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O mal-estar

na
globalização

Ensaio

Luciano Martins Costa


O Mal-estar na globalização

Ensaio

Copyright©2005 Luciano Martins Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
______________________________________________
Costa, Luciano Martins
O mal-estar na globalização/Luciano Martins Costa
São Paulo, 2005

Bibliografia: ISBN 978-1691310630

1. Cultura organizacional 2. Globalização


3. Economia - História I. Título

05-5212

CDD-337
______________________________________________
Índices para catálogo sistemático:
1. Globalização : Economia mundial 337

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Para Thais, Filipe e Carolina.
Introdução

O mercado mundial de divisas negocia dia-


riamente u m volume de quase US$ 2 trilhões.
O número de subnutridos crônicos em todo
o planeta alcança a cifra de 852 milhões de
indivíduos, segundo a F A O — Organização
das Nações Unidas para Agricultura e A l i -
mentação. M a i s de 2 bilhões de indivíduos
estão excluídos dos benefícios básicos da
modernidade, como habitação, saneamen-
to e garantia de nutrição, segundo relató-
rio divulgado na 11a. reunião da U N C T A D
— Conferência das Nações Unidas para C o -
mércio e Desenvolvimento. O secretário-ge-
ral da O N U , K o f i Annan, anuncia resultado
de pesquisa, na qual se constata que dois
terços dos cidadãos do planeta — incluídos habitantes das
democracias que liderara a economia mundial — não se sen-
tem representados por seus governantes.
Estudiosos das principais universidades do mundo apon-
tam o rápido desmanche de quase todos os paradigmas que
sustentaram até aqui o modelo de desenvolvimento nascido
com a Revolução Industrial. Nas grandes cidades de todo o
mundo, os cidadãos mais bem aquinhoados não conseguem
viver seu bem-estar e muitas pesquisas revelam que mesmo
os bem-aventurados estão infelizes. Responda rápido: como
você classificaria a soma dessas realidades? A mãe de todas
as crises? O triunfo perverso do capitalismo? Apocalipse? O
fim do Estado democrático? O u oportunidade?

Educado para tomar decisões com base em contextos mui-


to claros, demonstrados em relatórios e planilhas produzidos
sob padrões confiáveis e certificados internacionalmente, o
gestor contemporâneo está colocado diante de uma situação
nova, na qual boa parte do que aprendeu não faz muito sen-
tido. Por exemplo: os números no início do parágrafo acima
indicam o mais elevado patamar que o comércio de moedas
jamais alcançou, indício inequívoco de um dinamismo nunca
antes registrado nos negócios globais. Os números seguintes
demonstram o altíssimo grau de vulnerabilidade em que se
encontra o sistema econômico internacional. O resultado da
equação é a falta de sustentabilidade do sistema social, que
afeta com igual impacto as grandes corporações de negócios,
os fundos previdenciários públicos, a estabilidade dos gover-
nos e, em última instância, o bem-estar dos indivíduos.
Uma monstruosa contradição se apresenta diante da ra-
zão: quando o ser humano alcança níveis de conhecimento
jamais sonhados sobre si mesmo e sobre o Universo; quando
a tecnologia permite tangibilizar pela primeira vez o sentido
de humanidade, pela criação de uma rede de comunicação
realmente global; quando se vislumbra a possibilidade de
superação dos limites naturais da vida por conta de uma
ciência capaz de recriar organismos, somos apresentados à
sensação diária de que a humanidade recuou alguns sécu-
los e se encontra novamente lançada às disputas tribais, ao
combate corpo-a-corpo por alimento, como nos primórdios
da civilização.

fato inconteste, comprovado em sucessivos estudos que


informam os fóruns sobre o estado do mundo há mais de
uma década, que o planeta não tem como suportar o ingres-
so, no rol dos indivíduos com direito a uma vida digna, da-
quele terço da população mundial atualmente excluído. A s
fontes de alimentos, as formas de produção e a necessidade
de preservar o que resta da diversidade biológica do planeta
não completam uma conta razoável para a capacidade dos
setores produtivos de atender as necessidades mínimas dos
que estão fora do sistema, se os programas de inclusão con-
tinuarem a dar resultado.
Por outro lado, a hipótese de se retardar a melhoria da
distribuição de oportunidades, presente implicitamente em
algumas decisões protecionistas de governos de países de-
senvolvidos, se revela desastrosa: não existe estratégia de
segurança capaz de conter a pressão dos excluídos contra
os muros dos bem-aventurados. Por último, se é possível
falar friamente sobre a questão, a própria sobrevivência do
sistema mundial de negócios depende da expansão dos mer-
cados, o que exige, segundo o Banco M u n d i a l , que se con-
sidere as possibilidades de consumo da base da pirâmide.
Preservar a diversidade biológica do planeta e produzir para
os pobres. Eis o desafio completo, sem o qual parece não
haver futuro.
Quem, em sã consciência, pode se considerar seguro nes-
sa circunstância? Quem, em pleno uso da razão e do conhe-
cimento, pode afirmar seu completo bem-estar diante das
contradições do sistema econômico mundial do qual é pro-
tagonista? E m muitas organizações de negócios, aqueles que
procuram agir em favor de mudanças são ridicularizados.
Não são raras as ocasiões em que os mais críticos são des-
locados para as chamadas ações de responsabilidade social,
como um exílio que o afasta das decisões de negócio. por
toda a parte é perceptível a sensação de mal-estar.

"Quando, com toda justiça, consideramos falho o pre-


sente estado de nossa civilização, por atender de forma tão
inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos
torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento,
que provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica
impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfei-
ção, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo,
e não nos mostrando inimigos da civilização". Esse raciocí-
nio foi exposto por Sigmund Freud em 1929, em sua obra O
mal-estar na civilização, mas cabe perfeitamente no estado de
espírito que se percebe neste começo do século X X I .

VAIDADE DAS VAIDADES


Durante duas décadas, pude conviver com executivos de
diversos setores empresariais, gestores públicos e políticos.
Entrevistei cientistas, militantes de organizações humanitá-
rias — entre os quais o diretor do Programa de Desenvol-
vimento H u m a n o da O N U e o diretor do Programa de M e -
lhores Práticas em Desenvolvimento Sustentável —, além de
empresários, gerentes e alguns chefes de organizações crimi-
nosas. Acredite: encontrei nestes últimos uma visão muito
mais clara sobre a natureza de seus "negócios" do que entre
algumas celebridades do mundo acadêmico e empresarial.
Estudei as origens de algumas expressões culturais que são
sacralizadas no ambiente cultural dos gestores, de cujos fun-
damentos são recheadas muitas teses sobre liderança, estra-
tégia e produtividade.

Participei, como jornalista e gestor, dos primeiros passos


da Internet e tive a oportunidade de criar e dirigir um pro-
duto bem sucedido no setor de conteúdos online. E m 1998 e
1999, convidado pelo escritor prêmio Nob el Gabriel Garcia
Márquez, tive o privilégio de me juntar a uma dezena de
jornalistas de várias partes do mundo, que se dedicaram a
estudar a linguagem da mídia no ambiente da globalização.
Isso ocorreu num projeto chamado O Jornal Ideal, quando
então discutimos intensamente as novas formas de comuni-
cação e percepção da realidade.
A partir de 1999, pude conviver com gestores de varia-
das formações, desde prefeitos de pequenos municípios e ge-
rentes de postos do Instituto Nacional de Previdência Social
(INSS) a presidentes de grandes corporações com atuação
mundial. Entrevistei centenas desses protagonistas da his-
tória recente, utilizando o método jornalístico que objetiva
desenhar perfis pelo levantamento de premissas e modelos
mentais. Constatei muitas evidências de que o capital co-
nhecimento está sendo subvalorizado no ambiente dos ges-
tores e que, além disso, um conhecimento capital pode estar
sendo ignorado nas organizações. Esse equívoco estratégico
pode estar na origem de muitos conflitos que assombram o
mundo. Como resultado, temos uma elite poderosa como
poucas antes na história da humanidade, mas com baixo
nível de consciência sobre seu papel e uma pobre noção do
legado que está deixando.

Esses são os construtores da globalização: pessoas que pas-


sam boa parte de suas vidas trafegando pelo mundo ou parti-
cipando de teleconferências, nas quais se consolida o grande
sistema econômico e social sem horizonte de saída. A maioria
deles se tornou refém de um sistema de poder que emascula
o homem e masculiniza a mulher. A executiva adormece na
lista das mulheres mais poderosas do mundo. quando des-
perta, seu nome foi apagado das agendas de eventos. Ainda
assim, sofrem quase todos da síndrome do Super-homem (ou
da Mulher-maravilha) que faz a delícia dos psicanalistas.
U m desses personagens, presidente regional de uma
multinacional muito bem posicionada em seu setor, se ne-
gava reiteradamente a posar para fotografias em revistas e
jornais. Oficialmente, havia uma razão plausível para isso:
um colega de diretoria havia sido seqüestrado por crimi-
nosos alguns anos antes. M a s ele não resistia à tentação
de aparecer na televisão, num desses talk-shows nos quais
empresários e executivos têm a oportunidade de falar de
suas idéias e de sua responsabilidade social. O apresenta-
dor do programa também é o esperto empreendedor de um
concorrido encontro anual de presidentes de empresas, que
reúne numa ilha paradisíaca do litoral brasileiro a nata da
economia nacional.
Vaidade e vulnerabilidade andam juntas. U m desses con-
vidados especiais "investiu", num desses encontros, cerca de
120 m i l dólares para fazer boa figura entre seus pares. Teve
a oportunidade de apresentar seus projetos sociais durante o
evento. Contratou consultores, uma empresa especializada,
mobilizou diretores e gerentes. U m repórter cuidadoso cons-
tatou que suas ações de responsabilidade social valiam exa-
tamente 120 m i l dólares. A assessoria de imprensa a serviço
da empresa conseguiu contornar a situação com silogismos
e bom relacionamento, convencendo o jornalista de que o
executivo agira de boa-fé e que, afinal, o balanço social da
empresa acabaria esclarecendo as coisas.

São pessoas educadas. As mais bem educadas de seu


meio. Por essa razão, pagam um alto preço emocional por
sua presença num jogo em que há poucas chances de uma
mente bem educada se sentir à vontade. A globalização le-
vou o capital e suas regras a todos os rincões do planeta.
Colhe de lá um retrato sobre o estado do mundo que choca
as pessoas conscientes. O agente do desenvolvimento, inves-
tidor, administrador, estudioso, cidadão em sua plenitude,
sofre da angústia que, segundo Freud, acompanha a civiliza-
ção: não vê o esforço de sua disciplina resultar em um mun-
do melhor. o sonho da plenitude no mundo globalizado se
torna fonte de mal-estar.
I—Uma nova IdesJordem mundial

Os espantosos ataques terroristas aos Esta-


dos Unidos, em 11 setembro de 2001, foram
a expressão assustadoramente clara de um
mundo no qual as contradições da socieda-
de que construímos ao longo dos dois últi-
mos séculos se revelam devastadoras. Pela
primeira vez, se torna tangível para toda a
humanidade a hipótese de termos entrado
em um processo que pode conduzir ao fim
da civilização que construímos no Ocidente.
India e Paquistão disputam o privilégio de
potências emergentes na nova economia. A o
mesmo tempo, se confrontam como belige-
rantes capazes de dar início a uma guerra nuclear de pro-
porções inimagináveis.
Terrível e inominável, o ato de terror de um indivíduo
no Oriente Médio é também a metáfora a partir da qual
podemos lidar com uma resposta para a questão de termos
ou não um processo civilizatório ainda pela frente. O rei
está nu. O sistema que se impunha triunfante no processo de
globalização, insensível às denúncias do terror econômico
que impunha a bilhões de seres humanos excluídos, revela-
se extremamente vulnerável.

O inimigo que abriu as fissuras do sistema em 11 de se-


tembro de 2001 pode ter saído de uma caverna localiza-
da num país isolado da modernidade, mas foi alimentado,
educado e treinado no interior do sistema que iria vitimar.
Valeu-se dos pressupostos de democracia e tolerância que
pretendia destruir, aprendeu caprichosamente a língua, os
costumes, a geografia e todos os detalhes técnicos necessá-
rios à perpetração do ato. Contou, e certamente vai contar
por muito tempo, com adeptos no mundo que pretendeu
atingir, a julgar pelas evidências de que a ação terrorista foi
possibilitada por estratégias equivocadas, nascidas no cora-
ção do próprio sistema que estaria no papel de vítima.
Junto com as torres que simbolizavam o poder desse siste-
ma, desaba a inocência que ainda se permitiam seus agentes
individuais, os gestores de todos os tipos de negócios. Assim
como a queda do muro de Berlim, em 1989, simbolizou o
fim de uma visão simplista e bilateral de mundo, os eventos
de setembro de 2001 são o marco de uma nova era, na qual
a responsabilidade do indivíduo pelo bem-estar coletivo não
pode mais ser negligenciada.
Você já pensou nisso? Quando lê os textos de analistas,
você toma consciência de que tudo isso afeta suas decisões,
ou espera que o mercado se posicione para depois pensar
no que fazer? O inimigo agora se dilui num cenário muito
mais sutil e poderia estar sentado bem ao lado, na classe
executiva de u m vôo internacional. Você o imagina como
alguém de longas barbas, cabeça coberta por um turbante,
expressando o fanático religioso que rejeita o futuro e con-
sidera que a idade de ouro da humanidade já ficou para trás.
M a s ele também pode ser exatamente como você, vestido
em roupa de grife qualificada, senhor ou senhora de hábitos
aceitáveis no mundo civilizado — neste caso, representando
o indivíduo que se considera superior a seus contemporâne-
os, posterior à História e, portanto, isento da responsabili-
dade de contribuir para um processo civilizatório.

O u seja, as explosões no World Trade Center e no Pentá-


gono desnudam a qualidade mais perversa do capitalismo: a
vocação para gerar em si o ovo da serpente, onde germinam
o bárbaro que se exclui e o bárbaro que se considera único
portador do direito à inclusão. É, portanto, destruidor do sen-
tido essencial do modelo pluralista de organização social. Essa
realidade escancara as vulnerabilidades da sociedade moderna,
que não faz sentido sem amplas liberdades. Estas, por sua vez,
incluem movimentos maciços de pessoas, mercadorias e valo-
res e grandes concentrações e diversidade de indivíduos de ori-
gens, credos e desejos variados nos seus complexos urbanos.
E m novembro de 2001, uma pesquisa realizada pela
Universidade da Califórnia indicava que 4 4 % dos cidadãos
americanos sofriam de algum sintoma de estresse após os
atentados. N o s primeiros meses após os atentados, as res-
postas colhidas em milhares de consultas realizadas nas
grandes cidades de todo o mundo davam conta do estabe-
lecimento de um temor generalizado e difuso em relação
ao futuro da humanidade. Diante das idéias apocalípticas
que se formaram no imaginário coletivo a partir das cenas
de horror, cabe reverter o raciocínio e procurar nos escani-
nhos do dia-a-dia, onde se encontram as respostas para esse
medo. Afinal, fomos colocados diante da perspectiva de um
novo conceito de guerra prolongada e capilarizada, duran-
te a qual os mais básicos direitos do ser humano estariam
constantemente sob risco. Assim, precisaríamos incluir em
nossas reflexões estratégicas a possibilidade de as organiza-
ções de negócios serem envolvidas no conflito.

Ficou evidente que alguns militantes do complexo reli-


gioso-militar identificado como autor dos atentados vinham
atuando a partir de empresas com destacada presença inter-
nacional. D a mesma forma, uma outra catástrofe da moder-
nidade, o crime organizado, vem utilizando empresas legais
como suporte para suas atividades. Também é conhecido
que os financiadores do terror e os grupos mafiosos de todas
as nacionalidades vinham, por mais de uma década, operan-
do suas próprias organizações e utilizando instituições fi-
nanceiras com presença global para movimentar os recursos
que produziram a destruição. O que isso tem a ver com as
pequenas falcatruas que se cometem todos os dias em qua-
se todas as instituições de negócios, privadas ou públicas?
C o m as pequenas artimanhas e malandragens que nos ha-
bituamos a considerar normais, até que implodem um com-
plexo do tamanho da Enron, da W o r l d C o m , da Parmalat ou
da Adelphi Communications?
Investigações de profissionais independentes, como os jor-
nalistas que participam da organização IR E — Investigative
Reporters and Editors —, e especialistas de organismos como
a Fundação Giovanni Falcone, dão conta da leniência com
que os organismos internacionais têm tratado a liberdade de
movimentos das fortunas produzidas pelo crime organizado e
pela corrupção. Pelos mesmos canais que lavam o dinheiro das
drogas trafegaram os recursos que tornaram possíveis as cenas
que chocaram o mundo. Esses são igualmente os canais que
serviram, na década de 1980, ao financiamento dos mesmos
combatentes que lutavam no Afeganistão contra a dominação
soviética. Pelos mesmos canais se esvai a poupança de países
pobres, a partir dos movimentos de autoridades corruptas.

Uma lógica perversa se oferece como pano de fundo de


todo esse horror. U m a lógica comum às crises que se suce-
dem na economia mundial desde o início dos anos 1990,
quando capitais de imenso poder passaram a se deslocar
dos grandes centros para a periferia do mundo pós-Guerra
Fria. C o m os negócios sendo realizados sem fundamento em
valores humanitários e universais, as oportunidades se ofe-
recem mais atraentes no curto prazo quanto mais periférico
o mercado em relação aos centros tradicionais de negócios.
M a s a segurança ainda está nos velhos centros. Faz-se mais
capital com menos capital na periferia, mas é rio centro que
ele se consolida e se realiza como forma de poder. lá que
ele se recolhe nos momentos de crise.
Essa lógica tem agravado o fenômeno do crescimento
excludente que grita nas ruas e em todas as estatísticas sem,
no entanto, sensibilizar aqueles a quem a circunstância mais
beneficia imediatamente e a quem mais ameaça a longo pra-
zo. Quando a exclusão se configura em ideologia e adquire
a tecnologia para produzir agressão em larga escala, é no
centro que a violência se manifesta. Se à globalização cor-
responde o fenômeno inversamente proporcional da tribali-
zação, não seria difícil prever a volta das lutas tribais, desta
vez no coração do mundo civilizado, na forma já ensaiada
pelas gangues da década de 1980 em muitas cidades de todo
o planeta. Não custa lembrar o alerta feito há mais de vinte
anos por Willis Harman: o último recurso dos excluídos po-
derá ser a "guerra de redistribuição de riquezas".

Produz-se hoje 4 0 % mais riqueza que há duas décadas.


Utiliza-se um grau de tecnologia que há cinqüenta anos era
tema de ficção científica, mas a um custo insuportável para as
reservas naturais e inadmissível para a consciência humana.
C omo se fossem incapazes de aprender com suas próprias
ações, os gestores dos capitais estão destruindo as possibili-
dades de permanência do poder que constroem. Nenhuma
sociedade poderá emergir dessa prática, pela simples razão
de que esse capital não produz o conhecimento necessário à
criação de uma cultura própria que consolide em torno dos
negócios uma sociedade aceitável. N e m mesmo o executivo
mais bem-sucedido pode evitar a sensação de mal-estar que
essa circunstância provoca. O mal-estar na globalização nas-
ce das impossibilidades que ela gera. N a última volta dessa
espiral de contradições, elas tornam a própria globalização
uma improbabilidade, por se revelar insustentável.

Q u a l é, então, a lógica dessa prática que a longo prazo


se manifesta auto-destrutiva? Rapidamente, com a redução
de barreiras nacionais e culturais ainda existentes, o poder
gerado por esse movimento de capitais se impõe inexorá-
vel e progressivamente como centro de um sistema social e
político global. M a s em pouco tempo a sociedade poderá
estar saturada da incompetência do capital em produzir o
bem-estar geral e, como já se anuncia nos encontros para
discussão do estado do mundo, a irracionalidade pode estar
triunfando. Nunca antes, em toda a história da humanidade,
a ciência ofereceu tantos recursos para que os empreendi-
mentos humanos produzam resultados. N o entanto, sabe-se
que os direitos ao uso desses recursos se concentram de tal
maneira, que se estabelece uma versão ainda mais perversa
do colonialismo de há 300 anos. Bem pouco das conquistas
científicas é agregado ao dia-a-dia das pessoas comuns.

U m a tese provável, para explicar a incapacidade do capi-


tal de se revestir de um significado que o faça autor de uma
sociedade humana mais habilitada a durar e evoluir, pode
ter suas premissas na forma como esse poder gera e se apro-
pria do conhecimento. O capital faz apenas parte do seu tra-
balho, movendo recursos na direção da obra desejada, mas
não presta atenção aos subprodutos e recursos que gera sob
a forma de conhecimento. como se os gestores de capital
não notassem as transformações que seus movimentos pro-
duzem nem se dessem conta da sociedade que deixam para
trás. C o m o se o capital só tivesse consciência do seu poder
na realidade unidimensional do balanço de resultados.
é justamente nesse fator predominante, senão único, em
que se concentra a inteligência aplicada à gestão, que está
a questão essencial: a rigor, só existem gestores de capital.
Diante da ditadura do demonstrativo de resultados, tudo
se torna urgente, a estratégia vira uma colcha de retalhos e
todas as variadas especialidades que formam a organização
se dobram como fiéis na direção de Meca: só o resultado
interessa. Como o capital não cria o conhecimento adequa-
do para romper o curso da espiral, o único resultado que
interessa é justamente o financeiro. Assim como, desde o
início da Revolução Industrial, os modos de produção vêm
constantemente destruindo as reservas naturais do planeta, o
atual estágio do capitalismo produz a devastação cultural em
muitos ambientes sociais onde o capital atua, sem o cuidado
de estabelecer uma relação "ecológica" com o meio social.

N a cultura comum das organizações de negócios, a diferen-


ça básica entre elas ou entre os setores em que se dividem, dian-
te da questão do resultado, é a noção de prazo, não a noção
dessa qualidade essencial de produzir sem depredar material
ou culturalmente. Para uns, curto prazo é um ano; para outros,
é um mês; mas poucos correm riscos reais tendo em conta ou-
tros resultados que seriam tangíveis se houvesse a percepção de
um valor no conhecimento produzido pelo capital em ação.
Por não enxergar essa riqueza, a organização transforma
todos os gestores, mesmo aqueles dedicados às chamadas
responsabilidades sociais, em gestores de capital. Uma das
mais claras conseqüências dessa distorção é a "síndrome de
Alphaville". N a comunidade dos iguais, todos se vestem da
mesma forma, todos pensam igual, têm os mesmos desejos,
usam a mesma linguagem e se distanciam cada vez mais da
realidade multidimensional, multicultural que o mundo vai
revelando. Erros grosseiros nas escolhas pessoais de executi-
vos e, por conseqüência, nas escolhas estratégicas de empre-
sas, nascem da incapacidade dos indivíduos de enxergar a
diversidade como patrimônio. N o entanto, você sabe, desde
o curso primário, que a diversidade é a razão de ser da vida.
O SO NH O LIBERAL

O horror produzido em todos os corações e mentes na-


quela manhã de 11 de setembro de 2001 não se alivia com
o passar do tempo. A o contrário, ele se torna mais denso
e pesado à medida em que as pessoas tomam consciência
de que aquele foi o episódio inicial do que pode ser uma
sucessão de guerras sem fim, travadas nas ruas das grandes
cidades. A humanidade, afinal, se defronta com a impossi-
bilidade de seguir produzindo riqueza sem atentar para a
urgência de u m novo sistema, cujos ensaios ainda são tími-
dos demais nas salas de alguns poucos gestores. Noções de
responsabilidade social, desenvolvimento humano susten-
tado e consciência ecológica ainda são pregadas com o esti-
lo dos primeiros evangelizadores, e o indivíduo consciente
é apresentado ao retrato finalizado de sua impotência. O
sistema falhou e o sonho das grandes mudanças coletivas
se esvaiu. preciso criar um novo conhecimento capaz
de conduzir à revolução individual da qual possa brotar a
reinvenção do sistema.

Nas organizações de negócios privadas ou estatais se en-


contram as pessoas que podem fazer essa diferença. M a s es-
ses indivíduos sabem disso? Quem são essas pessoas? Basta
observar os saguões de aeroportos antes dos vôos preferen-
ciais dos executivos e empreendedores, para constatar que
a comunidade que toma as decisões fundamentais para o
futuro da humanidade, cuja atenção e opiniões são dispu-
tadas segundo a segundo pela mídia, não tem idéia de sua
importância diante da História. O que falta aos processos
de educação de gestores para que eles entendam seu papel
mais nobre, talvez sua verdadeira função social?
Faltam ao capital — privado ou público — a motivação
e os valores essenciais para que ele seja capaz de gerar o
conhecimento necessário à sua consolidação como modelo
propulsor de um desenvolvimento real e criador de bem-es-
tar generalizado. Modelo, mais do que instrumento. Porque,
nos dois séculos e meio em que movimenta as economias do
mundo, o capital evoluiu da condição de recurso para fim em
si mesmo, condicionando toda a cultura em que toca. N e m
mesmo a redução da capacidade do Estado de financiar o
bem-estar geral sensibiliza os gestores para essa necessidade.
Os movimentos em favor de maior responsabilidade social
das empresas são o único recurso de amplos setores excluídos
do bem-estar geral. Mas ainda são vistos como extraordiná-
rios, e sua linguagem de catequese revela como ainda estão
distantes de uma verdadeira consciência de humanidade.

Os processos de inovação em andamento nas empresas


começam a internalizar a cultura da responsabilidade social.
M a s , enquanto o universo cultural dos gestores não se deslocar
do eixo ação-resultado, toda estratégia será vã, toda inovação
nascerá envelhecida. As teses sobre gestão de conhecimento
nas organizações não passam de retórica, se não se discute a
qualidade do conhecimento gerado constantemente e no mes-
mo sentido nas últimas décadas. Todas as melhorias, toda so-
fisticação gerada pela revolução tecnológica e pela criatividade
dos gestores só fazem ampliar um poder perverso que, ao agir
contra os interesses da humanidade, age contra si mesmo.
O horror dos atos de terrorismo e a brutalidade do crime
organizado não se justificam sob nenhum ângulo de análise,
mas entre os componentes de sua origem está com certeza a
incapacidade do poder econômico de se revestir de u m signi-
ficado aceitável para todo o mundo, a partir de cada unida-
de de negócio. M a s haverá de fato u m tipo de conhecimento
que possa ser produzido e enriquecido nas organizações de
negócios privados ou estatais, que opere como embrião de
um novo processo social? Será que as novas tecnologias, nas
quais as empresas investem volumes respeitáveis de recursos
financeiros, não teriam algo mais a oferecer além de ganhos
de produtividade e redução de custos? Se essas organiza-
ções se tornam progressivamente as maiores comunidades
de indivíduos bem educados — e treinados para confrontar
diariamente as teorias com a realidade — por que esses i n -
divíduos não são capazes de oferecer à sociedade, com seus
produtos e serviços, um sistema que realmente funcione
como uma cultura de bem-estar geral e não apenas para eles
próprios, seus acionistas e seus parceiros?

Não lhes falta conhecimento básico sobre o comporta-


mento geral dos indivíduos e dos sistemas sociais. Milhares
de publicações e estudos acadêmicos informam sobre a his-
tória dos negócios e de como os processos se desenvolvem e
se desfazem. D o seu posto de trabalho, você tem acesso ao
que existe de mais avançado em qualquer ramo de conhe-
cimento. Seu valor para a empresa pode ser medido pelas
oportunidades de aprendizado que ela lhe oferece, de modo
que você e seus pares podem ser considerados a vanguarda
da evolução humana, certo? M a s você já parou para pensar
como seria estar excluído dessa comunidade de poderosos?
Se você não pode estar confortável dentro do sistema, e tam-
bém não pode se imaginar fora dele, qual é o seu lugar?
Afinal, qual é o seu real valor para a organização que o
inclui no sistema? Quais são seus recursos reais para a per-
cepção do mundo, e o que garante que você constrói todos
os dias uma percepção próxima da realidade objetiva? Sua
identidade pessoal é coerente com sua identidade profissio-
nal e sua identidade corporativa? A carreira que você cons-
trói honra sua identidade pessoal?

Ainda não são definitivas as informações sobre o funciona-


mento da nossa mente e de como realizamos o aprendizado,
mas as muitas hipóteses já consolidadas apontam caminhos
bastante seguros para a definição de novos paradigmas em ges-
tão de talentos e vocações. A globalização cada vez mais acele-
rada acrescenta ainda mais informações que, contextualizadas
estrategicamente, oferecem grandes oportunidades para as or-
ganizações e para o profissional. Mas não se observa nas ações
dos gestores a valorização real do conhecimento, como um ca-
pital tão ou mais importante que o capital financeiro ou outros
ativos tangíveis. Por exemplo: você realmente sabe 1er? C o m
base em quais premissas você constrói seu modelo mental?
E m plena era do conhecimento, ainda lidamos com da-
dos como se fossem informações e consideramos sabedoria
a manifestação da esperteza. Somos uma elite que se enver-
gonha de sua posição. E m todos os fóruns sociais de que
participamos, com as melhores intenções, podemos observar
o grande número de indivíduos fragmentados entre o desejo
de felicidade e o peso do conformismo. Estamos completa-
mente conscientes de que o processo de expansão global dos
negócios é irreversível e fazemos nosso papel, no melhor das
nossas qualificações, para defender nossas bandeiras. mal
conseguimos identificar em nossas angústias o mal-estar da
globalização, aquele conjunto de sentimentos contraditórios
de que falava Freud no começo do século passado.
Essa elite, à qual pertencemos todos nós, profissionais
em fazer funcionar u m empreendimento privado ou uma
instituição pública, ainda imagina o mundo ideal como u m
relógio e não tem consciência de que, pela lógica de todo
organismo vivo, em algum momento se tornará impossível
a gestão de muitas organizações, porque a perversidade do
sistema o torna muito vulnerável. E m todos os momentos de
ruptura do tecido social que pudemos constatar na História,
o retrocesso produzido atingiu o todo da sociedade e as eli-
tes sofreram processos de reciclagem, à sua revelia.

De tão primárias, algumas de nossas ações, baseadas


numa ilusão de controle ainda remanescente da noção me-
canicista da vida, beiram o ridículo. Durante o processo
eleitoral de 2002, no Brasil, uma grande empresa da região
sul resolveu dar sua contribuição a u m candidato de sua
preferência, utilizando u m artifício que revela de forma
muito esclarecedora o estilo de seus gestores: 280 pessoas
foram contratadas e demitidas 22 dias depois. A cada uma
delas foi dito que, se determinado candidato não fosse elei-
to presidente da República, todos eles voltariam a ser em-
pregados. Entrevistei alguns desses trabalhadores. Estavam
revoltados porque sabiam que haviam sido manipulados.
Seus sentimentos, as esperanças de suas famílias, sua auto-
estima, foram objeto de abuso. Que espécie de futuro esses
gestores pensam que estão criando para suas empresas?
Essa mesma companhia contava com os serviços de uma
renomada empresa de assessoria de comunicação. Seu re-
latório de responsabilidade social, distribuído no início de
2003, era um primor de edição. A interpretação que procu-
rava oferecer sobre a realidade daquela empresa não com-
binava com a prática — real — exercitada durante as elei-
ções daquele mesmo ano. Menos de dois anos depois, essa
empresa enfrentava uma grave crise, com seus resultados
desabando e seus gestores assombrados com a ineficácia de
todas as medidas que experimentavam.
Será que algum deles percebeu a relação entre a tentativa
de manipulação que haviam praticado e a inversão imediata
da curva de desempenho da organização? Qual o grau de
consciência desses gestores sobre a percepção, no ambiente
corporativo e no ambiente vizinho à empresa, de decisões
como essa, aparentemente tão distantes das decisões de ne-
gócio? Que milagre esperavam de um belo — mas fantasioso
— relatório de responsabilidade social, e de todas as outras
operações de comunicação corporativa, diante da atitude
condenável de manipular a angústia de trabalhadores de-
sempregados? Alguém acredita que esse tipo de mentalidade
pode produzir bons resultados em longo prazo?

Para refletir:

1. VOCÊ? T E M CONSCIÊNCIA DO ALCANCE DAS DECISÕES QUE


TOMA NO SEU DIA-A-DIA?

2. Q U A L A RELAÇÃO ENTRE O FENÔMENO DO TERRORISMO E M


ESCALA MUNDIAL A GLOBALIZAÇÃO DOS NEGÓCIOS?

3. Q U A L ERA O SEU MAIOR MEDO ANTES DO 1 1 DE SETEMBRO?


AGORA?
II—A ilusão do controle

Quando publicou seu livro Cibernética ou con-


trole e comunicação no animal e na máquina,
em 1948, o matemático Norbert Wiener deu
início a um dos maiores processos de des-
construção de significados culturais, políticos
e econômicos que o mundo já produziu. To-
mando a metáfora inspirada por Platão em
seus Diálogos — em que o filósofo se refe-
riu a Kybernáos, a arte de pilotar —, Wiener
propôs uma série de equações. Estas abriram
caminho para a construção de computado-
res realmente funcionais, e escancararam as
portas para a grande revolução nas telecomu-
nicações, no lazer, na pesquisa espacial e no
desenvolvimento da inteligência artificial.
Seu trabalho se tornou tão popular quanto mal compre-
endido. Gerado no ventre da Guerra Fria, com os Estados
Unidos apressando seus trâmites para tomar posse de metade
do mundo em ruínas após a Segunda Guerra Mundial, o livro
embalou ilusões de poder e controle. foi o ponto de partida
e base "científica" para muitas — e desastradas — ações polí-
ticas, que acabaram marcando toda a história recente.

A rigor, o que Norbert Wiener demonstrou é que existe


uma unidade estrutural em processos tão diversos quanto
os sistemas de direcionamento de um míssil, a tendência de
crescimento do ramo de um arbusto ou a regulação da taxa
de gás carbônico no sangue. M a s , assim como Platão ha-
via alertado para a conveniência de levar em consideração
as variáveis na arte de governar barcos ou pessoas, a obra
de Wiener trata de quantificar e qualificar o maior número
possível de variáveis C o m isso, visa a estabelecer um grau
razoável de previsibilidade nos processos.
Trata essencialmente da metodglogia e oferece argumen-
tos matemáticos aos problemas do anti-acaso. O que não
significa que suas equações possam sustentar a transferência
direta de conhecimento sobre mecanismos materiais para
os sistemas vivos ou vice-versa. Porém, tanto o poder po-
lítico-militar como o capital se apropriaram de parte desse
conhecimento para justificar suas premissas de controle e
previsibilidade. São desse período quase todos os processos
e sistemas utilizados ainda hoje na gestão de organizações
de negócios ou governos.
A ordem justificada na possibilidade matemática do con-
trole, inspirada nas equações de Wiener, formou e consolidou
todos os sistemas econômicos, sociais e políticos que domina-
ram as décadas seguintes do século X X . U m sistema educa-
cional baseado nas mesmas premissas vem formando empre-
endedores, gestores, educadores, pais de família, operários e
novos mestres de uma ilusão recorrente: a ilusão do controle.
Você se lembra muito bem de brinquedos, jogos, histórias
em quadrinhos, filmes e outros produtos derivados dessa ilu-
são segundo a qual seria possível controlar com perfeição os
eventos por meio de sistemas mecânicos ou eletrônicos. Pense
no que tem sido a realidade neste período. O mundo nun-
ca teve, desde então, u m período de estabilidade que durasse
mais de duas décadas. M a s em nenhum momento os debates
chegaram ao fundo da questão, talvez porque tenha impera-
do durante quase todo esse tempo o contraditório superficial
entre modernidade e atraso, esquerda e direita, que simboliza
o contraditório visceral expansão-consolidação, progresso-
estabilidade, caos-ordem, criatividade-segurança.

Quando, finalmente, o amadurecimento dos produtos


gestados nos raciocínios de Norbert Wiener produziu a re-
volução digital, na última década do século X X , o paradoxo
se manifestou em plena celebração do chamado triunfo libe-
ral: a nova ordem à qual fomos apresentados tinha como ca-
racterística mais notável exatamente a ausência de uma or-
dem aparente. Kybernáos, a arte de pilotar, se revelava mais
rica em variáveis, ou melhor, o ambiente humano se tornara
muito mais complexo. Por meio de uma rede de computa-
dores interligados no emaranhado das conexões telefônicas,
os indivíduos foram quase repentinamente colocados diante
da materialização do sentido de humanidade.
De fato, entre todas as possibilidades abertas pela Internet,
a mais instigante e certamente a que mais profundas conse-
qüências irá produzir nas relações de todos os tipos, é a con-
cretização do sentido de humanidade, até então uma expressão
intangível e apenas suspeitada. Quando um cidadão, a partir
de uma ligação extremamente precária, começou a espalhar
por computadores do mundo inteiro, notícias sobre a guerra
nos Bálcãs, uma gigantesca massa crítica se formou instanta-
neamente em todos os cantos do mundo, forçando e apres-
sando as ações diplomáticas e militares que interromperam
os massacres de milhares de seres humanos em Kosovo. Isso é
humanidade tangível. Mas quanto dessa percepção, aparente-
mente válida na sociedade, ocorre nos centros do poder real?

Os gestores de capital não parecem ter notado esse fe-


nômeno. O u , numa versão mais maliciosa, talvez o tenham
notado e corram a produzir volumes cada vez maiores de ca-
pital antes que seus movimentos sejam restringidos. Há uma
enorme carência de capital na maior parte dos países e uma
contrapartida de liquidez e desperdício em alguns poucos l u -
gares. A velocidade com que as informações economicamente
úteis passam de um lado a outro do planeta é a mesma que
tem acelerado também a formação de opiniões e de conheci-
mento sobre o estado do mundo. Qual seria a estratégia ideal
para os gestores de capital? Acelerar o acúmulo dessa forma
de poder e reforçar suas cidadelas, à espera de conflitos inevi-
táveis, ou buscar um novo significado e apostar na criação de
uma sociedade menos propensa aos conflitos? Os atentados
de setembro nos Estados Unidos e a falta de perspectivas da
vida moderna merecem uma reflexão nesse sentido.
A metáfora da cidadela talvez seja ainda mais rica para
entendermos o fenômeno, se lembrarmos que os sistemas de
proteção das redes de computadores são uma repetição das
fortificações medievais. Não por acaso, o cinturão protetor
se chama firewall (parede ou muro de fogo), o que chega a
soar ridículo, sabendo-se que 7 0 % dos atentados contra a
integridade de bancos de dados digitais ocorrem nas redes
internas, dentro das muralhas. a maioria absoluta desses
atentados é praticada por funcionários insatisfeitos. Pesqui-
sas realizadas desde 1999 revelam que há u m hiato na com-
preensão desse fenômeno, uma vez que aparentemente não
há grandes motivos para insatisfação na maioria das empre-
sas pesquisadas. A não ser que falte a elas um significado, ou
um espírito, que faça sentido para seus funcionários. Pense
nisso ao planejar sua próxima ação de comunicação interna
e esqueça a ilusão do controle.

D a mesma forma, os sistemas de securitização de capitais


lembram as cidadelas da mais remota Idade Média. Nelas,
um círculo de bosques protegia os campos agriculturáveis,
que por sua vez guardavam em seu interior uma área prote-
gida por muros baixos de pedra. Dentro destes havia outro
círculo com as primeiras casas mais humildes, depois uma
muralha e dentro dela a fortificação que abrigava as constru-
ções mais importantes, como a igreja, a casa do senhor e os
depósitos de alimentos. Confiança, mais uma vez, é a chave
para entender a diferença entre empresas com sistemas de
segurança muito simples, que funcionam satisfatoriamente
e aquelas que gastam porções cada vez maiores de seus orça-
mentos em sistemas que se revelam sempre vulneráveis.

O INIMIGO ÍNTIMO

Agora reflita por um momento: no segundo semestre do


ano 2002, na mesma ocasião em que o governo dos Estados
Unidos anunciava novas ofensivas contra países considera-
dos aliados ou comprometidos com o terrorismo, o próprio
presidente americano, George W. Bush, era acusado de haver
omitido a venda de participação na empresa Harken Energy,
que havia realizado dois meses antes do valor das ações da
companhia desabar em 20%. N a mesma semana, seu vice-
presidente e mentor político, Richard Cheney, também era
acusado de haver cometido crimes contábeis em sua empresa
petrolífera, a Halliburton. N o rastro dessas notícias, surgia
ainda a revelação de que funcionários de representação di-
plomática americana haviam facilitado, em troca de propina,
a concessão de vistos a pessoas suspeitas de terrorismo.

Alguma relação entre esses fatos, o cavalo de Tróia dos


gregos e a cepa de vírus com o mesmo nome que contamina
os sistemas de informática de poderosas organizações? Por
que as organizações não conseguem o comprometimento
necessário de seus colaboradores, fornecedores, parceiros e
clientes, o que tornaria desnecessárias suas muralhas? Porque
falta uma ética essencial ao sistema, e essa fratura está expos-
ta no principal núcleo de poder do capitalismo. possível
que os capitais em giro vertiginoso ao longo dos fusos horá-
rios estejam operando num mundo que já não existe, ou que
estejam tentando segurar uma realidade que muda mais rápi-
do que a capacidade dos seus gestores de compreendê-la.

Praticamente todas as manifestações de gestores de capital


disponíveis na mídia especializada expressam a convicção de
uma habilidade absolutamente impossível: a de conhecer um
número suficiente de variáveis capaz de manter os riscos num
padrão aceitável e, ao mesmo tempo, capaz de proporcionar
uma visão ampla e acurada de tendências promissoras de bons
resultados. As tecnologias têm a característica de oferecer
progressivamente mais possibilidades de controle, mas as ciên-
cias das quais elas derivam tendem a revelar constantemen-
te novas variáveis, o que mantém elevado o fator aleatório.
Pense, por exemplo, em quantas empresas operacionalmente
saudáveis se tornaram reféns do sistema financeiro, por conta
de ações aparentemente sob controle. A aparente capacidade
de produzir benefícios no círculo mais próximo (acionistas,
empregados, comunidade imediata), quando realmente se re-
aliza, apenas reforça a ilusão de que alguma coisa significa-
tiva está sendo construída. A espiral da ilusão começa com a
ilusão do controle e se estende a tal ponto que, muitas vezes,
mesmo quando o gestor de uma organização assume a louvá-
vel atitude da responsabilidade social, seu empreendimento
pode estar na mais absoluta contramão da História.

Não são poucos os casos em que um aparente sucesso, po-


liticamente e moralmente inatacável, acaba resultando num
desastre no longo prazo, se consultados os interesses e neces-
sidades de um círculo mais amplo de influência. Não faltam
informações, os dados estão disponíveis em grande volume e
em todas as partes, os fornecedores de suporte renovam qua-
se diariamente os sofisticados recursos a preços cada vez mais
razoáveis. Pode-se conhecer na maior intimidade os hábitos
dos consumidores. Pode-se garantir confiança e proximidade
dos fornecedores. Pode-se dispor de uma ampla variedade
de meios para dar-se a conhecer ao público. M a s os gestores
nunca sabem que mundo irão encontrar no café da manhã. O
que eles não parecem entender é que o mundo no qual atuam
não atende da mesma forma aos estímulos das mais diversas
naturezas, como faz supor a cultura do controle.
Está mais do que claro, para muitos analistas, que par-
te da economia se assenta sobre uma roleta, enquanto outra
parte joga numa mesa de póquer com cartas marcadas. Os
gestores em geral olham para esse cenário e manifestam seu
descontentamento. Quanto tem custado, às organizações po-
líticas e econômicas, a manutenção desse jogo? Ninguém, ne-
nhuma instituição bancária ou governo, pode calcular o valor
dos subsídios que sustentam essa perigosa ilusão. As ondas de
expansão e recolhimento de capitais não refletem mais as re-
lações causais que garantiam o sono dos gestores há algumas
décadas. Hoje, a morte de uma vaca na índia pode derrubar o
touro em Wall Street. Os gestores se assombram com os boa-
tos matinais, passam boa parte do seu tempo esgrimindo com
fantasmas e não se dão conta de que tudo começa em suas
próprias mesas. Quanto ainda custará à periferia do sistema e
à humanidade a extensão desse quadro de esquizofrenia?

Nos últimos dez anos, tenho tido a oportunidade de con-


viver com centenas de gestores intermediários e executivos
de alto escalão de organizações dos mais variados tipos, des-
de abnegados gerentes do sistema público de previdência do
Brasil até o presidente de uma das gigantescas empresas de
telecomunicações que se tornaram o paradigma na balança
das bolsas em todo o mundo, passando por um jovem her-
deiro de uma indústria de produtos cerâmicos. Entre as per-
guntas que pude fazer a muitos deles, uma em especial os dei-
xava atônitos: "Se você acredita que ainda está em curso no
mundo um processo civiliza tório, qual o seu papel nele?"
Era como se o peso da História se abatesse sobre o in-
divíduo. Não bastasse toda a responsabilidade pelos resul-
tados das organizações que dirigiam, mais a necessidade de
entender a avalanche de mudanças que a virada do século
estava derrubando sobre suas cabeças, era como se aquela
pergunta pretensiosa colocasse em cheque sua própria exis-
tência como seres humanos. A maioria gaguejava, vestia
seu discurso com roupa de domingo e se estendia em aná-
lises retóricas sobre os limites do seu papel de gestores, as
dificuldades criadas pelo governo e a falta de educação da
população em geral, culminando quase sempre com a irres-
ponsabilidade da imprensa.

Lembro-me bem do jovem herdeiro, rapaz recém-saído


dos trinta anos. Ele me confessou que até poucos meses antes
tivera problemas com álcool e cocaína e que fora freqüen-
tador de uma luxuosa casa de prostituição em São Paulo,
durante o período imediatamente anterior à nossa conversa,
quando sua família pensava que comparecia a um evento
de marketing na cidade. " H á três meses", disse, "se você
me fizesse essa pergunta eu consideraria uma provocação ou
uma besteira. Hoje ela faz sentido e está no centro de tudo
que pretendo aprender e praticar daqui para a frente". O
que havia provocado mudança tão radical no seu comporta-
mento, fazendo com que se transformasse, em relativamente
poucas semanas, de playboy irresponsável em um dos mais
aplicados alunos de u m exigente curso de gestão?
Ele me contou: " M e u pai me convocou a uma reunião e
me apresentou a um cara da minha idade. Disse que era o exe-
cutivo de um banco, encarregado de preparar a incorporação
da nossa empresa por uma indústria de cimento. Estou sain-
do dos negócios, ele me disse. Perguntei: e eu? Ele respondeu:
você nunca esteve. C o m o dinheiro que vai receber, pode com-
prar um bordel só pra você, montar uma destilaria exclusiva
e otras cositas más. Pedi licença para falar reservadamente e
saímos da sala de reuniões. N o seu escritório, ele me abraçou
e chorou. Disse que havia cansado de esperar que eu me inte-
ressasse por continuar seu trabalho. Eu lhe pedi uma chance.
Chorei com ele e naquele instante toda a minha vida passou
rapidamente pela minha frente. Eu tinha entendido que era
hora de crescer. Tenho doze meses para provar que posso as-
sumir a direção da empresa, mas ainda vou disputar um cargo
de gerente. A venda da empresa foi suspensa, ou na verdade
nunca vou saber se algum dia foi realmente cogitada..."

Houve ainda uma ironia naquela conversa. Ele me contou


que havia lido um de meus artigos sobre comunicação meses
antes desse episódio e que havia comentado com o control-
ler da empresa o alto grau de "lirismo" do autor, e que este
havia aproveitado a ocasião para obter seu apoio para um
projeto de restrições severas ao uso de e-mails na empresa.
O projeto incluía, entre outras punições radicais, demissões
por justa causa e publicação na imprensa local dos nomes
dos demitidos. "Agora percebo o nível das manipulações
a que eu estava submetido, simplesmente por me negar a
perceber a diversidade do mundo", observou. "Quanto à
sua pergunta, posso dizer que acredito na ocorrência de um
processo civilizatório e acho que o capital tem o papel de
produzir a riqueza geral, mas precisa criar o conhecimento
necessário à formação de uma sociedade cada vez melhor".
Foi ele quem me deu a idéia de registrar as reflexões pro-
duzidas por centenas de conversas como aquela. Sua defini-
ção de um possível papel social do capital, e sua referência
à possibilidade da geração de um conhecimento capaz de
sustentar uma cultura evolucionista da sociedade, me con-
duziram à pesquisa específica sobre o efeito dos variados pa-
radoxos do nosso tempo no ambiente corporativo. Sei que
esse rapaz se tornou o braço direito do seu pai e não apenas
assumiu u m cargo de direção, como estava indicado para o
conselho da federação das indústrias do seu Estado. Além
disso, convencera seu pai a liderar na região um movimento
de empresas socialmente responsáveis.*

Infelizmente, são poucos os casos como esse. Mesmo que,


sob critérios mais exigentes, suas definições de papel social e
de responsabilidade social sejam discutíveis, a realidade en-
tre os gestores em geral é de u m nível de consciência muito
pobre. São poucos os donos desse poder de mover econo-
mias que sequer chegam a perceber a possibilidade de pro-
duzir algo mais do que lucro e vantagens para sua própria
organização. Embora pesquisas realizadas em novembro de
2001, dois meses após os atentados nos Estados Unidos, te-
nham revelado o que muita gente vinha percebendo na vida
real: cresceu significativamente — de 60% para 7 9 % — o
total de consumidores que declararam preferir produtos e
serviços de empresas que tenham algum significado social.
Pesquisas posteriores realizadas por variadas instituições
só fazem reafirmar essa tendência. A realidade é feita de ges-
tores e acionistas assombrados com crises que eles próprios
alimentam, em seu duplo papel de empreendedores e especu-
ladores. como se eles próprios, deuses e heróis dessa nebu-
losa que a mídia chama de neo-liberalismo, não acreditassem
nos postulados que apregoam. Estaria aí a origem dos sinto-
mas de esquizofrenia que se revelam, por exemplo, na obses-
são por ordem e controle em plena reinvenção da economia,
e na busca por protocolos rígidos em plena era digital?
ONDE MORA O CONHECIMENTO?
Gary Hamel, conceituado estrategista e autor de uma
abordagem criativa ao problema da visão de futuro das or-
ganizações, alerta para o senso comum de que a inteligência
reconhecida pelas organizações está sempre restrita à mais
alta esfera do poder. O conhecimento prático, de como as
coisas são feitas, fica para baixo na pirâmide do poder. É tam-
bém na base que se encontra o maior potencial de mudança,
pelo simples fato de que na base da pirâmide está a maior
percepção de fatos que levam ao inconformismo. N o entanto,
muito raramente a cabeça das organizações percebe a tempo
as descontinuidades que a base é capaz de enxergar.

Por outro lado, o fato de poder perceber sinais de pro-


blemas antes de eles virem a se tornar graves não dá à base
da organização a capacidade de pensar em medidas pre-
ventivas, porque ela não se sente parte da inteligência reco-
nhecida pela direção. Finalmente, Hamel observa que nem
sempre o senso comum está certo. E m muitas ocasiões, a
melhor inteligência da empresa pode estar no chão de fábri-
ca ou na gerência intermediária. E m alguns casos, a direção
está alinhada com a base, mas desalinhada com relação aos
gerentes. E m outros casos, a cabeça estratégica está comple-
tamente desalinhada em relação ao todo da organização.
Quem pode dizer onde está a verdade?
Por que a organização normalmente não acredita nessa re-
serva de inteligência colocada abaixo do corpo diretivo prin-
cipal? Porque parte da premissa de que, como não libera para
esse setor informação que não seja funcional ou operacional,
não pode esperar que ele seja capaz de gerar conhecimento
e pensar estrategicamente. É o reverso perverso da ilusão de
controle. Acredita-se, como nos tempos anteriores ao capita-
lismo, que apenas uns poucos possuem o D N A do pensamen-
to estratégico, e que aos demais estarão reservadas para sem-
pre as tarefas do fazer, não a missão de pensar. N o entanto,
bastam alguns minutos de conversa nos bastidores da direto-
ria de qualquer organização, ou no vestiário dos clubes mais
exclusivos de qualquer grande cidade, para se observar o perfil
medíocre, de pensamentos tacanhos e mentalidade retrógrada
que muitas vezes predomina nessa nova aristocracia.

Para refletir:

1. Q U A N TO VALOR PERDE A ORGANIZAÇÃO POR INSISTIR E M ES-


QUEMAS DE CONTROLE ANTERIORES À ERA DIGITAL, BASEADOS
EM PREMISSAS MECANICISTAS E M SISTEMAS DE COMUNICAÇÃO
MANIPULADORES?

2. Q U A N T O VOCÊ PERDE, PESSOALMENTE C O M O PROFISSIONAL,


POR NÃO ENTENDER C O M O FUNCIONA U M A SOCIEDADE HIPER-
MEDIADA E, E M CONSEQÜÊNCIA, POR SE ILUDIR C O M PROJEÇÕES
FANTASIOSAS DA MÍDIA NÃO PERCEBER AS OPORTUNIDADES RE-
AIS OBJETIVAS?

3. Q U A N T O PERDEM — VOCÊ, E M CONHECIMENTO POSSIBILIDA-


DES DE COMPREENDER A FUNDO O FUNCIONAMENTO DA ORGA-
NIZAÇÃO — E A EMPRESA, POR JULGAR PRECONCEITUOSAMENTE
QUE A INTELIGÊNCIA CORPORATIVA SE ENCONTRA APENAS DA
GERÊNCIA PARA CIMA?
Ill—Os funerais do rei

A tragédia do homem, u m dos clássicos da


literatura mundial, atualmente esquecido,
foi escrito em 1860 pelo húngaro Imre M a -
dách e traduzido para praticamente todos os
idiomas modernos. Tem u m enredo singelo,
mas em versos magníficos, sob a forma de
teatro, que trata de um simples e repetitivo
episódio: Deus cria o homem e a mulher,
eles caem em tentação e são expulsos do Pa-
raíso. Então, sucessivamente, ato após ato,
eles voltam à vida e são guiados através dos
tempos, tendo como cicerone aquele que os
convencera a provar da árvore do conheci-
mento. Conduzidos por Satanás, eles têm a
oportunidade de revisitar fatos e persona-
gens fundamentais da Historia, questionam grandes sábios
e pensadores e retornam ao princípio de tudo com a mesma
pergunta não respondida: qual é o destino da humanidade?
Absortos na literatura pragmática de processos e méto-
dos, mergulhados nos debates sobre a melhor tecnologia
para invadir a intimidade dos clientes ou impressionados
com algum livro de auto-ajuda, os gestores só dedicam al-
gum tempo a essa questão durante as viagens de negócios,
quando uma turbulência ou uma pane no avião os faz sus-
peitar de que há assuntos mais importantes do que o contra-
to que levam na pasta. Mesmo que considere a filosofia uma
perda de tempo, todo empreendedor e todo gestor deveria
levar em conta que só alcança excelência em seu negócio
quem consegue filosofar a respeito da natureza e da razão
desse negócio. Portanto, preocupar-se com os fins extremos
de sua estratégia não é menos do que buscar o extremo de
qualidade possível em todos os seus pensamentos e ações.

Por que será que os profissionais que movimentam o


mundo e definem quais países irão se desenvolver, que famí-
lias vão alimentar esperanças de um futuro para seus filhos,
geralmente se negam a pensar com a mínima profundidade
no significado de suas próprias vidas? Por que razão os ges-
tores do poder mais impactante do mundo sobremoderno
preferem uma vida mentalmente pobre se podem ser os au-
tores de uma realidade muito mais gratificante? O sucesso
que fazem os livros de auto-ajuda e as receitas de maravi-
lhas dos gurus renovados semanalmente, que vendem aos
milhões nas livrarias de aeroportos em todo o mundo, in-
dica que esses homens em ternos elegantes e essas mulheres
poderosas em seus tailleurs de executivas não são tão bem
resolvidos como procuram aparentar. O alto investimento
das empresas em oficinas de criatividade, cursos de lideran-
ça e sessões de psicodinâmica faz suspeitar que nem tudo vai
bem nos mais seletos círculos do poder econômico.
Conheço o caso de uma executiva que engravidou inad-
vertidamente num momento que, para ela, pareceu abso-
lutamente inoportuno: promovida em meio a uma carreira
brilhante, estava sendo transferida para a sede da empresa
em outro país. Era a oportunidade pela qual lutara duran-
te toda sua carreira. Era ainda jovem, solteira, e não havia
possibilidade de se casar com o pai daquela criança. H a v i a
ainda o trabalho, redobrado naquela circunstância em que
precisava concluir uma montanha de projetos e ainda pre-
parar a mudança. Só se deu conta da gravidez quando ela
estava bastante avançada. Não teve tempo de decidir sobre
um aborto até que essa medida se revelou totalmente desa-
conselhável do ponto de vista médico.
Ela decidiu ter o filho, mas não quis ficar com ele. Não
podia ficar com ele. Tinha que escolher entre a maternidade
e a carreira, exatamente como as personagens da obra de
Imre Madách. Então ela o deu para adoção logo após o
parto. N e m olhou para o bebê. Mulher decidida. C o m o as
centenas que encontramos nos aeroportos de todo o mundo,
cumprindo seu papel de gestora de capitais. Olhe para os
lados. Quantas pessoas capazes de decisões questionáveis
como essa, do ponto de vista essencialmente humano, estão
à frente das empresas?
Gente assim decide para onde vão os recursos e a energia
de que o mundo carece. Gente comum, sujeita a toda espécie
de conflito emocional, fato real inevitável em qualquer to-
mada de decisão. N o entanto, essas pessoas fazem de conta
que as decisões são tomadas friamente, seja a respeito de u m
pacote de investimentos, a reforma ou fechamento de uma
fábrica, um plano de carreira, o corte de postos de trabalho
ou o destino de uma criança. U m poder extremo brota de
cada decisão, um poder com o qual nunca sonharam os an-
tigos oligarcas que sucessivamente retalharam e costuraram
as etnias européias entre a segunda metade do século X V I I I
e o começo do século X X . A diferença entre um e outro po-
der é que os poderosos de então tinham consciência de que
representavam um processo a que chamavam civilizatório.
Nossos novos oligarcas, que com um toque em seus com-
putadores portáteis podem alterar o rumo da História, não
parecem ter noção da História.

Onde se perdeu o imaginário do capital desde o debate de


André Morellet e Denis Diderot sobre a melhor maneira de
combater a pobreza na França? Isso aconteceu entre 1770 e
1771. Morellet queria atrair capitais e empreendedores para
a agricultura do país, Diderot dizia que o capital iria trans-
formar os agricultores em comerciantes. Esse debate é um
dos marcos da definição do novo sentido de "capitalista" e
"empreendedor" na Europa.
O ambiente era propício a mudanças: desde 1758, cir-
culavam na França cópias das Máximas gerais, nas quais
François Quesnay dizia que o mundo só evoluiria se hou-
vesse muitos empreendedores. Ainda em 1771, Giuseppe
Gorani defendia na Itália a educação de jovens herdeiros da
nobreza para o empreendedorismo, como a única forma de
garantir a sobrevivência da velha oligarquia nos novos tem-
pos. Havia, por trás dessa agitação intelectual, a compreen-
são de que o crescimento das cidades européias exigia uma
nova organização dos sistemas de produção e a criação de
um conhecimento específico como base para a consolidação
daquele novo modelo de sociedade. Era a mesma época em
que a imprensa se tornava uma instituição relevante.
Quase dois séculos e meio depois, muitos empreendedo-
res e gestores de capitais ignoram o conselho de Gorani.
Todos os meses, o noticiário sobre negócios dá conta do
desaparecimento ou venda de empreendimentos tidos como
muito sólidos, e na maioria dos casos o diagnóstico é a fal-
ta de visão e a incapacidade de adaptar processos e trocar
tecnologias. Raramente alguém se refere ao fato de que os
capitais há muito abdicaram de gerar u m conceito de socie-
dade aceitável, de renovar esse conceito e torná-lo dinâmi-
co, fazendo-o transitar horizontalmente na organização e,
verticalmente, entre as gerações de gestores. Não estaria por
trás desses fracassos uma renitente ilusão de que o direito
ao poder vai sempre se renovar hereditariamente, por deter-
minação divina?

A América do Sul assiste, neste início de século, a uma i n -


tensa troca de cadeiras, com empreendimentos mudando de
mãos como cartas de baralho ou simplesmente desaparecen-
do nesse cenário de transformações radicais. Uma das mais
tradicionais empresas do ramo de comunicações e serviços
passa por uma crise que o mercado considera grave. N o en-
tanto, os antigos gestores dessa organização se celebrizaram
por representar inequivocamente o conhecimento e os valo-
res mais avançados da sociedade do seu tempo. M a s acon-
teceu que eles negligenciaram a tarefa de criar uma cultura
interna baseada nos valores que defendiam.
Hoje, muitos analistas duvidam da capacidade de recu-
peração da empresa diante de um cenário de grande compe-
tição, porque ela não tem no quadro de gestores pessoas que
demonstrem ter aprendido as lições de seus fundadores. Os
herdeiros parecem ter ficado apenas com a postura de po-
der. As oportunidades surgem e se perdem por causa da sua
incapacidade de gerar parcerias e aprender fora do círculo
familiar. Também resistem a deixar a gestão da organização
para não passarem para a história como integrantes de uma
geração perdedora. É o caso típico em que o conhecimento
gerado pelo capital acaba se transformando numa armadi-
lha que inexoravelmente abrevia a vida da organização.

Essa e outras organizações e milhares de gestores, i n -


dividualmente, parecem ter apreendido apenas parte das
idéias que brotaram na Europa e que foram compiladas
em 1776 por A d a m Smith. O fato de essas idéias terem sur-
gido sobre o pano de fundo do Iluminismo é considerado
por muitos como uma possível origem da resistente tese de
um suposto "direito divino" do capital, que é perceptível
no comportamento arrogante e socialmente irresponsável
que parece a face mais evidente de grande parte dos ges-
tores. Parece haver sobrevivido a convicção quase religio-
sa de que o gestor de capital tem uma ascendência divina
sobre o indivíduo que aplica seu talento e sua energia no
empreendimento, o que justificaria as diferenças abissais
de valor entre suas remunerações. Por trás desse conceito,
tornado quase em dogma religioso a partir da Revolução
Industrial, na,Inglaterra, subsistem práticas típicas do sé-
culo X V I I I , como as guerras com motivação econômica e
a escravidão.
Quando os estudiosos da história da civilização forem
contar como surgiu e se desenvolveu a economia " d i g i t a l "
no início do século X X I , certamente vai causar estranheza
a incapacidade dos gestores deste nosso tempo de apren-
der com o passado. A despeito da infinidade de informações
disponíveis e da total facilidade de acesso a documentos e
análises, a incapacidade de processar esses dados dentro de
um contexto de significação torna inúteis todos os dados.
Entre as causas dessa cegueira está certamente o caráter mo-
nolítico do pensamento de gestão. U m exemplo: na maioria
das empresas chamadas pontocom listadas entre as mais
vulneráveis no ano 2002, os analistas apontavam falta de
criatividade e excesso de especialistas no conselho de admi-
nistração como causas principais da incapacidade da orga-
nização de se consolidar.

Muitas dessas organizações, nascidas de idéias criativas,


não fazem sentido para o público e antigas lições parecem
esquecidas ou ignoradas por seus gestores. Joseph Schumpe-
ter (1883-1950) descreveu o empresário em sua imagem mais
recorrente, diferenciando o empreendedor do capitalista, e
advertiu que a confusão entre um e outro dos papéis pode-
ria fazer o capitalismo "perecer do seu próprio sucesso". O
triunfo do capital no mundo globalizado, a aceleração dos
movimentos financeiros, facilitada pela abertura de mercados
e a disponibilidade de tecnologias de comunicação e proto-
colos mais eficientes, estão produzindo exatamente a cena
que ele temia: já não se pode diferenciar o empreendedor do
capitalista e ambos do gestor profissional. O poder do capi-
tal é exercido com extrema homogeneidade, não importando
quem o exerça, se o acionista em pessoa ou seu preposto.
As advertências de Schumpeter têm sido lembradas even-
tualmente em análises da crise gerada por investimentos
perdidos na chamada economia digital. Quando há carên-
cia de diversidade, a estratégia tende a ser menos abran-
gente. A "síndrome de Alphaville", caracterizada pela falta
de controvérsia no ambiente dos empreendimentos, foi uma
das principais causas de perdas e fracassos na segunda fase
de expansão dos negócios na Internet. Interesses variados
e visões diversificadas, ou até mesmo contraditórias, têm
aparentemente o poder mágico de ampliar a abrangência
do conhecimento desenvolvido no processo de empreender.
Isso se torna mais claro na economia digital.

O impacto dos atentados em N o v a York, Washington


e M a d r i cria uma oportunidade preciosa para a reflexão
nessas ilhas de iguais. A espiral perversa que vinha assom-
brando muitos analistas sofreu uma ruptura e o centro dos
debates deixou repentinamente de ser a verdadeira natureza
dos negócios digitais e o tamanho da quebradeira que se
anunciava. Agora, trata-se de repensar o sistema. Enquanto
no Pentágono se redefinia o conceito de guerra, em Wall
Street e redondezas o nauseante cheiro desprendido das r u -
ínas do World Trade Center dava o tom mórbido da nova
realidade: o contrafluxo da globalização chegou ao centro
do sistema e fica clara a necessidade de buscar um novo
significado para ele.
Os movimentos de capital, tecnologia, cultura, energia
e confiança são tidos como motores dos empreendimentos,
embora o objetivo nem sempre seja o mesmo que motivou
os debates de Morellet e Diderot no século X V I I I e os esfor-
ços de Gorani para levar a aristocracia a adotar o capitalis-
mo. Quando apenas um desses fatores define a natureza do
empreendimento, ou quando seu poder se sobrepõe de tal
forma a estabelecer u m pensamento monolítico, os riscos
podem se acumular perigosamente.
N o auge da euforia com os negócios na Internet, uma
conhecida empresa de consultoria recebeu para análise um
projeto de empreendimento para a América Latina que
anunciava investimentos de US$ 100 milhões até o lança-
mento público de ações, previsto para três anos após o iní-
cio das operações. O plano de negócio encantou analistas
financeiros, gestores de marketing e outros especialistas, até
que alguém, alheio à euforia de seus parceiros, resolveu se
informar sobre a origem do capital envolvido no empreendi-
mento. Suas pesquisas se dissiparam em obscuros escritórios
de Bogotá e M i a m i e em nomes também encontrados no
noticiário policial.

Quantos gestores se importam realmente com a origem


do dinheiro ou com a biografia do investidor? N o s dias que
se seguiram aos atentados nos Estados Unidos, uma sucessão
de revelações deu conta do envolvimento de grandes bancos
com a movimentação do dinheiro que financiou os terroris-
tas. Mais de uma década antes desses eventos, o juiz italiano
Giovanni Falcone e seu sucessor, Pino Arlacchi, alertavam
para o risco de associações entre o crime organizado e gru-
pos terroristas, sob o beneplácito de respeitáveis instituições
financeiras. N o Brasil ou na Colômbia, é fato comprovado
que as redes de terroristas e os cartéis do narcotráfico se
apoiam mutuamente na proteção ao comércio mundial de
drogas e no contrabando de armas poderosas que nem as
polícias têm condições de adquirir.
Schumpeter previu que o empresário jogaria um papel
fundamental no desenvolvimento do mundo, ao observar
que a qualidade do desempenho dos empreendedores de-
terminaria a rapidez e a segurança do desenvolvimento. Ele
previu também que esse processo iria significar inovação e
mudança, se determinasse o surgimento de novos produtos
e novas técnicas de produção. Ainda segundo Schumpeter,
dependeriam também da qualidade do empresariado as dife-
renças nas taxas de crescimento dos países e entre períodos
históricos do mesmo país. Valores culturais e históricos dos
empresários seriam fundamentais nos resultados econômi-
cos. Essa lição também parece esquecida. Qual foi a última
vez que você ouviu, na sua empresa, referência a "valores
históricos e culturais", como paradigma para escolhas ou
decisões importantes?

Tudo isso, afinal, pode ser resumido na capacidade de


criar a longo prazo um conhecimento que resulte em rela-
ções mais vantajosas para todos os envolvidos ou alcança-
dos pelo empreendimento, não apenas para o capital e seus
gestores. Essa amplitude de benefícios deve se estender in-
clusive ao ambiente com que a organização se relaciona, de
um ponto de vista imediato e também futurista, ou seja, é
preciso que o pensamento de gestão que energiza o capital
seja amplo e profundo o suficiente não apenas para melho-
rar continuamente o ambiente humano e físico, mas para
possibilitar um futuro melhor em todos os sentidos. Por al-
guma razão, as advertências de Schumpeter não são muito
populares entre os gestores de capital envolvidos na atual
roda-viva financeira. N o carrossel perde-ganha das bolsas,
a metáfora mais recorrente remete à fatalidade do destino
humano: vamos ganhar o máximo porque a vida é curta.
Como na obra poética de Imre Madách.

QUEM MANDA?
A cena lembra um episódio histórico cuja versão, trans-
formada em lenda na região onde hoje fica o Sudão, deu
origem ao conto das Mil e uma noites. A lenda, registrada
em 1912 por pesquisadores alemães, relata o fim do reino
de Napata, no Alto N i l o , onde, até por volta de 200 a . C , o
poder principal pertencia a uma casta de sacerdotes astrólo-
gos, que definiam a ordem, o valor e a natureza de todos os
empreendimentos, porque se acreditava que só eles podiam
interpretar a escritura das estrelas.

Portanto, só eles podiam dizer quais iniciativas tinham


chance de ser bem sucedidas. O N a p , ou rei de Napata, era
o dono de toda a riqueza da região, conhecida por suas ja-
zidas de ouro e cobre. Vivia uma vida luxuosa, mas a dura-
ção do seu reinado e da sua própria vida era decidida pelos
sacerdotes, que passavam as noites observando o céu: em
determinada noite, a configuração das estrelas diria que o
rei devia ser sacrificado e outro escolhido em seu lugar. O rei
podia escolher os que o acompanhariam na morte e até pla-
nejar seu funeral, para manter na morte o mesmo luxo que
tivera em vida. A prática foi extinta quando o N a p Ergame-
nes, que havia sido educado na cultura helénica, invadiu o
templo com seus soldados e executou os sacerdotes.
A transcendência de determinados "sacerdotes" do cha-
mado mundo liberal lembra muito a autoridade dos as-
trólogos de Napata: as bolsas oscilam em função de seus
humores, sem que os indivíduos afetados por suas mágicas
sejam informados do real fundamento de suas autoridades.
A mídia elege seus gurus e, não importando a obra de cada
um deles, publica como lei suas teses, seus "cenários", seus
exercícios de futurologia. N o meio de um dia qualquer, por-
ções significativas de riqueza desaparecem no rastro de r u -
mores cuja origem se perde na profusão de sites dedicados
à "análise" de questões tão variadas quanto a liquidez de
investidores japoneses e uma greve no porto. Agências de
análise de risco são acusadas de fraude em uma página do
jornal e na página seguinte têm suas análises publicadas e
levadas a sério, sem qualquer restrição. Observe os nomes
de instituições apontadas como coniventes nos escândalos
da Enron e da WorldC om. São co-irmãs de instituições acre-
ditadas como avaliadoras dos negócios alheios.

Há pouco tempo, atuando como consultor de estratégia


para Internet junto a um banco que pretendia abrir um site de
orientação para investidores, perguntei ao diretor da institui-
ção qual era seu propósito. "Influenciar", ele respondeu. Lem-
brei-me, então, de que um dos primeiros produtos desse tipo
lançados na América do Sul, ainda nos primórdios da Internet,
era chamado, em alguns círculos, de "boato com grife", tal a
sua fragilidade à manipulação. N o entanto, em pouco tempo
esse informativo e muitos outros, cujos centros de decisão e in-
teresse são completamente obscuros, se transformam em fonte
segura para decisões estratégicas de milhares de gestores. Qual
o valor real desse tipo de informação? Que conseqüências isso
pode produzir além dos muros da empresa? O que é que pode
defender o gestor do risco representado por essas fontes?
Certamente, um gestor consciente de seu papel, que
enxerga muito além da anatomia de resultados, está ade-
quadamente vacinado contra os palpiteiros online. M a s a
organização toda e, por extensão, a sociedade em que se
encontra e a partir da qual se lança para todo o sistema, pre-
cisam desenvolver como vacina u m estado de não-ambição
por ganhos desleais. Essa será provavelmente a melhor de-
fesa contra tentações que invariavelmente se revelam como
processos de perdas, mais cedo ou mais tarde.

As pessoas que caem no conhecidíssimo conto do bilhe-


te premiado, u m clássico da malandragem em praticamente
todos os cantos do mundo, não são apenas pessoas simpló-
rias: são sempre indivíduos vulneráveis à tentação de ganhar
um dinheirinho fácil. Os políticos apanhados em situações
de escândalo são sempre indivíduos vulneráveis à bajula-
ção. Os gestores que, por incapacidade de avaliar os riscos
reais, incorrem em erros estratégicos — às vezes fatais para
a organização — são geralmente aqueles que desejam levar
vantagem em tudo que fazem.
importante estar sempre bem informado, mas o essen-
cial mesmo é ter consciência de que só o conhecimento bem
fundamentado permite tirar valor das informações. o co-
nhecimento não brota das telas de computador, não está dis-
ponível em sites de dicas ou no noticiário em tempo real sobre
o movimento das bolsas ou a oscilação do câmbio. Isso são
dados, ferramentas, instrumentos para ações de curto prazo.
Os movimentos mais importantes são informados por uma
tela anterior, um pano de fundo formado por valores e signi-
ficado, sobre a qual as informações precisam ser projetadas.
Você conhece a origem das informações que seleciona
para tomar suas decisões? Você tem consciência dos objeti-
vos e conseqüências de cada decisão que toma?
Para refletir:

1. QUANTO TEMPO VOCÊ DESTINA POR SEMANA PARA SIMPLESMEN-


TE FILOSOFAR SOBRE O "NEGÓCIO AO QUAL SE DEDICA?

2. QUANTAS SOLUÇÕES PARA PROBLEMAS ROTINEIROS OU CHOQUES


DE DESCONTINUIDADES VOCÊ TERIA SE HOUVESSE MEDITADO
MAIS SOBRE SI SEU PAPEL N O MUNDO?

3. Q U A L VAI SER O SEU LEGADO? C O M O VOCÊ ACHA QUE AS PES-


SOAS VÃO LEMBRAR DE VOCÊ?
IV—Sociedade sem rodas

Lembre-se: o ser humano cria conhecimento


como uma forma de estabelecer uma ordem
nas coisas, de modo que possa entender o
mundo em torno. Desde antes da História,
os primeiros grupamentos humanos estipula-
vam valores para tudo que podiam perceber,
procurando imitar a natureza nos processos
que criavam, de modo que os ciclos de sua
existência não contrariassem os ciclos cósmi-
cos. Inúmeras lendas, mitos e rituais permi-
tem ainda hoje reproduzir o modo como os
primeiros habitantes conscientes deste plane-
ta interpretavam a si próprios e o Universo.
A lembrança de histórias antigas como a
do N a p de Napata pode nos proporcionar
reflexões interessantes sobre o momento que vivemos, de mu-
danças radicais e instantâneas em tecnologia e conhecimento
científico sobre um painel de sistemas conservadores e mo-
rosos nas relações de poder: quanto das recentes descobertas
científicas é usado como base para novas ferramentas ou até
mesmo novas estratégias de gestão? Que estratégias envelhe-
cidas, baseadas em pressupostos de controle e poder supera-
dos, ainda atrapalham a evolução das instituições humanas?

O que vale para a História vale para as ciências em ge-


ral. pode nos ajudar a entender por que os gestores neste
início de século insistem em se apropriar apenas para fins
de curto prazo dos conhecimentos científicos ou históricos
amplamente disponíveis, recusando-se a aprender as lições
mais profundas que as mudanças oferecem. J á no início
do século X X , quando o mundo se admirava com as i n -
venções expostas na Feira de 1900, em Paris, o escritor e
jornalista León Daudet fez circular u m panfleto intitulado
L 'automobile c ' est la guerre.
Nesse texto, analisado por Walter Benjamin num artigo
intitulado "Teorias do fascismo alemão", Daudet alertava
para o impacto que o automóvel exerceria no mundo do
seu tempo, marcado por disputas territoriais, grandes mu-
danças na economia e recrudescimento dos sonhos imperia-
listas na Europa. Para ele o automóvel significava a guerra,
porque uma nova e impactante tecnologia, não encontrando
no meio social u m espaço que justifique sua necessidade,
acabará forçando sua consolidação à força e à revelia do
bem-estar social. Se a realidade social não está madura para
o avanço tecnológico que se apresenta, pior para a realida-
de, porque ela será devastada como em tempo de guerra..
Inevitável a comparação com o nosso tempo: a tecnolo-
gia que permitiu a criação da Internet já dividiu o mundo
entre internautas e os outros, criando para os primeiros u m
horizonte muito mais amplo de desenvolvimento pessoal e
relegando os sem-computador a uma perspectiva mais limi-
tada. U m sistema de gestão voltado exclusivamente para os
resultados financeiros não tem como alterar essa tendência,
que em última instância restringe o próprio mercado. Ges-
tores insensíveis às conseqüências sociais de suas decisões
simplesmente procuram tirar proveito da circunstância,
exatamente como os chefes de Estado e senhores da guerra
que, entre 1914 e 1918, foram promotores do massacre de
8 milhões de jovens na Europa.

O potencial das armas atualmente disponíveis, e a pos-


sibilidade do contrabando de pequenos artefatos nucleares
e bombas químicas para grandes cidades do Ocidente, dão
uma medida de onde essa escalada pode acabar. A falta des-
sa visão de futuro deixou cicatrizes em praticamente todas
as civilizações, em todos os tempos e por toda a face do
planeta, mas certamente nenhum dos imperadores que rei-
naram até o século passado teve tanto poder quanto os ges-
tores das grandes corporações do nosso tempo.
O mundo árabe, por exemplo, ainda hoje é refratário a
valores aceitos universalmente como "civilizados" em fun-
ção de algumas decisões aparentemente locais e temporais.
U m a dessas decisões foi tomada na colônia romana de Pal-
myra, na Síria, também chamada Tadmur, por volta do ano
500 da nossa era. Palmyra, construída num oásis a cerca de
meio caminho entre o Mediterrâneo e o rio Eufrates, era o
posto principal da Strata Diocletiana, que ligava o mundo
romano à Mesopotâmia e ao Oriente. Trafegavam igual-
mente, pela estrada pavimentada, carros de boi e caravanas
de camelos.
Segundo o historiador Richard Bulliet, especialista em
civilização árabe antiga, Palmyra cobrava impostos de to-
das as mercadorias que cruzavam a cidade e viveu um largo
período de prosperidade. Até que um dia começou a de-
cadência. Após longa pesquisa, Bulliet encontrou a origem
dos problemas de Palmyra numa decisão sobre a política
tarifária: a cidade ficava no maior oásis em todo o trajeto
da Strata Diocletiana; todos os mercadores tinham de pa-
gar um pedágio e, em determinada época, os gestores de-
cidiram que um carro de boi pagaria o mesmo que quatro
camelos. Bulliet calculou as cargas úteis dos dois sistemas
de transporte e concluiu que um camelo podia carregar em
média 272 quilos em trajetos não muito longos, enquanto
um carro de bois levava 545 quilos, ou seja, um carro de
bois levava o mesmo que dois camelos, mas teria que pagar
por quatro.

Essa política tarifária, somada ao maior custo de ma-


nutenção do carro e de duas ou mais juntas de bois, fez
com que, progressivamente, o camelo fosse predominando
na Strata Diocletiana, levando ao desaparecimento do carro
de bois. C omo os camelos podiam trafegar em praticamente
qualquer terreno, a manutenção da estrada deixou de ser
necessária para a maioria dos mercadores e a própria via
desapareceu rapidamente. E m pouco tempo, também dei-
xaram de existir os artesãos especializados na manutenção
de rodas e eixos, o que cortou a possibilidade de aperfeiço-
amento daquela tecnologia de transporte.
É inevitável que a cultura árabe tenha sofrido influências
profundas até hoje em função daquela decisão dos gestores
do sistema tributário de Palmyra. N o ano 634, a cidade foi
tomada pelos muçulmanos, que impuseram restrições à ati-
vidade dos "infiéis", a influência romana foi suprimida e a
decadência econômica se seguiu ao isolamento. Durante os
m i l anos seguintes, até mesmo a palavra para designar um
veículo sobre rodas desapareceu da língua árabe, só vindo a
fazer parte do conhecimento daquele povo na alvorada da
modernidade, quando os europeus começaram a construir
ferrovias na região.

ESCOLHAS
Pare um pouco e olhe em volta: que conseqüências os
atuais gestores estarão produzindo para o futuro com as
escolhas que fazem? Que definições já estão consolidadas
pelas escolhas feitas nos últimos anos? Há uma sociedade
melhor, há u m processo de continuidade à frente, como
conseqüência das escolhas dos atuais gestores, ou pode-se
esperar mais crise e rupturas a médio prazo? Para ter uma
idéia da responsabilidade sobre as decisões que tomamos,
pense na possibilidade de viver numa sociedade sem rodas,
ou reflita um pouco sobre quão profundamente pode mudar
toda uma cultura, quando suprimimos dela a possibilidade
de evoluir num aspecto fundamental como a rapidez dos
deslocamentos.

As decisões estratégicas que envolvem tecnologia co-


meçam muitas vezes viciadas, pela simples razão de que os
responsáveis pela definição da estratégia não conhecem su-
ficientemente as alternativas tecnológicas. O u fazem a esco-
lha com base em premissas equivocadas. Embora estejam
em questão produtos altamente sofisticados e quase sempre
altas somas de investimento, o jogo que antecede as decisões
mais importantes imita artimanhas como espionagem, dis-
simulação e outras práticas de guerra e política anteriores à
Idade Média.

As cortes de especialistas que se transformam em gestores


são muito visíveis em todos os congressos de tecnologia, que
se repetem anualmente pelas principais cidades do mundo e
formam um universo muito fechado em si mesmo. Eles se
tornam um poder paralelo nas organizações, determinando
o que deve ou pode ser comprado e de quais fornecedores,
muitas vezes amarrando todos os processos e definindo o
rumo que a organização vai tomar no futuro próximo.

Empresas altamente competitivas conseguem antecipar


os passos dos concorrentes simplesmente monitorando as
viagens de executivos, usando até mesmo fornecedores co-
muns, financiados para oferecer propostas atraentes, com
o único objetivo de obter informações relevantes. Gestores
com perfil técnico, principalmente quando muito jovens,
são presas fáceis por causa da carência de reconhecimento
dentro da organização e sua pressa natural por consolidar
a carreira. Velhas raposas dos negócios se especializam na
prospecção de piano-bar, onde os executivos se reúnem após
as sessões de trabalho e conferências, explorando a vulne-
rabilidade de gestores vaidosos e o natural relaxamento dos
fins de tarde. Jogos como esses formam a base de muitas de-
cisões que ao longo do tempo se revelam grandes desastres .
para o empreendimento, pois, em vez de procurar conhe-
cer sua própria organização e fortalecer sua própria cultura
pela criação de conhecimento adequado, os gestores prefe-
rem atuar em tabela com supostos concorrentes.
A atitude é comum em todo tipo de relacionamento, des-
de os lobbies junto ao governo até a comunicação com o
cliente. Quando falta à empresa uma coluna vertebral de
valores, que deveriam orientar a formação de uma cultura
apropriada à criação e compartilhamento de conhecimento,
proliferam os malabarismos de marketing, as promoções no-
vidadeiras que na verdade pouco ou nada inovam no relacio-
namento. U m exemplo: a mania dos brindes que se tornou
comum na imprensa durante a década de 1990 foi uma das
causas da desvalorização da mídia jornal. O leitor compra
um jornal que custa cinqüenta centavos de dólar e recebe um
brinde que supostamente vale cem vezes mais. Inevitável que
passe a julgar que o jornal vale exatamente nada.

Uma relação nascida numa sólida e clara escala de valo-


res, ao contrário, flui naturalmente e produz rapidamente
uma profunda fidelidade, não apenas entre a organização
e seus clientes, mas também com fornecedores e funcioná-
rios. A questão se torna mais importante quando se revela
que 74% das empresas em todo o mundo destinaram em
2001 entre 3 0 % e 5 0 % mais recursos do que no ano ante-
rior para as tecnologias de gerenciamento de relações com
o cliente ( C R M ) . Segundo a A M R Research, empresa ame-
ricana de pesquisa de TI, em 2004 esse volume alcançou a
cifra de US$ 10,8 bilhões. Quanto dessa tecnologia é geren-
ciada de modo a produzir u m conhecimento relevante sobre
as necessidades e desejos do cliente como indivíduo e não
como mero consumidor? Que inteligência é aplicada ao uso
dessa tecnologia?
A resposta: uma pesquisa realizada no segundo semestre
de 2001 pelo grupo americano Giga Information revelou
que nada menos do que 70% das aplicações dessa solução
estavam destinadas ao fracasso, e que não havia perspectiva
de melhorar esse resultado nos doze ou 18 meses seguin-
tes. Por duas razões fundamentais: a maioria das empresas
não tinha objetivos claros ao implantar a tecnologia e, por-
tanto, não fora capaz de elaborar uma estratégia para sua
aplicação. também não havia nas empresas uma cultura
voltada para a valorização do relacionamento com clientes,
parceiros e outras interfaces. A maior parte das empresas se
havia apropriado da tecnologia sem antes entender qual era
o resultado possível. Somente em 2005, ou seja, mais de dez
anos depois de consolidada a rede mundial de computado-
res, um número significativo de empresas parecia entender,
segundo analistas europeus, que antes de adquirir a tecno-
logia era preciso desenvolver capacitações em marketing de
relacionamento.

Segundo esses analistas, as organizações tentam se apro-


priar das tecnologias emergentes. M a s ao mesmo tempo evi-
tam encarar seus problemas reais, muitas vezes arraigados
em costumes tão nocivos ao relacionamento interno e exter-
no que não podem sequer ser abordados espontaneamente
pelos executivos. Uma cultura que produz comportamentos
arrogantes, conservadores, excludentes, não favorece o en-
tendimento de um recurso como o C R M de "maneira glo-
balizada", mas como um departamento de interface com o
cliente, segundo observam analistas da -Consulting Corp.
C R M não é atendimento ao cliente com qualidade, nem
simplesmente relacionamento ou segmentação de mercado,
comunicação dirigida ou estratégia de fidelização. É tudo
isso e algo mais que a organização pode descobrir a partir
do entendimento de que precisa — com essa tecnologia ou
qualquer outra que venha a surgir — desenvolver a filosofia
da integração com seu ambiente social e econômico. Trata-
se de um recurso "ecológico", em última instância.

DESENGENHARIA
A falta dessa cultura tem causado muitos estragos no
ambiente dos negócios e, por conseqüência, na sociedade. A
mania de "quebrar m u r o s " , inaugurada com a onda da re-
engenharia nos anos 1990, produziu após uma década pou-
co mais do que mão-de-obra para demolidores. O que se
observou, na maioria dos casos, foi a criação de uma casta
de gestores mais próximos à alta direção das organizações
e o isolamento de gestores intermediários junto à base da
pirâmide. A s paredes foram rompidas na vertical, mas as
muralhas foram reforçadas na horizontal, isolando os exe-
cutivos no alto de suas torres. Pura desengenharia.
Por conseqüência, os gestores intermediários, que tradi-
cionalmente traduzem para a base os propósitos da alta d i -
reção, foram sendo progressivamente afastados dos núcleos
de decisão. C o m o conseqüência, a confiança se reduziu e os
problemas de comunicação se agravaram, com o fortaleci-
mento da chamada rádio-peão, que representa a ausência de
controle por excelência.
Uma das empresas líderes na veiculação de propaganda
na Internet tem revelado seguidamente que metade dos aces-
sos ao seu site é direcionada por informações boca-a-boca
entre os internautas, o que garante a chegada de novos clien-
tes, mas não assegura sua fidelidade. Também no ambiente
interno das organizações, quando não existe o compromisso
com a criação de um conhecimento que seja mutuamente
benéfico, a força de trabalho acaba dando mais crédito às
comunicações informais do que aos memorandos eletrôni-
cos via Intranet. D a mesma forma, a comunicação oficial
da empresa dirigida aos clientes externos se torna menos
acreditada quando não há, na base dela, a confiança que se
forma quando existe a percepção de que a relação está pro-
duzindo conhecimento valioso para todas as partes.

Para aumentar a interatividade com os clientes, muitas


vezes as empresas criam comitês formais ou informais entre
suas unidades, compondo todo tipo de forças-tarefa para
decidir sobre a compra de tecnologia, a escolha de fornece-
dores e mudanças de processos. Essa convivência de especia-
listas variados, a despeito de inicialmente produzir alguns
conflitos pelos choques de egos e pela necessária e natural
fase de ajustamentos de poder, acaba tornando mais permeá-
veis as divisórias da organização à passagem das informações.
Esse processo é gerador de conhecimento em alta escala,
pelo simples contato entre profissionais de perfis variados
que se agregam em função de objetivos comuns e claramente
definidos. Mas são raros os casos em que esse conhecimen-
to sobrevive aos projetos específicos. O ideal é que ele não
apenas se torne dinâmico e agregado à cultura da empresa,
como seja transmitido aos clientes externos e fornecedores.
Isto é: o ganho mais valioso pode não vir do projeto em si,
mas da criação de uma nova cultura.
Organizações atentas à criação do conhecimento de ori-
gem diversificada, e ao valor potencial que esse conhecimen-
to agrega a todas as suas operações e às relações internas e
externas, são chamadas por alguns estudiosos de organiza-
ções sincronizadas. Isso decorre de elas serem capazes de de-
senvolver uma noção clara e intuitiva da equação formada
pela informação e o tempo. Quanto tempo uma informação
leva para ser absorvida, quanto de conhecimento gera e,
principalmente, quando pode ser descartada.

Organizações não habituadas ao trânsito livre de infor-


mações e à criação de conhecimento tendem a reter infor-
mações como se valessem por si mesmas, fora de contexto.
C o m isso, correm o risco de entulhar seus bancos de dados
com lixo cultural e contaminar seus cérebros com premissas
superadas. E m pouco tempo, a comunidade organizacional
perde elementos essenciais de conhecimento, como o mundo
árabe após a eliminação do carro de bois. D a mesma for-
ma, o sistema das hierarquias de conhecimento deu origem
à cultura de artimanhas copiadas dos gurus da auto-ajuda,
cujos livros fazem grande sucesso entre os gestores e acabam
determinando comportamentos altamente homogêneos e
pouco tolerantes à crítica.
A falta do hábito e de coragem para o livre-pensar pode
levar u m gestor a dirigir toda sua vida, profissional e pes-
soal, a partir de premissas falsas. U m questionamento sim-
ples que coloque sob suspeita qualquer de suas crenças pode
enchê-lo de insegurança. C o m o você reagiria a uma crítica
direta a uma obra ou autor que você aprendeu a admirar?
Por exemplo, pode-se afirmar — e sustentar com números
— que " a grande massa dos gestores aprendeu a idolatrar
personalidades que se celebrizaram por produzir o desem-
prego em massa durante a recessão americana dos anos
1980, como Jack Welch, presidente da G . E , citado como
autor de uma revolução no universo dos negocios.
Diz-se que suas ações corajosas no sentido de fechar ou
vender empresas fortaleceram o sistema, como no ato de
podar uma árvore. M a s , independentemente de uma análise
distanciada sobre a realidade que ele teria construído com
estratégias opostas à que utilizou, e dissociando-se o resul-
tado obtido por suas decisões após vinte anos, a mídia que
se encarrega do mundo dos negócios quase sempre ignorou
as restrições ao valor moral de muitas de suas medidas. Os
holofotes se dirigem para os sobreviventes, candidatos ao
triunfo sob essa perspectiva, e os milhões de sacrificados fi-
cam na zona de sombra da História.

D a soma de milhares de empresas e gestores com esse


perfil resulta um sistema altamente vulnerável, pela clara
tendência ao isolamento do todo social e à falta de estra-
tégias que contemplem a totalidade, e não apenas a orga-
nização ou o setor, isoladamente". Essas afirmações, feitas
por um estudioso das organizações diante de um grupo de
executivos reunidos em São Paulo para uma palestra, em
meados de 2001, deixou-os completamente desconcertados
e atônitos. Onde estava a segurança dos princípios com que
tomam suas decisões? Não há dois jack Welch que possam
ser comparados, para que se faça justiça à sua biografia.

Para refletir:

1. V O C Ê PODE PENSAR MELHOR DO QUE ARISTÓTELES. N A S CIR-


CUNSTÂNCIAS E M QUE ATUA, VOCÊ PODE TOMAR DECISÕES PRO-
PORCIONALMENTE MAIS ADMIRÁVEIS CORAJOSAS DO QUE AS
QUE CELEBRIZARAM JACK W E L C H .
V O C Ê SABERIA DIZER, DE BATE-PRONTO, E M QUE NICHOS DA E M -
PRESA PODERIAM ESTAR SENDO ESCONDIDAS, NESTE MOMENTO,
INFORMAÇÕES ESSENCIAIS À SUA ORGANIZAÇÃO?

QUANTAS VEZES VOCÊ PRIVILEGIOU " C A M E L O S " QUE NÃO AGRE-


GAM VALOR, E M DETRIMENTO DE " CARROS DE B O l " POTENCIAL-
MENTE VALIOSOS, E M FUNÇÃO DE U M A APARENTE VANTAGEM N A
RELAÇÃO CUSTO-BENEFÍCIO?
V—A linguagem de Babel

U m aspecto inquestionável da cultura so-


bremoderna, comum a todos os povos i n -
cluídos nos processos produtivo e decisório
mundial, é que os eventos mais importantes,
sejam vinculados à educação, às relações so-
ciais ou à produção, se desenvolvem atual-
mente sobre a plataforma de uma linguagem
única. De fato, todos os idiomas tendem a se
compor em torno da linguagem da computa-
ção, como se a humanidade, enfim, estivesse
reconstruindo a utópica torre de Babel.
Todo o avanço esperado para as ciências
depende cada vez mais da capacidade dos
seus agentes de dominar com maestria essa
linguagem comum. O maior programa que
alguém pode construir tem cerca de dez milhões de linhas
de código, um número assombroso de informações. Nessa
linguagem, a biologia é definida como um manual de ins-
truções de três bilhões de letras chamado Genoma, e uma
dezena de bilhões de linhas de código formam a medida da
complexidade de um cérebro humano.
Nos degraus dessa torre virtual se desenvolve o conheci-
mento que está criando um mundo completamente novo. A
linguagem comum proporciona a seus praticantes um nome
e uma identidade — como se diz no Gênesis do povo que
construiu a torre de Babel —, e seus praticantes ainda sabem
pouco das novas fronteiras que se abrem para o conheci-
mento e para o papel que a humanidade virá a cumprir no
Universo. Eles apenas desconfiam do grau de complexidade
que suas escolhas representam, e sabem que elas não são
proporcionais ao nível das transformações que essas esco-
lhas irão produzir. N o topo dessa torre de conhecimento se
eleva uma antena cósmica, que a cada dia estende em bilhões
de quilômetros nossa capacidade de bisbilhotar o universo
exterior. E, numa versão oposta, reduz em micrômetros nos-
sa capacidade de enxergar o interior de nós mesmos. N a
base da torre, especula-se sobre o futuro da humanidade.
Estamos num ponto muito interessante da história hu-
mana: desde que o primeiro hominídeo usou um pedaço de
pau para se defender ou arrancar do chão uma raiz comes-
tível, este é o momento em que o homem se encontra mais
próximo de possuir instrumentos mais capazes do que ele
de processar informações. N o entanto, a natureza humana
mudou pouco em relação ao avanço da ciência e nossas so-
ciedades ainda vivem mergulhadas em conflitos tenebrosos,
muitos dos quais de origens tão primitivas quanto a disputa
pelo fogo ou o nome de uma divindade. Mesmo nas culturas
tidas como mais avançadas, detentoras desses instrumentos
tão poderosos, ainda está por surgir uma configuração so-
cial equivalente ao desenvolvimento científico em termos de
produtividade, eficiência, segurança e bem-estar.
A revolução anunciada pela Internet ainda não acon-
teceu. N o s meios produtivos, o que aconteceu de fato foi
que a Internet e suas congêneres derivadas da mesma raiz
Kybernáos têm sido aplicadas como instrumentos comple-
mentares a tecnologias tradicionais. Não se trata de uma
tecnologia revolucionária em todos os casos, porque a ten-
dência das organizações dominantes nos mercados é agregar
valor a estratégias consideradas vencedoras, com o menor
risco possível. E m geral, onde se esperava o fim de antigos
monopólios e oligopólios, o que se vê é a apropriação da
tecnologia para a manutenção do status quo.

N o entanto, sabe-se que tecnologias com grande potencial


de transformação cedo ou tarde acabam por impor novas re-
gras, pelo fato de se tornarem disponíveis também fora dos
círculos de poder. O avião, inventado na alvorada do século
X X , foi apropriado imediatamente pelo poder militar, mas
também começou a operar nos serviços de correios, ajudan-
do a ampliar a percepção de mundo de milhões de pessoas.
Quando estava madura para servir a viagens transcontinen-
tais, essa tecnologia também se tornou fundamental para a
abertura do comércio internacional e para o surgimento de
instituições globais e a reconfiguração geopolítica do mundo.
Finalmente, quando havia se consolidado como instru-
mento predominantemente pacífico de transporte, funda-
mental ao processo de globalização, o avião foi novamente
transformado em arma de destruição em massa de vidas hu-
manas no dia 11 de setembro de 2001. Há o risco, no entan-
to, de que o sistema perverso de acumulação e exclusão leve
a uma situação de confrontos localizados ou generalizados,
capazes de comprometer setores da economia, como a pró-
pria aviação comercial, impactada pelos sequestros seguidos
de atentados.

Pouco se sabe sobre o embrião de cultura que se desen-


volve na nova torre de Babel, mas há sinais de que apresenta
como características genéricas a universalidade, u m maior
grau de tolerância e um sentido mais intrínseco de respeito
à liberdade. Faltam pesquisas sobre o universo desses semi-
deuses que constróem as carruagens do futuro, mas sobram
indícios de sua propensão a preservar a diversidade e valores
como pacifismo, democracia e bem-estar. E m geral, as ma-
nifestações mais livres desses profissionais e pesquisadores,
nos ambientes de interação conhecidos como blogs — ex-
pressão que poderia ser traduzida livremente como "regis-
tro alternativo" —, revelam uma propensão a discordar do
establishment e a adoção de expressões de espíritos pro-
gressistas. N u m possível espectro que os contraponha aos
semi-deuses da economia dos anos 1980, os yuppies, eles se
colocam num arco exatamente oposto ao do individualismo
vencedor e indiferente ao sofrimento alheio, que caracteriza-
va os heróis da economia no último quarto do século X X .

NOVA LÍNGUA CULTA


Há duzentos anos, alguém que pretendesse ser aceito en-
tre intelectuais precisaria ser versado em latim e grego. N o
começo do século X X , era preciso falar francês para ser le-
vado a sério como literato, ou saber alemão para filosofar.
N o final do século passado, quando se tornou madura a
era da informação, ficou claro que para participar plena-
mente da sociedade seria fundamental conhecer a natureza
da linguagem digital. Ingressamos rapidamente na era do
conhecimento, na medida em que o mundo aprende que a
informação precisa ser contextualizada para agregar valor.
As explosões no Wor ld Trade Center, no Pentágono e em
M a d r i parecem indicar que, para consolidar a era do conhe-
cimento e abrir a perspectiva da era da consciência, precisa-
remos todos, e principalmente os gestores de todos os níveis
e em toda espécie de instituição, desenvolver a linguagem da
consciência social.

Recentemente, quando me ocupava em pesquisar a ori-


gem de expressões que definem a cultura da gestão neste
contexto de revolução do conhecimento, fui desafiado por
David Tayne, jovem diretor de pesquisas do Rocky M o u n -
tain Institute, a propor uma nova expressão para a idéia de
capitalismo natural, contida no célebre trabalho do insti-
tuto. Ele queria uma expressão que significasse um sistema
econômico no qual, diante do avanço das ciências, as reser-
vas naturais da biosfera e — numa extensão futura — as re-
servas dos corpos celestes passíveis de colonização humana,
tivessem garantia plena de preservação e de recuperação,
enquanto as reservas de inteligência e criatividade humana
pudessem ser exploradas ao máximo.
Tayne exprimia a constatação de seus pares, feita ain-
da antes dos atentados em N o v a York e Washington: após
haver colocado sob risco a capacidade do planeta de sobre-
viver a tantas agressões, e de continuar oferecendo abrigo
às mais variadas formas de vida, o modelo econômico que
adotamos chegou ao estágio em que a própria sociedade hu-
mana é colocada em risco. A expressão "capitalismo natu-
r a l " , criada pelo instituto, respondia apenas a uma parte da
equação. Era preciso buscar, muito além disso, um modelo
que significasse também a preservação da capacidade hu-
mana de constituir uma sociedade melhor para todos, com
mais igualdade de oportunidades.

O termo mais próximo a que cheguei passava muito lon-


ge da palavra capital e seus derivados enquanto, num ou-
tro extremo, também me mantinha distante de expressões
associadas a energias coletivas de mudança, como socialis-
mo e congêneres. Por todas as vias em que tentei abordar
o problema, as equações resultantes exigiam a análise da
linguagem de Babel. Ficou claro que um novo sistema eco-
nômico que venha a substituir o modelo vigente, de devas-
tação de recursos naturais e degradação de recursos sociais
e humanos, vai depender em grande parte da capacidade
dessa nova linguagem de propor expressões claras. M a s não
apenas expressões — essencialmente recursos e instrumen-
tos pragmáticos — para a construção de relacionamentos
econômicos, políticos e sociais em novas bases, mais aceitá-
veis do ponto de vista da consciência social. Além disso, é
necessário o pressuposto de que todos os programas serão
escritos tendo como objetivo a expansão democrática dos
benefícios da atividade econômica.
A linguagem de Babel é, portanto, o embrião de novos
sistemas pelos quais não apenas iremos produzir, controlar
os processos e realimentar nossa capacidade de aprender.
Também poderá se constituir num meio de evitar que a bus-
ca de resultados em determinado setor venha a colocar sob
risco os ganhos da humanidade em outros setores, como o
setor de transportes em relação à qualidade da vida urbana,
o entretenimento em relação à educação, o setor financeiro
em relação à indústria etc. Aliás, tente calcular quanto do
tempo útil da sua empresa é gasto no relacionamento com
bancos. Quanta energia é gasta na administração da des-
confiança? Q u a l o grau de incerteza — portanto, de risco
— de cada operação dessas, que compõem o dia-a-dia das
organizações? Os objetos de informática geram como sub-
produto uma visão mais ampla de todos os procedimentos,
o que deverá alimentar os estrategistas com uma percepção
progressivamente maior do alcance de suas escolhas.

MODELOS MENTAIS
M a i s ou menos no mesmo período em que comecei a tra-
balhar no desafio do R o c k y M o u n t a i n Institute, um diretor
de uma das novas empresas de telecomunicações atuantes
no Brasil me questionou a respeito da imagem persistente-
mente negativa que sua organização produzia na popula-
ção em geral e, especialmente, na mídia. Ele pretendia que,
como profissional de comunicação envolvido com educação
de executivos, eu o ajudasse a entender por que razão, a
despeito de grandes esforços em campanhas institucionais
e do investimento sincero em ações de responsabilidade so-
cial, sua empresa ainda sofria preconceitos. E , além disso,
colhia má-vontade na população em geral e nos principais
formadores de opinião da sociedade. Suspeitava que, pelo
fato de a empresa ter origem na Península Ibérica, antigas
feridas do período colonial geravam má-vontade e rancor
no mercado sul-americano.
Lembrei-me de um contato absolutamente desagradável
que havia tido com um de seus colegas da corporação, cerca
de dois anos antes, quando eu oferecia consultoria de estra-
tégia para inserção de empresas no ambiente da Internet.
Fora convidado a disputar um cargo numa das empresas do
grupo. Porém, estava muito empenhado em fazer decolar
minha carreira solo, e aceitara o convite para um almoço no
qual estudaríamos uma possível convergência de interesses.
Fui recebido pela diretora de recursos humanos, por um
simpático diretor de operações e um vice-presidente encar-
regado daquela unidade. Notei que o vice-presidente não
fora avisado de que eu não concorria a um cargo nem esta-
va vendendo consultoria — acabara de acertar um trabalho
exclusivo com uma empresa localizada no mesmo conjunto
de torres da região sul de São Paulo. Não consegui condu-
zir a conversa em tempo suficiente para chegarmos à mesa
do almoço: ele estava tão preocupado em expor os limites
estreitos de tolerância estabelecidos pela matriz ibérica que,
desconfio, nem chegou a entender a razão da minha pre-
sença ali. Saí dali com uma desculpa e perdemos, ambos os
lados, a chance de uma parceria mutuamente benéfica.
Certamente, imagino, os modelos mentais de uma orga-
nização são muito influenciados pela cultura de negócios rei-
nante no seu país ou região de origem e irão formar o estilo
que essa organização carregará em suas relações no mundo
globalizado. Aplicados sobre esse cenário, os recursos tec-
nológicos podem agravar a percepção de características ne-
gativas por parte de clientes, parceiros e colaboradores.
Empresas oriundas de países caracterizados por u m ca-
pitalismo tardio, nos quais os empreendedores eram ungi-
dos como na monarquia ou precisavam prestar vassalagem
e concordância ideológica com o poder central, haverão
de carregar determinadas características que podem gerar
interpretações desfavoráveis no mercado. O u , pelo menos,
nos setores de maior senso crítico e entre os formadores de
opinião. Pode ser o caso de algumas organizações que vice-
jaram na Península Ibérica, considerando-se que a maioria
delas nasceu sob o protetorado e dependente de um poder
ditatorial fortemente ligado a pressupostos religiosos. Pode
ser também o caso de algumas corporações que se desenvol-
veram à base de propinas, em períodos de alta incidência de
corrupção nos governos de seus países, como em algumas
economias emergentes da Ásia, da Rússia e da América L a -
tina. O caso da empresa aérea que se valeu dos serviços de
um governo ditatorial para destruir a concorrente é bastante
conhecido.

COLHENDO FRUTOS PODRES


Organizações com histórias pouco edificantes não se l i -
vram desse estigma com estratégias de comunicação con-
vencionais. correm riscos a longo prazo, porque, na hipó-
tese de um recrudescimento da competição ou mesmo em
condições de oferecer vantagens aos clientes, a percepção
negativa de sua presença no mercado sempre tenderá a ali-
mentar sua rejeição pelo consumidor. Por outro lado, se essa
aura de antipatia prejudica os resultados, elas têm a oportu-
nidade de se valer da tecnologia para produzir rapidamente
relações mais amigáveis com o mercado.
Os momentos de ruptura e descontinuidade, como aque-
les produzidos pelo impacto de novas tecnologias, são sem-
pre oportunidades para mudanças de cultura. C omo habi-
tam um universo muito particular e interativo e dominam
a linguagem multicultural de seus programas, os gestores
da tecnologia de informação podem se tornar agentes para
essa mudança. Funcionarão como sensores junto a fornece-
dores, parceiros e clientes nos ambientes tecnológicos que
freqüentam. Quem pode educá-los para essa mudança são
os gestores profissionais de comunicação corporativa e os
consultores de desenvolvimento profissional.

Assim, num cenário em que temos, de um lado, tecno-


logias avançadas que podem liberar o gestor das tarefas de
controle de processos e, do outro lado, a necessidade de dar
à organização a capacidade de adotar o estilo mais adequa-
do a cada mercado em que compete, parece muito claro que
muitas das ações de comunicação estão assentadas em bases
pouco produtivas, por não juntarem os dois universos capa-
zes de impulsionar a mudança.
Temos no ambiente dos gestores de tecnologia não apenas
o conhecimento técnico, mas também a linguagem, que é a
metáfora destes tempos de globalização. Temos no ambiente
dos comunicadores a habilidade para fazer a empatia com os
pontos mais sensíveis ao contato com a sociedade. É preciso
juntar os dois setores para que se eduquem mutuamente.
Mohanbir (ou Mohan) Sawhney, professor de comércio ele-
trônico e tecnologia da Faculdade Kellogg da Northwestern
University, nos Estados Unidos, observa que a arrogância da
tecnologia pode levar empresas a repetir erros já superados.
defende o uso da "sincronia transparente" como forma de
quebrar a cultura dos "segredos de fábrica" e a ideologia do
"levar vantagem" nas relações com o cliente.
A percepção do educador brasileiro Shigueharu M a t a i ,
que o levou a incluir disciplinas de humanidades no currícu-
lo dos tecnólogos da Escola Politécnica da Universidade de
São Paulo, é outra pista que aponta para a conveniência de
integrar a tecnologia de informação com as competências de
comunicação potenciais ou disponíveis na empresa.

A falta dessa coesão provavelmente está na origem de u m


fenômeno que Michael Porter, professor na Universidade
Harvard, observou em líderes de muitas organizações cuja
ascensão tem sido tão rápida quanto é instável sua perma-
nência. Eles se tornam celebridades no mundo dos negócios
sem que ninguém conheça ao certo quais são seus princípios
e valores, nem que lições tirar de seu aparente sucesso. Seu
êxito, baseado em resultados de curto prazo, é uma ameaça
à permanência da empresa no rol das vencedoras, porque o
líder não é capaz de personificar u m exemplo a ser seguido
por seus colaboradores ou admirado por seus clientes. U m
dos mais reluzentes entre esses personagens declarou numa
entrevista algo como " a percepção de que você ganhou
mais um bilhão de dólares está no tamanho maior dos seios
das suas mulheres e na velocidade do seu carro". Detalhe:
muitas publicações de negócios repetiram sua assertiva sem
questionar a grosseria evidente que contém, e sem levantar
suspeitas sobre suas reais habilidades como gestor.
A questão dos valores se torna ainda mais crucial no
atual ambiente de negócios, em que um êxito instantâneo
pode gerar paradigmas universais. A rapidez das mudanças
torna também mutantes os modelos a seguir. Não é difícil
supor que os problemas produzidos por guerrilheiros digi-
tais possam ter sua origem na falta de valores claros nas
organizações.
Uma tecnologia que pode ser libertadora de tarefas e,
portanto, pode se constituir em plataforma para o desen-
volvimento de capacidades estratégicas em todos os níveis
da organização, é também um instrumento poderoso para
quem se considere motivado negativamente para atingir e
prejudicar a organização. Ela só adquire eficiência num am-
biente cultural favorável à integração de todos os partici-
pantes, sem exclusões. se torna um instrumento de defesa
quando a organização partilha com seus integrantes, forne-
cedores e clientes, missão e valores realmente originados em
uma sincera determinação de fazer diferença em favor de
um mundo melhor.

CONFIANÇA TRANSPARÊNCIA
Empresas vencedoras, como a Siemens, perceberam que
a competição já não se dá no ambiente de filmes de espio-
nagem que predominou durante décadas e que hoje beira o
ridículo. Mesmo indústrias com interesses variados e sujei-
tas à concorrência permanente em setores muito sensíveis,
como o de alta tecnologia, podem dar exemplo de confiança
e transparência. até publicam livros, como fez a Siemens
com o título Tecnologia — estratégia para a competitivida-
de, no qual alguns dos mais brilhantes executivos do seu
quadro abrem, para quem quiser se informar, instigantes
modelos de abordagem da questão tecnológica no planeja-
mento estratégico. Tal iniciativa, segundo Hermann Wever,
presidente do grupo Siemens no Brasil de 1987 a 2001 e i n -
centivador da publicação, se deve à disposição de contribuir
com conhecimento para o desenvolvimento da sociedade.
A multinacional brasileira Norberto Odebrecht, com
operações em todos os continentes, tem como importante
suporte de seu sucesso um livro em três volumes intitulado
Sobreviver, crescer e prosperar, no qual está detalhada toda
a estratégia da empresa na formação de seus quadros, nas
negociações internas e externas, na definição de resultados
etc. Uma leitura cuidadosa da obra permite antever os movi-
mentos que cada executivo da organização fará nas diversas
etapas dos projetos em que estão envolvidos.

Isso poderia, sob uma visão conservadora, provocar al-


guma vulnerabilidade nas concorrências acirradas das quais
ela costuma participar. Eles chamam esse conjunto de prin-
cípios, técnicas e processos de T E O — Tecnologia Empresa-
rial Odebrecht — demonstram orgulhar-se de sua aplicação
e não se preocupam em restringir o acesso a ele por parte de
pessoas de fora. Pelo contrário, parceiros, clientes e colabo-
radores externos são convidados a conhecer a T E O em cada
contato. N o Peru, onde a Odebrecht atua continuamente há
um quarto de século, esses princípios ajudaram a m o l d a r
um novo relacionamento entre autoridades governamentais
e empresas de engenharia.
A pergunta de David Tayne, do Rocky Mountain Insti-
tute, não vai ficar sem resposta. Desconfio que o sistema de
negócios do futuro tem a ver com a aplicação inteligente da
mais alta tecnologia em um ambiente de gestão, no qual es-
teja transparente para todos os indivíduos tocados pela or-
ganização, em sua estrutura ou fora dela, que ela tem um
significado socialmente relevante. O que hoje se convenciona
chamar de responsabilidade social deverá ser uma caracte-
rística intrinsecamente associada à natureza da organização.
A tecnologia, hoje ainda isolada em guetos de especialis-
tas, estará impregnada em uma estratégia de comunicação
sistêmica que garantirá a integração circular entre a empre-
sa e os cidadãos. O nome desse sistema ainda demorará a
surgir, mas será certamente derivado dos atuais embriões
de empreendedorismo responsável, abrangendo todos os
graus de comprometimento, como o ambiental, o social e
o cultural. "Capitalismo consciente", no qual se reconhe-
ça como capital muito mais do que os recursos financeiros,
quem sabe?

Para refletir:

1. C O M O SERIA, NOS SEUS SONHOS, U M SISTEMA ECONÔMICO


IDEAL? Q U E RESPOSTA VOCÊ DARIA A DAVID TAYNE?

2. O SIGNIFICADO SOCIAL DE U M EMPREENDIMENTO PODE SER O


PONTO DE PARTIDA PARA A GERAÇÃO DE UMA LINGUAGEM C O -
M U M N A ORGANIZAÇÃO. SOBRE ESSA PREMISSA, PODE-SE CONS-
TRUIR U M A CULTURA DA PERENIDADE.

3. SE SABEMOS DISSO, POR QUE NÃO O FAZEMOS?


VI—Os herdeiros do silício

U m a das metáforas mais interessantes pro-


duzidas pela tecnologia da informação é a
que define a vida " r e a l " como analógica, e
qualifica como digital ou virtual a " v i d a "
criada pelas relações mediadas eletronica-
mente. M a s a distinção entre a vida mediada
a partir dos chips de silício e a vida de argila
é u m artifício de linguagem, não u m fato.
É usada apenas para ilustrar um argumento
abstrato.
N o entanto, o argumento abstrato é váli-
do, porque define dois modos de relação ba-
seados num conceito válido do que seja vida.
Quando se diz que certo tipo de comporta-
mento é típico da vida digital ou " v i r t u a l " ,
há uma referência ao conceito de vida que envolve adquirir,
estocar, processar e usar informação que será utilizada na
vida " r e a l " . Nesse sentido mais amplo, a essência da vida é
a informação, mas informação não é sinônimo de vida. Para
estar vivo, um sistema precisa não apenas absorver informa-
ção, mas processá-la e usá-la para preservar a vida e man-
tê-la capaz de evoluir. É o uso ativo de informação, e não
simplesmente sua estocagem passiva, que constitui a vida.

N a base dos estudos sobre inteligência artificial e vida


artificial que movem grandes investimentos e algumas das
inteligências mais brilhantes do mundo científico, está a ob-
servação de uma forma primitiva de pensamento no nível
subcelular, ou seja, de uma espécie de percepção que gera
uma ação específica local. Uma informação transmitida a
determinada região do organismo produz ações previsíveis
no tipo, mas imprevisíveis na intensidade, o que sugere a
idéia de que ocorreria uma "escolha" nas células do tecido.
O "pensamento" celular seria captado pelo sistema ce-
rebral, onde ficaria arquivado sob a forma de metáfora. As
metáforas básicas que formam o modo como o ser humano
entende sua inserção no universo são comuns às mais varia-
das culturas e têm origem, invariavelmente, na experiência
corporal, no nível celular. Assim, para qualquer pessoa no
mundo, seja o corretor em Wall Street ou o terrorista islâmi-
co em treinamento no deserto do Saara, o amor, o carinho, a
amizade, são sentimentos estreitamente ligados à percepção
de determinado grau de calor, correspondente à temperatura
que o bebê percebe ao ser abraçado pela mãe logo ao nascer.
As experiências com inteligência artificial levam em con-
sideração essas possibilidades, mas estão ainda muito longe
de repetir com um grau aceitável de complexidade o que
ocorre no pensamento. Mesmo porque, evidências de que o
cérebro humano se expande virtualmente, habilitando no-
vas áreas conforme os estímulos que recebe, deixam claro
que não se pode chegar a um simulacro de inteligência com
os computadores atualmente disponíveis. Sabe-se que o pen-
samento criativo aumenta a capacidade do cérebro pela sim-
ples estimulação de conexões virtuais que podem ter estado
inativas por muito tempo. D o mesmo modo, algoritmos i n -
teligentes podem multiplicar a capacidade de operações em
um computador comum.

Essas observações habitam os debates filosóficos e so-


ciológicos sobre a nova sociedade que se constitui a par-
tir do encurtamento de distâncias e redução de diferenças
culturais, proporcionados pela Internet. Elas estão na raiz
da questão da criação do conhecimento nas organizações
de negócios, privadas ou públicas. De certa forma, também
agregam enorme valor ao debate sobre temas amplos, como
o modo como fazemos cultura, os modelos de civilização
que tendemos a criar, e, por conseqüência, os modelos eco-
nômicos, políticos e religiosos que dividem o mundo neste
começo de século. N o horizonte dessa metáfora, está a ques-
tão sobre a durabilidade de mudanças baseadas na ação.
A ação e a concretude são premissas do chamado mundo
analógico, das organizações de tijolo e cimento, como se diz
em contrapartida às empresas de bits e bytes. O modo como
construímos a História até aqui tem a ação como premissa
e, por trás dela, u m pensamento que não faz sentido sem a
hipótese da ação. Há uma história que se constrói a partir
da virtualidade, da concretização de virtudes. O livro que
você compra pela Internet não está realmente no estoque:
você compra o livro virtual, que só existe nos direitos de
impressão e de venda que alguém possui. A troca de infor-
mações entre você e um computador concretiza o que são
virtudes de um livro. Essa História impõe uma reflexão so-
bre a possibilidade de as mudanças reais, a partir de agora,
somente serem possíveis por meio do conhecimento, não da
ação pura e simples. Por extensão, a inovação real e evoluti-
va só seria possível a partir de cada indivíduo, ou do conhe-
cimento adquirido por cada indivíduo e pela ação concreta,
elaborada, consciente, que esse conhecimento potencializa.

provável que tenha sido sempre assim, ou seja, que


de fato a ação por si nunca tenha sido capaz de produzir
resultados a longo prazo. Que tenhamos vivido uma longa
e perigosa ilusão. Que todas as tentativas de criar uma so-
ciedade melhor tenham se fundamentado na ilusão de que
a ação pode fazer acontecer essa mudança. Também não
basta supor que a ação produz em prazo curto ou longo o
conhecimento necessário à permanência da mudança. Sabe-
mos que o conhecimento produzido pela ação traz vícios do
poder da própria ação: o movimento da mudança é sempre
seguido de uma necessidade urgente de consolidação, que
reduz a liberdade de pensar no sentido contrário à ação que
foi seu ponto de partida.
Isso é claro em reflexões distantes entre si, como as pro-
duzidas por Theodor Adorno em estudos sobre indivíduos e
grupos que agem contra seus próprios interesses de preser-
vação, e as percepções expostas numa troca de correspon-
dências entre Ernst Jünger e M a r t i n Heidegger. O militaris-
mo de Jünger, que o levou a uma vida de ação, é a base para
reflexões da idade madura, nas quais ele analisa o niilismo
europeu como resultado do constatado fracasso da ação em
criar a realidade. Quando falta reflexão à ação, a energia do
impulso inicial se revela inversamente proporcional à von-
tade de inovação. Isso ocorre porque a ação continua por
inércia e se justifica por si mesma, sempre no mesmo senti-
do, conservadoramente na mesma direção, o que explica em
parte a transformação de impulsos libertários em sistemas
de dominação.
A História também permite constatar que "pertence à
essência da vontade de poder não deixar que se revele na
realidade (que é própria de sua essência) o real do qual ela
se apodera pela força". É o que diz Heidegger em uma de
suas cartas, dando consistência à idéia de que o conheci-
mento gerado pela ação já nasce viciado pela necessidade de
justificar o poder que a produziu. M a s , muito além do que
nos possam ter oferecido esses e outros pensadores, há uma
possibilidade criada pela tecnologia digital: a de constatar-
mos em múltiplos casos, no universo das organizações de
negócios ou no cenário da economia global, como a ação se
revela, por si, incapaz de produzir uma realidade permanen-
te que seja satisfatória para a maioria.
O conhecimento é também capaz de gerar uma realidade
mais duradoura porque, conforme ensina a psicanálise, o
caminho da verdade (conhecimento do real) é o caminho da
luta e do trabalho. A civilização se faz no trabalho contra
certos impulsos, quando a compreensão de si mesmo e do
mundo pelo indivíduo se dá como resultado "econômico"
da equação entre força e contra-força. O pensamento alheio
ao afeto e à ação desse conflito é apenas racionalização,
acomodação de anseios, enquanto o pensamento criador de
conhecimento trabalha no limite do real, do corpo-mente e
das demais condições humanas.
Muitos trabalhos, como o do professor brasileiro Sérgio
de Gouvêa Franco, analisam o processo de construção da
sociedade humana a partir da definição dos lugares próprios
para a religião e a ciência. Porém, no universo de conheci-
mento dos gestores ainda é pobre a oferta desse saber. N a
verdade, a grande maioria dos gestores trafega entre o es-
tímulo emocional de pouca exigência, presente nos livros
de auto-ajuda, e certas obviedades da gestão de processos.
Mesmo as leituras mais densas de conteúdos relacionados à
gestão, a que muitos também se dedicam, são feitas com base
em pressupostos curiosamente contraditórios em relação ao
desejo e à necessidade de aprender, como aquele segundo o
qual "na prática, a teoria não funciona". Se considerarmos
que todo gestor é um líder potencial, calculemos o risco...

AUTO-AJUDA
Durante os dois últimos anos do século X X , observei os
hábitos de leitura de gestores intermediários e executivos,
e pude constatar essas duas fontes preferenciais de conhe-
cimento, também presentes na maioria das publicações pe-
riódicas destinadas a esses profissionais: processos e auto-
ajuda. N u m dos grupos que consultei, certos nomes mais
densos como Peter Drucker e Peter Senge, alcançavam mais
de 80% na lista dos autores mais lidos, seguidos pelo funda-
dor do sistema Visa, Dee H o c k .
N o entanto, pude constatar que a leitura desses autores
era feita sob a premissa de que suas idéias não seriam com-
patíveis com a realidade das organizações. Drucker encabe-
ça as preferências de leitura dos gestores há mais de duas
décadas, enquanto Peter Senge faz muito sucesso com suas
idéias a respeito de organizações aprendizes desde os anos
1990. O inovador conceito de organizações caórdicas, de
Dee H o c k , se estabelece progressivamente nos debates sobre
estratégia e gestão, mas ainda produz tremores nas mentes
excessivamente racionais e comentários do tipo "bonito,
mas irreal". M a i s distante ainda é a idéia da função social
das organizações e dos gestores, presente nas obras de Willis
Har man e Hazel Henderson, por exemplo.

Dee H o c k toca no aspecto mais vulnerável dos modelos


mentais conservadores que predominam na cultura de ges-
tão: a quebra da ordem aparente como pressuposto para a
criação. Não há tema que cause tanta insegurança como a
hipótese de se trabalhar num ambiente de caos aparente.
N o entanto, vive-se hoje em cenários tão mutantes que o
próprio conceito de ordem tem de mudar.
Para os espíritos mais abertos, o sucesso de Dee H o c k ,
após anos de busca de um significado para o sistema que
ele e seus parceiros estavam criando, é um estímulo diante
das transformações. O que há por trás de um negócio no
qual todos são proprietários, fornecedores, controladores e
clientes, é o mesmo princípio que os físicos descobriram no
ambiente subatômico: há uma ordem subjacente ao caos.
Há uma relação de confiança aparentemente inexplicável no
movimento de um mercador de tapetes em Casablanca, que
entrega seu produto a um turista brasileiro em troca de sua
assinatura num pedaço de papel que contém o número de
um cartão de plástico.
Trabalhos científicos e reflexões filosóficas corresponden-
tes à percepção de Dee H o c k têm proliferado no ambiente
dos criadores dessa cultura organizacional que se desenvolve
e se espalha pelo mundo. Tal cultura está associada à tecno-
logia da informação, e oferece novas e instigantes revelações
sobre a existência de uma ordem implicada sob sistemas e
circunstâncias aparentemente caóticos. M a s na prática da
gestão essa hipótese ainda está relegada ao terreno da espe-
culação ou da curiosidade intelectual.
A oferta cada vez maior de tecnologia sofisticada, capaz
de liberar os gestores das tarefas que os prendem às ações
concretas, abre a oportunidade e a conveniência de investir
numa educação mais adequada à chamada geração do silí-
cio. U m a educação que proporcione ao profissional algumas
habilidades duráveis condizentes com a sociedade que emer-
ge naturalmente desse tráfego mais intenso de informações.
Entre as habilidades que se tornam claramente úteis está a
de criar conhecimento, ou seja, a capacidade de fazer bro-
tar significados e entender com profundidade, no plano da
filosofia, a essência da gestão. C o m o dizem Ikujiro N o n a k a
e Hirotaka Takeuchi, da Universidade Hitsosubashi, no Ja-
pão, esse conhecimento precisa estar "nos ossos" do gestor.

VALOR SOCIAL PERCEBIDO


Nossa capacidade educacional foi multiplicada pelo ad-
vento dessa tecnologia, mas a persistência de modelos antigos
gera dificuldades, que se manifestam tanto nas organizações
de negócios como nas escolas. Durante todo o século X X ,
as ações de gestão se anteciparam ao conhecimento. Tanto
o ensino, como a prática das técnicas de administração, têm
sido pragmáticas e normativas em vez de baseados em teo-
ría e valor. Isso explica como a gestão se desenvolveu sem
conexão com um paradigma teórico. A disseminação das
idéias do sociólogo alemão M a x Weber sobre burocracia,
em meados do século, chamou a atenção para a questão do
conhecimento aplicado à gestão. Embora Weber se referisse
explicitamente à administração pública e à gestão dos pro-
blemas de governo, em pouco tempo a questão invadiu tam-
bém a esfera da administração dos negócios privados. Afinal,
as empresas não existem fora do contexto social e político.

Neste começo do século X X I , os movimentos por respon-


sabilidade social, surgidos até como conseqüência da redu-
ção do papel do Estado, têm trazido à discussão as comple-
mentaridades entre teoria organizacional e teoria política.
A velha escola do binômio economia e eficiência passou a
agregar outras disciplinas, como valores, responsabilidade
social, cidadania, direitos humanos etc., o que coloca no-
vas premissas diante do administrador. M a s a ação ainda se
dá num contexto de "guerrilha", e poucos empreendedores
falam sobre o tema sem constrangimento, como se muitos
tivessem vergonha de sua eventual consciência social.
Até o presente momento, quando a primeira década do
século X X I já passa da metade, os gestores ainda precisam
de uma cartilha para entender que toda empresa tem — ao
lado do seu valor econômico e do seu valor de mercado (que
define seu posicionamento) — u m valor social perfeitamente
mensurável. O "balanço social" vai como um adendo ao
financeiro, como u m sexto dedo, uma excrescência, quando
deveria ser reconhecido como parte do tripé da sustentabi-
lidade. Por que não destinar u m tempo à definição do Valor
Social Percebido da empresa? Se podemos reconhecer o E V A
(Economie Value Added — Valor Econômico Agregado), no
que respeita ao capital, por que razão não buscar o reco-
nhecimento de um SVA (Social Value Added — Valor Social
Agregado), num plano de consciência mais avançado sobre
a natureza de todo empreendimento?

O advento das empresas chamadas digitais tende a alte-


rar profundamente uma série de procedimentos de negócios,
incluindo estilos, velocidade nas tomadas de decisão e al-
cance de ações de gestão. M a s pouco se sabe sobre o efeito
de suas atividades na qualidade da sociedade. Por que não
começar por uma delas a busca da percepção desse valor
real? As empresas que se espalharam pelo mundo a partir
das raízes fincadas no Silicon Valley, na Califórnia, ainda
não realizaram a perspectiva, anunciada por muitos analis-
tas, de revolucionar a gestão pela imposição de valores mais
humanos às organizações.

Visitas a algumas dessas corporações, como a Unisys, a


Microsoft ou a Razorfish, revelam que a prática da partici-
pação nos resultados se tornou corriqueira e que o ambiente
de trabalho é sempre mais respeitoso com o estilo e as pre-
ferências dos funcionários. M a s a geração de silício ainda
não demonstrou que veio para inovar muito mais do que
em tecnologia. A "nova cultura" dessas empresas é pouco
mais do que a transposição para o ambiente profissional do
estilo menos formal das universidades americanas, e uma
valorização mais evidente do conhecimento técnico.
A tecnologia, vista como libertadora do gestor, exige defi-
nições mais claras quanto à verdadeira natureza das organi-
zações. A rapidez com que se pode hoje resolver problemas
ligados a controle e monitoramento vai, na certa, alterar
ainda mais profundamente as relações de negócios. Isso
ocorrerá tanto internamente, nas organizações, como exter-
namente, entre organizações, países e até blocos regionais.
Parte do conteúdo das escolas de administração, economia e
direito pode cair na obsolescência em pouco tempo, e certas
disciplinas já dão claros sinais de que serão superadas por
operações computadorizadas.
Se antes da explosão de tecnologia da informação as polí-
ticas duravam no máximo trinta anos, agora se percebe que
a mudança é a própria natureza dos negócios. Sem uma base
sólida de significado realmente compartilhado em toda a or-
ganização, cresce o perigo de conflitos, instabilidades e para-
lisia pela dificuldade de avaliar as oportunidades e os riscos
de cada projeto interno ou desafio externo. O apego a pro-
cessos, estruturas e rotinas também se repete no universo dos
tecnólogos, e tende a se tornar ainda mais arraigado quando o
especialista assume um posto na estrutura de poder da organi-
zação "conservadora". C omo um velho hippie domesticado.
A "geração de silício" também tem dificuldade de lidar
com o poder, embora seus representantes pareçam menos
apegados a formalidades, talvez por serem geralmente jo-
vens. U m a organização mais afeita à criação do conheci-
mento e menos obcecada com a gestão do conhecimento se
apropria da tecnologia que eles possuem. E m troca, ofecere
o ambiente cultural mais adequado ao estabelecimento de
uma relação menos dependente e mais criativa com as ferra-
mentas tecnológicas.
U m a análise do desenvolvimento profissional de enge-
nheiros saídos de escolas brasileiras entre 1995 e 2000,
feita pela Universidade de São Paulo (USP), revela que ape-
nas uma pequena parte se manteve em papéis estritamente
técnicos, o que provavelmente decorre da aplicação cada
vez maior de tecnologia em processos e sua influência cres-
cente na própria estratégia das organizações. N o entanto,
o comportamento de tecnólogos que se transformam em
administradores revela uma grande dificuldade de interagir
em ambientes mais diversificados, em comparação com o
ambiente que encontravam no campus ou em funções estri-
tamente técnicas.

Segundo o professor Shigueharu M a t a i , coordenador de


estágios do curso cooperativo de engenharia da computação
da Escola Politécnica da USP, os profissionais que ingressam
no mercado de trabalho a partir da onda da tecnologia de
informação são muito mais informados e mais ágeis, mas
ainda apresentam dificuldades no relacionamento interpes-
soal. Interagem muito naturalmente com as máquinas, têm
uma relação intuitiva com processos e lógica e são, por isso,
mais exigentes quando se trata de equações cujas respostas
envolvem opções diretas de causa e efeito. M a s sofrem com
questões ambíguas. Essa percepção levou educadores como
M a t a i a inserir disciplinas de humanidades em cursos de en-
genharia a partir de 1989. M a s o efeito não será perceptível,
se a organização que receber esses profissionais não investir
na continuidade de sua educação para uma responsabilida-
de mais ampla, pela predominância da cultura profissional
sobre a cultura acadêmica.
M a t a i exemplifica uma situação de desperdício de talen-
to em sua linguagem profissional: " A o procurar um aluno
que passou por um curso de renome, o mercado está garan-
tindo a C P U , o cérebro. Se vai funcionar bem, depende do
sistema operacional, isto é, do ambiente de trabalho. Tam-
bém é necessário que o aluno mude sempre de aplicativos,
faça upgrades para se renovar. M a s de nada vale uma boa
máquina e u m bom programa, se o monitor, onde se dá a
apresentação, é ruim. essencial saber se relacionar".

O cenário de mudanças que impõe constantes desa-


fios à gestão das empresas exige uma dedicação especial
ao desenvolvimento de habilidades permanentes nesses
profissionais. A começar pela mudança de suas premis-
sas, lembrando sempre que premissas conservadoras são
restritivas. M a s nenhuma organização pode obter bons
resultados na aculturação desses e outros profissionais
(como por exemplo os encarregados das vendas), sem uma
definição clara de seus propósitos. Valorizar o conheci-
mento técnico e agregar-lhe a visão estratégica é uma das
equações essenciais do nosso tempo. Pois os futuros de-
senvolvimentos da tecnologia que inaugura o século X X I
apontam para a necessidade cada vez mais clara de enten-
der e valorizar os aspectos humanos e imponderáveis das
relações de negócios.

Uma das metáforas mais interessantes da tecnologia de


inteligência artificial, que começa a ser embarcada em gran-
des volumes em programas destinados à gestão, é a do es-
cravo mecânico: o robô que faz a parte perigosa ou menos
elaborada do trabalho, enquanto o ser humano se dedica a
tarefas mais complexas, como pensar. M a s antes que uma
proporção considerável dos processos esteja hospedada nos
chips dos computadores, é preciso que toda a organização
aprenda a pensar.
Para refletir:

1. V O C Ê JÁ PENSOU NAS POSSIBILIDADES DE SIMULAÇÃO QUE A


TECNOLOGIA DIGITAL PROPORCIONA, HABILITANDO A EMPRESA
VOCÊ, PESSOALMENTE, A DESENVOLVER A INTUIÇÃO C O M CE-
NÁRIOS VIRTUAIS?

2. C O M O SERÁ SUA VIDA DAQUI A DEZ ANOS?

3. O MUNDO SE CARACTERIZA HOJE POR MUDANÇAS RÁPIDAS


DESCONTINUIDADES RADICAIS. VOCÊ GOSTA DE MUDANÇAS?
VII—A tecnologia da libertação

A nova ordem, por sua complexidade e pelas


múltiplas variáveis impostas por negociações
em diferentes ambientes culturais, exige par-
cerias. Parcerias exigem confiança, que por
seu turno só é possível quando existe auto-
confiança. John F. Welch Jr., o lendário Jack
Welch, líder da General Electric, costumava
dizer nas palestras aos gerentes da empresa
que só as pessoas auto-confiantes podem ser
simples, e que a simplicidade está na base da
gestão eficiente. Simples, em seu significado
original, quer dizer aquilo que está mais pró-
ximo de sua verdade; portanto, uma pessoa
só pode ser auto-confiante quando se conhe-
ce bem. D a mesma forma, uma organização
funciona com simplicidade, adotando sempre as soluções
mais adequadas à sua natureza, se desenvolver o auto-co-
nhecimento, ou seja, a percepção mais próxima possível da
sua verdade.
Pura filosofia, no sentido depreciativo que se procura dar
à expressão nos ambientes empresariais? Não. Independen-
temente do que Welch possa ter produzido em sua carreira
— uma organização de sucesso ou uma longa fila de desem-
pregados —, essa reflexão é a linha divisória entre comprar
tecnologia para benefício da organização ou adquirir uma
encrenca. M a s , muito além disso, é preciso atentar para
uma sutileza ainda anterior à escolha das tecnologias: par-
cerias com quem? C o m o fornecedor de tecnologia, apenas,
ou com o espectro mais amplo que abrange os funcionários,
clientes, fornecedores e a própria comunidade?

Quando falta esse sentido original ao propósito da em-


presa, reduz-se o potencial de benefício produzido pela me-
lhoria tecnológica. Quantas organizações podem afirmar
com segurança que fizeram o negócio certo, ao adquirir
suporte para a informatização de seus processos a partir
de 1996, quando o desenvolvimento da tecnologia de i n -
formação foi, claramente, mais veloz do que a capacidade
dos gestores de entender o que estava acontecendo? Quan-
tos lances instantâneos foram suficientes para transformar
em pó alguns mercados antes considerados absolutamente
sólidos, porque a empresa confiou que bastava dar o salto
em tecnologia?
O jornalista e consultor Sérgio Storti, mestre em ciência
da comunicação pela Universidade de São Paulo, que traba-
lhou para empresas fornecedoras de infraestrutura digital,
como a Peregrine Systems e Candle Corporation, cunhou
a expressão "tecnologia da libertação". C o m ela, preten-
deu representar a possibilidade aberta pela tecnologia da
informação de livrar os gestores da permanente angústia de
ter de lidar artesanalmente com muitos dados e o constante
risco de perda desse patrimônio. Referência bem-humorada
à "teologia da libertação", elaborada por setores da Igreja
Católica, a tese de Storti oferece uma visão curiosa sobre o
momento vivido pela grande maioria das organizações.

Apanhando o tema pelo lado oposto ao que é comumente


abordado pelos analistas, Storti observa que as novas tecno-
logias disponíveis alteram profundamente alguns protoco-
los das organizações. Causam certo distúrbio, pela mudança
de algumas relações de poder, mas oferecem a oportunidade
de os gestores se libertarem de algumas das mais recorrentes
fontes da ilusão do controle.
Ele considera o que a nova tecnologia tem a oferecer, a
partir de um levantamento minucioso de toda a situação
real da empresa. Leva em conta todos os fatores e agentes,
funcionários, capitais envolvidos, situação de caixa, com-
promissos assumidos e por assumir, imóveis, instalações,
equipamentos, softwares, políticas administrativas, logísti-
ca, estoques, produção, vendas, contabilidade e mais uma
centena de itens. A obtenção desses dados pode levar seis
meses. Após a coleta, é feito um diagnóstico administrativo
hiper-real da empresa; todos os fatores, com seus desdobra-
mentos, passam a ser rigorosamente controlados e audita-
dos periodicamente.
Assim, a empresa automatiza seu foco, e a busca de re-
sultados deixa de ser uma obsessão do dia-a-dia, porque as
variáveis passíveis de controle, e apenas essas, são colocadas
sob piloto automático. A obtenção do máximo rendimento
possível sobre o total dos investimentos, e o menor custo
realizável para as suas operações, sai do horizonte imediato
das preocupações. Assim, o gestor pode dedicar mais aten-
ção às questões estratégicas. Ele injeta no D N A da empresa
a visão da busca de resultados e se liberta da escravidão dos
processos. a isso que Storti chama "tecnologia da libertação".

a possibilidade real de o gestor gastar menos tempo


com a governança de processos da empresa e tratar daqui-
lo que poderíamos chamar de plano de governo. Algumas
empresas, como a Citroen do Brasil, por exemplo, utilizam
essa tecnologia para fazer mais com menos custos. A em-
presa chegou a realizar mais de 1.500 contatos telefônicos
mensais com um call center mínimo, de apenas dois pos-
tos. A tecnologia à base de algoritmos inteligentes permite
a discagem automática para o cliente seguinte enquanto a
operadora está finalizando uma conversação. Além disso,
pode agendar as chamadas para horários em que o cliente
costuma estar disponível, evitando que ele seja aborrecido
nas ocasiões em que geralmente está mais ocupado. As in-
formações são colhidas com menor risco de conflito e a em-
presa pode se antecipar até mesmo no suprimento de peças
mais requisitadas.
Citando Platão e suas reflexões sobre " A arte de pilotar",
isso corresponderia a u m relacionamento perfeito com os
deuses da improbabilidade, que governam as variáveis do
oceano, o que daria ao piloto mais tempo para observar
as estrelas e mais segurança para cuidar da rota no longo
prazo. Isso está acontecendo em algumas das melhores cor-
porações do mundo, que operam hoje como verdadeiros pa-
íses no mundo globalizado. Também organizações públicas,
como os governos dos Estados de Wisconsin e N o v o M é -
xico, ou cidades como San Diego ou Garland, nos Estados
Unidos, adotam boa parte dessas soluções administrativas e
elas funcionam. Os serviços aos cidadãos são realizados de
forma racional, inteligente, eficiente e sem demagogia. N o
Brasil, algumas administrações municipais estão adotando
aceleradamente essa tecnologia, que reduz também as opor-
tunidades para a corrupção e o superfaturamento.

É a tecnologia que liberta? C o m certeza, é a clareza de al-


guns dados e a possibilidade de visualizá-los que permite aos
gestores definir o que pode ser controlado com alguma segu-
rança e o que deve ser visto como parte do mundo das pro-
babilidades. Além disso, faltariam justificativas para manter
fechados esses dados, o que amplia as possibilidades de uma
gestão transparente. M a s , mesmo para aquilo que pode v i -
rar bits e bytes, é preciso haver uma gestão adequada: os
responsáveis pela manipulação dos dados precisam ser aler-
tados para a sensibilidade do seu trabalho e educados para
a precisão. Diante de uma planilha multidimensional que
retrata a situação da organização em todos os seus aspectos
tangíveis, o risco da adivinhação se reduz drasticamente.
A tecnologia que se avizinha, baseada nos princípios
científicos da inteligência artificial, deve tornar ainda mais
cômoda a obtenção e administração desses dados. M a s há
na aplicação dessa tecnologia uma armadilha. E m artigo
publicado na Harvard Business Review no segundo semes-
tre de 2 0 0 1 , M o h a n b i r Sawhney alertava para o risco de
homogeneizar o comportamento da organização pela ten-
tativa de usar as novas tecnologias digitais para o controle
do produto.
Ele considera um caminho mais promissor e menos ar-
riscado o da partilha desse controle com o cliente. E m vez
de homogeneizar, recomenda Sawhney, deve-se sincronizar
as informações: "Pode-se sincronizar todos os dados sobre
determinado produto, filtrando a informação por meio de
bancos de dados e aplicações interligados, e entregar isso
em uma forma organizada e compreensível para o cliente".
C o m o resultado, acredita, a organização pode apresentar
uma imagem simples e unificada. Essa sincronização pode
conduzir não apenas a uma relação mais próxima com o
cliente, mas também a maior eficiência operacional.

Uma das observações importantes de Mohanbir Sawh-


ney é que a empresa enxerga o produto como fim, enquanto
o cliente o vê como meio. Essa é uma das causas, segundo
ele, de rupturas na relação de confiança dos clientes com
a empresa e de perda de fatias de mercado. A tecnologia
da informação abre para a organização a possibilidade de
conhecer melhor o cliente e também de se dar a conhecer,
de modo que possa agregar ao produto serviços desejados e
nem sempre esperados pelo cliente.

VIVENDO COM O CLIENTE


A sigla xSPs, derivada de ASPs (Application Service Pro-
viders, no plural), era, já no final de 2001, a estrela des-
sa constelação de ferramentas. Significa a terceirização de
serviços que podem agregar valor a um produto com base
em informações sobre hábitos e projeções de compras. Ela
pode, por exemplo, agregar à venda de um utilitário domes-
tico receitas de bolos enviadas online na véspera de cada
aniversário na família, ou oferecer um guia de serviços e
facilidades para viagem cada vez que o carro se dirigir para
fora da cidade. A indústria apenas contrata o serviço e, as-
sessorada pela parceira provedora, pode escolher o valor
que agregará ao produto.

O serviço é administrado remotamente, de qualquer l u -


gar do mundo, escolhido num cardápio previamente acerta-
do entre a fabricante do produto e o provedor. renovado
periodicamente, conforme as informações atualizadas sobre
o cliente ou como antecipação a movimentos da concorrên-
cia. O sistema de padrões " u m a fonte para muitos", man-
tém os custos em níveis aceitáveis, ao mesmo tempo em que
dá a cada cliente a sensação do tratamento pessoal.
As possibilidades dessa linha de ferramentas são tão am-
plas quanto a criatividade humana e, também por essa razão,
antes da escolha de tecnologia está a decisão de transformar
a organização numa usina de conhecimento. Até mesmo do
ponto de vista exclusivo da anatomia de resultados, o i n -
vestimento em tecnologia está condicionado à predisposição
para o desenvolvimento de uma cultura evolutiva, favorável
à criação de conhecimento. é bem provável que, no mo-
mento em que você tiver terminado este parágrafo, u m novo
padrão já tenha revolucionado completamente esse quadro.
Voltando ao princípio do capítulo, uma tecnologia que
permite sincronizar os interesses da organização com os i n -
teresses e a necessidade do público que deseja alcançar pode
ser chamada de "tecnologia da libertação". Se houver, é cla-
ro, a busca de uma visão que possa ser compartilhada da
maneira mais ampla possível. Portando, as chances de uma
organização ser aceita como parte da vida do cliente aumen-
tam quando seus gestores abdicam de certos controles. E m
vez de enxergar consumidores, passam a ver pessoas; em vez
de tentar conquistar mercado, buscam tornar-se relevantes
para a sociedade.
O indivíduo é mais do que sua face de consumidor e a
sociedade é muito maior do que o mercado. São bastante
conhecidos os casos de empresas que conquistaram longos
períodos de crescimento e segurança por ter entrado em fina
sintonia com os extratos da população a que se destinavam
seus produtos. o caso de uma indústria de laticínios que
patrocinou campanhas de aleitamento materno, contra a
opinião de especialistas em marketing que insistiam em falar
do risco de perda de mercado. O u da empresa jornalística
que se retratou e se desculpou publicamente pelas décadas
em que serviu de suporte a governantes ilegítimos. Conquis-
tou o respeito do público pelo simples, mas sempre doloro-
so, ato de reconhecer que havia manipulado informações.
Não basta investir naquilo que chamávamos, há algumas
décadas, de tecnologia cibernética. Antes do "como fazer"
é preciso definir o "para que fazer". Platão, que viveu entre
os anos 428 e 348 a . C , já usava a expressão Kybernetike
para definir processos que identificava tanto no comporta-
mento de uma embarcação como no governo dos homens.
Ele havia percebido a estrutura de todos os processos de
ação orientada para fins específicos, notando que se poderia
comparar a evolução de um sistema controlado e a evolução
desejada ou idealizada em outro sistema. M a s alertou para
a observação de que não basta o desejo: a ação deve ser co-
erente com a evolução idealizada.
A o recriar modernamente a expressão "cibernética" para
definir a ciência do comando e do controle orientada para
fins específicos, fundada sobre o estudo dos processos de
comunicação nos sistemas tecnológicos, biológicos, sociais e
econômicos, Norbert Wiener marcou um novo modo de ver
a vida. Enquanto os cientistas imaginavam o Universo como
um gigantesco relógio no qual tudo funcionava conforme
um padrão, Wiener propôs que o Universo era um lugar
desorganizado e sem padrão perceptível. Segundo Wiener,
a ordem no universo vem da troca de informações — men-
sagens, codificação, decodificação — entre todas as coisas,
desde a menor partícula atômica até as constelações e ga-
láxias: informação cria ordem num Universo caótico. Para
ele, o cérebro humano era u m processador de mensagens.

Tudo que deriva de seu trabalho, e que evolui numa ve-


locidade espantosa no campo da inteligência artificial, segue
o mesmo princípio: a ordem é criada pela informação.
curioso lembrar que Norbert Wiener estendeu sua teoria no
livro O uso humano do ser humano (1950), no qual ques-
tionava: "Se a informação é a moeda da vida, controlando o
formato das coisas, não seria possível, em tese, emitir men-
sagens que poderiam efetivamente controlar o modo como
as pessoas percebem o mundo?" Wiener chegou a alertar,
nesse livro, para a possibilidade de que sua teoria já estives-
se sendo utilizada com propósitos de controle e dominação
num projeto militar secreto do governo dos Estados Unidos.
A primeira edição dessa obra desapareceu. A s edições sub-
seqüentes não contêm esse trecho.
Durante os anos 1950, Wiener teve o hábito de reunir
estudantes em sua casa perto do Massachusetts Institute of
Technology, nas noites de terça-feira. Seus seminários de-
ram origem aos projetos de computadores. U m dos alunos,
J.C .R . Licklider, escreveu um trabalho intitulado " A sim-
biose homem-computador" e veio a se tornar diretor do
escritório de processamento de informações do Pentágono.
A l i ele idealizou uma rede de computadores que costumava
chamar de "rede intergalática" e criou a Arpanet, que deu
origem à Internet. Então, o controle se desfez naturalmente
e surgiu a Internet.

Assim, da idéia de Kybernetike como controle e domínio,


se chegou à rede caórdica auto-governada que produz uma
tecnologia libertária. Entender esse processo pode dar ao
gestor uma vantagem quilométrica, se ele souber renunciar
à ilusão do controle e estender seu olhar para aquilo que é a
essência do seu papel: a estratégia. N o entanto, a estratégia
é uma tarefa grande demais para simples tarefeiros. Exige
o desprendimento dos espíritos pioneiros, uma vez que tra-
ta fundamentalmente de criação. Quem não está habilita-
do para a aventura do pensamento não pode se considerar
estrategista. Dee H o c k , celebrizado como um dos maiores
estrategistas do nosso tempo, elaborou o princípio da or-
ganização "caórdica", com base nos princípios de Wiener.
Sobre esse conceito fundou o sistema Visa, que movimenta
anualmente mais de 1,3 trilhão de dólares.
Quem não aprecia e pratica com familiaridade o livre-ar-
bítrio não produz estratégia. Os grandes estrategistas exibem
uma predisposição para tomadas de decisão confiantes e, no
entanto, abrem mão de certos controles tangíveis. Têm sem-
pre em mente as informações essenciais sobre o rumo a seguir.
São progressistas, no sentido que a palavra está adquirindo a
partir da metáfora dos softwares que se auto-aperfeiçoam. Es-
tão honrando permanentemente a metáfora essencial da vida,
que é contribuir para o processo evolutivo em todos os senti-
dos e o benefício ao maior número possível de indivíduos.
Fora disso, a tecnologia que pode ser libertária acaba
sendo apropriada para a destruição. Especialistas em segu-
rança já constatam como será difícil proteger empresas, usi-
nas nucleares e sistemas de transporte da ação remota dos
terroristas digitais. A melhor defesa deriva de uma visão que
tenha como base a consciência de que, ao mesmo tempo em
que os novos sistemas de controle tecnológico melhoram as
margens de segurança e a previsibilidade, a maior complexi-
dade das relações também aumenta o número de variáveis,
a rapidez das mudanças e os riscos. A verdadeira libertação
anunciada pela tecnologia passa, portanto, por uma noção
completamente nova e menos controladora de estratégia.
Baseia-se em confiança e consciência.

Para refletir:

1. SE VOCÊ É ÍNTIMO CONHECEDOR DE TECNOLOGIA DA INFOR-


MAÇÃO, ACEITARIA U M LÍDER QUE FOSSE COMPLETAMENTE IG-
NORANTE SOBRE O ASSUNTO?

2. SE VOCÊ É U M GESTOR C O M RESPONSABILIDADES ESTRATÉGICAS,


CONFIARIA AS ESCOLHAS DE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO A U M
TECNÓLOGO QUE NÃO TE M INTELIGÊNCIA ESTRATÉGICA?

3. V O C Ê É GESTOR OU REFÉM?
VIII—A cultura transformista

U m a das características mais interessantes


de pensadores como Juan Enriquez, da Har-
vard Business School, a economista Hazel
Henderson, e até mesmo o conservador M i -
chael Porter, é sua coragem intelectual. Essa
coragem consiste em abandonar a matriz
ideológica que formulou, durante ós últimos
cem anos, a base para as principais críticas
ao modo como se organiza a produção em
todo o mundo, e propor u m salto no signifi-
cado das relações econômicas e de poder.
- Enriquez afrontou poderosos líderes polí-
ticos e econômicos, ao publicar análises das
perdas de nações como o México, onde nas-
ceu, Argentina, Brasil e Chile. Sua seguran-
ça pessoal chegou a ser ameaçada em algumas ocasiões, por
causa de sua firmeza em iluminar as conseqüências econômi-
cas e sociais da corrupção e da incuria administrativa. Por-
ter produziu muita irritação em Wall Street, por sua vocação
para colocar o dedo na ferida de um sistema vulnerável: as
manipulações em função da pobreza de estratégias e da falta
de significado. Hazel Henderson é uma pedra no sapato do
establishment desde o fim dos anos 60, quando iniciou uma
campanha pela modernização da indústria automobilística
por causa da poluição em Nova York. Hoje, ela assessora go-
vernos e grandes corporações na busca por sustentabilidade.

U m ponto em comum entre esses três (e muitos outros)


formuladores de conhecimento em gestão é o desprendimento
de correntes de pensamento e paradigmas que se avolumam
e se tornam unanimidades, muitas vezes sem fundamento.
C o m essa atitude, eles ajudam a comunidade dos gestores a
abandonar certas premissas de controle, associadas à gestão
centralizada do conhecimento nas organizações. A o lembrar
que o encantamento com o sucesso japonês dos anos 80 le-
vou muitas organizações a concentrar suas energias apenas
no aspecto operacional do negócio, por exemplo, Porter
também lança luz num equívoco recorrente produzido pela
visibilidade dos resultados financeiros: poucos gestores se
questionam sobre a validade generalizada da matriz cultural
dos japoneses para as organizações do Ocidente.
A despeito de haver se tornado a segunda potência eco-
nômica do mundo moderno, o Japão não é paradigma de
revolução. Desde sua principal matriz religiosa, o xintoís-
mo, até os produtos de alta tecnologia que coloca no mer-
cado a preços competitivos, a natureza da cultura japonesa
é claramente mais apta à apropriação e à melhoria do que
à criação. Tem grande valor na capacidade de transformar,
incrementar, melhorar e desenvolver, mas não é a melhor
matriz da criação e da revolução. Quando organizações do
Ocidente tentam copiar as corporações japonesas e abrem
mão de produzir seu próprio conhecimento, assumem o ris-
co de matar a matriz criativa e adotar u m modelo que as
torna dependentes de impulsos externos.

A análise dos paradigmas de Juran e Deming, ainda pre-


sentes na grande maioria das empresas japonesas, ressalta a
ênfase na consolidação de práticas como a mensuração de re-
sultados em todas as fases do processo e a obsessão por quali-
dade em todas as etapas. O olhar está sempre voltado para o
detalhe. Mesmo quando se trata de variáveis menos tangíveis,
como a percepção do produto ou serviço pelo cliente, ò mo-
delo japonês pressupõe o controle. O próprio Juran recomen-
da, no seu curso " A qualidade desde o projeto", que o conta-
to direto com o consumidor seja avaliado de alguma forma:
"Amostras do desempenho real podem ser gravadas; grava-
ções em áudio de transações por telefone, gravações em vídeo
de transações de serviço cara a cara", diz Juran, recomendan-
do que qualquer amostra dessas seja feita somente com a con-
cordância prévia dos funcionários envolvidos, esquecendo-se
de avisar também o cliente. U m detalhe importante, que pode
passar despercebido e comprometer o processo: numa cultura
diferente da japonesa, se u m ou ambos estiverem avisados a
transação vira encenação e a avaliação perde valor.
Ele cita o caso de um jornalista inglês que resolveu medir o
tempo gasto num parque da Disney: 110 minutos esperando
em filas, 28 minutos caminhando entre as atrações e 12 minu-
tos nas atrações. A própria Disney faz constantemente esse tipo
de medição, procurando manter um padrão aceitável de de-
mora nas transições. M a s realiza também outras avaliações da
percepção dos clientes, como a própria excitação que acontece
antes e depois de cada atração, o nível de encantamento com
eventos programados para os locais de passagem, a colocação
estratégica de guloseimas, animadores e surpresas no trajeto
entre as atrações. O contínuo sucesso dos parques indica que
as coisas nem sempre são como parecem nas planilhas.

PORCOS GALINHAS
A busca permanente da qualidade não pode ser descarta-
da em nenhuma hipótese, principalmente num ambiente tão
competitivo e com clientes cada vez mais bem informados e
exigentes, como ocorre na maioria dos setores da economia
globalizada. N o entanto, para uma organização que tenha a
cabeça no Ocidente, pode significar um risco a implantação
direta de fórmulas que dão certo em uma cultura tão pecu-
liar e homogênea como a japonesa. U m exemplo simples
pode ser observado nos programas básicos de qualidade
aplicados indiscriminadamente em todo tipo de empresas.
Há, nesses programas, uma metáfora para ilustrar o nível
de comprometimento dos funcionários, na qual se compara
o porco à galinha, perguntando: quem demonstra estar mais
comprometido com a omelete, a galinha, que fornece o ovo,
e pode botar um ovo todo dia, ou o porco, que dá o bacon,
deixando-se cortar em sua própria carne?

N o Japão e em alguns outros países orientais esse detalhe


não causa qualquer estranheza. Mas no Brasil e em outros pa-
íses do Ocidente, certamente muitos funcionários que se depa-
ram com essa questão reagem de maneira muito negativa. Não
há jornalzinho, mural ou newsletter na Intranet que conserte o
estrago feito pela rádio-peão com base numa mensagem desse
tipo. Respeitar a natureza de cada cultura é um passo importan-
te para valorizar aspectos mais sutis da gestão, que muitas vezes
ficam dissimulados na luta por resultados. Faz grande sucesso
entre os gestores o conceito de custos "invisíveis", com o qual
a empresa Amana-Key costuma exemplificar, nos seus cursos,
o impacto de custos gerados por fatores quase sempre intangí-
veis. C omo a desarmonia, a desconfiança revelada por contro-
les excessivos e até a busca de qualidade a qualquer preço.

Os problemas de comunicação enfrentados por empresas


originadas da Península Ibérica e instaladas na América L a -
tina podem ter muito mais a ver com estilo de gestão do que
com simples resistência à presença de capital estrangeiro,
como já manifestou um alto executivo de uma empresa de
telefonia. Características do chamado "capitalismo tar dio",
de Portugal e da Espanha, estão certamente na raiz de u m
comportamento que tende a gerar descontentamento em
parceiros, clientes e fornecedores.
U m a análise da plataforma cultural sobre a qual se as-
sentam as premissas dos gestores de tais empresas, pode
revelar um modelo mental no qual certos conflitos são es-
perados e até desejáveis, como forma de acelerar o proces-
so de consolidação dessas organizações no novo mercado.
Eles estão teoricamente sempre prontos para uma " b r i g a " ,
mesmo quando o conflito é a última das recomendações. A
permanência de certos modelos — e a não-observância de
certas sutilezas no relacionamento com a sociedade — po-
dem elevar o custo de implantação de alguns projetos, se
uma circunstância de maior competitividade exigir igualda-
de e equilíbrio nas negociações.
Uma organização obcecada por resultados, que não cultiva
modelos culturalmente apropriados, corre o risco de perder a
sensibilidade para oportunidades em mudanças sutis de com-
portamento no consumidor e para turbulências internas. Esses
sinais muitas vezes se manifestam muito tempo antes, no sis-
tema de comunicação informal que se convencionou chamar
de "rádio-peão", e até na aparência das salas e demais instala-
ções. Por outro lado, uma empresa na qual um grande número
de funcionários se alista em programas sociais de voluntários,
certamente conta com alto potencial de engajamento em pro-
jetos inovadores e em metas ambiciosas de produção.

A criação de conhecimento no ambiente da gestão exige


também outro tipo de discernimento, relacionado às fontes
de educação dos profissionais. U m dos paradoxos da socie-
dade hipermediada em que vivemos é que o sucesso quase
sempre produz unanimidades que dissimulam o valor da
obra em si, ou dão a ela um valor que de fato não tem. E m
geral, quando uma tese alcança o grau de best-seller reduz-
se em torno dela o nível de exigência, porque ninguém quer
ser tido como alheio ao que é de conhecimento e apreciação
gerais. Assim, proliferam modismos como saltos "quânti-
cos", estratégias "zen-budistas" ou "sufistas", sem que os
responsáveis pelo desenvolvimento dos executivos questio-
nem a base real e o verdadeiro significado desses processos.
N u m encontro com jovens empreendedores, em agosto
de 2001, ouvi de um dos participantes que era grande admi-
rador dos princípios do legendário general chinês Sun T z u ,
apresentado e prefaciado pelo escritor James Clavel no livro
A arte da guerra. Perguntei se fazia alguma diferença o fato
de a obra de Sun T z u não ter sobrevivido a ele, ou seja, se
era relevante o fato de após a morte do general o reino de
W u , a quem servira, ter sofrido uma sucessão de derrotas,
acabando por desaparecer completamente. Conversamos
algum tempo sobre a verdadeira natureza da estratégia e
terminamos concordando em que Sun T z u havia dedicado
duas décadas de sua vida a aterrorizar os povos vizinhos.
Obteve importantes vitórias pontuais, mas nunca saberemos
a serviço do quê estava sua inteligência para o combate. N o
fim, chegamos naturalmente à conclusão de que Sun T z u a
longo prazo pode ser considerado um perdedor, pois o reino
a que servia desapareceu, enquanto seus inimigos acabaram
contribuindo para a formação da China contemporânea.

razoável pensar que uma guerra, como processo de


destruição, só começa quando a estratégia termina e que,
portanto, não pode haver uma estratégia na guerra. N o en-
tanto, a guerra é a metáfora mais recorrente nos cursos de
estratégia para executivos, e a expressão estratégia está ori-
ginalmente vinculada à guerra. Quando exercia a função de
repórter de política, compareci algumas vezes a u m centro
de estudos estratégicos em São Paulo, freqüentado como um
clube literário por militares e cientistas políticos.
Sempre me pareceu bizarra aquela obsessão com as artima-
nhas de Von Clausëwitz, Foch ou Maginot. A cada intervenção
dos estudiosos me vinham à mente imagens de jovens assus-
tados nas trincheiras da Europa, durante a Primeira Guerra
Mundial e os números absurdos dos 8 milhões de mortos no
conflito. Estrategistas do quê? — eu me perguntava. Como dis-
se Einstein, um crime não deixa de ser crime por ter sido co-
metido durante uma guerra. Também é razoável ponderar que
não se pode falar em estratégia, se o resultado da atividade eco-
nômica é uma sociedade onde muitos milhões de famílias são
excluídas de qualquer possibilidade de melhorar a qualidade
de suas vidas. O u de sonhar com um futuro. O u se do sucesso
produzido por ela resulta o esgotamento das fontes naturais e a
deterioração do ambiente em algum lugar do planeta.

Qualquer estratégia, por menor que seja a sua abrangência,


precisa considerar o potencial da organização de fazer diferença,
para melhor, no ambiente físico e social onde atua. O sentido
da responsabilidade social das empresas, portanto, passa lon-
ge de significados como generosidade, caridade ou propósitos
semelhantes. A responsabilidade pessoal deve ser a essência do
significado de todo tipo de organização humana, e muito mais
das instituições que detêm o poder real de produzir bem-estar e
riqueza. Não custa relembrar Theodor Adorno, e sua estranhe-
za diante das escolhas de indivíduos ou grupos capazes de agir
conscientemente contra suas próprias chances de sobreviver.

EMPRESA-NAÇÃO
Se, no Japão, a criação de uma cultura voltada para o
fluxo permanente de um conhecimento dedicado à melho-
ria contínua se baseia num forte laço entre o indivíduo e a
organização (o que gera um comprometimento raro em em-
presas ocidentais), é preciso recriar, no Ocidente, uma cul-
tura que faça renascer o sentido de comunidade nas relações
produtivas. A responsabilidade social das empresas é cla-
ramente um caminho. M a s nunca será colocada no centro
das discussões, enquanto permanecer como um exercício de
vontade pessoal ou conveniência de marketing. Ikujiro N o -
naka observa que a criação de idéias inovadoras nas orga-
nizações japonesas é estimulada pela abordagem indireta do
problema, por meio de analogias e metáforas que, colocadas
diante do conjunto de pessoas envolvidas, acabam evoluin-
do para soluções criativas. M a s adverte que o fator crítico
desse processo é o comprometimento pessoal: o senso de
identidade dos empregados com a empresa e sua missão.

O claro repasse de benefícios econômicos das corporações


japonesas para a população japonesa pode ser um elemento
essencial, mais do que tradição e cultura, para a manutenção
desse comprometimento como uma característica nacional.
N o Ocidente, a ênfase exagerada no sucesso individual torna
mais remota a percepção, pela população, de uma relação
direta entre o resultado de uma empresa e o bem-estar ge-
ral. Analogias e metáforas são de fato instrumentos valio-
sos para a criação de conhecimento, como sugere N o n a k a ,
e estão presentes em todo tipo de cultura como as primei-
ras formas de apreensão de elementos da realidade. M a s o
processo de significação só se desenvolve como manifestação
de interesse no objeto a ser incorporado ao conhecimento.
Portanto, é preciso desenvolver, na cabeça das organizações
o significado social profundo do empreendimento, para que,
transformado em estratégia e realizado em ações concretas,
ele resulte no comprometimento natural e espontâneo.
David Garvin, professor de gestão empresarial na Har-
vard Business School, é contundentemente crítico em relação
aos programas de melhoria contínua baseados no modelo
japonês, por uma razão bastante concreta: os fracassos são
muito mais comuns do que os êxitos. Ele também observa
que é imensa a quantidade de trabalhos acadêmicos sobre a
criação de conhecimento nas empresas. M a s eles pouco têm
contribuído para a geração de um modelo de aprendizagem
que garanta a permanência da vontade de melhoria, aliada
a ações concretas de melhoria. Sem preocupação de poupar
nem mesmo colegas da universidade, citados nas páginas
anteriores, ele observa que falta às organizações definir três
pontos básicos: a) um significado que seja conversível em
ação e de fácil aplicação; b) a gestão em seus aspectos práti-
cos, que envolvam recomendações operacionais, em vez de
grandes aspirações e declarações retumbantes de propósito;
c) e, finalmente, ferramentas capazes de avaliar a velocidade
e o nível do aprendizado da organização, para que o que
foi aprendido seja sistematizado, registrado e possa avançar
com base na percepção das melhorias obtidas.

Lições antigas de fontes diversas, como a tradição árabe


e os estudos de Tomás de Aquino sobre a criação do co-
nhecimento, justificam a indisfarcada irritação de Garvin
com a terminologia "quase mística" da linguagem utilizada
pelos teóricos da questão. Observa-se que o conhecimento
é sempre transmitido por comparação, e sua percepção in-
variavelmente faz surgir uma nova linguagem. E m seguida a
essa nova linguagem, desenvolve-se uma nova atitude, com-
portamentos mais adequados a essa nova realidade, trazidos
pelo conhecimento adquirido. Finalmente, pela soma das
novas atitudes, consolida-se a mudança na instituição, que
dá curso à espiral de novos conhecimentos.
Essa é a tradição presente no modo ocidental de fazer co-
nhecimento. A tradição japonesa, que associa o pensamento
à ação, vincula-se fortemente à percepção do resultado pro-
duzido pela ação, sem o que o pensamento não faz sentido.
A noção profundamente religiosa do Japão como unidade es-
piritual, que passa continuamente para as instituições repre-
sentativas dessa alma-pátria, gera nos funcionários o engaja-
mento aos propósitos das empresas, uma vez que também as
organizações de negócios se incluem entre as instituições que
formam o todo nacional-espiritual. São empresas-nação.
A frase de Peter Drucker "uma habilidade não pode ser
explicada por meio de palavras faladas ou escritas; só pode
ser demonstrada" é, para os japoneses, um ponto comum: o
aprendizado é feito quase sempre em silêncio. N o Ocidente
acontece o contrário. Basta observar qualquer aula em escola
ou empresa ocidental, para perceber a profusão das palavras
que ilustram as demonstrações práticas. N o entanto, essa
nossa aparente necessidade de "legendar" o conhecimento
contém uma lição otimista. Pode significar uma relação mais
familiar com as subjetividades, que facilitam o aprendizado
e auxiliam nos processos de criação de conhecimento. Nosso
estilo ruidoso pode significar mais receptividade à inovação.

Para refletir:

1. EXISTE ESTRATÉGIA QUANDO A EMPRESA ESTÁ OBCECADA C O M


SUA COMPETITIVIDADE, OU APENAS MANOBRAS TÁTICAS?

2. V O C Ê CONHECE ALGUÉM QUE PARECE AGIR CONSTANTEMENTE


CONTRA SEUS PRÓPRIOS INTERESSES DE PRESERVAÇÃO — OS DA
ORGANIZAÇÃO?

3. V O C Ê PERCEBE O RISCO POTENCIAL QUE U M PROGRAMA DE QUA-


LIDADE PODE REPRESENTAR PARA O CLIMA ORGANIZACIONAL,
QUANDO SEUS INTEGRANTES SE TRANSFORMAM E M FISCAIS JU-
ÍZES DOS COMPANHEIROS?
IX—O inimigo dentro de casa

As explosões em N o v a York e em Washing-


ton produziram uma sucessão de análises de
especialistas e intelectuais das mais variadas
disciplinas, a maioria abordando a falência
das táticas dos anos 1970 no enfrentamento
de um inimigo invisível e internalizado. Tam-
bém não faltaram condenações enfáticas às
ambigüidades na aplicação de medidas de
defesa da democracia, versus o risco do ex-
cesso de controle para as liberdades indivi-
duais. N o plano macro-político, vimos pre-
dominar as recomendações para a superação
imediata dos resquícios da Guerra Fria, com
a aposentadoria definitiva dos velhos estra-
tegistas do antigo mundo maniqueísta. M a s ,
paradoxalmente, o maniqueísmo predominou tanto entre os
que se alinharam incondicionalmente ao estupor e indigna-
ção dos Estados Unidos como entre os que, pretendendo a
análise independente, brandiram o argumento da "reação
contra os abusos do imperialismo".
A metáfora monstruosa dos atentados se fecha na l i -
ção que todos precisamos aprender: contra o inimigo que
vive conosco, nenhuma força será bastante. N o plano glo-
bal, fazem pouco sentido tanto as vociferações contra os
"inimigos da civilização", quanto os impropérios contra a
"desumanidade da globalização". Assim como o processo
civilizatório anda a reboque de interesses pouco civilizados,
a globalização é um fenômeno cuja autoria não pode ser
definida com facilidade.
A rigor, somos todos autores tanto da civilização quan-
to da globalização, que nasce naturalmente da nossa atra-
ção pela diversidade, da nossa curiosidade natural pelo
que é diferente. A tecnologia a possibilita e o capital a rea-
liza ao seu modo. N o plano individual e das organizações
de negócios estatais ou privadas, os atos dos terroristas
são uma ampliação trágica dos atentados que sofremos
diariamente. preciso encarar a vulnerabilidade exacer-
bada pelas novas tecnologias. E, também, desenvolver
uma estratégia de envolvimento que reduza os riscos do
terrorismo em escala menor que, nos últimos anos, se ex-
pressa por meio de contínuos atos de violência e desrespei-
to contra indivíduos e sabotagem contra organizações. E m
ambos os níveis de grandeza, armas potentes têm pouco
resultado. O inimigo está dentro de nossas casas e se ali-
menta de nossas contradições.
Pense rápido: quem produz mais danos e por mais longo
tempo — um terrorista patética e tragicamente explodindo
a si mesmo dentro de um ônibus, ou u m chefe de Estado
corrupto, que quebra a confiança do mercado ao agir contra
os interesses do seu próprio povo? U m suicida que acredita
se candidatar, pelo martírio, à companhia de quarenta m i l
virgens na eternidade, ou o presidente de uma multinacional
do setor de alimentos que rouba sua própria organização e
leva ao desespero milhares de pequenos produtores de leite
em todo o mundo? M a i s uma vez, nos defrontamos com a
ação de indivíduos que agem deliberada e continuamente
contra seus próprios interesses de permanência. Uns se mu-
tilam e auto-destroem, outros corroem a confiança sobre a
qual deveria se sustentar o sistema que representam e do
qual são avalistas e grandes beneficiários.

TRIBOS MODERNAS
Agora que nos convencemos, da maneira mais aterrori-
zante possível, de que ao processo de globalização correspon-
de o movimento igual e contrário de tribalização, resta tomar
consciência de que a guerra começa quando algumas tribos
são mantidas à margem dos benefícios da civilização. Não
haverá segurança nas ruas de N o v a York, Paris ou São Paulo
enquanto milhões continuarem de fora do processo civilizató-
rio. D a mesma forma, e mais sutilmente, o desenvolvimento
será uma ilusão enquanto as empresas não tiverem como sig-
nificado mais profundo a universalização de seus benefícios.
Os atentados em N o v a Yor k e Washington fazem pensar
na urgência de um capitalismo consciente. Esse é o verdadei-
ro espírito da responsabilidade social e ambiental e da bus-
ca pela sustentabilidade, e talvez seja a resposta adequada
para as inquietações de David Tayne e seus colegas do R o -
cky Mountain Institute. Não é uma estratégia de marketing
nem uma forma de aliviar os espíritos de empreendedores
e gestores: é a única defesa contra a aniquilação. U m capi-
talismo consciente, para ser interpretado em seu mais pro-
fundo teor, deve ser entendido como o sistema de negócios
que tenha como propósito um processo que não poderíamos
mais chamar de civilizatório, mas de humanizatório: que o
conhecimento e a riqueza produzidos por tal relação de ne-
gócios tenham vocação para gerar bem-estar sem exclusão,
com base em tecnologias e modos que respeitem o ambiente
físico e as sutilezas da natureza humana.

Vistos a partir desse quadro, cujo pano de fundo é a ilha


de Manhattan coberta pela fumaça e fuligem dos atentados
de setembro de 2001, os sistemas de proteção que imitam
fortalezas parecem a cada dia tão insanos quanto o proje-
to "Guerra nas Estrelas", o imaginoso escudo de armas a
laser que se situaria em satélites de órbita elevada e seria
capaz de detectar e anular mísseis lançados contra os Esta-
dos Unidos. Assim como se sabe que cerca de 70% dos atos
de sabotagem nas organizações têm origem interna, o risco
maior para as grandes nações é representado pelo inimigo
internalizado, que torna obsoletos os mísseis de longo al-
cance e os bombardeiros. Os atentados de setembro de 2001
revelaram a face barbada de Osama bin Laden e seus segui-
dores do fundamentalismo islâmico. Qual seria o inimigo
das décadas seguintes?
N a verdade, a violência mais irracional e ainda mais pe-
rigosa do que aquela personificada por Osama bin Ladên e
seus seguidores se desenvolve no interior da sociedade oci-
dental. não está sendo planejada por migrantes excluídos
ou militantes de religiões exóticas, mas por especuladores
"civilizados", que são a versão mais sofisticada da intole-
rância. São o refinamento de outros níveis de intolerância: a
explosão que destruiu a fachada do edifício federal Alfred P.
M u r r a h e deixou 168 mortos, na cidade de Oklahoma, em
19 de abril de 1995, foi provocada por Timothy McVeigh.
Era um americano típico, adepto do Partido Republicano
e militante de uma das centenas de organizações armadas
que, dentro dos Estados Unidos, lutam por u m ideário difu-
so, que vai de teorias conspiratórias a respeito do governo
até antigos preconceitos, cuja origem remonta à época da
colonização da América.

N a Alemanha e na França, na Argentina e no Brasil,


milhares de indivíduos produtivos, educados e integrados
ao sistema, alimentam crenças intolerantes e se preparam
para u m confronto que há muito se instalou em suas cabe-
ças. N o s Estados Unidos, onde a legislação sobre armas é
mais permissiva, eles formam milícias potencialmente muito
mais perigosas, que vinham limitando suas ações à violência
pontual contra médicos e outros profissionais que aceitam
realizar abortos, pequenos ataques a repartições públicas e
boicotes a iniciativas do governo. O episódio de Oklahoma
foi uma atitude isolada de u m indivíduo, mas não desconec-
tada dos propósitos desses grupos. N o mesmo período, cin-
co membros do grupo de "supremacistas" brancos Ar yan
Republican A r m y foram condenados por assaltos a bancos.
Outros três foram presos por posse de granadas de mão e
condenados por conspiração.
Os ataques a N o v a York e Washington, porém, signifi-
cam um divisor de águas também para esses descontentes.
A revelação da autoria do atentado em Oklahoma chocou a
opinião pública por se tratar de um crime contra civis, entre
eles muitas crianças, cometido por um anglo-saxão. A ação
do FBI acabou provocando um esvaziamento em muitos des-
ses grupos: das 858 milícias fichadas pela polícia em 1996,
restavam 194 no ano 2000, muitas das quais desarticuladas
ou clandestinas. M a s os eventos de 11 de setembro de 2001
tiveram um efeito contrário e mais perverso: fascinados pela
violência dos ataques, esses indivíduos voltaram à ativa e
começaram a se reorganizar. Muitos líderes de milícias e
grupos racistas têm apoiado Osama bin Laden em sites da
Internet. Pelo menos um deles, Tom Metzger, presidente da
Resistência Branca Ariana, declarou admirar e imitar os mé-
todos e a tática do líder fundamentalista islâmico.

SIMPLISMO
O filósofo Ervin Laszlo, fundador do Clube de Budapes-
te, centro de estudos de macroeconomia e desenvolvimento
humano, vem afirmando há vários anos que os modos do
capitalismo continuam os mesmos, embora os ambientes fí-
sico e social nos quais eles são aplicados tenham se transfor-
mado radicalmente nos últimos 30 anos. "Isso certamente
tem deixado um enorme rastro de frustrações, descontenta-
mentos, miséria e falta de significado para milhões de pesso-
as", disse Laszlo em São Paulo, uma semana após a tragédia
americana.
Outros estudiosos, como o físico Fritjof Capra e a eco-
nomista Hazel Henderson, insistem há duas décadas que o
modelo econômico vigente não é sustentável. Qualquer ob-
servador atento da cena política e econômica constata que o
interesse em atrair para países em desenvolvimento os gran-
des jogadores do mercado tem colocado as políticas macro-
econômicas e, no rastro delas, o próprio equilíbrio de forças
das representações democráticas, a reboque das volubilida-
des financeiras. Os jogos de poder nos países emergentes re-
velam claramente as sucessões de alianças determinadas pelo
interesse em manter suas economias atraentes para os inves-
tidores, o que deturpa o próprio jogo democrático e instala,
no seio do sistema, inúmeros embriões de futuros Osama bin
Laden. Há pouco tempo, ouvi de um empresário brasileiro
esta pérola do raciocínio simplista: " A g o r a condenam Pino-
chet. M a s ele não melhorou a economia do C hile?"

As reflexões de Theodor Adorno a respeito de indivíduos


e grupos que agem contra sua própria permanência se apli-
cam como sob encomenda a qualquer análise mais ambicio-
sa sobre os escombros do World Trade Center. O inimigo
identificado apenas representa um inimigo mítico, que hoje
se personaliza em muçulmano, amanhã em outro extrato
da complexidade social contemporânea, mas que em última
instância reside como parasita no coração do sistema. Não
se trata de um indivíduo ou u m grupo, mas de u m estado
de espírito, uma disposição para o ganho imediato, para o
resultado concreto e suas glórias. Enfim, para uma visão de
sucesso que não se distingue do triunfo suicida dos terroris-
tas, uma vez que tanto uns quanto os outros jogam o jogo
da destruição a longo prazo.
Sob uma perspectiva de longo prazo, o inimigo interna-
lizado não é, portanto, o fundamentalista muçulmano ou o
militante ecológico indignado com experiências de clona-
gem de animais e com a destruição das florestas tropicais. O
inimigo é a própria incapacidade dos gestores de produzir
um sistema econômico cujos resultados sejam mais do que
lucro e domínio de mercados. E m geral, quando se ques-
tiona a perversidade do sistema, o pensamento passeia por
um universo vago e difuso de personagens ultra-poderosos,
gabinetes inatingíveis instalados em torres inalcançáveis,
inspiração para teorias conspiratórias e uma profusão de
mitos. As explosões seguidas de desabamentos e poeira em
N o v a York foram o retrato revelador de uma verdade mais
simples: o sistema é feito pela ação de cada gestor, de cada
indivíduo que manipula uma parcela desse poder.

A teoria dos sistemas onipotentes tem servido de justi-


ficativa para muitos gestores que se debatem em conflitos
éticos no exercício de seu trabalho, assim como a ilusão das
revoluções coletivas tem desestimulado a necessária revolu-
ção do indivíduo. A revelação da vulnerabilidade da maior
potência do planeta também significa a abertura das corti-
nas que resguardavam a imagem do sistema e ocultavam
sua fragilidade. De suas contradições, expostas à visitação
pública nos encontros de cúpula sobre o estado do mundo,
pode-se tirar lições mais do que suficientes para que os ges-
tores possam elaborar os princípios sobre os quais se deve
construir o conhecimento que irá gerar uma sociedade mais
justa e, portanto, menos vulnerável.
M a s por que o indivíduo, investido dos poderes para mo-
ver o maquinarlo econômico, se torna incapaz de enxergar
a grandeza das conseqüências de suas decisões e, em geral,
não se dá conta da relação direta entre aquilo que ele produz
todos os dias e a sociedade à sua volta? Não é, certamente,
apenas a deficiência de uma educação para o humanismo
que o professor Shigueharu M a t a i constatou em seus p u -
pilos da escola de engenharia. Não é difícil depreender dos
estudos de Elias Canetti sobre massa e poder, por exemplo,
que a todo poder corresponde um potencial de transfor-
mação para o mal de indivíduos bons. Isso ocorre sempre
que esse poder é exercido para poucos, ou melhor, quando
não há a percepção clara de um significado satisfatório para
uma vasta quantidade de pessoas como resultado das ações
derivadas desse poder.

Quando repórter, ainda no começo da carreira, eu fre-


qüentava por ofício o gabinete do superintendente da Polí-
cia Federal em São Paulo. Lembro-me do constrangimento
que representava para m i m ouvir comentários depreciativos
de agentes e delegados sobre personalidades da oposição ao
regime militar que eles tinham de controlar e investigar e
que eu admirava. E u sabia que aqueles homens se julgavam
bons. Eles próprios, quando se referiam a colegas conheci-
dos por práticas violentas nas ações policiais, costumavam
dizer, ironicamente: "Fulano é um homem b o m " . N o entan-
to, eu sabia, como pude testemunhar mais de uma vez, que
a qualquer momento eles poderiam se considerar a última
reserva de defesa da ordem pública e da civilização, e se
transformar em uma malta capaz de julgar e punir com vio-
lência inadmissível aqueles que consideravam os maus.
Guardadas as relatividades, o universo dos gestores tam-
bém se comporta como as maltas de Canetti. São todos ho-
mens bons e gentis, pessoas educadas para o melhor que o
mundo pode oferecer e, até mesmo, cidadãos progressistas
e generosos. N o entanto, quando o risco de resultados ad-
versos ameaça o sistema na parcela da organização que eles
representam, esses homens bons não hesitam em cortar em-
pregos, reduzir atividades, eliminar fornecedores, aumentar
preços, maquiar produtos e tomar uma série de atitudes
más em última análise, uma vez que consideram apenas o
interesse de curto prazo da sua parcela de mundo mais ime-
diata. N o entanto, chamados a comentar possíveis contra-
dições entre sua predisposição para o bem geral e as más
conseqüências de muitos de seus atos, eles não conseguem
enxergar o paradoxo.

Essa tendência aparece com muita clareza nas sondagens


reveladoras de premissas que pude analisar em centenas de
gestores. Entre eles, há u m desejo geral e genuíno de uma
nova ordem, na qual se possa garantir o resultado da empre-
sa num cenário moralmente mais aceitável, mas suas expres-
sões mais espontâneas pendem para o pessimismo e para o
individualismo. Quando se reconhece o papel de cada indi-
víduo encarregado da gestão de cada unidade de negócio em
cada organização, pode-se ter uma idéia das amplas conse-
qüências que a soma dos pessimismos representará na glo-
balidade dos negócios e das relações sociais em geral. C o n -
vém lembrar uma frase do jurista brasileiro Farias Brito: " O
pessimismo é o fundamento de uma doutrina do m a l " .
A l v i n e Heidi Toffler, os célebres futurólogos, afirmavam,
em artigo distribuído em 2000 pela Toffler Associates, que,
no universo dos gestores, tanto os tradicionalistas (como
Michael Porter) quanto os utópicos (como Jeff Bezos, nota
do autor) se equivocavam em suas análises sobre as mudan-
ças provocadas na economia pela tecnologia digital, por se
esquecerem de que "todas as revoluções se caracterizam por
surpresas, reversões, quedas, tremendas oscilações e acasos
que têm u m papel m a i o r " . A l v i n e Heidi observam que está
em curso, numa escala muito grande e muito mais rapida-
mente do que qualquer outro fenômeno anterior, u m novo
sistema econômico e social: " A l g o novo está surgindo no
planeta, e não se enquadra nos pressupostos, modelos e pa-
radigmas legados pela era industrial. É uma nova civiliza-
ção, da qual a nova economia é só u m componente".
Os Toffler anunciaram, antes de qualquer outro analista,
que parte dessa revolução se expressava " n a maré montante
de anti-americanismo na Europa e na Ásia". Alertaram para
a necessidade de os gestores permanecerem atentos a todos
os fatores de transformação e não apenas à tecnologia; para
que olhassem todos os aspectos das mudanças, e não apenas
para o binômio oportunidade-risco. U m a das lições mais
interessantes de A l v i n Toffler foi dada em 1994. N o auge
da guerra civil em Ruanda, ele estava numa conferência
da O N U e soube que a população era incitada à violência
por duas emissoras de rádio, que davam informes sobre a
localização de pessoas da outra etnia e arregimentavam as
hordas. Toffler sugeriu que a O N U usasse o mesmo meio,
o rádio, para levar mensagens pacificadoras e restabelecer
a ordem. Isso foi feito e a paz ganhou uma chance de inter-
romper os massacres.
Os primeiros movimentos dos investidores, logo após a tra-
gédia de setembro de 2001, foram claramente na direção da
preservação de interesses setoriais ou até corporativos, o que
denota um alarmante sinal de baixa fidelidade no próprio co-
ração do sistema. Milhares de mensagens cruzaram a Internet
e dezenas de corretoras encheram seus sites de informações so-
bre movimentos oportunistas de compra e venda de ações que
poderiam, em pouco tempo, levar o mercado ao colapso. Foi
necessária uma sucessão de manifestações do governo ameri-
cano e até de ameaças veladas, para repor o estado de espírito
do mercado alguns pontos abaixo da histeria. Alguma relação
com agir contra seus próprios interesses de preservação?
Voltando a Adorno, é útil lembrar sua referência ao culto
da morte, que, do conceito belle époque de "morrer charmo-
samente", reduziu-se ao "desejo de abreviar a infinita humi-
lhação de existir, bem como o infinito sofrimento de morrer
em um mundo no qual há muito tempo há coisas piores a se
temer do que a morte". Se hoje o inimigo internalizado se
personifica no jovem fundamentalista islâmico para quem
este mundo deixou de oferecer — ou não chegou a oferecer,
em sua curta vida — um significado capaz de competir com
a possibilidade da glória celestial prometida pelos mulas,
amanhã o culto da morte poderá florescer repentinamente
em milhões de jovens, cujo futuro está sendo decepado neste
exato momento por milhares de gestores, "homens bons"
determinados a preservar suas unidades de negócio dos ris-
cos de uma recessão. A opção pelo crime como realização
de utopias pessoais já é uma realidade nessa população. E m
alguns países, como Brasil, Colômbia, México e Rússia, e
em muitas cidades americanas, a organização desses deses-
perados alcança sofisticação de partido político tradicional.

O OUTRO

Uma recorrente ilusão, que se contrapõe ao mito liberal


do sucesso individual, desconectado dos interesses coletivos,
tem conduzido a ação de grupos mais ou menos articulados,
mais ou menos fundamentados em conhecimento teórico
e no reconhecimento da História como processo. Trata-se
do mito da revolução coletiva definitiva ou duradoura. Ele
se encontra tanto no desempenho dos milicianos do Tale-
ban como se verificava entre os jovens guardas vermelhos
de M a o Tsé-Tung. Neste início do século X X I , o fenômeno
confronta claramente o individualismo liberal à individua-
lidade, que se afirma pela anulação do indivíduo por meio
do sacrifício em nome de uma crença. E m última análise, o
individualismo presente no ato daquele que usa sua própria
morte para eliminar o maior número possível de "outros"
não se distancia muito do individualismo indutor do credo
liberal, segundo o qual o autor do sucesso só se realiza por-
que em seu rastro ficaram os "outros". Para se preservar
na figura dos bem-sucedidos, o sistema precisa também de
muitos sacrifícios.

A imagem do " o u t r o " como não merecedor de piedade,


em ambos os universos, se repete nas gangues da periferia de
Los Angeles ou nos morros do R i o de Janeiro. Neste caso,
no R i o , os jovens engajados em grupos de combate chamam
seus desafetos, que nem mesmo conhecem ou podem identi-
ficar — ou melhor, reconhecem como inimigos quando não
os podem identificar — pela expressão "alemão". Assim,
buscam como referência o cenário da Segunda Guerra M u n -
dial: o mal está sempre do outro lado. E m todos os casos,
o aspecto de "guerra santa" se dá pela crença excludente
segundo a qual só u m lado pode estar certo e, portanto, o
" o u t r o " precisa morrer. Daí à perda progressiva da noção
de humanidade é apenas meio passo.
O sociólogo alemão Robert Kurz, em um ensaio publi-
cado logo após os eventos de N o v a York e Washington, ob-
serva que o terror explícito na destruição das torres de M a -
nhattan e parte do edifício do Pentágono corresponde, como
num espelho, ao terror econômico pulverizado por todo o
planeta. Isso ocorre pela ação de um capitalismo que divide
a humanidade em seres humanos, quando "produtivos" e
consumidores, e simples biomassa, quando economicamen-
te descartáveis. "Tudo que acontece hoje é produto imediato
e mediado pelo sistema mundial unificado de modo forçado.
O capital one world é o próprio ventre gestante do megater-
r o r " , diz Kurz. Para ele, o modelo econômico, que se van-
gloria de representar a liberdade e se declara mais eficiente
quanto mais livre para agir, não suporta nem mesmo uma
auto-regulação moral, sem a qual o sistema mesmo não po-
derá sobreviver.

Uma aliança tácita entre o poder econômico e a impren-


sa dá corpo e voz ao discurso da unanimidade contrária a
qualquer tentativa de esclarecimento das muitas e profun-
das contradições do sistema. M a s a dialética está fora de
moda, como se valesse apenas para o pensamento marxista.
Mesmo os intelectuais que se classificam como de esquerda,
e a maioria dos críticos independentes, vinham há tempos
conferindo legitimidade ao debate liberal versus estadista,
ao repetir um discurso que considerava real a existência de
um liberalismo que todos sabem inexistente.
A o cinismo geral que se espanta com os atentados de
setembro, falta uma lembrança: na versão econômica da Re-
alpolitik, o pragmatismo ensina que não somos todos iguais
perante a lei do mercado; que u m miliciano treinado pela
C I A só é terrorista quando deixa de explodir funcionários
russos na Chechênia ou líderes indígenas na Colômbia para
matar cidadãos do mundo em N o v a York; que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos não vale para tiranos que
possuem reservas de petróleo; que a defesa das reservas bio-
lógicas não é questão de sobrevivência, conforme ensinou o
presidente George W. Bush em março de 2001, ao quebrar o
compromisso do governo americano de honrar o Protocolo
de Kyoto.

A propósito de definições, o American Heritage Dictio-


nary define terrorismo como " o uso ilegal ou ameaça de
uso de força ou violência por um indivíduo ou grupo con-
tra pessoas ou propriedades com a intenção de intimidar ou
coagir sociedades ou governos, por razões ideológicas ou
políticas". Talvez uma futura versão dos dicionários possa
incluir "razões econômicas" ou "razões de Estado". Assim,
teremos uma definição mais ampla e certamente mais hones-
ta da expressão. iniciaremos o processo de re-significação
de modelos pela retomada do senso crítico, talvez a única
medida que pode impedir a escalada de crises que se conso-
lida por todo o planeta.
O coro de indignação que tomou conta da imprensa mun-
dial não parece considerar a parte de responsabilidade que
cabe à própria imprensa, no estado do mundo que precedeu
a ruptura de setembro de 2001. Presa à armadilha do mer-
cado, a mídia também se tornou refém de uma praxis ime-
diatista. Abdicou da sua função de educação em proveito de
uma função utilitária, que primeiro minou sua capacidade
de contar histórias e produzir reflexões, e depois, aos pou-
cos foi se infiltrando em sua própria ideologia, anestesiando
a capacidade de se indignar que foi sempre o fogo interior
dessa instituição. C omo que pasteurizados, jornais, revistas
e noticiários eletrônicos deram ao mundo um festival de ob-
viedades, que chega a ser obsceno diante da gravidade dos
acontecimentos. O inimigo interior da imprensa é esse con-
formismo cínico, que se justifica no mesmo pragmatismo de
mercado. C omo a imprensa só existe se for relevante, só faz
sentido se não abdicar da posição de vanguarda no processo
civilizatório, essa também é uma atitude suicida que se pra-
tica em pequenos esforços de sobrevivência.

A repetição de imagens de violência, sem a correspon-


dente reflexão por parte da mídia, contribui para a banali-
zação do conceito segundo o qual sacrifícios humanos são
parte do processo social. Quando 111 sentenciados foram
massacrados pela polícia no complexo penitenciário Caran-
diru, em São Paulo, em 2 de outubro de 1992, pesquisas
de opinião pública revelaram que grande parte da popula-
ção aprovava o morticínio, sob a alegação de que, afinal,
tratava-se de "bandidos". Alguma relação com a silenciosa
aprovação de cidadãos europeus ao massacre de milhões
de judeus em campos de concentração nazistas durante a
Segunda Guerra? O u com a omissão — que durou meses
— diante das chacinas étnicas nos Bálcãs, na África e em
Timor Leste? Enquanto o sacrifício se dava no outro lado
do mundo, pasteurizado em imagens difusas da T V , a i m -
pessoalidade da vítima não nos induzia a maiores lucubra-
ções. Quando o inimigo se revela ao nosso lado, com toda
sua tenebrosa capacidade de destruir, e a tragédia ocorre em
um cenário que nos é familiar, constatamos que o " o u t r o "
somos nós. A isso damos o nome de terrorismo.
CINISMO ILUSÃO
A dificuldade dos meios de comunicação em formular
"molduras" capazes de conduzir o leitor ou telespectador
a reflexões mais profundas do que o festival de preconcei-
tos que se produziu nas semanas seguintes ao atentado, é
a concretização do temor manifestado pelo pensador fran-
cês Roland Barthes. E m 1970, ele declarou que o mundo
ocidental perderia a medida da tolerância, essência da civi-
lização, quando abdicasse do livre-pensar. A imposição de
idéias acabadas, sobre as quais restam poucas áreas para o
contraditório e a reflexão, produz cenas como a do acadêmi-
co privilegiado por uma bolsa de uma fundação americana.
De seu apartamento em Boston, utilizando um computador
japonês com software americano e u m provedor de aces-
so criado com capitais de cinco países, ele gasta seu tempo
despachando mensagens para jornalistas, com suas "pensa-
tas" sobre o "terrorismo global americano" que ameaçava
a "milenar" civilização árabe. Haja cinismo...

N e m os Talebans são representantes da melhor tradição


muçulmana, nem os americanos são o melhor modelo de ci-
vilização. A verdade está entre um pólo e outro, mas nossos
pensadores mais celebrizados penderam para u m ou outro
extremo da balança de opiniões, no jogo de radicalismos
que se seguiu aos atentados. Assim como no universo das
idéias e opiniões dirigidas ao consumo público, no universo
do poder real — onde se tomam decisões amplas ou restritas
que condicionarão as possibilidades de alívio ou recrudesci-
mento desses conflitos — não parece haver a consciência de
uma relação direta entre opinião e história, entre palavra e
ações, entre decisões de negócio e bem-estar social.
Para aproveitar o interesse pela cultura árabe-muçul-
mana, despertado pelos atentados nos Estados Unidos — e
também a título de ilustração para reflexões sobre a ne-
cessidade de se restabelecer o senso crítico evolutivo, ca-
paz de apoiar as ações por uma transformação do sistema
— , convém lembrar um dos mais conceituados filósofos
contemporâneos do mundo árabe: Mohammed Abed A l -
Jabri, professor na Universidade de Rabat, no Marrocos.
Referindo-se a afirmações de intelectuais do ocidente de
que os árabes não são capazes de alcançar a modernidade,
porque se preocupam exclusivamente em trabalhar sobre a
tradição (Turath), Al-Jabri comentava, dez anos antes dos
atentados de setembro de 2001, que os ocidentais têm difi-
culdade para entender a cultura islâmica e sua capacitação
para a modernidade. assim é porque consideram a cul-
tura moderna um produto de si mesma, um status cultural
que nasce da superação da tradição e estabelece o primado
da individualidade como ponto de partida para a criação
da coletividade. " N a realidade, a modernidade só é uma
posição individual na medida em que está ligada ao desen-
volvimento do espírito crítico e da criatividade no seio de
uma cultura dada, e na medida em que estas duas atividades
são exercidas por indivíduos, e não como representantes do
grupo", ensina al-Jabri.

Descontando-se, se possível, o fato de Al-Jabri ser um


pensador árabe esquerdista, não se pode ignorar a lição que
ele oferece ao contradizer luminares do liberalismo, quando
afirma que a modernidade, apesar do estatuto que confere
ao indivíduo como valor em si, não é um fim em si. N a sua
definição, "modernidade é uma mensagem e um ímpeto ino-
vador, cujo objetivo é renovar as mentalidades, as normas
do raciocínio e da apreciação".
Para haver uma relação aceitável entre o mundo ociden-
tal moderno e o mundo islâmico tradicional, diz Al-Jabri,
seria necessário orientar o discurso e a prática modernista
para o universo da tradição. Antes disso, porém, o sistema
ocidental precisa justificar a si mesmo. As evidentes contra-
dições do sistema, que exclui milhões em seu próprio meio,
são uma das grandes dificuldades para a sedução de outras
culturas e o estabelecimento de valores como democracia e
liberdade de pensamento. Estas funcionariam como vacinas
contra fundamentalismos agressivos de todas as origens.

A indiferença da sociedade com relação aos excluídos, e a


aceitação da premissa segundo a qual o mundo está dividido
naturalmente entre "produtivos" e "descartáveis", produz
o ambiente ideal para a violência individual ou organizada.
A freqüência com que autoridades, políticos, empresários e
executivos aparecem no noticiário acusados de corrupção
e manipulação de instituições provoca uma crescente e pe-
rigosa perda de confiança na validade da ética como força
propulsora ou sustentadora de negócios ou instituições so-
ciais. E , também, u m desgaste na percepção da sociedade a
respeito dos direitos humanos e da Justiça. A repetição de
expressões e opiniões fortes contra o mundo islâmico em
geral, sem o correspondente estofo de realidade, no sentido
que ela tem de diversidade e ambigüidades, vai formando na
opinião pública u m estado de espírito contrário ao interesse
coletivo da tolerância. A pressão por mudanças na legisla-
ção, sob o calor da comoção provocada por uma tragédia,
induz a perdas de conquistas democráticas.
Perde-se a noção dos valores reais que deveriam funda-
mentar qualquer pensamento sobre os fatos de setembro de
2001 e suas conseqüências. Perde-se a noção dos valores
democráticos. Diante desse quadro de irracionalidades, a
reação humana natural e justificada contra o sistema ex-
cludente tende a inverter os papéis. Tende a produzir, nas
massas periféricas, pontos de vista muito próximos aos que,
turbinados pelo credo fundamentalista, levaram ao terror.
Há uma similaridade com os pontos de vista que condu-
zem executivos a supervalorizar riscos e agravar crises pela
adoção de estratégias conservadoras ou ultradefensivas. A
crescente tragédia da falta de oportunidades para milhões
de famílias na periferia do sistema econômico mundial já se
reproduz nos grandes centros da economia mundial. Não se
sabe em que ponto a sensação de fracasso na auto-afirmação
social se transforma de sentimento em ação destruidora.

A o abordar essas questões sem compaixão e com meias-


verdades, a orientação "racionalista" da mídia contribui em
determinado momento para tanger os excluídos na direção
da irracionalidade. O que a princípio se manifesta nos de-
lírios místicos, religiosos ou comportamentais e, em outro
ponto, pode conduzir a posições hostis a toda expressão de
racionalidade, inclusive a que suporta o sentido da auto-pre-
servação. M a s os pensadores da mídia não parecem preocu-
pados com algo mais que não o caráter de espetáculo que se
dá a todo evento. Mesmo apresentadoras de televisão que
foram alçadas ao grau de celebridades, pela exibição de suas
nádegas em revistas de gosto duvidoso, se colocam como
julgadoras da História e repetem, em seus programas para
jovens, os preconceitos que um lado e outro despejam na mí-
dia. C omo a imprensa abdicou da obrigação de educar, lava
as mãos e simplesmente veicula o conteúdo que a alcança.
Isolado em seu gabinete, apartado da realidade pela me-
diação de seu computador, o gestor bem-intencionado não
se percebe como autor potencial de uma revolução que pode
reverter o passo da humanidade na direção de uma crise sem
fim. D a mesma forma, parece faltar a muitos acadêmicos,
e a outros portadores da palavra mediada, uma relação de
causa e conseqüência entre suas manifestações e o ânimo
social. Os ambientes que o gestor freqüenta não são em
geral simpáticos a idéias que se convencionou chamar de
"progressistas". Nas oportunidades em que ele é chamado
a manifestar sua opinião, chega a ser caricato o esforço que
se impõe para evitar expressões que nesses ambientes são
tidos como sinais de fraqueza. Até mesmo as mulheres que
freqüentam o ambiente de negócios tendem a se expressar
em um estilo "masculino", cuja característica principal é a
aversão a valores como sensibilidade, humanismo e amor.
Por ironia, usa-se o atributo masculino do discurso afirma-
tivo para se evitar a afirmação daquilo por que todos, na
verdade, intimamente anseiam.
Talvez seja este minúsculo demônio da contradição a
mais sutil e refinada metáfora do inimigo interno que se pos-
sa elaborar. De Freud a Jung, de M a r x ao pensador católico,
beato Josemaría Escrivá de Balaguer y Albás — para fazer
uma citação ampla, contraditória e sem preconceitos — , a
mente humana já produziu uma infinidade de reflexões so-
bre a extrema necessidade de uma afirmação de significado
como pressuposto para a compreensão da realidade. tam-
bém sobre a inevitabilidade da convivência do ser humano
com a angústia das impossibilidades, e da conveniência de
situar a felicidade no ponto de convergência entre o pensa-
mento e a ação concreta. N o universo dos gestores de capi-
tal, trafega-se normalmente por um significado no campo
do pensamento e produz-se outro significado no campo da
ação. Pura esquizofrenia.

Para refletir:

1. V O C Ê SE SENTE CONFORTÁVEL DURANTE AQUELAS CONVERSAS


MALICIOSAS SOBRE OS ERROS "DEFEITOS" DOS AUSENTES?

2. IMAGINE-SE FORA DO AMBIENTE CORPORATIVO, SEM o SOBRE-


N O M E DA EMPRESA.

3. FÉ ou CONVICÇÃO?
— A resposta inaceitável

Os gestores que estão convencidos da necessi-


dade de criar, mais do que gerir, conhecimento
nas suas organizações, de uma forma contínua
e coerente com a estratégia definida, precisam
encarar e entender profundamente as premis-
sas sobre as quais se baseia a cultura que define
todas as suas ações e as de seus colaboradores,
fornecedores e até mesmo clientes. A profusão
de informações disponíveis e a oportunidade
de formar com elas um processo de criação de
conhecimento real e prático tira dos gestores a
desculpa clássica: ninguém pode alegar igno-
rância. O consenso em torno da conveniência
de "agradar o cliente" pode se chocar com a
função educativa da empresa.
Nas duas últimas décadas, a informação tem sido con-
siderada o ativo mais importante das organizações. N o en-
tanto, os gestores não vêm sendo preparados para lidar com
um dos grandes paradoxos desse patrimônio: quanto mais
valiosa a informação, mais perecível ela se tornará, na pro-
porção em que cumprir sua função de gerar conhecimento e
entrar no domínio coletivo. A informação leva sempre con-
sigo uma carga de poder, e seu portador é tentado a prolon-
gar a vida útil daquilo que adquire. Quando a organização
não prepara o ambiente cultural adequado, pode em pouco
tempo arcar com os custos de informações obsoletas, que
atravancam processos e bancos de dados e reduzem a agi-
lidade de suas decisões, demorando em se transformar em
conhecimento e cultura.

Informações de qualidade, sempre recicladas no tempo


certo, são o real ativo de que falam os analistas, porque
podem embasar de maneira eficiente os processos de toma-
da de decisão. A inteligência aplicada a essas informações
de qualidade é que gera o conhecimento na empresa. A
gestão do conhecimento só pode ser entendida quando se
refere à gestão desse processo de agregar valor por meio de
informações inteligentemente administradas. Informações
sobre o mercado e os clientes podem se tornar um " m i c o " ,
se sua utilização não estiver vinculada a uma estratégia
inteligente de comunicação. Tal estratégia deve considerar
questões éticas. Deve estar a serviço de u m entendimen-
to profundo sobre o papel da empresa e as sutilezas de
suas relações com a sociedade e, numa escala menor, com
o mercado. Informação tecnológica sem sensibilidade hu-
mana é igual a desastre.
É o caso típico de setores como o de televisão a cabo o u
de cartões de crédito. E m momentos de retração da eco-
nomia, eles sofrem perdas de receita por entrar nas priori-
dades de cortes de despesas familiares, e iniciam imediata-
mente, em seus call-centers, esforços para recuperar clientes
ou atacar a concorrência. Quase sempre, o uso direto das
informações sobre o cliente o faz lembrar a circunstância
financeira desconfortável em que ele se encontra e não pro-
duz o clima adequado à venda. Se, em vez de utilizar expli-
citamente e de modo direto as informações que detém sobre
o cliente, a organização propuser uma relação triangular,
pode usá-las para planejar parcerias vantajosas para todos
os envolvidos, sem correr o risco de constranger o cliente.
O próprio funcionário do telemarketing se sente mais inte-
ligente, mais útil e mais motivado, se a empresa lhe der a
oportunidade de um diálogo mais elaborado e respeitoso
com o cliente.

Outro valor importante da informação com inteligência


é a possibilidade de utilizá-la como recurso indireto, devol-
vendo-a para o ambiente interno da organização para que
seja digerida como nutriente para a inovação. E m vez de
aplicar imediatamente a informação e esgotá-la no primeiro
momento, existem circunstâncias em que a rapidez perde
para a ponderação no comparativo de resultados. Fazer gi-
rar a informação por um número amplo de pessoas dentro
da empresa, com o compromisso de recolher a curto prazo
insights e idéias de melhoria, é aplicar a inteligência coletiva
para valorizar esse ativo. Novos produtos, novos serviços e
até novas visões do negócio podem brotar dessa experiência
de compartilhamento.
Uma das surpresas que uma iniciativa como essa pode
produzir é a constatação de que o atual profissional da i n -
formação não representa necessariamente o protótipo do
futuro trabalhador do conhecimento. Quando a informação
circula, num contexto produtivo em que todos os partici-
pantes estão comprometidos com o objetivo de lhe dar mais
valor e significação, abre-se a oportunidade para talentos de
analistas e inovadores que, sem a informação, continuariam
no ostracismo e sem contribuir para o processo de melhoria.

Esse exercício pode revelar até mesmo que a divisão de


atribuições pode não estar de acordo com as novas perspec-
tivas geradas pela tecnologia e abrir a oportunidade para
renovar a estrutura da organização e melhorar sua eficiên-
cia. Quando a informação não circula, ou quando não há o
pano de fundo de um significado aceitável para a coletivida-
de, ela se transforma em instrumento de poder, para quem
a pode manipular, e exclusão de quem não a possui. gera
em torno dela relações sectárias, que produzem funcioná-
rios descontentes e revoltados, numa organização, e radicais
intolerantes, num contexto mais amplo da sociedade.

PARTILHAR INFORMAÇÃO
A o assumir algumas tarefas tradicionais da gestão, a
tecnologia de informação torna mais explícitas certas com-
petências ou deficiências, que podiam ficar ocultas ou dis-
simuladas sob um manto de eficiência tarefeira. E m sua
função de suporte para competências mais complexas, essa
tecnologia abre espaço para uma maior visibilidade dos ta-
lentos realmente importantes e para a manifestação dos es-
píritos inovadores. Para isso, porém, precisa deixar de ser
uma divindade no oratório dos gestores. Infiltrada em todos
os escaninhos da organização, pode transformá-la em uma
comunidade de conhecimento. Sua vocação está muito além
do processamento de vendas, do nivelamento de estoques,
da agenda de pagamentos ou da logística.

Essa tecnologia está inevitavelmente mesclada à própria


gestão da empresa e, no plano individual, acaba definindo
novos padrões de relacionamento e novas formas de percep-
ção da realidade. Assim, ela também faz mais sentido como
ambiente para desenvolvimento de novas formas de apren-
dizagem interna; como veículo para u m sistema mais aberto
de comunicações e berço de idéias e experimentações; como
cenário para simulações de situações críticas de mercado,
com informações reais e sem os riscos inerentes à realidade.
C o m o repositório de novas linguagens que ancorem o co-
nhecimento produzido pela organização, esses instrumentos
ainda cumprem o papel de suporte para a educação corpo-
rativa, na direção de um desafio que se apresenta a cada dia
mais visível: a tendência de que todos os produtos se trans-
formem em serviços na percepção dos consumidores.

E m b o r a esse conceito ainda esteja amadurecendo na


maioria dos setores, basta observar os números da econo-
mia mundial para constatar que os setores considerados
de serviços, como bancos e empresas de infraestrutura,
têm levado enorme vantagem se comparados c o m seto-
res tradicionalmente classificados como de manufatura.
Pode-se considerar esse fenômeno como resultado de u m
período de transição, por causa da explosão de tecnolo-
gias que oferecem grandes oportunidades para serviços, e
por causa do novo estilo de vida social, com mais intera-
tividade e mais comunicação de massa. Basta lembrar que
na versão anterior de salto tecnológico, que resultou em
produtos eletrodomésticos sofisticados, os setores manu-
fatureiros e de comércio eram as estrelas dos balanços de
resultados.

N u m contexto que extrapola o ambiente das organiza-


ções, mas que tem com elas uma relação de causa e efeito, é
preciso atentar para as conseqüências da implantação dessa
tecnologia num cenário de transformações radicais em todo
o mundo. Hoje, e daqui para o futuro, o fim das tarefas
repetitivas empurra para fora do sistema produtivo milhões
de pessoas. Sem um Estado forte para lhes dar apoio e com
uma sociedade anestesiada demais para produzir qualquer
mudança. O recrudescimento dessa situação aponta para
um horizonte no qual as empresas também estarão sob ris-
co, paralisadas por conflitos sociais que podem em pouco
tempo destruir mercados, eliminar fontes de insumos e de-
teriorar a infraestrutura sem a qual os negócios não pode-
riam existir.

U m a visão estratégica de longo alcance exige a conside-


ração do papel que cada organização pode e deve cumprir
— até mesmo em seu próprio interesse — na prevenção de
circunstâncias sociais derivadas da exclusão. Mesmo que se
considere tratar-se de uma transição, não se pode negar que
a sofisticação da tecnologia de informação tende a ampliar
a confusão entre os utilitários e sua utilidade, por causa da
possibilidade crescente de se individualizar a comunicação e
reforçar nos indivíduos a percepção de produtos como servi-
ços. Assim como, em muitos lugares do mundo, se confunde
uma rede de fast-food com o governo americano, no futuro
um produto poderá ser tomado pelo todo da organização.
Assim, um simples caso de descontentamento acenderá o
pavio de u m repúdio em larga escala, que pode ser mortal
para qualquer organização.
N o entanto, mais do que risco, essa tendência representa
uma oportunidade de criar u m novo significado para a ma-
nufatura, e não apenas no desenho do produto, como ocor-
reu nos anos 1950, mas principalmente na carga de valor
real com que ele chega ao cliente. De fato, não ocorre uma
substituição da manufatura por serviço, mesmo porque não
haveria serviço sem manufatura, mas o cliente tende a per-
ceber o produto pelo seu efeito. A definição tradicional de
manufatura como o trabalho que se faz no chão de fábrica
pela transformação de matérias-primas já não faz sentido. A
nova definição de manufatura aponta conhecimento e idéias
como matérias-primas e reconhece entre os seus ativos ele-
mentos antes considerados intangíveis, como a relação com
a comunidade, respeito ao ambiente, clima organizacional
e conhecimento corporativo. Tudo isso e outros fatores são
condições que podem agregar valor ao produto no momen-
to em que o cliente o percebe. preciso saber comunicar
esse valor.

Assim, um dos maiores problemas que se apresentam


ao setor de manufaturas é convencer o mercado de que seu
produto se diferencia, de alguma forma vantajosa, dos pro-
dutos dos concorrentes. O tráfego intenso de informações,
na mesma proporção que cria oportunidades, gera desafios
pelo simples fato de estarem as informações disponíveis
para praticamente todos os jogadores ao mesmo tempo. O
benchmark é praticado em tempo real, mas cada empresa
realiza a seu modo os processos produtivos. Esse estilo, que
nasce na concepção do produto ou serviço, é finalizado no
contato com o cliente. O resultado será tanto melhor quanto
mais clara for a percepção do cliente de que aquele produto,
além de realizar bem a utilidade para a qual foi concebi-
do, respeita o ambiente, não consome energia em excesso e,
principalmente, é oferecido por uma empresa cujos resulta-
dos não irão apenas engordar a carteira dos acionistas ou o
crédito de bônus dos gestores.

O VALOR REAL

Portanto, o que se oferece de fato ao consumidor não é o


produto em si, mas a percepção que ele terá de uma necessi-
dade ou desejo atendido de forma amplamente satisfatória.
É nesse sentido que os analistas em geral estão usando a
expressão "serviço". Mesmo os bancos, que vendem servi-
ços, utilizam em larga escala a expressão "pr odut o" em suas
comunicações, para oferecer pacotes de orientação para in-
vestimentos, fundos, seguros e outros serviços. Assim, as
instituições que manufaturam produtos tangíveis tendem
a ser percebidas pelo efeito de seus produtos, enquanto os
fornecedores clássicos de serviços tentam tangibilizá-los,
qualificando-os como "produtos". O gestor que pretende
ir além disso precisa desenvolver em sua organização um
conceito básico: o que se pode dar como diferencial signifi-
cativo é a percepção, consolidada e inequívoca, de uma real
participação do cidadão cliente nos benefícios da atividade
da organização.

Entre um e outro significado, o que se descortina é a


evidência de que a disputa se fará menos pela percepção
do produto ou serviço por parte do indivíduo consumi-
dor, e mais pela percepção mais pr ofunda do indivíduo
cidadão. Q u e m melhor entender esse momento de per-
cepção estará muito mais próximo do cliente, mas para
isso é preciso que a organização tire u m pouco o olhar
do seu próprio umbigo. Se não desenvolvermos uma forte
capacidade de empatia com o cliente, a percepção pode
passar do produto para o que chamamos de serviço, sem
que nossa estrutura de comunicação se dê conta do que
ocorreu. U m elemento básico muitas vezes fica ignorado:
o que a maioria das organizações considera u m fim, para
o cliente é u m meio.

O caso aconteceu em São Paulo, no início de 2001. O


diretor de uma empresa mandou para conserto seu com-
putador portátil. C o m o se tratava de u m problema na co-
nexão do cartão de rede, ele não se preocupou em salvar
seus arquivos, pois não dispunha de tempo. Afinal, tratava-
se de coisa simples, não havia necessidade de mexer com
o disco rígido. A máquina foi para uma oficina autorizada
pela fábrica. U m mês depois, foi enviada para o laboratório
da fábrica, porque seria trocada uma peça importada e ela
precisava passar por um teste específico. N o terceiro mês o
executivo ainda pedia informações, e só no quarto mês uma
funcionária da oficina lhe informou, em tom de confidência,
que um caminhão que transportava uma carga de computa-
dores havia sido roubado.
Só então o cliente lembrou que mantinha no notebook
alguns projetos, u m plano de negócios, indicadores de de-
sempenho de determinado setor da economia, o texto origi-
nal de uma apresentação e a senha de seu cartão bancário.
Tomou as medidas que estavam ao seu alcance para reduzir
o risco de prejuízos e entrou em contato com a diretoria
da fábrica de computadores. Só dez dias depois conseguiu
uma cópia do Boletim de Ocorrência e ouviu a promessa de
que receberia um novo computador, de modelo mais recen-
te e com o dobro de memória que tinha em sua máquina
perdida. N o segundo semestre de 2001, o executivo preci-
sou aprovar a compra de uma nova rede de computadores.
Sobre sua mesa, no topo da lista de fornecedores, estava o
nome da fábrica do seu notebook, como primeira recomen-
dação: máquinas de qualidade, preços excelentes, condições
maravilhosas para a compra. Ele apanhou um lápis verme-
lho e eliminou o nome da empresa.

O que a empresa lhe havia vendido? U m computador


portátil? Uma ferramenta de trabalho? O que ela lhe ofere-
cera, por meio de oficinas autorizadas, quando o produto
apresentou defeito? Serviços de manutenção? Que impres-
são a empresa passou ao cliente quando tentou esconder-lhe
que o computador havia sido roubado? Considerando-se
que a intenção da empresa em relação ao seu cliente é sem-
pre a melhor possível, que boa intenção haveria na tentativa
de poupá-lo do aborrecimento de ser informado do roubo?
Qual teria sido a evolução das percepções do cliente, desde o
momento em que adquiriu seu computador até o desenlace,
quando o nome da empresa apareceu na lista de candidatas
ao fornecimento da nova rede?
O fato de alguém no escritório da fábrica ter decidido
que os proprietários dos computadores não deveriam ser
informados do roubo revela que a empresa está seriamente
doente. Não pode alegar que ela desconhecia os riscos de
manter os clientes desinformados. O contrato de conser-
to dos computadores sempre estipula que a empresa não
é responsável pela segurança dos conteúdos da máquina.
Certamente os assessores jurídicos se orgulham muito des-
sa clarividência, mas o que isso significa na percepção do
cliente? U m a empresa que vende tecnologia não pode ale-
gar dificuldade para relacionar uma lista de máquinas rou-
badas aos nomes de seus proprietários, pois seria admitir
grave falha no seu sistema de informações operacionais o u ,
pior, confessar que faz trafegar mercadorias sem documen-
tos fiscais.

U m a das conseqüências mais perceptíveis da disponibili-


dade em grande escala de informações é o estabelecimento
do conceito da responsabilidade pessoal plena. Isso influen-
cia até mesmo a tendência da sociedade para reduzir a idade
penal e permitir a condenação de crianças e adolescentes
infratores. E m praticamente todas as nações, consolida-se a
tendência ao estabelecimento de legislações menos conces-
sivas quanto à capacidade dos indivíduos de interpretar as
regras jurídicas em geral.
Mesmo a complexidade cada vez maior das relações so-
ciais, que aumenta a carga de trabalho dos órgãos media-
dores e da Justiça, induz à consideração de que as partes
estão sempre informadas dos teores de seus contratos. " E u
não sabia" é a resposta que tende a se tornar inaceitável na
maioria das circunstâncias. N o ambiente das relações entre
empresas e sociedade, a disponibilidade de recursos cada
vez mais eficientes e sofisticados reduz ainda mais o espaço
para erros causados por ignorância a respeito de como o
resultado de nossa atividade é percebido.
Para refletir:

1. OBSERVE C OMO VOCÊ REAGE N O PRIMEIRO MOMENTO A C ON-


TRARIEDADES QUE O SURPREENDEM; IDENTIFIQUE AS PREMISSAS
QUE FORMAM SEU MODELO MENTAL.

2. V O C Ê ESTÁ SATISFEITO C O M SUA INTELIGÊNCIA EMOCIONAL?

3. V O C Ê É A FAVOR DA PENA DE MORTE? PARE, PENSE NUMA SITU-


AÇÃO CAPAZ DE IRRITÁ-LO ATÉ O EXTREMO. REFLITA POR U M
MINUTO. RESPONDA À PERGUNTA OUTRA VEZ.
XI—A reserva moral
dos conservadores

Fiz esta piada há alguns anos, durante almo-


ço com u m velho conhecido que era então
dirigente de u m partido que tem em sua si-
gla o " L " de Liberal. E u disse: " N o nosso
país, os liberais são apenas a reserva moral
dos conservadores". Ele r i u por delicadeza,
mas teve de concordar que uma verdade ma-
liciosa brincava por trás da anedota. Alinhei
ainda alguns exemplos de como, em situa-
ções de crise, seus correligionários haviam
apelado para o que havia de pior entre as
opções de protagonistas disponíveis para a
cena política. Ele próprio se lembrou de mo-
mentos em que se viu obrigado a fechar os
olhos e assinar acordos que no íntimo con-
denava. Concordou que nenhuma dessas associações trouxe
para seu grupo resultados positivos a longo prazo e, apesar
de não ser possível comparar o acontecido com as outras
possibilidades abertas por escolhas diferentes, meu conheci-
do podia imaginar quão gratificante teria sido discordar de
algumas daquelas decisões.
Trago esse episódio à lembrança para me referir a dois
fenômenos que se verificam em muitas organizações. O pri-
meiro deles é a manutenção dos "sargentos" de plantão. São
gestores de recursos humanos e assessores jurídicos, cuja
função parece ser exclusivamente a de escarafunchar a le-
gislação trabalhista e as normas tarifárias para encontrar as
brechas de onde as organizações possam tirar alguma vanta-
gem. Claro que nenhum administrador seria cândido a pon-
to de procurar o custo mais alto ou a desvantagem explícita
em qualquer processo de negociação. Refiro-me à mesma
relação da qual tratava com meu conhecido liberal, quan-
do uma empresa procura manter uma imagem institucional
moderna, geralmente em função da presença de acionistas
ou diretores em entidades de classe — e, portanto, sempre
sujeitos a especulações da imprensa —, enquanto interna-
mente trata de manter as relações de trabalho arrochadas às
políticas mais conservadoras possíveis.
U m outro fenômeno também pode ser observado em
grande número de organizações, em função da movimen-
tada troca de processos e métodos produzida pelas novas
tecnologias disponíveis. Os organogramas são alterados
apressadamente para abrigar gerentes recém-promovidos
das áreas técnicas. Expressões como task-force e workout
surgem nos quadros de avisos, sem que a maioria dos parti-
cipantes dessas ações tenha sequer entendido o que elas sig-
nificam. Enquanto isso, uma questão sutil vai sendo deixada
para trás, pelo incômodo que representa e pelo trabalho que
dá lidar com ela. Que espécie de cultura se desenvolve nessa
organização, que educação é proporcionada a essa nova eli-
te, que rapidamente toma posse de centros de decisões vitais
para a empresa?

Há pouco tempo, tive a oportunidade de participar de


cursos para gestores intermediários de uma grande varie-
dade de organizações. C o m o facilitador de aprendizagem
em sessões sobre gestão do conhecimento, pude tabular as
respostas espontâneas de centenas, talvez pouco mais de
um milhar de gerentes, a questões simples e pontuais des-
tinadas a revelar as premissas sobre as quais eles tomam
suas decisões. O resultado me espantou: na grande maioria,
eram pessoas de perfil acanhado e conservador, vivendo u m
evidente conflito de valores. Quase todos se encontravam
numa fase de grande desenvolvimento profissional. Quase
todos representavam organizações que enfrentavam naque-
le momento importantes desafios — razão principal para o
fato de receberem uma educação especial em gestão. N o en-
tanto, aqueles indivíduos expressavam quase unanimemente
um arraigado conservadorismo, um forte enlaçamento com
premissas que eram exatamente a antítese daquilo que suas
organizações buscavam quando contrataram aqueles cursos.
Nos anos seguintes, segui aplicando a análise de perfil
em outros executivos de vários níveis hierárquicos, gestores
públicos e empreendedores, e embuti questões sobre visão
pessoal em perguntas técnicas ou de negócios. O retrato era
semelhante. Era como se vivessem simultaneamente em dois
mundos: o da consolidação de posições conquistadas e o da
transformação. Como representantes e gestores das organi-
zações, eles eram agentes de mudança, mas como indivíduos
eram profissionais com necessidade de consolidação.
Eram os verdadeiros arquétipos da transição, o duplo-
eu da organização: precisavam ao mesmo tempo preservar
a empresa, na figura da anatomia de resultados e do fluxo
de caixa, com todos os seus elementos concretos e men-
suráveis, e pilotar as mudanças necessárias, com todas as
incertezas e variáveis peculiares a toda mudança. Quando
convidados a expressar seus desejos e sua disponibilidade
para a missão de conduzir a organização, eram liberais e
progressistas. Quando consultados sobre suas crenças mais
íntimas, as premissas sobre as quais se assentavam seus mo-
delos mentais, emergia todo o temor do desconhecido e o
apego a valores conservadores.

Esta é uma situação típica em que o gestor está premido


entre o que se convenciona como os interesses imediatos do
capital e as necessidades e oportunidades da organização.
Quando a gestão se faz exclusiva ou predominantemente
em função do que se considera interesse imediato do capi-
tal financeiro, o conflito torna-se inevitável. ainda mais
evidente na ocasião em que as oportunidades se oferecem,
porque o risco está presente em todos os movimentos de
gestão, mas parece crescer na proporção direta das oportu-
nidades. Deixar uma situação de estabilidade para assumir
uma atitude de risco tem sempre um alto custo em angústia.
As premissas conservadoras aumentam o temor ao risco,
ampliam o valor percebido do risco, e induzem à imobilida-
de e ao comodismo.
Assim como em todos os organismos vivos, também é
da natureza de todo empreendimento humano que ao movi-
mento de expansão corresponda sempre um movimento de
contração. Os avanços são sempre seguidos de períodos de
consolidação, à ruptura se segue o desejo de estabilidade.
A nomeação de u m gerente para uma força-tarefa que se
dedica a reinventar os processos da empresa gera nele senti-
mentos contraditórios, que o induzem ao mesmo tempo ao
desejo de criar e à propensão para deixar tudo como está.
O olhar exclusivo ou predominante para os interesses do
capital financeiro pode condicionar as escolhas às atitudes
que correspondem à contração, à busca da estabilidade e da
consolidação.

DUPLA PERSONALIDADE
Não é raro observar, nas reuniões de trabalho, que a lin-
guagem tende a ser liberal, mas as atitudes são conservado-
ras. E m praticamente todos os cursos comprados pelos de-
partamentos de recursos humanos, a teoria supera em muito
a realidade da organização, pois é preciso sempre provocar
rupturas nos hábitos de gestão muito consolidados para ob-
ter avanços e melhorar a produtividade. O problema é que
quase nunca ocorre uma contrapartida de atitudes da alta
direção no sentido de referendar os valores ali defendidos,
ou as novas premissas apresentadas aos colaboradores en-
carregados de traduzir a nova visão da organização para os
escalões operacionais.

Quando o capital se fecha ao conhecimento por meio de


atitudes conservadoras, o conflito tende a se instalar entre
ele e o conhecimento. O capital perde quase sempre, pois a
realidade da sociedade e de sua expressão econômica — o
mercado — é dinâmica e evolutiva. Surge então um dos
grandes paradoxos da gestão: as premissas conservadoras
que se instalam em função de defesa fragilizam a organiza-
ção e tornam real o risco imaginado, enquanto as premissas
evolutivas ou progressistas habilitam os gestores da organi-
zação a enxergar além dos riscos de curto prazo, aumentan-
do a segurança das decisões.

Este é um princípio da educação para a estratégia, que


pode desenvolver nos gestores o gosto pela inovação e a
capacitação para perceber as rupturas antes que elas acon-
teçam. C omo observa o consultor K i p Garland, diretor da
InovationSeed, "é preciso desenvolver uma arquitetura es-
tratégica dentro de propostas de valor, para que possamos
identificar as ortodoxias que imobilizam — aquilo que nos
ajudou a crescer e agora atrapalha". Às vezes, comenta
Garland, atitudes aparentemente "liberais" são um disfarce
para a manutenção do status quo.
A observação sobre o papel do "liberalismo" como reser-
va moral do conservadorismo se torna muito concreta nas
negociações em torno dos mercados regionais e as barreiras
tarifárias. Nenhum dirigente dos países envolvidos nas dis-
putas por mercados admite seu caráter conservador, mas o
que mais falta aos debates é a sincera disposição de praticar
o que vai nos discursos. Nunca, em outros tempos, a Orga-
nização M u n d i a l do Comércio foi convocada a administrar
tantos conflitos como nesta era chamada de triunfo do libe-
ralismo. Deve haver no noticiário internacional um par de
boas lições para os gestores, mas os dados e informações
disponíveis pelas múltiplas mídias de hoje em dia de pouco
valem se eles não se educarem, ou a organização não os edu-
car, para criar conhecimento a partir desses elementos.
Os dados só podem ser considerados informação quando
fazem sentido em determinado contexto. As informações só
produzem conhecimento quando elevam o nível de consci-
ência de quem as recebe. Estimular os gestores a observar
e valorizar a consciência de seu papel na organização e a
missão da própria organização no contexto da sociedade:
esse é o ponto de partida para que o investimento em infor-
mações e na tecnologia que as transforma em ativos valiosos
produza resultados. Se a aquisição de tecnologia se fizer sem
o cuidado de estimular uma cultura menos conservadora e
mais evolutiva, o risco de perda será muito grande.

Ainda lembrando a tese de Sérgio Storti, a "tecnologia


da libertação" só se aplica a organizações que desenvolvem
as premissas adequadas e se preparam para agregar valor
aos dados colocados no "piloto automático". Desse modo,
eles fazem sentido e servem de conteúdo para a criação de
conhecimento em todos os nichos da organização e, pre-
ferencialmente, estendem seus benefícios ao ambiente mais
amplo possível fora dela. O investimento em tecnologia sem
esse cuidado gera inevitavelmente distorções nos sistemas de
poder. Transferem para os setores técnicos, e para os espe-
cialistas, decisões estratégicas que alteram profundamente
os processos e podem definir o destino da organização.
Até mesmo nas ações em seu próprio campo, o espe-
cialista corre o risco de tomar decisões equivocadas, se
o modelo mental for muito conservador. A s premissas
básicas que orientarão suas escolhas podem ser do tipo
restritivo ou expansivo, e esse é um fator definidor de
sucesso em tudo que o gestor vai empreender. Premissas
expansivas são agregadoras e propensas a produzir, es-
timular e atrair continuamente mais conhecimento. Pre-
missas restritivas são desagregadoras e desestimulantes, e
tendem a dificultar o florescimento de idéias inovadoras
pela imposição de um senso crítico exagerado e irreal.
Elas estão por trás de todos os projetos mal sucedidos,
prontas para expelir aquela frase muito comum: " E u sa-
bia que não ia funcionar".

C omo gestor de um negócio online, tive a oportunidade,


logo nos primeiros anos da Internet no Brasil, de elaborar
um projeto que se chamaria inicialmente "linhas condo-
miniais". Era simplesmente um serviço de provimento de
linhas dedicadas, que ligariam edifícios de escritórios ou
residenciais ao servidor de uma empresa de comunicação.
N o modelo proposto, a empresa incorporadora instalaria os
cabos de rede em um edifício em construção, a operadora de
telefonia forneceria a conexão em banda larga (larga para
os padrões brasileiros da época, mas realmente muito mais
poderosa do que a melhor opção do mercado) e um quarto
parceiro, uma empresa de administração de condomínios,
faria o controle do tráfego.
As vantagens eram evidentes para todos os participantes
convidados. A operadora de telefonia, na época uma estatal
à beira da privatização, ganharia mercado para um produto
disponível cuja demanda era muito baixa, o que certamente
aumentaria seu valor no leilão de privatização. A empresa
de comunicação teria seu público multiplicado pela Inter-
net, com todo o valor que poderia agregar ao seu conteúdo,
usaria a Internet para conquistar e fidelizar assinantes, se
consolidaria como a opção da comunidade e ofereceria uma
mídia segmentada aos anunciantes. A incorporadora teria
algo muito mais atraente a oferecer aos possíveis compra-
dores de apartamentos ou escritórios além dos banais servi-
ços de T V a cabo, duas garagens por unidade, playground
etc. A administradora de condomínios conquistaria os me-
lhores prédios da cidade, beneficiando também sua imagem
ao se tornar a primeira empresa digital do setor. Além, é
claro, de poder realizar online as chatíssimas reuniões de
condomínio, reduzindo ainda o custo das comunicações
com seus clientes.

O único executivo que entendeu totalmente o projeto foi


o gerente de tecnologia da então estatal de telefonia. Ofe-
receu uma taxa muito próxima do valor de custo, compro-
meteu-se a usar o projeto para aplicar pioneiramente todas
as melhorias que se anunciavam naquela época, e que hoje
são muito comuns, e a ampliar continuamente a banda em
todas as conexões contratadas, até o ponto de podermos fa-
zer trafegar imagens de vídeo com qualidade aceitável. Isso
habilitaria a empresa de comunicação a oferecer no futuro
canais de T V condominiais, sem o alto custo do cabo e dos
sistemas de antenas e decodificadores.
A empresa de comunicação nomeou u m gerente muito
bem intencionado, que logo entendeu o alcance do proje-
to, mas não teve o respaldo necessário de seus superiores.
Logo sua energia se dissolveu diante da carranca de seu
diretor ultraconservador, pessimista e obcecado por resul-
tados de curto prazo. A administradora de condomínio,
que entraria na fase de operações, chegou a ser contatada,
mas o projeto f o i abortado antes que ela se engajasse. a
empresa construtora e incorporadora, representada pesso-
almente pelo proprietário, não chegou a examinar a idéia.
Uma pérola do "empreendedor" matou a conversa antes
do prato principal, numa das boas churrascarias de São
Paulo: " A única coisa que interessa hoje para o meu setor
é reduzir o custo".
Oportunidades como essa saltitaram diante dos olhos
de milhares de gestores na última metade da década 1990.
Premissas restritivas e modelos mentais conservadores i m -
pediram que enxergassem além dos custos ou do curto pra-
zo. Grande número de projetos que pude acompanhar nesse
período se tornou realidade graças à estratégia de guerrilha
adotada por gerentes e técnicos, que se convenceram muito
cedo das transformações que estavam sendo gestadas no ca-
samento entre a informática e a telefonia. Então, quando os
gestores e empresários abriram os olhos para as oportunida-
des, estavam todos no mesmo jogo e acabaram alimentando
reciprocamente as ilusões que levaram à bolha da economia
digital. Pouco tempo depois, estava claro que quase todos
haviam perdido.
M a s talvez o melhor exemplo do liberalismo como por-
ta-estandarte do conservadorismo tenha ocorrido na década
anterior, exatamente em 1989. M a l se anunciaram os re-
sultados da eleição daquele ano no Brasil, com a vitória de
um candidato ultraconservador, apoiado por todas as siglas
adornadas pelo " L " de Liberal, diversos consultores foram
chamados aos auditórios de grandes empresas para traçar o
novo cenário econômico que se desenhava no horizonte.
Uma grande corporação multinacional com interesses
diversos, como tecidos e química, foi palco de um caso tipi-
co. Reuniu seus gerentes e diretores e colocou diante deles
um dos gurus do momento, economista de grande renome,
consultor e professor consagrado. Ele começou analisando
o perfil político do presidente que seria brevemente empos-
sado. Falou de sua modernidade, de seu pleno engajamento
ao modelo que a mídia já batizava de neoliberal, destacou
as amplas perspectivas que se ofereceriam para o país com a
provável abertura para o mercado global e deixou todos os
gestores em estado de graça ao dizer que, com a queda do
M u r o de Berlim, abriam-se as portas do paraíso.

M a s a realidade não honrou suas previsões: o novo pre-


sidente confiscou a poupança dos brasileiros no seu primei-
ro dia de governo, levou milhões de famílias ao desespero
e aniquilou milhares de empreendimentos por todo canto.
Beatificados pela palestra do consultor, os gerentes daquela
empresa demoraram quase seis meses para entender que a
verdade era bem diferente daquilo que eles haviam vislum-
brado. Muitas decisões equivocadas foram tomadas, muitos
recursos foram desperdiçados até que u m novo programa
de treinamento pudesse ser providenciado para recolocar a
empresa nos trilhos.
Dez anos depois, u m daqueles gerentes, já ocupando
uma função de consultor terceirizado pela organização,
confidenciou que as perdas chegaram a comprometer a po-
sição da empresa em alguns setores nos quais ela mantinha
uma confortável liderança. N a sua opinião, o que se pas-
sou naquela organização foi um processo de ilusão coletiva,
influenciado pelo discurso messiânico do presidente eleito
somado ao desejo de mudança e à crença na possibilidade
de uma transformação "mágica" da realidade.
Para refletir:

1. NOSSOS MODELOS MENTAIS NASCEM DE PREMISSAS "ORGÂNI-


C A S " ; NOSSO LIVRE-ARBÍTRIO, QUE NOS DIFERENCIA DAS OS-
TRAS, NOS HABILITA A TRANSFORMÁ-LOS.

2. O PENSAMENTO PODE INFLUENCIAR A REALIDADE OBJETIVA?


COMO?

3. CRIAR CONHECIMENTO PARA QUÊ?


XII—O capital conhecimento

A criação de u m conhecimento capaz de i n -


duzir ao desenvolvimento de uma socieda-
de mais justa, que se possa chamar civiliza-
da, passa necessariamente por uma crença
profunda na possibilidade dessa mudança.
M a s ao mesmo tempo exige uma noção de
realidade que só os indivíduos habituados à
luta por resultados conseguem desenvolver.
Esse é o fundamento da tese multicentená-
ria, segundo a qual os criadores de riqueza
serão os autores da modernidade e condu-
tores do que chamamos civilização. M a s
nada mudará, se não houver uma nova
significação do que se convenciona chamar
sucesso individual.
O conceito conservador segundo o qual a sociedade não
pode desperdiçar suas energias com o suporte aos menos ha-
bilitados levou ao rompimento de antigos pactos econômi-
cos e políticos ao longo dos últimos trinta anos e à redução
do papel do Estado como mediador dos processos de de-
senvolvimento. Produziu monstruosidades, como os grupos
radicais que começaram agredindo imigrantes na Alemanha
e acabaram explodindo um edifício público em Oklahoma,
Estados Unidos. A lição da exclusão começa nos gabinetes
que se intitulam liberais e, bem aprendida, retorna aos ga-
binetes sob a forma de vírus de computador, o vírus real
Antraz, ou até mesmo bombas com explosivos reais num
simples envelope.

O conhecimento necessário à reinvenção do sistema está


disponível em múltiplas fontes. A ciência é uma dessas fon-
tes de metáforas que.podem ser diretamente apropriadas
pelo gestor. Analogias produzidas a partir do conhecimento
científico podem estimular novas significações com mais se-
gurança do que aquelas que são normalmente produzidas
pelos sistemas de crenças presentes na cúpula das empresas.
N u m sentido inverso, pode-se educar a organização a bus-
car novas metáforas que contrariem a percepção de realida-
de condicionada à aprovação prévia das crenças da orga-
nização. Graças ao grande desenvolvimento da ciência nas
últimas décadas, em vez de gerar metáforas para entender
fenômenos aparentemente obscuros, o ser humano começa
a usar a compreensão oferecida pela experimentação para
criar metáforas que ajudam a criar novos paradigmas.
Assim, apropriando-se do conhecimento em biologia,
pode-se aferir uma série de novas convenções sociais, nas
quais o sucesso do indivíduo é percebido por sua habilidade
em desenvolver a si próprio e contribuir, em correspondência,
para o desenvolvimento da coletividade à sua volta. Embora
tal acepção possa parecer poética, no sentido geralmente pe-
jorativo que se dá à palavra nos ambientes "profissionais",
o próprio sistema econômico dá sinais de aceitação desse
tipo de paradigma, a julgar pela tendência de setores mais
críticos (e de maior poder aquisitivo) da sociedade a evitar
produtos oferecidos por empresas consideradas ecológica
ou socialmente incorretas, ou que adotam práticas moral-
mente condenáveis em seus processos, como a corrupção
ou o desrespeito a direitos trabalhistas. N o Brasil, pesquisas
realizadas no final de 2001 indicavam que perto de 2 5 %
dos consumidores mantinham a disposição permanente de
punir direta ou indiretamente as empresas percebidas como
não éticas. N o s Estados Unidos, a porcentagem dos consu-
midores que dizem levar em conta a responsabilidade ecoló-
gica e social de uma empresa antes de decidir pela compra,
subiu de 2 5 % para 6 0 % entre 1991 e 2001. A s pesquisas
feitas dois meses depois dos atentados em N o v a Yor k e Wa-
shington indicavam um salto de 19 pontos porcentuais, com
79% dos cidadãos declarando preferir produtos e serviços
de empresas que contribuem para melhorar a sociedade e
preservar o ambiente.

Os indicadores de sustentabilidade D o w Jones são um


exemplo desse novo paradigma, bem como certos fundos de
investimentos que levam em consideração o balanço social
das empresas. N o Brasil, o A B N A m r o Bank foi pioneiro
na criação de um "fundo ético" de investimentos em ações
de empresas que se destacam por sua responsabilidade so-
ciai, seguindo uma tendência crescente em muitos países.
The Canadian Ethical Money Guide oferece uma lista de
empresas e corretoras que se tornam o destino natural de i n -
vestidores com elevado nível de consciência. "Ética e lucro"
são palavras não excludentes, segundo constatam os inves-
tidores nessas ações. Weidner Investing, Ethicalinvest, Gete-
thical, Ethical Stockbroking, Profit for Principle, são algu-
mas organizações que oferecem esse tipo de escolha para os
investidores. Centros de informações, como o Social Invest
Forum, publicam estudos sobre o desempenho de empresas
com forte significado social.

A importância dessas iniciativas para o futuro do sistema


econômico e social mundial, e sua influência na reversão
do sentido destrutivo que o tem caracterizado, vão depen-
der de uma série de fatores. Entre eles está a capacidade da
imprensa de acompanhar a evolução de organizações tidas
como socialmente responsáveis, e a inteligência estratégica
das empresas em investir na elevação do nível de consciência
dos gestores, e não apenas na sua capacitação para os pro-
cessos. M a s a imprensa tem se caracterizado, desde a década
de 1980, por suas funções utilitárias e de entretenimento,
enquanto sua função de educação se deteriora e sua lingua-
gem perde as características de linguagem culta.
N o início da informatização da economia, proliferaram
as teses sobre o fim do jornal tradicional e brotaram os pro-
jetos de modernização que deram cores fortes às páginas
da imprensa diária. Desenvolveu-se também uma geração
de jornalistas muito influenciados pela forma. A linguagem
passou a ser um apêndice de um processo mais propriamen-
te definido como de marketing do que de formação de opi-
niões. De olho na máxima segundo a qual é preciso "fazer
a vontade do cliente", os jornais aprenderam a editar seções
de serviços, guias, reportagens sobre estilo e comportamen-
to. Desviaram para esses novos temas a energia e o talento
antes destinados às seções noticiosas, mais reflexivas, que
tradicionalmente eram responsáveis pela criação de uma v i -
são de mundo na sociedade. N a verdade, a visão de mundo
passou a se restringir ao habitat das celebridades, ao entre-
tenimento e ao consumo.

N u m cenário em que o poder político entrava em deca-


dência, enquanto crescia o poder das empresas e se esva-
ziavam antigos protocolos que abrigavam paradigmas éti-
cos, a imprensa desviou sua atenção das instituições de cuja
guarda historicamente se encarregava, para mergulhar no
nebuloso mundo que se convencionou chamar de mercado.
A expressão fashion passou a definir tudo que é aprovado
pela mídia, a partir de um conceito de estética que mistura o
gosto do momento com a própria mediação. A transferência
desse conceito para todos os demais campos do conhecimen-
to abordados pela imprensa determina a crescente perda da
capacidade de reflexão dos jornalistas e seus leitores.
A homogeneidade se expressa até mesmo na configura-
ção gráfica, tanto dos jornais como das revistas e no forma-
to dos programas noticiosos de televisão. U m conceito de
imprensa como "negócio híbrido" estabeleceu limites para a
inovação e produziu uma tendência à intolerância diante da
diversidade. Confinada às páginas de opinião e editoriais, a
contradição cede lugar às unanimidades ou a debates força-
dos sobre detalhes do noticiário e fortemente influenciados
pela emoção coletiva. Aos poucos, desaparece o estado de
tensão criativa que era a alma dos jornais, e que resultava
do confronto entre a visão da instituição e a realidade trazi-
da todos os dias pelo trabalho dos jornalistas.
Nesse contexto, fica difícil para os gestores da impren-
sa resistir à tentação de escolher notícias ou versões mais
apropriadas a fomentar uma fidelidade do leitor baseada
na emoção instantânea, em detrimento da capacidade de
reflexão. A percepção dos leitores, apresentada em muitas
pesquisas, é de que os jornalistas preferem a má notícia. O
resultado é um jornalismo "impressionista" que, ao tentar
dar objetividade aos fatos que noticia, acaba envolvendo-os
em mais nebulosidade. Fazem isso porque não honram as
sutilezas presentes em todas as ações humanas. É interessan-
te constatar que, nas justificativas por um jornalismo mais
"objetivo" e utilitário, criticava-se justamente o jornalismo
opinativo e emocional das décadas anteriores, chamado
pejorativamente de "impressionista". U m a imprensa assim
não é socialmente e culturalmente responsável, mesmo que
uma parte significativa de suas receitas ou de seus recursos
venha a ser destinada a causas socialmente corretas.

N O V O S SIGNIFICADOS

A função de educação da imprensa, neste momento de


grandes transformações nas relações de todos os tipos, não
pode ser modesta: trata-se de incutir na sociedade o desejo
de criar o conhecimento adequado para gerar uma cultura
de desenvolvimento sustentado, com oportunidades para to-
dos e capaz de produzir nos cidadãos um profundo senso de
participação a partir da compreensão da realidade. C omo
lembra o filósofo brasileiro Luiz Jean Lauand, na busca do
significado global da realidade o jornalista precisa apren-
der a filosofar: " P o r detrás da ruidosa manchete — seja a
destruição das estátuas de Buda por fanáticos religiosos, o
naufrágio de uma plataforma de petróleo ou a derrota da se-
leção brasileira para o time da Venezuela —, discute-se, bus-
ca-se (sempre qüe se trate de verdadeiro jornalismo e não de
imprensa tola e imatura) o ser do homem, seu significado,
seu destino".

N a falta de uma ação da imprensa nesse sentido trans-


formador, estando as empresas em geral comprometidas
com o status quo, e dada a incapacidade dos governos de
inspirar a sociedade a produzir as mudanças, proliferam no-
vas instituições sobre as quais recaem muitas esperanças de
melhoria nas relações sociais. A ação de organizações não-
governamentais ou entidades civis de interesse público, que
têm grande potencial para educar a população em geral e
preparar líderes de cidadania, é fundamental para a criação
desse conhecimento na sociedade. M a s , acima de tudo, é
preciso que no núcleo das organizações se trabalhe por uma
cultura que possa transformar o atual cenário de vale-tudo
pela carreira, e que incuta nos gestores de todos os níveis
uma profunda compreensão de seu papel na sociedade. D a
mesma forma, as instituições dedicadas a desenvolver o em-
preendedorismo têm de estar atentas à necessidade de esti-
mular, juntamente com a capacitação empreendedora, essa
consciência de uma sociedade mais justa.
Uma das dificuldades no trabalho de educação de executi-
vos e gestores é a desconfiança que se desenvolve nos ambien-
tes profissionais de gestão quanto à capacidade de indivíduos
alheios àquele ambiente de entender seus problemas e dificul-
dades. " N a teoria, a prática é outra" pode ser considerado
o jargão mais comum a esses indivíduos, e se refere tanto ao
trabalho de consultores externos quanto ao dos educadores.
O derrotismo diante do desafio da mudança de paradigmas
sempre se apresenta carregado de razões, de lógica e de exem-
plos absolutamente concretos. Diante da alternativa de aban-
donar o ambiente seguro, apesar de insatisfatório, por uma
realidade melhor mas pouco visível, tende-se quase sempre
pela manutenção do status quo, mesmo que miserável.

Lembro-me de pesadas conversas com gestores de uma


empresa do setor de aviação, apenas quatro meses antes dos
atentados terroristas nos Estados Unidos. A percepção da-
queles indivíduos de que as encomendas já recebidas pela
empresa lhes davam uma perspectiva de mais de dez anos de
crescimento, com oportunidades enormes para seu desen-
volvimento profissional, gerava neles uma atitude defensiva
contra qualquer hipótese de mudança. A ponto de alguns
se sentirem ameaçados por algumas reflexões que lhes eram
propostas. Não queriam mudanças importantes em padrões
de aeronaves, não imaginavam a possibilidade de novos sis-
temas de propulsão e enxergavam o futuro como um eterno
"céu de brigadeiro", sem sinal de turbulência, até o fim de
suas carreiras. Nas conversas sobre questões sociais, pre-
dominavam lugares-comuns sacados da imprensa diária ou
dos comentaristas da televisão. Havia neles uma enorme re-
sistência a encarar os temas "não profissionais" com maior
profundidade, ou a emitir opiniões que significassem com-
promisso com mudanças.
Nesses ambientes, quando se abordava a questão da per-
versidade do sistema que exclui milhões de pessoas, a ten-
dência era remeter o problema para o intangível campo da
fatalidade histórica, o que mal disfarçava a indiferença com
o destino dos outros seres humanos descartados. E m geral,
ninguém assumia a defesa ativa do estado de coisas. M a s
uma justificação passiva estava sempre presente, sublimi-
narmente, nas respostas evasivas do tipo "é assim mesmo",
ou "eu faço a minha parte", ou até mesmo "minha mulher
ocupa o tempo dela trabalhando como voluntária numa cre-
che". Entre suas manifestações de conforto estava o hábito
de promover churrascos com bois inteiros, e eram exibidas
fotos dos animais girando em enormes espetos. Tive a opor-
tunidade de fazer alguns deles refletir sobre o significado
dessa prática grotesca e exibicionista. Alguns se mostraram
envergonhados. Outros apenas fizeram piadas a respeito da-
quele hábito pantagruélico. O gestor em situação de confor-
to é, tipicamente, um conservador em pele de liberal.

O H O RRO R D A EXCLUSÃO

Entre as centenas de executivos e gerentes que pude entre-


vistar, a partir de 1999, não posso precisar quantos seguem
com suas carreiras em ascensão e quantos tiveram sua traje-
tória interrompida ou perturbada pelos eventos de setembro
de 2001 e pela situação de crise que se seguiu. M a s podemos
imaginar o choque provocado em suas vidas pela consciência
súbita do horror. Por mais que alguém, estando dentro do
sistema, possa ter desenvolvido uma percepção crítica sobre
suas regras desumanas, o risco da exclusão súbita é um pe-
sadelo que ninguém quer sonhar. A possibilidade de alguém
repentinamente ser lançado para fora daquele círculo de pri-
vilegiados e passar a sofrer os efeitos da mesma indiferença
sob a qual se resguardou, deve produzir atitudes ainda mais
defensivas e reforçar ainda mais a tendência natural ao imo-
bilismo e ao conservadorismo. N a verdade, porém, este é o
momento em que mais se necessita de valores firmes e muita
determinação para ajudar a reinventar o sistema.
O choque do terror pode alterar essas vontades e acelerar
a busca do conhecimento necessário à mudança, que está
disponível em muitas fontes. A teoria psicanalítica e suas
derivações — apesar de ainda serem motivos de dissensões
e disputas entre os especialistas, como no início do século
passado — oferecem uma série de ferramentas, muitas delas
bastante popularizadas, para a indução de novas tendên-
cias na formação da cultura organizacional. Mesmo que se
tenha convencionado que a ciência se desenvolve segundo
uma psicologia de crenças, sendo livre para confirmá-las
ou desmenti-las, também a pseudo-ciência e o nonsense são
fontes para o saber transformador de que o mundo neces-
sita. Afinal, o terror se expressa desta vez com base numa
crença que tem fundações mais antigas do que a própria
ciência como a conhecemos.
Michael Shermer, criador da revista Skeptic e autor de l i -
vros sobre o obscurantismo e o sistema das crenças — entre
eles Why people believe weird things e How we believe: the
search for God in an age of science —, acredita que a exposi-
ção do conhecimento científico à mídia de massa, como pro-
gramas populares de entrevistas, ajuda a combater os mitos
arraigados na sociedade, pela divulgação de conhecimento
de origem científica em padrão pseudo-científico. também
induz as pessoas a refletir mais, antes de tomar como ver-
dadeiras determinadas assertivas que, uma vez massificadas,
poderiam conduzir a verdadeiros desastres sociais. Ele insis-
te no dever dos cientistas de expor suas idéias ao público,
e ensiná-lo a pensar mais cientificamente e dedicar parte do
seu tempo à maturação das idéias, como uma forma de tes-
tar as premissas antes que elas se tornem dogmas.
N o ambiente das organizações de negócios, o fenôme-
no das falsas viabilidades, que Shermer tenta descaracteri-
zar como conhecimento, é uma das maiores causas de erros
estratégicos e desperdícios. A simples atenção a alguns co-
nhecimentos realistas, fundamentados em experimentos ou
pesquisas, pode eliminar o risco produzido por sistemas de
crenças que condicionam muitas das decisões tomadas no
dia-a-dia. Além disso, embora muitos educadores e gestores
considerados de vanguarda sejam contrários à pedagogia
dos manuais, o simples alinhamento de algumas premissas
cuja validade foi testada e comprovada pode ajudar a orga-
nização a evitar esses descaminhos.

Algumas velhas crenças sobre o comportamento dos con-


sumidores, por exemplo, foram enterradas logo nas primeiras
experiências com o comércio eletrônico. As rápidas mudan-
ças de hábitos entre os jovens japoneses têm oferecido um
vasto campo de conhecimento para gestores sobre como são
feitas algumas escolhas. E, também, sobre como elas podem
rapidamente alcançar o status de paradigma para milhões de
pessoas, até mesmo em países distantes de onde se origina-
ram. O avanço espantoso da informática no sistema bancário
brasileiro, tema de estudos em universidades e empresas de
consultoria, foi devido principalmente à surpreendente capa-
cidade, revelada pela população, para o uso de cartões mag-
néticos e senhas, apesar da sua baixa escolaridade.
Essa disposição para o aprendizado é o ponto de partida
para a criação do conhecimento. A predominância de jovens
como característica das populações dos países emergentes
é um fator favorável ao estabelecimento de um sistema de
educação transformador. N o ambiente das organizações de
negócios, essa energia favorável ao aprendizado deve se so-
brepor aos esforços dirigidos à simples gestão do conheci-
mento. Mais do que administrar o que já se conhece, é preci-
so evoluir para a criação permanente. M a s isso só é possível
num ambiente otimista, ou seja, menos conservador e restri-
tivo e mais favorável ao pensamento criativo, que resulta de
modelos mentais abrangentes e de premissas progressistas e
ampliadoras.

Estimular o debate no ambiente de trabalho sobre os


mais variados temas, é uma boa maneira de alimentar es-
sas premissas progressistas. Até mesmo pela oportunidade
de fazer aflorar no ambiente da reflexão coletiva os pressu-
postos bloqueadores da criatividade, para que possam ser
trabalhados. O conhecimento brota sempre da diversidade,
da confrontação entre desejo e realidade, do antagonismo
irremediável entre as demandas do instinto e as restrições
da civilização, da constante ruptura da ordem estabelecida.
O apego obsessivo à ordem é fator inibidor da criação do
conhecimento.
Também é conveniente observar que, como em todas as
atividades humanas, concretas ou mentais, é preciso garan-
tir aos indivíduos a percepção da realização pela criação do
conhecimento. A educação já foi descrita como um incen-
tivo à conquista do princípio de prazer e sua substituição
pelo princípio de realidade, na medida em que oferece com-
pensações pela quebra do conforto da ordem, que o apren-
dizado exige. Assim, qualquer organização que pretenda ser
um ambiente estimulante para a criação do conhecimento
precisa incluir em seus processos a valorização de todos os
ganhos da criação corporativa. C o m o o ser humano não
consegue se afastar do seu desejo de felicidade, a organiza-
ção que estabelecer rotinas capazes de explicitar o valor do
conhecimento também associará a criação do conhecimento
a uma sensação de felicidade. Dessa forma, favorecerá u m
melhor ambiente de trabalho.

Para refletir:

1. C O M O VOCÊ SE SENTE, AO CONSTATAR QUE EXPRESSOU U M PRE-


CONCEITO OU FORNECEU U M A RESPOSTA EVASIVA QUANDO L H E
PEDIRAM UMA OPINIÃO?

2. V O C Ê AINDA T E M CURIOSIDADE?

3. O FENÔMENO DAS FALSAS VIABILIDADES É RESPONSÁVEL POR


GRANDES PERDAS NAS EMPRESAS NAS VIDAS PRIVADAS.
Kill—A terceira cultura

O empresário John Brockman, agente lite-


rário de alguns dos mais destacados dentis-
tas-escritores do mundo, publicou em 1991
um ensaio intitulado " A emergência da
terceira c u l t u r a " . Suas reflexões causaram
uma sucessão de debates, cujas conseqüên-
cias e revelações não podem ser ignoradas
pelos gestores que consideram seriamen-
te sua missão de criar conhecimento e se
manter na vanguarda das mudanças que se
sucedem nas relações humanas e nos negó-
cios. Entre 1991 e 1994, Br ockman conver-
sou com muitos cientistas envolvidos nas
mais avançadas pesquisas dos mais varia-
dos campos do conhecimento. E m 1995,
publicou o livro A terceira cultura: muito além da revolu-
ção científica.
Não se trata de uma simples antologia sobre descobertas
científicas ou teorias sobre cosmologia. É o registro vivo e
documental de u m novo sistema de conhecimento, e a apre-
sentação pessoal dos protagonistas de uma nova visão de
mundo que está revolucionando completamente o modo
como fazemos cultura. A partir das revelações espantosas
feitas pela ciência nas últimas décadas, esses estudiosos
conduzem reflexões sobre as mais importantes questões do
nosso tempo. Brockman criou uma organização para agru-
pá-los e congregou suas manifestações no site da Internet
http://www.edge.org, de onde tiro algumas das análises que
se seguem.

"Para chegar ao limite do conhecimento, encontre as


pessoas cujas mentes são as mais complexas e sofisticadas,
coloque-as juntas numa sala e peça que façam umas às ou-
tras as perguntas que estão fazendo a si mesmas". Esse é o
conselho de John Brockman, que ele próprio seguiu à risca.
Por essa simples razão, tornou-se o cronista de u m novo e
transformador universo cultural que está redefinindo pra-
ticamente todas as relações humanas, desde o modo como
educaremos nossos filhos, até nossas escolhas na compra de
tecnologia ou o estilo com que faremos negócios daqui para
a frente. Testemunhamos muito mais do que uma revolução
científica: estamos no limiar do tempo que chamamos de era
do conhecimento.
Brockman comenta que o conceito de duas culturas do-
minantes em nossa sociedade foi definido em 1959, pelo
cientista, escritor e administrador público britânico Charles
Percy Snow, Barão de Leicester, no livro As duas culturas.
Snow observou que o mundo cultuava, de u m lado, os inte-
lectuais literatos e do outro, os cientistas, que desde Einstein
vinham revolucionando o conhecimento do universo. M a s
notou que os literatos haviam tomado para si com exclusi-
vidade o título de intelectuais, como se não houvesse outros
seres pensantes fora do seu círculo. A expressão "homem
de letras" excluía cientistas como o próprio Albert Einstein,
com seus colegas físicos Niels Bohr e Werner Heisenberger,
o astrônomo E d w i n Hubble e o próprio criador da ciberné-
tica, Norbert Wiener.

Snow constatou ainda que, embora escrevessem muitas ve-


zes para o público em geral, influenciando o modo de pensar
da sociedade, os cientistas não manifestavam interesse pelas
implicações sociais de suas obras. Editores, críticos, jornalistas
e outros consumidores e ampliadores de cultura ignoravam o
valor e a importância das idéias dos cientistas como frutos de
atividade intelectual. N u m a segunda edição de As duas cul-
turas, em 1963, Lord Snow acrescentou um ensaio no qual
sugeria que uma nova cultura, uma "terceira cultura", iria
emergir e fazer frutificar a comunicação entre os intelectuais
literatos e os cientistas, para benefício da humanidade.
Não aconteceu exatamente o que ele previu, porque os
intelectuais literatos continuam a ignorar a cultura produ-
zida pelos cientistas. M a s uma "terceira cultura" realmente
pode ser observada nas livrarias, cinemas, na televisão, na
Internet e nas conversações. Os cientistas se comunicam d i -
retamente com o público em geral, ignoram os profissionais
da mídia culta e procuram expressar seus pensamentos de
uma forma acessível ao público leitor inteligente. Os intelec-
tuais da velha cepa desprezam o fenômeno e dizem que es-
ses livros representam uma anomalia: são comprados, mas
ninguém os lê.
O fato, porém, é que físicos, biólogos, geneticistas, cien-
tistas da computação, jornalistas científicos, psicólogos, an-
tropólogos, outros estudiosos do comportamento humano e
grande número de filósofos científicos, traduzem para a vida
real as constatações feitas nos laboratórios e assumem o pa-
pel social de educar os cidadãos para uma nova consciência
de mundo. "Esses cientistas e outros pensadores do mundo
empírico, por meio do seu trabalho e do texto expositivo,
estão tomando o lugar dos intelectuais tradicionais. A o tor-
nar visíveis os mais profundos significados de nossas vidas,
redefinem quem e o que somos", diz John Brockman.
o que é que isso tem a ver com a gestão? U m gestor
muito pragmático certamente se perguntaria o que uma tese
de cosmologia, tornada verossímil por um matemático, teria
a ver com a anatomia de resultados da sua organização. Fiel
ao perfil conservador que marca a gestão de negócios e or-
ganizações dos mais variados tipos, e avesso a especulações
filosóficas, é típico do gestor torcer o nariz para questões
dessa ordem. Talvez ele também nunca se tenha perguntado
quanto do conhecimento científico de ponta se transforma
em benefícios para a sociedade na vida real e, por extensão,
em que proporção esse conhecimento poderia gerar oportu-
nidades para o seu negócio.
A ponta visível da revolução científica das últimas décadas
é a tecnologia, e apenas uma pequena parte dela está embar-
cada nos processos produtivos das organizações. C o m certe-
za, uma fração ainda menor dessas descobertas informa e ins-
trumentaliza o conhecimento aplicado à gestão, o que pode
dar uma idéia de quantas oportunidades se perdem por isso.
Brockman observa que nossa educação mais elaborada, con-
solidada nos anos 1950 com base em Freud, M a r x e o mo-
dernismo, já não proporciona, por si, qualificação adequada
para um indivíduo pensante no início do século X X I . É pre-
ciso confrontar continuamente as idéias que formaram a mo-
dernidade com o conhecimento científico. Sob esse ângulo, de
fato, muitos pensadores tradicionalistas se revelam claramen-
te reacionários, às vezes arrogantes e ignorantes de muitos
dos feitos intelectuais do nosso tempo. Sua cultura, que des-
preza a ciência, é costumeiramente não empírica, recorrente
em seus próprios jargões, auto-referente e caracterizada por
amontoados de citações, numa espiral de comentários que
progressivamente se distancia da realidade, diz o autor.

Foi para estimular a valorização de outra vertente cultu-


ral que Brockman criou "The Reality C l u b " , uma série de
encontros nos quais os convidados são encorajados a juntar
os materiais de cultura em artes, ciência e literatura, saindo
de seu campo de especialidade, para expor a visão mais am-
pla que conseguem alcançar a partir da sua percepção da re-
alidade objetiva. A maior dificuldade dos conferencistas tem
sido dissecar as questões que têm feito a si mesmos, sobre as
quais ainda não puderam formular uma opinião sólida.
C o m o o hábito geral é fundamentar toda comunicação
em conceitos estabelecidos, "The Reality C l u b " consegue
quebrar paradigmas estabelecidos há séculos e colocar os
maiores sábios do nosso tempo diante de desafios altamente
produtivos. Há aqui uma lição para os criadores de cultura
e conhecimento no ambiente dos negócios, na medida em
que Brockman chama a atenção para a necessidade de rein-
ventar nosso modo de pensar: simplesmente levanta a velha
dúvida sobre o que realmente sabemos e aquilo que ignora-
mos, mas temos coragem de explorar.
O alerta do criador de edge.com não pode ser ignorado
pelos gestores, pela simples razão de que todo conhecimento
aplicado à gestão se alimenta em uma fonte de cultura. Os
trabalhos de Ikujiro Nonaka e Hirotaka Takeuchi, a res-
peito de como as empresas japonesas se reinventaram nos
últimos vinte anos, são um exemplo muito celebrizado entre
gestores e empresários ocidentais. É do saber comum que
os japoneses foram buscar no Ocidente a fonte e inspiração
para sua primeira revolução econômica no século X X . A
partir dos anos 1950, reergueram sua economia devastada
pela guerra com base nos ensinamentos de Joseph Juran,
formado em engenharia elétrica e direito, e do estatístico e
educador W. Edwards Deming. C o m base em práticas muito
racionais, que melhoraram a produtividade de suas fábricas
e a qualidade dos seus produtos, os japoneses ocuparam i m -
portante fatia do mercado mundial de produtos manufatu-
rados e se tornaram um modelo a ser seguido.

Nonaka e Takeuchi lembram que essa primeira virada


dos japoneses não foi suficiente para garantir o sucesso por
longo tempo, porque sua estratégia era baseada na eficá-
cia operacional, que podia — e acabou sendo — facilmente
imitada. A retomada econômica a partir dos anos 1980, que
deu novo fôlego ao Japão, teve de se basear num esforço
pela criação do conhecimento dentro das organizações. A s
inovações em tecnologia da produção haviam sido incor-
poradas à cultura das organizações. Segundo os dois estu-
diosos, o novo salto foi obtido pela criação de processos
destinados a colher continuamente o conhecimento tácito
de cada pessoa, e transformá-lo em conhecimento explícito
disponível para toda a corporação.
E m 1997, numa palestra a estudantes da escola de negó-
cios da Universidade C olumbia, Juran, então com 93 anos
de idade, lembrou que as atitudes culturais definem a abor-
dagem que cada comunidade empresarial ou social fará ao
problema da qualidade. Observou também que com a ex-
plosão do desenvolvimento tecnológico nossa dependência
da qualidade se tornou absoluta. C o m base nisso, fica mais
aceitável a afirmação de que a definição da estratégia de uma
organização começa muito antes dos processos. Embora a
maioria dos gestores declare considerar mais gratificante
trabalhar com questões operacionais, porque os resultados
são mais tangíveis, é no universo intangível que está a essên-
cia da gestão. Tudo se define no modelo mental.

Portanto, investir numa educação que rompa velhas pre-


missas é o passo inicial para criar modelos mentais mais
progressistas e evolutivos, e sobre eles fazer brotar uma cul-
tura que valorize a criação contínua e permanente de conhe-
cimento na organização e sua extensão à sociedade. Voltan-
do à emergência da "terceira cultura", por que é importante
atentar para essa forma de criar conhecimento? Porque, sen-
do referendada por descobertas científicas, pela constatação
empírica e por formulações matemáticas inquestionáveis,
ela forma uma base muito mais sólida do que a alternativa
do livre-pensar. Além disso, ao tomar contato com as ver-
dades mais profundas que o conhecimento humano pode
alcançar pela razão, os cientistas também obtêm acesso às
metáforas essenciais da existência. Estas, como se sabe, são
indicadoras de modos sociais mais gratificantes, naturais e
respeitosos em relação à humanidade e ao universo.
Voltemos atrás algumas páginas. O livre-pensar, o exercí-
cio do livre-arbítrio, torna-se mais valioso para a busca de
resultados numa organização, ou para a construção de uma
sociedade melhor, se estiver fundamentado no conhecimento
científico e na experiência, e não em meras crenças. Por outro
lado, o conhecimento científico ganha o status de "terceira
cultura" pela disposição de deixar os laboratórios e assumir
sua responsabilidade social. Traz o saber obtido na experimen-
tação como fundamento para uma revolução no modo como
nos relacionamos, como lidamos com produção e valores.

E m nenhuma hipótese propomos o fim do livre pensa-


mento ou sua marginalização como prática sem valor para
a gestão. Trata-se apenas da velha e boa questão da relação
custo-benefício: exercitado sobre uma base de conhecimen-
to real e pragmático, o arbítrio humano certamente serve
melhor à humanidade. Ainda lembrando León Daudet e sua
observação sobre o risco da invenção do automóvel, vale
reforçar o inverso da moeda: o conhecimento científico ou
sua derivação — a tecnologia — com certeza serve melhor
ao ser humano quando desenvolvido sobre uma base de res-
peito à vida. A chamada era digital será uma passagem na-
tural para a era do conhecimento ou um hiato na história da
humanidade, a depender da causa a que servir.

QUEM LIDERA?
U m dos temas mais destacados das publicações dirigidas
a executivos, gestores e investidores, desde a alentada revis-
ta Fast Company, cujas edições chegaram a alcançar volu-
mes de mais de 500 páginas, até a Harvard Business Review
e a egípcia Pharaoh's, tem sido a necessidade que se impõe a
esses profissionais de assumir seu papel de liderança na cha-
mada comunidade organizacional. Ninguém quer se diluir
na multidão que compete por um lugar ao sol, e o conselho
mais comum que resulta como conclusão desses artigos e re-
portagens é a permanente reciclagem de conhecimento dos
profissionais, individualmente.

A referência à hipótese de fazer convergir os talentos e


energias no sentido da criação de um conhecimento comum,
coletivo, em benefício de toda a organização, é uma raridade
nessas publicações. A eventual ampliação dessa convergên-
cia para o círculo mais amplo da sociedade é uma tese ainda
mais difícil de ver abordada nessas publicações. N o entanto,
ninguém ignora que as empresas se tornaram, nas duas últi-
mas décadas, as instituições mais poderosas do mundo.
Cada vez mais, o destino da humanidade depende das
decisões desses gestores educados para o individualismo. A
competitividade os faz, de certo modo, personagens curio-
sos de u m ambiente mutante. E m geral, são pessoas muito
bem informadas sobre as últimas descobertas científicas e
os novos sucessos da tecnologia. Quase sempre estão afi-
nados com os gurus da gestão, que a cada semana revelam
novos paraísos nas livrarias dos aeroportos, e são capazes
de discorrer sobre temas variados como esportes ou políti-
ca. Alguns chegam a elaborar um discurso claro e coerente
sobre o papel social das empresas. O que exacerba o para-
doxo: por que a cultura produzida por esses indivíduos não
oferece sequer uma perspectiva de uma sociedade melhor
que justifique o poder do capital a que servem? Mais do que
assumir sua responsabilidade na empresa, ou no setor em
que atuam, os gestores precisam usar o conhecimento que
a sociedade lhes permitiu angariar para assumir sua parcela
de responsabilidade diante da urgência da criação de novas
relações sociais, e de negócios que deixem de significar uma
ameaça para a humanidade.

Uma das preocupações manifestadas pelos gestores que


entrevistei era a de que o sucesso profissional provocasse em
torno deles uma bolha que os distanciasse da realidade mais
ampla, pela tendência à especialização criada por demandas
crescentes de informação.
O sucesso dos autores da "terceira cultura" retrata uma
fome intelectual por novas idéias e o interesse em sua pró-
pria educação por parte desse público de alto poder aqui-
sitivo e grande vivência em setores críticos de decisão. São
eles os consumidores da "cultura pública", em que o co-
nhecimento científico se transforma quando é abrigado nos
livros de capas atraentes e títulos instigantes que brilham
nas estantes.
Estudos recentes sobre o noticiário científico, um deles
oferecido em artigos pelo jornalista brasileiro Ulisses Capo-
zzolli, revela a presença constante, na mídia, de temas como
inteligência artificial, vida artificial, redes neurais, fractals,
supercordas, teoria do caos, lógica difusa, genoma humano,
bioengenharia, realidade virtual, nanotecnologia, biologia
molecular e naves biológicas e outras questões que até pou-
co tempo freqüentavam mais apropriadamente o imaginário
dos escritores de ficção científica. Os profissionais da gestão
estão entre os maiores consumidores desse tipo de informa-
ção. N o entanto, essa comunidade não é capaz de gerar uma
"terceira cultura" no ambiente dos negócios. A informação
de ponta que lhes chega como um grande privilégio não se
transforma em conhecimento de ponta, capaz de alterar os
paradigmas das organizações e do sistema que geram.
Muitos dos mais reluzentes cientistas dos meados do sé-
culo X X abriram mão de influenciar positivamente a socie-
dade com seus conhecimentos e, com isso, de contribuir para
neutralizar a ilusão de controle. Tais cientistas se deixaram
levar por projetos contrários aos interesses da humanidade e
da civilização. D o mesmo modo, os gestores de capital estão
se omitindo da responsabilidade de gerar conhecimento a
partir dessas fontes privilegiadas de informação a que têm
acesso. Há uma relação entre as perdas humanas e econômi-
cas que marcaram o século X X , sob as justificativas de duas
versões de modelo social fundamentadas na velha cultura,
e as perdas humanas e econômicas que inauguram o século
X X I , sob o debate bilateral entre personagens que se defi-
nem como liberais ou anti-liberais.

A elite dos gestores, que tem acesso às informações que


podem fazer brotar uma cultura mais humana e uma socie-
dade mais justa, parece repetir a atitude dos cientistas que
viram, passivos, o mundo se fragmentar no século passado.
Essa elite é formada pelos criadores da riqueza, que poderia
dar um significado aceitável ao capital financeiro, a come-
çar pelo simples reconhecimento do valor real dos outros
capitais que igualmente participam do processo econômi-
co. Essa nova elite, que ao defender o primado da "meri-
tocracia" rompe a premissa iluminista do "direito divino"
do capital financeiro aos privilégios, poderia patrocinar o
desenvolvimento de um sentido mais democrático para a
sociedade. Nenhum dos gestores e empreendedores a quem
dirigi a pergunta sobre seu papel no processo civilizatório
fez referência à hipótese de um processo que poderia ser
chamado de humanizatório, como finalidade da atividade
econômica. N o entanto, essa é a expressão que se apresenta
como resultado natural das equações que os vi decifrar em
todos os cursos de gestão de que participei, como aluno ou
como facilitador de aprendizagem.

N u m dos grupos de gerentes intermediários que aju-


dei a trabalhar com temas sobre a responsabilidade da cria-
ção de conhecimento nas organizações de negócios, de u m
total de 102 participantes, 84 apresentaram no primeiro dia
respostas que denotavam premissas claramente conservado-
ras ou derrotistas para questões relacionadas a problemas
da humanidade. Os demais deram respostas difusas, embo-
ra mais otimistas ou esperançosas, mas quase sempre i m -
precisas, como se tivessem vergonha de parecer sonhadores
ou desvinculados da realidade que exige resultados concre-
tos a todo momento. N o quinto e último dia dos trabalhos,
após uma série de debates e exercícios, apenas duas pesso-
as ofereciam respostas restritivas. M a s ainda assim difusas,
como se os papéis se houvessem invertido: um ambiente de
confiança na expressão das verdadeiras crenças de cada um
havia facilitado a manifestação de premissas otimistas e am-
pliadoras.

GUERRA DAS METAS


Por que as organizações não conseguem produzir um
ambiente que induza as pessoas a oferecer o melhor de
si, o espírito mais aberto, a energia adequada e necessária
para aumentar as chances de sucesso de projetos muitas
vezes definidores do futuro do empreendimento e sua re-
levância social?
Sabe-se há muito tempo, desde os primeiros estudos de
psicologia social nas empresas, que a atribuição de um sig-
nificado ao trabalho — que extrapole o caráter meramente
produtivo — aumenta o rendimento. Desde o período logo
após a Primeira Guerra M u n d i a l , uma infinidade de pesqui-
sas tem revelado a necessidade de acrescentar ao imaginário
do ambiente de trabalho um círculo mais amplo de valores.
Os esforços de guerra em todos os tempos, campanhas de
superação de metas e outros objetivos semelhantes obtive-
ram engajamento de grande número de pessoas. M a s em
geral os gestores temem a diversidade de visões que surge
naturalmente, quando se partilham os valores e objetivos de
uma organização. Mesmo nas campanhas educativas pela
melhoria da qualidade, que se popularizaram em milhares
de empresas a partir dos anos 1980, a regra ainda é a cons-
tituição de grupos de elite, chamados educadores ou multi-
plicadores, que definem os programas em círculos restritos e
depois levam as tarefas à corporação em geral.

A criação do conhecimento nas empresas exige alto grau


de confiança na organização como um sistema inteiro, vivo
e dinâmico. Os gestores, como líderes de uma "terceira cul-
tur a" no ambiente organizacional, não podem agir como
educadores do século X I X . O conhecimento científico e tec-
nológico a que têm acesso deveria proporcionar a segurança
suficiente para acelerar a mudança essencial nas relações de
negócios. Já não faz sentido a metáfora da empresa como
um corpo dividido em cabeça, tronco e membros. Já é hora
de esses super-cidadãos assumirem a ação por uma realida-
de mais aceitável.

Para refletir:

1. V O C Ê OLHA PARA O CÉU VÊ: NUVENS, ESTRELAS, LUA, MISTÉ-


RIO OU CONHECIMENTO?

2 . V O C Ê CONSEGUIRIA DESCREVER O ESPÍRITO DA SUA EMPRESA?

3. QUANTO DO SEU CONHECIMENTO CIENTÍFICO ESTÁ AGREGADO


À SUA VIDA ROTINEIRA?
XIV—A filosofia na carne

Tive a oportunidade de entrevistar recente-


mente um desses pensadores da "terceira
cultura". A convite do físico e escritor Fritjof
Capra, um dos pioneiros dessa nova casta de
intelectuais, compareci, como representante
da empresa de educação de executivos A m a -
na-Key, a um evento na Universidade da
Califórnia, em Berkeley. N u m dos interva-
los dos debates, almoçando com Capra, ele
me falou com muito entusiasmo sobre um
trabalho recém-concluído por dois pesquisa-
dores, George Lakoff e M a r k Johnson, a res-
peito da origem do pensamento e o processo
de formação das metáforas. Capra estava
tão eufórico que fez questão de gravar um
depoimento no qual analisava em linhas gerais as revelações
da dupla de estudiosos."
N o dia seguinte, um domingo, consegui localizar Lakoff
em sua casa e o levei até a escola de comunicação da uni-
versidade, onde ele passou a tarde falando sobre sua obra.
A jornalista brasileira Daniela Broitman, estudante de pós-
graduação em Berkeley, improvisou rapidamente um estú-
dio e Lakoff nos proporcionou uma aula sobre o trabalho
de sua equipe multidisciplinar, que durante sete anos estu-
dara como se origina o aprendizado. Lakoff, professor de
lingüística em Berkeley, e Johnson, chefe do departamento
de filosofia na Universidade de Oregon, haviam coordenado
a pesquisa e produziram o livro Philosophy in the flesh, com
mais de 600 páginas, cujo título em português poderia ser
Filosofia na carne: a mente corporificada e seu desafio para
o pensamento ocidental.

Algumas das conclusões apresentadas no livro podem ser


apanhadas como fundamento para uma nova cultura orga-
nizacional. Algumas delas:
A mente não pode ser separada do corpo.
A mente está "incorporada", implícita no corpo.
A linguagem se estrutura:
a) para expressar um sentido.
b) de acordo com estratégias de comunicação.
c) conforme os mais profundos aspectos da cultura.
d) não independente do corpo, mas brotando do sistema
neuro-motor.
e) metáforas primárias são comuns a todo o gênero
humano.
f) elas são derivadas do corpo-mente e do seu uso.
A idéia, equivocada segundo os pesquisadores, de que
a mente é dissociada do corpo, fez a sociedade desenvolver
relações antinaturais. Lakoff e Johnson dizem que isso levou
à criação do capitalismo como o conhecemos, baseado na
figura do pai punidor e da mãe nutridora, o que conduziu
à idéia de que o humano precisa de controle e a natureza é
uma mãe para ser sugada, com recursos infinitos. Segundo
Lakoff, as descobertas de que a mente está presente em todo
o organismo humano, corporificada, e de que as metáfo-
ras são geradas continuamente pela experiência sensorial de
todo o corpo, indicam uma conexão plena entre os indivídu-
os e dos indivíduos com tudo que possa ser percebido.

Lakoff e Johnson afirmam que é virtualmente impossível


pensar ou falar a sério sobre a mente sem conceituá-la me-
taforicamente. M a s as metáforas apenas dão uma noção do
funcionamento da mente, e elas próprias indicam a impos-
sibilidade de entender completamente esse funcionamento,
da mesma forma como as palavras não são suficientes para
descrever todo o conhecimento. Genericamente, por meio
dessas metáforas, a mente é vista como u m corpo, o pensa-
mento é considerado uma função física, idéias são entidades
com existência autônoma. Segundo o The New York Times,
o trabalho de Lakoff e Johnson é um "Projeto Genoma M e -
tafórico", que busca delinear o código genético do pensa-
mento humano.
Observe algumas metáforas constatadas pelos autores
nas mais diversas culturas, o u como formulamos natural-
mente algumas metáforas a partir da experiência corporal.
1. O pensamento é tido metaforicamente como movi-
mento:
Pensar é mover-se.
Idéias são locações.
A razão é a força.
O pensamento racional é um movimento direto, de-
liberado, passo-a-passo e de acordo com a força da
razão.
Ser incapaz de pensar é ser incapaz de se mover, é
estar congelado, paralisado.
Uma linha de pensamento é um caminho.
Pensar sobre X é mover-se em torno de X .
Comunicar é guiar.
Entender é seguir.
Repensar é retomar o caminho.

2. O pensamento é tido metaforicamente como percepção:


Pensar é perceber.
Idéias são coisas percebidas.
Saber é i/er.
Comunicar é mostrar.
Tentar obter conhecimento é buscar.
Estar ciente é receber a informação.
Uma ajuda ao conhecimento é uma /brcíe de luz.
Conhecimento é visão.
Ignorância é cegueira.
Iludir é propositalmente impedir a visão.
Conhecer por uma "perspectiva" é ver de um ponto
de vista ou ângulo determinado.
Explicar em detalhe é pintar um quadro.
Dirigir a atenção é apontar.
Prestar atenção é olhar para.
Ser receptivo é escutar.
Levar a sério é ouvir.
Sentir é cheirar.
Reação emocional é sentimento.
Preferência pessoal é gosto, paladar.

3. O pensamento é visto como manipulação de objetos:


Idéias são objetos manipuláveis.
Comunicar é enviar.
Entender é agarrar.
Incapacidade para entender é inabilidade para agar-
rar, para reter.
A memória é u m armazém.
Lembrar é recuperar.
A estrutura de uma idéia é a estrutura de um objeto.
Analisar idéias é separar objetos.

4. A aquisição de idéias é tida como ato de alimentar-se:


U m a mente que funciona bem é u m corpo saudável.
Idéia é alimento.
Adquirir idéias é comer.
Interesse em idéias é apetite.
Boa idéia é alimento saudável.
Idéias úteis são alimentos nutritivos.
Idéias ruins são a m veneno.
Idéias interessantes e prazerosas são alimentos ape-
titosos.
Idéias desinteressantes são alimento sem sabor.
Provar a natureza de uma idéia é cheirar ou degustar.
Meditar é ruminar.
Aceitar é engolir.
Entender completamente é digerir.
Idéias inaceitáveis são indigestas.
Preparar idéia para ser entendida é cozinhar.
Informar é alimentar.
Idéias substanciosas são o filé.

Há uma dimensão sociopolítica no conceito tradicional


de uma mente fora do corpo, ou de uma inteligência extra-
corpórea. Ela se encontra nas justificativas de várias reli-
giões para a transferência de responsabilidades do viver, dos
indivíduos para entidades divinas e suas entidades represen-
tativas ou para a natureza. A construção e manutenção da
idéia de uma dualidade, ou de uma dissociação entre mente
e corpo, tem servido durante séculos a sistemas políticos e
culturais que se valem dessa premissa para manter e justifi-
car servidão e desrespeito às potencialidades humanas.

Uma reflexão cuidadosa sobre as revelações de George


Lakoff e M a r k Johnson pode nos ajudar a desenvolver nas
organizações um sistema de consolidação do conhecimento
criado em todos os setores e em todos os níveis hierárqui-
cos, simplesmente emulando o aprendizado que se faz por
meio do corpo. U m a organização que reconheça e valorize a
existência de uma mente corporificada em todas as suas cé-
lulas tem uma vantagem extraordinária, pelo seu potencial
de perceber rapidamente os movimentos internos e exter-
nos que significam risco ou oportunidade. Cada indivíduo é
uma antena em sintonia com o Universo. O simples ato de
reconhecer sua capacidade para gerar conhecimento é sufi-
ciente para ativar nele o processamento de toda informação
relevante, em benefício de todo o sistema. N o caso inverso,
quando o indivíduo não se sente parte do organismo, sua
atitude se torna desagregadora.

COMO APRENDEMOS
Quantas empresas cuidam do estado de espírito de seus
colaboradores, pela observação do modo como se sentam,
como se relacionam, como reagem fisicamente a mudanças?
Quantas observam o número de pessoas que ficam doentes ou
estressadas como conseqüência de notícias e boatos que signi-
ficam risco de instabilidade? A gestão avançou muito, nas úl-
timas décadas, na arte do diagnóstico. M a s Lakoff e Johnson
extrapolam em muito a questão do diagnóstico e propõem
uma atitude à frente. Consideram que nossa cultura já está
por demais impregnada de diagnósticos e análises. Propõem
uma abordagem ativa, no sentido de que as organizações de
negócios privados ou estatais assumam uma atitude natural
como geradoras de conhecimento, afinal revelado como um
ativo abundante e fartamente renovado, ao contrário das re-
servas naturais, que se encontram à beira do esgotamento.

Philosophy in the flesh traz referências muito antigas à


forma como aprendemos, algumas delas registradas há m i -
lênios na figura dos mitos. M a s vale a pena citar a clara
influência exercida principalmente sobre o pensamento de
Lakoff pelo filósofo inglês John Austin. E m uma série de
leituras feitas na Universidade Harvard, em 1955, sobre
"como fazer coisas com palavras", Austin descreveu a fun-
ção da palavra em nossa sociedade e o risco de se construir
conhecimento sobre a palavra e não sobre a percepção pura
(que Lakoff e Johnson registram como metáforas).
John Austin observa, por exemplo, o poder simples, mas
definitivo, de algumas palavras que exercitamos ou aceita-
mos naturalmente, como aquelas que produzem aconteci-
mentos: o veredicto, o " s i m " que sela um acordo ou casa-
mento etc. Lembra ainda que convivemos com sociedades
movidas pela palavra: leis, religiões, ritos e a repetição, pela
mídia dos países modernos, de declarações, crenças e parece-
res que são aceitos como verdade irrefutável ou expressão de
conhecimento, pelo fato de serem proferidas por autoridades
formais ou celebridades criadas pela própria mídia. O risco
dessa autoridade da palavra fica claro, por exemplo, quando
a organização precisa investir em tecnologia e o conhecimen-
to técnico define a estratégia. ganha contornos de tragédia,
quando se revela que milhares de indivíduos se dispõem a
sacrificar suas vidas numa luta contra o conceito de socieda-
de que os gestores de negócios representam, motivados por
palavras que lhes prometem o paraíso dos mártires.

Austin lembra que as palavras não contêm toda a verda-


de, mas em geral nós as aceitamos com todo esse poder. Se-
gundo o filósofo, a ilusão da palavra se manifesta quando a
usamos para tentar substituir a realidade, pela razão básica
de que a palavra raramente reflete o inconsciente. A classifi-
cação que ele faz dos tipos de função ilusória pode nos dar
uma idéia de como toda uma cultura pode ser induzida a
enganos pela força de algumas expressões. Austin chama de
palavras "performativas" aquelas que pretendem criar rea-
lidade, e de palavras "constatativas" aquelas com as quais
tentamos explicar a realidade. Lembra que, assim como o
"saber" se dissimula na palavra, muitas palavras em todos
os idiomas são capazes de criar um falso "saber fazer".
Armadilhas como essa se apresentam continuamente aos
gestores, seja sob a forma de consultorias ou publicações es-
pecializadas, seja na figura de gurus das mais variadas linha-
gens. Quando a organização não assume sua missão de criar
conhecimento, isto é, quando não confia nos seus próprios
talentos e inteligências, ela se torna vulnerável a todas as
formas de ilusão que a palavra bem manejada pode produ-
zir. Quando, ao contrário, confia no conhecimento que seus
colaboradores podem criar, o trabalho de consultores exter-
nos produz melhores resultados e os riscos são menores.

O caso da corporação que citei anteriormente, cujos geren-


tes foram induzidos a um otimismo deslumbrado a respeito
das premissas conservadoras sob bandeiras liberais, é típico da
ilusão criada pela palavra. E m nenhum momento, o indutor
daquele estado de espírito havia tido com sua platéia o respeito
suficiente para questionar o próprio sistema eleitoral — base-
ado na ilusão da palavra —, que produzia a autoridade políti-
ca que tanto o entusiasmava. Não que fosse despreparado: ao
contrário, era uma verdadeira sumidade no tipo de conheci-
mento que produz a sociedade perversa em que vivemos.
A natureza humana não muda muito, ou melhor, muda
com mais lentidão do que o conhecimento humano. Vivemos
uma época em que a velocidade das mudanças provocadas
pela informação altera constantemente padrões de compor-
tamento, valores, relações, mas nem por isso a natureza hu-
mana tem sofrido uma revolução. Os sentimentos são basica-
mente os mesmos que moveram os homens na pré-história, o
conflito entre o desejo e as impossibilidades ainda é a princi-
pal causa de angústia e o incremento do nível de consciência
ainda depende de um penoso processo de aprendizado.
As instituições tradicionalmente encarregadas da educação
e da criação de conhecimento ainda trabalham com o acú-
mulo de dados e o exercício da repetição, para incrementar o
aprendizado de seus alunos. Os gestores levam uma vantagem
em seu papel de educadores e de estimuladores do conheci-
mento. Isso se deve ao fato de haver, nas organizações, além
da promessa implícita de uma contrapartida de desenvolvi-
mento para os indivíduos que se empenham pelos resultados,
também um contrato de remuneração evolutiva. M a s essa
vantagem não tem sido muito bem aproveitada, porque res-
tringe seus objetivos quase sempre aos resultados financeiros,
pura e simplesmente. Uma política de metas para a criação
de conhecimento poderia dar um novo sentido às relações de
trabalho e diluir muitos pontos de conflitos internos.

U m a característica da "terceira cultura", perfeitamente


válida para uma organização que cria conhecimento, é que
entre os intelectuais cientistas há maior tolerância a respei-
to de quais idéias podem ser levadas a sério. Isso porque o
triunfo, no ambiente intelectual da "terceira cultura", não é
a disputa marginal por postos acadêmicos, mas a busca co-
letiva do bem-estar por meio do conhecimento: as respostas
que perduram afetam diretamente a vida de todos os habi-
tantes do planeta. D a mesma forma, uma organização pode
definir, como meta de resultados para sua coletividade, que
o conhecimento e a riqueza produzidos por ela afetam dire-
tamente não só sua vida interna, mas também a das famílias
de seus colaboradores, de clientes e fornecedores. U m a ati-
tude como essa pode influenciar até mesmo o meio ambiente
e o futuro da humanidade. a possibilidade de reduzir a
ocorrência de conflitos improdutivos também se oferecerá
como resultado da maior tolerância, como se verifica entre
os intelectuais da "terceira cultura".
Há alguns anos, quando compareci pela terceira vez à
Universidade do Texas, em Austin, para proferir uma pa-
lestra na Knight Chair, a convite do professor Rosental
C almon Alves, pude observar um conflito latente entre dois
docentes que se encontraram no elevador. N o restaurante
do clube dos professores, vários grupos em mesas separadas
me deram a impressão de um ambiente conspiratório. M a i s
tarde, conversando com outro acadêmico daquela universi-
dade por ocasião de u m congresso de comunicação, no R i o
de Janeiro, tive minhas suspeitas confirmadas. Ele me disse
que uma das maiores dificuldades para fazer aprovar proje-
tos, naquela e em muitas instituições de ensino dos Estados
Unidos, era a desconfiança mútua entre adeptos de variadas
correntes políticas, em eterno combate por posições de po-
der. Comentei que no Brasil não era diferente, e me lembrei
das observações de John Brockman a respeito do caráter
reacionário, muitas vezes travestido de progressismo, e ar-
rogante, às vezes confundido com firmeza ideológica, de
muitos pensadores conservadores que dominam as universi-
dades e as empresas.

George Lakoff observa que nossa noção de corpo como


"container" da nossa individualidade produz metáforas
específicas e nos induz a projeções corporais como forma
de entendimento do exterior. Dizemos, por exemplo, que o
gato está em frente à árvore, quando sabemos que a árvore
não tem frente ou costas. D a mesma forma, a idéia de corpo
como "contêiner" nos leva a colocar fora de nós questões
que consideramos abstratas. " M a s a verdade e a razão não
estão no abstrato, fora da mente humana, como se pensou
durante séculos", alerta ele, observando que a noção de ver-
dadeiro e real está relacionada ao entendimento que tiver-
mos incorporado de situações similares.
A extensão empática da noção corpórea amplia nossa
capacidade de incorporar conhecimento. Quanto mais pró-
ximos nos colocarmos de outros indivíduos ou seres, maior
será nossa capacidade de criar conhecimento, pelo desen-
volvimento da habilidade de gerar metáforas. Também é a
empatia que possibilita o conhecimento tácito. Ela amplia
a habilidade humana de identificar similaridades onde não
estão explícitas e, assim, encontrar significados onde eles
parecem não existir. U m gestor excessivamente preso ao seu
"contêiner" não pode ser flexível e criativo. N u m planeta co-
nectado em rede, qual é o futuro de uma organização cujos
gestores se fecham em "contêineres" restritos e se recusam
a esse aprendizado? Há, com certeza, uma relação direta
entre o nível de tolerância de um indivíduo à diversidade à
sua volta e sua capacidade para a aceitação de idéias novas
e para a descoberta de oportunidades.

Para refletir:

1. Q U A L É o SEU MAIOR MEDO? Q U A L A ORIGEM DELE?

2. SE VOCÊ CONCORDA QUE A DIVERSIDADE É U M PATRIMÔNIO,


POR QUE INSISTE E M SE JUNTAR AOS IGUAIS?

3. QUAIS SERIAM OS MITOS DO NOSSO TEMPO, N O AMBIENTE COR-


PORATIVO?
XV—O que falta conhecer

Sir John M a d d o x , editor emérito da revista


Nature, publicou em 1998 u m livro muito
instigante sobre o provável desenvolvimento
futuro das mais avançadas pesquisas cien-
tíficas que havia acompanhado nas últimas
quatro décadas. O livro, intitulado O que
falta descobrir, é u m guia precioso para
quem se interessa em compreender a natu-
reza da tecnologia que estará disponível nos
próximos anos. Freeman Dyson, físico e ma-
temático que se destacou como consultor do
governo americano para assuntos espaciais
e de defesa estratégica, publicou, também
recentemente, o livro Infinito em todas as
direções, no qual analisa a diversidade do
mundo natural e a variedade das reações humanas a esse
mundo. Lições profundas e abrangentes sobre como as pes-
soas percebem a realidade brotam de seu texto e são muito
úteis ao gestor. Nos anos 1970, o físico Fritjof Capra havia
se tornado uma celebridade ao revelar as conexões íntimas
entre a ciência mais avançada e a tradição taoísta, no seu
livro O tao da física. Mais recentemente, o físico Michiò
K a k u vem provocando polêmicas com a teoria das super-
cordas e múltiplos universos.

Acompanhar o desenvolvimento do Projeto Genoma


apenas para saber avaliar as ações de empresas de biotec-
nologia é pouco, diante da fartura de possibilidades que o
conhecimento tem a oferecer por meio da "terceira cultura"
a que já me referi. Aproveitar as revelações dos cientistas
para buscar o ponto de excelência nas capacidades que es-
tão impressas no D N A da empresa, e estimular as células
da organização a produzir metáforas inovadoras e inspira-
doras da gestão, certamente é uma atitude mais inteligen-
te. Promover debates e reflexões sobre projetos científicos
e suas perspectivas também pode produzir novas visões do
negócio e, até mesmo, idéias para futuros produtos ou servi-
ços. M a s , acima de tudo isso, o mergulho do imaginário da
organização no ambiente estimulante da "terceira cultura"
abre perspectivas otimistas e desafiadoras que favorecem a
criação do conhecimento.
Quando a organização consegue embeber boa parte de
seus talentos no ambiente instigante da "terceira cultura",
uma das primeiras constatações que se apresentam é: quan-
to mais se sabe, mais se necessita e se deseja saber. Essa pre-
missa, presente na maioria dos textos científico-literarios,
funciona como uma vacina contra o vírus da auto-sufici-
encia, que costuma rondar os ambientes de alta tecnologia.
Os textos sobre as assombrosas descobertas científicas dos
últimos tempos trazem sempre, nas entrelinhas ou de forma
explícita, especulações sobre o que ainda falta descobrir. A s -
sim, o estímulo à curiosidade permanece e o conhecimento
não se cristaliza precocemente.

FLEXIBILIDADE
Outro fator decisivo no desenvolvimento de uma cultura
que valoriza a curiosidade científica como base para a cria-
ção de conhecimento, é que, com a rapidez das mudanças
na sociedade e nas relações de negócios, a definição de estra-
tégias exige muito mais agilidade. A intuição passa a fazer
parte das competências mais valiosas quando se está sob o
bombardeio de informações. As escolhas devem ter um alto
grau de acerto, pois os processos mais acelerados também
ampliam o risco de danos em larga escala, no caso de de-
cisões estrategicamente equivocadas. O fato de o conheci-
mento científico atuar como inibidor de ilusões e mitos faz
com que a cultura gerada a partir dessa base ofereça mais
segurança para as escolhas intuitivas.

N o entanto, segundo um dos mais renomados estudiosos


de estratégia do mundo, o professor de Harvard Michael
Porter, muitos dirigentes de empresas têm afirmado que as
mudanças no cenário de negócios ocorrem tão rapidamente
que suas companhias não têm como preparar estratégias de
longo prazo. De fato, na opinião de Porter, qualificado no
ambiente da economia digital como tradicionalista e conser-
vador, a maioria das organizações, principalmente as envol-
vidas com alta tecnologia, perde progressivamente a cabeça
estratégica e, correlativamente, a capacidade de formular
conhecimento capaz de alavancar sua presença no merca-
do de forma consistente. Vive-se quase sempre na expecta-
tiva de uma sucessão de resultados a curto prazo, quando,
segundo Porter, a condição fundamental para vencer nesse
cenário é criar o tempo necessário para a elaboração de es-
tratégias consistentes e de longo prazo.

Porter alinha uma série de razões pelas quais a estraté-


gia tem estado ausente das prioridades de gestão. Primeiro,
o sucesso das empresas japonesas, baseado principalmente
em melhorias operacionais e de processo, estabeleceu pa-
radigmas que valorizam o detalhe em detrimento do olhar
mais amplo e de longo prazo. Depois, a abertura de mer-
cados, no final dos anos 80, manteve os gestores ocupados
em aprender a negociar em ambientes estranhos e avaliar as
possibilidades da globalização. Por fim, a partir de meados
da década de 90, a emergência da tecnologia digital impôs
a cultura da velocidade, consolidando em muitos gestores a
noção de que num mundo em transformação não se deve ter
uma estratégia.
A ironia, lembra Michael Porter, é que muitas dessas or-
ganizações velozes são bem sucedidas, embora as oscilações
do valor de suas ações sinalizem algum problema com a con-
fiança que podem incutir a longo prazo. De fato, segundo
Porter, empresas como a Dell, Intel ou Wal M a r t têm uma
estratégia apesar da impressão de que estão sempre mudan-
do, porque entendem que a estratégia não precisa ser rígida.
Pelo contrário, quando as crenças mais profundas informam
a estratégia, a organização adquire mais mobilidade e agili-
dade, porque toda a sua inteligência sabe reconhecer quais
são os pontos sobre os quais não há negociação, e quais
aspectos oferecem as melhores oportunidades para a inova-
ção. C o m essa visão, muitas corporações aproveitam as des-
cobertas dos cientistas para planejar seu posicionamento.

C o m a base no conhecimento científico e a cabeça nas


metáforas essenciais que a filosofia oferece, gestores como
Kenny Hirschhorn, vice-presidente executivo de estratégia,
imaginação e futurologia da Orange P L C , empresa européia
de comunicação sem fio, têm produzido estratégias vence-
doras, mesmo em setores sacudidos por muitas mudanças
tecnológicas. Hirschnorn conduziu a Orange a uma visão
inovadora: a marca é fundada em estilo de vida, não em
tecnologia. Seus valores são universais: os produtos e servi-
ços da Orange têm de ser dinâmicos, amigáveis, inovadores
e confiáveis. Os colaboradores de Hirschnorn são identifi-
cados por funções inusitadas como "imaginador", "embai-
xador de estratégia" (ou pensador com o cérebro direito)
e "cônsul do conhecimento" (ou pensador com o cérebro
esquerdo). Todos na empresa sabem quem são e o que fazem
esses profissionais, porque a cultura da corporação assume,
como fundamental para seu desenvolvimento, a prospecção
de dez ou vinte anos no futuro.
M a s a visão de futuro não vem apenas do conhecimento
científico de ponta: também se aprende muito com o pas-
sado e a História. Nesse sentido, a junção da experiência
com as novas tecnologias pode produzir mais do que uma
conta de somar: o papel estratégico da tecnologia de infor-
mação pode ser multiplicado, se sua aplicação levar em con-
sideração que se trata de muito mais do que simplesmente
organizar dados. C o m a perspectiva de que a deve atuar
como suporte do desenvolvimento coletivo e da criação de
uma mentalidade favorável ao aprendizado contínuo, a ar-
quitetura dos softwares pode ser adaptada para agregar, por
exemplo, descrições de casos marcantes da história da orga-
nização ou do setor, com relatos, gráficos e fotografias.

A maior utilidade da tecnologia está em agregar as infor-


mações num contexto que atraia e encante as pessoas, inte-
grando-as num mesmo círculo de interesses, transformando a
diversidade de suas formações e a variedade de estilos de cada
unidade em fator de convergência. As descobertas da biolo-
gia são uma fonte preciosa para a busca de uma arquitetura
de sistemas que possa representar a diversidade encontrada
na natureza, e imitar a forma como as variadas espécies se
apoiam umas às outras em favor da preservação e da evo-
lução da vida. Informações fragmentadas são tão inúteis e
perigosas quanto são vulneráveis e potencialmente hostis os
indivíduos desagregados de sua espécie e de seu ambiente.
N o caso da tecnologia de informação, e de muitas outras
ferramentas que estarão disponíveis em larga escala para os
gestores, o aprendizado com a História exige mais elabora-
ção, uma vez que essas tecnologias representam uma ruptu-
ra e não encontram referência no passado. A insistência de
algumas organizações em manter a nova tecnologia sob o
manto restritivo do controller ou da contabilidade — seto-
res normalmente avessos a novidades e focados em controle
de custos —, tem sido a causa de equívocos estratégicos e de
maus investimentos em T.I. A tentativa de muitas empresas
de utilizar os novos bancos de dados digitais da mesma for-
ma que eram usados os antigos métodos de catalogação, por
exemplo, provocou muitas perdas até o ano 2000. Isso ocor-
reu pelo deslumbramento com as possibilidades de arquiva-
mento e manipulação de dados, que levou a investimentos
em negócios para os quais certas organizações não tinham
a menor vocação. De repente, da mais vasta ignorância bro-
taram "especialistas", que julgavam ser possível entender a
nova realidade simplesmente acrescentando o signo e-, antes
de qualquer expressão ou formulando trocadilhos "criati-
vos" com o sinal @.

D a ação desses "e-quivocados" resultou, após a quebra-


deira do segundo trimestre de 2000, uma retração no uso das
tecnologias digitais, com o triunfo do conservadorismo em
plena revolução tecnológica. Assim, ferramentas poderosas
passaram a ter sua utilização restringida a controle de pro-
cessos, vendas e pesquisas online de produtos já existentes
para mercados que já eram explorados. As perdas de muitos
bilhões de dólares com empresas pontocom deveriam deixar
bastante claro que a bolha nasceu da associação da ilusão
tecnológica — de que padecem muitos especialistas desa-
tentos à riqueza de sutilezas da gestão — com a ambição
cega de investidores. Os preços de projetos para a Internet
chegaram a variar em mais de 2 0 0 0 % entre 1997 e 1999, o
que por si deveria sinalizar que algo estava errado.
O risco agora é de origem inversa: escaldados pelo de-
sastre de 2000, muitos gestores e investidores se recusam a
encarar a necessidade de inovar e buscar recursos tecnológi-
cos que permitam às suas empresas se descolar da massa de
lugares-comuns em que o mercado vem se transformando.
U m olhar atento sobre o avanço das ciências e o futuro das
tecnologias, aliado a um esforço pela criação de conheci-
mento nas organizações, podem compor um bom antídoto
contra o perigo da estagnação e do retrocesso. Quem conhe-
ce ciência, adivinha a tecnologia.
Uma leitura nos relatos de cientistas sobre as pesquisas
avançadas em inteligência artificial, por exemplo, revela
uma forte redução dos investimentos nas áreas tidas como
emuladoras da inteligência humana naquilo que ela tem de
mais sofisticado, que se relaciona à consciência, e à concen-
tração de investimentos nas áreas operacionais e racionais
da inteligência humana. São promissoras, portanto, as áreas
de automação avançada, muito comumente associadas à na-
notecnologia, para operações em ambientes microscópicos,
e as tentativas de emular o sistema nervoso central, o que
deve resultar em novos conceitos de computação nos próxi-
mos dez ou quinze anos.

Portanto, conjeturar sobre um futuro de robôs conscien-


tes e operários-padrão não sindicalizáveis é mais uma ilusão.
A produtividade futura está na educação de toda a organi-
zação para interagir com instrumentos de altíssima capaci-
dade de processamento, capazes de reconhecer padrões e,
portanto, fazer escolhas acertadas e até mesmo, em certa
medida, menos vulneráveis a erros do que o próprio ser hu-
mano. N o entanto, durante muito tempo ainda será neces-
sário que o ser humano alimente a máquina. Não apenas
com os padrões, mas também com as variáveis que brotam
do ambiente social. A junção entre a automação avançada
e reproduções razoáveis do cérebro humano no que ele tem
de funcional, ou seja, a agregação de algum arbítrio à inte-
ligência artificial, só é esperada pelos mais otimistas para
depois de 2050.
CIÊNCIAS DA VIDA
Durante muito tempo, os paradigmas indicarão como
de bom senso o compartilhamento das funções de criar
conhecimento na organização, por razões variadas. Entre
elas, o fato de que as relações econômicas e sociais i m -
põem, como características das tecnologias eleitas como
auxiliares da gestão, que sejam amigáveis, flexíveis e so-
ciáveis no sentido de respeito às necessidades, hábitos e
estilos dos usuários internos ou externos e integráveis
com outras tecnologias. Também é recomendável que as
escolhas de aplicações comecem a se deslocar dos usos
operacionais para representações de conhecimento e si-
mulações de problemas reais. M a s para isso é preciso fa-
zer u m grande esforço na educação de todos os usuários,
sem o que não será possível alcançar índices aceitáveis de
produtividade.

A atual estrutura das organizações de negócios governa-


mentais ou privados não reproduz o estilo das sociedades de
todos os tipos, que geraram o caso de sucesso que é a vida
no planeta Terra. Revelações do Projeto Genoma são úteis
para a elaboração de planos que utilizem ao máximo os po-
tenciais da empresa, aqueles que estão impressos no D N A
da organização desde sua fundação. Algumas corporações
já estão criando grupos de conversação sobre temas científi-
cos e tirando dessas reflexões idéias para novos produtos, e
até para novas maneiras de fazer negócio. N a Har var d Busi-
ness School, o mexicano Juan Enriquez organizou o projeto
Ciências da Vida, que vem tornando disponível uma visão
interdisciplinar de como a revolução das ciências biológicas
transformará o mundo dos negócios.
" A única infraestrutura que conta hoje é gente", afirmou
Enriquez em entrevista a Alan Weber, diretor da revista Fast
Company, na qual anunciou o lançamento do primeiro traba-
lho relacionado a esse projeto: o livro Como o futuro apanha
você: como o genoma e outras forças estão mudando sua vida,
seu trabalho, sua saúde e sua qualidade de vida. Ele conside-
ra que o maior risco de um crash na economia global não se
origina na volatilidade dos mercados ou em fatores geopolíti-
cos, mas resulta de um vácuo de conhecimento, que pode ser
ocupado por pessoas despreparadas ou com os valores inade-
quados. "Temos de assegurar que quando fazemos escolhas
como sociedades, as pessoas as entendem, concordam com elas
e as apoiam. Caso contrário, o sistema caminha para a falên-
cia", afirma Enriquez. A quebra da gigante da energia Enron
e o escândalo da WorldCom, a segunda maior operadora de
telefonia de longa distância dos Estados Unidos — com seus
ingredientes de malversação, incompetência e má-fé —, são
sintomas claros de que esse risco pode estar muito próximo.

As sucessoras de empresas como Cisco Systems e Microsoft


poderão ser companhias de ciências da vida, como a Celera, que
não existia em 1995 e hoje possui o mais potente computador
do mundo, observa Juan Enriquez. Algumas das organizações
da era da informação já saltam para a fase mais avançada da era
do conhecimento, como a I B M . Seu maior projeto desde 1999
é o Blue Gene, um programa científico dedicado a desenvolver
simuladores biomoleculares com o objetivo de acelerar o avanço
da proteômica, a nova ciência sobre o funcionamento das proteí-
nas. a Sun Microsystems, que, associada à Oracle, à integra-
dora de sistemas C G I e à Caprion Pharmaceuticals, investe num
ambicioso projeto de biologia celular com o mesmo objetivo.
Instalado na intersecção da ciência com a economia e
a política, Juan Enriquez representa o protótipo do profis-
sional da era do conhecimento. Não importa o que falta
descobrir. Ele já entendeu o sentido da evolução que deve
ter a cultura, para que as relações de todo tipo, desde o i n -
vestimento em pesquisa científica à formulação de políticas
públicas, até a gestão dos negócios, resultem numa socieda-
de onde as instituições de todos os tipos — especialmente as
organizações de negócios, que produzem riqueza — joguem
em favor da felicidade do ser humano.

D o seu trabalho, resultam importantes subsídios para


organizações que perceberem a urgência e a conveniência
estratégica de valorizar o capital conhecimento sobre um
painel de premissas que têm como valor principal a guinada
no desastre que vem, há décadas, destruindo as reservas na-
turais, colocando sob risco o processo civilizatório e condu-
zindo a humanidade a uma crise sem precedentes. Quando
os ganhos do desenvolvimento são assentados sobre u m sis-
tema desigual e perverso, os próprios recursos da moderni-
dade são causadores de sobressaltos e perdas que, no longo
prazo, representam sofrimento para toda a humanidade.

Para refletir:

1. " A ÚNICA INFRAESTRUCTURA QUE CONTA HOJE É G E N T E " .

2. É POSSÍVEL CRIAR U M SISTEMA QUE PRODUZA RIQUEZA FELICI-


DADE GERAL?

3. HÁ U M LIMITE PARA O CONHECIMENTO HUMANO?


XVI—A dor da modernidade

A invenção da linguagem digital, que deu ao


ser humano a habilidade de criar aparelhos
capazes de transcender a capacidade huma-
na de processar informações fora de sua es-
trutura corporal, é o ponto de partida para a
revolução que apresentou sua primeira gran-
de conta em setembro de 2001. A o dar par-
tida na máquina que multiplica o raciocínio
e seu potencial de produzir conhecimento, o
homem ocidental quebrou todas as barreiras
geográficas e culturais, e impôs a moderni-
dade aos mais remotos confins do planeta.
Assim como a presença do ser humano
nos grotões da África fez explodir a tragédia
da AIDS na sociedade que se havia libertado
dos tabus sexuais, a notícia da modernidade em aldeias re-
motas, ainda mergulhadas na era pastoril, abalou estruturas
sociais e de poder e acabou por alimentar o processo que
resultou nos atentados terroristas nos Estados Unidos e na
Espanha. A globalização se dá em pistas de mão dupla. A o
carregar consigo os valores colonialistas da era industrial,
ela opõe de forma inconciliável o homem "digital", que se
crê capaz de dominar uma gama cada vez maior de variá-
veis da realidade, e o homem "pr imitivo", para quem quase
todas as variáveis do cotidiano são dependentes do arbítrio
e dos caprichos de uma divindade.

Assim como o Alcorão soa incompreensível e até patético


para o cidadão novaiorquino típico — quando, sob o selo de
ser " a única e verdadeira palavra de Deus, revelada a M a o -
mé", determina que todo infiel seja punido severamente — ,
o muçulmano de uma aldeia do Afeganistão não tem como
significar um mundo no qual as pessoas se vestem como qui-
serem, as mulheres exibem porções generosas de seus corpos
e os filhos contestam as crenças de seus pais e todos conti-
nuam vivendo juntos. Para o cidadão do mundo, até o dia
11 de setembro de 2001, o indivíduo de turbante era apenas,
quando muito, uma curiosidade nos aeroportos ou super-
mercados. Depois daquela data, ele conclui com horror que
ambos não cabem no mesmo planeta. Então, a dor da mo-
dernidade começa a se manifestar no entendimento de que
uma das maiores conquistas da civilização — a percepção da
diversidade como riqueza — pode ser seu calcanhar de A q u i -
les e talvez tenha de ser sacrificada no altar do liberalismo.
O diálogo global se torna ainda mais difícil, se acres-
centarmos ao cenário o componente da exclusão digital de
parcelas imensas da humanidade. A invenção da linguagem
digital revoluciona o mundo, pela capacidade que propor-
ciona ao ser humano de dominar u m número crescente de
variáveis da realidade objetiva. O que o coloca mais distan-
te do indivíduo mergulhado em uma sociedade tribal, sob
o governo de sacerdotes cuja função social é, exatamente,
afastá-lo do desejo de controlar essas variáveis, entregando-
as à autoridade religiosa.

O paradoxo da liberdade como conquista e, ao mesmo


tempo, como fissura no edifício das modernas sociedades
ocidentais, tende a se agravar. Essa percepção de que al-
gumas regras, fundamente incrustadas em nosso modo de
vida, aparentemente deixam de fazer sentido n u m período
extremamente curto, produz nos indivíduos a sensação de
quebra de uma ordem muito segura. C o m a percepção cla-
ra de que as mudanças estão apenas no começo, a reação
pode ser o desespero e o crescimento de crenças apocalíp-
ticas, mesmo em nichos ditos civilizados. M a s ela também
pode se configurar em atitudes construtivas, no sentido de
buscar uma nova ordem que abrevie o período de caos. A
diferença entre uma e outra resposta pode ser sentida em
todas as crises e em todos os tipos de organização, desde as
famílias até corporações de negócios ou nas grandes con-
centrações urbanas.

CAOS ORDEM
A filósofa e psicóloga Danah Zohar, autora de livros
como Inteligência espiritual, observa que, em geral, os indi-
víduos conscientes de uma natureza da vida humana como
processo permanente de evolução assumem, nesses momen-
tos de caos, uma atitude de reflexão criativa que conduz as
pessoas à significação do momento vivido e a um rápido
estágio de acomodamento e serenidade. Indivíduos assim,
afirma ela, são dotados de alto quociente de inteligência
espiritual. Estão sempre prontos a enfrentar o desafio das
transformações e rupturas porque, em todos os momentos
de suas vidas, costumam questionar sua percepção da rea-
lidade e simular mentalmente as possibilidades de quebra
dessa ordem. Pessoas que não desenvolvem a inteligência
espiritual estão sempre assombradas com mudanças e insta-
bilidades. Tornam-se vulneráveis ao desespero e à manipu-
lação de outros pobres de espírito, que só enxergam na crise
oportunidade para obter vantagens individuais.

O psicólogo Richard Flach já havia definido como "re-


siliência" o conjunto das forças psicológicas, espirituais e
biológicas exigidas para atravessarmos com sucesso as mu-
danças em nossas vidas. Ele estudou as rotinas de pessoas e
grupos que superam catástrofes e reinventam suas vidas, e
observou que o traço em comum entre elas era a capacidade
de tomar posse de seu destino. Eram, em geral, indivíduos
criativos, resistentes à dor, dotados de grande percepção de
si próprios e de suas circunstâncias, de espírito independen-
te, respeitosos consigo mesmos, hábeis para renovar a auto-
estima, capazes de aprender e de fazer e manter amizades.
Pessoas resilientes são tenazes — resistentes e flexíveis.
A resiliência ou tenacidade, segundo Flach, não é só
uma questão psicológica, mas também física, porque exige
um bom funcionamento dos processos fisiológicos, mesmo
quando excitados pelo estresse e ativados além da norma-
lidade. É também espiritual, porque nenhum trauma, ne-
nhum evento causador de estresse pode ser capaz de atingir
a essência ou tema central da nossa existência. A recupera-
ção após um fato estressante depende, portanto, de u m bom
estado físico e de um espírito que opera como uma reserva
de energia vital.
O processo de desintegração por que passa um indiví-
duo ou toda uma sociedade, como ocorreu com milhões de
pessoas após os atentados de 11 de setembro, é natural e
repetitivo durante nossa existência. Quem não se permite
desintegrar em meio ao caos corre o risco de cair num es-
tado de disfunção crônica, que pode conduzir a u m estado
de autismo. Indivíduos ou grupos monolíticos tendem a se
isolar progressivamente, por temor às rupturas, e passam a
enxergar o exterior como fonte de risco. Não deve causar
estranheza, portanto, que, após o choque dos atentados, os
grupos extremistas da direita americana tenham se assanha-
do como na década de 1960.

N a verdade, o desespero diante das grandes rupturas é


apenas a repetição em escala ampliada da angústia funda-
mental que nasce do antagonismo entre a noção indefini-
da de uma natureza humana gloriosa, presente em todos
os seres como uma vaga lembrança de um estado primai
paradisíaco, e a circunstância humana delimitada e restrin-
gida pela realidade. O horror provocado pela consciência de
que a ordem mundial pode ser quebrada, pela ação de u m
punhado de pastores vindos de uma remota aldeia da Ásia
Menor, despedaça a ilusão de uma modernidade que vinha
rapidamente, e de maneira impositiva, afirmando a possibi-
lidade de uma vida com menos sobressaltos. De repente, as
maravilhas da modernidade, como o Projeto Genoma, a i n -
teligência artificial, os planos de viagens no espaço exterior,
começam a parecer ainda mais distantes, como se o conflito
com o "primitivo" adiasse o paraíso da modernidade.
Pior: neste novo cenário, o Genoma pode ser o berço
de um terrorismo ainda mais monstruoso, no qual um gene
modificado pode ser inoculado em centenas de indivíduos
encaminhados para potenciais carreiras estratégicas e pro-
gramado para produzir, dez anos depois, um surto destru-
tivo. A inteligência artificial pode ser a chave para hackers
do futuro, treinados para alterar rotas de aviões, rotinas de
usinas nucleares, operações financeiras e programas usados
na monitoração de operações de fracionamento em indús-
trias químicas. Sem o exército de operários que nos velhos
tempos punham olhos, ouvidos, olfato e intuição no con-
trole da qualidade e segurança dos processos industriais, a
tecnologia, em vez de libertadora, pode se tornar inimiga.

O indivíduo "moderno" se apega aos ícones da moderni-


dade como se fossem sua pátria real, ampliando e reduzindo
sua noção geográfica de nação, conforme o espectro de onde
tira a sensação de poder e bem-estar por "pertencer" a essa
comunidade de valores. Se o prazer e o "poder" vêm de uma
conquista do seu time predileto, sua nação é sua "galera";
se as sensações de prazer e "poder" vêm de um filme de su-
cesso, sua nação é aquela confraria sem limites geográficos,
dos "bons" que vencem os "maus". Sua vida se projeta em
direção ao futuro, sempre em consonância com perspectivas
de prazer continuado, ou de promessas de continuidade na
percepção desse prazer. O indivíduo que se contrapõe a essa
percepção é considerado por ele " p r i m i t i v o " . D o outro lado
do grande espectro da humanidade, está aquele que amea-
ça bombardear os sonhos da modernidade. Este, que não
encontra espaço gratificante no mundo moderno, considera
que o futuro só o distancia da real felicidade, que consiste
em cumprir quietamente seu tempo de vida. Pois, para este,
a idade de ouro da sociedade humana já passou há centenas
de anos, e tudo que se seguirá é ilusão.

A diferença básica entre u m e outro é que o "moderno"


está sempre em busca de ampliar as fronteiras do seu ego,
enquanto o " p r i m i t i v o " conta com o prêmio da plenitude do
ego como recompensa da sua vida de privações. Para um, o
paraíso pode ser vivenciado imediatamente, em suaves pres-
tações. Para outro, poupa-se para o usufruto posterior mas
permanente. U m vive intensamente seu universo cultural de
imagens sempre renovadas, e se compraz nessa sucessão de
novidades visuais. O outro pode se deliciar durante toda a
existência com o mesmo cenário de dunas ou montanhas
pedregosas e a repetição diária de suas rotinas artesanais.
se compraz na certeza de que tudo está e estará eternamente
no seu exato lugar, pois — maktub — está escrito.

Mesmo que ambos se considerem, excludentemente, a


personificação da vontade última de u m deus ou da evolu-
ção, a lição da natureza, que faz conviver espécies altamente
desenvolvidas com versões ancestrais da mesma linhagem,
não parece ter sido apreendida na convivência entre " m o -
dernos" e "primitivos" colocados no mesmo habitat virtual
por força da globalização. Assim como instintos ancestrais
assombram eventualmente a consciência que se considera
mais elaborada, e colocam sob risco todos os ganhos da
evolução do indivíduo, a expressão das sociedades "primiti-
vas" espanta, assombra e enraivece a comunidade "moder-
n a " . Seja na figura de terroristas que explodem edifícios, de
índios que bloqueiam rodovias em protesto contra a ocupa-
ção de suas reservas, de agricultores sem terra que desfilam
pelas cidades e invadem edifícios públicos para exibir sua
condição de excluídos, ou dos mendigos que se atrevem a
expor publicamente suas misérias.

O INFERNO M O D E R N O

A dor da modernidade também se expressa na compre-


ensão — reforçada na luta diária dos cidadãos comuns pela
sobrevivência — de que o próprio sistema econômico, que
resulta da modernidade e a sustenta, é um monstro consti-
tuído pela contradição entre seu extremo poder e sua frágil
capacidade de significação moral. Se, no fundo, o indivíduo
anseia por viver como um ser moral, até mesmo para me-
recer os prazeres que conquista, e, portanto, poder gozá-los
com mais plenitude, até mesmo a inclusão, como privilégio,
é para ele motivo de sofrimento, na medida em que não se
pode dissociar dessa consciência do paradoxo. Está nesse
estado de sofrimento o bolsista brasileiro que, de uma uni-
versidade americana, despacha mensagens eletrônicas con-
denando o "terrorismo global americano". Seu bem-estar é
seu inferno, seu conforto é sua condenação.

Outra expressão dolorosa da modernidade nasce da


constatação de que o assombroso avanço do conhecimento
científico, do qual resultam tecnologias capazes de ampliar
nossa percepção de mundo e recursos avançados para dar
mais longevidade e bem-estar às nossas existências, não tem
sido suficiente para aliviar nossas angústias. As mais fartas
e variadas fontes de entretenimento, os recursos para comu-
nicação que podem satisfazer nossa curiosidade e estimular
a imaginação também amplificam nossos desejos. Então, es-
tende-se a distância entre aquilo que passamos a almejar e o
que realmente podemos obter. Segundo Freud, essa pode ser
a razão pela qual muitas pessoas assumem uma "estranha
atitude de hostilidade para com a civilização".

A construção de uma ideologia do consumo, como co-


rolário do processo de globalização, certamente está na raiz
dessa incapacidade de satisfação das grandes massas de ci-
dadãos reduzidos ao papel de consumidores. Por u m lado,
a mensagem que estimula o consumo tem como discurso
central a conquista de novos níveis de vida, pela aquisição
de bens e serviços, e a consolidação desses novos patamares
como certificação de pertencimento social. Por outro lado, o
avanço constante da tecnologia coloca seguidamente novos
patamares a serem alcançados, e gera nos indivíduos um
estado de permanente insatisfação. O círculo se fecha.

A o mesmo tempo, o maior risco de exclusão, renovado


no ciclo cada vez mais curto das crises, mantém alto o nível
de ansiedade quanto ao fim apocalíptico de toda capacidade
de sobrevivência. A síndrome de fim do mundo, que se aba-
teu sobre milhões de indivíduos após os ataques aos Estados
Unidos e se agravou, u m ano depois, na Espanha, sintetiza
as sensações de final dos tempos que varriam as camadas
mais vulneráveis da sociedade globalizada nos últimos anos.
Só que agora dói dentro do sistema.
M a s ainda é correto chamar de crises as sucessivas on-
das de perdas e sobressaltos que assolam os mercados mun-
diais? Quando constatamos que a crise se apresenta como
um estado permanente, apenas aliviado eventualmente por
episódicos hiatos de equilíbrio com alguma prosperidade, é
preciso repensar a terminologia, para evitar a continuidade
de uma ilusão perigosa. O sistema já não é capaz de ofere-
cer respostas para as demandas mais simples da humani-
dade: paz, para gerar prosperidade, e recursos sustentáveis
para alimentar uma perspectiva de futuro. Os organismos
internacionais não têm estatísticas confiáveis dos conflitos
regionais que aconteceram nos últimos trinta anos em todo
o mundo, mas sabe-se que o número de mortos em "tempos
de paz" ultrapassa a casa do milhão. Nesse mesmo período,
a economia mundial cresceu cerca de 200%. M a s aponta,
em contrapartida trágica, segundo ex-diretores do Banco
M u n d i a l , um aumento do número absoluto de pobres, de 2
bilhões em 1970 para mais de 2,5 bilhões em 2003.

Esses números talvez nos ajudem a redirecionar as pre-


missas que têm servido de base para as afirmações de muitos
analistas, sacadas pela imprensa após o 11 de setembro, se-
gundo as quais o conflito cujo marco foram os atentados nos
Estados Unidos representa o choque de duas civilizações in-
capazes de conviver pacificamente. A julgar pelos indicado-
res tão ao gosto dos analistas, é mais razoável concluir que
os conflitos surgem em função das distorções dos dois siste-
mas. Assistimos ao choque das ignorâncias, como definiu o
ensaísta palestino Edward Said. N e m os adeptos do terror
político representam o islamismo, nem os autores do terror
econômico são os representantes da civilização ocidental.
A idéia de que o desenvolvimento da civilização, como a
conceituamos no Ocidente, corresponde à progressiva elimi-
nação das causas de sofrimento, ficou impregnada no ima-
ginário coletivo, de tal maneira, que os indivíduos custam
a aceitar a realidade das perdas e frustrações. A ilusão de
que vivemos a pós-modernidade, aceita pela maioria esma-
gadora dos intelectuais com acesso à mídia, reforçou na so-
ciedade ocidental a crença de que tudo pode ser remediado
pela droga correta, pela terapia adequada, pela negação da
realidade.

O anúncio do Projeto Genoma foi seguido de milhares


de páginas e muitas horas de comentários sobre um futuro
sem doenças; alguns avanços na tecnologia da informação
autorizaram teorias sobre uma sociedade completamente
entregue ao lazer. Promete-se longevidade saudável e plena
capacidade sexual para sempre. N o entanto, o cenário de
ficção científica se transforma em filme de terror, e a huma-
nidade entra em pânico após a revelação de que meia dúzia
de envelopes com o vírus do antraz foram enviados a jorna-
listas, políticos e outras celebridades. E m todo o noticiário
e nas entrevistas realizadas na Europa, nos Estados Unidos
ou na América Latina, um clima de apocalipse predominou
sobre o imaginário coletivo, e produziu no seio da moderni-
dade os mesmos chavões e palavras de ordem gritados pelos
mulas nas manifestações de muçulmanos contra o "demô-
nio infiel".

Pesquisas publicadas periodicamente pela imprensa i n -


dicam que, na percepção dos indivíduos adultos, o mundo
de hoje é sempre pior e mais angustiante do que o mundo
de sua infância. Passados mais de 3.200 anos das pregações
de Zaratustra (ou Zoroastro, segundo a tradição grega), os
seres humanos ainda se angustiam com as impossibilidades
do dia-a-dia porque crêem num mundo perfeito e organiza-
do, livre de todas as crises e angústias. Quando a tecnologia
— insistentemente apresentada como a alternativa indolor
para a passagem entre o mundo caótico sempre presente e a
possibilidade futura do paraíso — é apropriada pelo " i n i m i -
go" para produzir sofrimento e morte, as pessoas a rejeitam,
por não serem capazes de abandonar a ilusão do paraíso.

AINDA ZARATUSTRA
A o prometer um futuro de lazer permanente e plena
bem-aventurança, a modernidade repete a mais antiga dou-
trina cósmica remanescente dos primeiros grupamentos de
pastores que deram origem a uma nação. Por uma dessas
ironias da História, o conflito que teve seu estopim em N o v a
York foi se consolidar na região do atual Afeganistão, local
provável onde o sábio Zaratustra elaborou e difundiu as
crenças que influenciaram o judaísmo e se encontram nas
origens tanto do cristianismo como do islamismo e que ain-
da embalam o imaginário de cidadãos cosmopolitas nas ci-
dades mais modernas do planeta. Zaratustra deixou como
legado a hipótese da redenção total da humanidade. C o m
ela, após o combate final entre as forças divinas da ordem
cósmica e as forças demoníacas do caos, surgiria a era da
perfeição, quando seríamos todos seres angelicais. Não foi
esse exatamente o tom que unificou os discursos do líder
terrorista Osama bin Mohamed bin Laden e do presidente
George W. Bush, líder da nação mais poderosa do mundo
civilizado?

O que houve com a humanidade desde 1.400 ou 1.200


a.C, quando esses ensinamentos se espalharam pela Ásia
Menor? De todos os lados do espectro de civilizações em
que o mundo se classificou, permanecem como fantasmago-
rias as palavras de Zaratustra, que prometem a aniquilação
do inimigo " i n f i e l " e o paraíso eterno aos justos para depois
do apocalipse. M e s m o no mais sobremoderno dos salões
metropolitanos, a idéia de um confronto final, de u m julga-
mento definitivo, ainda permanece como pano de fundo de
crenças e ideologias, a espantar a hipótese do Armagedon
diário, do juízo imediato e permanente que são o fundamen-
to da realidade objetiva de todos os indivíduos.

A dor da modernidade recrudesce na percepção de que


ninguém escapa do seu próprio juízo, do seu apocalipse par-
ticular, da tarefa dolorosa de construir um significado em
meio ao caos. A missão da consciência humana diante da
natureza está simbolizada há 4.500 anos, situada na mito-
logia chinesa, quando o semi-deus Fu C h i , filho do deus do
trovão, inventou os hexagramas com os quais se pode inter-
pretar o Universo. C o m aqueles signos, os homens não ape-
nas puderam calcular o volume de pedras e terra que preci-
sariam deslocar para domesticar o R i o Amarelo e o Yangtsé,
criando, assim, u m lugar para plantar e viver. M a s também
souberam criar o I-Ching, complexo de conhecimentos com
os quais podem representar sua localização no universo, seu
tempo de vida, as épocas de agruras e os períodos de bem-
estar, o tempo de viver e o tempo de morrer. A combinação
de linhas contínuas e linhas interrompidas que compõem
esse saber é semelhante, na origem, à combinação de 0 e 1
que forma a linguagem digital.
E m algumas organizações, líderes visionários entenderam
o significado desses sinais e os utilizam para ampliar sua per-
cepção da realidade. Convivi, como assessor de comunicação
corporativa, com o presidente de um grupo de indústrias que
confiava plenamente na intuição informada pelo I-Ching.
N u m dos momentos mais críticos para a companhia, quando
ela ao mesmo tempo era considerada a empresa mais bem
posicionada mundialmente no setor e, paradoxalmente, so-
fria uma terrível crise de caixa, esse executivo consultou o
I-Ching e distribuiu entre seus diretores e gerentes uma cópia
das reflexões que colheu. C omo resultado, o ambiente se de-
sanuviou e o grupo seguiu unido até o encaminhamento de
uma resolução da crise, dois meses depois.

Também na Cabala judaica, e em muitas outras fontes de


conhecimento, sobre as quais se montou o tabuleiro das cul-
turas que hoje se entrecruzam na sociedade em rede que ca-
racteriza a globalização, a humanidade tem podido alcançar
um elevado grau de percepção sobre o processo de rupturas
e consolidação que constitui a própria existência. U m siste-
ma econômico que pretende vender a ilusão de um universo
estável e prazeroso sem lugar para as angústias inerentes à
vida, não pode ter respostas para as inquietações que ele
mesmo provoca.
Quando era possível viver em aldeias, com famílias mais
sólidas, empregos mais estáveis, valores mais claros e insti-
tuições mais fortes e protegidas, também precisávamos de
indivíduos e organizações mais resistentes e menos flexí-
veis. As causas da dor eram sempre externas. Nos imensos
e densos aglomerados urbanos em que as famílias são mais
frágeis, o emprego é apenas uma possibilidade, os valores
morais fluem segundo a moda e as instituições são sinónimo
de crise, a flexibilidade e a firmeza tornam-se uma dupla exi-
gência e a dor é muitas vezes provocada pela incapacidade
de aceitar a mudança.
M a s a ruptura está posta e, como há milhares de anos,
repetimos que o inferno são os outros e quase aceitamos um
desígnio divino como justificativa para uma provável suces-
são de conflitos sangrentos. Quando a percepção de plenitu-
de da modernidade começa a sugerir exercícios de emanci-
pação e liberdade moral do ser humano diante do Universo,
pode parecer a muitos que "algumas mortes" são inevitáveis
para a defesa da civilização. É a persistência do sacrifício
humano, em novos rituais a que assistimos via satélite. U m
sistema que ainda se justifica na hipótese de assassinatos em
massa como "ocorrência" é um sistema vulnerável. Existiria
uma qualidade essencial que o protegesse de si mesmo?

Para refletir:

1. Q U A L É A QUALIDADE ESSENCIAL QUE GARANTE A SUA EMPRE-


GABILIDADE?

2. O QUE VOCÊ PRECISA SABER PARA DESENVOLVER PROGRESSIVA-


MENTE ESSA QUALIDADE?

3. O QUE VOCÊ ENTENDE POR CAPACITAÇÕES EVOLUTIVAS?


XVII—A qualidade que protege

Qual a qualidade do conhecimento que pode


proteger o indivíduo, uma organização de
negócios — ou a própria sociedade moderna
— contra a deterioração inevitável em uma
situação de conflito crônico e permanente?
E m nome de que valores o u instituições se
produzirá esse conhecimento, uma vez que
as instituições historicamente vinculadas
à modernidade são crescentemente vistas
como cúmplices do sofrimento social, o u ,
no mínimo, como ineficientes na proteção
dos indivíduos? Vale a pena preservar insti-
tuições que se consolidam como avalistas de
um racionalismo cada vez mais associado a
exclusão e perdas?
Alguns fenômenos perversos derivados do que se con-
venciona qualificar como pós-modernidade, como a cultura
das drogas, a violência social e o culto da irresponsabilidade
na mídia, apontam para o desmanche das normas fundadas
nos pressupostos do processo civilizatório e fundadoras da
própria modernidade.

Negócios cujos gestores têm como missão apenas buscar


resultados para os acionistas, garantindo assim suas próprias
carreiras e bons proventos, não se encaixam no perfil que
surge como tendência de futuro no cenário econômico. E m
função da própria falência do sistema em garantir desenvolvi-
mento sem risco de extinção da própria espécie humana, um
número crescente de empresas de diversos setores vem obten-
do resultados satisfatórios e evitando instabilidades ao desen-
volver a cultura da responsabilidade social e ambiental. N o
Brasil, as companhias associadas ao Instituto Ethos — E m -
presas e Responsabilidade Social — já representam 27% do
produto interno bruto. E m todo o mundo, o balanço social
de organizações como essas já constitui fator determinante
para a escolha de um número crescente de investidores.

A associação internacional Business for Social Responsi-


bility (BSR) atraiu em pouco mais de dois anos de ativida-
des mais de 1500 empresas, cujas receitas anuais chegam a
quase 2 trilhões de dólares e empregam mais de 6 milhões de
trabalhadores. Sua conferência anual e seus seminários re-
gionais são disputados por executivos de consultorias como
a fonte de um novo conhecimento que se consolida rapida-
mente em novas práticas de negócios. Seus relatórios sobre
avanços no balanço social do sistema econômico mundial
vêm definindo uma nova visão do mercado globalizado,
cujo centro é o respeito ao ambiente e a partilha dos resul-
tados em favor do desenvolvimento humano sustentado. A
ação da BSR se reflete em setores tão diversos como o gover-
no do Cazaquistão — que criou u m seguro contra corrup-
ção para empresas que querem investir no país — e a joint
venture entre a Cargill e a D o w Chemical para a produção
de um plástico que substitui fibras sintéticas de petróleo por
compostos vegetais.

N o setor financeiro, o conceito de eco-eficiência passa a


ser um diferencial importante na análise de projetos indus-
triais, e não apenas com relação ao custo representado pela
securitização de instalações e risco de danos ao ambiente,
ou de indenizações a consumidores e comunidades. Políticas
de respeito aos recursos naturais, relacionamento respeitoso
com a comunidade e boas práticas de governança corpora-
tiva estão consolidadas na lista de checagem de consultores
financeiros em relação ao potencial dos empreendimentos.
O relatório anual sobre fundos eco-eficientes, realiza-
do pelo Instituto Financeiro para a Sustentabilidade Global
(FIGS, na sigla em inglês), observou que, de 26 fundos eco-
eficientes, comparados com os paradigmas do mercado, 19
apresentaram desempenho superior no ano 2000. A partir
daí, o interesse por essas alternativas de investimento cresceu
continuadamente nos países desenvolvidos, com o acréscimo
de até 100% de novos fundos por ano nos cinco anos seguin-
tes, estendendo-se rapidamente para os demais mercados.
A A B A M E C , Associação Brasileira dos Analistas do Mer-
cado de Capitais, criou em 2001 uma comissão técnica de
balanço social para liderar os estudos sobre a influência das
práticas sociais no desempenho das empresas, e avaliar o de-
senvolvimento dos investimentos socialmente responsáveis.
N u m a pesquisa realizada em agosto de 2001 com analistas
do mercado de ações e investidores, essa comissão consta-
tou que a unanimidade deles já levava em consideração as
informações sobre a ação social na hora de fazer a análi-
se das empresas. Nada menos do que 78% declararam que
o respeito ao ambiente é importante ou muito importante;
66% consideram relevante a ação social externa das empre-
sas; e 79% afirmam que o conhecimento público .sobre a
atuação social de uma companhia pode influenciar no seu
valor de mercado.

Roberto Gonzalez, diretor da A B A M E C , apresentou es-


ses dados em novembro de 2001 durante o Seminário In-
ternacional sobre Investimentos Socialmente Responsáveis,
realizado em São Paulo. Observou que a própria Comissão
de Valores Mobiliários considerava que o Balanço Social,
quando apresentado em conjunto com as demonstrações fi-
nanceiras tradicionais, é instrumento mais eficaz e completo
de avaliação das atividades empresariais. Segundo Gonza-
lez, se no passado as empresas só atendiam aos interesses
de seus proprietários e cotistas, hoje se considera que os
profissionais que as conduzem, bem como seus clientes e
fornecedores, são também consumidores e investidores. N o
futuro próximo, a organização deverá considerar a própria
sociedade como investidora.
N o mesmo evento, o diretor do Banco Real A B N A M R O ,
Luiz Eduardo M a i a , lançou oficialmente o primeiro fundo
brasileiro de investimentos socialmente responsáveis, e ob-
servou que o gestor e o empresário precisam saber lidar
com a complexidade que uma nova visão de mundo traz
ao negócio. " N o atual contexto, para ganhar dinheiro para
os acionistas de maneira sustentável, o gestor precisa ter
consciência social", afirmou M a i a . N a sua opinião, as or-
ganizações precisam de uma nova estrutura para atender às
novas exigências dos negócios, implantando em sua cultura
corporativa os fatores críticos de ação em longo prazo, ao
ponto de incluir a responsabilidade social no planejamen-
to estratégico, com objetivos e indicadores de desempenho
bem definidos.

Assim como o Real A B N A M R O decidiu criar linhas de


crédito específicas para empresas ambientalmente respon-
sáveis, e passou a estabelecer condições como respeito ao
ambiente e não-utilização de mão-de-obra infantil para con-
ceder financiamentos, outros bancos, como o B B A Credi-
tanstalt, começaram a notar na responsabilidade ambiental
um fator garantidor dos investimentos. evoluíram para a
constatação de que as corporações transparentes e social-
mente corretas tendem a revelar mais sustentabilidade. O
Unibanco, informa Christopher Wells, então analista de i n -
vestimento socialmente responsável, também constatou que
havia uma grande demanda de investidores institucionais da
Europa, Estados Unidos e Canadá por oportunidades em
negócios sustentáveis fora dos países desenvolvidos. De olho
nesses recursos, foi realizada a primeira pesquisa brasileira
sobre questões sociais e mercado de capitais, a primeira em
todo o mundo realizada num mercado emergente.
C o m base nesse trabalho do Unibanco, pode-se constatar
que sobe o valor das empresas com clara orientação social
e ambiental. Os fundos de investimento internacionais va-
lorizam principalmente os baixos níveis de consumo de má-
térias-primas, água e energia; as emissões de poluentes; as
qualificações do quadro gerencial; a transparência na divul-
gação dos resultados sociais de sua atividade; as relações in-
ternas — representadas pela diversidade do quadro funcio-
nal, das parcerias, relações sindicais e partilha de benefícios
— e externas, como as oportunidades que a empresa oferece
à comunidade e suas ações com relação à educação, saúde
e desenvolvimento cultural. E m 2005, a Bolsa de Valores
de São Paulo e o Centro de Estudos em Sustentabilidade da
Fundação Getúlio Vargas anunciaram a criação dos índices
de sustentabilidade que definiriam novos padrões para ava-
liação de empresas com ações no mercado.

VALOR DA CONSCIÊNCIA
Nesse cenário, o gestor que ainda se coloca à margem
dos debates sobre o papel social das organizações de ne-
gócios, e considera não ser papel da empresa o desenvolvi-
mento de uma sociedade melhor para todos, coloca também
em risco a sua própria sobrevivência profissional. A o lado
das habilidades que o inserem no rol dos cidadãos empre-
gáveis, cresce rapidamente o valor da qualidade de pensar
socialmente. O valor da consciência humana se sobrepõe
rapidamente ao valor das capacitações herdadas das origens
do sistema econômico e social em que vivemos. As respostas
conservadoras que pude recolher de entrevistas com cente-
nas de gerentes e executivos, a partir de 1999, retratam a
persistência de uma visão de mundo incompatível com os
rumos já visíveis do futuro.

Os eventos de setembro de 2001 e os movimentos mili-


tares e diplomáticos que se seguiram só poderão ser analisa-
dos com o devido distanciamento no tempo. M a s há muitos
indícios que contrariam a visão restritiva que caracteriza os
conservadores. Aqueles que exercem o poder de movimen-
tar as riquezas e se negam a assumir a vanguarda de u m pro-
cesso de retomada da civilização — que poderíamos chamar
mais apropriadamente de processo humanizatório — , aca-
bam por se colocar no mesmo padrão de atuação política
dos fundamentalistas que desprezam: ambos se recusam a
olhar para a frente.

Tanto os indivíduos "modernos" que se apegam a privi-


légios pessoais como os fundamentalistas religiosos buscam
obsessivamente o prazer. Estes seguem a promessa das eter-
nas virgens no paraíso de Alá, mas essencialmente gozam
o poder da negação racional do prazer, garantido pelo am-
biente asséptico da religião, em que os signos da moderni-
dade servem apenas como imagens do demônio a ser exorci-
zado. A associação do niilismo com a obsessão pelo prazer
alimenta o impulso de morte em ambos os lados do conflito
que sacode este princípio de século. N o fim do confronto,
ambos poderiam ser perdedores, se o lado mais poderoso
em termos de tecnologia e recursos financeiros consideras-
se seriamente a possibilidade de abdicar da base humanista
que é o fundamento de seu modelo, em benefício de resulta-
dos políticos imediatos.
Uma das fraturas do comportamento "pós-moderno"
— a recusa pessoal a determinados padrões, que pode se
manifestar na auto-mutilação física ou moral — tem sua
contrapartida na eventual recusa de sociedades inteiras à i m -
posição da modernidade e dos valores "democráticos", que
viajam pelo planeta agregados ao sistema econômico globa-
lizado. Alguns preferem a morte gloriosa, como fica claro
nos atentados suicidas e como é explicitado nos gritos das
multidões, que saem às ruas para pedir a extinção dos " i n f i -
éis". Outros morrem lentamente, nos centros da civilização,
intoxicados por drogas ou por uma cultura consumista que
aos poucos e inexoravelmente apaga sua identidade.

Os preconceitos acumulados em décadas de confronto


conceituai entre progressistas e conservadores, inovadores
e conformistas, têm dificultado a consideração de respostas
para a pergunta fundamental: a qualidade do conhecimen-
to capaz de produzir um sistema evolutivo, "civilizatório",
num sentido bastante amplo para conter em si os dois extre-
mos do atual espectro cultural do planeta. Quando as for-
mulações chegam perto demais de questões pouco tangíveis,
como se apresentam geralmente os aspectos humanistas,
acabam sendo classificadas como religiosas, ou "filosóficas
demais". O sistema, que carece de novos paradigmas, não
reconhece essa espécie de referência.
A maneira como nos apropriamos do conhecimento,
sempre procurando justificar u m sistema de crenças pree-
xistente, tem sido um grande impedimento à busca efetiva
de soluções para os problemas essenciais da humanidade.
A crescente mobilidade do homem o levou aos confins da
floresta africana, de onde ele retornou carregado de vírus
não-éticos como o H I V e o Ebola. (O H I V , por ironia, não
infecta apenas os corpos; atinge principalmente a liberdade
de relacionamentos que caracteriza a nossa modernidade).
D o mesmo modo, a extrema capacidade de invasão cultural
inerente à globalização foi despertar e amplificar nas aldeias
mais remotas o vírus de antigos temores, que acabaram ge-
rando o pesadelo dos atentados terroristas no coração do
mundo moderno.
Os defeitos do sistema fazem crer que já não vivemos
crises sucessivas, mas que o próprio sistema virou sinóni-
mo de crise, ou seja, suas contradições e a incapacidade de
produzir uma sensação plena de felicidade, ou de justificar
e compensar a impossibilidade dos desejos, dão a ele uma
natureza de permanente desconforto. Essa percepção, por
mais mascarada que seja na ação da mídia, por mais fanta-
siosas que sejam as versões de realidade apresentadas à so-
ciedade hipermediada, causa nas pessoas a sensação de não-
pertencimento, de u m certo desapego do destino coletivo.
Acentua-se, progressivamente, a distância entre o indivíduo
e as instituições coletivas, avalizadoras da racionalidade do
sistema social, político e econômico. Os indivíduos já não
se sentem ligados a elas, mas reservam para si créditos com
relação ao papel das instituições. o fazem de maneiras
tão pateticamente irracionais quanto a dos milhões de so-
negadores de impostos que, muito sinceramente, acusam de
inação ou incompetência os organismos públicos aos quais
negam suas contribuições.

N o fim das contas, é muito provável que todas as análi-


ses estejam, como sugere Edward Said a respeito do "con-
flito de ignorâncias", baseadas não nos sistemas propria-
mente, mas em suas distorções. Também é possível que já
não pratiquemos nossos jogos de poder sobre um tabuleiro
de realidades, mas num emaranhado de ilusões e dissimu-
lações. F o i o que aconteceu na Europa durante a segunda
metade da guerra d e l 9 1 4 a l 9 1 8 , quando os comandantes
dos exércitos em conflito, ocupados em experimentar suas
novas bombas e armas, perderam a noção dos territórios
que disputavam e de seus objetivos iniciais. A julgar pelas
disputas comerciais provocadas por medidas protecionistas
adotadas nas cidades santas do liberalismo, o jogo se faz
com regras reinventadas a cada dia. C omo aquela segundo
a qual a tortura é condenável quando praticada contra dis-
sidentes na China, mas pode ser tolerada e até patrocinada
por autoridades americanas fora de seu território, se contra
suspeitos de terrorismo.

Se é assim, os atentados de setembro de 2001 revelaram


um cenário ainda mais aterrorizante: o inimigo é muito mais
íntimo do que imaginávamos no início, e muitas vezes mais
poderoso. Não se oculta nas montanhas do Afeganistão ou
nos becos de Bagdá, mas vive tão junto a nós que não po-
demos nos dissociar dele. Está nas ruas, nas empresas, no
assento ao lado, pronto a desfazer assertivas otimistas e de-
molir com sua racionalidade irretocável os pressupostos hu-
manistas. aquele executivo que sempre tem um problema
a apontar, um indicador de ineficiência para ressaltar, uma
palavra de desestímulo para fazer abortar a inovação.

Outra vez, é aquele indivíduo que age constantemente


contra seus próprios interesses de preservação. Para enten-
dê-lo, as disciplinas que desenvolvemos até aqui talvez não
sejam mais eficazes. Os recursos que desenvolvemos, em
séculos de estudo do ser humano e da natureza, nos dão
condições de diagnosticar com muita precisão o mal que faz
ao mundo esse modelo mental. M a s de pouco adiantam os
diagnósticos, uma vez que, no estágio em que se encontra
a sociedade ocidental, a percepção da realidade sofre for-
te influência da narrativa imposta pela mídia. Percebemos
melhor as distorções do que a rotina, porque os benefícios
da sociedade democrática, na rotina, viraram banalidade e
não costumamos nos interessar por bens culturais cujo valor
agregado não percebemos.
Estudar outros momentos de ruptura na história da hu-
manidade certamente é uma forma de tomarmos consciên-
cia da realidade, que muitas vezes se apresenta dissimulada
pela profusão de informações típica da era em que vivemos.
Quando o matemático e astrônomo Pierre Simon Laplace,
no começo do século X I X , explicou de maneira clara sua
visão científica do mundo, Napoleão lhe perguntou: " E
onde entra Deus em sua teoria?" A resposta, científica, de
Laplace, foi: " E u não preciso dessa hipótese". Esse era o
momento crucial das mudanças que, cinqüenta anos depois,
seriam consolidadas pela teoria da evolução das espécies de
Charles D a r w i n , e fizeram girar a roda da modernidade no
Ocidente.

Desde então, a visão exclusivamente religiosa do univer-


so perde terreno, e a democracia representativa vem se ex-
pandindo como forma política de organização mais adequa-
da para nossa sociedade. A resistência das teocracias, mais
ferrenha quanto mais evidente se mostra sua incompatibili-
dade com qualquer visão de futuro, tem sua contrapartida
em modelos mentais sectários. Estes são opostos à necessá-
ria diversidade, e também resistem em núcleos de poder de
todos os tipos e em toda espécie de organização. U m a curio-
sidade: Laplace chegou a ser nomeado ministro do Interior
por Napoleão, mas durou apenas seis semanas no cargo.
Segundo Napoleão, tratava-se de u m "geómetra de primeiro
nível", mas que não tardou a se revelar " u m administrador
mais do que medíocre: não suscitava nenhuma questão sob
seu ponto de vista real, procurava sutilezas em tudo, tinha
apenas idéias problemáticas e possuía o espírito dos 'infini-
tamente pequenos' na administração". Nunca saberemos se
o sábio estava à frente do seu tempo, ou se simplesmente era
incapaz de lidar com problemas burocráticos.

QUEM GANHA?
Outro momento de ruptura se desenrola paralelamente à
crise gerada pela transposição dos conflitos existenciais do
islamismo para o ambiente das grandes cidades ocidentais.
Seu desenlace pode produzir, na economia mundial, um i m -
pacto maior do que o que foi provocado pelas explosões de
setembro de 2001 nos Estados Unidos. N a C hina, o proces-
so de transformação interna surge em sua trajetória de uma
economia fechada, sob forte controle, para uma economia
aberta ao comércio global. O sistema de controle que as au-
toridades chinesas herdaram do regime comunista pleno dá
sinais de fragilidade desde meados dos anos 90. os relatos
sobre as mudanças de expectativa da população diante de
fatos tão inusitados quanto a percepção da individualidade
dão conta de um processo incontrolável.

O jornalista brasileiro Carlos Drummond observa, no l i -


vro que resultou de uma série de viagens à China, publicado
em 1994, as transformações que movimentam a sociedade
chinesa nas últimas décadas: "Entre 1960 e 1970, o dote
eram os 48 pés. Tratava-se da somatória dos pés das cadei-
ras, mesas, armários e demais peças do mobiliário de uma
casa. Entre 1970 e 1980, o dote passou a ser composto de
quatro rodas: bicicleta, máquina de costura e relógio. De
1980 a 1990, os aparelhos eletrônicos passaram a fazer par-
te do patrimônio inicial esperado nos casamentos. F o i a fase
das três máquinas — máquina de lavar, geladeira e televisor.
N o período abastado e inflacionário dos anos 90, o dote
foi formado de cinco ouros: anel, colar, pulseira e brincos,
obviamente de ouro, uma forma de ostentar o progresso ma-
terial..." Dr ummond foi à família, "essa célula universal do
consumo", para retratar as transformações que se passam
naquele país. N o início do século X X I , o governo chinês
ainda tentava impedir as migrações internas para manter as
sociedades interioranas sob controle. Por isso, é o caso de se
perguntar por quanto tempo será possível conter a força do
mercado numa sociedade como a da C hina, e a que poten-
ciais conflitos estará submetido o país nos próximos anos.

Das reflexões de filósofos que estudam a sociedade so-


bremoderna, como M a r v i n M i n s k y e Daniel Dennett, surge
a suspeita de que não se pode ter uma idéia bastante clara
de qualquer problema atual sem deixar que o raciocínio va-
gueie livremente do mais amplo conceito de cultura ao esca-
ninho mais recôndito da mente humana. Seja nos rastros de
Freud ou do novo guru da inteligência artificial, Christopher
Langton. A compreensão da realidade complexa em que v i -
vemos já não é possível a partir de uma disciplina específica,
e a linguagem capaz de produzir o entendimento também
muda constantemente. Portanto, também é preciso quebrar
os lacres dos clubes de conhecimento e derrubar as torres de
marfim dos pensadores sociais.
Dennett dá uma pista de que tipo de conhecimento po-
deria nos ajudar a encontrar o caminho para u m sistema
social, econômico e político mais seguro e satisfatório. Ele
comenta a tese do biólogo Richard Dawkins, segundo a
qual entidades culturais, ou mêmes, também podem evoluir
como genes, transmitindo-se horizontalmente, entre indiví-
duos contemporâneos e, verticalmente, entre gerações. O b -
serva que a seleção natural das mêmes se dá pela chance de
que a mudança produzida venha a beneficiar exatamente as
entidades culturais que a originaram. A pergunta qui bono?
— do latim " a quem beneficia?" — é a chave, segundo Den-
nett, para o entendimento das escolhas que fazemos a cada
momento. Assim, qui bono o estado do mundo? é a pergun-
ta que pode nos apontar os entraves reais à mudança que
explode por baixo dos fatos políticos e econômicos.

Questionando-se, por exemplo, a quem aproveita o atu-


al direcionamento das pesquisas científicas, pode-se chegar
a conclusões semelhantes à que a escritora Margaret Wer-
theim, pesquisadora associada do Museu Nacional de Histó-
ria Natural, em N o v a York, ofereceu ao site edge.org após os
atentados de setembro de 2001. Ela observa que não apenas
a religião, mas também a ciência, é uma faca de dois gumes.
Não é totalmente boa nem totalmente condenável, mas, ao
contrário, é uma ferramenta nas mãos de seus usuários.
"Se os seguidores do ramo fundamentalista do Islã que
foi apropriado por Osama bin Laden são a perversão dessa
fé, suponho que também é uma perversão da 'fé' científica
aplicar o resultado dessa fé à produção de minas terrestres,
bombas de napalm, armas biológicas, bombas de fragmen-
tação e outras atrocidades de guerra", observa Wertheim.
"Se nós, da comunidade científica, podemos mandar uma
mensagem neste tempo de crise, sugiro que rejeitemos a co-
optação de nossa fé científica para a destruição". A questão
não é nova. Albert Einstein não escondia, no final da vida,
seu arrependimento por haver contribuído para a constru-
ção da bomba atômica. M a s hoje a aplicação de uma ciência
muito mais avançada a propósitos de destruição é potencial-
mente muito mais perigosa do que há seis décadas.
U m posicionamento semelhante poderia ser adotado
por profissionais de outras áreas do conhecimento humano,
como aqueles que emprestam suas idéias e sua capacidade
de trabalho para fazer o sucesso de organizações de negó-
cios. A rigor, o efeito do fundamentalismo de mercado tem
sido, a longo prazo, muitas vezes mais desastroso do que as
incursões de pastores de cabras em ações terroristas eventu-
ais. Quantas decisões de gestores não acabam produzindo
na sociedade o mesmo efeito das bombas de napalm, minas
terrestres e armas biológicas condenadas por Margaret Wer-
theim? Certamente, u m pouco de consciência nos processos
de negociação e nas tomadas de decisão dos gestores ajuda-
ria em muito a romper o círculo vicioso da violência econô-
mica, que se abate sobre grandes parcelas da humanidade e
sobre o ambiente físico do planeta.
N o nível das relações internacionais, cabe refletir sobre o
argumento do consultor Celso Boin Jr., sócio da E-Consul-
ting C or p, a respeito de u m Plano Marshall do século X X I
como instrumento para romper o isolamento de sociedades,
que leva ao florescimento das culturas fundamentalistas.
Lembrando que, após a Segunda Guerra M u n d i a l , o pro-
grama de investimentos americanos voltados para a criação
de renda e empregos na Europa Ocidental permitiu a rápida
recuperação dos países devastados pelo conflito, Boin Jr. ob-
serva que o uso da força traz medo, medo traz insegurança,
e insegurança é o cenário ideal para o descrédito das insti-
tuições e a explosão das idéias fundamentalistas.
Esse potencial destrutivo surge nas regiões com grandes
diferenças na distribuição de renda sob a forma da violência
social, diz o consultor. lembra que, para os moradores de
cidades como São Paulo, Cidade do México ou Bombaim,
a insegurança de suas vidas e de seus patrimônios equivale
ao estado de espírito produzido nas cidades americanas ou
européias, que foram colocadas na mira dos terroristas de
Osama bin Laden. M a s , segundo Celso Boin Jr., "não basta
financiar a produção de televisores no Marrocos ou de soja
no Quênia, pois eles não teriam para quem vender". O que
ele chama de um "Plano Marshall para o século X X I " seria
um ambicioso projeto de inclusão global, baseado na oferta
irrestrita de informação, junto com os recursos para a gera-
ção de renda nos locais conhecidos como focos de pobreza,
onde brotam as ideologias da destruição. Os custos, garante
ele, parecerão menores se considerado o gasto atual com
a estrutura militar ou policial, que não se revela suficiente
para garantir a segurança dos cidadãos.

Outros analistas têm feito referência à necessidade de


uma nova ordem que leve em consideração muito mais do
que as leis de mercado e o repetitivo discurso do modelo cuja
vulnerabilidade ficou clara na manhã de 11 de setembro de
2001. O professor de Harvard e diretor do HIID (sigla em
Inglês para o Instituto para o Desenvolvimento Internacio-
nal da Universidade Harvard) Jeffrey Sachs, e seus colegas,
dedicaram suas vidas à luta por uma política externa norte-
americana que tenha a ação contra a miséria como medida
preventiva para a violência.
Sachs lembra, em artigo no jornal Washington Post, re-
ferências que vinha fazendo em conferências, antes mesmo
dos atentados, de que o Plano Marshall custou aos Estados
Unidos mais do que 2 % do Produto Interno Bruto durante
muitos anos. C o m a queda do M u r o de Berlim e a conseqüen-
te redução do risco soviético, os sucessivos governos america-
nos reduziram a praticamente nada — "nem mesmo um dé-
cimo de 1% do P I B " , segundo Sachs — seu orçamento para
políticas de ajuda humanitária. C o m dois décimos de 1% do
PIB americano, diz o professor, seria possível destinar 10 bi-
lhões de dólares ao controle de doenças, educação básica, sa-
neamento e outras necessidades vitais nos países pobres, onde
vicejam as sementes do terrorismo e da violência social.

Jeffrey Sachs, cuja atuação polêmica como consultor


para o governo da Bolívia — num período de hiperinflação
—, e como adjunto do governo russo na transição para o
capitalismo, tem sofrido restrições por parte de muitos ana-
listas. M a s ele tem a seu favor também sua experiência num
posto de observação privilegiado, como presidente da co-
missão de macroeconomia e saúde da Organização M u n d i a l
de Saúde ( O M S ) . De tal posto, pôde observar uma trágica
ironia no estado do mundo: " O s países ricos são tão ricos,
e os pobres tão pobres, que o acréscimo de alguns décimos
de 1 % do PIB dos países ricos durante as próximas décadas
poderia tornar realidade o que nunca foi possível na história
humana: garantir o atendimento das necessidades básicas
de saúde e educação a todas as crianças pobres do m u n d o " .
A i n d a soa como uma impossibilidade?
M a s a busca por u m sistema novo repete o círculo de
ilusões que levou ao fracasso, a longo prazo, todas as ten-
tativas de transformação coletiva sem a essencial revolução
dos indivíduos. A questão que Margaret Wertheim coloca
para os cientistas, sobre o significado de suas descobertas,
revela-se crucial para os gestores de todos os níveis e em to-
dos os graus de responsabilidade. Assim como não se pode
aceitar como justificativa a frase "eu não sabia", não é mais
possível fingir uma desvinculação entre os atos de gestão
no ambiente restrito de uma empresa e o estado do mundo.
Pois os modelos mentais que definem as escolhas nesse m i -
crocosmo são semelhantes aos que influenciam as decisões
macroeconômicas. Como ilustra a economista Hazel Hen-
derson, gestora de um dos maiores fundos éticos do mundo,
é preciso atuar nos pontos acupunturais do sistema, para
fazê-lo reagir e alterar sua natureza perversa.

Vivemos numa sociedade de cultura massificadora, na


qual a grande maioria das pessoas — aqui incluídas aquelas
que por reconhecimento ou por ter acesso à mídia adequada
— se contenta com idéias e opiniões de segunda mão, o que,
em termos de conhecimento, equivale à máxima popular
segundo a qual é preciso "agradar o cliente". Alguns espe-
cialistas, convidados a escrever sobre os eventos de 11 de se-
tembro para mais de uma publicação, produziram opiniões
diferentes e até relativamente contrastantes entre si, guian-
do-se pelo perfil dos leitores de cada uma das publicações.
Acreditavam, provavelmente, que isso era uma demonstra-
ção de lealdade aos editores que os haviam convidado.

LEALDADE
O conhecimento que irá reinventar o sistema no qual v i -
vemos não virá de pessoas assim, por mais celebrizadas que
sejam pela mídia e por mais leais que se mostrem ao sistema.
Os novos paradigmas da sociedade virão de pensadores que
não aceitam o jugo da hipermediação e seu cenário de ilu-
sões. A lealdade, fator crucial para o sucesso, não apenas de
consultores que precisam publicar artigos para não cair no
esquecimento, mas principalmente para as empresas que estão
no jogo do mercado, exige afirmação de valores. Mesmo na
economia digital — da qual se diz que, pela ampla oferta de
alternativas, impõe o abandono da lealdade em favor da ver-
satilidade — , uma das condições fundamentais de sobrevivên-
cia é a credibilidade e o que ela produz: a capacidade de reter,
por meio da lealdade, funcionários, clientes e parceiros.

Frederick Reichheld, diretor emérito da Bain &c Company


e colaborador assíduo de publicações como The Wall Street
journal e Harvard Business Review, se deu ao trabalho de
conferir essa crença recente do mercado, bem ao gosto do
pensamento sobremoderno — a de que a lealdade estaria em
extinção. Realizou uma ampla pesquisa junto a empresas de
perfis tão diferentes quanto a rede varejista H o m e Depot e
a Dell Computadores, a Harley-Davidson e a Intuit Softwa-
res, a Cisco Systems e The N e w York Times Company. Sua
conclusão: no ambiente de negócios que floresce a partir de
redes de relacionamentos, nas quais é essencial a agilidade
para encontrar os parceiros certos, é a capacidade de criar
vínculos sólidos de lealdade, para além dos relacionamentos
de negócio, que garante a permanência do sucesso.
O trabalho de Reichheld remete a u m dos princípios
formadores das modernas relações de negócio: a confiança.
Vistos da distância de apenas pouco mais de três meses, os
fatos que sacudiram o mundo já pareciam, naquela ocasião,
ter demarcado uma linha divisória no universo dos gestores
— e da população em geral. De um lado, os cerca de 4 0 %
que paralisaram os negócios, superdimensionaram perdas
de curto prazo, cortaram empregos e engavetaram oportu-
nidades. D o outro, aqueles que continuaram tocando a vida,
conscientes de que sua estratégia não deveria ser desviada
do rumo por causa da ação de meia dúzia de fanáticos.

Cem dias após os atentados nos Estados Unidos, o Tale-


ban não existia mais como grupo político ou militar no cená-
rio do Afeganistão. o líder terrorista Osama bin Mohamed
bin Laden havia desaparecido, após ser caçado até mesmo
por seus antigos companheiros, ávidos por uma recompensa
de US$ 25 milhões. O fogo no subsolo das ruínas do World
Trade Center era declarado extinto e os indicadores econô-
micos apontavam para uma retomada da normalidade.
Os olhos e ouvidos dos investidores e estrategistas em
geral se voltavam para o Cone Sul, onde a Argentina se con-
vulsionava para pagar a conta de décadas de governantes
demagogos e corruptos, debatendo-se ainda contra o fan-
tasma de Juan Domingo Perón. Os analistas, que haviam
soprado a brasa do catastrofismo ao prever que as tropas
americanas iriam "atolar" nas areias de Kandahar, como
no Vietnã, escreviam exatamente o contrário e ninguém se
dava conta. C omo se a mídia, os formadores de opinião e
o leitor comum houvessem perdido a consciência. Ocorreu
a invasão do Iraque e a destituição de Saddam Hussein, o
conflito entrou em fase endêmica e o mercado colocou a
questão numa gaveta. M a s uma nova crise nascia no cora-
ção do sistema, gerada pelo inimigo interno mais predador:
o destruidor da confiança.
Está presente desde os anos 1940, nos Princípios de L i -
derança Scanlon, criados por Joseph Scanlon, no Massachu-
setts Institute of Technology, a constatação de que a prin-
cipal qualidade de u m líder é a integridade. A partir daí se
constrói a confiança, num caminho que tem como pontos
principais a definição de identidade do grupo liderado, seja
uma família, uma empresa ou uma nação, e essa identidade
só se torna explícita se essa comunidade desenvolver a cons-
ciência de si mesma.

Isso quer dizer que a identidade de uma empresa depende


do auto-conhecimento de seus integrantes. Está na raiz dos
problemas econômicos atuais, sem qualquer dúvida, a evi-
dente falta de integridade de muitos líderes — entre os quais
já se colocou sob suspeita o líder da nação mais poderosa
do planeta. Sem integridade, perde-se progressivamente a
identidade comum às comunidades humanas, as ações cole-
tivas na direção do bem comum são desestimuladas e uma
parcela crescente dos indivíduos passa a agir no sentido con-
trário aos seus próprios interesses de preservação. Perdem a
consciência de seu papel social e até mesmo do sentido de
sua existência.
A qualidade que protege é exatamente essa, que parece
faltar no contexto cultural que define as ações políticas e
econômicas desta transição: consciência. A partir dessa mes-
ma evidência, podemos adivinhar que a resposta às inquie-
tações de David Tayne e seus parceiros do R ocky M o u n t a i n
Institute é o sistema que deveríamos chamar de capitalismo
consciente. A qualidade que pode proteger a sociedade, que
constitui o fundamento de u m sistema econômico moral-
mente mais aceitável, é essa consciência claramente descrita
por Margaret Wertheim: simples, límpida e absolutamente
racional.
M a s um sistema como tal não pode ser construído a
partir de grandes movimentos ou de revoluções coletivas,
principalmente se faltam aos líderes formais integridade e
consciência. Essa conquista só pode ser obtida a partir da
ruptura pessoal com antigas premissas e com a irracionali-
dade imposta por décadas de um racionalismo perverso.
preciso que em cada posto de trabalho, em cada mente, se
desenvolva a consciência de que um sistema mais justo, me-
nos vulnerável e plenamente respeitoso para com a natureza
humana, nasce em cada indivíduo. Grandes sistemas não
são capazes de produzir essa transformação. Ela se dá em
cada célula do sistema. Só você pode fazer isso.

A era do conhecimento, que se sobrepõe à celebrizada era


da informação, é também a era da responsabilidade pessoal
pelo bem-estar coletivo. Ela não começa com gurus isolados
no alto do Himalaia, ou nas mentes espertas de autores das
obviedades que lotam as livrarias de aeroportos. Ela se de-
senvolve nos corações e mentes dos indivíduos encarregados
de construir a riqueza e o desenvolvimento.
Os indivíduos educados para liderar pessoas e processos
precisam fazer uma escolha diferente para suas vidas. Pes-
soas que, como você, contam com o que há de melhor em
recursos de auto-desenvolvimento, viajam, conhecem a d i -
versidade do mundo, têm a oportunidade de estudar e, por-
tanto, estão qualificadas a liderar a mudança que se apre-
senta como escandalosamente necessária. E m suas mãos
está depositada a responsabilidade de administrar negócios
que, ao favorecer a sustentabilidade de uma comunidade,
contribuam para o desenvolvimento da sociedade em geral.
Nada justifica a mediocridade geral que predomina nos am-
bientes corporativos. N a d a justifica a omissão dos gestores
diante do quadro de violência e desigualdades sociais. Só a
revolução do indivíduo produz esse resultado coletivo. A
responsabilidade social dos gestores começa pela missão de
desenvolver sua própria consciência.

Para refletir:

1. V O C Ê SE SENTE BENEFICIADO PELO RESULTADO SOCIAL DE UMA


EMPRESA N A QUAL INVESTIU?

2. PENSE N O QUE VOCÊ SENTIU DURANTE os MESES DE SETEMBRO


OUTUBRO DE 2 0 0 1 , LOGO APÓS OS ATENTADOS E M N O V A Y O R K
WASHI NGTON: SEUS SENTIMENTOS ESTAVAM ALINHADOS C O M
A REALIDADE REVELADA A LONGO PRAZO?

3. LEMBRE-SE DA EUFORIA C O M AS EMPRESAS PONTO C O M E M


1 9 9 9 . Q U A L ERA O SEU NÍVEL DE CONSCIÊNCIA SOBRE A CHA-
MADA " N O V A ECONOMIA" ?
XVIII—As capacitações evolutivas

A idéia de que os modelos de educação


de executivos se encontram esgotados me
ocorreu em uma conversa com o físico F r i -
tjof Capra em seu restaurante predileto de
Berkeley, a poucas quadras da Universidade
da Califórnia. Foi Capra quem me inspirou
a idéia de que o mal-estar na globalização
nasce de uma contradição entre processos
tradicionais de educação e a exigência de
uma capacitação que honre a natureza evo-
lutiva do ser humano.

O paradoxo representado pela evidência


de que, quanto mais capacitado estiver o
gestor para a competição num jogo desones-
to, mais próximo ele estará de uma derrota
definitiva, ficou claro para mim durante aquela conversa.
Estávamos no intervalo de um seminário sobre o Brasil, no
qual pesquisadores, estudiosos e líderes sindicais e políti-
cos — entre os quais a então primeira-dama Ruth Cardoso
— conduziam um debate que não podiam manter em seu
próprio país. Capra estava entusiasmado com Philosophy
in the flesh, obra dos filósofos George Lakoff e M a r k John-
son, e com as possibilidades de uma revolução na educação,
a partir da constatação de que temos um modo natural de
aprender com base nas metáforas essenciais da vida. " M e s -
mo os mais avançados educadores ainda trabalham com o
modelo da acumulação de conhecimento. Desprezam a d i -
nâmica de todas as relações entre os seres vivos e o ambien-
te", comentou Capra.

A l i mesmo, alinhando o que havia visto em dez anos de


cursos, seminários e "vivências" para gestores, conferi com
ele alguns aspectos do que deveria ser a inteligência básica
de um processo de educação em profundidade. U m processo
que de fato encorajasse o ser humano a assumir seu "ponto
de mutação" e se integrar como agente evolutivo na "teia da
v i d a " . Observamos que programas de "capacitações perma-
nentes" ou "capacitações plenas" eram a moda na maioria
das instituições consideradas de vanguarda. Porém, as opor-
tunidades de aprendizado eram preenchidas por educadores
com grande talento teatral, mesclando técnicas de psicolo-
gia e conteúdos de auto-ajuda, para mover os profissionais
de seus ambientes emocionalmente assépticos ou viciados.
D o nível das bases até as gerências intermediárias, a peda-
gogia da empresa ainda se apoia em metas de produtividade
e declarações de valores e missão. Estas inspiram cursos e
atividades com objetivos específicos e pontuais, quase sem-
pre destinados a transmitir para o organismo da empresa
os traços de " D N A " , que se acredita estejam presentes nos
cargos de direção. Você sabe que nem sempre isso é verdade.
Muitas vezes, o D N A da empresa é preservado no chão de
fábrica, enquanto os gestores da cúpula se aventuram em
modismos.

Segundo Capra, não se pode ignorar que, tanto no nível


celular como nos fenômenos cósmicos e nas relações huma-
nas de todos os tipos — incluídas as relações corporativas
e de negócios — , tudo segue u m mesmo padrão, o padrão
das redes interconectadas. U m programa de capacitações
evolutivas precisa ter um propósito bem diferente do que
temos visto, embora possa utilizar as mesmas metodologias
de programas tradicionais. O propósito fundamental é pro-
duzir, em toda a organização, um estado de espírito voltado
para a busca permanente de níveis mais elevados de consci-
ência, em busca da compreensão do papel de cada u m nessa
rede da vida.

INFORMAÇÃO VIDA
Vale lembrar que a principal distinção entre o ser huma-
no e as outras formas de vida conhecidas é o modo como
lidamos com informação. O que progressivamente nos dis-
tancia das formas de vida mais primitivas é o sentido evo-
lutivo que damos ao uso da informação. Se apenas usamos
o que sabemos para alimentar nosso organismo, estamos
muito próximos de uma samambaia ou de uma ostra. Se
usarmos a informação para produzir conhecimento — no
sentido mais nobre, em que conhecimento significa evolu-
ção da consciência —, honraremos o verdadeiro sentido da
evolução no que se refere à humanidade.
Em algum ponto ao longo da sua existência neste planeta,
os seres humanos desenvolveram os sistemas físicos, métodos
e processos sofisticados para a comunicação verbal. A o lado
dos códigos específicos que se estabeleceram nos diversos gru-
pos humanos, conforme o ambiente em que se localizaram,
desenvolveu-se uma linguagem natural, resultante da expres-
são de emoções comuns a todos os indivíduos, que consiste
em um método universal para o processamento de informa-
ção. Desde então, o processo de evolução do homem tem se
caracterizado pelo desenvolvimento de modos cada vez mais
sofisticados para registrar, processar, transformar informação
em conhecimento e, com o conhecimento, ampliar sua per-
cepção, sua consciência de si mesmo e do universo.

Não construímos sociedades tão sofisticadas e funcionais


como as de algumas outras espécies. Isso talvez aconteça
porque nosso papel no universo não seja exatamente conso-
lidar um modelo de vida, no qual todos os indivíduos pos-
sam cumprir estaticamente um papel — de soldado, rainha
ou operário — até o fim da existência, mas, pelo contrário,
o de personificar a própria dinâmica evolutiva do universo.
Desde que manejamos informação para criar constantemen-
te conhecimento e produzir consciência, estamos condena-
dos à angústia permanente do não-conformismo, dessa i m -
possibilidade para a consolidação e a cristalização.
U m programa de capacitações evolutivas deve levar em
conta essa característica do ser humano. Ela se torna pro-
gressivamente mais evidente na medida em que se sofisticam
os novos sistemas de informação. O u seja, na medida em
que a própria ciência — conhecimento — nos convence a
abandonar as premissas do mundo mecânico e a assumir
linguagens, conceitos e atitudes compatíveis com essa nova
consciência de mundo, produzida pela sofisticação dos sis-
temas e processos de informação.
A própria ciência, na medida em que se alimenta de
equações, indica que o conhecimento capaz de fazer evoluir
a consciência humana pode brotar até mesmo da não-ci-
ência. Pois uma aposta intuitiva no conhecimento futuro,
cientificamente provável, autoriza outra aposta intuitiva
em outras formas de conhecimento, cujas probabilidades
de comprovação ainda não estão no campo de visão do
cientista. A rápida aceleração das conquistas científicas tem
muitas vezes cegado os pesquisadores para o reconhecimen-
to de que suposições feitas há milênios eram verdadeiras.
C omo os conceitos de fluxo (energia) intuídos por indianos
e chineses, e celebrizados por Buda, que foram confirmados
modernamente pela física quântica.

Calcula-se que um cérebro humano contém cerca de 10


bilhões de neurônios, cada u m deles capaz de processar i n -
cessantemente uma média entre dez e quinze bits de infor-
mação por segundo. Sabe-se também que a capacidade de
processamento e correlações entre os neurônios se amplia
continuamente durante a vida ativa, na medida em que au-
mentam o número e o grau de sofisticação das informações
processadas. C o m o u m computador, que evoluísse a partir
das exigências evolutivas dos programas que contém.
Assim, por exemplo, a capacidade de um indivíduo para
calcular o tempo de execução de uma música simples num
instrumento primitivo, como um pandeiro, pode evoluir para
capacidades muito mais complexas, como a de conduzir toda
uma orquestra formada por instrumentos de variados graus
de sofisticação. A o mesmo tempo, esse mesmo indivíduo pode
estender suas habilidades a outros campos, como a culinária,
o esporte, o relacionamento interpessoal, a negociação, a li-
derança, artes em geral, a capacidade de fazer escolhas etc,
pela transposição para essas áreas de um conhecimento evo-
lutivo a respeito de ritmo, ou matemática intuitiva.

O conceito de capacitações evolutivas leva essas premis-


sas em consideração. Trata-se de assumir como verdadeiro
que, no jogo da evolução, o papel do ser humano se distancia
da evolução física comum às demais espécies — que conduz
no máximo aos recordes olímpicos e à popularização dos
esportes "radicais" — e se aproxima da evolução de consci-
ência. Esta, sim, é capaz de conduzir a um sistema econômi-
co e social que faça justiça à humanidade como espécie que
respeite a diversidade biológica e cultural do planeta, e que
seja efetivamente um modelo sustentável e menos vulnerável
a crises. N o entanto, essa premissa fundamental implica a
disposição para navegar na contra-mão dos grandes siste-
mas por meio dos quais nos informamos.

A mídia, as escolas, as empresas e a sociedade em geral


embarcaram na maratona da evolução meramente física: das
metas cada vez mais desafiadoras, dos desempenhos impro-
váveis, que levam indivíduos e organizações à dependência
de anabolizantes químicos, emocionais e contábeis. Assim
como a escolha da superação física como meta de evolução
pode levar os indivíduos à deformação e à alienação mental,
também as empresas acabam sendo conduzidas à perda de
seu perfil, à degeneração de sua cultura e à alienação estraté-
gica, quando limitam o alcance e a compreensão de seu valor
pela medição de sua produtividade, posicionamento no mer-
cado, capacitação tecnológica ou desempenho financeiro.
O tão celebrado balanced scorecard deve basear-se num
conceito de desempenho sustentável, nascido de uma visão
profunda do empreendimento. C o m o a junção dos vários
tipos de capital, para o desenvolvimento de uma instituição
de negócio voltada para a melhoria contínua da consciência
humana. O ponto de partida é a compreensão das metáforas
fundamentais da existência, que permeiam toda atividade
humana. Por exemplo: se reconhecesse como sendo da na-
tureza do capitalismo (como, de resto, da própria biologia
e da cosmologia até onde a conhecemos) que o progresso
se faz em estágios contínuos de expansão e retração, uma
estratégia de gestão consciente deveria levar em conta certos
movimentos cíclicos que afetam a própria energia da orga-
nização, potencializam ou restringem o seu desempenho.

A educadora brasileira Márcia Lerinna, ex-executiva de


uma multinacional do tabaco, que se dedica a assistir em-
presários e gestores na busca de melhores condições de vida,
usa uma receita muito simples. Ensina seus clientes a obser-
var, sob os pontos de vista de variadas culturas e disciplinas,
os ciclos vitais encontrados na natureza. A partir daí, ela os
conduz à compreensão de como funcionam os seres huma-
nos e suas associações. C o m base nesse auto-conhecimento,
essas pessoas podem escolher propósitos de vida mais gratifi-
cantes do que, por exemplo, ampliar seu patrimônio pessoal,
e podem transferir esses propósitos para toda a organização.
E m seu retiro no sul da ilha de Santa Catarina, ela recebe
indivíduos dotados de vasto poder pessoal, que aceitam fa-
lar de seus sonhos, que não recusam informações sacadas de
cartas de taro, do I-Ching ou de mapas astrológicos.
Alguma coisa radicalmente nova está ocorrendo, e o ci-
dadão racional fica inquieto e angustiado por não ser capaz
de compreender o que se passa. Nas ciências, desenvolvem-
se novos meios de entender os sistemas físicos, inclusive o
cérebro humano, novas maneiras de pensar sobre o pensa-
mento, avanços em todos os campos do conhecimento e a
criação de campos inéditos para a pesquisa, que conduzem a
premissas surpreendentes sobre quem somos e o que signifi-
ca nossa presença neste planeta. A crescente fusão da mente
humana com a inteligência da máquina (já aqui erradamente
denominada máquina), dá início à era que alguns cientistas
estão chamando de " a singularidade".

Uma nova noção de progresso toma corpo, e substitui a


idéia de exploração crescente das capacidades de produção
pela idéia de desenvolvimento exponencial da qualidade de
vida e sofisticação da percepção de valor. Tal desenvolvi-
mento não é apenas vinculado a um produto ou serviço em
si, mas é correlato ao potencial desse produto, ou valor, de
causar prazer consciente. O prazer proporcionado a um i n -
divíduo não pode ser gerado pelo aumento da angústia de
outro, mesmo desconhecido. Essa consciência de rede in-
terconectada e interdependente se consolida no ritmo em
que o conhecimento científico avança. Isso ocorre tanto na
cosmologia como na microbiologia, na neurologia como na
eletrônica, e aponta para um ponto comum, singular — o
ser humano evolui no sentido da consciência cósmica.
A busca de uma capacitação evolutiva remete a esse novo
conhecimento: ninguém pode ensinar você a dar partida a
esse processo. Por outro lado, qualquer pessoa, evento ou
objeto pode ajudá-lo a dar saltos significativos nessa capa-
citação. M a s o ponto inicial depende de você exercer aquilo
que é a maior prerrogativa do ser humano como espécie,
aquilo que o diferencia das' outras formas de vida — o livre-
arbítrio, capaz de gerar u m contexto de evolução consciente
para toda informação que chegar ao seu conhecimento.

A aceitação dessa singularidade permite entender o que


parece incompreensível na aparente complexidade das rela-
ções do nosso tempo. A mesma e singular questão da con-
fiança — que, ao faltar, leva à paralisia uma corporação de
bilhões de dólares, pela incapacidade de seus gestores de
tomar partido entre interesses divergentes de dois acionis-
tas — , é determinante na qualidade da comunicação entre
executivos que partilham a mesma mesa de reuniões por
décadas. Sentimentos banais como ciúme e inveja podem
conduzir à perda de oportunidades e, nas circunstâncias de
alta competição em que estão imersos muitos setores, po-
dem determinar perdas irreparáveis e o fim de um empre-
endimento.
A questão da ética, sempre tratada com artificialidade
e com certo tom de subjetividade, torna-se tangível com a
crise provocada pela quebra de confiança do mercado, em
função da revelação de fraudes contábeis num grande nú-
mero de corporações transnacionais. A percepção do efeito
dessas atitudes antiéticas sobre os negócios ficou patente no
final de julho de 2002, quando a imprensa de todo o mundo
noticiou as primeiras prisões de executivos importantes. A
prisão do fundador da Adelphi Communications, John R i -
gas, de seus filhos Michael Rigas e Timothy Rigas, mais o
ex-vice-presidente da área financeira, James Brown, e o ex-
diretor de comunicações internas, Michael Mulcahey, ocor-
rida no dia 24 de julho de 2002, sob acusação de fraude
contábil, se tornou um marco do primeiro movimento no
sentido de repor a confiança no mercado.
Como conseqüência direta, a Bolsa de N o v a York (NYSE)
apresentou sua maior valorização em um só dia em quase
quinze anos. O índice D o w Jones, que agrega as trinta em-
presas com maior peso na N Y S E , subiu 6,34%. N o mes-
mo dia, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos
tornava públicos os estudos para a criação de um "Plano
M a r s h a l l " para o Oriente Médio, como tentativa de rom-
per o ciclo vicioso no qual a escalada da violência impede
o desenvolvimento, enquanto o agravamento da situação
econômica alimenta a intolerância e a violência. O sistema
parecia sacudir-se de sua letargia e preparar uma mudan-
ça real de paradigmas. Era claro para muitos analistas que,
naquele rumo, o que até então havia significado grandes ga-
nhos para poucos conduzia rapidamente a uma situação de
perdas totais para todos.
M a s os movimentos institucionais têm pouco valor no
longo prazo sem a consciência dos indivíduos. Mesmo para
o gestor honesto e coberto dé boas intenções, a realidade das
ações no ambiente das corporações continua a ser o retrato
do baixo nível de consciência. A questão da responsabili-
dade social, por exemplo, ainda é comumente restrita aos
departamentos de comunicação e marketing, como se fosse
apenas mais um instrumento para a melhoria da imagem
pública da empresa. N a verdade, a ação empresarial social-
mente responsável exige um nível de consciência mais eleva-
do do que os valores pessoais que os gestores expressam no
dia-a-dia. Outra vez a questão se coloca: Por que a maioria
dos gestores costuma agir contra sua consciência?
E m mais de uma ocasião, em conversas particulares com
alguns dos muitos executivos que pude entrevistar nos últi-
mos anos, obtive deles expressões sinceras de amor ao pró-
ximo, compaixão, respeito à diversidade e tolerância. E m
número igual de ocasiões, tive oportunidade de observar os
mesmos indivíduos a expressar rancor e ódio, preconceitos
irracionais e sentimentos mesquinhos. N u m a dessas ocasiões,
pude no mesmo dia conduzir um debate sobre os males que
o turismo sexual provoca nos negócios do Brasil e, poucas
horas depois, ouvir o convite para uma festa na qual seriam
ofertadas bebidas e "meninas".

N u m congresso recente, que reunia empresas de comu-


nicação e fornecedores de tecnologia, em São Paulo, u m
gestor de uma das maiores empresas participantes foi ridi-
cularizado por se haver negado a participar de uma dessas
"celebrações". N o mesmo instante, cortou de sua lista de
fornecedores o promotor da "festa". Infelizmente, por al-
guma razão a maioria se sente constrangida, como se todos
fossem obrigados a partilhar esse hábito de alto risco e ne-
nhuma ética para os negócios.
Muitos executivos envolvidos com exportação se quei-
xam de que a imagem de alguns países, como o Brasil, de
ser uma terra de mulheres fáceis e homens irresponsáveis,
dificulta o seu trabalho. M a s poucos se dão conta do papel
que representam ao ciceronear clientes em visitas a boates
ou, como já pude observar, ao ajudá-los a contratar prosti-
tutas para visitá-los no hotel.
Sem bordejar os aspectos morais desse comportamento,
sem mesmo conduzir a questão de volta ao problema do
baixo nível de consciência predominante em alguns ambien-
tes corporativos, convém refletir sobre o alto risco que tais
hábitos representam para as empresas. N o primeiro semes-
tre de 2000, um empresário brasileiro era processado na
Justiça americana pelo escritório Criminal Justice Associa-
tes, por supostamente haver provocado a contaminação de
pessoas com o vírus da AIDS em festas patrocinadas por ele.
Você ou sua empresa alguma vez já incluíram essa questão
em suas análises de risco? Você já viu essa questão colocada
em algum seminário sobre gerenciamento de crise? Agora
imagine o tamanho da crise que esse empresário e seu grupo
foram obrigados a encarar por conta de suas "festinhas".

inevitável que o mercado global passe a observar com-


portamentos de alto risco como esse, nas análises de valor
das companhias. Mesmo com algumas polêmicas em torno
de índices como o Financial Times Stock Exchange For Good
(FTSE4Good) — apelidado na City londrina de FTSE4Bad,
pelo estrago que faz às empresas sua exclusão da lista, e o
Dow Jones Sustainability Index (DJSI) — que, pela mesma
razão, alguns analistas apelidaram de Dow Jones Screwing
Index — cresce rapidamente o número de fundos que lis-
tam companhias consideradas " d o bem". consolida-se no
mercado a convicção de que as corporações com boa ima-
gem institucional tendem a durar mais e a apresentar mais
estabilidade.
A tendência é claramente uma contrapartida da redução
da presença do Estado na economia. M a s , com certeza, refle-
te uma tomada de consciência global a respeito de questões
relativas à deterioração do meio ambiente e do ambiente
social. Porém, o desafio, qüe já é definitivo para a empresa
como instituição, também se torna um fator de sobrevivên-
cia profissional para o gestor. A professora Valéria da Vinha,
do Instituto de Economia da Universidade Federal do R i o de
Janeiro, observa que a próxima geração de executivos terá
de estar capacitada para lidar com todos os atores sociais
envolvidos no negócio. "Familiarizado com conceitos até
recentemente restritos ao mundo das entidades do chamado
terceiro setor e das rodinhas dos cientistas sociais, o novo
executivo enfrenta mais um desafio: construir e gerir, com
a mesma eficiência das suas demais atividades, o seu ativo
social", afirma a economista no boletim Meio Circulante,
publicação da organização Amigos da Terra — Amazônia
Brasileira.

Internalizar a noção de responsabilidade social tem sido


a palavra de ordem em muitas empresas, pela necessidade
e conveniência de inserir na cultura corporativa os valores
propostos externamente pela organização. M a s , acima de
tudo, é fato comprovado em grande número de pesquisas
que os funcionários engajados em ações de responsabilidade
social são, em geral, mais produtivos e mais comprometidos
com os resultados da companhia.
M u i t o além disso, porém, está o verdadeiro significado de
um programa pessoal ou corporativo de capacitações evo-
lutivas: pessoas com elevado nível de consciência também
usam melhor suas inteligências, porque desenvolvem uma vi-
são de mundo mais clara. Reconhecem as dificuldades natu-
rais da vida, não se deixam abater facilmente pelas angústias
e frustrações do dia-a-dia e absorvem muito rapidamente
as mudanças. Gostam da inovação, são os estimuladores de
modelos mentais ampliadores em todo o ambiente de traba-
lho e nas relações externas da empresa. mantêm sempre
elevado o nível de otimismo e confiança. M a s também são,
por isso mesmo, portadores de senso crítico mais atilado e
estão permanentemente alertas contra desvios de valor.

Pessoas assim tornam-se em pouco tempo agentes de


transformação. Por esse motivo, são candidatos naturais
à liderança e, em determinados ambientes, são também o
termômetro de que alguma coisa não vai bem. Segundo o
professor e articulista Carlos Alberto D i Franco, diretor do
Centro de Extensão Universitária de São Paulo e especialista
em ética da comunicação, " a gente sabe que uma empresa
está com problemas graves quando começa a perder seus
colaboradores mais conscientes, porque seus dirigentes não
suportam o senso crítico". Por outro lado, funcionários com
elevado nível de consciência são um suporte inestimável no
atual cenário de transformações radicais e descontinuida-
des de todos os tipos. A o mesmo tempo em que funcionam
como radares de novas oportunidades, também atuam como
âncoras dos valores da empresa.

U m programa de capacitações evolutivas deve se basear


em princípios que honrem a natureza humana e a fonte ines-
gotável dos recursos da mente, e rompam velhas premissas da
educação pelo aprendizado linear. Sua metodologia leva em
conta os novos paradigmas da transdisciplinaridade, segun-
do os quais o aprendizado se dá simultaneamente por todos
os tipos de inteligência e todas as fontes. Considera ilimitadas
as fontes de conhecimento e delineia claramente o que é fato
científico comprovado, sem no entanto desprezar o poder
de aprendizado contido nos mitos, tradições e artes, como
instrumentos de significação utilizados pelo ser humano. A
razão, a emoção e a espiritualidade são ambientes igualmente
valiosos nesse processo, e a busca dos significados mais pro-
fundos é o objetivo em cada etapa. Pressupostos como ética e
respeito à diversidade são a essência desse aprendizado.
Nesse processo, o intelecto é apenas uma ferramenta de
consolidação, aplicada nas etapas em que se torna necessá-
rio ou conveniente verbalizar ou representar o aprendizado.
A não-ação, ou confiança plena no fluxo do conhecimen-
to, é a atitude recomendada. Se, no meio de uma atividade
de aprendizagem, você tiver a sensação de haver " p e r d i d o "
parte do fluxo do conhecimento, apenas confie: no momen-
to seguinte, tudo se fará claro.

Luminares do conhecimento humano, como Albert Eins-


tein, têm revelado que esse é o seu método de criar conhe-
cimento. A humildade é o caminho da receptividade e do
melhor resultado. Existe o momento certo para fazer a
pergunta, mas ela só deve ser externalizada depois de feita
subjetivamente. E m geral, a resposta brota de modo espon-
tâneo. A dificuldade é como o ponto de partida: só existe
porque existem múltiplas possibilidades. A realidade que se
seguir será criada por uma escolha entre todas essas possi-
bilidades. Portanto, a dificuldade é sempre a oportunidade
para o exercício do livre-arbítrio, uma oportunidade para a
criação da melhor realidade possível. A solução mais sim-
ples — no sentido que tem a palavra, ao definir aquilo que
está mais próximo de sua verdade — é aquela que produzirá
a realidade mais condizente com a verdade que está na raiz
daquela dificuldade inicial.
O processo de capacitações evolutivas pressupõe tam-
bém o reconhecimento de que a criação do conhecimento
é sempre um movimento intermitente entre o caos (quando
determinada realidade não oferece um sentido aparente) e
a ordem (quando o sentido se torna claro para nós). Não
se pode desenvolver esse processo sem a atitude correta do
aprendiz, que se inicia com a aceitação do caos como parte
do processo de criação de significado. C o m plena confiança
em que é da natureza humana a evolução da consciência, a
atitude correta do aprendiz é a da mente aberta, do terreno
sempre pronto para ser semeado.

A simplicidade e a independência precisam conviver com


a disciplina, pois é preciso tirar de cena os sentimentos mes-
quinhos que dificultam a expressão do que há de melhor
em você. C omo no exercício da meditação, em que progres-
sivamente apagamos os temores e desejos, no processo de
capacitação evolutiva é preciso atentar para os momentos
de percepção ou insights. também registrar seus significa-
dos de alguma forma e vivenciar intensamente o prazer que
proporcionam, pois esses momentos nos dão a percepção
do processo evolutivo da consciência, exatamente como a
quebra de um recorde pessoal dá ao atleta a percepção de
ganho no seu processo evolutivo corporal.
Contrariamente ao processo de capacitação convencio-
nal, que exige a significação lógica de tudo que se apreende
como condição para o que se considera aprendizado, a ca-
pacitação evolutiva leva em conta que a consciência da reali-
dade não depende de raciocínios perceptíveis e mensuráveis.
Segundo o cientista da computação e matemático M a r v i n
Minsky, a consciência é "uma enorme mala que contém tal-
vez quarenta ou cinqüenta diferentes mecanismos, que estão
envolvidos numa gigantesca rede de intrincadas interações".
A o longo da história da evolução humana, suas respostas
precisaram sempre ser rápidas. Se o ser humano esperasse
para analisar cada evento em que sua intuição lhe dissesse
para ir em determinada direção ou para se esconder, já esta-
ríamos extintos.

Nosso cérebro funciona por processos que envolvem as


atividades de muitas dezenas de milhares de genes e contém
muitos milhares de diferentes sub-órgãos, cada um deles
exercendo uma variedade de funções. Enquanto não enten-
dermos completa e profundamente o funcionamento do cé-
rebro e da mente humana, temos que continuar a honrar a
consciência e sua linguagem — a intuição — , e confiar nelas
para seguir aprendendo e evoluindo. Basta dar início, cons-
cientemente, ao processo de capacitações evolutivas, para
que surja em nós u m senso interior de verdade que se con-
solida como intuição. Essa é a ferramenta por excelência da
evolução de consciência que buscamos.
A intuição se desenvolve como uma espécie de guia para
as escolhas que faremos nesse processo. Lembre-se: pode-
mos escolher entre viver a circunstância humana, com todas
as angústias, conflitos, limitações e medos, e viver a verda-
deira natureza humana, cujas possibilidades evolutivas são
infinitas. A escolha é de cada um. N a vida privada ou na
vida corporativa, no fim das contas essa escolha é que vai
definir se você faz diferença ou se é apenas mais um mani-
pulador de dados e de pessoas. Sentir-se mal por estar bem,
num sistema que claramente produz o mal para a maioria é,
no fundo, um bom começo.
Notas

* No capítulo I, mesclei três personagens, para dificultar a identificação


do entrevistado.
** A entrevista, gravada em vídeo, é propriedade da empresa Amana-
Key.

Vale a pena consultar

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Campos, Salamandra/ Núcleo Editorial da UERJ, 1980.
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WIENER, Norbert, Cybernetics or the control and communications in the
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Luciano Martins Costa, jornalista e escritor,
é conferencista com experiência internacional.
Publicou o livro de contos “Histórias sem salvaguardas”,
os ensaios “Escrever com criatividade” e “O diabo no
poder”, além da presente obra, premiada em 2006 pela
União Brasileira de Escritores/RJ, e os romances “As
razões do lobo”, “Satie”, “Sanctus Cunnus” e
“Contraparto”. É também poeta e dramaturgo.

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