Castello (1969), Raymundo Faoro (1974), Roberto Schwarz (1977,
1990), John Gledson (1986, 2006), Regina Zilberman (1989), Alfredo Bosi
(1999), Massaud Moisés (2001) e Alcides Villaça (2006).
Embora o objetivo principal dessa discussão seja, predominantemente, os
contos machadianos, caberá, conforme foi anteriormente citado, contextualizar a
determinação de ironia, relacionada às seguintes obras: O conceito de ironia
constantemente referido a Sócrates (Kierkegaard), Ironia e irônico (D. C.
Muecke), “The limits of irony” (Berel Lang) e Ironia em perspectiva polifônica
(Beth Brait), nas quais são contextualizadas as principais mudanças pelas quais o
conceito e a classificação de ironia passaram, desde o período da Antiguidade
Clássica, perpassando pelo século XIX – ao qual será dada uma particular
atenção, uma vez que, se a ironia romântica, categoria aqui a ser trabalhada,
14
3
“O conceito de diáspora se apoia sobre uma concepção binária de diferença. Está fundado
sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um „Outro‟ e de uma
oposição rígida entre o dentro e o fora (...)”. (HALL, 2009, p. 32-3).
16
Além dos contos citados terem, como aspecto em comum, a reação das
personagens negras à opressão sofrida, o que se observa é que Machado de Assis
enfoca o universo da escravidão urbana, mostrando que a liberdade “usufruída”
pelos cativos – como assinalam Manolo Floretino, Horacio Gutierrez e Ida
Lewkowicz (2008, p. 36) – pode ser questionada, dado que, mesmo sendo mais
“independentes” que os escravos rurais, os urbanos também não estavam isentos
da opressão senhorial.
Kátia Mattoso, na obra Ser escravo no Brasil, aprofunda essa relação de
dependência entre os escravos urbanos e seus senhores, e afirma:
Uma coisa é certa: o escravo urbano nem sempre é tão especializado em seu
trabalho quanto o quer a tradição: o escravo doméstico transforma-se
facilmente em escravo „ganha-pão‟ à vontade de seu senhor, em escravo que
vende fora de casa sua engenhosidade, sua mercadoria, a força de seus
braços. O escravo da cidade é eclético. Alguns deles, evidentemente,
adquiriram na África, ou com o seu senhor, um ofício determinado
(cozinheiro, cocheiro, bordadeira, costureira, calafate, pedreiro, caldeireiro,
carpinteiro, etc.). Estes vendem sua competência, se o mercado a requer.
Outro venderá da mesma maneira sua habilidade em levar o cliente a comprar
o que lhe queira vender (...). (MATTOSO, 1988, p. 140).
Zélia Monteiro Bora (2008, p. 97), no artigo “Food and religion: women and
the Afro-Brazilian identity in the nineteenth century”, aborda o universo da
escravidão urbana, destacando o papel desempenhado pelas mulheres, no tocante
à preparação de comidas que eram utilizadas para fins religiosos:
4
Tradução livre da seguinte citação: “(…) Since the late nineteenth century, through
Candomblé, African-Brazilian women‟s participation in the rituals, and their control over food
production in the kitchens of their masters as slaves and as free women, has been an essential
mediating role in the organization of several forms of rituals as an expression of collective
attempts to preserve the ancestors‟ memories, fragmented by the experience of slavery. The role of
women in food preparation has been instrumental in order to invoke and to praise the deities and
spirits.”
19
Ainda nesse texto, a autora citada enfatiza que nem todas as escravas ou
mulheres livres trabalhavam em atividades relacionadas às práticas religiosas;
muitas, não tinham a mesma sorte e acabavam sendo exploradas de outras formas,
a exemplo da prostituição. Essa forma de exploração é ressaltada, também, por
Julio José Chiavenato, em O negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai
(1980), à qual acrescenta a atividade das negras como vendedoras ambulantes:
(...) esse período coincide com a emergência de uma nova elite profissional
que já incorporara os princípios liberais à sua retórica e passava a adotar um
discurso científico evolucionista como modelo de análise social. Largamente
utilizado pela política imperialista européia, esse tipo de discurso
evolucionista e determinista penetra no Brasil a partir dos anos [18] 70 como
21
(...)
Os traficantes ainda não eram malvistos nas camadas dominantes e se
beneficiaram também das reformas descentralizadoras, realizadas pela
Regência. Os júris locais, controlados pelos grandes proprietários, absolviam
os poucos acusados que iam a julgamento. A lei de 1831 foi considerada uma
lei „para inglês ver‟(...).
22
(...) mulatos e pretos livres e escravos foram condenados (...) por defenderem
„os abomináveis princípios franceses‟ e por tramarem contra os poderes
constituídos. Os revolucionários da conjura baiana (como muitos outros
revolucionários daí por diante) não tinham lido os autores da Ilustração:
Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Raynal, que tanto entusiasmavam os
intelectuais da época, mas tinham entendido, à sua maneira, a mensagem de
liberdade e igualdade que a nova ideologia revolucionária continha (...).
(...)
Provavelmente, como o refere a tradição, o „mulato‟ Saldanha escreveu uma
série de odes aos heróis das guerras contra os holandeses, uma das quais
dedicadas a Henrique Dias. Contudo, nessa ode à memória do grande capitão
negro, há apenas duas referências à sua ascendência africana, nela não
havendo maior vivência pessoal do que há na escrita ao chefe português,
Vidal de Negreiros, ou ao herói índio, Camarão. De fato, Saldanha dá o nome
de Cipião tanto para Camarão quanto para Henrique Dias, e, se compara este
último a Aquiles, compara o primeiro a Pompeu (...). (SAYERS, 1958, p.
142).
(...)
Podemos dizer que Sílvio Romero é um dos primeiros a destacar a
importância do elemento africano, quando este era praticamente ignorado
26
5
Antes da Eusébio de Queiroz, outros dois decretos foram promulgados: a lei de sete de
setembro, de 1831, e o acordo Bill Aberdeen, em 1845. A respeito dos mesmos, ver os estudos de
Costa (2008, p. 26-7) e Fausto (1999, p. 194-5).
30
(...)
A participação de escravos na guerra forneceu novos temas aos que lutavam
pela sua emancipação. A campanha em favor da libertação dos escravos
recrudesceu. Grêmios, clubes, jornais, associações abolicionistas ou
emancipadoras foram organizadas nas principais cidades do país. As lojas
maçônicas passaram, por sua vez, a dar apoio a essas iniciativas. Em São
Paulo, um famoso negro descendente de escravos, Luiz Gama, organizava
uma campanha jurídica em favor da emancipação do escravo. Apoiando-se
na lei de 1831, passou a exigir a libertação de grande número de escravos a
quem defendeu nas cortes de Justiça, alegando que tinham entrado no país
depois daquela data e, portanto, não podiam ser mantidos no cativeiro. A
campanha organizada por Luiz Gama constituía uma ameaça aos
proprietários, pois um grande número de escravos nessa época tinha, de fato,
entrado no país depois de 1831 e seu cativeiro era de fato ilegal.
A década de 1870 inaugurava-se, portanto, em um clima de apreensão por
parte dos proprietários de escravos e renovado entusiasmado dos que lutavam
pela emancipação dos escravos. A crise política desencadeada pela queda do
Ministério Liberal, em 1868, agira como elemento catalítico. Os debates
travados na Câmara e pela imprensa em torno da Lei do Ventre Livre fizeram
da emancipação dos escravos uma questão nacional.
manter a escravidão, uma vez que a Abolição tinha sido deflagrada em todas as
colônias inglesas, interessadas, naquele momento, no trabalho livre e assalariado.
Um mês antes da assinatura da Lei Áurea, que foi assinada em 13 de maio de
1888, Machado de Assis, sob o pseudônimo de Policarpo, publica uma crônica, na
qual ironiza todo o processo de abolição, demonstrando que a visão da burguesia,
a respeito do assunto, não condizia com a real situação na qual viviam os
escravos, posição que ficou bastante clara com as promulgações das leis anteriores
à Áurea e cujos resultados foram inócuos.
Como destaca o estudo de Costa (2008, p. 134-5), o fim da escravidão, ao
invés de proporcionar melhores condições de vida para os negros, acabou por
gerar uma miséria maior para muitos que, outrora, foram cativos, principalmente
pelo fato de que, com o fim da escravidão negra, a mão-de-obra que passou a ser
empregada foi a imigrante, o que colaborou, ainda mais, para a marginalização
social do negro. O racismo, portanto, impediu o escravo de conseguir seu status
de cidadão, na sociedade brasileira.
É importante enfatizar que, apesar de ter sido explorado, o negro
conseguiu, por vários meios, resistir ao cativeiro, dentre os quais, podem ser
incluídos: o suicídio, o assassinato, a formação dos quilombos e as insurreições.
Ainda em contraposição ao regime escravocrata, a obra de Machado de
Assis vai representar, nos contos, três dessas formas de resistência: o assassinato,
presente em Virginius, no qual Julião mata a própria filha, Elisa, para livrá-la da
“desonra” que sofrera; o suicídio, em Mariana, conforme foi anteriormente
assinalado, e a fuga de Arminda, em Pai contra mãe. Essas três narrativas,
publicadas em momentos distintos da produção machadiana – respectivamente,
nos anos de 1864, 1871 e 1906 –, não apenas mostram a atitude de Machado de
Assis, em destacar a resistência negra, como também a hipocrisia da sociedade
brasileira.
Dessa forma, ao mostrar a resistência do escravo, Machado de Assis
demonstra estar em consonância com o depoimento histórico, conforme se
observa na citação abaixo:
(...)
Juntamente com o suicídio e o assassinato, a fuga é, na verdade, a expressão
violenta da revolta interior do escravo inadaptado. O escravo „em fuga‟ não
escapa somente de seu senhor ou da labuta, elide os problemas de sua vida
cotidiana, foge de um meio de vida, da falta de enraizamento no grupo dos
34
.
1.3. Revisão crítica sobre a escravidão em Machado de Assis.
Como já foi pontuado, anteriormente, a inoperância do sistema legal
constitui, provavelmente, a maior das ironias representada na literatura
machadiana. Demonstrou-se, brevemente, por parte de críticos como Lúcia
Miguel-Pereira (1936), em Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, que a
acusação sobre a alienação social, em relação à escravidão, de Machado de Assis,
não é convincente.
No entanto, essas opiniões não desmerecem a fortuna crítica de Machado de
Assis, pelo contrário, contribuem, ainda mais, para a elucidação do fenômeno
literário. Nesse caso, endossam a perspectiva aqui adotada, críticos como
Raymond S. Sayers (1958), Helen Caldwell (1960), José Aderaldo Castello
(1969), Raymundo Faoro (1974), Roberto Schwarz (1977, 1990), John Gledson
(1986, 2006), Regina Zilberman (1989), Alfredo Bosi (1999), Maussaud Moisés
(2001) e Alcides Villaça (2006).6
6
Com exceção dos estudos de Bosi, Moisés, Gledson (“Por um novo Machado de Assis”, 2006) e
Villaça, os demais pertencem a edições distintas das consultadas pela autora desta dissertação,
daí o porquê das citações virem com datas diferentes das acima mencionadas.
A edição do livro “O Otelo brasileiro de Machado de Assis” (Helen Caldwell) data de 2002;
“Realidade e ilusão em Machado de Assis” (José Aderaldo Castello), segunda edição, 2008;
“Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio” (Raymundo Faoro), quarta edição, 2001; “Ao
vencedor as batatas” (Roberto Schwarz), quinta edição, 2003, “Um mestre na periferia do
capitalismo” (Roberto Schwarz), quarta edição, 2008; “Machado de Assis: ficção e história” (John
Gledson), segunda edição, 2003.
A versão do artigo “Um caso para o leitor pensar”, de Regina Zilberman, aqui utilizada será a que
foi publicada em 2006, pela Revista de Letras (UNESP – São Paulo), volume 46, número 1.
35
(...)
Sem dúvida, muitos são os casos esporádicos, sem repercussão, em que o
autor se encerra dentro dos limites do episódio, como nos dois contos em que
trata da escravidão, „Pai contra mãe‟, e o „Caso da Vara‟. Aí parece ter
querido isolar o caso da mulata Arminda ou da negrinha Lucrécia do
problema da escravidão. (MAEC, 1988, p. 226).
avaliar o autor por meio de sua biografia, não condiz com uma análise mais
apurada do texto machadiano, especialmente se tivesse levado em consideração o
problema da ironia, figura estilística cujo uso, por Machado de Assis, serviu para
demonstrar a postura crítica do escritor diante do sistema escravagista, muito
embora esta não tenha sido abolicionista e panfletária, como foi a adotada por
outros escritores, a exemplo de José do Patrocínio e Luís Gama.
Conforme foi anteriormente mostrado, a obra O negro na literatura
brasileira, de Raymond Sayers (1958), discute como se deu a representação do
negro nas obras de Machado de Assis, a partir de um amplo estudo, que inclui,
além dos escritos machadianos, outros que apresentam a referida temática,
percorrendo desde a Literatura Ibérica até a Brasileira do século XIX. Nesse
referido percurso, percebem-se as graduais mudanças ocorridas, bem como os
acontecimentos que as proporcionaram.
A perspectiva, assinalada por Sayers, vai mostrar que os contos
machadianos representam uma visão bem mais realista sobre o negro, obviamente
enriquecida pela “identidade secreta” de Machado de Assis, cuja ascendência era
explicitamente afro-brasileira, uma ressalva que não é biográfica, porém cultural,
dado que o escritor Realista vai, em sua obra, emergir os personagens negros ao
plano principal da narrativa, não limitando a caracterização dos mesmos aos tipos
já existentes (a negra lascívia, a feiticeira, o negro herói etc.), mostrando, ainda,
uma posição de empatia em relação a estes (SAYERS, 1958, p. 393-4). A crítica,
presente em Sayers, é mais próxima à realidade, ao destacar a descendência afro-
brasileira de Machado de Assis como um aspecto determinante para seu estudo.
Outro mérito da representação do negro, em Machado de Assis, consiste,
segundo Sayers (1958, p. 394-5), na importância que o escravo adquire, como
ocorre nos contos O caso da vara, em que a personagem Lucrécia simboliza a
exploração da mão-de-obra infantil, e Pai contra mãe, no qual Arminda figura
como a cativa que foge, grávida, para salvar a própria vida e a do filho, elementos
estes que se configuram como os mais universais da obra machadiana.
A análise dos escritos machadianos, em Sayers, destaca-se e se diferencia
criticamente, ainda, por abrir um precedente: ao mesmo tempo em que reconhece
a importância de tais histórias, pondera a respeito do caráter das mesmas,
destacando que, embora denunciassem os abusos da servidão africana, não eram
panfletárias pelas necessidades formais que a estética Realista previa:
37
(...)
Nosso Otelo brasileiro, no começo da sua fábula, não é ainda um homem
maduro, um guerreiro orgulhoso de ares e tez sombrios, vestido rica e
estranhamente, que viu meninos tornarem-se homens. É um menino de
38
(como a ironia) e de outros autores lidos por Machado de Assis, como Fernão
Mendes Pinto e Manuel Antônio de Almeida.
Adentrando mais especificamente nos contos, será assinalada a importância
do conto “Mariana”, escrito em 1871:
(...)
A tia Mônica, de quem se falou em um dos capítulos anteriores, era uma
preta velha, que havia criado a sobrinha do padre e a amava como se fora sua
mãe. Era liberta; o padre deu-lhe a liberdade logo que morrera a mãe de Lulu,
e Mônica ficou servindo de companheira e protetora da menina, que não
tinha outro parente, além do padre e do primo (...). (MACHADO DE ASSIS,
1962, p. 433).
Tia Mônica simboliza, dessa forma, a figura da ama de leite, da mãe preta,
que se dedica inteiramente à sua sinhá, dedicando, muitas vezes, cuidados, que,
por imposição dos senhores, eram negados aos filhos das negras, conforme era
prática comum, na época. O grau de familiaridade da personagem, como “tia”, é
constantemente negado e apenas utilizado quando convém a seus senhores,
conforme será visto na análise do conto, presente no terceiro capítulo.
41
(...)
O conto, pois, destina-se aos Damiões e às Sinhás Ritas da época, e este fato
coloca o diálogo próprio à natureza da forma literária em termos muito
especiais: Machado pode estar contradizendo procedimentos usuais do
período, contrariando os interesses do público, revelando às pessoas sua
pusilanimidade à moda de Damião ou tirania ao estilo de Sinhá Rita.
Portanto, não se trataria este de um diálogo pacífico, de uma conversa
murmurada, de uma anedota divertida, de um episódio singular, hipóteses
que o título do conto, “O caso da vara”, sugere; pelo contrário, o autor
investe contra práticas de seu tempo, uma delas sendo o encobrimento da
violência contra o negro. Sob este aspecto, a falta de sutileza do estilo e as
visíveis intromissões do narrador, seja desvendando a interioridade de
Damião, seja posicionando-se francamente a favor de Lucrécia, tomam outra
significação: representam a necessidade que Machado tem de convencer o
leitor a aceitar seu ponto de vista, incomum naquele momento e contrário às
convenções literárias vigentes, segundo as quais se escondem os males da
sociedade (ZILBERMAN, 2006, p. 156-7).
43
Como exemplo dessa situação, pode-se citar o enredo de “Pai contra mãe”:
tanto Cândido Neves, branco, livre, “caçador” de cativos, quanto Arminda,
escrava fugida, querem se sentir livres daqueles que os oprimem, ao mesmo
tempo em que precisam, por diferentes motivos, salvar a vida dos filhos.
44
Se, de um lado, a vara de que trata o conto tem peso material, e por certo
doerá na carne e nos ossos de Lucrécia, de outro também simbólica, e remete
ao pacto formado entre os iguais, dentro do direito que os favorece. Se para
uns a vara é insígnia de poder e indicativo de jurisdição (como ocorre até
hoje no vocabulário forense), para os „justiçados‟ o vergão não tem nada de
simbólico. Em qualquer plano, porém, a decisão quanto ao seu emprego
depende dos que se sentam à mesa, habilitados como negociadores. No plano
político, como no dos „negócios de família‟, as decisões decorrem de pactos
entre os que têm poder de barganha, ou desfrutam, ainda que minimamente,
da condição de exercer aquela „astúcia feliz‟, como a definiu Maquiavel
(VILLAÇA, 2001, p. 30).
(...) há boas razões para se imaginar que o conto seria mais condizente com o
gênio do autor. Machado gosta muito de anedotas, e de focalizar detalhes
aparentemente triviais, mas que lançam uma luz inesperada sobre assuntos
„importantes‟; (...). Gosta de autores que contam fábulas curtas, com uma
moralidade irônica – Esopo, La Fontaine, Swift -, ou que escolhem gêneros
mistos, metade ensaio, metade ficção como Charles Lamb ou Thomas
Carlyle. E os próprios romances não seguem as convenções do realismo do
século XIX, contendo episódios que em si poderiam ser contos: os capítulos
que tratam de Eugênia em Memórias póstumas de Brás Cubas, ou a
„Confeitaria do Custódio‟, em Esaú e Jacó, para dar dois exemplos bem
contrastantes. (GLEDSON, 2006, p. 35-6).
(...)
47
(...)
Ao ouvir estas palavras [de Sócrates, em relação à falta de definição do
conceito de justiça, que estava sendo debatido], [Trasímaco] desatou um riso
sardônico e exclamou: - Ó Hércules! Eis a célebre e costumada ironia de
Sócrates! Eu bem o sabia, e tinha prevenido os que aqui estão de que havias
de te esquivar a responder, se alguém te interrogasse.
- É que tu és um homem esperto, Trasímaco – disse eu. – Pois sabias
perfeitamente que, se perguntasses a alguém quantos são doze, e, ao fazer a
pergunta, prevenisses: „Vê lá, homem, não me digas que são duas vezes seis,
nem que são três vezes quatro, nem seis vezes dois, nem quatro vezes três;
que eu não aceito tais banalidades‟, creio que se tornaria evidente para ti que
ninguém daria resposta a uma pergunta assim formulada. Mas se a pessoa te
dissesse: „Ó Trasímaco, que estás a dizer? Que não posso responder a nada
do que disseste? És espantoso! Ainda que se dê o caso de a resposta ser uma
dessas, terei e afirmar outra coisa diferente da verdade? Ou não é isto que
queres dizer?‟ Que responderias a isto? (...). (PLATÃO, 2006, p. 23).
7
Conforme assinalam os estudos de Niccola Abbagnano (Dicionário de Filosofia, 2007), Édouard
des Places e o Dictionnaire Bailly.
50
(...)
Em 1748, Fielding deu ao termo [ironia] uma outra aplicação nova,
empregando-a como a estratégia satírica (...) de inventar ou apresentar uma
personagem idiota que defende ineptamente e retrata inconscientemente o
ponto de vista que o autor deseja condenar. Esta „ironia autotraidora‟, pelo
que sei, não foi reconhecida explicitamente de novo antes do século XIX.
(MUECKE, 1995, p. 33-4).
(...) o fato de Hegel ter desdenhado esta forma de ironia que lhe estava mais
próxima prejudicou, naturalmente, sua concepção do conceito (Hans
Opfattelse af Begrebet). Daí porque não ganhamos uma verdadeira análise,
mas em compensação Schlegel sempre ganha uma boa sova. Com isso não se
quer dizer, de modo nenhum, que Hegel não tenha razão contra os irmãos
Schlegel, e que a ironia da dupla Schlegel e Schlegel não tenha sido um
desvio muito grave; e também com isso não se quer negar que Hegel tenha
contribuído proveitosamente pela seriedade com que se opõe a qualquer
isolação, uma seriedade que faz com que se possa ler muitas de suas análises
com bastante edificação e reconforto. Por outro lado, não se pode omitir que
Hegel, ao se voltar unilateralmente contra a ironia pós-fichteana, deixou de
perceber a verdade da ironia, e ao identificar toda ironia com aquela, foi
injusto com a ironia. Logo que Hegel enuncia a palavra ironia, imediatamente
se impregna de uma certa exasperação. No seu devido lugar, deve ser
esclarecido em que consiste o errôneo e injustificado na ironia de Schlegel,
bem como o mérito de Hegel em relação a isto (...).
mais alto, que contudo não é. A ironia não estabelece nada; pois aquilo que
deve estabelecer está atrás dela. (...).
(...) é necessário esclarecer que, além do caráter quase religioso que a reveste,
no sentido de desfazer as aparências do mundo filisteu, aí estão assinalados
outros dois aspectos que, sendo característicos da ironia romântica, podem
ser tomados como antecipadores, ou mesmo precursores, de várias dimensões
da arte moderna: a) a utilização da ironia como forma de cortar a ilusão
8
Tradução livre da seguinte citação: “(…) For romantic irony, which thus finds the evidence for
its claims epitomized in the relation between art and world, the question persists of whether
any art could be nonironic. And it is worth nothing that also theorists not otherwise identified
with the romantics have often rejected this possibility. The line of argument here is engagingly
but deceptively simple: because art is a redescription or revision – to that extent a denial – of
the world as given, its intrinsically ironic character (the claim goes) is inescapable. Thus, so
conservative a critic as Northrop Frye arrives at the same broad conclusion: ‘The literary
structure is ironic’, he writes, ‘because ‘what it says’ is always different in kind or degree from
‘what it means’”.
57
referido estudo se destaca por não se deter no estudo da ironia apenas em frases,
mas por priorizar o texto:
(...) como assinala Assoun, (...) a ironia, que só acontece quando o outro a
que se dirige está preparado para entender o contrário, funciona como um
diálogo ou uma interlocução dos inconscientes: „É enquanto outro que o
locutor irônico introduz o duplo sentido em seu discurso, o que é um meio
privilegiado de penetrar no inconsciente do outro, funcionando no mesmo
lugar que esse outro‟ (ASSOUN, 1980a, p. 161 apud BRAIT, 2008, p. 57).
sarcasmo
Anthony Cooper Ironia como uma figura Ironia suave
Shaftesburry
que, embora esteja
associada à ideia de
escárnio, tem caráter
sereno e reservado
internamente
Fielding Ironia como estratégia Ironia autotraidora
satírica
Johan Gottlieb Fichte Ironia como uma segunda -
potência da subjetividade
A. W. Schlegel Ironia como sinônimo de -
sátira
Friedrich Schlegel Ironia como um processo -
passivo.
Karl Solger Ironia como negatividade -
Connop Thirlwall Ironia como negatividade . Ironia dialética: retoma
(= ironia observável) os conceitos dos filósofos
gregos;
. Ironia prática: 1)
substituição de palavras
irônicas por ações
irônicas; 2) relacionada
às circunstâncias, aos
efeitos desastrosos;
. Ironia dramática: aponta
para a aparência e a
realidade de uma
personagem.
Heine Ironia como um elemento -
cujo caráter é autoprotetor
e niilista
Friedrich Schlegel e Ironia como uma Ironia romântica
outros
62
“reconciliação dos
contrários”, como um
meio da obra de arte
autorrepresentar.
Henri Bergson Ironia como uma figura Ironia verbal
de dupla significação
superposta (=
interferência em séries) e
transposta (=
transposição)
Norman Knox Ironia como um elemento Ironia Paradoxal
associado a aspectos
como: atitude de sua
vítima, destino desta e
conceito de realidade.
I. A. Richards Ironia como uma figura -
que aproxima e equilibra
os opostos.
Lausberg Ironia como uma figura Ironia retórica
que, explicitamente,
denota a ideia de
contraste.
Catherine Kerbrat- Ironia como constraste, .Ironia referencial:
Orecchioni
tanto ao nível dos fatos, contraste entre fatos
quanto semântico. simultâneos;
. Ironia verbal:
contradição entre dois
níveis semânticos,
ligados a uma mesma
sequência significante.
Lucie Olbrechts-Tyteca Ironia como um elemento -
linguístico, associado a
três aspectos: analogia,
63
argumentação direta e os
“sinais” emitidos pelo
enunciador.
Assoun Ironia como um processo -
dialógico
Dominique Maingueneau Ironia como um processo -
dialógico e pragmático.
(...) Ao mesmo tempo, sugere o ângulo de visão do que é dado como refúgio
– ilha imaginária, cujo contorno e existência se definem pela certeza da
verdade interior – a partir do qual investiga as relações e reações humanas
nos limites do cotidiano. Do plano interior à realidade contingente, a
aproximação e o equilíbrio se fazem através da análise repassada de
compreensão e tolerância. Certamente, ele usaria muletas e trapézios,
evoluindo do trocadilho, do gracejo e da ironia, do riso quase anedótico, ao
humor refinado. Isso acontece à medida que a visão caleidoscópica se reduz a
um foco único, apesar da possibilidade de existir e de ser utilizado mais de
um ângulo de apreensão da realidade. Por outro lado, essa perspectiva lhe
64
Tal uso da ironia não estará restrito apenas às crônicas, mas também será
utilizado nos contos machadianos, conforme se observará no estupro e
assassinado de Elisa, em Virginius, na exploração dos escravos tidos como “crias”
das casas onde trabalham, como ocorre com Tia Mônica, de Encher tempo e de
Lucrécia, em O caso da vara, da captura de uma escrava grávida, em Pai contra
mãe, para citar apenas alguns exemplos.
A ironia machadiana, apesar de seu caráter crítico, servirá como uma
alternativa literária ao Naturalismo, na época vigente, conforme afirma Antonio
Candido, em “Esquema sobre Machado de Assis” (2004, p. 68-9):
Logo que ele [Machado de Assis] chegou à maturidade, pela altura dos
quarenta anos, talvez o que primeiro tenha chamado a atenção foram a sua
ironia e o seu estilo, concebido como „boa linguagem‟. Um dependia do
outro, está claro, e a palavra que melhor os reúne para a crítica do tempo
talvez seja finura. Ironia fina, estilo refinado, evocando as noções de ponta
aguda e penetrante, de delicadeza e força juntamente. A isto se associava uma
idéia geral de urbanidade amena, de discrição e reserva. Num momento em
que os naturalistas atiravam ao público assustado a descrição minuciosa da
vida fisiológica, ele timbrava nos subentendidos, nas alusões, nos
eufemismos, escrevendo contos e romances que não chocavam as exigências
da moral familiar. (...) No fim de sua vida, os leitores sublinhavam também o
pessimismo, o grande desencanto que emana das suas histórias. O de que não
há dúvida é que essas primeiras gerações encontraram nele uma „filosofia‟
65
Essa “ironia fina”, utilizada por Machado de Assis e à qual Candido faz
referência, é a romântica, já anteriormente aqui discutida e cujo uso colaborará
para o desenvolvimento da técnica estilística do escritor Realista, que foi um
assíduo leitor de escritores ingleses como Sterne, Swift e Fielding. As influências
destes autores são percebidas nas obras machadianas:
(...)
A sua [de Machado de Assis] técnica consiste essencialmente em sugerir as
coisas mais tremendas de maneira mais cândida (como os ironistas do século
XVIII): ou em estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e
a sua anormalidade essencial; ou em sugerir, sob aparência do contrário, que
o ato excepcional é normal, e anormal seria o fato corriqueiro. Aí está o
motivo de sua modernidade, apesar do seu arcaísmo de superfície
(CANDIDO, 2004, p. 73)
Esse último aspecto também será discutido por Brayner, que enfatiza a
semelhança existente entre o humour utilizado por Machado de Assis e o presente
na Literatura Inglesa do século XVIII, e também a representação, na obra
machadiana, do homem como um ser dividido, “(...) cindido na voz de um outro
sempre presente no diálogo em que se defrontam suas instâncias discursivas”
(1979, p. 105).
Além disso, a crítica também enfatiza, de modo semelhante a Castello e a
Candido, que a ironia machadiana reflete a sociedade de sua época, situada em
meio a um caos de contestação de fim de século, imprimindo um “jogo verbal e
situacional”:
sempre a camuflar sua voz, não apenas através do estilo mas principalmente
no tratamento dos temas, quando os diálogos, paródias, sátiras, humour
estilístico contribuem para um efeito crítico e desiludido no seu
distanciamento.
A planejada técnica da geração de paradoxos, a sistemática e dialógica
relativização dos opostos, o desafio interno da consciência literária da
ambivalência fazem de Machado de Assis a figura mais representativa desta
era da ironia que se inicia na literatura brasileira (BRAYNER, 1979, p. 117).
de Melo França (2008) e João Batista Pereira (2009), que abordarão a temática da
ironia não sob o foco do contexto social, embora não o desprezem, mas da
estilística.
Do estudo Machado e Lima: da ironia à sátira, de Álvaro Marins, serão
aqui expostos três argumentos, a respeito da ironia machadiana: dois destes
relacionados ao uso de tal recurso estilístico nas consideradas duas fases da obra
do escritor Realista (Romantismo / Realismo), e um terceiro, que aborda o
narrador irônico.
No tocante ao primeiro aspecto, Marins questiona, em duas passagens
distintas, a divisão da obra machadiana em duas fases, uma tida como Romântica,
outra, como Realista, cujo critério de separação se basearia, dentre outros fatores,
no uso da ironia:
Além de ser um dos pioneiros do gênero entre nós, Machado fez do conto um
laboratório para seus experimentos literários. Tomemos como exemplo os
Contos fluminenses, seu livro de estréia na prosa de ficção, publicado em
1869. Geralmente desprezado, esse livro „menor‟, torna-se, todavia, um
importante elemento para o entendimento da gênese de seus livros „maiores‟.
Como faz parte da fase inicial de Machado, via de regra é deixado no limbo
pelos leitores e, normalmente, é pouco estudado pelos críticos. Não obstante
ser seu livro de estréia como ficcionista, podem-se encontrar nele alguns
exemplos de procedimentos literários que serão gradativamente
amadurecidos pelo escritor.
É o caso do primeiro conto, „Miss Dollar‟, no qual Machado já esboça um
procedimento irônico que será marcante em sua obra: dar a entender que fala
de uma coisa enquanto, no fundo, fala de outra (...). (MARINS, 2004, p. 52).
Ao mesmo tempo, a idéia de ruptura [da primeira para a segunda fase da obra
machadiana] se fundamenta em um rompimento com o Romantismo, o que
torna a questão ainda mais problemática. Se o Romantismo brasileiro era
ufanista, a ruptura também se dá, conseqüentemente, em relação à cor local, o
que favorece argumentos para a idéia de que Machado, em sua segunda fase,
estaria desligado das questões nacionais.
Foi assim que se estabeleceu a base intelectual para a visão de um Machado
de Assis de temática mais ampla, universal. Ora, se o escritor tinha rompido
com a escola literária que defendia os valores nacionais, ele então deveria ser
alçado a outro patamar que não estivesse vinculado à tradição literária
brasileira. E o que possibilitava a colocação de Machado nesse outro patamar
era exatamente a utilização da ironia como procedimento estético (...).
(MARINS, 2004, p.212-3).
parte da Crítica Literária, posição que é reiterada por Eduardo Melo França (2008,
p. 101-2), em Ruptura ou amadurecimento? Uma análise dos primeiros contos de
Machado de Assis:
(...)
A falta de compromisso em estudar o primeiro período da produção de
Machado fez com que a crítica não conseguisse enxergar que nesses
primeiros contos, por exemplo, já havia a ironia instalada através do jogo de
palavras e do total aproveitamento do texto. Assim como há um significado
irônico em o escravo de Brás Cubas se chamar Prudêncio, também a falta de
senso de realidade e a capacidade de Tinoco [personagem do conto „Aurora
sem dia‟] viver em um mundo de fantasia e ilusão será satirizada por
Machado a partir de um jogo de palavras que ele faz com o nome da amada
do seu herói. Inocência é o nome verdadeiro da sua paixão. Laura é como ele
a chamava em seus versos. „Esta Laura‟, diz Machado, „preciso é que se diga
não era Laura, era simplesmente Inocência‟ (...). Notemos que Machado
brinca com a semelhança existente entre as palavras Laura e láurea para
mostrar que qualquer reconhecimento que Tinoco alegasse ter entre seus
pares, não passava de fruto de sua inocência, tal qual o verdadeiro nome de
sua amada (...).
Além das obras machadianas supracitadas, estão inseridos, nesse grupo, três
das cinco narrativas que constituem o corpus do presente trabalho, a saber:
Virginius, Mariana e Encher tempo, nas quais a ironia será utilizada para criticar
o sistema escravagista e a condição do negro, no referido contexto, conforme será
visto no capítulo posterior.
O estudo de Marins (2004, p. 88) enfatiza, ainda, o papel do narrador
irônico na obra machadiana, que aparece nas narrativas por meio do diálogo que
estabelece com o leitor, tendo por “finalidade” estabelecer um laço de intimidade
com este último, estratégia que proporcionará uma identificação entre ambos e um
envolvimento menor do leitor com os personagens. O narrador irônico, portanto, é
utilizado com uma finalidade específica, associada à ironia, dentro da obra:
Tal recurso estilístico também será enfatizado por Duarte (2006, p. 143),
que assinala as “estratégias” logrativas usadas pelo narrador irônico,
especialmente no que diz respeito ao “diálogo” que é tecido com o leitor, não
apenas nas obras de Machado de Assis, como também nas de Camilo Castelo
Branco:
(...) A nova ironia que dominara, e sem dúvida um avanço lento nos próprios
costumes, significava que certos temas – a prostituição, por exemplo, ou o
adultério –, que antes mal poderiam ser mencionados como possibilidades,
doravante podiam ser tratados com mais honestidade. (...) Essa confiança
permitia também uma nova relação, mais ativa, com o leitor, muito marcante
nessas obras (...). Todos esses fatores estão relacionados entre si; também
seria um erro ignorar uma dimensão internacional da história do conto como
gênero literário. Os seus historiadores concordam que o conto adquiriu um
novo tipo de respeitabilidade e identidade artísticas por volta dessa época.
Maupassant e Tchekhov, por exemplo, publicaram seus primeiros contos em
1880. Trata-se menos de uma questão de influência de escritores específicos
que de mudanças de gosto e atmosfera. Notícias, idéias e modas punham-se
em movimento cada vez mais rápido ao longo do século XIX, e Machado
sentiu também seus efeitos, sabendo adaptar-se a eles. (GLEDSON, 2006, p.
53-4).
Sob tal ótica é que devemos compreender a ironia machadiana. Não que o
autor de Dom Casmurro rejeite o uso da ironia enquanto procedimento
retórico ou instrumento de sátira; mas nele essa utilização encontra-se
subordinada a problemática muito mais ampla, tornando-se a ironia uma
forma de relacionamento do escritor com a realidade como um todo, um
modo privilegiado de expressão de seu pessimismo existencial. A visão
irônica da condição humana configura a criação ficcional de Machado de
Assis em todos os seus níveis, das estratégias do discurso narrativo às
grandes linhas temáticas em torno das quais se articulam dramaticamente as
obras. (ALMEIDA, 2008, p. 34).
dividido, imprimindo, na
escrita, um “jogo verbal e
situacional”.
Roberto Schwarz Um mestre na periferia do A ironia de Machado de
capitalismo (1990) Assis transcende os
limites meramente
localistas ou
universalistas.
Alfredo Bosi Machado de Assis: o A ironia machadiana
enigma do olhar (1999) reflete o “lado obscuro”
da sociedade burguesa
brasileira.
Álvaro Marins Machado e Lima: da . A ironia de Machado de
ironia à sátira (2004) Assis já está presente na
sua fase “Romântica”;
. O narrador irônico é
mais um elemento
estilístico utilizado para
reforçar a ironia
machadiana.
Lélia Pereira Duarte Ironia e humor na . O narrador irônico é um
Literatura (2006) elemento estilístico
importante, não apenas
nas obras de Machado de
Assis, mas também nas de
Camilo Castelo Branco.
John Gledson Por um novo Machado de A ironia é um recurso
Assis: ensaios (2006) estilístico que,
gradativamente, vai servir
para deflagrar a crítica à
escravidão.
José Maurício Gomes de Machado, Rosa & Cia: A ironia machadiana, de
Almeida
Ensaios sobre Literatura e acordo com a tipologia de
74
O presente capítulo tem como objetivo proceder à análise estilística dos contos
Virginius (1864), Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da vara (1891) e Pai
contra mãe (1906), que têm a representação da escravidão como tema. Para tanto, a
ironia será tomada como parâmetro crítico, uma vez que Machado de Assis a utilizou,
nas obras supracitadas, para representar a condição do negro, e, consequentemente,
criticar o sistema escravagista.
Como ficou assinalado no primeiro capítulo, Machado de Assis foi considerado,
por muito tempo, na Crítica Literária, como um escritor apático (visão esta que é
presente nos estudos de nomes como Sílvio Romero e Lúcia Miguel-Pereira), e, muitas
vezes, até a favor da escravidão, postura esta que ganhou repercussão devido à suposta
“posição secundária” na qual os personagens negros estariam situados, não lhes sendo
atribuídas nenhuma função relevante, nos enredos das narrativas.
Esta, entretanto, é uma posição minoritária, nos estudos da Crítica Literária
machadiana contemporânea, que assinalam – assim como demonstrará, também, o
presente trabalho – o envolvimento literário de Machado de Assis, principalmente
durante o período do Segundo Reinado, na questão do cativeiro. Esse fato torna-se
notório, quando se percebe, por exemplo, que o ano de publicação do conto Mariana
(1871), que aborda o suicídio de uma jovem escrava, é também o da promulgação da
Lei do Ventre Livre, que “libertou” os filhos das cativas, nascidos a partir daquela data,
sendo, dessa forma, a referida narrativa bastante significativa e simbólica.
É importante esclarecer, ainda, que as narrativas machadianas supracitadas, apesar
de abordarem o tema da escravidão, não o fazem sob uma perspectiva panfletária e
abolicionista, tampouco depreciadora, como ocorre em algumas obras da época, a
exemplo de Vítimas e algozes, de Joaquim Manoel de Macedo e Mota Coqueiro, de
José do Patrocínio, conforme afirma Eduardo de Assis Duarte (2007, p. 252), em
Machado de Assis afro-descendente – escritos de caramujo (antologia).
O que ocorre é exatamente o oposto: partindo da ironia e, em particular, dos
narradores irônicos, os contos supracitados, embora pareçam refletir, em um primeiro
momento, a ideologia da classe burguesa e paternalista dominante, ao apresentar o
sofrimento das personagens escravas, constituem-se, na verdade, - e eis a importância
de uma leitura mais atenta ao uso da ironia – numa crítica à sociedade escravagista.
77
(...)
Julião fora um daqueles a quem a alma caridosa de Pio dera sustento e
trabalho. Suas boas qualidades, a gratidão, o amor, o respeito com quem
falava e adorava o protetor, não ficaram sem uma paga valiosa. Pio, no fim
de certo tempo, deu a Julião um sítio que ficava pouco distante da fazenda.
Para lá fora morar Julião com uma filha menor, cuja mãe morrera em
79
9
A respeito de tais e outras representações do negro, na Literatura Brasileira, ver a obra “O
negro na Literatura Brasileira”, de Raymond S. Sayers (1958).
80
feminina principal da obra, que em momento algum se mostra como uma mulher
capaz de reagir ao constante assédio do qual acaba sendo uma vítima fatal,
condição semelhante à de outra personagem machadiana, Eugênia, jovem pobre e
coxa, que em Memórias póstumas de Brás Cubas, após ter um romance com o
narrador-personagem, acaba sendo rejeitada por este. No tocante, particularmente,
à condição de Elisa, Krech (2010, p. 157) faz a seguinte análise:
(...)
O papel de Elisa no conto é complicado. Elisa, além de ser a única
personagem feminina em „Virginius‟, é, como referido acima, o ponto de
convergência da história; ela incorpora o único motivo pelo qual o ocorrido
torna-se digno de relato. Ao contrário do que se espera de personagem tão
relevante, Elisa praticamente não exerce ação alguma no conto todo. Mais
além, Elisa não tem direito a ação. Não tem o direito de expor as suas ideias
na trama, pois praticamente não lhe é dada a palavra. Não pode ser mulher
sem ser cobiçada, ou melhor, assediada sexualmente pelo filho do patrão.
Nem tem o direito de viver, se essa vida não for honrosa. Elisa é uma
marionete num mundo de homens: muda, estática, passiva. Lembremo-nos de
que o público alvo de „Virginius‟, principais leitores do Jornal das Famílias,
eram mulheres. Como já se viu, Machado provavelmente não desejava ser
relacionado de forma direta a uma polêmica; isso porém não significa que
não polemizasse a seu modo. Talvez aspirasse sensibilizar os corações
femininos de forma mais sutil. Procurava a simpatia de suas leitoras para com
Elisa-mulher e não, necessariamente, para com Elisa-mulata
Após perceber que sua filha havido sido estuprada, Julião, para “salvar a
honra” da mesma, acaba a assassinando. Carlos, que minutos antes deixara o local
do cativeiro, chega com a polícia, que acaba prendendo o pai da jovem, enquanto
o filho de Pio consegue, nesse momento, sair impune. A morte de Elisa,
entretanto, não se dá de forma abrupta: Julião, antes de ter a casa invadida, fica
sabendo, por meio da filha, que Carlos a estava assediando e decide conversar
com o rapaz, que garante que irá respeitar a jovem “(...) como se fosse morta”
(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 84). Em tal frase, se percebe, mais uma vez, a
presença da ironia romântica, desta vez, explicitando a ambiguidade proposital do
discurso, uma vez que as intenções de Carlos, conforme vai sendo assinalado, ao
longo da construção do perfil da personagem, remetem ao oposto do que é
prometido, tornando-o falso.
A narrativa de Machado de Assis retoma um outro texto, da Literatura
Greco-Latina, a história de Virginius, cuja filha Virgínia, desperta interesse de um
magistrado romano, Ápio Cláudio, fato observado nas análises de José Aderaldo
Castello, em Realidade e ilusão em Machado de Assis (2008, p. 94) e Eduardo
Melo França, em Ruptura ou amadurecimento? Uma análise dos primeiros contos
81
(...)
Não podemos negar que Virginius apresenta elementos que retratam a
condição social do Brasil do séc. XIX. Contudo, reduzir o seu sentido a uma
suposta intenção de Machado em simplesmente tê-lo concebido como uma
peça de denúncia social contra as consequências de um regime escravocrata,
é não perceber que já em 1864 Machado possuía esse profundo senso de
dialética entre o clássico e o novo, o universal e o particular, a história e a
psicóloga. Ao mesmo tempo em que a tentativa de desrespeito de Carlos em
relação à Elisa pode ser lida como supostamente motivada por essa pulsão
sádica, egoísta e violenta do ser humano, também não devemos perder de
vista que será somente através das possibilidades oferecidas pelo seu meio,
ou seja, o regime patriarcal, escravocrata e a condição privilegiada dos
senhores de escravos no Brasil dos oitocentos, que essa pulsão encontrará a
possibilidade de ser posta em prática (...).
(...)
Depois de algum silêncio disse-me [Pio ao narrador-advogado]:
- Já falou ao Julião?
- Já.
- Conhece então toda a história?
-Sei do que ele me contou.
- O que ele lhe contou é o que se passou (...). (MACHADO DE ASSIS, 1998,
p. 90).
(...)
No momento em que escrevo estas páginas, Julião, tendo já cumprido a
sentença, vive na fazenda de Pio. Pio não quis que ele voltasse ao lugar em
que se dera a catástrofe, e fá-lo residir ao pé de si.
(...)
Quanto a Carlos, vai resgatando como pode o crime com que atentou contra a
honra de uma donzela e contra a felicidade de dois pais. (MACHADO DE
ASSIS, 1998, p. 92-3).
Pela data em que foi publicado o conto, 1864, e sabendo que a punição
de Carlos foi o exército, subentende-se que o jovem poderia ter sido mandado
como soldado para a Guerra do Paraguai, fato percebido por Krech (2010, p. 154):
contornos mais densos em Mariana, conto publicado em 1871 e cuja análise será
feita a seguir.
(...)
- Chamava-se Mariana, continuou ele alguns minutos depois, e era uma gentil
mulatinha nascida e criada como filha da casa, e recebendo de minha mãe os
mesmos afagos que ela dispensava às outras filhas. Não se sentava à mesa,
nem vinha à sala em ocasião de visitas, eis a diferença; no mais era como se
fosse pessoa livre, e até minhas irmãs tinham certa afeição fraternal. Mariana
possuía a inteligência de sua situação, e na abusava dos cuidados com que era
tratada. Compreendia bem que na situação em que se achava só lhe restava
pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora. (MACHADO
DE ASSIS, 1998, p. 154).
(...)
- Não sei, disse Josefa, mas alguma coisa haverá porque Mariana anda triste
desde anteontem. Que supões tu?
- Alguma coisa faria e tem medo da mamãe.
- Não, disse Josefa; pode ser antes algum namoro.
- Ah! tu pensas quê?
- Pode ser.
- E quem será o namorado da senhora Mariana, perguntou rindo. O copeiro
ou o cocheiro?
(...). (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 157).
Nessa passagem, apesar de não haver a presença do autor irônico, dado que
não é estabelecido um “diálogo” com o leitor, ocorre a ironia romântica, uma vez
que Coutinho não só demonstra incrédulo quanto à possibilidade de Mariana se
apaixonar, como, ao perguntar se o provável namorado da moça seria “o copeiro
ou o cocheiro”, acaba por demonstrar que, aos olhos daqueles que ocupam uma
posição social superior, seria impossível, a uma subalterna, apaixonar-se por um
homem pertencente a uma classe social mais elevada, dado que, para estes, as
mulheres negras ou mulatas serviam, apenas, como objeto sexual, conforme
salienta o estudo “Tomando liberdades: o escravo „fora do lugar‟” (2010, p. 105-
6), de Ingrid Hapke.
À medida que o casamento de Coutinho se aproxima, a insatisfação de
Mariana vai se tornar mais visível: a escrava passa a empreender várias fugas,
sumindo da casa dos Coutinho por vários dias, adoecendo, mas sempre
continuando ao lado de seu sinhozinho.
85
Tal realidade, entretanto, muda na última fuga, que ocorre quatro dias antes
do casamento de Coutinho, em meio à comemoração de Natal: Coutinho resolve
procurar Mariana, juntamente com a polícia e, quando a acha, repreende-a com
veemência:
(...) Mariana abriu a porta e eu apareci. Deu um grito estridente e lançou-se
nos braços. Repeli aquela demonstração com toda a brandura que a situação
exigia.
- Não venho aqui para receber-te abraços, disse eu; venho pela segunda vez
buscar-te para casa, donde pela segunda vez fugiste.
A palavra fugiste escapou-me dos lábios; todavia, não lhe dei importância
senão quando vi a impressão que ela produziu em Mariana. Confesso que
devera ter alguma caridade mais (...). (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.
167).
(...)
Coutinho concluiu assim a sua narração, que foi ouvida com tristeza por
todos nós. Mas daí a pouco saíamos rua do Ouvidor fora, examinando os pés
das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões
mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinha-nos
restituído a mocidade. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 170).
(...)
Em „Encher Tempo‟, conto de publicação póstuma, Machado de Assis esboça
um retrato de uma escrava liberta. Mônica fora mãe adotiva de sua senhora,
Lulu, e a trata com carinhos e desvelos que teria para verdadeira filha,
chegando mesmo a sacrificar seu conforto e paz de espírito em favor da
menina. Mas como é personagem secundária no conto, o autor não pode
87
(...)
- Tia Mônica, disse a moça [Lulu]; venho pedir-lhe um grande favor.
- Um favor, nhanhã! Sua preta velha obedecerá ao que lhe mandar.
- Quando meu primo [Alexandre] sair daqui com o senhor Pedro você vai
acompanhá-los.
- Jesus! Para quê?
- Para ouvir o que eles dizem, e ver o que houver entre eles, e gritar por
socorro se houver algum perigo.
- Mas...
- Por alma de minha mãe, suplicou Lulu.
- Mas não sei... (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 453).
(...)
Tia Mônica vestira à pressa uma mantilha e desceu atrás dos dois rapazes. Ia
resmungando, receosa do que fazia ou do que podia acontecer, nada
compreendendo daquilo, e entretanto, cheia do desejo de obedecer à vontade
de sinhá moça. (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 453).
Percebe-se que Lulu usa de uma chantagem para que Tia Mônica faça o que
lhe é pedido, forma que demonstra o poder senhorial, embora seja mais branda
que outros métodos convencionalmente usados, na época, especialmente quando a
relação era estabelecida entre as sinhás e suas escravas, como assinala Julio Jose
Chiavenato, em O negro no Brasil: da senzala à guerra do Paraguai (1980, p.
141-2):
(...)
Era uma hora quando o som pausado e seco de uma chinela soou nas pedras
da rua. Lulu adivinhou o passou da tia Mônica; (...)
(...)
Tia Mônica subiu as escadas , e já achou no patamar a sinhá moça, que a fora
esperar ali.
-Então? Perguntou esta.
A resposta da preta foi nenhuma; travou-lhe da mão e encaminhou-se para o
quarto da moça.
- Ah! Sinhá Lulu, que noite! Exclamou tia Mônica.
- Mas dize, dize, dize, que aconteceu?
A preta sentou-se com a liberdade de uma pessoa cansada e velha, e quase
mãe daquela filha. Lulu pediu-lhe que dissesse tudo e depressa. Depressa, era
exigir muito da pobre Mônica, que além da idade, tinha o sestro de narrar
pelo miúdo os incidentes todos de um caso ou de uma aventura, sem excluir
as suas próprias reflexões e as circunstâncias mais alheias ao assunto da
conversação (...). (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 455).
especialmente a Lulu, advêm do fato daquela personagem ser uma negra liberta,
conforme a seguinte passagem do conto:
(...)
A tia Mônica, de quem se falou em um dos capítulos anteriores, era uma
preta velha, que havia criado a sobrinha do padre [Lulu] e a amava como se
fora sua mãe. Era liberta; o padre deu-lhe a liberdade logo que morrera a mãe
de Lulu, e Mônica ficou servindo de companheira e protetora da menina, que
não tinha outro parente, além do padre e do primo (...). (MACHADO DE
ASSIS, 1962, p. 433).
(...)
Preferiu [o padre Sá] repreender a tia Mônica, depois de a interrogar acerca dos
sucessos da véspera. A preta negou tudo, e mostrou-se singularmente admirada
com a notícia de que ela havia saído de noite; o padre, porém, soube fazê-la
confessar tudo, só com lhe mostrar o mal que havia em mentir. Nem por isso
ficou sabendo muito; repreendeu a preta, e foi dali escrever uma cartinha ao
sobrinho. (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 458).
90
O “final feliz” não deixa de ser ironizado pelo narrador, que observa na
trama amorosa a justificativa para o título do conto:
(...) Mas que tem como esta história o título que lhe pus? Tudo; são umas
vinte páginas para encher tempo. Em falta de coisa melhor, lê-se isto, e
dorme-se (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 461).
(...)
- Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu [de Damião]
padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas
idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão
atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no largo
do Capim.
- Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na
marquesa, onde estava reclinada. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 378-9).
92
(...)
Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou
para a Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era
preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida
eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também
se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não
achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e
repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar „pessoas estranhas‟, e em
seguida afirmou que o castigaria.
- Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá
falar a seu compadre.
- Não afianço nada, não creio que seja possível...
- Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo
tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande,
senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que
não volta...
- Mas, minha senhora...
- Vá, vá. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 381).
(...)
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete em seus
olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha,
brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou
muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-
lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada
a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho,
para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé
da marquesa, e ameaçou-a:
- Lucrécia, olha a vara! (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 380-1).
A descrição de Sinhá como uma pessoa virtuosa logo contrasta com seu
caráter violento, já prenunciado no trecho “(...) quando convinha, brava como
diabo”, e reiterado no momento em que ameaça bater em Lucrécia, cuja descrição
física é assim mostrada:
A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era
uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia
receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma
negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma
queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que
tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação,
Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa.
Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a
culpa era sua, se há culpa em ter chiste. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.
381).
(...)
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e
pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
- Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não
querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista:
- Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim,
tinha jurado apadrinhar a pequena, que, por causa dele, atrasara o trabalho...
- Dê-me a vara, Sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe
então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso
Senhor...
- Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela cara,
sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se
compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa,
pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.
385).
(...)
Não haveria novidade, ao fim do século XIX, em apontar as barbáries do
escravismo, contrastando-as com os privilégios dos proprietários, nem
Machado aceitaria esse esquema, dócil às retóricas e presa fácil das
ideologias de fachada. A tarefa do narrador, neste conto, é bem outra:
consiste em ir ao âmago da escolha pessoal, analisá-la intimamente e exibi-la
no âmbito das decisões capitais que se determinam no tempo e no espaço da
história humana. Que o faça dentro de um quadro em que a ênfase recai sobre
a condição do escravo é sinal de que buscou entender o instante decisivo das
chamadas éticas: instante em que o valor assume, de fato, seu verdadeiro
peso material, e enfrenta ou sucumbe como gesto de desafio que desborda do
plano da retórica, da ideologia, das intenções meritórias: o desafio de uma
polarização efetivamente materializada (...).
3.5. Pai contra mãe (1906): “Nem todas as crianças (escravas) vingam”
Pai contra mãe, por seu enredo, assemelha-se a outros dois contos
machadianos: Mariana, por conter cenas de morte de cativos, e O caso da vara,
pelo fato de nele ocorrer a representação da violência contra a mulher escrava.
Para analisar a narrativa aqui em questão, serão utilizadas duas categorias
estilísticas: o narrador irônico e a ironia sensu eminentori.
O conto é iniciado com a descrição dos aparelhos utilizados para a
tortura dos escravos:
(...)
Cândido Neves, - em família, Candinho, - é a pessoa a quem se liga a história
de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos
97
fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem
ofício, carecia de estabilidade; é o que chamava caiporismo. Começou por
querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para
compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse
a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum
esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de
atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou
seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma
repartição anexa ao ministério do império, carteiro e outros empregos foram
deixados pouco depois de obtidos. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 484-5).
o pouco trabalho etc.). Contudo, é assinalado que tais benefícios são inúteis, uma
vez que se percebe o processo de animalização de Cândido Neves, que, para
conseguir capturar os negros, faz uso de “estratégias” próprias dos animais
selvagens, a exemplo do uso das unhas e dos dentes, bem como da “Lei de
Humanitas”, na qual só os mais fortes sobrevivem à “selva” urbana, conforme
destaca Eduardo de Faria Coutinho (2010, p. 98).
Se, em um primeiro momento, Cândido Neves tem êxito em sua nova
carreira, posteriormente começa a falhar, não conseguindo mais capturar os
escravos fugitivos:
(...)
Voltou [Cândido Neves] para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia
Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino
para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder
a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha
fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum
prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a
mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação; seria
maior miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso.
Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse
ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno
adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da rua dos Barbonos.
(MACHADO DE ASSSIS, 1998, p. 491-2).
- Meu senhor!
- Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e
tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas
de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que
entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo
de luta a escrava abortou. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 493-4).
O aborto que a escrava sofre, conforme assinala a passagem acima, será tido
como algo fatídico e impossível de ser evitado, uma vez que os interesses de
Arminda se contrapõe aos de Cândido Neves, que não demonstra remorso ao
“caçar” e maltratar a mulata, momento semelhante ao que ocorre em outra obra
machadiana, Memórias póstumas de Brás Cubas, na qual Prudêncio, ex- escravo
do personagem-título, após liberto, torna-se senhor e repete com seus cativos as
torturas que sofrera, embora, ironicamente, ainda continue a tratar seu antigo dono
por “nhonhô”, refletindo, assim, a permanência da mentalidade servil:
(...)
- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! gemia o outro.
- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos
que o meu moleque Prudêncio, - o que meu pai libertara alguns anos antes.
Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele
preto era escravo dele.
- É, sim, nhonhô.
- Fez-te alguma coisa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda,
enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda
beber.
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado! (...)
(DUARTE, 2007, p.208-9).
(...) O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava
fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu
depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a
casa de empréstimo, com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia
Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia
os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava,
por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre
lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
- Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. (MACHADO DE
ASSIS, 1998, p. 494).
101
Este trabalho teve como objetivo estudar a ironia, enquanto recurso estilístico, na
representação do escravo, em cinco contos de Machado de Assis: Virginius (1864),
Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da vara (1891) e Pai contra mãe (1906),
objetivando decodificar uma suposta posição crítica do escritor sobre a escravidão, um
aspecto que foi por muito tempo contestado por alguns estudiosos, a exemplo de Lúcia
Miguel-Pereira, cuja obra, Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, assinala o
pressuposto da “apatia” machadiana, no tocante ao referido tema.
Para discutir tais questões, se procurou relacionar, no primeiro capítulo, o
contexto histórico - principalmente o de promulgação das Leis que, antes da Áurea,
tentaram findar, sem êxito, com o tráfico negreiro: a Lei Eusébio de Queiroz (1850), a
Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885) - ao de publicação das
obras machadianas supracitadas, bem como de outras, a exemplo dos romances Dom
Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Da pesquisa, chega-se à conclusão que os textos machadianos não apenas se
encontram em consonância com os acontecimentos da época, como, ainda, representam
o tema da escravidão sob uma nova perspectiva, a de apresentar o negro não mais como
uma personagem presa aos estereótipos vigentes (a negra feiticeira, o negro vingativo, o
negro herói, a multa lascívia, etc.), mas como um ser humano, cuja história será o “fio
condutor” das narrativas, posição que é observada, pela Crítica Literária, pelos estudos
de Raymond S. Sayers, O negro na Literatura Brasileira (1958); José Aderaldo
Castello, Realidade e ilusão em Machado de Assis, (1969); Raymundo Faoro, Machado
de Assis: a pirâmide e o trapézio (1974); Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas
(1977) e Um mestre na periferia do capitalismo (1990); John Gledson, Machado de
Assis: ficção e história (1986) e Por um novo Machado de Assis: ensaios (2006);
Regina Zilberman, “Um caso para o leitor pensar” (1989); Alfredo Bosi, Machado de
Assis: o enigma do olhar (1999); Massaud Moisés, Machado de Assis: ficção e utopia
(2001) e Alcides Villaça, “Querer, poder, precisar: „O caso da vara‟” (2006)
104
Os enredos dos contos, aqui em análise, são reforçados pela presença da ironia,
cujas possíveis definições e classificações foram vistas no capítulo dois, por meio
dos estudos de Kierkegaard, O conceito de ironia constantemente referido a
Sócrates; D. C. Muecke, Ironia e irônico; Berel Lang, “The limits of irony” e
Beth Brait, Ironia em perspectiva polifônica, que proporcionaram um panorama a
respeito de tal figura de linguagem, que surge, inicialmente, na Antiguidade
Clássica, com fins jocosos, cuja intenção era a de lograr o ouvinte, estratégia
muito utilizada por nomes com Aristóteles e Sócrates; com o passar do tempo, o
conceito de ironia foi visto pela perspectiva filosófica, na qual se destacaram
nomes como Karl Solger e Kierkegaard. A fase mais recente sobre os estudos
sobre a ironia a associa à linguística, vendo o referido tropo discursivo sob uma
perspectiva dialógica, que necessita sempre da interação entre os que dela
participam.
Tais mudanças, no conceito de ironia, permitiram observar não apenas o
aprofundamento no estudo de tal figura de linguagem, como, também a
interferência de tais perspectivas na Literatura. Juntamente à revisão conceitual,
foram vistas as diversas modalidades da ironia (observável, dramática, paradoxal,
etc.), tendo sido escolhidas, para análise dos contos machadianos, a ironia
romântica, uma vez que há, claramente, nos contos, a ideia de contraste (mundo
escravo x mundo senhorial) e a ironia sensu eminentori, na concepção de
Kirkegaard, dado o caráter de contestação de uma realidade histórica – no caso, a
escravidão –. Além destas tipologias foi utilizado, também, o conceito de narrador
irônico, presente, nas narrativas estudas, por meio do diálogo que este estabelece
com o leitor, tentando aproximá-lo do discurso ideológico que quer transmitir (no
presente caso, o de opressão do escravo) e afastá-lo dos personagens mais
importantes, os cativos.
Posteriormente, foi mostrado, por meio dos estudos críticos de José
Aderaldo Castello, Realidade e ilusão em Machado de Assis (1969); Antonio
Candido, Esquema sobre Machado de Assis (1970); Sonia Brayner, Labirinto do
espaço romanesco (1979); Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do
capitalismo (1990); Alfredo Bosi, Machado de Assis: o enigma do olhar (1999);
Álvaro Marins, Machado e Lima: da ironia à sátira (2004); Lélia Pereira Duarte,
Ironia e humor na Literatura (2006); John Gledson, Por um novo Machado de
Assis: ensaios (2006); José Maurício Gomes de Almeida, Machado, Rosa & Cia:
105
ALMEIDA, José Maurício Gomes de. Machado, Rosa & Cia: Ensaios sobre
literatura e cultura. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2008. p. 33; 34.
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Identity in the late Nineteenth Century. In: SARMENTO, Clara. Women in the
Portuguese Colonial Empire: The Theatre of Shadows. London: Cambridge
Scholars Publishing, 2008, v. 1, p. 97.
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_____. Pai contra mãe. In: In: GLEDSON, John. Contos: uma antologia, volume
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