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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM LITERATURA E CULTURA

MARINA RODRIGUES DE OLIVEIRA

ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA:
A IRONIA COMO RECURSO ESTILÍSTICO
NOS CONTOS MACHADIANOS

João Pessoa
2011
MARINA RODRIGUES DE OLIVEIRA

ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA:
A IRONIA COMO RECURSO
ESTILÍSTICO NOS CONTOS
MACHADIANOS

Dissertação apresentada à Universidade


Federal da Paraíba como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Literatura e Cultura.

Orientadora: Profa. Dr.a Zélia Monteiro


Bora

João Pessoa
2011
O48e Oliveira, Marina Rodrigues de.
Escravidão e resistência: a ironia como recurso estilístico
nos contos machadianos / Marina Rodrigues de Oliveira. --
João Pessoa, 2011.
110f.
Orientadora: Zélia Monteiro Bora
Dissertação (Mestrado) – UFPB/CCCHLA
1. Assis, Machado de – Contos - Crítica e interpretação.
2. Literatura e Cultura. 3. Escravidão – Brasil. 4. Escravidão –
história – cultura.

UFPB/BC CDU: 82(043)


À minha eterna e maior inspiração, minha mãe, Melânia.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer à professora Zélia Monteiro Bora, pela


parceria acadêmica desenvolvida ao longo desses dois anos, bem como das
contribuições advindas desta.
Às secretárias do Programa de Pós – Graduação em Letras, Rose e Mônica, pelo
atendimento sempre solícito, no tocante aos aspectos mais “burocráticos”.
À minha família, por todo apoio e compreensão que foram me dados.
Aos meus amigos que fiz na cidade de João Pessoa, no Programa de Pós-
Graduação em Letras e aos que há muito tempo me acompanham, na minha
cidade natal, Campina Grande, pelas palavras carinhosas, pelo estímulo e também
pela companhia sempre calorosa.
Aos professores Neroaldo Pontes de Azevedo, Oscar Lira e Fabiana Ramos, pela
colaboração acadêmica, que tanto ajudou a engrandecer o presente trabalho.
À minha psicóloga, Elisângela Sobreira Camurça Martinez, pelas sessões que
tanto me ajudaram a manter o equilíbrio e tranquilidade necessárias para a
elaboração deste estudo.
Escravidão e resistência: A ironia como recurso estilístico nos contos
machadianos.

Resumo: Esta dissertação tem, como objetivo, investigar o valor da ironia romântica
como recurso estilístico e crítico na representação da visão machadiana sobre o
problema da escravidão na sociedade brasileira. Para efeito didático, serão estudados os
seguintes contos: Virginius (1864), Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da
vara (1891) e Pai contra mãe (1906). A referida abordagem constitui-se como uma
tentativa em elucidar a “possível” falta de criticidade da obra machadiana, no tocante ao
problema da escravidão, conforme foi afirmado, durante muito tempo, pela Crítica
Literária. Portanto, tratar a respeito do negro na escravidão brasileira compreende
entendê-lo não como uma engrenagem motivadora de um mero sistema econômico-
social que perdurou por três séculos – do XVI ao XIX – mas, antes de tudo, como um
sujeito representado à margem, explorado desumanamente e excluído em uma
sociedade em vias de modernização. Assim, a trajetória do negro, nos contos
machadianos, nesse contexto, deve ser vista a partir da perspectiva literária, como um
aspecto bastante significativo, além dos contextos histórico e cultural.

Palavras-chave: Machado de Assis; Ironia Romântica; Representação; Contos.


Slavery and resistance: irony as a stylistic resource in Machado’s short stories

Abstract: This dissertation aims to investigate the value of irony as a stylistic and
critical resource in the representation of Machado's vision on the problem of slavery in
Brazilian society. For didactic purposes, the following short stories will be studied:
Virginius (1864), Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da vara (1891) and
Pai contra mãe (1906). This approach constitutes an attempt to elucidate the "possible"
lack of criticism in Machado's work regarding to slavery, as critics have stated for a
long time. Therefore, dealing with black slavery in Brazil means to understand it not as
a motivating gear of a mere economic-social system that lasted for three centuries –
from the sixteenth to the nineteenth century – but, above all, as a subject represented at
the margin, ruthlessly exploited and excluded within a society undergoing
modernization. Thus, in this context, the trajectory of the black in Machado‟s short
stories should be seen, by the literary perspective, as a very significant aspect in
addition to the historical and cultural contexts.

Keywords: Machado de Assis; Romantic Irony; Representation; Short Stories.


SUMÁRIO

Introdução 10
1. Machado de Assis e as 15
representações literárias da
escravidão
1.1. O negro e a literatura brasileira 23
1.2. Machado de Assis e a escravidão 27
1.3. Revisão crítica sobre a escravidão 34
em Machado de Assis
2. A ironia como recurso estilístico 48
2.1. Percurso histórico da ironia: da 49
Antiguidade Clássica à Idade
Contemporânea
2.2. A ironia em Machado de Assis: 63
revisão crítica
3. Ironia e escravidão através dos 76
contos de Machado de Assis
3.1. Virginius (1864): o embrião da 77
representação escravocrata
3.2. Mariana (1871): a prisão em meio à 83
liberdade
3.3. Encher tempo (1876): uma narrativa 86
pouco conhecida
3.4. O caso da vara (1891): escravidão e 91
relações de poder no sistema
escravagista.
3.5. Pai contra mãe: “Nem todas as 96
crianças (escravas) vingam”
3.6. Virginius, Mariana, Encher tempo, 101
O caso da vara e Pai contra mãe: pontos
de convergência e divergência
Conclusão 103
Referências bibliográficas 106
INTRODUÇÃO

O século XIX, no Brasil, e, particularmente, o Segundo Reinado (1840-


1889), foi um período de mudanças, uma vez que o sistema escravagista começou,
gradualmente, a ser extinto, por meio da promulgação de leis, como a Eusébio de
Queiroz (1850), a do Ventre Livre (1871) e a dos Sexagenários (1885), que, em
conjunto com o crescimento do movimento abolicionista e da pressão política
exercida por países estrangeiros, a exemplo da Inglaterra, acabou por culminar
com a definitiva libertação dos cativos, assegurada pela publicação da Lei Áurea
(1888).
Em meio a esse contexto, vários escritores representaram, em suas obras, a
escravidão, tendo sido os Românticos, de forma particular, os que deram maior
ênfase ao referido tema: na obra “inauguradora” do Romantismo brasileiro,
Suspiros poéticos e Saudades, mais precisamente, no poema “Invocação à
saudade”, de Gonçalves de Magalhães, já se observa, ainda que de forma
“embrionária”, uma abordagem do escravo, mostrando a saudade que o mesmo
sentia da terra natal.1
Raymond Sayers (1958, p. 145-6), em O negro na Literatura Brasileira,
afirma que, apesar de representar o negro, Gonçalves de Magalhães ainda o faz
sob uma perspectiva que se assemelha a de outros autores, como Odorico Mendes,
cujo poema Hino à tarde, “dialoga” com a obra Night throughts, de Edward
Young. Dessa forma, nesse momento inicial, o que se observa é a representação
do negro brasileiro ainda com base na literatura estrangeira, sem haver, contudo,
uma visão própria da realidade brasileira.
Ainda segundo Sayers (1958, p. 156-7), posteriormente a Gonçalves de
Magalhães, as primeiras obras que vão surgir, abordando a problemática do
escravo, serão de pouca repercussão, dentre as quais, podem ser citadas algumas
peças de Martins Pena (1841-1898), o romance A moreninha (1844), de Joaquim
Manuel de Macedo e alguns poemas de João Salomé Queiroga, que foram escritos
antes da década de 1830.

1
“(...) Ó terra do Brasil, terra querida, /Quantas vezes do mísero Africano /Te regaram as lágrimas
saudosas? /Quantas vezes teus bosques repetiram / Magoados acentos / Do cântico do escravo, /
Ao som dos duros golpes do machado! (...)”. (GONÇALVES DE MAGALHÃES, 1986, p. 348)
11

Entretanto, a representação do negro só ganhará mais espaço com o


crescimento do movimento abolicionista, fase que corresponde, na Literatura
Brasileira, à chamada “geração condoreira”. Neste período, as obras de escritores
como Castro Alves e Luís Gama, apoiadas no discurso abolicionista, destacam-se,
por abordarem as crueldades do sistema escravagista, sob uma perspectiva de
crítica à sociedade brasileira.
Machado de Assis adotará uma perspectiva semelhante à de Castro Alves e
Luís Gama, muito embora se distinga destes, uma vez que não era envolvido com
o movimento abolicionista, tampouco sua produção literária este caráter, fato que
fez com que o autor de Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas
fosse, por muito tempo, pela Crítica Literária, considerado como “alienado” à
temática da escravidão.
A fortuna crítica de Machado de Assis inclui os gêneros crônica, romance,
poesia e dramaturgia. Entretanto, o conto tornou-se um veículo simbólico, através
do qual o escritor expressou melhor as suas principais ideias sobre a sociedade de
seu tempo, proporcionando, dessa forma, uma ampla visão do Rio de Janeiro
Imperial ao leitor. Essas representações do contexto social carioca deram-se,
principalmente, no plano estilístico, no qual a ironia se constitui como uma
importante figura de linguagem, uma vez que permitiu a Machado de Assis
abordar o tema da escravidão, sob uma perspectiva crítica, constituída e narrada a
partir do Outro, por meio da ironia.
Dentre os diversos temas trabalhados pelo escritor carioca, o problema da
escravidão, na obra de Machado de Assis, atualmente, tem despertado interesse da
crítica contemporânea. A referida temática foi objeto de discussões críticas desde
a década de 1930, quando Lúcia Miguel-Pereira publica Machado de Assis:
estudo crítico e biográfico, apesar da participação do escritor, no processo crítico,
ter sido bastante minimizada por críticos do passado.
As leituras críticas sobre a representação da escravidão na obra
machadiana, que servirão de arcabouço crítico para o presente trabalho, aparecem
nas décadas de 1930, com o supracitado estudo de Lúcia Miguel-Pereira;
cinquenta, com a publicação de O negro na Literatura Brasileira, de Raymond S.
Sayers (1958); sessenta, com os estudos O Otelo brasileiro de Machado de Assis,
de Helen Caldwell (1960) e Realidade e ilusão em Machado de Assis, de José
Aderaldo Castello (1969); setenta, com Machado de Assis: a pirâmide e o
12

trapézio, de Raymundo Faoro (1974) e Ao vencedor as batatas, de Roberto


Schwarz (1977); oitenta, com Machado de Assis: ficção e história, de John
Gledson (1986) e “Um caso para o leitor pensar”, de Regina Zilberman (1989);
noventa, Um mestre na periferia do capitalismo, de Roberto Schwarz (1990) e
Machado de Assis: o enigma do olhar, de Alfredo Bosi (1999); e, por fim, dois
mil, Machado de Assis: ficção e utopia, de Massaud Moisés (2001); “Querer,
poder, precisar: „O caso da vara‟”, de Alcides Villaça (2006) e Por um novo
Machado de Assis: ensaios, de John Gledson (2006).
Nossa perspectiva buscará demonstrar como o problema foi abordado, de
ponto de vista estético, por Machado de Assis, através dos seguintes contos:
Virginius (1864), Mariana (1871), O caso da vara (1899), Pai contra mãe (1906),
retirados da antologia realizada por John Gledson (2001)2 e Encher tempo (1876),
obtido de uma coletânea realizada pela Editora Mérito, em 1962. A ordenação
cronológica de tais contos, pelas datas nas quais foram publicados, além de ter por
objetivo contextualizá-los historicamente, pretende, também, verificar as possíveis
mudanças na abordagem machadiana acerca do tema, bem como a postura do
escritor Realista.
A análise de tais contos teve, além do objetivo supracitado – o de abordar o
tema da escravidão –, também o de complementar o entendimento de como a
ironia estabelece um parâmetro crítico, por parte do escritor, sobre a escravidão,
na construção das personagens negras principais das referidas obras, a saber:
Julião e Elisa, que, em “Virginius”, ao mesmo tempo que simbolizam a inversão
do tratamento dado ao cativo, acabam por ser vítimas da violência senhorial;
Mariana, do conto homônimo, que, apesar de ser tida como “igual” às suas sinhás
brancas, acaba, diante da impossibilidade de concretizar o amor que sentia pelo
seu sinhozinho, cometendo suicídio; Tia Mônica, de “Encher tempo”, que, ao
mesmo tempo que é livre e tida, de forma análoga à Mariana, como membro da
família senhorial, é também vítima desta; Lucrécia , em “O caso da vara”, que é
castigada por Damião, jovem branco, que prometeu protegê-la da fúria de Sinhá
Rita; Arminda, de “Pai contra mãe”, que foge, grávida, da casa na qual trabalha, é
capturada por Cândido Neves, homem que, apesar de branco, também pertence à
uma classe social inferior, e, para salvar o filho da Roda dos Enjeitados, não

2
GLEDSON, John. Machado de Assis: Contos, uma antologia.
13

hesita em entregar a escrava ao seu senhor, fazendo-a abortar e, com isso, puni-la
pelo “delito” cometido.
Para embasar teoricamente os estudos sobre ironia, serão aqui utilizadas as
contribuições de Kierkegaard (1991), D. C. Mueke (1995), Berel Lang (1996) e
Beth Brait (2008), que privilegiaram aspecto histórico, fazendo um percurso sobre
as mudanças de conceito e de categorização pelas quais passou a ironia, como, no
caso particular de Lang, que enfatiza uma determinada tipologia, a ironia
romântica.
Para efeito de organização de nossa discussão, o trabalho será dividido em
três capítulos. O primeiro estabelecerá uma correlação entre o ambiente sócio-
cultural brasileiro e a literatura de Machado de Assis, especialmente no que se
refere ao contexto escravagista. Além desses aspectos, também serão considerados
outros antecedentes literários sobre as representações do negro, principalmente na
Literatura Brasileira.
O segundo capítulo objetiva mapear um estudo sobre a Ironia como recurso
estilístico e suas utilizações através do discurso literário, em alguns momentos,
desde a Antiguidade Clássica até o Romantismo, concluindo com as abordagens
sobre a sua retomada por Machado de Assis.
Como instrumentos acessórios, na nossa discussão sobre ironia, serão
retomados alguns estudos críticos sobre a obra machadiana, entre eles os de Lúcia
Miguel Pereira (1936), Raymond S. Sayers (1958), Helen Caldwell (1960), José
Aderaldo Castello (1969), Raymundo Faoro (1974), Roberto Schwarz (1977,
1990), John Gledson (1986, 2006), Regina Zilberman (1989), Alfredo Bosi
(1999), Massaud Moisés (2001) e Alcides Villaça (2006).
Embora o objetivo principal dessa discussão seja, predominantemente, os
contos machadianos, caberá, conforme foi anteriormente citado, contextualizar a
determinação de ironia, relacionada às seguintes obras: O conceito de ironia
constantemente referido a Sócrates (Kierkegaard), Ironia e irônico (D. C.
Muecke), “The limits of irony” (Berel Lang) e Ironia em perspectiva polifônica
(Beth Brait), nas quais são contextualizadas as principais mudanças pelas quais o
conceito e a classificação de ironia passaram, desde o período da Antiguidade
Clássica, perpassando pelo século XIX – ao qual será dada uma particular
atenção, uma vez que, se a ironia romântica, categoria aqui a ser trabalhada,
14

encontra-se representada nas obras machadianas, encontra-se inserida nesse


contexto –, até chegar à atualidade.
Finalmente, através do terceiro e último capítulo, procuraremos demonstrar
como o conceito de Ironia alcança, nos contos machadianos, plena relevância e
distinção na representação crítica da sociedade brasileira, especialmente a carioca,
frente ao sistema escravocrata, que marginalizou um contingente profundamente
significativo da população brasileira.
15

1. Machado de Assis e as representações literárias da escravidão.


Machado de Assis, ao longo de sua trajetória literária, foi um escritor que
“dialogou” com os mais diversos autores, a exemplo de Laurence Sterne, William
Shakespeare – conforme bem demonstra Helen Caldwell, em O Otelo brasileiro
de Machado de Assis –, Guy de Maupassant, Tchekhov, como também com
outros intertextos, a exemplo da Bíblia, conforme se observa em contos, como
“Na arca”, “Adão e Eva” e no romance “Esaú e Jacó”. Nestes “diálogos”, o
escritor Realista abordou os mais diversos temas, a exemplo do adultério, política,
ciência, relações sociais e, também, a escravidão, assunto cuja representação se
centrará a discussão deste capítulo.
Os efeitos da escravidão sobre os escritos machadianos são representados
através de sutilezas estilísticas, como é o caso da ironia, figura que norteia as mais
diversas ações nas histórias sobre escravos e negros livres, que emergem como
personagens secundárias, porém não menos importantes.
A representação do negro, na literatura brasileira, é introduzida antes do
século XIX, antecipando, assim, a produção machadiana. Antes, porém, de
correlacionar as narrativas do escritor Realista ao problema da escravidão, faz-se
necessário entender, em linhas gerais, alguns aspectos do complexo processo
escravocrata, especialmente em relação à cidade do Rio de Janeiro, no século
XIX, época em que Machado viveu. Para tanto, fazem-se necessárias algumas
colocações sobre os africanos e a diáspora. A diáspora africana, no Brasil
escravagista, refletiu as fissuras daquele território, sendo fruto de um regime
feudal e de guerras entre povos inimigos naquele continente, como também, de
interesses econômicos de nações europeias.
O conceito de diáspora, segundo Stuart Hall (2009, p. 32-3), está baseado
num processo de construção binária, no qual os pares exclusão / construção,
dentro / fora se encontram subordinados sempre à identidade de um “outro”, de
um indivíduo distinto.3
Os países envolvidos no tráfico negreiro atuavam de maneira distinta, como
enfatiza Joseph C. Miller (2009, p.44):

3
“O conceito de diáspora se apoia sobre uma concepção binária de diferença. Está fundado
sobre a construção de uma fronteira de exclusão e depende da construção de um „Outro‟ e de uma
oposição rígida entre o dentro e o fora (...)”. (HALL, 2009, p. 32-3).
16

(...) Escravistas portugueses e brasileiros não competiam com os europeus do


norte, ao longo da costa de Loango, no século XVIII, mas os dinâmicos
comerciantes do Rio se aproveitavam das interrupções dos embarques
franceses e britânicos, durante as guerras européias da década de 1790. Por
essa razão, começaram a enviar „cabindas‟ [denominação esta dada aos
negros que viviam na Costa Norte da Angola] para o Brasil após 1800,
continuando até a década de 1840 (...).

Se as estratégias de atuação variavam entre as nações envolvidas, também


variavam em um mesmo país. No caso do Brasil, por exemplo, os diferentes ciclos
econômicos estiveram atrelados às heterogeneidades nacionais dos escravos
traficados, conforme assinala o trecho a seguir:

Distinguem-se habitualmente quatro grandes ciclos de importação de


escravos para o Brasil:
(i) no século XVI, o ciclo da Guiné, sendo os escravos principalmente
sudaneses, originários da África situada ao norte do equador;
(ii) no século XVII, o ciclo do Congo e de Angola, que trouxe ao Brasil
negros da zona banta;
(iii) no século XVIII, o ciclo da costa de Mina, que atingiu de novo negros
sudaneses. A partir da metade do século XVIII, esse ciclo desdobrar-se-á
num ciclo propriamente baiano: o ciclo da baía do Benim;
(iv) no século XIX, os escravos vieram um pouco de cada lugar, mas com
predominância de negros vindos de Angola e de Moçambique.
Essa repartição em ciclos só é válida em suas grandes linhas, porque o fim de
um ciclo não estanca totalmente a chegada de homens negros vindos da
região do ciclo precedente e, ademais, a metrópole portuguesa teve sempre a
política de misturar as diferentes etnias para impedir a concentração de
africanos de mesma origem numa mesma região.
As razões econômicas ligadas a esses ciclos de importação são: nos séculos
XVI e XVII, a cultura da cana de açúcar e do fumo; no século XVIII, a
exploração das minas de ouro e de diamantes, mas também a cultura do
algodão, do arroz e a colheita de especiarias; no século XIX, a cultura do
café. (Vianna Filho, L. 1946; Mattoso, 1979 apud Bonvini, 2008, p.26-7)

Do exposto, depreende-se que as diferentes origens culturais dos negros


vindos para o Brasil poderiam ter influenciado as diversas representações
literárias destes, como príncipes, soldados, mulheres, órfãos, feiticeiros, etc. Não
foi, entretanto, o que ocorreu, uma vez que o negro passou a ser visto sob uma
perspectiva inteiramente eurocêntrica e racista, criando diversos estereótipos
negativos, popularizados através da Literatura, gerando uma imagem inteiramente
maniqueísta, como explica Franz Fanon (2008, p. 160):

(...) Na Europa, o Mal é representado pelo negro. (...) O carrasco é o homem


negro, Satã é negro, fala-se de trevas, quando se é sujo, se é negro (...).
Ficaríamos surpresos se nos déssemos ao trabalho de reunir um grande
número de expressões que fazem do negro o pecado. Na Europa, o preto, seja
17

concreta, seja simbolicamente, representa o lado ruim da personalidade.


Enquanto não compreendermos esta preposição, estaremos condenados a
falar em vão do „problema negro‟. O negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a
noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais, enegrecer a reputação de
alguém; e, do outro lado: o olhar claro da inocência, a pomba branca da paz,
a luz feérica, paradisíaca. Uma magnífica criança loura, quanta paz nessa
expressão, quanta alegria e, principalmente, quanto esperança! Nada de
comparável com uma magnífica criança negra, algo absolutamente insólito.
(...) Na Europa, isto é, em todos os países civilizados e civilizadores, o negro
simboliza o pecado. O arquétipo dos valores inferiores é representado pelo
negro.

O processo crescente de despersonalização, que passou a atribuir, ao negro,


em geral, independentemente da sua posição social, os aspectos acima citados e
que foram reforçados pela escravidão negra, a ponto de gerar, no Brasil, um
antagonismo entre os próprios negros, que, por sua vez, já traziam as diferenças
tribais existentes no continente de origem. Apesar da separação entre os escravos
pertencentes a uma mesma etnia e, muitas vezes, devido à convivência forçada
entre aqueles pertencentes a grupos distintos, no Brasil, foram estabelecidos laços
de solidariedade, expressos pelas comunidades quilombolas, que reuniam grupos
de origens linguísticas e culturais diferentes.
Como exemplo dessa realidade, Robert W. Slenes (2009, p. 196-7) cita as
afinidades existentes entre os escravos, no Brasil, provenientes de vários países da
África Central, especialmente para o Rio de Janeiro, enfatizando que, apesar de
uma grande parte dos cativos não pertencerem ao grupo linguístico banto, isso não
foi um impedimento para a organização e entendimento entre os mesmos, uma
vez que foi estabelecida uma espécie de “gramática” afim, centrada no conceito de
linhagem (matriarcal / patriarcal), que era um aspecto em comum a todos os
diferentes povos escravizados.
Os fatores apresentados por Slenes, sobretudo a inter-relação entre escravos
de diferentes origens culturais, provavelmente reforçaram, ainda mais, os elos de
resistência à escravidão, expressos pelos suicídios, pelas fugas em massas e
assassinatos dos seus senhores. Tais formas de resistência também estarão
presentes em três das cinco narrativas machadianas, aqui em estudo – Virginius
(1864), Mariana (1871) e Pai contra mãe (1906) –: em Virginius, Julião, para
salvar a honra da filha, Elisa, a assassina; Mariana, personagem do conto
homônimo, diante da impossibilidade de concretizar a paixão por Coutinho, seu
senhor, comete suicídio; Arminda, em Pai contra mãe, foge, grávida, da casa de
seus senhores.
18

Além dos contos citados terem, como aspecto em comum, a reação das
personagens negras à opressão sofrida, o que se observa é que Machado de Assis
enfoca o universo da escravidão urbana, mostrando que a liberdade “usufruída”
pelos cativos – como assinalam Manolo Floretino, Horacio Gutierrez e Ida
Lewkowicz (2008, p. 36) – pode ser questionada, dado que, mesmo sendo mais
“independentes” que os escravos rurais, os urbanos também não estavam isentos
da opressão senhorial.
Kátia Mattoso, na obra Ser escravo no Brasil, aprofunda essa relação de
dependência entre os escravos urbanos e seus senhores, e afirma:

Uma coisa é certa: o escravo urbano nem sempre é tão especializado em seu
trabalho quanto o quer a tradição: o escravo doméstico transforma-se
facilmente em escravo „ganha-pão‟ à vontade de seu senhor, em escravo que
vende fora de casa sua engenhosidade, sua mercadoria, a força de seus
braços. O escravo da cidade é eclético. Alguns deles, evidentemente,
adquiriram na África, ou com o seu senhor, um ofício determinado
(cozinheiro, cocheiro, bordadeira, costureira, calafate, pedreiro, caldeireiro,
carpinteiro, etc.). Estes vendem sua competência, se o mercado a requer.
Outro venderá da mesma maneira sua habilidade em levar o cliente a comprar
o que lhe queira vender (...). (MATTOSO, 1988, p. 140).

Zélia Monteiro Bora (2008, p. 97), no artigo “Food and religion: women and
the Afro-Brazilian identity in the nineteenth century”, aborda o universo da
escravidão urbana, destacando o papel desempenhado pelas mulheres, no tocante
à preparação de comidas que eram utilizadas para fins religiosos:

(…) Desde o final do século dezenove, por meio do Candomblé, a


participação das mulheres Afro-Brasileiras em rituais, e no controle na
produção de comida nas cozinhas de seus senhores, enquanto escravas e
libertas, foi um papel mediador essencial na organização de várias formas de
rituais [,] enquanto expressão de uma coletividade [,] que tentou preservar a
memória de seus ancestrais, fragmentada pela experiência da escravidão. O
papel das mulheres na preparação da comida foi útil [,] no sentido de invocar
e louvar seus deuses e espíritos.4
.

4
Tradução livre da seguinte citação: “(…) Since the late nineteenth century, through
Candomblé, African-Brazilian women‟s participation in the rituals, and their control over food
production in the kitchens of their masters as slaves and as free women, has been an essential
mediating role in the organization of several forms of rituals as an expression of collective
attempts to preserve the ancestors‟ memories, fragmented by the experience of slavery. The role of
women in food preparation has been instrumental in order to invoke and to praise the deities and
spirits.”
19

Ainda nesse texto, a autora citada enfatiza que nem todas as escravas ou
mulheres livres trabalhavam em atividades relacionadas às práticas religiosas;
muitas, não tinham a mesma sorte e acabavam sendo exploradas de outras formas,
a exemplo da prostituição. Essa forma de exploração é ressaltada, também, por
Julio José Chiavenato, em O negro no Brasil: da senzala à Guerra do Paraguai
(1980), à qual acrescenta a atividade das negras como vendedoras ambulantes:

(...) As negras ganhadeiras, quando não se empregavam na prostituição, eram


enviadas às ruas para vender doces, comidas etc. A origem das „baianas‟
vendendo acarajé e outras iguarias está nas negras ganhadeiras, que chegaram
a ser importante fonte de renda suplementar da aristocracia urbana do século
XIX. (CHIAVENATO, 1980, p. 138-9).

As atividades desempenhadas pelo escravo urbano estão, também, presentes


nos cinco contos machadianos: em Virginius (1864), enquanto Julião trabalha nos
serviços braçais da casa de Pio, ou “Pai de todos”, cabe a Elisa a organização, por
meio das prendas domésticas (lavar, passar, cozinhar), do pequeno casebre no
qual vive com o pai; já Mariana, personagem do conto de mesmo nome, e Tia
Mônica, de Encher tempo (1876), são casos atípicos, uma vez que são tidas como
“crias” das casas nas quais moram e, por isso, não são mostrados, nas narrativas,
momentos em que estas personagens desempenham alguma espécie de trabalho;
Lucrécia, d‟ O caso da vara (1899), é aprendiz de costura de Sinhá Rita, enquanto
Arminda, de Pai contra mãe (1906), trabalha em uma casa, possivelmente nas
funções relacionadas às prendas domésticas, de forma semelhante a Elisa.
Percebe-se que as atividades praticadas pelas personagens machadianas, sobretudo
as mulheres, estão marcadas pela autoridade branca, fato que reflete a organização
social e de gênero da época.
Observa-se, pois, o abismo existente nas tarefas delegadas a esses escravos:
enquanto, aos homens, cabia a exploração, sobretudo, da força física, às mulheres,
eram destinadas atividades que envolviam desde as prendas domésticas, como
exemplo da culinária, ou o abuso e a exploração sexual, a exemplo da
prostituição, papéis femininos estes que pouco ou nada se diferenciavam dos
exercidos pelas negras nas casas grandes, onde trabalhavam como escravas
domésticas e amas de leite.
20

No contexto rural, o trabalho do escravo se diferenciava um pouco do


praticado na cidade: enquanto no contexto urbano, conforme foi visto, os cativos
tinham a possibilidade de trabalhar tanto nas casas de seus senhores, quanto nas
ruas, nas mais diversas ocupações, no mundo rural, a maioria dos escravos
trabalhava exclusivamente nas terras pertencentes a seus proprietários, produzindo
uma economia de subsistência, sendo privilégio de poucos vendê-la e
comercializá-la nas cidades, conforme afirma Mattoso, em Ser escravo no Brasil:
(...) O negro do campo raramente vende fora da fazenda os produtos do
pequeno pedaço de terra que lhe permitem explorar e que servem, antes de
tudo, a complementar suas rações diárias. Ele produz para uma economia de
subsistência e não para uma economia de mercado (...) Outros escravos
agrícolas – é verdade que uma insignificante minoria – tiveram oportunidade
de serem encarregados da comercialização dos produtos que cultivam na
plantação: estes pertencem, ao mesmo tempo, à cidade e ao campo; cultivam
a terra, mas vendem sua produção na cidade, o que é considerado muito
constrangedor e degradante para os brancos, mas dá ao escravo a
possibilidade de ganhar algum dinheiro seu. (...) (MATTOSO, 1988, p. 168-
9).

Partindo para o contexto histórico do século XIX, particularmente durante o


Segundo Reinado, observa-se que o Rio de Janeiro era o principal centro do país
e, consequentemente, cenário dos acontecimentos políticos e econômicos mais
importantes. Era ainda uma das cidades – senão a cidade – com maior número de
escravos, que eram tanto domésticos, quanto “ao ganho”, categoria esta que
incluía os vendedores, comerciantes e prostitutas, conforme salientaram as
citações anteriormente assinaladas.
Para garantir a continuidade do sistema escravocrata, a elite brasileira
propagava a ideia do cativeiro como “habitat natural” dos negros, atribuindo-lhe a
condição de objeto, privando-o do seu caráter humano. Enfatiza-se, também, o
papel dos postulados europeus, dentre os quais o evolucionismo social, o
positivismo, o naturalismo e o social-darwinismo (este último, sendo entendido
como a aplicação do darwinismo na organização das sociedades, nas quais apenas
as mais adaptadas às mudanças sofridas sobreviveriam), amplamente divulgados e
aceitos no Brasil, a partir da década de 1870, como analisa Lilia Moritz Schwarz
(2008, p. 28):

(...) esse período coincide com a emergência de uma nova elite profissional
que já incorporara os princípios liberais à sua retórica e passava a adotar um
discurso científico evolucionista como modelo de análise social. Largamente
utilizado pela política imperialista européia, esse tipo de discurso
evolucionista e determinista penetra no Brasil a partir dos anos [18] 70 como
21

um novo argumento para explicar as diferenças internas. Adotando uma


espécie de „imperialismo interno‟, o país passava de objeto a sujeito das
explicações, ao mesmo tempo que se faziam das diferenças sociais variações
sociais. Os mesmos modelos que explicavam o atraso brasileiro em relação
ao mundo ocidental passavam a justificar novas formas de inferioridade.
Negros, africanos, trabalhadores, escravos e ex-escravos – „classes perigosas‟
a partir de então – nas palavras de Silvio Romero transformavam-se em
„objetos de sciencia‟ (prefácio a Rodrigues 1933/88). Era a partir da ciência
que se reconheciam diferenças e se determinavam inferioridades (...).

Como se observa, a escravidão dá origem a um segmento de


marginalizados, tidos, como ressalta Schwarz, como “classes perigosas”, para
designar os pertencentes a esse grupo de pessoas, que se caracterizariam por
serem indivíduos fora de qualquer acordo, no âmbito da cidadania. Serão
exatamente esses sujeitos que estarão presentes nas narrativas machadianas, em
inúmeras situações, especialmente no ambiente doméstico, como se encontram
representados, através dos contos.
O atributo mais comum, que, provavelmente, ajuda a correlacionar a visão
histórica à literária é o da despossessão, que cerca os indivíduos, como se verifica
no tocante ao aspecto financeiro. Apesar da miséria que gerava aos cativos, o
sistema escravocrata brasileiro produziu grande riqueza para aqueles que
exploravam a mão-de-obra africana, tendo, do seu princípio até o final, o apoio de
várias nações, particularmente da inglesa, cujos interesses, na relação com Brasil,
estavam ligados à expansão comercial e investimentos industriais, conforme
assinala Myriam Ellis et al., em O Brasil monárquico, v. 6: declínio e queda do
Império (2004, p. 167).
A campanha empreendida pela Inglaterra para a abolição do tráfico negreiro
brasileiro foi constante. Primeiramente, em 1826, um tratado assinado pelos dois
países tentou pôr fim à escravidão, entrando em vigência em 1827, perdurando
por três anos. Como consequência desse acordo, em 1831, foi promulgada uma lei
que visava punir os traficantes e libertar os escravos; os resultados, entretanto,
foram infrutíferos, de acordo com Boris Fausto (1999, p. 194), em História do
Brasil:

(...)
Os traficantes ainda não eram malvistos nas camadas dominantes e se
beneficiaram também das reformas descentralizadoras, realizadas pela
Regência. Os júris locais, controlados pelos grandes proprietários, absolviam
os poucos acusados que iam a julgamento. A lei de 1831 foi considerada uma
lei „para inglês ver‟(...).
22

Esse contexto histórico, no qual a escravidão continua a existir, mesmo


sendo o tráfico proibido, encontra-se representado nos contos machadianos aqui
em análise: embora estes sejam publicados entre os anos de 1864 e 1906, seus
enredos estão centrados na década de 1850, portanto, quase vinte anos após a
promulgação da lei de 1831. Em todas as narrativas – Virginius (1864), Mariana
(1871), Encher tempo (1876), O caso da vara (1899) e Pai contra mãe (1906) –,
percebe-se que o tratamento dado aos cativos é bastante cruel, embora haja
diferentes graus. A situação mais irônica é entre aqueles que são considerados
como “crias” das casas onde moram, a exemplo de Mariana e Tia Mônica, não se
observando, com exceção de Virginius, a punição daqueles que maltratam seus
cativos. Machado de Assis demonstra, dessa forma, sua postura crítica, ainda que
“velada”, em sua obra, a respeito da questão.
É interessante a postura de “justiceira”, adotada pela Inglaterra,
principalmente se for considerado o fato de que tal atitude só veio depois da
própria Inglaterra abolir, no início do século XIX, a escravidão em suas colônias,
fato observado por Emília Viotti da Costa (2008, p. 24), na obra A abolição:

(...) Foram as pressões internacionais que levaram finalmente à aprovação da


Lei de 1831, que proibiu o tráfico de escravos. A pressão veio da Inglaterra
que, depois que o Parlamento inglês abolira o tráfico de escravos em suas
colônias (1807), tornou-se paladina da emancipação e passou a perseguir os
negreiros em alto-mar (...).

A pressão inglesa ao tráfico de escravos, em terras brasileiras, reflete um


longo processo de dependência: a Inglaterra havia ajudado, em 1808, a família
real portuguesa a se instalar no Brasil, recebendo, em troca, de D. João VI,
vantagens comerciais, que, posteriormente, estreitaram mais ainda os laços entre
os dois países, que se tornaram mais intensos após a intervenção da Inglaterra,
junto a Portugal, para o reconhecimento da Independência do Brasil, fatos estes
assinalados por Costa (2008, p. 25). Todo esse processo tornou o Brasil
extremamente dependente da Inglaterra, e proporcionou a esta, mais tarde,
condições para intervir na política do país sul-americano.
No contexto brasileiro, a lei de 1831 foi a primeira das tentativas de findar
com a escravidão, sendo sucedida pela Lei Eusébio de Queiroz (1850), Lei do
Ventre Livre (1871), Lei dos Sexagenários (1885), até ser promulgada a Lei
Áurea (1888), que aboliu, de fato e integralmente, os cativos. Entre os anos de
23

1831 e 1885, o que se observou foi o crescimento do movimento abolicionista,


cuja origem data de meados do século XIX, segundo Costa (2008, p. 39), como,
ainda da literatura que representará o negro, não só nas obras machadianas, como
de outros escritores que lhe foram contemporâneos, a exemplo de José do
Patrocínio e Luís Gama.
Percebe-se que, no plano político, a abolição no Brasil foi um processo
gradativo, fato que irá interferir na representação do negro, na Literatura local,
uma vez que as personagens escravas ganharão mais espaço, nas obras da época,
ainda que sob uma visão permeada por estereótipos. Para aprofundar essa
discussão, bem como ver como se deu esse processo, será feita uma explanação,
no tópico que se segue.

1.1. O negro e a literatura brasileira


Conforme afirma o estudo O negro na literatura brasileira, de Raymond S.
Sayers, a literatura brasileira, desde seus primórdios até a época aqui em estudo, o
século XIX, pouco enfatizou a figura do negro. Nesse último período, ainda de
acordo com o estudioso, o africano passa a ser uma figura de destaque, na
Literatura, dado o crescimento do movimento abolicionista: provavelmente,
motivado por essa contingência histórica, Machado de Assis irá publicar seus
contos a respeito do tema, e, conforme será visto, não sob um viés abolicionista e
panfletário, mas num tom irônico e crítico.
Sayers (1958, p. 60-1) observa que, inicialmente, nos idos do século XVII,
os escravos eram citados apenas como bens móveis, em documentos, muito
embora tenham existido escritores, a exemplo dos padres José de Anchieta e
Antonio Vieira, que condenavam, por meio de seus escritos literários, as
condições às quais tais trabalhadores eram submetidos.
Na mesma época dos escritos de José de Anchieta e Antonio Vieira,
Gregório de Matos, em seus poemas, vai representar a figura do escravo, mas não
sob a perspectiva crítica adotada pelos escritores religiosos, utilizando-se, na
maioria das vezes, da sátira, ao opor homens e mulheres brancos aos negros,
segundo Jerry Santos Guimarães e Marcelo Moreira (2007, p. 11):

(...) os “negros de África”, enquanto tipo social, são representados na sátira


seiscentista atribuída a Gregório de Matos e Guerra em oposição ao “homem
bom” da cidade do Salvador. Temos, pois, numa situação extrema: o homem,
branco, católico, discreto, fidalgo, livre e honesto. Em oposição a ele, e na
24

base da hierarquia política, a mulher, negra, herege, feiticeira, puta, africana,


escrava e desonesta. Assim é a ordem natural das coisas, contra a qual não
convém se levantar, sob pena de desestabilizar o corpo místico social e
atentar contra Deus. É com vistas a tornar evidentes e corrigir tais
desrespeitos contra naturam que estes e outros tipos sociais são satirizados.

Contrapondo-se à visão de Gregório de Matos, Machado de Assis, em seus


escritos, em particular nos contos aqui em análise, representará os escravos como
vítimas de um sistema opressivo. No tocante às mulheres, que aparecem em todas
as narrativas aqui em estudo – Virginius, Mariana, Encher tempo, O caso da vara
e Pai contra mãe –, é preciso enfatizar que o processo de vitimização será ainda
maior, uma vez que será acompanhado, a exceção de Encher tempo, de cenas que
retratam a violência sofrida, incluindo desde castigos físicos até a morte.
O século seguinte às publicações de José de Anchieta, Antonio Vieira e
Gregório de Matos, o XVIII, no Brasil, corresponderá ao Arcadismo, movimento
cujos escritores, embora tenham sido claramente influenciados pelos ideais
Iluministas - dentre os quais estava incluída a abolição da escravatura – não
incluíram, em suas ações, especialmente, aquelas voltadas para um suposto
ideário nacional, a incorporação, em sua bandeira, do fim do cativeiro negro,
especialmente em insurreições como a Inconfidência Mineira. Esse aspecto só
será amplamente discutido através da incorporação temática em obras de poetas,
como Castro Alves, Luís Gama, Fagundes Varela e Tobias Barreto. Esse aparente
paradoxo, em relação aos escritores árcades, pode estar relacionado ao grau de
comprometimento dos seus membros com a política portuguesa, segundo o que
afirma Costa (2008, p. 14-5).
A “apropriação” das ideias Iluministas não ficou restrita, apenas, ao
contexto da Inconfidência Mineira. O estudo de Costa (2008, p. 15) destaca que,
em 1798, na Bahia,

(...) mulatos e pretos livres e escravos foram condenados (...) por defenderem
„os abomináveis princípios franceses‟ e por tramarem contra os poderes
constituídos. Os revolucionários da conjura baiana (como muitos outros
revolucionários daí por diante) não tinham lido os autores da Ilustração:
Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Raynal, que tanto entusiasmavam os
intelectuais da época, mas tinham entendido, à sua maneira, a mensagem de
liberdade e igualdade que a nova ideologia revolucionária continha (...).

Ao incorporarem os princípios da Revolução Francesa, mesmo que sem o


profundo conhecimento dos mesmos, os negros e mulatos da Bahia, no século
25

XVIII, afirmam uma postura de resistência, diante do sistema escravagista, atitude


que se tornará recorrente, principalmente no século posterior, em vários outros
Estados brasileiros. No século XVIII, entretanto, o que se observa, ainda, é o forte
domínio do sistema escravagista, o que implicará na interferência do campo
político no literário e, com isso, a representação do negro ficará comprometida.
No século XIX, o negro, na Literatura Brasileira, segundo Sayers (1958, p.
161-2), “deixa (...) de ser uma abstração para tornar-se pessoa”, uma vez que os
personagens tipos serão ampliados, bem como as situações nas quais estes estarão
envolvidos. Dentre os fatores que permitem tal mudança estão a emergência do
nacionalismo literário, a crescente importância que o negro passou a ter, dentro do
gradativo processo de Abolição, as pressões de países como a Inglaterra, para o
fim do cativeiro, a emergência do ideário abolicionista, caracterizado por uma
visão mais humanizada do negro, além do aparecimento de autores que lançaram
novos olhares a respeito da condição do cativo, a exemplo de José da Natividade
Saldanha, escritor brasileiro (1796-1830), cuja obra vai exaltar a figura de
Henrique Dias, capitão negro que combateu os holandeses:

(...)
Provavelmente, como o refere a tradição, o „mulato‟ Saldanha escreveu uma
série de odes aos heróis das guerras contra os holandeses, uma das quais
dedicadas a Henrique Dias. Contudo, nessa ode à memória do grande capitão
negro, há apenas duas referências à sua ascendência africana, nela não
havendo maior vivência pessoal do que há na escrita ao chefe português,
Vidal de Negreiros, ou ao herói índio, Camarão. De fato, Saldanha dá o nome
de Cipião tanto para Camarão quanto para Henrique Dias, e, se compara este
último a Aquiles, compara o primeiro a Pompeu (...). (SAYERS, 1958, p.
142).

Não apenas a Literatura de Machado de Assis aborda a questão do negro,


como também a Crítica, sendo Sílvio Romero um dos estudiosos que irá se
pronunciar a respeito. Segundo Maria Elizabeth Chaves de Mello, no artigo
“Sílvio Romero vs. Machado de Assis: Crítica Literária vs. Literatura Crítica”,
apesar do crítico sergipano ter assimilado o discurso determinista, segundo o qual
o homem era um produto do meio, da raça e do momento (argumento que usará,
enfaticamente, para atacar a obra machadiana, bem como o escritor Realista), não
deixou de reconhecer a importância do africano:

(...)
Podemos dizer que Sílvio Romero é um dos primeiros a destacar a
importância do elemento africano, quando este era praticamente ignorado
26

pela intelectualidade nacional. O que quer que notardes de diverso entre o


brasileiro e o europeu, atribui-o em sua máxima parte ao preto (MELLO,
2008, p. 184 apud ROMERO, 1978, p. 3)

É ainda nesse momento, segundo Sayers (1958, p. 205-6), que Sílvio


Romero publica Cantos do fim do século (1878), uma antologia de poemas, cuja
introdução e conclusão merecem algumas considerações. Na introdução do livro,
Sílvio Romero faz uma ampla discussão sobre a poesia, particularmente a
Romântica, criticando a permanência de traços desta na Literatura da época, ao
afirmar que “(...) é certo que as ironias de Byron, e os prazeres de Lamartine há
muito se acham desacreditados” (ROMERO, 1878, p. 727), bem como as
influências de certas correntes de pensamento, a exemplo do positivismo e do
socialismo na poesia. Ao abordar a poesia brasileira da época, destaca a falta de
técnica que esta sofria, uma vez, que na sua opinião, “(...) não somos um povo de
alta cultura, não porque nos faltassem frases, que nos sobram; mas por faltar-nos
sciencia; não por falharem os trovadores, mas porque não se encontram os
artistas” (ROMERO, 1878, p. XV ). Atribui, assim, os eventuais problemas à
influência da poesia didática – da qual destaca como representantes e
“influenciadores” Shakespeare e Schiller –, da ciência e religião; por outro lado,
enaltece a poesia que classifica como “indômita”, que se caracterizaria pela
presença do riso, do delírio, tendo como exemplos autores como Ésquilo e Dante.
Ao destacar o período que compreende os anos de 1863 a 1869, Sílvio
Romero compara dois autores, Tobias Barreto e Castro Alves, atribuindo, ao
primeiro, a introdução do estilo literário de Victor Hugo, no Brasil, e
caracterizando o segundo como “(...) um homem de imaginação mais que de
sentimento. – Exagera o estilo” (ROMERO, 1878, p. 237). Após tecer outras
considerações acerca da poesia brasileira da época, Sílvio Romero enumera alguns
de seus artigos, dentre os quais, serão aqui destacados dois:
(...)
3.0 A Poesia das Falenas – na Crença de 30 de Maio do mesmo ano [1870].
Nesta crítica ao livro do Sr. Machado de Assis eram combatidos o lirismo
subjetivista e o humorismo pretensioso.
4.0 A Poesia das Espumas Flutuantes. A crítica ao desditoso Castro Alves ,
então ainda vivo, ataca sobretudo as imitações servis a Victor Hugo feitas
pelo poeta. No Americano do Recife em Setembro de 1870. (ROMERO,
1878, p. 242 ).

Apesar de ter reconhecido a importância do negro, conforme foi


anteriormente assinalado, a crítica de Sílvio Romero às obras de Machado de
27

Assis e Castro Alves, ainda demonstra o preconceito do crítico em relação aos


referidos escritores, posição que acaba por ser destoante do crescente movimento
abolicionista e da representação do cativo em voga.
No tocante a este último aspecto, é importante frisar que a representação do
negro deu-se a partir de estereótipos ou personagens tipos, como está denominado
em Sayers (1958, p. 161-2):
(...) Aos poucos a tipo padrões já encontrados na poesia e na prosa, como o
negro heróico, o negro fiel e o negro melancólico, acrescentam-se outros
tipos, entre os quais os mais importantes, sem dúvida, são os da bela mulata e
o da negra formosa. Além do mais, as situações de que o negro pode
participar aumentam consideravelmente (...)

Em meio a esse contexto, a obra estrangeira “A cabana do pai Tomás”


(Uncle Tom´s Cabin), escrita por Mistress Harriet Beecher Stowe, será de grande
importância, dado que serviu como estímulo aos escritores antiescravagistas a se
oporem, de forma mais veemente, à escravidão, além de ter dado maior destaque
ao negro, mostrando a crueldade dos feitores e o bom caráter dos escravos, fato
assinalado por Sayers (1958, p. 317), muito embora apresente uma perspectiva
que não era do negro, mas de uma branca ou de alguém que não tenha tido, sobre
si, o estigma da escravidão.
De modo distinto à autora de A cabana do pai Tomás, Machado de Assis, ao
representar a escravidão, o fará sob uma perspectiva crítica, dada sua condição de
afro-descendente, que, somada a uma aguda percepção dos acontecimentos
políticos da época, bem como o uso da ironia, proporcionará, às obras
machadianas, uma ampla abordagem do negro e do problema do cativeiro,
conforme se observará no tópico a seguir.

1.2. Machado de Assis e a escravidão.


Este tópico objetiva demonstrar a visão crítica de Machado de Assis,
representada através da Literatura, a respeito da escravidão brasileira. Para isso,
será estabelecida uma analogia entre a produção do escritor Realista e o contexto
histórico-social da época, o Segundo Reinado. A presente discussão é
introdutória, uma vez que é impossível esgotar o assunto, devido aos limites
propostos para esse trabalho.
Conforme será observado, a ironia é um recurso que está presente em todos
os contos aqui em análise – “Virginius” (1864), “Mariana” (1871), “Encher
tempo” (1876), “O caso da vara” (1899) e “Pai contra mãe” (1906) –,
28

relacionando-se com as várias situações da escravidão, sendo a maior delas a que


se refere ao sistema legal brasileiro e ao não-cumprimento das leis
antiescravagistas.
É importante ressaltar, ainda, que o estudo da representação literária da
escravidão, por Machado de Assis, não é um tema recente, registrando-se, entre as
obras pioneiras, a de Lúcia Miguel-Pereira, Machado de Assis: estudo crítico e
biográfico, cuja primeira edição data de 1936. Antes, contudo, de abordar a
respeito dos estudos feitos pela Crítica Literária, a respeito do assunto em questão,
faz-se necessário abordar alguns aspectos referentes à época na qual as narrativas,
anteriormente citadas, foram publicadas, dando especial ênfase às leis
abolicionistas que antecederam à promulgação da Lei Áurea, bem como à
inaplicabilidade das mesmas.
O Segundo Reinado, período no qual viveu Machado de Assis, será,
também, fortemente marcado pelos embates sobre o fim da escravidão, conforme
foi anteriormente assinalado. Foram promulgadas, nessa época, três leis de
combate à escravidão - a Eusébio de Queiroz (1850), a do Ventre Livre (1871) e a
dos Sexagenários (1885). Em meio a esse contexto, Machado de Assis será um
escritor que acompanhará as transformações em curso, analisando-as sob uma
perspectiva crítica e, sobretudo, irônica, fato que será visível na publicação de
suas obras da época, por meio das quais o escritor irá demonstrar que, apesar das
promulgações das leis, acima referidas, a não-aplicabilidade das mesmas manteve
as relações sociais existentes entre senhores e escravos, sobretudo no tocante ao
tratamento dado a estes últimos.
A esse respeito, uma das primeiras fontes que comenta sobre o problema
encontra-se no estudo realizado por Maria de Fátima Rodrigues das Neves, em
Documentos sobre a escravidão no Brasil (2001), livro no qual a autora
transcreve o texto das três leis que antecederam à Áurea, já anteriormente citadas.
A Lei Eusébio de Queiroz teve por objetivo promover o término do tráfico
negreiro, conforme assinalava em seu texto:

Art. 1.0 As embarcações brasileiras encontradas em qualquer parte, e as


estrangeiras encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros, ou mares
territoriais do Brasil, tendo a seu bordo escravos, cuja importação é proibida
pela Lei de 07.11. 1831, ou havendo-os desembarcado, serão apreendidas
pelas Autoridades, ou pelos navios de guerra brasileiros, e consideradas em
tentativa de importação de escravos.
(...)
29

Art. 3.0 São autores do crime de importação, ou de tentativa dessa importação


o dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação e o
sobrecarga. São cúmplices a equipagem, e os que coadjuvarem o
desembarque de escravos no território brasileiro, ou que concorrerem para os
ocultar ao conhecimento da autoridade, ou para os subtrair à apreensão no
mar, ou em ato de desembarque, sendo perseguido. (...) (NEVES, 2001, p.
84-6).

Embora tenha conseguido, por um lado, diminuir o número de escravos


traficados, conforme salientam os números apresentados por Myrian Ellis et al.
(2004, p. 169), a Eusébio de Queiroz não findou com o “abastecimento” de
cativos, que continuou a existir por meio de uma nova forma, o chamado tráfico
interprovincial, como será assinalado por Fausto (1999, p. 204).5
Machado de Assis irá representar essa realidade em suas obras,
particularmente no romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) – que é,
possivelmente, o grande trabalho machadiano a respeito da falibilidade na
execução da Eusébio de Queiroz –, no qual a personagem Cotrim se destaca por
ser sido um contrabandista de escravos:
(...)
Como [Cotrim] era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a
acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de
mandar com freqüência escravos ao calabouço, donde eles desciam a
escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os
fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos,
habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de
negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um
homem o que é puro efeito de relações sociais. (MACHADO DE ASSIS,
2007, p. 211, grifo desta citação).

Machado de Assis, no trecho acima, ironiza o fato de que o fim do tráfico


negreiro não extinguiu a escravidão, tampouco as suas práticas de punição aos
escravos, que permaneciam ainda subjugados aos senhores. Cotrim, dessa forma,
acaba por ser uma representação da pequena burguesia que, vendo no negro seu
principal meio de sobrevivência econômica, ainda o explorava à exaustão, dado
que não existiam punições para os senhores que maltratassem seus cativos, fato
enfatizado por Roberto Schwarz, em “Um mestre na periferia do capitalismo:
Machado de Assis” (2008, p. 36).

5
Antes da Eusébio de Queiroz, outros dois decretos foram promulgados: a lei de sete de
setembro, de 1831, e o acordo Bill Aberdeen, em 1845. A respeito dos mesmos, ver os estudos de
Costa (2008, p. 26-7) e Fausto (1999, p. 194-5).
30

A participação dos escravos na Guerra do Paraguai (1864 – 1870) fomentou


o movimento abolicionista já existente, somada à crise política de 1868. Tais
manifestações propiciaram condições para as primeiras discussões acerca da Lei
do Ventre Livre, conforme está destacado por Costa (2008, p. 49):

(...)
A participação de escravos na guerra forneceu novos temas aos que lutavam
pela sua emancipação. A campanha em favor da libertação dos escravos
recrudesceu. Grêmios, clubes, jornais, associações abolicionistas ou
emancipadoras foram organizadas nas principais cidades do país. As lojas
maçônicas passaram, por sua vez, a dar apoio a essas iniciativas. Em São
Paulo, um famoso negro descendente de escravos, Luiz Gama, organizava
uma campanha jurídica em favor da emancipação do escravo. Apoiando-se
na lei de 1831, passou a exigir a libertação de grande número de escravos a
quem defendeu nas cortes de Justiça, alegando que tinham entrado no país
depois daquela data e, portanto, não podiam ser mantidos no cativeiro. A
campanha organizada por Luiz Gama constituía uma ameaça aos
proprietários, pois um grande número de escravos nessa época tinha, de fato,
entrado no país depois de 1831 e seu cativeiro era de fato ilegal.
A década de 1870 inaugurava-se, portanto, em um clima de apreensão por
parte dos proprietários de escravos e renovado entusiasmado dos que lutavam
pela emancipação dos escravos. A crise política desencadeada pela queda do
Ministério Liberal, em 1868, agira como elemento catalítico. Os debates
travados na Câmara e pela imprensa em torno da Lei do Ventre Livre fizeram
da emancipação dos escravos uma questão nacional.

Promulgada em 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre teve por


objetivo libertar os filhos de mulheres escravas, ou ingênuos, como também
passaram a ser denominados. Tal liberdade, entretanto, estava condicionada à
vontade do senhor das escravas, conforme salienta o texto da lei, assim transcrito
em Neves (2001, p.87-8):
(...)
Art. 1.0 Os filhos de mulher escrava, que nascerem no Império desde a data
desta lei, serão considerados de condição livre.
Par. 1.0 Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos
senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a
idade de 8 anos completos.
Chegando o filho da escrava a esta idade o senhor da mãe terá a opção ou de
receber do Estado a indenização de 600$000 réis ou de utilizar-se do menor
até a idade de 21 anos completos.
No primeiro caso o Governo receberá o menor e lhe dará destino, em
conformidade da presente lei.
A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o
juro anual de 6% os quais se considerarão extintos no fim de 30 anos.
A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias a contar daquele em
que o menos chegar à idade de 8 anos e, se a não fizer então, ficará entendido
que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.
(...)
31

A Lei do Ventre Livre criou, entre os senhores de escravos, um impasse,


uma vez que nem todos reconheceram a necessidade de libertar os cativos recém-
nascidos. Diante dessa realidade, muitas escravas que engravidavam, temendo o
destino de seus filhos, praticavam o aborto, prática que, embora já existisse,
tornou-se, nesse contexto, mais intensa, de acordo com Chiavenato (1980, p. 133).
Machado de Assis, exatamente no mesmo ano de promulgação da Lei do
Ventre Livre, em 1871, escreveu um conto bastante simbólico, Mariana, no qual
aborda a história da personagem-título, uma jovem escrava, criada como “filha”
na casa de seus senhores e que se apaixona pelo filho destes, Coutinho. Diante da
impossibilidade de ser correspondida sentimentalmente e socialmente, uma vez
que Coutinho, além de estar hierarquicamente numa posição social superior, era,
também, noivo, Mariana, após uma série de fugas, suicida-se, atitude que se
configura como uma demonstração das incompatibilidades entre a sua situação
como “cria da casa” e a realidade de escrava, sendo esta última a que realmente
condizia com a visão apresentada pela família senhorial.
A década de 1880 será marcada pela promulgação de mais uma lei destinada
à libertação dos escravos: desta vez, os “beneficiados” foram os que tinham
sessenta anos ou mais - a Lei dos Sexagenários (1885) - conforme atesta o trecho
abaixo:

Art. 3.0 (p. 81).


Par. 10. São libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e
depois da data em que entrar em execução esta Lei; ficando, porém,
obrigados, a título de indenização pela sua alforria, a prestar serviço a seus
ex-senhores pelo espaço de três anos.
(...)
Par. 13. Todos os libertos maiores de 60 anos, preenchido o tempo de serviço
de que trata o parágrafo 10, continuarão em companhia de seus ex-senhores,
que serão obrigados a alimentá-los, vesti-los, e tratá-los em suas moléstias,
usufruindo os serviços compatíveis com as forças deles, salvo se preferirem
obter em outra parte os meios de subsistência, e os Juízes de Órfãos os
julgarem capazes de o fazer. (NEVES, 2001, p. 80-1).

Percebe-se, pelos parágrafos 10.o e 13.o, do artigo terceiro, que a liberdade


dos escravos estava sujeita a ter seu prazo dilatado: não se alforriavam os negros
que chegavam à idade requerida pela lei; ao contrário, prolongava-se o tempo de
trabalho destes, que, devido à idade avançada e más condições de trabalho e vida,
já estavam bastante desgastados.
32

Machado de Assis vai representar, em algumas das suas obras, a relação


entre o escravo idoso e a família senhorial: em Encher tempo (1876), tem-se a
figura de Tia Mônica, que, apesar de “forra”, ainda mora junto ao padre Sá e à
sobrinha deste, Lulu, de quem fora cativa, situação análoga àquela de Raimundo,
do romance Iaiá Garcia (1878). Apesar dessas duas obras terem sido publicadas
alguns anos antes da promulgação da Lei dos Sexagenários, já se observa, em
ambas, a aguçada percepção machadiana sobre o problema do escravo que se
tornava, com o passar dos anos, “membro” da família senhorial, muito embora a
relação entre ambos, nas obras do escritor Realista, nunca tenha se modificado,
permanecendo a mesma de outrora.
Apesar da aplicação da Lei dos Sexagenários ter repetido o fracasso de suas
antecessoras, a Lei Eusébio de Queiroz e a do Ventre Livre, o contexto histórico
no qual tal decreto está inserido o distingue de seus antecessores – e que acabará
culminando para a assinatura da Lei Áurea –, por ser bastante particular: o
movimento abolicionista cresceu, ao fim do Segundo Reinado, de forma bastante
expressiva, a ponto de várias entidades abolicionistas que defendiam a liberdade
dos africanos serem formadas para ajudar os cativos a fugirem das fazendas.
Outro importante fator foi o “rompimento” do Exército com o Império.
Explica-se: durante boa parte do Império, o Exército, por meio da Guarda
Nacional, teve como principal função capturar os negros fugidos das fazendas,
contando, para isso, com o apoio da monarquia.
Tal quadro irá mudar com a deflagração da Guerra do Paraguai, na qual a
maioria dos soldados que compunha as tropas brasileiras era de escravos, uma vez
que houve, na época, uma forte campanha de incentivo para que os negros não só
se alistassem, como também fossem servir nos campos de batalha, em troca,
supostamente, de suas alforrias. Dessa forma, o Exército brasileiro deveu grande
parte de suas conquistas, na Guerra, ao esforço desse contingente de cativos.
É necessário ressaltar que o escravo era enviado para a morte, como uma
contribuição ou doação dos seus senhores, uma vez que era preferível seu envio
ao de seus senhores ou seus filhos. Aos que sobreviviam, eram-lhes garantida a
liberdade, a exemplo da Guerra Civil Norte-Americana, mas, ao contrário
daquela, não havia aproveitamento social, como mão- de- obra remunerada, do ex
“soldado veterano”, que, após a sua liberdade, migrava para o Norte dos Estados
Unidos. Mesmo diante de tais circunstâncias, tornou-se impossível, no Brasil,
33

manter a escravidão, uma vez que a Abolição tinha sido deflagrada em todas as
colônias inglesas, interessadas, naquele momento, no trabalho livre e assalariado.
Um mês antes da assinatura da Lei Áurea, que foi assinada em 13 de maio de
1888, Machado de Assis, sob o pseudônimo de Policarpo, publica uma crônica, na
qual ironiza todo o processo de abolição, demonstrando que a visão da burguesia,
a respeito do assunto, não condizia com a real situação na qual viviam os
escravos, posição que ficou bastante clara com as promulgações das leis anteriores
à Áurea e cujos resultados foram inócuos.
Como destaca o estudo de Costa (2008, p. 134-5), o fim da escravidão, ao
invés de proporcionar melhores condições de vida para os negros, acabou por
gerar uma miséria maior para muitos que, outrora, foram cativos, principalmente
pelo fato de que, com o fim da escravidão negra, a mão-de-obra que passou a ser
empregada foi a imigrante, o que colaborou, ainda mais, para a marginalização
social do negro. O racismo, portanto, impediu o escravo de conseguir seu status
de cidadão, na sociedade brasileira.
É importante enfatizar que, apesar de ter sido explorado, o negro
conseguiu, por vários meios, resistir ao cativeiro, dentre os quais, podem ser
incluídos: o suicídio, o assassinato, a formação dos quilombos e as insurreições.
Ainda em contraposição ao regime escravocrata, a obra de Machado de
Assis vai representar, nos contos, três dessas formas de resistência: o assassinato,
presente em Virginius, no qual Julião mata a própria filha, Elisa, para livrá-la da
“desonra” que sofrera; o suicídio, em Mariana, conforme foi anteriormente
assinalado, e a fuga de Arminda, em Pai contra mãe. Essas três narrativas,
publicadas em momentos distintos da produção machadiana – respectivamente,
nos anos de 1864, 1871 e 1906 –, não apenas mostram a atitude de Machado de
Assis, em destacar a resistência negra, como também a hipocrisia da sociedade
brasileira.
Dessa forma, ao mostrar a resistência do escravo, Machado de Assis
demonstra estar em consonância com o depoimento histórico, conforme se
observa na citação abaixo:

(...)
Juntamente com o suicídio e o assassinato, a fuga é, na verdade, a expressão
violenta da revolta interior do escravo inadaptado. O escravo „em fuga‟ não
escapa somente de seu senhor ou da labuta, elide os problemas de sua vida
cotidiana, foge de um meio de vida, da falta de enraizamento no grupo dos
34

escravos e no conjunto da sociedade. (...) Fogem das piores condições, sem


se darem conta de que sinais particulares distintivos – desconhecido, imenso,
hostil; somente alguns escravos de regiões fronteiriças podem ter esperança
de passar a um estado vizinho. Fogem nos navios de partida para a África,
mesmo que sejam descobertos à primeira inspeção feita a bordo. Esperam, às
vezes, encontrar um senhor melhor e com freqüência passam do ruim ao pior.
Qualquer fuga, se não termina obtendo a proteção de um grupo, é condenada
ao insucesso (...). Alguns fujões tiveram a sorte de se fazerem aceitar por
uma tribo indígena: se conseguem, nesses casos, casar-se com uma ou um
indígena, a lei os declara livres e aos seus descendentes, pois, desde o
começo do século XVIII, a administração pública, protetora dos índios, quis
desta maneira impedir que os senhores pouco escrupulosos reduzissem à
escravidão as tribos indígenas favorecendo esse gênero de uniões. (...) Nessas
fugas individuais, os escravos que conseguem obter do homem ou da mulher
que lhe deu refúgio que o compre a seu antigo proprietário ganham o direito
de trabalhar para o senhor que escolheram. É praticamente impossível viver
sozinho no imenso Brasil e mesmo os casais que fogem partem para uma
aventura extremamente perigosa; (...) (MATTOSO, 1988, p. 153-4).

.
1.3. Revisão crítica sobre a escravidão em Machado de Assis.
Como já foi pontuado, anteriormente, a inoperância do sistema legal
constitui, provavelmente, a maior das ironias representada na literatura
machadiana. Demonstrou-se, brevemente, por parte de críticos como Lúcia
Miguel-Pereira (1936), em Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, que a
acusação sobre a alienação social, em relação à escravidão, de Machado de Assis,
não é convincente.
No entanto, essas opiniões não desmerecem a fortuna crítica de Machado de
Assis, pelo contrário, contribuem, ainda mais, para a elucidação do fenômeno
literário. Nesse caso, endossam a perspectiva aqui adotada, críticos como
Raymond S. Sayers (1958), Helen Caldwell (1960), José Aderaldo Castello
(1969), Raymundo Faoro (1974), Roberto Schwarz (1977, 1990), John Gledson
(1986, 2006), Regina Zilberman (1989), Alfredo Bosi (1999), Maussaud Moisés
(2001) e Alcides Villaça (2006).6

6
Com exceção dos estudos de Bosi, Moisés, Gledson (“Por um novo Machado de Assis”, 2006) e
Villaça, os demais pertencem a edições distintas das consultadas pela autora desta dissertação,
daí o porquê das citações virem com datas diferentes das acima mencionadas.
A edição do livro “O Otelo brasileiro de Machado de Assis” (Helen Caldwell) data de 2002;
“Realidade e ilusão em Machado de Assis” (José Aderaldo Castello), segunda edição, 2008;
“Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio” (Raymundo Faoro), quarta edição, 2001; “Ao
vencedor as batatas” (Roberto Schwarz), quinta edição, 2003, “Um mestre na periferia do
capitalismo” (Roberto Schwarz), quarta edição, 2008; “Machado de Assis: ficção e história” (John
Gledson), segunda edição, 2003.
A versão do artigo “Um caso para o leitor pensar”, de Regina Zilberman, aqui utilizada será a que
foi publicada em 2006, pela Revista de Letras (UNESP – São Paulo), volume 46, número 1.
35

Conforme foi anteriormente destacado, as referências críticas sobre a


representação do sistema escravagista, na obra de Machado de Assis, não são
recentes, tendo sido Machado de Assis: estudo crítico e biográfico uma das obras
pioneiras a respeito, na qual já se encontra a caracterização do autor Realista
como a de uma pessoa apática ao tema do cativeiro, tanto no plano das ideias
políticas, quanto literárias.
Para endossar essa postura, Miguel-Pereira assinala uma passagem
pertencente a um escrito do literato carioca, cujo título não é mencionado, acerca
da abolição no Ceará (1998, p. 81), primeiro Estado que libertou, integralmente,
os negros, e que serviria para demonstrar a “indiferença” machadiana em relação à
importância do ocorrido, uma vez que o mesmo é tratado apenas por meio de uma
metáfora (“ „O Ceará é uma estrela; é mister que o Brasil seja um sol‟”.), o que
atestaria a falta de solidariedade de Machado de Assis para com os “irmãos” de
cor.
No plano literário, mesmo diante da publicação de contos machadianos que
retratavam os horrores do sistema escravagista, a exemplo de Pai contra mãe e O
caso da vara, duras críticas são tecidas, uma vez que Miguel-Pereira percebe tais
obras como “casos isolados” e de pouca valia:

(...)
Sem dúvida, muitos são os casos esporádicos, sem repercussão, em que o
autor se encerra dentro dos limites do episódio, como nos dois contos em que
trata da escravidão, „Pai contra mãe‟, e o „Caso da Vara‟. Aí parece ter
querido isolar o caso da mulata Arminda ou da negrinha Lucrécia do
problema da escravidão. (MAEC, 1988, p. 226).

Como meio de reforçar a suposta apatia machadiana à servidão negra, tem-


se, em Miguel-Pereira (1988, p. 82), a recorrência a dados biográficos de
Machado de Assis, mais precisamente ao fato do escritor ter trabalhado no
Ministério da Agricultura, o que impediria de tê-lo uma postura mais “atuante”,
fato que não é verdadeiro, uma vez que, mesmo trabalhando em tal órgão,
Machado de Assis intercedeu, em inúmeros processos, a favor de escravos que se
encontravam em situação de perigo, conforme assinala Sidney Chalhoub, em
Machado de Assis, historiador (2003, p. 276-7).
A postura encontrada na obra de Lúcia Miguel-Pereira, embora seja
justificada pela tradição, que perdurou, por algum tempo, na Crítica Literária, de
36

avaliar o autor por meio de sua biografia, não condiz com uma análise mais
apurada do texto machadiano, especialmente se tivesse levado em consideração o
problema da ironia, figura estilística cujo uso, por Machado de Assis, serviu para
demonstrar a postura crítica do escritor diante do sistema escravagista, muito
embora esta não tenha sido abolicionista e panfletária, como foi a adotada por
outros escritores, a exemplo de José do Patrocínio e Luís Gama.
Conforme foi anteriormente mostrado, a obra O negro na literatura
brasileira, de Raymond Sayers (1958), discute como se deu a representação do
negro nas obras de Machado de Assis, a partir de um amplo estudo, que inclui,
além dos escritos machadianos, outros que apresentam a referida temática,
percorrendo desde a Literatura Ibérica até a Brasileira do século XIX. Nesse
referido percurso, percebem-se as graduais mudanças ocorridas, bem como os
acontecimentos que as proporcionaram.
A perspectiva, assinalada por Sayers, vai mostrar que os contos
machadianos representam uma visão bem mais realista sobre o negro, obviamente
enriquecida pela “identidade secreta” de Machado de Assis, cuja ascendência era
explicitamente afro-brasileira, uma ressalva que não é biográfica, porém cultural,
dado que o escritor Realista vai, em sua obra, emergir os personagens negros ao
plano principal da narrativa, não limitando a caracterização dos mesmos aos tipos
já existentes (a negra lascívia, a feiticeira, o negro herói etc.), mostrando, ainda,
uma posição de empatia em relação a estes (SAYERS, 1958, p. 393-4). A crítica,
presente em Sayers, é mais próxima à realidade, ao destacar a descendência afro-
brasileira de Machado de Assis como um aspecto determinante para seu estudo.
Outro mérito da representação do negro, em Machado de Assis, consiste,
segundo Sayers (1958, p. 394-5), na importância que o escravo adquire, como
ocorre nos contos O caso da vara, em que a personagem Lucrécia simboliza a
exploração da mão-de-obra infantil, e Pai contra mãe, no qual Arminda figura
como a cativa que foge, grávida, para salvar a própria vida e a do filho, elementos
estes que se configuram como os mais universais da obra machadiana.
A análise dos escritos machadianos, em Sayers, destaca-se e se diferencia
criticamente, ainda, por abrir um precedente: ao mesmo tempo em que reconhece
a importância de tais histórias, pondera a respeito do caráter das mesmas,
destacando que, embora denunciassem os abusos da servidão africana, não eram
panfletárias pelas necessidades formais que a estética Realista previa:
37

Machado de Assis não concordou com a escravidão e sentiu que os seus


efeitos sobre a sociedade brasileira e sobre o caráter brasileiro eram nocivos.
Todavia, embora louvasse os romances e as peças antiescravistas nas suas
críticas literárias, ele próprio não tentou produzir obras de propaganda, pois o
tipo de romance em que poderia melhor exprimir-se dificilmente poderia
servir aos fins da campanha antiescravista (...). ( SAYERS, 1958, p. 400).

Na década de 1960 - portanto, posterior à publicação do estudo feito em


Sayers-, dois estudos vão continuar a abordar a obra machadiana: O Otelo
brasileiro de Machado de Assis, escrito por Helen Caldwell, em 1960, e
Realidade e ilusão de Machado de Assis, de José Aderaldo Castello, de 1969.
Em O Otelo brasileiro de Machado de Assis, ocorre uma análise
comparativa entre o romance “Dom Casmurro”, escrito pelo escritor Realista
brasileiro, e a peça “Otelo, o mouro de Veneza”, de Shakespeare, tendo, por
objetivo,

(...) responder duas questões diretamente do próprio Dom Casmurro, uma


subsidiária à outra. A questão principal é: „A heroína é culpada de
adultério?‟; a subsidiária, „por que o romance é escrito de tal forma a deixar a
questão da culpa ou inocência da heroína para decisão do leitor?‟
(CALDWELL, 2002, p. 13).

O estudo de Caldwell é centrado na credibilidade do narrador, Bento


Santiago / Dom Casmurro. Ao chamá-lo de Otelo brasileiro, o referido estudo traz
à tona a comparação entre o depoimento do narrador-personagem, que insinua a
traição de Capitu, sua esposa, e a desconfiança e os ciúmes do personagem de
Shakespeare, em relação à Desdêmona. Esse, entretanto, não será o único aspecto
a ser analisado no referido estudo: a comparação que é feita, entre Capitu e
Desdêmona, analisa não apenas as diferenças existentes entre essas personagens,
mas, também, aquelas que estão vigentes na relação das jovens personagens com
seus parceiros, Santiago / Otelo, enfatizando que, na obra de Machado de Assis,
ao contrário da de Shakespeare, existe o abismo social entre o referido par,
havendo a oposição entre o mundo dos ricos e dos pobres, aspecto este que
também estará presente nos contos machadianos que representam a escravidão, no
qual o universo senhorial irá “colidir” com o universo do cativo:

(...)
Nosso Otelo brasileiro, no começo da sua fábula, não é ainda um homem
maduro, um guerreiro orgulhoso de ares e tez sombrios, vestido rica e
estranhamente, que viu meninos tornarem-se homens. É um menino de
38

quinze anos, dado a fantasias cotidianas (...). É cristão, católico, avesso a


derramamentos de sangue, o filho único de uma viúva abastada, preso à barra
da saia da mãe.
Sua Desdêmona é a vizinha da casa ao pé, Capitolina, ou simplesmente
Capitu, de apenas catorze anos, porém alta e bem desenvolvida para sua
idade (...). Não tem nada de veneziana bem-nascida; é, antes, uma menina
pobre: veste chita, lava as mãos em água e sabão comuns, usa sapatos gastos
e remendados com as próprias mãos (...). (CALDWELL, 2002, p. 21).

Essas diferenças sociais presentes em Dom Casmurro e assinaladas por


Caldwell, vão ser aprofundadas, a partir da década de 1970, por alguns críticos, a
exemplo de Roberto Schwarz, que mostrarão como Machado de Assis
representou, em sua obra, os contrastes da sociedade burguesa brasileira.
Além desse aspecto, outro bastante importante em Caldwell é também
ressaltado por Alfredo Bosi, em Machado de Assis: o enigma do olhar (1999, p.
38): a dissociação existente, nas obras machadianas, entre o foco narrativo e a
consciência autoral, como se pode observar na citação a seguir:

(...) O foco explícito não corresponderia ao verdadeiro olhar do autor e


assumiria o papel de narrador trapaceiro capaz de confundir o leitor, dizendo
ou sugerindo o que o autor não diria, pensando o que o autor não pensaria e
omitindo as reais intenções do seu criador.

Tal característica, além de estar presente nos romances machadianos, a


exemplo de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro – nos quais o
foco explícito é dado, respectivamente, pelas personagens Brás Cubas e Bento
Santiago –, também se encontra nos contos aqui em análise, sendo a ironia um
recurso estilístico utilizado para exprimir o foco explícito, ocorrendo, por
exemplo, no início de Pai contra mãe, quando o narrador, ironicamente, ao
descrever a escravidão e seus aparelhos de tortura como algo vantajoso, pretende
mostrar o revés dessa situação e, em Mariana, quando Coutinho, o narrador-
personagem, ao querer demonstrar que a personagem-título é tratada de modo
semelhante aos demais da casa, acaba por assinalar, na verdade, a discrepância
existente entre a jovem e a família senhorial.
Em Realidade e ilusão em Machado de Assis (1969), de José Aderaldo
Castello, ocorre a análise da obra de Machado de Assis a partir de múltiplos
vieses: o contexto histórico do século XIX, a importância dos aspectos estilísticos
39

(como a ironia) e de outros autores lidos por Machado de Assis, como Fernão
Mendes Pinto e Manuel Antônio de Almeida.
Adentrando mais especificamente nos contos, será assinalada a importância
do conto “Mariana”, escrito em 1871:

(...) à semelhança de [Joaquim Manuel de] Macedo, Machado de Assis, na


sua chamada primeira fase, deixaria seus heróis febris ou prostrados pela
ansiedade de amar, pelo amor não comunicado, pelo amor impossível, ou
faria definhá-los até a morte. Conto que se sobressai então é „Mariana‟,
expressão do amor humilde e oculto da mucama mestiça pelo senhorzinho.
Este, às vésperas de casar-se, pouco antes da morte da escrava por suicídio,
ouve-lhe a respeitosa confissão do seu sentimento (...). (CASTELLO, 2008,
p. 81).

Se o conto Mariana vai se destacar pelo suicídio da personagem-título,


devido a não correspondência amorosa, Virginius será uma narrativa em que tal
sentimento ganha contornos mais sombrios, culminando com um final trágico, o
estupro e assassinato de Elisa.
Mariana e Virginius são analisados, por Castello, sob um novo prisma, o do
amor não correspondido, presente, respectivamente, nos pares Mariana / Coutinho
e Carlos / Elisa: em ambas as narrativas ocorre a morte das escravas, fato que
simboliza a opressão do sistema escravocrata, enquanto que apenas um dos
senhores, Carlos, é punido, pelo próprio pai, ao ser enviado para lutar no Exército.
Coutinho, por sua vez, muda-se para a Europa, de onde volta, anos depois, para
contar aos amigos a história vivida na juventude, em meio a charutos e olhares
para as jovens que passam pela elegante Rua do Ouvidor.
Embora sejam apresentadas, por Castello, interessantes observações a
respeito da obra machadiana, de forma geral e, em particular, dos contos Mariana
e Virginius, acaba por não haver o aprofundamento a respeito do teor crítico da
perspectiva machadiana, relacionada à sociedade escravagista, uma vez que não
são incluídas outras obras escritas por Machado de Assis que versaram sobre tal
temática.
Da década de 1970, dois estudos críticos merecem destaque: Machado de
Assis: a pirâmide e o trapézio, de Raimundo Faoro (1974), e Ao vencedor as
batatas, de Roberto Schwarz (1977).
A crítica presente em Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio retoma a
temática escravagista, sob duas perspectivas: o resgate do contexto histórico-
40

político brasileiro, no século XIX, e a contextualização e análise das obras


machadianas. No tocante ao primeiro aspecto, é bastante significativa a
abordagem que o crítico faz da importância do escravo, ao destacar que este era a
maior riqueza móvel da época, na qual se regia, também, a política (FAORO,
2001, p. 215).
Este cenário, segundo Faoro, permitirá, a Machado de Assis, uma visão
autêntica da cidade do Rio de Janeiro, na qual conviviam tanto os escravos quanto
os libertos, em meio a uma pequena burguesia, sendo diferenciados pelo fato de
que

(...) O liberto adquire a condição, embora mínima e limitada, de transferir os


agravos recebidos, as pancadas sofridas, a outrem. A alforria significava uma
ascensão social: galgado o primeiro degrau, o homem sai da condição de saco
de afrontas, para o qual não há a possibilidade de reação. A liberdade se
identifica com o status na sociedade, acrescido do arbítrio de castigar,
repreender e punir. O liberto adquire a faculdade de ser mau – faculdade que
a escravidão lhe negava (...) (FAORO, 2001, p. 366).

Evidencia-se, na citação acima, que o escravo, quando recebia a liberdade,


adquiria um novo “status” social, que possibilitava a adoção de uma nova
postura: a submissão ao seu senhor, característica de outrora, foi substituída pela
maldade, que absorvera nos tempos de servidão e que irá aplicar com aqueles a
quem escravizará.
Em apenas um dos contos aqui em análise, tem-se a figura da escrava
liberta: em Encher tempo, tia Mônica é uma espécie de mãe para Lulu, morando,
ambas, com o padre Sá, tio da moça:

(...)
A tia Mônica, de quem se falou em um dos capítulos anteriores, era uma
preta velha, que havia criado a sobrinha do padre e a amava como se fora sua
mãe. Era liberta; o padre deu-lhe a liberdade logo que morrera a mãe de Lulu,
e Mônica ficou servindo de companheira e protetora da menina, que não
tinha outro parente, além do padre e do primo (...). (MACHADO DE ASSIS,
1962, p. 433).

Tia Mônica simboliza, dessa forma, a figura da ama de leite, da mãe preta,
que se dedica inteiramente à sua sinhá, dedicando, muitas vezes, cuidados, que,
por imposição dos senhores, eram negados aos filhos das negras, conforme era
prática comum, na época. O grau de familiaridade da personagem, como “tia”, é
constantemente negado e apenas utilizado quando convém a seus senhores,
conforme será visto na análise do conto, presente no terceiro capítulo.
41

As demais personagens negras, dos contos machadianos, são escravas –


Elisão e Julião, em Virginius, Mariana, no conto homônimo, Lucrécia, em O caso
da vara, e Arminda, em Pai contra mãe – sendo, por isso, subjugadas aos
senhores brancos e seus agregados, sendo estes últimos caracterizados por serem
pobres, porém livres e não detentores de escravos.
Pode-se, ainda, encontrar outra representação do africano: aquele que é
devotado ao seu senhor e sua família, conforme se observam nos contos Virginius
e Encher tempo e em outras obras machadianas:

(...) o escravo, vinculado a uma família, nela se absorvia, não


resignadamente, pois resignação supõe revolta íntima, mas com o
aniquilamento da personalidade. Mesmo liberto (como Raimundo de Iaiá
Garcia), conservava a comunhão aos senhores, sem reservas, sem a amarga
reação de haver sacrificado o destino individual. Os exemplos são muitos: o
compositor Romão Pires tem no pai José, ex-escravo, „a sua verdadeira mãe‟
(H.S.D., Cantiga de esponsais). A senzala provocara, na dedicação ao dono,
emulações de afeto. (FAORO, 2001, p. 365).

Essas representações vão proporcionar a caracterização dos indivíduos


servis nas obras machadianas, aspecto que ganhará maior dimensão em Ao
vencedor as batatas, livro de Roberto Schwarz, publicado, pela primeira vez, em
1977.
Em Ao vencedor as batatas, particularmente no ensaio “As ideias fora do
lugar”, é mostrada a disparidade ideológica existente na sociedade brasileira, que
buscava, por um lado, adotar o modelo liberal europeu, mas, por outro, estava
ainda presa ao sistema escravocrata, fato este percebido por escritores da época, a
exemplo de Machado de Assis:

(...) O sistema de ambigüidades assim ligadas ao uso local do ideário burguês


– uma das chaves do romance russo – pode ser comparado àquele que
descrevemos para o Brasil. São evidentes as razões sociais da semelhança.
Também na Rússia a modernização se perdia na imensidão do território e da
inércia social, entrava em choque com a instituição servil e com seus restos -,
choque experimentado como inferioridade e vergonha nacional por muitos,
sem prejuízo de dar a outros um critério para medir o desvario do
progressismo e do individualismo que o Ocidente impunha e impõe ao
mundo. Na exacerbação deste confronto, em que o progresso é uma desgraça
e o atraso uma vergonha, está uma das raízes profundas da literatura russa.
Sem forçar em demasia uma comparação desigual, há em Machado – pelas
razões que sumariamente procurei apontar – um veio semelhante, algo de
Gógol, Dostoiévski, Gontcharov, Tchecov, e de outros talvez, que não
conheço. Em suma, a própria desqualificação do pensamento entre nós, que
tão amargamente sentíamos, e que ainda hoje asfixia o estudioso do nosso
século XIX, era uma ponta, um ponto nevrálgico por onde passa e se revela a
história mundial. (SCHWARZ, 2003, p. 28-9).
42

Percebe-se, na citação acima, que Schwarz, ao comparar o contexto russo


com o brasileiro, não apenas demonstra as disparidades existentes na apreensão
das ideias burguesas, em ambos os países, como, ainda, assinala para o caráter
universal da obra machadiana, pela aproximação desta com a de autores como
Gógol, Dostoiévski, Gontcharov e Tchecov.
O aspecto da crítica mordaz à sociedade, presente em Machado de Assis,
continuará a ser abordado, na década de 1980, por dois estudiosos: John Gledson,
na obra Machado de Assis, ficção e história (1986) e Regina Zilberman, no artigo
“Um caso para o leitor pensar” (1989).
Em Machado de Assis, ficção e história, Gledson (2003, p. 158-9) retoma
algumas das ideias de Schwarz, destacando que a relação entre as oligarquias e
seus dependentes, presente tanto nas obras machadianas escritas ainda durante a
escravidão (“Quincas Borba”, “Iaiá Garcia”, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”
e “Casa Velha”), quanto posteriormente (em algumas das crônicas da série “Bons
dias!”), permanecerá a mesma, fato este que será alvo de críticas do escritor
Realista.
Em “Um caso para o leitor pensar”, Regina Zilberman destaca como o conto
O caso da vara representou a realidade social da época na qual viveu Machado de
Assis, bem como os recursos estilísticos utilizados que reforçam o caráter de
denúncia imprimido pela narrativa, ao serem assinaladas as reais intenções de
Damião e, simultaneamente, a posição de Lucrécia:

(...)
O conto, pois, destina-se aos Damiões e às Sinhás Ritas da época, e este fato
coloca o diálogo próprio à natureza da forma literária em termos muito
especiais: Machado pode estar contradizendo procedimentos usuais do
período, contrariando os interesses do público, revelando às pessoas sua
pusilanimidade à moda de Damião ou tirania ao estilo de Sinhá Rita.
Portanto, não se trataria este de um diálogo pacífico, de uma conversa
murmurada, de uma anedota divertida, de um episódio singular, hipóteses
que o título do conto, “O caso da vara”, sugere; pelo contrário, o autor
investe contra práticas de seu tempo, uma delas sendo o encobrimento da
violência contra o negro. Sob este aspecto, a falta de sutileza do estilo e as
visíveis intromissões do narrador, seja desvendando a interioridade de
Damião, seja posicionando-se francamente a favor de Lucrécia, tomam outra
significação: representam a necessidade que Machado tem de convencer o
leitor a aceitar seu ponto de vista, incomum naquele momento e contrário às
convenções literárias vigentes, segundo as quais se escondem os males da
sociedade (ZILBERMAN, 2006, p. 156-7).
43

Apesar de ser um conto que aborda a realidade social brasileira do século


XIX, “O caso da vara” não é, contudo, apenas circunscrito ao referido contexto,
conforme é afirmado por Zilberman (2006, p. 155), dado que as escolhas de
Damião – que consistem entre salvar Lucrécia da ira de Sinhá Rita e continuar no
seminário, do qual queria sair, ou não salvar a jovem e permanecer na vida
religiosa, saída pela qual acaba por optar – refletem os abismos sociais existentes
e que ainda são vigentes, quando são confrontados os interesses das classes
dominantes e das subalternas.
Em 1990, dois estudos pertencentes à crítica sociológica vão ser publicados:
“Um mestre na periferia do capitalismo” (Roberto Schwarz, 1990) e “Machado de
Assis: o enigma do olhar” (Alfredo Bosi, 1999).
A análise crítica presente em Um mestre na periferia do capitalismo (2008,
p. 226) destaca, dentre outros aspectos, que, mesmo quando há, nas obras
machadianas, referências à Abolição, estas se dão para assinalar os danos
causados à mente do escravo e a impossibilidade deste ver o Outro como a si
mesmo, a exemplo do ocorrido em um trecho de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, no qual Prudêncio, de escravo, torna-se senhor, e repete, com seus cativos,
os maus tratos que outrora lhe foram dispensados.
De forma análoga a Um mestre na periferia do capitalismo, a obra Machado
de Assis: o enigma do olhar também centra sua análise na questão das relações
sociais, destacando, particularmente, como a confrontação de personagens
pertencentes a classes distintas será o assunto de muitos contos, a exemplo do que
ocorre em “Virginius”, “O caso da vara” e “Pai contra mãe”:
(...)
Nos contos em que se defrontam pares, é freqüente ver os sujeitos se
disporem em relações assimétricas em torno do bem desejado. Nesse
confronto, é mais fraco, e acaba mal, sempre aquele que age aberta e
desprotegidamente na sua relação com o outro. O vencedor, ao contrário, é
aquele que correu firmemente para o interesse individual, para o status; e
que, em situações de risco, não deixou jamais cair a máscara. (BOSI, 1999, p.
112).

Como exemplo dessa situação, pode-se citar o enredo de “Pai contra mãe”:
tanto Cândido Neves, branco, livre, “caçador” de cativos, quanto Arminda,
escrava fugida, querem se sentir livres daqueles que os oprimem, ao mesmo
tempo em que precisam, por diferentes motivos, salvar a vida dos filhos.
44

A diferença, entre ambos, está na diferença do sentido de liberdade:


enquanto Arminda é pega despercebida e, posteriormente, capturada por Cândido
Neves, sendo, portanto, uma vítima, o “capitão do mato”, para sanar seus
problemas, acaba entregando a escrava ao seu dono, sendo, dessa forma, cúmplice
da burguesia escravagista e cumprindo o papel que acaba lhe sendo o mais
conveniente.
Tal ação implica na morte do filho da escrava, fato que acaba por salvar o
filho do “capitão do mato” da Roda dos Enjeitados. Dessa forma, percebe-se que
o binômio vida / morte favorece àqueles cujas atitudes venham a corroborar com a
opressão sofrida pelos cativos. Tais disparidades entre os sujeitos eram possíveis
graças a um sistema legal, que considerava o escravo como coisa e, portanto,
inferior na escala social, condição na qual estavam também incluídos os pobres, e
que acaba por reiterar a disparidade social, conforme é observado por Bosi (1999,
p. 123) e que estará nos contos machadianos aqui em estudo.
Os contos, aliás, têm sido bastante analisados em estudos críticos recentes, a
exemplo de Machado de Assis: ficção e utopia (Massaud Moisés, 2001), Por um
novo Machado de Assis: ensaios (John Gledson, 2006) e “Querer, poder, precisar:
„O caso da vara‟” (Alcides Villaça, 2006).
Em Machado de Assis: ficção e utopia, sob diferentes perspectivas, são
analisados os contos machadianos como Miss Dollar, Missa do Galo, A
cartomante, O alienista, dentre outros, em dois ensaios, “Machado de Assis Hoje”
e “A Ironia e a Sutileza Machadianas no Conto”. No primeiro, são feitas apenas
considerações gerais a respeito do referido gênero, uma vez que são apresentados
também aspectos relativos aos romances, crônicas e peças teatrais; no segundo,
examinam-se, a partir das duas categorias presentes no título do trabalho, a
importância que o referido gênero tem na fortuna crítica machadiana, tanto na
denominada primeira fase, quanto na segunda.
Massaud Moisés, ao comparar os contos aos romances machadianos,
percebe que a representação da escravidão foi sendo abordada de forma gradativa:
se em obras como Helena e Encher tempo, ambas publicadas em 1876, a figura do
negro e o problema da servidão é ainda visto de maneira embrionária, em outras
como Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), O caso da vara (1899) e Pai
contra mãe (1906), a referida temática ganhará maior destaque, principalmente
devido ao uso da ironia, que servirá como um instrumento de crítica à sociedade
45

escravagista, ao “desnudar” as condições subumanas nas quais viviam os cativos,


que ganharão maior destaque nas narrativas, por meio das personagens negras.
No ensaio intitulado “Querer, poder, precisar: „O caso da vara‟”, cuja
análise vai ser aprofundada posteriormente, Alcides Villaça destaca, inicialmente,
as qualidades do referido conto machadiano, bem como o contextualiza,
destacando que a perspectiva adotada por Machado de Assis, ao tratar da
escravidão, não será moralizante, mas analítica, aspecto este que será considerado,
posteriormente, no terceiro capítulo do nosso estudo:

(...) o que me parece ser a virtude maior do conto „O caso da vara‟: a


capacidade de miniaturizar e expandir, na pequena cena doméstica e com
personagens circunstanciais, uma configuração do escravismo – sem prejuízo
para a questão aguda da escolha, vivenciada pelo adolescente. Publicado em
1899, extinta a escravidão e proclamada a República, remonta o conto à
tragédia maior de nossa História, não para acusá-la de forma moral, mas para
analisá-la estruturalmente numa situação (datada, não arbitrariamente, de
„antes de 1850‟), numa experiência, que é sempre o plano em que melhor se
podem divisar os gestos, as escolhas, os prazeres e as dores que compõe a
prática material da dominação. (VILLAÇA, 2001, p. 19-20).

O ano de publicação e o enredo da narrativa permitirão, ao autor, observar


aspectos como a política de favores, na relação existente entre os pares Damião /
Sinhá Rita, Sinhá Rita/ Lucrécia, Damião/ Lucrécia - já anteriormente assinaladas
– além dos múltiplos aspectos simbólicos que a vara representa:

Se, de um lado, a vara de que trata o conto tem peso material, e por certo
doerá na carne e nos ossos de Lucrécia, de outro também simbólica, e remete
ao pacto formado entre os iguais, dentro do direito que os favorece. Se para
uns a vara é insígnia de poder e indicativo de jurisdição (como ocorre até
hoje no vocabulário forense), para os „justiçados‟ o vergão não tem nada de
simbólico. Em qualquer plano, porém, a decisão quanto ao seu emprego
depende dos que se sentam à mesa, habilitados como negociadores. No plano
político, como no dos „negócios de família‟, as decisões decorrem de pactos
entre os que têm poder de barganha, ou desfrutam, ainda que minimamente,
da condição de exercer aquela „astúcia feliz‟, como a definiu Maquiavel
(VILLAÇA, 2001, p. 30).

Ainda são retomados, em “Querer, poder, precisar: „O caso da vara‟”,


importantes aspectos já abordados por Bosi e que serão aqui retomados, no
terceiro capítulo, a exemplo do enfrentamento de pares e da predominância do
interesse individual, que garante a manutenção do status quo da personagem
Damião, em detrimento de Lucrécia.
46

Já a obra Por um novo Machado de Assis: ensaios, de John Gledson,


enfatiza, primeiramente, a importância do gênero conto na obra machadiana:

(...) há boas razões para se imaginar que o conto seria mais condizente com o
gênio do autor. Machado gosta muito de anedotas, e de focalizar detalhes
aparentemente triviais, mas que lançam uma luz inesperada sobre assuntos
„importantes‟; (...). Gosta de autores que contam fábulas curtas, com uma
moralidade irônica – Esopo, La Fontaine, Swift -, ou que escolhem gêneros
mistos, metade ensaio, metade ficção como Charles Lamb ou Thomas
Carlyle. E os próprios romances não seguem as convenções do realismo do
século XIX, contendo episódios que em si poderiam ser contos: os capítulos
que tratam de Eugênia em Memórias póstumas de Brás Cubas, ou a
„Confeitaria do Custódio‟, em Esaú e Jacó, para dar dois exemplos bem
contrastantes. (GLEDSON, 2006, p. 35-6).

Todos esses traços estilísticos, principalmente a ironia – como será visto no


próximo capítulo – permitirão, a Machado de Assis, explorar a temática da
escravidão. Como exemplo, Gledson cita os contos Virginius e Mariana:

De todos os assuntos, o mais difícil é o da escravidão, e „Virginius‟ inicia


postulando a existência desse ente impossível, „Pai de Todos‟, o dono de
escravos que é bondoso a ponto de os escravos da sua fazenda nem sequer
desejarem ser livres. A brutalidade do sistema está encarnada em seu filho,
Carlos, tão malvado quanto o pai é bom, tão ruim que chega a ser covarde,
valendo-se de capangas para violar Elisa. Apropriadamente, o advogado
narrador diz num momento que sente que está num romance, para outro
momento declarar-se numa tragédia; (...).
(...) „Mariana‟, publicado no ano da Lei do Ventre Livre (1871), ocupa-se
outra vez da escravidão, e de modo muito mais realista, ainda que a história
se passe agora em ambiente doméstico. O conto nunca foi republicado, talvez
pelo perigoso do tema; mas na própria história algumas das dinâmicas da
escravidão ficam bem evidenciadas, até nos apartes „cômicos‟, como os do
tio do narrador, que saberá exatamente de que maneira „perdoar‟ a fugitiva
quando esta for capturada. (GLEDSON, 2006, p. 42)

Pôde-se verificar, ao longo desse capítulo, que a postura adotada por


Machado de Assis, no tocante à escravidão e sua respectiva representação
literária, transcendeu o caráter panfletário e explicitamente abolicionista,
utilizando-se da ironia e do humor, embora seja necessário mais uma vez reiterar
que estes foram utilizados de forma camuflada.
A respeito desse caráter “oculto” da crítica machadiana ao sistema
escravagista, Natascha Machado Krech (2010, p. 151-2), em “O escravo e o
protegido: percepção do trabalho servil em „Virginius‟”, afirma:

(...)
47

Na maior parte de sua obra, a crítica anti-escravocrata machadiana se


dá, em primeiro lugar, de maneira camuflada, submersa e simplesmente
marginal ao enredo. A crítica chega a ser tão sutil, que durante muito tempo
não era nem notada ou até negada. Em segundo lugar, a crítica machadiana se
dá várias vezes justamente pelo fato de não ser óbvia ou até de não ser
explícita (Duarte, 2007: 252-3). Machado mostra a realidade crua da época
na sua obra e a maioria das suas personagens atua como se essa „realidade‟
fosse algo extremamente „normal‟. Confrontadas com os horrores ou
preconceitos da época, as suas personagens não reagem de maneira
indignada, e sim de maneira fria e insensível, por exemplo, no conto „Pai
Contra Mãe‟ (...).

A escravidão foi aqui discutida tanto sob a perspectiva histórica, momento


em que se buscou contextualizá-la enquanto sistema socioeconômico do Brasil
durante o Segundo Reinado, quanto literária, por meio da revisão crítica a respeito
de sua representação na literatura nacional desde os seus primórdios até o século
XIX, época na qual foram publicados quatro dos cinco contos machadianos aqui
em análise: “Virginius”, “Mariana”, “Encher Tempo” e “O caso da vara” (é
preciso reiterar que “Pai contra mãe” teve sua primeira edição em 1906, início da
Primeira República).
Foi também abordada, com base nos estudos de Lúcia Miguel-Pereira,
Raymond Sayers, Helen Caldwell, José Aderaldo Castello, Jean-Michel Massa,
Raymundo Faoro, Roberto Schwarz, John Gledson, Regina Zilberman, Alfredo
Bosi, Massaud Moisés e Alcides Villaça a importância dos contos de Machado de
Assis que abordam a representação do sistema escravagista, bem como a postura
do escritor Realista a respeito do assunto.
2. A ironia como recurso estilístico

Conforme foi assinalado na introdução deste trabalho, a ironia, como recurso


estilístico, estrutura-se, nos contos machadianos – Virginius, Mariana, Encher tempo, O
caso da vara e Pai contra mãe –, dando, ao leitor, melhor entendimento da postura de
Machado de Assis sobre a escravidão .
Como marco teórico, o recurso da ironia será estruturado através dos estudos
de obras como: O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates, de S. A.
Kierkegaard (1991); Ironia e irônico, D.C. Mueke (1995); “The limits of irony”, Berel
Lang (1996) e Ironia em perspectiva polifônica, de Beth Brait (2008) e de alguns
aportes críticos, como os de Sonia Brayner, O labirinto do espaço romanesco (1979);
Antonio Candido, “Esquema de Machado de Assis” (2004); Álvaro Marins, Machado e
Lima: da ironia à sátira (2004); Lélia Pereira Duarte, Ironia e humor na Literatura
(2006); José Maurício Gomes de Almeida, “A visão irônica nas Memórias póstumas de
Brás Cubas” (2008) e João Batista Pereira, “A natureza vicária da ironia em Cantiga de
esponsais” (2009).
No tocante aos trabalhos pertences ao primeiro grupo, é preciso destacar que as
perspectivas de análise adotadas são distintas: enquanto Kierkegaard, Muecke e Brait
abordam o conceito de ironia, percorrendo desde as contribuições presentes em obras da
Antiguidade Clássica até as vigentes nas Idades Moderna e Contemporânea, Lang opta
por enfatizar uma categoria específica, denominada de ironia romântica.
Esta última será a tipologia aqui utilizada na análise estilística, uma vez que se
constitui como marco divisório da literatura clássica e da moderna, cujos traços, a
exemplo da ideia de ilusão, do isolamento humano e do distanciamento discursivo,
estão presentes nas obras machadianas a serem analisadas.
Já as considerações postuladas por Brayner, Candido, Marins, Duarte, Almeida e
Pereira permitirão observar o uso da ironia, nas obras de Machado de Assis, as
estratégias estilísticas utilizadas e a importância desta categoria nos contos que
representam a temática escravagista.
Dessa forma, o corrente capítulo pretende, a partir do que foi mencionado,
fazer uma possível abordagem sobre a ironia, entre várias possibilidades.
49

2.1. Percurso histórico da ironia: da Antiguidade Clássica à Idade Contemporânea.


Derivada, etimologicamente, da palavra ειρωνεία (eironéia), cujo
significado primordial remete à ideia de “ignorância fingida”, “dissimulação”,
“reticência”7, a ironia tem sua “origem” na Grécia Antiga, sendo abordada, dentre
outros, por filósofos como Sócrates e Aristóteles, cujas particularidades teóricas
serão aqui discutidas.
Em Sócrates, a ironia é vista enquanto um recurso usado para fins
logrativos, conforme se observa nos seguintes trechos do Livro I, de A República,
nos quais Platão assinala os diálogos entre Sócrates , Polemarco e Trasímaco:

(...)
Ao ouvir estas palavras [de Sócrates, em relação à falta de definição do
conceito de justiça, que estava sendo debatido], [Trasímaco] desatou um riso
sardônico e exclamou: - Ó Hércules! Eis a célebre e costumada ironia de
Sócrates! Eu bem o sabia, e tinha prevenido os que aqui estão de que havias
de te esquivar a responder, se alguém te interrogasse.
- É que tu és um homem esperto, Trasímaco – disse eu. – Pois sabias
perfeitamente que, se perguntasses a alguém quantos são doze, e, ao fazer a
pergunta, prevenisses: „Vê lá, homem, não me digas que são duas vezes seis,
nem que são três vezes quatro, nem seis vezes dois, nem quatro vezes três;
que eu não aceito tais banalidades‟, creio que se tornaria evidente para ti que
ninguém daria resposta a uma pergunta assim formulada. Mas se a pessoa te
dissesse: „Ó Trasímaco, que estás a dizer? Que não posso responder a nada
do que disseste? És espantoso! Ainda que se dê o caso de a resposta ser uma
dessas, terei e afirmar outra coisa diferente da verdade? Ou não é isto que
queres dizer?‟ Que responderias a isto? (...). (PLATÃO, 2006, p. 23).

A resposta de Sócrates a Trasímaco já assinala para o método irônico


utilizado pelo filósofo grego, que, partindo de uma discussão, a respeito de um
determinado assunto, interroga o seu interlocutor e, a partir de um “jogo” de
perguntas e respostas que vai sendo delineado, assinala para a ignorância daquele,
conforme afirma Sage (1980, p. 206 apud Beth Brait, 2008, p. 29):

Ironia: o primeiro sentido dessa palavra grega é interrogação. A ironia


socrática é essa arte de interrogar e de responder, pela qual Sócrates de uma
primeira questão obtém uma primeira resposta, e de questões subsidiárias em
questões subsidiárias, respostas variadas que lhe permitem mostrar a
incoerência até que o interlocutor admita a sua ignorância. Eis por que
Sócrates jamais escreveu. A ironia, o jogo filosófico de questões e respostas,
é discurso.

7
Conforme assinalam os estudos de Niccola Abbagnano (Dicionário de Filosofia, 2007), Édouard
des Places e o Dictionnaire Bailly.
50

Esse “jogo”, em Sócrates, se dá a partir de dois momentos, a confutação (ou


elenchos) e a maiêutica. O primeiro diz respeito à dialética per si, no qual
Sócrates buscava “purificar” seu interlocutor dos falsos conceitos, da soberba e da
presunção existentes a respeito de um determinado assunto, a respeito do qual fica
comprovado o total desconhecimento daquele com quem o filósofo dialogava; a
partir deste instante, em que se deflagra o grau zero do conhecimento, a
ignorância, instaura-se a maiêutica, que corresponde ao “nascimento” de novas
ideias e complexas a respeito do assunto discutido.
Já a concepção aristotélica, presente na obra Ética a Nicômaco,
particularmente no capítulo sétimo, do segundo livro, consiste, de acordo com
Niccola Abbagnano, na obra Dicionário de Filosofia (2007, p. 555), em “(...) ve
[r] na I. [= ironia] um dos extremos na atitude diante da verdade. O verdadeiro
está no meio justo; quem exagera a verdade é o jactancioso e quem [,] entretanto
[,] procura diminuí-la é o irônico (...)”. Percebe-se que as concepções de Sócrates
e de Aristóteles, no tocante à ironia, são distintas: enquanto o primeiro filósofo
enxerga o referido recurso estilístico como um meio para demonstrar a ignorância
de seu interlocutor e, com isso, conduzi-lo ao conhecimento verdadeiro, o
segundo vê a ironia como uma diminuição da verdade, o que acaba por reforçar o
suposto caráter dissimulador da figura de linguagem em questão.
Um importante estudo, que vai recuperar essas e outras concepções a
respeito da ironia, é O estudo da ironia constantemente referido a Sócrates,
escrito por S.A. Kierkegaard, no qual se encontram, ainda, as seguintes tipologias:
a ironia sensu eminentiori, que se caracteriza por contestar a realidade de uma
dada época histórica; a executiva, que representa o conflito entre essência e
fenômeno, fato que a aproxima da dissimulação; a contemplativa, relacionada à
ideia de escárnio, sátira, sarcasmo; a negativa, que, no plano teórico, assinala a
oposição entre ideia versus realidade, e, no prático, possibilidade versus realidade.
Em tais definições e tipologias, Kierkegaard aproxima a ironia da noção de
contraste, fato este que será de importante valia para a posterior análise dos contos
machadianos – Virginius, Mariana, Encher tempo, O caso da vara e Pai contra
mãe – que constituem o corpus desse trabalho, uma vez que nestes há o confronto
de realidades opostas, de senhores e escravos, da visão burguesa, transmitida,
principalmente, por meio dos narradores irônicos e a da realidade do cativeiro.
51

Devido às limitações desse trabalho, o percurso histórico sobre a ironia irá


se centrar na ironia romântica, textualizada tanto na Literatura Inglesa do século
XIX, quanto na machadiana, visando estabelecer possíveis relações entre ambas,
dado que o escritor Realista, além de ter lido as obras escritas por autores que
utilizaram tal recurso estilístico, a exemplo de Laurence Sterne, Fielding e
Thackeray, também assimilou e utilizou alguns dos traços constituintes da referida
modalidade, a exemplo da junção de contrastes (realidade / ilusão, sonho /
realidade) e da percepção do leitor a respeito destes.
O termo “ironia” aparece, na língua inglesa, na Inglaterra do século XVI
e, posteriormente, no século XVII, se difunde, nas obras de dois escritores, John
Dryden e Anthony Ashley Cooper Shaftesburry, inicialmente por meio de
sinônimos, como escárnio, zombaria, sarcasmo, evoluindo, posteriormente, para o
conceito de uma figura estilística que transmitia uma ideia contrária à realmente
desejada, até chegar, em Shaftesbury, à concepção de “ironia suave”, que,
conforme saliente Muecke, em Ironia e irônico (1995, p. 32-3), é definida como
“(...) uma maneira irônica acomodatícia e amigável (embora não despida de
escárnio) externamente e serena e reservada internamente”.
A introdução da categoria “ironia suave”, por Shaftesbury, vai permitir
o desencadeamento de uma nova série de análises, dentre as quais vai se destacar
a de Fielding:

(...)
Em 1748, Fielding deu ao termo [ironia] uma outra aplicação nova,
empregando-a como a estratégia satírica (...) de inventar ou apresentar uma
personagem idiota que defende ineptamente e retrata inconscientemente o
ponto de vista que o autor deseja condenar. Esta „ironia autotraidora‟, pelo
que sei, não foi reconhecida explicitamente de novo antes do século XIX.
(MUECKE, 1995, p. 33-4).

Percebe-se, pois, que o século XVIII forneceu novas perspectivas para o


estudo da ironia, que passou de um recurso estilístico cujo objetivo era servir de
matéria para o engano a uma estratégia satírica. Com essa última finalidade, a
ironia foi empregada por autores como Laurence Sterne, Diderot e Rabelais, que,
em suas obras, fizeram uso de tal recurso estilístico para desconstruir a ideologia
teológica dominante na época e, ainda, conseguiram imprimir à literatura uma
nova visão, conforme assinala Sonia Brayner, em Labirinto do espaço romanesco
(1979, p. 99):
52

(...) Segundo os estudos de M. Bakhtin sobre a evolução do grotesco popular


e sua realização literária ocidental, este princípio do riso alegre e ruidoso
sofre já no século XVIII uma transformação ao se afastar da visão
radicalmente popular. Será a obra de Sterne, Tristram Shandy, um marco
significativo dessa visão subjetiva e individual da época romântica que virá.
O riso subsiste, mas reduzido, transformado em humour, ironia, sátira,
sarcasmo, e vivenciado individualmente por uma consciência agora mais
alerta para seu isolamento e solidão. Entretanto, permanece o substrato
popular que destrói e inverte os valores inumanos mitificados e enrijecidos na
sistemática de necessidades dominantes. É por esta razão que uma certa
ironização da consciência prepara sempre os momentos de transformação do
mundo.
Neste sentido, obras como as de Diderot e o livro de Rabelais instalam uma
ruptura interna na cultura burguesa em que se inserem. São „desconstruções‟
críticas do mundo e da literatura oficial, testemunhos vivos de uma leitura
dialética. Diderot, com seus textos paródicos do romanesco à Richardson,
inicia um discurso destruidor da mecânica ficcional até então obediente a
determinados padrões, impedindo-a de funcionar como de hábito numa
orientação monovocal. O diálogo de Le neveu de Rameau pressiona as
situações contraditórias até o desnudamento; por isso, ultrapassa seu próprio
tempo.

Essa concepção da ironia como desconstrução e crítica à sociedade e


literatura vigentes será aprofundada no século posterior, o XIX, com o advento,
no campo literário, da ironia romântica e no campo dos estudos críticos, com as
contribuições de intelectuais como Fichte, os irmãos Schlegel (Friedrich e A.W.),
Hegel e Heine.
Johan Gottlieb Fichte considera a ironia como fruto de uma segunda
potência da subjetividade, visão esta herdada de Kant e que se contrapõe à
socrática, conforme é demonstrado em Kierkegaard (1991, p. 212-3):

(...) Se a ironia é pois uma determinação da subjetividade, então veremos em


seguida a necessidade de duas formas de aparição deste conceito; e a
realidade ajuntou um nome a ambas. A primeira forma é naturalmente aquela
na qual a subjetividade pela primeira vez fez valer seu direito na história
universal. Aqui temos Sócrates, quer dizer, com isso nos é assinalado onde
temos de procurar o conceito em sua aparição histórica. Quando, porém, a
subjetividade se anunciou no mundo, não voltou a desaparecer sem deixar
vestígio, o mundo não recaiu na forma anterior do desenvolvimento, muito
pelo contrário, o antigo desapareceu e tudo se tornou novo. Se doravante
deve ser possível que se mostre uma nova forma de aparição da ironia, isso
tem de acontecer de maneira que a subjetividade se faça valer em uma forma
ainda mais alta. Tem de existir uma segunda potência da subjetividade, uma
subjetividade da subjetividade, correspondente à reflexão da reflexão. Com
isso estamos novamente orientados historicamente, somos com efeito
reportados ao desenvolvimento que a filosofia moderna experimentou em
Kant e que se completou em Fichte, e ainda mais proximamente aos pontos
de vista que após Fichte fizeram valer a subjetividade elevada à segunda
potência (...).
53

Após Fichte, a ironia teve, dentre outros, estudiosos como os Schelegel,


Karl Solger, Connop Thirlwall, Heine, Hegel e Lausberg, cujos princípios serão
vistos a seguir.
A.W. Schlegel apresenta uma visão que é análoga à dos pensadores
gregos, retomando, dessa forma, os princípios enunciados por Sócrates e Platão,
por meio da concepção de ironia enquanto sátira, conforme é assinalado por
Muecke (1995, p. 43). Já Friedrich Schlegel introduz uma concepção de ironia
enquanto processo que passaria de ativo para passivo, no qual o sujeito de
enunciador se transforma em vítima, muitas vezes não apenas de outra pessoa,
mas também de situações adversas (MUECKE, 1995, p. 35-6).
Hegel refutará os preceitos irônicos dos irmãos Schlegel, chegando a
confrontá-los, conforme assinala Kierkegaard (1991, p. 229-30):

(...) o fato de Hegel ter desdenhado esta forma de ironia que lhe estava mais
próxima prejudicou, naturalmente, sua concepção do conceito (Hans
Opfattelse af Begrebet). Daí porque não ganhamos uma verdadeira análise,
mas em compensação Schlegel sempre ganha uma boa sova. Com isso não se
quer dizer, de modo nenhum, que Hegel não tenha razão contra os irmãos
Schlegel, e que a ironia da dupla Schlegel e Schlegel não tenha sido um
desvio muito grave; e também com isso não se quer negar que Hegel tenha
contribuído proveitosamente pela seriedade com que se opõe a qualquer
isolação, uma seriedade que faz com que se possa ler muitas de suas análises
com bastante edificação e reconforto. Por outro lado, não se pode omitir que
Hegel, ao se voltar unilateralmente contra a ironia pós-fichteana, deixou de
perceber a verdade da ironia, e ao identificar toda ironia com aquela, foi
injusto com a ironia. Logo que Hegel enuncia a palavra ironia, imediatamente
se impregna de uma certa exasperação. No seu devido lugar, deve ser
esclarecido em que consiste o errôneo e injustificado na ironia de Schlegel,
bem como o mérito de Hegel em relação a isto (...).

A postura de Hegel, portanto, é considerada bastante dual, uma vez que,


ao mesmo tempo em que contribui para a conceituação da ironia – no momento
em que aponta os pontos falhos da teoria dos Schlegel –, também acaba por
cometer alguns equívocos, como quando delimita o conceito de tal recurso
estilístico apenas à compreensão apresentada por Fichte, e, com isso, desconsidera
outras de igual valia, a exemplo das apresentadas pelos filósofos gregos.
Karl Solger, filósofo contemporâneo de Hegel, abordará a ironia sob a
perspectiva da negatividade infinita absoluta, assim definida por Kierkegaard
(1991, p.226-7):
(...) Ela é negatividade, pois apenas nega; ela é infinita, pois não nega este ou
aquele fenômeno; ela é absoluta, pois aquilo, por força de que ela nega, é um
54

mais alto, que contudo não é. A ironia não estabelece nada; pois aquilo que
deve estabelecer está atrás dela. (...).

Tal visão será bastante criticada, em outra passagem de O conceito de ironia


constantemente referido a Sócrates, por Kierkegaard (1991, p. 264-5), por este
acreditar que Solger havia se perdido em meio à teoria que propunha,
considerando-o como uma vítima de Hegel, devido ao fato de ambos verem a
ironia sob uma perspectiva que, segundo Kierkegaard, privilegiava a completa
nulidade, o que implicaria, particularmente, no caso de Solger, uma ironia como
um momento especulativo (KIERKEGAARD, 1991, p.274-5).
Posteriormente aos estudos dos irmãos Schlegel, de Solger e de Hegel,
destacam-se os de Heine, que estuda a ironia partindo do duplo caráter que atribui
a esta, simultaneamente autoprotetor e niilista, embora considere a romântica
como a categoria mais legítima:
(...) Para Heine, Baudelaire, Nietzsche e Thomas Mann, a ironia é antes de
tudo Ironia Romântica, mas Heine também tem consciência da função
autoprotetora da ironia, uma consciência que se reporta ao retrato que
Teofrasto fez do eiron e antegoza algumas objeções do século XX à ironia.
Onde a „ironia universal do mundo‟, de Hegel, era dialética, e negativa tão-
somente dentro de uma progressão mais ampla (...), a de Heine era niilista
(...). (MUECKE, 1995, p.47).

A ironia romântica, à qual Heine se refere, tem origem na Alemanha do


final do século XVIII, conforme assinala Brayner (1979, p. 101):
(...)
Surgindo desse levedar histórico, a especulação intelectual se desenvolve na
meditação dos valores nascentes de mudança e dinamismo, tomados como
sintomas positivos da nova civilização. Simultaneamente, o paradoxo e a
contradição das condições humanas e da própria natureza do homem são
admitidos na prática e na teoria da arte, sem pretensão de serem resolvidos
com apenas uma resposta metafísica.
O despertar da consciência do artista lhe faz mais presente e aguda a
dualidade entre a mente e o mundo, entre o Eu e o não-Eu e tende a se
polarizar nos opostos: a finitude do homem frente ao mundo, cujas
possibilidades totais ele não alcançará com seu conhecimento. A ironia que
emerge desse corpus literário é o resultado da soma de inúmeros fatores tais
como o individualismo romântico, o conflito entre ilusão e realidade, as
limitações do Eu, a contradição, sempre presente, entre liberdade e
necessidade, espírito e matéria, vida e morte.
Para Friedrich Schlegel, um dos primeiros e mais importantes teóricos do
assunto, a reconciliação dos contrários não é uma questão de síntese mas uma
aquisição da ironia (...).
55

A ironia romântica será, dessa forma, a representação, na arte, dos


contrastes, que já existiam no contexto histórico do século XVIII, época, que,
segundo Lélia Pereira Duarte, em Ironia e humor na literatura (2006, p. 141),
marca o paradoxo entre a valorização do indivíduo e a massificação deste, pela
sociedade burguesa, entre a importância da atividade artística e a valorização do
capital financeiro.
Para representar essa realidade ambivalente, na qual havia “reconciliação
dos contrários”, como denomina Schlegel, a ironia romântica, na Literatura, fará
uso de inúmeros artifícios, assim assinalados por Duarte (2006, p. 42-3):

Reduplicação, espelhamento, fragmentação, mascarada, inversão,


autoparódia, multiplicação de papéis representados, jogo e parábase são
artifícios da obra construída com a ironia romântica, em que o autor se
mostra constantemente por trás de suas personagens, pois o objetivo é
desfazer a ilusão da representação, contradizer o espírito de seriedade da
obra. Esta não será assim a representação de algo exterior a si, mas algo que
se faz diante do leitor/espectador, essencial para a existência da obra; o
narrador/autor pode contar uma história, a história que quiser, conduzi-la
como lhe aprouver, porque só ele a conhece (ou só ele pode inventá-la).
Paradoxalmente, porém, só o pode fazer porque há quem o entenda, quem
acredite nesse saber, quem se disponha a entrar nessa comunicação.

É dentro dessa nova perspectiva, que, segundo Duarte (2006,42), a obra de


arte será vista como autônoma. Com isso, nota-se o trabalho do artista, aspecto
este também observado por Lukács, conforme observa Muecke (1995, p. 119):
A ironia que Lukács considera a „mentalidade normativa do romance‟ é a
Ironia Romântica. (...) a Ironia Romântica, como programa artístico, tem um
duplo objetivo: pela incorporação da autoconsciência do artista, imbuir a obra
criada (que como tal pode apenas ser limitada e parcial) da dinâmica do
processo criativo, e ao mesmo tempo mas ao contrário, inventar uma forma
de exprimir esta ilusão artística de autocriatividade (...).

A concepção de ironia romântica de Lukács se assemelha a de Schlegel,


porém será questionada por Hegel, para quem a arte teria de ter um caráter moral:
Para Schlegel e para a ironia romântica, a verdadeira arte estará desvinculada
de valores morais e representa o reconhecimento do artista de que é
impossível a realização de seu desejo do absoluto, dadas as suas limitações.
O autor relaciona a dialética irônica com as duas polaridades do pensamento
idealista – finitude e infinitude, criação e negação de si – e revela sua
inclinação por uma ironia capaz de absorver todas as outras a partir da
valorização do fragmento e da relatividade. Na sua teoria estética, a ironia é
uma resposta à irrealizabilidade do absoluto, visto como tangível presença
para a consciência.
É sintomático que essa perspectiva estética schlegeliana tenha sido
severamente criticada por Hegel, cujo idealismo, marcado pelos princípios da
fenomenologia, valoriza a representação como a tarefa original da expressão
artística, vista como um degrau para se chegar ao absoluto. É que, para
56

Hegel, a arte tem de ser moral, sendo a linguagem mediadora entre as


representações interiores e exteriores (DUARTE, 2006, p. 43).

A incapacidade de realizar o absoluto e o contraste entre finitude e


infinitude conduzem a outro aspecto constituinte da ironia romântica, o
isolamento do homem, causado pelo fato deste se tornar objeto de si próprio,
sendo privado das faculdades de poder e agir, que irão de encontro ao caráter
cindindo e finito do mundo, conforme destaca Szondi (1991, p. 109 apud Beth
Brait, 2008, p. 34), em Ironia em perspectiva polifônica.
Berel Lang, no artigo “The limits of irony” (1996, p. 575), destaca que a
ironia romântica trouxe à tona uma nova preocupação, a necessidade de se definir
o que seria o não irônico:
(...)
Para a ironia romântica, que [,] dessa forma [,] encontra a evidência para o
que reivindica resumir na relação entre arte e mundo, o problema persiste se
qualquer arte poderia ser não irônica. E isso nada vale [,] uma vez que os
teóricos [,] que anteriormente não se identificavam com os românticos,
muitas vezes rejeitaram essa possibilidade. A linha de raciocínio aqui é
atraentemente mas enganosamente simples: porque a arte é uma redescrição
ou revisão – o que estende a contradição – do mundo como dado, seu caráter
intrinsecamente irônico (a afirmação continua) é inevitável. Então, um crítico
tão conservador como Northop Frye chega à mesma conclusão geral: „A
estrutura literária é irônica‟, ele escreve, „porque o que ela diz‟ é sempre
diferente em classe e gênero do „que ela significa‟8

A afirmação de Lang serve para reforçar o caráter paradoxal do qual a


ironia romântica é constituída, característica que, somada ao desmascaramento da
arte e da contestação das regras, contribuiu para que o referido tropo
transcendesse o século XVIII e promovesse novas dimensões à arte moderna,
conforme é afirmado em Brait (2008, p. 39):

(...) é necessário esclarecer que, além do caráter quase religioso que a reveste,
no sentido de desfazer as aparências do mundo filisteu, aí estão assinalados
outros dois aspectos que, sendo característicos da ironia romântica, podem
ser tomados como antecipadores, ou mesmo precursores, de várias dimensões
da arte moderna: a) a utilização da ironia como forma de cortar a ilusão

8
Tradução livre da seguinte citação: “(…) For romantic irony, which thus finds the evidence for
its claims epitomized in the relation between art and world, the question persists of whether
any art could be nonironic. And it is worth nothing that also theorists not otherwise identified
with the romantics have often rejected this possibility. The line of argument here is engagingly
but deceptively simple: because art is a redescription or revision – to that extent a denial – of
the world as given, its intrinsically ironic character (the claim goes) is inescapable. Thus, so
conservative a critic as Northrop Frye arrives at the same broad conclusion: ‘The literary
structure is ironic’, he writes, ‘because ‘what it says’ is always different in kind or degree from
‘what it means’”.
57

criada pela própria obra de arte; b) a importância da ironia romântica em seu


trabalho de abolir a coerência, abalar as regras da lógica, contestar o domínio
do racional.

Dentre as obras literárias que já apresentam traços da ironia romântica,


Schlegel cita “Dom Quixote” (Cervantes), “Tristam Shandy” (Laurence Sterne) e
“Jacques, le fataliste” (Diderot), conforme assinala Muecke (1995, p. 41).
No século XX, o estudo da ironia será centrado não mais na perspectiva
meramente filosófica, mas, antes de tudo, na linguagem. Nesse momento,
destacam-se os estudos de Henri Bergson, Norman Knox, Lucie Olbrechts-Tyteca,
Heinrich Lausberg, Dominique Maingueneau, Catherine Kerbrat-Orecchioni e
Paul-Laurent Assoun, cujas ideias serão vistas a seguir.
Henri Bergson traz o aspecto linguístico para o estudo da ironia por meio
de dois conceitos, o de interferência de séries e o de transposição, assim definidos
por Beth Brait (2008, p. 41-2):
(...)
Ao abordar a questão da ironia, o autor utiliza o conceito de interferência de
séries que, sem ser um mecanismo exclusivo do discurso irônico, pois
pertence a outras formas consideradas cômicas pelo estudioso, é o aspecto
que possibilita uma reflexão em torno de um mecanismo discursivo
propriamente dito: „A interferência de dois sistemas de idéias na mesma frase
é a fonte inesgotável de efeitos engraçados. Há muitos meios de obter a
interferência, isto é, de dar à mesma frase duas significações independentes
que se superpões‟ Juntamente com o conceito de transposição – „Obteremos
um efeito cômico ao transpor a expressão natural de uma idéia para outra
tonalidade‟ -, a concepção de interferência de séries vai deflagrar, em
Bergson, a definição de ironia verbal, considerada por ele como uma
transposição numa interferência de séries (...).

O caráter retórico da ironia, destacado por Bergson, ganha contornos


mais definitivos com Norman Knox, cujo estudo se destacará pela inserção de
uma nova categoria, a ironia paradoxal:

No processo de seguir a evolução do conceito de ironia e de estabelecer os


aspectos básicos, já emergiram algumas distinções entre classes de ironia,
notadamente as diferenças entre a Ironia Instrumental e a Observável e entre
a Ironia Fechada e a Aberta (ou Paradoxal). O termo Ironia Paradoxal foi
proposto por Knox, que relaciona outras quatro classes e distingue as cinco
entre si com base em três critérios (...):
1. Atitude para com a vítima da ironia, que vai de um alto grau de
desinteresse a um alto grau de simpatia ou identificação.
2. Destino da vítima: triunfo ou derrota.
3. Conceito de realidade: se o observador irônico considera que a realidade
reflete os seus valores e é hostil a todos os valores humanos.
Estas nos dão as quatro Ironias Fechadas:
I. A realidade reflete os valores do observador:
58

a. „A ironia cômica [„cômica‟ no sentido de final –feliz] revela o triunfo de


uma vítima simpatética‟. (O fato de suas expectativas confiantemente
obscuras serem derrotadas torna cômica sua situação também no sentido
comum).
b. „A ironia satírica revela o malogro de uma vítima não simpatética‟.
II. A realidade é hostil a todos os valores humanos (malogro, portanto,
inevitável):
c. „A ironia trágica, predomina a simpatia pela vítima‟.
d. „A ironia niilista, o desinteresse satírico equilibra ou domina a simpatia,
mas resta sempre um certo grau de identificação desde que [ o observador]
compartilhe necessariamente a condição da vítima‟ (...). (MUECKE, 1995,
p.71-2).

Já os estudos de Lausberg (1972) e Catherine Kerbrat- Orecchioni (1978)


retomam a questão do contraste promovido pela ironia. Lausberg usa tal noção na
conceituação de ironia retórica, destacando que a mesma é utilizada para exprimir
uma ideia de contrariedade, ficando tal intenção explícita em sua enunciação
(LAUSBERG, 1972, p. 163-4 apud DUARTE, 2006, p. 20). Kerbrat-Orecchioni,
por sua vez, utiliza-se da noção de oposição para distinguir a ironia referencial da
verbal:
(...)
a autora [Catherine Kerbrat-Orecchioni (1978)] vai procurar detalhar melhor
o sentido da expressão „ironia referencial‟, estabelecendo as diferenças entre
esse conceito e o de ironia verbal, fazendo as seguintes afirmações: „(...) se
fala de ironia referencial quando se percebe um contraste, uma contradição de
fatos simultâneos. Nesse sentido a ironia não-verbal está em relação com a
ironia verbal e os dois sememas do termo estão em intersecção – há
polissemia e não homonímia: a noção de contradição está no coração do
conceito de ironia: ironia referencial = contradição entre dois fatos contíguos;
ironia verbal = contradição entre dois níveis semânticos ligados a uma
mesma seqüência significante.‟ (KERBRAT-ORECCHIONI, 1978, p. 17
apud BRAIT, 2008, p.77-8).

No tocante ao presente trabalho, o que se irá verificar, nos contos


machadianos a serem aqui estudados, é a presença da ironia referencial, dado que
a ideia de contraste, nos mesmos, está diretamente relacionada aos acontecimentos
narrados, a exemplo do que ocorre em O caso da vara, em que Damião promete, a
si mesmo, salvar Lucrécia, mas, acaba por ajudar a castigá-la.
Em oposição a esta perspectiva de ironia, surgem as considerações de
Lucie Olbrechts-Tyteca, Dominique Maingueneau e Assoun.
Lucie Olbrechts-Tyteca vai caracterizar tal tropo discursivo partindo de
três elementos: a analogia, a argumentação direta e os “sinais” emitidos pelo
enunciador, conforme é esclarecido por Brait (2008, p. 67-8). Além disso, o
59

referido estudo se destaca por não se deter no estudo da ironia apenas em frases,
mas por priorizar o texto:

Há ainda uma outra característica que merece ser destacada no estudo de


Olbrechts-Tyteca: mesmo trabalhando narrativas curtas, a autora focaliza a
ironia em termos não de frase, como costuma acontecer com a maior parte
dos trabalhos integrados a essa linha, mas em termos de texto. Tanto
analogia quanto argumentação indireta e sinais emitidos pelo enunciador
são colocados em termos textuais e não frasais. Nesse sentido, esse estudo é
indispensável para a compreensão da dimensão discursiva da ironia, na
medida em que os mecanismos destacados são elementos articuladores de
textos e, necessariamente, dimensionados de forma enunciativa (BRAIT,
2008, p. 69).

O estudo de Lucie Olbrechts-Tyteca compreende a ironia sob uma


perspectiva mais ampla, uma vez que a noção de contraste é assinalada, sobretudo,
por meio do vocabulário utilizado, que se caracteriza por ser “(...) restrito,
específico, feito notadamente de superlativos e palavras arcaicas” (BRAIT, 2008,
p. 67-8). Ainda no plano linguístico, Olbrechts-Tyteca destaca a importância de
figuras da hipérbole, “(...) caracterizada como „uma técnica para assegurar o
sucesso da ironia‟” (BRAIT, 2008, p. 67-8) e das perguntas reiteradas, elementos
estes que possibilitam a identificação do discurso irônico para o seu destinatário.
Assoun amplia a visão assinalada por Olbrechts-Tyteca, destacando que a
ironia só pode ser realmente compreendida quando assim há predisposição, por
parte dos envolvidos no processo:

(...) como assinala Assoun, (...) a ironia, que só acontece quando o outro a
que se dirige está preparado para entender o contrário, funciona como um
diálogo ou uma interlocução dos inconscientes: „É enquanto outro que o
locutor irônico introduz o duplo sentido em seu discurso, o que é um meio
privilegiado de penetrar no inconsciente do outro, funcionando no mesmo
lugar que esse outro‟ (ASSOUN, 1980a, p. 161 apud BRAIT, 2008, p. 57).

Maingueneau também aborda a ironia a partir de uma perspectiva


dialógica, porém sob o viés da pragmática, fato que o diferencia de Assoun:

Compreender a ironia como uma „menção‟ significa distanciar-se da


concepção retórica tradicional que a coloca como „figura pela qual se diz o
contrário do sentido literal‟ e aproximar-se de uma perspectiva pragmática,
como também o faz Dominique Maingueneau:
[...] o „locutor‟ de uma enunciação irônica encena, por assim dizer, um
personagem que sustenta uma posição manifestamente deslocada e da qual
ele se distancia, pelo tom e pela mímica em particular. Ele se coloca como
uma espécie de imitador do personagem que ele ridiculariza fazendo
exprimir-se de maneira incongruente [...] Como explica Ducrot, „falar de
60

maneira irônica, acontece, para um locutor L, que apresenta a enunciação


como exprimindo a posição de um enunciador E, posição pela qual, como se
sabe, o locutor L não se responsabiliza e, mais que isso, toma-a por absurda
[...] (MAINGUENEAU, 1990a, p. 79 apud BRAIT, 2008, p. 66):

Para retomar as várias mudanças pelas quais passou o conceito de ironia,


bem como as várias tipologias existentes acerca da mesma, vistas nesse tópico,
faz-se uso, nesse momento, de um quadro-resumo:

Autor (a) Conceito de ironia Classificação / Tipologia


Sócrates Ironia como um elemento -
logrativo, constituído a
partir do diálogo, cujos
momentos se dividem em
confutação
(correspondente à
dialética em si) e
maiêutica (o
“nascimento” das novas
ideias).
Aristóteles Ironia como o extremo -
dimunutivo da verdade.
Kierkegaard Ironia como um elemento Ironia sensu eminentori
de contraste (contestação da realidade
de uma dada época
histórica); ironia
executiva (essência x
fenômeno); ironia
contemplativa (= escarno,
sátira, sarcasmo); ironia
negativa (ideia x
realidade, possibilidade x
realidade).
John Dryden Ironia como sinônimo de -
escárnio, zombaria,
61

sarcasmo
Anthony Cooper Ironia como uma figura Ironia suave
Shaftesburry
que, embora esteja
associada à ideia de
escárnio, tem caráter
sereno e reservado
internamente
Fielding Ironia como estratégia Ironia autotraidora
satírica
Johan Gottlieb Fichte Ironia como uma segunda -
potência da subjetividade
A. W. Schlegel Ironia como sinônimo de -
sátira
Friedrich Schlegel Ironia como um processo -
passivo.
Karl Solger Ironia como negatividade -
Connop Thirlwall Ironia como negatividade . Ironia dialética: retoma
(= ironia observável) os conceitos dos filósofos
gregos;
. Ironia prática: 1)
substituição de palavras
irônicas por ações
irônicas; 2) relacionada
às circunstâncias, aos
efeitos desastrosos;
. Ironia dramática: aponta
para a aparência e a
realidade de uma
personagem.
Heine Ironia como um elemento -
cujo caráter é autoprotetor
e niilista
Friedrich Schlegel e Ironia como uma Ironia romântica
outros
62

“reconciliação dos
contrários”, como um
meio da obra de arte
autorrepresentar.
Henri Bergson Ironia como uma figura Ironia verbal
de dupla significação
superposta (=
interferência em séries) e
transposta (=
transposição)
Norman Knox Ironia como um elemento Ironia Paradoxal
associado a aspectos
como: atitude de sua
vítima, destino desta e
conceito de realidade.
I. A. Richards Ironia como uma figura -
que aproxima e equilibra
os opostos.
Lausberg Ironia como uma figura Ironia retórica
que, explicitamente,
denota a ideia de
contraste.
Catherine Kerbrat- Ironia como constraste, .Ironia referencial:
Orecchioni
tanto ao nível dos fatos, contraste entre fatos
quanto semântico. simultâneos;
. Ironia verbal:
contradição entre dois
níveis semânticos,
ligados a uma mesma
sequência significante.
Lucie Olbrechts-Tyteca Ironia como um elemento -
linguístico, associado a
três aspectos: analogia,
63

argumentação direta e os
“sinais” emitidos pelo
enunciador.
Assoun Ironia como um processo -
dialógico
Dominique Maingueneau Ironia como um processo -
dialógico e pragmático.

Apesar dessa ampla classificação, a categoria aqui priorizada será a ironia


romântica, surgida no século XVIII, uma vez que se observam, nos contos
machadianos aqui em análise, algumas das características de tal modalidade, a
exemplo do humor, da presença de uma ironia que assinala para a noção entre
realidade e ilusão e da ambiguidade discursiva, que permitem perceber a
representação do escravo sob a perspectiva que a sociedade patriarcal tinha deste.

2.2. A ironia em Machado de Assis: revisão crítica


Antes de adentrar ao estudo da ironia nos contos machadianos que
constituem o corpus desse trabalho – Virginius (1864), Mariana (1871), Encher
tempo (1876), O caso da vara (1899) e Pai contra mãe (1906) – faz-se necessário
traçar um percurso crítico a respeito do tema. Para tanto, serão considerados os
estudos críticos de José Aderaldo Castello (1969), Antonio Candido (1970), Sonia
Brayner (1979), Roberto Schwarz (1990), Alfredo Bosi (1999), Álvaro Marins
(2004), John Gledson (2006), Lélia Pereira Duarte (2006), José Maurício Gomes
de Almeida (2008), Eduardo de Melo França (2008) e João Batista Pereira (2009).
José Aderaldo Castello, na obra Realidade e ilusão em Machado de Assis,
antes de discutir a respeito da ironia, destaca que a evolução no emprego de
recursos estilísticos, na passagem da fase tida como “Romântica”, para a
denominada “Realista”, garantiu, à prosa machadiana, uma nova perspectiva:

(...) Ao mesmo tempo, sugere o ângulo de visão do que é dado como refúgio
– ilha imaginária, cujo contorno e existência se definem pela certeza da
verdade interior – a partir do qual investiga as relações e reações humanas
nos limites do cotidiano. Do plano interior à realidade contingente, a
aproximação e o equilíbrio se fazem através da análise repassada de
compreensão e tolerância. Certamente, ele usaria muletas e trapézios,
evoluindo do trocadilho, do gracejo e da ironia, do riso quase anedótico, ao
humor refinado. Isso acontece à medida que a visão caleidoscópica se reduz a
um foco único, apesar da possibilidade de existir e de ser utilizado mais de
um ângulo de apreensão da realidade. Por outro lado, essa perspectiva lhe
64

proporciona a seleção e a depuração temática dos romances, conjuntamente


com outros elementos que serão reconhecidos na poesia, no teatro, na
correspondência e igualmente no conto. (CASTELLO, 2008, p. 52).

O estudo de Castello se destaca por ser um dos primeiros a enfatizar que,


dentre esses recursos estilísticos, a ironia passará a ocupar um importante lugar na
obra machadiana, particularmente nas crônicas, uma vez que vai denunciar os
desvios de conduta presentes na sociedade carioca:

(...) Prepara-se, nas primeiras crônicas, o fermento da leveza e graça da


linguagem machadiana e do espírito que ele cultivou desde o início. Neste
caso também apoiado pela reflexão sentenciosa, direta, ou pelo seu oposto, a
ironia. Não é de estranhar, portanto, o recheio da ironia e da irreverência em
assuntos e situações que de ordinário sofrem tratamento grave. Foi recurso
para desnudar, sem despir, o ridículo, o logro, o interesse, os desvios morais
ou de responsabilidade nas obrigações pessoais ou profissionais. No começo,
ele consegue velar a sua intolerância à desfaçatez, à ambição e ao
inconformismo, a tudo em suma que pudesse ser reduzido à expressão do
ridículo humano, porque nos inferioriza. Certamente, ironia e irreverência,
caricatura ou gracejo, trocadilho se converterão em piedade e complacência,
que são os fundamentos da compreensão e tolerância do seu humor. Mas isso
tudo sem se fazer inconseqüente, porquanto ele conservará uma espécie de
censura. (CASTELLO, 2008, p.58-9).

Tal uso da ironia não estará restrito apenas às crônicas, mas também será
utilizado nos contos machadianos, conforme se observará no estupro e
assassinado de Elisa, em Virginius, na exploração dos escravos tidos como “crias”
das casas onde trabalham, como ocorre com Tia Mônica, de Encher tempo e de
Lucrécia, em O caso da vara, da captura de uma escrava grávida, em Pai contra
mãe, para citar apenas alguns exemplos.
A ironia machadiana, apesar de seu caráter crítico, servirá como uma
alternativa literária ao Naturalismo, na época vigente, conforme afirma Antonio
Candido, em “Esquema sobre Machado de Assis” (2004, p. 68-9):

Logo que ele [Machado de Assis] chegou à maturidade, pela altura dos
quarenta anos, talvez o que primeiro tenha chamado a atenção foram a sua
ironia e o seu estilo, concebido como „boa linguagem‟. Um dependia do
outro, está claro, e a palavra que melhor os reúne para a crítica do tempo
talvez seja finura. Ironia fina, estilo refinado, evocando as noções de ponta
aguda e penetrante, de delicadeza e força juntamente. A isto se associava uma
idéia geral de urbanidade amena, de discrição e reserva. Num momento em
que os naturalistas atiravam ao público assustado a descrição minuciosa da
vida fisiológica, ele timbrava nos subentendidos, nas alusões, nos
eufemismos, escrevendo contos e romances que não chocavam as exigências
da moral familiar. (...) No fim de sua vida, os leitores sublinhavam também o
pessimismo, o grande desencanto que emana das suas histórias. O de que não
há dúvida é que essas primeiras gerações encontraram nele uma „filosofia‟
65

bastante ácida para dar impressão de ousadia, mas expressa de um modo


elegante e comedido, que tranqüilizava e fazia da sua leitura uma experiência
agradável e sem maiores conseqüências. Poder-se-ia dizer que ele lisonjeava
o público mediano, inclusive os críticos, dando-lhes o sentimento de que
eram inteligentes a preço módico. O seu gosto pelas sentenças morais,
herdado dos franceses dos séculos clássicos e da leitura da Bíblia, levava-o a
compor fórmulas lapidares, que se destacavam do contexto e corriam o seu
destino próprio, difundindo uma idéia algo fácil de sabedoria. Para a opinião
culta ou semiculta do começo do século [XIX], ele aparecia como uma
espécie de Anatole France local, tendo a mesma elegância felina e menos
devassidão de espírito (...).

Essa “ironia fina”, utilizada por Machado de Assis e à qual Candido faz
referência, é a romântica, já anteriormente aqui discutida e cujo uso colaborará
para o desenvolvimento da técnica estilística do escritor Realista, que foi um
assíduo leitor de escritores ingleses como Sterne, Swift e Fielding. As influências
destes autores são percebidas nas obras machadianas:

(...)
A sua [de Machado de Assis] técnica consiste essencialmente em sugerir as
coisas mais tremendas de maneira mais cândida (como os ironistas do século
XVIII): ou em estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e
a sua anormalidade essencial; ou em sugerir, sob aparência do contrário, que
o ato excepcional é normal, e anormal seria o fato corriqueiro. Aí está o
motivo de sua modernidade, apesar do seu arcaísmo de superfície
(CANDIDO, 2004, p. 73)

Esse último aspecto também será discutido por Brayner, que enfatiza a
semelhança existente entre o humour utilizado por Machado de Assis e o presente
na Literatura Inglesa do século XVIII, e também a representação, na obra
machadiana, do homem como um ser dividido, “(...) cindido na voz de um outro
sempre presente no diálogo em que se defrontam suas instâncias discursivas”
(1979, p. 105).
Além disso, a crítica também enfatiza, de modo semelhante a Castello e a
Candido, que a ironia machadiana reflete a sociedade de sua época, situada em
meio a um caos de contestação de fim de século, imprimindo um “jogo verbal e
situacional”:

O pessimismo irônico de Machado de Assis, fruto de sua análise do homem e


da sociedade se retempera através das rigorosas construções estéticas de seus
textos – a linguagem espelhando-se em si mesma. Entretanto, subjaz a
contradição existencial cujo paradoxo básico culmina na ironia, herança
dolorosa de um final de século em contestação.
Esta ironia, iniciada como jogo verbal e situacional, galga o estágio do
existencial e do metafísico, legado de Machado de Assis a seus
contemporâneos e sucessores, revelando uma consistente e desconstrutora
visão do cosmo e do homem. As artimanhas do artifício literário levam-no
66

sempre a camuflar sua voz, não apenas através do estilo mas principalmente
no tratamento dos temas, quando os diálogos, paródias, sátiras, humour
estilístico contribuem para um efeito crítico e desiludido no seu
distanciamento.
A planejada técnica da geração de paradoxos, a sistemática e dialógica
relativização dos opostos, o desafio interno da consciência literária da
ambivalência fazem de Machado de Assis a figura mais representativa desta
era da ironia que se inicia na literatura brasileira (BRAYNER, 1979, p. 117).

As “estratégias” estilísticas machadianas, observadas por Brayner, estão


presentes nos contos machadianos que representam a escravidão, nos quais se
destacam, ainda, a figura do narrador irônico, cuja importância será discutida
posteriormente.
Apesar de a ironia, na obra machadiana, servir para abordar tanto aspectos
relativos ao contexto histórico brasileiro, quanto assinalar as influências
estilísticas de autores estrangeiros, como já foi apontado anteriormente, Roberto
Schwarz, na obra Um mestre na periferia do capitalismo (2008, p. 128-9), destaca
que o emprego de tal figura estilística não pode ser classificado, unicamente, nem
como localista, nem apenas como universalista:

(...) a ironia da prosa se constitui através da referência transatlântica


sistematizada. A definição de seu território não pode ser localista, nem aliás
universalista, pois a relação „anômala‟ entre norma burguesa e anedotas
configura uma cor definidamente nacional. O movimento da escrita diz
respeito, noutras palavras, a uma situação histórica precisa, de que faz parte
um pólo externo.

Essa “situação histórica precisa”, abordada por Schwarz e à qual a ironia


machadiana está vinculada, será um importante aspecto da obra machadiana,
sobretudo pelo fato de que vai deflagrar o “lado obscuro” da sociedade burguesa
brasileira, que se estabelece por meio do jogo de interesses e da necessidade de
manter as aparências, conforme assinala Alfredo Bosi (1999, p. 55), em Machado
de Assis: o enigma do olhar, e se encontra presente em obras como O caso da
vara e Pai contra mãe, nas quais os interesses individuais, respectivamente, das
personagens Damião e Cândido Neves irão servir como pretexto para a
desmesurada violência contra as mulheres escravas, representadas pelas
personagens Lucrécia e Arminda.
Distinguindo-se dos estudos apresentados por Bosi e Schwarz, na década de
1990, estão inseridos os dos críticos Álvaro Marins (2004), Lélia Pereira Duarte
(2006), John Gledson (2006), José Maurício Gomes de Almeida (2008), Eduardo
67

de Melo França (2008) e João Batista Pereira (2009), que abordarão a temática da
ironia não sob o foco do contexto social, embora não o desprezem, mas da
estilística.
Do estudo Machado e Lima: da ironia à sátira, de Álvaro Marins, serão
aqui expostos três argumentos, a respeito da ironia machadiana: dois destes
relacionados ao uso de tal recurso estilístico nas consideradas duas fases da obra
do escritor Realista (Romantismo / Realismo), e um terceiro, que aborda o
narrador irônico.
No tocante ao primeiro aspecto, Marins questiona, em duas passagens
distintas, a divisão da obra machadiana em duas fases, uma tida como Romântica,
outra, como Realista, cujo critério de separação se basearia, dentre outros fatores,
no uso da ironia:

Além de ser um dos pioneiros do gênero entre nós, Machado fez do conto um
laboratório para seus experimentos literários. Tomemos como exemplo os
Contos fluminenses, seu livro de estréia na prosa de ficção, publicado em
1869. Geralmente desprezado, esse livro „menor‟, torna-se, todavia, um
importante elemento para o entendimento da gênese de seus livros „maiores‟.
Como faz parte da fase inicial de Machado, via de regra é deixado no limbo
pelos leitores e, normalmente, é pouco estudado pelos críticos. Não obstante
ser seu livro de estréia como ficcionista, podem-se encontrar nele alguns
exemplos de procedimentos literários que serão gradativamente
amadurecidos pelo escritor.
É o caso do primeiro conto, „Miss Dollar‟, no qual Machado já esboça um
procedimento irônico que será marcante em sua obra: dar a entender que fala
de uma coisa enquanto, no fundo, fala de outra (...). (MARINS, 2004, p. 52).

Ao mesmo tempo, a idéia de ruptura [da primeira para a segunda fase da obra
machadiana] se fundamenta em um rompimento com o Romantismo, o que
torna a questão ainda mais problemática. Se o Romantismo brasileiro era
ufanista, a ruptura também se dá, conseqüentemente, em relação à cor local, o
que favorece argumentos para a idéia de que Machado, em sua segunda fase,
estaria desligado das questões nacionais.
Foi assim que se estabeleceu a base intelectual para a visão de um Machado
de Assis de temática mais ampla, universal. Ora, se o escritor tinha rompido
com a escola literária que defendia os valores nacionais, ele então deveria ser
alçado a outro patamar que não estivesse vinculado à tradição literária
brasileira. E o que possibilitava a colocação de Machado nesse outro patamar
era exatamente a utilização da ironia como procedimento estético (...).
(MARINS, 2004, p.212-3).

O destaque dado por Marins à ironia, nos primeiros contos machadianos, é


de grande valia, uma vez que estes, por estarem, muitas vezes, inseridos dentro do
que se passou a denominar de “fase romântica”, não ganham o devido estudo, por
68

parte da Crítica Literária, posição que é reiterada por Eduardo Melo França (2008,
p. 101-2), em Ruptura ou amadurecimento? Uma análise dos primeiros contos de
Machado de Assis:

(...)
A falta de compromisso em estudar o primeiro período da produção de
Machado fez com que a crítica não conseguisse enxergar que nesses
primeiros contos, por exemplo, já havia a ironia instalada através do jogo de
palavras e do total aproveitamento do texto. Assim como há um significado
irônico em o escravo de Brás Cubas se chamar Prudêncio, também a falta de
senso de realidade e a capacidade de Tinoco [personagem do conto „Aurora
sem dia‟] viver em um mundo de fantasia e ilusão será satirizada por
Machado a partir de um jogo de palavras que ele faz com o nome da amada
do seu herói. Inocência é o nome verdadeiro da sua paixão. Laura é como ele
a chamava em seus versos. „Esta Laura‟, diz Machado, „preciso é que se diga
não era Laura, era simplesmente Inocência‟ (...). Notemos que Machado
brinca com a semelhança existente entre as palavras Laura e láurea para
mostrar que qualquer reconhecimento que Tinoco alegasse ter entre seus
pares, não passava de fruto de sua inocência, tal qual o verdadeiro nome de
sua amada (...).

Além das obras machadianas supracitadas, estão inseridos, nesse grupo, três
das cinco narrativas que constituem o corpus do presente trabalho, a saber:
Virginius, Mariana e Encher tempo, nas quais a ironia será utilizada para criticar
o sistema escravagista e a condição do negro, no referido contexto, conforme será
visto no capítulo posterior.
O estudo de Marins (2004, p. 88) enfatiza, ainda, o papel do narrador
irônico na obra machadiana, que aparece nas narrativas por meio do diálogo que
estabelece com o leitor, tendo por “finalidade” estabelecer um laço de intimidade
com este último, estratégia que proporcionará uma identificação entre ambos e um
envolvimento menor do leitor com os personagens. O narrador irônico, portanto, é
utilizado com uma finalidade específica, associada à ironia, dentro da obra:

Quando um escritor adota esse procedimento [do narrador irônico] na criação


de uma obra, o faz claramente com um objetivo crítico, visto ser essa a
própria natureza da ironia. O que não significa, obviamente, que, ao adotar
um procedimento irônico, o criador acredite que o ponto de vista ideológico
do narrador seja o mais correto, pois isso dependerá também do ponto de
vista do leitor. É muito importante observar isso porque, quando o escritor
constrói um narrador irônico, tem sempre em mente o modo de pensar do
leitor. A construção da ironia leva em conta esse ponto de vista porque o
leitor pode, inclusive, ser um dos alvos da ironia. (DIS, 2004, p. 102).
69

Tal recurso estilístico também será enfatizado por Duarte (2006, p. 143),
que assinala as “estratégias” logrativas usadas pelo narrador irônico,
especialmente no que diz respeito ao “diálogo” que é tecido com o leitor, não
apenas nas obras de Machado de Assis, como também nas de Camilo Castelo
Branco:

O leitor é constantemente invocado nas obras de Machado e de Camilo, às


vezes de forma contraditória: o estímulo para que leia ou releia o texto
alterna-se e desestabiliza-se com os conselhos para que salte determinados
capítulos (que às vezes acaba de ler...). Várias vezes afirmam os seus
narradores que o leitor pode crer ou não no que lê. Outras vezes exibem a
destreza com que tecem as suas tramas. Em muitos momentos chamam a
atenção para artimanhas irônicas de personagens e para a ingenuidade de
receptores intradiegéticos enganados, num claro alerta para que o leitor não
se deixe também enganar pelos artifícios da narração ou para que aprecie,
com o autor, o prazer da criação. Em numerosas passagens representam-se
leitores participantes que questionam e discutem aspectos das narrativas, sua
seqüência e organização.
Esses textos de Camilo e Machado reproduzem constantemente os jogos de
enganos, as trapaças e as lutas pelo poder da sociedade que retratam, bem
como a imprevisibilidade dos acontecimentos que o homem, apesar de todos
os esforços, não consegue controlar. Mais do que denunciam, revelando que
o grande interesse do homem é apenas consigo mesmo e com seu medo da
morte, motivo pelo qual ele se ocupa em ter ou em criar uma ilusão em que
acredite.
Por isso alternam-se e substituem-se em várias obras camilianas e
machadianas as funções de narrador, narratário e personagem, e até de autor e
editor

Os narradores irônicos machadianos, nos contos aqui em estudo, terão um


importante papel: ao estabelecerem contato com o leitor, acabam não apenas o
aproximando do enredo a ser desenvolvido, como também, desenvolvendo uma
abordagem sobre a escravidão que, embora à primeira vista, pareça de empatia,
acaba por se revelar como um instrumento de crítica, a exemplo do que ocorre na
introdução “Pai contra mãe”, na qual a descrição da utilidade dos aparelhos de
tortura utilizados pelos escravos mostra as reais condições às quais os cativos
estavam submetidos.
John Gledson, em Por um novo Machado de Assis: ensaios, estuda as obras
machadianas que abordam a representação da escravidão, destacando, em duas
passagens, a importância da ironia na abordagem do tema:

(...) Machado já não podia retratar uma sociedade baseada na escravidão e no


privilégio em termos que fossem ao mesmo tempo diretos e conformistas;
assim, teve de recorrer a uma narração indireta que não era somente irônica,
mas de uma ironia total e radical, narrando tudo do ponto de vista de Brás
Cubas, ele próprio o pelintra de sorte. O que ainda hoje surpreende é o salto
70

mortal que Machado deu. Comparem „Folha rota‟(1878), o penúltimo conto


publicado no Jornal das Famílias, com qualquer obra publicada depois de
1880, para que se dê conta da envergadura dessa mudança. O tratamento
amargamente irônico – na superfície, despreocupadamente humorístico – do
destino dos pobres só transparece no último parágrafo desse conto. No
episódio comparável de Eugênia, em Memórias póstumas de Brás Cubas
(capítulos 29-34), a ironia e a amargura penetram cada frase, cada palavra.
(GLEDSON, 2006, p. 44).

(...) A nova ironia que dominara, e sem dúvida um avanço lento nos próprios
costumes, significava que certos temas – a prostituição, por exemplo, ou o
adultério –, que antes mal poderiam ser mencionados como possibilidades,
doravante podiam ser tratados com mais honestidade. (...) Essa confiança
permitia também uma nova relação, mais ativa, com o leitor, muito marcante
nessas obras (...). Todos esses fatores estão relacionados entre si; também
seria um erro ignorar uma dimensão internacional da história do conto como
gênero literário. Os seus historiadores concordam que o conto adquiriu um
novo tipo de respeitabilidade e identidade artísticas por volta dessa época.
Maupassant e Tchekhov, por exemplo, publicaram seus primeiros contos em
1880. Trata-se menos de uma questão de influência de escritores específicos
que de mudanças de gosto e atmosfera. Notícias, idéias e modas punham-se
em movimento cada vez mais rápido ao longo do século XIX, e Machado
sentiu também seus efeitos, sabendo adaptar-se a eles. (GLEDSON, 2006, p.
53-4).

Percebe-se que a ironia, na obra machadiana, torna-se um recurso estilístico


em ascensão, principalmente quando relacionada à representação da escravidão,
fato que se torna notório, quando se analisam as datas citadas por Gledson, os
anos de 1878 e 1880, que, historicamente, correspondem, como foi visto no
capítulo anterior, ao momento de crescimento do movimento abolicionista, que
fomentou o crescimento de obras nas quais a figura do negro passou a ser mais
presente.
Visão análoga à de Gledson será apresentada por João Batista Pereira, em
“A natureza vicária da ironia no conto Cantigas de esponsais” (2009, p. 115),
que, ao abordar a ironia, nos contos machadianos em que há a representação da
escravidão, enfatiza que tal recurso estilístico é utilizado não para criticar o
sistema servil per si, mas, sim a sociedade, no caso a brasileira, que fazia uso do
mesmo, fato que é evidenciado, nas narrativas, pelas “pistas” fornecidas pelos
narradores:

Os interstícios e as lacunas deixadas pelo narrador como rastros para pensar a


sociedade incluíram o leitor em uma reflexão que lhe era ausente, uma velada
crítica que é aprofundada quando a ironia destaca personagens em obscuros
desvãos, sem que eles compreendam quão intensos estão imersos em suas
realidades interiores. Machado de Assis, ao eleger a ironia para acentuar o
71

seu ceticismo e pessimismo com o Brasil do século XIX, indicia a capacidade


de apontar em direção a um mundo que exibia enganosa harmonia, quando
seu núcleo obliterava os meios de o homem conquistar a sua alteridade,
ressoando os vazios e ressaltando as indeterminações que permeavam a vida
na sociedade daquele tempo (...). (PEREIRA, 2009, p. 116)

A análise de José Maurício Gomes de Almeida, presente no livro Machado,


Rosa & Cia: Ensaios sobre Literatura e Cultura (2008), aborda a ironia
machadiana não a relacionando a uma temática, como a representação da
escravidão, a exemplo dos estudos de Gledson e Pereira, mas a partir de duas
tipologias formais, a ironia geral e a particular, conceitos baseados no estudo The
Compass of Irony, de D. C. Muecke:

Em obra clássica sobre a ironia – The Compass of Irony -, D.C. Muecke


estabelece importante distinção entre o que denomina ironia específica ou
particular, e uma outra forma, intitulada por ele ironia geral. No primeiro
caso, característico da sátira, a ironia assume caráter corretivo, volta-se sobre
um aspecto da realidade (uma doutrina, um comportamento, um personagem)
julgado negativo ou errado, enquanto todo o restante, no qual se incluem,
bem entendido, tanto o ironista como o seu leitor, permanece o pólo sadio ou
correto.
Ao lado dessa forma, cujo alcance está restrito a situações específicas,
Muecke coloca a ironia geral, de escopo muito mais abrangente, na qual a
própria vida é encarada como fundamentalmente irônica. Ou, para nos
reportarmos a uma formulação de Kierkegaard: „Não é este ou aquele
fenômeno, mas a totalidade da existência, que é encarada sub specie ironiae‟.
A ironia perde neste caso qualquer caráter corretivo ou punitivo, para se
transformar em uma maneira de ver e sentir o mundo, um mundo habituado
por contradições insolúveis, no qual todos, o ironista inclusive, estão
inescapavelmente inseridos. (ALMEIDA, 2008, p. 33).

A respeito dessas duas categorias, em Machado de Assis, Almeida afirma:

Sob tal ótica é que devemos compreender a ironia machadiana. Não que o
autor de Dom Casmurro rejeite o uso da ironia enquanto procedimento
retórico ou instrumento de sátira; mas nele essa utilização encontra-se
subordinada a problemática muito mais ampla, tornando-se a ironia uma
forma de relacionamento do escritor com a realidade como um todo, um
modo privilegiado de expressão de seu pessimismo existencial. A visão
irônica da condição humana configura a criação ficcional de Machado de
Assis em todos os seus níveis, das estratégias do discurso narrativo às
grandes linhas temáticas em torno das quais se articulam dramaticamente as
obras. (ALMEIDA, 2008, p. 34).

A postura de Almeida a respeito da ironia machadiana a compreende sob


uma perspectiva que transcende o caráter meramente literário, percebendo os
72

aspectos sociais que também estão relacionados ao uso da referida figura de


linguagem e que são de fundamental importância para a compreensão da mesma
na obra machadiana. No capítulo seguinte, os contos Virginius, Mariana, Encher
tempo, O caso da vara e Pai contra mãe serão analisados, em um primeiro
momento, individualmente, visando a observar como e qual tipologia da ironia
que é estabelecida, bem como recuperar o que já foi estudado pela Crítica
Literária a respeito das obras em questão.
Ao longo do presente tópico, pôde-se ver que a ironia, na obra de Machado
de Assis, foi estudada sob as mais diferentes perspectivas. Para recuperá-las, será
apresentado, a seguir, um quadro-resumo, contendo os nomes dos estudiosos aqui
abordados, os de seus respectivos estudos (com as referidas datas) e suas
principais ideias acerca da temática em discussão:

Autor / Crítico Obra / Data Constatações sobre a


ironia em Machado de
Assis
José Aderaldo Castello Realidade e ilusão em A ironia, principalmente
Machado de Assis (1969) nas crônicas, vai ser de
grande valia, pois
denunciará os desvios de
conduta presentes na
sociedade carioca
Antonio Candido “Esquema sobre Machado A ironia de Machado de
de Assis” (1970) Assis, por ser considerada
como “fina”, atrairá
muitos leitores, no século
XIX, que não eram
adeptos à Literatura
Naturalista.
Sonia Brayner Labirinto do espaço A ironia machadiana está
romanesco (1979) ligada a um humour
cético, que representa o
homem como um ser
73

dividido, imprimindo, na
escrita, um “jogo verbal e
situacional”.
Roberto Schwarz Um mestre na periferia do A ironia de Machado de
capitalismo (1990) Assis transcende os
limites meramente
localistas ou
universalistas.
Alfredo Bosi Machado de Assis: o A ironia machadiana
enigma do olhar (1999) reflete o “lado obscuro”
da sociedade burguesa
brasileira.
Álvaro Marins Machado e Lima: da . A ironia de Machado de
ironia à sátira (2004) Assis já está presente na
sua fase “Romântica”;
. O narrador irônico é
mais um elemento
estilístico utilizado para
reforçar a ironia
machadiana.
Lélia Pereira Duarte Ironia e humor na . O narrador irônico é um
Literatura (2006) elemento estilístico
importante, não apenas
nas obras de Machado de
Assis, mas também nas de
Camilo Castelo Branco.
John Gledson Por um novo Machado de A ironia é um recurso
Assis: ensaios (2006) estilístico que,
gradativamente, vai servir
para deflagrar a crítica à
escravidão.
José Maurício Gomes de Machado, Rosa & Cia: A ironia machadiana, de
Almeida
Ensaios sobre Literatura e acordo com a tipologia de
74

Cultura (2008) D.C. Muecke, adotada por


Almeida, pode ser
estudada sob dois vieses:
a ironia geral e a ironia
particular
Eduardo de Melo França Ruptura ou A ironia machadiana já
amadurecimento? Uma está presente nas obras da
análise dos primeiros denominada “primeira
contos de Machado de fase”, estabelecendo-se,
Assis (2008) muitas vezes, pelo “jogo”
de palavras.
João Batista Pereira “A natureza vicária da A ironia, nos contos
ironia no conto Cantiga de machadianos em que há a
esponsais” (2009) representação da
escravidão, se constitui,
por meio de “pistas”
narrativas, em uma crítica
à sociedade da época.

Neste capítulo, pôde-se perpassar pela “evolução” dos conceitos e


classificações da ironia. Destas, prevaleceu a ironia romântica, uma vez que, tanto
por uma afinidade histórica, quanto estilística, foi a de que Machado de Assis fez
uso, em suas obras.
Percebeu-se que a referida ironia foi um recurso estilístico de fundamental
importância para a compreensão da obra de Machado de Assis, uma vez que
promoveu não apenas uma ascensão em sua fortuna crítica, como também
proporcionou a abordagem de temas outrora censurados, principalmente aqueles
voltados para a crítica social.
No tocante a esse último aspecto, foi visto que, para conseguir o efeito
esperado, Machado de Assis se utilizou de estratégias estilísticas, a exemplo dos
narradores irônicos, que, ao dialogarem com o leitor, estabelecem um processo de
identificação entre ambos, fato que aproximou a obra machadiana de outras
contemporâneas, a exemplo da de autores como Sterne, Swift, Fielding e
Thackeray.
75

Apesar das influências supracitadas, é necessário mencionar que a ironia


machadiana imprimiu traços estilísticos próprios do escritor, não sendo uma
“cópia” da Literatura Inglesa do século XVIII, tampouco se caracterizou apenas
por representar o contexto sócio-histórico do Brasil Imperial, sob uma perspectiva
nacionalista: a ironia machadiana, ao partir de enredos ambientados no Rio de
Janeiro, conseguiu expressar as disparidades e os conflitos sociais vigentes, que,
após mais de dois séculos, ainda permanecem atuais.
3. Ironia e escravidão através dos contos de Machado de Assis

O presente capítulo tem como objetivo proceder à análise estilística dos contos
Virginius (1864), Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da vara (1891) e Pai
contra mãe (1906), que têm a representação da escravidão como tema. Para tanto, a
ironia será tomada como parâmetro crítico, uma vez que Machado de Assis a utilizou,
nas obras supracitadas, para representar a condição do negro, e, consequentemente,
criticar o sistema escravagista.
Como ficou assinalado no primeiro capítulo, Machado de Assis foi considerado,
por muito tempo, na Crítica Literária, como um escritor apático (visão esta que é
presente nos estudos de nomes como Sílvio Romero e Lúcia Miguel-Pereira), e, muitas
vezes, até a favor da escravidão, postura esta que ganhou repercussão devido à suposta
“posição secundária” na qual os personagens negros estariam situados, não lhes sendo
atribuídas nenhuma função relevante, nos enredos das narrativas.
Esta, entretanto, é uma posição minoritária, nos estudos da Crítica Literária
machadiana contemporânea, que assinalam – assim como demonstrará, também, o
presente trabalho – o envolvimento literário de Machado de Assis, principalmente
durante o período do Segundo Reinado, na questão do cativeiro. Esse fato torna-se
notório, quando se percebe, por exemplo, que o ano de publicação do conto Mariana
(1871), que aborda o suicídio de uma jovem escrava, é também o da promulgação da
Lei do Ventre Livre, que “libertou” os filhos das cativas, nascidos a partir daquela data,
sendo, dessa forma, a referida narrativa bastante significativa e simbólica.
É importante esclarecer, ainda, que as narrativas machadianas supracitadas, apesar
de abordarem o tema da escravidão, não o fazem sob uma perspectiva panfletária e
abolicionista, tampouco depreciadora, como ocorre em algumas obras da época, a
exemplo de Vítimas e algozes, de Joaquim Manoel de Macedo e Mota Coqueiro, de
José do Patrocínio, conforme afirma Eduardo de Assis Duarte (2007, p. 252), em
Machado de Assis afro-descendente – escritos de caramujo (antologia).
O que ocorre é exatamente o oposto: partindo da ironia e, em particular, dos
narradores irônicos, os contos supracitados, embora pareçam refletir, em um primeiro
momento, a ideologia da classe burguesa e paternalista dominante, ao apresentar o
sofrimento das personagens escravas, constituem-se, na verdade, - e eis a importância
de uma leitura mais atenta ao uso da ironia – numa crítica à sociedade escravagista.
77

Para melhor observar a relação ironia / representação da escravidão, serão


feitas as análises individuais dos contos anteriormente citados, para,
posteriormente, tecer considerações gerais sobre os mesmos.

3.1. Virginius (1864): o embrião da representação escravocrata


Virginius, primeiro dos contos aqui analisados a abordar a representação do
sistema escravocrata, destaca-se, ainda, pela presença de um narrador personagem
anônimo, que irá se relacionar com duas das personagens mais importantes da
história, Pio, ou Pai de Todos, e Julião. O primeiro é um rico fazendeiro, cujo
apelido remonta a uma imagem bíblica bastante contundente, que,
paradoxalmente, apesar da índole nobre, perpetua o sistema servil; o segundo, um
empregado daquele. Apesar das diferenças sociais e raciais existentes – uma vez
que Pio é branco e Julião, negro –, o relacionamento de ambos é bastante
amigável, fato que se comprova pela estreita convivência, na infância, entre seus
respectivos filhos, Carlos e Elisa.
Tal relação, entretanto, sofrerá grandes mudanças, quando, após uma longa
separação, Carlos, já adulto, volta à fazenda do pai e começa a assediar
sexualmente Elisa, que o recusa, atitude desencadeadora do clímax narrativo, cuja
análise será feita posteriormente. Antes, convém aprofundar alguns aspectos
relativos ao enredo.
O conto é iniciado com o recebimento de uma carta pelo advogado-
narrador, cujo nome é desconhecido contendo um bilhete, no qual seu cliente, cuja
identidade até então também é ignorada, chama-o para defender uma causa, em
uma vila próxima, com dinheiro para despesas e honorários.
Chegando à vila indicada na carta, e após conversar com um ex-colega,
também advogado e residente na localidade, o advogado-narrador tem revelada a
identidade de seu cliente: tratava-se de Pio, também conhecido como Pai de todos,
um poderoso fazendeiro da região.
Em meio à conversa, um dos empregados de Pio passa em frente à casa do
amigo do advogado “visitante”. Quando este pergunta ao amigo se o negro que
passara era escravo do poderoso fazendeiro, tem a seguinte resposta:
(...)
- Escravo é o nome que se dá; mas Pio não tem escravos, tem amigos.
Olham-no todos como se fora um Deus. É que em parte alguma houve nunca
mais brando e cordial tratamento a homens escravizados. Nenhum dos
instrumentos de ignomínia que por aí se aplicam para corrigi-los existem na
78

fazenda de Pio. Culpa capital ninguém comete entre os negros da fazenda; a


alguma falta venial que haja, Pio aplica apenas uma repreensão tão cordial e
tão amiga, que acaba por fazer chorar o delinquente. Ouve mais: Pio
estabeleceu entre os seus escravos uma espécie de concurso que permite a um
certo número libertar-se todos os anos. Acreditarás tu que lhes é indiferente
viver livres ou escravos na fazenda, e que esse estímulo não decide nenhum
deles, sendo que, por natural impulso, todos se portam dignos de elogios?
(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 79).

Observa-se, no trecho acima, o primeiro momento no qual a ironia


romântica se manifesta: na fala do amigo do advogado de Pio, percebe-se um
claro contraste discursivo – característica que é integrante do referido tipo de
ironia – uma vez que é afirmado, inicialmente, que o fazendeiro não possui
escravos, mas amigos, e, logo em seguida, é dito que Pio liberta, anualmente, por
meio de um concurso, alguns escravos.
Essa concepção humanizada com a qual Pio trata seus cativos, que se
diferencia da geralmente destinada aos mesmos, parece, aos advogados, não
apenas distinta, mas beirando à anormalidade, fato observado, sobretudo, quando
é afirmado que a diferença entre o cativeiro e a liberdade, para os servos do
fazendeiro, não era sentida. A opinião dos advogados, em relação à alforria,
constitui-se como um segundo momento no qual a ironia romântica faz-se
presente, uma vez que conforme já foi visto e assinalado no capítulo um, as
diferenças entre o escravo e o liberto eram bastante significativas.
Julião, um dos personagens negros do conto, é, segundo Natascha Machado
Kresh, no artigo “O escravo e o protegido: percepção do trabalho servil em
„Virginius‟” (2010, p. 155), um trabalhador livre, e não um escravo, uma vez que
possui propriedade própria, em um terreno fora da área que pertence a Pio, e, além
disso, quando é preso, pelo crime de assassinato, responde em juízo, privilégio
que, segundo Kresh, só era destinado aos cidadãos.
A interpretação de Kresh, apesar de ter validade, deixa de considerar dois
aspectos: o primeiro é que a narrativa machadiana não apresenta Julião como um
homem livre, mas como um agregado de Pio, conforme fica assinalado no trecho
abaixo:

(...)
Julião fora um daqueles a quem a alma caridosa de Pio dera sustento e
trabalho. Suas boas qualidades, a gratidão, o amor, o respeito com quem
falava e adorava o protetor, não ficaram sem uma paga valiosa. Pio, no fim
de certo tempo, deu a Julião um sítio que ficava pouco distante da fazenda.
Para lá fora morar Julião com uma filha menor, cuja mãe morrera em
79

conseqüência dos acontecimentos que levaram Julião a recorrer à proteção do


fazendeiro. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 81).

O segundo aspecto, que está relacionado ao primeiro, é que, mesmo se


considerando Julião como um homem-livre, é conveniente lembrar que, na época,
muitos negros libertos continuavam a morar e a servir seus senhores, mantendo as
mesmas relações senhor / escravo de outrora, caso este em que está inserido o
personagem e sua filha, Elisa.
Elisa é a outra personagem negra do conto, cuja trajetória é entremeada
tanto pela ironia romântica, quando pela exploração sexual. No conto, Elisa mora
com seu pai, Julião, trabalhando nas atividades domésticas do sítio onde vive,
sendo descrita, na narrativa, como uma jovem bela, de boa índole, reunindo, dessa
forma, atributos que a faziam atraente, não se enquadrando nas representações
estereotipadas, presentes na Literatura, a respeito da mulher negra, a exemplo da
amante lascívia, da feiticeira, da mucama infiel, dentre outras visões negativas9.
Jovem e virgem, Elisa vai ser estuprada por Carlos, que se aproveita da
ausência de Julião, invade o sítio deste, acompanhado de alguns capangas, amarra
e amordaça uma parente do dono da casa que se encontrava no ambiente. Este
momento é bastante simbólico, uma vez que representa, por meio do filho de Pio,
a imagem da ideologia patriarcal, que via a mulher negra como um mero objeto
para a satisfação do desejo sexual, ainda que não consentido:

(...) Era já perto da noite. Julião caminhava vagarosamente, pensando no que


lhe faltaria ainda para completar o pecúlio de sua filha. Nessas divagações,
não reparou que anoitecera. Quando deu por si, ainda se achava umas boas
braças de casa. Apressou o passo. Quando se achava mais perto, ouviu uns
gritos sufocados. Deitou a correr e penetrou no terreiro que circundava a
casa. Todas as janelas estavam fechadas; mas os gritos continuavam cada vez
mais angustiosos. Um vulto passou-lhe pela frente e dirigiu-se para os
fundos. Julião quis segui-lo; mas os gritos eram muitos, e de sua filha. Com
uma força difícil de crer em corpo tão pouco robusto, conseguiu abrir uma
das janelas. Saltou, e eis o que viu:
A parenta que convidara a tomar conta da casa estava no chão, atada,
amordaçada, exausta. Uma cadeira quebrada, outras em desordem (...).
(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 84-5).

Esse momento da narrativa não apenas deflagra a ideia de assalto sobre a


jovem Elisa, como também demonstra a anulação da identidade da personagem

9
A respeito de tais e outras representações do negro, na Literatura Brasileira, ver a obra “O
negro na Literatura Brasileira”, de Raymond S. Sayers (1958).
80

feminina principal da obra, que em momento algum se mostra como uma mulher
capaz de reagir ao constante assédio do qual acaba sendo uma vítima fatal,
condição semelhante à de outra personagem machadiana, Eugênia, jovem pobre e
coxa, que em Memórias póstumas de Brás Cubas, após ter um romance com o
narrador-personagem, acaba sendo rejeitada por este. No tocante, particularmente,
à condição de Elisa, Krech (2010, p. 157) faz a seguinte análise:
(...)
O papel de Elisa no conto é complicado. Elisa, além de ser a única
personagem feminina em „Virginius‟, é, como referido acima, o ponto de
convergência da história; ela incorpora o único motivo pelo qual o ocorrido
torna-se digno de relato. Ao contrário do que se espera de personagem tão
relevante, Elisa praticamente não exerce ação alguma no conto todo. Mais
além, Elisa não tem direito a ação. Não tem o direito de expor as suas ideias
na trama, pois praticamente não lhe é dada a palavra. Não pode ser mulher
sem ser cobiçada, ou melhor, assediada sexualmente pelo filho do patrão.
Nem tem o direito de viver, se essa vida não for honrosa. Elisa é uma
marionete num mundo de homens: muda, estática, passiva. Lembremo-nos de
que o público alvo de „Virginius‟, principais leitores do Jornal das Famílias,
eram mulheres. Como já se viu, Machado provavelmente não desejava ser
relacionado de forma direta a uma polêmica; isso porém não significa que
não polemizasse a seu modo. Talvez aspirasse sensibilizar os corações
femininos de forma mais sutil. Procurava a simpatia de suas leitoras para com
Elisa-mulher e não, necessariamente, para com Elisa-mulata

Após perceber que sua filha havido sido estuprada, Julião, para “salvar a
honra” da mesma, acaba a assassinando. Carlos, que minutos antes deixara o local
do cativeiro, chega com a polícia, que acaba prendendo o pai da jovem, enquanto
o filho de Pio consegue, nesse momento, sair impune. A morte de Elisa,
entretanto, não se dá de forma abrupta: Julião, antes de ter a casa invadida, fica
sabendo, por meio da filha, que Carlos a estava assediando e decide conversar
com o rapaz, que garante que irá respeitar a jovem “(...) como se fosse morta”
(MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 84). Em tal frase, se percebe, mais uma vez, a
presença da ironia romântica, desta vez, explicitando a ambiguidade proposital do
discurso, uma vez que as intenções de Carlos, conforme vai sendo assinalado, ao
longo da construção do perfil da personagem, remetem ao oposto do que é
prometido, tornando-o falso.
A narrativa de Machado de Assis retoma um outro texto, da Literatura
Greco-Latina, a história de Virginius, cuja filha Virgínia, desperta interesse de um
magistrado romano, Ápio Cláudio, fato observado nas análises de José Aderaldo
Castello, em Realidade e ilusão em Machado de Assis (2008, p. 94) e Eduardo
Melo França, em Ruptura ou amadurecimento? Uma análise dos primeiros contos
81

de Machado de Assis (2008, p. 144). Virgínia, entretanto, não corresponde ao


sentimento de Ápio Cláudio, que procura se vingar da jovem e do seu pai,
tomando-a como escrava, atitude que acaba sendo impedida por Virginius, que,
para não ver a filha presa à servidão, a assassina.
No conto machadiano, a história de Virginius é “transposta” para o contexto
histórico do Brasil escravagista: Virginius torna-se Julião, Virgínia, Elisa e Ápio
Cláudio, Carlos. O conto Virginius, entretanto, não deve ser visto como uma mera
representação do referido momento, no qual está inserido, mas sob uma
perspectiva mais ampla, conforme demonstra França (2008, p. 146-7):

(...)
Não podemos negar que Virginius apresenta elementos que retratam a
condição social do Brasil do séc. XIX. Contudo, reduzir o seu sentido a uma
suposta intenção de Machado em simplesmente tê-lo concebido como uma
peça de denúncia social contra as consequências de um regime escravocrata,
é não perceber que já em 1864 Machado possuía esse profundo senso de
dialética entre o clássico e o novo, o universal e o particular, a história e a
psicóloga. Ao mesmo tempo em que a tentativa de desrespeito de Carlos em
relação à Elisa pode ser lida como supostamente motivada por essa pulsão
sádica, egoísta e violenta do ser humano, também não devemos perder de
vista que será somente através das possibilidades oferecidas pelo seu meio,
ou seja, o regime patriarcal, escravocrata e a condição privilegiada dos
senhores de escravos no Brasil dos oitocentos, que essa pulsão encontrará a
possibilidade de ser posta em prática (...).

Ao “dialogar” com a Literatura Greco-Latina, Machado de Assis, em


Virginius, representa, ainda que de forma “embrionária”, a escravidão e suas
mazelas, destacando, principalmente, a violência contra a mulher negra, por meio
da personagem Elisa, que, conforme foi visto, não representa o estereótipo da
escrava lascívia, traidora, feiticeira, ou de caráter duvidoso, mas sim, o de uma
jovem vitimizada pela luxúria masculina. Além disso, convém enfatizar que,
embora Julião assassine a própria filha, de modo análogo ao que ocorre na
narrativa de Tito Lívio, o que se observa, em Virginius, é a descrença na inocência
do cativo, por parte tanto do advogado-narrador – mesmo quando fica sabendo
dos reais motivos que levaram ao crime –, quanto de seu colega, como fica
registrado nas seguintes passagens:
(...)
- Não, disse-lhe [ o narrador-advogado a seu colega], deixa-me saber de tudo
por boca do próprio réu. Depois compararei com o que me contarás.
- É melhor. Julião é inocente...
- Inocente?
- Quase. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 79).
82

(...)
Depois de algum silêncio disse-me [Pio ao narrador-advogado]:
- Já falou ao Julião?
- Já.
- Conhece então toda a história?
-Sei do que ele me contou.
- O que ele lhe contou é o que se passou (...). (MACHADO DE ASSIS, 1998,
p. 90).

Após a inocência de Julião ser conhecida por Pio e do convencimento, por


parte do advogado-narrador, da mesma, delineia-se o final de Virginius, estando
representada a ironia romântica, no que diz respeito ao contraste entre
possibilidade e realidade: Julião, após cumprir pena de dez anos de prisão, volta a
conviver com Pio, enquanto Carlos é castigado, sendo mandado para o exército,
destinos estes que, considerando o contexto social do Brasil escravocrata, e,
principalmente da organização social vigente, na época, não seriam possíveis:

(...)
No momento em que escrevo estas páginas, Julião, tendo já cumprido a
sentença, vive na fazenda de Pio. Pio não quis que ele voltasse ao lugar em
que se dera a catástrofe, e fá-lo residir ao pé de si.
(...)
Quanto a Carlos, vai resgatando como pode o crime com que atentou contra a
honra de uma donzela e contra a felicidade de dois pais. (MACHADO DE
ASSIS, 1998, p. 92-3).

Pela data em que foi publicado o conto, 1864, e sabendo que a punição
de Carlos foi o exército, subentende-se que o jovem poderia ter sido mandado
como soldado para a Guerra do Paraguai, fato percebido por Krech (2010, p. 154):

Tal hipótese pode ser considerada plausível, levando-se em consideração o


castigo que Pio escolheu para o filho, mandando-o ao exército: o trabalho
disciplinador, a perda dos bens materiais, da posição social e um futuro de
submissão. Outro aspecto interessante da punição é o fato de Carlos ter sido
enviado pelo „Pai de Todos‟ às tropas do sul. Por mais que narrativa se passe
em meados de 1850, o conto foi publicado em 1864. Em vista disso, é
deveras provável que o leitor de „Virginius‟ associe o castigo com a iminente
guerra entre Brasil e Paraguai.

Em Virginius, já se observa, por meio do uso da ironia, a crítica machadiana


ao sistema escravagista, bem como à violência sofrida pela mulher negra, aspecto
até então pouco observado na obra do escritor. Muito embora esteja inserido na
denominada “fase Romântica”, fato que se evidencia pelo maniqueísmo presente
na narrativa, especialmente no final. A temática presente em Virginius ganhará
83

contornos mais densos em Mariana, conto publicado em 1871 e cuja análise será
feita a seguir.

3.2. Mariana (1871): a prisão em meio à liberdade


Mariana foi publicado, pela primeira vez, em 1871, ano bastante
simbólico: 1871 é o ano de promulgação da Lei do Ventre Livre, que libertou os
filhos de escravas nascidos a partir da data de 28 de setembro daquele ano. De
forma bastante irônica, Mariana narra a história de um amor platônico que
termina em morte, entre Mariana, cria de uma família abastada, por Coutinho,
filho de sua senhora.
A análise da presente narrativa será realizada levando em consideração dois
recursos linguísticos: o narrador irônico, que, no referido conto é um dos
personagens, Coutinho, cuja construção do discurso terá bastante importância –
dado que a história contada, de forma semelhante ao que ocorre em Virginius, é
baseada em fatos ocorridos com o, até então, rapaz e relembrados apenas sob a
sua perspectiva – e a ironia romântica.
O conto se inicia com o encontro entre Coutinho, que é, também, o
narrador-personagem, e alguns de seus companheiros de juventude. Em meio à
conversação que trava com estes, Coutinho começa a relembrar de alguns fatos da
juventude, particularmente de sua relação com Mariana:

(...)
- Chamava-se Mariana, continuou ele alguns minutos depois, e era uma gentil
mulatinha nascida e criada como filha da casa, e recebendo de minha mãe os
mesmos afagos que ela dispensava às outras filhas. Não se sentava à mesa,
nem vinha à sala em ocasião de visitas, eis a diferença; no mais era como se
fosse pessoa livre, e até minhas irmãs tinham certa afeição fraternal. Mariana
possuía a inteligência de sua situação, e na abusava dos cuidados com que era
tratada. Compreendia bem que na situação em que se achava só lhe restava
pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora. (MACHADO
DE ASSIS, 1998, p. 154).

Este é o primeiro momento no qual se deflagra o narrador irônico e a ironia


romântica: ao descrever Mariana para seus amigos, e, consequentemente, para o
leitor, Coutinho, ao mesmo tempo em que tenta demonstrar que a jovem era uma
pessoa benquista pela família, acaba, na verdade, assinalando o oposto, mostrando
que Mariana vivia, na casa senhorial, como uma subalterna e tinha consciência
disso. Essa condição do cativo que era criado como “membro” da família branca,
mas, simultaneamente, continuava a ser tratado como subordinado, está presente
84

no discurso de Coutinho, refletindo a visão predominante que a burguesia tinha, a


respeito do negro, mesmo quando este tinha uma relação de maior proximidade
com a mesma.
Mariana se apaixona por Coutinho, embora não existisse a possibilidade
de ser correspondida, uma vez que, além da questão racial e da diferença de
classe, surge como empecilho o noivado do moço. Este último entrave será a
causa para a mudança de comportamento de Mariana, que se tornará, num
primeiro momento, uma pessoa triste e, posteriormente, exprimirá a sua tristeza
fugindo da casa onde vive, até, finalmente, cometer o suicídio.
Coutinho não atribui a mudança de Mariana ao seu noivado. Quando Josefa,
irmã do rapaz, lhe diz que Mariana pode estar apaixonada, Coutinho ironiza:

(...)
- Não sei, disse Josefa, mas alguma coisa haverá porque Mariana anda triste
desde anteontem. Que supões tu?
- Alguma coisa faria e tem medo da mamãe.
- Não, disse Josefa; pode ser antes algum namoro.
- Ah! tu pensas quê?
- Pode ser.
- E quem será o namorado da senhora Mariana, perguntou rindo. O copeiro
ou o cocheiro?
(...). (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 157).

Nessa passagem, apesar de não haver a presença do autor irônico, dado que
não é estabelecido um “diálogo” com o leitor, ocorre a ironia romântica, uma vez
que Coutinho não só demonstra incrédulo quanto à possibilidade de Mariana se
apaixonar, como, ao perguntar se o provável namorado da moça seria “o copeiro
ou o cocheiro”, acaba por demonstrar que, aos olhos daqueles que ocupam uma
posição social superior, seria impossível, a uma subalterna, apaixonar-se por um
homem pertencente a uma classe social mais elevada, dado que, para estes, as
mulheres negras ou mulatas serviam, apenas, como objeto sexual, conforme
salienta o estudo “Tomando liberdades: o escravo „fora do lugar‟” (2010, p. 105-
6), de Ingrid Hapke.
À medida que o casamento de Coutinho se aproxima, a insatisfação de
Mariana vai se tornar mais visível: a escrava passa a empreender várias fugas,
sumindo da casa dos Coutinho por vários dias, adoecendo, mas sempre
continuando ao lado de seu sinhozinho.
85

Tal realidade, entretanto, muda na última fuga, que ocorre quatro dias antes
do casamento de Coutinho, em meio à comemoração de Natal: Coutinho resolve
procurar Mariana, juntamente com a polícia e, quando a acha, repreende-a com
veemência:
(...) Mariana abriu a porta e eu apareci. Deu um grito estridente e lançou-se
nos braços. Repeli aquela demonstração com toda a brandura que a situação
exigia.
- Não venho aqui para receber-te abraços, disse eu; venho pela segunda vez
buscar-te para casa, donde pela segunda vez fugiste.
A palavra fugiste escapou-me dos lábios; todavia, não lhe dei importância
senão quando vi a impressão que ela produziu em Mariana. Confesso que
devera ter alguma caridade mais (...). (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.
167).

Percebe-se, mais uma vez, a utilização da ironia romântica e do narrador


irônico: Coutinho tenta, por meio de sua fala, mostrar a culpa de Mariana e, em
meio ao “resgate” da jovem, diz que a mesma “fugiu”, verbo que, ironicamente,
denota a real condição de Mariana, de cativa e não a que esta era creditada.
Posteriormente, mostra-se “arrependido” de suas palavras, fato que é observado
por Eduardo de Faria Coutinho (2010, p. 97), em “A desconstrução de
estereótipos de Machado de Assis: a questão da escravidão”.
Mariana se suicida e a cena é narrada detalhadamente por Coutinho. Ao
findar da conversa, momento que coincide, também, com o desfecho do conto,
Coutinho e seus companheiros seguem pela Rua do Ouvidor, a espiar os pés
femininos que ali passam:

(...)
Coutinho concluiu assim a sua narração, que foi ouvida com tristeza por
todos nós. Mas daí a pouco saíamos rua do Ouvidor fora, examinando os pés
das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões
mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinha-nos
restituído a mocidade. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 170).

A ironia é flagrante, ao final da narrativa: a tristeza de Coutinho e seus


amigos é duvidosa e efêmera, durando poucas horas, fato que assinala a pouca
importância da escrava Mariana, bem como de seus sentimentos, o que demonstra
o processo de desumanização do cativo, dentro da sociedade da época; em
contraste a esse momento, é mostrado um de deleite, representado pelas damas,
que representam a alta sociedade. A frase final da narrativa “duas horas de
86

conversa tinha-nos restituído a mocidade”, também permeada de ironia, assinala


para a normalidade que casos como o de Mariana se constituíam, a ponto de
serem, para Coutinho e seus amigos, uma “lembrança da mocidade”.
Mariana, em comparação a Virginius, é um conto que inova em dois
aspectos: o primeiro é o uso mais aprofundado da ironia, no tocante à
representação da escravidão; o segundo é a nova abordagem do referido tema, não
mais visto sob uma perspectiva que se assemelha ao maniqueísmo de Virginius,
mas por um viés crítico, no qual é mostrada a tentativa de resistência de Mariana
ao sistema que a oprimia, por meio do suicídio, fato que diferencia a personagem-
título de Elisa e, ainda, assinala uma visão do escravo não como um mero
vitimizado, mas, como alguém capaz de reagir à violência a qual é assujeitado.
De forma análoga à Mariana, Encher tempo também irá abordar a figura do
escravo doméstico, que é considerado como “membro” da família senhorial, por
meio da personagem Tia Mônica, conforme será visto na análise que se segue.

3.3. Encher tempo (1876): uma narrativa pouco conhecida


Encher tempo é um conto que se distingue dos anteriormente analisados,
devido à presença de um narrador que não faz parte da trama, sendo apenas
observador. Apesar disso, observa-se que esse narrador vai, sutilmente, ao longo
do enredo, mostrar como são constituídas as relações entre as personagens,
particularmente as que se estabelecem entre os “membros” de uma mesma
família: o padre Sá, sua sobrinha, Lulu e Tia Mônica, uma negra liberta, que mora
com ambos e cuja condição será um importante aspecto a ser analisado, uma vez
que, de forma semelhante à Mariana, o tratamento que lhe é dado é bastante
dúbio, conforme será demonstrado a seguir.
Apesar de ter a temática semelhante à de Mariana, Encher tempo é uma
obra de Machado de Assis pouco conhecida, cuja única referência, nas fontes aqui
pesquisadas, encontra-se no estudo de Raymond S. Sayers, O negro na literatura
brasileira:

(...)
Em „Encher Tempo‟, conto de publicação póstuma, Machado de Assis esboça
um retrato de uma escrava liberta. Mônica fora mãe adotiva de sua senhora,
Lulu, e a trata com carinhos e desvelos que teria para verdadeira filha,
chegando mesmo a sacrificar seu conforto e paz de espírito em favor da
menina. Mas como é personagem secundária no conto, o autor não pode
87

desenvolver sua personalidade como o faz com Raimundo, em Iaiá Garcia


(SAYERS, 1958, p. 397-8.)

Embora Tia Mônica não seja a personagem principal, seu papel, no


conto, ao contrário do que afirma Sayers, é bastante importante, pois é quem ajuda
no desfecho do triângulo amoroso formado por Lulu, Alexandre e Pedro, a pedido
da própria Lulu:

(...)
- Tia Mônica, disse a moça [Lulu]; venho pedir-lhe um grande favor.
- Um favor, nhanhã! Sua preta velha obedecerá ao que lhe mandar.
- Quando meu primo [Alexandre] sair daqui com o senhor Pedro você vai
acompanhá-los.
- Jesus! Para quê?
- Para ouvir o que eles dizem, e ver o que houver entre eles, e gritar por
socorro se houver algum perigo.
- Mas...
- Por alma de minha mãe, suplicou Lulu.
- Mas não sei... (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 453).

Tia Mônica atende ao pedido de Lulu, ainda que contrariada:

(...)
Tia Mônica vestira à pressa uma mantilha e desceu atrás dos dois rapazes. Ia
resmungando, receosa do que fazia ou do que podia acontecer, nada
compreendendo daquilo, e entretanto, cheia do desejo de obedecer à vontade
de sinhá moça. (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 453).

Percebe-se que Lulu usa de uma chantagem para que Tia Mônica faça o que
lhe é pedido, forma que demonstra o poder senhorial, embora seja mais branda
que outros métodos convencionalmente usados, na época, especialmente quando a
relação era estabelecida entre as sinhás e suas escravas, como assinala Julio Jose
Chiavenato, em O negro no Brasil: da senzala à guerra do Paraguai (1980, p.
141-2):

As sinhazinhas também tinham suas negras, onde mais acuradamente que os


meninos praticavam seu sadismo, de acordo com as crônicas da época. As
senhoras brasileiras, aliás, que revelaram uma crueldade fantástica mandando
quebrar dentes, furar olhos, arrancar seios, assar vaginas de negras, tiveram o
aprendizado desde o berço, massacrando aos beliscões e mordidas suas
negrinhas de brinquedo (...).
88

A relação entre Lulu e Tia Mônica, entretanto, não é regrada a requintes


de crueldade, mas assume uma feição maternal, a ponto de tia Mônica sacrificar
seu bem-estar para atender ao pedido de Lulu, fato que fica bastante perceptível
quando a negra volta da “missão” delegada por sua sinhá:

(...)
Era uma hora quando o som pausado e seco de uma chinela soou nas pedras
da rua. Lulu adivinhou o passou da tia Mônica; (...)
(...)
Tia Mônica subiu as escadas , e já achou no patamar a sinhá moça, que a fora
esperar ali.
-Então? Perguntou esta.
A resposta da preta foi nenhuma; travou-lhe da mão e encaminhou-se para o
quarto da moça.
- Ah! Sinhá Lulu, que noite! Exclamou tia Mônica.
- Mas dize, dize, dize, que aconteceu?
A preta sentou-se com a liberdade de uma pessoa cansada e velha, e quase
mãe daquela filha. Lulu pediu-lhe que dissesse tudo e depressa. Depressa, era
exigir muito da pobre Mônica, que além da idade, tinha o sestro de narrar
pelo miúdo os incidentes todos de um caso ou de uma aventura, sem excluir
as suas próprias reflexões e as circunstâncias mais alheias ao assunto da
conversação (...). (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 455).

Na passagem acima, percebe-se o contraste na representação de Tia


Mônica: o trecho “(...) o som pausado e seco de uma chinela” assinala a avançada
idade da personagem, além de mostrar que a saída de tia Mônica foi furtiva, às
escondidas, tendo sido provocada pelo desejo de Lulu em saber o resultado do
encontro de seus dois potenciais pretendentes, Pedro e Alexandre, reforçando
tanto a condição servil da relação existente entre Tia Mônica e Lulu, ainda que
aparentemente revestida por um caráter de familiaridade, conforme é mostrado na
passagem seguinte, “sentou-se com a liberdade de uma pessoa cansada e velha, e
quase mãe daquela filha”, como, ainda, o comportamento autoritário de Lulu,
cujas razões podem estar relacionadas ao caráter impetuoso da própria da
juventude ou pela efusão de sentimentos pelos quais a jovem estava tomada, no
momento.
Tia Mônica é ainda vista como uma escrava, para quem a liberdade de
se sentar à vontade só é permitida devido à idade avançada, mas, de forma
bastante irônica, o narrador acrescenta “quase mãe daquela filha”. Os supostos
laços familiares pelos quais Tia Mônica está “ligada” à família do padre Sá,
89

especialmente a Lulu, advêm do fato daquela personagem ser uma negra liberta,
conforme a seguinte passagem do conto:

(...)
A tia Mônica, de quem se falou em um dos capítulos anteriores, era uma
preta velha, que havia criado a sobrinha do padre [Lulu] e a amava como se
fora sua mãe. Era liberta; o padre deu-lhe a liberdade logo que morrera a mãe
de Lulu, e Mônica ficou servindo de companheira e protetora da menina, que
não tinha outro parente, além do padre e do primo (...). (MACHADO DE
ASSIS, 1962, p. 433).

A alforria, para Tia Mônica, vem quando a mesma já se encontra em


uma idade avançada. De forma bastante irônica, é mostrado, na narrativa, que a
liberdade em nada beneficiou os ex-cativos, uma vez que estes tiveram que
permanecer morando com seus senhores e, ainda mais, continuarem a ser tratados
e se portando de forma servil, conforme é ressaltado no estudo de Kátia Mattoso,
em Ser escravo no Brasil (1988, p. 206):

(...) O comportamento do liberto continua a ser o mesmo do seu irmão escravo;


ele ganha dinheiro, suas atitudes se assemelham, na medida do possível, às dos
senhores, especialmente face aos próprios escravos. Mas ele continuará a dever
obediência, humildade e fidelidade aos poderosos. Entre estes, reencontra seu ex-
senhor e todos os que animam uma mentalidade senhorial. Como o irmão
escravo, o liberto deverá trabalhar e fazê-lo nos ofícios e serviços reservados aos
grupos sociais inferiores. (...).

Ao longo do conto, o que se percebe é que a servidão ainda predomina


nas relações estabelecidas entre Tia Mônica e seus senhores, Lulu e o padre Sá:
não deixa de ser irônico o fato de Mônica ser chamada de “tia”, quando, além não
ter nenhum vínculo sanguíneo com a família Sá, é, por vezes, mal tratada pela
mesma, como ocorre quando o padre Sá interroga Tia Mônica, no dia seguinte à
sua saída repentina:

(...)
Preferiu [o padre Sá] repreender a tia Mônica, depois de a interrogar acerca dos
sucessos da véspera. A preta negou tudo, e mostrou-se singularmente admirada
com a notícia de que ela havia saído de noite; o padre, porém, soube fazê-la
confessar tudo, só com lhe mostrar o mal que havia em mentir. Nem por isso
ficou sabendo muito; repreendeu a preta, e foi dali escrever uma cartinha ao
sobrinho. (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 458).
90

O fim do dilema de Lulu, solucionado com o casamento da jovem com


Pedro e a decisão de Alexandre em seguir a carreira religiosa, faz com que a
figura de Tia Mônica “desapareça” da narrativa, uma vez que a “cena” final
incluirá apenas as personagens brancas constituintes do triângulo amoroso,
podendo-se perceber, dessa forma, a marginalização do negro doméstico, fato que
também foi presente nas outras duas narrativas anteriores:

(...) o esposo [Pedro] e padre [Alexandre] foram exemplares; um está cônego;


o outro trata de fazer o filho ministro de Estado. É possível que, a fazer as
coisas como as queria o padre Sá, não houvesse nem cônego, nem ministro.
Segredo de vocação. (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 461).

O “final feliz” não deixa de ser ironizado pelo narrador, que observa na
trama amorosa a justificativa para o título do conto:

(...) Mas que tem como esta história o título que lhe pus? Tudo; são umas
vinte páginas para encher tempo. Em falta de coisa melhor, lê-se isto, e
dorme-se (MACHADO DE ASSIS, 1962, p. 461).

Entretanto, o título da narrativa pode sugerir, ainda, outra interpretação,


relacionada à atividade desempenhada por Tia Mônica: na qualidade ambígua
proporcionada por sua condição de liberta-escrava, a função da personagem, no
conto, é, ao mesmo tempo, de ajudar na resolução do principal conflito da
narrativa – enquanto “mãe” de Lulu –, como foi anteriormente destacado, e,
também de cumprir uma ordem – daí, o papel de serva –, que lhe consome boa
parte do tempo, (pre) enchendo-o, ainda que contra a sua vontade.
Encher tempo não é apenas uma narrativa centrada numa história
amorosa, é, também, uma narrativa que apresenta uma crítica à suposta boa
relação entre senhores e seus “ex-escravos”, bem como uma ironia aos romances
românticos, procedimento este já observado em outra obra machadiana, publicada
em 1874, A mão e a luva:

Por meio do narrador irônico de A mão e a luva, o romantismo superficial


torna-se visível e é possível penetrar mais profundamente na complexidade
da vida social, revelando, por conseguinte, os aspectos mais relevantes da
ideologia de seus indivíduos. (...) A ironia, por sua vez, permite ao leitor
arguto uma interpretação para além do primeiro nível de narração.
(MARINS, 2004, p. 118).
91

Posteriormente à Abolição, em 1891, Machado de Assis ainda abordará


o tema da escravidão.
Desta vez, no conto “O caso da vara”, que irá representar a exploração
da mão-de-obra infantil negra, por meio da personagem Sinhá Rita, tutora de uma
espécie de “escola” de bordados, na qual Lucrécia é uma de suas alunas. A ambas
se liga a personagem Damião, que terá um importante papel na narrativa.

3.4. O caso da vara (1891): escravidão e relações de poder no sistema


escravagista.
Publicado três anos após o fim da escravidão, O caso da vara é um
conto que retoma, de forma análoga aos anteriores (Virginius, Mariana e Encher
tempo), a representação da opressão sobre os personagens negros, sob um viés
crítico e irônico, destacando-se, contudo, pelo fato de ter não mais o escravo
adulto como figura principal, mas uma criança cativa, Lucrécia, que é uma das
crias de Sinhá Rita, rica viúva que ensinava bordado, na própria casa em que
morava.
Para a análise do referido conto, serão considerados, novamente, do mesmo
modo que ocorreu em Mariana, as categorias de “narrador irônico” e da “ironia
romântica”, uma vez que serão notadas tanto a “intromissão” do narrador, quanto
a ideia de contraste, devidamente assinalada discursivamente.
O início da narrativa já demarca a presença dos recursos estilísticos
supracitados, ao descrever a ação ocorrida numa tarde, na qual Sinhá Rita é
surpreendida com a visita inesperada de Damião, jovem aspirante a seminarista e
sobrinho de seu amante, João Carneiro, enquanto Sinhá Rita vigiava suas
discípulas:

(...)
- Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu [de Damião]
padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas
idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão
atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no largo
do Capim.
- Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na
marquesa, onde estava reclinada. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 378-9).
92

Percebe-se que a presença do narrador irônico e da ironia romântica já se


manifestam nesse primeiro momento da narrativa, no qual é afirmado que
“Damião tinha umas ideias vagas”, a respeito do relacionamento de Sinhá Rita e
seu padrinho, quando, na verdade, o que se demonstra é que o jovem tinha certeza
do envolvimento amoroso de ambos, fato que fica notório em um momento
posterior da narrativa, no qual Sinhá Rita irá emprestar um rodaque a Damião,
peça que, segundo o narrador, era uma “(...) lembrança ou esquecimento de João
Carneiro” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 384), mas que, segundo a viúva,
pertencera a seu falecido marido.
A narrativa, contudo, não é centrada apenas na relação existente entre
Sinhá Rita e João Carneiro, mas, de forma mais precisa, na formada por Sinhá
Rita, Damião e Lucrécia.
A relação entre Sinhá Rita e Damião é marcada pela necessidade que o
jovem tem de sair do seminário, vendo em Sinhá Rita a única pessoa que teria
poderes para, num primeiro momento, convencer João Carneiro, padrinho do
rapaz, da falta de vocação daquele para a vida eclesiástica, e, num segundo
momento, tentar dissuadir o pai de Damião de tal ideia:

(...)

Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou
para a Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era
preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida
eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também
se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não
achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e
repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar „pessoas estranhas‟, e em
seguida afirmou que o castigaria.
- Qual castigar, qual nada! interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá
falar a seu compadre.
- Não afianço nada, não creio que seja possível...
- Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo
tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande,
senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que
não volta...
- Mas, minha senhora...
- Vá, vá. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 381).

A discussão entre Sinhá Rita e João Carneiro, acerca do destino de


Damião, reforça o status de autoridade da viúva, em contraposição à postura
subalterna de João Carneiro. Nota-se, ainda, a presença da ironia romântica, uma
vez que o uso da expressão “pessoas estranhas”, utilizada por João Carneiro, para
se referir à Sinhá Rita, somado ao tom insinuativo desta para com aquele,
93

constituem-se como artifícios que servem para mostrar a intimidade existente


entre ambos, e que, até então, na narrativa, era apenas sugerida.
Enquanto tenta resolver o problema de Damião, Sinhá Rita procura
entreter o rapaz, que, em meio à informalidade da conversa, acaba por contar
algumas anedotas, provocando, assim, o riso de Lucrécia:

(...)
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete em seus
olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha,
brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou
muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-
lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada
a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho,
para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé
da marquesa, e ameaçou-a:
- Lucrécia, olha a vara! (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 380-1).

A descrição de Sinhá como uma pessoa virtuosa logo contrasta com seu
caráter violento, já prenunciado no trecho “(...) quando convinha, brava como
diabo”, e reiterado no momento em que ameaça bater em Lucrécia, cuja descrição
física é assim mostrada:

A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era
uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia
receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma
negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma
queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que
tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação,
Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa.
Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a
culpa era sua, se há culpa em ter chiste. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.
381).

A descrição de Lucrécia, claramente, é o oposto da de Sinhá Rita. A


menina tem um físico frágil e marcas no corpo que sinalizam para a violência
sofrida, em contraposição à boa aparência e vivacidade de Sinhá Rita. De modo
bastante irônico, conforme irá destacar Alcides Villaça, em “Querer, poder,
precisar: „O caso da vara‟” (2006, p. 26-7), a etimologia do nome Lucrécia
significa “a que lucra”, e convém acrescentar que, ao longo da narrativa, e,
principalmente, no final, Lucrécia não terá lucro algum, pelo contrário: será usada
como uma espécie de “moeda de troca”, de “passaporte”, para que Damião
consiga sair do seminário.
94

Findado o prazo, Sinhá Rita vai verificar se todas as suas crias


cumpriram com a tarefa designada e reage, quando observa que Lucrécia assim
não o fez, começando a agredir a jovem, ao puxá-la pela orelha e continuando, no
momento em que pede para Damião passar-lhe uma vara, que estava próxima à
cabeceira da marquesa:

(...)
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e
pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
- Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não
querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista:
- Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim,
tinha jurado apadrinhar a pequena, que, por causa dele, atrasara o trabalho...
- Dê-me a vara, Sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe
então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso
Senhor...
- Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela cara,
sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se
compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa,
pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.
385).

A passagem final do conto é bastante significativa, por vários aspectos:


primeiramente, porque, ao introduzir o momento no qual Sinhá Rita começa a
castigar violentamente Lucrécia, assinala o abismo social existente entre ambas e
as práticas senhoriais vigentes, conforme destaca Regina Zilberman, em “Um caso
para o leitor pensar” (2006, p. 155); segundo, porque nota-se, por meio do
narrador irônico, que a real intenção de Damião não é a de salvar Lucrécia, mas
sair do seminário, fato que fica bastante claro e marcado, discursivamente, na
passagem final - “Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do
seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita” –, na
qual a gradação das atitudes do rapaz demonstra que este prefere privilegiar seus
interesses aos de outrem, postura que, de forma semelhante ao final de Mariana,
mostra, de forma crítica, o predomínio da “lei do mais forte”, que vem a ser a
classe senhorial, sob os mais fracos, os escravos.
Ainda no tocante à violência contra o escravo, Villaça (2006, p. 28-9)
enfatiza que, apesar da temática ser recorrente, Machado de Assis a aborda sob
95

uma perspectiva inovadora, em relação ao que se observava, na literatura da


época, a da escolha pessoal:

(...)
Não haveria novidade, ao fim do século XIX, em apontar as barbáries do
escravismo, contrastando-as com os privilégios dos proprietários, nem
Machado aceitaria esse esquema, dócil às retóricas e presa fácil das
ideologias de fachada. A tarefa do narrador, neste conto, é bem outra:
consiste em ir ao âmago da escolha pessoal, analisá-la intimamente e exibi-la
no âmbito das decisões capitais que se determinam no tempo e no espaço da
história humana. Que o faça dentro de um quadro em que a ênfase recai sobre
a condição do escravo é sinal de que buscou entender o instante decisivo das
chamadas éticas: instante em que o valor assume, de fato, seu verdadeiro
peso material, e enfrenta ou sucumbe como gesto de desafio que desborda do
plano da retórica, da ideologia, das intenções meritórias: o desafio de uma
polarização efetivamente materializada (...).

Em O caso da vara, torna-se flagrante a realidade da exploração da mão-


de-obra cativa infantil, embora, propositalmente, seja observado, pelo narrador
irônico, que seus acontecimentos se desenrolam antes de 1850, data que coincide
com a promulgação da Lei Eusébio de Queiroz (fim do tráfico negreiro). Esse fato
ilustra o uso da ironia romântica e reforça a crítica à escravidão, que permeiam
todo texto, como observou Zilberman (2006, p. 155-6), estando presente, ainda,
em outra obra de Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, na qual
o personagem Cotrim, ex- traficante de escravos, reclama da influência inglesa na
promulgação da Lei de 1850:
(...) [Cotrim] Opinava por várias cousas, entre outras, o desenvolvimento do
tráfico dos africanos e a expulsão dos ingleses (...) Que os levasse o diabo os
ingleses! Isto não ficava direito sem irem todos eles barra afora. Que é que a
Inglaterra podia fazer-nos? (...) (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 140-1).

O caso da vara se distingue dos contos anteriormente analisados, pelo


fato de representar a temática da escravidão por meio de Lucrécia, uma criança,
que, apesar de sua pouca idade, é explorada duramente, sofrendo vários tipos de
castigos físicos.
A presença da ironia romântica e do narrador irônico serve, na obra, para
reforçar essa condição submissa, mas também, para demonstrar como as
necessidades do escravo eram sacrificadas, muitas vezes, em prol do bem-estar
dos seus senhores. Outro conto escrito posteriormente à promulgação da Lei
Áurea e, no qual, Machado de Assis vai tornar ainda mais flagrante o confronto
existente entre brancos livres / senhores e escravos será Pai contra mãe, cuja
análise procederemos a seguir.
96

3.5. Pai contra mãe (1906): “Nem todas as crianças (escravas) vingam”
Pai contra mãe, por seu enredo, assemelha-se a outros dois contos
machadianos: Mariana, por conter cenas de morte de cativos, e O caso da vara,
pelo fato de nele ocorrer a representação da violência contra a mulher escrava.
Para analisar a narrativa aqui em questão, serão utilizadas duas categorias
estilísticas: o narrador irônico e a ironia sensu eminentori.
O conto é iniciado com a descrição dos aparelhos utilizados para a
tortura dos escravos:

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras


instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo
ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a
máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez
aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um
para respirar; e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de
beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do
senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados
extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas
a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma
vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas.
Mas não cuidemos de máscaras. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 483).

Já no início da narrativa, observa-se que Machado de Assis faz uso dos


recursos acima mencionados, uma vez que, ao apresentar os aparelhos de tortura
como “benéficos”, o narrador irônico acaba, na verdade, criticando o contexto
histórico da época – utilizando, nesse momento, da ironia sensu eminentori –, e
mostrando que tais instrumentos acabavam garantindo a “ordem” social, por meio
da força e domesticação do negro.
Além de se constituir como um claro exemplo de crítica ao sistema
escravagista, o primeiro parágrafo de Pai contra mãe representa uma importante
evolução estilística de Machado de Assis, no tratamento do referido tema, uma
vez que, segundo John Gledson, em Por um novo Machado de Assis: ensaios
(2006, p. 67), o escritor Realista trabalha o tema da escravidão, no conto, como
nunca antes o fizera, dada a profundidade com a qual é abordado:
Posteriormente a essa introdução, o narrador “apresenta” a primeira
personagem do conto, Cândido Neves:

(...)
Cândido Neves, - em família, Candinho, - é a pessoa a quem se liga a história
de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos
97

fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem
ofício, carecia de estabilidade; é o que chamava caiporismo. Começou por
querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para
compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse
a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum
esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de
atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou
seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma
repartição anexa ao ministério do império, carteiro e outros empregos foram
deixados pouco depois de obtidos. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 484-5).

No trecho acima, percebe-se que o narrador irônico demonstra Cândido


Neves como um homem que, embora livre, não exerce, por muito tempo,
nenhuma das profissões nas quais inicia carreira, pois não as acha dignas, muito
embora pertença a uma classe social inferior e dependa de tais ocupações para
sobreviver. O desemprego de Cândido Neves se torna preocupante quando,
primeiramente, casa com Clara e, posteriormente, quando esta engravida.
Machado de Assis, ao apresentar a figura de Cândido Neves como a de um
homem sem ocupação definida, sinaliza para o deslocamento sofrido por homens
livres, que se encontravam perdidos, em meio a uma época na qual a expansão
industrial tornava-se cada vez mais crescente, aspecto este apontado por Faoro
(2001, p. 351) e que pode ser entendido, na análise do conto, como um segundo
momento de manifestação da ironia sensu eminentori, uma vez que há,
novamente, uma crítica ao contexto histórico em questão.
Cândido Neves decide, então, trabalhar como “capitão do mato”,
“caçando” os escravos urbanos que fugiam de seus donos:

(...) Pegar escravos fugidos trouxe-lhe [a Cândido Neves] um encanto novo.


Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo,
paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios,
copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória.
Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo
em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade
também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas,
via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem
era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia
atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto
tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os
dentes de outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor
arranhão. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 487-8).

Ao descrever o novo ofício de Cândido Neves, o narrador sinaliza,


primeiramente para as “vantagens” da profissão (o uso da habilidade, da memória,
98

o pouco trabalho etc.). Contudo, é assinalado que tais benefícios são inúteis, uma
vez que se percebe o processo de animalização de Cândido Neves, que, para
conseguir capturar os negros, faz uso de “estratégias” próprias dos animais
selvagens, a exemplo do uso das unhas e dos dentes, bem como da “Lei de
Humanitas”, na qual só os mais fortes sobrevivem à “selva” urbana, conforme
destaca Eduardo de Faria Coutinho (2010, p. 98).
Se, em um primeiro momento, Cândido Neves tem êxito em sua nova
carreira, posteriormente começa a falhar, não conseguindo mais capturar os
escravos fugitivos:

Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já,


como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e
hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e
numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio
bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido
Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase
prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e
mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis. (MACHADO DE
ASSIS, 1998, p. 488).

Cândido Neves se vê em uma situação de extrema dificuldade, uma


vez que, além de não conseguir mais exercer plenamente seu ofício, ainda se torna
pai. Em meio a esse drama, Tia Mônica propõe, como solução, que ele e Clara
deixem o recém-nascido na Roda dos Enjeitados, saída, a princípio, repudiada
pelos pais, mas, posteriormente, acatada, cabendo a Cândido Neves a tarefa
outrora rejeitada:

(...)
Voltou [Cândido Neves] para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia
Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino
para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder
a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha
fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum
prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a
mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação; seria
maior miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso.
Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse
ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno
adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da rua dos Barbonos.
(MACHADO DE ASSSIS, 1998, p. 491-2).

Quando o ato de doar o filho já parece ser consumado, Cândido Neves vê


uma escrava fugida, a respeito da qual tinha visto um anúncio, no jornal, e cujo
99

valor da captura, cem mil-réis, poderia vir a solucionar os problemas financeiros


pelos quais passava o jovem pai e sua família.
No momento em que percebe a semelhança física entre a mulata
transeunte e a descrita pelo anúncio, o capitão do mato inicia uma “caçada” feroz:

(...) Chegou [Cândido Neves] ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na


direção do largo da Ajuda, viu do lado oposto, um vulto de mulher: era a
mulata fugida (...).
(....)
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a
rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo
da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se
dela. Era a mesma, era a mulata fujona.
- Arminda! Bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o
pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela
compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos
robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar,
parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas
entendeu logo que ninguém viria a libertá-la, ao contrário. Pediu então que a
soltasse pelo amor de Deus.
- Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho,
peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo
tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!
- Siga! repetiu Cândido Neves.
- Me solte!
- Não quero demoras; siga! (...). (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 492-3).

Fazendo uma análise mais detalhada, Eduardo de Assis Duarte, em


Machado de Assis afro-descendente – escritos de um caramujo (2007, p. 272),
destaca que o nascimento do filho de Cândido Neves desencadeia o clímax da
narrativa, uma vez que, devido a tal fato, o “capitão do mato” vai perseguir
Arminda por várias ruas, a exemplo da “Rua do Parto” e “Rua da Ajuda”, cujos
nomes, ironicamente, remetem, em seus significados, a intenções opostas as do
capitão do mato para com a escrava, reforçando o abismo social existente entre
ambos, além do desinteresse de Cândido Neves em ajudar uma escrava, que,
apesar de fugida, igualava-se a ele no tocante à questão da paternidade.
Depois de capturar Arminda, Cândido Neves a leva para seu senhor e
recebe a recompensa prometida. A escrava, por sua vez, é duramente castigada e,
como consequência da violência que sofre, acaba por abortar:

(...) [Arminda] Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali


ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao
rumor.
- Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.
- É ela mesma.
100

- Meu senhor!
- Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e
tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas
de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que
entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo
de luta a escrava abortou. (MACHADO DE ASSIS, 1998, p. 493-4).

O aborto que a escrava sofre, conforme assinala a passagem acima, será tido
como algo fatídico e impossível de ser evitado, uma vez que os interesses de
Arminda se contrapõe aos de Cândido Neves, que não demonstra remorso ao
“caçar” e maltratar a mulata, momento semelhante ao que ocorre em outra obra
machadiana, Memórias póstumas de Brás Cubas, na qual Prudêncio, ex- escravo
do personagem-título, após liberto, torna-se senhor e repete com seus cativos as
torturas que sofrera, embora, ironicamente, ainda continue a tratar seu antigo dono
por “nhonhô”, refletindo, assim, a permanência da mentalidade servil:
(...)
- Toma, diabo! dizia ele; toma mais perdão, bêbado!
- Meu senhor! gemia o outro.
- Cala a boca, besta! replicava o vergalho.
Parei, olhei... Justos céus! Quem havia de ser o do vergalho? Nada menos
que o meu moleque Prudêncio, - o que meu pai libertara alguns anos antes.
Cheguei-me; ele deteve-se logo e pediu-me a bênção; perguntei-lhe se aquele
preto era escravo dele.
- É, sim, nhonhô.
- Fez-te alguma coisa?
- É um vadio e um bêbado muito grande. Ainda hoje deixei ele na quitanda,
enquanto eu ia lá embaixo na cidade, e ele deixou a quitanda para ir na venda
beber.
- Está bom, perdoa-lhe, disse eu.
- Pois não, nhonhô. Nhonhô manda, não pede. Entra para casa, bêbado! (...)
(DUARTE, 2007, p.208-9).

Posteriormente ao aborto de Arminda, Cândido Neves volta à farmácia,


onde havia deixado seu filho, antes da começar a empreitada contra Arminda. O
desfecho do conto marca a volta de Cândido Neves para casa, com o filho nos
braços, narrando à Tia Mônica e à esposa do ocorrido:

(...) O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava
fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu
depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a
casa de empréstimo, com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia
Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia
os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava,
por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre
lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
- Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. (MACHADO DE
ASSIS, 1998, p. 494).
101

O final do conto, apesar de aparentemente “feliz”, é revestido pelas


ironias sensu eminentori, uma vez que há uma crítica a uma determinada situação
histórica e romântica, dado que a ideia de contraste está explicitamente denotada:
Tia Mônica só aceita receber o filho de Clara e Cândido de volta porque o pai traz
o dinheiro que quitará as dívidas da família; Arminda, apesar de ser vítima do
capitão do mato, é tida, por Tia Mônica, como culpada da situação; Cândido
Neves, após entregar Arminda a seu senhor e presenciar o aborto sofrido pela
escrava, afirma, ironicamente, que “nem todas as crianças vingam”.
Pai contra mãe destaca-se dos demais contos machadianos por
representar a escravidão não a partir apenas da oposição senhor / escravo (a), mas
homem livre / escrava, mostrando, por meio da personagem Cândido Neves, que a
necessidade em aderir à política da classe dominante, por parte daqueles que
dependiam desta, transcendia às questões éticas e morais. Além disso, o referido
conto é, dos cinco aqui em análise, o que apresenta uma maior contextualização e
crítica ao sistema escravagista – no qual a marginalização do negro é observada
nas cidades, suas periferias ou em trabalhos servis – utilizando-se, para isso, da
ironia sensu eminentori e do narrador irônico.
3.6. Virginius, Mariana, Encher tempo, O caso da vara e Pai contra
mãe: pontos de convergência e divergência.
Após a análise individual dos contos, cabe aqui assinalar algumas
características que estes têm em comum, além de outras que os distinguem.
Primeiramente, é preciso destacar o aspecto cronológico: quatro dos
contos são escritos ainda durante o Segundo Reinado – Virginius (1864), Mariana
(1871), Encher tempo (1876)–, enquanto um é publicado nos anos iniciais da
Primeira República, Pai contra mãe (1906).
A importância dessa divisão transcende o nível temporal, marcando
importantes transformações na estilística machadiana: enquanto os contos
publicados na época do Segundo Reinado ainda apresentam, apesar da forte crítica
à escravidão, traços do Romantismo, Pai contra mãe é um conto marcante, uma
vez que irá retratar o referido tema sob uma perspectiva distinta: “(...) Em „Pai
contra mãe‟, a escravidão é retratada em seu âmago, vista enquanto relação
sobretudo agonística em seus diversos aspectos.” (DUARTE, 2007, p. 270).
Em todos os contos, a ironia se sobressai como recurso estilístico que
serve para revelar as mazelas do regime escravagista – especialmente no que
102

concerne à desumanização do negro, utilizada como estratégia discursiva de


domínio e controle – sobretudo nas suas relações que, nas narrativas, constituem-
se, a exceção de Pai contra mãe, a partir do binômio senhores / escravos, podendo
estes últimos ser livres (Julião e Elisa, em Encher tempo; Tia Mônica, Encher
tempo), “crias” das casas nas quais moram ou trabalham (Mariana, conto
homônimo; Lucrécia, de O caso da vara) ou, ainda, “fujões” (Arminda, Pai
contra mãe). O uso da ironia, nos contos machadianos aqui em análise, sofreu
uma “evolução” estilística, conforme assinala o quadro abaixo:

Conto Modo como a ironia é utilizada


Virginius (1864) É utilizada, basicamente, para assinalar o contraste
discursivo entre o mundo senhorial e o dos escravos
Mariana (1871) Somada à ideia de contraste, que também estará
presente, o que se percebe é que a ironia é utilizada
para representar a perda de identidade da mulher
escrava.
Encher tempo (1876) É utilizada como meio de crítica à suposta boa
relação entre senhores e escravos.
O caso da vara (1899) A ironia é utilizada para criticar a exploração da
mão-de-obra infantil escrava, sendo observada,
também, no tocante à questão etimológica.
Pai contra mãe (1906) A ironia é utilizada para criticar o sistema
escravagista recém-findado, abordando mais
detalhadamente o funcionamento deste.

Independente de qual seja a posição do escravo, Machado de Assis o


representa em meio ao contexto de mudanças do Segundo Reinado, que não
alterarão, mesmo após promulgada a Lei Áurea, as relações existentes entre
brancos e negros, uma vez que estes últimos continuarão a ser vistos como
“coisas”, pertencentes à propriedade latifundiária e, após a crescente urbanização,
ligados aos afazeres domésticos ou trabalhos ligados ao uso da força física.
CONCLUSÃO

Este trabalho teve como objetivo estudar a ironia, enquanto recurso estilístico, na
representação do escravo, em cinco contos de Machado de Assis: Virginius (1864),
Mariana (1871), Encher tempo (1876), O caso da vara (1891) e Pai contra mãe (1906),
objetivando decodificar uma suposta posição crítica do escritor sobre a escravidão, um
aspecto que foi por muito tempo contestado por alguns estudiosos, a exemplo de Lúcia
Miguel-Pereira, cuja obra, Machado de Assis: estudo crítico e biográfico, assinala o
pressuposto da “apatia” machadiana, no tocante ao referido tema.
Para discutir tais questões, se procurou relacionar, no primeiro capítulo, o
contexto histórico - principalmente o de promulgação das Leis que, antes da Áurea,
tentaram findar, sem êxito, com o tráfico negreiro: a Lei Eusébio de Queiroz (1850), a
Lei do Ventre Livre (1871) e a Lei dos Sexagenários (1885) - ao de publicação das
obras machadianas supracitadas, bem como de outras, a exemplo dos romances Dom
Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Da pesquisa, chega-se à conclusão que os textos machadianos não apenas se
encontram em consonância com os acontecimentos da época, como, ainda, representam
o tema da escravidão sob uma nova perspectiva, a de apresentar o negro não mais como
uma personagem presa aos estereótipos vigentes (a negra feiticeira, o negro vingativo, o
negro herói, a multa lascívia, etc.), mas como um ser humano, cuja história será o “fio
condutor” das narrativas, posição que é observada, pela Crítica Literária, pelos estudos
de Raymond S. Sayers, O negro na Literatura Brasileira (1958); José Aderaldo
Castello, Realidade e ilusão em Machado de Assis, (1969); Raymundo Faoro, Machado
de Assis: a pirâmide e o trapézio (1974); Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas
(1977) e Um mestre na periferia do capitalismo (1990); John Gledson, Machado de
Assis: ficção e história (1986) e Por um novo Machado de Assis: ensaios (2006);
Regina Zilberman, “Um caso para o leitor pensar” (1989); Alfredo Bosi, Machado de
Assis: o enigma do olhar (1999); Massaud Moisés, Machado de Assis: ficção e utopia
(2001) e Alcides Villaça, “Querer, poder, precisar: „O caso da vara‟” (2006)
104

Os enredos dos contos, aqui em análise, são reforçados pela presença da ironia,
cujas possíveis definições e classificações foram vistas no capítulo dois, por meio
dos estudos de Kierkegaard, O conceito de ironia constantemente referido a
Sócrates; D. C. Muecke, Ironia e irônico; Berel Lang, “The limits of irony” e
Beth Brait, Ironia em perspectiva polifônica, que proporcionaram um panorama a
respeito de tal figura de linguagem, que surge, inicialmente, na Antiguidade
Clássica, com fins jocosos, cuja intenção era a de lograr o ouvinte, estratégia
muito utilizada por nomes com Aristóteles e Sócrates; com o passar do tempo, o
conceito de ironia foi visto pela perspectiva filosófica, na qual se destacaram
nomes como Karl Solger e Kierkegaard. A fase mais recente sobre os estudos
sobre a ironia a associa à linguística, vendo o referido tropo discursivo sob uma
perspectiva dialógica, que necessita sempre da interação entre os que dela
participam.
Tais mudanças, no conceito de ironia, permitiram observar não apenas o
aprofundamento no estudo de tal figura de linguagem, como, também a
interferência de tais perspectivas na Literatura. Juntamente à revisão conceitual,
foram vistas as diversas modalidades da ironia (observável, dramática, paradoxal,
etc.), tendo sido escolhidas, para análise dos contos machadianos, a ironia
romântica, uma vez que há, claramente, nos contos, a ideia de contraste (mundo
escravo x mundo senhorial) e a ironia sensu eminentori, na concepção de
Kirkegaard, dado o caráter de contestação de uma realidade histórica – no caso, a
escravidão –. Além destas tipologias foi utilizado, também, o conceito de narrador
irônico, presente, nas narrativas estudas, por meio do diálogo que este estabelece
com o leitor, tentando aproximá-lo do discurso ideológico que quer transmitir (no
presente caso, o de opressão do escravo) e afastá-lo dos personagens mais
importantes, os cativos.
Posteriormente, foi mostrado, por meio dos estudos críticos de José
Aderaldo Castello, Realidade e ilusão em Machado de Assis (1969); Antonio
Candido, Esquema sobre Machado de Assis (1970); Sonia Brayner, Labirinto do
espaço romanesco (1979); Roberto Schwarz, Um mestre na periferia do
capitalismo (1990); Alfredo Bosi, Machado de Assis: o enigma do olhar (1999);
Álvaro Marins, Machado e Lima: da ironia à sátira (2004); Lélia Pereira Duarte,
Ironia e humor na Literatura (2006); John Gledson, Por um novo Machado de
Assis: ensaios (2006); José Maurício Gomes de Almeida, Machado, Rosa & Cia:
105

Ensaios sobre Literatura e Cultura (2008); Eduardo de Melo França, Ruptura ou


amadurecimento? Uma análise dos primeiros contos de Machado de Assis (2008)
e João Batista Pereira “A natureza vicária da ironia no conto Cantiga de
esponsais” (2009), a “evolução” do uso da ironia, nos escritos de Machado de
Assis, que serviu como “marco” divisório da fase considerada como Romântica
para a tida como Realista e, com isso, permitiu, ao escritor, a representação da
escravidão sob uma perspectiva crítica, porém “camuflada”, por meio de artifícios
estilísticos, a exemplo do narrador irônico, já anteriormente citado, das lacunas
deixadas por este, ao longo do texto, e da ironia que se estabelece também
etimologicamente, quando, por exemplo, há nomes de personagens cujo
significado contrasta com a realidade apresentada, a exemplo de Lucrécia, de O
caso da vara, conforme mostra Alcides Villaça (2006, p. 26-7).
Na análise dos contos, observamos que os recursos acima citados são
utilizados tanto para expressar o contraste existente entre o mundo dos senhores e
o dos escravos, como, ainda, demonstram o violento processo de desumanização
destes últimos, que se encontram desassistidos nos mais diferentes graus: desde a
jovem Elisa, que é duplamente violentada, tanto pelo seu próprio pai, quanto pelo
filho de seu senhor, até Arminda, que foge, grávida, e, diante de uma
circunstância trágica tem a sua vida e a de seu filho sacrificadas ao ser entregue,
ao seu senhor, por Cândido Neves, um “caçador” de escravos, que apesar de
também se encontrar inserido na camada baixa da sociedade, acaba por conta de
interesses pessoais, servindo à classe dominante e que também o oprime.
Dessa forma, o que pôde se observar, neste trabalho, foi que Machado de
Assis, diferentemente do que por muito tempo se acreditou, não foi um autor
omisso ao problema da escravidão, uma vez que não apenas o abordou em seus
escritos, especialmente nos contos, como, ainda, o fez mostrando, por meio da
ironia e dos narradores irônicos, a opressão sofrida pelos cativos, perspectiva, até
então, pouco percebida na Literatura Brasileira. É necessário, entretanto, destacar
que a discussão aqui apresentada foi apenas inicial, sendo possível, a partir dela, o
surgimento de outras tantas, para as quais esperamos ter apresentado a nossa
contribuição.
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